CAPÍTULO VINTE E UM
Sarai
Saio de manhã cedo, usando o carro que Victor deixou na garagem para o caso de eu precisar em uma emergência. Ir até a academia de krav maga de Spencer e Jacquelyn em Santa Fé não é exatamente uma emergência, mas mesmo assim é importante para mim. E não posso mais ficar parada em casa desse jeito, quando poderia estar praticando.
Estou treinando com Spencer há meia hora. Odeio o fato de ele pegar leve comigo, mas acho que ao mesmo tempo me arrependeria de pensar assim caso ele decidisse me bater com aquele punho que parece um tronco de árvore.
— Acompanhe os movimentos dos ombros — orienta Spencer, movendo-se em círculos ao meu redor, nós dois meio curvados, com os braços em guarda alta à frente. — Soque. Um. Dois. Esquerda. Direita. — Ele demonstra enquanto fala, lançando seus punhos imensos no ar diante dele.
Faço exatamente o que ele manda, de novo e de novo, para aperfeiçoar a técnica. E então o golpeio com força, mas ele intercepta e se defende com facilidade de todas as minhas tentativas.
Ele me ataca e, por instinto, me esquivo e ando ao redor dele, longos fios do meu cabelo que escaparam do rabo de cavalo presos entre meus lábios e grudados no nariz. O suor escorre da minha nuca e desce pelas costas, grudando na pele o tecido fino da camiseta preta de um jeito nojento.
Spencer me ataca de novo e eu uso algo que já aprendi, golpeando-o no meio da garganta, um lugar vulnerável, o que o faz perder o equilíbrio no mesmo instante. Parto para cima dele com velocidade antes que ele consiga se recuperar e seguro sua nuca, curvando-o para baixo e enfiando o joelho em seu rosto, uma, duas, três vezes seguidas.
Ele cambaleia para trás, apertando a mão sobre o nariz. Se Spencer quisesse me machucar de verdade, não teria parado. Teria lutado contra a tontura e a dor e continuado a me bater até me matar.
— Cacete, garota — diz ele, misturando riso à voz grave, abafada pela mão. — Acho que você quebrou meu nariz.
Balanço a cabeça para ele, decepcionada por ele ter parado, embora tenha aprendido semanas atrás a aceitar que ele sempre vai parar.
— Não, acho que ele já era torto — rebato, brincando.
Ele ri de novo e tira a mão do rosto para apontar para mim com um ar ameaçador, com o olho direito mais fechado que o esquerdo.
Vou até a borda do tatame preto, onde minha toalha está jogada, e a uso para enxugar o suor do rosto. Puxando a gola da camiseta, tento me refrescar, contente por estar usando uma calça de malha preta aderente que reduz o suor.
Fredrik passa pela porta alta de vidro na entrada da academia. Não parece feliz.
Ele atravessa o tatame usando um jeans escuro, camiseta cinza bem justa e um All Star branco novinho em folha com cadarços vermelhos. Não consigo decidir o que é mais imperativo: explicar para ele o que estou fazendo ou perguntar se ele acordou de manhã achando que era outra pessoa.
— Como você me encontrou? — Jogo a toalha molhada no tatame, ao lado dos meus tênis pretos.
— Por que você saiu? — pergunta ele, por sua vez.
Reviro os olhos e balanço a cabeça, olhando para Spencer, não muito longe, que observa Fredrik e a mim com curiosidade, os enormes braços cruzados rigidamente sobre o peito maciço. A mulher dele, Jacquelyn, entra no prédio pela mesma porta por onde Fredrik acaba de entrar.
Eu me viro para Fredrik.
— Quantos anos você tem? Vinte? — pergunto, correndo os olhos pelas roupas dele.
Ele fica bem nelas, admito, mas duvido que um dia eu vá me acostumar a vê-lo usando qualquer coisa além de terno. É que não consigo imaginá-lo torturando um homem até a morte usando All Star. Afasto essa imagem estranha da minha mente.
— Respondendo perguntas com perguntas — observa Fredrik, um pouco irritado. — Eu encontrei você depois de ligar para Victor. Ele me falou que você poderia estar aqui.
— Ele ficou bravo? — Sinto meu rosto murchando. Espero que ele não esteja chateado.
Fredrik balança a cabeça.
— Não — diz ele, como se essa verdade o decepcionasse. — Ele disse que não tinha problema você vir aqui hoje. — Ele me encara com ar autoritário. — Mas você deveria ter pelo menos me avisado em vez de sair escondida. Quantos anos você tem? Quinze?
Dou um sorrisinho para ele.
— Está tudo bem aí? — pergunta Spencer, aproximando-se e olhando com frieza para Fredrik. Jacquelyn desaparece no escritório do outro lado da sala.
— Sim, está tudo bem. Spencer, este é Fredrik. Fredrik, este é Spencer, meu treinador.
Os olhos castanho-escuros de Spencer se voltam para mim em sua cabeça imóvel, depois passam a observar Fredrik.
— Ele é alguém que Victor conhece? Victor me deu ordens específicas para não deixar ninguém visitar você aqui, além dele. — Spencer estreita os olhos para Fredrik, e parece pronto para derrubá-lo a qualquer momento.
Fredrik, por outro lado, está sorrindo, com as mãos cruzadas à frente e uma postura elegante. Fredrik pode não ser capaz de derrotar Spencer na luta corpo a corpo, mas na verdade estou mais preocupada com Spencer, porque sei do que Fredrik é capaz.
Eu me posiciono entre os dois.
— Victor conhece Fredrik. Só que ele não esperava que Fredrik precisasse vir aqui.
Os dois se examinam em silêncio, e então Spencer assente e me diz:
— Tudo bem, mas se você precisar de alguma coisa...
— Eu sei. Obrigada. — Sorrio.
Spencer se afasta. Ele desaparece no escritório com Jacquelyn e alguns alunos entram no prédio, deixando as mochilas no chão, perto da parede oposta.
— Victor volta hoje à noite — informa Fredrik, abaixando a voz e olhando por cima do ombro depois.
Eu me afasto mais das pessoas que se preparam para treinar.
— Estou surpresa por você ter conseguido falar com ele. Tentei ligar uma vez, ontem, mas a ligação não completou.
Fredrik assente.
— Onde ele estava não tem sinal de celular a maior parte do tempo.
Olho por cima do ombro.
— Então ele... terminou o serviço? — pergunto, em um sussurro.
— Sim. Já fez o que precisava com Velazco. Eu vou cuidar do outro filho hoje à noite.
— Você vai matá-lo? — sussurro ainda mais baixo, olhando o tempo todo ao redor para me assegurar de que ninguém está perto o suficiente para ouvir nossa conversa tão criminosa.
Fredrik arregala os olhos só um pouco, para indicar que ele prefere não dizer nada mais comprometedor neste lugar. Ele me pega pelo braço, segurando com cuidado meu cotovelo, e me leva até a porta. Só quando estamos lá fora, na calçada, ele se sente seguro para conversar.
— Ele merece morrer — garante Fredrik, e tenho a sensação de que ele achou que eu poderia discordar disso.
Talvez eu discorde, de certa forma. Só agora me dou conta.
— Bom, o que... — Hesito, respirando fundo. — O que, exatamente, David fez para merecer morrer? O que André Costa fez? Eu sei que o pai deles, Velazco, fez muito mal a muita gente, mas só que... Sei lá, parece que você está castigando os dois com a mesma brutalidade de Velazco pelas coisas que só Velazco fez.
Fredrik balança a cabeça para mim, melancólico.
— Não. Os filhos de Velazco e os homens que trabalham para ele são quem põe a mão na massa de verdade. São eles que realizam os sequestros, que executam a maioria dos assassinatos e estupros. Cada um deles merece o que vai receber.
— Mas como você sabe que André Costa e David sequestraram, estupraram ou mataram alguém?
— Tenho minhas fontes — afirma Fredrik. — É só isso que você precisa saber.
— Achei que eu fazia parte desse esquema — respondo, um pouco ofendida.
— Não é você quem vai matar os caras. — Fredrik enfia as mãos nos bolsos do jeans. — Se um dia você precisar matar alguém, aí vai poder fazer quantas perguntas quiser.
Não gosto dessa resposta, mas aceito e deixo por isso mesmo. Suspiro, vou até a parede e me encosto nela, cruzando os braços e apoiando um pé na parede atrás de mim para manter o equilíbrio.
— Por falar em matar pessoas, sinto que Hamburg e Stephens estão cada vez mais distantes. Estou cansada de esperar. Quero matar os dois. Quero fazer isso de uma vez.
Fredrik se aproxima, apoiando as costas na parede também.
Olhamos para a rua, observando os carros passarem no sinal verde.
— O que você vai fazer quando eles estiverem mortos? Vai parar por aí? Acabar com eles, se vingar e então tocar a vida?
— Não — respondo, sem olhar para Fredrik, a voz distante porque minha mente está dispersa, pensando em tudo. — Não, eles não vão ser os últimos.
Percebo que isso é algo que ainda não contei nem para Victor. Não porque queira esconder dele, mas porque só agora eu mesma me dei conta. Surpresa por minha própria resposta, me perco em pensamentos, olhando para o cruzamento e para os carros que entram e saem de foco.
— Você não é muito diferente de mim. Sabe disso, não sabe? — pergunta Fredrik.
Enfim, inclino a cabeça para o lado e olho para ele. Observo sua silhueta alta e ameaçadora, seu semblante calmo, que sei ser só um disfarce para esconder muito bem o homem perigoso que na verdade habita aquele corpo, não muito abaixo da superfície. Vejo um homem que, embora eu não tenha a menor ideia de por que ou como se tornou o que é, além do que Seraphina fez, sei que passou por algo muito pior do que qualquer coisa que ela pudesse ter feito. Sinto isso. Percebo isso. E, de maneira muito perturbadora, sinto que de alguma forma posso me identificar.
— Pode ser — assumo, desviando o olhar. — Mas quando se trata da maneira como... a gente lida com as pessoas... você e eu não temos nada em comum.
— Ah, não sei ao certo se isso é verdade — retruca Fredrik, com um sorriso na voz.
Talvez o fato de eu não discutir com ele de imediato seja a prova de que ele pode ter razão.
Felizmente, Fredrik muda de assunto.
— Já tomou café da manhã?
— Não estou com muita fome.
Ele desencosta da parede, tirando as mãos dos bolsos e se colocando à minha frente. Acena com a cabeça e diz:
— Vamos, estou morrendo de fome. Tem uma padaria aqui na rua. Faz tempo que não como um doce decente.
Minha primeira reação é recusar o convite, mas então decido ir com ele. Inclino a cabeça para dentro da academia, com metade do corpo para fora, e grito para Spencer e Jacquelyn, do outro lado da sala, informando aonde vou e que volto mais tarde. Spencer, com aquele olhar desconfiado, discute comigo por um segundo, dizendo que eu não deveria perder mais nenhum treino. Ele tem razão, mas sei que me ver saindo da academia com Fredrik é o que o preocupa de verdade.
Momentos depois, entro no carro de Fredrik para irmos à padaria, a alguns quilômetros dali.
— Fredrik, por que você acha que Niklas traiu Victor daquele jeito?
Fredrik entra na rodovia.
— Não sei. Por inveja, talvez. Niklas sempre viveu à sombra de Victor dentro da Ordem. Desde que conheço os dois.
— Certo, mas... — Suspiro, olho de relance para ele e depois mantenho os olhos fixos na estrada. — Eu não entendo por que ele fez isso, tipo... — Encaro Fredrik, formulando o que eu quero dizer. — Niklas tentou me matar para proteger Victor. Ele atirou em mim. Acho que minha dificuldade é entender o que o levou a trair o irmão, depois de tudo o que ele fez para protegê-lo. Como alguém pode mudar tanto assim.
Viramos à direita no Paseo De Peralta, e logo vejo a grande placa oval vermelha da padaria quando nos aproximamos.
— Eu trabalhei com eles por muitos anos — conta Fredrik, observando o trânsito. — Niklas sempre foi meio desequilibrado. Faria qualquer coisa pelo irmão, mas sempre tive a impressão de que ele era uma bomba prestes a explodir. — Fredrik olha para mim e nossos olhares se cruzam por um breve momento. — Para ser sincero, acho que você teve muito a ver com o motivo para Niklas ter traído Victor.
Engulo em seco e olho para baixo por um momento, entrelaçando os dedos nervosamente. Também especulei muitas vezes sobre isso, parte de mim quase convencida de que tudo foi minha culpa, mas eu não apenas não queria acreditar nisso, como também me sentia idiota por me imaginar capaz de abrir tamanho abismo entre duas pessoas. Não sou tão importante assim. Não tenho todo esse poder, nem mesmo sobre Victor.
Com certeza não...
— Por que você acha isso? — pergunto, esperando que nenhuma resposta dele consiga me convencer. Que a resposta seja ridícula, até.
— Porque, de certa forma, Victor escolheu você em vez do irmão.
Todas as minhas expectativas desmoronam ao meu redor. A resposta de Fredrik não é nada ridícula, faz total sentido. E me odeio por isso.
— Victor decidiu sair da Ordem depois que conheceu você — explica Fredrik. — Ele podia ter algumas desavenças com Vonnegut antes, mas, no fim das contas, você foi o estopim. E, mesmo antes de Victor sair, ele estava arriscando a posição que tinha na Ordem e a própria vida para ajudar você. Niklas tentou evitar que Victor se destruísse. Matar você, pensava ele, era a única maneira de fazer isso, porque conversar com Victor a seu respeito não funcionava. Victor até mentiu para Niklas sobre você. — Fredrik me olha de novo. — Na visão de Niklas, Victor escolheu você em vez dele, substituiu o próprio irmão.
Chegamos ao estacionamento da padaria, mas, em vez de entrar, percebo que Fredrik está olhando pelo retrovisor, concentrado nele e na estrada à frente ao mesmo tempo.
Com a sensação clara de que ele está olhando para alguma coisa atrás de nós, faço menção de me virar.
— Não — pede ele depressa.
Tudo naquela palavra me faz estremecer até o âmago. Mas a expressão de Fredrik, seu semblante e o modo como ele continua a guiar de maneira despreocupada, com as mãos na parte de baixo do volante, parecem indicar que não há nada de errado.
— O que foi? — pergunto, incapaz de mascarar como ele a preocupação na voz.
— Estamos sendo seguidos.
Meu coração dá um salto e paro de respirar por um momento. Estou louca para olhar para trás, mas opto em vez disso por olhar pelo retrovisor do meu lado, sem fazer nenhum movimento drástico. Uma SUV preta, que parece um Navigator, está na nossa cola.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
Sarai
Minhas mãos estão apertadas nos cantos do banco de couro vermelho onde estou sentada. Não tiro os olhos do espelho retrovisor nem paro de pensar na possibilidade de ser quem estou pensando e de que vai acontecer o que imagino. Não consigo ver o passageiro nem o motorista através dos vidros escuros da SUV.
— Tem certeza? — pergunto.
Fredrik liga a seta e nós viramos à esquerda na esquina seguinte. Ele mantém o carro abaixo do limite de velocidade e parece evitar que os ocupantes do veículo de trás saibam que ele está ciente da presença deles. Só espero que ele esteja errado.
— Eles estão nos seguindo desde que saímos da academia — explica Fredrik, e meu coração afunda. — Estavam nos espionando, estacionados no terreno do outro lado da rua.
— Então foi por isso que você decidiu tomar café.
Fredrik assente e vira à direita no semáforo seguinte.
Estou me torturando por dentro. Eu me sinto insignificante e inexperiente por não ter sido esperta o bastante para notar essas coisas. Não observei direito ao meu redor para saber que estávamos sendo vigiados o tempo todo. Mas este não é o lugar nem o momento de ficar frustrada comigo mesma. Só espero que haja tempo para isso mais tarde.
— O que a gente vai fazer? — pergunto, nervosa.
Fredrik afunda o pé no acelerador, e de repente estamos a 80 quilômetros por hora em uma via de 55, seguindo direto para a rampa de acesso à rodovia. A SUV está bem próxima e continua no nosso encalço. Agarro o cinto de segurança, aperto-o com mais força e volto a me segurar no banco.
— Vamos despistar esses caras — responde Fredrik, aumentando a velocidade de 80 para 110 quilômetros por hora em poucos segundos ao pegarmos a estrada.
Estou me segurando, desesperada, com o coração na garganta, enquanto nosso carro costura loucamente, entra e sai do tráfego, corta outros veículos e até os ultrapassa pelo acostamento. Mas a SUV continua na nossa cola, abrindo espaço pelo mesmo caminho que fazemos. Buzinas ecoam barulhentas, furiosas conosco ao passarmos a toda a velocidade.
— SE SEGURA! — grita Fredrik.
No mesmo segundo, Fredrik faz uma curva brusca, passando da faixa do meio para a da direita, a poucos centímetros do para-choque da frente de um carrinho branco, e sou jogada contra a janela lateral. Ouço os pneus cantando, os nossos e os do carro branco, e então sou arremessada para o outro lado do assento quando ele endireita o veículo com um golpe do volante.
Desajeitada, me viro no banco da frente, com o cinto de segurança ainda preso ao corpo e tentando me segurar no lugar, vendo a SUV surgir de trás de um carro azul. O carro patina para a esquerda, tentando sair do caminho, e bate no carro branco que acabamos de ultrapassar. Os dois automóveis giram com violência no meio da rodovia, e o branco para com uma freada brusca na faixa da esquerda, quase batendo na barreira de concreto que separa uma pista da rodovia da outra. Os pneus soltam fumaça. O carro azul capota de lado. Solto um gemido e levo as mãos à boca.
A rodovia fica toda parada, do ponto do acidente para trás, todos menos nós e a SUV, que nos segue de perto. À frente, as pessoas, vendo o que está acontecendo, já abrem caminho para passarmos. Seguimos como foguetes a 140 quilômetros por hora, obrigando uma fila de carros a parar no acostamento.
Quanto mais nos afastamos do acidente, mais numerosos são os carros à nossa frente, e voltamos à mesma situação anterior, costurando em meio aos veículos, com buzinas tocando e meu corpo batendo na porta e na janela a cada virada mais brusca.
Fredrik passa depressa para a faixa da esquerda, a faixa mais rápida.
— A gente precisa sair da rodovia!
— Precisamos despistar os caras antes!
— Como é que a gente vai fazer isso, cacete? — pergunto, olhando para trás de novo. Eles ainda estão perto de nós, os para-choques a centímetros de distância.
Fredrik não responde. Ele está vigiando tudo, mantendo os olhos na estrada em frente, nos carros ao redor e na SUV atrás. Depois de alguns minutos, começo a achar que ele está montando um plano na cabeça.
De repente, no último segundo, Fredrik sai da faixa rápida, atravessa três faixas e pega a saída da rodovia a 110 quilômetros por hora, passando a centímetros da parede de concreto e dos barris laranja que separam a saída da rodovia. Foi tudo tão rápido que a SUV não teve tempo de prever o que Fredrik ia fazer e pegar a saída atrás de nós. Bato a cabeça na janela lateral. Há um semáforo no fim da estrada, mas Fredrik está indo rápido demais para parar e passa com tudo. Felizmente, essa estrada não parece muito movimentada, e nenhum carro bate no nosso.
— Que porra foi essa? — grito com a mão no peito, tentando controlar meus batimentos cardíacos.
Ele não responde até estarmos bem longe da saída, depois de cruzar várias ruas. Ambos continuamos olhando em todas as direções, procurando a SUV.
— Se eu ficasse na pista da direita — explica ele —, o cara ia entender que eu queria pegar a primeira saída.
Por mais que aquilo quase tenha me matado de medo, não posso negar que o plano louco de Fredrik funcionou.
— Você podia ter matado a gente!
— Até parece que isso é novidade para você — provoca ele.
Eu rio alto.
Fredrik retorna para a rodovia na direção oposta, de volta para a academia de krav maga. Contudo, antes de chegarmos perto do destino, ele vira em uma rua que não conheço.
— Aonde a gente está indo?
— De volta para Albuquerque — responde ele. — Pelo caminho mais longo. Só por segurança.
Seis horas de vigilância obstinada pelas janelas da casa, e o carro de Victor enfim estaciona na entrada da garagem. Fredrik e eu ficamos de pé assim que ouvimos as pedrinhas estalando e se partindo debaixo dos pneus.
Victor deixa a chave na bancada da cozinha primeiro e vem para a sala, pondo a maleta na mesinha de centro.
— Algum sinal deles? — pergunta ele a Fredrik antes de falar qualquer outra coisa.
Ele me olha, e não consigo decifrar sua expressão, o que, como aprendi, em geral significa que ele tem coisas demais na cabeça e está tentando se manter concentrado.
Antes que Fredrik responda, Victor me pergunta:
— Você está bem? Está ferida?
— Não, não estou ferida. — Desvio o olhar para a parede quando ouço Fredrik falando.
— Não fui seguido até aqui. Garanti que isso não acontecesse. Fiz um desvio de uma hora do caminho só para ter certeza. E não tem nenhum sinal de que alguém esteve aqui, só alguns carros na estrada, mas nada suspeito.
Victor dá a volta na mesinha de centro, senta-se nela do jeito que eu mesma muitas vezes faço e me encara quando me sento no meio do sofá, também olhando para ele. Parece preocupado. E furioso. Não comigo, mas com quem estava naquela SUV, acho.
— Antes que você diga qualquer coisa...
— Como falei para Fredrik — interrompe ele, com calma, pondo as mãos entre as coxas e apoiando os cotovelos nas pernas —, eu não esperava que você ficasse aqui, enfurnada nesta casa durante toda a minha ausência. Não peça desculpas por ter saído.
Surpresa com essa tolerância, fico sem palavras por um momento.
— Eu não iria para qualquer outro lugar — digo, enfim, ainda sentindo que fiz besteira de novo. — Achei que, como eu já tinha passado tanto tempo lá treinando com Spencer, não faria diferença se eu decidisse ir hoje ou esperasse até você voltar.
— E você estava certa — afirma Victor. Ele coloca as mãos nos meus joelhos. — A questão não é você ter saído. — Ele olha para Fredrik, que se senta no lugar vazio. — A gente precisa descobrir como eles sabiam onde você estava.
Vejo algo no rosto de Victor que Fredrik não consegue ver, algo que me deixa tensa. Victor tem o ar de um homem que desconfia de alguém, que desconfia de Fredrik. Olho para um e para outro, tentando entender os pensamentos de Victor. Será que estamos revivendo o que aconteceu com Samantha no Texas? Será que Victor depositou muito da pouca confiança que tem na pessoa errada mais uma vez? Esse era o teste, então? Deixar Fredrik sozinho comigo?
Cerro os punhos e minhas unhas afundam na pele das mãos. Victor me usou para testar a lealdade de Fredrik?
— Já andei pensando nisso — diz Fredrik. — E espero estar errado, mas tenho a sensação de que sei como encontraram Sarai.
Era algo que Fredrik e eu já havíamos discutido antes de Victor chegar. Mas agora... agora que estou vendo a desconfiança nos olhos de Victor, não consigo deixar de me perguntar se nesse tempo todo, enquanto esperávamos a volta dele, Fredrik não estava apenas enchendo minha cabeça de mentiras para nos despistar da possibilidade de ter sido ele.
Agora não confio em nenhum dos dois. Eu me sinto uma prisioneira de novo, presa entre homens perigosos dos quais sei que não posso fugir.
E meu coração dói.
Victor tira as mãos dos meus joelhos e dirige sua atenção para Fredrik. Continuo calma e imóvel, fazendo o que sei fazer melhor: fingindo.
— Acho que a gente deveria ir para Phoenix quanto antes — continua Fredrik. — Eu tentei ligar para Amelia, imaginando que talvez ela soubesse de alguma coisa, mas ela não atendeu nem retornou minhas ligações. Não é do feitio dela.
Victor se levanta da mesinha de centro e se senta ao meu lado, curvando-se para abrir sua maleta. Ele tira o laptop e passa o dedo em um sensor para destravá-lo.
— O que você está fazendo? — pergunto.
— Verificando meus equipamentos de vigilância na casa de Amelia — explica ele, abrindo algum programa na área de trabalho. — Não faço isso desde que tiramos a sra. Gregory de lá.
Alguns minutos depois de vasculhar vários vídeos (um deles claramente relevante, no qual homens entram na casa de Amelia e a capturam), ele balança a cabeça e fecha o laptop.
— O que foi? — pergunta Fredrik.
Victor guarda o laptop na maleta.
— Eles estiveram lá. O vídeo é cortado logo depois. Devem ter achado um dos dispositivos que eu plantei na noite em que levei Sarai para ver a sra. Gregory.
Fico em pânico pensando no que Stephens pode ter feito com Amelia, ou mais ainda com o que ela pode ter contado a eles.
— Fredrik tem razão — digo. — A gente precisa ir para Phoenix.
— Então vamos. — Ele estende a mão para mim.
Com relutância, seguro sua mão e fico de pé com ele. O que quero, na verdade, é lhe dar um belo tapa na cara.
— Victor? — chamo quando ele me dá as costas, na direção da porta.
Ele para e se vira a fim de me olhar.
— Nada disso estaria acontecendo se Hamburg e Stephens já estivessem mortos.
Phoenix, Arizona – 1h
Pegamos um voo para Phoenix e um táxi até a casa de Amelia. Ao que tudo indica, uma viagem de seis horas de carro estava fora de cogitação, pois Victor quer respostas já, sem perder mais tempo. Temo que Amelia esteja morta, uma vez que não respondeu às ligações de Fredrik. Acho que ele pensa a mesma coisa. Quando ainda estávamos em Albuquerque, cada vez que ligava e ela não atendia, Fredrik ficava mais frustrado. Preocupado, até. Eu achava aquilo estranho vindo de alguém como ele, que parece usar as mulheres para sexo e não tem a capacidade de gostar de nenhuma delas. Mas agora não consigo deixar de acreditar que aquilo era tudo teatro, que ele só estava fingindo se preocupar com ela, quando, na verdade, ele mesmo deve ter matado Amelia.
Em todo caso, fico feliz por termos tirado Dina da casa antes de isso acontecer.
O táxi nos deixa a uma quadra da casa de Amelia, e andamos o resto do caminho sob o manto da escuridão. A luz da varanda está acesa, revelando o revestimento branco e sujo da lateral da casinha e os degraus de concreto rachado que levam até a porta. Outra luz fraca brilha na janela da sala de estar, onde sombras se movem em um espaço pequeno e dão a impressão de que a luz vem da TV ligada. Quando subimos os degraus de concreto e ficamos diante da porta, Victor gira a lâmpada quente acima da nossa cabeça, apagando a luz.
Fredrik vai até a janela e olha para dentro.
Victor fica na minha frente e tenta me empurrar discretamente para trás dele com o intuito de me proteger, mas afasto sua mão. Ele vira de lado e olha meu rosto, zangado. Cerro os dentes e balanço a cabeça, revelando que estou furiosa e que é melhor ele não me tocar.
Ele desvia o olhar, mantendo a atenção em Fredrik.
— Não estou vendo Amelia — sussurra Fredrik. — Nenhum sinal de luta.
Victor saca sua 9mm das costas, põe a mão na maçaneta e tenta virá-la. Está trancada. Fico nervosa quando Fredrik puxa a arma também. Victor fica para trás e acena para que Fredrik entre na frente dele. Parece que ele quer que Fredrik bata na porta, mas acho que a ideia é ficar de olho nele.
Fredrik bate três vezes e nós esperamos. Victor não olha mais para mim, nem eu esperava que fizesse isso, em uma hora dessas. Também fico mais interessada nos gestos de Fredrik, esperando que ele nos ataque a qualquer momento.
Há movimento lá dentro. A cortina da janela perto da porta se mexe, e então ouvimos o som de um corpo pressionando a própria porta enquanto quem está lá dentro espia pelo olho mágico. Desta vez, Victor me força a ficar atrás dele, e não discuto, mais preocupada com quem está lá dentro do que com meu ressentimento em relação a ele.
Ouço a correntinha deslizando, depois o clique de um trinco, e então o som da maçaneta virando devagar. Quando a porta se move, abre apenas alguns centímetros, e um rosto bonito olha pela fresta, com o longo cabelo louro desgrenhado ao redor dos olhos inchados.
— Fredrik? — chama Amelia, em voz baixa e ríspida. — Você não deveria estar aqui. — Vejo que ela olha para todos os lados, nervosa, espiando a rua atrás de nós.
Victor fica na frente de Fredrik e empurra a porta com a palma da mão. O cheiro de um pot-pourri de canela e café queimado invade minhas narinas. Amelia dá um passo para trás, enfiando as mãos entre os braços cruzados, cobertos por um roupão de banho azul que vai até pouco acima dos tornozelos. O lado esquerdo do rosto tem muitos hematomas e há sangue no branco do seu olho. Seu lábio parece estar se recuperando de um corte.
Victor me empurra para dentro da casa com ele e Fredrik nos segue, fechando e trancando a porta em seguida. Antes que qualquer um fale, Victor e Fredrik vasculham cada cômodo da casa, de armas em punho, certificando-se de que ninguém está à espreita.
Eles voltam para a sala ao mesmo tempo, enfiando as armas na cintura.
— O que aconteceu com você? — pergunta Fredrik a Amelia. — Por que não atende ao telefone?
Ela está tiritando, os braços tremem dentro do roupão.
Victor olha para tudo, menos para ela. Ele começa a vasculhar a sala, mas sei que também está prestando atenção em cada palavra que ela diz.
— Não atendi porque sabia que era você — explica ela para Fredrik. — E você não deixou nenhum recado. Nunca deixa recado. Eles grampearam meu telefone, Fredrik. Eu não podia correr o risco de atender.
Fredrik segura Amelia com delicadeza pelo cotovelo e vai com ela até o sofá. Ele se senta ao lado dela.
— Me conte o que aconteceu — insiste ele.
Eu me sento na borda da poltrona do canto, com as costas encurvadas, as mãos cruzadas entre as pernas.
Amelia olha para Victor, que está passando os dedos por uma estante, procurando alguma coisa.
— Eles acharam todas aquelas coisas — anuncia ela. — Quando entraram aqui, três homens reviraram a porra da minha casa, colocaram tudo de cabeça para baixo, procurando aqueles aparelhos, ou sei lá o quê, escondidos pela casa toda.
Ele volta a vasculhar, mas se mantém no nosso campo de visão. No meu campo de visão.
Amelia se volta para Fredrik. Ela está sentada com as mãos entre os joelhos, a perna direita inquieta, batendo o pé no tapete cor de ferrugem.
— Eles vieram três dias depois que vocês foram embora — continua ela. — Me amarraram em uma cadeira da cozinha. Me espancaram. Ameaçaram minha família...
— O que você contou para eles? — interrompe Victor, parado na frente de Amelia.
— Eu não tinha nada para contar — diz ela, o medo cada vez mais evidente em sua voz trêmula. — Eles queriam saber onde ela estava. — Amelia olha para mim. Agora que estamos na sala com a luz da TV, noto como sua pele está amarela ao redor do olho. — Mas eu não sabia. Não podia contar o que eu não sabia. Merda! Eles também queriam saber onde Dina estava. Isso eu também não sabia. Eles não acreditaram, por isso me espancaram mais! — Ela respira fundo e tenta se controlar, talvez para não chorar. Parece prestes a cair no choro.
— Mas você deve ter contado alguma coisa para eles — sugere Fredrik, ao lado dela. Sua voz tem urgência, mas não é totalmente acusadora. — Pense, Amelia.
Amelia olha para as mãos trêmulas e afasta o cabelo louro desalinhado do rosto.
— E-eu não aguentava mais — conta ela, envergonhada, sem conseguir olhar Fredrik nos olhos. Ela olha para o tapete. — Achei que eles fossem me matar, me espancar até a morte. E-eu só contei que Dina a chamava de Sarai e que me falava dela, às vezes. — Amelia encara Fredrik, preocupada, esfregando os cantos dos olhos vermelhos. — Mas não era nada que eu achasse que eles poderiam usar.
— O que você contou? — pergunta Victor, com severidade.
Ela olha para ele.
— E-eles pediram informações recentes, qualquer coisa que Dina tenha me dito sobre Sarai, ou Izabel, ou sei lá qual o nome dela. Queriam alguma coisa atual. Eu pensei muito nas conversas que Dina e eu tivemos sobre ela, e o que me lembrei foi de quando vocês estiveram aqui. Ela falou de treinar. Maga ou qualquer coisa assim.
Pisco e balanço a cabeça. Lembro que contei a Dina que eu estava aprendendo krav maga.
Dou um salto da poltrona.
— Porra, eu não aguento mais! — grito. — Victor, desculpa. E-eu só faço merda. Você tinha razão. Essa vida não é para mim. Eu queria muito que fosse, mas não dá mais. Todo mundo vai morrer por minha causa!
Por um momento, esqueci que ele parece ter me usado para testar a lealdade de Fredrik. Talvez não tenha esquecido, mas deixei isso de lado por enquanto, porque minhas atitudes idiotas são mais imperdoáveis do que o comportamento de Victor.
Victor segura minha mão e faz com que eu me sente de novo.
— Você contou para Dina Gregory onde estava treinando? — pergunta ele, com voz calma.
— Não — respondo, olhando para ele. — Tomei o cuidado de não dar informações detalhadas. Nem contei onde eu estava morando. Nós três estávamos só conversando na cozinha. Dina queria saber o que eu andava fazendo. Foi uma conversa casual.
Fredrik olha para Victor.
— Stephens deve ter posto homens para vigiar todas as academias de krav maga daqui até a Flórida desde aquele dia. Isso explicaria por que eles levaram quase três semanas para descobrir em qual delas Sarai estava treinando.
— Espere aí... — intervém Amelia, como se tivesse acabado de pensar em algo horrível. — Dina está bem? Por favor, me digam que ela está bem. Eu queria minha casa de volta só para mim, mas gostava muito daquela mulher. Ela era gentil comigo.
— Dina Gregory está ótima — responde Victor, e tanto Amelia quanto eu ficamos aliviadas.
Amelia solta um suspiro de gratidão, mas seu corpo volta a ficar tenso e ela encara Fredrik com desespero no olhar, esticando o pescoço na direção dele.
— Ma-mas vocês não podem ficar aqui. Precisam ir embora. — Ela olha para nós. — Todos vocês.
— Esta era a minha próxima pergunta — observa Victor. — Por que eles não mataram você?
— Eles esperavam que vocês voltassem — explica Amelia. — Ou ao menos que tentassem me ligar. — Seus olhos correm para Fredrik de novo. — Eu não podia atender.
Fredrik assente, aceitando a explicação e as desculpas e deixando claro que a entende.
Amelia se vira para Victor.
— Depois de um tempo, fingi que odiava todos vocês — continua ela. — Reclamei de estar com raiva de Fredrik por desovar aquela velha coroca no meu colo daquele jeito. Aí falei um monte de merda sobre você. — Amelia se volta para Fredrik. — Quando enchi a cabeça deles de baboseiras, eles acharam que podiam me usar para encontrar vocês, para atrair vocês até aqui. Eu era só uma mulher desprezada que queria se vingar de Fredrik. Era isso que eu queria, ganhar a confiança deles para que não me matassem. Eu estava com medo, Fredrik. Acho que eles me matariam se eu não fizesse isso.
Fredrik assente de novo. Noto que ele quer pôr a mão no joelho dela para acalmá-la, mas não consegue porque o gesto o deixa constrangido. Em vez disso, ele oferece mais palavras de consolo.
— Você fez a coisa certa — afirma ele, com gentileza. — E tem razão, eles iam mesmo matar você.
Ele fica de pé e olha para Victor.
— A única pergunta sem resposta — afirma Fredrik — é como eles souberam que deveriam vir até aqui. — Ele levanta as mãos em um gesto de rendição. — Juro que não fui eu.
Meu corpo fica tenso. Olho de um para outro, tentando interpretar suas expressões. A tensão na sala aumenta, quase me afogando, mas logo percebo que a tensão é toda minha, pois estou me preparando para algum tipo de enfrentamento entre os dois. Contudo, quanto mais olho, mais sinto que Fredrik está dizendo a verdade e que Victor acredita nele.
— Eu sei que não foi você — diz Victor, enfim.
Fico atordoada. E confusa. E um pouco incomodada com a confiança imediata de Victor.
— Como é que você sabe? — pergunto, com rispidez.
— Porque, se Fredrik fosse entregar você, não faria sentido contar para eles onde Dina Gregory já esteve. Semanas atrás.
Rosno e cruzo os braços.
— Você me usou para testá-lo — disparo. — Você me deixou sozinha com Fredrik para ver se ele ia trair você e contar a Stephens onde me encontrar. — Eu o fuzilo com os olhos de maneira acusadora e implacável. Não é a hora nem o lugar de confrontá-lo com isso, mas não consigo mais me segurar.
Victor se aproxima e estende as mãos, querendo segurar meus braços. Tento me afastar, mas a poltrona está no caminho. Suas mãos quentes tocam minha pele, aqueles dedos longos segurando meus bíceps. Ele olha nos meus olhos e eu vejo sinceridade e determinação em seu rosto.
— Não foi isso que eu fiz — insiste Victor. — Você precisa confiar em mim quanto a isso. E precisa confiar em Fredrik. O inimigo não é ele.
— É tão fácil julgar e confiar — digo, irritada. — Então por que você me deixou sozinha com ele daquele jeito? O que significou aquela conversa antes de você ir embora sobre confiar nos meus instintos?
As mãos de Victor me soltam.
— A gente precisa sair daqui — diz ele.
Ele se vira para Fredrik, e me sinto ao mesmo tempo furiosa com a falta de explicações e apreensiva com o tom de urgência.
— Fredrik — continua Victor —, a decisão é sua. Pode levá-la para um abrigo ou deixá-la à própria sorte aqui.
Amelia, alerta e apavorada, arregala os olhos inchados e vermelhos. Ela se levanta do sofá em um salto, deixando abrir o roupão na cintura e revelando uma camisola branca por baixo.
— O que isso quer dizer? — pergunta ela, aterrorizada, mexendo na faixa do roupão para fechá-lo de novo. Ela encara Fredrik. — O que ele está dizendo, Fredrik?
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Victor
Sarai se culpa por muitas coisas, e em alguns casos com razão. Foi tolice falar do treinamento com Spencer — mesmo que de maneira tão vaga — para Dina e Amelia. Mas ela tomou cuidado com as informações que decidiu divulgar. Foi cuidadosa, mas não o suficiente. Sarai é jovem. Inexperiente. No entanto, está aprendendo, e aprender do jeito mais difícil, no fim das contas, é de fato a única maneira.
— Você não vai aprender a nadar lendo um livro — digo a ela, na viagem de volta para Albuquerque. Desta vez, achei melhor pegarmos um carro para voltar, em vez de nos arriscarmos em aeroportos de novo. — É a melhor maneira, Sarai. Para aprender com os erros, você precisa errar. De verdade. Nenhum tempo de treinamento, nenhuma situação ensaiada vai ensinar melhor do que a vida real.
Sarai está sentada em silêncio no banco do passageiro, olhando pela janela. Ela não quer olhar para mim. Mal disse uma palavra desde que saímos da casa do meu contato perto de Phoenix, meia hora atrás. A lua está baixa no céu da madrugada, parecendo enorme sobre a extensão escura da paisagem do deserto.
— Isso não é desculpa — diz ela, enfim, embora com voz distante.
— É uma desculpa — rebato. — Aqui não é Hollywood, Sarai. Você não vai aprender as coisas que quer no tempo em que acha necessário. Você cometeu erros. Vai cometer muitos outros...
Ela se vira de repente para mim.
— Eu disse que não é desculpa. — Ela pronuncia as palavras entre os dentes, com os olhos arregalados e implacáveis. Implacáveis para si própria, não para mim. — Fui eu que me meti nisso. Eu escolhi esta vida. Falei para você que era o que eu queria. Implorei para você me ajudar. — Ela aponta com severidade o indicador para si mesma, hesita e cerra os dentes. — Eu escolhi esta vida. Não sou criança, Victor. Você não pode me dizer que o que fiz não tem problema, que tenho o direito de errar. Porque, nesta vida, erros causam mortes.
Eu a admiro mais agora do que antes. Porque ela entende. Ela se recusa a pegar a saída mais fácil, aceitando o salvo-conduto que lhe ofereço. Ela se recusa a receber a permissão de errar, embora eu saiba que vai errar mesmo assim, porque é humana. E Sarai vai aprender com os erros mais depressa do que alguém que opta por aceitar as desculpas. Ela é uma garota desafiadora. Ela é durona, impulsiva e destemida até demais. Mas é determinada e forte. Apesar da falta de disciplina e de ainda não ter assimilado completamente o raciocínio criminoso e assassino, que é crucial para se manter viva, sei que ela pode dar certo nesta vida.
— Você se arrepende? Você se arrepende da vida que escolheu?
— Não — diz ela, com voz neutra, honesta, com os olhos observando o asfalto negro da estrada ser engolido pelo capô do carro. — Não me arrependo. E não quero desistir.
Ela ergue as costas do banco e me encara de novo.
— Eu quero matar Hamburg e Stephens — afirma, com determinação. — E aí, depois disso... — Ela faz uma pausa, mas não tira o olhar determinado do meu. Só desvio os olhos pelo tempo suficiente de olhar a estrada. — Preciso contar isso para você. É uma coisa que contei para Fredrik. Depois que Hamburg e Stephens estiverem mortos, não quero que eles sejam os últimos.
Desde o momento em que Sarai me disse que queria matá-los pessoalmente, soube que eles seriam apenas os primeiros em uma longa série de futuros assassinatos. Dava para ver essa resolução nos olhos dela, a sede de vingança, a fome de sangue. A morte de Javier Ruiz por obra de Sarai foi o que selou o destino dela. O primeiro assassinato é sempre o estopim, o instante na vida no qual tudo muda, no qual o caráter da pessoa assume uma forma nova e mais sombria. Sei que ela pensa em matar Hamburg todo santo dia, desde a noite em que o conheceu. Sei porque lembro o rosto do meu segundo alvo, o modo como o cacei durante uma semana como um assassino em série caçaria sua próxima vítima. Eu só conseguia enxergar o rosto dele. Tudo o que eu queria era acabar com sua vida miserável do modo como acabei com a do meu primeiro alvo. Porque fui gerado e treinado para isso. Ansiava pelos elogios que Vonnegut me dirigiu depois da minha primeira missão bem-sucedida, aos 13 anos. Vê-lo sorrir com orgulho como sempre quis que meu pai sorrisse. Eu ansiava por saborear a admiração que os outros garotos da Ordem sentiam por mim. Assim, do meu primeiro assassinato em diante, dediquei a vida ao trabalho, abrindo mão do ressentimento por ter sido separado à força da minha mãe. Matei para agradar Vonnegut pela maior parte da minha vida, até que comecei a ver que ele tirava de mim mais do que me dava.
Agora, mato porque é a única coisa que sei fazer.
Sarai e eu matamos por motivos diferentes, somos movidos por necessidades muito distintas, mas, no fim das contas, somos ambos assassinos, e sei que isso nunca vai mudar. Não podemos recuar diante disso, e a maioria dos que matam mais de uma vez não quer.
Volto a olhar para a estrada.
— Isso incomoda você? — pergunta ela, sobre a verdade que acaba de revelar. — Que não quero que eles sejam os últimos?
— Não — respondo, baixinho. — Não me incomoda.
Noto que ela desvia o olhar e o silêncio preenche o carro, restando apenas o som dos pneus se movendo com velocidade na estrada.
— O que vai acontecer com Amelia? — pergunta ela.
— Fredrik vai levá-la para um abrigo ou matá-la.
Eu esperava que ela tomasse um susto e virasse a cabeça ao ouvir isso, mas Sarai nem se sobressalta. Ela assente, aceitando o fato de maneira tão casual quanto eu.
Sarai já está ficando mais dura. Já é inflexível quanto aos próprios erros e não deixa que eles a definam. E, para ter certeza de que não os repetirá, abandona as únicas coisas que lhe restam.
Sua humanidade.
Sua consciência.
Já é fim de tarde quando chegamos em casa. Achei que Sarai fosse dormir a maior parte do caminho, mas ela não pregou os olhos. Está acordada há mais de 24 horas, mas continua alerta, sem exibir nenhum sinal de cansaço. É a adrenalina. Estou bem familiarizado com os efeitos dessa substância sobre a mente. No momento, contudo, estou tão exausto pela viagem que me tornarei inútil se não dormir logo.
Verifico a casa com cuidado antes de considerá-la segura o bastante para relaxar, embora eu tenha conferido as câmeras pelo laptop antes de chegarmos. Não tenho nenhum motivo para crer que Stephens e seus homens saibam onde estamos, mas, como sempre, não posso abaixar a guarda. Ainda é um mistério como Stephens descobriu a existência de Amelia McKinney e Dina Gregory. Não importa o que pareça, sei que Fredrik não teve nada a ver com isso. No entanto, por mais que essa brecha me preocupe, agora ela não importa. Neste momento, sei que vou ter que abandonar meus planos de treinar Sarai por meses ou até anos, dando tempo para que ela talvez mudasse de ideia. Ou decidisse me deixar fazer o trabalho para ela. Sei agora que nada vai fazê-la desistir, e, por mais que eu tente convencê-la, ela nunca vai aceitar que eu faça o serviço.
Talvez eu devesse matá-los assim mesmo...
— Victor?
Sou arrancado de repente da minha reflexão.
Sarai está diante da porta de vidro, olhando para a paisagem infinita do deserto. O sol está se pondo no horizonte, iluminando as grossas faixas de nuvens com um cor-de-rosa profundo.
— Tem uma coisa que eu preciso lhe dizer.
Ando até ela devagar, curioso, impaciente e até preocupado com o que ela vai falar.
— O que é? — pergunto, chegando mais perto.
Ela não se vira para me encarar, em vez disso mantém os olhos no vidro alto e impecavelmente limpo. Seus braços estão cruzados, os dedos pousados nos bíceps.
— Tomei uma decisão — começa ela, com voz baixa e em tom de desculpas. Minhas entranhas estão começando a se revirar. — Só espero que você entenda.
Ela enfim me olha, virando só a cabeça. Seu cabelo castanho, longo e macio, desce em cascatas pelo meio das costas, deixando os ombros à mostra. Ela usou uma blusinha branca de tecido fino durante a viagem de volta. Adoro vê-la de branco. Faz com que pareça angelical, para mim. Um anjo que carrega a morte no bolso.
— Conte — peço, com voz relaxada, embora não esteja nada relaxado, no momento, e não saiba por quê. — Que decisão?
Seus olhos escuros se desviam dos meus, e esse pequeno gesto insignificante parece uma tragédia.
Ela umedece os lábios, mordendo seu suculento lábio inferior por um momento.
— Depois que Hamburg e Stephens estiverem mortos... Eu vou embora. — Ela se vira para me encarar. Meu coração parou de bater. — Vou levar Dina comigo para algum lugar e ficar por minha conta.
Mal consigo organizar meus pensamentos, muito menos formar uma frase mais complexa.
— ... Não entendo.
Sarai inclina a cabeça para um lado e descruza os braços, deixando-os pender soltos em toda a sua elegância. Ela se aproxima de mim. Quero tomá-la nos braços e beijá-la, mas não consigo.
Por que eu não consigo, porra?
— Victor, eu entendo agora que não consigo viver assim. Pelo menos não com você. E com Fredrik. Vocês dois são profissionais, e eu não posso manter essa ilusão de achar que algum dia serei capaz de acompanhar um de vocês, muito menos os dois. — Ela levanta uma das mãos como se eu fosse retrucar, e, embora eu não esteja pronto para falar, percebo que ela deve estar lendo a discordância crescente no meu rosto. — Olha, não estou fazendo isso para chamar atenção. Nem para você me dizer que estou errada. Eu sei que, por mais que eu queira ficar com você, isso não é possível. Se eu não acabar morrendo, vou acabar causando a sua morte. E sei que jamais conseguiria conviver com isso.
— Bom, eu realmente acho que você está errada — digo, com dificuldade, desejando poder explicar melhor.
— Não — rebate ela. — Não estou. E você sabe disso.
— Mas aonde você iria? O que iria fazer? — Meu tom de voz se torna urgente. — Sarai, você já tentou levar uma vida normal. Você tentou, e veja o que aconteceu.
Por que estou dizendo essas coisas? Eu deveria estar comemorando o fato de ela finalmente cair em si.
Ela dá um suspiro suave. Vejo seus ombros delicados se erguendo e baixando.
— Não faça isso — pede Sarai, balançando a cabeça. — Não finge que isso incomoda você, ou que quer que eu mude de ideia. Por favor. Você sabe que isso é o certo, tanto quanto eu sei agora. Se eu tivesse escutado você há mais tempo, se tivesse desistido dessa vingança idiota contra Hamburg e seguido com a minha vida, estaria em casa no Arizona com Dina e Dahlia, e até com Eric...
— Mas você não o amava.
Por que eu disse isso? Entre todas as coisas que eu poderia ter dito, todos os tópicos que poderia ter explorado, por que tinha que ser logo esse?
— Não, não amava. — Ela me olha nos olhos, pensativa. — Mas ele era normal. Era o que você queria para mim, mas na época fui egoísta demais para entender que você estava certo. Aquele tipo de vida era o certo.
Dou um passo para trás.
— Espere — digo, erguendo a mão por um momento e passando a ponta do dedo pela boca, olhando para baixo. — Então você está dizendo que quer uma vida normal agora?
— De jeito nenhum — responde ela, balançando a cabeça. — Eu jamais conseguiria voltar para aquilo. Só estou dizendo que, se eu não tivesse insistido no meu plano de matar Hamburg, as coisas não estariam tão ruins como estão agora.
Inclino a cabeça para o lado, com uma expressão confusa no rosto cada vez mais sério.
— Então o que você está dizendo, exatamente? O que vai fazer? Começar a matar gente por conta própria?
Isso é quase risível para mim, mas não deixo minha opinião transparecer. Sei que Sarai tentaria. Sei que ela mataria e talvez até conseguisse se safar algumas vezes, mas não para sempre. Não sem os recursos que tenho.
— Ainda não decidi — responde ela.
Sarai coloca a mão no puxador da porta de vidro e a desliza, deixando a brisa suave do fim de tarde entrar na casa. Ela sai para o pátio dos fundos.
Estou lá fora ao lado dela antes que minha mente alcance o movimento apressado das minhas pernas.
— Você não está falando coisa com coisa.
Sarai entra no alcance do sensor de movimento, e a luz inunda o pátio de concreto. Ela fica no limite do feixe brilhante, deixando só parte do rosto coberto pela penumbra do sol quase extinto.
— Eu tenho pendências no México — esclarece ela, e fico atordoado. — Hamburg não é a única pessoa que pensei em matar nos últimos oito meses, Victor. — Ela olha para a paisagem plana de novo. Só consigo olhar para ela. — Quando você e Fredrik me contaram que os irmãos de Javier estão no comando da operação, isso só inflamou meu ódio. Eles precisam morrer. Todos eles. Cada um daqueles babacas envolvidos. Todos os Andrés e Davids. — Ela me olha. — Ainda há muitas garotas com eles. Eu sei que havia 21 quando fugi escondida no seu carro. Dezenove agora, sem Lydia e Cordelia. Que tipo de pessoa eu seria se seguisse com a minha vida sabendo que lá no México há uma fortaleza onde um monte de garotas das quais aprendi a gostar estão sendo mantidas à força? Sendo estupradas, espancadas e mortas?
Faço menção de tocá-la, mas paro no último instante.
Não sei por que isso é tão difícil para mim... Por que há tanto conflito dentro de mim...
Sarai sai do alcance do sensor e a luz se apaga, imergindo-nos na meia-luz. Uma brisa leve balança o cabelo dela, fazendo-o dançar suavemente nas costas.
— Isso é tolice, Sarai — digo, enfim encontrando palavras que acho adequadas. — Mesmo com a minha ajuda, fazer uma coisa dessas levaria muito tempo. O que faz você crer que conseguiria sozinha? Como encontraria a fortaleza sem a minha ajuda, para começar?
— Eu consigo fazer isso sozinha — retruca ela, com calma, mas com uma determinação inabalável. — Quer dizer, posso pelo menos tentar, e isso é melhor do que não fazer nada. E você não me dá o crédito que mereço, Victor. Sou tão capaz de somar dois mais dois quanto você. Posso pegar o que aprendi, informações às quais tive acesso, e encontrar o caminho para lá. Não deve ser difícil encontrar Cordelia. Sei que ela mora na Califórnia. Sei que ela é filha de Guzmán e que você foi enviado para a fortaleza por ele para encontrá-la e matar Javier Ruiz por tê-la raptado. Até sem você sou capaz de descobrir a localização da fortaleza. Vou começar com Cordelia e Guzmán.
Minha garganta está seca. Meu estômago parece um bloco de concreto.
Ela tem razão, não lhe dei o crédito que merecia. Sarai é muito mais esperta do que eu imaginava. Sabia que ela era inteligente, mas com certeza fiquei surpreso.
Ela não sorri nem se gaba de tudo isso, só fica ali me olhando concentrada, com intensidade e o tipo de determinação que me assustam tanto. A fúria assassina e vingativa de Sarai é muito mais profunda do que eu pensava, mais profunda do que ela me revelou.
Como não percebi isso?
— E também tem os ricaços que Javier me levava para visitar, me exibindo para que quisessem comprar as outras garotas — conta ela, com desprezo. — Eu lembro o que você me contou. John Gerald Lansen, você disse que ele é o diretor-executivo da Balfour Enterprises. — Sarai assente, confirmando o nome no meu rosto. — É, eu me lembro de muita coisa. E passei muito tempo na casa da Dina antes de ir a Los Angeles para matar Hamburg, pesquisando esses homens. Lembrando aos poucos os nomes, os rostos, somando dois mais dois para descobrir quem eles são, onde moram, quanto dinheiro têm. Quando eu não estava pensando em você, estava mergulhada neles, aprendendo tudo o que podia sobre esses caras com o objetivo de matá-los aos poucos, um por um. — Ela fica na minha frente e me olha nos olhos. — E é isso o que pretendo fazer.
— Você não vai conseguir sem mim.
Estou ficando furioso. Como Sarai pode dizer essas coisas, tomar uma decisão dessas sem me envolver?
Minhas mãos estão tremendo.
Desvio o rosto, sabendo que, se olhar demais, vou me perder nas profundezas daqueles olhos verdes.
— Tolice — digo, pronto para dar a noite por encerrada e acabar com aquela conversa absurda. — Vou tomar banho e dormir. Pode vir comigo se quiser.
Quero que ela aceite.
Sinto que ela não vai aceitar...
— Eu não vou com você. Estou falando sério. Quando isto acabar, quando os dois estiverem mortos, eu vou embora.
Eu me viro para ela com as mãos fechadas, sentindo os punhos da minha camisa branca mais apertados nos meus pulsos.
— Você não vai a lugar nenhum. Não desse jeito. Não vou deixar. — Dou uma risada seca. — Meu Deus, Sarai, você tem mesmo muito a aprender. Estou chocado por você não perceber a idiotice que isso é!
— Idiotice? — repete ela, com desprezo. — Não... Tudo bem, talvez você tenha razão, mas o que é ainda mais idiota é achar que eu poderia ter algum tipo de vida com você. Eu me odeio pelo que fiz você passar, pelo que fiz Dina passar. E estou aqui, como uma órfã abandonada à sua porta, esperando que você cuide de mim, me alimente e me ensine como levar uma vida fora do convencional e não morrer fazendo isso. Você não pediu por isso, eu nunca deveria ter me jogado na sua vida como fiz.
De tanto tempo cerrando com força os dentes sem perceber, eles estão começando a parecer plástico. Meu peito sobe e desce com a respiração profunda, furiosa e até apavorada. Sinto que não pisco há minutos, meus olhos estão começando a secar com a brisa incessante que os atinge. Parece que meu coração quer sair do peito.
Nunca me senti assim antes... pelo menos não desde criança. Nunca estive tão furioso e... assustado.
— Sinto muito ter feito você passar por isso, Victor — repete Sarai, com calma e sinceridade. — Quero agradecer por tudo o que você fez para me ajudar. Duvido que qualquer coisa que eu possa fazer ou dizer retribuirá a sua ajuda. Eu sei. Mas o mínimo que posso fazer é deixar você em paz para viver a sua vida do jeito que você sabe. Você não precisa de alguém fazendo merda o tempo todo.
Ela me dá as costas e começa a se afastar.
— Sarai! — grito, e ela para no mesmo instante. Tento acalmar minha voz. — Espere... espere só um minuto.
Ela se vira para me olhar.
Estou tropeçando nas palavras que se formam na minha cabeça, tentando escolhê-las na minha confusão e juntá-las de forma adequada para que façam sentido. Mas é difícil. É difícil pra cacete!
— Eu... — Olho para os meus sapatos, para a cadeira de ferro batido do pátio, para seus cachos agitados sobre os ombros nus e macios. De novo olho para os meus sapatos. — Eu não quero que você vá embora.
— Mas eu preciso ir, Victor — insiste Sarai, com tanta ternura e compreensão na voz que quase racho ao meio. — Você sabe que preciso. É o melhor para nós dois.
— Não — digo com severidade, erguendo o queixo e me recompondo. Não vou aceitar isso. — Você vai ficar comigo. Eu posso manter você segura. Não vamos mais falar disso. Agora vamos para cama.
Estendo a mão para ela.
— Não, Victor. Sinto muito.
Pego a mão de Sarai e a puxo para perto de mim. Ela não resiste nem se encolhe, tampouco parece surpresa. Seguro seu rosto com as mãos e a admiro, seus olhos quase infantis, embora tão sagazes. Uma pequena loba se esconde dentro daquela corça. Minha loba.
— E-eu quero que você fique comigo.
— Por quê?
— Porque é isso que eu quero.
— Mas isso não é motivo, Victor.
— Não importa, Sarai, você precisa ficar comigo.
— Mas eu não vou ficar.
Eu a sacudo, ainda segurando seu rosto.
— VOCÊ NÃO PODE IR EMBORA! — Minha alma está tremendo. Não consigo suportar essas emoções.
Ela ainda não reage, mas vejo seus olhos começando a marejar.
Sarai balança a cabeça nas minhas mãos com delicadeza.
— Eu vou embora e não tem nada que você possa fazer para mudar isso.
— NÃO, SARAI! EU PRECISO DE VOCÊ NA MINHA VIDA!
De repente, eu a solto e olho para minhas palmas, abertas à frente, como se de alguma forma elas tivessem me traído. Meu peito se agita em um turbilhão, como se emoções que estavam adormecidas durante a vida toda tivessem enfim acordado e eu não soubesse mais o que fazer.
Querendo apenas me esconder no quarto para tentar entender o que acaba de acontecer comigo, giro sobre os calcanhares e sigo para a porta de vidro.
— Victor. — Eu a ouço chamar baixinho atrás de mim.
Paro. Não tenho forças para me virar.
Sinto que Sarai se aproxima por trás, sinto o calor de sua presença, o aroma doce da sua pele.
— Olhe para mim — pede ela, com a voz leve como a brisa.
Eu me viro devagar.
Ela se aproxima e segura meu rosto com as mãos, com mais delicadeza do que quando segurei o dela. Inclina a cabeça para um lado e depois para o outro, me encarando com os olhos cheios de lágrimas. Ela fica na ponta dos pés e me beija de leve na boca.
— Não reprima nada — diz ela, com uma urgência suave. — Diga tudo o que está sentindo agora. Neste exato momento. Por mais errado, constrangedor ou esquisito que pareça, diga assim mesmo. Por favor...
Não notei quando minhas mãos se ergueram e seguraram os pulsos dela, com a mesma delicadeza com que seus dedos tocam minhas bochechas. E me examino por dentro, tentando entender o que Sarai está fazendo comigo. O que ela fez comigo. Penso no que ela disse e, contrariando minha aparência tão dura, só quero lhe dar o que ela deseja.
— Eu... Sarai, eu nunca me senti assim antes. — Não consigo olhá-la nos olhos, mas ela me força a isso mesmo assim.
— Conta tudo. Eu preciso ouvir.
O desespero na voz dela é apaixonado e condiz com o que sinto por dentro. Examino o rosto dela. Seus olhos. Sua boca, os lábios tão suavemente entreabertos que fazem a boca parecer inocente e convidativa. As maçãs do seu rosto. Seu queixo. A linha elegante do seu pescoço.
Mas os olhos dela...
— Sarai, você é importante para mim — digo, desesperado, em um murmúrio urgente. — Você é mais importante para mim do que qualquer coisa ou qualquer pessoa. Ter você aqui comigo não é um fardo. Eu quero treinar você. Pelo tempo que for necessário. Quero acordar todo dia com você ao meu lado. Preciso de você na minha vida mais do que jamais precisei ou quis qualquer outra coisa.
Faço uma pausa e olho para baixo. E então me afasto dela. Suas mãos abandonam meu rosto.
Engulo em seco.
— Não vou forçar você a ficar comigo — obrigo-me a dizer, apesar do que sinto. — Mas saiba de uma coisa... Se você partir, você vai se tornar um fardo. Se você acha que ficando aqui vai foder a minha vida, nem faz ideia de como isso vai ser verdade se tentar ir embora e ficar sozinha. Porque eu vou passar cada momento de cada dia da minha vida tentando proteger você! — Meu coração está disparado. — Não vou conseguir dormir sabendo que você está por aí, tentando se encaixar em uma vida que não passa de uma sentença de morte para quem não tem um treinamento adequado! Sarai... ISSO VAI ME MATAR! SERÁ QUE VOCÊ NÃO ENTENDE? VOCÊ VAI ME MATAR SE DECIDIR IR EMBORA! — Estou tremendo todo, meu corpo todo abalado por dor, medo e angústia.
Em um segundo, Sarai está diante de mim novamente, a poucos centímetros do meu peito, seus dedos dançando no meu rosto como instantes atrás. Ela parece calma. Mas há algo mais em seus olhos, agora, algo que não estava lá há pouco. Alívio? Felicidade? Não consigo decifrar a emoção, quando tudo o que quero é puxá-la para perto de mim e abraçá-la até morrermos.
Ela passa a ponta do dedo indicador sob meu olho. Uma lágrima.
Uma lágrima?
Consumido pela confusão, não consigo falar nem me mexer. Olho primeiro para a mão dela e vejo o que resta da lágrima brilhando em seu dedo. Volto a fitar seus suaves olhos verdes, que estão sorrindo para mim, não com arrogância, mas com ternura.
Lobinha esperta...
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
Victor
— Desculpa — pede ela, com nada além de ternura. — Mas eu precisava saber o que você sentia de verdade, Victor.
Eu me sento na cadeira de ferro preto do pátio, esticando as pernas. Colocando o cotovelo no braço da cadeira, apoio a cabeça exausta nas pontas dos dedos.
Sarai se ajoelha na minha frente, no meio das minhas pernas estiradas.
— Ficar com você significa mais para mim do que fazer parte do seu trabalho. Eu precisava saber que você quer de mim a mesma coisa que quero de você. E... quando estamos juntos, sempre sinto que sou mais parte do seu trabalho do que do seu coração.
Ela tenta encontrar meu olhar, mas estou concentrado demais no chão de concreto. Ouço cada palavra que Sarai diz, mas ainda estou muito perplexo com as emoções que ela arrancou de mim para olhá-la nos olhos.
Sinto que não consigo encará-la. Não por estar com raiva dela, mas por vergonha.
— Você tem sido impenetrável desde o dia em que nos conhecemos — continua ela, segurando minha mão. — A única situação em que sinto uma ligação emocional de verdade com você é quando dormimos juntos. Eu ficava muito frustrada. Porque sabia que, por baixo de todas essas suas camadas, isto, isto aqui... — ela aperta meus dedos enfatizando essas palavras — ... que você acabou de me mostrar estava lá o tempo todo, só querendo ser libertado. Eu... Victor, por favor, olha para mim.
Relutante, levanto a cabeça e a olho nos olhos.
— Eu não quero ser o seu trabalho. Quero trabalhar com você. Quero aprender com você. Mas quero sentir que sou importante do ponto de vista emocional quando o trabalho não estiver interferindo. Victor, eu sei que não é culpa sua. Sei que você não pode mudar seu jeito, o modo como você se isola emocionalmente do mundo. Mas eu precisava tentar ajudar a desfazer o que Vonnegut e a Ordem fizeram com você.
— Você me manipulou — afirmo, sem dizer mais nada.
Ela abaixa o olhar.
— Desculpa.
— Não peça desculpas. — Ergo as costas da cadeira, inclinando o corpo para a frente e enfiando as mãos sob os braços de Sarai. Eu a levanto e a ponho no meu colo. — Nunca peça desculpas.
Com uma das mãos, viro o queixo dela na minha direção, para fazê-la me olhar.
— Você fez o que precisava fazer — digo, e espero que ela se lembre disso mais tarde. — Não posso culpar você.
— Não está bravo? — pergunta ela.
Balanço a cabeça.
— Não. Acho que “grato” é um termo melhor.
Ela sorri. Eu também sorrio e a beijo.
— Parece que estamos ajudando um ao outro.
Ela inclina a cabeça, pensativa, e presta atenção.
— Sarai, eu estou ajudando você a se tornar o que quer ser, a viver a vida que escolheu viver. Você nunca teve direito de escolha antes. E você está me ajudando a recuperar o tipo de vida que tiraram de mim, me mostrando como é ser algo mais do que um assassino, a sentir algo mais do que a necessidade de matar. E, por isso, eu jamais poderia ficar bravo com você.
Ainda acomodada na minha perna esquerda, ela se curva e me beija de leve no canto da boca. Seguro sua cintura com as duas mãos, entrelaçando os dedos. Ficamos assim em silêncio por alguns momentos. O sol já sumiu do horizonte e as estrelas estão acordadas na escura imensidão do céu que paira acima de todos nós, em uma exuberância de tirar o fôlego.
— Então, quanto daquilo era verdade? — pergunto a ela.
— Tudo — responde Sarai. — Menos a parte sobre eu ir embora.
Balanço a cabeça, distraído, pensando muito em todas as coisas que ela me revelou esta noite.
— Você sabe que ninguém vai nos pagar para voltar ao México. Seria só um acerto de contas.
— Eu sei. — Ela assente. — Mas é importante para mim. Aquelas garotas são importantes para mim.
Passo a mão esquerda pelas costas dela e a apoio em sua nuca. Puxando-a na minha direção, aninho sua cabeça no meu ombro.
— Então é importante para mim. Pode levar meses, até um ano ou dois, para juntar todas as informações de que precisamos, todos os recursos, mas vamos conseguir. E vamos conseguir juntos. Mas você precisa me prometer que vai ser paciente e vai...
— Eu dou a minha palavra — interrompe ela. — Não importa quanto tempo leve. E vou seguir os seus comandos e as instruções em cada passo. Não vou cometer os mesmos erros de novo.
Logo depois da nossa conversa no pátio, levo Sarai para o banheiro e lavo o cabelo dela, sentada entre as minhas pernas na banheira.
Conversamos por um longo tempo sobre a vida como era antes. Sobre quando ela morava com a mãe, antes que a mãe descobrisse as drogas e os homens. Quando elas se sentavam juntas para assistir a desenhos animados na TV nas manhãs de sábado. Falamos sobre a minha vida antes que eu fosse capturado pela Ordem. Sobre como eu jogava Dosenfussball (futebol com latinha) e Verstecken (pique-esconde) com Niklas quando eu tinha 6 anos, na Alemanha.
Ficamos tão perdidos nas lembranças de quando nossas vidas eram mais simples e mais inocentes que esquecemos como as coisas estão agora.
Também esqueço, só por um momento, que as coisas entre nós não estão completamente definidas.
E pode ser que nunca estejam.
Sarai
Acordo na manhã seguinte e encontro o lado de Victor da cama frio e vazio. Aperto o travesseiro dele contra o peito e o seguro perto de mim. Ele tinha uma reunião às oito com um contato em Bernalillo. Queria que eu fosse junto, mas fico exausta com as viagens, sobretudo quando não são de avião.
Já que a localização da academia de krav maga foi “comprometida”, como Victor diz, ele acha melhor sairmos do Novo México quanto antes. Meu objetivo do dia é fazer as malas, levando tudo o que eu puder da casa. Isso, contudo, não deve ser tão difícil, já que o guarda-roupa e os pertences de Victor não são iguais aos de uma pessoa normal. Ele não tem uma “gaveta de cacarecos” onde joga vários itens que vão ficar lá, sem serem usados, pelo resto da vida. Os armários não são cheios de caixas velhas de sapatos e pilhas de documentos guardados só por segurança, ou roupas que ele não veste há cinco anos. Os armários da cozinha não são cheios de jogos caros de porcelana que só são retirados do lugar nos feriados e em ocasiões especiais. Não há retratos de família pendurados em uma bela fileira na parede do corredor, nem enfeites organizados em uma estante, recebidos de pessoas importantes, dos quais ele não consegue se desfazer por razões sentimentais. Algumas caixas devem bastar. Os ternos dele. Minha coleção cada vez maior de roupas, perucas, joias, maquiagens e um zilhão de sapatos. Parece que vou encaixotar só as minhas coisas.
Aperto um botão no controle remoto e a TV de LCD da sala ganha vida. Deixo em um dos canais de notícias só para fazer barulho de fundo. O sol atravessa a porta de vidro que emoldura a vista do Novo México atrás da casa. Observo a paisagem só por um momento, sentindo que preciso mudar de ares. Depois de passar a maior parte da minha vida no México, rodeada de areia, árvores retorcidas, grama seca e calor... bem, fico feliz em me mudar. Victor disse que a nova casa vai ser em Washington ou Nova York. Qualquer uma das duas cidades está ótima para mim, ambas bem diferentes daquilo com que estou acostumada.
Vou saber com certeza amanhã.
Tomo um café da manhã simples, um ovo mexido e uma fatia de torrada acompanhados por um copo de leite. Faço meus exercícios matinais e tomo um banho rápido, vestindo um short preto e um top apertado de algodão da mesma cor. Prendo o cabelo em um rabo de cavalo, separo em duas metades e puxo, para deixá-lo mais firme. De pé diante do enorme espelho do banheiro, começo a me maquiar, mas percebo que estou com muita preguiça para isso no momento e volto a cuidar da mudança. Enquanto pego os ternos de Victor do armário, um por um, e os guardo em capas compridas com zíper, sinto alguma coisa sob a minha mão ao ajeitar uma manga sobre o peito do paletó. Afasto a manga na cama e desabotoo o paletó. Enfio a mão no bolsinho interno e pego um pequeno envelope. É meio grosso, mais ou menos 1 centímetro.
Antes de tirá-lo todo do bolso, penso em guardá-lo de novo, minha consciência me dizendo que aquilo não é da minha conta. Mas olho mesmo assim.
O envelope está velho e surrado, com as bordas esgarçadas e amarelado. É pequeno, mais quadrado do que retangular, e deveria ser de algum cartão de aniversário ou convite. Há fotografias dentro. Fotografias antigas. Tiro a aba de dentro do envelope e o abro, despejando a pequena pilha na mão. A primeira foto é de um homem de cabelo claro e queixo forte. Ele usa camisa branca e gravata marrom. Está sentado em uma poltrona de couro, rodeado por paredes revestidas com um papel cafona que imita tapeçaria. Um garotinho de cabelo castanho e uma menina ainda mais nova com cabelo louro bem claro estão de pé ao lado dele, dando um sorrisão para a câmera.
A foto seguinte é também do menino e da menina, posando com uma mulher loura, de cabelo longo e ondulado, linda, ao ar livre, no que parece ser um parque.
Todas as fotos são velhas, alaranjadas e com rachaduras nas bordas, onde elas foram dobradas ao longo dos anos. Olho cada uma delas e leio o verso. Versalhes, 1977; Paris, 1977; e Versalhes, 1976, rabiscados no canto esquerdo e quase ilegíveis, pois a tinta começou a desbotar. Nas fotos seguintes, o menino está mais velho, talvez com uns sete ou oito anos, e está de pé com o braço sobre o ombro de outro menino. Munique, 1981, e Berlim, 1982. Meu coração afunda quando me dou conta de que todas aquelas fotos são de Victor e Niklas, com quem acredito serem seu pai e a mãe de Victor. A menina deve ser uma irmã.
Parte meu coração saber que ele carrega essas fotos assim. É mais uma prova de que Victor não é desprovido de emoções, de que no fundo de sua alma há um homem que ficou escondido do mundo, forçado a carregar as únicas lembranças da infância dentro de um bolso.
É a prova de que ele é humano, um ser humano perdido e traumatizado que quero desesperadamente curar.
Viro a cabeça ao ouvir passos dentro da casa.
Deixo as fotos na cama e pego a 9mm do criado-mudo, tirando o pente para verificar se está cheio. Insiro o pente na arma de novo e, descalça, corro em silêncio pelo quarto, com as costas coladas na parede, na direção da porta. Mantenho a arma na altura da cabeça, segurando-a com as duas mãos, e paro para escutar. Nada. Quer dizer, nada além da porcaria da televisão, que me arrependo de ter ligado.
Começo a achar que só pode ser Fredrik, mas não vou me arriscar.
Ainda com as costas na parede, contorno o batente e vou para o corredor ao ver que está vazio. Uma sombra se move no piso de terracota na outra extremidade do corredor, e eu fico imóvel. Sinto o coração pulsar nas pontas dos dedos, coçando para apertar aquele gatilho com toda a força. Continuo imóvel, com gotículas de suor surgindo na nuca, e fito o chão por um longo momento, sem piscar, temendo perder algum outro movimento. Ouço os passos de novo, mais distantes desta vez, e ando com cuidado pelo corredor na ponta dos pés.
Ao chegar perto do fim, paro a centímetros do canto e encho os pulmões de ar. Expiro devagar e em silêncio antes de prestar atenção de novo. As vozes do noticiário falando sem parar sobre o “Obamacare” me dão nos nervos, pois se sobrepõem a quaisquer vozes ou passos que eu poderia ouvir e saber de que direção estão vindo.
Finalmente, ouço vozes murmurando:
— Verifique os quartos — diz um homem. — Ela deve estar escondida debaixo de uma cama ou dentro de um armário.
Não, babaca, estou esperando que você venha pelo corredor para meter um tiro na sua cara.
Um homem de terno preto surge no canto, de arma em punho, e eu atiro no mesmo instante em que ele aparece no fim do corredor. O tiro ecoa nos meus ouvidos, e o homem cai no chão, o sangue esguichando do ferimento na lateral do pescoço. Ele tosse e sufoca, tentando cobrir o ferimento com as mãos, agora cobertas de sangue.
Dou a volta no corpo dele, ignorando os perturbadores sons de gargarejo que ele faz, e viro a quina da parede, atirando mais três vezes. Consigo atingir mais um homem antes que uma dor cegante atravesse minha nuca. Enquanto caio, vejo o segundo homem em quem atirei caindo à minha frente. E vejo Stephens, de pé ao lado do cadáver, em toda a sua glória altiva e sombria. Minha arma não está mais em minhas mãos, e estou tão desorientada pelo que bateu na minha nuca, seja lá o que for, que demoro um pouco para me dar conta de que estou deitada no chão frio, com a bochecha encostada em uma fenda do assoalho. Apalpo minha nuca e sinto sangue nos dedos quando toco o cabelo.
Stephens se agacha ao meu lado, com um sorriso ameaçador criando rugas profundas ao redor de sua boca dura. Seu cabelo grisalho parece mais escuro, ele parece maior, a covinha no centro de seu queixo, mais pronunciada. Ele me olha de cima, apoiando os cotovelos nas coxas, com as mãos enormes relaxadas entre as pernas, o pulso direito adornado com um grosso relógio de ouro. Ele tem um cheiro forte de colônia e charutos.
— Você é difícil de achar, garota — observa Stephens.
— Vai se foder — digo, tão casualmente quanto se estivesse comentando que o tempo está bom.
Stephens abre um grande sorriso com a boca fechada, e é a última coisa que vejo antes que tudo fique preto.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Sarai
Acordo devagar com um zumbido baixo e profundo, bem acima de mim, acompanhado por um som rápido e constante de vento. Minha visão está embaçada e enxergo apenas uma luz fraca e acinzentada, que de início se curva e se distorce ao atingir meus olhos. O ar parece muito úmido, as costas da minha camiseta e o espaço entre os meus seios e minhas axilas estão empapados a ponto de me fazerem sentir um calafrio terrível quando a brisa estranha me atinge. Minhas mãos estão amarradas atrás das costas, como amarrei as mãos de Izel quando ela veio atrás de mim depois que fugi no carro de Victor. Penso nela por um momento, no modo como ela olhou para mim naquele dia, como seu cabelo escuro e suado grudava no rosto. Imagino que eu deva estar parecida com ela agora, só que meu cabelo ainda está preso em um rabo de cavalo.
Logo percebo que meus tornozelos também estão amarrados.
Forço meus olhos a se abrirem completamente e luto para pôr minha visão em foco. Estou sentada em uma cadeira no meio de uma sala enorme, escura e empoeirada, em uma espécie de galpão velho.
Rio por dentro, pois vejo o rosto de André Costa na cabeça, como ele estava naquele galpão em Nova Orleans.
Tudo o que vai volta, suponho. E a vingança por todas as mortes que causei ou das quais participei está chegando mais cedo do que eu esperava.
A brisa estranha e o som de vento acima de mim, percebo agora, estão vindo de um grande ventilador industrial construído na parede, perto do teto alto. As paredes são feitas de concreto, e o teto de trilhos de metal que vão de uma ponta à outra é sustentado por pilastras compridas também de concreto. O lugar tem um cheiro forte de solvente, cola e outros produtos químicos que fazem mal aos pulmões.
Minha garganta está tão seca que dói. Meu primeiro impulso é pedir água, mas, assim como soltar a corda que prende meus pulsos e tornozelos, sei que nada que eu pedir será concedido.
Olho para baixo, sinto o peito dos pés ardendo e vejo que a pele dos dedos dos pés está dilacerada, indicando que em algum momento devo ter sido arrastada.
Passos ruidosos, como de solas duras, ecoam pelo espaço amplo quando Stephens se aproxima de mim.
Prendo um riso do ridículo daquela situação.
— Posso perguntar o que é tão engraçado? — indaga Stephens, com sua voz grave e também parecendo achar graça.
Sorrio em desafio quando ele para diante de mim, com as mãos nas costas.
— Pensei que você e aquele maluco de merda para quem você trabalha queriam me matar. — Eu rio. — Isto aqui é um pouco exagerado, não acha? — Abro um sorrisinho para ele.
Stephens dá um sorriso frio que imediatamente me lembra a expressão no rosto de Fredrik quando ele prendeu André Costa naquela cadeira de dentista. Em vez de responder, Stephens vira para a direita e vê outro homem se aproximar, trazendo uma cadeira. As pernas de madeira raspam um pouco no concreto quando ela é colocada no chão, ecoando pelo pequeno espaço que nos separa. Stephens se senta, ajeitando de maneira despreocupada seu belo terno preto, puxando a lapela e espanando uma poeira invisível da perna.
— É sério isso? — pergunto, balançando a cabeça. — Deixe eu adivinhar... Hamburg ainda quer seu showzinho. Não conseguiu comigo e com Victor no quarto dele na mansão. Não conseguiu com o guarda-costas dele no escritório do restaurante. A propósito, fiquei feliz em saber que aquele merda morreu. Era seu amigo? — Meu sorriso fica mais evidente.
Os olhos de Stephens sorriem. Ele cruza a perna e põe as mãos com delicadeza no colo. É muito enervante como ele parece calmo e imune às minhas palavras. Mesmo assim, não deixo que ele perceba que isso me incomoda.
— Acredite, Izabel, Sarai ou qualquer que seja o seu nome, se dependesse de mim, eu teria matado você naquela casa, em vez de trazê-la para cá.
— É claro, você é só o criadinho dele, ajoelhado aos pés de Hamburg, esperando que ele peça o próximo boquete.
O teto surge no meu campo de visão por um instante quando alguém puxa meu cabelo, meu pescoço tão forçado para trás que não consigo respirar. Outro homem está de pé atrás de mim, olhando nos meus olhos arregalados. Tento engolir, mas não consigo. Começo a engasgar e tossir, em vez disso.
— Pode soltar — ouço Stephens dizer.
O homem me solta e minha cabeça cai para a frente. O peso do meu corpo faz a cadeira tremer e balançar um pouco até se estabilizar. Fico aliviada por conseguir respirar de novo. Levanto a cabeça e fuzilo Stephens com o olhar enquanto ele continua sentado diante de mim, a apenas meio metro. Começo a correr os olhos pela sala procurando uma saída, tentando formular um plano que sei que jamais vai se materializar. Mesmo se eu tivesse alguma chance de sair desta sala, não sei como poderia me soltar das amarras. Meus pulsos estão tão presos que a circulação parece ter sido cortada. As fivelas nos meus tornozelos estão muito apertadas também, mas sinto que posso movê-los um pouquinho, esmagando-os nas pernas da cadeira. Mas não vou a lugar nenhum. A não ser para o inferno, talvez, e logo.
Não tenho medo de Stephens, não tenho medo do que ele vai fazer comigo. Não tenho medo de ser torturada. Só tenho medo do quanto vai durar.
— Por que você não acaba logo com isso? — sugiro, com rispidez, ódio e vingança evidentes na voz. — Não ligo para o que você vai fazer comigo, ou para o que Hamburg vai fazer, então ande logo.
— Ah, mas você não está aqui por causa de Hamburg. — Stephens abre um sorriso de gelar o sangue. — E, não, eu não quero que isto acabe. — Ele se inclina para a frente, aproximando seu queixo quadrado de mim. Sinto o cheiro de sua loção pós-barba. — Espero que você não fale ao menos por alguns dias, porque estou muito ansioso para passar esse tempo com você.
Engulo meu medo de saber o que essas palavras significam: que ele vai me torturar e por muito tempo. Tento amenizar a preocupação, torcendo para que ele não detecte o menor sinal de pavor no meu rosto.
— O que eu poderia saber que você precisasse me fazer revelar, afinal? — Rio, desafiando-o. — E que loção é essa? Fede como se você tivesse mergulhado de cabeça no meio das coxas de uma viciada em crack.
Os olhos de Stephens se movem para a pessoa atrás de mim, estreitando-se, e percebo que ele acaba de impedir o homem de puxar meu pescoço para trás de novo, ou talvez de me dar um tapa. Ele ignora meu insulto.
Stephens se reclina na cadeira de novo. E não diz nada. Odeio isso. Preferiria que ele andasse ao meu redor fazendo um monólogo canastrão a não dizer absolutamente nada. E acho que ele sabe quanto isso me incomoda. A expressão satisfeita dos seus olhos me confirma isso.
— Ok, então, se eu não estou aqui por causa de Hamburg, qual é o motivo?
Outros passos atrás de mim atravessam a sala. Tento olhar para trás, mas não consigo esticar muito o pescoço.
Enfim a figura dá a volta e consigo vê-la.
— Você está aqui por minha causa — afirma Niklas, jogando uma bituca de cigarro no chão e apagando-a com sua bota de couro preta.
Suspiro sem fazer ruído. Meu corpo todo fica rígido na cadeira. Procuro me concentrar na minha respiração, tentando recuperar o controle do meu corpo, mas por um longo tempo não sou nada mais do que uma casca imóvel.
— Niklas... — digo enfim, mas não consigo falar mais nada.
A raiva assoma dentro de mim, e minha necessidade de matar Stephens de repente é ofuscada pela necessidade de dizer a Niklas tudo o que está entalado na garganta.
Diferente de Stephens, Niklas não sorri nem sente a necessidade de me atormentar com ameaças. Sinto algo diferente nele, algo muito mais sombrio do que em Stephens, algo mais ameaçador do que as palavras podem descrever. Olhando aquele homem alto de cabelo castanho-claro arrepiado, os olhos azuis ferozes emoldurados por um rosto perfeitamente redondo, porém bonito, vejo alguém mais afeito à vingança do que eu jamais conseguiria ser.
E, por fim, fico apavorada.
Niklas chega mais perto até ficar bem na minha frente, sem se importar com a proximidade. Stephens ficou pelo menos meio metro longe de mim, como se temesse que eu pudesse cuspir nele, ou me soltar e agarrá-lo. Mas Niklas, não. Sinto que ele está me desafiando a me mexer. Ele quer que eu tente algum movimento.
Engulo em seco, empino o nariz de forma arrogante e tento continuar forte para encarar meu destino.
— Você sabe o que eu quero — diz Niklas, com uma voz tranquila e o mesmo sotaque alemão, ainda evidente na voz. — Ou precisamos discutir a questão em detalhes? — Ele inclina a cabeça para o lado.
Ele se parece tanto com Victor que me pergunto como podem ser tão diferentes por dentro.
— Você vai ter que explicar. É sobre o Victor? — Olho rapidamente para Stephens. — Esse merda estava na casa dele agora há pouco. Você já sabe onde encontrar o Victor. E não que isto me surpreenda muito, mas o que você está fazendo com eles?
Flagro Stephens olhando para Niklas, que, no entanto, não tira os olhos de mim. Ele se agacha na minha frente, no meio das minhas pernas abertas, e me olha com um rosto tão calmo e ameaçador que sinto um calafrio percorrendo a nuca. Dá para sentir o cheiro do couro de sua jaqueta preta e o fraco odor de fumaça de cigarro que persiste na camisa cinza-escura que ele usa por baixo.
— Estou procurando Victor há meses — começa Niklas, e ouço com atenção, mantendo os olhos grudados nele. — Ele sem dúvida contou a você que saiu da Ordem, que traiu a mim, a Vonnegut...
Arregalo os olhos e meu queixo cai em um ofegar.
— Traiu você? — interrompo, incrédula. — Não pode estar falando sério. Você traiu Victor! Foi você que...
Ele estende as mãos fortes e aperta com firmeza minha garganta, me fazendo engasgar e tossir. Eu me agito na cadeira, incapaz de erguer as mãos para tentar tirar as dele. Meus olhos viram para cima quando ele aperta mais forte.
Ele me solta.
Ofego e tento recuperar o fôlego, com os cantos dos olhos molhados por lágrimas de exaustão e dor. Estou apavorada, mas não o suficiente para chorar ou implorar pela minha vida. Prefiro morrer a implorar por qualquer coisa.
— Meu irmão me traiu muito antes de sair da Ordem — diz Niklas, com um pouco mais de emoção na voz do que antes: ressentimento. — Ele me traiu quando se voltou contra tudo o que acreditávamos e ajudou você. Ele me traiu quando mentiu para mim sobre ajudar você. Ele mentiu, Sarai, porque sabia que isso era errado. — Niklas fica na ponta dos pés, pondo-se a poucos centímetros do meu rosto. — Ele quase me matou por sua causa. E ia me matar, se você não tivesse impedido. Foi ele quem me traiu!
Minhas mãos começam a tremer nos braços da cadeira. Meu coração está no meu estômago, revirando-se, perdido e apavorado. Não posso negar, o que Niklas disse é verdade.
Não posso negar...
Ele se afasta alguns centímetros até eu não conseguir mais sentir seu hálito de pasta de dente, mas ainda está muito perto. Um quilômetro seria perto demais.
— Niklas — digo, em uma voz um pouco desesperada, só o suficiente para convencê-lo a me ouvir. — Victor só ia matar você porque era errado me matar. Você não entende? Ele teria feito isso por qualquer um. Não só por mim.
Um sorrisinho aparece em um canto de sua boca, e fico ao mesmo tempo intrigada e preocupada com o significado disso. Niklas fica de pé, vira de costas para mim e se aproxima de Stephens. E então se vira de novo.
— Você não conhece meu irmão tão bem quanto imagina. Não, ele não teria feito isso por qualquer um. Parece que meu irmão é humano, no fim das contas, com isso de ter se apaixonado por você e tudo o mais.
Balanço a cabeça e desvio o olhar.
— Por que eu estou aqui, Niklas? Diga logo o motivo de ter me trazido para cá. Não vou mais lhe dar o prazer da minha conversa.
Stephens se levanta da cadeira, parecendo um gigante perto de Niklas. Ele é bem alto, com ombros largos e cabeça grande e quadrada.
— Detesto admitir — diz Stephens —, mas concordo com essa puta. Vamos logo com isso. — Ele me olha com frieza. — Você está viva porque Niklas precisa de você primeiro, mas quando ele terminar eu vou meter uma bala nessa sua cabecinha linda, cumprindo meu contrato com Arthur Hamburg.
Olho para Niklas.
— Você precisa de mim para quê? — Há veneno na minha voz.
— Você vai me contar tudo o que sabe sobre o meu irmão e sua nova... organização. Quero saber os nomes dos associados, a localização de todos os abrigos e quem toma conta deles. — Noto dentes rangendo atrás das bochechas. — E quero saber até que ponto Fredrik Gustavsson está envolvido nos negócios de Victor.
Balanço a cabeça.
— Bom, antes de mais nada, quem é esse Fredrik Gustavsson? Segundo: eu não sei nada sobre a organização de Victor, seja lá o que isso significa. Ele me disse que saiu da Ordem, sim. E me disse que você o traiu ao continuar na Ordem e aceitar a missão de Vonnegut para matá-lo. Mas não me contou mais nada. Ele disse que era melhor eu não saber.
Os olhos de Niklas se abrandam com um sorriso tênue. Sem mover a cabeça, ele olha para o homem atrás de mim. De repente, a cadeira é puxada, meus pés saem do chão e sinto como se estivesse caindo para trás. Por instinto, lanço meu corpo para a frente quanto posso para evitar que minha cabeça bata no chão de concreto atrás de mim. Sou arrastada pela sala; para onde, acho que não quero saber.
Tudo para. Os pés dianteiros da cadeira voltam a atingir o chão, e então mais três homens, além daquele que me arrastou, seguram meus braços e pernas. Eles começam a me desamarrar, mas, assim que as amarras se soltam, eles me seguram com firmeza pelas mãos e pés. Por mais que lute para me desvencilhar, não consigo me mexer.
— ME SOLTEM! — Esperneio e contorço o corpo, tentando atingi-los com pontapés, arrancar meus braços de suas mãos. — NIKLAS! ME SOLTA!
Ele não responde. Fica ali, no azul-acinzentado do prédio empoeirado, ao lado de Stephens, enquanto meus braços são forçados acima da cabeça e amarrados de novo pelos pulsos com correias de couro penduradas do teto. O mesmo acontece com meus tornozelos. Ouço um rangido e o som da estrutura à qual estou amarrada se encaixando, antes que minhas mãos sejam esticadas bem acima de mim e meus pés descalços sejam erguidos do chão.
— PUTA QUE PARIU! EU VOU MATAR TODOS VOCÊS! ME SOLTEM! — Cerro os dentes com tanta força que sinto uma pontada de dor no maxilar inferior.
Niklas está de pé na minha frente de novo. Não o vi se mover, estava ocupada demais tentando atingir o homem mais próximo à minha esquerda.
— Por que você está trabalhando com eles? — grito na cara de Niklas. — Explica isso! Achei que você trabalhasse para Vonnegut!
Niklas junta as mãos atrás das costas.
— Se quer mesmo saber, tudo bem. Eu conto.
Ele anda de um lado para outro diante de mim e para no mesmo lugar. Mas não consigo deixar de notar Stephens no fundo, o brilho de uma lâmina prateada em sua mão. Ele continua pronto, segurando um punhal na altura do quadril com a expressão de quem está louco para me atacar.
— Quando eu descobri o que aconteceu em Los Angeles, sabia que, se você ainda estivesse viva, Hamburg ia querer garantir que isso não durasse muito tempo — começa Niklas. — Você escapou. Não havia sinal de você no restaurante, nem entre os corpos que foram encontrados no hotel. — Uma imagem do rosto de Eric e Dahlia atravessa minha mente como um soco no estômago. — Você escapou e eu sabia que devia ser porque Victor a ajudou. De repente, Hamburg, Stephens e eu tínhamos algo em comum. Eu queria encontrar o meu irmão. Eles queriam encontrar você. Eu sabia que vocês estariam juntos, então eis o denominador comum.
Meus pulsos erguidos pelas correias já estão doendo, o peso do meu corpo põe muita pressão sobre eles. Sinto meu rosto repuxando enquanto ele fala.
— Por que você não podia achar o Victor sozinho? — pergunto, tentando disfarçar meu desconforto. — Ou por que eles não podiam me achar sem a sua ajuda?
— Eles tinham informações sobre você que eu não tinha — explica Niklas. — Estavam vigiando você havia meses, desde a noite em que você e Victor saíram da mansão.
Rio alto, jogando a cabeça para trás.
— Isso é uma mentira de merda. Se for verdade, por que eles não me mataram antes?
Stephens se aproxima por trás de Niklas.
— Porque Victor Faust ameaçou Arthur Hamburg naquela noite — conta Stephens. — Ele não quis fazer nada que provocasse um novo ataque de Victor Faust. Eu vigiava você só por segurança. Sabia onde você morava, pois é fácil encontrar e seguir uma pessoa que sai de um hospital de Los Angeles depois de levar um tiro. E sabia onde você trabalhava. Com quem andava. Os lugares que frequentava. Pesquisei o passado de Dina Gregory e descobri tudo o que havia para saber sobre a família dela. Também não foi difícil localizá-la, mais tarde.
Meu nariz e minha boca se retorcem em um rosnado.
— Isso ainda não explica por que vocês se juntaram para nos encontrar — observo, com frieza, pensando mais no que ele estava dizendo sobre Dina. E a verdade é que não me importa muito por que eles estão trabalhando juntos. Só estou tentando enrolá-los, prolongando a conversa pelo maior tempo possível.
Stephens e Niklas trocam de lugar, e então Stephens se aproxima de mim. Ele segura a lâmina entre os dedos diante dos meus olhos, para que eu a veja e me sinta intimidada por ela.
Ele me encara de lado, estreitando os olhos.
— Você deve se lembrar do que Victor Faust fez com a mulher de Arthur Hamburg. Com certeza não acha que ele ia simplesmente esquecer isso. — Stephens se curva mais para perto do meu rosto, e seu hálito de vinho barato e charuto me deixa zonza de nojo. — Meu empregador quer ver Faust morto desde a noite em que ele matou a sra. Hamburg. Nós sabíamos onde você estava o tempo todo, mas não fazíamos ideia de onde Faust estava e não tínhamos motivos para crer que você soubesse. E com certeza não sabíamos que ele dava a mínima para você. Acho que ele não se importava, na verdade, caso contrário jamais teria deixado você sozinha daquele jeito. — Um sorriso provocador surge em seu rosto.
Quando ele se afasta, lanço a cabeça para a frente, esperando acertá-lo com os dentes, mas ele foge do meu alcance rápido demais. Fecho os dedos ao redor das correias acima de mim e ergo o corpo por um momento para aliviar a pressão nos meus pulsos. Caio de novo com violência, agitando a estrutura.
Niklas sorri.
Cuspo nele, mas não chego nem perto de atingi-lo.
— Eles não conseguem encontrar Victor sem mim — diz Niklas. — E eu não consigo encontrá-lo sem você. — Ele chega perto de mim de novo, e, embora saiba que conseguiria cuspir nele sem errar, não o faço. A expressão daqueles olhos azul-escuros me deixa submissa de medo. — Por isso entramos em um acordo. Eles me ajudam a encontrar você e eu mato meu irmão para eles.
— VAI SE FODER! — Jogo a cabeça para trás e lhe dou uma cabeçada na testa. A dor penetra minhas têmporas e meu maxilar, e minha visão fica embaçada por um momento.
Niklas se afasta de mim, claramente atordoado pelo golpe, mas não revida. Ele se vira para Stephens, e é este quem faz as honras. Começo a espernear quando ele se aproxima de mim com o punhal.
— Willem — chama Niklas, atrás dele, em um tom estranhamente despreocupado.
Stephens não se vira para olhá-lo, mas para.
— Eu preciso dela viva — afirma Niklas. — Lembre-se disso. Lembre-se do nosso acordo. Eu descubro o que preciso saber, e depois você pode fazer o que quiser com ela.
Balanço a cabeça e rio deles sem emitir som.
— Eu não vou contar nada para você — digo, com rispidez. — Você não vai conseguir me dobrar, seu merda. Você acha que consegue, mas está muito enganado. Você nem faz ideia. — Minha voz está calma, o que me surpreende.
— Bom, isso nós vamos ver — rebate Niklas.
Ele gira sobre os calcanhares e se afasta, o som de seus sapatos pisando no concreto ecoa pelo galpão e some quando ele desaparece do outro lado de uma porta de metal.
O sorriso de Stephens está maior, agora que Niklas foi embora.
E acabo de ficar com mais medo dele.
CAPÍTULO VINTE E SEIS
Victor
Dois dias depois...
Da tela do laptop, a imagem congelada do rosto suado e ensanguentado de Sarai me encara. Assisti milhões de vezes ao vídeo em que Stephens aparece batendo nela e meu irmão tenta em vão fazê-la falar. É uma agonia ver Sarai desse jeito, observar aquele homem, que logo estará morto, machucando-a. É uma agonia também não poder fazer nada a respeito.
Ainda não.
— Ela não vai falar — diz Fredrik, atrás de mim, com uma profunda preocupação com o bem-estar de Sarai em suas palavras.
Ele está à porta do escritório da minha casa em Albuquerque, agora livre dos cadáveres depois que demos um jeito neles. Eu me recuso a abandonar esta casa. Se Stephens me quiser, pode mandar seus homens para cá à vontade. Meu irmão, por outro lado, quer informações primeiro, e todos eles sabem que não conseguirão isso de mim.
— Victor — chama Fredrik de novo, com urgência e até certa súplica. — Você precisa fazer alguma coisa. A gente não pode ficar parado aqui. Eles vão matar Sarai.
— Não tem nada que a gente possa fazer — repito, pois já expliquei isso para ele. E, por mais que me machuque fazer isso, explico tudo de novo. — Não faço ideia de onde ela esteja, Fredrik. Niklas não vai revelar a localização deles enquanto não obtiver a informação que quer. Conheço o meu irmão. Ele é esperto. Não vai arriscar me enfrentar. Não desse jeito. Vonnegut quer mais do que a minha cabeça, ele quer informações. Niklas vai tirar o que precisa de Sarai, e depois me mandar outra mensagem me dizendo onde encontrá-la. Irei atrás dela, e ele sabe disso. E aí ele vai me pegar. Vai ter a mim e todas as informações sobre você, sobre a nossa operação e sobre os nossos contatos.
— E daí?!
Eu me levanto da cadeira da escrivaninha, fazendo-a deslizar pelo chão e bater na parede mais próxima.
— VOCÊ ACHA QUE EU ESTOU GOSTANDO DISSO? — Aponto para ele e depois para o chão.
Me acalmo, controlo a respiração e olho para meu reflexo impreciso nos meus sapatos pretos de verniz.
— Victor, eu não entendo. Por que você não dá a eles o que querem?
Não entendo por que Fredrik, o mestre dos interrogadores, queira tanto que Sarai fale, que sua preocupação com ela esteja me revelando outro lado dele.
Isso também me preocupa.
— Não é tão simples assim. — Levanto os olhos para ele. — Mesmo se eu contar a Niklas o que ele quer saber, Sarai vai morrer. Aliás, ela vai morrer muito antes se eu ceder, se eu entregar você e todos os envolvidos na nossa operação. Quanto mais ela resistir, e quanto mais eu resistir, mais ela vai viver. Até eu pensar no que fazer.
Fredrik se apoia no batente da porta, cruzando os braços. Ele suspira.
— Mas já faz dois dias. Ela não vai aguentar muito mais tempo.
— Ela vai aguentar — digo, confiante.
Eu me viro e olho para o vídeo pausado na tela, as pontas dos meus dedos apoiadas na borda da escrivaninha.
— Então como a gente vai encontrar Sarai?
Olho para o rosto dela por um momento longo e tenso, então fecho o laptop.
— Eu vou encontrá-la.
Sarai
O fedor da minha urina no chão, no canto desta sala escura onde estou trancada há dois dias, está se tornando insuportável. Eu me deito no concreto frio e sujo, com a bochecha apoiada no chão áspero e granulado. Minhas costas ardem, queimam como se as feridas infligidas pelo chicote que Stephens usou para me bater estivessem infeccionando. Aconteceu na noite passada, quando Niklas me deixou sozinha nesta sala. Quando ele voltou, Stephens já tinha me espancado tanto que desmaiei por um tempo com a dor e acordei deitada em uma poça de vômito. Ouvi Niklas e Stephens discutindo fora da sala, do outro lado da porta alta de metal. Niklas não aprovava o modo como Stephens estava me tratando e deixou isso claro.
— EU PRECISO DELA VIVA, PORRA! — gritou Niklas com Stephens. — VOCÊ VAI MATAR SARAI, BATENDO TANTO ASSIM!
Odeio Niklas pelo que ele fez. Comigo. Com Victor. Pelo que está fazendo agora, mantendo-me neste lugar. Mas uma pequena parte de mim está grata por ele não tolerar a brutalidade de Stephens. Não importa, para mim, que ele só esteja sendo intolerante porque me quer viva para revelar informações. Aceito qualquer ajuda que vier.
Ouço o trinco deslizar na porta de metal da minha cela. A porta se abre, raspando um pouco no chão.
Niklas entra. Está trazendo um prato de comida e uma garrafa de água. Outro homem fecha a porta e a tranca.
— Nem se incomode — digo do meu lugar no chão, quando ele se aproxima. — Já que você não me mata nem deixa Stephens me matar, talvez eu morra mais rápido de desidratação.
Niklas põe a comida no chão ao meu lado. Levanto o corpo do chão e a jogo longe com um tapa. Apoiando as mãos na parede, eu me sento, tentando não apoiar as costas por causa dos ferimentos. Minhas costelas também doem. E meu pulso esquerdo. Meu lábio inferior parece inchado. Sinto gosto de sangue na boca. Metálico. Nojento.
— Por que não fala de uma vez? — sugere Niklas, com ar de resignação. Ele está cansado de tudo isso, do tempo que está perdendo. — Você pode encerrar esta noite agora mesmo, é só me contar o que eu quero saber.
Não digo nada.
Niklas se senta no chão diante de mim. Ele sabe que estou fraca demais para resistir. Já tentei, e isso só tornou a dor nas costelas e nas costas mais insuportável.
— É melhor eu olhar as suas costas — sugere ele.
— Por que você se importa, caralho? Ah, esqueci, porque precisa descobrir o que eu sei. — Inclino a cabeça para perto dele, com os olhos cheios de um ódio inabalável. — A verdade é que eu sei tudo. Sei com quem Victor está envolvido, quem está ajudando, onde ficam seis abrigos dele. Sei tudo, Niklas, e não vou contar nada!
Faço uma careta e cubro as costelas com os braços quando uma pontada de dor atravessa meu corpo.
— Muito bem. — Ele fica de pé.
Ele vai até a comida, coloca tudo de volta no prato (um sanduíche destruído, alguns picles e um punhado de batatas fritas) e pega a garrafa d’água do chão. Ele volta e coloca tudo perto dos meus pés.
Então se agacha na minha frente.
— Ele não vem salvar você, Sarai — afirma Niklas, com tranquilidade.
Estendo o braço com o pouco de força que me resta para agarrá-lo, mas paro de repente, querendo ouvir o que ele tem a dizer. Não importa que eu não vá acreditar. Quero ouvir mesmo assim.
Seus olhos azuis parecem se suavizar.
— Mandei dois vídeos de você para o meu irmão. Dei a ele a localização de onde estamos, disse onde você estava. Era uma chance de se entregar. De revelar as informações. Mas ele não respondeu. — Então Niklas abre a mão, com a palma para cima, e mostra a sala com um gesto enquanto apoia os braços nas pernas. — E você pode ver que ele não está aqui. Dois dias e nada. — Ele baixa a mão. — Victor não vem salvar você. Quer saber por quê? Vou contar. Porque o trabalho sempre vai ser a prioridade na vida dele. Ele nunca vai cometer os mesmos erros que Fredrik Gustavsson cometeu por causa de uma mulher.
Levanto o queixo.
— Ah, mas isso não é verdade — digo, com desdém. — Ele traiu você por minha causa, lembra? Você mesmo disse isso. Saiu da Ordem por minha causa. Ele quase matou o próprio irmão por minha causa. Lembra, Niklas? — Cutuco a ferida, fitando seus olhos furiosos enquanto tento resistir à dor física.
Niklas abre um sorriso malicioso.
— Sim, ele fez tudo isso. Mas eu via no meu irmão o desejo de se libertar de Vonnegut bem antes de você entrar na vida dele. E ele não está mais na Ordem agora. Está livre de tudo, e, sim, você foi uma parte importante disso, do motivo para ele sair. Você deu o empurrão de que ele precisava, acho. — Ele volta a me olhar com uma expressão severa. — Mas você não vê o que não mudou? Pense, Sarai. Em vez de se libertar de uma vida de assassinatos, como qualquer um em seu juízo perfeito faria, como qualquer um que tivesse uma consciência faria, ele cria sua própria Ordem. Ainda pensa apenas no trabalho. Apenas em matar para ganhar a vida. Porque é só o que ele sabe fazer, e nunca vai aprender outra coisa. — Niklas balança a cabeça para mim, como se sentisse pena da minha ignorância por não ter visto as coisas que ele viu.
Desvio o olhar.
Uma parte de mim, uma parte envergonhada e culpada, não consegue deixar de acreditar nele, no fim das contas.
Niklas se levanta novamente.
— Acredite no que quiser, Sarai — continua ele, baixinho. — Mas você sabe tão bem quanto eu que, se ele viesse salvar você, já teria chegado.
Niklas vai até a porta de metal, bate duas vezes e o homem do outro lado abre. Ele sai e eu fico no escuro de novo, rodeada por paredes escuras, um teto escuro e pensamentos escuros, que estão partindo meu coração em mil pedaços minúsculos.
Não importa.
Se as coisas que Niklas me disse são verdade e Victor não vier me buscar, mesmo assim vou morrer sem contar nada.
Vou morrer aqui.
CAPÍTULO VINTE E SETE
Sarai
Terceiro dia
Estou recusando comida e água há quase 63 horas. Só sei disso porque Niklas fica me lembrando. Estou fraca, meu corpo e minha mente estão exaustos. Stephens não me bate desde que Niklas o impediu da outra vez. É só por causa de Niklas que ainda estou viva. Afinal, ainda não revelei nenhuma informação. Apenas que ele é um babaca traidor que não merece o ar que respira. Já disse a ele muitas e muitas vezes que vou morrer antes de entregar Victor. Acho que ele sabe que é verdade, que eu não posso ser dobrada.
A não ser... Talvez por meus pensamentos.
Meus pensamentos são tudo o que tenho nesta prisão escura e úmida cujas paredes bloqueiam toda luz, à noite ou de dia, sem nenhuma janela e só uma porta de metal que não deixa passar nem uma nesga de luz por baixo. Aquela voz em minha cabeça, aquela à qual nunca damos ouvidos até que não sobre mais nada para silenciá-la, tem sido muito cruel comigo. Niklas tem razão e você sabe, a voz me diz. Já se passaram três dias, e se o que Niklas falou sobre Victor saber onde você está for verdade, por que ele não apareceu? Por que, Sarai, Victor não se entregou por você e não contou a Niklas o que ele quer saber para salvar a sua vida?
Grito a plenos pulmões no espaço vazio e confinado, levando as mãos à cabeça. Lágrimas de raiva escorrem dos cantos dos olhos. Meu cabelo está encharcado de suor. Meu short e meu top preto parecem colados à pele. Meus joelhos nus estão arranhados, minhas pernas, cobertas de sujeira. Minhas costas ardem sempre que me posiciono do jeito errado e as crostas que estão se formando sobre os ferimentos racham e começam a sangrar de novo. Fico deitada no chão, de lado ou de barriga para baixo.
Ouço o eco da porta de metal raspando no chão ao se abrir atrás de mim, mas nem me dou ao trabalho de me virar para ver quem é.
— Se você não vai beber — ouço Niklas dizer, de pé ao meu lado —, então vou forçar a água na sua garganta.
Sou levantada do chão imundo de concreto para os braços dele e carregada para fora da sala. Não resisto. Não olho para ele enquanto sou carregada pelo corredor, mas a luz fluorescente do teto acima de mim é tão brilhante que faço uma careta e fecho os olhos. Em silêncio, aproveito o conforto do ar renovado que roça a minha pele. Sinto minhas pernas sobre os braços de Niklas, seu braço esquerdo segurando a minha nuca. Viramos à esquerda, depois à direita e descemos uma escada de metal.
Momentos depois, minha cabeça está sendo imersa em água e mantida ali.
Meu instinto me trai e abro a boca para gritar, tragando ainda mais água para meus pulmões. Meu corpo se retorce com violência, meus braços se agitam sem controle, tentando se segurar na borda grossa de plástico do recipiente onde estou sendo enfiada. Mas estou fraca demais para tirar a cabeça da água, e Niklas me segura ali com facilidade. A água queima na minha garganta e nos meus pulmões mesmo depois que consigo fechar a boca e prender a respiração. E no instante em que penso que vou me afogar, que enfim vou morrer e ficar em paz, Niklas ergue minha cabeça e a segura.
Meus instintos me traem mais uma vez e me fazem arfar em desespero por ar e tossir a água dos pulmões. Eu realmente preferiria morrer de uma vez e acabar logo com aquilo, mas meu corpo tem vontade própria, outra coisa que me vejo incapaz de controlar. Meu coração bate com tanta força que sinto meu peito roçando na borda de plástico do que reconheço ser um contêiner de 200 litros. Pingos caem do meu cabelo, da ponta do nariz, do queixo e dos cílios para a superfície da água, a poucos centímetros do meu rosto. Plop. Plop. Plop-plop. É surreal como isso é a única coisa que ouço.
— Quem está trabalhando com o meu irmão? — A voz de Niklas é controlada.
Não digo nada.
Ele segura um pouco mais forte o cabelo da minha nuca.
— Você foi vista com Fredrik Gustavsson em Santa Fé. Qual é o relacionamento dele com meu irmão? Eles estão conspirando contra a minha Ordem?
Nenhuma resposta.
Um fluxo de água atinge meu rosto quando ele empurra minha cabeça para dentro do contêiner. Minhas narinas e meu esôfago queimam como fogo quando a água é forçada para dentro de mim. Esperneio de novo, tentando agarrar qualquer coisa. Até que encontro a borda circular, mas ainda não tenho força suficiente para me empurrar contra as mãos de Niklas para fora da água.
Ele me puxa para fora de novo, eu engasgo, tentando respirar.
— Fale alguma coisa, Sarai. Qualquer coisa.
Estou fraca e exausta demais até para provocá-lo. Ainda assim, não digo nada, embora queira muito mandá-lo se foder.
Niklas só consegue uma coisa de mim antes de me carregar para fora da sala, vários minutos depois; engoli mesmo aquela água de que ele falou.
Quarto dia
Raios finos de sol, cheios de poeira, entram pelas janelas perto do teto do galpão, criando manchas de luz cor de marfim no chão à minha frente. Estou de volta à cadeira na sala maior, cercada por pilastras de concreto e aquele irritante ventilador industrial ininterrupto acima de mim. Meus pulsos e tornozelos não estão amarrados, mas seria desnecessário, pois mal consigo ficar de pé sozinha. Não estou completamente sem força física. Conseguiria andar se tentasse. Poderia jogar a cadeira para o outro lado da sala, embora só alguns metros, se quisesse. Mas não me importo mais.
Apenas não me importo mais.
Stephens está sentado diante de mim na mesma cadeira na qual esteve quatro dias atrás. Uma perna está cruzada sobre a outra e suas grandes mãos descansam sobre o joelho. Há uma expressão ameaçadora em seus olhos escuros e profundos; ela revela que ele está cansado de esperar. Que hoje é o dia. Que não importa o que eu diga ou deixe de dizer, não importa qual seja o acordo que ele tem com Niklas, hoje ele vai me matar.
Niklas entra no galpão por uma porta lateral, inundando-o por um instante com o sol forte da manhã. Ele havia saído com os outros quatro homens que pelo visto trabalham para Stephens. Eu os ouvi conversando algo sobre ficar de olho em qualquer sinal de “visitas indesejadas”. De coração, espero que isso tenha a ver com Niklas ter motivos para crer que Victor está vindo. Mas aquela voz cruel na minha cabeça faz meu coração afundar de novo.
Estamos sozinhos naquele galpão imenso. Só nós três. Eu, o Diabo e um dos lacaios do Diabo, embora na verdade eu não saiba qual é qual.
Levanto a cabeça.
Abro um sorriso fraco para eles, fixando minha atenção sobretudo em Niklas.
— Esta é a sua última oportunidade — anuncia ele, de pé ao lado de Stephens, com uma arma na mão direita, junto ao corpo. — Não vou nem me dar ao trabalho de mandar outro vídeo de você sendo interrogada para o meu irmão. É evidente que ver você sentindo tanta dor não basta para fazer o desgraçado sair da toca.
— Me mata — peço, ainda sorrindo. — É isso que você vai ter que fazer.
O peito de Niklas infla e desinfla, mas seus olhos não abandonam os meus. Olho para eles, buscando qualquer resquício de que ele ainda possa ser como o irmão, o homem... pelo qual acho que estou me apaixonando.
O homem que achei, por um breve momento, que poderia sentir a mesma coisa.
O tempo parece parar. Não há som, movimento ou ar ao redor, só um infinito silêncio suspenso no último momento da minha vida.
E, quando sinto meus olhos se fechando, no mesmo ínterim, Niklas levanta a arma de lado e puxa o gatilho. O tiro ecoa e o sangue esguicha do outro lado da cabeça de Stephens. A cadeira debaixo dele cai de lado quando o peso de seu corpo enorme desaba sobre ela.
Stephens cai no chão. Morto.
Sinto meus cílios enfim roçarem no rosto quando os olhos se fecham, e o meu corpo, inundado pelo alívio e exausto de tudo, começa a cair também.
Niklas encaixa os braços por baixo dos meus, me segurando antes que eu bata no chão.
— Peguei você. — Eu o ouço dizer. — Peguei você. — Sua voz parece mais distante agora, embora eu sinta que estou encostada no peito dele, e que o vento roça meu rosto quando ele me carrega pelo galpão.
— Passe ela para mim — escuto Victor dizer lá de fora, e é a última coisa que escuto.
Victor
A trama — Três semanas atrás...
Niklas está sentado diante de mim à longa mesa coberta por documentos espalhados, manchas de café e fotos de alvos futuros. Seu cabelo castanho está desgrenhado e as bordas dos seus olhos, vermelhas, pois ele bebeu demais na noite passada. Ele passa as mãos pela pilha de várias fotos de Edgar Velazco, um famigerado chefe de quadrilha venezuelano que fomos contratados para matar.
Niklas balança a cabeça, contrariado, e se reclina na cadeira, erguendo as mãos e passando-as pelo rosto.
— A gente não pode adiar isso — afirma ele, olhando para mim por cima da mesa. — Temos o paradeiro de André Costa. Precisamos resolver isso agora.
Não ergo o olhar do texto que está à minha frente.
— As coisas mudaram — digo, sem levantar a voz. Passo para a próxima folha. — Sarai é a minha prioridade. Foi inesperado, eu sei, mas não posso mudar o que ela fez. — Olho bem nos olhos dele, torcendo para que Niklas entenda e não discuta comigo. — Niklas, não vou abandonar nem prejudicar o que estamos fazendo aqui. O contrato de Edgar Velazco vai ser cumprido. Antes do prazo.
Ele suspira de novo e baixa os olhos por um momento. Depois tira um cigarro do maço na mesa diante dele. Pondo-o entre os lábios, ele o acende com um estalo do isqueiro.
Niklas sabe que não gosto quando ele fuma aqui dentro, mas acho que preciso dar uma folga ao meu irmão, considerando tudo o que ele fez por mim e por Sarai nos últimos meses.
— Sem querer desrespeitar você, irmão — começa Niklas, com a fumaça saindo de seus lábios —, mas o que vai fazer com ela? Você não pode levar uma vida dupla e sabe disso. E a gente não pode usar nossos recursos eternamente para fazer serviço de babá, não para alguém como ela, que não é fácil acompanhar. Ela é tão impulsiva quanto eu era com 23 anos.
Concordo com um aceno.
— Sim, nisso você tem razão. Ela é mais parecida com você do que eu gosto de admitir.
Niklas sorri e bate as cinzas do cigarro no cinzeirinho de plástico.
— Ah, vamos lá, irmão, eu não sou tão ruim assim, sou?
Não preciso responder a essa pergunta, e Niklas sabe.
Ele dá mais uma tragada rápida no cigarro e o deixa na borda do cinzeiro.
— Então o que você vai fazer?
Niklas relaxa as costas na cadeira novamente e entrelaça os dedos atrás da cabeça.
— Tem certeza de que quer saber a resposta?
Isso parece atiçar sua curiosidade.
— Porra, claro que quero. — Ele tira as mãos da nuca e se inclina para a frente, apoiando os braços no tampo da mesa, com ar preocupado. — O que você fez?
Espero um minuto e respondo:
— Enquanto estávamos na casa de Fredrik, depois de muitas súplicas, e das ameaças de Sarai sobre sua segurança, concordei em ajudar a treiná-la.
— O quê?
— Sim — confirmo, pois ele parece precisar disso. — Ela está determinada a matar Hamburg e Stephens com as próprias mãos. Eu poderia fazer isso, mas...
— Você deveria fazer isso, Victor.
— Não — retruco, balançando a cabeça. — Dei a ela minha palavra...
— E daí, caralho? — rebate Niklas. — Victor, isso é suicídio. Onde é que você estava com a cabeça?
Ele pega o cigarro de novo e dá um trago mais longo, como se estivesse precisando da nicotina para acalmar os nervos. Esticando o pescoço, ele solta uma fumaça espessa dos lábios.
— Já pensei nisso antes, bem antes que ela inventasse essa confusão com Hamburg, bem antes que ela me desse o ultimato. Eu a quero comigo, Niklas. Quero treiná-la. Acho que ela é capaz de conseguir. E ela se recusa a ser tratada como uma criança. Por qualquer um. Especialmente por mim.
— E se ela não conseguir? — Niklas olha para mim, com uma expressão sincera e preocupada. Preocupação comigo, não necessariamente com Sarai. — Victor, você está se metendo em uma vida de sofrimento. Apaixonar-se por alguém. — Ele ri com desprezo, embora mais de si mesmo, eu sei. — Eu já me apaixonei uma vez, você lembra, e veja como acabei. Como ela acabou. Ela acabou morta e eu, destruído por causa disso. — Ele balança a cabeça. — E preciso lembrar o que aconteceu quando Fredrik se apaixonou? Não, achei que não precisava mesmo.
Ele fica de pé e apaga o cigarro no cinzeiro.
— Sinto muito, Victor, mas acho que essa ideia é ruim pra caralho.
— Mas é a única ideia — digo, sem perder a calma. — E espero que você a respeite o suficiente para não termos uma repetição do incidente de Los Angeles.
Eu sabia que minhas palavras iriam incomodá-lo. Usar o incidente no qual ele atirou nela em um hotel, um incidente que ele considerava já superado. Niklas me encara com ressentimento e dor no olhar.
— Sério, irmão? — pergunta ele, descrente, apoiando as mãos na borda da mesa e se curvando para a frente. — Depois de tudo o que fiz nestes meses para ajudar a proteger essa garota? Depois que dei minha palavra de irmão, de sangue do seu sangue, de que nunca mais iria fazer nada para machucá-la? Se eu quisesse, já poderia ter matado Sarai mil vezes. Você sabe, Victor. Achei que a gente já tivesse superado isso.
Abaixo o olhar, deixando a culpa que sinto fazer o que quiser comigo. Niklas é leal a mim. Sempre foi. Quando atirou em Sarai em Los Angeles e tentou matá-la, foi só por causa de seu amor e lealdade a mim. Porque ele sabia que a forma como ela me afetou seria minha perdição, que eu acabaria morrendo por esse motivo. E, embora eu não justifique o que ele fez e jamais vá perdoá-lo por isso — e ele sabe —, entendo os motivos, de qualquer forma.
Em uma vida como a nossa, às vezes precisamos fazer coisas terríveis com quem amamos a fim de abrir um caminho para novos começos. Meu irmão, por mais insuportável que seja, não é exceção. Aliás, ele é um exemplo claro dessa regra.
E hoje as coisas estão diferentes. Ele não vai matar Sarai, mas não vai hesitar em matar por Sarai.
— Eu confio em você, Niklas. Espero que acredite nisso.
Ele assente devagar, aceitando minhas desculpas e parecendo absorto em pensamentos.
— Não estou pedindo que você prove isso, Victor. Mas tem uma coisa que precisa ser feita. Pelo bem do nosso negócio. Pelo bem da nossa vida. — Ele começa a andar de um lado para outro na frente da mesa.
— O que é? — pergunto, olhando-o da minha cadeira.
Ele para ao lado da mesa, cruza os braços e me encara com desconforto no rosto.
— Se Sarai vai se envolver nas nossas operações de qualquer maneira — começa ele, com cuidado —, você sabe que ela precisa passar pelo mesmo nível de testes que qualquer outra pessoa que trabalha para nós enfrentaria. Só porque você sente algo por ela não significa que essa regra deva mudar.
— O que você está sugerindo?
Sei exatamente do que ele está falando, mas o que quero saber, na verdade, é até onde ele quer ir com isso. Niklas não costuma fazer nada pela metade. Ele continua:
— Eu estou dizendo que sei que você não quer passar pelo que Fredrik passou com Seraphina. E sei que você não quer lidar com outra Samantha. A lealdade de Sarai a você precisa ser testada. Não digo isso como forma de me vingar dela nem porque quero que ela traia você para provar alguma coisa. — Ele ergue as mãos. — Só quero ter certeza de que a gente pode confiar nela, de que, se um dia ela for capturada, não vai ceder e entregar a gente.
— Eu confio nela. Sei que ela não me trairia. Confio nela.
Não importa quantas vezes eu diga essas palavras em voz alta ou na minha cabeça. Confio nela. Confio em Sarai. Confio nela. Sei que Niklas tem razão. Há muita coisa em jogo. Nossos negócios no mercado negro, nossa vida e a vida de muitas pessoas que trabalham para nós. E com Vonnegut e a Ordem atrás de mim, não posso me arriscar.
— O que você propõe? — pergunto, aceitando a verdade.
Niklas balança a cabeça, aliviado com a minha cooperação e compreensão.
Ele respira fundo e se prepara para explicar.
— Vou abordar Hamburg. Ganhar a confiança dele fingindo que estou vendendo você para ele. Ele vai acreditar que sou só um irmão que não perdoa e que foi incumbido pela minha própria Ordem de matar você, já que saiu da organização e traiu a nós todos. Tudo pelo amor de uma garota. Uma garota que, não é segredo, Hamburg agora quer ver morta mais do que nunca.
Concordo antes que ele termine de explicar, com uma imagem nítida da situação na minha mente. Niklas continua o raciocínio:
— Na hora certa, vou levar os homens de Hamburg até Sarai...
Niklas continua a explicar a trama para iniciar Sarai e ao mesmo tempo ter Hamburg e Stephens onde queremos que eles estejam.
— Mas não quero que ela se machuque. Se fizermos isso, você precisa me dar a sua palavra de que não vai deixar ninguém ir longe demais. Que você não vai longe demais. — Estreito o olhar para ele.
— Quanto ela aguenta? — pergunta Niklas.
— Ela aguenta muito. É forte. Mas, antes que isso aconteça, quero que ela treine o máximo que puder. Posso levá-la para Spencer e Jacquelyn, em Santa Fé. A experiência vai fortalecê-la um pouco mais. Deixe-me prepará-la o máximo possível no curto tempo que temos antes de começar essa história.
— Certo — concorda Niklas.
— Sabe que ela vai odiar você ainda mais quando tudo isso acabar.
Niklas assente.
— É, imagino que sim. Mas não me importa quanto ela me odeie. Não sou eu quem tem que dormir com ela. — Ele ri, baixinho. — É um risco que estou disposto a correr em nome de tudo. A verdadeira preocupação é: quanto ela vai odiar você, depois que tudo isso acabar.
Desvio o olhar e fito a parede.
— É um risco que eu também estou disposto a correr — digo, distraído.
— Talvez ela entenda — comenta Niklas, tentando acalmar os pensamentos preocupados que estampam meu rosto. — Se ela se juntar a nós, se vai se juntar a você, vai precisar saber como e quando separar a relação entre o trabalho de vocês e o relacionamento afetivo.
— Sim. Ela vai precisar aprender isso.
Ele bate de leve na mesa.
— E, se ela é tão forte quanto você diz, vai entender e superar.
Fico em silêncio.
— Então está combinado. Vou para Los Angeles à noite. Tenho mesmo uma reunião com Fredrik.
— Presumo que ele ainda não tenha falado nada a meu respeito para você.
— Não — confirma Niklas. — O cara é tão firme quanto um católico em um confessionário. Ele não vai trair você, Victor. Por que ainda tem medo de que ele faça isso? — Niklas pega o maço de cigarro e a chave do carro de cima da mesa. — Ele passou no seu teste há meses. Quanto tempo o prenderam naquela sala? Seis dias? Fredrik é leal. Ninguém dobra esse cara.
— Não tenho tanta certeza — digo, olhando para os veios da madeira da mesa. — Você parece esquecer qual é a especialidade de Fredrik. Ele tortura as pessoas com brutalidade e sente prazer nisso. Acho que se alguém pode passar por um interrogatório sem ceder, esse alguém é Fredrik Gustavsson.
Niklas me olha de lado.
— O que você está pensando? — pergunta ele, intrigado com meu raciocínio.
Olho para ele.
— Tenho mais um teste que preciso fazer com Fredrik. Se eu o deixar a sós com Sarai, ele vai acreditar que confio nele cem por cento. Vai parecer que eu abaixei a guarda. — Eu me levanto e vou até a estante, refletindo sobre o novo plano que acabo de elaborar. — Se ele entrar em contato com você e contar que está com Sarai, então saberemos que sua lealdade na verdade está com a Ordem. Sarai é a isca perfeita. Qual é a melhor maneira de permitir que Vonnegut me atraia do que usar a garota pela qual eu...
Ficamos em silêncio. Sinto o olhar inquisidor de Niklas nas minhas costas.
— A garota pela qual você está se apaixonando?
Faço uma pausa.
— Sim...
CAPÍTULO VINTE E OITO
Sarai
Não falo com Victor há horas. Três, pelo menos. Deixei que ele me despisse, me desse banho e cuidasse dos meus ferimentos. Eu o ouvi “se explicar”, mas de uma maneira que só alguém tão travado para relacionamentos quanto Victor Faust poderia fazer. Não implorou para que eu falasse com ele, para que acabasse com o gelo. Ele só falou. Tão calmo quanto em qualquer outra conversa que já teve comigo, embora dessa vez o papo tenha sido bem unilateral. Mas detectei a preocupação em sua voz, ainda que ele a tenha disfarçado bem. Senti, quando me tocou enquanto escovava meu cabelo e limpava a sujeira das feridas nas minhas costas, que ele queria me tocar com mais carinho. Queria me puxar para perto e me abraçar. Mas eu sabia que ele não queria passar dos limites.
E foi esperto em não passar, porque levaria um soco na cara.
Ao anoitecer, embora exausta e ainda dolorida da cabeça aos pés, estou bem o suficiente para andar pela casa sozinha, mas com cuidado, porque minhas costas estão bem detonadas. Victor me deixou sozinha no quarto da casa em Albuquerque. Eu precisava de um tempo para pensar em tudo o que aconteceu, pelo que ele e Niklas me fizeram passar. Precisava de tempo para refletir sobre os motivos de Victor. Eu estava cagando e andando para os motivos de Niklas ou para o papel que ele teve naquilo. Niklas não merece meu tempo, muito menos meus pensamentos. Victor, por outro lado... Parte de mim quer se sentir traída, como se essa fosse a reação normal. Sinto que deveria me encolher no chão e chorar, esmurrar as paredes, chafurdar na autopiedade, também apenas porque essa tende a ser a reação esperada. Mas não sou assim. E não sou normal. E nada na minha vida ou na vida de Victor chega perto de ser normal.
Sei que Victor está se perguntando o que estou pensando. Ele se preocupa com o tamanho da raiva que sinto dele, se ela é tão profunda que eu nunca mais vou conseguir perdoá-lo. Sei que ele deve estar convencido de que meu silêncio é a única resposta que vou lhe dar.
Mas ele está enganado.
Ele entra no quarto para pegar algo em sua maleta, e eu o intercepto.
— Foi ideia de Niklas? — pergunto, da cama.
Torço muito para que tenha sido.
Victor para diante da porta, de costas para mim. Em vez de abrir por completo, ele a fecha. Deixando a pasta preta que tirou da maleta na cômoda alta perto da porta, ele se aproxima de mim. Sua camisa preta está para fora da calça. As mangas compridas estão arregaçadas até os cotovelos, expondo a virilidade de seus antebraços e a força de suas mãos.
Desencosto os ombros da cabeceira e me sento na beirada da cama, pondo os pés no chão. Estou usando uma blusinha vermelha folgada e fina que não adere muito às minhas costas e um short de ginástica.
— Sim, tecnicamente, foi.
— Tecnicamente? — pergunto, franzindo o cenho.
Ele se senta ao meu lado, com os braços sobre as pernas e as mãos nos joelhos.
— Ninguém está isento dos testes. Niklas apenas teve que me lembrar disso, no seu caso. É uma questão de confiança...
— Você já não confiava em mim?
— Sim, confiava — assume ele, olhando para a frente. — Mas o que fizemos você passar era necessário, Sarai. Você queria fazer parte. Eu queria que você fizesse parte. Para isso acontecer, teria que ser feito de acordo com as regras, ou sempre haveria um conflito com os outros membros. Meu juízo seria sempre questionado. Você estaria sempre sob suspeita. Ninguém está isento. Fredrik não estava. Aquele homem nos fundos do restaurante de Hamburg, que ajudou você a fugir. O homem que leva a sra. Gregory para os nossos abrigos.
— E Amelia? Ela não sabia nada sobre o que você e Fredrik fazem, pelo que você me contou. Ou isso também era mentira? Ela foi espancada como eu fui?
— Não — responde ele, olhando para mim. — Não era mentira. E, não, ela não passou por nada do que você passou. Testamos de outras maneiras a confiabilidade de Amelia e de outros como ela, aqueles que não sabem nada sobre o que fazemos. Mas, para aqueles que estão por dentro, que sabem tanto quanto você sabe sobre nós, os testes são mais... extensivos.
Desvio o olhar.
— Você mandou Stephens para a casa de Amelia? — pergunto, baixinho.
— Não — responde Victor, e me viro para encará-lo à minha esquerda, desconfiada.
— Então como eles sabiam sobre ela? Como sabiam que Dina esteve lá? — A raiva aumenta na minha voz. — Você pôs Dina em risco? Por favor, diga a verdade!
Victor balança a cabeça antes mesmo que eu termine de perguntar.
— É verdade. Talvez a gente nunca saiba ao certo como Stephens descobriu sobre Amelia, ou que a sra. Gregory estava escondida lá. Quem poderia responder a essa pergunta agora está morto. Mas posso garantir que nem eu nem Niklas nem mesmo Fredrik tivemos qualquer coisa a ver com isso. Podem ter acontecido várias coisas, Sarai. A sra. Gregory pode ter entrado em contato com algum parente em algum momento. — Ele gesticula ao falar. — Pode ter acessado sua conta bancária, revelando sua localização.
— Stephens poderia ter me matado — digo, com amargura, pulando de um assunto para outro. — Ele queria tanto me matar que teria atirado em mim, se Niklas não tivesse atirado nele primeiro. E se ele tivesse me matado dias antes? E se Stephens tivesse me espancado até a morte? — Meu peito sobe e desce enquanto tento conter minha raiva.
Victor suspira e olha para as mãos, passando os dedos da direita nas costas da esquerda, constrangido.
— Sinto muito por isso — diz ele, arrependido, e então ergue os olhos devagar. — Sim, era possível que Stephens matasse você, não nego, mas eu sabia que Niklas faria de tudo para que isso não acontecesse.
Rio com descrença e desdém.
— Niklas? — pergunto, incrédula. — O mesmo que atirou em mim? Você está me dizendo que botou fé em alguém que me quer morta desde a primeira vez que me viu? — Começo a levantar a voz, e Victor passa a demonstrar sinais de constrangimento.
— Talvez eu nunca consiga fazer você entender — reflete ele, ainda controlado. — Mas sei que Niklas nunca vai machucá-la. Nós dois passamos por muita coisa desde que saí da Ordem. Chegamos a um entendimento. Ele aceita você...
— Eu não preciso que ele me aceite! — Fico de pé em um salto e o encaro de cima, com os punhos cerrados. — Niklas é a última pessoa da Terra de quem necessito qualquer tipo de aprovação! Ele tentou me matar!
Ergo os punhos cerrados diante de mim e prendo a respiração, rangendo os dentes. Meu corpo enrijece, crispado de ressentimento.
Victor fica de pé e segura meus ombros. Hesitante, expiro e me acalmo, mas não consigo olhá-lo nos olhos. A sensação é a mesma de antes, quando queria me sentir traída porque seria a reação normal. Agora, quero odiá-lo pelo mesmo motivo. Mas não odeio. Posso não entender por que ele foi confiar minha vida logo a Niklas, mas acho que o único motivo de não entender é porque não quero. Quero sentir raiva. Quero ser inflexível. Porque é mais fácil do que aceitar a verdade impensável: a de que Niklas merece uma chance. Porque, se eu fosse ele e estivesse tentando proteger meu irmão da Ordem, provavelmente teria atirado em mim também.
Victor afasta o cabelo do meu rosto, prendendo-o atrás das orelhas. Ele me olha por um momento como se estivesse evocando uma lembrança que tenho certeza de que me envolve de alguma forma. Como poderia não envolver? Essa expressão pensativa e encantada de seus olhos verde-azulados, o modo como ele fez questão de tocar meu rosto ao afastar meu cabelo. Quero gritar a plenos pulmões com ele, mas só consigo ficar ali e observar aqueles lindos olhos sombrios me examinando.
Ele olha para o quarto ao redor.
— Na noite em que encontrei você no meu carro — diz ele, sem olhar para mim —, na mesma hora a vi como uma ameaça. Eu queria me livrar de você. Rápido. Levar você de volta para a fortaleza, abandoná-la na estrada. Eu queria muito matar você.
Como já sabia de tudo isso, não fico surpresa, mas continuo curiosa para saber por que ele está tocando nesse assunto agora. Fico em silêncio, cruzo os braços e faço uma cara de dor quando o movimento repuxa a pele das costas.
— Eu poderia, e muitas vezes pensei que deveria ter matado você — continua Victor. — Tive todas as oportunidades. Mas não consegui.
— Você precisava de mim. Como moeda de troca. Talvez, se eu não tivesse dado essa ideia, avisado sobre o modo como Javier negociava, você tivesse me matado.
— Não — responde ele, em voz baixa, balançando a cabeça de leve. Então sinto seu olhar em mim e me viro. — Eu não precisava usar você como moeda de troca, Sarai. Sabia, quando saí daquele encontro com Javier Ruiz, que, quando eu contasse da recompensa que Ruiz me oferecera para matar Guzmán, no fim só seria contratado para matar Ruiz. Porque a oferta de Guzmán era mais alta do que a dele. Receber ou não a outra metade do dinheiro de Ruiz era irrelevante. Eu não precisava usar você como moeda de troca, afinal.
— Não entendo aonde você está querendo chegar — digo, e é verdade.
Victor inspira e desvia os olhos novamente.
— Naquela manhã, quando Izel estava vindo buscar você naquele hotel, antes de você acordar, minha intenção era lhe entregar para ela. Cheguei até a contar a eles onde a gente estava. Mas quando você acordou... — Ele para no meio da frase e ergue os olhos para o teto, soltando o ar dos pulmões mais uma vez, concentrado. Então Victor baixa o queixo e me olha nos olhos. — Se você não tivesse acordado, ainda estaria com Javier Ruiz, neste momento.
Com os braços cruzados, dou alguns passos na direção dele e inclino a cabeça para o lado, pensativa.
— O que você está dizendo? Eu estou aqui com você agora porque acordei antes de Izel chegar? Não entendi.
— Eu não consegui. Foi como atirar em um inocente, qualquer um que tem consciência não consegue fazer isso olhando nos olhos da pessoa. Quando você acordou, eu não consegui entregá-la.
Ainda não tenho certeza do que Victor está tentando dizer, mas sei que não foi por causa de algo ridículo como amor à primeira vista. Contudo, ao estudar seu olhar perturbado, entendo aos poucos que ele está aprendendo algo extraordinário a respeito de si próprio. Deixo que ele fale, pois parece que Victor precisa pôr aquilo para fora, exteriorizar para talvez se entender por completo.
— Batalhei a cada passo do caminho enquanto você estava comigo, dizendo a mim mesmo que precisava me livrar de você. Você era uma ameaça para mim, para o meu emprego, para a minha vida, e mais tarde ameaçou minha relação com meu irmão. Eu soube disso assim que a vi pelo retrovisor, quando você estava apontando a arma para a minha nuca, com aquela cara desesperada e assustada. Você ameaçava tudo. Mas, pela primeira vez na vida, fui contra tudo o que eu era: um assassino treinado com uma consciência reprimida... — Seu rosto endurece e ele se aproxima de mim. — Eu poderia ter abandonado você há muito tempo, mas não abandonei. Não queria abandonar então, e não quero abandonar agora.
Um calafrio percorre meus braços quando Victor esfrega as mãos neles, para baixo e para cima.
— Sinto muito por tudo o que você passou — diz ele, baixinho. — Quero que você fique, mais do que tudo, mas, se não quiser ter mais nada a ver comigo, eu vou entender. — Ele pressiona os lábios no alto da minha cabeça e vai até a porta, pegando a pasta preta do gaveteiro.
— Victor? — chamo, baixinho, antes que ele toque a maçaneta.
Ele olha para trás.
Começo a dizer “Fico feliz que você não tenha me abandonado”, mas paro e engulo as palavras. Por mais que eu queira revelar que aquela história me tocou, que não consigo imaginar a vida sem ele, ainda estou furiosa pelo que ele fez comigo, e não posso desculpá-lo. Ainda não. Não com tanta facilidade assim.
— Era só isso? — pergunto, no lugar do que ia dizer. — O teste que eu fiz? Foi o último? Foi a única vez que vou ter que passar por algo assim? Preciso ser sincera, não quero acordar todo dia achando que vou ser sequestrada, espancada ou afogada. Não quero não confiar em você...
Ele põe a mão na maçaneta e a vira. A porta se abre.
Olhando para trás, ele diz:
— Não, tem só mais uma coisa.
Meu coração endurece como uma pedra quente. Por essa eu não esperava.
— O maior teste é saber se você consegue ou não trabalhar com meu irmão — diz Victor. — Mas pode confiar em mim. E pode confiar em Niklas. Você nunca mais vai passar por nada assim.
Ele faz uma pausa e completa:
— Espero que você fique.
Então sai do quarto, fechando a porta.
Algum tempo passa, e fico sozinha para pensar em tudo. Sei que neste momento, não ontem nem no dia em que fugi da fortaleza no carro de Victor, mas neste momento é que o resto da minha vida está começando.
E sei que só há uma escolha certa.
Saio do quarto e vou encontrar Victor, Fredrik e Niklas na sala. Eles estão falando que Fredrik não sabia de nada e que passou em todos os testes de Victor e Niklas. Fico escutando sobretudo os comentários de Fredrik e Niklas, pois Victor parece mais calado do que de costume.
Os três me olham quando entro na sala, interrompendo a conversa no meio de uma frase.
— Ah, aí está ela — comenta Fredrik, com um sorriso largo e lindo. Ele me chama com um gesto. — Vem sentar com a gente. Estávamos discutindo qual o próximo passo para nós quatro. — Percebo que Fredrik não tem tanta certeza da minha decisão quanto finge que tem.
Niklas apenas acena com a cabeça para mim.
Victor fica de pé e estende a mão, oferecendo o lugar ao lado dele para eu me sentar.
— Antes, preciso dizer uma coisa.
Ele põe as mãos atrás das costas e dá um passo para o lado, esperando pacientemente.
Olho para os três, um por um, e paro em Victor.
— Se eu vou ficar aqui, há algumas coisas que preciso deixar bem claras.
Um lampejo de esperança passa pelos olhos verde-azulados de Victor.
Olho para Fredrik e Niklas de novo e continuo, falando com todos:
— Eu faço o que eu bem entender. Vou seguir as ordens de Victor como vocês dois seguem, vou treinar até sangrar e não conseguir andar direito. Conheço o meu lugar. Mas não porque sou mulher ou mais jovem do que vocês. Nem porque vocês acham que vou me “machucar” — continuo, fazendo aspas com os dedos. — É claro que vou me machucar, mas não preciso de nenhum de vocês... — meus olhos pousam em Victor de novo — correndo para pegar uma porra de um curativo cada vez que eu cair.
Fredrik ri baixinho.
— Ei, nada contra isso — afirma ele, erguendo as mãos e deixando-as cair nos joelhos.
Olho para Niklas. No entanto, não demonstro nenhuma emoção enquanto o encaro. Acho que ainda não tenho certeza de quais deveriam ser essas emoções.
Ele abre um sorrisinho, embora eu saiba que é completamente inocente.
— Acho que você sabe que eu não vou correr para ajudar cada vez que você cair.
Só reviro os olhos e encaro Victor.
— Sarai... — começa Victor, mas levanto o dedo indicador para ele.
— Isso é outra coisa. Sarai Cohen morreu há muito tempo. Ela morreu quando eu tinha 14 anos e passei a primeira noite naquela fortaleza no México. — Baixo a mão e olho para cada um deles. — Quero ser chamada de agora em diante de Izabel Seyfried.
Todos se entreolham e depois balançam a cabeça, me observando.
— Izabel? — pergunta Victor, continuando de onde o interrompi.
Eu o olho nos olhos.
— Vou entender se você jamais me perdoar, mas...
— Você me perdoaria se fosse o contrário? — pergunto, tentando usar um argumento que ele entende na hora. — Victor, você fez o que precisava fazer, como na noite em que manipulei você para... — Paro de falar antes de revelar demais sobre nossa relação para Niklas e Fredrik. Mas percebo, pela expressão de compreensão nos olhos de Victor, que ele sabe a que me refiro.
— Mas isso está longe de ser a mesma coisa.
— Não importa. Quero dizer, só para constar, bem na frente do Bonitão e do Advogado do Diabo, que o inferno que eu enfrentei não só é perdoável, mas também foi totalmente necessário. Eu sei no que estou envolvida. Nós matamos gente, alguns de nós para ganhar a vida, outros por vingança. Não estou trabalhando em um banco. Muito mais do que uma pesquisa de antecedentes e uma análise de crédito precisa ser levado em conta, se vou fazer parte desse esquema. E, para ser sincera, eu me sinto muito mais segura perto de todos vocês, sabendo que são capazes de chegar a extremos assim para ter certeza de que todo mundo nesta sala é confiável. Que qualquer um que se juntar a nós mais tarde vai passar pelo mesmo inferno.
Meus olhos pousam em Victor mais uma vez.
— Não tem nada para perdoar — repito, e a expressão dele se abranda.
Niklas se levanta da poltrona de couro.
— Sar... Izabel — corrige-se ele, aproximando-se de mim. — Olha, preciso dizer uma coisa. Sinto muito por atirar em você em Los Angeles. De verdade. Nunca mais vou tentar machucar você.
— Acredito em você — digo, e, pelas expressões no rosto de cada um, ninguém esperava isso. — Acho que posso afirmar com segurança que vai ser difícil para mim até ficar na mesma sala que você, Niklas. Neste momento, por exemplo, não estou gostando. Sinceramente, eu preferia nem ter que ver muito a sua cara. Acho você um babaca, um doido psicopata que deveria estar em um manicômio judiciário. Nunca vou gostar de você e duvido que um dia eu tenha algum respeito pela sua pessoa. Mas você é irmão do Victor, e quando implorei para ele não matar você foi por um motivo, e não me arrependo. Mas nunca vou gostar de você e estou avisando para não cruzar a porra do meu caminho.
Ele levanta as mãos em um gesto de rendição e dá um passo para trás.
— Ok, ok, entendi. Não cruzar o seu caminho. — Ele ri baixo.
É mais teatro do que qualquer outra coisa. Sei que ele ainda tem problemas comigo (é tão teimoso quanto eu), mas por amor a Victor vai me tolerar tanto quanto eu a ele. Desprezo aquela expressão sempre pretensiosa no rosto dele. Desprezo a sua autoconfiança e arrogância e prevejo que Niklas e eu vamos bater de frente muitas vezes. Mas, por Victor, vou aguentar.
Niklas vira de costas para mim e se dirige à poltrona.
— Niklas — chamo.
Ele para e me olha. Eu me aproximo.
— Só tem mais uma coisa que quero dizer.
— Pois não?
Ele se vira e me olha com curiosidade, esperando. Quando ele está ao alcance do meu braço, levanto o punho e o golpeio na lateral do rosto, bem na altura do maxilar. A força do soco causa um tremor doloroso na minha mão. Tento aliviar a dor abrindo e fechando os dedos, mas ela só piora.
— Aaaaiii, caralho! Qual é o seu problema, porra? — Niklas põe a mão no canto da boca. — Tudo bem. Entendi. Eu atirei em você e agora estamos quites. Eu mereci. — Com a mão ainda sobre a boca, como se estivesse tentando colocar o queixo no lugar, ele termina o caminho até a poltrona e se joga sobre ela.
— Isso não foi porque você atirou em mim — retruco, ríspida. — Foi por matar Stephens. Ele era meu. — Aponto para ele. — E o único jeito de estarmos quites por você ter atirado em mim é se eu atirar em você. Por isso, como já falei, não cruze o meu caminho.
Niklas olha para Victor, de pé atrás de mim, como quem diz: Essa garota existe? Victor não diz nada, mas quando olho para ele por um instante noto que está sorrindo.
Fredrik está jogado no sofá, com os braços no encosto e um enorme sorriso.
No fim, seguro a mão de Victor e aceito me sentar. Estou dolorida demais para ficar de pé sozinha por muito tempo. Ele me leva até o sofá e me ajuda a sentar nas almofadas macias, segurando minha mão até eu me ajeitar. E então se senta ao meu lado.
Fredrik se curva e olha para mim do outro lado de Victor, com seu sorriso sombrio e encantador intacto.
— Fico feliz que tenha se juntado a nós. Claro que ainda vai ter que treinar muito, de acordo com Faust. — Ele aponta para Victor. — Mas algo me diz que você tem um talento natural. — Ele dá uma piscadinha. — Teimosa. Imprudente. Desbocada. Nada delicada. Mas acho que eu não ia gostar muito de você se não fosse todas essas coisas.
— Obrigada, Fredrik — digo com sinceridade e um sorrisinho irônico.
Niklas relaxa na poltrona, apoiando seu coturno preto no joelho. Não sei por quê, mas reparo nesse detalhe. Coturnos? Eu o olho de alto a baixo. Jeans escuro. Camiseta cinza que contorna seus bíceps. Cabelo desgrenhado.
Meus olhos vão e vêm entre ele e Victor, sempre sofisticado, e não consigo deixar de me perguntar se não estou deixando passar algo importante. Olho para Fredrik do lado direito de Victor, e, como Victor, Fredrik está usando as roupas de sempre, sapatos e um terno refinado.
— Por que ele está vestido assim? — pergunto para Victor, indicando Niklas com um aceno da cabeça.
Victor olha por um instante, mas é Niklas quem responde.
— Porque prefiro isto a usar esses ternos ridículos. E, como não estou mais na Ordem, acho que posso me vestir do jeito que eu quiser.
Surpresa, volto a olhar para Victor sem mexer a cabeça.
Victor assente algumas vezes, confirmando o que Niklas disse.
— Ele saiu há alguns dias. Fredrik é o único que continua lá dentro.
— Mas... por quê? Isto é, não seria melhor que Niklas continuasse de olho em Vonnegut, sobretudo no que se refere a você?
— Saí porque precisei — conta Niklas. — Eu estava demorando demais para matar Victor.
— E, como era de esperar — acrescenta Victor —, Vonnegut estava começando a questionar a lealdade de Niklas. Vonnegut pode não saber que Niklas e eu somos irmãos, mas nós tivemos uma relação muito próxima de trabalho por muitos anos. Estava demorando muito e ficando arriscado demais.
Solto um suspiro preocupado e tento me reclinar no sofá, até me lembrar das minhas costas.
Olho para Fredrik.
— E você? A Ordem sabe da sua relação com Victor? Ou com Niklas, aliás?
Fredrik sorri para Victor.
— Viu? Ela já entrou de cabeça no trabalho — observa ele, com uma risadinha, e então volta a olhar para mim. — A Ordem sabe que trabalhei com Victor algumas vezes no passado, mas não mais do que qualquer outra pessoa com quem ele já trabalhou. Quanto ao irmão dele, quando Victor saiu da organização, eu fui abordado por Niklas para ajudar a encontrá-lo, agora todos sabemos disso. Eu achava que Niklas seria meu superior depois desse episódio.
— Mas Vonnegut nunca soube do meu envolvimento com Fredrik — intervém Niklas.
— Então, por enquanto — acrescenta Victor —, Fredrik está seguro na Ordem.
— E represento os únicos olhos e ouvidos deles lá dentro — intervém Fredrik.
— Uau — comento, balançando a cabeça, tentando absorver tudo isso e o que significa para nós.
— Está ficando com medo? — pergunta Niklas, abrindo um sorriso.
— Nem um pouco — respondo, sorrindo também. — Só estou tentando decidir qual serviço é mais urgente, a fortaleza no México ou eliminar a Ordem para eles pararem de caçar a gente.
Niklas sorri e parece que, ao perceber o que fez, desvia o olhar de mim.
— Acho que estou apaixonado pela sua mulher — diz Fredrik para Victor, brincando.
— Por algum motivo, duvido que você seja capaz disso — rebate Victor, despreocupado.
Ele olha para mim.
— Eu sei qual serviço é mais urgente. — Ele dá um sorrisinho e segura a minha mão.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
Izabel
Poucos convidados circulam no corredor, e seus passos são fracos. Saltos altos. Sapatos elegantes. Vozes ricas fingindo estar intrigadas, dramatizando demais as coisas insignificantes da vida. Risadas artificiais. Música clássica — Bach, acho — vem do andar de baixo, tão nítida, elegante e sofisticada que me sinto em uma festa para a rainha da Inglaterra, e não sentada em um quarto escuro, com meu punhal favorito na mão. Eu o chamo de Pérola.
O cheiro deste quarto é o mesmo da última vez em que estive aqui: colônia demais, suor, pot-pourri velho e lencinhos umedecidos. Uma pesada mesa quadrada de mármore está do outro lado do quarto. Eu me lembro dessa mesa. Nunca vou esquecer o modo como Victor me curvou sobre ela, ou o porco nojento que ficou olhando quando minha calcinha desceu até os tornozelos.
Está escuro lá fora, passou das nove da noite, e o luar que entra pela varanda atrás de mim inunda a maior parte do quarto. Fiz questão de deixar as portas abertas para sentir o ar noturno na pele. Está muito quente com estas roupas apertadas. Preto do pescoço para baixo. Botas, parecidas com as de Niklas, só que as minhas têm facas escondidas no couro. Uma arma está acomodada em um coldre na minha cintura, mas só está ali para o caso de eu precisar. Gosto do meu punhal.
Eu me sento em uma cadeira no centro do quarto espaçoso, fora da suave luz acinzentada que vem da varanda. Minha perna direita está cruzada sobre a esquerda. Minhas mãos repousam no colo, o cabo de pérola do meu punhal encaixado com firmeza na mão. Bato a fina lâmina de prata na minha coxa.
Já se passaram 26 minutos desde que me sentei. Mas sou paciente. Disciplinada. Tanto quanto consigo ser, acho. Prometi a Victor que esperaria. Que ficaria sentada aqui, praticamente imóvel, até a hora certa. Eu disse que conseguiria, que aguentaria sem correr para o andar de baixo e resolver o assunto ali. E pretendo provar. Embora admita que é difícil.
Olho para Niklas, de pé em uma sombra perto das portas da varanda, com as mãos entrelaçadas. Ele sorri para mim, achando graça da minha crescente frustração. Sorrio de volta e olho para a porta do outro lado do quarto.
Trinta e dois minutos.
Ouço as vozes dos dois seguranças sempre postados do lado de fora do quarto. Eles estão falando com Arthur Hamburg.
Segundos depois, a porta se abre e um clarão vindo do corredor inunda o quarto, mas não me alcança. E, com a mesma rapidez, a luz some quando o segurança fecha a porta depois que Hamburg entra. Ele não me nota ao passar pela grande cama e pela mesa de mármore.
— O que você achou do cabelo? — pergunto.
Hamburg fica imóvel na hora.
Eu me inclino para a frente na cadeira, entrando no alcance da luz.
— Preto retinto — digo, despreocupada. — Ainda me acha deslumbrante com qualquer peruca? — Uso a mão livre para tocar o penteado e exibi-lo.
As luzes do quarto se acendem quando Hamburg diz: Acender luzes.
— Como você entrou aqui? — pergunta ele, desesperado, seu olhar correndo pelo quarto em busca da resposta e de qualquer sinal de mais alguém.
Quando Hamburg nota Niklas e Victor de pé perto da entrada da varanda, atrás de mim, com as armas nas mãos ao lado do corpo, ele chama os guarda-costas. Mas então uma forte pancada é ouvida do lado de fora. E depois outra. Hamburg para a centímetros da entrada, sem saber mais se é seguro abri-la.
Ele me olha de novo.
Sorrio e bato com a lâmina na minha perna mais uma vez.
A porta atrás dele se abre, e Fredrik está de pé ali, segurando dois colarinhos brancos. Ele arrasta os corpos dos seguranças pelo chão de mármore e os larga. As cabeças batem ruidosamente no mármore.
Hamburg olha para Fredrik, de olhos arregalados como um peixe, seu corpo balofo imóvel, seus dedos roliços mal se mexendo sobre a calça, nervosos, como se ele estivesse procurando por uma arma que costuma carregar e não quisesse acreditar que não está com ela quando mais é necessária.
Fredrik fecha e tranca a porta. Ele vai até os corpos, pegando-os pelos colarinhos de novo e arrastando-os pelo quarto. Não há sinal de sangue neles. Ele deve ter usado sua arma favorita, uma seringa cheia de algo letal e que não deixa vestígios.
Olho para Hamburg.
— S-sim... você fica bem de cabelo preto — afirma ele, agitado. — P-por que estão aqui? Willem está desaparecido. Eu-eu não sei onde ele está. Juro. Não o vi nem tenho notícias dele há mais de uma semana.
Sorrio e inclino a cabeça para o lado.
— É porque ele está morto — digo, sem rodeios.
Hamburg olha para Victor atrás de mim. E para Niklas. Depois para Victor de novo.
— Olhem, eu-eu disse a ele para esquecer o assunto — diz Hamburg, ainda gaguejando. — Não fui eu que mandei. Fa-falei para não procurar nenhum de vocês.
O suor brota em seu rosto rechonchudo, brilhando no queixo duplo. As axilas de sua camisa branca estão empapadas, a umidade se espalhando depressa pelo tecido. O colarinho da camisa muda de cor ao absorver o líquido como uma toalha de papel barata.
Fico de pé.
— Você é um mentiroso. — Ando devagar na direção dele. — Mas não importa. Não estou aqui por causa de Willem Stephens. Estou aqui por sua causa.
Hamburg anda para trás conforme me aproximo, seu rosto inchado e enrugado contorcido de pavor, suas mãos grossas tateando atrás de si, procurando a porta ou uma parede.
Fredrik fica na frente da porta, bloqueando o caminho de Hamburg, que para. Vejo sua garganta se mover quando ele engole em seco. O medo em seus olhos é cada vez maior.
Ele continua olhando para Victor e Niklas atrás de mim, sempre concentrando sua atenção em Victor por último.
Victor se afasta da varanda e vem para o meu lado.
— Olhem aqui, eu cumpri minha promessa, cacete! — grita Hamburg, aprofundando as rugas ao redor dos olhos. Ele aponta um dedo gordo para nós, adornado por um grosso anel de ouro. — Nunca fui atrás de nenhum de vocês depois que mataram minha esposa! Cumpri minha promessa! — Ele aponta para mim. — Foi você que veio atrás de mim! V-você começou tudo isso!
Balanço a cabeça e sorrio para ele, rindo do desespero e do medo. Só isso já me dá alguma satisfação, vê-lo se retorcer, ver o modo como está implorando por sua vida sem fazê-lo de forma explícita.
Eu me aproximo mais um pouco.
Hamburg não se mexe porque não consegue. Fredrik está atrás dele.
— Ah, isso não tem nada a ver comigo — diz Victor para Hamburg. — Eu cumpri minha promessa. Nunca fui atrás de você. Izabel, por outro lado... — Victor está provocando, do jeito relaxado que é sua marca registrada. — Bom, você não fez nenhum acordo com ela, para a sua infelicidade. E eu não sou o dono dela. Nunca fui. Ela está aqui por vontade própria, e não há nada que eu possa fazer a respeito.
Hamburg olha diretamente para mim, a raiva em seu rosto se transformando em algo mais patético.
— P-por favor... eu faço o que você quiser. Dou o que você quiser. Meu dinheiro. Minha casa. É só pedir, é tudo seu. Eu tenho milhões.
Chego perto dele e sinto o cheiro fétido de seu suor. Ele me olha nos olhos, com uma expressão cheia de ódio e horror. Seu corpanzil treme a centímetros do meu, e sei que, se ele achasse que poderia sair impune, me agarraria agora e me estrangularia até a morte.
De repente sua expressão muda, combinando melhor com as palavras ríspidas:
— Você não vai fazer isso — provoca ele, desdenhando de mim com frieza e me encarando. — Não é capaz de matar a sangue-frio. Você matou meu segurança em legítima defesa. Não vai me matar. Não assim. — Há humor em seus olhos.
Fico alerta diante dele, com o indicador apoiado na lâmina do meu punhal, encostado na minha perna. Não digo nada. Só o observo, com um sorriso tênue, mas óbvio, achando graça de suas tentativas inúteis de salvar a própria vida.
Ele dá um passo para a esquerda e começa a se afastar. Eu deixo.
— Vou servir uma bebida para vocês — diz ele, levantando um dedo. Ele tira o paletó gigante e o coloca nas costas da poltrona de couro perto da mesa de mármore. Então começa a desabotoar a camisa.
Chego por trás dele como um fantasma, passando a lâmina em sua garganta antes que ele consiga tirar os dedos do último botão. Um som arrepiante de gargarejo se espalha pelo quarto, seguido por Hamburg se engasgando com o próprio sangue. Ele ergue as mãos como se estivesse tentando escapar de um saco plástico. O vermelho espirra da lateral do seu pescoço, e ele cai de joelhos pressionando o corte com as mãos. O sangue escorre por entre todos os dedos e empapa sua camisa.
Eu o observo. Não com horror, arrependimento ou tristeza, mas com um sentimento de vingança. Meus olhos parecem se abrir ainda mais, atingidos pela brisa que vem da varanda. Não consigo parar de olhar. Não consigo virar a cabeça. Mas posso sentir os olhos de Victor, Fredrik e Niklas em mim, observando como me regozijo no momento do meu primeiro assassinato oficial a sangue-frio.
Hamburg engasga e chora, lágrimas caindo, enquanto vou para diante dele e me agacho. Eu o examino, o modo como seu rosto se contorce, o modo como o vermelho do sangue faz contraste com o branco da camisa. Vejo o terror em seus olhos, o medo do desconhecido tomando conta dele bem depressa.
Um sorrisinho aparece no canto da minha boca.
Hamburg cai para a frente no chão, seu corpo pesado tremendo e estremecendo só por alguns momentos antes de ficar imóvel. Ele jaz com a bochecha encostada no piso de mármore, a boca aberta, assim como os olhos. Eles olham para o nada, estão cheios de nada. O sangue empoça ao redor da cabeça e do peito, encharcando as roupas.
Ainda agachada diante dele, me apoio nas pontas dos pés e me aproximo do corpo, com os antebraços apoiados nas pernas.
— É isso que aquelas pessoas que você matou estranguladas sentiram — sussurro para o cadáver de Hamburg.
Fico de pé e dou um passo para trás, antes que o sangue empoçando no chão chegue à minha bota. Um por um, olho para Fredrik, Niklas e depois Victor, e todos manifestam a mesma aprovação silenciosa. Mas é nos olhos de Victor que vejo muito mais. Um elo eterno entre nós, criado não por este momento, mas por aquela noite em que nossos caminhos se cruzaram no México. Jogados um na vida do outro por um capricho do destino e mantidos unidos pelas nossas raras semelhanças e nossa necessidade de ficarmos juntos.
Somos um só.
CAPÍTULO TRINTA
Izabel
Um ano depois...
Victor entra no banheiro da nossa casa em Nova York e me encontra relaxando em um banho de espuma. Despreocupada, eu o vejo tirar a arma da parte de trás da calça e deixá-la na bancada. Meu cabelo está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado. Estou deitada na banheira com os braços estendidos nas laterais, um joelho fora da água, parcialmente coberto pela espuma. Foi um dia cheio. Matei John Lansen, presidente da Balfour Enterprises e estuprador de primeira linha, e ainda tenho o sangue dele debaixo das unhas.
Fecho os olhos e relaxo.
— Onde você estava? — pergunto para Victor, sem levantar a nuca da banheira.
— Limpando a sua sujeira — responde ele, calmo.
Compelida a olhá-lo depois dessa acusação, abro os olhos novamente e o vejo de pé ao meu lado.
— Como assim? Foi um serviço limpo.
Ele ergue uma sobrancelha e olha para as minhas mãos.
— É mesmo? — pergunta ele, em tom acusatório. — Limpo significa sem sangue. Sem digitais. Sem deixar nada para trás, nem o seu cheiro.
Suspiro e fecho os olhos.
— Victor — digo, fazendo gestos dramáticos por cima da borda da banheira. — Eu não deixei nada para trás. Limpei tudo depois. Não ficou nada. Pergunta para o Fredrik. Ele estava lá. Verificou tudo depois.
Sinto o corpo de Victor mais perto quando ele se senta na borda da banheira.
— Mas quais são as ordens que eu dei, Izabel? — questiona ele, com tanta calma quanto antes. — Antes de começar essa missão com Fredrik, o que eu pedi?
— Nada de sangue — respondo, ainda de olhos fechados. — Envenene o cara, para parecer um ataque cardíaco.
Abro os olhos de novo e encontro seu olhar dominador, o verde de seus olhos mais escuro do que de costume.
— Veneno é o lance do Fredrik, não o meu.
— Você desafiou minhas ordens. E vai ser a última vez.
Sorrio para Victor e afundo as mãos na água para sentir a espuma na pele. Sei que Victor não está bravo de verdade comigo. Isso se tornou um jogo que fazemos: às vezes faço o contrário do que ele manda, e ele me castiga. É o tipo de jogo em que ambos ganhamos. Eu jamais teria desafiado as ordens dele em uma missão importante. John Lansen era só uma ponta solta, e mais uma das minhas missões de treinamento.
— O que você vai fazer comigo, Victor? — pergunto, com um brilho sedutor nos olhos. Tiro a perna esquerda da água e a apoio na borda da banheira, atrás de onde ele está sentado. — Vai me castigar?
Com a manga já arregaçada acima do cotovelo, sua mão direita percorre lentamente o comprimento da minha perna e mergulha na água. Gemo quando seus dedos me encontram.
— Vou tirar você do trabalho de campo até aprender a se controlar — diz ele, pondo dois dedos entre meus lábios inferiores.
Minha nuca pressiona com mais força a borda da banheira e minhas pernas se abrem mais.
— E se eu nunca conseguir me controlar? — pergunto, ofegante, mal capaz de me concentrar na conversa, com seus dedos se movendo entre minhas pernas daquela maneira.
Ele é um canalha. E eu o amo pra caralho por isso.
Dois dedos entram em mim e minhas pernas começam a enrijecer e formigar quando seu polegar esfrega com força meu clitóris em um movimento circular.
— Abra os olhos — manda ele em voz baixa, mas imperiosa.
Abro, só um pouco, pois está cada vez mais difícil controlar minhas pálpebras. Soluço, gemo e mordo meu lábio inferior com tanta força que dói.
— Se você não conseguir se controlar, então não terei escolha.
— Não terá escolha... do quê? — Meu peito nu sobe e desce. Mexo na água procurando sua mão, fechando os dedos em volta do seu pulso forte e descendo até os dele, que continuam se movendo em círculos.
Então ele para.
Ele tira a mão da água, fica de pé e enxuga o braço com minha toalha, pendurada na porta do boxe.
Olho para ele sem entender.
Ele sai do banheiro e me deixa sentada lá, sozinha, insatisfeita e sexualmente frustrada.
— Ei! — grito para ele. — Aonde você vai, cacete?!
Nenhuma resposta.
— Victor!
Nada.
Rosno baixo, fico de pé e saio da banheira. Pego a arma de Victor com minha mão molhada e ensaboada e vou para o nosso quarto. Ele está de costas para mim, perto da nossa cama king-size, tirando a camisa com uma graça casual e desinteressada, o que só me deixa mais frustrada.
Chego por trás dele, ensopada, pingando água e espuma no chão, e começo a apontar a arma para suas costas. Mas Victor é rápido demais e se vira, tirando a arma da minha mão e enfiando-a sob o meu queixo, tudo em dois segundos, que passam por mim como um borrão.
O cano frio toca minha pele. A intensidade nos olhos dele provoca uma onda de calor no meu corpo e entre minhas coxas. Meus seios estão pressionados no seu tórax duro e quente, sua mão livre posicionada no meio das minhas costas, com seus longos dedos abertos.
— Nenhuma disciplina, Izabel. — Ele estuda o meu rosto com um movimento faminto e calculado dos olhos. Ele lambe o canto da minha boca e enfia mais a arma na minha garganta. — Você nunca vai aprender.
Tento beijá-lo, procurando sua boca com a minha, mas ele me rejeita, me provocando com a distância de seus lábios, a 2 centímetros dos meus.
Ele me lambe de novo. E então me joga na cama e se encaixa no meio das minhas pernas nuas, ainda vestido da cintura para baixo com a calça preta. Estremeço quando sinto sua ereção me pressionando sob a calça. Meu corpo se desfaz em calafrios quando ele passa a ponta da língua de baixo para cima entre os meus seios.
Ele beija um lado do meu queixo, depois outro.
— Talvez você devesse se livrar de mim — sussurro nos lábios dele.
— Nunca — diz Victor, me beijando de leve uma vez. — Você é minha enquanto respirar. — A boca dele cobre a minha, faminta.
Foi assim que me tornei o que sou, uma escrava sexual transformada em assassina. E foi o início não só de um caso de amor entre mim e Victor, mas também de um novo círculo clandestino de assassinos, tão secreto que nem tem nome.
Quatro viraram cinco seis semanas atrás, quando recebemos o diabo louro de olhos castanhos, Dorian Flynn, no nosso grupo. E, embora haja muitos que trabalham para nós, espalhados por vários países, nós cinco somos o centro de toda a operação, com ninguém menos do que Victor Faust no comando de tudo.
Niklas continua um canalha insuportável, que adora dinheiro, mulheres e me deixar puta. De maneira indireta, é claro, mas ele sabe o que está fazendo. Mesmo depois de um ano, ele e eu praticamente nos desprezamos. Talvez eu o despreze um pouco mais do que ele a mim, mas nós nos suportamos, por Victor. A maior parte do tempo, evitamos cruzar o caminho um do outro. Ainda preciso ficar quite com Niklas e atirar nele. Mas essa hora vai chegar. Um dia.
Quanto a Fredrik, as mulheres ainda o adoram, mas desisti de tentar entendê-lo há muito tempo. Entender por que as mulheres praticamente tiram a calcinha quando o veem. Concluí que a única maneira de saber seria dormir com ele. Mas, como isso nunca vai acontecer, decidi manter o mistério. Mas Fredrik é como um irmão para mim, e, como Victor, não consigo imaginar ficar sem ele na minha vida. Sem perceber, ele tenta correr atrás de mim com aqueles malditos curativos de vez em quando, seja depois de uma sessão brutal de treinamento com Victor, seja na noite em que levei uma facada no ombro durante uma missão. Preciso lembrar a Fredrik, usando minha voz mais inclemente de Izabel Seyfried, de não me tratar como uma garotinha frágil. Lá no fundo, contudo, gosto de ver como ele é protetor comigo. Só que nunca vou contar isso a ele.
Dina, a mãe que eu deveria ter tido há 24 anos, agora mora em Fort Wayne, Indiana. Nós a instalamos em um abrigo tão pequeno e modesto quanto sua casa em Lake Havasu City. Victor tentou convencê-la a morar em um lugar grande e imaculado porque queria que ela tivesse o melhor, mas ela recusou. “Gosto das coisas simples”, disse ela naquele dia.
Dina ainda não sabe tudo sobre o que fazemos, mas é mais seguro assim, e ela aceita isso. E quanto ao abrigo dela, só é aberto para mim e para Victor. Eu a visito uma vez por mês. Mas a saúde dela está piorando. Eu me preocupo mais com ela do que comigo mesma ou com Victor. Mas ela é uma velha forte, e acho que ainda vai viver por muitos anos.
Quanto a Amelia McKinney, Fredrik não a matou. Matar mulheres inocentes não é o estilo dele. Ele a instalou em outro abrigo do outro lado do país, em algum lugar de Delaware. Nova identidade. Novo tudo. Mas ele nunca a visita. A última coisa que ele quer é uma mulher achando que ele está interessado em algo mais do que sexo.
Essa é a história da vida de Fredrik.
Conforme o prometido, depois que terminamos com Hamburg e Stephens, começamos a bolar uma estratégia para matar os irmãos de Javier Ruiz e libertar as garotas aprisionadas na fortaleza mexicana. Passei por seis meses de treinamento massacrante — treinamento de verdade, não apenas ser largada em algum lugar para estranhos me ensinarem — antes de partirmos para a missão. Infelizmente, a maioria das garotas da fortaleza que eu conhecia já tinha sido vendida ou estava morta quando chegamos lá. Matei Luis e Diego Ruiz, cortei a gargantas deles como fiz com Hamburg, depois que Victor, Niklas e Dorian derrubaram os guardas ao redor e dentro da fortaleza com uma chuva de balas. Não sou tão boa com armas de fogo e ainda preciso treinar muito. Por anos. Mas consigo fazer o serviço com minha coleção cada vez maior de punhais. E estou aprendendo mais a cada dia.
Quando a missão no México acabou e salvamos quem era possível — seis garotas, no total, tão traumatizadas que, mesmo livres, imagino que não consigam muita coisa na vida —, fomos atrás dos homens que as compravam. E ainda hoje, como amanhã e daqui a um ano, nós os procuramos e os eliminamos. Vai ser um longo caminho até localizarmos todos eles e lhes dar o que merecem, mas não vou parar enquanto não terminar.
Mais importante do que tudo, sobretudo para mim, é eliminar a Ordem. Vai demorar muito tempo até que eu possa de fato dormir tranquila à noite, sabendo que há homens procurando Victor a cada hora do dia. É uma empreitada muito mais perigosa e complexa do que provavelmente qualquer missão que realizaremos.
A Ordem é imensa, com milhares de membros, e é uma das mais antigas organizações de assassinos ainda existente. Vai levar algum tempo. Mas vai ser feito, mesmo que seja a última coisa de que eu participe.
Victor é a minha vida e eu vou morrer ajudando a protegê-lo.
Mas essa missão vai continuar a ser uma empreitada difícil, agora que Fredrik precisou sair por causa das suspeitas e não temos mais olhos e ouvidos confiáveis lá dentro. Temos novos informantes infiltrados na Ordem, mas eles ainda não provaram ser confiáveis como Fredrik.
E Victor... Victor continua pensando só no trabalho. Ainda é o assassino de aluguel e a sangue-frio, com nenhuma ou quase nenhuma consciência, quando o assunto é cumprir uma missão. Ele ainda parece desprovido de emoções, impiedoso e mortal em todos os sentidos. A portas fechadas, no entanto, quando estamos a sós, ele é outro homem. Ele me ama sem precisar dizer. Ele me adora sem ter que provar. Quando ele me toca, sei o que está pensando, o que realmente sente por trás daquela máscara que usa diante dos outros. Sou a única alma que ele já deixou entrar em sua vida completamente. E a única que ele nunca irá abandonar.
Ele se tornou o meu “herói”, no fim das contas. Minha alma gêmea que jamais vai deixar que nada de ruim aconteça comigo. Confio minha vida a ele, por mais que ele me diga para sempre confiar primeiro nos meus instintos. A verdade é que tudo o que fazemos é arriscado. Dar um passo para fora da porta. Dar um telefonema. Comer um pãozinho em uma lanchonete. Todos com quem cruzamos são ameaças até que provem o contrário. Qualquer um de nós pode morrer a qualquer momento. Mas pelo menos sei que Victor vai me pôr sempre em primeiro lugar e fazer tudo o que pode para me manter a salvo, como sempre vou fazer por ele.
Ficar um passo à frente da morte é o nosso estilo de vida. É o meu estilo de vida, e acredito que era para ter sido assim desde sempre. Contudo, por mais estranho que pareça, me sinto perfeitamente segura na companhia de assassinos.
CAPÍTULO VINTE E UM
Sarai
Saio de manhã cedo, usando o carro que Victor deixou na garagem para o caso de eu precisar em uma emergência. Ir até a academia de krav maga de Spencer e Jacquelyn em Santa Fé não é exatamente uma emergência, mas mesmo assim é importante para mim. E não posso mais ficar parada em casa desse jeito, quando poderia estar praticando.
Estou treinando com Spencer há meia hora. Odeio o fato de ele pegar leve comigo, mas acho que ao mesmo tempo me arrependeria de pensar assim caso ele decidisse me bater com aquele punho que parece um tronco de árvore.
— Acompanhe os movimentos dos ombros — orienta Spencer, movendo-se em círculos ao meu redor, nós dois meio curvados, com os braços em guarda alta à frente. — Soque. Um. Dois. Esquerda. Direita. — Ele demonstra enquanto fala, lançando seus punhos imensos no ar diante dele.
Faço exatamente o que ele manda, de novo e de novo, para aperfeiçoar a técnica. E então o golpeio com força, mas ele intercepta e se defende com facilidade de todas as minhas tentativas.
Ele me ataca e, por instinto, me esquivo e ando ao redor dele, longos fios do meu cabelo que escaparam do rabo de cavalo presos entre meus lábios e grudados no nariz. O suor escorre da minha nuca e desce pelas costas, grudando na pele o tecido fino da camiseta preta de um jeito nojento.
Spencer me ataca de novo e eu uso algo que já aprendi, golpeando-o no meio da garganta, um lugar vulnerável, o que o faz perder o equilíbrio no mesmo instante. Parto para cima dele com velocidade antes que ele consiga se recuperar e seguro sua nuca, curvando-o para baixo e enfiando o joelho em seu rosto, uma, duas, três vezes seguidas.
Ele cambaleia para trás, apertando a mão sobre o nariz. Se Spencer quisesse me machucar de verdade, não teria parado. Teria lutado contra a tontura e a dor e continuado a me bater até me matar.
— Cacete, garota — diz ele, misturando riso à voz grave, abafada pela mão. — Acho que você quebrou meu nariz.
Balanço a cabeça para ele, decepcionada por ele ter parado, embora tenha aprendido semanas atrás a aceitar que ele sempre vai parar.
— Não, acho que ele já era torto — rebato, brincando.
Ele ri de novo e tira a mão do rosto para apontar para mim com um ar ameaçador, com o olho direito mais fechado que o esquerdo.
Vou até a borda do tatame preto, onde minha toalha está jogada, e a uso para enxugar o suor do rosto. Puxando a gola da camiseta, tento me refrescar, contente por estar usando uma calça de malha preta aderente que reduz o suor.
Fredrik passa pela porta alta de vidro na entrada da academia. Não parece feliz.
Ele atravessa o tatame usando um jeans escuro, camiseta cinza bem justa e um All Star branco novinho em folha com cadarços vermelhos. Não consigo decidir o que é mais imperativo: explicar para ele o que estou fazendo ou perguntar se ele acordou de manhã achando que era outra pessoa.
— Como você me encontrou? — Jogo a toalha molhada no tatame, ao lado dos meus tênis pretos.
— Por que você saiu? — pergunta ele, por sua vez.
Reviro os olhos e balanço a cabeça, olhando para Spencer, não muito longe, que observa Fredrik e a mim com curiosidade, os enormes braços cruzados rigidamente sobre o peito maciço. A mulher dele, Jacquelyn, entra no prédio pela mesma porta por onde Fredrik acaba de entrar.
Eu me viro para Fredrik.
— Quantos anos você tem? Vinte? — pergunto, correndo os olhos pelas roupas dele.
Ele fica bem nelas, admito, mas duvido que um dia eu vá me acostumar a vê-lo usando qualquer coisa além de terno. É que não consigo imaginá-lo torturando um homem até a morte usando All Star. Afasto essa imagem estranha da minha mente.
— Respondendo perguntas com perguntas — observa Fredrik, um pouco irritado. — Eu encontrei você depois de ligar para Victor. Ele me falou que você poderia estar aqui.
— Ele ficou bravo? — Sinto meu rosto murchando. Espero que ele não esteja chateado.
Fredrik balança a cabeça.
— Não — diz ele, como se essa verdade o decepcionasse. — Ele disse que não tinha problema você vir aqui hoje. — Ele me encara com ar autoritário. — Mas você deveria ter pelo menos me avisado em vez de sair escondida. Quantos anos você tem? Quinze?
Dou um sorrisinho para ele.
— Está tudo bem aí? — pergunta Spencer, aproximando-se e olhando com frieza para Fredrik. Jacquelyn desaparece no escritório do outro lado da sala.
— Sim, está tudo bem. Spencer, este é Fredrik. Fredrik, este é Spencer, meu treinador.
Os olhos castanho-escuros de Spencer se voltam para mim em sua cabeça imóvel, depois passam a observar Fredrik.
— Ele é alguém que Victor conhece? Victor me deu ordens específicas para não deixar ninguém visitar você aqui, além dele. — Spencer estreita os olhos para Fredrik, e parece pronto para derrubá-lo a qualquer momento.
Fredrik, por outro lado, está sorrindo, com as mãos cruzadas à frente e uma postura elegante. Fredrik pode não ser capaz de derrotar Spencer na luta corpo a corpo, mas na verdade estou mais preocupada com Spencer, porque sei do que Fredrik é capaz.
Eu me posiciono entre os dois.
— Victor conhece Fredrik. Só que ele não esperava que Fredrik precisasse vir aqui.
Os dois se examinam em silêncio, e então Spencer assente e me diz:
— Tudo bem, mas se você precisar de alguma coisa...
— Eu sei. Obrigada. — Sorrio.
Spencer se afasta. Ele desaparece no escritório com Jacquelyn e alguns alunos entram no prédio, deixando as mochilas no chão, perto da parede oposta.
— Victor volta hoje à noite — informa Fredrik, abaixando a voz e olhando por cima do ombro depois.
Eu me afasto mais das pessoas que se preparam para treinar.
— Estou surpresa por você ter conseguido falar com ele. Tentei ligar uma vez, ontem, mas a ligação não completou.
Fredrik assente.
— Onde ele estava não tem sinal de celular a maior parte do tempo.
Olho por cima do ombro.
— Então ele... terminou o serviço? — pergunto, em um sussurro.
— Sim. Já fez o que precisava com Velazco. Eu vou cuidar do outro filho hoje à noite.
— Você vai matá-lo? — sussurro ainda mais baixo, olhando o tempo todo ao redor para me assegurar de que ninguém está perto o suficiente para ouvir nossa conversa tão criminosa.
Fredrik arregala os olhos só um pouco, para indicar que ele prefere não dizer nada mais comprometedor neste lugar. Ele me pega pelo braço, segurando com cuidado meu cotovelo, e me leva até a porta. Só quando estamos lá fora, na calçada, ele se sente seguro para conversar.
— Ele merece morrer — garante Fredrik, e tenho a sensação de que ele achou que eu poderia discordar disso.
Talvez eu discorde, de certa forma. Só agora me dou conta.
— Bom, o que... — Hesito, respirando fundo. — O que, exatamente, David fez para merecer morrer? O que André Costa fez? Eu sei que o pai deles, Velazco, fez muito mal a muita gente, mas só que... Sei lá, parece que você está castigando os dois com a mesma brutalidade de Velazco pelas coisas que só Velazco fez.
Fredrik balança a cabeça para mim, melancólico.
— Não. Os filhos de Velazco e os homens que trabalham para ele são quem põe a mão na massa de verdade. São eles que realizam os sequestros, que executam a maioria dos assassinatos e estupros. Cada um deles merece o que vai receber.
— Mas como você sabe que André Costa e David sequestraram, estupraram ou mataram alguém?
— Tenho minhas fontes — afirma Fredrik. — É só isso que você precisa saber.
— Achei que eu fazia parte desse esquema — respondo, um pouco ofendida.
— Não é você quem vai matar os caras. — Fredrik enfia as mãos nos bolsos do jeans. — Se um dia você precisar matar alguém, aí vai poder fazer quantas perguntas quiser.
Não gosto dessa resposta, mas aceito e deixo por isso mesmo. Suspiro, vou até a parede e me encosto nela, cruzando os braços e apoiando um pé na parede atrás de mim para manter o equilíbrio.
— Por falar em matar pessoas, sinto que Hamburg e Stephens estão cada vez mais distantes. Estou cansada de esperar. Quero matar os dois. Quero fazer isso de uma vez.
Fredrik se aproxima, apoiando as costas na parede também.
Olhamos para a rua, observando os carros passarem no sinal verde.
— O que você vai fazer quando eles estiverem mortos? Vai parar por aí? Acabar com eles, se vingar e então tocar a vida?
— Não — respondo, sem olhar para Fredrik, a voz distante porque minha mente está dispersa, pensando em tudo. — Não, eles não vão ser os últimos.
Percebo que isso é algo que ainda não contei nem para Victor. Não porque queira esconder dele, mas porque só agora eu mesma me dei conta. Surpresa por minha própria resposta, me perco em pensamentos, olhando para o cruzamento e para os carros que entram e saem de foco.
— Você não é muito diferente de mim. Sabe disso, não sabe? — pergunta Fredrik.
Enfim, inclino a cabeça para o lado e olho para ele. Observo sua silhueta alta e ameaçadora, seu semblante calmo, que sei ser só um disfarce para esconder muito bem o homem perigoso que na verdade habita aquele corpo, não muito abaixo da superfície. Vejo um homem que, embora eu não tenha a menor ideia de por que ou como se tornou o que é, além do que Seraphina fez, sei que passou por algo muito pior do que qualquer coisa que ela pudesse ter feito. Sinto isso. Percebo isso. E, de maneira muito perturbadora, sinto que de alguma forma posso me identificar.
— Pode ser — assumo, desviando o olhar. — Mas quando se trata da maneira como... a gente lida com as pessoas... você e eu não temos nada em comum.
— Ah, não sei ao certo se isso é verdade — retruca Fredrik, com um sorriso na voz.
Talvez o fato de eu não discutir com ele de imediato seja a prova de que ele pode ter razão.
Felizmente, Fredrik muda de assunto.
— Já tomou café da manhã?
— Não estou com muita fome.
Ele desencosta da parede, tirando as mãos dos bolsos e se colocando à minha frente. Acena com a cabeça e diz:
— Vamos, estou morrendo de fome. Tem uma padaria aqui na rua. Faz tempo que não como um doce decente.
Minha primeira reação é recusar o convite, mas então decido ir com ele. Inclino a cabeça para dentro da academia, com metade do corpo para fora, e grito para Spencer e Jacquelyn, do outro lado da sala, informando aonde vou e que volto mais tarde. Spencer, com aquele olhar desconfiado, discute comigo por um segundo, dizendo que eu não deveria perder mais nenhum treino. Ele tem razão, mas sei que me ver saindo da academia com Fredrik é o que o preocupa de verdade.
Momentos depois, entro no carro de Fredrik para irmos à padaria, a alguns quilômetros dali.
— Fredrik, por que você acha que Niklas traiu Victor daquele jeito?
Fredrik entra na rodovia.
— Não sei. Por inveja, talvez. Niklas sempre viveu à sombra de Victor dentro da Ordem. Desde que conheço os dois.
— Certo, mas... — Suspiro, olho de relance para ele e depois mantenho os olhos fixos na estrada. — Eu não entendo por que ele fez isso, tipo... — Encaro Fredrik, formulando o que eu quero dizer. — Niklas tentou me matar para proteger Victor. Ele atirou em mim. Acho que minha dificuldade é entender o que o levou a trair o irmão, depois de tudo o que ele fez para protegê-lo. Como alguém pode mudar tanto assim.
Viramos à direita no Paseo De Peralta, e logo vejo a grande placa oval vermelha da padaria quando nos aproximamos.
— Eu trabalhei com eles por muitos anos — conta Fredrik, observando o trânsito. — Niklas sempre foi meio desequilibrado. Faria qualquer coisa pelo irmão, mas sempre tive a impressão de que ele era uma bomba prestes a explodir. — Fredrik olha para mim e nossos olhares se cruzam por um breve momento. — Para ser sincero, acho que você teve muito a ver com o motivo para Niklas ter traído Victor.
Engulo em seco e olho para baixo por um momento, entrelaçando os dedos nervosamente. Também especulei muitas vezes sobre isso, parte de mim quase convencida de que tudo foi minha culpa, mas eu não apenas não queria acreditar nisso, como também me sentia idiota por me imaginar capaz de abrir tamanho abismo entre duas pessoas. Não sou tão importante assim. Não tenho todo esse poder, nem mesmo sobre Victor.
Com certeza não...
— Por que você acha isso? — pergunto, esperando que nenhuma resposta dele consiga me convencer. Que a resposta seja ridícula, até.
— Porque, de certa forma, Victor escolheu você em vez do irmão.
Todas as minhas expectativas desmoronam ao meu redor. A resposta de Fredrik não é nada ridícula, faz total sentido. E me odeio por isso.
— Victor decidiu sair da Ordem depois que conheceu você — explica Fredrik. — Ele podia ter algumas desavenças com Vonnegut antes, mas, no fim das contas, você foi o estopim. E, mesmo antes de Victor sair, ele estava arriscando a posição que tinha na Ordem e a própria vida para ajudar você. Niklas tentou evitar que Victor se destruísse. Matar você, pensava ele, era a única maneira de fazer isso, porque conversar com Victor a seu respeito não funcionava. Victor até mentiu para Niklas sobre você. — Fredrik me olha de novo. — Na visão de Niklas, Victor escolheu você em vez dele, substituiu o próprio irmão.
Chegamos ao estacionamento da padaria, mas, em vez de entrar, percebo que Fredrik está olhando pelo retrovisor, concentrado nele e na estrada à frente ao mesmo tempo.
Com a sensação clara de que ele está olhando para alguma coisa atrás de nós, faço menção de me virar.
— Não — pede ele depressa.
Tudo naquela palavra me faz estremecer até o âmago. Mas a expressão de Fredrik, seu semblante e o modo como ele continua a guiar de maneira despreocupada, com as mãos na parte de baixo do volante, parecem indicar que não há nada de errado.
— O que foi? — pergunto, incapaz de mascarar como ele a preocupação na voz.
— Estamos sendo seguidos.
Meu coração dá um salto e paro de respirar por um momento. Estou louca para olhar para trás, mas opto em vez disso por olhar pelo retrovisor do meu lado, sem fazer nenhum movimento drástico. Uma SUV preta, que parece um Navigator, está na nossa cola.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
Sarai
Minhas mãos estão apertadas nos cantos do banco de couro vermelho onde estou sentada. Não tiro os olhos do espelho retrovisor nem paro de pensar na possibilidade de ser quem estou pensando e de que vai acontecer o que imagino. Não consigo ver o passageiro nem o motorista através dos vidros escuros da SUV.
— Tem certeza? — pergunto.
Fredrik liga a seta e nós viramos à esquerda na esquina seguinte. Ele mantém o carro abaixo do limite de velocidade e parece evitar que os ocupantes do veículo de trás saibam que ele está ciente da presença deles. Só espero que ele esteja errado.
— Eles estão nos seguindo desde que saímos da academia — explica Fredrik, e meu coração afunda. — Estavam nos espionando, estacionados no terreno do outro lado da rua.
— Então foi por isso que você decidiu tomar café.
Fredrik assente e vira à direita no semáforo seguinte.
Estou me torturando por dentro. Eu me sinto insignificante e inexperiente por não ter sido esperta o bastante para notar essas coisas. Não observei direito ao meu redor para saber que estávamos sendo vigiados o tempo todo. Mas este não é o lugar nem o momento de ficar frustrada comigo mesma. Só espero que haja tempo para isso mais tarde.
— O que a gente vai fazer? — pergunto, nervosa.
Fredrik afunda o pé no acelerador, e de repente estamos a 80 quilômetros por hora em uma via de 55, seguindo direto para a rampa de acesso à rodovia. A SUV está bem próxima e continua no nosso encalço. Agarro o cinto de segurança, aperto-o com mais força e volto a me segurar no banco.
— Vamos despistar esses caras — responde Fredrik, aumentando a velocidade de 80 para 110 quilômetros por hora em poucos segundos ao pegarmos a estrada.
Estou me segurando, desesperada, com o coração na garganta, enquanto nosso carro costura loucamente, entra e sai do tráfego, corta outros veículos e até os ultrapassa pelo acostamento. Mas a SUV continua na nossa cola, abrindo espaço pelo mesmo caminho que fazemos. Buzinas ecoam barulhentas, furiosas conosco ao passarmos a toda a velocidade.
— SE SEGURA! — grita Fredrik.
No mesmo segundo, Fredrik faz uma curva brusca, passando da faixa do meio para a da direita, a poucos centímetros do para-choque da frente de um carrinho branco, e sou jogada contra a janela lateral. Ouço os pneus cantando, os nossos e os do carro branco, e então sou arremessada para o outro lado do assento quando ele endireita o veículo com um golpe do volante.
Desajeitada, me viro no banco da frente, com o cinto de segurança ainda preso ao corpo e tentando me segurar no lugar, vendo a SUV surgir de trás de um carro azul. O carro patina para a esquerda, tentando sair do caminho, e bate no carro branco que acabamos de ultrapassar. Os dois automóveis giram com violência no meio da rodovia, e o branco para com uma freada brusca na faixa da esquerda, quase batendo na barreira de concreto que separa uma pista da rodovia da outra. Os pneus soltam fumaça. O carro azul capota de lado. Solto um gemido e levo as mãos à boca.
A rodovia fica toda parada, do ponto do acidente para trás, todos menos nós e a SUV, que nos segue de perto. À frente, as pessoas, vendo o que está acontecendo, já abrem caminho para passarmos. Seguimos como foguetes a 140 quilômetros por hora, obrigando uma fila de carros a parar no acostamento.
Quanto mais nos afastamos do acidente, mais numerosos são os carros à nossa frente, e voltamos à mesma situação anterior, costurando em meio aos veículos, com buzinas tocando e meu corpo batendo na porta e na janela a cada virada mais brusca.
Fredrik passa depressa para a faixa da esquerda, a faixa mais rápida.
— A gente precisa sair da rodovia!
— Precisamos despistar os caras antes!
— Como é que a gente vai fazer isso, cacete? — pergunto, olhando para trás de novo. Eles ainda estão perto de nós, os para-choques a centímetros de distância.
Fredrik não responde. Ele está vigiando tudo, mantendo os olhos na estrada em frente, nos carros ao redor e na SUV atrás. Depois de alguns minutos, começo a achar que ele está montando um plano na cabeça.
De repente, no último segundo, Fredrik sai da faixa rápida, atravessa três faixas e pega a saída da rodovia a 110 quilômetros por hora, passando a centímetros da parede de concreto e dos barris laranja que separam a saída da rodovia. Foi tudo tão rápido que a SUV não teve tempo de prever o que Fredrik ia fazer e pegar a saída atrás de nós. Bato a cabeça na janela lateral. Há um semáforo no fim da estrada, mas Fredrik está indo rápido demais para parar e passa com tudo. Felizmente, essa estrada não parece muito movimentada, e nenhum carro bate no nosso.
— Que porra foi essa? — grito com a mão no peito, tentando controlar meus batimentos cardíacos.
Ele não responde até estarmos bem longe da saída, depois de cruzar várias ruas. Ambos continuamos olhando em todas as direções, procurando a SUV.
— Se eu ficasse na pista da direita — explica ele —, o cara ia entender que eu queria pegar a primeira saída.
Por mais que aquilo quase tenha me matado de medo, não posso negar que o plano louco de Fredrik funcionou.
— Você podia ter matado a gente!
— Até parece que isso é novidade para você — provoca ele.
Eu rio alto.
Fredrik retorna para a rodovia na direção oposta, de volta para a academia de krav maga. Contudo, antes de chegarmos perto do destino, ele vira em uma rua que não conheço.
— Aonde a gente está indo?
— De volta para Albuquerque — responde ele. — Pelo caminho mais longo. Só por segurança.
Seis horas de vigilância obstinada pelas janelas da casa, e o carro de Victor enfim estaciona na entrada da garagem. Fredrik e eu ficamos de pé assim que ouvimos as pedrinhas estalando e se partindo debaixo dos pneus.
Victor deixa a chave na bancada da cozinha primeiro e vem para a sala, pondo a maleta na mesinha de centro.
— Algum sinal deles? — pergunta ele a Fredrik antes de falar qualquer outra coisa.
Ele me olha, e não consigo decifrar sua expressão, o que, como aprendi, em geral significa que ele tem coisas demais na cabeça e está tentando se manter concentrado.
Antes que Fredrik responda, Victor me pergunta:
— Você está bem? Está ferida?
— Não, não estou ferida. — Desvio o olhar para a parede quando ouço Fredrik falando.
— Não fui seguido até aqui. Garanti que isso não acontecesse. Fiz um desvio de uma hora do caminho só para ter certeza. E não tem nenhum sinal de que alguém esteve aqui, só alguns carros na estrada, mas nada suspeito.
Victor dá a volta na mesinha de centro, senta-se nela do jeito que eu mesma muitas vezes faço e me encara quando me sento no meio do sofá, também olhando para ele. Parece preocupado. E furioso. Não comigo, mas com quem estava naquela SUV, acho.
— Antes que você diga qualquer coisa...
— Como falei para Fredrik — interrompe ele, com calma, pondo as mãos entre as coxas e apoiando os cotovelos nas pernas —, eu não esperava que você ficasse aqui, enfurnada nesta casa durante toda a minha ausência. Não peça desculpas por ter saído.
Surpresa com essa tolerância, fico sem palavras por um momento.
— Eu não iria para qualquer outro lugar — digo, enfim, ainda sentindo que fiz besteira de novo. — Achei que, como eu já tinha passado tanto tempo lá treinando com Spencer, não faria diferença se eu decidisse ir hoje ou esperasse até você voltar.
— E você estava certa — afirma Victor. Ele coloca as mãos nos meus joelhos. — A questão não é você ter saído. — Ele olha para Fredrik, que se senta no lugar vazio. — A gente precisa descobrir como eles sabiam onde você estava.
Vejo algo no rosto de Victor que Fredrik não consegue ver, algo que me deixa tensa. Victor tem o ar de um homem que desconfia de alguém, que desconfia de Fredrik. Olho para um e para outro, tentando entender os pensamentos de Victor. Será que estamos revivendo o que aconteceu com Samantha no Texas? Será que Victor depositou muito da pouca confiança que tem na pessoa errada mais uma vez? Esse era o teste, então? Deixar Fredrik sozinho comigo?
Cerro os punhos e minhas unhas afundam na pele das mãos. Victor me usou para testar a lealdade de Fredrik?
— Já andei pensando nisso — diz Fredrik. — E espero estar errado, mas tenho a sensação de que sei como encontraram Sarai.
Era algo que Fredrik e eu já havíamos discutido antes de Victor chegar. Mas agora... agora que estou vendo a desconfiança nos olhos de Victor, não consigo deixar de me perguntar se nesse tempo todo, enquanto esperávamos a volta dele, Fredrik não estava apenas enchendo minha cabeça de mentiras para nos despistar da possibilidade de ter sido ele.
Agora não confio em nenhum dos dois. Eu me sinto uma prisioneira de novo, presa entre homens perigosos dos quais sei que não posso fugir.
E meu coração dói.
Victor tira as mãos dos meus joelhos e dirige sua atenção para Fredrik. Continuo calma e imóvel, fazendo o que sei fazer melhor: fingindo.
— Acho que a gente deveria ir para Phoenix quanto antes — continua Fredrik. — Eu tentei ligar para Amelia, imaginando que talvez ela soubesse de alguma coisa, mas ela não atendeu nem retornou minhas ligações. Não é do feitio dela.
Victor se levanta da mesinha de centro e se senta ao meu lado, curvando-se para abrir sua maleta. Ele tira o laptop e passa o dedo em um sensor para destravá-lo.
— O que você está fazendo? — pergunto.
— Verificando meus equipamentos de vigilância na casa de Amelia — explica ele, abrindo algum programa na área de trabalho. — Não faço isso desde que tiramos a sra. Gregory de lá.
Alguns minutos depois de vasculhar vários vídeos (um deles claramente relevante, no qual homens entram na casa de Amelia e a capturam), ele balança a cabeça e fecha o laptop.
— O que foi? — pergunta Fredrik.
Victor guarda o laptop na maleta.
— Eles estiveram lá. O vídeo é cortado logo depois. Devem ter achado um dos dispositivos que eu plantei na noite em que levei Sarai para ver a sra. Gregory.
Fico em pânico pensando no que Stephens pode ter feito com Amelia, ou mais ainda com o que ela pode ter contado a eles.
— Fredrik tem razão — digo. — A gente precisa ir para Phoenix.
— Então vamos. — Ele estende a mão para mim.
Com relutância, seguro sua mão e fico de pé com ele. O que quero, na verdade, é lhe dar um belo tapa na cara.
— Victor? — chamo quando ele me dá as costas, na direção da porta.
Ele para e se vira a fim de me olhar.
— Nada disso estaria acontecendo se Hamburg e Stephens já estivessem mortos.
Phoenix, Arizona – 1h
Pegamos um voo para Phoenix e um táxi até a casa de Amelia. Ao que tudo indica, uma viagem de seis horas de carro estava fora de cogitação, pois Victor quer respostas já, sem perder mais tempo. Temo que Amelia esteja morta, uma vez que não respondeu às ligações de Fredrik. Acho que ele pensa a mesma coisa. Quando ainda estávamos em Albuquerque, cada vez que ligava e ela não atendia, Fredrik ficava mais frustrado. Preocupado, até. Eu achava aquilo estranho vindo de alguém como ele, que parece usar as mulheres para sexo e não tem a capacidade de gostar de nenhuma delas. Mas agora não consigo deixar de acreditar que aquilo era tudo teatro, que ele só estava fingindo se preocupar com ela, quando, na verdade, ele mesmo deve ter matado Amelia.
Em todo caso, fico feliz por termos tirado Dina da casa antes de isso acontecer.
O táxi nos deixa a uma quadra da casa de Amelia, e andamos o resto do caminho sob o manto da escuridão. A luz da varanda está acesa, revelando o revestimento branco e sujo da lateral da casinha e os degraus de concreto rachado que levam até a porta. Outra luz fraca brilha na janela da sala de estar, onde sombras se movem em um espaço pequeno e dão a impressão de que a luz vem da TV ligada. Quando subimos os degraus de concreto e ficamos diante da porta, Victor gira a lâmpada quente acima da nossa cabeça, apagando a luz.
Fredrik vai até a janela e olha para dentro.
Victor fica na minha frente e tenta me empurrar discretamente para trás dele com o intuito de me proteger, mas afasto sua mão. Ele vira de lado e olha meu rosto, zangado. Cerro os dentes e balanço a cabeça, revelando que estou furiosa e que é melhor ele não me tocar.
Ele desvia o olhar, mantendo a atenção em Fredrik.
— Não estou vendo Amelia — sussurra Fredrik. — Nenhum sinal de luta.
Victor saca sua 9mm das costas, põe a mão na maçaneta e tenta virá-la. Está trancada. Fico nervosa quando Fredrik puxa a arma também. Victor fica para trás e acena para que Fredrik entre na frente dele. Parece que ele quer que Fredrik bata na porta, mas acho que a ideia é ficar de olho nele.
Fredrik bate três vezes e nós esperamos. Victor não olha mais para mim, nem eu esperava que fizesse isso, em uma hora dessas. Também fico mais interessada nos gestos de Fredrik, esperando que ele nos ataque a qualquer momento.
Há movimento lá dentro. A cortina da janela perto da porta se mexe, e então ouvimos o som de um corpo pressionando a própria porta enquanto quem está lá dentro espia pelo olho mágico. Desta vez, Victor me força a ficar atrás dele, e não discuto, mais preocupada com quem está lá dentro do que com meu ressentimento em relação a ele.
Ouço a correntinha deslizando, depois o clique de um trinco, e então o som da maçaneta virando devagar. Quando a porta se move, abre apenas alguns centímetros, e um rosto bonito olha pela fresta, com o longo cabelo louro desgrenhado ao redor dos olhos inchados.
— Fredrik? — chama Amelia, em voz baixa e ríspida. — Você não deveria estar aqui. — Vejo que ela olha para todos os lados, nervosa, espiando a rua atrás de nós.
Victor fica na frente de Fredrik e empurra a porta com a palma da mão. O cheiro de um pot-pourri de canela e café queimado invade minhas narinas. Amelia dá um passo para trás, enfiando as mãos entre os braços cruzados, cobertos por um roupão de banho azul que vai até pouco acima dos tornozelos. O lado esquerdo do rosto tem muitos hematomas e há sangue no branco do seu olho. Seu lábio parece estar se recuperando de um corte.
Victor me empurra para dentro da casa com ele e Fredrik nos segue, fechando e trancando a porta em seguida. Antes que qualquer um fale, Victor e Fredrik vasculham cada cômodo da casa, de armas em punho, certificando-se de que ninguém está à espreita.
Eles voltam para a sala ao mesmo tempo, enfiando as armas na cintura.
— O que aconteceu com você? — pergunta Fredrik a Amelia. — Por que não atende ao telefone?
Ela está tiritando, os braços tremem dentro do roupão.
Victor olha para tudo, menos para ela. Ele começa a vasculhar a sala, mas sei que também está prestando atenção em cada palavra que ela diz.
— Não atendi porque sabia que era você — explica ela para Fredrik. — E você não deixou nenhum recado. Nunca deixa recado. Eles grampearam meu telefone, Fredrik. Eu não podia correr o risco de atender.
Fredrik segura Amelia com delicadeza pelo cotovelo e vai com ela até o sofá. Ele se senta ao lado dela.
— Me conte o que aconteceu — insiste ele.
Eu me sento na borda da poltrona do canto, com as costas encurvadas, as mãos cruzadas entre as pernas.
Amelia olha para Victor, que está passando os dedos por uma estante, procurando alguma coisa.
— Eles acharam todas aquelas coisas — anuncia ela. — Quando entraram aqui, três homens reviraram a porra da minha casa, colocaram tudo de cabeça para baixo, procurando aqueles aparelhos, ou sei lá o quê, escondidos pela casa toda.
Ele volta a vasculhar, mas se mantém no nosso campo de visão. No meu campo de visão.
Amelia se volta para Fredrik. Ela está sentada com as mãos entre os joelhos, a perna direita inquieta, batendo o pé no tapete cor de ferrugem.
— Eles vieram três dias depois que vocês foram embora — continua ela. — Me amarraram em uma cadeira da cozinha. Me espancaram. Ameaçaram minha família...
— O que você contou para eles? — interrompe Victor, parado na frente de Amelia.
— Eu não tinha nada para contar — diz ela, o medo cada vez mais evidente em sua voz trêmula. — Eles queriam saber onde ela estava. — Amelia olha para mim. Agora que estamos na sala com a luz da TV, noto como sua pele está amarela ao redor do olho. — Mas eu não sabia. Não podia contar o que eu não sabia. Merda! Eles também queriam saber onde Dina estava. Isso eu também não sabia. Eles não acreditaram, por isso me espancaram mais! — Ela respira fundo e tenta se controlar, talvez para não chorar. Parece prestes a cair no choro.
— Mas você deve ter contado alguma coisa para eles — sugere Fredrik, ao lado dela. Sua voz tem urgência, mas não é totalmente acusadora. — Pense, Amelia.
Amelia olha para as mãos trêmulas e afasta o cabelo louro desalinhado do rosto.
— E-eu não aguentava mais — conta ela, envergonhada, sem conseguir olhar Fredrik nos olhos. Ela olha para o tapete. — Achei que eles fossem me matar, me espancar até a morte. E-eu só contei que Dina a chamava de Sarai e que me falava dela, às vezes. — Amelia encara Fredrik, preocupada, esfregando os cantos dos olhos vermelhos. — Mas não era nada que eu achasse que eles poderiam usar.
— O que você contou? — pergunta Victor, com severidade.
Ela olha para ele.
— E-eles pediram informações recentes, qualquer coisa que Dina tenha me dito sobre Sarai, ou Izabel, ou sei lá qual o nome dela. Queriam alguma coisa atual. Eu pensei muito nas conversas que Dina e eu tivemos sobre ela, e o que me lembrei foi de quando vocês estiveram aqui. Ela falou de treinar. Maga ou qualquer coisa assim.
Pisco e balanço a cabeça. Lembro que contei a Dina que eu estava aprendendo krav maga.
Dou um salto da poltrona.
— Porra, eu não aguento mais! — grito. — Victor, desculpa. E-eu só faço merda. Você tinha razão. Essa vida não é para mim. Eu queria muito que fosse, mas não dá mais. Todo mundo vai morrer por minha causa!
Por um momento, esqueci que ele parece ter me usado para testar a lealdade de Fredrik. Talvez não tenha esquecido, mas deixei isso de lado por enquanto, porque minhas atitudes idiotas são mais imperdoáveis do que o comportamento de Victor.
Victor segura minha mão e faz com que eu me sente de novo.
— Você contou para Dina Gregory onde estava treinando? — pergunta ele, com voz calma.
— Não — respondo, olhando para ele. — Tomei o cuidado de não dar informações detalhadas. Nem contei onde eu estava morando. Nós três estávamos só conversando na cozinha. Dina queria saber o que eu andava fazendo. Foi uma conversa casual.
Fredrik olha para Victor.
— Stephens deve ter posto homens para vigiar todas as academias de krav maga daqui até a Flórida desde aquele dia. Isso explicaria por que eles levaram quase três semanas para descobrir em qual delas Sarai estava treinando.
— Espere aí... — intervém Amelia, como se tivesse acabado de pensar em algo horrível. — Dina está bem? Por favor, me digam que ela está bem. Eu queria minha casa de volta só para mim, mas gostava muito daquela mulher. Ela era gentil comigo.
— Dina Gregory está ótima — responde Victor, e tanto Amelia quanto eu ficamos aliviadas.
Amelia solta um suspiro de gratidão, mas seu corpo volta a ficar tenso e ela encara Fredrik com desespero no olhar, esticando o pescoço na direção dele.
— Ma-mas vocês não podem ficar aqui. Precisam ir embora. — Ela olha para nós. — Todos vocês.
— Esta era a minha próxima pergunta — observa Victor. — Por que eles não mataram você?
— Eles esperavam que vocês voltassem — explica Amelia. — Ou ao menos que tentassem me ligar. — Seus olhos correm para Fredrik de novo. — Eu não podia atender.
Fredrik assente, aceitando a explicação e as desculpas e deixando claro que a entende.
Amelia se vira para Victor.
— Depois de um tempo, fingi que odiava todos vocês — continua ela. — Reclamei de estar com raiva de Fredrik por desovar aquela velha coroca no meu colo daquele jeito. Aí falei um monte de merda sobre você. — Amelia se volta para Fredrik. — Quando enchi a cabeça deles de baboseiras, eles acharam que podiam me usar para encontrar vocês, para atrair vocês até aqui. Eu era só uma mulher desprezada que queria se vingar de Fredrik. Era isso que eu queria, ganhar a confiança deles para que não me matassem. Eu estava com medo, Fredrik. Acho que eles me matariam se eu não fizesse isso.
Fredrik assente de novo. Noto que ele quer pôr a mão no joelho dela para acalmá-la, mas não consegue porque o gesto o deixa constrangido. Em vez disso, ele oferece mais palavras de consolo.
— Você fez a coisa certa — afirma ele, com gentileza. — E tem razão, eles iam mesmo matar você.
Ele fica de pé e olha para Victor.
— A única pergunta sem resposta — afirma Fredrik — é como eles souberam que deveriam vir até aqui. — Ele levanta as mãos em um gesto de rendição. — Juro que não fui eu.
Meu corpo fica tenso. Olho de um para outro, tentando interpretar suas expressões. A tensão na sala aumenta, quase me afogando, mas logo percebo que a tensão é toda minha, pois estou me preparando para algum tipo de enfrentamento entre os dois. Contudo, quanto mais olho, mais sinto que Fredrik está dizendo a verdade e que Victor acredita nele.
— Eu sei que não foi você — diz Victor, enfim.
Fico atordoada. E confusa. E um pouco incomodada com a confiança imediata de Victor.
— Como é que você sabe? — pergunto, com rispidez.
— Porque, se Fredrik fosse entregar você, não faria sentido contar para eles onde Dina Gregory já esteve. Semanas atrás.
Rosno e cruzo os braços.
— Você me usou para testá-lo — disparo. — Você me deixou sozinha com Fredrik para ver se ele ia trair você e contar a Stephens onde me encontrar. — Eu o fuzilo com os olhos de maneira acusadora e implacável. Não é a hora nem o lugar de confrontá-lo com isso, mas não consigo mais me segurar.
Victor se aproxima e estende as mãos, querendo segurar meus braços. Tento me afastar, mas a poltrona está no caminho. Suas mãos quentes tocam minha pele, aqueles dedos longos segurando meus bíceps. Ele olha nos meus olhos e eu vejo sinceridade e determinação em seu rosto.
— Não foi isso que eu fiz — insiste Victor. — Você precisa confiar em mim quanto a isso. E precisa confiar em Fredrik. O inimigo não é ele.
— É tão fácil julgar e confiar — digo, irritada. — Então por que você me deixou sozinha com ele daquele jeito? O que significou aquela conversa antes de você ir embora sobre confiar nos meus instintos?
As mãos de Victor me soltam.
— A gente precisa sair daqui — diz ele.
Ele se vira para Fredrik, e me sinto ao mesmo tempo furiosa com a falta de explicações e apreensiva com o tom de urgência.
— Fredrik — continua Victor —, a decisão é sua. Pode levá-la para um abrigo ou deixá-la à própria sorte aqui.
Amelia, alerta e apavorada, arregala os olhos inchados e vermelhos. Ela se levanta do sofá em um salto, deixando abrir o roupão na cintura e revelando uma camisola branca por baixo.
— O que isso quer dizer? — pergunta ela, aterrorizada, mexendo na faixa do roupão para fechá-lo de novo. Ela encara Fredrik. — O que ele está dizendo, Fredrik?
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Victor
Sarai se culpa por muitas coisas, e em alguns casos com razão. Foi tolice falar do treinamento com Spencer — mesmo que de maneira tão vaga — para Dina e Amelia. Mas ela tomou cuidado com as informações que decidiu divulgar. Foi cuidadosa, mas não o suficiente. Sarai é jovem. Inexperiente. No entanto, está aprendendo, e aprender do jeito mais difícil, no fim das contas, é de fato a única maneira.
— Você não vai aprender a nadar lendo um livro — digo a ela, na viagem de volta para Albuquerque. Desta vez, achei melhor pegarmos um carro para voltar, em vez de nos arriscarmos em aeroportos de novo. — É a melhor maneira, Sarai. Para aprender com os erros, você precisa errar. De verdade. Nenhum tempo de treinamento, nenhuma situação ensaiada vai ensinar melhor do que a vida real.
Sarai está sentada em silêncio no banco do passageiro, olhando pela janela. Ela não quer olhar para mim. Mal disse uma palavra desde que saímos da casa do meu contato perto de Phoenix, meia hora atrás. A lua está baixa no céu da madrugada, parecendo enorme sobre a extensão escura da paisagem do deserto.
— Isso não é desculpa — diz ela, enfim, embora com voz distante.
— É uma desculpa — rebato. — Aqui não é Hollywood, Sarai. Você não vai aprender as coisas que quer no tempo em que acha necessário. Você cometeu erros. Vai cometer muitos outros...
Ela se vira de repente para mim.
— Eu disse que não é desculpa. — Ela pronuncia as palavras entre os dentes, com os olhos arregalados e implacáveis. Implacáveis para si própria, não para mim. — Fui eu que me meti nisso. Eu escolhi esta vida. Falei para você que era o que eu queria. Implorei para você me ajudar. — Ela aponta com severidade o indicador para si mesma, hesita e cerra os dentes. — Eu escolhi esta vida. Não sou criança, Victor. Você não pode me dizer que o que fiz não tem problema, que tenho o direito de errar. Porque, nesta vida, erros causam mortes.
Eu a admiro mais agora do que antes. Porque ela entende. Ela se recusa a pegar a saída mais fácil, aceitando o salvo-conduto que lhe ofereço. Ela se recusa a receber a permissão de errar, embora eu saiba que vai errar mesmo assim, porque é humana. E Sarai vai aprender com os erros mais depressa do que alguém que opta por aceitar as desculpas. Ela é uma garota desafiadora. Ela é durona, impulsiva e destemida até demais. Mas é determinada e forte. Apesar da falta de disciplina e de ainda não ter assimilado completamente o raciocínio criminoso e assassino, que é crucial para se manter viva, sei que ela pode dar certo nesta vida.
— Você se arrepende? Você se arrepende da vida que escolheu?
— Não — diz ela, com voz neutra, honesta, com os olhos observando o asfalto negro da estrada ser engolido pelo capô do carro. — Não me arrependo. E não quero desistir.
Ela ergue as costas do banco e me encara de novo.
— Eu quero matar Hamburg e Stephens — afirma, com determinação. — E aí, depois disso... — Ela faz uma pausa, mas não tira o olhar determinado do meu. Só desvio os olhos pelo tempo suficiente de olhar a estrada. — Preciso contar isso para você. É uma coisa que contei para Fredrik. Depois que Hamburg e Stephens estiverem mortos, não quero que eles sejam os últimos.
Desde o momento em que Sarai me disse que queria matá-los pessoalmente, soube que eles seriam apenas os primeiros em uma longa série de futuros assassinatos. Dava para ver essa resolução nos olhos dela, a sede de vingança, a fome de sangue. A morte de Javier Ruiz por obra de Sarai foi o que selou o destino dela. O primeiro assassinato é sempre o estopim, o instante na vida no qual tudo muda, no qual o caráter da pessoa assume uma forma nova e mais sombria. Sei que ela pensa em matar Hamburg todo santo dia, desde a noite em que o conheceu. Sei porque lembro o rosto do meu segundo alvo, o modo como o cacei durante uma semana como um assassino em série caçaria sua próxima vítima. Eu só conseguia enxergar o rosto dele. Tudo o que eu queria era acabar com sua vida miserável do modo como acabei com a do meu primeiro alvo. Porque fui gerado e treinado para isso. Ansiava pelos elogios que Vonnegut me dirigiu depois da minha primeira missão bem-sucedida, aos 13 anos. Vê-lo sorrir com orgulho como sempre quis que meu pai sorrisse. Eu ansiava por saborear a admiração que os outros garotos da Ordem sentiam por mim. Assim, do meu primeiro assassinato em diante, dediquei a vida ao trabalho, abrindo mão do ressentimento por ter sido separado à força da minha mãe. Matei para agradar Vonnegut pela maior parte da minha vida, até que comecei a ver que ele tirava de mim mais do que me dava.
Agora, mato porque é a única coisa que sei fazer.
Sarai e eu matamos por motivos diferentes, somos movidos por necessidades muito distintas, mas, no fim das contas, somos ambos assassinos, e sei que isso nunca vai mudar. Não podemos recuar diante disso, e a maioria dos que matam mais de uma vez não quer.
Volto a olhar para a estrada.
— Isso incomoda você? — pergunta ela, sobre a verdade que acaba de revelar. — Que não quero que eles sejam os últimos?
— Não — respondo, baixinho. — Não me incomoda.
Noto que ela desvia o olhar e o silêncio preenche o carro, restando apenas o som dos pneus se movendo com velocidade na estrada.
— O que vai acontecer com Amelia? — pergunta ela.
— Fredrik vai levá-la para um abrigo ou matá-la.
Eu esperava que ela tomasse um susto e virasse a cabeça ao ouvir isso, mas Sarai nem se sobressalta. Ela assente, aceitando o fato de maneira tão casual quanto eu.
Sarai já está ficando mais dura. Já é inflexível quanto aos próprios erros e não deixa que eles a definam. E, para ter certeza de que não os repetirá, abandona as únicas coisas que lhe restam.
Sua humanidade.
Sua consciência.
Já é fim de tarde quando chegamos em casa. Achei que Sarai fosse dormir a maior parte do caminho, mas ela não pregou os olhos. Está acordada há mais de 24 horas, mas continua alerta, sem exibir nenhum sinal de cansaço. É a adrenalina. Estou bem familiarizado com os efeitos dessa substância sobre a mente. No momento, contudo, estou tão exausto pela viagem que me tornarei inútil se não dormir logo.
Verifico a casa com cuidado antes de considerá-la segura o bastante para relaxar, embora eu tenha conferido as câmeras pelo laptop antes de chegarmos. Não tenho nenhum motivo para crer que Stephens e seus homens saibam onde estamos, mas, como sempre, não posso abaixar a guarda. Ainda é um mistério como Stephens descobriu a existência de Amelia McKinney e Dina Gregory. Não importa o que pareça, sei que Fredrik não teve nada a ver com isso. No entanto, por mais que essa brecha me preocupe, agora ela não importa. Neste momento, sei que vou ter que abandonar meus planos de treinar Sarai por meses ou até anos, dando tempo para que ela talvez mudasse de ideia. Ou decidisse me deixar fazer o trabalho para ela. Sei agora que nada vai fazê-la desistir, e, por mais que eu tente convencê-la, ela nunca vai aceitar que eu faça o serviço.
Talvez eu devesse matá-los assim mesmo...
— Victor?
Sou arrancado de repente da minha reflexão.
Sarai está diante da porta de vidro, olhando para a paisagem infinita do deserto. O sol está se pondo no horizonte, iluminando as grossas faixas de nuvens com um cor-de-rosa profundo.
— Tem uma coisa que eu preciso lhe dizer.
Ando até ela devagar, curioso, impaciente e até preocupado com o que ela vai falar.
— O que é? — pergunto, chegando mais perto.
Ela não se vira para me encarar, em vez disso mantém os olhos no vidro alto e impecavelmente limpo. Seus braços estão cruzados, os dedos pousados nos bíceps.
— Tomei uma decisão — começa ela, com voz baixa e em tom de desculpas. Minhas entranhas estão começando a se revirar. — Só espero que você entenda.
Ela enfim me olha, virando só a cabeça. Seu cabelo castanho, longo e macio, desce em cascatas pelo meio das costas, deixando os ombros à mostra. Ela usou uma blusinha branca de tecido fino durante a viagem de volta. Adoro vê-la de branco. Faz com que pareça angelical, para mim. Um anjo que carrega a morte no bolso.
— Conte — peço, com voz relaxada, embora não esteja nada relaxado, no momento, e não saiba por quê. — Que decisão?
Seus olhos escuros se desviam dos meus, e esse pequeno gesto insignificante parece uma tragédia.
Ela umedece os lábios, mordendo seu suculento lábio inferior por um momento.
— Depois que Hamburg e Stephens estiverem mortos... Eu vou embora. — Ela se vira para me encarar. Meu coração parou de bater. — Vou levar Dina comigo para algum lugar e ficar por minha conta.
Mal consigo organizar meus pensamentos, muito menos formar uma frase mais complexa.
— ... Não entendo.
Sarai inclina a cabeça para um lado e descruza os braços, deixando-os pender soltos em toda a sua elegância. Ela se aproxima de mim. Quero tomá-la nos braços e beijá-la, mas não consigo.
Por que eu não consigo, porra?
— Victor, eu entendo agora que não consigo viver assim. Pelo menos não com você. E com Fredrik. Vocês dois são profissionais, e eu não posso manter essa ilusão de achar que algum dia serei capaz de acompanhar um de vocês, muito menos os dois. — Ela levanta uma das mãos como se eu fosse retrucar, e, embora eu não esteja pronto para falar, percebo que ela deve estar lendo a discordância crescente no meu rosto. — Olha, não estou fazendo isso para chamar atenção. Nem para você me dizer que estou errada. Eu sei que, por mais que eu queira ficar com você, isso não é possível. Se eu não acabar morrendo, vou acabar causando a sua morte. E sei que jamais conseguiria conviver com isso.
— Bom, eu realmente acho que você está errada — digo, com dificuldade, desejando poder explicar melhor.
— Não — rebate ela. — Não estou. E você sabe disso.
— Mas aonde você iria? O que iria fazer? — Meu tom de voz se torna urgente. — Sarai, você já tentou levar uma vida normal. Você tentou, e veja o que aconteceu.
Por que estou dizendo essas coisas? Eu deveria estar comemorando o fato de ela finalmente cair em si.
Ela dá um suspiro suave. Vejo seus ombros delicados se erguendo e baixando.
— Não faça isso — pede Sarai, balançando a cabeça. — Não finge que isso incomoda você, ou que quer que eu mude de ideia. Por favor. Você sabe que isso é o certo, tanto quanto eu sei agora. Se eu tivesse escutado você há mais tempo, se tivesse desistido dessa vingança idiota contra Hamburg e seguido com a minha vida, estaria em casa no Arizona com Dina e Dahlia, e até com Eric...
— Mas você não o amava.
Por que eu disse isso? Entre todas as coisas que eu poderia ter dito, todos os tópicos que poderia ter explorado, por que tinha que ser logo esse?
— Não, não amava. — Ela me olha nos olhos, pensativa. — Mas ele era normal. Era o que você queria para mim, mas na época fui egoísta demais para entender que você estava certo. Aquele tipo de vida era o certo.
Dou um passo para trás.
— Espere — digo, erguendo a mão por um momento e passando a ponta do dedo pela boca, olhando para baixo. — Então você está dizendo que quer uma vida normal agora?
— De jeito nenhum — responde ela, balançando a cabeça. — Eu jamais conseguiria voltar para aquilo. Só estou dizendo que, se eu não tivesse insistido no meu plano de matar Hamburg, as coisas não estariam tão ruins como estão agora.
Inclino a cabeça para o lado, com uma expressão confusa no rosto cada vez mais sério.
— Então o que você está dizendo, exatamente? O que vai fazer? Começar a matar gente por conta própria?
Isso é quase risível para mim, mas não deixo minha opinião transparecer. Sei que Sarai tentaria. Sei que ela mataria e talvez até conseguisse se safar algumas vezes, mas não para sempre. Não sem os recursos que tenho.
— Ainda não decidi — responde ela.
Sarai coloca a mão no puxador da porta de vidro e a desliza, deixando a brisa suave do fim de tarde entrar na casa. Ela sai para o pátio dos fundos.
Estou lá fora ao lado dela antes que minha mente alcance o movimento apressado das minhas pernas.
— Você não está falando coisa com coisa.
Sarai entra no alcance do sensor de movimento, e a luz inunda o pátio de concreto. Ela fica no limite do feixe brilhante, deixando só parte do rosto coberto pela penumbra do sol quase extinto.
— Eu tenho pendências no México — esclarece ela, e fico atordoado. — Hamburg não é a única pessoa que pensei em matar nos últimos oito meses, Victor. — Ela olha para a paisagem plana de novo. Só consigo olhar para ela. — Quando você e Fredrik me contaram que os irmãos de Javier estão no comando da operação, isso só inflamou meu ódio. Eles precisam morrer. Todos eles. Cada um daqueles babacas envolvidos. Todos os Andrés e Davids. — Ela me olha. — Ainda há muitas garotas com eles. Eu sei que havia 21 quando fugi escondida no seu carro. Dezenove agora, sem Lydia e Cordelia. Que tipo de pessoa eu seria se seguisse com a minha vida sabendo que lá no México há uma fortaleza onde um monte de garotas das quais aprendi a gostar estão sendo mantidas à força? Sendo estupradas, espancadas e mortas?
Faço menção de tocá-la, mas paro no último instante.
Não sei por que isso é tão difícil para mim... Por que há tanto conflito dentro de mim...
Sarai sai do alcance do sensor e a luz se apaga, imergindo-nos na meia-luz. Uma brisa leve balança o cabelo dela, fazendo-o dançar suavemente nas costas.
— Isso é tolice, Sarai — digo, enfim encontrando palavras que acho adequadas. — Mesmo com a minha ajuda, fazer uma coisa dessas levaria muito tempo. O que faz você crer que conseguiria sozinha? Como encontraria a fortaleza sem a minha ajuda, para começar?
— Eu consigo fazer isso sozinha — retruca ela, com calma, mas com uma determinação inabalável. — Quer dizer, posso pelo menos tentar, e isso é melhor do que não fazer nada. E você não me dá o crédito que mereço, Victor. Sou tão capaz de somar dois mais dois quanto você. Posso pegar o que aprendi, informações às quais tive acesso, e encontrar o caminho para lá. Não deve ser difícil encontrar Cordelia. Sei que ela mora na Califórnia. Sei que ela é filha de Guzmán e que você foi enviado para a fortaleza por ele para encontrá-la e matar Javier Ruiz por tê-la raptado. Até sem você sou capaz de descobrir a localização da fortaleza. Vou começar com Cordelia e Guzmán.
Minha garganta está seca. Meu estômago parece um bloco de concreto.
Ela tem razão, não lhe dei o crédito que merecia. Sarai é muito mais esperta do que eu imaginava. Sabia que ela era inteligente, mas com certeza fiquei surpreso.
Ela não sorri nem se gaba de tudo isso, só fica ali me olhando concentrada, com intensidade e o tipo de determinação que me assustam tanto. A fúria assassina e vingativa de Sarai é muito mais profunda do que eu pensava, mais profunda do que ela me revelou.
Como não percebi isso?
— E também tem os ricaços que Javier me levava para visitar, me exibindo para que quisessem comprar as outras garotas — conta ela, com desprezo. — Eu lembro o que você me contou. John Gerald Lansen, você disse que ele é o diretor-executivo da Balfour Enterprises. — Sarai assente, confirmando o nome no meu rosto. — É, eu me lembro de muita coisa. E passei muito tempo na casa da Dina antes de ir a Los Angeles para matar Hamburg, pesquisando esses homens. Lembrando aos poucos os nomes, os rostos, somando dois mais dois para descobrir quem eles são, onde moram, quanto dinheiro têm. Quando eu não estava pensando em você, estava mergulhada neles, aprendendo tudo o que podia sobre esses caras com o objetivo de matá-los aos poucos, um por um. — Ela fica na minha frente e me olha nos olhos. — E é isso o que pretendo fazer.
— Você não vai conseguir sem mim.
Estou ficando furioso. Como Sarai pode dizer essas coisas, tomar uma decisão dessas sem me envolver?
Minhas mãos estão tremendo.
Desvio o rosto, sabendo que, se olhar demais, vou me perder nas profundezas daqueles olhos verdes.
— Tolice — digo, pronto para dar a noite por encerrada e acabar com aquela conversa absurda. — Vou tomar banho e dormir. Pode vir comigo se quiser.
Quero que ela aceite.
Sinto que ela não vai aceitar...
— Eu não vou com você. Estou falando sério. Quando isto acabar, quando os dois estiverem mortos, eu vou embora.
Eu me viro para ela com as mãos fechadas, sentindo os punhos da minha camisa branca mais apertados nos meus pulsos.
— Você não vai a lugar nenhum. Não desse jeito. Não vou deixar. — Dou uma risada seca. — Meu Deus, Sarai, você tem mesmo muito a aprender. Estou chocado por você não perceber a idiotice que isso é!
— Idiotice? — repete ela, com desprezo. — Não... Tudo bem, talvez você tenha razão, mas o que é ainda mais idiota é achar que eu poderia ter algum tipo de vida com você. Eu me odeio pelo que fiz você passar, pelo que fiz Dina passar. E estou aqui, como uma órfã abandonada à sua porta, esperando que você cuide de mim, me alimente e me ensine como levar uma vida fora do convencional e não morrer fazendo isso. Você não pediu por isso, eu nunca deveria ter me jogado na sua vida como fiz.
De tanto tempo cerrando com força os dentes sem perceber, eles estão começando a parecer plástico. Meu peito sobe e desce com a respiração profunda, furiosa e até apavorada. Sinto que não pisco há minutos, meus olhos estão começando a secar com a brisa incessante que os atinge. Parece que meu coração quer sair do peito.
Nunca me senti assim antes... pelo menos não desde criança. Nunca estive tão furioso e... assustado.
— Sinto muito ter feito você passar por isso, Victor — repete Sarai, com calma e sinceridade. — Quero agradecer por tudo o que você fez para me ajudar. Duvido que qualquer coisa que eu possa fazer ou dizer retribuirá a sua ajuda. Eu sei. Mas o mínimo que posso fazer é deixar você em paz para viver a sua vida do jeito que você sabe. Você não precisa de alguém fazendo merda o tempo todo.
Ela me dá as costas e começa a se afastar.
— Sarai! — grito, e ela para no mesmo instante. Tento acalmar minha voz. — Espere... espere só um minuto.
Ela se vira para me olhar.
Estou tropeçando nas palavras que se formam na minha cabeça, tentando escolhê-las na minha confusão e juntá-las de forma adequada para que façam sentido. Mas é difícil. É difícil pra cacete!
— Eu... — Olho para os meus sapatos, para a cadeira de ferro batido do pátio, para seus cachos agitados sobre os ombros nus e macios. De novo olho para os meus sapatos. — Eu não quero que você vá embora.
— Mas eu preciso ir, Victor — insiste Sarai, com tanta ternura e compreensão na voz que quase racho ao meio. — Você sabe que preciso. É o melhor para nós dois.
— Não — digo com severidade, erguendo o queixo e me recompondo. Não vou aceitar isso. — Você vai ficar comigo. Eu posso manter você segura. Não vamos mais falar disso. Agora vamos para cama.
Estendo a mão para ela.
— Não, Victor. Sinto muito.
Pego a mão de Sarai e a puxo para perto de mim. Ela não resiste nem se encolhe, tampouco parece surpresa. Seguro seu rosto com as mãos e a admiro, seus olhos quase infantis, embora tão sagazes. Uma pequena loba se esconde dentro daquela corça. Minha loba.
— E-eu quero que você fique comigo.
— Por quê?
— Porque é isso que eu quero.
— Mas isso não é motivo, Victor.
— Não importa, Sarai, você precisa ficar comigo.
— Mas eu não vou ficar.
Eu a sacudo, ainda segurando seu rosto.
— VOCÊ NÃO PODE IR EMBORA! — Minha alma está tremendo. Não consigo suportar essas emoções.
Ela ainda não reage, mas vejo seus olhos começando a marejar.
Sarai balança a cabeça nas minhas mãos com delicadeza.
— Eu vou embora e não tem nada que você possa fazer para mudar isso.
— NÃO, SARAI! EU PRECISO DE VOCÊ NA MINHA VIDA!
De repente, eu a solto e olho para minhas palmas, abertas à frente, como se de alguma forma elas tivessem me traído. Meu peito se agita em um turbilhão, como se emoções que estavam adormecidas durante a vida toda tivessem enfim acordado e eu não soubesse mais o que fazer.
Querendo apenas me esconder no quarto para tentar entender o que acaba de acontecer comigo, giro sobre os calcanhares e sigo para a porta de vidro.
— Victor. — Eu a ouço chamar baixinho atrás de mim.
Paro. Não tenho forças para me virar.
Sinto que Sarai se aproxima por trás, sinto o calor de sua presença, o aroma doce da sua pele.
— Olhe para mim — pede ela, com a voz leve como a brisa.
Eu me viro devagar.
Ela se aproxima e segura meu rosto com as mãos, com mais delicadeza do que quando segurei o dela. Inclina a cabeça para um lado e depois para o outro, me encarando com os olhos cheios de lágrimas. Ela fica na ponta dos pés e me beija de leve na boca.
— Não reprima nada — diz ela, com uma urgência suave. — Diga tudo o que está sentindo agora. Neste exato momento. Por mais errado, constrangedor ou esquisito que pareça, diga assim mesmo. Por favor...
Não notei quando minhas mãos se ergueram e seguraram os pulsos dela, com a mesma delicadeza com que seus dedos tocam minhas bochechas. E me examino por dentro, tentando entender o que Sarai está fazendo comigo. O que ela fez comigo. Penso no que ela disse e, contrariando minha aparência tão dura, só quero lhe dar o que ela deseja.
— Eu... Sarai, eu nunca me senti assim antes. — Não consigo olhá-la nos olhos, mas ela me força a isso mesmo assim.
— Conta tudo. Eu preciso ouvir.
O desespero na voz dela é apaixonado e condiz com o que sinto por dentro. Examino o rosto dela. Seus olhos. Sua boca, os lábios tão suavemente entreabertos que fazem a boca parecer inocente e convidativa. As maçãs do seu rosto. Seu queixo. A linha elegante do seu pescoço.
Mas os olhos dela...
— Sarai, você é importante para mim — digo, desesperado, em um murmúrio urgente. — Você é mais importante para mim do que qualquer coisa ou qualquer pessoa. Ter você aqui comigo não é um fardo. Eu quero treinar você. Pelo tempo que for necessário. Quero acordar todo dia com você ao meu lado. Preciso de você na minha vida mais do que jamais precisei ou quis qualquer outra coisa.
Faço uma pausa e olho para baixo. E então me afasto dela. Suas mãos abandonam meu rosto.
Engulo em seco.
— Não vou forçar você a ficar comigo — obrigo-me a dizer, apesar do que sinto. — Mas saiba de uma coisa... Se você partir, você vai se tornar um fardo. Se você acha que ficando aqui vai foder a minha vida, nem faz ideia de como isso vai ser verdade se tentar ir embora e ficar sozinha. Porque eu vou passar cada momento de cada dia da minha vida tentando proteger você! — Meu coração está disparado. — Não vou conseguir dormir sabendo que você está por aí, tentando se encaixar em uma vida que não passa de uma sentença de morte para quem não tem um treinamento adequado! Sarai... ISSO VAI ME MATAR! SERÁ QUE VOCÊ NÃO ENTENDE? VOCÊ VAI ME MATAR SE DECIDIR IR EMBORA! — Estou tremendo todo, meu corpo todo abalado por dor, medo e angústia.
Em um segundo, Sarai está diante de mim novamente, a poucos centímetros do meu peito, seus dedos dançando no meu rosto como instantes atrás. Ela parece calma. Mas há algo mais em seus olhos, agora, algo que não estava lá há pouco. Alívio? Felicidade? Não consigo decifrar a emoção, quando tudo o que quero é puxá-la para perto de mim e abraçá-la até morrermos.
Ela passa a ponta do dedo indicador sob meu olho. Uma lágrima.
Uma lágrima?
Consumido pela confusão, não consigo falar nem me mexer. Olho primeiro para a mão dela e vejo o que resta da lágrima brilhando em seu dedo. Volto a fitar seus suaves olhos verdes, que estão sorrindo para mim, não com arrogância, mas com ternura.
Lobinha esperta...
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
Victor
— Desculpa — pede ela, com nada além de ternura. — Mas eu precisava saber o que você sentia de verdade, Victor.
Eu me sento na cadeira de ferro preto do pátio, esticando as pernas. Colocando o cotovelo no braço da cadeira, apoio a cabeça exausta nas pontas dos dedos.
Sarai se ajoelha na minha frente, no meio das minhas pernas estiradas.
— Ficar com você significa mais para mim do que fazer parte do seu trabalho. Eu precisava saber que você quer de mim a mesma coisa que quero de você. E... quando estamos juntos, sempre sinto que sou mais parte do seu trabalho do que do seu coração.
Ela tenta encontrar meu olhar, mas estou concentrado demais no chão de concreto. Ouço cada palavra que Sarai diz, mas ainda estou muito perplexo com as emoções que ela arrancou de mim para olhá-la nos olhos.
Sinto que não consigo encará-la. Não por estar com raiva dela, mas por vergonha.
— Você tem sido impenetrável desde o dia em que nos conhecemos — continua ela, segurando minha mão. — A única situação em que sinto uma ligação emocional de verdade com você é quando dormimos juntos. Eu ficava muito frustrada. Porque sabia que, por baixo de todas essas suas camadas, isto, isto aqui... — ela aperta meus dedos enfatizando essas palavras — ... que você acabou de me mostrar estava lá o tempo todo, só querendo ser libertado. Eu... Victor, por favor, olha para mim.
Relutante, levanto a cabeça e a olho nos olhos.
— Eu não quero ser o seu trabalho. Quero trabalhar com você. Quero aprender com você. Mas quero sentir que sou importante do ponto de vista emocional quando o trabalho não estiver interferindo. Victor, eu sei que não é culpa sua. Sei que você não pode mudar seu jeito, o modo como você se isola emocionalmente do mundo. Mas eu precisava tentar ajudar a desfazer o que Vonnegut e a Ordem fizeram com você.
— Você me manipulou — afirmo, sem dizer mais nada.
Ela abaixa o olhar.
— Desculpa.
— Não peça desculpas. — Ergo as costas da cadeira, inclinando o corpo para a frente e enfiando as mãos sob os braços de Sarai. Eu a levanto e a ponho no meu colo. — Nunca peça desculpas.
Com uma das mãos, viro o queixo dela na minha direção, para fazê-la me olhar.
— Você fez o que precisava fazer — digo, e espero que ela se lembre disso mais tarde. — Não posso culpar você.
— Não está bravo? — pergunta ela.
Balanço a cabeça.
— Não. Acho que “grato” é um termo melhor.
Ela sorri. Eu também sorrio e a beijo.
— Parece que estamos ajudando um ao outro.
Ela inclina a cabeça, pensativa, e presta atenção.
— Sarai, eu estou ajudando você a se tornar o que quer ser, a viver a vida que escolheu viver. Você nunca teve direito de escolha antes. E você está me ajudando a recuperar o tipo de vida que tiraram de mim, me mostrando como é ser algo mais do que um assassino, a sentir algo mais do que a necessidade de matar. E, por isso, eu jamais poderia ficar bravo com você.
Ainda acomodada na minha perna esquerda, ela se curva e me beija de leve no canto da boca. Seguro sua cintura com as duas mãos, entrelaçando os dedos. Ficamos assim em silêncio por alguns momentos. O sol já sumiu do horizonte e as estrelas estão acordadas na escura imensidão do céu que paira acima de todos nós, em uma exuberância de tirar o fôlego.
— Então, quanto daquilo era verdade? — pergunto a ela.
— Tudo — responde Sarai. — Menos a parte sobre eu ir embora.
Balanço a cabeça, distraído, pensando muito em todas as coisas que ela me revelou esta noite.
— Você sabe que ninguém vai nos pagar para voltar ao México. Seria só um acerto de contas.
— Eu sei. — Ela assente. — Mas é importante para mim. Aquelas garotas são importantes para mim.
Passo a mão esquerda pelas costas dela e a apoio em sua nuca. Puxando-a na minha direção, aninho sua cabeça no meu ombro.
— Então é importante para mim. Pode levar meses, até um ano ou dois, para juntar todas as informações de que precisamos, todos os recursos, mas vamos conseguir. E vamos conseguir juntos. Mas você precisa me prometer que vai ser paciente e vai...
— Eu dou a minha palavra — interrompe ela. — Não importa quanto tempo leve. E vou seguir os seus comandos e as instruções em cada passo. Não vou cometer os mesmos erros de novo.
Logo depois da nossa conversa no pátio, levo Sarai para o banheiro e lavo o cabelo dela, sentada entre as minhas pernas na banheira.
Conversamos por um longo tempo sobre a vida como era antes. Sobre quando ela morava com a mãe, antes que a mãe descobrisse as drogas e os homens. Quando elas se sentavam juntas para assistir a desenhos animados na TV nas manhãs de sábado. Falamos sobre a minha vida antes que eu fosse capturado pela Ordem. Sobre como eu jogava Dosenfussball (futebol com latinha) e Verstecken (pique-esconde) com Niklas quando eu tinha 6 anos, na Alemanha.
Ficamos tão perdidos nas lembranças de quando nossas vidas eram mais simples e mais inocentes que esquecemos como as coisas estão agora.
Também esqueço, só por um momento, que as coisas entre nós não estão completamente definidas.
E pode ser que nunca estejam.
Sarai
Acordo na manhã seguinte e encontro o lado de Victor da cama frio e vazio. Aperto o travesseiro dele contra o peito e o seguro perto de mim. Ele tinha uma reunião às oito com um contato em Bernalillo. Queria que eu fosse junto, mas fico exausta com as viagens, sobretudo quando não são de avião.
Já que a localização da academia de krav maga foi “comprometida”, como Victor diz, ele acha melhor sairmos do Novo México quanto antes. Meu objetivo do dia é fazer as malas, levando tudo o que eu puder da casa. Isso, contudo, não deve ser tão difícil, já que o guarda-roupa e os pertences de Victor não são iguais aos de uma pessoa normal. Ele não tem uma “gaveta de cacarecos” onde joga vários itens que vão ficar lá, sem serem usados, pelo resto da vida. Os armários não são cheios de caixas velhas de sapatos e pilhas de documentos guardados só por segurança, ou roupas que ele não veste há cinco anos. Os armários da cozinha não são cheios de jogos caros de porcelana que só são retirados do lugar nos feriados e em ocasiões especiais. Não há retratos de família pendurados em uma bela fileira na parede do corredor, nem enfeites organizados em uma estante, recebidos de pessoas importantes, dos quais ele não consegue se desfazer por razões sentimentais. Algumas caixas devem bastar. Os ternos dele. Minha coleção cada vez maior de roupas, perucas, joias, maquiagens e um zilhão de sapatos. Parece que vou encaixotar só as minhas coisas.
Aperto um botão no controle remoto e a TV de LCD da sala ganha vida. Deixo em um dos canais de notícias só para fazer barulho de fundo. O sol atravessa a porta de vidro que emoldura a vista do Novo México atrás da casa. Observo a paisagem só por um momento, sentindo que preciso mudar de ares. Depois de passar a maior parte da minha vida no México, rodeada de areia, árvores retorcidas, grama seca e calor... bem, fico feliz em me mudar. Victor disse que a nova casa vai ser em Washington ou Nova York. Qualquer uma das duas cidades está ótima para mim, ambas bem diferentes daquilo com que estou acostumada.
Vou saber com certeza amanhã.
Tomo um café da manhã simples, um ovo mexido e uma fatia de torrada acompanhados por um copo de leite. Faço meus exercícios matinais e tomo um banho rápido, vestindo um short preto e um top apertado de algodão da mesma cor. Prendo o cabelo em um rabo de cavalo, separo em duas metades e puxo, para deixá-lo mais firme. De pé diante do enorme espelho do banheiro, começo a me maquiar, mas percebo que estou com muita preguiça para isso no momento e volto a cuidar da mudança. Enquanto pego os ternos de Victor do armário, um por um, e os guardo em capas compridas com zíper, sinto alguma coisa sob a minha mão ao ajeitar uma manga sobre o peito do paletó. Afasto a manga na cama e desabotoo o paletó. Enfio a mão no bolsinho interno e pego um pequeno envelope. É meio grosso, mais ou menos 1 centímetro.
Antes de tirá-lo todo do bolso, penso em guardá-lo de novo, minha consciência me dizendo que aquilo não é da minha conta. Mas olho mesmo assim.
O envelope está velho e surrado, com as bordas esgarçadas e amarelado. É pequeno, mais quadrado do que retangular, e deveria ser de algum cartão de aniversário ou convite. Há fotografias dentro. Fotografias antigas. Tiro a aba de dentro do envelope e o abro, despejando a pequena pilha na mão. A primeira foto é de um homem de cabelo claro e queixo forte. Ele usa camisa branca e gravata marrom. Está sentado em uma poltrona de couro, rodeado por paredes revestidas com um papel cafona que imita tapeçaria. Um garotinho de cabelo castanho e uma menina ainda mais nova com cabelo louro bem claro estão de pé ao lado dele, dando um sorrisão para a câmera.
A foto seguinte é também do menino e da menina, posando com uma mulher loura, de cabelo longo e ondulado, linda, ao ar livre, no que parece ser um parque.
Todas as fotos são velhas, alaranjadas e com rachaduras nas bordas, onde elas foram dobradas ao longo dos anos. Olho cada uma delas e leio o verso. Versalhes, 1977; Paris, 1977; e Versalhes, 1976, rabiscados no canto esquerdo e quase ilegíveis, pois a tinta começou a desbotar. Nas fotos seguintes, o menino está mais velho, talvez com uns sete ou oito anos, e está de pé com o braço sobre o ombro de outro menino. Munique, 1981, e Berlim, 1982. Meu coração afunda quando me dou conta de que todas aquelas fotos são de Victor e Niklas, com quem acredito serem seu pai e a mãe de Victor. A menina deve ser uma irmã.
Parte meu coração saber que ele carrega essas fotos assim. É mais uma prova de que Victor não é desprovido de emoções, de que no fundo de sua alma há um homem que ficou escondido do mundo, forçado a carregar as únicas lembranças da infância dentro de um bolso.
É a prova de que ele é humano, um ser humano perdido e traumatizado que quero desesperadamente curar.
Viro a cabeça ao ouvir passos dentro da casa.
Deixo as fotos na cama e pego a 9mm do criado-mudo, tirando o pente para verificar se está cheio. Insiro o pente na arma de novo e, descalça, corro em silêncio pelo quarto, com as costas coladas na parede, na direção da porta. Mantenho a arma na altura da cabeça, segurando-a com as duas mãos, e paro para escutar. Nada. Quer dizer, nada além da porcaria da televisão, que me arrependo de ter ligado.
Começo a achar que só pode ser Fredrik, mas não vou me arriscar.
Ainda com as costas na parede, contorno o batente e vou para o corredor ao ver que está vazio. Uma sombra se move no piso de terracota na outra extremidade do corredor, e eu fico imóvel. Sinto o coração pulsar nas pontas dos dedos, coçando para apertar aquele gatilho com toda a força. Continuo imóvel, com gotículas de suor surgindo na nuca, e fito o chão por um longo momento, sem piscar, temendo perder algum outro movimento. Ouço os passos de novo, mais distantes desta vez, e ando com cuidado pelo corredor na ponta dos pés.
Ao chegar perto do fim, paro a centímetros do canto e encho os pulmões de ar. Expiro devagar e em silêncio antes de prestar atenção de novo. As vozes do noticiário falando sem parar sobre o “Obamacare” me dão nos nervos, pois se sobrepõem a quaisquer vozes ou passos que eu poderia ouvir e saber de que direção estão vindo.
Finalmente, ouço vozes murmurando:
— Verifique os quartos — diz um homem. — Ela deve estar escondida debaixo de uma cama ou dentro de um armário.
Não, babaca, estou esperando que você venha pelo corredor para meter um tiro na sua cara.
Um homem de terno preto surge no canto, de arma em punho, e eu atiro no mesmo instante em que ele aparece no fim do corredor. O tiro ecoa nos meus ouvidos, e o homem cai no chão, o sangue esguichando do ferimento na lateral do pescoço. Ele tosse e sufoca, tentando cobrir o ferimento com as mãos, agora cobertas de sangue.
Dou a volta no corpo dele, ignorando os perturbadores sons de gargarejo que ele faz, e viro a quina da parede, atirando mais três vezes. Consigo atingir mais um homem antes que uma dor cegante atravesse minha nuca. Enquanto caio, vejo o segundo homem em quem atirei caindo à minha frente. E vejo Stephens, de pé ao lado do cadáver, em toda a sua glória altiva e sombria. Minha arma não está mais em minhas mãos, e estou tão desorientada pelo que bateu na minha nuca, seja lá o que for, que demoro um pouco para me dar conta de que estou deitada no chão frio, com a bochecha encostada em uma fenda do assoalho. Apalpo minha nuca e sinto sangue nos dedos quando toco o cabelo.
Stephens se agacha ao meu lado, com um sorriso ameaçador criando rugas profundas ao redor de sua boca dura. Seu cabelo grisalho parece mais escuro, ele parece maior, a covinha no centro de seu queixo, mais pronunciada. Ele me olha de cima, apoiando os cotovelos nas coxas, com as mãos enormes relaxadas entre as pernas, o pulso direito adornado com um grosso relógio de ouro. Ele tem um cheiro forte de colônia e charutos.
— Você é difícil de achar, garota — observa Stephens.
— Vai se foder — digo, tão casualmente quanto se estivesse comentando que o tempo está bom.
Stephens abre um grande sorriso com a boca fechada, e é a última coisa que vejo antes que tudo fique preto.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Sarai
Acordo devagar com um zumbido baixo e profundo, bem acima de mim, acompanhado por um som rápido e constante de vento. Minha visão está embaçada e enxergo apenas uma luz fraca e acinzentada, que de início se curva e se distorce ao atingir meus olhos. O ar parece muito úmido, as costas da minha camiseta e o espaço entre os meus seios e minhas axilas estão empapados a ponto de me fazerem sentir um calafrio terrível quando a brisa estranha me atinge. Minhas mãos estão amarradas atrás das costas, como amarrei as mãos de Izel quando ela veio atrás de mim depois que fugi no carro de Victor. Penso nela por um momento, no modo como ela olhou para mim naquele dia, como seu cabelo escuro e suado grudava no rosto. Imagino que eu deva estar parecida com ela agora, só que meu cabelo ainda está preso em um rabo de cavalo.
Logo percebo que meus tornozelos também estão amarrados.
Forço meus olhos a se abrirem completamente e luto para pôr minha visão em foco. Estou sentada em uma cadeira no meio de uma sala enorme, escura e empoeirada, em uma espécie de galpão velho.
Rio por dentro, pois vejo o rosto de André Costa na cabeça, como ele estava naquele galpão em Nova Orleans.
Tudo o que vai volta, suponho. E a vingança por todas as mortes que causei ou das quais participei está chegando mais cedo do que eu esperava.
A brisa estranha e o som de vento acima de mim, percebo agora, estão vindo de um grande ventilador industrial construído na parede, perto do teto alto. As paredes são feitas de concreto, e o teto de trilhos de metal que vão de uma ponta à outra é sustentado por pilastras compridas também de concreto. O lugar tem um cheiro forte de solvente, cola e outros produtos químicos que fazem mal aos pulmões.
Minha garganta está tão seca que dói. Meu primeiro impulso é pedir água, mas, assim como soltar a corda que prende meus pulsos e tornozelos, sei que nada que eu pedir será concedido.
Olho para baixo, sinto o peito dos pés ardendo e vejo que a pele dos dedos dos pés está dilacerada, indicando que em algum momento devo ter sido arrastada.
Passos ruidosos, como de solas duras, ecoam pelo espaço amplo quando Stephens se aproxima de mim.
Prendo um riso do ridículo daquela situação.
— Posso perguntar o que é tão engraçado? — indaga Stephens, com sua voz grave e também parecendo achar graça.
Sorrio em desafio quando ele para diante de mim, com as mãos nas costas.
— Pensei que você e aquele maluco de merda para quem você trabalha queriam me matar. — Eu rio. — Isto aqui é um pouco exagerado, não acha? — Abro um sorrisinho para ele.
Stephens dá um sorriso frio que imediatamente me lembra a expressão no rosto de Fredrik quando ele prendeu André Costa naquela cadeira de dentista. Em vez de responder, Stephens vira para a direita e vê outro homem se aproximar, trazendo uma cadeira. As pernas de madeira raspam um pouco no concreto quando ela é colocada no chão, ecoando pelo pequeno espaço que nos separa. Stephens se senta, ajeitando de maneira despreocupada seu belo terno preto, puxando a lapela e espanando uma poeira invisível da perna.
— É sério isso? — pergunto, balançando a cabeça. — Deixe eu adivinhar... Hamburg ainda quer seu showzinho. Não conseguiu comigo e com Victor no quarto dele na mansão. Não conseguiu com o guarda-costas dele no escritório do restaurante. A propósito, fiquei feliz em saber que aquele merda morreu. Era seu amigo? — Meu sorriso fica mais evidente.
Os olhos de Stephens sorriem. Ele cruza a perna e põe as mãos com delicadeza no colo. É muito enervante como ele parece calmo e imune às minhas palavras. Mesmo assim, não deixo que ele perceba que isso me incomoda.
— Acredite, Izabel, Sarai ou qualquer que seja o seu nome, se dependesse de mim, eu teria matado você naquela casa, em vez de trazê-la para cá.
— É claro, você é só o criadinho dele, ajoelhado aos pés de Hamburg, esperando que ele peça o próximo boquete.
O teto surge no meu campo de visão por um instante quando alguém puxa meu cabelo, meu pescoço tão forçado para trás que não consigo respirar. Outro homem está de pé atrás de mim, olhando nos meus olhos arregalados. Tento engolir, mas não consigo. Começo a engasgar e tossir, em vez disso.
— Pode soltar — ouço Stephens dizer.
O homem me solta e minha cabeça cai para a frente. O peso do meu corpo faz a cadeira tremer e balançar um pouco até se estabilizar. Fico aliviada por conseguir respirar de novo. Levanto a cabeça e fuzilo Stephens com o olhar enquanto ele continua sentado diante de mim, a apenas meio metro. Começo a correr os olhos pela sala procurando uma saída, tentando formular um plano que sei que jamais vai se materializar. Mesmo se eu tivesse alguma chance de sair desta sala, não sei como poderia me soltar das amarras. Meus pulsos estão tão presos que a circulação parece ter sido cortada. As fivelas nos meus tornozelos estão muito apertadas também, mas sinto que posso movê-los um pouquinho, esmagando-os nas pernas da cadeira. Mas não vou a lugar nenhum. A não ser para o inferno, talvez, e logo.
Não tenho medo de Stephens, não tenho medo do que ele vai fazer comigo. Não tenho medo de ser torturada. Só tenho medo do quanto vai durar.
— Por que você não acaba logo com isso? — sugiro, com rispidez, ódio e vingança evidentes na voz. — Não ligo para o que você vai fazer comigo, ou para o que Hamburg vai fazer, então ande logo.
— Ah, mas você não está aqui por causa de Hamburg. — Stephens abre um sorriso de gelar o sangue. — E, não, eu não quero que isto acabe. — Ele se inclina para a frente, aproximando seu queixo quadrado de mim. Sinto o cheiro de sua loção pós-barba. — Espero que você não fale ao menos por alguns dias, porque estou muito ansioso para passar esse tempo com você.
Engulo meu medo de saber o que essas palavras significam: que ele vai me torturar e por muito tempo. Tento amenizar a preocupação, torcendo para que ele não detecte o menor sinal de pavor no meu rosto.
— O que eu poderia saber que você precisasse me fazer revelar, afinal? — Rio, desafiando-o. — E que loção é essa? Fede como se você tivesse mergulhado de cabeça no meio das coxas de uma viciada em crack.
Os olhos de Stephens se movem para a pessoa atrás de mim, estreitando-se, e percebo que ele acaba de impedir o homem de puxar meu pescoço para trás de novo, ou talvez de me dar um tapa. Ele ignora meu insulto.
Stephens se reclina na cadeira de novo. E não diz nada. Odeio isso. Preferiria que ele andasse ao meu redor fazendo um monólogo canastrão a não dizer absolutamente nada. E acho que ele sabe quanto isso me incomoda. A expressão satisfeita dos seus olhos me confirma isso.
— Ok, então, se eu não estou aqui por causa de Hamburg, qual é o motivo?
Outros passos atrás de mim atravessam a sala. Tento olhar para trás, mas não consigo esticar muito o pescoço.
Enfim a figura dá a volta e consigo vê-la.
— Você está aqui por minha causa — afirma Niklas, jogando uma bituca de cigarro no chão e apagando-a com sua bota de couro preta.
Suspiro sem fazer ruído. Meu corpo todo fica rígido na cadeira. Procuro me concentrar na minha respiração, tentando recuperar o controle do meu corpo, mas por um longo tempo não sou nada mais do que uma casca imóvel.
— Niklas... — digo enfim, mas não consigo falar mais nada.
A raiva assoma dentro de mim, e minha necessidade de matar Stephens de repente é ofuscada pela necessidade de dizer a Niklas tudo o que está entalado na garganta.
Diferente de Stephens, Niklas não sorri nem sente a necessidade de me atormentar com ameaças. Sinto algo diferente nele, algo muito mais sombrio do que em Stephens, algo mais ameaçador do que as palavras podem descrever. Olhando aquele homem alto de cabelo castanho-claro arrepiado, os olhos azuis ferozes emoldurados por um rosto perfeitamente redondo, porém bonito, vejo alguém mais afeito à vingança do que eu jamais conseguiria ser.
E, por fim, fico apavorada.
Niklas chega mais perto até ficar bem na minha frente, sem se importar com a proximidade. Stephens ficou pelo menos meio metro longe de mim, como se temesse que eu pudesse cuspir nele, ou me soltar e agarrá-lo. Mas Niklas, não. Sinto que ele está me desafiando a me mexer. Ele quer que eu tente algum movimento.
Engulo em seco, empino o nariz de forma arrogante e tento continuar forte para encarar meu destino.
— Você sabe o que eu quero — diz Niklas, com uma voz tranquila e o mesmo sotaque alemão, ainda evidente na voz. — Ou precisamos discutir a questão em detalhes? — Ele inclina a cabeça para o lado.
Ele se parece tanto com Victor que me pergunto como podem ser tão diferentes por dentro.
— Você vai ter que explicar. É sobre o Victor? — Olho rapidamente para Stephens. — Esse merda estava na casa dele agora há pouco. Você já sabe onde encontrar o Victor. E não que isto me surpreenda muito, mas o que você está fazendo com eles?
Flagro Stephens olhando para Niklas, que, no entanto, não tira os olhos de mim. Ele se agacha na minha frente, no meio das minhas pernas abertas, e me olha com um rosto tão calmo e ameaçador que sinto um calafrio percorrendo a nuca. Dá para sentir o cheiro do couro de sua jaqueta preta e o fraco odor de fumaça de cigarro que persiste na camisa cinza-escura que ele usa por baixo.
— Estou procurando Victor há meses — começa Niklas, e ouço com atenção, mantendo os olhos grudados nele. — Ele sem dúvida contou a você que saiu da Ordem, que traiu a mim, a Vonnegut...
Arregalo os olhos e meu queixo cai em um ofegar.
— Traiu você? — interrompo, incrédula. — Não pode estar falando sério. Você traiu Victor! Foi você que...
Ele estende as mãos fortes e aperta com firmeza minha garganta, me fazendo engasgar e tossir. Eu me agito na cadeira, incapaz de erguer as mãos para tentar tirar as dele. Meus olhos viram para cima quando ele aperta mais forte.
Ele me solta.
Ofego e tento recuperar o fôlego, com os cantos dos olhos molhados por lágrimas de exaustão e dor. Estou apavorada, mas não o suficiente para chorar ou implorar pela minha vida. Prefiro morrer a implorar por qualquer coisa.
— Meu irmão me traiu muito antes de sair da Ordem — diz Niklas, com um pouco mais de emoção na voz do que antes: ressentimento. — Ele me traiu quando se voltou contra tudo o que acreditávamos e ajudou você. Ele me traiu quando mentiu para mim sobre ajudar você. Ele mentiu, Sarai, porque sabia que isso era errado. — Niklas fica na ponta dos pés, pondo-se a poucos centímetros do meu rosto. — Ele quase me matou por sua causa. E ia me matar, se você não tivesse impedido. Foi ele quem me traiu!
Minhas mãos começam a tremer nos braços da cadeira. Meu coração está no meu estômago, revirando-se, perdido e apavorado. Não posso negar, o que Niklas disse é verdade.
Não posso negar...
Ele se afasta alguns centímetros até eu não conseguir mais sentir seu hálito de pasta de dente, mas ainda está muito perto. Um quilômetro seria perto demais.
— Niklas — digo, em uma voz um pouco desesperada, só o suficiente para convencê-lo a me ouvir. — Victor só ia matar você porque era errado me matar. Você não entende? Ele teria feito isso por qualquer um. Não só por mim.
Um sorrisinho aparece em um canto de sua boca, e fico ao mesmo tempo intrigada e preocupada com o significado disso. Niklas fica de pé, vira de costas para mim e se aproxima de Stephens. E então se vira de novo.
— Você não conhece meu irmão tão bem quanto imagina. Não, ele não teria feito isso por qualquer um. Parece que meu irmão é humano, no fim das contas, com isso de ter se apaixonado por você e tudo o mais.
Balanço a cabeça e desvio o olhar.
— Por que eu estou aqui, Niklas? Diga logo o motivo de ter me trazido para cá. Não vou mais lhe dar o prazer da minha conversa.
Stephens se levanta da cadeira, parecendo um gigante perto de Niklas. Ele é bem alto, com ombros largos e cabeça grande e quadrada.
— Detesto admitir — diz Stephens —, mas concordo com essa puta. Vamos logo com isso. — Ele me olha com frieza. — Você está viva porque Niklas precisa de você primeiro, mas quando ele terminar eu vou meter uma bala nessa sua cabecinha linda, cumprindo meu contrato com Arthur Hamburg.
Olho para Niklas.
— Você precisa de mim para quê? — Há veneno na minha voz.
— Você vai me contar tudo o que sabe sobre o meu irmão e sua nova... organização. Quero saber os nomes dos associados, a localização de todos os abrigos e quem toma conta deles. — Noto dentes rangendo atrás das bochechas. — E quero saber até que ponto Fredrik Gustavsson está envolvido nos negócios de Victor.
Balanço a cabeça.
— Bom, antes de mais nada, quem é esse Fredrik Gustavsson? Segundo: eu não sei nada sobre a organização de Victor, seja lá o que isso significa. Ele me disse que saiu da Ordem, sim. E me disse que você o traiu ao continuar na Ordem e aceitar a missão de Vonnegut para matá-lo. Mas não me contou mais nada. Ele disse que era melhor eu não saber.
Os olhos de Niklas se abrandam com um sorriso tênue. Sem mover a cabeça, ele olha para o homem atrás de mim. De repente, a cadeira é puxada, meus pés saem do chão e sinto como se estivesse caindo para trás. Por instinto, lanço meu corpo para a frente quanto posso para evitar que minha cabeça bata no chão de concreto atrás de mim. Sou arrastada pela sala; para onde, acho que não quero saber.
Tudo para. Os pés dianteiros da cadeira voltam a atingir o chão, e então mais três homens, além daquele que me arrastou, seguram meus braços e pernas. Eles começam a me desamarrar, mas, assim que as amarras se soltam, eles me seguram com firmeza pelas mãos e pés. Por mais que lute para me desvencilhar, não consigo me mexer.
— ME SOLTEM! — Esperneio e contorço o corpo, tentando atingi-los com pontapés, arrancar meus braços de suas mãos. — NIKLAS! ME SOLTA!
Ele não responde. Fica ali, no azul-acinzentado do prédio empoeirado, ao lado de Stephens, enquanto meus braços são forçados acima da cabeça e amarrados de novo pelos pulsos com correias de couro penduradas do teto. O mesmo acontece com meus tornozelos. Ouço um rangido e o som da estrutura à qual estou amarrada se encaixando, antes que minhas mãos sejam esticadas bem acima de mim e meus pés descalços sejam erguidos do chão.
— PUTA QUE PARIU! EU VOU MATAR TODOS VOCÊS! ME SOLTEM! — Cerro os dentes com tanta força que sinto uma pontada de dor no maxilar inferior.
Niklas está de pé na minha frente de novo. Não o vi se mover, estava ocupada demais tentando atingir o homem mais próximo à minha esquerda.
— Por que você está trabalhando com eles? — grito na cara de Niklas. — Explica isso! Achei que você trabalhasse para Vonnegut!
Niklas junta as mãos atrás das costas.
— Se quer mesmo saber, tudo bem. Eu conto.
Ele anda de um lado para outro diante de mim e para no mesmo lugar. Mas não consigo deixar de notar Stephens no fundo, o brilho de uma lâmina prateada em sua mão. Ele continua pronto, segurando um punhal na altura do quadril com a expressão de quem está louco para me atacar.
— Quando eu descobri o que aconteceu em Los Angeles, sabia que, se você ainda estivesse viva, Hamburg ia querer garantir que isso não durasse muito tempo — começa Niklas. — Você escapou. Não havia sinal de você no restaurante, nem entre os corpos que foram encontrados no hotel. — Uma imagem do rosto de Eric e Dahlia atravessa minha mente como um soco no estômago. — Você escapou e eu sabia que devia ser porque Victor a ajudou. De repente, Hamburg, Stephens e eu tínhamos algo em comum. Eu queria encontrar o meu irmão. Eles queriam encontrar você. Eu sabia que vocês estariam juntos, então eis o denominador comum.
Meus pulsos erguidos pelas correias já estão doendo, o peso do meu corpo põe muita pressão sobre eles. Sinto meu rosto repuxando enquanto ele fala.
— Por que você não podia achar o Victor sozinho? — pergunto, tentando disfarçar meu desconforto. — Ou por que eles não podiam me achar sem a sua ajuda?
— Eles tinham informações sobre você que eu não tinha — explica Niklas. — Estavam vigiando você havia meses, desde a noite em que você e Victor saíram da mansão.
Rio alto, jogando a cabeça para trás.
— Isso é uma mentira de merda. Se for verdade, por que eles não me mataram antes?
Stephens se aproxima por trás de Niklas.
— Porque Victor Faust ameaçou Arthur Hamburg naquela noite — conta Stephens. — Ele não quis fazer nada que provocasse um novo ataque de Victor Faust. Eu vigiava você só por segurança. Sabia onde você morava, pois é fácil encontrar e seguir uma pessoa que sai de um hospital de Los Angeles depois de levar um tiro. E sabia onde você trabalhava. Com quem andava. Os lugares que frequentava. Pesquisei o passado de Dina Gregory e descobri tudo o que havia para saber sobre a família dela. Também não foi difícil localizá-la, mais tarde.
Meu nariz e minha boca se retorcem em um rosnado.
— Isso ainda não explica por que vocês se juntaram para nos encontrar — observo, com frieza, pensando mais no que ele estava dizendo sobre Dina. E a verdade é que não me importa muito por que eles estão trabalhando juntos. Só estou tentando enrolá-los, prolongando a conversa pelo maior tempo possível.
Stephens e Niklas trocam de lugar, e então Stephens se aproxima de mim. Ele segura a lâmina entre os dedos diante dos meus olhos, para que eu a veja e me sinta intimidada por ela.
Ele me encara de lado, estreitando os olhos.
— Você deve se lembrar do que Victor Faust fez com a mulher de Arthur Hamburg. Com certeza não acha que ele ia simplesmente esquecer isso. — Stephens se curva mais para perto do meu rosto, e seu hálito de vinho barato e charuto me deixa zonza de nojo. — Meu empregador quer ver Faust morto desde a noite em que ele matou a sra. Hamburg. Nós sabíamos onde você estava o tempo todo, mas não fazíamos ideia de onde Faust estava e não tínhamos motivos para crer que você soubesse. E com certeza não sabíamos que ele dava a mínima para você. Acho que ele não se importava, na verdade, caso contrário jamais teria deixado você sozinha daquele jeito. — Um sorriso provocador surge em seu rosto.
Quando ele se afasta, lanço a cabeça para a frente, esperando acertá-lo com os dentes, mas ele foge do meu alcance rápido demais. Fecho os dedos ao redor das correias acima de mim e ergo o corpo por um momento para aliviar a pressão nos meus pulsos. Caio de novo com violência, agitando a estrutura.
Niklas sorri.
Cuspo nele, mas não chego nem perto de atingi-lo.
— Eles não conseguem encontrar Victor sem mim — diz Niklas. — E eu não consigo encontrá-lo sem você. — Ele chega perto de mim de novo, e, embora saiba que conseguiria cuspir nele sem errar, não o faço. A expressão daqueles olhos azul-escuros me deixa submissa de medo. — Por isso entramos em um acordo. Eles me ajudam a encontrar você e eu mato meu irmão para eles.
— VAI SE FODER! — Jogo a cabeça para trás e lhe dou uma cabeçada na testa. A dor penetra minhas têmporas e meu maxilar, e minha visão fica embaçada por um momento.
Niklas se afasta de mim, claramente atordoado pelo golpe, mas não revida. Ele se vira para Stephens, e é este quem faz as honras. Começo a espernear quando ele se aproxima de mim com o punhal.
— Willem — chama Niklas, atrás dele, em um tom estranhamente despreocupado.
Stephens não se vira para olhá-lo, mas para.
— Eu preciso dela viva — afirma Niklas. — Lembre-se disso. Lembre-se do nosso acordo. Eu descubro o que preciso saber, e depois você pode fazer o que quiser com ela.
Balanço a cabeça e rio deles sem emitir som.
— Eu não vou contar nada para você — digo, com rispidez. — Você não vai conseguir me dobrar, seu merda. Você acha que consegue, mas está muito enganado. Você nem faz ideia. — Minha voz está calma, o que me surpreende.
— Bom, isso nós vamos ver — rebate Niklas.
Ele gira sobre os calcanhares e se afasta, o som de seus sapatos pisando no concreto ecoa pelo galpão e some quando ele desaparece do outro lado de uma porta de metal.
O sorriso de Stephens está maior, agora que Niklas foi embora.
E acabo de ficar com mais medo dele.
CAPÍTULO VINTE E SEIS
Victor
Dois dias depois...
Da tela do laptop, a imagem congelada do rosto suado e ensanguentado de Sarai me encara. Assisti milhões de vezes ao vídeo em que Stephens aparece batendo nela e meu irmão tenta em vão fazê-la falar. É uma agonia ver Sarai desse jeito, observar aquele homem, que logo estará morto, machucando-a. É uma agonia também não poder fazer nada a respeito.
Ainda não.
— Ela não vai falar — diz Fredrik, atrás de mim, com uma profunda preocupação com o bem-estar de Sarai em suas palavras.
Ele está à porta do escritório da minha casa em Albuquerque, agora livre dos cadáveres depois que demos um jeito neles. Eu me recuso a abandonar esta casa. Se Stephens me quiser, pode mandar seus homens para cá à vontade. Meu irmão, por outro lado, quer informações primeiro, e todos eles sabem que não conseguirão isso de mim.
— Victor — chama Fredrik de novo, com urgência e até certa súplica. — Você precisa fazer alguma coisa. A gente não pode ficar parado aqui. Eles vão matar Sarai.
— Não tem nada que a gente possa fazer — repito, pois já expliquei isso para ele. E, por mais que me machuque fazer isso, explico tudo de novo. — Não faço ideia de onde ela esteja, Fredrik. Niklas não vai revelar a localização deles enquanto não obtiver a informação que quer. Conheço o meu irmão. Ele é esperto. Não vai arriscar me enfrentar. Não desse jeito. Vonnegut quer mais do que a minha cabeça, ele quer informações. Niklas vai tirar o que precisa de Sarai, e depois me mandar outra mensagem me dizendo onde encontrá-la. Irei atrás dela, e ele sabe disso. E aí ele vai me pegar. Vai ter a mim e todas as informações sobre você, sobre a nossa operação e sobre os nossos contatos.
— E daí?!
Eu me levanto da cadeira da escrivaninha, fazendo-a deslizar pelo chão e bater na parede mais próxima.
— VOCÊ ACHA QUE EU ESTOU GOSTANDO DISSO? — Aponto para ele e depois para o chão.
Me acalmo, controlo a respiração e olho para meu reflexo impreciso nos meus sapatos pretos de verniz.
— Victor, eu não entendo. Por que você não dá a eles o que querem?
Não entendo por que Fredrik, o mestre dos interrogadores, queira tanto que Sarai fale, que sua preocupação com ela esteja me revelando outro lado dele.
Isso também me preocupa.
— Não é tão simples assim. — Levanto os olhos para ele. — Mesmo se eu contar a Niklas o que ele quer saber, Sarai vai morrer. Aliás, ela vai morrer muito antes se eu ceder, se eu entregar você e todos os envolvidos na nossa operação. Quanto mais ela resistir, e quanto mais eu resistir, mais ela vai viver. Até eu pensar no que fazer.
Fredrik se apoia no batente da porta, cruzando os braços. Ele suspira.
— Mas já faz dois dias. Ela não vai aguentar muito mais tempo.
— Ela vai aguentar — digo, confiante.
Eu me viro e olho para o vídeo pausado na tela, as pontas dos meus dedos apoiadas na borda da escrivaninha.
— Então como a gente vai encontrar Sarai?
Olho para o rosto dela por um momento longo e tenso, então fecho o laptop.
— Eu vou encontrá-la.
Sarai
O fedor da minha urina no chão, no canto desta sala escura onde estou trancada há dois dias, está se tornando insuportável. Eu me deito no concreto frio e sujo, com a bochecha apoiada no chão áspero e granulado. Minhas costas ardem, queimam como se as feridas infligidas pelo chicote que Stephens usou para me bater estivessem infeccionando. Aconteceu na noite passada, quando Niklas me deixou sozinha nesta sala. Quando ele voltou, Stephens já tinha me espancado tanto que desmaiei por um tempo com a dor e acordei deitada em uma poça de vômito. Ouvi Niklas e Stephens discutindo fora da sala, do outro lado da porta alta de metal. Niklas não aprovava o modo como Stephens estava me tratando e deixou isso claro.
— EU PRECISO DELA VIVA, PORRA! — gritou Niklas com Stephens. — VOCÊ VAI MATAR SARAI, BATENDO TANTO ASSIM!
Odeio Niklas pelo que ele fez. Comigo. Com Victor. Pelo que está fazendo agora, mantendo-me neste lugar. Mas uma pequena parte de mim está grata por ele não tolerar a brutalidade de Stephens. Não importa, para mim, que ele só esteja sendo intolerante porque me quer viva para revelar informações. Aceito qualquer ajuda que vier.
Ouço o trinco deslizar na porta de metal da minha cela. A porta se abre, raspando um pouco no chão.
Niklas entra. Está trazendo um prato de comida e uma garrafa de água. Outro homem fecha a porta e a tranca.
— Nem se incomode — digo do meu lugar no chão, quando ele se aproxima. — Já que você não me mata nem deixa Stephens me matar, talvez eu morra mais rápido de desidratação.
Niklas põe a comida no chão ao meu lado. Levanto o corpo do chão e a jogo longe com um tapa. Apoiando as mãos na parede, eu me sento, tentando não apoiar as costas por causa dos ferimentos. Minhas costelas também doem. E meu pulso esquerdo. Meu lábio inferior parece inchado. Sinto gosto de sangue na boca. Metálico. Nojento.
— Por que não fala de uma vez? — sugere Niklas, com ar de resignação. Ele está cansado de tudo isso, do tempo que está perdendo. — Você pode encerrar esta noite agora mesmo, é só me contar o que eu quero saber.
Não digo nada.
Niklas se senta no chão diante de mim. Ele sabe que estou fraca demais para resistir. Já tentei, e isso só tornou a dor nas costelas e nas costas mais insuportável.
— É melhor eu olhar as suas costas — sugere ele.
— Por que você se importa, caralho? Ah, esqueci, porque precisa descobrir o que eu sei. — Inclino a cabeça para perto dele, com os olhos cheios de um ódio inabalável. — A verdade é que eu sei tudo. Sei com quem Victor está envolvido, quem está ajudando, onde ficam seis abrigos dele. Sei tudo, Niklas, e não vou contar nada!
Faço uma careta e cubro as costelas com os braços quando uma pontada de dor atravessa meu corpo.
— Muito bem. — Ele fica de pé.
Ele vai até a comida, coloca tudo de volta no prato (um sanduíche destruído, alguns picles e um punhado de batatas fritas) e pega a garrafa d’água do chão. Ele volta e coloca tudo perto dos meus pés.
Então se agacha na minha frente.
— Ele não vem salvar você, Sarai — afirma Niklas, com tranquilidade.
Estendo o braço com o pouco de força que me resta para agarrá-lo, mas paro de repente, querendo ouvir o que ele tem a dizer. Não importa que eu não vá acreditar. Quero ouvir mesmo assim.
Seus olhos azuis parecem se suavizar.
— Mandei dois vídeos de você para o meu irmão. Dei a ele a localização de onde estamos, disse onde você estava. Era uma chance de se entregar. De revelar as informações. Mas ele não respondeu. — Então Niklas abre a mão, com a palma para cima, e mostra a sala com um gesto enquanto apoia os braços nas pernas. — E você pode ver que ele não está aqui. Dois dias e nada. — Ele baixa a mão. — Victor não vem salvar você. Quer saber por quê? Vou contar. Porque o trabalho sempre vai ser a prioridade na vida dele. Ele nunca vai cometer os mesmos erros que Fredrik Gustavsson cometeu por causa de uma mulher.
Levanto o queixo.
— Ah, mas isso não é verdade — digo, com desdém. — Ele traiu você por minha causa, lembra? Você mesmo disse isso. Saiu da Ordem por minha causa. Ele quase matou o próprio irmão por minha causa. Lembra, Niklas? — Cutuco a ferida, fitando seus olhos furiosos enquanto tento resistir à dor física.
Niklas abre um sorriso malicioso.
— Sim, ele fez tudo isso. Mas eu via no meu irmão o desejo de se libertar de Vonnegut bem antes de você entrar na vida dele. E ele não está mais na Ordem agora. Está livre de tudo, e, sim, você foi uma parte importante disso, do motivo para ele sair. Você deu o empurrão de que ele precisava, acho. — Ele volta a me olhar com uma expressão severa. — Mas você não vê o que não mudou? Pense, Sarai. Em vez de se libertar de uma vida de assassinatos, como qualquer um em seu juízo perfeito faria, como qualquer um que tivesse uma consciência faria, ele cria sua própria Ordem. Ainda pensa apenas no trabalho. Apenas em matar para ganhar a vida. Porque é só o que ele sabe fazer, e nunca vai aprender outra coisa. — Niklas balança a cabeça para mim, como se sentisse pena da minha ignorância por não ter visto as coisas que ele viu.
Desvio o olhar.
Uma parte de mim, uma parte envergonhada e culpada, não consegue deixar de acreditar nele, no fim das contas.
Niklas se levanta novamente.
— Acredite no que quiser, Sarai — continua ele, baixinho. — Mas você sabe tão bem quanto eu que, se ele viesse salvar você, já teria chegado.
Niklas vai até a porta de metal, bate duas vezes e o homem do outro lado abre. Ele sai e eu fico no escuro de novo, rodeada por paredes escuras, um teto escuro e pensamentos escuros, que estão partindo meu coração em mil pedaços minúsculos.
Não importa.
Se as coisas que Niklas me disse são verdade e Victor não vier me buscar, mesmo assim vou morrer sem contar nada.
Vou morrer aqui.
CAPÍTULO VINTE E SETE
Sarai
Terceiro dia
Estou recusando comida e água há quase 63 horas. Só sei disso porque Niklas fica me lembrando. Estou fraca, meu corpo e minha mente estão exaustos. Stephens não me bate desde que Niklas o impediu da outra vez. É só por causa de Niklas que ainda estou viva. Afinal, ainda não revelei nenhuma informação. Apenas que ele é um babaca traidor que não merece o ar que respira. Já disse a ele muitas e muitas vezes que vou morrer antes de entregar Victor. Acho que ele sabe que é verdade, que eu não posso ser dobrada.
A não ser... Talvez por meus pensamentos.
Meus pensamentos são tudo o que tenho nesta prisão escura e úmida cujas paredes bloqueiam toda luz, à noite ou de dia, sem nenhuma janela e só uma porta de metal que não deixa passar nem uma nesga de luz por baixo. Aquela voz em minha cabeça, aquela à qual nunca damos ouvidos até que não sobre mais nada para silenciá-la, tem sido muito cruel comigo. Niklas tem razão e você sabe, a voz me diz. Já se passaram três dias, e se o que Niklas falou sobre Victor saber onde você está for verdade, por que ele não apareceu? Por que, Sarai, Victor não se entregou por você e não contou a Niklas o que ele quer saber para salvar a sua vida?
Grito a plenos pulmões no espaço vazio e confinado, levando as mãos à cabeça. Lágrimas de raiva escorrem dos cantos dos olhos. Meu cabelo está encharcado de suor. Meu short e meu top preto parecem colados à pele. Meus joelhos nus estão arranhados, minhas pernas, cobertas de sujeira. Minhas costas ardem sempre que me posiciono do jeito errado e as crostas que estão se formando sobre os ferimentos racham e começam a sangrar de novo. Fico deitada no chão, de lado ou de barriga para baixo.
Ouço o eco da porta de metal raspando no chão ao se abrir atrás de mim, mas nem me dou ao trabalho de me virar para ver quem é.
— Se você não vai beber — ouço Niklas dizer, de pé ao meu lado —, então vou forçar a água na sua garganta.
Sou levantada do chão imundo de concreto para os braços dele e carregada para fora da sala. Não resisto. Não olho para ele enquanto sou carregada pelo corredor, mas a luz fluorescente do teto acima de mim é tão brilhante que faço uma careta e fecho os olhos. Em silêncio, aproveito o conforto do ar renovado que roça a minha pele. Sinto minhas pernas sobre os braços de Niklas, seu braço esquerdo segurando a minha nuca. Viramos à esquerda, depois à direita e descemos uma escada de metal.
Momentos depois, minha cabeça está sendo imersa em água e mantida ali.
Meu instinto me trai e abro a boca para gritar, tragando ainda mais água para meus pulmões. Meu corpo se retorce com violência, meus braços se agitam sem controle, tentando se segurar na borda grossa de plástico do recipiente onde estou sendo enfiada. Mas estou fraca demais para tirar a cabeça da água, e Niklas me segura ali com facilidade. A água queima na minha garganta e nos meus pulmões mesmo depois que consigo fechar a boca e prender a respiração. E no instante em que penso que vou me afogar, que enfim vou morrer e ficar em paz, Niklas ergue minha cabeça e a segura.
Meus instintos me traem mais uma vez e me fazem arfar em desespero por ar e tossir a água dos pulmões. Eu realmente preferiria morrer de uma vez e acabar logo com aquilo, mas meu corpo tem vontade própria, outra coisa que me vejo incapaz de controlar. Meu coração bate com tanta força que sinto meu peito roçando na borda de plástico do que reconheço ser um contêiner de 200 litros. Pingos caem do meu cabelo, da ponta do nariz, do queixo e dos cílios para a superfície da água, a poucos centímetros do meu rosto. Plop. Plop. Plop-plop. É surreal como isso é a única coisa que ouço.
— Quem está trabalhando com o meu irmão? — A voz de Niklas é controlada.
Não digo nada.
Ele segura um pouco mais forte o cabelo da minha nuca.
— Você foi vista com Fredrik Gustavsson em Santa Fé. Qual é o relacionamento dele com meu irmão? Eles estão conspirando contra a minha Ordem?
Nenhuma resposta.
Um fluxo de água atinge meu rosto quando ele empurra minha cabeça para dentro do contêiner. Minhas narinas e meu esôfago queimam como fogo quando a água é forçada para dentro de mim. Esperneio de novo, tentando agarrar qualquer coisa. Até que encontro a borda circular, mas ainda não tenho força suficiente para me empurrar contra as mãos de Niklas para fora da água.
Ele me puxa para fora de novo, eu engasgo, tentando respirar.
— Fale alguma coisa, Sarai. Qualquer coisa.
Estou fraca e exausta demais até para provocá-lo. Ainda assim, não digo nada, embora queira muito mandá-lo se foder.
Niklas só consegue uma coisa de mim antes de me carregar para fora da sala, vários minutos depois; engoli mesmo aquela água de que ele falou.
Quarto dia
Raios finos de sol, cheios de poeira, entram pelas janelas perto do teto do galpão, criando manchas de luz cor de marfim no chão à minha frente. Estou de volta à cadeira na sala maior, cercada por pilastras de concreto e aquele irritante ventilador industrial ininterrupto acima de mim. Meus pulsos e tornozelos não estão amarrados, mas seria desnecessário, pois mal consigo ficar de pé sozinha. Não estou completamente sem força física. Conseguiria andar se tentasse. Poderia jogar a cadeira para o outro lado da sala, embora só alguns metros, se quisesse. Mas não me importo mais.
Apenas não me importo mais.
Stephens está sentado diante de mim na mesma cadeira na qual esteve quatro dias atrás. Uma perna está cruzada sobre a outra e suas grandes mãos descansam sobre o joelho. Há uma expressão ameaçadora em seus olhos escuros e profundos; ela revela que ele está cansado de esperar. Que hoje é o dia. Que não importa o que eu diga ou deixe de dizer, não importa qual seja o acordo que ele tem com Niklas, hoje ele vai me matar.
Niklas entra no galpão por uma porta lateral, inundando-o por um instante com o sol forte da manhã. Ele havia saído com os outros quatro homens que pelo visto trabalham para Stephens. Eu os ouvi conversando algo sobre ficar de olho em qualquer sinal de “visitas indesejadas”. De coração, espero que isso tenha a ver com Niklas ter motivos para crer que Victor está vindo. Mas aquela voz cruel na minha cabeça faz meu coração afundar de novo.
Estamos sozinhos naquele galpão imenso. Só nós três. Eu, o Diabo e um dos lacaios do Diabo, embora na verdade eu não saiba qual é qual.
Levanto a cabeça.
Abro um sorriso fraco para eles, fixando minha atenção sobretudo em Niklas.
— Esta é a sua última oportunidade — anuncia ele, de pé ao lado de Stephens, com uma arma na mão direita, junto ao corpo. — Não vou nem me dar ao trabalho de mandar outro vídeo de você sendo interrogada para o meu irmão. É evidente que ver você sentindo tanta dor não basta para fazer o desgraçado sair da toca.
— Me mata — peço, ainda sorrindo. — É isso que você vai ter que fazer.
O peito de Niklas infla e desinfla, mas seus olhos não abandonam os meus. Olho para eles, buscando qualquer resquício de que ele ainda possa ser como o irmão, o homem... pelo qual acho que estou me apaixonando.
O homem que achei, por um breve momento, que poderia sentir a mesma coisa.
O tempo parece parar. Não há som, movimento ou ar ao redor, só um infinito silêncio suspenso no último momento da minha vida.
E, quando sinto meus olhos se fechando, no mesmo ínterim, Niklas levanta a arma de lado e puxa o gatilho. O tiro ecoa e o sangue esguicha do outro lado da cabeça de Stephens. A cadeira debaixo dele cai de lado quando o peso de seu corpo enorme desaba sobre ela.
Stephens cai no chão. Morto.
Sinto meus cílios enfim roçarem no rosto quando os olhos se fecham, e o meu corpo, inundado pelo alívio e exausto de tudo, começa a cair também.
Niklas encaixa os braços por baixo dos meus, me segurando antes que eu bata no chão.
— Peguei você. — Eu o ouço dizer. — Peguei você. — Sua voz parece mais distante agora, embora eu sinta que estou encostada no peito dele, e que o vento roça meu rosto quando ele me carrega pelo galpão.
— Passe ela para mim — escuto Victor dizer lá de fora, e é a última coisa que escuto.
Victor
A trama — Três semanas atrás...
Niklas está sentado diante de mim à longa mesa coberta por documentos espalhados, manchas de café e fotos de alvos futuros. Seu cabelo castanho está desgrenhado e as bordas dos seus olhos, vermelhas, pois ele bebeu demais na noite passada. Ele passa as mãos pela pilha de várias fotos de Edgar Velazco, um famigerado chefe de quadrilha venezuelano que fomos contratados para matar.
Niklas balança a cabeça, contrariado, e se reclina na cadeira, erguendo as mãos e passando-as pelo rosto.
— A gente não pode adiar isso — afirma ele, olhando para mim por cima da mesa. — Temos o paradeiro de André Costa. Precisamos resolver isso agora.
Não ergo o olhar do texto que está à minha frente.
— As coisas mudaram — digo, sem levantar a voz. Passo para a próxima folha. — Sarai é a minha prioridade. Foi inesperado, eu sei, mas não posso mudar o que ela fez. — Olho bem nos olhos dele, torcendo para que Niklas entenda e não discuta comigo. — Niklas, não vou abandonar nem prejudicar o que estamos fazendo aqui. O contrato de Edgar Velazco vai ser cumprido. Antes do prazo.
Ele suspira de novo e baixa os olhos por um momento. Depois tira um cigarro do maço na mesa diante dele. Pondo-o entre os lábios, ele o acende com um estalo do isqueiro.
Niklas sabe que não gosto quando ele fuma aqui dentro, mas acho que preciso dar uma folga ao meu irmão, considerando tudo o que ele fez por mim e por Sarai nos últimos meses.
— Sem querer desrespeitar você, irmão — começa Niklas, com a fumaça saindo de seus lábios —, mas o que vai fazer com ela? Você não pode levar uma vida dupla e sabe disso. E a gente não pode usar nossos recursos eternamente para fazer serviço de babá, não para alguém como ela, que não é fácil acompanhar. Ela é tão impulsiva quanto eu era com 23 anos.
Concordo com um aceno.
— Sim, nisso você tem razão. Ela é mais parecida com você do que eu gosto de admitir.
Niklas sorri e bate as cinzas do cigarro no cinzeirinho de plástico.
— Ah, vamos lá, irmão, eu não sou tão ruim assim, sou?
Não preciso responder a essa pergunta, e Niklas sabe.
Ele dá mais uma tragada rápida no cigarro e o deixa na borda do cinzeiro.
— Então o que você vai fazer?
Niklas relaxa as costas na cadeira novamente e entrelaça os dedos atrás da cabeça.
— Tem certeza de que quer saber a resposta?
Isso parece atiçar sua curiosidade.
— Porra, claro que quero. — Ele tira as mãos da nuca e se inclina para a frente, apoiando os braços no tampo da mesa, com ar preocupado. — O que você fez?
Espero um minuto e respondo:
— Enquanto estávamos na casa de Fredrik, depois de muitas súplicas, e das ameaças de Sarai sobre sua segurança, concordei em ajudar a treiná-la.
— O quê?
— Sim — confirmo, pois ele parece precisar disso. — Ela está determinada a matar Hamburg e Stephens com as próprias mãos. Eu poderia fazer isso, mas...
— Você deveria fazer isso, Victor.
— Não — retruco, balançando a cabeça. — Dei a ela minha palavra...
— E daí, caralho? — rebate Niklas. — Victor, isso é suicídio. Onde é que você estava com a cabeça?
Ele pega o cigarro de novo e dá um trago mais longo, como se estivesse precisando da nicotina para acalmar os nervos. Esticando o pescoço, ele solta uma fumaça espessa dos lábios.
— Já pensei nisso antes, bem antes que ela inventasse essa confusão com Hamburg, bem antes que ela me desse o ultimato. Eu a quero comigo, Niklas. Quero treiná-la. Acho que ela é capaz de conseguir. E ela se recusa a ser tratada como uma criança. Por qualquer um. Especialmente por mim.
— E se ela não conseguir? — Niklas olha para mim, com uma expressão sincera e preocupada. Preocupação comigo, não necessariamente com Sarai. — Victor, você está se metendo em uma vida de sofrimento. Apaixonar-se por alguém. — Ele ri com desprezo, embora mais de si mesmo, eu sei. — Eu já me apaixonei uma vez, você lembra, e veja como acabei. Como ela acabou. Ela acabou morta e eu, destruído por causa disso. — Ele balança a cabeça. — E preciso lembrar o que aconteceu quando Fredrik se apaixonou? Não, achei que não precisava mesmo.
Ele fica de pé e apaga o cigarro no cinzeiro.
— Sinto muito, Victor, mas acho que essa ideia é ruim pra caralho.
— Mas é a única ideia — digo, sem perder a calma. — E espero que você a respeite o suficiente para não termos uma repetição do incidente de Los Angeles.
Eu sabia que minhas palavras iriam incomodá-lo. Usar o incidente no qual ele atirou nela em um hotel, um incidente que ele considerava já superado. Niklas me encara com ressentimento e dor no olhar.
— Sério, irmão? — pergunta ele, descrente, apoiando as mãos na borda da mesa e se curvando para a frente. — Depois de tudo o que fiz nestes meses para ajudar a proteger essa garota? Depois que dei minha palavra de irmão, de sangue do seu sangue, de que nunca mais iria fazer nada para machucá-la? Se eu quisesse, já poderia ter matado Sarai mil vezes. Você sabe, Victor. Achei que a gente já tivesse superado isso.
Abaixo o olhar, deixando a culpa que sinto fazer o que quiser comigo. Niklas é leal a mim. Sempre foi. Quando atirou em Sarai em Los Angeles e tentou matá-la, foi só por causa de seu amor e lealdade a mim. Porque ele sabia que a forma como ela me afetou seria minha perdição, que eu acabaria morrendo por esse motivo. E, embora eu não justifique o que ele fez e jamais vá perdoá-lo por isso — e ele sabe —, entendo os motivos, de qualquer forma.
Em uma vida como a nossa, às vezes precisamos fazer coisas terríveis com quem amamos a fim de abrir um caminho para novos começos. Meu irmão, por mais insuportável que seja, não é exceção. Aliás, ele é um exemplo claro dessa regra.
E hoje as coisas estão diferentes. Ele não vai matar Sarai, mas não vai hesitar em matar por Sarai.
— Eu confio em você, Niklas. Espero que acredite nisso.
Ele assente devagar, aceitando minhas desculpas e parecendo absorto em pensamentos.
— Não estou pedindo que você prove isso, Victor. Mas tem uma coisa que precisa ser feita. Pelo bem do nosso negócio. Pelo bem da nossa vida. — Ele começa a andar de um lado para outro na frente da mesa.
— O que é? — pergunto, olhando-o da minha cadeira.
Ele para ao lado da mesa, cruza os braços e me encara com desconforto no rosto.
— Se Sarai vai se envolver nas nossas operações de qualquer maneira — começa ele, com cuidado —, você sabe que ela precisa passar pelo mesmo nível de testes que qualquer outra pessoa que trabalha para nós enfrentaria. Só porque você sente algo por ela não significa que essa regra deva mudar.
— O que você está sugerindo?
Sei exatamente do que ele está falando, mas o que quero saber, na verdade, é até onde ele quer ir com isso. Niklas não costuma fazer nada pela metade. Ele continua:
— Eu estou dizendo que sei que você não quer passar pelo que Fredrik passou com Seraphina. E sei que você não quer lidar com outra Samantha. A lealdade de Sarai a você precisa ser testada. Não digo isso como forma de me vingar dela nem porque quero que ela traia você para provar alguma coisa. — Ele ergue as mãos. — Só quero ter certeza de que a gente pode confiar nela, de que, se um dia ela for capturada, não vai ceder e entregar a gente.
— Eu confio nela. Sei que ela não me trairia. Confio nela.
Não importa quantas vezes eu diga essas palavras em voz alta ou na minha cabeça. Confio nela. Confio em Sarai. Confio nela. Sei que Niklas tem razão. Há muita coisa em jogo. Nossos negócios no mercado negro, nossa vida e a vida de muitas pessoas que trabalham para nós. E com Vonnegut e a Ordem atrás de mim, não posso me arriscar.
— O que você propõe? — pergunto, aceitando a verdade.
Niklas balança a cabeça, aliviado com a minha cooperação e compreensão.
Ele respira fundo e se prepara para explicar.
— Vou abordar Hamburg. Ganhar a confiança dele fingindo que estou vendendo você para ele. Ele vai acreditar que sou só um irmão que não perdoa e que foi incumbido pela minha própria Ordem de matar você, já que saiu da organização e traiu a nós todos. Tudo pelo amor de uma garota. Uma garota que, não é segredo, Hamburg agora quer ver morta mais do que nunca.
Concordo antes que ele termine de explicar, com uma imagem nítida da situação na minha mente. Niklas continua o raciocínio:
— Na hora certa, vou levar os homens de Hamburg até Sarai...
Niklas continua a explicar a trama para iniciar Sarai e ao mesmo tempo ter Hamburg e Stephens onde queremos que eles estejam.
— Mas não quero que ela se machuque. Se fizermos isso, você precisa me dar a sua palavra de que não vai deixar ninguém ir longe demais. Que você não vai longe demais. — Estreito o olhar para ele.
— Quanto ela aguenta? — pergunta Niklas.
— Ela aguenta muito. É forte. Mas, antes que isso aconteça, quero que ela treine o máximo que puder. Posso levá-la para Spencer e Jacquelyn, em Santa Fé. A experiência vai fortalecê-la um pouco mais. Deixe-me prepará-la o máximo possível no curto tempo que temos antes de começar essa história.
— Certo — concorda Niklas.
— Sabe que ela vai odiar você ainda mais quando tudo isso acabar.
Niklas assente.
— É, imagino que sim. Mas não me importa quanto ela me odeie. Não sou eu quem tem que dormir com ela. — Ele ri, baixinho. — É um risco que estou disposto a correr em nome de tudo. A verdadeira preocupação é: quanto ela vai odiar você, depois que tudo isso acabar.
Desvio o olhar e fito a parede.
— É um risco que eu também estou disposto a correr — digo, distraído.
— Talvez ela entenda — comenta Niklas, tentando acalmar os pensamentos preocupados que estampam meu rosto. — Se ela se juntar a nós, se vai se juntar a você, vai precisar saber como e quando separar a relação entre o trabalho de vocês e o relacionamento afetivo.
— Sim. Ela vai precisar aprender isso.
Ele bate de leve na mesa.
— E, se ela é tão forte quanto você diz, vai entender e superar.
Fico em silêncio.
— Então está combinado. Vou para Los Angeles à noite. Tenho mesmo uma reunião com Fredrik.
— Presumo que ele ainda não tenha falado nada a meu respeito para você.
— Não — confirma Niklas. — O cara é tão firme quanto um católico em um confessionário. Ele não vai trair você, Victor. Por que ainda tem medo de que ele faça isso? — Niklas pega o maço de cigarro e a chave do carro de cima da mesa. — Ele passou no seu teste há meses. Quanto tempo o prenderam naquela sala? Seis dias? Fredrik é leal. Ninguém dobra esse cara.
— Não tenho tanta certeza — digo, olhando para os veios da madeira da mesa. — Você parece esquecer qual é a especialidade de Fredrik. Ele tortura as pessoas com brutalidade e sente prazer nisso. Acho que se alguém pode passar por um interrogatório sem ceder, esse alguém é Fredrik Gustavsson.
Niklas me olha de lado.
— O que você está pensando? — pergunta ele, intrigado com meu raciocínio.
Olho para ele.
— Tenho mais um teste que preciso fazer com Fredrik. Se eu o deixar a sós com Sarai, ele vai acreditar que confio nele cem por cento. Vai parecer que eu abaixei a guarda. — Eu me levanto e vou até a estante, refletindo sobre o novo plano que acabo de elaborar. — Se ele entrar em contato com você e contar que está com Sarai, então saberemos que sua lealdade na verdade está com a Ordem. Sarai é a isca perfeita. Qual é a melhor maneira de permitir que Vonnegut me atraia do que usar a garota pela qual eu...
Ficamos em silêncio. Sinto o olhar inquisidor de Niklas nas minhas costas.
— A garota pela qual você está se apaixonando?
Faço uma pausa.
— Sim...
CAPÍTULO VINTE E OITO
Sarai
Não falo com Victor há horas. Três, pelo menos. Deixei que ele me despisse, me desse banho e cuidasse dos meus ferimentos. Eu o ouvi “se explicar”, mas de uma maneira que só alguém tão travado para relacionamentos quanto Victor Faust poderia fazer. Não implorou para que eu falasse com ele, para que acabasse com o gelo. Ele só falou. Tão calmo quanto em qualquer outra conversa que já teve comigo, embora dessa vez o papo tenha sido bem unilateral. Mas detectei a preocupação em sua voz, ainda que ele a tenha disfarçado bem. Senti, quando me tocou enquanto escovava meu cabelo e limpava a sujeira das feridas nas minhas costas, que ele queria me tocar com mais carinho. Queria me puxar para perto e me abraçar. Mas eu sabia que ele não queria passar dos limites.
E foi esperto em não passar, porque levaria um soco na cara.
Ao anoitecer, embora exausta e ainda dolorida da cabeça aos pés, estou bem o suficiente para andar pela casa sozinha, mas com cuidado, porque minhas costas estão bem detonadas. Victor me deixou sozinha no quarto da casa em Albuquerque. Eu precisava de um tempo para pensar em tudo o que aconteceu, pelo que ele e Niklas me fizeram passar. Precisava de tempo para refletir sobre os motivos de Victor. Eu estava cagando e andando para os motivos de Niklas ou para o papel que ele teve naquilo. Niklas não merece meu tempo, muito menos meus pensamentos. Victor, por outro lado... Parte de mim quer se sentir traída, como se essa fosse a reação normal. Sinto que deveria me encolher no chão e chorar, esmurrar as paredes, chafurdar na autopiedade, também apenas porque essa tende a ser a reação esperada. Mas não sou assim. E não sou normal. E nada na minha vida ou na vida de Victor chega perto de ser normal.
Sei que Victor está se perguntando o que estou pensando. Ele se preocupa com o tamanho da raiva que sinto dele, se ela é tão profunda que eu nunca mais vou conseguir perdoá-lo. Sei que ele deve estar convencido de que meu silêncio é a única resposta que vou lhe dar.
Mas ele está enganado.
Ele entra no quarto para pegar algo em sua maleta, e eu o intercepto.
— Foi ideia de Niklas? — pergunto, da cama.
Torço muito para que tenha sido.
Victor para diante da porta, de costas para mim. Em vez de abrir por completo, ele a fecha. Deixando a pasta preta que tirou da maleta na cômoda alta perto da porta, ele se aproxima de mim. Sua camisa preta está para fora da calça. As mangas compridas estão arregaçadas até os cotovelos, expondo a virilidade de seus antebraços e a força de suas mãos.
Desencosto os ombros da cabeceira e me sento na beirada da cama, pondo os pés no chão. Estou usando uma blusinha vermelha folgada e fina que não adere muito às minhas costas e um short de ginástica.
— Sim, tecnicamente, foi.
— Tecnicamente? — pergunto, franzindo o cenho.
Ele se senta ao meu lado, com os braços sobre as pernas e as mãos nos joelhos.
— Ninguém está isento dos testes. Niklas apenas teve que me lembrar disso, no seu caso. É uma questão de confiança...
— Você já não confiava em mim?
— Sim, confiava — assume ele, olhando para a frente. — Mas o que fizemos você passar era necessário, Sarai. Você queria fazer parte. Eu queria que você fizesse parte. Para isso acontecer, teria que ser feito de acordo com as regras, ou sempre haveria um conflito com os outros membros. Meu juízo seria sempre questionado. Você estaria sempre sob suspeita. Ninguém está isento. Fredrik não estava. Aquele homem nos fundos do restaurante de Hamburg, que ajudou você a fugir. O homem que leva a sra. Gregory para os nossos abrigos.
— E Amelia? Ela não sabia nada sobre o que você e Fredrik fazem, pelo que você me contou. Ou isso também era mentira? Ela foi espancada como eu fui?
— Não — responde ele, olhando para mim. — Não era mentira. E, não, ela não passou por nada do que você passou. Testamos de outras maneiras a confiabilidade de Amelia e de outros como ela, aqueles que não sabem nada sobre o que fazemos. Mas, para aqueles que estão por dentro, que sabem tanto quanto você sabe sobre nós, os testes são mais... extensivos.
Desvio o olhar.
— Você mandou Stephens para a casa de Amelia? — pergunto, baixinho.
— Não — responde Victor, e me viro para encará-lo à minha esquerda, desconfiada.
— Então como eles sabiam sobre ela? Como sabiam que Dina esteve lá? — A raiva aumenta na minha voz. — Você pôs Dina em risco? Por favor, diga a verdade!
Victor balança a cabeça antes mesmo que eu termine de perguntar.
— É verdade. Talvez a gente nunca saiba ao certo como Stephens descobriu sobre Amelia, ou que a sra. Gregory estava escondida lá. Quem poderia responder a essa pergunta agora está morto. Mas posso garantir que nem eu nem Niklas nem mesmo Fredrik tivemos qualquer coisa a ver com isso. Podem ter acontecido várias coisas, Sarai. A sra. Gregory pode ter entrado em contato com algum parente em algum momento. — Ele gesticula ao falar. — Pode ter acessado sua conta bancária, revelando sua localização.
— Stephens poderia ter me matado — digo, com amargura, pulando de um assunto para outro. — Ele queria tanto me matar que teria atirado em mim, se Niklas não tivesse atirado nele primeiro. E se ele tivesse me matado dias antes? E se Stephens tivesse me espancado até a morte? — Meu peito sobe e desce enquanto tento conter minha raiva.
Victor suspira e olha para as mãos, passando os dedos da direita nas costas da esquerda, constrangido.
— Sinto muito por isso — diz ele, arrependido, e então ergue os olhos devagar. — Sim, era possível que Stephens matasse você, não nego, mas eu sabia que Niklas faria de tudo para que isso não acontecesse.
Rio com descrença e desdém.
— Niklas? — pergunto, incrédula. — O mesmo que atirou em mim? Você está me dizendo que botou fé em alguém que me quer morta desde a primeira vez que me viu? — Começo a levantar a voz, e Victor passa a demonstrar sinais de constrangimento.
— Talvez eu nunca consiga fazer você entender — reflete ele, ainda controlado. — Mas sei que Niklas nunca vai machucá-la. Nós dois passamos por muita coisa desde que saí da Ordem. Chegamos a um entendimento. Ele aceita você...
— Eu não preciso que ele me aceite! — Fico de pé em um salto e o encaro de cima, com os punhos cerrados. — Niklas é a última pessoa da Terra de quem necessito qualquer tipo de aprovação! Ele tentou me matar!
Ergo os punhos cerrados diante de mim e prendo a respiração, rangendo os dentes. Meu corpo enrijece, crispado de ressentimento.
Victor fica de pé e segura meus ombros. Hesitante, expiro e me acalmo, mas não consigo olhá-lo nos olhos. A sensação é a mesma de antes, quando queria me sentir traída porque seria a reação normal. Agora, quero odiá-lo pelo mesmo motivo. Mas não odeio. Posso não entender por que ele foi confiar minha vida logo a Niklas, mas acho que o único motivo de não entender é porque não quero. Quero sentir raiva. Quero ser inflexível. Porque é mais fácil do que aceitar a verdade impensável: a de que Niklas merece uma chance. Porque, se eu fosse ele e estivesse tentando proteger meu irmão da Ordem, provavelmente teria atirado em mim também.
Victor afasta o cabelo do meu rosto, prendendo-o atrás das orelhas. Ele me olha por um momento como se estivesse evocando uma lembrança que tenho certeza de que me envolve de alguma forma. Como poderia não envolver? Essa expressão pensativa e encantada de seus olhos verde-azulados, o modo como ele fez questão de tocar meu rosto ao afastar meu cabelo. Quero gritar a plenos pulmões com ele, mas só consigo ficar ali e observar aqueles lindos olhos sombrios me examinando.
Ele olha para o quarto ao redor.
— Na noite em que encontrei você no meu carro — diz ele, sem olhar para mim —, na mesma hora a vi como uma ameaça. Eu queria me livrar de você. Rápido. Levar você de volta para a fortaleza, abandoná-la na estrada. Eu queria muito matar você.
Como já sabia de tudo isso, não fico surpresa, mas continuo curiosa para saber por que ele está tocando nesse assunto agora. Fico em silêncio, cruzo os braços e faço uma cara de dor quando o movimento repuxa a pele das costas.
— Eu poderia, e muitas vezes pensei que deveria ter matado você — continua Victor. — Tive todas as oportunidades. Mas não consegui.
— Você precisava de mim. Como moeda de troca. Talvez, se eu não tivesse dado essa ideia, avisado sobre o modo como Javier negociava, você tivesse me matado.
— Não — responde ele, em voz baixa, balançando a cabeça de leve. Então sinto seu olhar em mim e me viro. — Eu não precisava usar você como moeda de troca, Sarai. Sabia, quando saí daquele encontro com Javier Ruiz, que, quando eu contasse da recompensa que Ruiz me oferecera para matar Guzmán, no fim só seria contratado para matar Ruiz. Porque a oferta de Guzmán era mais alta do que a dele. Receber ou não a outra metade do dinheiro de Ruiz era irrelevante. Eu não precisava usar você como moeda de troca, afinal.
— Não entendo aonde você está querendo chegar — digo, e é verdade.
Victor inspira e desvia os olhos novamente.
— Naquela manhã, quando Izel estava vindo buscar você naquele hotel, antes de você acordar, minha intenção era lhe entregar para ela. Cheguei até a contar a eles onde a gente estava. Mas quando você acordou... — Ele para no meio da frase e ergue os olhos para o teto, soltando o ar dos pulmões mais uma vez, concentrado. Então Victor baixa o queixo e me olha nos olhos. — Se você não tivesse acordado, ainda estaria com Javier Ruiz, neste momento.
Com os braços cruzados, dou alguns passos na direção dele e inclino a cabeça para o lado, pensativa.
— O que você está dizendo? Eu estou aqui com você agora porque acordei antes de Izel chegar? Não entendi.
— Eu não consegui. Foi como atirar em um inocente, qualquer um que tem consciência não consegue fazer isso olhando nos olhos da pessoa. Quando você acordou, eu não consegui entregá-la.
Ainda não tenho certeza do que Victor está tentando dizer, mas sei que não foi por causa de algo ridículo como amor à primeira vista. Contudo, ao estudar seu olhar perturbado, entendo aos poucos que ele está aprendendo algo extraordinário a respeito de si próprio. Deixo que ele fale, pois parece que Victor precisa pôr aquilo para fora, exteriorizar para talvez se entender por completo.
— Batalhei a cada passo do caminho enquanto você estava comigo, dizendo a mim mesmo que precisava me livrar de você. Você era uma ameaça para mim, para o meu emprego, para a minha vida, e mais tarde ameaçou minha relação com meu irmão. Eu soube disso assim que a vi pelo retrovisor, quando você estava apontando a arma para a minha nuca, com aquela cara desesperada e assustada. Você ameaçava tudo. Mas, pela primeira vez na vida, fui contra tudo o que eu era: um assassino treinado com uma consciência reprimida... — Seu rosto endurece e ele se aproxima de mim. — Eu poderia ter abandonado você há muito tempo, mas não abandonei. Não queria abandonar então, e não quero abandonar agora.
Um calafrio percorre meus braços quando Victor esfrega as mãos neles, para baixo e para cima.
— Sinto muito por tudo o que você passou — diz ele, baixinho. — Quero que você fique, mais do que tudo, mas, se não quiser ter mais nada a ver comigo, eu vou entender. — Ele pressiona os lábios no alto da minha cabeça e vai até a porta, pegando a pasta preta do gaveteiro.
— Victor? — chamo, baixinho, antes que ele toque a maçaneta.
Ele olha para trás.
Começo a dizer “Fico feliz que você não tenha me abandonado”, mas paro e engulo as palavras. Por mais que eu queira revelar que aquela história me tocou, que não consigo imaginar a vida sem ele, ainda estou furiosa pelo que ele fez comigo, e não posso desculpá-lo. Ainda não. Não com tanta facilidade assim.
— Era só isso? — pergunto, no lugar do que ia dizer. — O teste que eu fiz? Foi o último? Foi a única vez que vou ter que passar por algo assim? Preciso ser sincera, não quero acordar todo dia achando que vou ser sequestrada, espancada ou afogada. Não quero não confiar em você...
Ele põe a mão na maçaneta e a vira. A porta se abre.
Olhando para trás, ele diz:
— Não, tem só mais uma coisa.
Meu coração endurece como uma pedra quente. Por essa eu não esperava.
— O maior teste é saber se você consegue ou não trabalhar com meu irmão — diz Victor. — Mas pode confiar em mim. E pode confiar em Niklas. Você nunca mais vai passar por nada assim.
Ele faz uma pausa e completa:
— Espero que você fique.
Então sai do quarto, fechando a porta.
Algum tempo passa, e fico sozinha para pensar em tudo. Sei que neste momento, não ontem nem no dia em que fugi da fortaleza no carro de Victor, mas neste momento é que o resto da minha vida está começando.
E sei que só há uma escolha certa.
Saio do quarto e vou encontrar Victor, Fredrik e Niklas na sala. Eles estão falando que Fredrik não sabia de nada e que passou em todos os testes de Victor e Niklas. Fico escutando sobretudo os comentários de Fredrik e Niklas, pois Victor parece mais calado do que de costume.
Os três me olham quando entro na sala, interrompendo a conversa no meio de uma frase.
— Ah, aí está ela — comenta Fredrik, com um sorriso largo e lindo. Ele me chama com um gesto. — Vem sentar com a gente. Estávamos discutindo qual o próximo passo para nós quatro. — Percebo que Fredrik não tem tanta certeza da minha decisão quanto finge que tem.
Niklas apenas acena com a cabeça para mim.
Victor fica de pé e estende a mão, oferecendo o lugar ao lado dele para eu me sentar.
— Antes, preciso dizer uma coisa.
Ele põe as mãos atrás das costas e dá um passo para o lado, esperando pacientemente.
Olho para os três, um por um, e paro em Victor.
— Se eu vou ficar aqui, há algumas coisas que preciso deixar bem claras.
Um lampejo de esperança passa pelos olhos verde-azulados de Victor.
Olho para Fredrik e Niklas de novo e continuo, falando com todos:
— Eu faço o que eu bem entender. Vou seguir as ordens de Victor como vocês dois seguem, vou treinar até sangrar e não conseguir andar direito. Conheço o meu lugar. Mas não porque sou mulher ou mais jovem do que vocês. Nem porque vocês acham que vou me “machucar” — continuo, fazendo aspas com os dedos. — É claro que vou me machucar, mas não preciso de nenhum de vocês... — meus olhos pousam em Victor de novo — correndo para pegar uma porra de um curativo cada vez que eu cair.
Fredrik ri baixinho.
— Ei, nada contra isso — afirma ele, erguendo as mãos e deixando-as cair nos joelhos.
Olho para Niklas. No entanto, não demonstro nenhuma emoção enquanto o encaro. Acho que ainda não tenho certeza de quais deveriam ser essas emoções.
Ele abre um sorrisinho, embora eu saiba que é completamente inocente.
— Acho que você sabe que eu não vou correr para ajudar cada vez que você cair.
Só reviro os olhos e encaro Victor.
— Sarai... — começa Victor, mas levanto o dedo indicador para ele.
— Isso é outra coisa. Sarai Cohen morreu há muito tempo. Ela morreu quando eu tinha 14 anos e passei a primeira noite naquela fortaleza no México. — Baixo a mão e olho para cada um deles. — Quero ser chamada de agora em diante de Izabel Seyfried.
Todos se entreolham e depois balançam a cabeça, me observando.
— Izabel? — pergunta Victor, continuando de onde o interrompi.
Eu o olho nos olhos.
— Vou entender se você jamais me perdoar, mas...
— Você me perdoaria se fosse o contrário? — pergunto, tentando usar um argumento que ele entende na hora. — Victor, você fez o que precisava fazer, como na noite em que manipulei você para... — Paro de falar antes de revelar demais sobre nossa relação para Niklas e Fredrik. Mas percebo, pela expressão de compreensão nos olhos de Victor, que ele sabe a que me refiro.
— Mas isso está longe de ser a mesma coisa.
— Não importa. Quero dizer, só para constar, bem na frente do Bonitão e do Advogado do Diabo, que o inferno que eu enfrentei não só é perdoável, mas também foi totalmente necessário. Eu sei no que estou envolvida. Nós matamos gente, alguns de nós para ganhar a vida, outros por vingança. Não estou trabalhando em um banco. Muito mais do que uma pesquisa de antecedentes e uma análise de crédito precisa ser levado em conta, se vou fazer parte desse esquema. E, para ser sincera, eu me sinto muito mais segura perto de todos vocês, sabendo que são capazes de chegar a extremos assim para ter certeza de que todo mundo nesta sala é confiável. Que qualquer um que se juntar a nós mais tarde vai passar pelo mesmo inferno.
Meus olhos pousam em Victor mais uma vez.
— Não tem nada para perdoar — repito, e a expressão dele se abranda.
Niklas se levanta da poltrona de couro.
— Sar... Izabel — corrige-se ele, aproximando-se de mim. — Olha, preciso dizer uma coisa. Sinto muito por atirar em você em Los Angeles. De verdade. Nunca mais vou tentar machucar você.
— Acredito em você — digo, e, pelas expressões no rosto de cada um, ninguém esperava isso. — Acho que posso afirmar com segurança que vai ser difícil para mim até ficar na mesma sala que você, Niklas. Neste momento, por exemplo, não estou gostando. Sinceramente, eu preferia nem ter que ver muito a sua cara. Acho você um babaca, um doido psicopata que deveria estar em um manicômio judiciário. Nunca vou gostar de você e duvido que um dia eu tenha algum respeito pela sua pessoa. Mas você é irmão do Victor, e quando implorei para ele não matar você foi por um motivo, e não me arrependo. Mas nunca vou gostar de você e estou avisando para não cruzar a porra do meu caminho.
Ele levanta as mãos em um gesto de rendição e dá um passo para trás.
— Ok, ok, entendi. Não cruzar o seu caminho. — Ele ri baixo.
É mais teatro do que qualquer outra coisa. Sei que ele ainda tem problemas comigo (é tão teimoso quanto eu), mas por amor a Victor vai me tolerar tanto quanto eu a ele. Desprezo aquela expressão sempre pretensiosa no rosto dele. Desprezo a sua autoconfiança e arrogância e prevejo que Niklas e eu vamos bater de frente muitas vezes. Mas, por Victor, vou aguentar.
Niklas vira de costas para mim e se dirige à poltrona.
— Niklas — chamo.
Ele para e me olha. Eu me aproximo.
— Só tem mais uma coisa que quero dizer.
— Pois não?
Ele se vira e me olha com curiosidade, esperando. Quando ele está ao alcance do meu braço, levanto o punho e o golpeio na lateral do rosto, bem na altura do maxilar. A força do soco causa um tremor doloroso na minha mão. Tento aliviar a dor abrindo e fechando os dedos, mas ela só piora.
— Aaaaiii, caralho! Qual é o seu problema, porra? — Niklas põe a mão no canto da boca. — Tudo bem. Entendi. Eu atirei em você e agora estamos quites. Eu mereci. — Com a mão ainda sobre a boca, como se estivesse tentando colocar o queixo no lugar, ele termina o caminho até a poltrona e se joga sobre ela.
— Isso não foi porque você atirou em mim — retruco, ríspida. — Foi por matar Stephens. Ele era meu. — Aponto para ele. — E o único jeito de estarmos quites por você ter atirado em mim é se eu atirar em você. Por isso, como já falei, não cruze o meu caminho.
Niklas olha para Victor, de pé atrás de mim, como quem diz: Essa garota existe? Victor não diz nada, mas quando olho para ele por um instante noto que está sorrindo.
Fredrik está jogado no sofá, com os braços no encosto e um enorme sorriso.
No fim, seguro a mão de Victor e aceito me sentar. Estou dolorida demais para ficar de pé sozinha por muito tempo. Ele me leva até o sofá e me ajuda a sentar nas almofadas macias, segurando minha mão até eu me ajeitar. E então se senta ao meu lado.
Fredrik se curva e olha para mim do outro lado de Victor, com seu sorriso sombrio e encantador intacto.
— Fico feliz que tenha se juntado a nós. Claro que ainda vai ter que treinar muito, de acordo com Faust. — Ele aponta para Victor. — Mas algo me diz que você tem um talento natural. — Ele dá uma piscadinha. — Teimosa. Imprudente. Desbocada. Nada delicada. Mas acho que eu não ia gostar muito de você se não fosse todas essas coisas.
— Obrigada, Fredrik — digo com sinceridade e um sorrisinho irônico.
Niklas relaxa na poltrona, apoiando seu coturno preto no joelho. Não sei por quê, mas reparo nesse detalhe. Coturnos? Eu o olho de alto a baixo. Jeans escuro. Camiseta cinza que contorna seus bíceps. Cabelo desgrenhado.
Meus olhos vão e vêm entre ele e Victor, sempre sofisticado, e não consigo deixar de me perguntar se não estou deixando passar algo importante. Olho para Fredrik do lado direito de Victor, e, como Victor, Fredrik está usando as roupas de sempre, sapatos e um terno refinado.
— Por que ele está vestido assim? — pergunto para Victor, indicando Niklas com um aceno da cabeça.
Victor olha por um instante, mas é Niklas quem responde.
— Porque prefiro isto a usar esses ternos ridículos. E, como não estou mais na Ordem, acho que posso me vestir do jeito que eu quiser.
Surpresa, volto a olhar para Victor sem mexer a cabeça.
Victor assente algumas vezes, confirmando o que Niklas disse.
— Ele saiu há alguns dias. Fredrik é o único que continua lá dentro.
— Mas... por quê? Isto é, não seria melhor que Niklas continuasse de olho em Vonnegut, sobretudo no que se refere a você?
— Saí porque precisei — conta Niklas. — Eu estava demorando demais para matar Victor.
— E, como era de esperar — acrescenta Victor —, Vonnegut estava começando a questionar a lealdade de Niklas. Vonnegut pode não saber que Niklas e eu somos irmãos, mas nós tivemos uma relação muito próxima de trabalho por muitos anos. Estava demorando muito e ficando arriscado demais.
Solto um suspiro preocupado e tento me reclinar no sofá, até me lembrar das minhas costas.
Olho para Fredrik.
— E você? A Ordem sabe da sua relação com Victor? Ou com Niklas, aliás?
Fredrik sorri para Victor.
— Viu? Ela já entrou de cabeça no trabalho — observa ele, com uma risadinha, e então volta a olhar para mim. — A Ordem sabe que trabalhei com Victor algumas vezes no passado, mas não mais do que qualquer outra pessoa com quem ele já trabalhou. Quanto ao irmão dele, quando Victor saiu da organização, eu fui abordado por Niklas para ajudar a encontrá-lo, agora todos sabemos disso. Eu achava que Niklas seria meu superior depois desse episódio.
— Mas Vonnegut nunca soube do meu envolvimento com Fredrik — intervém Niklas.
— Então, por enquanto — acrescenta Victor —, Fredrik está seguro na Ordem.
— E represento os únicos olhos e ouvidos deles lá dentro — intervém Fredrik.
— Uau — comento, balançando a cabeça, tentando absorver tudo isso e o que significa para nós.
— Está ficando com medo? — pergunta Niklas, abrindo um sorriso.
— Nem um pouco — respondo, sorrindo também. — Só estou tentando decidir qual serviço é mais urgente, a fortaleza no México ou eliminar a Ordem para eles pararem de caçar a gente.
Niklas sorri e parece que, ao perceber o que fez, desvia o olhar de mim.
— Acho que estou apaixonado pela sua mulher — diz Fredrik para Victor, brincando.
— Por algum motivo, duvido que você seja capaz disso — rebate Victor, despreocupado.
Ele olha para mim.
— Eu sei qual serviço é mais urgente. — Ele dá um sorrisinho e segura a minha mão.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
Izabel
Poucos convidados circulam no corredor, e seus passos são fracos. Saltos altos. Sapatos elegantes. Vozes ricas fingindo estar intrigadas, dramatizando demais as coisas insignificantes da vida. Risadas artificiais. Música clássica — Bach, acho — vem do andar de baixo, tão nítida, elegante e sofisticada que me sinto em uma festa para a rainha da Inglaterra, e não sentada em um quarto escuro, com meu punhal favorito na mão. Eu o chamo de Pérola.
O cheiro deste quarto é o mesmo da última vez em que estive aqui: colônia demais, suor, pot-pourri velho e lencinhos umedecidos. Uma pesada mesa quadrada de mármore está do outro lado do quarto. Eu me lembro dessa mesa. Nunca vou esquecer o modo como Victor me curvou sobre ela, ou o porco nojento que ficou olhando quando minha calcinha desceu até os tornozelos.
Está escuro lá fora, passou das nove da noite, e o luar que entra pela varanda atrás de mim inunda a maior parte do quarto. Fiz questão de deixar as portas abertas para sentir o ar noturno na pele. Está muito quente com estas roupas apertadas. Preto do pescoço para baixo. Botas, parecidas com as de Niklas, só que as minhas têm facas escondidas no couro. Uma arma está acomodada em um coldre na minha cintura, mas só está ali para o caso de eu precisar. Gosto do meu punhal.
Eu me sento em uma cadeira no centro do quarto espaçoso, fora da suave luz acinzentada que vem da varanda. Minha perna direita está cruzada sobre a esquerda. Minhas mãos repousam no colo, o cabo de pérola do meu punhal encaixado com firmeza na mão. Bato a fina lâmina de prata na minha coxa.
Já se passaram 26 minutos desde que me sentei. Mas sou paciente. Disciplinada. Tanto quanto consigo ser, acho. Prometi a Victor que esperaria. Que ficaria sentada aqui, praticamente imóvel, até a hora certa. Eu disse que conseguiria, que aguentaria sem correr para o andar de baixo e resolver o assunto ali. E pretendo provar. Embora admita que é difícil.
Olho para Niklas, de pé em uma sombra perto das portas da varanda, com as mãos entrelaçadas. Ele sorri para mim, achando graça da minha crescente frustração. Sorrio de volta e olho para a porta do outro lado do quarto.
Trinta e dois minutos.
Ouço as vozes dos dois seguranças sempre postados do lado de fora do quarto. Eles estão falando com Arthur Hamburg.
Segundos depois, a porta se abre e um clarão vindo do corredor inunda o quarto, mas não me alcança. E, com a mesma rapidez, a luz some quando o segurança fecha a porta depois que Hamburg entra. Ele não me nota ao passar pela grande cama e pela mesa de mármore.
— O que você achou do cabelo? — pergunto.
Hamburg fica imóvel na hora.
Eu me inclino para a frente na cadeira, entrando no alcance da luz.
— Preto retinto — digo, despreocupada. — Ainda me acha deslumbrante com qualquer peruca? — Uso a mão livre para tocar o penteado e exibi-lo.
As luzes do quarto se acendem quando Hamburg diz: Acender luzes.
— Como você entrou aqui? — pergunta ele, desesperado, seu olhar correndo pelo quarto em busca da resposta e de qualquer sinal de mais alguém.
Quando Hamburg nota Niklas e Victor de pé perto da entrada da varanda, atrás de mim, com as armas nas mãos ao lado do corpo, ele chama os guarda-costas. Mas então uma forte pancada é ouvida do lado de fora. E depois outra. Hamburg para a centímetros da entrada, sem saber mais se é seguro abri-la.
Ele me olha de novo.
Sorrio e bato com a lâmina na minha perna mais uma vez.
A porta atrás dele se abre, e Fredrik está de pé ali, segurando dois colarinhos brancos. Ele arrasta os corpos dos seguranças pelo chão de mármore e os larga. As cabeças batem ruidosamente no mármore.
Hamburg olha para Fredrik, de olhos arregalados como um peixe, seu corpo balofo imóvel, seus dedos roliços mal se mexendo sobre a calça, nervosos, como se ele estivesse procurando por uma arma que costuma carregar e não quisesse acreditar que não está com ela quando mais é necessária.
Fredrik fecha e tranca a porta. Ele vai até os corpos, pegando-os pelos colarinhos de novo e arrastando-os pelo quarto. Não há sinal de sangue neles. Ele deve ter usado sua arma favorita, uma seringa cheia de algo letal e que não deixa vestígios.
Olho para Hamburg.
— S-sim... você fica bem de cabelo preto — afirma ele, agitado. — P-por que estão aqui? Willem está desaparecido. Eu-eu não sei onde ele está. Juro. Não o vi nem tenho notícias dele há mais de uma semana.
Sorrio e inclino a cabeça para o lado.
— É porque ele está morto — digo, sem rodeios.
Hamburg olha para Victor atrás de mim. E para Niklas. Depois para Victor de novo.
— Olhem, eu-eu disse a ele para esquecer o assunto — diz Hamburg, ainda gaguejando. — Não fui eu que mandei. Fa-falei para não procurar nenhum de vocês.
O suor brota em seu rosto rechonchudo, brilhando no queixo duplo. As axilas de sua camisa branca estão empapadas, a umidade se espalhando depressa pelo tecido. O colarinho da camisa muda de cor ao absorver o líquido como uma toalha de papel barata.
Fico de pé.
— Você é um mentiroso. — Ando devagar na direção dele. — Mas não importa. Não estou aqui por causa de Willem Stephens. Estou aqui por sua causa.
Hamburg anda para trás conforme me aproximo, seu rosto inchado e enrugado contorcido de pavor, suas mãos grossas tateando atrás de si, procurando a porta ou uma parede.
Fredrik fica na frente da porta, bloqueando o caminho de Hamburg, que para. Vejo sua garganta se mover quando ele engole em seco. O medo em seus olhos é cada vez maior.
Ele continua olhando para Victor e Niklas atrás de mim, sempre concentrando sua atenção em Victor por último.
Victor se afasta da varanda e vem para o meu lado.
— Olhem aqui, eu cumpri minha promessa, cacete! — grita Hamburg, aprofundando as rugas ao redor dos olhos. Ele aponta um dedo gordo para nós, adornado por um grosso anel de ouro. — Nunca fui atrás de nenhum de vocês depois que mataram minha esposa! Cumpri minha promessa! — Ele aponta para mim. — Foi você que veio atrás de mim! V-você começou tudo isso!
Balanço a cabeça e sorrio para ele, rindo do desespero e do medo. Só isso já me dá alguma satisfação, vê-lo se retorcer, ver o modo como está implorando por sua vida sem fazê-lo de forma explícita.
Eu me aproximo mais um pouco.
Hamburg não se mexe porque não consegue. Fredrik está atrás dele.
— Ah, isso não tem nada a ver comigo — diz Victor para Hamburg. — Eu cumpri minha promessa. Nunca fui atrás de você. Izabel, por outro lado... — Victor está provocando, do jeito relaxado que é sua marca registrada. — Bom, você não fez nenhum acordo com ela, para a sua infelicidade. E eu não sou o dono dela. Nunca fui. Ela está aqui por vontade própria, e não há nada que eu possa fazer a respeito.
Hamburg olha diretamente para mim, a raiva em seu rosto se transformando em algo mais patético.
— P-por favor... eu faço o que você quiser. Dou o que você quiser. Meu dinheiro. Minha casa. É só pedir, é tudo seu. Eu tenho milhões.
Chego perto dele e sinto o cheiro fétido de seu suor. Ele me olha nos olhos, com uma expressão cheia de ódio e horror. Seu corpanzil treme a centímetros do meu, e sei que, se ele achasse que poderia sair impune, me agarraria agora e me estrangularia até a morte.
De repente sua expressão muda, combinando melhor com as palavras ríspidas:
— Você não vai fazer isso — provoca ele, desdenhando de mim com frieza e me encarando. — Não é capaz de matar a sangue-frio. Você matou meu segurança em legítima defesa. Não vai me matar. Não assim. — Há humor em seus olhos.
Fico alerta diante dele, com o indicador apoiado na lâmina do meu punhal, encostado na minha perna. Não digo nada. Só o observo, com um sorriso tênue, mas óbvio, achando graça de suas tentativas inúteis de salvar a própria vida.
Ele dá um passo para a esquerda e começa a se afastar. Eu deixo.
— Vou servir uma bebida para vocês — diz ele, levantando um dedo. Ele tira o paletó gigante e o coloca nas costas da poltrona de couro perto da mesa de mármore. Então começa a desabotoar a camisa.
Chego por trás dele como um fantasma, passando a lâmina em sua garganta antes que ele consiga tirar os dedos do último botão. Um som arrepiante de gargarejo se espalha pelo quarto, seguido por Hamburg se engasgando com o próprio sangue. Ele ergue as mãos como se estivesse tentando escapar de um saco plástico. O vermelho espirra da lateral do seu pescoço, e ele cai de joelhos pressionando o corte com as mãos. O sangue escorre por entre todos os dedos e empapa sua camisa.
Eu o observo. Não com horror, arrependimento ou tristeza, mas com um sentimento de vingança. Meus olhos parecem se abrir ainda mais, atingidos pela brisa que vem da varanda. Não consigo parar de olhar. Não consigo virar a cabeça. Mas posso sentir os olhos de Victor, Fredrik e Niklas em mim, observando como me regozijo no momento do meu primeiro assassinato oficial a sangue-frio.
Hamburg engasga e chora, lágrimas caindo, enquanto vou para diante dele e me agacho. Eu o examino, o modo como seu rosto se contorce, o modo como o vermelho do sangue faz contraste com o branco da camisa. Vejo o terror em seus olhos, o medo do desconhecido tomando conta dele bem depressa.
Um sorrisinho aparece no canto da minha boca.
Hamburg cai para a frente no chão, seu corpo pesado tremendo e estremecendo só por alguns momentos antes de ficar imóvel. Ele jaz com a bochecha encostada no piso de mármore, a boca aberta, assim como os olhos. Eles olham para o nada, estão cheios de nada. O sangue empoça ao redor da cabeça e do peito, encharcando as roupas.
Ainda agachada diante dele, me apoio nas pontas dos pés e me aproximo do corpo, com os antebraços apoiados nas pernas.
— É isso que aquelas pessoas que você matou estranguladas sentiram — sussurro para o cadáver de Hamburg.
Fico de pé e dou um passo para trás, antes que o sangue empoçando no chão chegue à minha bota. Um por um, olho para Fredrik, Niklas e depois Victor, e todos manifestam a mesma aprovação silenciosa. Mas é nos olhos de Victor que vejo muito mais. Um elo eterno entre nós, criado não por este momento, mas por aquela noite em que nossos caminhos se cruzaram no México. Jogados um na vida do outro por um capricho do destino e mantidos unidos pelas nossas raras semelhanças e nossa necessidade de ficarmos juntos.
Somos um só.
CAPÍTULO TRINTA
Izabel
Um ano depois...
Victor entra no banheiro da nossa casa em Nova York e me encontra relaxando em um banho de espuma. Despreocupada, eu o vejo tirar a arma da parte de trás da calça e deixá-la na bancada. Meu cabelo está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado. Estou deitada na banheira com os braços estendidos nas laterais, um joelho fora da água, parcialmente coberto pela espuma. Foi um dia cheio. Matei John Lansen, presidente da Balfour Enterprises e estuprador de primeira linha, e ainda tenho o sangue dele debaixo das unhas.
Fecho os olhos e relaxo.
— Onde você estava? — pergunto para Victor, sem levantar a nuca da banheira.
— Limpando a sua sujeira — responde ele, calmo.
Compelida a olhá-lo depois dessa acusação, abro os olhos novamente e o vejo de pé ao meu lado.
— Como assim? Foi um serviço limpo.
Ele ergue uma sobrancelha e olha para as minhas mãos.
— É mesmo? — pergunta ele, em tom acusatório. — Limpo significa sem sangue. Sem digitais. Sem deixar nada para trás, nem o seu cheiro.
Suspiro e fecho os olhos.
— Victor — digo, fazendo gestos dramáticos por cima da borda da banheira. — Eu não deixei nada para trás. Limpei tudo depois. Não ficou nada. Pergunta para o Fredrik. Ele estava lá. Verificou tudo depois.
Sinto o corpo de Victor mais perto quando ele se senta na borda da banheira.
— Mas quais são as ordens que eu dei, Izabel? — questiona ele, com tanta calma quanto antes. — Antes de começar essa missão com Fredrik, o que eu pedi?
— Nada de sangue — respondo, ainda de olhos fechados. — Envenene o cara, para parecer um ataque cardíaco.
Abro os olhos de novo e encontro seu olhar dominador, o verde de seus olhos mais escuro do que de costume.
— Veneno é o lance do Fredrik, não o meu.
— Você desafiou minhas ordens. E vai ser a última vez.
Sorrio para Victor e afundo as mãos na água para sentir a espuma na pele. Sei que Victor não está bravo de verdade comigo. Isso se tornou um jogo que fazemos: às vezes faço o contrário do que ele manda, e ele me castiga. É o tipo de jogo em que ambos ganhamos. Eu jamais teria desafiado as ordens dele em uma missão importante. John Lansen era só uma ponta solta, e mais uma das minhas missões de treinamento.
— O que você vai fazer comigo, Victor? — pergunto, com um brilho sedutor nos olhos. Tiro a perna esquerda da água e a apoio na borda da banheira, atrás de onde ele está sentado. — Vai me castigar?
Com a manga já arregaçada acima do cotovelo, sua mão direita percorre lentamente o comprimento da minha perna e mergulha na água. Gemo quando seus dedos me encontram.
— Vou tirar você do trabalho de campo até aprender a se controlar — diz ele, pondo dois dedos entre meus lábios inferiores.
Minha nuca pressiona com mais força a borda da banheira e minhas pernas se abrem mais.
— E se eu nunca conseguir me controlar? — pergunto, ofegante, mal capaz de me concentrar na conversa, com seus dedos se movendo entre minhas pernas daquela maneira.
Ele é um canalha. E eu o amo pra caralho por isso.
Dois dedos entram em mim e minhas pernas começam a enrijecer e formigar quando seu polegar esfrega com força meu clitóris em um movimento circular.
— Abra os olhos — manda ele em voz baixa, mas imperiosa.
Abro, só um pouco, pois está cada vez mais difícil controlar minhas pálpebras. Soluço, gemo e mordo meu lábio inferior com tanta força que dói.
— Se você não conseguir se controlar, então não terei escolha.
— Não terá escolha... do quê? — Meu peito nu sobe e desce. Mexo na água procurando sua mão, fechando os dedos em volta do seu pulso forte e descendo até os dele, que continuam se movendo em círculos.
Então ele para.
Ele tira a mão da água, fica de pé e enxuga o braço com minha toalha, pendurada na porta do boxe.
Olho para ele sem entender.
Ele sai do banheiro e me deixa sentada lá, sozinha, insatisfeita e sexualmente frustrada.
— Ei! — grito para ele. — Aonde você vai, cacete?!
Nenhuma resposta.
— Victor!
Nada.
Rosno baixo, fico de pé e saio da banheira. Pego a arma de Victor com minha mão molhada e ensaboada e vou para o nosso quarto. Ele está de costas para mim, perto da nossa cama king-size, tirando a camisa com uma graça casual e desinteressada, o que só me deixa mais frustrada.
Chego por trás dele, ensopada, pingando água e espuma no chão, e começo a apontar a arma para suas costas. Mas Victor é rápido demais e se vira, tirando a arma da minha mão e enfiando-a sob o meu queixo, tudo em dois segundos, que passam por mim como um borrão.
O cano frio toca minha pele. A intensidade nos olhos dele provoca uma onda de calor no meu corpo e entre minhas coxas. Meus seios estão pressionados no seu tórax duro e quente, sua mão livre posicionada no meio das minhas costas, com seus longos dedos abertos.
— Nenhuma disciplina, Izabel. — Ele estuda o meu rosto com um movimento faminto e calculado dos olhos. Ele lambe o canto da minha boca e enfia mais a arma na minha garganta. — Você nunca vai aprender.
Tento beijá-lo, procurando sua boca com a minha, mas ele me rejeita, me provocando com a distância de seus lábios, a 2 centímetros dos meus.
Ele me lambe de novo. E então me joga na cama e se encaixa no meio das minhas pernas nuas, ainda vestido da cintura para baixo com a calça preta. Estremeço quando sinto sua ereção me pressionando sob a calça. Meu corpo se desfaz em calafrios quando ele passa a ponta da língua de baixo para cima entre os meus seios.
Ele beija um lado do meu queixo, depois outro.
— Talvez você devesse se livrar de mim — sussurro nos lábios dele.
— Nunca — diz Victor, me beijando de leve uma vez. — Você é minha enquanto respirar. — A boca dele cobre a minha, faminta.
Foi assim que me tornei o que sou, uma escrava sexual transformada em assassina. E foi o início não só de um caso de amor entre mim e Victor, mas também de um novo círculo clandestino de assassinos, tão secreto que nem tem nome.
Quatro viraram cinco seis semanas atrás, quando recebemos o diabo louro de olhos castanhos, Dorian Flynn, no nosso grupo. E, embora haja muitos que trabalham para nós, espalhados por vários países, nós cinco somos o centro de toda a operação, com ninguém menos do que Victor Faust no comando de tudo.
Niklas continua um canalha insuportável, que adora dinheiro, mulheres e me deixar puta. De maneira indireta, é claro, mas ele sabe o que está fazendo. Mesmo depois de um ano, ele e eu praticamente nos desprezamos. Talvez eu o despreze um pouco mais do que ele a mim, mas nós nos suportamos, por Victor. A maior parte do tempo, evitamos cruzar o caminho um do outro. Ainda preciso ficar quite com Niklas e atirar nele. Mas essa hora vai chegar. Um dia.
Quanto a Fredrik, as mulheres ainda o adoram, mas desisti de tentar entendê-lo há muito tempo. Entender por que as mulheres praticamente tiram a calcinha quando o veem. Concluí que a única maneira de saber seria dormir com ele. Mas, como isso nunca vai acontecer, decidi manter o mistério. Mas Fredrik é como um irmão para mim, e, como Victor, não consigo imaginar ficar sem ele na minha vida. Sem perceber, ele tenta correr atrás de mim com aqueles malditos curativos de vez em quando, seja depois de uma sessão brutal de treinamento com Victor, seja na noite em que levei uma facada no ombro durante uma missão. Preciso lembrar a Fredrik, usando minha voz mais inclemente de Izabel Seyfried, de não me tratar como uma garotinha frágil. Lá no fundo, contudo, gosto de ver como ele é protetor comigo. Só que nunca vou contar isso a ele.
Dina, a mãe que eu deveria ter tido há 24 anos, agora mora em Fort Wayne, Indiana. Nós a instalamos em um abrigo tão pequeno e modesto quanto sua casa em Lake Havasu City. Victor tentou convencê-la a morar em um lugar grande e imaculado porque queria que ela tivesse o melhor, mas ela recusou. “Gosto das coisas simples”, disse ela naquele dia.
Dina ainda não sabe tudo sobre o que fazemos, mas é mais seguro assim, e ela aceita isso. E quanto ao abrigo dela, só é aberto para mim e para Victor. Eu a visito uma vez por mês. Mas a saúde dela está piorando. Eu me preocupo mais com ela do que comigo mesma ou com Victor. Mas ela é uma velha forte, e acho que ainda vai viver por muitos anos.
Quanto a Amelia McKinney, Fredrik não a matou. Matar mulheres inocentes não é o estilo dele. Ele a instalou em outro abrigo do outro lado do país, em algum lugar de Delaware. Nova identidade. Novo tudo. Mas ele nunca a visita. A última coisa que ele quer é uma mulher achando que ele está interessado em algo mais do que sexo.
Essa é a história da vida de Fredrik.
Conforme o prometido, depois que terminamos com Hamburg e Stephens, começamos a bolar uma estratégia para matar os irmãos de Javier Ruiz e libertar as garotas aprisionadas na fortaleza mexicana. Passei por seis meses de treinamento massacrante — treinamento de verdade, não apenas ser largada em algum lugar para estranhos me ensinarem — antes de partirmos para a missão. Infelizmente, a maioria das garotas da fortaleza que eu conhecia já tinha sido vendida ou estava morta quando chegamos lá. Matei Luis e Diego Ruiz, cortei a gargantas deles como fiz com Hamburg, depois que Victor, Niklas e Dorian derrubaram os guardas ao redor e dentro da fortaleza com uma chuva de balas. Não sou tão boa com armas de fogo e ainda preciso treinar muito. Por anos. Mas consigo fazer o serviço com minha coleção cada vez maior de punhais. E estou aprendendo mais a cada dia.
Quando a missão no México acabou e salvamos quem era possível — seis garotas, no total, tão traumatizadas que, mesmo livres, imagino que não consigam muita coisa na vida —, fomos atrás dos homens que as compravam. E ainda hoje, como amanhã e daqui a um ano, nós os procuramos e os eliminamos. Vai ser um longo caminho até localizarmos todos eles e lhes dar o que merecem, mas não vou parar enquanto não terminar.
Mais importante do que tudo, sobretudo para mim, é eliminar a Ordem. Vai demorar muito tempo até que eu possa de fato dormir tranquila à noite, sabendo que há homens procurando Victor a cada hora do dia. É uma empreitada muito mais perigosa e complexa do que provavelmente qualquer missão que realizaremos.
A Ordem é imensa, com milhares de membros, e é uma das mais antigas organizações de assassinos ainda existente. Vai levar algum tempo. Mas vai ser feito, mesmo que seja a última coisa de que eu participe.
Victor é a minha vida e eu vou morrer ajudando a protegê-lo.
Mas essa missão vai continuar a ser uma empreitada difícil, agora que Fredrik precisou sair por causa das suspeitas e não temos mais olhos e ouvidos confiáveis lá dentro. Temos novos informantes infiltrados na Ordem, mas eles ainda não provaram ser confiáveis como Fredrik.
E Victor... Victor continua pensando só no trabalho. Ainda é o assassino de aluguel e a sangue-frio, com nenhuma ou quase nenhuma consciência, quando o assunto é cumprir uma missão. Ele ainda parece desprovido de emoções, impiedoso e mortal em todos os sentidos. A portas fechadas, no entanto, quando estamos a sós, ele é outro homem. Ele me ama sem precisar dizer. Ele me adora sem ter que provar. Quando ele me toca, sei o que está pensando, o que realmente sente por trás daquela máscara que usa diante dos outros. Sou a única alma que ele já deixou entrar em sua vida completamente. E a única que ele nunca irá abandonar.
Ele se tornou o meu “herói”, no fim das contas. Minha alma gêmea que jamais vai deixar que nada de ruim aconteça comigo. Confio minha vida a ele, por mais que ele me diga para sempre confiar primeiro nos meus instintos. A verdade é que tudo o que fazemos é arriscado. Dar um passo para fora da porta. Dar um telefonema. Comer um pãozinho em uma lanchonete. Todos com quem cruzamos são ameaças até que provem o contrário. Qualquer um de nós pode morrer a qualquer momento. Mas pelo menos sei que Victor vai me pôr sempre em primeiro lugar e fazer tudo o que pode para me manter a salvo, como sempre vou fazer por ele.
Ficar um passo à frente da morte é o nosso estilo de vida. É o meu estilo de vida, e acredito que era para ter sido assim desde sempre. Contudo, por mais estranho que pareça, me sinto perfeitamente segura na companhia de assassinos.
CAPÍTULO VINTE E UM
Sarai
Saio de manhã cedo, usando o carro que Victor deixou na garagem para o caso de eu precisar em uma emergência. Ir até a academia de krav maga de Spencer e Jacquelyn em Santa Fé não é exatamente uma emergência, mas mesmo assim é importante para mim. E não posso mais ficar parada em casa desse jeito, quando poderia estar praticando.
Estou treinando com Spencer há meia hora. Odeio o fato de ele pegar leve comigo, mas acho que ao mesmo tempo me arrependeria de pensar assim caso ele decidisse me bater com aquele punho que parece um tronco de árvore.
— Acompanhe os movimentos dos ombros — orienta Spencer, movendo-se em círculos ao meu redor, nós dois meio curvados, com os braços em guarda alta à frente. — Soque. Um. Dois. Esquerda. Direita. — Ele demonstra enquanto fala, lançando seus punhos imensos no ar diante dele.
Faço exatamente o que ele manda, de novo e de novo, para aperfeiçoar a técnica. E então o golpeio com força, mas ele intercepta e se defende com facilidade de todas as minhas tentativas.
Ele me ataca e, por instinto, me esquivo e ando ao redor dele, longos fios do meu cabelo que escaparam do rabo de cavalo presos entre meus lábios e grudados no nariz. O suor escorre da minha nuca e desce pelas costas, grudando na pele o tecido fino da camiseta preta de um jeito nojento.
Spencer me ataca de novo e eu uso algo que já aprendi, golpeando-o no meio da garganta, um lugar vulnerável, o que o faz perder o equilíbrio no mesmo instante. Parto para cima dele com velocidade antes que ele consiga se recuperar e seguro sua nuca, curvando-o para baixo e enfiando o joelho em seu rosto, uma, duas, três vezes seguidas.
Ele cambaleia para trás, apertando a mão sobre o nariz. Se Spencer quisesse me machucar de verdade, não teria parado. Teria lutado contra a tontura e a dor e continuado a me bater até me matar.
— Cacete, garota — diz ele, misturando riso à voz grave, abafada pela mão. — Acho que você quebrou meu nariz.
Balanço a cabeça para ele, decepcionada por ele ter parado, embora tenha aprendido semanas atrás a aceitar que ele sempre vai parar.
— Não, acho que ele já era torto — rebato, brincando.
Ele ri de novo e tira a mão do rosto para apontar para mim com um ar ameaçador, com o olho direito mais fechado que o esquerdo.
Vou até a borda do tatame preto, onde minha toalha está jogada, e a uso para enxugar o suor do rosto. Puxando a gola da camiseta, tento me refrescar, contente por estar usando uma calça de malha preta aderente que reduz o suor.
Fredrik passa pela porta alta de vidro na entrada da academia. Não parece feliz.
Ele atravessa o tatame usando um jeans escuro, camiseta cinza bem justa e um All Star branco novinho em folha com cadarços vermelhos. Não consigo decidir o que é mais imperativo: explicar para ele o que estou fazendo ou perguntar se ele acordou de manhã achando que era outra pessoa.
— Como você me encontrou? — Jogo a toalha molhada no tatame, ao lado dos meus tênis pretos.
— Por que você saiu? — pergunta ele, por sua vez.
Reviro os olhos e balanço a cabeça, olhando para Spencer, não muito longe, que observa Fredrik e a mim com curiosidade, os enormes braços cruzados rigidamente sobre o peito maciço. A mulher dele, Jacquelyn, entra no prédio pela mesma porta por onde Fredrik acaba de entrar.
Eu me viro para Fredrik.
— Quantos anos você tem? Vinte? — pergunto, correndo os olhos pelas roupas dele.
Ele fica bem nelas, admito, mas duvido que um dia eu vá me acostumar a vê-lo usando qualquer coisa além de terno. É que não consigo imaginá-lo torturando um homem até a morte usando All Star. Afasto essa imagem estranha da minha mente.
— Respondendo perguntas com perguntas — observa Fredrik, um pouco irritado. — Eu encontrei você depois de ligar para Victor. Ele me falou que você poderia estar aqui.
— Ele ficou bravo? — Sinto meu rosto murchando. Espero que ele não esteja chateado.
Fredrik balança a cabeça.
— Não — diz ele, como se essa verdade o decepcionasse. — Ele disse que não tinha problema você vir aqui hoje. — Ele me encara com ar autoritário. — Mas você deveria ter pelo menos me avisado em vez de sair escondida. Quantos anos você tem? Quinze?
Dou um sorrisinho para ele.
— Está tudo bem aí? — pergunta Spencer, aproximando-se e olhando com frieza para Fredrik. Jacquelyn desaparece no escritório do outro lado da sala.
— Sim, está tudo bem. Spencer, este é Fredrik. Fredrik, este é Spencer, meu treinador.
Os olhos castanho-escuros de Spencer se voltam para mim em sua cabeça imóvel, depois passam a observar Fredrik.
— Ele é alguém que Victor conhece? Victor me deu ordens específicas para não deixar ninguém visitar você aqui, além dele. — Spencer estreita os olhos para Fredrik, e parece pronto para derrubá-lo a qualquer momento.
Fredrik, por outro lado, está sorrindo, com as mãos cruzadas à frente e uma postura elegante. Fredrik pode não ser capaz de derrotar Spencer na luta corpo a corpo, mas na verdade estou mais preocupada com Spencer, porque sei do que Fredrik é capaz.
Eu me posiciono entre os dois.
— Victor conhece Fredrik. Só que ele não esperava que Fredrik precisasse vir aqui.
Os dois se examinam em silêncio, e então Spencer assente e me diz:
— Tudo bem, mas se você precisar de alguma coisa...
— Eu sei. Obrigada. — Sorrio.
Spencer se afasta. Ele desaparece no escritório com Jacquelyn e alguns alunos entram no prédio, deixando as mochilas no chão, perto da parede oposta.
— Victor volta hoje à noite — informa Fredrik, abaixando a voz e olhando por cima do ombro depois.
Eu me afasto mais das pessoas que se preparam para treinar.
— Estou surpresa por você ter conseguido falar com ele. Tentei ligar uma vez, ontem, mas a ligação não completou.
Fredrik assente.
— Onde ele estava não tem sinal de celular a maior parte do tempo.
Olho por cima do ombro.
— Então ele... terminou o serviço? — pergunto, em um sussurro.
— Sim. Já fez o que precisava com Velazco. Eu vou cuidar do outro filho hoje à noite.
— Você vai matá-lo? — sussurro ainda mais baixo, olhando o tempo todo ao redor para me assegurar de que ninguém está perto o suficiente para ouvir nossa conversa tão criminosa.
Fredrik arregala os olhos só um pouco, para indicar que ele prefere não dizer nada mais comprometedor neste lugar. Ele me pega pelo braço, segurando com cuidado meu cotovelo, e me leva até a porta. Só quando estamos lá fora, na calçada, ele se sente seguro para conversar.
— Ele merece morrer — garante Fredrik, e tenho a sensação de que ele achou que eu poderia discordar disso.
Talvez eu discorde, de certa forma. Só agora me dou conta.
— Bom, o que... — Hesito, respirando fundo. — O que, exatamente, David fez para merecer morrer? O que André Costa fez? Eu sei que o pai deles, Velazco, fez muito mal a muita gente, mas só que... Sei lá, parece que você está castigando os dois com a mesma brutalidade de Velazco pelas coisas que só Velazco fez.
Fredrik balança a cabeça para mim, melancólico.
— Não. Os filhos de Velazco e os homens que trabalham para ele são quem põe a mão na massa de verdade. São eles que realizam os sequestros, que executam a maioria dos assassinatos e estupros. Cada um deles merece o que vai receber.
— Mas como você sabe que André Costa e David sequestraram, estupraram ou mataram alguém?
— Tenho minhas fontes — afirma Fredrik. — É só isso que você precisa saber.
— Achei que eu fazia parte desse esquema — respondo, um pouco ofendida.
— Não é você quem vai matar os caras. — Fredrik enfia as mãos nos bolsos do jeans. — Se um dia você precisar matar alguém, aí vai poder fazer quantas perguntas quiser.
Não gosto dessa resposta, mas aceito e deixo por isso mesmo. Suspiro, vou até a parede e me encosto nela, cruzando os braços e apoiando um pé na parede atrás de mim para manter o equilíbrio.
— Por falar em matar pessoas, sinto que Hamburg e Stephens estão cada vez mais distantes. Estou cansada de esperar. Quero matar os dois. Quero fazer isso de uma vez.
Fredrik se aproxima, apoiando as costas na parede também.
Olhamos para a rua, observando os carros passarem no sinal verde.
— O que você vai fazer quando eles estiverem mortos? Vai parar por aí? Acabar com eles, se vingar e então tocar a vida?
— Não — respondo, sem olhar para Fredrik, a voz distante porque minha mente está dispersa, pensando em tudo. — Não, eles não vão ser os últimos.
Percebo que isso é algo que ainda não contei nem para Victor. Não porque queira esconder dele, mas porque só agora eu mesma me dei conta. Surpresa por minha própria resposta, me perco em pensamentos, olhando para o cruzamento e para os carros que entram e saem de foco.
— Você não é muito diferente de mim. Sabe disso, não sabe? — pergunta Fredrik.
Enfim, inclino a cabeça para o lado e olho para ele. Observo sua silhueta alta e ameaçadora, seu semblante calmo, que sei ser só um disfarce para esconder muito bem o homem perigoso que na verdade habita aquele corpo, não muito abaixo da superfície. Vejo um homem que, embora eu não tenha a menor ideia de por que ou como se tornou o que é, além do que Seraphina fez, sei que passou por algo muito pior do que qualquer coisa que ela pudesse ter feito. Sinto isso. Percebo isso. E, de maneira muito perturbadora, sinto que de alguma forma posso me identificar.
— Pode ser — assumo, desviando o olhar. — Mas quando se trata da maneira como... a gente lida com as pessoas... você e eu não temos nada em comum.
— Ah, não sei ao certo se isso é verdade — retruca Fredrik, com um sorriso na voz.
Talvez o fato de eu não discutir com ele de imediato seja a prova de que ele pode ter razão.
Felizmente, Fredrik muda de assunto.
— Já tomou café da manhã?
— Não estou com muita fome.
Ele desencosta da parede, tirando as mãos dos bolsos e se colocando à minha frente. Acena com a cabeça e diz:
— Vamos, estou morrendo de fome. Tem uma padaria aqui na rua. Faz tempo que não como um doce decente.
Minha primeira reação é recusar o convite, mas então decido ir com ele. Inclino a cabeça para dentro da academia, com metade do corpo para fora, e grito para Spencer e Jacquelyn, do outro lado da sala, informando aonde vou e que volto mais tarde. Spencer, com aquele olhar desconfiado, discute comigo por um segundo, dizendo que eu não deveria perder mais nenhum treino. Ele tem razão, mas sei que me ver saindo da academia com Fredrik é o que o preocupa de verdade.
Momentos depois, entro no carro de Fredrik para irmos à padaria, a alguns quilômetros dali.
— Fredrik, por que você acha que Niklas traiu Victor daquele jeito?
Fredrik entra na rodovia.
— Não sei. Por inveja, talvez. Niklas sempre viveu à sombra de Victor dentro da Ordem. Desde que conheço os dois.
— Certo, mas... — Suspiro, olho de relance para ele e depois mantenho os olhos fixos na estrada. — Eu não entendo por que ele fez isso, tipo... — Encaro Fredrik, formulando o que eu quero dizer. — Niklas tentou me matar para proteger Victor. Ele atirou em mim. Acho que minha dificuldade é entender o que o levou a trair o irmão, depois de tudo o que ele fez para protegê-lo. Como alguém pode mudar tanto assim.
Viramos à direita no Paseo De Peralta, e logo vejo a grande placa oval vermelha da padaria quando nos aproximamos.
— Eu trabalhei com eles por muitos anos — conta Fredrik, observando o trânsito. — Niklas sempre foi meio desequilibrado. Faria qualquer coisa pelo irmão, mas sempre tive a impressão de que ele era uma bomba prestes a explodir. — Fredrik olha para mim e nossos olhares se cruzam por um breve momento. — Para ser sincero, acho que você teve muito a ver com o motivo para Niklas ter traído Victor.
Engulo em seco e olho para baixo por um momento, entrelaçando os dedos nervosamente. Também especulei muitas vezes sobre isso, parte de mim quase convencida de que tudo foi minha culpa, mas eu não apenas não queria acreditar nisso, como também me sentia idiota por me imaginar capaz de abrir tamanho abismo entre duas pessoas. Não sou tão importante assim. Não tenho todo esse poder, nem mesmo sobre Victor.
Com certeza não...
— Por que você acha isso? — pergunto, esperando que nenhuma resposta dele consiga me convencer. Que a resposta seja ridícula, até.
— Porque, de certa forma, Victor escolheu você em vez do irmão.
Todas as minhas expectativas desmoronam ao meu redor. A resposta de Fredrik não é nada ridícula, faz total sentido. E me odeio por isso.
— Victor decidiu sair da Ordem depois que conheceu você — explica Fredrik. — Ele podia ter algumas desavenças com Vonnegut antes, mas, no fim das contas, você foi o estopim. E, mesmo antes de Victor sair, ele estava arriscando a posição que tinha na Ordem e a própria vida para ajudar você. Niklas tentou evitar que Victor se destruísse. Matar você, pensava ele, era a única maneira de fazer isso, porque conversar com Victor a seu respeito não funcionava. Victor até mentiu para Niklas sobre você. — Fredrik me olha de novo. — Na visão de Niklas, Victor escolheu você em vez dele, substituiu o próprio irmão.
Chegamos ao estacionamento da padaria, mas, em vez de entrar, percebo que Fredrik está olhando pelo retrovisor, concentrado nele e na estrada à frente ao mesmo tempo.
Com a sensação clara de que ele está olhando para alguma coisa atrás de nós, faço menção de me virar.
— Não — pede ele depressa.
Tudo naquela palavra me faz estremecer até o âmago. Mas a expressão de Fredrik, seu semblante e o modo como ele continua a guiar de maneira despreocupada, com as mãos na parte de baixo do volante, parecem indicar que não há nada de errado.
— O que foi? — pergunto, incapaz de mascarar como ele a preocupação na voz.
— Estamos sendo seguidos.
Meu coração dá um salto e paro de respirar por um momento. Estou louca para olhar para trás, mas opto em vez disso por olhar pelo retrovisor do meu lado, sem fazer nenhum movimento drástico. Uma SUV preta, que parece um Navigator, está na nossa cola.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
Sarai
Minhas mãos estão apertadas nos cantos do banco de couro vermelho onde estou sentada. Não tiro os olhos do espelho retrovisor nem paro de pensar na possibilidade de ser quem estou pensando e de que vai acontecer o que imagino. Não consigo ver o passageiro nem o motorista através dos vidros escuros da SUV.
— Tem certeza? — pergunto.
Fredrik liga a seta e nós viramos à esquerda na esquina seguinte. Ele mantém o carro abaixo do limite de velocidade e parece evitar que os ocupantes do veículo de trás saibam que ele está ciente da presença deles. Só espero que ele esteja errado.
— Eles estão nos seguindo desde que saímos da academia — explica Fredrik, e meu coração afunda. — Estavam nos espionando, estacionados no terreno do outro lado da rua.
— Então foi por isso que você decidiu tomar café.
Fredrik assente e vira à direita no semáforo seguinte.
Estou me torturando por dentro. Eu me sinto insignificante e inexperiente por não ter sido esperta o bastante para notar essas coisas. Não observei direito ao meu redor para saber que estávamos sendo vigiados o tempo todo. Mas este não é o lugar nem o momento de ficar frustrada comigo mesma. Só espero que haja tempo para isso mais tarde.
— O que a gente vai fazer? — pergunto, nervosa.
Fredrik afunda o pé no acelerador, e de repente estamos a 80 quilômetros por hora em uma via de 55, seguindo direto para a rampa de acesso à rodovia. A SUV está bem próxima e continua no nosso encalço. Agarro o cinto de segurança, aperto-o com mais força e volto a me segurar no banco.
— Vamos despistar esses caras — responde Fredrik, aumentando a velocidade de 80 para 110 quilômetros por hora em poucos segundos ao pegarmos a estrada.
Estou me segurando, desesperada, com o coração na garganta, enquanto nosso carro costura loucamente, entra e sai do tráfego, corta outros veículos e até os ultrapassa pelo acostamento. Mas a SUV continua na nossa cola, abrindo espaço pelo mesmo caminho que fazemos. Buzinas ecoam barulhentas, furiosas conosco ao passarmos a toda a velocidade.
— SE SEGURA! — grita Fredrik.
No mesmo segundo, Fredrik faz uma curva brusca, passando da faixa do meio para a da direita, a poucos centímetros do para-choque da frente de um carrinho branco, e sou jogada contra a janela lateral. Ouço os pneus cantando, os nossos e os do carro branco, e então sou arremessada para o outro lado do assento quando ele endireita o veículo com um golpe do volante.
Desajeitada, me viro no banco da frente, com o cinto de segurança ainda preso ao corpo e tentando me segurar no lugar, vendo a SUV surgir de trás de um carro azul. O carro patina para a esquerda, tentando sair do caminho, e bate no carro branco que acabamos de ultrapassar. Os dois automóveis giram com violência no meio da rodovia, e o branco para com uma freada brusca na faixa da esquerda, quase batendo na barreira de concreto que separa uma pista da rodovia da outra. Os pneus soltam fumaça. O carro azul capota de lado. Solto um gemido e levo as mãos à boca.
A rodovia fica toda parada, do ponto do acidente para trás, todos menos nós e a SUV, que nos segue de perto. À frente, as pessoas, vendo o que está acontecendo, já abrem caminho para passarmos. Seguimos como foguetes a 140 quilômetros por hora, obrigando uma fila de carros a parar no acostamento.
Quanto mais nos afastamos do acidente, mais numerosos são os carros à nossa frente, e voltamos à mesma situação anterior, costurando em meio aos veículos, com buzinas tocando e meu corpo batendo na porta e na janela a cada virada mais brusca.
Fredrik passa depressa para a faixa da esquerda, a faixa mais rápida.
— A gente precisa sair da rodovia!
— Precisamos despistar os caras antes!
— Como é que a gente vai fazer isso, cacete? — pergunto, olhando para trás de novo. Eles ainda estão perto de nós, os para-choques a centímetros de distância.
Fredrik não responde. Ele está vigiando tudo, mantendo os olhos na estrada em frente, nos carros ao redor e na SUV atrás. Depois de alguns minutos, começo a achar que ele está montando um plano na cabeça.
De repente, no último segundo, Fredrik sai da faixa rápida, atravessa três faixas e pega a saída da rodovia a 110 quilômetros por hora, passando a centímetros da parede de concreto e dos barris laranja que separam a saída da rodovia. Foi tudo tão rápido que a SUV não teve tempo de prever o que Fredrik ia fazer e pegar a saída atrás de nós. Bato a cabeça na janela lateral. Há um semáforo no fim da estrada, mas Fredrik está indo rápido demais para parar e passa com tudo. Felizmente, essa estrada não parece muito movimentada, e nenhum carro bate no nosso.
— Que porra foi essa? — grito com a mão no peito, tentando controlar meus batimentos cardíacos.
Ele não responde até estarmos bem longe da saída, depois de cruzar várias ruas. Ambos continuamos olhando em todas as direções, procurando a SUV.
— Se eu ficasse na pista da direita — explica ele —, o cara ia entender que eu queria pegar a primeira saída.
Por mais que aquilo quase tenha me matado de medo, não posso negar que o plano louco de Fredrik funcionou.
— Você podia ter matado a gente!
— Até parece que isso é novidade para você — provoca ele.
Eu rio alto.
Fredrik retorna para a rodovia na direção oposta, de volta para a academia de krav maga. Contudo, antes de chegarmos perto do destino, ele vira em uma rua que não conheço.
— Aonde a gente está indo?
— De volta para Albuquerque — responde ele. — Pelo caminho mais longo. Só por segurança.
Seis horas de vigilância obstinada pelas janelas da casa, e o carro de Victor enfim estaciona na entrada da garagem. Fredrik e eu ficamos de pé assim que ouvimos as pedrinhas estalando e se partindo debaixo dos pneus.
Victor deixa a chave na bancada da cozinha primeiro e vem para a sala, pondo a maleta na mesinha de centro.
— Algum sinal deles? — pergunta ele a Fredrik antes de falar qualquer outra coisa.
Ele me olha, e não consigo decifrar sua expressão, o que, como aprendi, em geral significa que ele tem coisas demais na cabeça e está tentando se manter concentrado.
Antes que Fredrik responda, Victor me pergunta:
— Você está bem? Está ferida?
— Não, não estou ferida. — Desvio o olhar para a parede quando ouço Fredrik falando.
— Não fui seguido até aqui. Garanti que isso não acontecesse. Fiz um desvio de uma hora do caminho só para ter certeza. E não tem nenhum sinal de que alguém esteve aqui, só alguns carros na estrada, mas nada suspeito.
Victor dá a volta na mesinha de centro, senta-se nela do jeito que eu mesma muitas vezes faço e me encara quando me sento no meio do sofá, também olhando para ele. Parece preocupado. E furioso. Não comigo, mas com quem estava naquela SUV, acho.
— Antes que você diga qualquer coisa...
— Como falei para Fredrik — interrompe ele, com calma, pondo as mãos entre as coxas e apoiando os cotovelos nas pernas —, eu não esperava que você ficasse aqui, enfurnada nesta casa durante toda a minha ausência. Não peça desculpas por ter saído.
Surpresa com essa tolerância, fico sem palavras por um momento.
— Eu não iria para qualquer outro lugar — digo, enfim, ainda sentindo que fiz besteira de novo. — Achei que, como eu já tinha passado tanto tempo lá treinando com Spencer, não faria diferença se eu decidisse ir hoje ou esperasse até você voltar.
— E você estava certa — afirma Victor. Ele coloca as mãos nos meus joelhos. — A questão não é você ter saído. — Ele olha para Fredrik, que se senta no lugar vazio. — A gente precisa descobrir como eles sabiam onde você estava.
Vejo algo no rosto de Victor que Fredrik não consegue ver, algo que me deixa tensa. Victor tem o ar de um homem que desconfia de alguém, que desconfia de Fredrik. Olho para um e para outro, tentando entender os pensamentos de Victor. Será que estamos revivendo o que aconteceu com Samantha no Texas? Será que Victor depositou muito da pouca confiança que tem na pessoa errada mais uma vez? Esse era o teste, então? Deixar Fredrik sozinho comigo?
Cerro os punhos e minhas unhas afundam na pele das mãos. Victor me usou para testar a lealdade de Fredrik?
— Já andei pensando nisso — diz Fredrik. — E espero estar errado, mas tenho a sensação de que sei como encontraram Sarai.
Era algo que Fredrik e eu já havíamos discutido antes de Victor chegar. Mas agora... agora que estou vendo a desconfiança nos olhos de Victor, não consigo deixar de me perguntar se nesse tempo todo, enquanto esperávamos a volta dele, Fredrik não estava apenas enchendo minha cabeça de mentiras para nos despistar da possibilidade de ter sido ele.
Agora não confio em nenhum dos dois. Eu me sinto uma prisioneira de novo, presa entre homens perigosos dos quais sei que não posso fugir.
E meu coração dói.
Victor tira as mãos dos meus joelhos e dirige sua atenção para Fredrik. Continuo calma e imóvel, fazendo o que sei fazer melhor: fingindo.
— Acho que a gente deveria ir para Phoenix quanto antes — continua Fredrik. — Eu tentei ligar para Amelia, imaginando que talvez ela soubesse de alguma coisa, mas ela não atendeu nem retornou minhas ligações. Não é do feitio dela.
Victor se levanta da mesinha de centro e se senta ao meu lado, curvando-se para abrir sua maleta. Ele tira o laptop e passa o dedo em um sensor para destravá-lo.
— O que você está fazendo? — pergunto.
— Verificando meus equipamentos de vigilância na casa de Amelia — explica ele, abrindo algum programa na área de trabalho. — Não faço isso desde que tiramos a sra. Gregory de lá.
Alguns minutos depois de vasculhar vários vídeos (um deles claramente relevante, no qual homens entram na casa de Amelia e a capturam), ele balança a cabeça e fecha o laptop.
— O que foi? — pergunta Fredrik.
Victor guarda o laptop na maleta.
— Eles estiveram lá. O vídeo é cortado logo depois. Devem ter achado um dos dispositivos que eu plantei na noite em que levei Sarai para ver a sra. Gregory.
Fico em pânico pensando no que Stephens pode ter feito com Amelia, ou mais ainda com o que ela pode ter contado a eles.
— Fredrik tem razão — digo. — A gente precisa ir para Phoenix.
— Então vamos. — Ele estende a mão para mim.
Com relutância, seguro sua mão e fico de pé com ele. O que quero, na verdade, é lhe dar um belo tapa na cara.
— Victor? — chamo quando ele me dá as costas, na direção da porta.
Ele para e se vira a fim de me olhar.
— Nada disso estaria acontecendo se Hamburg e Stephens já estivessem mortos.
Phoenix, Arizona – 1h
Pegamos um voo para Phoenix e um táxi até a casa de Amelia. Ao que tudo indica, uma viagem de seis horas de carro estava fora de cogitação, pois Victor quer respostas já, sem perder mais tempo. Temo que Amelia esteja morta, uma vez que não respondeu às ligações de Fredrik. Acho que ele pensa a mesma coisa. Quando ainda estávamos em Albuquerque, cada vez que ligava e ela não atendia, Fredrik ficava mais frustrado. Preocupado, até. Eu achava aquilo estranho vindo de alguém como ele, que parece usar as mulheres para sexo e não tem a capacidade de gostar de nenhuma delas. Mas agora não consigo deixar de acreditar que aquilo era tudo teatro, que ele só estava fingindo se preocupar com ela, quando, na verdade, ele mesmo deve ter matado Amelia.
Em todo caso, fico feliz por termos tirado Dina da casa antes de isso acontecer.
O táxi nos deixa a uma quadra da casa de Amelia, e andamos o resto do caminho sob o manto da escuridão. A luz da varanda está acesa, revelando o revestimento branco e sujo da lateral da casinha e os degraus de concreto rachado que levam até a porta. Outra luz fraca brilha na janela da sala de estar, onde sombras se movem em um espaço pequeno e dão a impressão de que a luz vem da TV ligada. Quando subimos os degraus de concreto e ficamos diante da porta, Victor gira a lâmpada quente acima da nossa cabeça, apagando a luz.
Fredrik vai até a janela e olha para dentro.
Victor fica na minha frente e tenta me empurrar discretamente para trás dele com o intuito de me proteger, mas afasto sua mão. Ele vira de lado e olha meu rosto, zangado. Cerro os dentes e balanço a cabeça, revelando que estou furiosa e que é melhor ele não me tocar.
Ele desvia o olhar, mantendo a atenção em Fredrik.
— Não estou vendo Amelia — sussurra Fredrik. — Nenhum sinal de luta.
Victor saca sua 9mm das costas, põe a mão na maçaneta e tenta virá-la. Está trancada. Fico nervosa quando Fredrik puxa a arma também. Victor fica para trás e acena para que Fredrik entre na frente dele. Parece que ele quer que Fredrik bata na porta, mas acho que a ideia é ficar de olho nele.
Fredrik bate três vezes e nós esperamos. Victor não olha mais para mim, nem eu esperava que fizesse isso, em uma hora dessas. Também fico mais interessada nos gestos de Fredrik, esperando que ele nos ataque a qualquer momento.
Há movimento lá dentro. A cortina da janela perto da porta se mexe, e então ouvimos o som de um corpo pressionando a própria porta enquanto quem está lá dentro espia pelo olho mágico. Desta vez, Victor me força a ficar atrás dele, e não discuto, mais preocupada com quem está lá dentro do que com meu ressentimento em relação a ele.
Ouço a correntinha deslizando, depois o clique de um trinco, e então o som da maçaneta virando devagar. Quando a porta se move, abre apenas alguns centímetros, e um rosto bonito olha pela fresta, com o longo cabelo louro desgrenhado ao redor dos olhos inchados.
— Fredrik? — chama Amelia, em voz baixa e ríspida. — Você não deveria estar aqui. — Vejo que ela olha para todos os lados, nervosa, espiando a rua atrás de nós.
Victor fica na frente de Fredrik e empurra a porta com a palma da mão. O cheiro de um pot-pourri de canela e café queimado invade minhas narinas. Amelia dá um passo para trás, enfiando as mãos entre os braços cruzados, cobertos por um roupão de banho azul que vai até pouco acima dos tornozelos. O lado esquerdo do rosto tem muitos hematomas e há sangue no branco do seu olho. Seu lábio parece estar se recuperando de um corte.
Victor me empurra para dentro da casa com ele e Fredrik nos segue, fechando e trancando a porta em seguida. Antes que qualquer um fale, Victor e Fredrik vasculham cada cômodo da casa, de armas em punho, certificando-se de que ninguém está à espreita.
Eles voltam para a sala ao mesmo tempo, enfiando as armas na cintura.
— O que aconteceu com você? — pergunta Fredrik a Amelia. — Por que não atende ao telefone?
Ela está tiritando, os braços tremem dentro do roupão.
Victor olha para tudo, menos para ela. Ele começa a vasculhar a sala, mas sei que também está prestando atenção em cada palavra que ela diz.
— Não atendi porque sabia que era você — explica ela para Fredrik. — E você não deixou nenhum recado. Nunca deixa recado. Eles grampearam meu telefone, Fredrik. Eu não podia correr o risco de atender.
Fredrik segura Amelia com delicadeza pelo cotovelo e vai com ela até o sofá. Ele se senta ao lado dela.
— Me conte o que aconteceu — insiste ele.
Eu me sento na borda da poltrona do canto, com as costas encurvadas, as mãos cruzadas entre as pernas.
Amelia olha para Victor, que está passando os dedos por uma estante, procurando alguma coisa.
— Eles acharam todas aquelas coisas — anuncia ela. — Quando entraram aqui, três homens reviraram a porra da minha casa, colocaram tudo de cabeça para baixo, procurando aqueles aparelhos, ou sei lá o quê, escondidos pela casa toda.
Ele volta a vasculhar, mas se mantém no nosso campo de visão. No meu campo de visão.
Amelia se volta para Fredrik. Ela está sentada com as mãos entre os joelhos, a perna direita inquieta, batendo o pé no tapete cor de ferrugem.
— Eles vieram três dias depois que vocês foram embora — continua ela. — Me amarraram em uma cadeira da cozinha. Me espancaram. Ameaçaram minha família...
— O que você contou para eles? — interrompe Victor, parado na frente de Amelia.
— Eu não tinha nada para contar — diz ela, o medo cada vez mais evidente em sua voz trêmula. — Eles queriam saber onde ela estava. — Amelia olha para mim. Agora que estamos na sala com a luz da TV, noto como sua pele está amarela ao redor do olho. — Mas eu não sabia. Não podia contar o que eu não sabia. Merda! Eles também queriam saber onde Dina estava. Isso eu também não sabia. Eles não acreditaram, por isso me espancaram mais! — Ela respira fundo e tenta se controlar, talvez para não chorar. Parece prestes a cair no choro.
— Mas você deve ter contado alguma coisa para eles — sugere Fredrik, ao lado dela. Sua voz tem urgência, mas não é totalmente acusadora. — Pense, Amelia.
Amelia olha para as mãos trêmulas e afasta o cabelo louro desalinhado do rosto.
— E-eu não aguentava mais — conta ela, envergonhada, sem conseguir olhar Fredrik nos olhos. Ela olha para o tapete. — Achei que eles fossem me matar, me espancar até a morte. E-eu só contei que Dina a chamava de Sarai e que me falava dela, às vezes. — Amelia encara Fredrik, preocupada, esfregando os cantos dos olhos vermelhos. — Mas não era nada que eu achasse que eles poderiam usar.
— O que você contou? — pergunta Victor, com severidade.
Ela olha para ele.
— E-eles pediram informações recentes, qualquer coisa que Dina tenha me dito sobre Sarai, ou Izabel, ou sei lá qual o nome dela. Queriam alguma coisa atual. Eu pensei muito nas conversas que Dina e eu tivemos sobre ela, e o que me lembrei foi de quando vocês estiveram aqui. Ela falou de treinar. Maga ou qualquer coisa assim.
Pisco e balanço a cabeça. Lembro que contei a Dina que eu estava aprendendo krav maga.
Dou um salto da poltrona.
— Porra, eu não aguento mais! — grito. — Victor, desculpa. E-eu só faço merda. Você tinha razão. Essa vida não é para mim. Eu queria muito que fosse, mas não dá mais. Todo mundo vai morrer por minha causa!
Por um momento, esqueci que ele parece ter me usado para testar a lealdade de Fredrik. Talvez não tenha esquecido, mas deixei isso de lado por enquanto, porque minhas atitudes idiotas são mais imperdoáveis do que o comportamento de Victor.
Victor segura minha mão e faz com que eu me sente de novo.
— Você contou para Dina Gregory onde estava treinando? — pergunta ele, com voz calma.
— Não — respondo, olhando para ele. — Tomei o cuidado de não dar informações detalhadas. Nem contei onde eu estava morando. Nós três estávamos só conversando na cozinha. Dina queria saber o que eu andava fazendo. Foi uma conversa casual.
Fredrik olha para Victor.
— Stephens deve ter posto homens para vigiar todas as academias de krav maga daqui até a Flórida desde aquele dia. Isso explicaria por que eles levaram quase três semanas para descobrir em qual delas Sarai estava treinando.
— Espere aí... — intervém Amelia, como se tivesse acabado de pensar em algo horrível. — Dina está bem? Por favor, me digam que ela está bem. Eu queria minha casa de volta só para mim, mas gostava muito daquela mulher. Ela era gentil comigo.
— Dina Gregory está ótima — responde Victor, e tanto Amelia quanto eu ficamos aliviadas.
Amelia solta um suspiro de gratidão, mas seu corpo volta a ficar tenso e ela encara Fredrik com desespero no olhar, esticando o pescoço na direção dele.
— Ma-mas vocês não podem ficar aqui. Precisam ir embora. — Ela olha para nós. — Todos vocês.
— Esta era a minha próxima pergunta — observa Victor. — Por que eles não mataram você?
— Eles esperavam que vocês voltassem — explica Amelia. — Ou ao menos que tentassem me ligar. — Seus olhos correm para Fredrik de novo. — Eu não podia atender.
Fredrik assente, aceitando a explicação e as desculpas e deixando claro que a entende.
Amelia se vira para Victor.
— Depois de um tempo, fingi que odiava todos vocês — continua ela. — Reclamei de estar com raiva de Fredrik por desovar aquela velha coroca no meu colo daquele jeito. Aí falei um monte de merda sobre você. — Amelia se volta para Fredrik. — Quando enchi a cabeça deles de baboseiras, eles acharam que podiam me usar para encontrar vocês, para atrair vocês até aqui. Eu era só uma mulher desprezada que queria se vingar de Fredrik. Era isso que eu queria, ganhar a confiança deles para que não me matassem. Eu estava com medo, Fredrik. Acho que eles me matariam se eu não fizesse isso.
Fredrik assente de novo. Noto que ele quer pôr a mão no joelho dela para acalmá-la, mas não consegue porque o gesto o deixa constrangido. Em vez disso, ele oferece mais palavras de consolo.
— Você fez a coisa certa — afirma ele, com gentileza. — E tem razão, eles iam mesmo matar você.
Ele fica de pé e olha para Victor.
— A única pergunta sem resposta — afirma Fredrik — é como eles souberam que deveriam vir até aqui. — Ele levanta as mãos em um gesto de rendição. — Juro que não fui eu.
Meu corpo fica tenso. Olho de um para outro, tentando interpretar suas expressões. A tensão na sala aumenta, quase me afogando, mas logo percebo que a tensão é toda minha, pois estou me preparando para algum tipo de enfrentamento entre os dois. Contudo, quanto mais olho, mais sinto que Fredrik está dizendo a verdade e que Victor acredita nele.
— Eu sei que não foi você — diz Victor, enfim.
Fico atordoada. E confusa. E um pouco incomodada com a confiança imediata de Victor.
— Como é que você sabe? — pergunto, com rispidez.
— Porque, se Fredrik fosse entregar você, não faria sentido contar para eles onde Dina Gregory já esteve. Semanas atrás.
Rosno e cruzo os braços.
— Você me usou para testá-lo — disparo. — Você me deixou sozinha com Fredrik para ver se ele ia trair você e contar a Stephens onde me encontrar. — Eu o fuzilo com os olhos de maneira acusadora e implacável. Não é a hora nem o lugar de confrontá-lo com isso, mas não consigo mais me segurar.
Victor se aproxima e estende as mãos, querendo segurar meus braços. Tento me afastar, mas a poltrona está no caminho. Suas mãos quentes tocam minha pele, aqueles dedos longos segurando meus bíceps. Ele olha nos meus olhos e eu vejo sinceridade e determinação em seu rosto.
— Não foi isso que eu fiz — insiste Victor. — Você precisa confiar em mim quanto a isso. E precisa confiar em Fredrik. O inimigo não é ele.
— É tão fácil julgar e confiar — digo, irritada. — Então por que você me deixou sozinha com ele daquele jeito? O que significou aquela conversa antes de você ir embora sobre confiar nos meus instintos?
As mãos de Victor me soltam.
— A gente precisa sair daqui — diz ele.
Ele se vira para Fredrik, e me sinto ao mesmo tempo furiosa com a falta de explicações e apreensiva com o tom de urgência.
— Fredrik — continua Victor —, a decisão é sua. Pode levá-la para um abrigo ou deixá-la à própria sorte aqui.
Amelia, alerta e apavorada, arregala os olhos inchados e vermelhos. Ela se levanta do sofá em um salto, deixando abrir o roupão na cintura e revelando uma camisola branca por baixo.
— O que isso quer dizer? — pergunta ela, aterrorizada, mexendo na faixa do roupão para fechá-lo de novo. Ela encara Fredrik. — O que ele está dizendo, Fredrik?
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Victor
Sarai se culpa por muitas coisas, e em alguns casos com razão. Foi tolice falar do treinamento com Spencer — mesmo que de maneira tão vaga — para Dina e Amelia. Mas ela tomou cuidado com as informações que decidiu divulgar. Foi cuidadosa, mas não o suficiente. Sarai é jovem. Inexperiente. No entanto, está aprendendo, e aprender do jeito mais difícil, no fim das contas, é de fato a única maneira.
— Você não vai aprender a nadar lendo um livro — digo a ela, na viagem de volta para Albuquerque. Desta vez, achei melhor pegarmos um carro para voltar, em vez de nos arriscarmos em aeroportos de novo. — É a melhor maneira, Sarai. Para aprender com os erros, você precisa errar. De verdade. Nenhum tempo de treinamento, nenhuma situação ensaiada vai ensinar melhor do que a vida real.
Sarai está sentada em silêncio no banco do passageiro, olhando pela janela. Ela não quer olhar para mim. Mal disse uma palavra desde que saímos da casa do meu contato perto de Phoenix, meia hora atrás. A lua está baixa no céu da madrugada, parecendo enorme sobre a extensão escura da paisagem do deserto.
— Isso não é desculpa — diz ela, enfim, embora com voz distante.
— É uma desculpa — rebato. — Aqui não é Hollywood, Sarai. Você não vai aprender as coisas que quer no tempo em que acha necessário. Você cometeu erros. Vai cometer muitos outros...
Ela se vira de repente para mim.
— Eu disse que não é desculpa. — Ela pronuncia as palavras entre os dentes, com os olhos arregalados e implacáveis. Implacáveis para si própria, não para mim. — Fui eu que me meti nisso. Eu escolhi esta vida. Falei para você que era o que eu queria. Implorei para você me ajudar. — Ela aponta com severidade o indicador para si mesma, hesita e cerra os dentes. — Eu escolhi esta vida. Não sou criança, Victor. Você não pode me dizer que o que fiz não tem problema, que tenho o direito de errar. Porque, nesta vida, erros causam mortes.
Eu a admiro mais agora do que antes. Porque ela entende. Ela se recusa a pegar a saída mais fácil, aceitando o salvo-conduto que lhe ofereço. Ela se recusa a receber a permissão de errar, embora eu saiba que vai errar mesmo assim, porque é humana. E Sarai vai aprender com os erros mais depressa do que alguém que opta por aceitar as desculpas. Ela é uma garota desafiadora. Ela é durona, impulsiva e destemida até demais. Mas é determinada e forte. Apesar da falta de disciplina e de ainda não ter assimilado completamente o raciocínio criminoso e assassino, que é crucial para se manter viva, sei que ela pode dar certo nesta vida.
— Você se arrepende? Você se arrepende da vida que escolheu?
— Não — diz ela, com voz neutra, honesta, com os olhos observando o asfalto negro da estrada ser engolido pelo capô do carro. — Não me arrependo. E não quero desistir.
Ela ergue as costas do banco e me encara de novo.
— Eu quero matar Hamburg e Stephens — afirma, com determinação. — E aí, depois disso... — Ela faz uma pausa, mas não tira o olhar determinado do meu. Só desvio os olhos pelo tempo suficiente de olhar a estrada. — Preciso contar isso para você. É uma coisa que contei para Fredrik. Depois que Hamburg e Stephens estiverem mortos, não quero que eles sejam os últimos.
Desde o momento em que Sarai me disse que queria matá-los pessoalmente, soube que eles seriam apenas os primeiros em uma longa série de futuros assassinatos. Dava para ver essa resolução nos olhos dela, a sede de vingança, a fome de sangue. A morte de Javier Ruiz por obra de Sarai foi o que selou o destino dela. O primeiro assassinato é sempre o estopim, o instante na vida no qual tudo muda, no qual o caráter da pessoa assume uma forma nova e mais sombria. Sei que ela pensa em matar Hamburg todo santo dia, desde a noite em que o conheceu. Sei porque lembro o rosto do meu segundo alvo, o modo como o cacei durante uma semana como um assassino em série caçaria sua próxima vítima. Eu só conseguia enxergar o rosto dele. Tudo o que eu queria era acabar com sua vida miserável do modo como acabei com a do meu primeiro alvo. Porque fui gerado e treinado para isso. Ansiava pelos elogios que Vonnegut me dirigiu depois da minha primeira missão bem-sucedida, aos 13 anos. Vê-lo sorrir com orgulho como sempre quis que meu pai sorrisse. Eu ansiava por saborear a admiração que os outros garotos da Ordem sentiam por mim. Assim, do meu primeiro assassinato em diante, dediquei a vida ao trabalho, abrindo mão do ressentimento por ter sido separado à força da minha mãe. Matei para agradar Vonnegut pela maior parte da minha vida, até que comecei a ver que ele tirava de mim mais do que me dava.
Agora, mato porque é a única coisa que sei fazer.
Sarai e eu matamos por motivos diferentes, somos movidos por necessidades muito distintas, mas, no fim das contas, somos ambos assassinos, e sei que isso nunca vai mudar. Não podemos recuar diante disso, e a maioria dos que matam mais de uma vez não quer.
Volto a olhar para a estrada.
— Isso incomoda você? — pergunta ela, sobre a verdade que acaba de revelar. — Que não quero que eles sejam os últimos?
— Não — respondo, baixinho. — Não me incomoda.
Noto que ela desvia o olhar e o silêncio preenche o carro, restando apenas o som dos pneus se movendo com velocidade na estrada.
— O que vai acontecer com Amelia? — pergunta ela.
— Fredrik vai levá-la para um abrigo ou matá-la.
Eu esperava que ela tomasse um susto e virasse a cabeça ao ouvir isso, mas Sarai nem se sobressalta. Ela assente, aceitando o fato de maneira tão casual quanto eu.
Sarai já está ficando mais dura. Já é inflexível quanto aos próprios erros e não deixa que eles a definam. E, para ter certeza de que não os repetirá, abandona as únicas coisas que lhe restam.
Sua humanidade.
Sua consciência.
Já é fim de tarde quando chegamos em casa. Achei que Sarai fosse dormir a maior parte do caminho, mas ela não pregou os olhos. Está acordada há mais de 24 horas, mas continua alerta, sem exibir nenhum sinal de cansaço. É a adrenalina. Estou bem familiarizado com os efeitos dessa substância sobre a mente. No momento, contudo, estou tão exausto pela viagem que me tornarei inútil se não dormir logo.
Verifico a casa com cuidado antes de considerá-la segura o bastante para relaxar, embora eu tenha conferido as câmeras pelo laptop antes de chegarmos. Não tenho nenhum motivo para crer que Stephens e seus homens saibam onde estamos, mas, como sempre, não posso abaixar a guarda. Ainda é um mistério como Stephens descobriu a existência de Amelia McKinney e Dina Gregory. Não importa o que pareça, sei que Fredrik não teve nada a ver com isso. No entanto, por mais que essa brecha me preocupe, agora ela não importa. Neste momento, sei que vou ter que abandonar meus planos de treinar Sarai por meses ou até anos, dando tempo para que ela talvez mudasse de ideia. Ou decidisse me deixar fazer o trabalho para ela. Sei agora que nada vai fazê-la desistir, e, por mais que eu tente convencê-la, ela nunca vai aceitar que eu faça o serviço.
Talvez eu devesse matá-los assim mesmo...
— Victor?
Sou arrancado de repente da minha reflexão.
Sarai está diante da porta de vidro, olhando para a paisagem infinita do deserto. O sol está se pondo no horizonte, iluminando as grossas faixas de nuvens com um cor-de-rosa profundo.
— Tem uma coisa que eu preciso lhe dizer.
Ando até ela devagar, curioso, impaciente e até preocupado com o que ela vai falar.
— O que é? — pergunto, chegando mais perto.
Ela não se vira para me encarar, em vez disso mantém os olhos no vidro alto e impecavelmente limpo. Seus braços estão cruzados, os dedos pousados nos bíceps.
— Tomei uma decisão — começa ela, com voz baixa e em tom de desculpas. Minhas entranhas estão começando a se revirar. — Só espero que você entenda.
Ela enfim me olha, virando só a cabeça. Seu cabelo castanho, longo e macio, desce em cascatas pelo meio das costas, deixando os ombros à mostra. Ela usou uma blusinha branca de tecido fino durante a viagem de volta. Adoro vê-la de branco. Faz com que pareça angelical, para mim. Um anjo que carrega a morte no bolso.
— Conte — peço, com voz relaxada, embora não esteja nada relaxado, no momento, e não saiba por quê. — Que decisão?
Seus olhos escuros se desviam dos meus, e esse pequeno gesto insignificante parece uma tragédia.
Ela umedece os lábios, mordendo seu suculento lábio inferior por um momento.
— Depois que Hamburg e Stephens estiverem mortos... Eu vou embora. — Ela se vira para me encarar. Meu coração parou de bater. — Vou levar Dina comigo para algum lugar e ficar por minha conta.
Mal consigo organizar meus pensamentos, muito menos formar uma frase mais complexa.
— ... Não entendo.
Sarai inclina a cabeça para um lado e descruza os braços, deixando-os pender soltos em toda a sua elegância. Ela se aproxima de mim. Quero tomá-la nos braços e beijá-la, mas não consigo.
Por que eu não consigo, porra?
— Victor, eu entendo agora que não consigo viver assim. Pelo menos não com você. E com Fredrik. Vocês dois são profissionais, e eu não posso manter essa ilusão de achar que algum dia serei capaz de acompanhar um de vocês, muito menos os dois. — Ela levanta uma das mãos como se eu fosse retrucar, e, embora eu não esteja pronto para falar, percebo que ela deve estar lendo a discordância crescente no meu rosto. — Olha, não estou fazendo isso para chamar atenção. Nem para você me dizer que estou errada. Eu sei que, por mais que eu queira ficar com você, isso não é possível. Se eu não acabar morrendo, vou acabar causando a sua morte. E sei que jamais conseguiria conviver com isso.
— Bom, eu realmente acho que você está errada — digo, com dificuldade, desejando poder explicar melhor.
— Não — rebate ela. — Não estou. E você sabe disso.
— Mas aonde você iria? O que iria fazer? — Meu tom de voz se torna urgente. — Sarai, você já tentou levar uma vida normal. Você tentou, e veja o que aconteceu.
Por que estou dizendo essas coisas? Eu deveria estar comemorando o fato de ela finalmente cair em si.
Ela dá um suspiro suave. Vejo seus ombros delicados se erguendo e baixando.
— Não faça isso — pede Sarai, balançando a cabeça. — Não finge que isso incomoda você, ou que quer que eu mude de ideia. Por favor. Você sabe que isso é o certo, tanto quanto eu sei agora. Se eu tivesse escutado você há mais tempo, se tivesse desistido dessa vingança idiota contra Hamburg e seguido com a minha vida, estaria em casa no Arizona com Dina e Dahlia, e até com Eric...
— Mas você não o amava.
Por que eu disse isso? Entre todas as coisas que eu poderia ter dito, todos os tópicos que poderia ter explorado, por que tinha que ser logo esse?
— Não, não amava. — Ela me olha nos olhos, pensativa. — Mas ele era normal. Era o que você queria para mim, mas na época fui egoísta demais para entender que você estava certo. Aquele tipo de vida era o certo.
Dou um passo para trás.
— Espere — digo, erguendo a mão por um momento e passando a ponta do dedo pela boca, olhando para baixo. — Então você está dizendo que quer uma vida normal agora?
— De jeito nenhum — responde ela, balançando a cabeça. — Eu jamais conseguiria voltar para aquilo. Só estou dizendo que, se eu não tivesse insistido no meu plano de matar Hamburg, as coisas não estariam tão ruins como estão agora.
Inclino a cabeça para o lado, com uma expressão confusa no rosto cada vez mais sério.
— Então o que você está dizendo, exatamente? O que vai fazer? Começar a matar gente por conta própria?
Isso é quase risível para mim, mas não deixo minha opinião transparecer. Sei que Sarai tentaria. Sei que ela mataria e talvez até conseguisse se safar algumas vezes, mas não para sempre. Não sem os recursos que tenho.
— Ainda não decidi — responde ela.
Sarai coloca a mão no puxador da porta de vidro e a desliza, deixando a brisa suave do fim de tarde entrar na casa. Ela sai para o pátio dos fundos.
Estou lá fora ao lado dela antes que minha mente alcance o movimento apressado das minhas pernas.
— Você não está falando coisa com coisa.
Sarai entra no alcance do sensor de movimento, e a luz inunda o pátio de concreto. Ela fica no limite do feixe brilhante, deixando só parte do rosto coberto pela penumbra do sol quase extinto.
— Eu tenho pendências no México — esclarece ela, e fico atordoado. — Hamburg não é a única pessoa que pensei em matar nos últimos oito meses, Victor. — Ela olha para a paisagem plana de novo. Só consigo olhar para ela. — Quando você e Fredrik me contaram que os irmãos de Javier estão no comando da operação, isso só inflamou meu ódio. Eles precisam morrer. Todos eles. Cada um daqueles babacas envolvidos. Todos os Andrés e Davids. — Ela me olha. — Ainda há muitas garotas com eles. Eu sei que havia 21 quando fugi escondida no seu carro. Dezenove agora, sem Lydia e Cordelia. Que tipo de pessoa eu seria se seguisse com a minha vida sabendo que lá no México há uma fortaleza onde um monte de garotas das quais aprendi a gostar estão sendo mantidas à força? Sendo estupradas, espancadas e mortas?
Faço menção de tocá-la, mas paro no último instante.
Não sei por que isso é tão difícil para mim... Por que há tanto conflito dentro de mim...
Sarai sai do alcance do sensor e a luz se apaga, imergindo-nos na meia-luz. Uma brisa leve balança o cabelo dela, fazendo-o dançar suavemente nas costas.
— Isso é tolice, Sarai — digo, enfim encontrando palavras que acho adequadas. — Mesmo com a minha ajuda, fazer uma coisa dessas levaria muito tempo. O que faz você crer que conseguiria sozinha? Como encontraria a fortaleza sem a minha ajuda, para começar?
— Eu consigo fazer isso sozinha — retruca ela, com calma, mas com uma determinação inabalável. — Quer dizer, posso pelo menos tentar, e isso é melhor do que não fazer nada. E você não me dá o crédito que mereço, Victor. Sou tão capaz de somar dois mais dois quanto você. Posso pegar o que aprendi, informações às quais tive acesso, e encontrar o caminho para lá. Não deve ser difícil encontrar Cordelia. Sei que ela mora na Califórnia. Sei que ela é filha de Guzmán e que você foi enviado para a fortaleza por ele para encontrá-la e matar Javier Ruiz por tê-la raptado. Até sem você sou capaz de descobrir a localização da fortaleza. Vou começar com Cordelia e Guzmán.
Minha garganta está seca. Meu estômago parece um bloco de concreto.
Ela tem razão, não lhe dei o crédito que merecia. Sarai é muito mais esperta do que eu imaginava. Sabia que ela era inteligente, mas com certeza fiquei surpreso.
Ela não sorri nem se gaba de tudo isso, só fica ali me olhando concentrada, com intensidade e o tipo de determinação que me assustam tanto. A fúria assassina e vingativa de Sarai é muito mais profunda do que eu pensava, mais profunda do que ela me revelou.
Como não percebi isso?
— E também tem os ricaços que Javier me levava para visitar, me exibindo para que quisessem comprar as outras garotas — conta ela, com desprezo. — Eu lembro o que você me contou. John Gerald Lansen, você disse que ele é o diretor-executivo da Balfour Enterprises. — Sarai assente, confirmando o nome no meu rosto. — É, eu me lembro de muita coisa. E passei muito tempo na casa da Dina antes de ir a Los Angeles para matar Hamburg, pesquisando esses homens. Lembrando aos poucos os nomes, os rostos, somando dois mais dois para descobrir quem eles são, onde moram, quanto dinheiro têm. Quando eu não estava pensando em você, estava mergulhada neles, aprendendo tudo o que podia sobre esses caras com o objetivo de matá-los aos poucos, um por um. — Ela fica na minha frente e me olha nos olhos. — E é isso o que pretendo fazer.
— Você não vai conseguir sem mim.
Estou ficando furioso. Como Sarai pode dizer essas coisas, tomar uma decisão dessas sem me envolver?
Minhas mãos estão tremendo.
Desvio o rosto, sabendo que, se olhar demais, vou me perder nas profundezas daqueles olhos verdes.
— Tolice — digo, pronto para dar a noite por encerrada e acabar com aquela conversa absurda. — Vou tomar banho e dormir. Pode vir comigo se quiser.
Quero que ela aceite.
Sinto que ela não vai aceitar...
— Eu não vou com você. Estou falando sério. Quando isto acabar, quando os dois estiverem mortos, eu vou embora.
Eu me viro para ela com as mãos fechadas, sentindo os punhos da minha camisa branca mais apertados nos meus pulsos.
— Você não vai a lugar nenhum. Não desse jeito. Não vou deixar. — Dou uma risada seca. — Meu Deus, Sarai, você tem mesmo muito a aprender. Estou chocado por você não perceber a idiotice que isso é!
— Idiotice? — repete ela, com desprezo. — Não... Tudo bem, talvez você tenha razão, mas o que é ainda mais idiota é achar que eu poderia ter algum tipo de vida com você. Eu me odeio pelo que fiz você passar, pelo que fiz Dina passar. E estou aqui, como uma órfã abandonada à sua porta, esperando que você cuide de mim, me alimente e me ensine como levar uma vida fora do convencional e não morrer fazendo isso. Você não pediu por isso, eu nunca deveria ter me jogado na sua vida como fiz.
De tanto tempo cerrando com força os dentes sem perceber, eles estão começando a parecer plástico. Meu peito sobe e desce com a respiração profunda, furiosa e até apavorada. Sinto que não pisco há minutos, meus olhos estão começando a secar com a brisa incessante que os atinge. Parece que meu coração quer sair do peito.
Nunca me senti assim antes... pelo menos não desde criança. Nunca estive tão furioso e... assustado.
— Sinto muito ter feito você passar por isso, Victor — repete Sarai, com calma e sinceridade. — Quero agradecer por tudo o que você fez para me ajudar. Duvido que qualquer coisa que eu possa fazer ou dizer retribuirá a sua ajuda. Eu sei. Mas o mínimo que posso fazer é deixar você em paz para viver a sua vida do jeito que você sabe. Você não precisa de alguém fazendo merda o tempo todo.
Ela me dá as costas e começa a se afastar.
— Sarai! — grito, e ela para no mesmo instante. Tento acalmar minha voz. — Espere... espere só um minuto.
Ela se vira para me olhar.
Estou tropeçando nas palavras que se formam na minha cabeça, tentando escolhê-las na minha confusão e juntá-las de forma adequada para que façam sentido. Mas é difícil. É difícil pra cacete!
— Eu... — Olho para os meus sapatos, para a cadeira de ferro batido do pátio, para seus cachos agitados sobre os ombros nus e macios. De novo olho para os meus sapatos. — Eu não quero que você vá embora.
— Mas eu preciso ir, Victor — insiste Sarai, com tanta ternura e compreensão na voz que quase racho ao meio. — Você sabe que preciso. É o melhor para nós dois.
— Não — digo com severidade, erguendo o queixo e me recompondo. Não vou aceitar isso. — Você vai ficar comigo. Eu posso manter você segura. Não vamos mais falar disso. Agora vamos para cama.
Estendo a mão para ela.
— Não, Victor. Sinto muito.
Pego a mão de Sarai e a puxo para perto de mim. Ela não resiste nem se encolhe, tampouco parece surpresa. Seguro seu rosto com as mãos e a admiro, seus olhos quase infantis, embora tão sagazes. Uma pequena loba se esconde dentro daquela corça. Minha loba.
— E-eu quero que você fique comigo.
— Por quê?
— Porque é isso que eu quero.
— Mas isso não é motivo, Victor.
— Não importa, Sarai, você precisa ficar comigo.
— Mas eu não vou ficar.
Eu a sacudo, ainda segurando seu rosto.
— VOCÊ NÃO PODE IR EMBORA! — Minha alma está tremendo. Não consigo suportar essas emoções.
Ela ainda não reage, mas vejo seus olhos começando a marejar.
Sarai balança a cabeça nas minhas mãos com delicadeza.
— Eu vou embora e não tem nada que você possa fazer para mudar isso.
— NÃO, SARAI! EU PRECISO DE VOCÊ NA MINHA VIDA!
De repente, eu a solto e olho para minhas palmas, abertas à frente, como se de alguma forma elas tivessem me traído. Meu peito se agita em um turbilhão, como se emoções que estavam adormecidas durante a vida toda tivessem enfim acordado e eu não soubesse mais o que fazer.
Querendo apenas me esconder no quarto para tentar entender o que acaba de acontecer comigo, giro sobre os calcanhares e sigo para a porta de vidro.
— Victor. — Eu a ouço chamar baixinho atrás de mim.
Paro. Não tenho forças para me virar.
Sinto que Sarai se aproxima por trás, sinto o calor de sua presença, o aroma doce da sua pele.
— Olhe para mim — pede ela, com a voz leve como a brisa.
Eu me viro devagar.
Ela se aproxima e segura meu rosto com as mãos, com mais delicadeza do que quando segurei o dela. Inclina a cabeça para um lado e depois para o outro, me encarando com os olhos cheios de lágrimas. Ela fica na ponta dos pés e me beija de leve na boca.
— Não reprima nada — diz ela, com uma urgência suave. — Diga tudo o que está sentindo agora. Neste exato momento. Por mais errado, constrangedor ou esquisito que pareça, diga assim mesmo. Por favor...
Não notei quando minhas mãos se ergueram e seguraram os pulsos dela, com a mesma delicadeza com que seus dedos tocam minhas bochechas. E me examino por dentro, tentando entender o que Sarai está fazendo comigo. O que ela fez comigo. Penso no que ela disse e, contrariando minha aparência tão dura, só quero lhe dar o que ela deseja.
— Eu... Sarai, eu nunca me senti assim antes. — Não consigo olhá-la nos olhos, mas ela me força a isso mesmo assim.
— Conta tudo. Eu preciso ouvir.
O desespero na voz dela é apaixonado e condiz com o que sinto por dentro. Examino o rosto dela. Seus olhos. Sua boca, os lábios tão suavemente entreabertos que fazem a boca parecer inocente e convidativa. As maçãs do seu rosto. Seu queixo. A linha elegante do seu pescoço.
Mas os olhos dela...
— Sarai, você é importante para mim — digo, desesperado, em um murmúrio urgente. — Você é mais importante para mim do que qualquer coisa ou qualquer pessoa. Ter você aqui comigo não é um fardo. Eu quero treinar você. Pelo tempo que for necessário. Quero acordar todo dia com você ao meu lado. Preciso de você na minha vida mais do que jamais precisei ou quis qualquer outra coisa.
Faço uma pausa e olho para baixo. E então me afasto dela. Suas mãos abandonam meu rosto.
Engulo em seco.
— Não vou forçar você a ficar comigo — obrigo-me a dizer, apesar do que sinto. — Mas saiba de uma coisa... Se você partir, você vai se tornar um fardo. Se você acha que ficando aqui vai foder a minha vida, nem faz ideia de como isso vai ser verdade se tentar ir embora e ficar sozinha. Porque eu vou passar cada momento de cada dia da minha vida tentando proteger você! — Meu coração está disparado. — Não vou conseguir dormir sabendo que você está por aí, tentando se encaixar em uma vida que não passa de uma sentença de morte para quem não tem um treinamento adequado! Sarai... ISSO VAI ME MATAR! SERÁ QUE VOCÊ NÃO ENTENDE? VOCÊ VAI ME MATAR SE DECIDIR IR EMBORA! — Estou tremendo todo, meu corpo todo abalado por dor, medo e angústia.
Em um segundo, Sarai está diante de mim novamente, a poucos centímetros do meu peito, seus dedos dançando no meu rosto como instantes atrás. Ela parece calma. Mas há algo mais em seus olhos, agora, algo que não estava lá há pouco. Alívio? Felicidade? Não consigo decifrar a emoção, quando tudo o que quero é puxá-la para perto de mim e abraçá-la até morrermos.
Ela passa a ponta do dedo indicador sob meu olho. Uma lágrima.
Uma lágrima?
Consumido pela confusão, não consigo falar nem me mexer. Olho primeiro para a mão dela e vejo o que resta da lágrima brilhando em seu dedo. Volto a fitar seus suaves olhos verdes, que estão sorrindo para mim, não com arrogância, mas com ternura.
Lobinha esperta...
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
Victor
— Desculpa — pede ela, com nada além de ternura. — Mas eu precisava saber o que você sentia de verdade, Victor.
Eu me sento na cadeira de ferro preto do pátio, esticando as pernas. Colocando o cotovelo no braço da cadeira, apoio a cabeça exausta nas pontas dos dedos.
Sarai se ajoelha na minha frente, no meio das minhas pernas estiradas.
— Ficar com você significa mais para mim do que fazer parte do seu trabalho. Eu precisava saber que você quer de mim a mesma coisa que quero de você. E... quando estamos juntos, sempre sinto que sou mais parte do seu trabalho do que do seu coração.
Ela tenta encontrar meu olhar, mas estou concentrado demais no chão de concreto. Ouço cada palavra que Sarai diz, mas ainda estou muito perplexo com as emoções que ela arrancou de mim para olhá-la nos olhos.
Sinto que não consigo encará-la. Não por estar com raiva dela, mas por vergonha.
— Você tem sido impenetrável desde o dia em que nos conhecemos — continua ela, segurando minha mão. — A única situação em que sinto uma ligação emocional de verdade com você é quando dormimos juntos. Eu ficava muito frustrada. Porque sabia que, por baixo de todas essas suas camadas, isto, isto aqui... — ela aperta meus dedos enfatizando essas palavras — ... que você acabou de me mostrar estava lá o tempo todo, só querendo ser libertado. Eu... Victor, por favor, olha para mim.
Relutante, levanto a cabeça e a olho nos olhos.
— Eu não quero ser o seu trabalho. Quero trabalhar com você. Quero aprender com você. Mas quero sentir que sou importante do ponto de vista emocional quando o trabalho não estiver interferindo. Victor, eu sei que não é culpa sua. Sei que você não pode mudar seu jeito, o modo como você se isola emocionalmente do mundo. Mas eu precisava tentar ajudar a desfazer o que Vonnegut e a Ordem fizeram com você.
— Você me manipulou — afirmo, sem dizer mais nada.
Ela abaixa o olhar.
— Desculpa.
— Não peça desculpas. — Ergo as costas da cadeira, inclinando o corpo para a frente e enfiando as mãos sob os braços de Sarai. Eu a levanto e a ponho no meu colo. — Nunca peça desculpas.
Com uma das mãos, viro o queixo dela na minha direção, para fazê-la me olhar.
— Você fez o que precisava fazer — digo, e espero que ela se lembre disso mais tarde. — Não posso culpar você.
— Não está bravo? — pergunta ela.
Balanço a cabeça.
— Não. Acho que “grato” é um termo melhor.
Ela sorri. Eu também sorrio e a beijo.
— Parece que estamos ajudando um ao outro.
Ela inclina a cabeça, pensativa, e presta atenção.
— Sarai, eu estou ajudando você a se tornar o que quer ser, a viver a vida que escolheu viver. Você nunca teve direito de escolha antes. E você está me ajudando a recuperar o tipo de vida que tiraram de mim, me mostrando como é ser algo mais do que um assassino, a sentir algo mais do que a necessidade de matar. E, por isso, eu jamais poderia ficar bravo com você.
Ainda acomodada na minha perna esquerda, ela se curva e me beija de leve no canto da boca. Seguro sua cintura com as duas mãos, entrelaçando os dedos. Ficamos assim em silêncio por alguns momentos. O sol já sumiu do horizonte e as estrelas estão acordadas na escura imensidão do céu que paira acima de todos nós, em uma exuberância de tirar o fôlego.
— Então, quanto daquilo era verdade? — pergunto a ela.
— Tudo — responde Sarai. — Menos a parte sobre eu ir embora.
Balanço a cabeça, distraído, pensando muito em todas as coisas que ela me revelou esta noite.
— Você sabe que ninguém vai nos pagar para voltar ao México. Seria só um acerto de contas.
— Eu sei. — Ela assente. — Mas é importante para mim. Aquelas garotas são importantes para mim.
Passo a mão esquerda pelas costas dela e a apoio em sua nuca. Puxando-a na minha direção, aninho sua cabeça no meu ombro.
— Então é importante para mim. Pode levar meses, até um ano ou dois, para juntar todas as informações de que precisamos, todos os recursos, mas vamos conseguir. E vamos conseguir juntos. Mas você precisa me prometer que vai ser paciente e vai...
— Eu dou a minha palavra — interrompe ela. — Não importa quanto tempo leve. E vou seguir os seus comandos e as instruções em cada passo. Não vou cometer os mesmos erros de novo.
Logo depois da nossa conversa no pátio, levo Sarai para o banheiro e lavo o cabelo dela, sentada entre as minhas pernas na banheira.
Conversamos por um longo tempo sobre a vida como era antes. Sobre quando ela morava com a mãe, antes que a mãe descobrisse as drogas e os homens. Quando elas se sentavam juntas para assistir a desenhos animados na TV nas manhãs de sábado. Falamos sobre a minha vida antes que eu fosse capturado pela Ordem. Sobre como eu jogava Dosenfussball (futebol com latinha) e Verstecken (pique-esconde) com Niklas quando eu tinha 6 anos, na Alemanha.
Ficamos tão perdidos nas lembranças de quando nossas vidas eram mais simples e mais inocentes que esquecemos como as coisas estão agora.
Também esqueço, só por um momento, que as coisas entre nós não estão completamente definidas.
E pode ser que nunca estejam.
Sarai
Acordo na manhã seguinte e encontro o lado de Victor da cama frio e vazio. Aperto o travesseiro dele contra o peito e o seguro perto de mim. Ele tinha uma reunião às oito com um contato em Bernalillo. Queria que eu fosse junto, mas fico exausta com as viagens, sobretudo quando não são de avião.
Já que a localização da academia de krav maga foi “comprometida”, como Victor diz, ele acha melhor sairmos do Novo México quanto antes. Meu objetivo do dia é fazer as malas, levando tudo o que eu puder da casa. Isso, contudo, não deve ser tão difícil, já que o guarda-roupa e os pertences de Victor não são iguais aos de uma pessoa normal. Ele não tem uma “gaveta de cacarecos” onde joga vários itens que vão ficar lá, sem serem usados, pelo resto da vida. Os armários não são cheios de caixas velhas de sapatos e pilhas de documentos guardados só por segurança, ou roupas que ele não veste há cinco anos. Os armários da cozinha não são cheios de jogos caros de porcelana que só são retirados do lugar nos feriados e em ocasiões especiais. Não há retratos de família pendurados em uma bela fileira na parede do corredor, nem enfeites organizados em uma estante, recebidos de pessoas importantes, dos quais ele não consegue se desfazer por razões sentimentais. Algumas caixas devem bastar. Os ternos dele. Minha coleção cada vez maior de roupas, perucas, joias, maquiagens e um zilhão de sapatos. Parece que vou encaixotar só as minhas coisas.
Aperto um botão no controle remoto e a TV de LCD da sala ganha vida. Deixo em um dos canais de notícias só para fazer barulho de fundo. O sol atravessa a porta de vidro que emoldura a vista do Novo México atrás da casa. Observo a paisagem só por um momento, sentindo que preciso mudar de ares. Depois de passar a maior parte da minha vida no México, rodeada de areia, árvores retorcidas, grama seca e calor... bem, fico feliz em me mudar. Victor disse que a nova casa vai ser em Washington ou Nova York. Qualquer uma das duas cidades está ótima para mim, ambas bem diferentes daquilo com que estou acostumada.
Vou saber com certeza amanhã.
Tomo um café da manhã simples, um ovo mexido e uma fatia de torrada acompanhados por um copo de leite. Faço meus exercícios matinais e tomo um banho rápido, vestindo um short preto e um top apertado de algodão da mesma cor. Prendo o cabelo em um rabo de cavalo, separo em duas metades e puxo, para deixá-lo mais firme. De pé diante do enorme espelho do banheiro, começo a me maquiar, mas percebo que estou com muita preguiça para isso no momento e volto a cuidar da mudança. Enquanto pego os ternos de Victor do armário, um por um, e os guardo em capas compridas com zíper, sinto alguma coisa sob a minha mão ao ajeitar uma manga sobre o peito do paletó. Afasto a manga na cama e desabotoo o paletó. Enfio a mão no bolsinho interno e pego um pequeno envelope. É meio grosso, mais ou menos 1 centímetro.
Antes de tirá-lo todo do bolso, penso em guardá-lo de novo, minha consciência me dizendo que aquilo não é da minha conta. Mas olho mesmo assim.
O envelope está velho e surrado, com as bordas esgarçadas e amarelado. É pequeno, mais quadrado do que retangular, e deveria ser de algum cartão de aniversário ou convite. Há fotografias dentro. Fotografias antigas. Tiro a aba de dentro do envelope e o abro, despejando a pequena pilha na mão. A primeira foto é de um homem de cabelo claro e queixo forte. Ele usa camisa branca e gravata marrom. Está sentado em uma poltrona de couro, rodeado por paredes revestidas com um papel cafona que imita tapeçaria. Um garotinho de cabelo castanho e uma menina ainda mais nova com cabelo louro bem claro estão de pé ao lado dele, dando um sorrisão para a câmera.
A foto seguinte é também do menino e da menina, posando com uma mulher loura, de cabelo longo e ondulado, linda, ao ar livre, no que parece ser um parque.
Todas as fotos são velhas, alaranjadas e com rachaduras nas bordas, onde elas foram dobradas ao longo dos anos. Olho cada uma delas e leio o verso. Versalhes, 1977; Paris, 1977; e Versalhes, 1976, rabiscados no canto esquerdo e quase ilegíveis, pois a tinta começou a desbotar. Nas fotos seguintes, o menino está mais velho, talvez com uns sete ou oito anos, e está de pé com o braço sobre o ombro de outro menino. Munique, 1981, e Berlim, 1982. Meu coração afunda quando me dou conta de que todas aquelas fotos são de Victor e Niklas, com quem acredito serem seu pai e a mãe de Victor. A menina deve ser uma irmã.
Parte meu coração saber que ele carrega essas fotos assim. É mais uma prova de que Victor não é desprovido de emoções, de que no fundo de sua alma há um homem que ficou escondido do mundo, forçado a carregar as únicas lembranças da infância dentro de um bolso.
É a prova de que ele é humano, um ser humano perdido e traumatizado que quero desesperadamente curar.
Viro a cabeça ao ouvir passos dentro da casa.
Deixo as fotos na cama e pego a 9mm do criado-mudo, tirando o pente para verificar se está cheio. Insiro o pente na arma de novo e, descalça, corro em silêncio pelo quarto, com as costas coladas na parede, na direção da porta. Mantenho a arma na altura da cabeça, segurando-a com as duas mãos, e paro para escutar. Nada. Quer dizer, nada além da porcaria da televisão, que me arrependo de ter ligado.
Começo a achar que só pode ser Fredrik, mas não vou me arriscar.
Ainda com as costas na parede, contorno o batente e vou para o corredor ao ver que está vazio. Uma sombra se move no piso de terracota na outra extremidade do corredor, e eu fico imóvel. Sinto o coração pulsar nas pontas dos dedos, coçando para apertar aquele gatilho com toda a força. Continuo imóvel, com gotículas de suor surgindo na nuca, e fito o chão por um longo momento, sem piscar, temendo perder algum outro movimento. Ouço os passos de novo, mais distantes desta vez, e ando com cuidado pelo corredor na ponta dos pés.
Ao chegar perto do fim, paro a centímetros do canto e encho os pulmões de ar. Expiro devagar e em silêncio antes de prestar atenção de novo. As vozes do noticiário falando sem parar sobre o “Obamacare” me dão nos nervos, pois se sobrepõem a quaisquer vozes ou passos que eu poderia ouvir e saber de que direção estão vindo.
Finalmente, ouço vozes murmurando:
— Verifique os quartos — diz um homem. — Ela deve estar escondida debaixo de uma cama ou dentro de um armário.
Não, babaca, estou esperando que você venha pelo corredor para meter um tiro na sua cara.
Um homem de terno preto surge no canto, de arma em punho, e eu atiro no mesmo instante em que ele aparece no fim do corredor. O tiro ecoa nos meus ouvidos, e o homem cai no chão, o sangue esguichando do ferimento na lateral do pescoço. Ele tosse e sufoca, tentando cobrir o ferimento com as mãos, agora cobertas de sangue.
Dou a volta no corpo dele, ignorando os perturbadores sons de gargarejo que ele faz, e viro a quina da parede, atirando mais três vezes. Consigo atingir mais um homem antes que uma dor cegante atravesse minha nuca. Enquanto caio, vejo o segundo homem em quem atirei caindo à minha frente. E vejo Stephens, de pé ao lado do cadáver, em toda a sua glória altiva e sombria. Minha arma não está mais em minhas mãos, e estou tão desorientada pelo que bateu na minha nuca, seja lá o que for, que demoro um pouco para me dar conta de que estou deitada no chão frio, com a bochecha encostada em uma fenda do assoalho. Apalpo minha nuca e sinto sangue nos dedos quando toco o cabelo.
Stephens se agacha ao meu lado, com um sorriso ameaçador criando rugas profundas ao redor de sua boca dura. Seu cabelo grisalho parece mais escuro, ele parece maior, a covinha no centro de seu queixo, mais pronunciada. Ele me olha de cima, apoiando os cotovelos nas coxas, com as mãos enormes relaxadas entre as pernas, o pulso direito adornado com um grosso relógio de ouro. Ele tem um cheiro forte de colônia e charutos.
— Você é difícil de achar, garota — observa Stephens.
— Vai se foder — digo, tão casualmente quanto se estivesse comentando que o tempo está bom.
Stephens abre um grande sorriso com a boca fechada, e é a última coisa que vejo antes que tudo fique preto.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Sarai
Acordo devagar com um zumbido baixo e profundo, bem acima de mim, acompanhado por um som rápido e constante de vento. Minha visão está embaçada e enxergo apenas uma luz fraca e acinzentada, que de início se curva e se distorce ao atingir meus olhos. O ar parece muito úmido, as costas da minha camiseta e o espaço entre os meus seios e minhas axilas estão empapados a ponto de me fazerem sentir um calafrio terrível quando a brisa estranha me atinge. Minhas mãos estão amarradas atrás das costas, como amarrei as mãos de Izel quando ela veio atrás de mim depois que fugi no carro de Victor. Penso nela por um momento, no modo como ela olhou para mim naquele dia, como seu cabelo escuro e suado grudava no rosto. Imagino que eu deva estar parecida com ela agora, só que meu cabelo ainda está preso em um rabo de cavalo.
Logo percebo que meus tornozelos também estão amarrados.
Forço meus olhos a se abrirem completamente e luto para pôr minha visão em foco. Estou sentada em uma cadeira no meio de uma sala enorme, escura e empoeirada, em uma espécie de galpão velho.
Rio por dentro, pois vejo o rosto de André Costa na cabeça, como ele estava naquele galpão em Nova Orleans.
Tudo o que vai volta, suponho. E a vingança por todas as mortes que causei ou das quais participei está chegando mais cedo do que eu esperava.
A brisa estranha e o som de vento acima de mim, percebo agora, estão vindo de um grande ventilador industrial construído na parede, perto do teto alto. As paredes são feitas de concreto, e o teto de trilhos de metal que vão de uma ponta à outra é sustentado por pilastras compridas também de concreto. O lugar tem um cheiro forte de solvente, cola e outros produtos químicos que fazem mal aos pulmões.
Minha garganta está tão seca que dói. Meu primeiro impulso é pedir água, mas, assim como soltar a corda que prende meus pulsos e tornozelos, sei que nada que eu pedir será concedido.
Olho para baixo, sinto o peito dos pés ardendo e vejo que a pele dos dedos dos pés está dilacerada, indicando que em algum momento devo ter sido arrastada.
Passos ruidosos, como de solas duras, ecoam pelo espaço amplo quando Stephens se aproxima de mim.
Prendo um riso do ridículo daquela situação.
— Posso perguntar o que é tão engraçado? — indaga Stephens, com sua voz grave e também parecendo achar graça.
Sorrio em desafio quando ele para diante de mim, com as mãos nas costas.
— Pensei que você e aquele maluco de merda para quem você trabalha queriam me matar. — Eu rio. — Isto aqui é um pouco exagerado, não acha? — Abro um sorrisinho para ele.
Stephens dá um sorriso frio que imediatamente me lembra a expressão no rosto de Fredrik quando ele prendeu André Costa naquela cadeira de dentista. Em vez de responder, Stephens vira para a direita e vê outro homem se aproximar, trazendo uma cadeira. As pernas de madeira raspam um pouco no concreto quando ela é colocada no chão, ecoando pelo pequeno espaço que nos separa. Stephens se senta, ajeitando de maneira despreocupada seu belo terno preto, puxando a lapela e espanando uma poeira invisível da perna.
— É sério isso? — pergunto, balançando a cabeça. — Deixe eu adivinhar... Hamburg ainda quer seu showzinho. Não conseguiu comigo e com Victor no quarto dele na mansão. Não conseguiu com o guarda-costas dele no escritório do restaurante. A propósito, fiquei feliz em saber que aquele merda morreu. Era seu amigo? — Meu sorriso fica mais evidente.
Os olhos de Stephens sorriem. Ele cruza a perna e põe as mãos com delicadeza no colo. É muito enervante como ele parece calmo e imune às minhas palavras. Mesmo assim, não deixo que ele perceba que isso me incomoda.
— Acredite, Izabel, Sarai ou qualquer que seja o seu nome, se dependesse de mim, eu teria matado você naquela casa, em vez de trazê-la para cá.
— É claro, você é só o criadinho dele, ajoelhado aos pés de Hamburg, esperando que ele peça o próximo boquete.
O teto surge no meu campo de visão por um instante quando alguém puxa meu cabelo, meu pescoço tão forçado para trás que não consigo respirar. Outro homem está de pé atrás de mim, olhando nos meus olhos arregalados. Tento engolir, mas não consigo. Começo a engasgar e tossir, em vez disso.
— Pode soltar — ouço Stephens dizer.
O homem me solta e minha cabeça cai para a frente. O peso do meu corpo faz a cadeira tremer e balançar um pouco até se estabilizar. Fico aliviada por conseguir respirar de novo. Levanto a cabeça e fuzilo Stephens com o olhar enquanto ele continua sentado diante de mim, a apenas meio metro. Começo a correr os olhos pela sala procurando uma saída, tentando formular um plano que sei que jamais vai se materializar. Mesmo se eu tivesse alguma chance de sair desta sala, não sei como poderia me soltar das amarras. Meus pulsos estão tão presos que a circulação parece ter sido cortada. As fivelas nos meus tornozelos estão muito apertadas também, mas sinto que posso movê-los um pouquinho, esmagando-os nas pernas da cadeira. Mas não vou a lugar nenhum. A não ser para o inferno, talvez, e logo.
Não tenho medo de Stephens, não tenho medo do que ele vai fazer comigo. Não tenho medo de ser torturada. Só tenho medo do quanto vai durar.
— Por que você não acaba logo com isso? — sugiro, com rispidez, ódio e vingança evidentes na voz. — Não ligo para o que você vai fazer comigo, ou para o que Hamburg vai fazer, então ande logo.
— Ah, mas você não está aqui por causa de Hamburg. — Stephens abre um sorriso de gelar o sangue. — E, não, eu não quero que isto acabe. — Ele se inclina para a frente, aproximando seu queixo quadrado de mim. Sinto o cheiro de sua loção pós-barba. — Espero que você não fale ao menos por alguns dias, porque estou muito ansioso para passar esse tempo com você.
Engulo meu medo de saber o que essas palavras significam: que ele vai me torturar e por muito tempo. Tento amenizar a preocupação, torcendo para que ele não detecte o menor sinal de pavor no meu rosto.
— O que eu poderia saber que você precisasse me fazer revelar, afinal? — Rio, desafiando-o. — E que loção é essa? Fede como se você tivesse mergulhado de cabeça no meio das coxas de uma viciada em crack.
Os olhos de Stephens se movem para a pessoa atrás de mim, estreitando-se, e percebo que ele acaba de impedir o homem de puxar meu pescoço para trás de novo, ou talvez de me dar um tapa. Ele ignora meu insulto.
Stephens se reclina na cadeira de novo. E não diz nada. Odeio isso. Preferiria que ele andasse ao meu redor fazendo um monólogo canastrão a não dizer absolutamente nada. E acho que ele sabe quanto isso me incomoda. A expressão satisfeita dos seus olhos me confirma isso.
— Ok, então, se eu não estou aqui por causa de Hamburg, qual é o motivo?
Outros passos atrás de mim atravessam a sala. Tento olhar para trás, mas não consigo esticar muito o pescoço.
Enfim a figura dá a volta e consigo vê-la.
— Você está aqui por minha causa — afirma Niklas, jogando uma bituca de cigarro no chão e apagando-a com sua bota de couro preta.
Suspiro sem fazer ruído. Meu corpo todo fica rígido na cadeira. Procuro me concentrar na minha respiração, tentando recuperar o controle do meu corpo, mas por um longo tempo não sou nada mais do que uma casca imóvel.
— Niklas... — digo enfim, mas não consigo falar mais nada.
A raiva assoma dentro de mim, e minha necessidade de matar Stephens de repente é ofuscada pela necessidade de dizer a Niklas tudo o que está entalado na garganta.
Diferente de Stephens, Niklas não sorri nem sente a necessidade de me atormentar com ameaças. Sinto algo diferente nele, algo muito mais sombrio do que em Stephens, algo mais ameaçador do que as palavras podem descrever. Olhando aquele homem alto de cabelo castanho-claro arrepiado, os olhos azuis ferozes emoldurados por um rosto perfeitamente redondo, porém bonito, vejo alguém mais afeito à vingança do que eu jamais conseguiria ser.
E, por fim, fico apavorada.
Niklas chega mais perto até ficar bem na minha frente, sem se importar com a proximidade. Stephens ficou pelo menos meio metro longe de mim, como se temesse que eu pudesse cuspir nele, ou me soltar e agarrá-lo. Mas Niklas, não. Sinto que ele está me desafiando a me mexer. Ele quer que eu tente algum movimento.
Engulo em seco, empino o nariz de forma arrogante e tento continuar forte para encarar meu destino.
— Você sabe o que eu quero — diz Niklas, com uma voz tranquila e o mesmo sotaque alemão, ainda evidente na voz. — Ou precisamos discutir a questão em detalhes? — Ele inclina a cabeça para o lado.
Ele se parece tanto com Victor que me pergunto como podem ser tão diferentes por dentro.
— Você vai ter que explicar. É sobre o Victor? — Olho rapidamente para Stephens. — Esse merda estava na casa dele agora há pouco. Você já sabe onde encontrar o Victor. E não que isto me surpreenda muito, mas o que você está fazendo com eles?
Flagro Stephens olhando para Niklas, que, no entanto, não tira os olhos de mim. Ele se agacha na minha frente, no meio das minhas pernas abertas, e me olha com um rosto tão calmo e ameaçador que sinto um calafrio percorrendo a nuca. Dá para sentir o cheiro do couro de sua jaqueta preta e o fraco odor de fumaça de cigarro que persiste na camisa cinza-escura que ele usa por baixo.
— Estou procurando Victor há meses — começa Niklas, e ouço com atenção, mantendo os olhos grudados nele. — Ele sem dúvida contou a você que saiu da Ordem, que traiu a mim, a Vonnegut...
Arregalo os olhos e meu queixo cai em um ofegar.
— Traiu você? — interrompo, incrédula. — Não pode estar falando sério. Você traiu Victor! Foi você que...
Ele estende as mãos fortes e aperta com firmeza minha garganta, me fazendo engasgar e tossir. Eu me agito na cadeira, incapaz de erguer as mãos para tentar tirar as dele. Meus olhos viram para cima quando ele aperta mais forte.
Ele me solta.
Ofego e tento recuperar o fôlego, com os cantos dos olhos molhados por lágrimas de exaustão e dor. Estou apavorada, mas não o suficiente para chorar ou implorar pela minha vida. Prefiro morrer a implorar por qualquer coisa.
— Meu irmão me traiu muito antes de sair da Ordem — diz Niklas, com um pouco mais de emoção na voz do que antes: ressentimento. — Ele me traiu quando se voltou contra tudo o que acreditávamos e ajudou você. Ele me traiu quando mentiu para mim sobre ajudar você. Ele mentiu, Sarai, porque sabia que isso era errado. — Niklas fica na ponta dos pés, pondo-se a poucos centímetros do meu rosto. — Ele quase me matou por sua causa. E ia me matar, se você não tivesse impedido. Foi ele quem me traiu!
Minhas mãos começam a tremer nos braços da cadeira. Meu coração está no meu estômago, revirando-se, perdido e apavorado. Não posso negar, o que Niklas disse é verdade.
Não posso negar...
Ele se afasta alguns centímetros até eu não conseguir mais sentir seu hálito de pasta de dente, mas ainda está muito perto. Um quilômetro seria perto demais.
— Niklas — digo, em uma voz um pouco desesperada, só o suficiente para convencê-lo a me ouvir. — Victor só ia matar você porque era errado me matar. Você não entende? Ele teria feito isso por qualquer um. Não só por mim.
Um sorrisinho aparece em um canto de sua boca, e fico ao mesmo tempo intrigada e preocupada com o significado disso. Niklas fica de pé, vira de costas para mim e se aproxima de Stephens. E então se vira de novo.
— Você não conhece meu irmão tão bem quanto imagina. Não, ele não teria feito isso por qualquer um. Parece que meu irmão é humano, no fim das contas, com isso de ter se apaixonado por você e tudo o mais.
Balanço a cabeça e desvio o olhar.
— Por que eu estou aqui, Niklas? Diga logo o motivo de ter me trazido para cá. Não vou mais lhe dar o prazer da minha conversa.
Stephens se levanta da cadeira, parecendo um gigante perto de Niklas. Ele é bem alto, com ombros largos e cabeça grande e quadrada.
— Detesto admitir — diz Stephens —, mas concordo com essa puta. Vamos logo com isso. — Ele me olha com frieza. — Você está viva porque Niklas precisa de você primeiro, mas quando ele terminar eu vou meter uma bala nessa sua cabecinha linda, cumprindo meu contrato com Arthur Hamburg.
Olho para Niklas.
— Você precisa de mim para quê? — Há veneno na minha voz.
— Você vai me contar tudo o que sabe sobre o meu irmão e sua nova... organização. Quero saber os nomes dos associados, a localização de todos os abrigos e quem toma conta deles. — Noto dentes rangendo atrás das bochechas. — E quero saber até que ponto Fredrik Gustavsson está envolvido nos negócios de Victor.
Balanço a cabeça.
— Bom, antes de mais nada, quem é esse Fredrik Gustavsson? Segundo: eu não sei nada sobre a organização de Victor, seja lá o que isso significa. Ele me disse que saiu da Ordem, sim. E me disse que você o traiu ao continuar na Ordem e aceitar a missão de Vonnegut para matá-lo. Mas não me contou mais nada. Ele disse que era melhor eu não saber.
Os olhos de Niklas se abrandam com um sorriso tênue. Sem mover a cabeça, ele olha para o homem atrás de mim. De repente, a cadeira é puxada, meus pés saem do chão e sinto como se estivesse caindo para trás. Por instinto, lanço meu corpo para a frente quanto posso para evitar que minha cabeça bata no chão de concreto atrás de mim. Sou arrastada pela sala; para onde, acho que não quero saber.
Tudo para. Os pés dianteiros da cadeira voltam a atingir o chão, e então mais três homens, além daquele que me arrastou, seguram meus braços e pernas. Eles começam a me desamarrar, mas, assim que as amarras se soltam, eles me seguram com firmeza pelas mãos e pés. Por mais que lute para me desvencilhar, não consigo me mexer.
— ME SOLTEM! — Esperneio e contorço o corpo, tentando atingi-los com pontapés, arrancar meus braços de suas mãos. — NIKLAS! ME SOLTA!
Ele não responde. Fica ali, no azul-acinzentado do prédio empoeirado, ao lado de Stephens, enquanto meus braços são forçados acima da cabeça e amarrados de novo pelos pulsos com correias de couro penduradas do teto. O mesmo acontece com meus tornozelos. Ouço um rangido e o som da estrutura à qual estou amarrada se encaixando, antes que minhas mãos sejam esticadas bem acima de mim e meus pés descalços sejam erguidos do chão.
— PUTA QUE PARIU! EU VOU MATAR TODOS VOCÊS! ME SOLTEM! — Cerro os dentes com tanta força que sinto uma pontada de dor no maxilar inferior.
Niklas está de pé na minha frente de novo. Não o vi se mover, estava ocupada demais tentando atingir o homem mais próximo à minha esquerda.
— Por que você está trabalhando com eles? — grito na cara de Niklas. — Explica isso! Achei que você trabalhasse para Vonnegut!
Niklas junta as mãos atrás das costas.
— Se quer mesmo saber, tudo bem. Eu conto.
Ele anda de um lado para outro diante de mim e para no mesmo lugar. Mas não consigo deixar de notar Stephens no fundo, o brilho de uma lâmina prateada em sua mão. Ele continua pronto, segurando um punhal na altura do quadril com a expressão de quem está louco para me atacar.
— Quando eu descobri o que aconteceu em Los Angeles, sabia que, se você ainda estivesse viva, Hamburg ia querer garantir que isso não durasse muito tempo — começa Niklas. — Você escapou. Não havia sinal de você no restaurante, nem entre os corpos que foram encontrados no hotel. — Uma imagem do rosto de Eric e Dahlia atravessa minha mente como um soco no estômago. — Você escapou e eu sabia que devia ser porque Victor a ajudou. De repente, Hamburg, Stephens e eu tínhamos algo em comum. Eu queria encontrar o meu irmão. Eles queriam encontrar você. Eu sabia que vocês estariam juntos, então eis o denominador comum.
Meus pulsos erguidos pelas correias já estão doendo, o peso do meu corpo põe muita pressão sobre eles. Sinto meu rosto repuxando enquanto ele fala.
— Por que você não podia achar o Victor sozinho? — pergunto, tentando disfarçar meu desconforto. — Ou por que eles não podiam me achar sem a sua ajuda?
— Eles tinham informações sobre você que eu não tinha — explica Niklas. — Estavam vigiando você havia meses, desde a noite em que você e Victor saíram da mansão.
Rio alto, jogando a cabeça para trás.
— Isso é uma mentira de merda. Se for verdade, por que eles não me mataram antes?
Stephens se aproxima por trás de Niklas.
— Porque Victor Faust ameaçou Arthur Hamburg naquela noite — conta Stephens. — Ele não quis fazer nada que provocasse um novo ataque de Victor Faust. Eu vigiava você só por segurança. Sabia onde você morava, pois é fácil encontrar e seguir uma pessoa que sai de um hospital de Los Angeles depois de levar um tiro. E sabia onde você trabalhava. Com quem andava. Os lugares que frequentava. Pesquisei o passado de Dina Gregory e descobri tudo o que havia para saber sobre a família dela. Também não foi difícil localizá-la, mais tarde.
Meu nariz e minha boca se retorcem em um rosnado.
— Isso ainda não explica por que vocês se juntaram para nos encontrar — observo, com frieza, pensando mais no que ele estava dizendo sobre Dina. E a verdade é que não me importa muito por que eles estão trabalhando juntos. Só estou tentando enrolá-los, prolongando a conversa pelo maior tempo possível.
Stephens e Niklas trocam de lugar, e então Stephens se aproxima de mim. Ele segura a lâmina entre os dedos diante dos meus olhos, para que eu a veja e me sinta intimidada por ela.
Ele me encara de lado, estreitando os olhos.
— Você deve se lembrar do que Victor Faust fez com a mulher de Arthur Hamburg. Com certeza não acha que ele ia simplesmente esquecer isso. — Stephens se curva mais para perto do meu rosto, e seu hálito de vinho barato e charuto me deixa zonza de nojo. — Meu empregador quer ver Faust morto desde a noite em que ele matou a sra. Hamburg. Nós sabíamos onde você estava o tempo todo, mas não fazíamos ideia de onde Faust estava e não tínhamos motivos para crer que você soubesse. E com certeza não sabíamos que ele dava a mínima para você. Acho que ele não se importava, na verdade, caso contrário jamais teria deixado você sozinha daquele jeito. — Um sorriso provocador surge em seu rosto.
Quando ele se afasta, lanço a cabeça para a frente, esperando acertá-lo com os dentes, mas ele foge do meu alcance rápido demais. Fecho os dedos ao redor das correias acima de mim e ergo o corpo por um momento para aliviar a pressão nos meus pulsos. Caio de novo com violência, agitando a estrutura.
Niklas sorri.
Cuspo nele, mas não chego nem perto de atingi-lo.
— Eles não conseguem encontrar Victor sem mim — diz Niklas. — E eu não consigo encontrá-lo sem você. — Ele chega perto de mim de novo, e, embora saiba que conseguiria cuspir nele sem errar, não o faço. A expressão daqueles olhos azul-escuros me deixa submissa de medo. — Por isso entramos em um acordo. Eles me ajudam a encontrar você e eu mato meu irmão para eles.
— VAI SE FODER! — Jogo a cabeça para trás e lhe dou uma cabeçada na testa. A dor penetra minhas têmporas e meu maxilar, e minha visão fica embaçada por um momento.
Niklas se afasta de mim, claramente atordoado pelo golpe, mas não revida. Ele se vira para Stephens, e é este quem faz as honras. Começo a espernear quando ele se aproxima de mim com o punhal.
— Willem — chama Niklas, atrás dele, em um tom estranhamente despreocupado.
Stephens não se vira para olhá-lo, mas para.
— Eu preciso dela viva — afirma Niklas. — Lembre-se disso. Lembre-se do nosso acordo. Eu descubro o que preciso saber, e depois você pode fazer o que quiser com ela.
Balanço a cabeça e rio deles sem emitir som.
— Eu não vou contar nada para você — digo, com rispidez. — Você não vai conseguir me dobrar, seu merda. Você acha que consegue, mas está muito enganado. Você nem faz ideia. — Minha voz está calma, o que me surpreende.
— Bom, isso nós vamos ver — rebate Niklas.
Ele gira sobre os calcanhares e se afasta, o som de seus sapatos pisando no concreto ecoa pelo galpão e some quando ele desaparece do outro lado de uma porta de metal.
O sorriso de Stephens está maior, agora que Niklas foi embora.
E acabo de ficar com mais medo dele.
CAPÍTULO VINTE E SEIS
Victor
Dois dias depois...
Da tela do laptop, a imagem congelada do rosto suado e ensanguentado de Sarai me encara. Assisti milhões de vezes ao vídeo em que Stephens aparece batendo nela e meu irmão tenta em vão fazê-la falar. É uma agonia ver Sarai desse jeito, observar aquele homem, que logo estará morto, machucando-a. É uma agonia também não poder fazer nada a respeito.
Ainda não.
— Ela não vai falar — diz Fredrik, atrás de mim, com uma profunda preocupação com o bem-estar de Sarai em suas palavras.
Ele está à porta do escritório da minha casa em Albuquerque, agora livre dos cadáveres depois que demos um jeito neles. Eu me recuso a abandonar esta casa. Se Stephens me quiser, pode mandar seus homens para cá à vontade. Meu irmão, por outro lado, quer informações primeiro, e todos eles sabem que não conseguirão isso de mim.
— Victor — chama Fredrik de novo, com urgência e até certa súplica. — Você precisa fazer alguma coisa. A gente não pode ficar parado aqui. Eles vão matar Sarai.
— Não tem nada que a gente possa fazer — repito, pois já expliquei isso para ele. E, por mais que me machuque fazer isso, explico tudo de novo. — Não faço ideia de onde ela esteja, Fredrik. Niklas não vai revelar a localização deles enquanto não obtiver a informação que quer. Conheço o meu irmão. Ele é esperto. Não vai arriscar me enfrentar. Não desse jeito. Vonnegut quer mais do que a minha cabeça, ele quer informações. Niklas vai tirar o que precisa de Sarai, e depois me mandar outra mensagem me dizendo onde encontrá-la. Irei atrás dela, e ele sabe disso. E aí ele vai me pegar. Vai ter a mim e todas as informações sobre você, sobre a nossa operação e sobre os nossos contatos.
— E daí?!
Eu me levanto da cadeira da escrivaninha, fazendo-a deslizar pelo chão e bater na parede mais próxima.
— VOCÊ ACHA QUE EU ESTOU GOSTANDO DISSO? — Aponto para ele e depois para o chão.
Me acalmo, controlo a respiração e olho para meu reflexo impreciso nos meus sapatos pretos de verniz.
— Victor, eu não entendo. Por que você não dá a eles o que querem?
Não entendo por que Fredrik, o mestre dos interrogadores, queira tanto que Sarai fale, que sua preocupação com ela esteja me revelando outro lado dele.
Isso também me preocupa.
— Não é tão simples assim. — Levanto os olhos para ele. — Mesmo se eu contar a Niklas o que ele quer saber, Sarai vai morrer. Aliás, ela vai morrer muito antes se eu ceder, se eu entregar você e todos os envolvidos na nossa operação. Quanto mais ela resistir, e quanto mais eu resistir, mais ela vai viver. Até eu pensar no que fazer.
Fredrik se apoia no batente da porta, cruzando os braços. Ele suspira.
— Mas já faz dois dias. Ela não vai aguentar muito mais tempo.
— Ela vai aguentar — digo, confiante.
Eu me viro e olho para o vídeo pausado na tela, as pontas dos meus dedos apoiadas na borda da escrivaninha.
— Então como a gente vai encontrar Sarai?
Olho para o rosto dela por um momento longo e tenso, então fecho o laptop.
— Eu vou encontrá-la.
Sarai
O fedor da minha urina no chão, no canto desta sala escura onde estou trancada há dois dias, está se tornando insuportável. Eu me deito no concreto frio e sujo, com a bochecha apoiada no chão áspero e granulado. Minhas costas ardem, queimam como se as feridas infligidas pelo chicote que Stephens usou para me bater estivessem infeccionando. Aconteceu na noite passada, quando Niklas me deixou sozinha nesta sala. Quando ele voltou, Stephens já tinha me espancado tanto que desmaiei por um tempo com a dor e acordei deitada em uma poça de vômito. Ouvi Niklas e Stephens discutindo fora da sala, do outro lado da porta alta de metal. Niklas não aprovava o modo como Stephens estava me tratando e deixou isso claro.
— EU PRECISO DELA VIVA, PORRA! — gritou Niklas com Stephens. — VOCÊ VAI MATAR SARAI, BATENDO TANTO ASSIM!
Odeio Niklas pelo que ele fez. Comigo. Com Victor. Pelo que está fazendo agora, mantendo-me neste lugar. Mas uma pequena parte de mim está grata por ele não tolerar a brutalidade de Stephens. Não importa, para mim, que ele só esteja sendo intolerante porque me quer viva para revelar informações. Aceito qualquer ajuda que vier.
Ouço o trinco deslizar na porta de metal da minha cela. A porta se abre, raspando um pouco no chão.
Niklas entra. Está trazendo um prato de comida e uma garrafa de água. Outro homem fecha a porta e a tranca.
— Nem se incomode — digo do meu lugar no chão, quando ele se aproxima. — Já que você não me mata nem deixa Stephens me matar, talvez eu morra mais rápido de desidratação.
Niklas põe a comida no chão ao meu lado. Levanto o corpo do chão e a jogo longe com um tapa. Apoiando as mãos na parede, eu me sento, tentando não apoiar as costas por causa dos ferimentos. Minhas costelas também doem. E meu pulso esquerdo. Meu lábio inferior parece inchado. Sinto gosto de sangue na boca. Metálico. Nojento.
— Por que não fala de uma vez? — sugere Niklas, com ar de resignação. Ele está cansado de tudo isso, do tempo que está perdendo. — Você pode encerrar esta noite agora mesmo, é só me contar o que eu quero saber.
Não digo nada.
Niklas se senta no chão diante de mim. Ele sabe que estou fraca demais para resistir. Já tentei, e isso só tornou a dor nas costelas e nas costas mais insuportável.
— É melhor eu olhar as suas costas — sugere ele.
— Por que você se importa, caralho? Ah, esqueci, porque precisa descobrir o que eu sei. — Inclino a cabeça para perto dele, com os olhos cheios de um ódio inabalável. — A verdade é que eu sei tudo. Sei com quem Victor está envolvido, quem está ajudando, onde ficam seis abrigos dele. Sei tudo, Niklas, e não vou contar nada!
Faço uma careta e cubro as costelas com os braços quando uma pontada de dor atravessa meu corpo.
— Muito bem. — Ele fica de pé.
Ele vai até a comida, coloca tudo de volta no prato (um sanduíche destruído, alguns picles e um punhado de batatas fritas) e pega a garrafa d’água do chão. Ele volta e coloca tudo perto dos meus pés.
Então se agacha na minha frente.
— Ele não vem salvar você, Sarai — afirma Niklas, com tranquilidade.
Estendo o braço com o pouco de força que me resta para agarrá-lo, mas paro de repente, querendo ouvir o que ele tem a dizer. Não importa que eu não vá acreditar. Quero ouvir mesmo assim.
Seus olhos azuis parecem se suavizar.
— Mandei dois vídeos de você para o meu irmão. Dei a ele a localização de onde estamos, disse onde você estava. Era uma chance de se entregar. De revelar as informações. Mas ele não respondeu. — Então Niklas abre a mão, com a palma para cima, e mostra a sala com um gesto enquanto apoia os braços nas pernas. — E você pode ver que ele não está aqui. Dois dias e nada. — Ele baixa a mão. — Victor não vem salvar você. Quer saber por quê? Vou contar. Porque o trabalho sempre vai ser a prioridade na vida dele. Ele nunca vai cometer os mesmos erros que Fredrik Gustavsson cometeu por causa de uma mulher.
Levanto o queixo.
— Ah, mas isso não é verdade — digo, com desdém. — Ele traiu você por minha causa, lembra? Você mesmo disse isso. Saiu da Ordem por minha causa. Ele quase matou o próprio irmão por minha causa. Lembra, Niklas? — Cutuco a ferida, fitando seus olhos furiosos enquanto tento resistir à dor física.
Niklas abre um sorriso malicioso.
— Sim, ele fez tudo isso. Mas eu via no meu irmão o desejo de se libertar de Vonnegut bem antes de você entrar na vida dele. E ele não está mais na Ordem agora. Está livre de tudo, e, sim, você foi uma parte importante disso, do motivo para ele sair. Você deu o empurrão de que ele precisava, acho. — Ele volta a me olhar com uma expressão severa. — Mas você não vê o que não mudou? Pense, Sarai. Em vez de se libertar de uma vida de assassinatos, como qualquer um em seu juízo perfeito faria, como qualquer um que tivesse uma consciência faria, ele cria sua própria Ordem. Ainda pensa apenas no trabalho. Apenas em matar para ganhar a vida. Porque é só o que ele sabe fazer, e nunca vai aprender outra coisa. — Niklas balança a cabeça para mim, como se sentisse pena da minha ignorância por não ter visto as coisas que ele viu.
Desvio o olhar.
Uma parte de mim, uma parte envergonhada e culpada, não consegue deixar de acreditar nele, no fim das contas.
Niklas se levanta novamente.
— Acredite no que quiser, Sarai — continua ele, baixinho. — Mas você sabe tão bem quanto eu que, se ele viesse salvar você, já teria chegado.
Niklas vai até a porta de metal, bate duas vezes e o homem do outro lado abre. Ele sai e eu fico no escuro de novo, rodeada por paredes escuras, um teto escuro e pensamentos escuros, que estão partindo meu coração em mil pedaços minúsculos.
Não importa.
Se as coisas que Niklas me disse são verdade e Victor não vier me buscar, mesmo assim vou morrer sem contar nada.
Vou morrer aqui.
CAPÍTULO VINTE E SETE
Sarai
Terceiro dia
Estou recusando comida e água há quase 63 horas. Só sei disso porque Niklas fica me lembrando. Estou fraca, meu corpo e minha mente estão exaustos. Stephens não me bate desde que Niklas o impediu da outra vez. É só por causa de Niklas que ainda estou viva. Afinal, ainda não revelei nenhuma informação. Apenas que ele é um babaca traidor que não merece o ar que respira. Já disse a ele muitas e muitas vezes que vou morrer antes de entregar Victor. Acho que ele sabe que é verdade, que eu não posso ser dobrada.
A não ser... Talvez por meus pensamentos.
Meus pensamentos são tudo o que tenho nesta prisão escura e úmida cujas paredes bloqueiam toda luz, à noite ou de dia, sem nenhuma janela e só uma porta de metal que não deixa passar nem uma nesga de luz por baixo. Aquela voz em minha cabeça, aquela à qual nunca damos ouvidos até que não sobre mais nada para silenciá-la, tem sido muito cruel comigo. Niklas tem razão e você sabe, a voz me diz. Já se passaram três dias, e se o que Niklas falou sobre Victor saber onde você está for verdade, por que ele não apareceu? Por que, Sarai, Victor não se entregou por você e não contou a Niklas o que ele quer saber para salvar a sua vida?
Grito a plenos pulmões no espaço vazio e confinado, levando as mãos à cabeça. Lágrimas de raiva escorrem dos cantos dos olhos. Meu cabelo está encharcado de suor. Meu short e meu top preto parecem colados à pele. Meus joelhos nus estão arranhados, minhas pernas, cobertas de sujeira. Minhas costas ardem sempre que me posiciono do jeito errado e as crostas que estão se formando sobre os ferimentos racham e começam a sangrar de novo. Fico deitada no chão, de lado ou de barriga para baixo.
Ouço o eco da porta de metal raspando no chão ao se abrir atrás de mim, mas nem me dou ao trabalho de me virar para ver quem é.
— Se você não vai beber — ouço Niklas dizer, de pé ao meu lado —, então vou forçar a água na sua garganta.
Sou levantada do chão imundo de concreto para os braços dele e carregada para fora da sala. Não resisto. Não olho para ele enquanto sou carregada pelo corredor, mas a luz fluorescente do teto acima de mim é tão brilhante que faço uma careta e fecho os olhos. Em silêncio, aproveito o conforto do ar renovado que roça a minha pele. Sinto minhas pernas sobre os braços de Niklas, seu braço esquerdo segurando a minha nuca. Viramos à esquerda, depois à direita e descemos uma escada de metal.
Momentos depois, minha cabeça está sendo imersa em água e mantida ali.
Meu instinto me trai e abro a boca para gritar, tragando ainda mais água para meus pulmões. Meu corpo se retorce com violência, meus braços se agitam sem controle, tentando se segurar na borda grossa de plástico do recipiente onde estou sendo enfiada. Mas estou fraca demais para tirar a cabeça da água, e Niklas me segura ali com facilidade. A água queima na minha garganta e nos meus pulmões mesmo depois que consigo fechar a boca e prender a respiração. E no instante em que penso que vou me afogar, que enfim vou morrer e ficar em paz, Niklas ergue minha cabeça e a segura.
Meus instintos me traem mais uma vez e me fazem arfar em desespero por ar e tossir a água dos pulmões. Eu realmente preferiria morrer de uma vez e acabar logo com aquilo, mas meu corpo tem vontade própria, outra coisa que me vejo incapaz de controlar. Meu coração bate com tanta força que sinto meu peito roçando na borda de plástico do que reconheço ser um contêiner de 200 litros. Pingos caem do meu cabelo, da ponta do nariz, do queixo e dos cílios para a superfície da água, a poucos centímetros do meu rosto. Plop. Plop. Plop-plop. É surreal como isso é a única coisa que ouço.
— Quem está trabalhando com o meu irmão? — A voz de Niklas é controlada.
Não digo nada.
Ele segura um pouco mais forte o cabelo da minha nuca.
— Você foi vista com Fredrik Gustavsson em Santa Fé. Qual é o relacionamento dele com meu irmão? Eles estão conspirando contra a minha Ordem?
Nenhuma resposta.
Um fluxo de água atinge meu rosto quando ele empurra minha cabeça para dentro do contêiner. Minhas narinas e meu esôfago queimam como fogo quando a água é forçada para dentro de mim. Esperneio de novo, tentando agarrar qualquer coisa. Até que encontro a borda circular, mas ainda não tenho força suficiente para me empurrar contra as mãos de Niklas para fora da água.
Ele me puxa para fora de novo, eu engasgo, tentando respirar.
— Fale alguma coisa, Sarai. Qualquer coisa.
Estou fraca e exausta demais até para provocá-lo. Ainda assim, não digo nada, embora queira muito mandá-lo se foder.
Niklas só consegue uma coisa de mim antes de me carregar para fora da sala, vários minutos depois; engoli mesmo aquela água de que ele falou.
Quarto dia
Raios finos de sol, cheios de poeira, entram pelas janelas perto do teto do galpão, criando manchas de luz cor de marfim no chão à minha frente. Estou de volta à cadeira na sala maior, cercada por pilastras de concreto e aquele irritante ventilador industrial ininterrupto acima de mim. Meus pulsos e tornozelos não estão amarrados, mas seria desnecessário, pois mal consigo ficar de pé sozinha. Não estou completamente sem força física. Conseguiria andar se tentasse. Poderia jogar a cadeira para o outro lado da sala, embora só alguns metros, se quisesse. Mas não me importo mais.
Apenas não me importo mais.
Stephens está sentado diante de mim na mesma cadeira na qual esteve quatro dias atrás. Uma perna está cruzada sobre a outra e suas grandes mãos descansam sobre o joelho. Há uma expressão ameaçadora em seus olhos escuros e profundos; ela revela que ele está cansado de esperar. Que hoje é o dia. Que não importa o que eu diga ou deixe de dizer, não importa qual seja o acordo que ele tem com Niklas, hoje ele vai me matar.
Niklas entra no galpão por uma porta lateral, inundando-o por um instante com o sol forte da manhã. Ele havia saído com os outros quatro homens que pelo visto trabalham para Stephens. Eu os ouvi conversando algo sobre ficar de olho em qualquer sinal de “visitas indesejadas”. De coração, espero que isso tenha a ver com Niklas ter motivos para crer que Victor está vindo. Mas aquela voz cruel na minha cabeça faz meu coração afundar de novo.
Estamos sozinhos naquele galpão imenso. Só nós três. Eu, o Diabo e um dos lacaios do Diabo, embora na verdade eu não saiba qual é qual.
Levanto a cabeça.
Abro um sorriso fraco para eles, fixando minha atenção sobretudo em Niklas.
— Esta é a sua última oportunidade — anuncia ele, de pé ao lado de Stephens, com uma arma na mão direita, junto ao corpo. — Não vou nem me dar ao trabalho de mandar outro vídeo de você sendo interrogada para o meu irmão. É evidente que ver você sentindo tanta dor não basta para fazer o desgraçado sair da toca.
— Me mata — peço, ainda sorrindo. — É isso que você vai ter que fazer.
O peito de Niklas infla e desinfla, mas seus olhos não abandonam os meus. Olho para eles, buscando qualquer resquício de que ele ainda possa ser como o irmão, o homem... pelo qual acho que estou me apaixonando.
O homem que achei, por um breve momento, que poderia sentir a mesma coisa.
O tempo parece parar. Não há som, movimento ou ar ao redor, só um infinito silêncio suspenso no último momento da minha vida.
E, quando sinto meus olhos se fechando, no mesmo ínterim, Niklas levanta a arma de lado e puxa o gatilho. O tiro ecoa e o sangue esguicha do outro lado da cabeça de Stephens. A cadeira debaixo dele cai de lado quando o peso de seu corpo enorme desaba sobre ela.
Stephens cai no chão. Morto.
Sinto meus cílios enfim roçarem no rosto quando os olhos se fecham, e o meu corpo, inundado pelo alívio e exausto de tudo, começa a cair também.
Niklas encaixa os braços por baixo dos meus, me segurando antes que eu bata no chão.
— Peguei você. — Eu o ouço dizer. — Peguei você. — Sua voz parece mais distante agora, embora eu sinta que estou encostada no peito dele, e que o vento roça meu rosto quando ele me carrega pelo galpão.
— Passe ela para mim — escuto Victor dizer lá de fora, e é a última coisa que escuto.
Victor
A trama — Três semanas atrás...
Niklas está sentado diante de mim à longa mesa coberta por documentos espalhados, manchas de café e fotos de alvos futuros. Seu cabelo castanho está desgrenhado e as bordas dos seus olhos, vermelhas, pois ele bebeu demais na noite passada. Ele passa as mãos pela pilha de várias fotos de Edgar Velazco, um famigerado chefe de quadrilha venezuelano que fomos contratados para matar.
Niklas balança a cabeça, contrariado, e se reclina na cadeira, erguendo as mãos e passando-as pelo rosto.
— A gente não pode adiar isso — afirma ele, olhando para mim por cima da mesa. — Temos o paradeiro de André Costa. Precisamos resolver isso agora.
Não ergo o olhar do texto que está à minha frente.
— As coisas mudaram — digo, sem levantar a voz. Passo para a próxima folha. — Sarai é a minha prioridade. Foi inesperado, eu sei, mas não posso mudar o que ela fez. — Olho bem nos olhos dele, torcendo para que Niklas entenda e não discuta comigo. — Niklas, não vou abandonar nem prejudicar o que estamos fazendo aqui. O contrato de Edgar Velazco vai ser cumprido. Antes do prazo.
Ele suspira de novo e baixa os olhos por um momento. Depois tira um cigarro do maço na mesa diante dele. Pondo-o entre os lábios, ele o acende com um estalo do isqueiro.
Niklas sabe que não gosto quando ele fuma aqui dentro, mas acho que preciso dar uma folga ao meu irmão, considerando tudo o que ele fez por mim e por Sarai nos últimos meses.
— Sem querer desrespeitar você, irmão — começa Niklas, com a fumaça saindo de seus lábios —, mas o que vai fazer com ela? Você não pode levar uma vida dupla e sabe disso. E a gente não pode usar nossos recursos eternamente para fazer serviço de babá, não para alguém como ela, que não é fácil acompanhar. Ela é tão impulsiva quanto eu era com 23 anos.
Concordo com um aceno.
— Sim, nisso você tem razão. Ela é mais parecida com você do que eu gosto de admitir.
Niklas sorri e bate as cinzas do cigarro no cinzeirinho de plástico.
— Ah, vamos lá, irmão, eu não sou tão ruim assim, sou?
Não preciso responder a essa pergunta, e Niklas sabe.
Ele dá mais uma tragada rápida no cigarro e o deixa na borda do cinzeiro.
— Então o que você vai fazer?
Niklas relaxa as costas na cadeira novamente e entrelaça os dedos atrás da cabeça.
— Tem certeza de que quer saber a resposta?
Isso parece atiçar sua curiosidade.
— Porra, claro que quero. — Ele tira as mãos da nuca e se inclina para a frente, apoiando os braços no tampo da mesa, com ar preocupado. — O que você fez?
Espero um minuto e respondo:
— Enquanto estávamos na casa de Fredrik, depois de muitas súplicas, e das ameaças de Sarai sobre sua segurança, concordei em ajudar a treiná-la.
— O quê?
— Sim — confirmo, pois ele parece precisar disso. — Ela está determinada a matar Hamburg e Stephens com as próprias mãos. Eu poderia fazer isso, mas...
— Você deveria fazer isso, Victor.
— Não — retruco, balançando a cabeça. — Dei a ela minha palavra...
— E daí, caralho? — rebate Niklas. — Victor, isso é suicídio. Onde é que você estava com a cabeça?
Ele pega o cigarro de novo e dá um trago mais longo, como se estivesse precisando da nicotina para acalmar os nervos. Esticando o pescoço, ele solta uma fumaça espessa dos lábios.
— Já pensei nisso antes, bem antes que ela inventasse essa confusão com Hamburg, bem antes que ela me desse o ultimato. Eu a quero comigo, Niklas. Quero treiná-la. Acho que ela é capaz de conseguir. E ela se recusa a ser tratada como uma criança. Por qualquer um. Especialmente por mim.
— E se ela não conseguir? — Niklas olha para mim, com uma expressão sincera e preocupada. Preocupação comigo, não necessariamente com Sarai. — Victor, você está se metendo em uma vida de sofrimento. Apaixonar-se por alguém. — Ele ri com desprezo, embora mais de si mesmo, eu sei. — Eu já me apaixonei uma vez, você lembra, e veja como acabei. Como ela acabou. Ela acabou morta e eu, destruído por causa disso. — Ele balança a cabeça. — E preciso lembrar o que aconteceu quando Fredrik se apaixonou? Não, achei que não precisava mesmo.
Ele fica de pé e apaga o cigarro no cinzeiro.
— Sinto muito, Victor, mas acho que essa ideia é ruim pra caralho.
— Mas é a única ideia — digo, sem perder a calma. — E espero que você a respeite o suficiente para não termos uma repetição do incidente de Los Angeles.
Eu sabia que minhas palavras iriam incomodá-lo. Usar o incidente no qual ele atirou nela em um hotel, um incidente que ele considerava já superado. Niklas me encara com ressentimento e dor no olhar.
— Sério, irmão? — pergunta ele, descrente, apoiando as mãos na borda da mesa e se curvando para a frente. — Depois de tudo o que fiz nestes meses para ajudar a proteger essa garota? Depois que dei minha palavra de irmão, de sangue do seu sangue, de que nunca mais iria fazer nada para machucá-la? Se eu quisesse, já poderia ter matado Sarai mil vezes. Você sabe, Victor. Achei que a gente já tivesse superado isso.
Abaixo o olhar, deixando a culpa que sinto fazer o que quiser comigo. Niklas é leal a mim. Sempre foi. Quando atirou em Sarai em Los Angeles e tentou matá-la, foi só por causa de seu amor e lealdade a mim. Porque ele sabia que a forma como ela me afetou seria minha perdição, que eu acabaria morrendo por esse motivo. E, embora eu não justifique o que ele fez e jamais vá perdoá-lo por isso — e ele sabe —, entendo os motivos, de qualquer forma.
Em uma vida como a nossa, às vezes precisamos fazer coisas terríveis com quem amamos a fim de abrir um caminho para novos começos. Meu irmão, por mais insuportável que seja, não é exceção. Aliás, ele é um exemplo claro dessa regra.
E hoje as coisas estão diferentes. Ele não vai matar Sarai, mas não vai hesitar em matar por Sarai.
— Eu confio em você, Niklas. Espero que acredite nisso.
Ele assente devagar, aceitando minhas desculpas e parecendo absorto em pensamentos.
— Não estou pedindo que você prove isso, Victor. Mas tem uma coisa que precisa ser feita. Pelo bem do nosso negócio. Pelo bem da nossa vida. — Ele começa a andar de um lado para outro na frente da mesa.
— O que é? — pergunto, olhando-o da minha cadeira.
Ele para ao lado da mesa, cruza os braços e me encara com desconforto no rosto.
— Se Sarai vai se envolver nas nossas operações de qualquer maneira — começa ele, com cuidado —, você sabe que ela precisa passar pelo mesmo nível de testes que qualquer outra pessoa que trabalha para nós enfrentaria. Só porque você sente algo por ela não significa que essa regra deva mudar.
— O que você está sugerindo?
Sei exatamente do que ele está falando, mas o que quero saber, na verdade, é até onde ele quer ir com isso. Niklas não costuma fazer nada pela metade. Ele continua:
— Eu estou dizendo que sei que você não quer passar pelo que Fredrik passou com Seraphina. E sei que você não quer lidar com outra Samantha. A lealdade de Sarai a você precisa ser testada. Não digo isso como forma de me vingar dela nem porque quero que ela traia você para provar alguma coisa. — Ele ergue as mãos. — Só quero ter certeza de que a gente pode confiar nela, de que, se um dia ela for capturada, não vai ceder e entregar a gente.
— Eu confio nela. Sei que ela não me trairia. Confio nela.
Não importa quantas vezes eu diga essas palavras em voz alta ou na minha cabeça. Confio nela. Confio em Sarai. Confio nela. Sei que Niklas tem razão. Há muita coisa em jogo. Nossos negócios no mercado negro, nossa vida e a vida de muitas pessoas que trabalham para nós. E com Vonnegut e a Ordem atrás de mim, não posso me arriscar.
— O que você propõe? — pergunto, aceitando a verdade.
Niklas balança a cabeça, aliviado com a minha cooperação e compreensão.
Ele respira fundo e se prepara para explicar.
— Vou abordar Hamburg. Ganhar a confiança dele fingindo que estou vendendo você para ele. Ele vai acreditar que sou só um irmão que não perdoa e que foi incumbido pela minha própria Ordem de matar você, já que saiu da organização e traiu a nós todos. Tudo pelo amor de uma garota. Uma garota que, não é segredo, Hamburg agora quer ver morta mais do que nunca.
Concordo antes que ele termine de explicar, com uma imagem nítida da situação na minha mente. Niklas continua o raciocínio:
— Na hora certa, vou levar os homens de Hamburg até Sarai...
Niklas continua a explicar a trama para iniciar Sarai e ao mesmo tempo ter Hamburg e Stephens onde queremos que eles estejam.
— Mas não quero que ela se machuque. Se fizermos isso, você precisa me dar a sua palavra de que não vai deixar ninguém ir longe demais. Que você não vai longe demais. — Estreito o olhar para ele.
— Quanto ela aguenta? — pergunta Niklas.
— Ela aguenta muito. É forte. Mas, antes que isso aconteça, quero que ela treine o máximo que puder. Posso levá-la para Spencer e Jacquelyn, em Santa Fé. A experiência vai fortalecê-la um pouco mais. Deixe-me prepará-la o máximo possível no curto tempo que temos antes de começar essa história.
— Certo — concorda Niklas.
— Sabe que ela vai odiar você ainda mais quando tudo isso acabar.
Niklas assente.
— É, imagino que sim. Mas não me importa quanto ela me odeie. Não sou eu quem tem que dormir com ela. — Ele ri, baixinho. — É um risco que estou disposto a correr em nome de tudo. A verdadeira preocupação é: quanto ela vai odiar você, depois que tudo isso acabar.
Desvio o olhar e fito a parede.
— É um risco que eu também estou disposto a correr — digo, distraído.
— Talvez ela entenda — comenta Niklas, tentando acalmar os pensamentos preocupados que estampam meu rosto. — Se ela se juntar a nós, se vai se juntar a você, vai precisar saber como e quando separar a relação entre o trabalho de vocês e o relacionamento afetivo.
— Sim. Ela vai precisar aprender isso.
Ele bate de leve na mesa.
— E, se ela é tão forte quanto você diz, vai entender e superar.
Fico em silêncio.
— Então está combinado. Vou para Los Angeles à noite. Tenho mesmo uma reunião com Fredrik.
— Presumo que ele ainda não tenha falado nada a meu respeito para você.
— Não — confirma Niklas. — O cara é tão firme quanto um católico em um confessionário. Ele não vai trair você, Victor. Por que ainda tem medo de que ele faça isso? — Niklas pega o maço de cigarro e a chave do carro de cima da mesa. — Ele passou no seu teste há meses. Quanto tempo o prenderam naquela sala? Seis dias? Fredrik é leal. Ninguém dobra esse cara.
— Não tenho tanta certeza — digo, olhando para os veios da madeira da mesa. — Você parece esquecer qual é a especialidade de Fredrik. Ele tortura as pessoas com brutalidade e sente prazer nisso. Acho que se alguém pode passar por um interrogatório sem ceder, esse alguém é Fredrik Gustavsson.
Niklas me olha de lado.
— O que você está pensando? — pergunta ele, intrigado com meu raciocínio.
Olho para ele.
— Tenho mais um teste que preciso fazer com Fredrik. Se eu o deixar a sós com Sarai, ele vai acreditar que confio nele cem por cento. Vai parecer que eu abaixei a guarda. — Eu me levanto e vou até a estante, refletindo sobre o novo plano que acabo de elaborar. — Se ele entrar em contato com você e contar que está com Sarai, então saberemos que sua lealdade na verdade está com a Ordem. Sarai é a isca perfeita. Qual é a melhor maneira de permitir que Vonnegut me atraia do que usar a garota pela qual eu...
Ficamos em silêncio. Sinto o olhar inquisidor de Niklas nas minhas costas.
— A garota pela qual você está se apaixonando?
Faço uma pausa.
— Sim...
CAPÍTULO VINTE E OITO
Sarai
Não falo com Victor há horas. Três, pelo menos. Deixei que ele me despisse, me desse banho e cuidasse dos meus ferimentos. Eu o ouvi “se explicar”, mas de uma maneira que só alguém tão travado para relacionamentos quanto Victor Faust poderia fazer. Não implorou para que eu falasse com ele, para que acabasse com o gelo. Ele só falou. Tão calmo quanto em qualquer outra conversa que já teve comigo, embora dessa vez o papo tenha sido bem unilateral. Mas detectei a preocupação em sua voz, ainda que ele a tenha disfarçado bem. Senti, quando me tocou enquanto escovava meu cabelo e limpava a sujeira das feridas nas minhas costas, que ele queria me tocar com mais carinho. Queria me puxar para perto e me abraçar. Mas eu sabia que ele não queria passar dos limites.
E foi esperto em não passar, porque levaria um soco na cara.
Ao anoitecer, embora exausta e ainda dolorida da cabeça aos pés, estou bem o suficiente para andar pela casa sozinha, mas com cuidado, porque minhas costas estão bem detonadas. Victor me deixou sozinha no quarto da casa em Albuquerque. Eu precisava de um tempo para pensar em tudo o que aconteceu, pelo que ele e Niklas me fizeram passar. Precisava de tempo para refletir sobre os motivos de Victor. Eu estava cagando e andando para os motivos de Niklas ou para o papel que ele teve naquilo. Niklas não merece meu tempo, muito menos meus pensamentos. Victor, por outro lado... Parte de mim quer se sentir traída, como se essa fosse a reação normal. Sinto que deveria me encolher no chão e chorar, esmurrar as paredes, chafurdar na autopiedade, também apenas porque essa tende a ser a reação esperada. Mas não sou assim. E não sou normal. E nada na minha vida ou na vida de Victor chega perto de ser normal.
Sei que Victor está se perguntando o que estou pensando. Ele se preocupa com o tamanho da raiva que sinto dele, se ela é tão profunda que eu nunca mais vou conseguir perdoá-lo. Sei que ele deve estar convencido de que meu silêncio é a única resposta que vou lhe dar.
Mas ele está enganado.
Ele entra no quarto para pegar algo em sua maleta, e eu o intercepto.
— Foi ideia de Niklas? — pergunto, da cama.
Torço muito para que tenha sido.
Victor para diante da porta, de costas para mim. Em vez de abrir por completo, ele a fecha. Deixando a pasta preta que tirou da maleta na cômoda alta perto da porta, ele se aproxima de mim. Sua camisa preta está para fora da calça. As mangas compridas estão arregaçadas até os cotovelos, expondo a virilidade de seus antebraços e a força de suas mãos.
Desencosto os ombros da cabeceira e me sento na beirada da cama, pondo os pés no chão. Estou usando uma blusinha vermelha folgada e fina que não adere muito às minhas costas e um short de ginástica.
— Sim, tecnicamente, foi.
— Tecnicamente? — pergunto, franzindo o cenho.
Ele se senta ao meu lado, com os braços sobre as pernas e as mãos nos joelhos.
— Ninguém está isento dos testes. Niklas apenas teve que me lembrar disso, no seu caso. É uma questão de confiança...
— Você já não confiava em mim?
— Sim, confiava — assume ele, olhando para a frente. — Mas o que fizemos você passar era necessário, Sarai. Você queria fazer parte. Eu queria que você fizesse parte. Para isso acontecer, teria que ser feito de acordo com as regras, ou sempre haveria um conflito com os outros membros. Meu juízo seria sempre questionado. Você estaria sempre sob suspeita. Ninguém está isento. Fredrik não estava. Aquele homem nos fundos do restaurante de Hamburg, que ajudou você a fugir. O homem que leva a sra. Gregory para os nossos abrigos.
— E Amelia? Ela não sabia nada sobre o que você e Fredrik fazem, pelo que você me contou. Ou isso também era mentira? Ela foi espancada como eu fui?
— Não — responde ele, olhando para mim. — Não era mentira. E, não, ela não passou por nada do que você passou. Testamos de outras maneiras a confiabilidade de Amelia e de outros como ela, aqueles que não sabem nada sobre o que fazemos. Mas, para aqueles que estão por dentro, que sabem tanto quanto você sabe sobre nós, os testes são mais... extensivos.
Desvio o olhar.
— Você mandou Stephens para a casa de Amelia? — pergunto, baixinho.
— Não — responde Victor, e me viro para encará-lo à minha esquerda, desconfiada.
— Então como eles sabiam sobre ela? Como sabiam que Dina esteve lá? — A raiva aumenta na minha voz. — Você pôs Dina em risco? Por favor, diga a verdade!
Victor balança a cabeça antes mesmo que eu termine de perguntar.
— É verdade. Talvez a gente nunca saiba ao certo como Stephens descobriu sobre Amelia, ou que a sra. Gregory estava escondida lá. Quem poderia responder a essa pergunta agora está morto. Mas posso garantir que nem eu nem Niklas nem mesmo Fredrik tivemos qualquer coisa a ver com isso. Podem ter acontecido várias coisas, Sarai. A sra. Gregory pode ter entrado em contato com algum parente em algum momento. — Ele gesticula ao falar. — Pode ter acessado sua conta bancária, revelando sua localização.
— Stephens poderia ter me matado — digo, com amargura, pulando de um assunto para outro. — Ele queria tanto me matar que teria atirado em mim, se Niklas não tivesse atirado nele primeiro. E se ele tivesse me matado dias antes? E se Stephens tivesse me espancado até a morte? — Meu peito sobe e desce enquanto tento conter minha raiva.
Victor suspira e olha para as mãos, passando os dedos da direita nas costas da esquerda, constrangido.
— Sinto muito por isso — diz ele, arrependido, e então ergue os olhos devagar. — Sim, era possível que Stephens matasse você, não nego, mas eu sabia que Niklas faria de tudo para que isso não acontecesse.
Rio com descrença e desdém.
— Niklas? — pergunto, incrédula. — O mesmo que atirou em mim? Você está me dizendo que botou fé em alguém que me quer morta desde a primeira vez que me viu? — Começo a levantar a voz, e Victor passa a demonstrar sinais de constrangimento.
— Talvez eu nunca consiga fazer você entender — reflete ele, ainda controlado. — Mas sei que Niklas nunca vai machucá-la. Nós dois passamos por muita coisa desde que saí da Ordem. Chegamos a um entendimento. Ele aceita você...
— Eu não preciso que ele me aceite! — Fico de pé em um salto e o encaro de cima, com os punhos cerrados. — Niklas é a última pessoa da Terra de quem necessito qualquer tipo de aprovação! Ele tentou me matar!
Ergo os punhos cerrados diante de mim e prendo a respiração, rangendo os dentes. Meu corpo enrijece, crispado de ressentimento.
Victor fica de pé e segura meus ombros. Hesitante, expiro e me acalmo, mas não consigo olhá-lo nos olhos. A sensação é a mesma de antes, quando queria me sentir traída porque seria a reação normal. Agora, quero odiá-lo pelo mesmo motivo. Mas não odeio. Posso não entender por que ele foi confiar minha vida logo a Niklas, mas acho que o único motivo de não entender é porque não quero. Quero sentir raiva. Quero ser inflexível. Porque é mais fácil do que aceitar a verdade impensável: a de que Niklas merece uma chance. Porque, se eu fosse ele e estivesse tentando proteger meu irmão da Ordem, provavelmente teria atirado em mim também.
Victor afasta o cabelo do meu rosto, prendendo-o atrás das orelhas. Ele me olha por um momento como se estivesse evocando uma lembrança que tenho certeza de que me envolve de alguma forma. Como poderia não envolver? Essa expressão pensativa e encantada de seus olhos verde-azulados, o modo como ele fez questão de tocar meu rosto ao afastar meu cabelo. Quero gritar a plenos pulmões com ele, mas só consigo ficar ali e observar aqueles lindos olhos sombrios me examinando.
Ele olha para o quarto ao redor.
— Na noite em que encontrei você no meu carro — diz ele, sem olhar para mim —, na mesma hora a vi como uma ameaça. Eu queria me livrar de você. Rápido. Levar você de volta para a fortaleza, abandoná-la na estrada. Eu queria muito matar você.
Como já sabia de tudo isso, não fico surpresa, mas continuo curiosa para saber por que ele está tocando nesse assunto agora. Fico em silêncio, cruzo os braços e faço uma cara de dor quando o movimento repuxa a pele das costas.
— Eu poderia, e muitas vezes pensei que deveria ter matado você — continua Victor. — Tive todas as oportunidades. Mas não consegui.
— Você precisava de mim. Como moeda de troca. Talvez, se eu não tivesse dado essa ideia, avisado sobre o modo como Javier negociava, você tivesse me matado.
— Não — responde ele, em voz baixa, balançando a cabeça de leve. Então sinto seu olhar em mim e me viro. — Eu não precisava usar você como moeda de troca, Sarai. Sabia, quando saí daquele encontro com Javier Ruiz, que, quando eu contasse da recompensa que Ruiz me oferecera para matar Guzmán, no fim só seria contratado para matar Ruiz. Porque a oferta de Guzmán era mais alta do que a dele. Receber ou não a outra metade do dinheiro de Ruiz era irrelevante. Eu não precisava usar você como moeda de troca, afinal.
— Não entendo aonde você está querendo chegar — digo, e é verdade.
Victor inspira e desvia os olhos novamente.
— Naquela manhã, quando Izel estava vindo buscar você naquele hotel, antes de você acordar, minha intenção era lhe entregar para ela. Cheguei até a contar a eles onde a gente estava. Mas quando você acordou... — Ele para no meio da frase e ergue os olhos para o teto, soltando o ar dos pulmões mais uma vez, concentrado. Então Victor baixa o queixo e me olha nos olhos. — Se você não tivesse acordado, ainda estaria com Javier Ruiz, neste momento.
Com os braços cruzados, dou alguns passos na direção dele e inclino a cabeça para o lado, pensativa.
— O que você está dizendo? Eu estou aqui com você agora porque acordei antes de Izel chegar? Não entendi.
— Eu não consegui. Foi como atirar em um inocente, qualquer um que tem consciência não consegue fazer isso olhando nos olhos da pessoa. Quando você acordou, eu não consegui entregá-la.
Ainda não tenho certeza do que Victor está tentando dizer, mas sei que não foi por causa de algo ridículo como amor à primeira vista. Contudo, ao estudar seu olhar perturbado, entendo aos poucos que ele está aprendendo algo extraordinário a respeito de si próprio. Deixo que ele fale, pois parece que Victor precisa pôr aquilo para fora, exteriorizar para talvez se entender por completo.
— Batalhei a cada passo do caminho enquanto você estava comigo, dizendo a mim mesmo que precisava me livrar de você. Você era uma ameaça para mim, para o meu emprego, para a minha vida, e mais tarde ameaçou minha relação com meu irmão. Eu soube disso assim que a vi pelo retrovisor, quando você estava apontando a arma para a minha nuca, com aquela cara desesperada e assustada. Você ameaçava tudo. Mas, pela primeira vez na vida, fui contra tudo o que eu era: um assassino treinado com uma consciência reprimida... — Seu rosto endurece e ele se aproxima de mim. — Eu poderia ter abandonado você há muito tempo, mas não abandonei. Não queria abandonar então, e não quero abandonar agora.
Um calafrio percorre meus braços quando Victor esfrega as mãos neles, para baixo e para cima.
— Sinto muito por tudo o que você passou — diz ele, baixinho. — Quero que você fique, mais do que tudo, mas, se não quiser ter mais nada a ver comigo, eu vou entender. — Ele pressiona os lábios no alto da minha cabeça e vai até a porta, pegando a pasta preta do gaveteiro.
— Victor? — chamo, baixinho, antes que ele toque a maçaneta.
Ele olha para trás.
Começo a dizer “Fico feliz que você não tenha me abandonado”, mas paro e engulo as palavras. Por mais que eu queira revelar que aquela história me tocou, que não consigo imaginar a vida sem ele, ainda estou furiosa pelo que ele fez comigo, e não posso desculpá-lo. Ainda não. Não com tanta facilidade assim.
— Era só isso? — pergunto, no lugar do que ia dizer. — O teste que eu fiz? Foi o último? Foi a única vez que vou ter que passar por algo assim? Preciso ser sincera, não quero acordar todo dia achando que vou ser sequestrada, espancada ou afogada. Não quero não confiar em você...
Ele põe a mão na maçaneta e a vira. A porta se abre.
Olhando para trás, ele diz:
— Não, tem só mais uma coisa.
Meu coração endurece como uma pedra quente. Por essa eu não esperava.
— O maior teste é saber se você consegue ou não trabalhar com meu irmão — diz Victor. — Mas pode confiar em mim. E pode confiar em Niklas. Você nunca mais vai passar por nada assim.
Ele faz uma pausa e completa:
— Espero que você fique.
Então sai do quarto, fechando a porta.
Algum tempo passa, e fico sozinha para pensar em tudo. Sei que neste momento, não ontem nem no dia em que fugi da fortaleza no carro de Victor, mas neste momento é que o resto da minha vida está começando.
E sei que só há uma escolha certa.
Saio do quarto e vou encontrar Victor, Fredrik e Niklas na sala. Eles estão falando que Fredrik não sabia de nada e que passou em todos os testes de Victor e Niklas. Fico escutando sobretudo os comentários de Fredrik e Niklas, pois Victor parece mais calado do que de costume.
Os três me olham quando entro na sala, interrompendo a conversa no meio de uma frase.
— Ah, aí está ela — comenta Fredrik, com um sorriso largo e lindo. Ele me chama com um gesto. — Vem sentar com a gente. Estávamos discutindo qual o próximo passo para nós quatro. — Percebo que Fredrik não tem tanta certeza da minha decisão quanto finge que tem.
Niklas apenas acena com a cabeça para mim.
Victor fica de pé e estende a mão, oferecendo o lugar ao lado dele para eu me sentar.
— Antes, preciso dizer uma coisa.
Ele põe as mãos atrás das costas e dá um passo para o lado, esperando pacientemente.
Olho para os três, um por um, e paro em Victor.
— Se eu vou ficar aqui, há algumas coisas que preciso deixar bem claras.
Um lampejo de esperança passa pelos olhos verde-azulados de Victor.
Olho para Fredrik e Niklas de novo e continuo, falando com todos:
— Eu faço o que eu bem entender. Vou seguir as ordens de Victor como vocês dois seguem, vou treinar até sangrar e não conseguir andar direito. Conheço o meu lugar. Mas não porque sou mulher ou mais jovem do que vocês. Nem porque vocês acham que vou me “machucar” — continuo, fazendo aspas com os dedos. — É claro que vou me machucar, mas não preciso de nenhum de vocês... — meus olhos pousam em Victor de novo — correndo para pegar uma porra de um curativo cada vez que eu cair.
Fredrik ri baixinho.
— Ei, nada contra isso — afirma ele, erguendo as mãos e deixando-as cair nos joelhos.
Olho para Niklas. No entanto, não demonstro nenhuma emoção enquanto o encaro. Acho que ainda não tenho certeza de quais deveriam ser essas emoções.
Ele abre um sorrisinho, embora eu saiba que é completamente inocente.
— Acho que você sabe que eu não vou correr para ajudar cada vez que você cair.
Só reviro os olhos e encaro Victor.
— Sarai... — começa Victor, mas levanto o dedo indicador para ele.
— Isso é outra coisa. Sarai Cohen morreu há muito tempo. Ela morreu quando eu tinha 14 anos e passei a primeira noite naquela fortaleza no México. — Baixo a mão e olho para cada um deles. — Quero ser chamada de agora em diante de Izabel Seyfried.
Todos se entreolham e depois balançam a cabeça, me observando.
— Izabel? — pergunta Victor, continuando de onde o interrompi.
Eu o olho nos olhos.
— Vou entender se você jamais me perdoar, mas...
— Você me perdoaria se fosse o contrário? — pergunto, tentando usar um argumento que ele entende na hora. — Victor, você fez o que precisava fazer, como na noite em que manipulei você para... — Paro de falar antes de revelar demais sobre nossa relação para Niklas e Fredrik. Mas percebo, pela expressão de compreensão nos olhos de Victor, que ele sabe a que me refiro.
— Mas isso está longe de ser a mesma coisa.
— Não importa. Quero dizer, só para constar, bem na frente do Bonitão e do Advogado do Diabo, que o inferno que eu enfrentei não só é perdoável, mas também foi totalmente necessário. Eu sei no que estou envolvida. Nós matamos gente, alguns de nós para ganhar a vida, outros por vingança. Não estou trabalhando em um banco. Muito mais do que uma pesquisa de antecedentes e uma análise de crédito precisa ser levado em conta, se vou fazer parte desse esquema. E, para ser sincera, eu me sinto muito mais segura perto de todos vocês, sabendo que são capazes de chegar a extremos assim para ter certeza de que todo mundo nesta sala é confiável. Que qualquer um que se juntar a nós mais tarde vai passar pelo mesmo inferno.
Meus olhos pousam em Victor mais uma vez.
— Não tem nada para perdoar — repito, e a expressão dele se abranda.
Niklas se levanta da poltrona de couro.
— Sar... Izabel — corrige-se ele, aproximando-se de mim. — Olha, preciso dizer uma coisa. Sinto muito por atirar em você em Los Angeles. De verdade. Nunca mais vou tentar machucar você.
— Acredito em você — digo, e, pelas expressões no rosto de cada um, ninguém esperava isso. — Acho que posso afirmar com segurança que vai ser difícil para mim até ficar na mesma sala que você, Niklas. Neste momento, por exemplo, não estou gostando. Sinceramente, eu preferia nem ter que ver muito a sua cara. Acho você um babaca, um doido psicopata que deveria estar em um manicômio judiciário. Nunca vou gostar de você e duvido que um dia eu tenha algum respeito pela sua pessoa. Mas você é irmão do Victor, e quando implorei para ele não matar você foi por um motivo, e não me arrependo. Mas nunca vou gostar de você e estou avisando para não cruzar a porra do meu caminho.
Ele levanta as mãos em um gesto de rendição e dá um passo para trás.
— Ok, ok, entendi. Não cruzar o seu caminho. — Ele ri baixo.
É mais teatro do que qualquer outra coisa. Sei que ele ainda tem problemas comigo (é tão teimoso quanto eu), mas por amor a Victor vai me tolerar tanto quanto eu a ele. Desprezo aquela expressão sempre pretensiosa no rosto dele. Desprezo a sua autoconfiança e arrogância e prevejo que Niklas e eu vamos bater de frente muitas vezes. Mas, por Victor, vou aguentar.
Niklas vira de costas para mim e se dirige à poltrona.
— Niklas — chamo.
Ele para e me olha. Eu me aproximo.
— Só tem mais uma coisa que quero dizer.
— Pois não?
Ele se vira e me olha com curiosidade, esperando. Quando ele está ao alcance do meu braço, levanto o punho e o golpeio na lateral do rosto, bem na altura do maxilar. A força do soco causa um tremor doloroso na minha mão. Tento aliviar a dor abrindo e fechando os dedos, mas ela só piora.
— Aaaaiii, caralho! Qual é o seu problema, porra? — Niklas põe a mão no canto da boca. — Tudo bem. Entendi. Eu atirei em você e agora estamos quites. Eu mereci. — Com a mão ainda sobre a boca, como se estivesse tentando colocar o queixo no lugar, ele termina o caminho até a poltrona e se joga sobre ela.
— Isso não foi porque você atirou em mim — retruco, ríspida. — Foi por matar Stephens. Ele era meu. — Aponto para ele. — E o único jeito de estarmos quites por você ter atirado em mim é se eu atirar em você. Por isso, como já falei, não cruze o meu caminho.
Niklas olha para Victor, de pé atrás de mim, como quem diz: Essa garota existe? Victor não diz nada, mas quando olho para ele por um instante noto que está sorrindo.
Fredrik está jogado no sofá, com os braços no encosto e um enorme sorriso.
No fim, seguro a mão de Victor e aceito me sentar. Estou dolorida demais para ficar de pé sozinha por muito tempo. Ele me leva até o sofá e me ajuda a sentar nas almofadas macias, segurando minha mão até eu me ajeitar. E então se senta ao meu lado.
Fredrik se curva e olha para mim do outro lado de Victor, com seu sorriso sombrio e encantador intacto.
— Fico feliz que tenha se juntado a nós. Claro que ainda vai ter que treinar muito, de acordo com Faust. — Ele aponta para Victor. — Mas algo me diz que você tem um talento natural. — Ele dá uma piscadinha. — Teimosa. Imprudente. Desbocada. Nada delicada. Mas acho que eu não ia gostar muito de você se não fosse todas essas coisas.
— Obrigada, Fredrik — digo com sinceridade e um sorrisinho irônico.
Niklas relaxa na poltrona, apoiando seu coturno preto no joelho. Não sei por quê, mas reparo nesse detalhe. Coturnos? Eu o olho de alto a baixo. Jeans escuro. Camiseta cinza que contorna seus bíceps. Cabelo desgrenhado.
Meus olhos vão e vêm entre ele e Victor, sempre sofisticado, e não consigo deixar de me perguntar se não estou deixando passar algo importante. Olho para Fredrik do lado direito de Victor, e, como Victor, Fredrik está usando as roupas de sempre, sapatos e um terno refinado.
— Por que ele está vestido assim? — pergunto para Victor, indicando Niklas com um aceno da cabeça.
Victor olha por um instante, mas é Niklas quem responde.
— Porque prefiro isto a usar esses ternos ridículos. E, como não estou mais na Ordem, acho que posso me vestir do jeito que eu quiser.
Surpresa, volto a olhar para Victor sem mexer a cabeça.
Victor assente algumas vezes, confirmando o que Niklas disse.
— Ele saiu há alguns dias. Fredrik é o único que continua lá dentro.
— Mas... por quê? Isto é, não seria melhor que Niklas continuasse de olho em Vonnegut, sobretudo no que se refere a você?
— Saí porque precisei — conta Niklas. — Eu estava demorando demais para matar Victor.
— E, como era de esperar — acrescenta Victor —, Vonnegut estava começando a questionar a lealdade de Niklas. Vonnegut pode não saber que Niklas e eu somos irmãos, mas nós tivemos uma relação muito próxima de trabalho por muitos anos. Estava demorando muito e ficando arriscado demais.
Solto um suspiro preocupado e tento me reclinar no sofá, até me lembrar das minhas costas.
Olho para Fredrik.
— E você? A Ordem sabe da sua relação com Victor? Ou com Niklas, aliás?
Fredrik sorri para Victor.
— Viu? Ela já entrou de cabeça no trabalho — observa ele, com uma risadinha, e então volta a olhar para mim. — A Ordem sabe que trabalhei com Victor algumas vezes no passado, mas não mais do que qualquer outra pessoa com quem ele já trabalhou. Quanto ao irmão dele, quando Victor saiu da organização, eu fui abordado por Niklas para ajudar a encontrá-lo, agora todos sabemos disso. Eu achava que Niklas seria meu superior depois desse episódio.
— Mas Vonnegut nunca soube do meu envolvimento com Fredrik — intervém Niklas.
— Então, por enquanto — acrescenta Victor —, Fredrik está seguro na Ordem.
— E represento os únicos olhos e ouvidos deles lá dentro — intervém Fredrik.
— Uau — comento, balançando a cabeça, tentando absorver tudo isso e o que significa para nós.
— Está ficando com medo? — pergunta Niklas, abrindo um sorriso.
— Nem um pouco — respondo, sorrindo também. — Só estou tentando decidir qual serviço é mais urgente, a fortaleza no México ou eliminar a Ordem para eles pararem de caçar a gente.
Niklas sorri e parece que, ao perceber o que fez, desvia o olhar de mim.
— Acho que estou apaixonado pela sua mulher — diz Fredrik para Victor, brincando.
— Por algum motivo, duvido que você seja capaz disso — rebate Victor, despreocupado.
Ele olha para mim.
— Eu sei qual serviço é mais urgente. — Ele dá um sorrisinho e segura a minha mão.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
Izabel
Poucos convidados circulam no corredor, e seus passos são fracos. Saltos altos. Sapatos elegantes. Vozes ricas fingindo estar intrigadas, dramatizando demais as coisas insignificantes da vida. Risadas artificiais. Música clássica — Bach, acho — vem do andar de baixo, tão nítida, elegante e sofisticada que me sinto em uma festa para a rainha da Inglaterra, e não sentada em um quarto escuro, com meu punhal favorito na mão. Eu o chamo de Pérola.
O cheiro deste quarto é o mesmo da última vez em que estive aqui: colônia demais, suor, pot-pourri velho e lencinhos umedecidos. Uma pesada mesa quadrada de mármore está do outro lado do quarto. Eu me lembro dessa mesa. Nunca vou esquecer o modo como Victor me curvou sobre ela, ou o porco nojento que ficou olhando quando minha calcinha desceu até os tornozelos.
Está escuro lá fora, passou das nove da noite, e o luar que entra pela varanda atrás de mim inunda a maior parte do quarto. Fiz questão de deixar as portas abertas para sentir o ar noturno na pele. Está muito quente com estas roupas apertadas. Preto do pescoço para baixo. Botas, parecidas com as de Niklas, só que as minhas têm facas escondidas no couro. Uma arma está acomodada em um coldre na minha cintura, mas só está ali para o caso de eu precisar. Gosto do meu punhal.
Eu me sento em uma cadeira no centro do quarto espaçoso, fora da suave luz acinzentada que vem da varanda. Minha perna direita está cruzada sobre a esquerda. Minhas mãos repousam no colo, o cabo de pérola do meu punhal encaixado com firmeza na mão. Bato a fina lâmina de prata na minha coxa.
Já se passaram 26 minutos desde que me sentei. Mas sou paciente. Disciplinada. Tanto quanto consigo ser, acho. Prometi a Victor que esperaria. Que ficaria sentada aqui, praticamente imóvel, até a hora certa. Eu disse que conseguiria, que aguentaria sem correr para o andar de baixo e resolver o assunto ali. E pretendo provar. Embora admita que é difícil.
Olho para Niklas, de pé em uma sombra perto das portas da varanda, com as mãos entrelaçadas. Ele sorri para mim, achando graça da minha crescente frustração. Sorrio de volta e olho para a porta do outro lado do quarto.
Trinta e dois minutos.
Ouço as vozes dos dois seguranças sempre postados do lado de fora do quarto. Eles estão falando com Arthur Hamburg.
Segundos depois, a porta se abre e um clarão vindo do corredor inunda o quarto, mas não me alcança. E, com a mesma rapidez, a luz some quando o segurança fecha a porta depois que Hamburg entra. Ele não me nota ao passar pela grande cama e pela mesa de mármore.
— O que você achou do cabelo? — pergunto.
Hamburg fica imóvel na hora.
Eu me inclino para a frente na cadeira, entrando no alcance da luz.
— Preto retinto — digo, despreocupada. — Ainda me acha deslumbrante com qualquer peruca? — Uso a mão livre para tocar o penteado e exibi-lo.
As luzes do quarto se acendem quando Hamburg diz: Acender luzes.
— Como você entrou aqui? — pergunta ele, desesperado, seu olhar correndo pelo quarto em busca da resposta e de qualquer sinal de mais alguém.
Quando Hamburg nota Niklas e Victor de pé perto da entrada da varanda, atrás de mim, com as armas nas mãos ao lado do corpo, ele chama os guarda-costas. Mas então uma forte pancada é ouvida do lado de fora. E depois outra. Hamburg para a centímetros da entrada, sem saber mais se é seguro abri-la.
Ele me olha de novo.
Sorrio e bato com a lâmina na minha perna mais uma vez.
A porta atrás dele se abre, e Fredrik está de pé ali, segurando dois colarinhos brancos. Ele arrasta os corpos dos seguranças pelo chão de mármore e os larga. As cabeças batem ruidosamente no mármore.
Hamburg olha para Fredrik, de olhos arregalados como um peixe, seu corpo balofo imóvel, seus dedos roliços mal se mexendo sobre a calça, nervosos, como se ele estivesse procurando por uma arma que costuma carregar e não quisesse acreditar que não está com ela quando mais é necessária.
Fredrik fecha e tranca a porta. Ele vai até os corpos, pegando-os pelos colarinhos de novo e arrastando-os pelo quarto. Não há sinal de sangue neles. Ele deve ter usado sua arma favorita, uma seringa cheia de algo letal e que não deixa vestígios.
Olho para Hamburg.
— S-sim... você fica bem de cabelo preto — afirma ele, agitado. — P-por que estão aqui? Willem está desaparecido. Eu-eu não sei onde ele está. Juro. Não o vi nem tenho notícias dele há mais de uma semana.
Sorrio e inclino a cabeça para o lado.
— É porque ele está morto — digo, sem rodeios.
Hamburg olha para Victor atrás de mim. E para Niklas. Depois para Victor de novo.
— Olhem, eu-eu disse a ele para esquecer o assunto — diz Hamburg, ainda gaguejando. — Não fui eu que mandei. Fa-falei para não procurar nenhum de vocês.
O suor brota em seu rosto rechonchudo, brilhando no queixo duplo. As axilas de sua camisa branca estão empapadas, a umidade se espalhando depressa pelo tecido. O colarinho da camisa muda de cor ao absorver o líquido como uma toalha de papel barata.
Fico de pé.
— Você é um mentiroso. — Ando devagar na direção dele. — Mas não importa. Não estou aqui por causa de Willem Stephens. Estou aqui por sua causa.
Hamburg anda para trás conforme me aproximo, seu rosto inchado e enrugado contorcido de pavor, suas mãos grossas tateando atrás de si, procurando a porta ou uma parede.
Fredrik fica na frente da porta, bloqueando o caminho de Hamburg, que para. Vejo sua garganta se mover quando ele engole em seco. O medo em seus olhos é cada vez maior.
Ele continua olhando para Victor e Niklas atrás de mim, sempre concentrando sua atenção em Victor por último.
Victor se afasta da varanda e vem para o meu lado.
— Olhem aqui, eu cumpri minha promessa, cacete! — grita Hamburg, aprofundando as rugas ao redor dos olhos. Ele aponta um dedo gordo para nós, adornado por um grosso anel de ouro. — Nunca fui atrás de nenhum de vocês depois que mataram minha esposa! Cumpri minha promessa! — Ele aponta para mim. — Foi você que veio atrás de mim! V-você começou tudo isso!
Balanço a cabeça e sorrio para ele, rindo do desespero e do medo. Só isso já me dá alguma satisfação, vê-lo se retorcer, ver o modo como está implorando por sua vida sem fazê-lo de forma explícita.
Eu me aproximo mais um pouco.
Hamburg não se mexe porque não consegue. Fredrik está atrás dele.
— Ah, isso não tem nada a ver comigo — diz Victor para Hamburg. — Eu cumpri minha promessa. Nunca fui atrás de você. Izabel, por outro lado... — Victor está provocando, do jeito relaxado que é sua marca registrada. — Bom, você não fez nenhum acordo com ela, para a sua infelicidade. E eu não sou o dono dela. Nunca fui. Ela está aqui por vontade própria, e não há nada que eu possa fazer a respeito.
Hamburg olha diretamente para mim, a raiva em seu rosto se transformando em algo mais patético.
— P-por favor... eu faço o que você quiser. Dou o que você quiser. Meu dinheiro. Minha casa. É só pedir, é tudo seu. Eu tenho milhões.
Chego perto dele e sinto o cheiro fétido de seu suor. Ele me olha nos olhos, com uma expressão cheia de ódio e horror. Seu corpanzil treme a centímetros do meu, e sei que, se ele achasse que poderia sair impune, me agarraria agora e me estrangularia até a morte.
De repente sua expressão muda, combinando melhor com as palavras ríspidas:
— Você não vai fazer isso — provoca ele, desdenhando de mim com frieza e me encarando. — Não é capaz de matar a sangue-frio. Você matou meu segurança em legítima defesa. Não vai me matar. Não assim. — Há humor em seus olhos.
Fico alerta diante dele, com o indicador apoiado na lâmina do meu punhal, encostado na minha perna. Não digo nada. Só o observo, com um sorriso tênue, mas óbvio, achando graça de suas tentativas inúteis de salvar a própria vida.
Ele dá um passo para a esquerda e começa a se afastar. Eu deixo.
— Vou servir uma bebida para vocês — diz ele, levantando um dedo. Ele tira o paletó gigante e o coloca nas costas da poltrona de couro perto da mesa de mármore. Então começa a desabotoar a camisa.
Chego por trás dele como um fantasma, passando a lâmina em sua garganta antes que ele consiga tirar os dedos do último botão. Um som arrepiante de gargarejo se espalha pelo quarto, seguido por Hamburg se engasgando com o próprio sangue. Ele ergue as mãos como se estivesse tentando escapar de um saco plástico. O vermelho espirra da lateral do seu pescoço, e ele cai de joelhos pressionando o corte com as mãos. O sangue escorre por entre todos os dedos e empapa sua camisa.
Eu o observo. Não com horror, arrependimento ou tristeza, mas com um sentimento de vingança. Meus olhos parecem se abrir ainda mais, atingidos pela brisa que vem da varanda. Não consigo parar de olhar. Não consigo virar a cabeça. Mas posso sentir os olhos de Victor, Fredrik e Niklas em mim, observando como me regozijo no momento do meu primeiro assassinato oficial a sangue-frio.
Hamburg engasga e chora, lágrimas caindo, enquanto vou para diante dele e me agacho. Eu o examino, o modo como seu rosto se contorce, o modo como o vermelho do sangue faz contraste com o branco da camisa. Vejo o terror em seus olhos, o medo do desconhecido tomando conta dele bem depressa.
Um sorrisinho aparece no canto da minha boca.
Hamburg cai para a frente no chão, seu corpo pesado tremendo e estremecendo só por alguns momentos antes de ficar imóvel. Ele jaz com a bochecha encostada no piso de mármore, a boca aberta, assim como os olhos. Eles olham para o nada, estão cheios de nada. O sangue empoça ao redor da cabeça e do peito, encharcando as roupas.
Ainda agachada diante dele, me apoio nas pontas dos pés e me aproximo do corpo, com os antebraços apoiados nas pernas.
— É isso que aquelas pessoas que você matou estranguladas sentiram — sussurro para o cadáver de Hamburg.
Fico de pé e dou um passo para trás, antes que o sangue empoçando no chão chegue à minha bota. Um por um, olho para Fredrik, Niklas e depois Victor, e todos manifestam a mesma aprovação silenciosa. Mas é nos olhos de Victor que vejo muito mais. Um elo eterno entre nós, criado não por este momento, mas por aquela noite em que nossos caminhos se cruzaram no México. Jogados um na vida do outro por um capricho do destino e mantidos unidos pelas nossas raras semelhanças e nossa necessidade de ficarmos juntos.
Somos um só.
CAPÍTULO TRINTA
Izabel
Um ano depois...
Victor entra no banheiro da nossa casa em Nova York e me encontra relaxando em um banho de espuma. Despreocupada, eu o vejo tirar a arma da parte de trás da calça e deixá-la na bancada. Meu cabelo está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado. Estou deitada na banheira com os braços estendidos nas laterais, um joelho fora da água, parcialmente coberto pela espuma. Foi um dia cheio. Matei John Lansen, presidente da Balfour Enterprises e estuprador de primeira linha, e ainda tenho o sangue dele debaixo das unhas.
Fecho os olhos e relaxo.
— Onde você estava? — pergunto para Victor, sem levantar a nuca da banheira.
— Limpando a sua sujeira — responde ele, calmo.
Compelida a olhá-lo depois dessa acusação, abro os olhos novamente e o vejo de pé ao meu lado.
— Como assim? Foi um serviço limpo.
Ele ergue uma sobrancelha e olha para as minhas mãos.
— É mesmo? — pergunta ele, em tom acusatório. — Limpo significa sem sangue. Sem digitais. Sem deixar nada para trás, nem o seu cheiro.
Suspiro e fecho os olhos.
— Victor — digo, fazendo gestos dramáticos por cima da borda da banheira. — Eu não deixei nada para trás. Limpei tudo depois. Não ficou nada. Pergunta para o Fredrik. Ele estava lá. Verificou tudo depois.
Sinto o corpo de Victor mais perto quando ele se senta na borda da banheira.
— Mas quais são as ordens que eu dei, Izabel? — questiona ele, com tanta calma quanto antes. — Antes de começar essa missão com Fredrik, o que eu pedi?
— Nada de sangue — respondo, ainda de olhos fechados. — Envenene o cara, para parecer um ataque cardíaco.
Abro os olhos de novo e encontro seu olhar dominador, o verde de seus olhos mais escuro do que de costume.
— Veneno é o lance do Fredrik, não o meu.
— Você desafiou minhas ordens. E vai ser a última vez.
Sorrio para Victor e afundo as mãos na água para sentir a espuma na pele. Sei que Victor não está bravo de verdade comigo. Isso se tornou um jogo que fazemos: às vezes faço o contrário do que ele manda, e ele me castiga. É o tipo de jogo em que ambos ganhamos. Eu jamais teria desafiado as ordens dele em uma missão importante. John Lansen era só uma ponta solta, e mais uma das minhas missões de treinamento.
— O que você vai fazer comigo, Victor? — pergunto, com um brilho sedutor nos olhos. Tiro a perna esquerda da água e a apoio na borda da banheira, atrás de onde ele está sentado. — Vai me castigar?
Com a manga já arregaçada acima do cotovelo, sua mão direita percorre lentamente o comprimento da minha perna e mergulha na água. Gemo quando seus dedos me encontram.
— Vou tirar você do trabalho de campo até aprender a se controlar — diz ele, pondo dois dedos entre meus lábios inferiores.
Minha nuca pressiona com mais força a borda da banheira e minhas pernas se abrem mais.
— E se eu nunca conseguir me controlar? — pergunto, ofegante, mal capaz de me concentrar na conversa, com seus dedos se movendo entre minhas pernas daquela maneira.
Ele é um canalha. E eu o amo pra caralho por isso.
Dois dedos entram em mim e minhas pernas começam a enrijecer e formigar quando seu polegar esfrega com força meu clitóris em um movimento circular.
— Abra os olhos — manda ele em voz baixa, mas imperiosa.
Abro, só um pouco, pois está cada vez mais difícil controlar minhas pálpebras. Soluço, gemo e mordo meu lábio inferior com tanta força que dói.
— Se você não conseguir se controlar, então não terei escolha.
— Não terá escolha... do quê? — Meu peito nu sobe e desce. Mexo na água procurando sua mão, fechando os dedos em volta do seu pulso forte e descendo até os dele, que continuam se movendo em círculos.
Então ele para.
Ele tira a mão da água, fica de pé e enxuga o braço com minha toalha, pendurada na porta do boxe.
Olho para ele sem entender.
Ele sai do banheiro e me deixa sentada lá, sozinha, insatisfeita e sexualmente frustrada.
— Ei! — grito para ele. — Aonde você vai, cacete?!
Nenhuma resposta.
— Victor!
Nada.
Rosno baixo, fico de pé e saio da banheira. Pego a arma de Victor com minha mão molhada e ensaboada e vou para o nosso quarto. Ele está de costas para mim, perto da nossa cama king-size, tirando a camisa com uma graça casual e desinteressada, o que só me deixa mais frustrada.
Chego por trás dele, ensopada, pingando água e espuma no chão, e começo a apontar a arma para suas costas. Mas Victor é rápido demais e se vira, tirando a arma da minha mão e enfiando-a sob o meu queixo, tudo em dois segundos, que passam por mim como um borrão.
O cano frio toca minha pele. A intensidade nos olhos dele provoca uma onda de calor no meu corpo e entre minhas coxas. Meus seios estão pressionados no seu tórax duro e quente, sua mão livre posicionada no meio das minhas costas, com seus longos dedos abertos.
— Nenhuma disciplina, Izabel. — Ele estuda o meu rosto com um movimento faminto e calculado dos olhos. Ele lambe o canto da minha boca e enfia mais a arma na minha garganta. — Você nunca vai aprender.
Tento beijá-lo, procurando sua boca com a minha, mas ele me rejeita, me provocando com a distância de seus lábios, a 2 centímetros dos meus.
Ele me lambe de novo. E então me joga na cama e se encaixa no meio das minhas pernas nuas, ainda vestido da cintura para baixo com a calça preta. Estremeço quando sinto sua ereção me pressionando sob a calça. Meu corpo se desfaz em calafrios quando ele passa a ponta da língua de baixo para cima entre os meus seios.
Ele beija um lado do meu queixo, depois outro.
— Talvez você devesse se livrar de mim — sussurro nos lábios dele.
— Nunca — diz Victor, me beijando de leve uma vez. — Você é minha enquanto respirar. — A boca dele cobre a minha, faminta.
Foi assim que me tornei o que sou, uma escrava sexual transformada em assassina. E foi o início não só de um caso de amor entre mim e Victor, mas também de um novo círculo clandestino de assassinos, tão secreto que nem tem nome.
Quatro viraram cinco seis semanas atrás, quando recebemos o diabo louro de olhos castanhos, Dorian Flynn, no nosso grupo. E, embora haja muitos que trabalham para nós, espalhados por vários países, nós cinco somos o centro de toda a operação, com ninguém menos do que Victor Faust no comando de tudo.
Niklas continua um canalha insuportável, que adora dinheiro, mulheres e me deixar puta. De maneira indireta, é claro, mas ele sabe o que está fazendo. Mesmo depois de um ano, ele e eu praticamente nos desprezamos. Talvez eu o despreze um pouco mais do que ele a mim, mas nós nos suportamos, por Victor. A maior parte do tempo, evitamos cruzar o caminho um do outro. Ainda preciso ficar quite com Niklas e atirar nele. Mas essa hora vai chegar. Um dia.
Quanto a Fredrik, as mulheres ainda o adoram, mas desisti de tentar entendê-lo há muito tempo. Entender por que as mulheres praticamente tiram a calcinha quando o veem. Concluí que a única maneira de saber seria dormir com ele. Mas, como isso nunca vai acontecer, decidi manter o mistério. Mas Fredrik é como um irmão para mim, e, como Victor, não consigo imaginar ficar sem ele na minha vida. Sem perceber, ele tenta correr atrás de mim com aqueles malditos curativos de vez em quando, seja depois de uma sessão brutal de treinamento com Victor, seja na noite em que levei uma facada no ombro durante uma missão. Preciso lembrar a Fredrik, usando minha voz mais inclemente de Izabel Seyfried, de não me tratar como uma garotinha frágil. Lá no fundo, contudo, gosto de ver como ele é protetor comigo. Só que nunca vou contar isso a ele.
Dina, a mãe que eu deveria ter tido há 24 anos, agora mora em Fort Wayne, Indiana. Nós a instalamos em um abrigo tão pequeno e modesto quanto sua casa em Lake Havasu City. Victor tentou convencê-la a morar em um lugar grande e imaculado porque queria que ela tivesse o melhor, mas ela recusou. “Gosto das coisas simples”, disse ela naquele dia.
Dina ainda não sabe tudo sobre o que fazemos, mas é mais seguro assim, e ela aceita isso. E quanto ao abrigo dela, só é aberto para mim e para Victor. Eu a visito uma vez por mês. Mas a saúde dela está piorando. Eu me preocupo mais com ela do que comigo mesma ou com Victor. Mas ela é uma velha forte, e acho que ainda vai viver por muitos anos.
Quanto a Amelia McKinney, Fredrik não a matou. Matar mulheres inocentes não é o estilo dele. Ele a instalou em outro abrigo do outro lado do país, em algum lugar de Delaware. Nova identidade. Novo tudo. Mas ele nunca a visita. A última coisa que ele quer é uma mulher achando que ele está interessado em algo mais do que sexo.
Essa é a história da vida de Fredrik.
Conforme o prometido, depois que terminamos com Hamburg e Stephens, começamos a bolar uma estratégia para matar os irmãos de Javier Ruiz e libertar as garotas aprisionadas na fortaleza mexicana. Passei por seis meses de treinamento massacrante — treinamento de verdade, não apenas ser largada em algum lugar para estranhos me ensinarem — antes de partirmos para a missão. Infelizmente, a maioria das garotas da fortaleza que eu conhecia já tinha sido vendida ou estava morta quando chegamos lá. Matei Luis e Diego Ruiz, cortei a gargantas deles como fiz com Hamburg, depois que Victor, Niklas e Dorian derrubaram os guardas ao redor e dentro da fortaleza com uma chuva de balas. Não sou tão boa com armas de fogo e ainda preciso treinar muito. Por anos. Mas consigo fazer o serviço com minha coleção cada vez maior de punhais. E estou aprendendo mais a cada dia.
Quando a missão no México acabou e salvamos quem era possível — seis garotas, no total, tão traumatizadas que, mesmo livres, imagino que não consigam muita coisa na vida —, fomos atrás dos homens que as compravam. E ainda hoje, como amanhã e daqui a um ano, nós os procuramos e os eliminamos. Vai ser um longo caminho até localizarmos todos eles e lhes dar o que merecem, mas não vou parar enquanto não terminar.
Mais importante do que tudo, sobretudo para mim, é eliminar a Ordem. Vai demorar muito tempo até que eu possa de fato dormir tranquila à noite, sabendo que há homens procurando Victor a cada hora do dia. É uma empreitada muito mais perigosa e complexa do que provavelmente qualquer missão que realizaremos.
A Ordem é imensa, com milhares de membros, e é uma das mais antigas organizações de assassinos ainda existente. Vai levar algum tempo. Mas vai ser feito, mesmo que seja a última coisa de que eu participe.
Victor é a minha vida e eu vou morrer ajudando a protegê-lo.
Mas essa missão vai continuar a ser uma empreitada difícil, agora que Fredrik precisou sair por causa das suspeitas e não temos mais olhos e ouvidos confiáveis lá dentro. Temos novos informantes infiltrados na Ordem, mas eles ainda não provaram ser confiáveis como Fredrik.
E Victor... Victor continua pensando só no trabalho. Ainda é o assassino de aluguel e a sangue-frio, com nenhuma ou quase nenhuma consciência, quando o assunto é cumprir uma missão. Ele ainda parece desprovido de emoções, impiedoso e mortal em todos os sentidos. A portas fechadas, no entanto, quando estamos a sós, ele é outro homem. Ele me ama sem precisar dizer. Ele me adora sem ter que provar. Quando ele me toca, sei o que está pensando, o que realmente sente por trás daquela máscara que usa diante dos outros. Sou a única alma que ele já deixou entrar em sua vida completamente. E a única que ele nunca irá abandonar.
Ele se tornou o meu “herói”, no fim das contas. Minha alma gêmea que jamais vai deixar que nada de ruim aconteça comigo. Confio minha vida a ele, por mais que ele me diga para sempre confiar primeiro nos meus instintos. A verdade é que tudo o que fazemos é arriscado. Dar um passo para fora da porta. Dar um telefonema. Comer um pãozinho em uma lanchonete. Todos com quem cruzamos são ameaças até que provem o contrário. Qualquer um de nós pode morrer a qualquer momento. Mas pelo menos sei que Victor vai me pôr sempre em primeiro lugar e fazer tudo o que pode para me manter a salvo, como sempre vou fazer por ele.
Ficar um passo à frente da morte é o nosso estilo de vida. É o meu estilo de vida, e acredito que era para ter sido assim desde sempre. Contudo, por mais estranho que pareça, me sinto perfeitamente segura na companhia de assassinos.
CAPÍTULO VINTE E UM
Sarai
Saio de manhã cedo, usando o carro que Victor deixou na garagem para o caso de eu precisar em uma emergência. Ir até a academia de krav maga de Spencer e Jacquelyn em Santa Fé não é exatamente uma emergência, mas mesmo assim é importante para mim. E não posso mais ficar parada em casa desse jeito, quando poderia estar praticando.
Estou treinando com Spencer há meia hora. Odeio o fato de ele pegar leve comigo, mas acho que ao mesmo tempo me arrependeria de pensar assim caso ele decidisse me bater com aquele punho que parece um tronco de árvore.
— Acompanhe os movimentos dos ombros — orienta Spencer, movendo-se em círculos ao meu redor, nós dois meio curvados, com os braços em guarda alta à frente. — Soque. Um. Dois. Esquerda. Direita. — Ele demonstra enquanto fala, lançando seus punhos imensos no ar diante dele.
Faço exatamente o que ele manda, de novo e de novo, para aperfeiçoar a técnica. E então o golpeio com força, mas ele intercepta e se defende com facilidade de todas as minhas tentativas.
Ele me ataca e, por instinto, me esquivo e ando ao redor dele, longos fios do meu cabelo que escaparam do rabo de cavalo presos entre meus lábios e grudados no nariz. O suor escorre da minha nuca e desce pelas costas, grudando na pele o tecido fino da camiseta preta de um jeito nojento.
Spencer me ataca de novo e eu uso algo que já aprendi, golpeando-o no meio da garganta, um lugar vulnerável, o que o faz perder o equilíbrio no mesmo instante. Parto para cima dele com velocidade antes que ele consiga se recuperar e seguro sua nuca, curvando-o para baixo e enfiando o joelho em seu rosto, uma, duas, três vezes seguidas.
Ele cambaleia para trás, apertando a mão sobre o nariz. Se Spencer quisesse me machucar de verdade, não teria parado. Teria lutado contra a tontura e a dor e continuado a me bater até me matar.
— Cacete, garota — diz ele, misturando riso à voz grave, abafada pela mão. — Acho que você quebrou meu nariz.
Balanço a cabeça para ele, decepcionada por ele ter parado, embora tenha aprendido semanas atrás a aceitar que ele sempre vai parar.
— Não, acho que ele já era torto — rebato, brincando.
Ele ri de novo e tira a mão do rosto para apontar para mim com um ar ameaçador, com o olho direito mais fechado que o esquerdo.
Vou até a borda do tatame preto, onde minha toalha está jogada, e a uso para enxugar o suor do rosto. Puxando a gola da camiseta, tento me refrescar, contente por estar usando uma calça de malha preta aderente que reduz o suor.
Fredrik passa pela porta alta de vidro na entrada da academia. Não parece feliz.
Ele atravessa o tatame usando um jeans escuro, camiseta cinza bem justa e um All Star branco novinho em folha com cadarços vermelhos. Não consigo decidir o que é mais imperativo: explicar para ele o que estou fazendo ou perguntar se ele acordou de manhã achando que era outra pessoa.
— Como você me encontrou? — Jogo a toalha molhada no tatame, ao lado dos meus tênis pretos.
— Por que você saiu? — pergunta ele, por sua vez.
Reviro os olhos e balanço a cabeça, olhando para Spencer, não muito longe, que observa Fredrik e a mim com curiosidade, os enormes braços cruzados rigidamente sobre o peito maciço. A mulher dele, Jacquelyn, entra no prédio pela mesma porta por onde Fredrik acaba de entrar.
Eu me viro para Fredrik.
— Quantos anos você tem? Vinte? — pergunto, correndo os olhos pelas roupas dele.
Ele fica bem nelas, admito, mas duvido que um dia eu vá me acostumar a vê-lo usando qualquer coisa além de terno. É que não consigo imaginá-lo torturando um homem até a morte usando All Star. Afasto essa imagem estranha da minha mente.
— Respondendo perguntas com perguntas — observa Fredrik, um pouco irritado. — Eu encontrei você depois de ligar para Victor. Ele me falou que você poderia estar aqui.
— Ele ficou bravo? — Sinto meu rosto murchando. Espero que ele não esteja chateado.
Fredrik balança a cabeça.
— Não — diz ele, como se essa verdade o decepcionasse. — Ele disse que não tinha problema você vir aqui hoje. — Ele me encara com ar autoritário. — Mas você deveria ter pelo menos me avisado em vez de sair escondida. Quantos anos você tem? Quinze?
Dou um sorrisinho para ele.
— Está tudo bem aí? — pergunta Spencer, aproximando-se e olhando com frieza para Fredrik. Jacquelyn desaparece no escritório do outro lado da sala.
— Sim, está tudo bem. Spencer, este é Fredrik. Fredrik, este é Spencer, meu treinador.
Os olhos castanho-escuros de Spencer se voltam para mim em sua cabeça imóvel, depois passam a observar Fredrik.
— Ele é alguém que Victor conhece? Victor me deu ordens específicas para não deixar ninguém visitar você aqui, além dele. — Spencer estreita os olhos para Fredrik, e parece pronto para derrubá-lo a qualquer momento.
Fredrik, por outro lado, está sorrindo, com as mãos cruzadas à frente e uma postura elegante. Fredrik pode não ser capaz de derrotar Spencer na luta corpo a corpo, mas na verdade estou mais preocupada com Spencer, porque sei do que Fredrik é capaz.
Eu me posiciono entre os dois.
— Victor conhece Fredrik. Só que ele não esperava que Fredrik precisasse vir aqui.
Os dois se examinam em silêncio, e então Spencer assente e me diz:
— Tudo bem, mas se você precisar de alguma coisa...
— Eu sei. Obrigada. — Sorrio.
Spencer se afasta. Ele desaparece no escritório com Jacquelyn e alguns alunos entram no prédio, deixando as mochilas no chão, perto da parede oposta.
— Victor volta hoje à noite — informa Fredrik, abaixando a voz e olhando por cima do ombro depois.
Eu me afasto mais das pessoas que se preparam para treinar.
— Estou surpresa por você ter conseguido falar com ele. Tentei ligar uma vez, ontem, mas a ligação não completou.
Fredrik assente.
— Onde ele estava não tem sinal de celular a maior parte do tempo.
Olho por cima do ombro.
— Então ele... terminou o serviço? — pergunto, em um sussurro.
— Sim. Já fez o que precisava com Velazco. Eu vou cuidar do outro filho hoje à noite.
— Você vai matá-lo? — sussurro ainda mais baixo, olhando o tempo todo ao redor para me assegurar de que ninguém está perto o suficiente para ouvir nossa conversa tão criminosa.
Fredrik arregala os olhos só um pouco, para indicar que ele prefere não dizer nada mais comprometedor neste lugar. Ele me pega pelo braço, segurando com cuidado meu cotovelo, e me leva até a porta. Só quando estamos lá fora, na calçada, ele se sente seguro para conversar.
— Ele merece morrer — garante Fredrik, e tenho a sensação de que ele achou que eu poderia discordar disso.
Talvez eu discorde, de certa forma. Só agora me dou conta.
— Bom, o que... — Hesito, respirando fundo. — O que, exatamente, David fez para merecer morrer? O que André Costa fez? Eu sei que o pai deles, Velazco, fez muito mal a muita gente, mas só que... Sei lá, parece que você está castigando os dois com a mesma brutalidade de Velazco pelas coisas que só Velazco fez.
Fredrik balança a cabeça para mim, melancólico.
— Não. Os filhos de Velazco e os homens que trabalham para ele são quem põe a mão na massa de verdade. São eles que realizam os sequestros, que executam a maioria dos assassinatos e estupros. Cada um deles merece o que vai receber.
— Mas como você sabe que André Costa e David sequestraram, estupraram ou mataram alguém?
— Tenho minhas fontes — afirma Fredrik. — É só isso que você precisa saber.
— Achei que eu fazia parte desse esquema — respondo, um pouco ofendida.
— Não é você quem vai matar os caras. — Fredrik enfia as mãos nos bolsos do jeans. — Se um dia você precisar matar alguém, aí vai poder fazer quantas perguntas quiser.
Não gosto dessa resposta, mas aceito e deixo por isso mesmo. Suspiro, vou até a parede e me encosto nela, cruzando os braços e apoiando um pé na parede atrás de mim para manter o equilíbrio.
— Por falar em matar pessoas, sinto que Hamburg e Stephens estão cada vez mais distantes. Estou cansada de esperar. Quero matar os dois. Quero fazer isso de uma vez.
Fredrik se aproxima, apoiando as costas na parede também.
Olhamos para a rua, observando os carros passarem no sinal verde.
— O que você vai fazer quando eles estiverem mortos? Vai parar por aí? Acabar com eles, se vingar e então tocar a vida?
— Não — respondo, sem olhar para Fredrik, a voz distante porque minha mente está dispersa, pensando em tudo. — Não, eles não vão ser os últimos.
Percebo que isso é algo que ainda não contei nem para Victor. Não porque queira esconder dele, mas porque só agora eu mesma me dei conta. Surpresa por minha própria resposta, me perco em pensamentos, olhando para o cruzamento e para os carros que entram e saem de foco.
— Você não é muito diferente de mim. Sabe disso, não sabe? — pergunta Fredrik.
Enfim, inclino a cabeça para o lado e olho para ele. Observo sua silhueta alta e ameaçadora, seu semblante calmo, que sei ser só um disfarce para esconder muito bem o homem perigoso que na verdade habita aquele corpo, não muito abaixo da superfície. Vejo um homem que, embora eu não tenha a menor ideia de por que ou como se tornou o que é, além do que Seraphina fez, sei que passou por algo muito pior do que qualquer coisa que ela pudesse ter feito. Sinto isso. Percebo isso. E, de maneira muito perturbadora, sinto que de alguma forma posso me identificar.
— Pode ser — assumo, desviando o olhar. — Mas quando se trata da maneira como... a gente lida com as pessoas... você e eu não temos nada em comum.
— Ah, não sei ao certo se isso é verdade — retruca Fredrik, com um sorriso na voz.
Talvez o fato de eu não discutir com ele de imediato seja a prova de que ele pode ter razão.
Felizmente, Fredrik muda de assunto.
— Já tomou café da manhã?
— Não estou com muita fome.
Ele desencosta da parede, tirando as mãos dos bolsos e se colocando à minha frente. Acena com a cabeça e diz:
— Vamos, estou morrendo de fome. Tem uma padaria aqui na rua. Faz tempo que não como um doce decente.
Minha primeira reação é recusar o convite, mas então decido ir com ele. Inclino a cabeça para dentro da academia, com metade do corpo para fora, e grito para Spencer e Jacquelyn, do outro lado da sala, informando aonde vou e que volto mais tarde. Spencer, com aquele olhar desconfiado, discute comigo por um segundo, dizendo que eu não deveria perder mais nenhum treino. Ele tem razão, mas sei que me ver saindo da academia com Fredrik é o que o preocupa de verdade.
Momentos depois, entro no carro de Fredrik para irmos à padaria, a alguns quilômetros dali.
— Fredrik, por que você acha que Niklas traiu Victor daquele jeito?
Fredrik entra na rodovia.
— Não sei. Por inveja, talvez. Niklas sempre viveu à sombra de Victor dentro da Ordem. Desde que conheço os dois.
— Certo, mas... — Suspiro, olho de relance para ele e depois mantenho os olhos fixos na estrada. — Eu não entendo por que ele fez isso, tipo... — Encaro Fredrik, formulando o que eu quero dizer. — Niklas tentou me matar para proteger Victor. Ele atirou em mim. Acho que minha dificuldade é entender o que o levou a trair o irmão, depois de tudo o que ele fez para protegê-lo. Como alguém pode mudar tanto assim.
Viramos à direita no Paseo De Peralta, e logo vejo a grande placa oval vermelha da padaria quando nos aproximamos.
— Eu trabalhei com eles por muitos anos — conta Fredrik, observando o trânsito. — Niklas sempre foi meio desequilibrado. Faria qualquer coisa pelo irmão, mas sempre tive a impressão de que ele era uma bomba prestes a explodir. — Fredrik olha para mim e nossos olhares se cruzam por um breve momento. — Para ser sincero, acho que você teve muito a ver com o motivo para Niklas ter traído Victor.
Engulo em seco e olho para baixo por um momento, entrelaçando os dedos nervosamente. Também especulei muitas vezes sobre isso, parte de mim quase convencida de que tudo foi minha culpa, mas eu não apenas não queria acreditar nisso, como também me sentia idiota por me imaginar capaz de abrir tamanho abismo entre duas pessoas. Não sou tão importante assim. Não tenho todo esse poder, nem mesmo sobre Victor.
Com certeza não...
— Por que você acha isso? — pergunto, esperando que nenhuma resposta dele consiga me convencer. Que a resposta seja ridícula, até.
— Porque, de certa forma, Victor escolheu você em vez do irmão.
Todas as minhas expectativas desmoronam ao meu redor. A resposta de Fredrik não é nada ridícula, faz total sentido. E me odeio por isso.
— Victor decidiu sair da Ordem depois que conheceu você — explica Fredrik. — Ele podia ter algumas desavenças com Vonnegut antes, mas, no fim das contas, você foi o estopim. E, mesmo antes de Victor sair, ele estava arriscando a posição que tinha na Ordem e a própria vida para ajudar você. Niklas tentou evitar que Victor se destruísse. Matar você, pensava ele, era a única maneira de fazer isso, porque conversar com Victor a seu respeito não funcionava. Victor até mentiu para Niklas sobre você. — Fredrik me olha de novo. — Na visão de Niklas, Victor escolheu você em vez dele, substituiu o próprio irmão.
Chegamos ao estacionamento da padaria, mas, em vez de entrar, percebo que Fredrik está olhando pelo retrovisor, concentrado nele e na estrada à frente ao mesmo tempo.
Com a sensação clara de que ele está olhando para alguma coisa atrás de nós, faço menção de me virar.
— Não — pede ele depressa.
Tudo naquela palavra me faz estremecer até o âmago. Mas a expressão de Fredrik, seu semblante e o modo como ele continua a guiar de maneira despreocupada, com as mãos na parte de baixo do volante, parecem indicar que não há nada de errado.
— O que foi? — pergunto, incapaz de mascarar como ele a preocupação na voz.
— Estamos sendo seguidos.
Meu coração dá um salto e paro de respirar por um momento. Estou louca para olhar para trás, mas opto em vez disso por olhar pelo retrovisor do meu lado, sem fazer nenhum movimento drástico. Uma SUV preta, que parece um Navigator, está na nossa cola.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
Sarai
Minhas mãos estão apertadas nos cantos do banco de couro vermelho onde estou sentada. Não tiro os olhos do espelho retrovisor nem paro de pensar na possibilidade de ser quem estou pensando e de que vai acontecer o que imagino. Não consigo ver o passageiro nem o motorista através dos vidros escuros da SUV.
— Tem certeza? — pergunto.
Fredrik liga a seta e nós viramos à esquerda na esquina seguinte. Ele mantém o carro abaixo do limite de velocidade e parece evitar que os ocupantes do veículo de trás saibam que ele está ciente da presença deles. Só espero que ele esteja errado.
— Eles estão nos seguindo desde que saímos da academia — explica Fredrik, e meu coração afunda. — Estavam nos espionando, estacionados no terreno do outro lado da rua.
— Então foi por isso que você decidiu tomar café.
Fredrik assente e vira à direita no semáforo seguinte.
Estou me torturando por dentro. Eu me sinto insignificante e inexperiente por não ter sido esperta o bastante para notar essas coisas. Não observei direito ao meu redor para saber que estávamos sendo vigiados o tempo todo. Mas este não é o lugar nem o momento de ficar frustrada comigo mesma. Só espero que haja tempo para isso mais tarde.
— O que a gente vai fazer? — pergunto, nervosa.
Fredrik afunda o pé no acelerador, e de repente estamos a 80 quilômetros por hora em uma via de 55, seguindo direto para a rampa de acesso à rodovia. A SUV está bem próxima e continua no nosso encalço. Agarro o cinto de segurança, aperto-o com mais força e volto a me segurar no banco.
— Vamos despistar esses caras — responde Fredrik, aumentando a velocidade de 80 para 110 quilômetros por hora em poucos segundos ao pegarmos a estrada.
Estou me segurando, desesperada, com o coração na garganta, enquanto nosso carro costura loucamente, entra e sai do tráfego, corta outros veículos e até os ultrapassa pelo acostamento. Mas a SUV continua na nossa cola, abrindo espaço pelo mesmo caminho que fazemos. Buzinas ecoam barulhentas, furiosas conosco ao passarmos a toda a velocidade.
— SE SEGURA! — grita Fredrik.
No mesmo segundo, Fredrik faz uma curva brusca, passando da faixa do meio para a da direita, a poucos centímetros do para-choque da frente de um carrinho branco, e sou jogada contra a janela lateral. Ouço os pneus cantando, os nossos e os do carro branco, e então sou arremessada para o outro lado do assento quando ele endireita o veículo com um golpe do volante.
Desajeitada, me viro no banco da frente, com o cinto de segurança ainda preso ao corpo e tentando me segurar no lugar, vendo a SUV surgir de trás de um carro azul. O carro patina para a esquerda, tentando sair do caminho, e bate no carro branco que acabamos de ultrapassar. Os dois automóveis giram com violência no meio da rodovia, e o branco para com uma freada brusca na faixa da esquerda, quase batendo na barreira de concreto que separa uma pista da rodovia da outra. Os pneus soltam fumaça. O carro azul capota de lado. Solto um gemido e levo as mãos à boca.
A rodovia fica toda parada, do ponto do acidente para trás, todos menos nós e a SUV, que nos segue de perto. À frente, as pessoas, vendo o que está acontecendo, já abrem caminho para passarmos. Seguimos como foguetes a 140 quilômetros por hora, obrigando uma fila de carros a parar no acostamento.
Quanto mais nos afastamos do acidente, mais numerosos são os carros à nossa frente, e voltamos à mesma situação anterior, costurando em meio aos veículos, com buzinas tocando e meu corpo batendo na porta e na janela a cada virada mais brusca.
Fredrik passa depressa para a faixa da esquerda, a faixa mais rápida.
— A gente precisa sair da rodovia!
— Precisamos despistar os caras antes!
— Como é que a gente vai fazer isso, cacete? — pergunto, olhando para trás de novo. Eles ainda estão perto de nós, os para-choques a centímetros de distância.
Fredrik não responde. Ele está vigiando tudo, mantendo os olhos na estrada em frente, nos carros ao redor e na SUV atrás. Depois de alguns minutos, começo a achar que ele está montando um plano na cabeça.
De repente, no último segundo, Fredrik sai da faixa rápida, atravessa três faixas e pega a saída da rodovia a 110 quilômetros por hora, passando a centímetros da parede de concreto e dos barris laranja que separam a saída da rodovia. Foi tudo tão rápido que a SUV não teve tempo de prever o que Fredrik ia fazer e pegar a saída atrás de nós. Bato a cabeça na janela lateral. Há um semáforo no fim da estrada, mas Fredrik está indo rápido demais para parar e passa com tudo. Felizmente, essa estrada não parece muito movimentada, e nenhum carro bate no nosso.
— Que porra foi essa? — grito com a mão no peito, tentando controlar meus batimentos cardíacos.
Ele não responde até estarmos bem longe da saída, depois de cruzar várias ruas. Ambos continuamos olhando em todas as direções, procurando a SUV.
— Se eu ficasse na pista da direita — explica ele —, o cara ia entender que eu queria pegar a primeira saída.
Por mais que aquilo quase tenha me matado de medo, não posso negar que o plano louco de Fredrik funcionou.
— Você podia ter matado a gente!
— Até parece que isso é novidade para você — provoca ele.
Eu rio alto.
Fredrik retorna para a rodovia na direção oposta, de volta para a academia de krav maga. Contudo, antes de chegarmos perto do destino, ele vira em uma rua que não conheço.
— Aonde a gente está indo?
— De volta para Albuquerque — responde ele. — Pelo caminho mais longo. Só por segurança.
Seis horas de vigilância obstinada pelas janelas da casa, e o carro de Victor enfim estaciona na entrada da garagem. Fredrik e eu ficamos de pé assim que ouvimos as pedrinhas estalando e se partindo debaixo dos pneus.
Victor deixa a chave na bancada da cozinha primeiro e vem para a sala, pondo a maleta na mesinha de centro.
— Algum sinal deles? — pergunta ele a Fredrik antes de falar qualquer outra coisa.
Ele me olha, e não consigo decifrar sua expressão, o que, como aprendi, em geral significa que ele tem coisas demais na cabeça e está tentando se manter concentrado.
Antes que Fredrik responda, Victor me pergunta:
— Você está bem? Está ferida?
— Não, não estou ferida. — Desvio o olhar para a parede quando ouço Fredrik falando.
— Não fui seguido até aqui. Garanti que isso não acontecesse. Fiz um desvio de uma hora do caminho só para ter certeza. E não tem nenhum sinal de que alguém esteve aqui, só alguns carros na estrada, mas nada suspeito.
Victor dá a volta na mesinha de centro, senta-se nela do jeito que eu mesma muitas vezes faço e me encara quando me sento no meio do sofá, também olhando para ele. Parece preocupado. E furioso. Não comigo, mas com quem estava naquela SUV, acho.
— Antes que você diga qualquer coisa...
— Como falei para Fredrik — interrompe ele, com calma, pondo as mãos entre as coxas e apoiando os cotovelos nas pernas —, eu não esperava que você ficasse aqui, enfurnada nesta casa durante toda a minha ausência. Não peça desculpas por ter saído.
Surpresa com essa tolerância, fico sem palavras por um momento.
— Eu não iria para qualquer outro lugar — digo, enfim, ainda sentindo que fiz besteira de novo. — Achei que, como eu já tinha passado tanto tempo lá treinando com Spencer, não faria diferença se eu decidisse ir hoje ou esperasse até você voltar.
— E você estava certa — afirma Victor. Ele coloca as mãos nos meus joelhos. — A questão não é você ter saído. — Ele olha para Fredrik, que se senta no lugar vazio. — A gente precisa descobrir como eles sabiam onde você estava.
Vejo algo no rosto de Victor que Fredrik não consegue ver, algo que me deixa tensa. Victor tem o ar de um homem que desconfia de alguém, que desconfia de Fredrik. Olho para um e para outro, tentando entender os pensamentos de Victor. Será que estamos revivendo o que aconteceu com Samantha no Texas? Será que Victor depositou muito da pouca confiança que tem na pessoa errada mais uma vez? Esse era o teste, então? Deixar Fredrik sozinho comigo?
Cerro os punhos e minhas unhas afundam na pele das mãos. Victor me usou para testar a lealdade de Fredrik?
— Já andei pensando nisso — diz Fredrik. — E espero estar errado, mas tenho a sensação de que sei como encontraram Sarai.
Era algo que Fredrik e eu já havíamos discutido antes de Victor chegar. Mas agora... agora que estou vendo a desconfiança nos olhos de Victor, não consigo deixar de me perguntar se nesse tempo todo, enquanto esperávamos a volta dele, Fredrik não estava apenas enchendo minha cabeça de mentiras para nos despistar da possibilidade de ter sido ele.
Agora não confio em nenhum dos dois. Eu me sinto uma prisioneira de novo, presa entre homens perigosos dos quais sei que não posso fugir.
E meu coração dói.
Victor tira as mãos dos meus joelhos e dirige sua atenção para Fredrik. Continuo calma e imóvel, fazendo o que sei fazer melhor: fingindo.
— Acho que a gente deveria ir para Phoenix quanto antes — continua Fredrik. — Eu tentei ligar para Amelia, imaginando que talvez ela soubesse de alguma coisa, mas ela não atendeu nem retornou minhas ligações. Não é do feitio dela.
Victor se levanta da mesinha de centro e se senta ao meu lado, curvando-se para abrir sua maleta. Ele tira o laptop e passa o dedo em um sensor para destravá-lo.
— O que você está fazendo? — pergunto.
— Verificando meus equipamentos de vigilância na casa de Amelia — explica ele, abrindo algum programa na área de trabalho. — Não faço isso desde que tiramos a sra. Gregory de lá.
Alguns minutos depois de vasculhar vários vídeos (um deles claramente relevante, no qual homens entram na casa de Amelia e a capturam), ele balança a cabeça e fecha o laptop.
— O que foi? — pergunta Fredrik.
Victor guarda o laptop na maleta.
— Eles estiveram lá. O vídeo é cortado logo depois. Devem ter achado um dos dispositivos que eu plantei na noite em que levei Sarai para ver a sra. Gregory.
Fico em pânico pensando no que Stephens pode ter feito com Amelia, ou mais ainda com o que ela pode ter contado a eles.
— Fredrik tem razão — digo. — A gente precisa ir para Phoenix.
— Então vamos. — Ele estende a mão para mim.
Com relutância, seguro sua mão e fico de pé com ele. O que quero, na verdade, é lhe dar um belo tapa na cara.
— Victor? — chamo quando ele me dá as costas, na direção da porta.
Ele para e se vira a fim de me olhar.
— Nada disso estaria acontecendo se Hamburg e Stephens já estivessem mortos.
Phoenix, Arizona – 1h
Pegamos um voo para Phoenix e um táxi até a casa de Amelia. Ao que tudo indica, uma viagem de seis horas de carro estava fora de cogitação, pois Victor quer respostas já, sem perder mais tempo. Temo que Amelia esteja morta, uma vez que não respondeu às ligações de Fredrik. Acho que ele pensa a mesma coisa. Quando ainda estávamos em Albuquerque, cada vez que ligava e ela não atendia, Fredrik ficava mais frustrado. Preocupado, até. Eu achava aquilo estranho vindo de alguém como ele, que parece usar as mulheres para sexo e não tem a capacidade de gostar de nenhuma delas. Mas agora não consigo deixar de acreditar que aquilo era tudo teatro, que ele só estava fingindo se preocupar com ela, quando, na verdade, ele mesmo deve ter matado Amelia.
Em todo caso, fico feliz por termos tirado Dina da casa antes de isso acontecer.
O táxi nos deixa a uma quadra da casa de Amelia, e andamos o resto do caminho sob o manto da escuridão. A luz da varanda está acesa, revelando o revestimento branco e sujo da lateral da casinha e os degraus de concreto rachado que levam até a porta. Outra luz fraca brilha na janela da sala de estar, onde sombras se movem em um espaço pequeno e dão a impressão de que a luz vem da TV ligada. Quando subimos os degraus de concreto e ficamos diante da porta, Victor gira a lâmpada quente acima da nossa cabeça, apagando a luz.
Fredrik vai até a janela e olha para dentro.
Victor fica na minha frente e tenta me empurrar discretamente para trás dele com o intuito de me proteger, mas afasto sua mão. Ele vira de lado e olha meu rosto, zangado. Cerro os dentes e balanço a cabeça, revelando que estou furiosa e que é melhor ele não me tocar.
Ele desvia o olhar, mantendo a atenção em Fredrik.
— Não estou vendo Amelia — sussurra Fredrik. — Nenhum sinal de luta.
Victor saca sua 9mm das costas, põe a mão na maçaneta e tenta virá-la. Está trancada. Fico nervosa quando Fredrik puxa a arma também. Victor fica para trás e acena para que Fredrik entre na frente dele. Parece que ele quer que Fredrik bata na porta, mas acho que a ideia é ficar de olho nele.
Fredrik bate três vezes e nós esperamos. Victor não olha mais para mim, nem eu esperava que fizesse isso, em uma hora dessas. Também fico mais interessada nos gestos de Fredrik, esperando que ele nos ataque a qualquer momento.
Há movimento lá dentro. A cortina da janela perto da porta se mexe, e então ouvimos o som de um corpo pressionando a própria porta enquanto quem está lá dentro espia pelo olho mágico. Desta vez, Victor me força a ficar atrás dele, e não discuto, mais preocupada com quem está lá dentro do que com meu ressentimento em relação a ele.
Ouço a correntinha deslizando, depois o clique de um trinco, e então o som da maçaneta virando devagar. Quando a porta se move, abre apenas alguns centímetros, e um rosto bonito olha pela fresta, com o longo cabelo louro desgrenhado ao redor dos olhos inchados.
— Fredrik? — chama Amelia, em voz baixa e ríspida. — Você não deveria estar aqui. — Vejo que ela olha para todos os lados, nervosa, espiando a rua atrás de nós.
Victor fica na frente de Fredrik e empurra a porta com a palma da mão. O cheiro de um pot-pourri de canela e café queimado invade minhas narinas. Amelia dá um passo para trás, enfiando as mãos entre os braços cruzados, cobertos por um roupão de banho azul que vai até pouco acima dos tornozelos. O lado esquerdo do rosto tem muitos hematomas e há sangue no branco do seu olho. Seu lábio parece estar se recuperando de um corte.
Victor me empurra para dentro da casa com ele e Fredrik nos segue, fechando e trancando a porta em seguida. Antes que qualquer um fale, Victor e Fredrik vasculham cada cômodo da casa, de armas em punho, certificando-se de que ninguém está à espreita.
Eles voltam para a sala ao mesmo tempo, enfiando as armas na cintura.
— O que aconteceu com você? — pergunta Fredrik a Amelia. — Por que não atende ao telefone?
Ela está tiritando, os braços tremem dentro do roupão.
Victor olha para tudo, menos para ela. Ele começa a vasculhar a sala, mas sei que também está prestando atenção em cada palavra que ela diz.
— Não atendi porque sabia que era você — explica ela para Fredrik. — E você não deixou nenhum recado. Nunca deixa recado. Eles grampearam meu telefone, Fredrik. Eu não podia correr o risco de atender.
Fredrik segura Amelia com delicadeza pelo cotovelo e vai com ela até o sofá. Ele se senta ao lado dela.
— Me conte o que aconteceu — insiste ele.
Eu me sento na borda da poltrona do canto, com as costas encurvadas, as mãos cruzadas entre as pernas.
Amelia olha para Victor, que está passando os dedos por uma estante, procurando alguma coisa.
— Eles acharam todas aquelas coisas — anuncia ela. — Quando entraram aqui, três homens reviraram a porra da minha casa, colocaram tudo de cabeça para baixo, procurando aqueles aparelhos, ou sei lá o quê, escondidos pela casa toda.
Ele volta a vasculhar, mas se mantém no nosso campo de visão. No meu campo de visão.
Amelia se volta para Fredrik. Ela está sentada com as mãos entre os joelhos, a perna direita inquieta, batendo o pé no tapete cor de ferrugem.
— Eles vieram três dias depois que vocês foram embora — continua ela. — Me amarraram em uma cadeira da cozinha. Me espancaram. Ameaçaram minha família...
— O que você contou para eles? — interrompe Victor, parado na frente de Amelia.
— Eu não tinha nada para contar — diz ela, o medo cada vez mais evidente em sua voz trêmula. — Eles queriam saber onde ela estava. — Amelia olha para mim. Agora que estamos na sala com a luz da TV, noto como sua pele está amarela ao redor do olho. — Mas eu não sabia. Não podia contar o que eu não sabia. Merda! Eles também queriam saber onde Dina estava. Isso eu também não sabia. Eles não acreditaram, por isso me espancaram mais! — Ela respira fundo e tenta se controlar, talvez para não chorar. Parece prestes a cair no choro.
— Mas você deve ter contado alguma coisa para eles — sugere Fredrik, ao lado dela. Sua voz tem urgência, mas não é totalmente acusadora. — Pense, Amelia.
Amelia olha para as mãos trêmulas e afasta o cabelo louro desalinhado do rosto.
— E-eu não aguentava mais — conta ela, envergonhada, sem conseguir olhar Fredrik nos olhos. Ela olha para o tapete. — Achei que eles fossem me matar, me espancar até a morte. E-eu só contei que Dina a chamava de Sarai e que me falava dela, às vezes. — Amelia encara Fredrik, preocupada, esfregando os cantos dos olhos vermelhos. — Mas não era nada que eu achasse que eles poderiam usar.
— O que você contou? — pergunta Victor, com severidade.
Ela olha para ele.
— E-eles pediram informações recentes, qualquer coisa que Dina tenha me dito sobre Sarai, ou Izabel, ou sei lá qual o nome dela. Queriam alguma coisa atual. Eu pensei muito nas conversas que Dina e eu tivemos sobre ela, e o que me lembrei foi de quando vocês estiveram aqui. Ela falou de treinar. Maga ou qualquer coisa assim.
Pisco e balanço a cabeça. Lembro que contei a Dina que eu estava aprendendo krav maga.
Dou um salto da poltrona.
— Porra, eu não aguento mais! — grito. — Victor, desculpa. E-eu só faço merda. Você tinha razão. Essa vida não é para mim. Eu queria muito que fosse, mas não dá mais. Todo mundo vai morrer por minha causa!
Por um momento, esqueci que ele parece ter me usado para testar a lealdade de Fredrik. Talvez não tenha esquecido, mas deixei isso de lado por enquanto, porque minhas atitudes idiotas são mais imperdoáveis do que o comportamento de Victor.
Victor segura minha mão e faz com que eu me sente de novo.
— Você contou para Dina Gregory onde estava treinando? — pergunta ele, com voz calma.
— Não — respondo, olhando para ele. — Tomei o cuidado de não dar informações detalhadas. Nem contei onde eu estava morando. Nós três estávamos só conversando na cozinha. Dina queria saber o que eu andava fazendo. Foi uma conversa casual.
Fredrik olha para Victor.
— Stephens deve ter posto homens para vigiar todas as academias de krav maga daqui até a Flórida desde aquele dia. Isso explicaria por que eles levaram quase três semanas para descobrir em qual delas Sarai estava treinando.
— Espere aí... — intervém Amelia, como se tivesse acabado de pensar em algo horrível. — Dina está bem? Por favor, me digam que ela está bem. Eu queria minha casa de volta só para mim, mas gostava muito daquela mulher. Ela era gentil comigo.
— Dina Gregory está ótima — responde Victor, e tanto Amelia quanto eu ficamos aliviadas.
Amelia solta um suspiro de gratidão, mas seu corpo volta a ficar tenso e ela encara Fredrik com desespero no olhar, esticando o pescoço na direção dele.
— Ma-mas vocês não podem ficar aqui. Precisam ir embora. — Ela olha para nós. — Todos vocês.
— Esta era a minha próxima pergunta — observa Victor. — Por que eles não mataram você?
— Eles esperavam que vocês voltassem — explica Amelia. — Ou ao menos que tentassem me ligar. — Seus olhos correm para Fredrik de novo. — Eu não podia atender.
Fredrik assente, aceitando a explicação e as desculpas e deixando claro que a entende.
Amelia se vira para Victor.
— Depois de um tempo, fingi que odiava todos vocês — continua ela. — Reclamei de estar com raiva de Fredrik por desovar aquela velha coroca no meu colo daquele jeito. Aí falei um monte de merda sobre você. — Amelia se volta para Fredrik. — Quando enchi a cabeça deles de baboseiras, eles acharam que podiam me usar para encontrar vocês, para atrair vocês até aqui. Eu era só uma mulher desprezada que queria se vingar de Fredrik. Era isso que eu queria, ganhar a confiança deles para que não me matassem. Eu estava com medo, Fredrik. Acho que eles me matariam se eu não fizesse isso.
Fredrik assente de novo. Noto que ele quer pôr a mão no joelho dela para acalmá-la, mas não consegue porque o gesto o deixa constrangido. Em vez disso, ele oferece mais palavras de consolo.
— Você fez a coisa certa — afirma ele, com gentileza. — E tem razão, eles iam mesmo matar você.
Ele fica de pé e olha para Victor.
— A única pergunta sem resposta — afirma Fredrik — é como eles souberam que deveriam vir até aqui. — Ele levanta as mãos em um gesto de rendição. — Juro que não fui eu.
Meu corpo fica tenso. Olho de um para outro, tentando interpretar suas expressões. A tensão na sala aumenta, quase me afogando, mas logo percebo que a tensão é toda minha, pois estou me preparando para algum tipo de enfrentamento entre os dois. Contudo, quanto mais olho, mais sinto que Fredrik está dizendo a verdade e que Victor acredita nele.
— Eu sei que não foi você — diz Victor, enfim.
Fico atordoada. E confusa. E um pouco incomodada com a confiança imediata de Victor.
— Como é que você sabe? — pergunto, com rispidez.
— Porque, se Fredrik fosse entregar você, não faria sentido contar para eles onde Dina Gregory já esteve. Semanas atrás.
Rosno e cruzo os braços.
— Você me usou para testá-lo — disparo. — Você me deixou sozinha com Fredrik para ver se ele ia trair você e contar a Stephens onde me encontrar. — Eu o fuzilo com os olhos de maneira acusadora e implacável. Não é a hora nem o lugar de confrontá-lo com isso, mas não consigo mais me segurar.
Victor se aproxima e estende as mãos, querendo segurar meus braços. Tento me afastar, mas a poltrona está no caminho. Suas mãos quentes tocam minha pele, aqueles dedos longos segurando meus bíceps. Ele olha nos meus olhos e eu vejo sinceridade e determinação em seu rosto.
— Não foi isso que eu fiz — insiste Victor. — Você precisa confiar em mim quanto a isso. E precisa confiar em Fredrik. O inimigo não é ele.
— É tão fácil julgar e confiar — digo, irritada. — Então por que você me deixou sozinha com ele daquele jeito? O que significou aquela conversa antes de você ir embora sobre confiar nos meus instintos?
As mãos de Victor me soltam.
— A gente precisa sair daqui — diz ele.
Ele se vira para Fredrik, e me sinto ao mesmo tempo furiosa com a falta de explicações e apreensiva com o tom de urgência.
— Fredrik — continua Victor —, a decisão é sua. Pode levá-la para um abrigo ou deixá-la à própria sorte aqui.
Amelia, alerta e apavorada, arregala os olhos inchados e vermelhos. Ela se levanta do sofá em um salto, deixando abrir o roupão na cintura e revelando uma camisola branca por baixo.
— O que isso quer dizer? — pergunta ela, aterrorizada, mexendo na faixa do roupão para fechá-lo de novo. Ela encara Fredrik. — O que ele está dizendo, Fredrik?
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Victor
Sarai se culpa por muitas coisas, e em alguns casos com razão. Foi tolice falar do treinamento com Spencer — mesmo que de maneira tão vaga — para Dina e Amelia. Mas ela tomou cuidado com as informações que decidiu divulgar. Foi cuidadosa, mas não o suficiente. Sarai é jovem. Inexperiente. No entanto, está aprendendo, e aprender do jeito mais difícil, no fim das contas, é de fato a única maneira.
— Você não vai aprender a nadar lendo um livro — digo a ela, na viagem de volta para Albuquerque. Desta vez, achei melhor pegarmos um carro para voltar, em vez de nos arriscarmos em aeroportos de novo. — É a melhor maneira, Sarai. Para aprender com os erros, você precisa errar. De verdade. Nenhum tempo de treinamento, nenhuma situação ensaiada vai ensinar melhor do que a vida real.
Sarai está sentada em silêncio no banco do passageiro, olhando pela janela. Ela não quer olhar para mim. Mal disse uma palavra desde que saímos da casa do meu contato perto de Phoenix, meia hora atrás. A lua está baixa no céu da madrugada, parecendo enorme sobre a extensão escura da paisagem do deserto.
— Isso não é desculpa — diz ela, enfim, embora com voz distante.
— É uma desculpa — rebato. — Aqui não é Hollywood, Sarai. Você não vai aprender as coisas que quer no tempo em que acha necessário. Você cometeu erros. Vai cometer muitos outros...
Ela se vira de repente para mim.
— Eu disse que não é desculpa. — Ela pronuncia as palavras entre os dentes, com os olhos arregalados e implacáveis. Implacáveis para si própria, não para mim. — Fui eu que me meti nisso. Eu escolhi esta vida. Falei para você que era o que eu queria. Implorei para você me ajudar. — Ela aponta com severidade o indicador para si mesma, hesita e cerra os dentes. — Eu escolhi esta vida. Não sou criança, Victor. Você não pode me dizer que o que fiz não tem problema, que tenho o direito de errar. Porque, nesta vida, erros causam mortes.
Eu a admiro mais agora do que antes. Porque ela entende. Ela se recusa a pegar a saída mais fácil, aceitando o salvo-conduto que lhe ofereço. Ela se recusa a receber a permissão de errar, embora eu saiba que vai errar mesmo assim, porque é humana. E Sarai vai aprender com os erros mais depressa do que alguém que opta por aceitar as desculpas. Ela é uma garota desafiadora. Ela é durona, impulsiva e destemida até demais. Mas é determinada e forte. Apesar da falta de disciplina e de ainda não ter assimilado completamente o raciocínio criminoso e assassino, que é crucial para se manter viva, sei que ela pode dar certo nesta vida.
— Você se arrepende? Você se arrepende da vida que escolheu?
— Não — diz ela, com voz neutra, honesta, com os olhos observando o asfalto negro da estrada ser engolido pelo capô do carro. — Não me arrependo. E não quero desistir.
Ela ergue as costas do banco e me encara de novo.
— Eu quero matar Hamburg e Stephens — afirma, com determinação. — E aí, depois disso... — Ela faz uma pausa, mas não tira o olhar determinado do meu. Só desvio os olhos pelo tempo suficiente de olhar a estrada. — Preciso contar isso para você. É uma coisa que contei para Fredrik. Depois que Hamburg e Stephens estiverem mortos, não quero que eles sejam os últimos.
Desde o momento em que Sarai me disse que queria matá-los pessoalmente, soube que eles seriam apenas os primeiros em uma longa série de futuros assassinatos. Dava para ver essa resolução nos olhos dela, a sede de vingança, a fome de sangue. A morte de Javier Ruiz por obra de Sarai foi o que selou o destino dela. O primeiro assassinato é sempre o estopim, o instante na vida no qual tudo muda, no qual o caráter da pessoa assume uma forma nova e mais sombria. Sei que ela pensa em matar Hamburg todo santo dia, desde a noite em que o conheceu. Sei porque lembro o rosto do meu segundo alvo, o modo como o cacei durante uma semana como um assassino em série caçaria sua próxima vítima. Eu só conseguia enxergar o rosto dele. Tudo o que eu queria era acabar com sua vida miserável do modo como acabei com a do meu primeiro alvo. Porque fui gerado e treinado para isso. Ansiava pelos elogios que Vonnegut me dirigiu depois da minha primeira missão bem-sucedida, aos 13 anos. Vê-lo sorrir com orgulho como sempre quis que meu pai sorrisse. Eu ansiava por saborear a admiração que os outros garotos da Ordem sentiam por mim. Assim, do meu primeiro assassinato em diante, dediquei a vida ao trabalho, abrindo mão do ressentimento por ter sido separado à força da minha mãe. Matei para agradar Vonnegut pela maior parte da minha vida, até que comecei a ver que ele tirava de mim mais do que me dava.
Agora, mato porque é a única coisa que sei fazer.
Sarai e eu matamos por motivos diferentes, somos movidos por necessidades muito distintas, mas, no fim das contas, somos ambos assassinos, e sei que isso nunca vai mudar. Não podemos recuar diante disso, e a maioria dos que matam mais de uma vez não quer.
Volto a olhar para a estrada.
— Isso incomoda você? — pergunta ela, sobre a verdade que acaba de revelar. — Que não quero que eles sejam os últimos?
— Não — respondo, baixinho. — Não me incomoda.
Noto que ela desvia o olhar e o silêncio preenche o carro, restando apenas o som dos pneus se movendo com velocidade na estrada.
— O que vai acontecer com Amelia? — pergunta ela.
— Fredrik vai levá-la para um abrigo ou matá-la.
Eu esperava que ela tomasse um susto e virasse a cabeça ao ouvir isso, mas Sarai nem se sobressalta. Ela assente, aceitando o fato de maneira tão casual quanto eu.
Sarai já está ficando mais dura. Já é inflexível quanto aos próprios erros e não deixa que eles a definam. E, para ter certeza de que não os repetirá, abandona as únicas coisas que lhe restam.
Sua humanidade.
Sua consciência.
Já é fim de tarde quando chegamos em casa. Achei que Sarai fosse dormir a maior parte do caminho, mas ela não pregou os olhos. Está acordada há mais de 24 horas, mas continua alerta, sem exibir nenhum sinal de cansaço. É a adrenalina. Estou bem familiarizado com os efeitos dessa substância sobre a mente. No momento, contudo, estou tão exausto pela viagem que me tornarei inútil se não dormir logo.
Verifico a casa com cuidado antes de considerá-la segura o bastante para relaxar, embora eu tenha conferido as câmeras pelo laptop antes de chegarmos. Não tenho nenhum motivo para crer que Stephens e seus homens saibam onde estamos, mas, como sempre, não posso abaixar a guarda. Ainda é um mistério como Stephens descobriu a existência de Amelia McKinney e Dina Gregory. Não importa o que pareça, sei que Fredrik não teve nada a ver com isso. No entanto, por mais que essa brecha me preocupe, agora ela não importa. Neste momento, sei que vou ter que abandonar meus planos de treinar Sarai por meses ou até anos, dando tempo para que ela talvez mudasse de ideia. Ou decidisse me deixar fazer o trabalho para ela. Sei agora que nada vai fazê-la desistir, e, por mais que eu tente convencê-la, ela nunca vai aceitar que eu faça o serviço.
Talvez eu devesse matá-los assim mesmo...
— Victor?
Sou arrancado de repente da minha reflexão.
Sarai está diante da porta de vidro, olhando para a paisagem infinita do deserto. O sol está se pondo no horizonte, iluminando as grossas faixas de nuvens com um cor-de-rosa profundo.
— Tem uma coisa que eu preciso lhe dizer.
Ando até ela devagar, curioso, impaciente e até preocupado com o que ela vai falar.
— O que é? — pergunto, chegando mais perto.
Ela não se vira para me encarar, em vez disso mantém os olhos no vidro alto e impecavelmente limpo. Seus braços estão cruzados, os dedos pousados nos bíceps.
— Tomei uma decisão — começa ela, com voz baixa e em tom de desculpas. Minhas entranhas estão começando a se revirar. — Só espero que você entenda.
Ela enfim me olha, virando só a cabeça. Seu cabelo castanho, longo e macio, desce em cascatas pelo meio das costas, deixando os ombros à mostra. Ela usou uma blusinha branca de tecido fino durante a viagem de volta. Adoro vê-la de branco. Faz com que pareça angelical, para mim. Um anjo que carrega a morte no bolso.
— Conte — peço, com voz relaxada, embora não esteja nada relaxado, no momento, e não saiba por quê. — Que decisão?
Seus olhos escuros se desviam dos meus, e esse pequeno gesto insignificante parece uma tragédia.
Ela umedece os lábios, mordendo seu suculento lábio inferior por um momento.
— Depois que Hamburg e Stephens estiverem mortos... Eu vou embora. — Ela se vira para me encarar. Meu coração parou de bater. — Vou levar Dina comigo para algum lugar e ficar por minha conta.
Mal consigo organizar meus pensamentos, muito menos formar uma frase mais complexa.
— ... Não entendo.
Sarai inclina a cabeça para um lado e descruza os braços, deixando-os pender soltos em toda a sua elegância. Ela se aproxima de mim. Quero tomá-la nos braços e beijá-la, mas não consigo.
Por que eu não consigo, porra?
— Victor, eu entendo agora que não consigo viver assim. Pelo menos não com você. E com Fredrik. Vocês dois são profissionais, e eu não posso manter essa ilusão de achar que algum dia serei capaz de acompanhar um de vocês, muito menos os dois. — Ela levanta uma das mãos como se eu fosse retrucar, e, embora eu não esteja pronto para falar, percebo que ela deve estar lendo a discordância crescente no meu rosto. — Olha, não estou fazendo isso para chamar atenção. Nem para você me dizer que estou errada. Eu sei que, por mais que eu queira ficar com você, isso não é possível. Se eu não acabar morrendo, vou acabar causando a sua morte. E sei que jamais conseguiria conviver com isso.
— Bom, eu realmente acho que você está errada — digo, com dificuldade, desejando poder explicar melhor.
— Não — rebate ela. — Não estou. E você sabe disso.
— Mas aonde você iria? O que iria fazer? — Meu tom de voz se torna urgente. — Sarai, você já tentou levar uma vida normal. Você tentou, e veja o que aconteceu.
Por que estou dizendo essas coisas? Eu deveria estar comemorando o fato de ela finalmente cair em si.
Ela dá um suspiro suave. Vejo seus ombros delicados se erguendo e baixando.
— Não faça isso — pede Sarai, balançando a cabeça. — Não finge que isso incomoda você, ou que quer que eu mude de ideia. Por favor. Você sabe que isso é o certo, tanto quanto eu sei agora. Se eu tivesse escutado você há mais tempo, se tivesse desistido dessa vingança idiota contra Hamburg e seguido com a minha vida, estaria em casa no Arizona com Dina e Dahlia, e até com Eric...
— Mas você não o amava.
Por que eu disse isso? Entre todas as coisas que eu poderia ter dito, todos os tópicos que poderia ter explorado, por que tinha que ser logo esse?
— Não, não amava. — Ela me olha nos olhos, pensativa. — Mas ele era normal. Era o que você queria para mim, mas na época fui egoísta demais para entender que você estava certo. Aquele tipo de vida era o certo.
Dou um passo para trás.
— Espere — digo, erguendo a mão por um momento e passando a ponta do dedo pela boca, olhando para baixo. — Então você está dizendo que quer uma vida normal agora?
— De jeito nenhum — responde ela, balançando a cabeça. — Eu jamais conseguiria voltar para aquilo. Só estou dizendo que, se eu não tivesse insistido no meu plano de matar Hamburg, as coisas não estariam tão ruins como estão agora.
Inclino a cabeça para o lado, com uma expressão confusa no rosto cada vez mais sério.
— Então o que você está dizendo, exatamente? O que vai fazer? Começar a matar gente por conta própria?
Isso é quase risível para mim, mas não deixo minha opinião transparecer. Sei que Sarai tentaria. Sei que ela mataria e talvez até conseguisse se safar algumas vezes, mas não para sempre. Não sem os recursos que tenho.
— Ainda não decidi — responde ela.
Sarai coloca a mão no puxador da porta de vidro e a desliza, deixando a brisa suave do fim de tarde entrar na casa. Ela sai para o pátio dos fundos.
Estou lá fora ao lado dela antes que minha mente alcance o movimento apressado das minhas pernas.
— Você não está falando coisa com coisa.
Sarai entra no alcance do sensor de movimento, e a luz inunda o pátio de concreto. Ela fica no limite do feixe brilhante, deixando só parte do rosto coberto pela penumbra do sol quase extinto.
— Eu tenho pendências no México — esclarece ela, e fico atordoado. — Hamburg não é a única pessoa que pensei em matar nos últimos oito meses, Victor. — Ela olha para a paisagem plana de novo. Só consigo olhar para ela. — Quando você e Fredrik me contaram que os irmãos de Javier estão no comando da operação, isso só inflamou meu ódio. Eles precisam morrer. Todos eles. Cada um daqueles babacas envolvidos. Todos os Andrés e Davids. — Ela me olha. — Ainda há muitas garotas com eles. Eu sei que havia 21 quando fugi escondida no seu carro. Dezenove agora, sem Lydia e Cordelia. Que tipo de pessoa eu seria se seguisse com a minha vida sabendo que lá no México há uma fortaleza onde um monte de garotas das quais aprendi a gostar estão sendo mantidas à força? Sendo estupradas, espancadas e mortas?
Faço menção de tocá-la, mas paro no último instante.
Não sei por que isso é tão difícil para mim... Por que há tanto conflito dentro de mim...
Sarai sai do alcance do sensor e a luz se apaga, imergindo-nos na meia-luz. Uma brisa leve balança o cabelo dela, fazendo-o dançar suavemente nas costas.
— Isso é tolice, Sarai — digo, enfim encontrando palavras que acho adequadas. — Mesmo com a minha ajuda, fazer uma coisa dessas levaria muito tempo. O que faz você crer que conseguiria sozinha? Como encontraria a fortaleza sem a minha ajuda, para começar?
— Eu consigo fazer isso sozinha — retruca ela, com calma, mas com uma determinação inabalável. — Quer dizer, posso pelo menos tentar, e isso é melhor do que não fazer nada. E você não me dá o crédito que mereço, Victor. Sou tão capaz de somar dois mais dois quanto você. Posso pegar o que aprendi, informações às quais tive acesso, e encontrar o caminho para lá. Não deve ser difícil encontrar Cordelia. Sei que ela mora na Califórnia. Sei que ela é filha de Guzmán e que você foi enviado para a fortaleza por ele para encontrá-la e matar Javier Ruiz por tê-la raptado. Até sem você sou capaz de descobrir a localização da fortaleza. Vou começar com Cordelia e Guzmán.
Minha garganta está seca. Meu estômago parece um bloco de concreto.
Ela tem razão, não lhe dei o crédito que merecia. Sarai é muito mais esperta do que eu imaginava. Sabia que ela era inteligente, mas com certeza fiquei surpreso.
Ela não sorri nem se gaba de tudo isso, só fica ali me olhando concentrada, com intensidade e o tipo de determinação que me assustam tanto. A fúria assassina e vingativa de Sarai é muito mais profunda do que eu pensava, mais profunda do que ela me revelou.
Como não percebi isso?
— E também tem os ricaços que Javier me levava para visitar, me exibindo para que quisessem comprar as outras garotas — conta ela, com desprezo. — Eu lembro o que você me contou. John Gerald Lansen, você disse que ele é o diretor-executivo da Balfour Enterprises. — Sarai assente, confirmando o nome no meu rosto. — É, eu me lembro de muita coisa. E passei muito tempo na casa da Dina antes de ir a Los Angeles para matar Hamburg, pesquisando esses homens. Lembrando aos poucos os nomes, os rostos, somando dois mais dois para descobrir quem eles são, onde moram, quanto dinheiro têm. Quando eu não estava pensando em você, estava mergulhada neles, aprendendo tudo o que podia sobre esses caras com o objetivo de matá-los aos poucos, um por um. — Ela fica na minha frente e me olha nos olhos. — E é isso o que pretendo fazer.
— Você não vai conseguir sem mim.
Estou ficando furioso. Como Sarai pode dizer essas coisas, tomar uma decisão dessas sem me envolver?
Minhas mãos estão tremendo.
Desvio o rosto, sabendo que, se olhar demais, vou me perder nas profundezas daqueles olhos verdes.
— Tolice — digo, pronto para dar a noite por encerrada e acabar com aquela conversa absurda. — Vou tomar banho e dormir. Pode vir comigo se quiser.
Quero que ela aceite.
Sinto que ela não vai aceitar...
— Eu não vou com você. Estou falando sério. Quando isto acabar, quando os dois estiverem mortos, eu vou embora.
Eu me viro para ela com as mãos fechadas, sentindo os punhos da minha camisa branca mais apertados nos meus pulsos.
— Você não vai a lugar nenhum. Não desse jeito. Não vou deixar. — Dou uma risada seca. — Meu Deus, Sarai, você tem mesmo muito a aprender. Estou chocado por você não perceber a idiotice que isso é!
— Idiotice? — repete ela, com desprezo. — Não... Tudo bem, talvez você tenha razão, mas o que é ainda mais idiota é achar que eu poderia ter algum tipo de vida com você. Eu me odeio pelo que fiz você passar, pelo que fiz Dina passar. E estou aqui, como uma órfã abandonada à sua porta, esperando que você cuide de mim, me alimente e me ensine como levar uma vida fora do convencional e não morrer fazendo isso. Você não pediu por isso, eu nunca deveria ter me jogado na sua vida como fiz.
De tanto tempo cerrando com força os dentes sem perceber, eles estão começando a parecer plástico. Meu peito sobe e desce com a respiração profunda, furiosa e até apavorada. Sinto que não pisco há minutos, meus olhos estão começando a secar com a brisa incessante que os atinge. Parece que meu coração quer sair do peito.
Nunca me senti assim antes... pelo menos não desde criança. Nunca estive tão furioso e... assustado.
— Sinto muito ter feito você passar por isso, Victor — repete Sarai, com calma e sinceridade. — Quero agradecer por tudo o que você fez para me ajudar. Duvido que qualquer coisa que eu possa fazer ou dizer retribuirá a sua ajuda. Eu sei. Mas o mínimo que posso fazer é deixar você em paz para viver a sua vida do jeito que você sabe. Você não precisa de alguém fazendo merda o tempo todo.
Ela me dá as costas e começa a se afastar.
— Sarai! — grito, e ela para no mesmo instante. Tento acalmar minha voz. — Espere... espere só um minuto.
Ela se vira para me olhar.
Estou tropeçando nas palavras que se formam na minha cabeça, tentando escolhê-las na minha confusão e juntá-las de forma adequada para que façam sentido. Mas é difícil. É difícil pra cacete!
— Eu... — Olho para os meus sapatos, para a cadeira de ferro batido do pátio, para seus cachos agitados sobre os ombros nus e macios. De novo olho para os meus sapatos. — Eu não quero que você vá embora.
— Mas eu preciso ir, Victor — insiste Sarai, com tanta ternura e compreensão na voz que quase racho ao meio. — Você sabe que preciso. É o melhor para nós dois.
— Não — digo com severidade, erguendo o queixo e me recompondo. Não vou aceitar isso. — Você vai ficar comigo. Eu posso manter você segura. Não vamos mais falar disso. Agora vamos para cama.
Estendo a mão para ela.
— Não, Victor. Sinto muito.
Pego a mão de Sarai e a puxo para perto de mim. Ela não resiste nem se encolhe, tampouco parece surpresa. Seguro seu rosto com as mãos e a admiro, seus olhos quase infantis, embora tão sagazes. Uma pequena loba se esconde dentro daquela corça. Minha loba.
— E-eu quero que você fique comigo.
— Por quê?
— Porque é isso que eu quero.
— Mas isso não é motivo, Victor.
— Não importa, Sarai, você precisa ficar comigo.
— Mas eu não vou ficar.
Eu a sacudo, ainda segurando seu rosto.
— VOCÊ NÃO PODE IR EMBORA! — Minha alma está tremendo. Não consigo suportar essas emoções.
Ela ainda não reage, mas vejo seus olhos começando a marejar.
Sarai balança a cabeça nas minhas mãos com delicadeza.
— Eu vou embora e não tem nada que você possa fazer para mudar isso.
— NÃO, SARAI! EU PRECISO DE VOCÊ NA MINHA VIDA!
De repente, eu a solto e olho para minhas palmas, abertas à frente, como se de alguma forma elas tivessem me traído. Meu peito se agita em um turbilhão, como se emoções que estavam adormecidas durante a vida toda tivessem enfim acordado e eu não soubesse mais o que fazer.
Querendo apenas me esconder no quarto para tentar entender o que acaba de acontecer comigo, giro sobre os calcanhares e sigo para a porta de vidro.
— Victor. — Eu a ouço chamar baixinho atrás de mim.
Paro. Não tenho forças para me virar.
Sinto que Sarai se aproxima por trás, sinto o calor de sua presença, o aroma doce da sua pele.
— Olhe para mim — pede ela, com a voz leve como a brisa.
Eu me viro devagar.
Ela se aproxima e segura meu rosto com as mãos, com mais delicadeza do que quando segurei o dela. Inclina a cabeça para um lado e depois para o outro, me encarando com os olhos cheios de lágrimas. Ela fica na ponta dos pés e me beija de leve na boca.
— Não reprima nada — diz ela, com uma urgência suave. — Diga tudo o que está sentindo agora. Neste exato momento. Por mais errado, constrangedor ou esquisito que pareça, diga assim mesmo. Por favor...
Não notei quando minhas mãos se ergueram e seguraram os pulsos dela, com a mesma delicadeza com que seus dedos tocam minhas bochechas. E me examino por dentro, tentando entender o que Sarai está fazendo comigo. O que ela fez comigo. Penso no que ela disse e, contrariando minha aparência tão dura, só quero lhe dar o que ela deseja.
— Eu... Sarai, eu nunca me senti assim antes. — Não consigo olhá-la nos olhos, mas ela me força a isso mesmo assim.
— Conta tudo. Eu preciso ouvir.
O desespero na voz dela é apaixonado e condiz com o que sinto por dentro. Examino o rosto dela. Seus olhos. Sua boca, os lábios tão suavemente entreabertos que fazem a boca parecer inocente e convidativa. As maçãs do seu rosto. Seu queixo. A linha elegante do seu pescoço.
Mas os olhos dela...
— Sarai, você é importante para mim — digo, desesperado, em um murmúrio urgente. — Você é mais importante para mim do que qualquer coisa ou qualquer pessoa. Ter você aqui comigo não é um fardo. Eu quero treinar você. Pelo tempo que for necessário. Quero acordar todo dia com você ao meu lado. Preciso de você na minha vida mais do que jamais precisei ou quis qualquer outra coisa.
Faço uma pausa e olho para baixo. E então me afasto dela. Suas mãos abandonam meu rosto.
Engulo em seco.
— Não vou forçar você a ficar comigo — obrigo-me a dizer, apesar do que sinto. — Mas saiba de uma coisa... Se você partir, você vai se tornar um fardo. Se você acha que ficando aqui vai foder a minha vida, nem faz ideia de como isso vai ser verdade se tentar ir embora e ficar sozinha. Porque eu vou passar cada momento de cada dia da minha vida tentando proteger você! — Meu coração está disparado. — Não vou conseguir dormir sabendo que você está por aí, tentando se encaixar em uma vida que não passa de uma sentença de morte para quem não tem um treinamento adequado! Sarai... ISSO VAI ME MATAR! SERÁ QUE VOCÊ NÃO ENTENDE? VOCÊ VAI ME MATAR SE DECIDIR IR EMBORA! — Estou tremendo todo, meu corpo todo abalado por dor, medo e angústia.
Em um segundo, Sarai está diante de mim novamente, a poucos centímetros do meu peito, seus dedos dançando no meu rosto como instantes atrás. Ela parece calma. Mas há algo mais em seus olhos, agora, algo que não estava lá há pouco. Alívio? Felicidade? Não consigo decifrar a emoção, quando tudo o que quero é puxá-la para perto de mim e abraçá-la até morrermos.
Ela passa a ponta do dedo indicador sob meu olho. Uma lágrima.
Uma lágrima?
Consumido pela confusão, não consigo falar nem me mexer. Olho primeiro para a mão dela e vejo o que resta da lágrima brilhando em seu dedo. Volto a fitar seus suaves olhos verdes, que estão sorrindo para mim, não com arrogância, mas com ternura.
Lobinha esperta...
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
Victor
— Desculpa — pede ela, com nada além de ternura. — Mas eu precisava saber o que você sentia de verdade, Victor.
Eu me sento na cadeira de ferro preto do pátio, esticando as pernas. Colocando o cotovelo no braço da cadeira, apoio a cabeça exausta nas pontas dos dedos.
Sarai se ajoelha na minha frente, no meio das minhas pernas estiradas.
— Ficar com você significa mais para mim do que fazer parte do seu trabalho. Eu precisava saber que você quer de mim a mesma coisa que quero de você. E... quando estamos juntos, sempre sinto que sou mais parte do seu trabalho do que do seu coração.
Ela tenta encontrar meu olhar, mas estou concentrado demais no chão de concreto. Ouço cada palavra que Sarai diz, mas ainda estou muito perplexo com as emoções que ela arrancou de mim para olhá-la nos olhos.
Sinto que não consigo encará-la. Não por estar com raiva dela, mas por vergonha.
— Você tem sido impenetrável desde o dia em que nos conhecemos — continua ela, segurando minha mão. — A única situação em que sinto uma ligação emocional de verdade com você é quando dormimos juntos. Eu ficava muito frustrada. Porque sabia que, por baixo de todas essas suas camadas, isto, isto aqui... — ela aperta meus dedos enfatizando essas palavras — ... que você acabou de me mostrar estava lá o tempo todo, só querendo ser libertado. Eu... Victor, por favor, olha para mim.
Relutante, levanto a cabeça e a olho nos olhos.
— Eu não quero ser o seu trabalho. Quero trabalhar com você. Quero aprender com você. Mas quero sentir que sou importante do ponto de vista emocional quando o trabalho não estiver interferindo. Victor, eu sei que não é culpa sua. Sei que você não pode mudar seu jeito, o modo como você se isola emocionalmente do mundo. Mas eu precisava tentar ajudar a desfazer o que Vonnegut e a Ordem fizeram com você.
— Você me manipulou — afirmo, sem dizer mais nada.
Ela abaixa o olhar.
— Desculpa.
— Não peça desculpas. — Ergo as costas da cadeira, inclinando o corpo para a frente e enfiando as mãos sob os braços de Sarai. Eu a levanto e a ponho no meu colo. — Nunca peça desculpas.
Com uma das mãos, viro o queixo dela na minha direção, para fazê-la me olhar.
— Você fez o que precisava fazer — digo, e espero que ela se lembre disso mais tarde. — Não posso culpar você.
— Não está bravo? — pergunta ela.
Balanço a cabeça.
— Não. Acho que “grato” é um termo melhor.
Ela sorri. Eu também sorrio e a beijo.
— Parece que estamos ajudando um ao outro.
Ela inclina a cabeça, pensativa, e presta atenção.
— Sarai, eu estou ajudando você a se tornar o que quer ser, a viver a vida que escolheu viver. Você nunca teve direito de escolha antes. E você está me ajudando a recuperar o tipo de vida que tiraram de mim, me mostrando como é ser algo mais do que um assassino, a sentir algo mais do que a necessidade de matar. E, por isso, eu jamais poderia ficar bravo com você.
Ainda acomodada na minha perna esquerda, ela se curva e me beija de leve no canto da boca. Seguro sua cintura com as duas mãos, entrelaçando os dedos. Ficamos assim em silêncio por alguns momentos. O sol já sumiu do horizonte e as estrelas estão acordadas na escura imensidão do céu que paira acima de todos nós, em uma exuberância de tirar o fôlego.
— Então, quanto daquilo era verdade? — pergunto a ela.
— Tudo — responde Sarai. — Menos a parte sobre eu ir embora.
Balanço a cabeça, distraído, pensando muito em todas as coisas que ela me revelou esta noite.
— Você sabe que ninguém vai nos pagar para voltar ao México. Seria só um acerto de contas.
— Eu sei. — Ela assente. — Mas é importante para mim. Aquelas garotas são importantes para mim.
Passo a mão esquerda pelas costas dela e a apoio em sua nuca. Puxando-a na minha direção, aninho sua cabeça no meu ombro.
— Então é importante para mim. Pode levar meses, até um ano ou dois, para juntar todas as informações de que precisamos, todos os recursos, mas vamos conseguir. E vamos conseguir juntos. Mas você precisa me prometer que vai ser paciente e vai...
— Eu dou a minha palavra — interrompe ela. — Não importa quanto tempo leve. E vou seguir os seus comandos e as instruções em cada passo. Não vou cometer os mesmos erros de novo.
Logo depois da nossa conversa no pátio, levo Sarai para o banheiro e lavo o cabelo dela, sentada entre as minhas pernas na banheira.
Conversamos por um longo tempo sobre a vida como era antes. Sobre quando ela morava com a mãe, antes que a mãe descobrisse as drogas e os homens. Quando elas se sentavam juntas para assistir a desenhos animados na TV nas manhãs de sábado. Falamos sobre a minha vida antes que eu fosse capturado pela Ordem. Sobre como eu jogava Dosenfussball (futebol com latinha) e Verstecken (pique-esconde) com Niklas quando eu tinha 6 anos, na Alemanha.
Ficamos tão perdidos nas lembranças de quando nossas vidas eram mais simples e mais inocentes que esquecemos como as coisas estão agora.
Também esqueço, só por um momento, que as coisas entre nós não estão completamente definidas.
E pode ser que nunca estejam.
Sarai
Acordo na manhã seguinte e encontro o lado de Victor da cama frio e vazio. Aperto o travesseiro dele contra o peito e o seguro perto de mim. Ele tinha uma reunião às oito com um contato em Bernalillo. Queria que eu fosse junto, mas fico exausta com as viagens, sobretudo quando não são de avião.
Já que a localização da academia de krav maga foi “comprometida”, como Victor diz, ele acha melhor sairmos do Novo México quanto antes. Meu objetivo do dia é fazer as malas, levando tudo o que eu puder da casa. Isso, contudo, não deve ser tão difícil, já que o guarda-roupa e os pertences de Victor não são iguais aos de uma pessoa normal. Ele não tem uma “gaveta de cacarecos” onde joga vários itens que vão ficar lá, sem serem usados, pelo resto da vida. Os armários não são cheios de caixas velhas de sapatos e pilhas de documentos guardados só por segurança, ou roupas que ele não veste há cinco anos. Os armários da cozinha não são cheios de jogos caros de porcelana que só são retirados do lugar nos feriados e em ocasiões especiais. Não há retratos de família pendurados em uma bela fileira na parede do corredor, nem enfeites organizados em uma estante, recebidos de pessoas importantes, dos quais ele não consegue se desfazer por razões sentimentais. Algumas caixas devem bastar. Os ternos dele. Minha coleção cada vez maior de roupas, perucas, joias, maquiagens e um zilhão de sapatos. Parece que vou encaixotar só as minhas coisas.
Aperto um botão no controle remoto e a TV de LCD da sala ganha vida. Deixo em um dos canais de notícias só para fazer barulho de fundo. O sol atravessa a porta de vidro que emoldura a vista do Novo México atrás da casa. Observo a paisagem só por um momento, sentindo que preciso mudar de ares. Depois de passar a maior parte da minha vida no México, rodeada de areia, árvores retorcidas, grama seca e calor... bem, fico feliz em me mudar. Victor disse que a nova casa vai ser em Washington ou Nova York. Qualquer uma das duas cidades está ótima para mim, ambas bem diferentes daquilo com que estou acostumada.
Vou saber com certeza amanhã.
Tomo um café da manhã simples, um ovo mexido e uma fatia de torrada acompanhados por um copo de leite. Faço meus exercícios matinais e tomo um banho rápido, vestindo um short preto e um top apertado de algodão da mesma cor. Prendo o cabelo em um rabo de cavalo, separo em duas metades e puxo, para deixá-lo mais firme. De pé diante do enorme espelho do banheiro, começo a me maquiar, mas percebo que estou com muita preguiça para isso no momento e volto a cuidar da mudança. Enquanto pego os ternos de Victor do armário, um por um, e os guardo em capas compridas com zíper, sinto alguma coisa sob a minha mão ao ajeitar uma manga sobre o peito do paletó. Afasto a manga na cama e desabotoo o paletó. Enfio a mão no bolsinho interno e pego um pequeno envelope. É meio grosso, mais ou menos 1 centímetro.
Antes de tirá-lo todo do bolso, penso em guardá-lo de novo, minha consciência me dizendo que aquilo não é da minha conta. Mas olho mesmo assim.
O envelope está velho e surrado, com as bordas esgarçadas e amarelado. É pequeno, mais quadrado do que retangular, e deveria ser de algum cartão de aniversário ou convite. Há fotografias dentro. Fotografias antigas. Tiro a aba de dentro do envelope e o abro, despejando a pequena pilha na mão. A primeira foto é de um homem de cabelo claro e queixo forte. Ele usa camisa branca e gravata marrom. Está sentado em uma poltrona de couro, rodeado por paredes revestidas com um papel cafona que imita tapeçaria. Um garotinho de cabelo castanho e uma menina ainda mais nova com cabelo louro bem claro estão de pé ao lado dele, dando um sorrisão para a câmera.
A foto seguinte é também do menino e da menina, posando com uma mulher loura, de cabelo longo e ondulado, linda, ao ar livre, no que parece ser um parque.
Todas as fotos são velhas, alaranjadas e com rachaduras nas bordas, onde elas foram dobradas ao longo dos anos. Olho cada uma delas e leio o verso. Versalhes, 1977; Paris, 1977; e Versalhes, 1976, rabiscados no canto esquerdo e quase ilegíveis, pois a tinta começou a desbotar. Nas fotos seguintes, o menino está mais velho, talvez com uns sete ou oito anos, e está de pé com o braço sobre o ombro de outro menino. Munique, 1981, e Berlim, 1982. Meu coração afunda quando me dou conta de que todas aquelas fotos são de Victor e Niklas, com quem acredito serem seu pai e a mãe de Victor. A menina deve ser uma irmã.
Parte meu coração saber que ele carrega essas fotos assim. É mais uma prova de que Victor não é desprovido de emoções, de que no fundo de sua alma há um homem que ficou escondido do mundo, forçado a carregar as únicas lembranças da infância dentro de um bolso.
É a prova de que ele é humano, um ser humano perdido e traumatizado que quero desesperadamente curar.
Viro a cabeça ao ouvir passos dentro da casa.
Deixo as fotos na cama e pego a 9mm do criado-mudo, tirando o pente para verificar se está cheio. Insiro o pente na arma de novo e, descalça, corro em silêncio pelo quarto, com as costas coladas na parede, na direção da porta. Mantenho a arma na altura da cabeça, segurando-a com as duas mãos, e paro para escutar. Nada. Quer dizer, nada além da porcaria da televisão, que me arrependo de ter ligado.
Começo a achar que só pode ser Fredrik, mas não vou me arriscar.
Ainda com as costas na parede, contorno o batente e vou para o corredor ao ver que está vazio. Uma sombra se move no piso de terracota na outra extremidade do corredor, e eu fico imóvel. Sinto o coração pulsar nas pontas dos dedos, coçando para apertar aquele gatilho com toda a força. Continuo imóvel, com gotículas de suor surgindo na nuca, e fito o chão por um longo momento, sem piscar, temendo perder algum outro movimento. Ouço os passos de novo, mais distantes desta vez, e ando com cuidado pelo corredor na ponta dos pés.
Ao chegar perto do fim, paro a centímetros do canto e encho os pulmões de ar. Expiro devagar e em silêncio antes de prestar atenção de novo. As vozes do noticiário falando sem parar sobre o “Obamacare” me dão nos nervos, pois se sobrepõem a quaisquer vozes ou passos que eu poderia ouvir e saber de que direção estão vindo.
Finalmente, ouço vozes murmurando:
— Verifique os quartos — diz um homem. — Ela deve estar escondida debaixo de uma cama ou dentro de um armário.
Não, babaca, estou esperando que você venha pelo corredor para meter um tiro na sua cara.
Um homem de terno preto surge no canto, de arma em punho, e eu atiro no mesmo instante em que ele aparece no fim do corredor. O tiro ecoa nos meus ouvidos, e o homem cai no chão, o sangue esguichando do ferimento na lateral do pescoço. Ele tosse e sufoca, tentando cobrir o ferimento com as mãos, agora cobertas de sangue.
Dou a volta no corpo dele, ignorando os perturbadores sons de gargarejo que ele faz, e viro a quina da parede, atirando mais três vezes. Consigo atingir mais um homem antes que uma dor cegante atravesse minha nuca. Enquanto caio, vejo o segundo homem em quem atirei caindo à minha frente. E vejo Stephens, de pé ao lado do cadáver, em toda a sua glória altiva e sombria. Minha arma não está mais em minhas mãos, e estou tão desorientada pelo que bateu na minha nuca, seja lá o que for, que demoro um pouco para me dar conta de que estou deitada no chão frio, com a bochecha encostada em uma fenda do assoalho. Apalpo minha nuca e sinto sangue nos dedos quando toco o cabelo.
Stephens se agacha ao meu lado, com um sorriso ameaçador criando rugas profundas ao redor de sua boca dura. Seu cabelo grisalho parece mais escuro, ele parece maior, a covinha no centro de seu queixo, mais pronunciada. Ele me olha de cima, apoiando os cotovelos nas coxas, com as mãos enormes relaxadas entre as pernas, o pulso direito adornado com um grosso relógio de ouro. Ele tem um cheiro forte de colônia e charutos.
— Você é difícil de achar, garota — observa Stephens.
— Vai se foder — digo, tão casualmente quanto se estivesse comentando que o tempo está bom.
Stephens abre um grande sorriso com a boca fechada, e é a última coisa que vejo antes que tudo fique preto.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Sarai
Acordo devagar com um zumbido baixo e profundo, bem acima de mim, acompanhado por um som rápido e constante de vento. Minha visão está embaçada e enxergo apenas uma luz fraca e acinzentada, que de início se curva e se distorce ao atingir meus olhos. O ar parece muito úmido, as costas da minha camiseta e o espaço entre os meus seios e minhas axilas estão empapados a ponto de me fazerem sentir um calafrio terrível quando a brisa estranha me atinge. Minhas mãos estão amarradas atrás das costas, como amarrei as mãos de Izel quando ela veio atrás de mim depois que fugi no carro de Victor. Penso nela por um momento, no modo como ela olhou para mim naquele dia, como seu cabelo escuro e suado grudava no rosto. Imagino que eu deva estar parecida com ela agora, só que meu cabelo ainda está preso em um rabo de cavalo.
Logo percebo que meus tornozelos também estão amarrados.
Forço meus olhos a se abrirem completamente e luto para pôr minha visão em foco. Estou sentada em uma cadeira no meio de uma sala enorme, escura e empoeirada, em uma espécie de galpão velho.
Rio por dentro, pois vejo o rosto de André Costa na cabeça, como ele estava naquele galpão em Nova Orleans.
Tudo o que vai volta, suponho. E a vingança por todas as mortes que causei ou das quais participei está chegando mais cedo do que eu esperava.
A brisa estranha e o som de vento acima de mim, percebo agora, estão vindo de um grande ventilador industrial construído na parede, perto do teto alto. As paredes são feitas de concreto, e o teto de trilhos de metal que vão de uma ponta à outra é sustentado por pilastras compridas também de concreto. O lugar tem um cheiro forte de solvente, cola e outros produtos químicos que fazem mal aos pulmões.
Minha garganta está tão seca que dói. Meu primeiro impulso é pedir água, mas, assim como soltar a corda que prende meus pulsos e tornozelos, sei que nada que eu pedir será concedido.
Olho para baixo, sinto o peito dos pés ardendo e vejo que a pele dos dedos dos pés está dilacerada, indicando que em algum momento devo ter sido arrastada.
Passos ruidosos, como de solas duras, ecoam pelo espaço amplo quando Stephens se aproxima de mim.
Prendo um riso do ridículo daquela situação.
— Posso perguntar o que é tão engraçado? — indaga Stephens, com sua voz grave e também parecendo achar graça.
Sorrio em desafio quando ele para diante de mim, com as mãos nas costas.
— Pensei que você e aquele maluco de merda para quem você trabalha queriam me matar. — Eu rio. — Isto aqui é um pouco exagerado, não acha? — Abro um sorrisinho para ele.
Stephens dá um sorriso frio que imediatamente me lembra a expressão no rosto de Fredrik quando ele prendeu André Costa naquela cadeira de dentista. Em vez de responder, Stephens vira para a direita e vê outro homem se aproximar, trazendo uma cadeira. As pernas de madeira raspam um pouco no concreto quando ela é colocada no chão, ecoando pelo pequeno espaço que nos separa. Stephens se senta, ajeitando de maneira despreocupada seu belo terno preto, puxando a lapela e espanando uma poeira invisível da perna.
— É sério isso? — pergunto, balançando a cabeça. — Deixe eu adivinhar... Hamburg ainda quer seu showzinho. Não conseguiu comigo e com Victor no quarto dele na mansão. Não conseguiu com o guarda-costas dele no escritório do restaurante. A propósito, fiquei feliz em saber que aquele merda morreu. Era seu amigo? — Meu sorriso fica mais evidente.
Os olhos de Stephens sorriem. Ele cruza a perna e põe as mãos com delicadeza no colo. É muito enervante como ele parece calmo e imune às minhas palavras. Mesmo assim, não deixo que ele perceba que isso me incomoda.
— Acredite, Izabel, Sarai ou qualquer que seja o seu nome, se dependesse de mim, eu teria matado você naquela casa, em vez de trazê-la para cá.
— É claro, você é só o criadinho dele, ajoelhado aos pés de Hamburg, esperando que ele peça o próximo boquete.
O teto surge no meu campo de visão por um instante quando alguém puxa meu cabelo, meu pescoço tão forçado para trás que não consigo respirar. Outro homem está de pé atrás de mim, olhando nos meus olhos arregalados. Tento engolir, mas não consigo. Começo a engasgar e tossir, em vez disso.
— Pode soltar — ouço Stephens dizer.
O homem me solta e minha cabeça cai para a frente. O peso do meu corpo faz a cadeira tremer e balançar um pouco até se estabilizar. Fico aliviada por conseguir respirar de novo. Levanto a cabeça e fuzilo Stephens com o olhar enquanto ele continua sentado diante de mim, a apenas meio metro. Começo a correr os olhos pela sala procurando uma saída, tentando formular um plano que sei que jamais vai se materializar. Mesmo se eu tivesse alguma chance de sair desta sala, não sei como poderia me soltar das amarras. Meus pulsos estão tão presos que a circulação parece ter sido cortada. As fivelas nos meus tornozelos estão muito apertadas também, mas sinto que posso movê-los um pouquinho, esmagando-os nas pernas da cadeira. Mas não vou a lugar nenhum. A não ser para o inferno, talvez, e logo.
Não tenho medo de Stephens, não tenho medo do que ele vai fazer comigo. Não tenho medo de ser torturada. Só tenho medo do quanto vai durar.
— Por que você não acaba logo com isso? — sugiro, com rispidez, ódio e vingança evidentes na voz. — Não ligo para o que você vai fazer comigo, ou para o que Hamburg vai fazer, então ande logo.
— Ah, mas você não está aqui por causa de Hamburg. — Stephens abre um sorriso de gelar o sangue. — E, não, eu não quero que isto acabe. — Ele se inclina para a frente, aproximando seu queixo quadrado de mim. Sinto o cheiro de sua loção pós-barba. — Espero que você não fale ao menos por alguns dias, porque estou muito ansioso para passar esse tempo com você.
Engulo meu medo de saber o que essas palavras significam: que ele vai me torturar e por muito tempo. Tento amenizar a preocupação, torcendo para que ele não detecte o menor sinal de pavor no meu rosto.
— O que eu poderia saber que você precisasse me fazer revelar, afinal? — Rio, desafiando-o. — E que loção é essa? Fede como se você tivesse mergulhado de cabeça no meio das coxas de uma viciada em crack.
Os olhos de Stephens se movem para a pessoa atrás de mim, estreitando-se, e percebo que ele acaba de impedir o homem de puxar meu pescoço para trás de novo, ou talvez de me dar um tapa. Ele ignora meu insulto.
Stephens se reclina na cadeira de novo. E não diz nada. Odeio isso. Preferiria que ele andasse ao meu redor fazendo um monólogo canastrão a não dizer absolutamente nada. E acho que ele sabe quanto isso me incomoda. A expressão satisfeita dos seus olhos me confirma isso.
— Ok, então, se eu não estou aqui por causa de Hamburg, qual é o motivo?
Outros passos atrás de mim atravessam a sala. Tento olhar para trás, mas não consigo esticar muito o pescoço.
Enfim a figura dá a volta e consigo vê-la.
— Você está aqui por minha causa — afirma Niklas, jogando uma bituca de cigarro no chão e apagando-a com sua bota de couro preta.
Suspiro sem fazer ruído. Meu corpo todo fica rígido na cadeira. Procuro me concentrar na minha respiração, tentando recuperar o controle do meu corpo, mas por um longo tempo não sou nada mais do que uma casca imóvel.
— Niklas... — digo enfim, mas não consigo falar mais nada.
A raiva assoma dentro de mim, e minha necessidade de matar Stephens de repente é ofuscada pela necessidade de dizer a Niklas tudo o que está entalado na garganta.
Diferente de Stephens, Niklas não sorri nem sente a necessidade de me atormentar com ameaças. Sinto algo diferente nele, algo muito mais sombrio do que em Stephens, algo mais ameaçador do que as palavras podem descrever. Olhando aquele homem alto de cabelo castanho-claro arrepiado, os olhos azuis ferozes emoldurados por um rosto perfeitamente redondo, porém bonito, vejo alguém mais afeito à vingança do que eu jamais conseguiria ser.
E, por fim, fico apavorada.
Niklas chega mais perto até ficar bem na minha frente, sem se importar com a proximidade. Stephens ficou pelo menos meio metro longe de mim, como se temesse que eu pudesse cuspir nele, ou me soltar e agarrá-lo. Mas Niklas, não. Sinto que ele está me desafiando a me mexer. Ele quer que eu tente algum movimento.
Engulo em seco, empino o nariz de forma arrogante e tento continuar forte para encarar meu destino.
— Você sabe o que eu quero — diz Niklas, com uma voz tranquila e o mesmo sotaque alemão, ainda evidente na voz. — Ou precisamos discutir a questão em detalhes? — Ele inclina a cabeça para o lado.
Ele se parece tanto com Victor que me pergunto como podem ser tão diferentes por dentro.
— Você vai ter que explicar. É sobre o Victor? — Olho rapidamente para Stephens. — Esse merda estava na casa dele agora há pouco. Você já sabe onde encontrar o Victor. E não que isto me surpreenda muito, mas o que você está fazendo com eles?
Flagro Stephens olhando para Niklas, que, no entanto, não tira os olhos de mim. Ele se agacha na minha frente, no meio das minhas pernas abertas, e me olha com um rosto tão calmo e ameaçador que sinto um calafrio percorrendo a nuca. Dá para sentir o cheiro do couro de sua jaqueta preta e o fraco odor de fumaça de cigarro que persiste na camisa cinza-escura que ele usa por baixo.
— Estou procurando Victor há meses — começa Niklas, e ouço com atenção, mantendo os olhos grudados nele. — Ele sem dúvida contou a você que saiu da Ordem, que traiu a mim, a Vonnegut...
Arregalo os olhos e meu queixo cai em um ofegar.
— Traiu você? — interrompo, incrédula. — Não pode estar falando sério. Você traiu Victor! Foi você que...
Ele estende as mãos fortes e aperta com firmeza minha garganta, me fazendo engasgar e tossir. Eu me agito na cadeira, incapaz de erguer as mãos para tentar tirar as dele. Meus olhos viram para cima quando ele aperta mais forte.
Ele me solta.
Ofego e tento recuperar o fôlego, com os cantos dos olhos molhados por lágrimas de exaustão e dor. Estou apavorada, mas não o suficiente para chorar ou implorar pela minha vida. Prefiro morrer a implorar por qualquer coisa.
— Meu irmão me traiu muito antes de sair da Ordem — diz Niklas, com um pouco mais de emoção na voz do que antes: ressentimento. — Ele me traiu quando se voltou contra tudo o que acreditávamos e ajudou você. Ele me traiu quando mentiu para mim sobre ajudar você. Ele mentiu, Sarai, porque sabia que isso era errado. — Niklas fica na ponta dos pés, pondo-se a poucos centímetros do meu rosto. — Ele quase me matou por sua causa. E ia me matar, se você não tivesse impedido. Foi ele quem me traiu!
Minhas mãos começam a tremer nos braços da cadeira. Meu coração está no meu estômago, revirando-se, perdido e apavorado. Não posso negar, o que Niklas disse é verdade.
Não posso negar...
Ele se afasta alguns centímetros até eu não conseguir mais sentir seu hálito de pasta de dente, mas ainda está muito perto. Um quilômetro seria perto demais.
— Niklas — digo, em uma voz um pouco desesperada, só o suficiente para convencê-lo a me ouvir. — Victor só ia matar você porque era errado me matar. Você não entende? Ele teria feito isso por qualquer um. Não só por mim.
Um sorrisinho aparece em um canto de sua boca, e fico ao mesmo tempo intrigada e preocupada com o significado disso. Niklas fica de pé, vira de costas para mim e se aproxima de Stephens. E então se vira de novo.
— Você não conhece meu irmão tão bem quanto imagina. Não, ele não teria feito isso por qualquer um. Parece que meu irmão é humano, no fim das contas, com isso de ter se apaixonado por você e tudo o mais.
Balanço a cabeça e desvio o olhar.
— Por que eu estou aqui, Niklas? Diga logo o motivo de ter me trazido para cá. Não vou mais lhe dar o prazer da minha conversa.
Stephens se levanta da cadeira, parecendo um gigante perto de Niklas. Ele é bem alto, com ombros largos e cabeça grande e quadrada.
— Detesto admitir — diz Stephens —, mas concordo com essa puta. Vamos logo com isso. — Ele me olha com frieza. — Você está viva porque Niklas precisa de você primeiro, mas quando ele terminar eu vou meter uma bala nessa sua cabecinha linda, cumprindo meu contrato com Arthur Hamburg.
Olho para Niklas.
— Você precisa de mim para quê? — Há veneno na minha voz.
— Você vai me contar tudo o que sabe sobre o meu irmão e sua nova... organização. Quero saber os nomes dos associados, a localização de todos os abrigos e quem toma conta deles. — Noto dentes rangendo atrás das bochechas. — E quero saber até que ponto Fredrik Gustavsson está envolvido nos negócios de Victor.
Balanço a cabeça.
— Bom, antes de mais nada, quem é esse Fredrik Gustavsson? Segundo: eu não sei nada sobre a organização de Victor, seja lá o que isso significa. Ele me disse que saiu da Ordem, sim. E me disse que você o traiu ao continuar na Ordem e aceitar a missão de Vonnegut para matá-lo. Mas não me contou mais nada. Ele disse que era melhor eu não saber.
Os olhos de Niklas se abrandam com um sorriso tênue. Sem mover a cabeça, ele olha para o homem atrás de mim. De repente, a cadeira é puxada, meus pés saem do chão e sinto como se estivesse caindo para trás. Por instinto, lanço meu corpo para a frente quanto posso para evitar que minha cabeça bata no chão de concreto atrás de mim. Sou arrastada pela sala; para onde, acho que não quero saber.
Tudo para. Os pés dianteiros da cadeira voltam a atingir o chão, e então mais três homens, além daquele que me arrastou, seguram meus braços e pernas. Eles começam a me desamarrar, mas, assim que as amarras se soltam, eles me seguram com firmeza pelas mãos e pés. Por mais que lute para me desvencilhar, não consigo me mexer.
— ME SOLTEM! — Esperneio e contorço o corpo, tentando atingi-los com pontapés, arrancar meus braços de suas mãos. — NIKLAS! ME SOLTA!
Ele não responde. Fica ali, no azul-acinzentado do prédio empoeirado, ao lado de Stephens, enquanto meus braços são forçados acima da cabeça e amarrados de novo pelos pulsos com correias de couro penduradas do teto. O mesmo acontece com meus tornozelos. Ouço um rangido e o som da estrutura à qual estou amarrada se encaixando, antes que minhas mãos sejam esticadas bem acima de mim e meus pés descalços sejam erguidos do chão.
— PUTA QUE PARIU! EU VOU MATAR TODOS VOCÊS! ME SOLTEM! — Cerro os dentes com tanta força que sinto uma pontada de dor no maxilar inferior.
Niklas está de pé na minha frente de novo. Não o vi se mover, estava ocupada demais tentando atingir o homem mais próximo à minha esquerda.
— Por que você está trabalhando com eles? — grito na cara de Niklas. — Explica isso! Achei que você trabalhasse para Vonnegut!
Niklas junta as mãos atrás das costas.
— Se quer mesmo saber, tudo bem. Eu conto.
Ele anda de um lado para outro diante de mim e para no mesmo lugar. Mas não consigo deixar de notar Stephens no fundo, o brilho de uma lâmina prateada em sua mão. Ele continua pronto, segurando um punhal na altura do quadril com a expressão de quem está louco para me atacar.
— Quando eu descobri o que aconteceu em Los Angeles, sabia que, se você ainda estivesse viva, Hamburg ia querer garantir que isso não durasse muito tempo — começa Niklas. — Você escapou. Não havia sinal de você no restaurante, nem entre os corpos que foram encontrados no hotel. — Uma imagem do rosto de Eric e Dahlia atravessa minha mente como um soco no estômago. — Você escapou e eu sabia que devia ser porque Victor a ajudou. De repente, Hamburg, Stephens e eu tínhamos algo em comum. Eu queria encontrar o meu irmão. Eles queriam encontrar você. Eu sabia que vocês estariam juntos, então eis o denominador comum.
Meus pulsos erguidos pelas correias já estão doendo, o peso do meu corpo põe muita pressão sobre eles. Sinto meu rosto repuxando enquanto ele fala.
— Por que você não podia achar o Victor sozinho? — pergunto, tentando disfarçar meu desconforto. — Ou por que eles não podiam me achar sem a sua ajuda?
— Eles tinham informações sobre você que eu não tinha — explica Niklas. — Estavam vigiando você havia meses, desde a noite em que você e Victor saíram da mansão.
Rio alto, jogando a cabeça para trás.
— Isso é uma mentira de merda. Se for verdade, por que eles não me mataram antes?
Stephens se aproxima por trás de Niklas.
— Porque Victor Faust ameaçou Arthur Hamburg naquela noite — conta Stephens. — Ele não quis fazer nada que provocasse um novo ataque de Victor Faust. Eu vigiava você só por segurança. Sabia onde você morava, pois é fácil encontrar e seguir uma pessoa que sai de um hospital de Los Angeles depois de levar um tiro. E sabia onde você trabalhava. Com quem andava. Os lugares que frequentava. Pesquisei o passado de Dina Gregory e descobri tudo o que havia para saber sobre a família dela. Também não foi difícil localizá-la, mais tarde.
Meu nariz e minha boca se retorcem em um rosnado.
— Isso ainda não explica por que vocês se juntaram para nos encontrar — observo, com frieza, pensando mais no que ele estava dizendo sobre Dina. E a verdade é que não me importa muito por que eles estão trabalhando juntos. Só estou tentando enrolá-los, prolongando a conversa pelo maior tempo possível.
Stephens e Niklas trocam de lugar, e então Stephens se aproxima de mim. Ele segura a lâmina entre os dedos diante dos meus olhos, para que eu a veja e me sinta intimidada por ela.
Ele me encara de lado, estreitando os olhos.
— Você deve se lembrar do que Victor Faust fez com a mulher de Arthur Hamburg. Com certeza não acha que ele ia simplesmente esquecer isso. — Stephens se curva mais para perto do meu rosto, e seu hálito de vinho barato e charuto me deixa zonza de nojo. — Meu empregador quer ver Faust morto desde a noite em que ele matou a sra. Hamburg. Nós sabíamos onde você estava o tempo todo, mas não fazíamos ideia de onde Faust estava e não tínhamos motivos para crer que você soubesse. E com certeza não sabíamos que ele dava a mínima para você. Acho que ele não se importava, na verdade, caso contrário jamais teria deixado você sozinha daquele jeito. — Um sorriso provocador surge em seu rosto.
Quando ele se afasta, lanço a cabeça para a frente, esperando acertá-lo com os dentes, mas ele foge do meu alcance rápido demais. Fecho os dedos ao redor das correias acima de mim e ergo o corpo por um momento para aliviar a pressão nos meus pulsos. Caio de novo com violência, agitando a estrutura.
Niklas sorri.
Cuspo nele, mas não chego nem perto de atingi-lo.
— Eles não conseguem encontrar Victor sem mim — diz Niklas. — E eu não consigo encontrá-lo sem você. — Ele chega perto de mim de novo, e, embora saiba que conseguiria cuspir nele sem errar, não o faço. A expressão daqueles olhos azul-escuros me deixa submissa de medo. — Por isso entramos em um acordo. Eles me ajudam a encontrar você e eu mato meu irmão para eles.
— VAI SE FODER! — Jogo a cabeça para trás e lhe dou uma cabeçada na testa. A dor penetra minhas têmporas e meu maxilar, e minha visão fica embaçada por um momento.
Niklas se afasta de mim, claramente atordoado pelo golpe, mas não revida. Ele se vira para Stephens, e é este quem faz as honras. Começo a espernear quando ele se aproxima de mim com o punhal.
— Willem — chama Niklas, atrás dele, em um tom estranhamente despreocupado.
Stephens não se vira para olhá-lo, mas para.
— Eu preciso dela viva — afirma Niklas. — Lembre-se disso. Lembre-se do nosso acordo. Eu descubro o que preciso saber, e depois você pode fazer o que quiser com ela.
Balanço a cabeça e rio deles sem emitir som.
— Eu não vou contar nada para você — digo, com rispidez. — Você não vai conseguir me dobrar, seu merda. Você acha que consegue, mas está muito enganado. Você nem faz ideia. — Minha voz está calma, o que me surpreende.
— Bom, isso nós vamos ver — rebate Niklas.
Ele gira sobre os calcanhares e se afasta, o som de seus sapatos pisando no concreto ecoa pelo galpão e some quando ele desaparece do outro lado de uma porta de metal.
O sorriso de Stephens está maior, agora que Niklas foi embora.
E acabo de ficar com mais medo dele.
CAPÍTULO VINTE E SEIS
Victor
Dois dias depois...
Da tela do laptop, a imagem congelada do rosto suado e ensanguentado de Sarai me encara. Assisti milhões de vezes ao vídeo em que Stephens aparece batendo nela e meu irmão tenta em vão fazê-la falar. É uma agonia ver Sarai desse jeito, observar aquele homem, que logo estará morto, machucando-a. É uma agonia também não poder fazer nada a respeito.
Ainda não.
— Ela não vai falar — diz Fredrik, atrás de mim, com uma profunda preocupação com o bem-estar de Sarai em suas palavras.
Ele está à porta do escritório da minha casa em Albuquerque, agora livre dos cadáveres depois que demos um jeito neles. Eu me recuso a abandonar esta casa. Se Stephens me quiser, pode mandar seus homens para cá à vontade. Meu irmão, por outro lado, quer informações primeiro, e todos eles sabem que não conseguirão isso de mim.
— Victor — chama Fredrik de novo, com urgência e até certa súplica. — Você precisa fazer alguma coisa. A gente não pode ficar parado aqui. Eles vão matar Sarai.
— Não tem nada que a gente possa fazer — repito, pois já expliquei isso para ele. E, por mais que me machuque fazer isso, explico tudo de novo. — Não faço ideia de onde ela esteja, Fredrik. Niklas não vai revelar a localização deles enquanto não obtiver a informação que quer. Conheço o meu irmão. Ele é esperto. Não vai arriscar me enfrentar. Não desse jeito. Vonnegut quer mais do que a minha cabeça, ele quer informações. Niklas vai tirar o que precisa de Sarai, e depois me mandar outra mensagem me dizendo onde encontrá-la. Irei atrás dela, e ele sabe disso. E aí ele vai me pegar. Vai ter a mim e todas as informações sobre você, sobre a nossa operação e sobre os nossos contatos.
— E daí?!
Eu me levanto da cadeira da escrivaninha, fazendo-a deslizar pelo chão e bater na parede mais próxima.
— VOCÊ ACHA QUE EU ESTOU GOSTANDO DISSO? — Aponto para ele e depois para o chão.
Me acalmo, controlo a respiração e olho para meu reflexo impreciso nos meus sapatos pretos de verniz.
— Victor, eu não entendo. Por que você não dá a eles o que querem?
Não entendo por que Fredrik, o mestre dos interrogadores, queira tanto que Sarai fale, que sua preocupação com ela esteja me revelando outro lado dele.
Isso também me preocupa.
— Não é tão simples assim. — Levanto os olhos para ele. — Mesmo se eu contar a Niklas o que ele quer saber, Sarai vai morrer. Aliás, ela vai morrer muito antes se eu ceder, se eu entregar você e todos os envolvidos na nossa operação. Quanto mais ela resistir, e quanto mais eu resistir, mais ela vai viver. Até eu pensar no que fazer.
Fredrik se apoia no batente da porta, cruzando os braços. Ele suspira.
— Mas já faz dois dias. Ela não vai aguentar muito mais tempo.
— Ela vai aguentar — digo, confiante.
Eu me viro e olho para o vídeo pausado na tela, as pontas dos meus dedos apoiadas na borda da escrivaninha.
— Então como a gente vai encontrar Sarai?
Olho para o rosto dela por um momento longo e tenso, então fecho o laptop.
— Eu vou encontrá-la.
Sarai
O fedor da minha urina no chão, no canto desta sala escura onde estou trancada há dois dias, está se tornando insuportável. Eu me deito no concreto frio e sujo, com a bochecha apoiada no chão áspero e granulado. Minhas costas ardem, queimam como se as feridas infligidas pelo chicote que Stephens usou para me bater estivessem infeccionando. Aconteceu na noite passada, quando Niklas me deixou sozinha nesta sala. Quando ele voltou, Stephens já tinha me espancado tanto que desmaiei por um tempo com a dor e acordei deitada em uma poça de vômito. Ouvi Niklas e Stephens discutindo fora da sala, do outro lado da porta alta de metal. Niklas não aprovava o modo como Stephens estava me tratando e deixou isso claro.
— EU PRECISO DELA VIVA, PORRA! — gritou Niklas com Stephens. — VOCÊ VAI MATAR SARAI, BATENDO TANTO ASSIM!
Odeio Niklas pelo que ele fez. Comigo. Com Victor. Pelo que está fazendo agora, mantendo-me neste lugar. Mas uma pequena parte de mim está grata por ele não tolerar a brutalidade de Stephens. Não importa, para mim, que ele só esteja sendo intolerante porque me quer viva para revelar informações. Aceito qualquer ajuda que vier.
Ouço o trinco deslizar na porta de metal da minha cela. A porta se abre, raspando um pouco no chão.
Niklas entra. Está trazendo um prato de comida e uma garrafa de água. Outro homem fecha a porta e a tranca.
— Nem se incomode — digo do meu lugar no chão, quando ele se aproxima. — Já que você não me mata nem deixa Stephens me matar, talvez eu morra mais rápido de desidratação.
Niklas põe a comida no chão ao meu lado. Levanto o corpo do chão e a jogo longe com um tapa. Apoiando as mãos na parede, eu me sento, tentando não apoiar as costas por causa dos ferimentos. Minhas costelas também doem. E meu pulso esquerdo. Meu lábio inferior parece inchado. Sinto gosto de sangue na boca. Metálico. Nojento.
— Por que não fala de uma vez? — sugere Niklas, com ar de resignação. Ele está cansado de tudo isso, do tempo que está perdendo. — Você pode encerrar esta noite agora mesmo, é só me contar o que eu quero saber.
Não digo nada.
Niklas se senta no chão diante de mim. Ele sabe que estou fraca demais para resistir. Já tentei, e isso só tornou a dor nas costelas e nas costas mais insuportável.
— É melhor eu olhar as suas costas — sugere ele.
— Por que você se importa, caralho? Ah, esqueci, porque precisa descobrir o que eu sei. — Inclino a cabeça para perto dele, com os olhos cheios de um ódio inabalável. — A verdade é que eu sei tudo. Sei com quem Victor está envolvido, quem está ajudando, onde ficam seis abrigos dele. Sei tudo, Niklas, e não vou contar nada!
Faço uma careta e cubro as costelas com os braços quando uma pontada de dor atravessa meu corpo.
— Muito bem. — Ele fica de pé.
Ele vai até a comida, coloca tudo de volta no prato (um sanduíche destruído, alguns picles e um punhado de batatas fritas) e pega a garrafa d’água do chão. Ele volta e coloca tudo perto dos meus pés.
Então se agacha na minha frente.
— Ele não vem salvar você, Sarai — afirma Niklas, com tranquilidade.
Estendo o braço com o pouco de força que me resta para agarrá-lo, mas paro de repente, querendo ouvir o que ele tem a dizer. Não importa que eu não vá acreditar. Quero ouvir mesmo assim.
Seus olhos azuis parecem se suavizar.
— Mandei dois vídeos de você para o meu irmão. Dei a ele a localização de onde estamos, disse onde você estava. Era uma chance de se entregar. De revelar as informações. Mas ele não respondeu. — Então Niklas abre a mão, com a palma para cima, e mostra a sala com um gesto enquanto apoia os braços nas pernas. — E você pode ver que ele não está aqui. Dois dias e nada. — Ele baixa a mão. — Victor não vem salvar você. Quer saber por quê? Vou contar. Porque o trabalho sempre vai ser a prioridade na vida dele. Ele nunca vai cometer os mesmos erros que Fredrik Gustavsson cometeu por causa de uma mulher.
Levanto o queixo.
— Ah, mas isso não é verdade — digo, com desdém. — Ele traiu você por minha causa, lembra? Você mesmo disse isso. Saiu da Ordem por minha causa. Ele quase matou o próprio irmão por minha causa. Lembra, Niklas? — Cutuco a ferida, fitando seus olhos furiosos enquanto tento resistir à dor física.
Niklas abre um sorriso malicioso.
— Sim, ele fez tudo isso. Mas eu via no meu irmão o desejo de se libertar de Vonnegut bem antes de você entrar na vida dele. E ele não está mais na Ordem agora. Está livre de tudo, e, sim, você foi uma parte importante disso, do motivo para ele sair. Você deu o empurrão de que ele precisava, acho. — Ele volta a me olhar com uma expressão severa. — Mas você não vê o que não mudou? Pense, Sarai. Em vez de se libertar de uma vida de assassinatos, como qualquer um em seu juízo perfeito faria, como qualquer um que tivesse uma consciência faria, ele cria sua própria Ordem. Ainda pensa apenas no trabalho. Apenas em matar para ganhar a vida. Porque é só o que ele sabe fazer, e nunca vai aprender outra coisa. — Niklas balança a cabeça para mim, como se sentisse pena da minha ignorância por não ter visto as coisas que ele viu.
Desvio o olhar.
Uma parte de mim, uma parte envergonhada e culpada, não consegue deixar de acreditar nele, no fim das contas.
Niklas se levanta novamente.
— Acredite no que quiser, Sarai — continua ele, baixinho. — Mas você sabe tão bem quanto eu que, se ele viesse salvar você, já teria chegado.
Niklas vai até a porta de metal, bate duas vezes e o homem do outro lado abre. Ele sai e eu fico no escuro de novo, rodeada por paredes escuras, um teto escuro e pensamentos escuros, que estão partindo meu coração em mil pedaços minúsculos.
Não importa.
Se as coisas que Niklas me disse são verdade e Victor não vier me buscar, mesmo assim vou morrer sem contar nada.
Vou morrer aqui.
CAPÍTULO VINTE E SETE
Sarai
Terceiro dia
Estou recusando comida e água há quase 63 horas. Só sei disso porque Niklas fica me lembrando. Estou fraca, meu corpo e minha mente estão exaustos. Stephens não me bate desde que Niklas o impediu da outra vez. É só por causa de Niklas que ainda estou viva. Afinal, ainda não revelei nenhuma informação. Apenas que ele é um babaca traidor que não merece o ar que respira. Já disse a ele muitas e muitas vezes que vou morrer antes de entregar Victor. Acho que ele sabe que é verdade, que eu não posso ser dobrada.
A não ser... Talvez por meus pensamentos.
Meus pensamentos são tudo o que tenho nesta prisão escura e úmida cujas paredes bloqueiam toda luz, à noite ou de dia, sem nenhuma janela e só uma porta de metal que não deixa passar nem uma nesga de luz por baixo. Aquela voz em minha cabeça, aquela à qual nunca damos ouvidos até que não sobre mais nada para silenciá-la, tem sido muito cruel comigo. Niklas tem razão e você sabe, a voz me diz. Já se passaram três dias, e se o que Niklas falou sobre Victor saber onde você está for verdade, por que ele não apareceu? Por que, Sarai, Victor não se entregou por você e não contou a Niklas o que ele quer saber para salvar a sua vida?
Grito a plenos pulmões no espaço vazio e confinado, levando as mãos à cabeça. Lágrimas de raiva escorrem dos cantos dos olhos. Meu cabelo está encharcado de suor. Meu short e meu top preto parecem colados à pele. Meus joelhos nus estão arranhados, minhas pernas, cobertas de sujeira. Minhas costas ardem sempre que me posiciono do jeito errado e as crostas que estão se formando sobre os ferimentos racham e começam a sangrar de novo. Fico deitada no chão, de lado ou de barriga para baixo.
Ouço o eco da porta de metal raspando no chão ao se abrir atrás de mim, mas nem me dou ao trabalho de me virar para ver quem é.
— Se você não vai beber — ouço Niklas dizer, de pé ao meu lado —, então vou forçar a água na sua garganta.
Sou levantada do chão imundo de concreto para os braços dele e carregada para fora da sala. Não resisto. Não olho para ele enquanto sou carregada pelo corredor, mas a luz fluorescente do teto acima de mim é tão brilhante que faço uma careta e fecho os olhos. Em silêncio, aproveito o conforto do ar renovado que roça a minha pele. Sinto minhas pernas sobre os braços de Niklas, seu braço esquerdo segurando a minha nuca. Viramos à esquerda, depois à direita e descemos uma escada de metal.
Momentos depois, minha cabeça está sendo imersa em água e mantida ali.
Meu instinto me trai e abro a boca para gritar, tragando ainda mais água para meus pulmões. Meu corpo se retorce com violência, meus braços se agitam sem controle, tentando se segurar na borda grossa de plástico do recipiente onde estou sendo enfiada. Mas estou fraca demais para tirar a cabeça da água, e Niklas me segura ali com facilidade. A água queima na minha garganta e nos meus pulmões mesmo depois que consigo fechar a boca e prender a respiração. E no instante em que penso que vou me afogar, que enfim vou morrer e ficar em paz, Niklas ergue minha cabeça e a segura.
Meus instintos me traem mais uma vez e me fazem arfar em desespero por ar e tossir a água dos pulmões. Eu realmente preferiria morrer de uma vez e acabar logo com aquilo, mas meu corpo tem vontade própria, outra coisa que me vejo incapaz de controlar. Meu coração bate com tanta força que sinto meu peito roçando na borda de plástico do que reconheço ser um contêiner de 200 litros. Pingos caem do meu cabelo, da ponta do nariz, do queixo e dos cílios para a superfície da água, a poucos centímetros do meu rosto. Plop. Plop. Plop-plop. É surreal como isso é a única coisa que ouço.
— Quem está trabalhando com o meu irmão? — A voz de Niklas é controlada.
Não digo nada.
Ele segura um pouco mais forte o cabelo da minha nuca.
— Você foi vista com Fredrik Gustavsson em Santa Fé. Qual é o relacionamento dele com meu irmão? Eles estão conspirando contra a minha Ordem?
Nenhuma resposta.
Um fluxo de água atinge meu rosto quando ele empurra minha cabeça para dentro do contêiner. Minhas narinas e meu esôfago queimam como fogo quando a água é forçada para dentro de mim. Esperneio de novo, tentando agarrar qualquer coisa. Até que encontro a borda circular, mas ainda não tenho força suficiente para me empurrar contra as mãos de Niklas para fora da água.
Ele me puxa para fora de novo, eu engasgo, tentando respirar.
— Fale alguma coisa, Sarai. Qualquer coisa.
Estou fraca e exausta demais até para provocá-lo. Ainda assim, não digo nada, embora queira muito mandá-lo se foder.
Niklas só consegue uma coisa de mim antes de me carregar para fora da sala, vários minutos depois; engoli mesmo aquela água de que ele falou.
Quarto dia
Raios finos de sol, cheios de poeira, entram pelas janelas perto do teto do galpão, criando manchas de luz cor de marfim no chão à minha frente. Estou de volta à cadeira na sala maior, cercada por pilastras de concreto e aquele irritante ventilador industrial ininterrupto acima de mim. Meus pulsos e tornozelos não estão amarrados, mas seria desnecessário, pois mal consigo ficar de pé sozinha. Não estou completamente sem força física. Conseguiria andar se tentasse. Poderia jogar a cadeira para o outro lado da sala, embora só alguns metros, se quisesse. Mas não me importo mais.
Apenas não me importo mais.
Stephens está sentado diante de mim na mesma cadeira na qual esteve quatro dias atrás. Uma perna está cruzada sobre a outra e suas grandes mãos descansam sobre o joelho. Há uma expressão ameaçadora em seus olhos escuros e profundos; ela revela que ele está cansado de esperar. Que hoje é o dia. Que não importa o que eu diga ou deixe de dizer, não importa qual seja o acordo que ele tem com Niklas, hoje ele vai me matar.
Niklas entra no galpão por uma porta lateral, inundando-o por um instante com o sol forte da manhã. Ele havia saído com os outros quatro homens que pelo visto trabalham para Stephens. Eu os ouvi conversando algo sobre ficar de olho em qualquer sinal de “visitas indesejadas”. De coração, espero que isso tenha a ver com Niklas ter motivos para crer que Victor está vindo. Mas aquela voz cruel na minha cabeça faz meu coração afundar de novo.
Estamos sozinhos naquele galpão imenso. Só nós três. Eu, o Diabo e um dos lacaios do Diabo, embora na verdade eu não saiba qual é qual.
Levanto a cabeça.
Abro um sorriso fraco para eles, fixando minha atenção sobretudo em Niklas.
— Esta é a sua última oportunidade — anuncia ele, de pé ao lado de Stephens, com uma arma na mão direita, junto ao corpo. — Não vou nem me dar ao trabalho de mandar outro vídeo de você sendo interrogada para o meu irmão. É evidente que ver você sentindo tanta dor não basta para fazer o desgraçado sair da toca.
— Me mata — peço, ainda sorrindo. — É isso que você vai ter que fazer.
O peito de Niklas infla e desinfla, mas seus olhos não abandonam os meus. Olho para eles, buscando qualquer resquício de que ele ainda possa ser como o irmão, o homem... pelo qual acho que estou me apaixonando.
O homem que achei, por um breve momento, que poderia sentir a mesma coisa.
O tempo parece parar. Não há som, movimento ou ar ao redor, só um infinito silêncio suspenso no último momento da minha vida.
E, quando sinto meus olhos se fechando, no mesmo ínterim, Niklas levanta a arma de lado e puxa o gatilho. O tiro ecoa e o sangue esguicha do outro lado da cabeça de Stephens. A cadeira debaixo dele cai de lado quando o peso de seu corpo enorme desaba sobre ela.
Stephens cai no chão. Morto.
Sinto meus cílios enfim roçarem no rosto quando os olhos se fecham, e o meu corpo, inundado pelo alívio e exausto de tudo, começa a cair também.
Niklas encaixa os braços por baixo dos meus, me segurando antes que eu bata no chão.
— Peguei você. — Eu o ouço dizer. — Peguei você. — Sua voz parece mais distante agora, embora eu sinta que estou encostada no peito dele, e que o vento roça meu rosto quando ele me carrega pelo galpão.
— Passe ela para mim — escuto Victor dizer lá de fora, e é a última coisa que escuto.
Victor
A trama — Três semanas atrás...
Niklas está sentado diante de mim à longa mesa coberta por documentos espalhados, manchas de café e fotos de alvos futuros. Seu cabelo castanho está desgrenhado e as bordas dos seus olhos, vermelhas, pois ele bebeu demais na noite passada. Ele passa as mãos pela pilha de várias fotos de Edgar Velazco, um famigerado chefe de quadrilha venezuelano que fomos contratados para matar.
Niklas balança a cabeça, contrariado, e se reclina na cadeira, erguendo as mãos e passando-as pelo rosto.
— A gente não pode adiar isso — afirma ele, olhando para mim por cima da mesa. — Temos o paradeiro de André Costa. Precisamos resolver isso agora.
Não ergo o olhar do texto que está à minha frente.
— As coisas mudaram — digo, sem levantar a voz. Passo para a próxima folha. — Sarai é a minha prioridade. Foi inesperado, eu sei, mas não posso mudar o que ela fez. — Olho bem nos olhos dele, torcendo para que Niklas entenda e não discuta comigo. — Niklas, não vou abandonar nem prejudicar o que estamos fazendo aqui. O contrato de Edgar Velazco vai ser cumprido. Antes do prazo.
Ele suspira de novo e baixa os olhos por um momento. Depois tira um cigarro do maço na mesa diante dele. Pondo-o entre os lábios, ele o acende com um estalo do isqueiro.
Niklas sabe que não gosto quando ele fuma aqui dentro, mas acho que preciso dar uma folga ao meu irmão, considerando tudo o que ele fez por mim e por Sarai nos últimos meses.
— Sem querer desrespeitar você, irmão — começa Niklas, com a fumaça saindo de seus lábios —, mas o que vai fazer com ela? Você não pode levar uma vida dupla e sabe disso. E a gente não pode usar nossos recursos eternamente para fazer serviço de babá, não para alguém como ela, que não é fácil acompanhar. Ela é tão impulsiva quanto eu era com 23 anos.
Concordo com um aceno.
— Sim, nisso você tem razão. Ela é mais parecida com você do que eu gosto de admitir.
Niklas sorri e bate as cinzas do cigarro no cinzeirinho de plástico.
— Ah, vamos lá, irmão, eu não sou tão ruim assim, sou?
Não preciso responder a essa pergunta, e Niklas sabe.
Ele dá mais uma tragada rápida no cigarro e o deixa na borda do cinzeiro.
— Então o que você vai fazer?
Niklas relaxa as costas na cadeira novamente e entrelaça os dedos atrás da cabeça.
— Tem certeza de que quer saber a resposta?
Isso parece atiçar sua curiosidade.
— Porra, claro que quero. — Ele tira as mãos da nuca e se inclina para a frente, apoiando os braços no tampo da mesa, com ar preocupado. — O que você fez?
Espero um minuto e respondo:
— Enquanto estávamos na casa de Fredrik, depois de muitas súplicas, e das ameaças de Sarai sobre sua segurança, concordei em ajudar a treiná-la.
— O quê?
— Sim — confirmo, pois ele parece precisar disso. — Ela está determinada a matar Hamburg e Stephens com as próprias mãos. Eu poderia fazer isso, mas...
— Você deveria fazer isso, Victor.
— Não — retruco, balançando a cabeça. — Dei a ela minha palavra...
— E daí, caralho? — rebate Niklas. — Victor, isso é suicídio. Onde é que você estava com a cabeça?
Ele pega o cigarro de novo e dá um trago mais longo, como se estivesse precisando da nicotina para acalmar os nervos. Esticando o pescoço, ele solta uma fumaça espessa dos lábios.
— Já pensei nisso antes, bem antes que ela inventasse essa confusão com Hamburg, bem antes que ela me desse o ultimato. Eu a quero comigo, Niklas. Quero treiná-la. Acho que ela é capaz de conseguir. E ela se recusa a ser tratada como uma criança. Por qualquer um. Especialmente por mim.
— E se ela não conseguir? — Niklas olha para mim, com uma expressão sincera e preocupada. Preocupação comigo, não necessariamente com Sarai. — Victor, você está se metendo em uma vida de sofrimento. Apaixonar-se por alguém. — Ele ri com desprezo, embora mais de si mesmo, eu sei. — Eu já me apaixonei uma vez, você lembra, e veja como acabei. Como ela acabou. Ela acabou morta e eu, destruído por causa disso. — Ele balança a cabeça. — E preciso lembrar o que aconteceu quando Fredrik se apaixonou? Não, achei que não precisava mesmo.
Ele fica de pé e apaga o cigarro no cinzeiro.
— Sinto muito, Victor, mas acho que essa ideia é ruim pra caralho.
— Mas é a única ideia — digo, sem perder a calma. — E espero que você a respeite o suficiente para não termos uma repetição do incidente de Los Angeles.
Eu sabia que minhas palavras iriam incomodá-lo. Usar o incidente no qual ele atirou nela em um hotel, um incidente que ele considerava já superado. Niklas me encara com ressentimento e dor no olhar.
— Sério, irmão? — pergunta ele, descrente, apoiando as mãos na borda da mesa e se curvando para a frente. — Depois de tudo o que fiz nestes meses para ajudar a proteger essa garota? Depois que dei minha palavra de irmão, de sangue do seu sangue, de que nunca mais iria fazer nada para machucá-la? Se eu quisesse, já poderia ter matado Sarai mil vezes. Você sabe, Victor. Achei que a gente já tivesse superado isso.
Abaixo o olhar, deixando a culpa que sinto fazer o que quiser comigo. Niklas é leal a mim. Sempre foi. Quando atirou em Sarai em Los Angeles e tentou matá-la, foi só por causa de seu amor e lealdade a mim. Porque ele sabia que a forma como ela me afetou seria minha perdição, que eu acabaria morrendo por esse motivo. E, embora eu não justifique o que ele fez e jamais vá perdoá-lo por isso — e ele sabe —, entendo os motivos, de qualquer forma.
Em uma vida como a nossa, às vezes precisamos fazer coisas terríveis com quem amamos a fim de abrir um caminho para novos começos. Meu irmão, por mais insuportável que seja, não é exceção. Aliás, ele é um exemplo claro dessa regra.
E hoje as coisas estão diferentes. Ele não vai matar Sarai, mas não vai hesitar em matar por Sarai.
— Eu confio em você, Niklas. Espero que acredite nisso.
Ele assente devagar, aceitando minhas desculpas e parecendo absorto em pensamentos.
— Não estou pedindo que você prove isso, Victor. Mas tem uma coisa que precisa ser feita. Pelo bem do nosso negócio. Pelo bem da nossa vida. — Ele começa a andar de um lado para outro na frente da mesa.
— O que é? — pergunto, olhando-o da minha cadeira.
Ele para ao lado da mesa, cruza os braços e me encara com desconforto no rosto.
— Se Sarai vai se envolver nas nossas operações de qualquer maneira — começa ele, com cuidado —, você sabe que ela precisa passar pelo mesmo nível de testes que qualquer outra pessoa que trabalha para nós enfrentaria. Só porque você sente algo por ela não significa que essa regra deva mudar.
— O que você está sugerindo?
Sei exatamente do que ele está falando, mas o que quero saber, na verdade, é até onde ele quer ir com isso. Niklas não costuma fazer nada pela metade. Ele continua:
— Eu estou dizendo que sei que você não quer passar pelo que Fredrik passou com Seraphina. E sei que você não quer lidar com outra Samantha. A lealdade de Sarai a você precisa ser testada. Não digo isso como forma de me vingar dela nem porque quero que ela traia você para provar alguma coisa. — Ele ergue as mãos. — Só quero ter certeza de que a gente pode confiar nela, de que, se um dia ela for capturada, não vai ceder e entregar a gente.
— Eu confio nela. Sei que ela não me trairia. Confio nela.
Não importa quantas vezes eu diga essas palavras em voz alta ou na minha cabeça. Confio nela. Confio em Sarai. Confio nela. Sei que Niklas tem razão. Há muita coisa em jogo. Nossos negócios no mercado negro, nossa vida e a vida de muitas pessoas que trabalham para nós. E com Vonnegut e a Ordem atrás de mim, não posso me arriscar.
— O que você propõe? — pergunto, aceitando a verdade.
Niklas balança a cabeça, aliviado com a minha cooperação e compreensão.
Ele respira fundo e se prepara para explicar.
— Vou abordar Hamburg. Ganhar a confiança dele fingindo que estou vendendo você para ele. Ele vai acreditar que sou só um irmão que não perdoa e que foi incumbido pela minha própria Ordem de matar você, já que saiu da organização e traiu a nós todos. Tudo pelo amor de uma garota. Uma garota que, não é segredo, Hamburg agora quer ver morta mais do que nunca.
Concordo antes que ele termine de explicar, com uma imagem nítida da situação na minha mente. Niklas continua o raciocínio:
— Na hora certa, vou levar os homens de Hamburg até Sarai...
Niklas continua a explicar a trama para iniciar Sarai e ao mesmo tempo ter Hamburg e Stephens onde queremos que eles estejam.
— Mas não quero que ela se machuque. Se fizermos isso, você precisa me dar a sua palavra de que não vai deixar ninguém ir longe demais. Que você não vai longe demais. — Estreito o olhar para ele.
— Quanto ela aguenta? — pergunta Niklas.
— Ela aguenta muito. É forte. Mas, antes que isso aconteça, quero que ela treine o máximo que puder. Posso levá-la para Spencer e Jacquelyn, em Santa Fé. A experiência vai fortalecê-la um pouco mais. Deixe-me prepará-la o máximo possível no curto tempo que temos antes de começar essa história.
— Certo — concorda Niklas.
— Sabe que ela vai odiar você ainda mais quando tudo isso acabar.
Niklas assente.
— É, imagino que sim. Mas não me importa quanto ela me odeie. Não sou eu quem tem que dormir com ela. — Ele ri, baixinho. — É um risco que estou disposto a correr em nome de tudo. A verdadeira preocupação é: quanto ela vai odiar você, depois que tudo isso acabar.
Desvio o olhar e fito a parede.
— É um risco que eu também estou disposto a correr — digo, distraído.
— Talvez ela entenda — comenta Niklas, tentando acalmar os pensamentos preocupados que estampam meu rosto. — Se ela se juntar a nós, se vai se juntar a você, vai precisar saber como e quando separar a relação entre o trabalho de vocês e o relacionamento afetivo.
— Sim. Ela vai precisar aprender isso.
Ele bate de leve na mesa.
— E, se ela é tão forte quanto você diz, vai entender e superar.
Fico em silêncio.
— Então está combinado. Vou para Los Angeles à noite. Tenho mesmo uma reunião com Fredrik.
— Presumo que ele ainda não tenha falado nada a meu respeito para você.
— Não — confirma Niklas. — O cara é tão firme quanto um católico em um confessionário. Ele não vai trair você, Victor. Por que ainda tem medo de que ele faça isso? — Niklas pega o maço de cigarro e a chave do carro de cima da mesa. — Ele passou no seu teste há meses. Quanto tempo o prenderam naquela sala? Seis dias? Fredrik é leal. Ninguém dobra esse cara.
— Não tenho tanta certeza — digo, olhando para os veios da madeira da mesa. — Você parece esquecer qual é a especialidade de Fredrik. Ele tortura as pessoas com brutalidade e sente prazer nisso. Acho que se alguém pode passar por um interrogatório sem ceder, esse alguém é Fredrik Gustavsson.
Niklas me olha de lado.
— O que você está pensando? — pergunta ele, intrigado com meu raciocínio.
Olho para ele.
— Tenho mais um teste que preciso fazer com Fredrik. Se eu o deixar a sós com Sarai, ele vai acreditar que confio nele cem por cento. Vai parecer que eu abaixei a guarda. — Eu me levanto e vou até a estante, refletindo sobre o novo plano que acabo de elaborar. — Se ele entrar em contato com você e contar que está com Sarai, então saberemos que sua lealdade na verdade está com a Ordem. Sarai é a isca perfeita. Qual é a melhor maneira de permitir que Vonnegut me atraia do que usar a garota pela qual eu...
Ficamos em silêncio. Sinto o olhar inquisidor de Niklas nas minhas costas.
— A garota pela qual você está se apaixonando?
Faço uma pausa.
— Sim...
CAPÍTULO VINTE E OITO
Sarai
Não falo com Victor há horas. Três, pelo menos. Deixei que ele me despisse, me desse banho e cuidasse dos meus ferimentos. Eu o ouvi “se explicar”, mas de uma maneira que só alguém tão travado para relacionamentos quanto Victor Faust poderia fazer. Não implorou para que eu falasse com ele, para que acabasse com o gelo. Ele só falou. Tão calmo quanto em qualquer outra conversa que já teve comigo, embora dessa vez o papo tenha sido bem unilateral. Mas detectei a preocupação em sua voz, ainda que ele a tenha disfarçado bem. Senti, quando me tocou enquanto escovava meu cabelo e limpava a sujeira das feridas nas minhas costas, que ele queria me tocar com mais carinho. Queria me puxar para perto e me abraçar. Mas eu sabia que ele não queria passar dos limites.
E foi esperto em não passar, porque levaria um soco na cara.
Ao anoitecer, embora exausta e ainda dolorida da cabeça aos pés, estou bem o suficiente para andar pela casa sozinha, mas com cuidado, porque minhas costas estão bem detonadas. Victor me deixou sozinha no quarto da casa em Albuquerque. Eu precisava de um tempo para pensar em tudo o que aconteceu, pelo que ele e Niklas me fizeram passar. Precisava de tempo para refletir sobre os motivos de Victor. Eu estava cagando e andando para os motivos de Niklas ou para o papel que ele teve naquilo. Niklas não merece meu tempo, muito menos meus pensamentos. Victor, por outro lado... Parte de mim quer se sentir traída, como se essa fosse a reação normal. Sinto que deveria me encolher no chão e chorar, esmurrar as paredes, chafurdar na autopiedade, também apenas porque essa tende a ser a reação esperada. Mas não sou assim. E não sou normal. E nada na minha vida ou na vida de Victor chega perto de ser normal.
Sei que Victor está se perguntando o que estou pensando. Ele se preocupa com o tamanho da raiva que sinto dele, se ela é tão profunda que eu nunca mais vou conseguir perdoá-lo. Sei que ele deve estar convencido de que meu silêncio é a única resposta que vou lhe dar.
Mas ele está enganado.
Ele entra no quarto para pegar algo em sua maleta, e eu o intercepto.
— Foi ideia de Niklas? — pergunto, da cama.
Torço muito para que tenha sido.
Victor para diante da porta, de costas para mim. Em vez de abrir por completo, ele a fecha. Deixando a pasta preta que tirou da maleta na cômoda alta perto da porta, ele se aproxima de mim. Sua camisa preta está para fora da calça. As mangas compridas estão arregaçadas até os cotovelos, expondo a virilidade de seus antebraços e a força de suas mãos.
Desencosto os ombros da cabeceira e me sento na beirada da cama, pondo os pés no chão. Estou usando uma blusinha vermelha folgada e fina que não adere muito às minhas costas e um short de ginástica.
— Sim, tecnicamente, foi.
— Tecnicamente? — pergunto, franzindo o cenho.
Ele se senta ao meu lado, com os braços sobre as pernas e as mãos nos joelhos.
— Ninguém está isento dos testes. Niklas apenas teve que me lembrar disso, no seu caso. É uma questão de confiança...
— Você já não confiava em mim?
— Sim, confiava — assume ele, olhando para a frente. — Mas o que fizemos você passar era necessário, Sarai. Você queria fazer parte. Eu queria que você fizesse parte. Para isso acontecer, teria que ser feito de acordo com as regras, ou sempre haveria um conflito com os outros membros. Meu juízo seria sempre questionado. Você estaria sempre sob suspeita. Ninguém está isento. Fredrik não estava. Aquele homem nos fundos do restaurante de Hamburg, que ajudou você a fugir. O homem que leva a sra. Gregory para os nossos abrigos.
— E Amelia? Ela não sabia nada sobre o que você e Fredrik fazem, pelo que você me contou. Ou isso também era mentira? Ela foi espancada como eu fui?
— Não — responde ele, olhando para mim. — Não era mentira. E, não, ela não passou por nada do que você passou. Testamos de outras maneiras a confiabilidade de Amelia e de outros como ela, aqueles que não sabem nada sobre o que fazemos. Mas, para aqueles que estão por dentro, que sabem tanto quanto você sabe sobre nós, os testes são mais... extensivos.
Desvio o olhar.
— Você mandou Stephens para a casa de Amelia? — pergunto, baixinho.
— Não — responde Victor, e me viro para encará-lo à minha esquerda, desconfiada.
— Então como eles sabiam sobre ela? Como sabiam que Dina esteve lá? — A raiva aumenta na minha voz. — Você pôs Dina em risco? Por favor, diga a verdade!
Victor balança a cabeça antes mesmo que eu termine de perguntar.
— É verdade. Talvez a gente nunca saiba ao certo como Stephens descobriu sobre Amelia, ou que a sra. Gregory estava escondida lá. Quem poderia responder a essa pergunta agora está morto. Mas posso garantir que nem eu nem Niklas nem mesmo Fredrik tivemos qualquer coisa a ver com isso. Podem ter acontecido várias coisas, Sarai. A sra. Gregory pode ter entrado em contato com algum parente em algum momento. — Ele gesticula ao falar. — Pode ter acessado sua conta bancária, revelando sua localização.
— Stephens poderia ter me matado — digo, com amargura, pulando de um assunto para outro. — Ele queria tanto me matar que teria atirado em mim, se Niklas não tivesse atirado nele primeiro. E se ele tivesse me matado dias antes? E se Stephens tivesse me espancado até a morte? — Meu peito sobe e desce enquanto tento conter minha raiva.
Victor suspira e olha para as mãos, passando os dedos da direita nas costas da esquerda, constrangido.
— Sinto muito por isso — diz ele, arrependido, e então ergue os olhos devagar. — Sim, era possível que Stephens matasse você, não nego, mas eu sabia que Niklas faria de tudo para que isso não acontecesse.
Rio com descrença e desdém.
— Niklas? — pergunto, incrédula. — O mesmo que atirou em mim? Você está me dizendo que botou fé em alguém que me quer morta desde a primeira vez que me viu? — Começo a levantar a voz, e Victor passa a demonstrar sinais de constrangimento.
— Talvez eu nunca consiga fazer você entender — reflete ele, ainda controlado. — Mas sei que Niklas nunca vai machucá-la. Nós dois passamos por muita coisa desde que saí da Ordem. Chegamos a um entendimento. Ele aceita você...
— Eu não preciso que ele me aceite! — Fico de pé em um salto e o encaro de cima, com os punhos cerrados. — Niklas é a última pessoa da Terra de quem necessito qualquer tipo de aprovação! Ele tentou me matar!
Ergo os punhos cerrados diante de mim e prendo a respiração, rangendo os dentes. Meu corpo enrijece, crispado de ressentimento.
Victor fica de pé e segura meus ombros. Hesitante, expiro e me acalmo, mas não consigo olhá-lo nos olhos. A sensação é a mesma de antes, quando queria me sentir traída porque seria a reação normal. Agora, quero odiá-lo pelo mesmo motivo. Mas não odeio. Posso não entender por que ele foi confiar minha vida logo a Niklas, mas acho que o único motivo de não entender é porque não quero. Quero sentir raiva. Quero ser inflexível. Porque é mais fácil do que aceitar a verdade impensável: a de que Niklas merece uma chance. Porque, se eu fosse ele e estivesse tentando proteger meu irmão da Ordem, provavelmente teria atirado em mim também.
Victor afasta o cabelo do meu rosto, prendendo-o atrás das orelhas. Ele me olha por um momento como se estivesse evocando uma lembrança que tenho certeza de que me envolve de alguma forma. Como poderia não envolver? Essa expressão pensativa e encantada de seus olhos verde-azulados, o modo como ele fez questão de tocar meu rosto ao afastar meu cabelo. Quero gritar a plenos pulmões com ele, mas só consigo ficar ali e observar aqueles lindos olhos sombrios me examinando.
Ele olha para o quarto ao redor.
— Na noite em que encontrei você no meu carro — diz ele, sem olhar para mim —, na mesma hora a vi como uma ameaça. Eu queria me livrar de você. Rápido. Levar você de volta para a fortaleza, abandoná-la na estrada. Eu queria muito matar você.
Como já sabia de tudo isso, não fico surpresa, mas continuo curiosa para saber por que ele está tocando nesse assunto agora. Fico em silêncio, cruzo os braços e faço uma cara de dor quando o movimento repuxa a pele das costas.
— Eu poderia, e muitas vezes pensei que deveria ter matado você — continua Victor. — Tive todas as oportunidades. Mas não consegui.
— Você precisava de mim. Como moeda de troca. Talvez, se eu não tivesse dado essa ideia, avisado sobre o modo como Javier negociava, você tivesse me matado.
— Não — responde ele, em voz baixa, balançando a cabeça de leve. Então sinto seu olhar em mim e me viro. — Eu não precisava usar você como moeda de troca, Sarai. Sabia, quando saí daquele encontro com Javier Ruiz, que, quando eu contasse da recompensa que Ruiz me oferecera para matar Guzmán, no fim só seria contratado para matar Ruiz. Porque a oferta de Guzmán era mais alta do que a dele. Receber ou não a outra metade do dinheiro de Ruiz era irrelevante. Eu não precisava usar você como moeda de troca, afinal.
— Não entendo aonde você está querendo chegar — digo, e é verdade.
Victor inspira e desvia os olhos novamente.
— Naquela manhã, quando Izel estava vindo buscar você naquele hotel, antes de você acordar, minha intenção era lhe entregar para ela. Cheguei até a contar a eles onde a gente estava. Mas quando você acordou... — Ele para no meio da frase e ergue os olhos para o teto, soltando o ar dos pulmões mais uma vez, concentrado. Então Victor baixa o queixo e me olha nos olhos. — Se você não tivesse acordado, ainda estaria com Javier Ruiz, neste momento.
Com os braços cruzados, dou alguns passos na direção dele e inclino a cabeça para o lado, pensativa.
— O que você está dizendo? Eu estou aqui com você agora porque acordei antes de Izel chegar? Não entendi.
— Eu não consegui. Foi como atirar em um inocente, qualquer um que tem consciência não consegue fazer isso olhando nos olhos da pessoa. Quando você acordou, eu não consegui entregá-la.
Ainda não tenho certeza do que Victor está tentando dizer, mas sei que não foi por causa de algo ridículo como amor à primeira vista. Contudo, ao estudar seu olhar perturbado, entendo aos poucos que ele está aprendendo algo extraordinário a respeito de si próprio. Deixo que ele fale, pois parece que Victor precisa pôr aquilo para fora, exteriorizar para talvez se entender por completo.
— Batalhei a cada passo do caminho enquanto você estava comigo, dizendo a mim mesmo que precisava me livrar de você. Você era uma ameaça para mim, para o meu emprego, para a minha vida, e mais tarde ameaçou minha relação com meu irmão. Eu soube disso assim que a vi pelo retrovisor, quando você estava apontando a arma para a minha nuca, com aquela cara desesperada e assustada. Você ameaçava tudo. Mas, pela primeira vez na vida, fui contra tudo o que eu era: um assassino treinado com uma consciência reprimida... — Seu rosto endurece e ele se aproxima de mim. — Eu poderia ter abandonado você há muito tempo, mas não abandonei. Não queria abandonar então, e não quero abandonar agora.
Um calafrio percorre meus braços quando Victor esfrega as mãos neles, para baixo e para cima.
— Sinto muito por tudo o que você passou — diz ele, baixinho. — Quero que você fique, mais do que tudo, mas, se não quiser ter mais nada a ver comigo, eu vou entender. — Ele pressiona os lábios no alto da minha cabeça e vai até a porta, pegando a pasta preta do gaveteiro.
— Victor? — chamo, baixinho, antes que ele toque a maçaneta.
Ele olha para trás.
Começo a dizer “Fico feliz que você não tenha me abandonado”, mas paro e engulo as palavras. Por mais que eu queira revelar que aquela história me tocou, que não consigo imaginar a vida sem ele, ainda estou furiosa pelo que ele fez comigo, e não posso desculpá-lo. Ainda não. Não com tanta facilidade assim.
— Era só isso? — pergunto, no lugar do que ia dizer. — O teste que eu fiz? Foi o último? Foi a única vez que vou ter que passar por algo assim? Preciso ser sincera, não quero acordar todo dia achando que vou ser sequestrada, espancada ou afogada. Não quero não confiar em você...
Ele põe a mão na maçaneta e a vira. A porta se abre.
Olhando para trás, ele diz:
— Não, tem só mais uma coisa.
Meu coração endurece como uma pedra quente. Por essa eu não esperava.
— O maior teste é saber se você consegue ou não trabalhar com meu irmão — diz Victor. — Mas pode confiar em mim. E pode confiar em Niklas. Você nunca mais vai passar por nada assim.
Ele faz uma pausa e completa:
— Espero que você fique.
Então sai do quarto, fechando a porta.
Algum tempo passa, e fico sozinha para pensar em tudo. Sei que neste momento, não ontem nem no dia em que fugi da fortaleza no carro de Victor, mas neste momento é que o resto da minha vida está começando.
E sei que só há uma escolha certa.
Saio do quarto e vou encontrar Victor, Fredrik e Niklas na sala. Eles estão falando que Fredrik não sabia de nada e que passou em todos os testes de Victor e Niklas. Fico escutando sobretudo os comentários de Fredrik e Niklas, pois Victor parece mais calado do que de costume.
Os três me olham quando entro na sala, interrompendo a conversa no meio de uma frase.
— Ah, aí está ela — comenta Fredrik, com um sorriso largo e lindo. Ele me chama com um gesto. — Vem sentar com a gente. Estávamos discutindo qual o próximo passo para nós quatro. — Percebo que Fredrik não tem tanta certeza da minha decisão quanto finge que tem.
Niklas apenas acena com a cabeça para mim.
Victor fica de pé e estende a mão, oferecendo o lugar ao lado dele para eu me sentar.
— Antes, preciso dizer uma coisa.
Ele põe as mãos atrás das costas e dá um passo para o lado, esperando pacientemente.
Olho para os três, um por um, e paro em Victor.
— Se eu vou ficar aqui, há algumas coisas que preciso deixar bem claras.
Um lampejo de esperança passa pelos olhos verde-azulados de Victor.
Olho para Fredrik e Niklas de novo e continuo, falando com todos:
— Eu faço o que eu bem entender. Vou seguir as ordens de Victor como vocês dois seguem, vou treinar até sangrar e não conseguir andar direito. Conheço o meu lugar. Mas não porque sou mulher ou mais jovem do que vocês. Nem porque vocês acham que vou me “machucar” — continuo, fazendo aspas com os dedos. — É claro que vou me machucar, mas não preciso de nenhum de vocês... — meus olhos pousam em Victor de novo — correndo para pegar uma porra de um curativo cada vez que eu cair.
Fredrik ri baixinho.
— Ei, nada contra isso — afirma ele, erguendo as mãos e deixando-as cair nos joelhos.
Olho para Niklas. No entanto, não demonstro nenhuma emoção enquanto o encaro. Acho que ainda não tenho certeza de quais deveriam ser essas emoções.
Ele abre um sorrisinho, embora eu saiba que é completamente inocente.
— Acho que você sabe que eu não vou correr para ajudar cada vez que você cair.
Só reviro os olhos e encaro Victor.
— Sarai... — começa Victor, mas levanto o dedo indicador para ele.
— Isso é outra coisa. Sarai Cohen morreu há muito tempo. Ela morreu quando eu tinha 14 anos e passei a primeira noite naquela fortaleza no México. — Baixo a mão e olho para cada um deles. — Quero ser chamada de agora em diante de Izabel Seyfried.
Todos se entreolham e depois balançam a cabeça, me observando.
— Izabel? — pergunta Victor, continuando de onde o interrompi.
Eu o olho nos olhos.
— Vou entender se você jamais me perdoar, mas...
— Você me perdoaria se fosse o contrário? — pergunto, tentando usar um argumento que ele entende na hora. — Victor, você fez o que precisava fazer, como na noite em que manipulei você para... — Paro de falar antes de revelar demais sobre nossa relação para Niklas e Fredrik. Mas percebo, pela expressão de compreensão nos olhos de Victor, que ele sabe a que me refiro.
— Mas isso está longe de ser a mesma coisa.
— Não importa. Quero dizer, só para constar, bem na frente do Bonitão e do Advogado do Diabo, que o inferno que eu enfrentei não só é perdoável, mas também foi totalmente necessário. Eu sei no que estou envolvida. Nós matamos gente, alguns de nós para ganhar a vida, outros por vingança. Não estou trabalhando em um banco. Muito mais do que uma pesquisa de antecedentes e uma análise de crédito precisa ser levado em conta, se vou fazer parte desse esquema. E, para ser sincera, eu me sinto muito mais segura perto de todos vocês, sabendo que são capazes de chegar a extremos assim para ter certeza de que todo mundo nesta sala é confiável. Que qualquer um que se juntar a nós mais tarde vai passar pelo mesmo inferno.
Meus olhos pousam em Victor mais uma vez.
— Não tem nada para perdoar — repito, e a expressão dele se abranda.
Niklas se levanta da poltrona de couro.
— Sar... Izabel — corrige-se ele, aproximando-se de mim. — Olha, preciso dizer uma coisa. Sinto muito por atirar em você em Los Angeles. De verdade. Nunca mais vou tentar machucar você.
— Acredito em você — digo, e, pelas expressões no rosto de cada um, ninguém esperava isso. — Acho que posso afirmar com segurança que vai ser difícil para mim até ficar na mesma sala que você, Niklas. Neste momento, por exemplo, não estou gostando. Sinceramente, eu preferia nem ter que ver muito a sua cara. Acho você um babaca, um doido psicopata que deveria estar em um manicômio judiciário. Nunca vou gostar de você e duvido que um dia eu tenha algum respeito pela sua pessoa. Mas você é irmão do Victor, e quando implorei para ele não matar você foi por um motivo, e não me arrependo. Mas nunca vou gostar de você e estou avisando para não cruzar a porra do meu caminho.
Ele levanta as mãos em um gesto de rendição e dá um passo para trás.
— Ok, ok, entendi. Não cruzar o seu caminho. — Ele ri baixo.
É mais teatro do que qualquer outra coisa. Sei que ele ainda tem problemas comigo (é tão teimoso quanto eu), mas por amor a Victor vai me tolerar tanto quanto eu a ele. Desprezo aquela expressão sempre pretensiosa no rosto dele. Desprezo a sua autoconfiança e arrogância e prevejo que Niklas e eu vamos bater de frente muitas vezes. Mas, por Victor, vou aguentar.
Niklas vira de costas para mim e se dirige à poltrona.
— Niklas — chamo.
Ele para e me olha. Eu me aproximo.
— Só tem mais uma coisa que quero dizer.
— Pois não?
Ele se vira e me olha com curiosidade, esperando. Quando ele está ao alcance do meu braço, levanto o punho e o golpeio na lateral do rosto, bem na altura do maxilar. A força do soco causa um tremor doloroso na minha mão. Tento aliviar a dor abrindo e fechando os dedos, mas ela só piora.
— Aaaaiii, caralho! Qual é o seu problema, porra? — Niklas põe a mão no canto da boca. — Tudo bem. Entendi. Eu atirei em você e agora estamos quites. Eu mereci. — Com a mão ainda sobre a boca, como se estivesse tentando colocar o queixo no lugar, ele termina o caminho até a poltrona e se joga sobre ela.
— Isso não foi porque você atirou em mim — retruco, ríspida. — Foi por matar Stephens. Ele era meu. — Aponto para ele. — E o único jeito de estarmos quites por você ter atirado em mim é se eu atirar em você. Por isso, como já falei, não cruze o meu caminho.
Niklas olha para Victor, de pé atrás de mim, como quem diz: Essa garota existe? Victor não diz nada, mas quando olho para ele por um instante noto que está sorrindo.
Fredrik está jogado no sofá, com os braços no encosto e um enorme sorriso.
No fim, seguro a mão de Victor e aceito me sentar. Estou dolorida demais para ficar de pé sozinha por muito tempo. Ele me leva até o sofá e me ajuda a sentar nas almofadas macias, segurando minha mão até eu me ajeitar. E então se senta ao meu lado.
Fredrik se curva e olha para mim do outro lado de Victor, com seu sorriso sombrio e encantador intacto.
— Fico feliz que tenha se juntado a nós. Claro que ainda vai ter que treinar muito, de acordo com Faust. — Ele aponta para Victor. — Mas algo me diz que você tem um talento natural. — Ele dá uma piscadinha. — Teimosa. Imprudente. Desbocada. Nada delicada. Mas acho que eu não ia gostar muito de você se não fosse todas essas coisas.
— Obrigada, Fredrik — digo com sinceridade e um sorrisinho irônico.
Niklas relaxa na poltrona, apoiando seu coturno preto no joelho. Não sei por quê, mas reparo nesse detalhe. Coturnos? Eu o olho de alto a baixo. Jeans escuro. Camiseta cinza que contorna seus bíceps. Cabelo desgrenhado.
Meus olhos vão e vêm entre ele e Victor, sempre sofisticado, e não consigo deixar de me perguntar se não estou deixando passar algo importante. Olho para Fredrik do lado direito de Victor, e, como Victor, Fredrik está usando as roupas de sempre, sapatos e um terno refinado.
— Por que ele está vestido assim? — pergunto para Victor, indicando Niklas com um aceno da cabeça.
Victor olha por um instante, mas é Niklas quem responde.
— Porque prefiro isto a usar esses ternos ridículos. E, como não estou mais na Ordem, acho que posso me vestir do jeito que eu quiser.
Surpresa, volto a olhar para Victor sem mexer a cabeça.
Victor assente algumas vezes, confirmando o que Niklas disse.
— Ele saiu há alguns dias. Fredrik é o único que continua lá dentro.
— Mas... por quê? Isto é, não seria melhor que Niklas continuasse de olho em Vonnegut, sobretudo no que se refere a você?
— Saí porque precisei — conta Niklas. — Eu estava demorando demais para matar Victor.
— E, como era de esperar — acrescenta Victor —, Vonnegut estava começando a questionar a lealdade de Niklas. Vonnegut pode não saber que Niklas e eu somos irmãos, mas nós tivemos uma relação muito próxima de trabalho por muitos anos. Estava demorando muito e ficando arriscado demais.
Solto um suspiro preocupado e tento me reclinar no sofá, até me lembrar das minhas costas.
Olho para Fredrik.
— E você? A Ordem sabe da sua relação com Victor? Ou com Niklas, aliás?
Fredrik sorri para Victor.
— Viu? Ela já entrou de cabeça no trabalho — observa ele, com uma risadinha, e então volta a olhar para mim. — A Ordem sabe que trabalhei com Victor algumas vezes no passado, mas não mais do que qualquer outra pessoa com quem ele já trabalhou. Quanto ao irmão dele, quando Victor saiu da organização, eu fui abordado por Niklas para ajudar a encontrá-lo, agora todos sabemos disso. Eu achava que Niklas seria meu superior depois desse episódio.
— Mas Vonnegut nunca soube do meu envolvimento com Fredrik — intervém Niklas.
— Então, por enquanto — acrescenta Victor —, Fredrik está seguro na Ordem.
— E represento os únicos olhos e ouvidos deles lá dentro — intervém Fredrik.
— Uau — comento, balançando a cabeça, tentando absorver tudo isso e o que significa para nós.
— Está ficando com medo? — pergunta Niklas, abrindo um sorriso.
— Nem um pouco — respondo, sorrindo também. — Só estou tentando decidir qual serviço é mais urgente, a fortaleza no México ou eliminar a Ordem para eles pararem de caçar a gente.
Niklas sorri e parece que, ao perceber o que fez, desvia o olhar de mim.
— Acho que estou apaixonado pela sua mulher — diz Fredrik para Victor, brincando.
— Por algum motivo, duvido que você seja capaz disso — rebate Victor, despreocupado.
Ele olha para mim.
— Eu sei qual serviço é mais urgente. — Ele dá um sorrisinho e segura a minha mão.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
Izabel
Poucos convidados circulam no corredor, e seus passos são fracos. Saltos altos. Sapatos elegantes. Vozes ricas fingindo estar intrigadas, dramatizando demais as coisas insignificantes da vida. Risadas artificiais. Música clássica — Bach, acho — vem do andar de baixo, tão nítida, elegante e sofisticada que me sinto em uma festa para a rainha da Inglaterra, e não sentada em um quarto escuro, com meu punhal favorito na mão. Eu o chamo de Pérola.
O cheiro deste quarto é o mesmo da última vez em que estive aqui: colônia demais, suor, pot-pourri velho e lencinhos umedecidos. Uma pesada mesa quadrada de mármore está do outro lado do quarto. Eu me lembro dessa mesa. Nunca vou esquecer o modo como Victor me curvou sobre ela, ou o porco nojento que ficou olhando quando minha calcinha desceu até os tornozelos.
Está escuro lá fora, passou das nove da noite, e o luar que entra pela varanda atrás de mim inunda a maior parte do quarto. Fiz questão de deixar as portas abertas para sentir o ar noturno na pele. Está muito quente com estas roupas apertadas. Preto do pescoço para baixo. Botas, parecidas com as de Niklas, só que as minhas têm facas escondidas no couro. Uma arma está acomodada em um coldre na minha cintura, mas só está ali para o caso de eu precisar. Gosto do meu punhal.
Eu me sento em uma cadeira no centro do quarto espaçoso, fora da suave luz acinzentada que vem da varanda. Minha perna direita está cruzada sobre a esquerda. Minhas mãos repousam no colo, o cabo de pérola do meu punhal encaixado com firmeza na mão. Bato a fina lâmina de prata na minha coxa.
Já se passaram 26 minutos desde que me sentei. Mas sou paciente. Disciplinada. Tanto quanto consigo ser, acho. Prometi a Victor que esperaria. Que ficaria sentada aqui, praticamente imóvel, até a hora certa. Eu disse que conseguiria, que aguentaria sem correr para o andar de baixo e resolver o assunto ali. E pretendo provar. Embora admita que é difícil.
Olho para Niklas, de pé em uma sombra perto das portas da varanda, com as mãos entrelaçadas. Ele sorri para mim, achando graça da minha crescente frustração. Sorrio de volta e olho para a porta do outro lado do quarto.
Trinta e dois minutos.
Ouço as vozes dos dois seguranças sempre postados do lado de fora do quarto. Eles estão falando com Arthur Hamburg.
Segundos depois, a porta se abre e um clarão vindo do corredor inunda o quarto, mas não me alcança. E, com a mesma rapidez, a luz some quando o segurança fecha a porta depois que Hamburg entra. Ele não me nota ao passar pela grande cama e pela mesa de mármore.
— O que você achou do cabelo? — pergunto.
Hamburg fica imóvel na hora.
Eu me inclino para a frente na cadeira, entrando no alcance da luz.
— Preto retinto — digo, despreocupada. — Ainda me acha deslumbrante com qualquer peruca? — Uso a mão livre para tocar o penteado e exibi-lo.
As luzes do quarto se acendem quando Hamburg diz: Acender luzes.
— Como você entrou aqui? — pergunta ele, desesperado, seu olhar correndo pelo quarto em busca da resposta e de qualquer sinal de mais alguém.
Quando Hamburg nota Niklas e Victor de pé perto da entrada da varanda, atrás de mim, com as armas nas mãos ao lado do corpo, ele chama os guarda-costas. Mas então uma forte pancada é ouvida do lado de fora. E depois outra. Hamburg para a centímetros da entrada, sem saber mais se é seguro abri-la.
Ele me olha de novo.
Sorrio e bato com a lâmina na minha perna mais uma vez.
A porta atrás dele se abre, e Fredrik está de pé ali, segurando dois colarinhos brancos. Ele arrasta os corpos dos seguranças pelo chão de mármore e os larga. As cabeças batem ruidosamente no mármore.
Hamburg olha para Fredrik, de olhos arregalados como um peixe, seu corpo balofo imóvel, seus dedos roliços mal se mexendo sobre a calça, nervosos, como se ele estivesse procurando por uma arma que costuma carregar e não quisesse acreditar que não está com ela quando mais é necessária.
Fredrik fecha e tranca a porta. Ele vai até os corpos, pegando-os pelos colarinhos de novo e arrastando-os pelo quarto. Não há sinal de sangue neles. Ele deve ter usado sua arma favorita, uma seringa cheia de algo letal e que não deixa vestígios.
Olho para Hamburg.
— S-sim... você fica bem de cabelo preto — afirma ele, agitado. — P-por que estão aqui? Willem está desaparecido. Eu-eu não sei onde ele está. Juro. Não o vi nem tenho notícias dele há mais de uma semana.
Sorrio e inclino a cabeça para o lado.
— É porque ele está morto — digo, sem rodeios.
Hamburg olha para Victor atrás de mim. E para Niklas. Depois para Victor de novo.
— Olhem, eu-eu disse a ele para esquecer o assunto — diz Hamburg, ainda gaguejando. — Não fui eu que mandei. Fa-falei para não procurar nenhum de vocês.
O suor brota em seu rosto rechonchudo, brilhando no queixo duplo. As axilas de sua camisa branca estão empapadas, a umidade se espalhando depressa pelo tecido. O colarinho da camisa muda de cor ao absorver o líquido como uma toalha de papel barata.
Fico de pé.
— Você é um mentiroso. — Ando devagar na direção dele. — Mas não importa. Não estou aqui por causa de Willem Stephens. Estou aqui por sua causa.
Hamburg anda para trás conforme me aproximo, seu rosto inchado e enrugado contorcido de pavor, suas mãos grossas tateando atrás de si, procurando a porta ou uma parede.
Fredrik fica na frente da porta, bloqueando o caminho de Hamburg, que para. Vejo sua garganta se mover quando ele engole em seco. O medo em seus olhos é cada vez maior.
Ele continua olhando para Victor e Niklas atrás de mim, sempre concentrando sua atenção em Victor por último.
Victor se afasta da varanda e vem para o meu lado.
— Olhem aqui, eu cumpri minha promessa, cacete! — grita Hamburg, aprofundando as rugas ao redor dos olhos. Ele aponta um dedo gordo para nós, adornado por um grosso anel de ouro. — Nunca fui atrás de nenhum de vocês depois que mataram minha esposa! Cumpri minha promessa! — Ele aponta para mim. — Foi você que veio atrás de mim! V-você começou tudo isso!
Balanço a cabeça e sorrio para ele, rindo do desespero e do medo. Só isso já me dá alguma satisfação, vê-lo se retorcer, ver o modo como está implorando por sua vida sem fazê-lo de forma explícita.
Eu me aproximo mais um pouco.
Hamburg não se mexe porque não consegue. Fredrik está atrás dele.
— Ah, isso não tem nada a ver comigo — diz Victor para Hamburg. — Eu cumpri minha promessa. Nunca fui atrás de você. Izabel, por outro lado... — Victor está provocando, do jeito relaxado que é sua marca registrada. — Bom, você não fez nenhum acordo com ela, para a sua infelicidade. E eu não sou o dono dela. Nunca fui. Ela está aqui por vontade própria, e não há nada que eu possa fazer a respeito.
Hamburg olha diretamente para mim, a raiva em seu rosto se transformando em algo mais patético.
— P-por favor... eu faço o que você quiser. Dou o que você quiser. Meu dinheiro. Minha casa. É só pedir, é tudo seu. Eu tenho milhões.
Chego perto dele e sinto o cheiro fétido de seu suor. Ele me olha nos olhos, com uma expressão cheia de ódio e horror. Seu corpanzil treme a centímetros do meu, e sei que, se ele achasse que poderia sair impune, me agarraria agora e me estrangularia até a morte.
De repente sua expressão muda, combinando melhor com as palavras ríspidas:
— Você não vai fazer isso — provoca ele, desdenhando de mim com frieza e me encarando. — Não é capaz de matar a sangue-frio. Você matou meu segurança em legítima defesa. Não vai me matar. Não assim. — Há humor em seus olhos.
Fico alerta diante dele, com o indicador apoiado na lâmina do meu punhal, encostado na minha perna. Não digo nada. Só o observo, com um sorriso tênue, mas óbvio, achando graça de suas tentativas inúteis de salvar a própria vida.
Ele dá um passo para a esquerda e começa a se afastar. Eu deixo.
— Vou servir uma bebida para vocês — diz ele, levantando um dedo. Ele tira o paletó gigante e o coloca nas costas da poltrona de couro perto da mesa de mármore. Então começa a desabotoar a camisa.
Chego por trás dele como um fantasma, passando a lâmina em sua garganta antes que ele consiga tirar os dedos do último botão. Um som arrepiante de gargarejo se espalha pelo quarto, seguido por Hamburg se engasgando com o próprio sangue. Ele ergue as mãos como se estivesse tentando escapar de um saco plástico. O vermelho espirra da lateral do seu pescoço, e ele cai de joelhos pressionando o corte com as mãos. O sangue escorre por entre todos os dedos e empapa sua camisa.
Eu o observo. Não com horror, arrependimento ou tristeza, mas com um sentimento de vingança. Meus olhos parecem se abrir ainda mais, atingidos pela brisa que vem da varanda. Não consigo parar de olhar. Não consigo virar a cabeça. Mas posso sentir os olhos de Victor, Fredrik e Niklas em mim, observando como me regozijo no momento do meu primeiro assassinato oficial a sangue-frio.
Hamburg engasga e chora, lágrimas caindo, enquanto vou para diante dele e me agacho. Eu o examino, o modo como seu rosto se contorce, o modo como o vermelho do sangue faz contraste com o branco da camisa. Vejo o terror em seus olhos, o medo do desconhecido tomando conta dele bem depressa.
Um sorrisinho aparece no canto da minha boca.
Hamburg cai para a frente no chão, seu corpo pesado tremendo e estremecendo só por alguns momentos antes de ficar imóvel. Ele jaz com a bochecha encostada no piso de mármore, a boca aberta, assim como os olhos. Eles olham para o nada, estão cheios de nada. O sangue empoça ao redor da cabeça e do peito, encharcando as roupas.
Ainda agachada diante dele, me apoio nas pontas dos pés e me aproximo do corpo, com os antebraços apoiados nas pernas.
— É isso que aquelas pessoas que você matou estranguladas sentiram — sussurro para o cadáver de Hamburg.
Fico de pé e dou um passo para trás, antes que o sangue empoçando no chão chegue à minha bota. Um por um, olho para Fredrik, Niklas e depois Victor, e todos manifestam a mesma aprovação silenciosa. Mas é nos olhos de Victor que vejo muito mais. Um elo eterno entre nós, criado não por este momento, mas por aquela noite em que nossos caminhos se cruzaram no México. Jogados um na vida do outro por um capricho do destino e mantidos unidos pelas nossas raras semelhanças e nossa necessidade de ficarmos juntos.
Somos um só.
CAPÍTULO TRINTA
Izabel
Um ano depois...
Victor entra no banheiro da nossa casa em Nova York e me encontra relaxando em um banho de espuma. Despreocupada, eu o vejo tirar a arma da parte de trás da calça e deixá-la na bancada. Meu cabelo está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado. Estou deitada na banheira com os braços estendidos nas laterais, um joelho fora da água, parcialmente coberto pela espuma. Foi um dia cheio. Matei John Lansen, presidente da Balfour Enterprises e estuprador de primeira linha, e ainda tenho o sangue dele debaixo das unhas.
Fecho os olhos e relaxo.
— Onde você estava? — pergunto para Victor, sem levantar a nuca da banheira.
— Limpando a sua sujeira — responde ele, calmo.
Compelida a olhá-lo depois dessa acusação, abro os olhos novamente e o vejo de pé ao meu lado.
— Como assim? Foi um serviço limpo.
Ele ergue uma sobrancelha e olha para as minhas mãos.
— É mesmo? — pergunta ele, em tom acusatório. — Limpo significa sem sangue. Sem digitais. Sem deixar nada para trás, nem o seu cheiro.
Suspiro e fecho os olhos.
— Victor — digo, fazendo gestos dramáticos por cima da borda da banheira. — Eu não deixei nada para trás. Limpei tudo depois. Não ficou nada. Pergunta para o Fredrik. Ele estava lá. Verificou tudo depois.
Sinto o corpo de Victor mais perto quando ele se senta na borda da banheira.
— Mas quais são as ordens que eu dei, Izabel? — questiona ele, com tanta calma quanto antes. — Antes de começar essa missão com Fredrik, o que eu pedi?
— Nada de sangue — respondo, ainda de olhos fechados. — Envenene o cara, para parecer um ataque cardíaco.
Abro os olhos de novo e encontro seu olhar dominador, o verde de seus olhos mais escuro do que de costume.
— Veneno é o lance do Fredrik, não o meu.
— Você desafiou minhas ordens. E vai ser a última vez.
Sorrio para Victor e afundo as mãos na água para sentir a espuma na pele. Sei que Victor não está bravo de verdade comigo. Isso se tornou um jogo que fazemos: às vezes faço o contrário do que ele manda, e ele me castiga. É o tipo de jogo em que ambos ganhamos. Eu jamais teria desafiado as ordens dele em uma missão importante. John Lansen era só uma ponta solta, e mais uma das minhas missões de treinamento.
— O que você vai fazer comigo, Victor? — pergunto, com um brilho sedutor nos olhos. Tiro a perna esquerda da água e a apoio na borda da banheira, atrás de onde ele está sentado. — Vai me castigar?
Com a manga já arregaçada acima do cotovelo, sua mão direita percorre lentamente o comprimento da minha perna e mergulha na água. Gemo quando seus dedos me encontram.
— Vou tirar você do trabalho de campo até aprender a se controlar — diz ele, pondo dois dedos entre meus lábios inferiores.
Minha nuca pressiona com mais força a borda da banheira e minhas pernas se abrem mais.
— E se eu nunca conseguir me controlar? — pergunto, ofegante, mal capaz de me concentrar na conversa, com seus dedos se movendo entre minhas pernas daquela maneira.
Ele é um canalha. E eu o amo pra caralho por isso.
Dois dedos entram em mim e minhas pernas começam a enrijecer e formigar quando seu polegar esfrega com força meu clitóris em um movimento circular.
— Abra os olhos — manda ele em voz baixa, mas imperiosa.
Abro, só um pouco, pois está cada vez mais difícil controlar minhas pálpebras. Soluço, gemo e mordo meu lábio inferior com tanta força que dói.
— Se você não conseguir se controlar, então não terei escolha.
— Não terá escolha... do quê? — Meu peito nu sobe e desce. Mexo na água procurando sua mão, fechando os dedos em volta do seu pulso forte e descendo até os dele, que continuam se movendo em círculos.
Então ele para.
Ele tira a mão da água, fica de pé e enxuga o braço com minha toalha, pendurada na porta do boxe.
Olho para ele sem entender.
Ele sai do banheiro e me deixa sentada lá, sozinha, insatisfeita e sexualmente frustrada.
— Ei! — grito para ele. — Aonde você vai, cacete?!
Nenhuma resposta.
— Victor!
Nada.
Rosno baixo, fico de pé e saio da banheira. Pego a arma de Victor com minha mão molhada e ensaboada e vou para o nosso quarto. Ele está de costas para mim, perto da nossa cama king-size, tirando a camisa com uma graça casual e desinteressada, o que só me deixa mais frustrada.
Chego por trás dele, ensopada, pingando água e espuma no chão, e começo a apontar a arma para suas costas. Mas Victor é rápido demais e se vira, tirando a arma da minha mão e enfiando-a sob o meu queixo, tudo em dois segundos, que passam por mim como um borrão.
O cano frio toca minha pele. A intensidade nos olhos dele provoca uma onda de calor no meu corpo e entre minhas coxas. Meus seios estão pressionados no seu tórax duro e quente, sua mão livre posicionada no meio das minhas costas, com seus longos dedos abertos.
— Nenhuma disciplina, Izabel. — Ele estuda o meu rosto com um movimento faminto e calculado dos olhos. Ele lambe o canto da minha boca e enfia mais a arma na minha garganta. — Você nunca vai aprender.
Tento beijá-lo, procurando sua boca com a minha, mas ele me rejeita, me provocando com a distância de seus lábios, a 2 centímetros dos meus.
Ele me lambe de novo. E então me joga na cama e se encaixa no meio das minhas pernas nuas, ainda vestido da cintura para baixo com a calça preta. Estremeço quando sinto sua ereção me pressionando sob a calça. Meu corpo se desfaz em calafrios quando ele passa a ponta da língua de baixo para cima entre os meus seios.
Ele beija um lado do meu queixo, depois outro.
— Talvez você devesse se livrar de mim — sussurro nos lábios dele.
— Nunca — diz Victor, me beijando de leve uma vez. — Você é minha enquanto respirar. — A boca dele cobre a minha, faminta.
Foi assim que me tornei o que sou, uma escrava sexual transformada em assassina. E foi o início não só de um caso de amor entre mim e Victor, mas também de um novo círculo clandestino de assassinos, tão secreto que nem tem nome.
Quatro viraram cinco seis semanas atrás, quando recebemos o diabo louro de olhos castanhos, Dorian Flynn, no nosso grupo. E, embora haja muitos que trabalham para nós, espalhados por vários países, nós cinco somos o centro de toda a operação, com ninguém menos do que Victor Faust no comando de tudo.
Niklas continua um canalha insuportável, que adora dinheiro, mulheres e me deixar puta. De maneira indireta, é claro, mas ele sabe o que está fazendo. Mesmo depois de um ano, ele e eu praticamente nos desprezamos. Talvez eu o despreze um pouco mais do que ele a mim, mas nós nos suportamos, por Victor. A maior parte do tempo, evitamos cruzar o caminho um do outro. Ainda preciso ficar quite com Niklas e atirar nele. Mas essa hora vai chegar. Um dia.
Quanto a Fredrik, as mulheres ainda o adoram, mas desisti de tentar entendê-lo há muito tempo. Entender por que as mulheres praticamente tiram a calcinha quando o veem. Concluí que a única maneira de saber seria dormir com ele. Mas, como isso nunca vai acontecer, decidi manter o mistério. Mas Fredrik é como um irmão para mim, e, como Victor, não consigo imaginar ficar sem ele na minha vida. Sem perceber, ele tenta correr atrás de mim com aqueles malditos curativos de vez em quando, seja depois de uma sessão brutal de treinamento com Victor, seja na noite em que levei uma facada no ombro durante uma missão. Preciso lembrar a Fredrik, usando minha voz mais inclemente de Izabel Seyfried, de não me tratar como uma garotinha frágil. Lá no fundo, contudo, gosto de ver como ele é protetor comigo. Só que nunca vou contar isso a ele.
Dina, a mãe que eu deveria ter tido há 24 anos, agora mora em Fort Wayne, Indiana. Nós a instalamos em um abrigo tão pequeno e modesto quanto sua casa em Lake Havasu City. Victor tentou convencê-la a morar em um lugar grande e imaculado porque queria que ela tivesse o melhor, mas ela recusou. “Gosto das coisas simples”, disse ela naquele dia.
Dina ainda não sabe tudo sobre o que fazemos, mas é mais seguro assim, e ela aceita isso. E quanto ao abrigo dela, só é aberto para mim e para Victor. Eu a visito uma vez por mês. Mas a saúde dela está piorando. Eu me preocupo mais com ela do que comigo mesma ou com Victor. Mas ela é uma velha forte, e acho que ainda vai viver por muitos anos.
Quanto a Amelia McKinney, Fredrik não a matou. Matar mulheres inocentes não é o estilo dele. Ele a instalou em outro abrigo do outro lado do país, em algum lugar de Delaware. Nova identidade. Novo tudo. Mas ele nunca a visita. A última coisa que ele quer é uma mulher achando que ele está interessado em algo mais do que sexo.
Essa é a história da vida de Fredrik.
Conforme o prometido, depois que terminamos com Hamburg e Stephens, começamos a bolar uma estratégia para matar os irmãos de Javier Ruiz e libertar as garotas aprisionadas na fortaleza mexicana. Passei por seis meses de treinamento massacrante — treinamento de verdade, não apenas ser largada em algum lugar para estranhos me ensinarem — antes de partirmos para a missão. Infelizmente, a maioria das garotas da fortaleza que eu conhecia já tinha sido vendida ou estava morta quando chegamos lá. Matei Luis e Diego Ruiz, cortei a gargantas deles como fiz com Hamburg, depois que Victor, Niklas e Dorian derrubaram os guardas ao redor e dentro da fortaleza com uma chuva de balas. Não sou tão boa com armas de fogo e ainda preciso treinar muito. Por anos. Mas consigo fazer o serviço com minha coleção cada vez maior de punhais. E estou aprendendo mais a cada dia.
Quando a missão no México acabou e salvamos quem era possível — seis garotas, no total, tão traumatizadas que, mesmo livres, imagino que não consigam muita coisa na vida —, fomos atrás dos homens que as compravam. E ainda hoje, como amanhã e daqui a um ano, nós os procuramos e os eliminamos. Vai ser um longo caminho até localizarmos todos eles e lhes dar o que merecem, mas não vou parar enquanto não terminar.
Mais importante do que tudo, sobretudo para mim, é eliminar a Ordem. Vai demorar muito tempo até que eu possa de fato dormir tranquila à noite, sabendo que há homens procurando Victor a cada hora do dia. É uma empreitada muito mais perigosa e complexa do que provavelmente qualquer missão que realizaremos.
A Ordem é imensa, com milhares de membros, e é uma das mais antigas organizações de assassinos ainda existente. Vai levar algum tempo. Mas vai ser feito, mesmo que seja a última coisa de que eu participe.
Victor é a minha vida e eu vou morrer ajudando a protegê-lo.
Mas essa missão vai continuar a ser uma empreitada difícil, agora que Fredrik precisou sair por causa das suspeitas e não temos mais olhos e ouvidos confiáveis lá dentro. Temos novos informantes infiltrados na Ordem, mas eles ainda não provaram ser confiáveis como Fredrik.
E Victor... Victor continua pensando só no trabalho. Ainda é o assassino de aluguel e a sangue-frio, com nenhuma ou quase nenhuma consciência, quando o assunto é cumprir uma missão. Ele ainda parece desprovido de emoções, impiedoso e mortal em todos os sentidos. A portas fechadas, no entanto, quando estamos a sós, ele é outro homem. Ele me ama sem precisar dizer. Ele me adora sem ter que provar. Quando ele me toca, sei o que está pensando, o que realmente sente por trás daquela máscara que usa diante dos outros. Sou a única alma que ele já deixou entrar em sua vida completamente. E a única que ele nunca irá abandonar.
Ele se tornou o meu “herói”, no fim das contas. Minha alma gêmea que jamais vai deixar que nada de ruim aconteça comigo. Confio minha vida a ele, por mais que ele me diga para sempre confiar primeiro nos meus instintos. A verdade é que tudo o que fazemos é arriscado. Dar um passo para fora da porta. Dar um telefonema. Comer um pãozinho em uma lanchonete. Todos com quem cruzamos são ameaças até que provem o contrário. Qualquer um de nós pode morrer a qualquer momento. Mas pelo menos sei que Victor vai me pôr sempre em primeiro lugar e fazer tudo o que pode para me manter a salvo, como sempre vou fazer por ele.
Ficar um passo à frente da morte é o nosso estilo de vida. É o meu estilo de vida, e acredito que era para ter sido assim desde sempre. Contudo, por mais estranho que pareça, me sinto perfeitamente segura na companhia de assassinos.
CAPÍTULO VINTE E UM
Sarai
Saio de manhã cedo, usando o carro que Victor deixou na garagem para o caso de eu precisar em uma emergência. Ir até a academia de krav maga de Spencer e Jacquelyn em Santa Fé não é exatamente uma emergência, mas mesmo assim é importante para mim. E não posso mais ficar parada em casa desse jeito, quando poderia estar praticando.
Estou treinando com Spencer há meia hora. Odeio o fato de ele pegar leve comigo, mas acho que ao mesmo tempo me arrependeria de pensar assim caso ele decidisse me bater com aquele punho que parece um tronco de árvore.
— Acompanhe os movimentos dos ombros — orienta Spencer, movendo-se em círculos ao meu redor, nós dois meio curvados, com os braços em guarda alta à frente. — Soque. Um. Dois. Esquerda. Direita. — Ele demonstra enquanto fala, lançando seus punhos imensos no ar diante dele.
Faço exatamente o que ele manda, de novo e de novo, para aperfeiçoar a técnica. E então o golpeio com força, mas ele intercepta e se defende com facilidade de todas as minhas tentativas.
Ele me ataca e, por instinto, me esquivo e ando ao redor dele, longos fios do meu cabelo que escaparam do rabo de cavalo presos entre meus lábios e grudados no nariz. O suor escorre da minha nuca e desce pelas costas, grudando na pele o tecido fino da camiseta preta de um jeito nojento.
Spencer me ataca de novo e eu uso algo que já aprendi, golpeando-o no meio da garganta, um lugar vulnerável, o que o faz perder o equilíbrio no mesmo instante. Parto para cima dele com velocidade antes que ele consiga se recuperar e seguro sua nuca, curvando-o para baixo e enfiando o joelho em seu rosto, uma, duas, três vezes seguidas.
Ele cambaleia para trás, apertando a mão sobre o nariz. Se Spencer quisesse me machucar de verdade, não teria parado. Teria lutado contra a tontura e a dor e continuado a me bater até me matar.
— Cacete, garota — diz ele, misturando riso à voz grave, abafada pela mão. — Acho que você quebrou meu nariz.
Balanço a cabeça para ele, decepcionada por ele ter parado, embora tenha aprendido semanas atrás a aceitar que ele sempre vai parar.
— Não, acho que ele já era torto — rebato, brincando.
Ele ri de novo e tira a mão do rosto para apontar para mim com um ar ameaçador, com o olho direito mais fechado que o esquerdo.
Vou até a borda do tatame preto, onde minha toalha está jogada, e a uso para enxugar o suor do rosto. Puxando a gola da camiseta, tento me refrescar, contente por estar usando uma calça de malha preta aderente que reduz o suor.
Fredrik passa pela porta alta de vidro na entrada da academia. Não parece feliz.
Ele atravessa o tatame usando um jeans escuro, camiseta cinza bem justa e um All Star branco novinho em folha com cadarços vermelhos. Não consigo decidir o que é mais imperativo: explicar para ele o que estou fazendo ou perguntar se ele acordou de manhã achando que era outra pessoa.
— Como você me encontrou? — Jogo a toalha molhada no tatame, ao lado dos meus tênis pretos.
— Por que você saiu? — pergunta ele, por sua vez.
Reviro os olhos e balanço a cabeça, olhando para Spencer, não muito longe, que observa Fredrik e a mim com curiosidade, os enormes braços cruzados rigidamente sobre o peito maciço. A mulher dele, Jacquelyn, entra no prédio pela mesma porta por onde Fredrik acaba de entrar.
Eu me viro para Fredrik.
— Quantos anos você tem? Vinte? — pergunto, correndo os olhos pelas roupas dele.
Ele fica bem nelas, admito, mas duvido que um dia eu vá me acostumar a vê-lo usando qualquer coisa além de terno. É que não consigo imaginá-lo torturando um homem até a morte usando All Star. Afasto essa imagem estranha da minha mente.
— Respondendo perguntas com perguntas — observa Fredrik, um pouco irritado. — Eu encontrei você depois de ligar para Victor. Ele me falou que você poderia estar aqui.
— Ele ficou bravo? — Sinto meu rosto murchando. Espero que ele não esteja chateado.
Fredrik balança a cabeça.
— Não — diz ele, como se essa verdade o decepcionasse. — Ele disse que não tinha problema você vir aqui hoje. — Ele me encara com ar autoritário. — Mas você deveria ter pelo menos me avisado em vez de sair escondida. Quantos anos você tem? Quinze?
Dou um sorrisinho para ele.
— Está tudo bem aí? — pergunta Spencer, aproximando-se e olhando com frieza para Fredrik. Jacquelyn desaparece no escritório do outro lado da sala.
— Sim, está tudo bem. Spencer, este é Fredrik. Fredrik, este é Spencer, meu treinador.
Os olhos castanho-escuros de Spencer se voltam para mim em sua cabeça imóvel, depois passam a observar Fredrik.
— Ele é alguém que Victor conhece? Victor me deu ordens específicas para não deixar ninguém visitar você aqui, além dele. — Spencer estreita os olhos para Fredrik, e parece pronto para derrubá-lo a qualquer momento.
Fredrik, por outro lado, está sorrindo, com as mãos cruzadas à frente e uma postura elegante. Fredrik pode não ser capaz de derrotar Spencer na luta corpo a corpo, mas na verdade estou mais preocupada com Spencer, porque sei do que Fredrik é capaz.
Eu me posiciono entre os dois.
— Victor conhece Fredrik. Só que ele não esperava que Fredrik precisasse vir aqui.
Os dois se examinam em silêncio, e então Spencer assente e me diz:
— Tudo bem, mas se você precisar de alguma coisa...
— Eu sei. Obrigada. — Sorrio.
Spencer se afasta. Ele desaparece no escritório com Jacquelyn e alguns alunos entram no prédio, deixando as mochilas no chão, perto da parede oposta.
— Victor volta hoje à noite — informa Fredrik, abaixando a voz e olhando por cima do ombro depois.
Eu me afasto mais das pessoas que se preparam para treinar.
— Estou surpresa por você ter conseguido falar com ele. Tentei ligar uma vez, ontem, mas a ligação não completou.
Fredrik assente.
— Onde ele estava não tem sinal de celular a maior parte do tempo.
Olho por cima do ombro.
— Então ele... terminou o serviço? — pergunto, em um sussurro.
— Sim. Já fez o que precisava com Velazco. Eu vou cuidar do outro filho hoje à noite.
— Você vai matá-lo? — sussurro ainda mais baixo, olhando o tempo todo ao redor para me assegurar de que ninguém está perto o suficiente para ouvir nossa conversa tão criminosa.
Fredrik arregala os olhos só um pouco, para indicar que ele prefere não dizer nada mais comprometedor neste lugar. Ele me pega pelo braço, segurando com cuidado meu cotovelo, e me leva até a porta. Só quando estamos lá fora, na calçada, ele se sente seguro para conversar.
— Ele merece morrer — garante Fredrik, e tenho a sensação de que ele achou que eu poderia discordar disso.
Talvez eu discorde, de certa forma. Só agora me dou conta.
— Bom, o que... — Hesito, respirando fundo. — O que, exatamente, David fez para merecer morrer? O que André Costa fez? Eu sei que o pai deles, Velazco, fez muito mal a muita gente, mas só que... Sei lá, parece que você está castigando os dois com a mesma brutalidade de Velazco pelas coisas que só Velazco fez.
Fredrik balança a cabeça para mim, melancólico.
— Não. Os filhos de Velazco e os homens que trabalham para ele são quem põe a mão na massa de verdade. São eles que realizam os sequestros, que executam a maioria dos assassinatos e estupros. Cada um deles merece o que vai receber.
— Mas como você sabe que André Costa e David sequestraram, estupraram ou mataram alguém?
— Tenho minhas fontes — afirma Fredrik. — É só isso que você precisa saber.
— Achei que eu fazia parte desse esquema — respondo, um pouco ofendida.
— Não é você quem vai matar os caras. — Fredrik enfia as mãos nos bolsos do jeans. — Se um dia você precisar matar alguém, aí vai poder fazer quantas perguntas quiser.
Não gosto dessa resposta, mas aceito e deixo por isso mesmo. Suspiro, vou até a parede e me encosto nela, cruzando os braços e apoiando um pé na parede atrás de mim para manter o equilíbrio.
— Por falar em matar pessoas, sinto que Hamburg e Stephens estão cada vez mais distantes. Estou cansada de esperar. Quero matar os dois. Quero fazer isso de uma vez.
Fredrik se aproxima, apoiando as costas na parede também.
Olhamos para a rua, observando os carros passarem no sinal verde.
— O que você vai fazer quando eles estiverem mortos? Vai parar por aí? Acabar com eles, se vingar e então tocar a vida?
— Não — respondo, sem olhar para Fredrik, a voz distante porque minha mente está dispersa, pensando em tudo. — Não, eles não vão ser os últimos.
Percebo que isso é algo que ainda não contei nem para Victor. Não porque queira esconder dele, mas porque só agora eu mesma me dei conta. Surpresa por minha própria resposta, me perco em pensamentos, olhando para o cruzamento e para os carros que entram e saem de foco.
— Você não é muito diferente de mim. Sabe disso, não sabe? — pergunta Fredrik.
Enfim, inclino a cabeça para o lado e olho para ele. Observo sua silhueta alta e ameaçadora, seu semblante calmo, que sei ser só um disfarce para esconder muito bem o homem perigoso que na verdade habita aquele corpo, não muito abaixo da superfície. Vejo um homem que, embora eu não tenha a menor ideia de por que ou como se tornou o que é, além do que Seraphina fez, sei que passou por algo muito pior do que qualquer coisa que ela pudesse ter feito. Sinto isso. Percebo isso. E, de maneira muito perturbadora, sinto que de alguma forma posso me identificar.
— Pode ser — assumo, desviando o olhar. — Mas quando se trata da maneira como... a gente lida com as pessoas... você e eu não temos nada em comum.
— Ah, não sei ao certo se isso é verdade — retruca Fredrik, com um sorriso na voz.
Talvez o fato de eu não discutir com ele de imediato seja a prova de que ele pode ter razão.
Felizmente, Fredrik muda de assunto.
— Já tomou café da manhã?
— Não estou com muita fome.
Ele desencosta da parede, tirando as mãos dos bolsos e se colocando à minha frente. Acena com a cabeça e diz:
— Vamos, estou morrendo de fome. Tem uma padaria aqui na rua. Faz tempo que não como um doce decente.
Minha primeira reação é recusar o convite, mas então decido ir com ele. Inclino a cabeça para dentro da academia, com metade do corpo para fora, e grito para Spencer e Jacquelyn, do outro lado da sala, informando aonde vou e que volto mais tarde. Spencer, com aquele olhar desconfiado, discute comigo por um segundo, dizendo que eu não deveria perder mais nenhum treino. Ele tem razão, mas sei que me ver saindo da academia com Fredrik é o que o preocupa de verdade.
Momentos depois, entro no carro de Fredrik para irmos à padaria, a alguns quilômetros dali.
— Fredrik, por que você acha que Niklas traiu Victor daquele jeito?
Fredrik entra na rodovia.
— Não sei. Por inveja, talvez. Niklas sempre viveu à sombra de Victor dentro da Ordem. Desde que conheço os dois.
— Certo, mas... — Suspiro, olho de relance para ele e depois mantenho os olhos fixos na estrada. — Eu não entendo por que ele fez isso, tipo... — Encaro Fredrik, formulando o que eu quero dizer. — Niklas tentou me matar para proteger Victor. Ele atirou em mim. Acho que minha dificuldade é entender o que o levou a trair o irmão, depois de tudo o que ele fez para protegê-lo. Como alguém pode mudar tanto assim.
Viramos à direita no Paseo De Peralta, e logo vejo a grande placa oval vermelha da padaria quando nos aproximamos.
— Eu trabalhei com eles por muitos anos — conta Fredrik, observando o trânsito. — Niklas sempre foi meio desequilibrado. Faria qualquer coisa pelo irmão, mas sempre tive a impressão de que ele era uma bomba prestes a explodir. — Fredrik olha para mim e nossos olhares se cruzam por um breve momento. — Para ser sincero, acho que você teve muito a ver com o motivo para Niklas ter traído Victor.
Engulo em seco e olho para baixo por um momento, entrelaçando os dedos nervosamente. Também especulei muitas vezes sobre isso, parte de mim quase convencida de que tudo foi minha culpa, mas eu não apenas não queria acreditar nisso, como também me sentia idiota por me imaginar capaz de abrir tamanho abismo entre duas pessoas. Não sou tão importante assim. Não tenho todo esse poder, nem mesmo sobre Victor.
Com certeza não...
— Por que você acha isso? — pergunto, esperando que nenhuma resposta dele consiga me convencer. Que a resposta seja ridícula, até.
— Porque, de certa forma, Victor escolheu você em vez do irmão.
Todas as minhas expectativas desmoronam ao meu redor. A resposta de Fredrik não é nada ridícula, faz total sentido. E me odeio por isso.
— Victor decidiu sair da Ordem depois que conheceu você — explica Fredrik. — Ele podia ter algumas desavenças com Vonnegut antes, mas, no fim das contas, você foi o estopim. E, mesmo antes de Victor sair, ele estava arriscando a posição que tinha na Ordem e a própria vida para ajudar você. Niklas tentou evitar que Victor se destruísse. Matar você, pensava ele, era a única maneira de fazer isso, porque conversar com Victor a seu respeito não funcionava. Victor até mentiu para Niklas sobre você. — Fredrik me olha de novo. — Na visão de Niklas, Victor escolheu você em vez dele, substituiu o próprio irmão.
Chegamos ao estacionamento da padaria, mas, em vez de entrar, percebo que Fredrik está olhando pelo retrovisor, concentrado nele e na estrada à frente ao mesmo tempo.
Com a sensação clara de que ele está olhando para alguma coisa atrás de nós, faço menção de me virar.
— Não — pede ele depressa.
Tudo naquela palavra me faz estremecer até o âmago. Mas a expressão de Fredrik, seu semblante e o modo como ele continua a guiar de maneira despreocupada, com as mãos na parte de baixo do volante, parecem indicar que não há nada de errado.
— O que foi? — pergunto, incapaz de mascarar como ele a preocupação na voz.
— Estamos sendo seguidos.
Meu coração dá um salto e paro de respirar por um momento. Estou louca para olhar para trás, mas opto em vez disso por olhar pelo retrovisor do meu lado, sem fazer nenhum movimento drástico. Uma SUV preta, que parece um Navigator, está na nossa cola.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
Sarai
Minhas mãos estão apertadas nos cantos do banco de couro vermelho onde estou sentada. Não tiro os olhos do espelho retrovisor nem paro de pensar na possibilidade de ser quem estou pensando e de que vai acontecer o que imagino. Não consigo ver o passageiro nem o motorista através dos vidros escuros da SUV.
— Tem certeza? — pergunto.
Fredrik liga a seta e nós viramos à esquerda na esquina seguinte. Ele mantém o carro abaixo do limite de velocidade e parece evitar que os ocupantes do veículo de trás saibam que ele está ciente da presença deles. Só espero que ele esteja errado.
— Eles estão nos seguindo desde que saímos da academia — explica Fredrik, e meu coração afunda. — Estavam nos espionando, estacionados no terreno do outro lado da rua.
— Então foi por isso que você decidiu tomar café.
Fredrik assente e vira à direita no semáforo seguinte.
Estou me torturando por dentro. Eu me sinto insignificante e inexperiente por não ter sido esperta o bastante para notar essas coisas. Não observei direito ao meu redor para saber que estávamos sendo vigiados o tempo todo. Mas este não é o lugar nem o momento de ficar frustrada comigo mesma. Só espero que haja tempo para isso mais tarde.
— O que a gente vai fazer? — pergunto, nervosa.
Fredrik afunda o pé no acelerador, e de repente estamos a 80 quilômetros por hora em uma via de 55, seguindo direto para a rampa de acesso à rodovia. A SUV está bem próxima e continua no nosso encalço. Agarro o cinto de segurança, aperto-o com mais força e volto a me segurar no banco.
— Vamos despistar esses caras — responde Fredrik, aumentando a velocidade de 80 para 110 quilômetros por hora em poucos segundos ao pegarmos a estrada.
Estou me segurando, desesperada, com o coração na garganta, enquanto nosso carro costura loucamente, entra e sai do tráfego, corta outros veículos e até os ultrapassa pelo acostamento. Mas a SUV continua na nossa cola, abrindo espaço pelo mesmo caminho que fazemos. Buzinas ecoam barulhentas, furiosas conosco ao passarmos a toda a velocidade.
— SE SEGURA! — grita Fredrik.
No mesmo segundo, Fredrik faz uma curva brusca, passando da faixa do meio para a da direita, a poucos centímetros do para-choque da frente de um carrinho branco, e sou jogada contra a janela lateral. Ouço os pneus cantando, os nossos e os do carro branco, e então sou arremessada para o outro lado do assento quando ele endireita o veículo com um golpe do volante.
Desajeitada, me viro no banco da frente, com o cinto de segurança ainda preso ao corpo e tentando me segurar no lugar, vendo a SUV surgir de trás de um carro azul. O carro patina para a esquerda, tentando sair do caminho, e bate no carro branco que acabamos de ultrapassar. Os dois automóveis giram com violência no meio da rodovia, e o branco para com uma freada brusca na faixa da esquerda, quase batendo na barreira de concreto que separa uma pista da rodovia da outra. Os pneus soltam fumaça. O carro azul capota de lado. Solto um gemido e levo as mãos à boca.
A rodovia fica toda parada, do ponto do acidente para trás, todos menos nós e a SUV, que nos segue de perto. À frente, as pessoas, vendo o que está acontecendo, já abrem caminho para passarmos. Seguimos como foguetes a 140 quilômetros por hora, obrigando uma fila de carros a parar no acostamento.
Quanto mais nos afastamos do acidente, mais numerosos são os carros à nossa frente, e voltamos à mesma situação anterior, costurando em meio aos veículos, com buzinas tocando e meu corpo batendo na porta e na janela a cada virada mais brusca.
Fredrik passa depressa para a faixa da esquerda, a faixa mais rápida.
— A gente precisa sair da rodovia!
— Precisamos despistar os caras antes!
— Como é que a gente vai fazer isso, cacete? — pergunto, olhando para trás de novo. Eles ainda estão perto de nós, os para-choques a centímetros de distância.
Fredrik não responde. Ele está vigiando tudo, mantendo os olhos na estrada em frente, nos carros ao redor e na SUV atrás. Depois de alguns minutos, começo a achar que ele está montando um plano na cabeça.
De repente, no último segundo, Fredrik sai da faixa rápida, atravessa três faixas e pega a saída da rodovia a 110 quilômetros por hora, passando a centímetros da parede de concreto e dos barris laranja que separam a saída da rodovia. Foi tudo tão rápido que a SUV não teve tempo de prever o que Fredrik ia fazer e pegar a saída atrás de nós. Bato a cabeça na janela lateral. Há um semáforo no fim da estrada, mas Fredrik está indo rápido demais para parar e passa com tudo. Felizmente, essa estrada não parece muito movimentada, e nenhum carro bate no nosso.
— Que porra foi essa? — grito com a mão no peito, tentando controlar meus batimentos cardíacos.
Ele não responde até estarmos bem longe da saída, depois de cruzar várias ruas. Ambos continuamos olhando em todas as direções, procurando a SUV.
— Se eu ficasse na pista da direita — explica ele —, o cara ia entender que eu queria pegar a primeira saída.
Por mais que aquilo quase tenha me matado de medo, não posso negar que o plano louco de Fredrik funcionou.
— Você podia ter matado a gente!
— Até parece que isso é novidade para você — provoca ele.
Eu rio alto.
Fredrik retorna para a rodovia na direção oposta, de volta para a academia de krav maga. Contudo, antes de chegarmos perto do destino, ele vira em uma rua que não conheço.
— Aonde a gente está indo?
— De volta para Albuquerque — responde ele. — Pelo caminho mais longo. Só por segurança.
Seis horas de vigilância obstinada pelas janelas da casa, e o carro de Victor enfim estaciona na entrada da garagem. Fredrik e eu ficamos de pé assim que ouvimos as pedrinhas estalando e se partindo debaixo dos pneus.
Victor deixa a chave na bancada da cozinha primeiro e vem para a sala, pondo a maleta na mesinha de centro.
— Algum sinal deles? — pergunta ele a Fredrik antes de falar qualquer outra coisa.
Ele me olha, e não consigo decifrar sua expressão, o que, como aprendi, em geral significa que ele tem coisas demais na cabeça e está tentando se manter concentrado.
Antes que Fredrik responda, Victor me pergunta:
— Você está bem? Está ferida?
— Não, não estou ferida. — Desvio o olhar para a parede quando ouço Fredrik falando.
— Não fui seguido até aqui. Garanti que isso não acontecesse. Fiz um desvio de uma hora do caminho só para ter certeza. E não tem nenhum sinal de que alguém esteve aqui, só alguns carros na estrada, mas nada suspeito.
Victor dá a volta na mesinha de centro, senta-se nela do jeito que eu mesma muitas vezes faço e me encara quando me sento no meio do sofá, também olhando para ele. Parece preocupado. E furioso. Não comigo, mas com quem estava naquela SUV, acho.
— Antes que você diga qualquer coisa...
— Como falei para Fredrik — interrompe ele, com calma, pondo as mãos entre as coxas e apoiando os cotovelos nas pernas —, eu não esperava que você ficasse aqui, enfurnada nesta casa durante toda a minha ausência. Não peça desculpas por ter saído.
Surpresa com essa tolerância, fico sem palavras por um momento.
— Eu não iria para qualquer outro lugar — digo, enfim, ainda sentindo que fiz besteira de novo. — Achei que, como eu já tinha passado tanto tempo lá treinando com Spencer, não faria diferença se eu decidisse ir hoje ou esperasse até você voltar.
— E você estava certa — afirma Victor. Ele coloca as mãos nos meus joelhos. — A questão não é você ter saído. — Ele olha para Fredrik, que se senta no lugar vazio. — A gente precisa descobrir como eles sabiam onde você estava.
Vejo algo no rosto de Victor que Fredrik não consegue ver, algo que me deixa tensa. Victor tem o ar de um homem que desconfia de alguém, que desconfia de Fredrik. Olho para um e para outro, tentando entender os pensamentos de Victor. Será que estamos revivendo o que aconteceu com Samantha no Texas? Será que Victor depositou muito da pouca confiança que tem na pessoa errada mais uma vez? Esse era o teste, então? Deixar Fredrik sozinho comigo?
Cerro os punhos e minhas unhas afundam na pele das mãos. Victor me usou para testar a lealdade de Fredrik?
— Já andei pensando nisso — diz Fredrik. — E espero estar errado, mas tenho a sensação de que sei como encontraram Sarai.
Era algo que Fredrik e eu já havíamos discutido antes de Victor chegar. Mas agora... agora que estou vendo a desconfiança nos olhos de Victor, não consigo deixar de me perguntar se nesse tempo todo, enquanto esperávamos a volta dele, Fredrik não estava apenas enchendo minha cabeça de mentiras para nos despistar da possibilidade de ter sido ele.
Agora não confio em nenhum dos dois. Eu me sinto uma prisioneira de novo, presa entre homens perigosos dos quais sei que não posso fugir.
E meu coração dói.
Victor tira as mãos dos meus joelhos e dirige sua atenção para Fredrik. Continuo calma e imóvel, fazendo o que sei fazer melhor: fingindo.
— Acho que a gente deveria ir para Phoenix quanto antes — continua Fredrik. — Eu tentei ligar para Amelia, imaginando que talvez ela soubesse de alguma coisa, mas ela não atendeu nem retornou minhas ligações. Não é do feitio dela.
Victor se levanta da mesinha de centro e se senta ao meu lado, curvando-se para abrir sua maleta. Ele tira o laptop e passa o dedo em um sensor para destravá-lo.
— O que você está fazendo? — pergunto.
— Verificando meus equipamentos de vigilância na casa de Amelia — explica ele, abrindo algum programa na área de trabalho. — Não faço isso desde que tiramos a sra. Gregory de lá.
Alguns minutos depois de vasculhar vários vídeos (um deles claramente relevante, no qual homens entram na casa de Amelia e a capturam), ele balança a cabeça e fecha o laptop.
— O que foi? — pergunta Fredrik.
Victor guarda o laptop na maleta.
— Eles estiveram lá. O vídeo é cortado logo depois. Devem ter achado um dos dispositivos que eu plantei na noite em que levei Sarai para ver a sra. Gregory.
Fico em pânico pensando no que Stephens pode ter feito com Amelia, ou mais ainda com o que ela pode ter contado a eles.
— Fredrik tem razão — digo. — A gente precisa ir para Phoenix.
— Então vamos. — Ele estende a mão para mim.
Com relutância, seguro sua mão e fico de pé com ele. O que quero, na verdade, é lhe dar um belo tapa na cara.
— Victor? — chamo quando ele me dá as costas, na direção da porta.
Ele para e se vira a fim de me olhar.
— Nada disso estaria acontecendo se Hamburg e Stephens já estivessem mortos.
Phoenix, Arizona – 1h
Pegamos um voo para Phoenix e um táxi até a casa de Amelia. Ao que tudo indica, uma viagem de seis horas de carro estava fora de cogitação, pois Victor quer respostas já, sem perder mais tempo. Temo que Amelia esteja morta, uma vez que não respondeu às ligações de Fredrik. Acho que ele pensa a mesma coisa. Quando ainda estávamos em Albuquerque, cada vez que ligava e ela não atendia, Fredrik ficava mais frustrado. Preocupado, até. Eu achava aquilo estranho vindo de alguém como ele, que parece usar as mulheres para sexo e não tem a capacidade de gostar de nenhuma delas. Mas agora não consigo deixar de acreditar que aquilo era tudo teatro, que ele só estava fingindo se preocupar com ela, quando, na verdade, ele mesmo deve ter matado Amelia.
Em todo caso, fico feliz por termos tirado Dina da casa antes de isso acontecer.
O táxi nos deixa a uma quadra da casa de Amelia, e andamos o resto do caminho sob o manto da escuridão. A luz da varanda está acesa, revelando o revestimento branco e sujo da lateral da casinha e os degraus de concreto rachado que levam até a porta. Outra luz fraca brilha na janela da sala de estar, onde sombras se movem em um espaço pequeno e dão a impressão de que a luz vem da TV ligada. Quando subimos os degraus de concreto e ficamos diante da porta, Victor gira a lâmpada quente acima da nossa cabeça, apagando a luz.
Fredrik vai até a janela e olha para dentro.
Victor fica na minha frente e tenta me empurrar discretamente para trás dele com o intuito de me proteger, mas afasto sua mão. Ele vira de lado e olha meu rosto, zangado. Cerro os dentes e balanço a cabeça, revelando que estou furiosa e que é melhor ele não me tocar.
Ele desvia o olhar, mantendo a atenção em Fredrik.
— Não estou vendo Amelia — sussurra Fredrik. — Nenhum sinal de luta.
Victor saca sua 9mm das costas, põe a mão na maçaneta e tenta virá-la. Está trancada. Fico nervosa quando Fredrik puxa a arma também. Victor fica para trás e acena para que Fredrik entre na frente dele. Parece que ele quer que Fredrik bata na porta, mas acho que a ideia é ficar de olho nele.
Fredrik bate três vezes e nós esperamos. Victor não olha mais para mim, nem eu esperava que fizesse isso, em uma hora dessas. Também fico mais interessada nos gestos de Fredrik, esperando que ele nos ataque a qualquer momento.
Há movimento lá dentro. A cortina da janela perto da porta se mexe, e então ouvimos o som de um corpo pressionando a própria porta enquanto quem está lá dentro espia pelo olho mágico. Desta vez, Victor me força a ficar atrás dele, e não discuto, mais preocupada com quem está lá dentro do que com meu ressentimento em relação a ele.
Ouço a correntinha deslizando, depois o clique de um trinco, e então o som da maçaneta virando devagar. Quando a porta se move, abre apenas alguns centímetros, e um rosto bonito olha pela fresta, com o longo cabelo louro desgrenhado ao redor dos olhos inchados.
— Fredrik? — chama Amelia, em voz baixa e ríspida. — Você não deveria estar aqui. — Vejo que ela olha para todos os lados, nervosa, espiando a rua atrás de nós.
Victor fica na frente de Fredrik e empurra a porta com a palma da mão. O cheiro de um pot-pourri de canela e café queimado invade minhas narinas. Amelia dá um passo para trás, enfiando as mãos entre os braços cruzados, cobertos por um roupão de banho azul que vai até pouco acima dos tornozelos. O lado esquerdo do rosto tem muitos hematomas e há sangue no branco do seu olho. Seu lábio parece estar se recuperando de um corte.
Victor me empurra para dentro da casa com ele e Fredrik nos segue, fechando e trancando a porta em seguida. Antes que qualquer um fale, Victor e Fredrik vasculham cada cômodo da casa, de armas em punho, certificando-se de que ninguém está à espreita.
Eles voltam para a sala ao mesmo tempo, enfiando as armas na cintura.
— O que aconteceu com você? — pergunta Fredrik a Amelia. — Por que não atende ao telefone?
Ela está tiritando, os braços tremem dentro do roupão.
Victor olha para tudo, menos para ela. Ele começa a vasculhar a sala, mas sei que também está prestando atenção em cada palavra que ela diz.
— Não atendi porque sabia que era você — explica ela para Fredrik. — E você não deixou nenhum recado. Nunca deixa recado. Eles grampearam meu telefone, Fredrik. Eu não podia correr o risco de atender.
Fredrik segura Amelia com delicadeza pelo cotovelo e vai com ela até o sofá. Ele se senta ao lado dela.
— Me conte o que aconteceu — insiste ele.
Eu me sento na borda da poltrona do canto, com as costas encurvadas, as mãos cruzadas entre as pernas.
Amelia olha para Victor, que está passando os dedos por uma estante, procurando alguma coisa.
— Eles acharam todas aquelas coisas — anuncia ela. — Quando entraram aqui, três homens reviraram a porra da minha casa, colocaram tudo de cabeça para baixo, procurando aqueles aparelhos, ou sei lá o quê, escondidos pela casa toda.
Ele volta a vasculhar, mas se mantém no nosso campo de visão. No meu campo de visão.
Amelia se volta para Fredrik. Ela está sentada com as mãos entre os joelhos, a perna direita inquieta, batendo o pé no tapete cor de ferrugem.
— Eles vieram três dias depois que vocês foram embora — continua ela. — Me amarraram em uma cadeira da cozinha. Me espancaram. Ameaçaram minha família...
— O que você contou para eles? — interrompe Victor, parado na frente de Amelia.
— Eu não tinha nada para contar — diz ela, o medo cada vez mais evidente em sua voz trêmula. — Eles queriam saber onde ela estava. — Amelia olha para mim. Agora que estamos na sala com a luz da TV, noto como sua pele está amarela ao redor do olho. — Mas eu não sabia. Não podia contar o que eu não sabia. Merda! Eles também queriam saber onde Dina estava. Isso eu também não sabia. Eles não acreditaram, por isso me espancaram mais! — Ela respira fundo e tenta se controlar, talvez para não chorar. Parece prestes a cair no choro.
— Mas você deve ter contado alguma coisa para eles — sugere Fredrik, ao lado dela. Sua voz tem urgência, mas não é totalmente acusadora. — Pense, Amelia.
Amelia olha para as mãos trêmulas e afasta o cabelo louro desalinhado do rosto.
— E-eu não aguentava mais — conta ela, envergonhada, sem conseguir olhar Fredrik nos olhos. Ela olha para o tapete. — Achei que eles fossem me matar, me espancar até a morte. E-eu só contei que Dina a chamava de Sarai e que me falava dela, às vezes. — Amelia encara Fredrik, preocupada, esfregando os cantos dos olhos vermelhos. — Mas não era nada que eu achasse que eles poderiam usar.
— O que você contou? — pergunta Victor, com severidade.
Ela olha para ele.
— E-eles pediram informações recentes, qualquer coisa que Dina tenha me dito sobre Sarai, ou Izabel, ou sei lá qual o nome dela. Queriam alguma coisa atual. Eu pensei muito nas conversas que Dina e eu tivemos sobre ela, e o que me lembrei foi de quando vocês estiveram aqui. Ela falou de treinar. Maga ou qualquer coisa assim.
Pisco e balanço a cabeça. Lembro que contei a Dina que eu estava aprendendo krav maga.
Dou um salto da poltrona.
— Porra, eu não aguento mais! — grito. — Victor, desculpa. E-eu só faço merda. Você tinha razão. Essa vida não é para mim. Eu queria muito que fosse, mas não dá mais. Todo mundo vai morrer por minha causa!
Por um momento, esqueci que ele parece ter me usado para testar a lealdade de Fredrik. Talvez não tenha esquecido, mas deixei isso de lado por enquanto, porque minhas atitudes idiotas são mais imperdoáveis do que o comportamento de Victor.
Victor segura minha mão e faz com que eu me sente de novo.
— Você contou para Dina Gregory onde estava treinando? — pergunta ele, com voz calma.
— Não — respondo, olhando para ele. — Tomei o cuidado de não dar informações detalhadas. Nem contei onde eu estava morando. Nós três estávamos só conversando na cozinha. Dina queria saber o que eu andava fazendo. Foi uma conversa casual.
Fredrik olha para Victor.
— Stephens deve ter posto homens para vigiar todas as academias de krav maga daqui até a Flórida desde aquele dia. Isso explicaria por que eles levaram quase três semanas para descobrir em qual delas Sarai estava treinando.
— Espere aí... — intervém Amelia, como se tivesse acabado de pensar em algo horrível. — Dina está bem? Por favor, me digam que ela está bem. Eu queria minha casa de volta só para mim, mas gostava muito daquela mulher. Ela era gentil comigo.
— Dina Gregory está ótima — responde Victor, e tanto Amelia quanto eu ficamos aliviadas.
Amelia solta um suspiro de gratidão, mas seu corpo volta a ficar tenso e ela encara Fredrik com desespero no olhar, esticando o pescoço na direção dele.
— Ma-mas vocês não podem ficar aqui. Precisam ir embora. — Ela olha para nós. — Todos vocês.
— Esta era a minha próxima pergunta — observa Victor. — Por que eles não mataram você?
— Eles esperavam que vocês voltassem — explica Amelia. — Ou ao menos que tentassem me ligar. — Seus olhos correm para Fredrik de novo. — Eu não podia atender.
Fredrik assente, aceitando a explicação e as desculpas e deixando claro que a entende.
Amelia se vira para Victor.
— Depois de um tempo, fingi que odiava todos vocês — continua ela. — Reclamei de estar com raiva de Fredrik por desovar aquela velha coroca no meu colo daquele jeito. Aí falei um monte de merda sobre você. — Amelia se volta para Fredrik. — Quando enchi a cabeça deles de baboseiras, eles acharam que podiam me usar para encontrar vocês, para atrair vocês até aqui. Eu era só uma mulher desprezada que queria se vingar de Fredrik. Era isso que eu queria, ganhar a confiança deles para que não me matassem. Eu estava com medo, Fredrik. Acho que eles me matariam se eu não fizesse isso.
Fredrik assente de novo. Noto que ele quer pôr a mão no joelho dela para acalmá-la, mas não consegue porque o gesto o deixa constrangido. Em vez disso, ele oferece mais palavras de consolo.
— Você fez a coisa certa — afirma ele, com gentileza. — E tem razão, eles iam mesmo matar você.
Ele fica de pé e olha para Victor.
— A única pergunta sem resposta — afirma Fredrik — é como eles souberam que deveriam vir até aqui. — Ele levanta as mãos em um gesto de rendição. — Juro que não fui eu.
Meu corpo fica tenso. Olho de um para outro, tentando interpretar suas expressões. A tensão na sala aumenta, quase me afogando, mas logo percebo que a tensão é toda minha, pois estou me preparando para algum tipo de enfrentamento entre os dois. Contudo, quanto mais olho, mais sinto que Fredrik está dizendo a verdade e que Victor acredita nele.
— Eu sei que não foi você — diz Victor, enfim.
Fico atordoada. E confusa. E um pouco incomodada com a confiança imediata de Victor.
— Como é que você sabe? — pergunto, com rispidez.
— Porque, se Fredrik fosse entregar você, não faria sentido contar para eles onde Dina Gregory já esteve. Semanas atrás.
Rosno e cruzo os braços.
— Você me usou para testá-lo — disparo. — Você me deixou sozinha com Fredrik para ver se ele ia trair você e contar a Stephens onde me encontrar. — Eu o fuzilo com os olhos de maneira acusadora e implacável. Não é a hora nem o lugar de confrontá-lo com isso, mas não consigo mais me segurar.
Victor se aproxima e estende as mãos, querendo segurar meus braços. Tento me afastar, mas a poltrona está no caminho. Suas mãos quentes tocam minha pele, aqueles dedos longos segurando meus bíceps. Ele olha nos meus olhos e eu vejo sinceridade e determinação em seu rosto.
— Não foi isso que eu fiz — insiste Victor. — Você precisa confiar em mim quanto a isso. E precisa confiar em Fredrik. O inimigo não é ele.
— É tão fácil julgar e confiar — digo, irritada. — Então por que você me deixou sozinha com ele daquele jeito? O que significou aquela conversa antes de você ir embora sobre confiar nos meus instintos?
As mãos de Victor me soltam.
— A gente precisa sair daqui — diz ele.
Ele se vira para Fredrik, e me sinto ao mesmo tempo furiosa com a falta de explicações e apreensiva com o tom de urgência.
— Fredrik — continua Victor —, a decisão é sua. Pode levá-la para um abrigo ou deixá-la à própria sorte aqui.
Amelia, alerta e apavorada, arregala os olhos inchados e vermelhos. Ela se levanta do sofá em um salto, deixando abrir o roupão na cintura e revelando uma camisola branca por baixo.
— O que isso quer dizer? — pergunta ela, aterrorizada, mexendo na faixa do roupão para fechá-lo de novo. Ela encara Fredrik. — O que ele está dizendo, Fredrik?
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Victor
Sarai se culpa por muitas coisas, e em alguns casos com razão. Foi tolice falar do treinamento com Spencer — mesmo que de maneira tão vaga — para Dina e Amelia. Mas ela tomou cuidado com as informações que decidiu divulgar. Foi cuidadosa, mas não o suficiente. Sarai é jovem. Inexperiente. No entanto, está aprendendo, e aprender do jeito mais difícil, no fim das contas, é de fato a única maneira.
— Você não vai aprender a nadar lendo um livro — digo a ela, na viagem de volta para Albuquerque. Desta vez, achei melhor pegarmos um carro para voltar, em vez de nos arriscarmos em aeroportos de novo. — É a melhor maneira, Sarai. Para aprender com os erros, você precisa errar. De verdade. Nenhum tempo de treinamento, nenhuma situação ensaiada vai ensinar melhor do que a vida real.
Sarai está sentada em silêncio no banco do passageiro, olhando pela janela. Ela não quer olhar para mim. Mal disse uma palavra desde que saímos da casa do meu contato perto de Phoenix, meia hora atrás. A lua está baixa no céu da madrugada, parecendo enorme sobre a extensão escura da paisagem do deserto.
— Isso não é desculpa — diz ela, enfim, embora com voz distante.
— É uma desculpa — rebato. — Aqui não é Hollywood, Sarai. Você não vai aprender as coisas que quer no tempo em que acha necessário. Você cometeu erros. Vai cometer muitos outros...
Ela se vira de repente para mim.
— Eu disse que não é desculpa. — Ela pronuncia as palavras entre os dentes, com os olhos arregalados e implacáveis. Implacáveis para si própria, não para mim. — Fui eu que me meti nisso. Eu escolhi esta vida. Falei para você que era o que eu queria. Implorei para você me ajudar. — Ela aponta com severidade o indicador para si mesma, hesita e cerra os dentes. — Eu escolhi esta vida. Não sou criança, Victor. Você não pode me dizer que o que fiz não tem problema, que tenho o direito de errar. Porque, nesta vida, erros causam mortes.
Eu a admiro mais agora do que antes. Porque ela entende. Ela se recusa a pegar a saída mais fácil, aceitando o salvo-conduto que lhe ofereço. Ela se recusa a receber a permissão de errar, embora eu saiba que vai errar mesmo assim, porque é humana. E Sarai vai aprender com os erros mais depressa do que alguém que opta por aceitar as desculpas. Ela é uma garota desafiadora. Ela é durona, impulsiva e destemida até demais. Mas é determinada e forte. Apesar da falta de disciplina e de ainda não ter assimilado completamente o raciocínio criminoso e assassino, que é crucial para se manter viva, sei que ela pode dar certo nesta vida.
— Você se arrepende? Você se arrepende da vida que escolheu?
— Não — diz ela, com voz neutra, honesta, com os olhos observando o asfalto negro da estrada ser engolido pelo capô do carro. — Não me arrependo. E não quero desistir.
Ela ergue as costas do banco e me encara de novo.
— Eu quero matar Hamburg e Stephens — afirma, com determinação. — E aí, depois disso... — Ela faz uma pausa, mas não tira o olhar determinado do meu. Só desvio os olhos pelo tempo suficiente de olhar a estrada. — Preciso contar isso para você. É uma coisa que contei para Fredrik. Depois que Hamburg e Stephens estiverem mortos, não quero que eles sejam os últimos.
Desde o momento em que Sarai me disse que queria matá-los pessoalmente, soube que eles seriam apenas os primeiros em uma longa série de futuros assassinatos. Dava para ver essa resolução nos olhos dela, a sede de vingança, a fome de sangue. A morte de Javier Ruiz por obra de Sarai foi o que selou o destino dela. O primeiro assassinato é sempre o estopim, o instante na vida no qual tudo muda, no qual o caráter da pessoa assume uma forma nova e mais sombria. Sei que ela pensa em matar Hamburg todo santo dia, desde a noite em que o conheceu. Sei porque lembro o rosto do meu segundo alvo, o modo como o cacei durante uma semana como um assassino em série caçaria sua próxima vítima. Eu só conseguia enxergar o rosto dele. Tudo o que eu queria era acabar com sua vida miserável do modo como acabei com a do meu primeiro alvo. Porque fui gerado e treinado para isso. Ansiava pelos elogios que Vonnegut me dirigiu depois da minha primeira missão bem-sucedida, aos 13 anos. Vê-lo sorrir com orgulho como sempre quis que meu pai sorrisse. Eu ansiava por saborear a admiração que os outros garotos da Ordem sentiam por mim. Assim, do meu primeiro assassinato em diante, dediquei a vida ao trabalho, abrindo mão do ressentimento por ter sido separado à força da minha mãe. Matei para agradar Vonnegut pela maior parte da minha vida, até que comecei a ver que ele tirava de mim mais do que me dava.
Agora, mato porque é a única coisa que sei fazer.
Sarai e eu matamos por motivos diferentes, somos movidos por necessidades muito distintas, mas, no fim das contas, somos ambos assassinos, e sei que isso nunca vai mudar. Não podemos recuar diante disso, e a maioria dos que matam mais de uma vez não quer.
Volto a olhar para a estrada.
— Isso incomoda você? — pergunta ela, sobre a verdade que acaba de revelar. — Que não quero que eles sejam os últimos?
— Não — respondo, baixinho. — Não me incomoda.
Noto que ela desvia o olhar e o silêncio preenche o carro, restando apenas o som dos pneus se movendo com velocidade na estrada.
— O que vai acontecer com Amelia? — pergunta ela.
— Fredrik vai levá-la para um abrigo ou matá-la.
Eu esperava que ela tomasse um susto e virasse a cabeça ao ouvir isso, mas Sarai nem se sobressalta. Ela assente, aceitando o fato de maneira tão casual quanto eu.
Sarai já está ficando mais dura. Já é inflexível quanto aos próprios erros e não deixa que eles a definam. E, para ter certeza de que não os repetirá, abandona as únicas coisas que lhe restam.
Sua humanidade.
Sua consciência.
Já é fim de tarde quando chegamos em casa. Achei que Sarai fosse dormir a maior parte do caminho, mas ela não pregou os olhos. Está acordada há mais de 24 horas, mas continua alerta, sem exibir nenhum sinal de cansaço. É a adrenalina. Estou bem familiarizado com os efeitos dessa substância sobre a mente. No momento, contudo, estou tão exausto pela viagem que me tornarei inútil se não dormir logo.
Verifico a casa com cuidado antes de considerá-la segura o bastante para relaxar, embora eu tenha conferido as câmeras pelo laptop antes de chegarmos. Não tenho nenhum motivo para crer que Stephens e seus homens saibam onde estamos, mas, como sempre, não posso abaixar a guarda. Ainda é um mistério como Stephens descobriu a existência de Amelia McKinney e Dina Gregory. Não importa o que pareça, sei que Fredrik não teve nada a ver com isso. No entanto, por mais que essa brecha me preocupe, agora ela não importa. Neste momento, sei que vou ter que abandonar meus planos de treinar Sarai por meses ou até anos, dando tempo para que ela talvez mudasse de ideia. Ou decidisse me deixar fazer o trabalho para ela. Sei agora que nada vai fazê-la desistir, e, por mais que eu tente convencê-la, ela nunca vai aceitar que eu faça o serviço.
Talvez eu devesse matá-los assim mesmo...
— Victor?
Sou arrancado de repente da minha reflexão.
Sarai está diante da porta de vidro, olhando para a paisagem infinita do deserto. O sol está se pondo no horizonte, iluminando as grossas faixas de nuvens com um cor-de-rosa profundo.
— Tem uma coisa que eu preciso lhe dizer.
Ando até ela devagar, curioso, impaciente e até preocupado com o que ela vai falar.
— O que é? — pergunto, chegando mais perto.
Ela não se vira para me encarar, em vez disso mantém os olhos no vidro alto e impecavelmente limpo. Seus braços estão cruzados, os dedos pousados nos bíceps.
— Tomei uma decisão — começa ela, com voz baixa e em tom de desculpas. Minhas entranhas estão começando a se revirar. — Só espero que você entenda.
Ela enfim me olha, virando só a cabeça. Seu cabelo castanho, longo e macio, desce em cascatas pelo meio das costas, deixando os ombros à mostra. Ela usou uma blusinha branca de tecido fino durante a viagem de volta. Adoro vê-la de branco. Faz com que pareça angelical, para mim. Um anjo que carrega a morte no bolso.
— Conte — peço, com voz relaxada, embora não esteja nada relaxado, no momento, e não saiba por quê. — Que decisão?
Seus olhos escuros se desviam dos meus, e esse pequeno gesto insignificante parece uma tragédia.
Ela umedece os lábios, mordendo seu suculento lábio inferior por um momento.
— Depois que Hamburg e Stephens estiverem mortos... Eu vou embora. — Ela se vira para me encarar. Meu coração parou de bater. — Vou levar Dina comigo para algum lugar e ficar por minha conta.
Mal consigo organizar meus pensamentos, muito menos formar uma frase mais complexa.
— ... Não entendo.
Sarai inclina a cabeça para um lado e descruza os braços, deixando-os pender soltos em toda a sua elegância. Ela se aproxima de mim. Quero tomá-la nos braços e beijá-la, mas não consigo.
Por que eu não consigo, porra?
— Victor, eu entendo agora que não consigo viver assim. Pelo menos não com você. E com Fredrik. Vocês dois são profissionais, e eu não posso manter essa ilusão de achar que algum dia serei capaz de acompanhar um de vocês, muito menos os dois. — Ela levanta uma das mãos como se eu fosse retrucar, e, embora eu não esteja pronto para falar, percebo que ela deve estar lendo a discordância crescente no meu rosto. — Olha, não estou fazendo isso para chamar atenção. Nem para você me dizer que estou errada. Eu sei que, por mais que eu queira ficar com você, isso não é possível. Se eu não acabar morrendo, vou acabar causando a sua morte. E sei que jamais conseguiria conviver com isso.
— Bom, eu realmente acho que você está errada — digo, com dificuldade, desejando poder explicar melhor.
— Não — rebate ela. — Não estou. E você sabe disso.
— Mas aonde você iria? O que iria fazer? — Meu tom de voz se torna urgente. — Sarai, você já tentou levar uma vida normal. Você tentou, e veja o que aconteceu.
Por que estou dizendo essas coisas? Eu deveria estar comemorando o fato de ela finalmente cair em si.
Ela dá um suspiro suave. Vejo seus ombros delicados se erguendo e baixando.
— Não faça isso — pede Sarai, balançando a cabeça. — Não finge que isso incomoda você, ou que quer que eu mude de ideia. Por favor. Você sabe que isso é o certo, tanto quanto eu sei agora. Se eu tivesse escutado você há mais tempo, se tivesse desistido dessa vingança idiota contra Hamburg e seguido com a minha vida, estaria em casa no Arizona com Dina e Dahlia, e até com Eric...
— Mas você não o amava.
Por que eu disse isso? Entre todas as coisas que eu poderia ter dito, todos os tópicos que poderia ter explorado, por que tinha que ser logo esse?
— Não, não amava. — Ela me olha nos olhos, pensativa. — Mas ele era normal. Era o que você queria para mim, mas na época fui egoísta demais para entender que você estava certo. Aquele tipo de vida era o certo.
Dou um passo para trás.
— Espere — digo, erguendo a mão por um momento e passando a ponta do dedo pela boca, olhando para baixo. — Então você está dizendo que quer uma vida normal agora?
— De jeito nenhum — responde ela, balançando a cabeça. — Eu jamais conseguiria voltar para aquilo. Só estou dizendo que, se eu não tivesse insistido no meu plano de matar Hamburg, as coisas não estariam tão ruins como estão agora.
Inclino a cabeça para o lado, com uma expressão confusa no rosto cada vez mais sério.
— Então o que você está dizendo, exatamente? O que vai fazer? Começar a matar gente por conta própria?
Isso é quase risível para mim, mas não deixo minha opinião transparecer. Sei que Sarai tentaria. Sei que ela mataria e talvez até conseguisse se safar algumas vezes, mas não para sempre. Não sem os recursos que tenho.
— Ainda não decidi — responde ela.
Sarai coloca a mão no puxador da porta de vidro e a desliza, deixando a brisa suave do fim de tarde entrar na casa. Ela sai para o pátio dos fundos.
Estou lá fora ao lado dela antes que minha mente alcance o movimento apressado das minhas pernas.
— Você não está falando coisa com coisa.
Sarai entra no alcance do sensor de movimento, e a luz inunda o pátio de concreto. Ela fica no limite do feixe brilhante, deixando só parte do rosto coberto pela penumbra do sol quase extinto.
— Eu tenho pendências no México — esclarece ela, e fico atordoado. — Hamburg não é a única pessoa que pensei em matar nos últimos oito meses, Victor. — Ela olha para a paisagem plana de novo. Só consigo olhar para ela. — Quando você e Fredrik me contaram que os irmãos de Javier estão no comando da operação, isso só inflamou meu ódio. Eles precisam morrer. Todos eles. Cada um daqueles babacas envolvidos. Todos os Andrés e Davids. — Ela me olha. — Ainda há muitas garotas com eles. Eu sei que havia 21 quando fugi escondida no seu carro. Dezenove agora, sem Lydia e Cordelia. Que tipo de pessoa eu seria se seguisse com a minha vida sabendo que lá no México há uma fortaleza onde um monte de garotas das quais aprendi a gostar estão sendo mantidas à força? Sendo estupradas, espancadas e mortas?
Faço menção de tocá-la, mas paro no último instante.
Não sei por que isso é tão difícil para mim... Por que há tanto conflito dentro de mim...
Sarai sai do alcance do sensor e a luz se apaga, imergindo-nos na meia-luz. Uma brisa leve balança o cabelo dela, fazendo-o dançar suavemente nas costas.
— Isso é tolice, Sarai — digo, enfim encontrando palavras que acho adequadas. — Mesmo com a minha ajuda, fazer uma coisa dessas levaria muito tempo. O que faz você crer que conseguiria sozinha? Como encontraria a fortaleza sem a minha ajuda, para começar?
— Eu consigo fazer isso sozinha — retruca ela, com calma, mas com uma determinação inabalável. — Quer dizer, posso pelo menos tentar, e isso é melhor do que não fazer nada. E você não me dá o crédito que mereço, Victor. Sou tão capaz de somar dois mais dois quanto você. Posso pegar o que aprendi, informações às quais tive acesso, e encontrar o caminho para lá. Não deve ser difícil encontrar Cordelia. Sei que ela mora na Califórnia. Sei que ela é filha de Guzmán e que você foi enviado para a fortaleza por ele para encontrá-la e matar Javier Ruiz por tê-la raptado. Até sem você sou capaz de descobrir a localização da fortaleza. Vou começar com Cordelia e Guzmán.
Minha garganta está seca. Meu estômago parece um bloco de concreto.
Ela tem razão, não lhe dei o crédito que merecia. Sarai é muito mais esperta do que eu imaginava. Sabia que ela era inteligente, mas com certeza fiquei surpreso.
Ela não sorri nem se gaba de tudo isso, só fica ali me olhando concentrada, com intensidade e o tipo de determinação que me assustam tanto. A fúria assassina e vingativa de Sarai é muito mais profunda do que eu pensava, mais profunda do que ela me revelou.
Como não percebi isso?
— E também tem os ricaços que Javier me levava para visitar, me exibindo para que quisessem comprar as outras garotas — conta ela, com desprezo. — Eu lembro o que você me contou. John Gerald Lansen, você disse que ele é o diretor-executivo da Balfour Enterprises. — Sarai assente, confirmando o nome no meu rosto. — É, eu me lembro de muita coisa. E passei muito tempo na casa da Dina antes de ir a Los Angeles para matar Hamburg, pesquisando esses homens. Lembrando aos poucos os nomes, os rostos, somando dois mais dois para descobrir quem eles são, onde moram, quanto dinheiro têm. Quando eu não estava pensando em você, estava mergulhada neles, aprendendo tudo o que podia sobre esses caras com o objetivo de matá-los aos poucos, um por um. — Ela fica na minha frente e me olha nos olhos. — E é isso o que pretendo fazer.
— Você não vai conseguir sem mim.
Estou ficando furioso. Como Sarai pode dizer essas coisas, tomar uma decisão dessas sem me envolver?
Minhas mãos estão tremendo.
Desvio o rosto, sabendo que, se olhar demais, vou me perder nas profundezas daqueles olhos verdes.
— Tolice — digo, pronto para dar a noite por encerrada e acabar com aquela conversa absurda. — Vou tomar banho e dormir. Pode vir comigo se quiser.
Quero que ela aceite.
Sinto que ela não vai aceitar...
— Eu não vou com você. Estou falando sério. Quando isto acabar, quando os dois estiverem mortos, eu vou embora.
Eu me viro para ela com as mãos fechadas, sentindo os punhos da minha camisa branca mais apertados nos meus pulsos.
— Você não vai a lugar nenhum. Não desse jeito. Não vou deixar. — Dou uma risada seca. — Meu Deus, Sarai, você tem mesmo muito a aprender. Estou chocado por você não perceber a idiotice que isso é!
— Idiotice? — repete ela, com desprezo. — Não... Tudo bem, talvez você tenha razão, mas o que é ainda mais idiota é achar que eu poderia ter algum tipo de vida com você. Eu me odeio pelo que fiz você passar, pelo que fiz Dina passar. E estou aqui, como uma órfã abandonada à sua porta, esperando que você cuide de mim, me alimente e me ensine como levar uma vida fora do convencional e não morrer fazendo isso. Você não pediu por isso, eu nunca deveria ter me jogado na sua vida como fiz.
De tanto tempo cerrando com força os dentes sem perceber, eles estão começando a parecer plástico. Meu peito sobe e desce com a respiração profunda, furiosa e até apavorada. Sinto que não pisco há minutos, meus olhos estão começando a secar com a brisa incessante que os atinge. Parece que meu coração quer sair do peito.
Nunca me senti assim antes... pelo menos não desde criança. Nunca estive tão furioso e... assustado.
— Sinto muito ter feito você passar por isso, Victor — repete Sarai, com calma e sinceridade. — Quero agradecer por tudo o que você fez para me ajudar. Duvido que qualquer coisa que eu possa fazer ou dizer retribuirá a sua ajuda. Eu sei. Mas o mínimo que posso fazer é deixar você em paz para viver a sua vida do jeito que você sabe. Você não precisa de alguém fazendo merda o tempo todo.
Ela me dá as costas e começa a se afastar.
— Sarai! — grito, e ela para no mesmo instante. Tento acalmar minha voz. — Espere... espere só um minuto.
Ela se vira para me olhar.
Estou tropeçando nas palavras que se formam na minha cabeça, tentando escolhê-las na minha confusão e juntá-las de forma adequada para que façam sentido. Mas é difícil. É difícil pra cacete!
— Eu... — Olho para os meus sapatos, para a cadeira de ferro batido do pátio, para seus cachos agitados sobre os ombros nus e macios. De novo olho para os meus sapatos. — Eu não quero que você vá embora.
— Mas eu preciso ir, Victor — insiste Sarai, com tanta ternura e compreensão na voz que quase racho ao meio. — Você sabe que preciso. É o melhor para nós dois.
— Não — digo com severidade, erguendo o queixo e me recompondo. Não vou aceitar isso. — Você vai ficar comigo. Eu posso manter você segura. Não vamos mais falar disso. Agora vamos para cama.
Estendo a mão para ela.
— Não, Victor. Sinto muito.
Pego a mão de Sarai e a puxo para perto de mim. Ela não resiste nem se encolhe, tampouco parece surpresa. Seguro seu rosto com as mãos e a admiro, seus olhos quase infantis, embora tão sagazes. Uma pequena loba se esconde dentro daquela corça. Minha loba.
— E-eu quero que você fique comigo.
— Por quê?
— Porque é isso que eu quero.
— Mas isso não é motivo, Victor.
— Não importa, Sarai, você precisa ficar comigo.
— Mas eu não vou ficar.
Eu a sacudo, ainda segurando seu rosto.
— VOCÊ NÃO PODE IR EMBORA! — Minha alma está tremendo. Não consigo suportar essas emoções.
Ela ainda não reage, mas vejo seus olhos começando a marejar.
Sarai balança a cabeça nas minhas mãos com delicadeza.
— Eu vou embora e não tem nada que você possa fazer para mudar isso.
— NÃO, SARAI! EU PRECISO DE VOCÊ NA MINHA VIDA!
De repente, eu a solto e olho para minhas palmas, abertas à frente, como se de alguma forma elas tivessem me traído. Meu peito se agita em um turbilhão, como se emoções que estavam adormecidas durante a vida toda tivessem enfim acordado e eu não soubesse mais o que fazer.
Querendo apenas me esconder no quarto para tentar entender o que acaba de acontecer comigo, giro sobre os calcanhares e sigo para a porta de vidro.
— Victor. — Eu a ouço chamar baixinho atrás de mim.
Paro. Não tenho forças para me virar.
Sinto que Sarai se aproxima por trás, sinto o calor de sua presença, o aroma doce da sua pele.
— Olhe para mim — pede ela, com a voz leve como a brisa.
Eu me viro devagar.
Ela se aproxima e segura meu rosto com as mãos, com mais delicadeza do que quando segurei o dela. Inclina a cabeça para um lado e depois para o outro, me encarando com os olhos cheios de lágrimas. Ela fica na ponta dos pés e me beija de leve na boca.
— Não reprima nada — diz ela, com uma urgência suave. — Diga tudo o que está sentindo agora. Neste exato momento. Por mais errado, constrangedor ou esquisito que pareça, diga assim mesmo. Por favor...
Não notei quando minhas mãos se ergueram e seguraram os pulsos dela, com a mesma delicadeza com que seus dedos tocam minhas bochechas. E me examino por dentro, tentando entender o que Sarai está fazendo comigo. O que ela fez comigo. Penso no que ela disse e, contrariando minha aparência tão dura, só quero lhe dar o que ela deseja.
— Eu... Sarai, eu nunca me senti assim antes. — Não consigo olhá-la nos olhos, mas ela me força a isso mesmo assim.
— Conta tudo. Eu preciso ouvir.
O desespero na voz dela é apaixonado e condiz com o que sinto por dentro. Examino o rosto dela. Seus olhos. Sua boca, os lábios tão suavemente entreabertos que fazem a boca parecer inocente e convidativa. As maçãs do seu rosto. Seu queixo. A linha elegante do seu pescoço.
Mas os olhos dela...
— Sarai, você é importante para mim — digo, desesperado, em um murmúrio urgente. — Você é mais importante para mim do que qualquer coisa ou qualquer pessoa. Ter você aqui comigo não é um fardo. Eu quero treinar você. Pelo tempo que for necessário. Quero acordar todo dia com você ao meu lado. Preciso de você na minha vida mais do que jamais precisei ou quis qualquer outra coisa.
Faço uma pausa e olho para baixo. E então me afasto dela. Suas mãos abandonam meu rosto.
Engulo em seco.
— Não vou forçar você a ficar comigo — obrigo-me a dizer, apesar do que sinto. — Mas saiba de uma coisa... Se você partir, você vai se tornar um fardo. Se você acha que ficando aqui vai foder a minha vida, nem faz ideia de como isso vai ser verdade se tentar ir embora e ficar sozinha. Porque eu vou passar cada momento de cada dia da minha vida tentando proteger você! — Meu coração está disparado. — Não vou conseguir dormir sabendo que você está por aí, tentando se encaixar em uma vida que não passa de uma sentença de morte para quem não tem um treinamento adequado! Sarai... ISSO VAI ME MATAR! SERÁ QUE VOCÊ NÃO ENTENDE? VOCÊ VAI ME MATAR SE DECIDIR IR EMBORA! — Estou tremendo todo, meu corpo todo abalado por dor, medo e angústia.
Em um segundo, Sarai está diante de mim novamente, a poucos centímetros do meu peito, seus dedos dançando no meu rosto como instantes atrás. Ela parece calma. Mas há algo mais em seus olhos, agora, algo que não estava lá há pouco. Alívio? Felicidade? Não consigo decifrar a emoção, quando tudo o que quero é puxá-la para perto de mim e abraçá-la até morrermos.
Ela passa a ponta do dedo indicador sob meu olho. Uma lágrima.
Uma lágrima?
Consumido pela confusão, não consigo falar nem me mexer. Olho primeiro para a mão dela e vejo o que resta da lágrima brilhando em seu dedo. Volto a fitar seus suaves olhos verdes, que estão sorrindo para mim, não com arrogância, mas com ternura.
Lobinha esperta...
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
Victor
— Desculpa — pede ela, com nada além de ternura. — Mas eu precisava saber o que você sentia de verdade, Victor.
Eu me sento na cadeira de ferro preto do pátio, esticando as pernas. Colocando o cotovelo no braço da cadeira, apoio a cabeça exausta nas pontas dos dedos.
Sarai se ajoelha na minha frente, no meio das minhas pernas estiradas.
— Ficar com você significa mais para mim do que fazer parte do seu trabalho. Eu precisava saber que você quer de mim a mesma coisa que quero de você. E... quando estamos juntos, sempre sinto que sou mais parte do seu trabalho do que do seu coração.
Ela tenta encontrar meu olhar, mas estou concentrado demais no chão de concreto. Ouço cada palavra que Sarai diz, mas ainda estou muito perplexo com as emoções que ela arrancou de mim para olhá-la nos olhos.
Sinto que não consigo encará-la. Não por estar com raiva dela, mas por vergonha.
— Você tem sido impenetrável desde o dia em que nos conhecemos — continua ela, segurando minha mão. — A única situação em que sinto uma ligação emocional de verdade com você é quando dormimos juntos. Eu ficava muito frustrada. Porque sabia que, por baixo de todas essas suas camadas, isto, isto aqui... — ela aperta meus dedos enfatizando essas palavras — ... que você acabou de me mostrar estava lá o tempo todo, só querendo ser libertado. Eu... Victor, por favor, olha para mim.
Relutante, levanto a cabeça e a olho nos olhos.
— Eu não quero ser o seu trabalho. Quero trabalhar com você. Quero aprender com você. Mas quero sentir que sou importante do ponto de vista emocional quando o trabalho não estiver interferindo. Victor, eu sei que não é culpa sua. Sei que você não pode mudar seu jeito, o modo como você se isola emocionalmente do mundo. Mas eu precisava tentar ajudar a desfazer o que Vonnegut e a Ordem fizeram com você.
— Você me manipulou — afirmo, sem dizer mais nada.
Ela abaixa o olhar.
— Desculpa.
— Não peça desculpas. — Ergo as costas da cadeira, inclinando o corpo para a frente e enfiando as mãos sob os braços de Sarai. Eu a levanto e a ponho no meu colo. — Nunca peça desculpas.
Com uma das mãos, viro o queixo dela na minha direção, para fazê-la me olhar.
— Você fez o que precisava fazer — digo, e espero que ela se lembre disso mais tarde. — Não posso culpar você.
— Não está bravo? — pergunta ela.
Balanço a cabeça.
— Não. Acho que “grato” é um termo melhor.
Ela sorri. Eu também sorrio e a beijo.
— Parece que estamos ajudando um ao outro.
Ela inclina a cabeça, pensativa, e presta atenção.
— Sarai, eu estou ajudando você a se tornar o que quer ser, a viver a vida que escolheu viver. Você nunca teve direito de escolha antes. E você está me ajudando a recuperar o tipo de vida que tiraram de mim, me mostrando como é ser algo mais do que um assassino, a sentir algo mais do que a necessidade de matar. E, por isso, eu jamais poderia ficar bravo com você.
Ainda acomodada na minha perna esquerda, ela se curva e me beija de leve no canto da boca. Seguro sua cintura com as duas mãos, entrelaçando os dedos. Ficamos assim em silêncio por alguns momentos. O sol já sumiu do horizonte e as estrelas estão acordadas na escura imensidão do céu que paira acima de todos nós, em uma exuberância de tirar o fôlego.
— Então, quanto daquilo era verdade? — pergunto a ela.
— Tudo — responde Sarai. — Menos a parte sobre eu ir embora.
Balanço a cabeça, distraído, pensando muito em todas as coisas que ela me revelou esta noite.
— Você sabe que ninguém vai nos pagar para voltar ao México. Seria só um acerto de contas.
— Eu sei. — Ela assente. — Mas é importante para mim. Aquelas garotas são importantes para mim.
Passo a mão esquerda pelas costas dela e a apoio em sua nuca. Puxando-a na minha direção, aninho sua cabeça no meu ombro.
— Então é importante para mim. Pode levar meses, até um ano ou dois, para juntar todas as informações de que precisamos, todos os recursos, mas vamos conseguir. E vamos conseguir juntos. Mas você precisa me prometer que vai ser paciente e vai...
— Eu dou a minha palavra — interrompe ela. — Não importa quanto tempo leve. E vou seguir os seus comandos e as instruções em cada passo. Não vou cometer os mesmos erros de novo.
Logo depois da nossa conversa no pátio, levo Sarai para o banheiro e lavo o cabelo dela, sentada entre as minhas pernas na banheira.
Conversamos por um longo tempo sobre a vida como era antes. Sobre quando ela morava com a mãe, antes que a mãe descobrisse as drogas e os homens. Quando elas se sentavam juntas para assistir a desenhos animados na TV nas manhãs de sábado. Falamos sobre a minha vida antes que eu fosse capturado pela Ordem. Sobre como eu jogava Dosenfussball (futebol com latinha) e Verstecken (pique-esconde) com Niklas quando eu tinha 6 anos, na Alemanha.
Ficamos tão perdidos nas lembranças de quando nossas vidas eram mais simples e mais inocentes que esquecemos como as coisas estão agora.
Também esqueço, só por um momento, que as coisas entre nós não estão completamente definidas.
E pode ser que nunca estejam.
Sarai
Acordo na manhã seguinte e encontro o lado de Victor da cama frio e vazio. Aperto o travesseiro dele contra o peito e o seguro perto de mim. Ele tinha uma reunião às oito com um contato em Bernalillo. Queria que eu fosse junto, mas fico exausta com as viagens, sobretudo quando não são de avião.
Já que a localização da academia de krav maga foi “comprometida”, como Victor diz, ele acha melhor sairmos do Novo México quanto antes. Meu objetivo do dia é fazer as malas, levando tudo o que eu puder da casa. Isso, contudo, não deve ser tão difícil, já que o guarda-roupa e os pertences de Victor não são iguais aos de uma pessoa normal. Ele não tem uma “gaveta de cacarecos” onde joga vários itens que vão ficar lá, sem serem usados, pelo resto da vida. Os armários não são cheios de caixas velhas de sapatos e pilhas de documentos guardados só por segurança, ou roupas que ele não veste há cinco anos. Os armários da cozinha não são cheios de jogos caros de porcelana que só são retirados do lugar nos feriados e em ocasiões especiais. Não há retratos de família pendurados em uma bela fileira na parede do corredor, nem enfeites organizados em uma estante, recebidos de pessoas importantes, dos quais ele não consegue se desfazer por razões sentimentais. Algumas caixas devem bastar. Os ternos dele. Minha coleção cada vez maior de roupas, perucas, joias, maquiagens e um zilhão de sapatos. Parece que vou encaixotar só as minhas coisas.
Aperto um botão no controle remoto e a TV de LCD da sala ganha vida. Deixo em um dos canais de notícias só para fazer barulho de fundo. O sol atravessa a porta de vidro que emoldura a vista do Novo México atrás da casa. Observo a paisagem só por um momento, sentindo que preciso mudar de ares. Depois de passar a maior parte da minha vida no México, rodeada de areia, árvores retorcidas, grama seca e calor... bem, fico feliz em me mudar. Victor disse que a nova casa vai ser em Washington ou Nova York. Qualquer uma das duas cidades está ótima para mim, ambas bem diferentes daquilo com que estou acostumada.
Vou saber com certeza amanhã.
Tomo um café da manhã simples, um ovo mexido e uma fatia de torrada acompanhados por um copo de leite. Faço meus exercícios matinais e tomo um banho rápido, vestindo um short preto e um top apertado de algodão da mesma cor. Prendo o cabelo em um rabo de cavalo, separo em duas metades e puxo, para deixá-lo mais firme. De pé diante do enorme espelho do banheiro, começo a me maquiar, mas percebo que estou com muita preguiça para isso no momento e volto a cuidar da mudança. Enquanto pego os ternos de Victor do armário, um por um, e os guardo em capas compridas com zíper, sinto alguma coisa sob a minha mão ao ajeitar uma manga sobre o peito do paletó. Afasto a manga na cama e desabotoo o paletó. Enfio a mão no bolsinho interno e pego um pequeno envelope. É meio grosso, mais ou menos 1 centímetro.
Antes de tirá-lo todo do bolso, penso em guardá-lo de novo, minha consciência me dizendo que aquilo não é da minha conta. Mas olho mesmo assim.
O envelope está velho e surrado, com as bordas esgarçadas e amarelado. É pequeno, mais quadrado do que retangular, e deveria ser de algum cartão de aniversário ou convite. Há fotografias dentro. Fotografias antigas. Tiro a aba de dentro do envelope e o abro, despejando a pequena pilha na mão. A primeira foto é de um homem de cabelo claro e queixo forte. Ele usa camisa branca e gravata marrom. Está sentado em uma poltrona de couro, rodeado por paredes revestidas com um papel cafona que imita tapeçaria. Um garotinho de cabelo castanho e uma menina ainda mais nova com cabelo louro bem claro estão de pé ao lado dele, dando um sorrisão para a câmera.
A foto seguinte é também do menino e da menina, posando com uma mulher loura, de cabelo longo e ondulado, linda, ao ar livre, no que parece ser um parque.
Todas as fotos são velhas, alaranjadas e com rachaduras nas bordas, onde elas foram dobradas ao longo dos anos. Olho cada uma delas e leio o verso. Versalhes, 1977; Paris, 1977; e Versalhes, 1976, rabiscados no canto esquerdo e quase ilegíveis, pois a tinta começou a desbotar. Nas fotos seguintes, o menino está mais velho, talvez com uns sete ou oito anos, e está de pé com o braço sobre o ombro de outro menino. Munique, 1981, e Berlim, 1982. Meu coração afunda quando me dou conta de que todas aquelas fotos são de Victor e Niklas, com quem acredito serem seu pai e a mãe de Victor. A menina deve ser uma irmã.
Parte meu coração saber que ele carrega essas fotos assim. É mais uma prova de que Victor não é desprovido de emoções, de que no fundo de sua alma há um homem que ficou escondido do mundo, forçado a carregar as únicas lembranças da infância dentro de um bolso.
É a prova de que ele é humano, um ser humano perdido e traumatizado que quero desesperadamente curar.
Viro a cabeça ao ouvir passos dentro da casa.
Deixo as fotos na cama e pego a 9mm do criado-mudo, tirando o pente para verificar se está cheio. Insiro o pente na arma de novo e, descalça, corro em silêncio pelo quarto, com as costas coladas na parede, na direção da porta. Mantenho a arma na altura da cabeça, segurando-a com as duas mãos, e paro para escutar. Nada. Quer dizer, nada além da porcaria da televisão, que me arrependo de ter ligado.
Começo a achar que só pode ser Fredrik, mas não vou me arriscar.
Ainda com as costas na parede, contorno o batente e vou para o corredor ao ver que está vazio. Uma sombra se move no piso de terracota na outra extremidade do corredor, e eu fico imóvel. Sinto o coração pulsar nas pontas dos dedos, coçando para apertar aquele gatilho com toda a força. Continuo imóvel, com gotículas de suor surgindo na nuca, e fito o chão por um longo momento, sem piscar, temendo perder algum outro movimento. Ouço os passos de novo, mais distantes desta vez, e ando com cuidado pelo corredor na ponta dos pés.
Ao chegar perto do fim, paro a centímetros do canto e encho os pulmões de ar. Expiro devagar e em silêncio antes de prestar atenção de novo. As vozes do noticiário falando sem parar sobre o “Obamacare” me dão nos nervos, pois se sobrepõem a quaisquer vozes ou passos que eu poderia ouvir e saber de que direção estão vindo.
Finalmente, ouço vozes murmurando:
— Verifique os quartos — diz um homem. — Ela deve estar escondida debaixo de uma cama ou dentro de um armário.
Não, babaca, estou esperando que você venha pelo corredor para meter um tiro na sua cara.
Um homem de terno preto surge no canto, de arma em punho, e eu atiro no mesmo instante em que ele aparece no fim do corredor. O tiro ecoa nos meus ouvidos, e o homem cai no chão, o sangue esguichando do ferimento na lateral do pescoço. Ele tosse e sufoca, tentando cobrir o ferimento com as mãos, agora cobertas de sangue.
Dou a volta no corpo dele, ignorando os perturbadores sons de gargarejo que ele faz, e viro a quina da parede, atirando mais três vezes. Consigo atingir mais um homem antes que uma dor cegante atravesse minha nuca. Enquanto caio, vejo o segundo homem em quem atirei caindo à minha frente. E vejo Stephens, de pé ao lado do cadáver, em toda a sua glória altiva e sombria. Minha arma não está mais em minhas mãos, e estou tão desorientada pelo que bateu na minha nuca, seja lá o que for, que demoro um pouco para me dar conta de que estou deitada no chão frio, com a bochecha encostada em uma fenda do assoalho. Apalpo minha nuca e sinto sangue nos dedos quando toco o cabelo.
Stephens se agacha ao meu lado, com um sorriso ameaçador criando rugas profundas ao redor de sua boca dura. Seu cabelo grisalho parece mais escuro, ele parece maior, a covinha no centro de seu queixo, mais pronunciada. Ele me olha de cima, apoiando os cotovelos nas coxas, com as mãos enormes relaxadas entre as pernas, o pulso direito adornado com um grosso relógio de ouro. Ele tem um cheiro forte de colônia e charutos.
— Você é difícil de achar, garota — observa Stephens.
— Vai se foder — digo, tão casualmente quanto se estivesse comentando que o tempo está bom.
Stephens abre um grande sorriso com a boca fechada, e é a última coisa que vejo antes que tudo fique preto.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Sarai
Acordo devagar com um zumbido baixo e profundo, bem acima de mim, acompanhado por um som rápido e constante de vento. Minha visão está embaçada e enxergo apenas uma luz fraca e acinzentada, que de início se curva e se distorce ao atingir meus olhos. O ar parece muito úmido, as costas da minha camiseta e o espaço entre os meus seios e minhas axilas estão empapados a ponto de me fazerem sentir um calafrio terrível quando a brisa estranha me atinge. Minhas mãos estão amarradas atrás das costas, como amarrei as mãos de Izel quando ela veio atrás de mim depois que fugi no carro de Victor. Penso nela por um momento, no modo como ela olhou para mim naquele dia, como seu cabelo escuro e suado grudava no rosto. Imagino que eu deva estar parecida com ela agora, só que meu cabelo ainda está preso em um rabo de cavalo.
Logo percebo que meus tornozelos também estão amarrados.
Forço meus olhos a se abrirem completamente e luto para pôr minha visão em foco. Estou sentada em uma cadeira no meio de uma sala enorme, escura e empoeirada, em uma espécie de galpão velho.
Rio por dentro, pois vejo o rosto de André Costa na cabeça, como ele estava naquele galpão em Nova Orleans.
Tudo o que vai volta, suponho. E a vingança por todas as mortes que causei ou das quais participei está chegando mais cedo do que eu esperava.
A brisa estranha e o som de vento acima de mim, percebo agora, estão vindo de um grande ventilador industrial construído na parede, perto do teto alto. As paredes são feitas de concreto, e o teto de trilhos de metal que vão de uma ponta à outra é sustentado por pilastras compridas também de concreto. O lugar tem um cheiro forte de solvente, cola e outros produtos químicos que fazem mal aos pulmões.
Minha garganta está tão seca que dói. Meu primeiro impulso é pedir água, mas, assim como soltar a corda que prende meus pulsos e tornozelos, sei que nada que eu pedir será concedido.
Olho para baixo, sinto o peito dos pés ardendo e vejo que a pele dos dedos dos pés está dilacerada, indicando que em algum momento devo ter sido arrastada.
Passos ruidosos, como de solas duras, ecoam pelo espaço amplo quando Stephens se aproxima de mim.
Prendo um riso do ridículo daquela situação.
— Posso perguntar o que é tão engraçado? — indaga Stephens, com sua voz grave e também parecendo achar graça.
Sorrio em desafio quando ele para diante de mim, com as mãos nas costas.
— Pensei que você e aquele maluco de merda para quem você trabalha queriam me matar. — Eu rio. — Isto aqui é um pouco exagerado, não acha? — Abro um sorrisinho para ele.
Stephens dá um sorriso frio que imediatamente me lembra a expressão no rosto de Fredrik quando ele prendeu André Costa naquela cadeira de dentista. Em vez de responder, Stephens vira para a direita e vê outro homem se aproximar, trazendo uma cadeira. As pernas de madeira raspam um pouco no concreto quando ela é colocada no chão, ecoando pelo pequeno espaço que nos separa. Stephens se senta, ajeitando de maneira despreocupada seu belo terno preto, puxando a lapela e espanando uma poeira invisível da perna.
— É sério isso? — pergunto, balançando a cabeça. — Deixe eu adivinhar... Hamburg ainda quer seu showzinho. Não conseguiu comigo e com Victor no quarto dele na mansão. Não conseguiu com o guarda-costas dele no escritório do restaurante. A propósito, fiquei feliz em saber que aquele merda morreu. Era seu amigo? — Meu sorriso fica mais evidente.
Os olhos de Stephens sorriem. Ele cruza a perna e põe as mãos com delicadeza no colo. É muito enervante como ele parece calmo e imune às minhas palavras. Mesmo assim, não deixo que ele perceba que isso me incomoda.
— Acredite, Izabel, Sarai ou qualquer que seja o seu nome, se dependesse de mim, eu teria matado você naquela casa, em vez de trazê-la para cá.
— É claro, você é só o criadinho dele, ajoelhado aos pés de Hamburg, esperando que ele peça o próximo boquete.
O teto surge no meu campo de visão por um instante quando alguém puxa meu cabelo, meu pescoço tão forçado para trás que não consigo respirar. Outro homem está de pé atrás de mim, olhando nos meus olhos arregalados. Tento engolir, mas não consigo. Começo a engasgar e tossir, em vez disso.
— Pode soltar — ouço Stephens dizer.
O homem me solta e minha cabeça cai para a frente. O peso do meu corpo faz a cadeira tremer e balançar um pouco até se estabilizar. Fico aliviada por conseguir respirar de novo. Levanto a cabeça e fuzilo Stephens com o olhar enquanto ele continua sentado diante de mim, a apenas meio metro. Começo a correr os olhos pela sala procurando uma saída, tentando formular um plano que sei que jamais vai se materializar. Mesmo se eu tivesse alguma chance de sair desta sala, não sei como poderia me soltar das amarras. Meus pulsos estão tão presos que a circulação parece ter sido cortada. As fivelas nos meus tornozelos estão muito apertadas também, mas sinto que posso movê-los um pouquinho, esmagando-os nas pernas da cadeira. Mas não vou a lugar nenhum. A não ser para o inferno, talvez, e logo.
Não tenho medo de Stephens, não tenho medo do que ele vai fazer comigo. Não tenho medo de ser torturada. Só tenho medo do quanto vai durar.
— Por que você não acaba logo com isso? — sugiro, com rispidez, ódio e vingança evidentes na voz. — Não ligo para o que você vai fazer comigo, ou para o que Hamburg vai fazer, então ande logo.
— Ah, mas você não está aqui por causa de Hamburg. — Stephens abre um sorriso de gelar o sangue. — E, não, eu não quero que isto acabe. — Ele se inclina para a frente, aproximando seu queixo quadrado de mim. Sinto o cheiro de sua loção pós-barba. — Espero que você não fale ao menos por alguns dias, porque estou muito ansioso para passar esse tempo com você.
Engulo meu medo de saber o que essas palavras significam: que ele vai me torturar e por muito tempo. Tento amenizar a preocupação, torcendo para que ele não detecte o menor sinal de pavor no meu rosto.
— O que eu poderia saber que você precisasse me fazer revelar, afinal? — Rio, desafiando-o. — E que loção é essa? Fede como se você tivesse mergulhado de cabeça no meio das coxas de uma viciada em crack.
Os olhos de Stephens se movem para a pessoa atrás de mim, estreitando-se, e percebo que ele acaba de impedir o homem de puxar meu pescoço para trás de novo, ou talvez de me dar um tapa. Ele ignora meu insulto.
Stephens se reclina na cadeira de novo. E não diz nada. Odeio isso. Preferiria que ele andasse ao meu redor fazendo um monólogo canastrão a não dizer absolutamente nada. E acho que ele sabe quanto isso me incomoda. A expressão satisfeita dos seus olhos me confirma isso.
— Ok, então, se eu não estou aqui por causa de Hamburg, qual é o motivo?
Outros passos atrás de mim atravessam a sala. Tento olhar para trás, mas não consigo esticar muito o pescoço.
Enfim a figura dá a volta e consigo vê-la.
— Você está aqui por minha causa — afirma Niklas, jogando uma bituca de cigarro no chão e apagando-a com sua bota de couro preta.
Suspiro sem fazer ruído. Meu corpo todo fica rígido na cadeira. Procuro me concentrar na minha respiração, tentando recuperar o controle do meu corpo, mas por um longo tempo não sou nada mais do que uma casca imóvel.
— Niklas... — digo enfim, mas não consigo falar mais nada.
A raiva assoma dentro de mim, e minha necessidade de matar Stephens de repente é ofuscada pela necessidade de dizer a Niklas tudo o que está entalado na garganta.
Diferente de Stephens, Niklas não sorri nem sente a necessidade de me atormentar com ameaças. Sinto algo diferente nele, algo muito mais sombrio do que em Stephens, algo mais ameaçador do que as palavras podem descrever. Olhando aquele homem alto de cabelo castanho-claro arrepiado, os olhos azuis ferozes emoldurados por um rosto perfeitamente redondo, porém bonito, vejo alguém mais afeito à vingança do que eu jamais conseguiria ser.
E, por fim, fico apavorada.
Niklas chega mais perto até ficar bem na minha frente, sem se importar com a proximidade. Stephens ficou pelo menos meio metro longe de mim, como se temesse que eu pudesse cuspir nele, ou me soltar e agarrá-lo. Mas Niklas, não. Sinto que ele está me desafiando a me mexer. Ele quer que eu tente algum movimento.
Engulo em seco, empino o nariz de forma arrogante e tento continuar forte para encarar meu destino.
— Você sabe o que eu quero — diz Niklas, com uma voz tranquila e o mesmo sotaque alemão, ainda evidente na voz. — Ou precisamos discutir a questão em detalhes? — Ele inclina a cabeça para o lado.
Ele se parece tanto com Victor que me pergunto como podem ser tão diferentes por dentro.
— Você vai ter que explicar. É sobre o Victor? — Olho rapidamente para Stephens. — Esse merda estava na casa dele agora há pouco. Você já sabe onde encontrar o Victor. E não que isto me surpreenda muito, mas o que você está fazendo com eles?
Flagro Stephens olhando para Niklas, que, no entanto, não tira os olhos de mim. Ele se agacha na minha frente, no meio das minhas pernas abertas, e me olha com um rosto tão calmo e ameaçador que sinto um calafrio percorrendo a nuca. Dá para sentir o cheiro do couro de sua jaqueta preta e o fraco odor de fumaça de cigarro que persiste na camisa cinza-escura que ele usa por baixo.
— Estou procurando Victor há meses — começa Niklas, e ouço com atenção, mantendo os olhos grudados nele. — Ele sem dúvida contou a você que saiu da Ordem, que traiu a mim, a Vonnegut...
Arregalo os olhos e meu queixo cai em um ofegar.
— Traiu você? — interrompo, incrédula. — Não pode estar falando sério. Você traiu Victor! Foi você que...
Ele estende as mãos fortes e aperta com firmeza minha garganta, me fazendo engasgar e tossir. Eu me agito na cadeira, incapaz de erguer as mãos para tentar tirar as dele. Meus olhos viram para cima quando ele aperta mais forte.
Ele me solta.
Ofego e tento recuperar o fôlego, com os cantos dos olhos molhados por lágrimas de exaustão e dor. Estou apavorada, mas não o suficiente para chorar ou implorar pela minha vida. Prefiro morrer a implorar por qualquer coisa.
— Meu irmão me traiu muito antes de sair da Ordem — diz Niklas, com um pouco mais de emoção na voz do que antes: ressentimento. — Ele me traiu quando se voltou contra tudo o que acreditávamos e ajudou você. Ele me traiu quando mentiu para mim sobre ajudar você. Ele mentiu, Sarai, porque sabia que isso era errado. — Niklas fica na ponta dos pés, pondo-se a poucos centímetros do meu rosto. — Ele quase me matou por sua causa. E ia me matar, se você não tivesse impedido. Foi ele quem me traiu!
Minhas mãos começam a tremer nos braços da cadeira. Meu coração está no meu estômago, revirando-se, perdido e apavorado. Não posso negar, o que Niklas disse é verdade.
Não posso negar...
Ele se afasta alguns centímetros até eu não conseguir mais sentir seu hálito de pasta de dente, mas ainda está muito perto. Um quilômetro seria perto demais.
— Niklas — digo, em uma voz um pouco desesperada, só o suficiente para convencê-lo a me ouvir. — Victor só ia matar você porque era errado me matar. Você não entende? Ele teria feito isso por qualquer um. Não só por mim.
Um sorrisinho aparece em um canto de sua boca, e fico ao mesmo tempo intrigada e preocupada com o significado disso. Niklas fica de pé, vira de costas para mim e se aproxima de Stephens. E então se vira de novo.
— Você não conhece meu irmão tão bem quanto imagina. Não, ele não teria feito isso por qualquer um. Parece que meu irmão é humano, no fim das contas, com isso de ter se apaixonado por você e tudo o mais.
Balanço a cabeça e desvio o olhar.
— Por que eu estou aqui, Niklas? Diga logo o motivo de ter me trazido para cá. Não vou mais lhe dar o prazer da minha conversa.
Stephens se levanta da cadeira, parecendo um gigante perto de Niklas. Ele é bem alto, com ombros largos e cabeça grande e quadrada.
— Detesto admitir — diz Stephens —, mas concordo com essa puta. Vamos logo com isso. — Ele me olha com frieza. — Você está viva porque Niklas precisa de você primeiro, mas quando ele terminar eu vou meter uma bala nessa sua cabecinha linda, cumprindo meu contrato com Arthur Hamburg.
Olho para Niklas.
— Você precisa de mim para quê? — Há veneno na minha voz.
— Você vai me contar tudo o que sabe sobre o meu irmão e sua nova... organização. Quero saber os nomes dos associados, a localização de todos os abrigos e quem toma conta deles. — Noto dentes rangendo atrás das bochechas. — E quero saber até que ponto Fredrik Gustavsson está envolvido nos negócios de Victor.
Balanço a cabeça.
— Bom, antes de mais nada, quem é esse Fredrik Gustavsson? Segundo: eu não sei nada sobre a organização de Victor, seja lá o que isso significa. Ele me disse que saiu da Ordem, sim. E me disse que você o traiu ao continuar na Ordem e aceitar a missão de Vonnegut para matá-lo. Mas não me contou mais nada. Ele disse que era melhor eu não saber.
Os olhos de Niklas se abrandam com um sorriso tênue. Sem mover a cabeça, ele olha para o homem atrás de mim. De repente, a cadeira é puxada, meus pés saem do chão e sinto como se estivesse caindo para trás. Por instinto, lanço meu corpo para a frente quanto posso para evitar que minha cabeça bata no chão de concreto atrás de mim. Sou arrastada pela sala; para onde, acho que não quero saber.
Tudo para. Os pés dianteiros da cadeira voltam a atingir o chão, e então mais três homens, além daquele que me arrastou, seguram meus braços e pernas. Eles começam a me desamarrar, mas, assim que as amarras se soltam, eles me seguram com firmeza pelas mãos e pés. Por mais que lute para me desvencilhar, não consigo me mexer.
— ME SOLTEM! — Esperneio e contorço o corpo, tentando atingi-los com pontapés, arrancar meus braços de suas mãos. — NIKLAS! ME SOLTA!
Ele não responde. Fica ali, no azul-acinzentado do prédio empoeirado, ao lado de Stephens, enquanto meus braços são forçados acima da cabeça e amarrados de novo pelos pulsos com correias de couro penduradas do teto. O mesmo acontece com meus tornozelos. Ouço um rangido e o som da estrutura à qual estou amarrada se encaixando, antes que minhas mãos sejam esticadas bem acima de mim e meus pés descalços sejam erguidos do chão.
— PUTA QUE PARIU! EU VOU MATAR TODOS VOCÊS! ME SOLTEM! — Cerro os dentes com tanta força que sinto uma pontada de dor no maxilar inferior.
Niklas está de pé na minha frente de novo. Não o vi se mover, estava ocupada demais tentando atingir o homem mais próximo à minha esquerda.
— Por que você está trabalhando com eles? — grito na cara de Niklas. — Explica isso! Achei que você trabalhasse para Vonnegut!
Niklas junta as mãos atrás das costas.
— Se quer mesmo saber, tudo bem. Eu conto.
Ele anda de um lado para outro diante de mim e para no mesmo lugar. Mas não consigo deixar de notar Stephens no fundo, o brilho de uma lâmina prateada em sua mão. Ele continua pronto, segurando um punhal na altura do quadril com a expressão de quem está louco para me atacar.
— Quando eu descobri o que aconteceu em Los Angeles, sabia que, se você ainda estivesse viva, Hamburg ia querer garantir que isso não durasse muito tempo — começa Niklas. — Você escapou. Não havia sinal de você no restaurante, nem entre os corpos que foram encontrados no hotel. — Uma imagem do rosto de Eric e Dahlia atravessa minha mente como um soco no estômago. — Você escapou e eu sabia que devia ser porque Victor a ajudou. De repente, Hamburg, Stephens e eu tínhamos algo em comum. Eu queria encontrar o meu irmão. Eles queriam encontrar você. Eu sabia que vocês estariam juntos, então eis o denominador comum.
Meus pulsos erguidos pelas correias já estão doendo, o peso do meu corpo põe muita pressão sobre eles. Sinto meu rosto repuxando enquanto ele fala.
— Por que você não podia achar o Victor sozinho? — pergunto, tentando disfarçar meu desconforto. — Ou por que eles não podiam me achar sem a sua ajuda?
— Eles tinham informações sobre você que eu não tinha — explica Niklas. — Estavam vigiando você havia meses, desde a noite em que você e Victor saíram da mansão.
Rio alto, jogando a cabeça para trás.
— Isso é uma mentira de merda. Se for verdade, por que eles não me mataram antes?
Stephens se aproxima por trás de Niklas.
— Porque Victor Faust ameaçou Arthur Hamburg naquela noite — conta Stephens. — Ele não quis fazer nada que provocasse um novo ataque de Victor Faust. Eu vigiava você só por segurança. Sabia onde você morava, pois é fácil encontrar e seguir uma pessoa que sai de um hospital de Los Angeles depois de levar um tiro. E sabia onde você trabalhava. Com quem andava. Os lugares que frequentava. Pesquisei o passado de Dina Gregory e descobri tudo o que havia para saber sobre a família dela. Também não foi difícil localizá-la, mais tarde.
Meu nariz e minha boca se retorcem em um rosnado.
— Isso ainda não explica por que vocês se juntaram para nos encontrar — observo, com frieza, pensando mais no que ele estava dizendo sobre Dina. E a verdade é que não me importa muito por que eles estão trabalhando juntos. Só estou tentando enrolá-los, prolongando a conversa pelo maior tempo possível.
Stephens e Niklas trocam de lugar, e então Stephens se aproxima de mim. Ele segura a lâmina entre os dedos diante dos meus olhos, para que eu a veja e me sinta intimidada por ela.
Ele me encara de lado, estreitando os olhos.
— Você deve se lembrar do que Victor Faust fez com a mulher de Arthur Hamburg. Com certeza não acha que ele ia simplesmente esquecer isso. — Stephens se curva mais para perto do meu rosto, e seu hálito de vinho barato e charuto me deixa zonza de nojo. — Meu empregador quer ver Faust morto desde a noite em que ele matou a sra. Hamburg. Nós sabíamos onde você estava o tempo todo, mas não fazíamos ideia de onde Faust estava e não tínhamos motivos para crer que você soubesse. E com certeza não sabíamos que ele dava a mínima para você. Acho que ele não se importava, na verdade, caso contrário jamais teria deixado você sozinha daquele jeito. — Um sorriso provocador surge em seu rosto.
Quando ele se afasta, lanço a cabeça para a frente, esperando acertá-lo com os dentes, mas ele foge do meu alcance rápido demais. Fecho os dedos ao redor das correias acima de mim e ergo o corpo por um momento para aliviar a pressão nos meus pulsos. Caio de novo com violência, agitando a estrutura.
Niklas sorri.
Cuspo nele, mas não chego nem perto de atingi-lo.
— Eles não conseguem encontrar Victor sem mim — diz Niklas. — E eu não consigo encontrá-lo sem você. — Ele chega perto de mim de novo, e, embora saiba que conseguiria cuspir nele sem errar, não o faço. A expressão daqueles olhos azul-escuros me deixa submissa de medo. — Por isso entramos em um acordo. Eles me ajudam a encontrar você e eu mato meu irmão para eles.
— VAI SE FODER! — Jogo a cabeça para trás e lhe dou uma cabeçada na testa. A dor penetra minhas têmporas e meu maxilar, e minha visão fica embaçada por um momento.
Niklas se afasta de mim, claramente atordoado pelo golpe, mas não revida. Ele se vira para Stephens, e é este quem faz as honras. Começo a espernear quando ele se aproxima de mim com o punhal.
— Willem — chama Niklas, atrás dele, em um tom estranhamente despreocupado.
Stephens não se vira para olhá-lo, mas para.
— Eu preciso dela viva — afirma Niklas. — Lembre-se disso. Lembre-se do nosso acordo. Eu descubro o que preciso saber, e depois você pode fazer o que quiser com ela.
Balanço a cabeça e rio deles sem emitir som.
— Eu não vou contar nada para você — digo, com rispidez. — Você não vai conseguir me dobrar, seu merda. Você acha que consegue, mas está muito enganado. Você nem faz ideia. — Minha voz está calma, o que me surpreende.
— Bom, isso nós vamos ver — rebate Niklas.
Ele gira sobre os calcanhares e se afasta, o som de seus sapatos pisando no concreto ecoa pelo galpão e some quando ele desaparece do outro lado de uma porta de metal.
O sorriso de Stephens está maior, agora que Niklas foi embora.
E acabo de ficar com mais medo dele.
CAPÍTULO VINTE E SEIS
Victor
Dois dias depois...
Da tela do laptop, a imagem congelada do rosto suado e ensanguentado de Sarai me encara. Assisti milhões de vezes ao vídeo em que Stephens aparece batendo nela e meu irmão tenta em vão fazê-la falar. É uma agonia ver Sarai desse jeito, observar aquele homem, que logo estará morto, machucando-a. É uma agonia também não poder fazer nada a respeito.
Ainda não.
— Ela não vai falar — diz Fredrik, atrás de mim, com uma profunda preocupação com o bem-estar de Sarai em suas palavras.
Ele está à porta do escritório da minha casa em Albuquerque, agora livre dos cadáveres depois que demos um jeito neles. Eu me recuso a abandonar esta casa. Se Stephens me quiser, pode mandar seus homens para cá à vontade. Meu irmão, por outro lado, quer informações primeiro, e todos eles sabem que não conseguirão isso de mim.
— Victor — chama Fredrik de novo, com urgência e até certa súplica. — Você precisa fazer alguma coisa. A gente não pode ficar parado aqui. Eles vão matar Sarai.
— Não tem nada que a gente possa fazer — repito, pois já expliquei isso para ele. E, por mais que me machuque fazer isso, explico tudo de novo. — Não faço ideia de onde ela esteja, Fredrik. Niklas não vai revelar a localização deles enquanto não obtiver a informação que quer. Conheço o meu irmão. Ele é esperto. Não vai arriscar me enfrentar. Não desse jeito. Vonnegut quer mais do que a minha cabeça, ele quer informações. Niklas vai tirar o que precisa de Sarai, e depois me mandar outra mensagem me dizendo onde encontrá-la. Irei atrás dela, e ele sabe disso. E aí ele vai me pegar. Vai ter a mim e todas as informações sobre você, sobre a nossa operação e sobre os nossos contatos.
— E daí?!
Eu me levanto da cadeira da escrivaninha, fazendo-a deslizar pelo chão e bater na parede mais próxima.
— VOCÊ ACHA QUE EU ESTOU GOSTANDO DISSO? — Aponto para ele e depois para o chão.
Me acalmo, controlo a respiração e olho para meu reflexo impreciso nos meus sapatos pretos de verniz.
— Victor, eu não entendo. Por que você não dá a eles o que querem?
Não entendo por que Fredrik, o mestre dos interrogadores, queira tanto que Sarai fale, que sua preocupação com ela esteja me revelando outro lado dele.
Isso também me preocupa.
— Não é tão simples assim. — Levanto os olhos para ele. — Mesmo se eu contar a Niklas o que ele quer saber, Sarai vai morrer. Aliás, ela vai morrer muito antes se eu ceder, se eu entregar você e todos os envolvidos na nossa operação. Quanto mais ela resistir, e quanto mais eu resistir, mais ela vai viver. Até eu pensar no que fazer.
Fredrik se apoia no batente da porta, cruzando os braços. Ele suspira.
— Mas já faz dois dias. Ela não vai aguentar muito mais tempo.
— Ela vai aguentar — digo, confiante.
Eu me viro e olho para o vídeo pausado na tela, as pontas dos meus dedos apoiadas na borda da escrivaninha.
— Então como a gente vai encontrar Sarai?
Olho para o rosto dela por um momento longo e tenso, então fecho o laptop.
— Eu vou encontrá-la.
Sarai
O fedor da minha urina no chão, no canto desta sala escura onde estou trancada há dois dias, está se tornando insuportável. Eu me deito no concreto frio e sujo, com a bochecha apoiada no chão áspero e granulado. Minhas costas ardem, queimam como se as feridas infligidas pelo chicote que Stephens usou para me bater estivessem infeccionando. Aconteceu na noite passada, quando Niklas me deixou sozinha nesta sala. Quando ele voltou, Stephens já tinha me espancado tanto que desmaiei por um tempo com a dor e acordei deitada em uma poça de vômito. Ouvi Niklas e Stephens discutindo fora da sala, do outro lado da porta alta de metal. Niklas não aprovava o modo como Stephens estava me tratando e deixou isso claro.
— EU PRECISO DELA VIVA, PORRA! — gritou Niklas com Stephens. — VOCÊ VAI MATAR SARAI, BATENDO TANTO ASSIM!
Odeio Niklas pelo que ele fez. Comigo. Com Victor. Pelo que está fazendo agora, mantendo-me neste lugar. Mas uma pequena parte de mim está grata por ele não tolerar a brutalidade de Stephens. Não importa, para mim, que ele só esteja sendo intolerante porque me quer viva para revelar informações. Aceito qualquer ajuda que vier.
Ouço o trinco deslizar na porta de metal da minha cela. A porta se abre, raspando um pouco no chão.
Niklas entra. Está trazendo um prato de comida e uma garrafa de água. Outro homem fecha a porta e a tranca.
— Nem se incomode — digo do meu lugar no chão, quando ele se aproxima. — Já que você não me mata nem deixa Stephens me matar, talvez eu morra mais rápido de desidratação.
Niklas põe a comida no chão ao meu lado. Levanto o corpo do chão e a jogo longe com um tapa. Apoiando as mãos na parede, eu me sento, tentando não apoiar as costas por causa dos ferimentos. Minhas costelas também doem. E meu pulso esquerdo. Meu lábio inferior parece inchado. Sinto gosto de sangue na boca. Metálico. Nojento.
— Por que não fala de uma vez? — sugere Niklas, com ar de resignação. Ele está cansado de tudo isso, do tempo que está perdendo. — Você pode encerrar esta noite agora mesmo, é só me contar o que eu quero saber.
Não digo nada.
Niklas se senta no chão diante de mim. Ele sabe que estou fraca demais para resistir. Já tentei, e isso só tornou a dor nas costelas e nas costas mais insuportável.
— É melhor eu olhar as suas costas — sugere ele.
— Por que você se importa, caralho? Ah, esqueci, porque precisa descobrir o que eu sei. — Inclino a cabeça para perto dele, com os olhos cheios de um ódio inabalável. — A verdade é que eu sei tudo. Sei com quem Victor está envolvido, quem está ajudando, onde ficam seis abrigos dele. Sei tudo, Niklas, e não vou contar nada!
Faço uma careta e cubro as costelas com os braços quando uma pontada de dor atravessa meu corpo.
— Muito bem. — Ele fica de pé.
Ele vai até a comida, coloca tudo de volta no prato (um sanduíche destruído, alguns picles e um punhado de batatas fritas) e pega a garrafa d’água do chão. Ele volta e coloca tudo perto dos meus pés.
Então se agacha na minha frente.
— Ele não vem salvar você, Sarai — afirma Niklas, com tranquilidade.
Estendo o braço com o pouco de força que me resta para agarrá-lo, mas paro de repente, querendo ouvir o que ele tem a dizer. Não importa que eu não vá acreditar. Quero ouvir mesmo assim.
Seus olhos azuis parecem se suavizar.
— Mandei dois vídeos de você para o meu irmão. Dei a ele a localização de onde estamos, disse onde você estava. Era uma chance de se entregar. De revelar as informações. Mas ele não respondeu. — Então Niklas abre a mão, com a palma para cima, e mostra a sala com um gesto enquanto apoia os braços nas pernas. — E você pode ver que ele não está aqui. Dois dias e nada. — Ele baixa a mão. — Victor não vem salvar você. Quer saber por quê? Vou contar. Porque o trabalho sempre vai ser a prioridade na vida dele. Ele nunca vai cometer os mesmos erros que Fredrik Gustavsson cometeu por causa de uma mulher.
Levanto o queixo.
— Ah, mas isso não é verdade — digo, com desdém. — Ele traiu você por minha causa, lembra? Você mesmo disse isso. Saiu da Ordem por minha causa. Ele quase matou o próprio irmão por minha causa. Lembra, Niklas? — Cutuco a ferida, fitando seus olhos furiosos enquanto tento resistir à dor física.
Niklas abre um sorriso malicioso.
— Sim, ele fez tudo isso. Mas eu via no meu irmão o desejo de se libertar de Vonnegut bem antes de você entrar na vida dele. E ele não está mais na Ordem agora. Está livre de tudo, e, sim, você foi uma parte importante disso, do motivo para ele sair. Você deu o empurrão de que ele precisava, acho. — Ele volta a me olhar com uma expressão severa. — Mas você não vê o que não mudou? Pense, Sarai. Em vez de se libertar de uma vida de assassinatos, como qualquer um em seu juízo perfeito faria, como qualquer um que tivesse uma consciência faria, ele cria sua própria Ordem. Ainda pensa apenas no trabalho. Apenas em matar para ganhar a vida. Porque é só o que ele sabe fazer, e nunca vai aprender outra coisa. — Niklas balança a cabeça para mim, como se sentisse pena da minha ignorância por não ter visto as coisas que ele viu.
Desvio o olhar.
Uma parte de mim, uma parte envergonhada e culpada, não consegue deixar de acreditar nele, no fim das contas.
Niklas se levanta novamente.
— Acredite no que quiser, Sarai — continua ele, baixinho. — Mas você sabe tão bem quanto eu que, se ele viesse salvar você, já teria chegado.
Niklas vai até a porta de metal, bate duas vezes e o homem do outro lado abre. Ele sai e eu fico no escuro de novo, rodeada por paredes escuras, um teto escuro e pensamentos escuros, que estão partindo meu coração em mil pedaços minúsculos.
Não importa.
Se as coisas que Niklas me disse são verdade e Victor não vier me buscar, mesmo assim vou morrer sem contar nada.
Vou morrer aqui.
CAPÍTULO VINTE E SETE
Sarai
Terceiro dia
Estou recusando comida e água há quase 63 horas. Só sei disso porque Niklas fica me lembrando. Estou fraca, meu corpo e minha mente estão exaustos. Stephens não me bate desde que Niklas o impediu da outra vez. É só por causa de Niklas que ainda estou viva. Afinal, ainda não revelei nenhuma informação. Apenas que ele é um babaca traidor que não merece o ar que respira. Já disse a ele muitas e muitas vezes que vou morrer antes de entregar Victor. Acho que ele sabe que é verdade, que eu não posso ser dobrada.
A não ser... Talvez por meus pensamentos.
Meus pensamentos são tudo o que tenho nesta prisão escura e úmida cujas paredes bloqueiam toda luz, à noite ou de dia, sem nenhuma janela e só uma porta de metal que não deixa passar nem uma nesga de luz por baixo. Aquela voz em minha cabeça, aquela à qual nunca damos ouvidos até que não sobre mais nada para silenciá-la, tem sido muito cruel comigo. Niklas tem razão e você sabe, a voz me diz. Já se passaram três dias, e se o que Niklas falou sobre Victor saber onde você está for verdade, por que ele não apareceu? Por que, Sarai, Victor não se entregou por você e não contou a Niklas o que ele quer saber para salvar a sua vida?
Grito a plenos pulmões no espaço vazio e confinado, levando as mãos à cabeça. Lágrimas de raiva escorrem dos cantos dos olhos. Meu cabelo está encharcado de suor. Meu short e meu top preto parecem colados à pele. Meus joelhos nus estão arranhados, minhas pernas, cobertas de sujeira. Minhas costas ardem sempre que me posiciono do jeito errado e as crostas que estão se formando sobre os ferimentos racham e começam a sangrar de novo. Fico deitada no chão, de lado ou de barriga para baixo.
Ouço o eco da porta de metal raspando no chão ao se abrir atrás de mim, mas nem me dou ao trabalho de me virar para ver quem é.
— Se você não vai beber — ouço Niklas dizer, de pé ao meu lado —, então vou forçar a água na sua garganta.
Sou levantada do chão imundo de concreto para os braços dele e carregada para fora da sala. Não resisto. Não olho para ele enquanto sou carregada pelo corredor, mas a luz fluorescente do teto acima de mim é tão brilhante que faço uma careta e fecho os olhos. Em silêncio, aproveito o conforto do ar renovado que roça a minha pele. Sinto minhas pernas sobre os braços de Niklas, seu braço esquerdo segurando a minha nuca. Viramos à esquerda, depois à direita e descemos uma escada de metal.
Momentos depois, minha cabeça está sendo imersa em água e mantida ali.
Meu instinto me trai e abro a boca para gritar, tragando ainda mais água para meus pulmões. Meu corpo se retorce com violência, meus braços se agitam sem controle, tentando se segurar na borda grossa de plástico do recipiente onde estou sendo enfiada. Mas estou fraca demais para tirar a cabeça da água, e Niklas me segura ali com facilidade. A água queima na minha garganta e nos meus pulmões mesmo depois que consigo fechar a boca e prender a respiração. E no instante em que penso que vou me afogar, que enfim vou morrer e ficar em paz, Niklas ergue minha cabeça e a segura.
Meus instintos me traem mais uma vez e me fazem arfar em desespero por ar e tossir a água dos pulmões. Eu realmente preferiria morrer de uma vez e acabar logo com aquilo, mas meu corpo tem vontade própria, outra coisa que me vejo incapaz de controlar. Meu coração bate com tanta força que sinto meu peito roçando na borda de plástico do que reconheço ser um contêiner de 200 litros. Pingos caem do meu cabelo, da ponta do nariz, do queixo e dos cílios para a superfície da água, a poucos centímetros do meu rosto. Plop. Plop. Plop-plop. É surreal como isso é a única coisa que ouço.
— Quem está trabalhando com o meu irmão? — A voz de Niklas é controlada.
Não digo nada.
Ele segura um pouco mais forte o cabelo da minha nuca.
— Você foi vista com Fredrik Gustavsson em Santa Fé. Qual é o relacionamento dele com meu irmão? Eles estão conspirando contra a minha Ordem?
Nenhuma resposta.
Um fluxo de água atinge meu rosto quando ele empurra minha cabeça para dentro do contêiner. Minhas narinas e meu esôfago queimam como fogo quando a água é forçada para dentro de mim. Esperneio de novo, tentando agarrar qualquer coisa. Até que encontro a borda circular, mas ainda não tenho força suficiente para me empurrar contra as mãos de Niklas para fora da água.
Ele me puxa para fora de novo, eu engasgo, tentando respirar.
— Fale alguma coisa, Sarai. Qualquer coisa.
Estou fraca e exausta demais até para provocá-lo. Ainda assim, não digo nada, embora queira muito mandá-lo se foder.
Niklas só consegue uma coisa de mim antes de me carregar para fora da sala, vários minutos depois; engoli mesmo aquela água de que ele falou.
Quarto dia
Raios finos de sol, cheios de poeira, entram pelas janelas perto do teto do galpão, criando manchas de luz cor de marfim no chão à minha frente. Estou de volta à cadeira na sala maior, cercada por pilastras de concreto e aquele irritante ventilador industrial ininterrupto acima de mim. Meus pulsos e tornozelos não estão amarrados, mas seria desnecessário, pois mal consigo ficar de pé sozinha. Não estou completamente sem força física. Conseguiria andar se tentasse. Poderia jogar a cadeira para o outro lado da sala, embora só alguns metros, se quisesse. Mas não me importo mais.
Apenas não me importo mais.
Stephens está sentado diante de mim na mesma cadeira na qual esteve quatro dias atrás. Uma perna está cruzada sobre a outra e suas grandes mãos descansam sobre o joelho. Há uma expressão ameaçadora em seus olhos escuros e profundos; ela revela que ele está cansado de esperar. Que hoje é o dia. Que não importa o que eu diga ou deixe de dizer, não importa qual seja o acordo que ele tem com Niklas, hoje ele vai me matar.
Niklas entra no galpão por uma porta lateral, inundando-o por um instante com o sol forte da manhã. Ele havia saído com os outros quatro homens que pelo visto trabalham para Stephens. Eu os ouvi conversando algo sobre ficar de olho em qualquer sinal de “visitas indesejadas”. De coração, espero que isso tenha a ver com Niklas ter motivos para crer que Victor está vindo. Mas aquela voz cruel na minha cabeça faz meu coração afundar de novo.
Estamos sozinhos naquele galpão imenso. Só nós três. Eu, o Diabo e um dos lacaios do Diabo, embora na verdade eu não saiba qual é qual.
Levanto a cabeça.
Abro um sorriso fraco para eles, fixando minha atenção sobretudo em Niklas.
— Esta é a sua última oportunidade — anuncia ele, de pé ao lado de Stephens, com uma arma na mão direita, junto ao corpo. — Não vou nem me dar ao trabalho de mandar outro vídeo de você sendo interrogada para o meu irmão. É evidente que ver você sentindo tanta dor não basta para fazer o desgraçado sair da toca.
— Me mata — peço, ainda sorrindo. — É isso que você vai ter que fazer.
O peito de Niklas infla e desinfla, mas seus olhos não abandonam os meus. Olho para eles, buscando qualquer resquício de que ele ainda possa ser como o irmão, o homem... pelo qual acho que estou me apaixonando.
O homem que achei, por um breve momento, que poderia sentir a mesma coisa.
O tempo parece parar. Não há som, movimento ou ar ao redor, só um infinito silêncio suspenso no último momento da minha vida.
E, quando sinto meus olhos se fechando, no mesmo ínterim, Niklas levanta a arma de lado e puxa o gatilho. O tiro ecoa e o sangue esguicha do outro lado da cabeça de Stephens. A cadeira debaixo dele cai de lado quando o peso de seu corpo enorme desaba sobre ela.
Stephens cai no chão. Morto.
Sinto meus cílios enfim roçarem no rosto quando os olhos se fecham, e o meu corpo, inundado pelo alívio e exausto de tudo, começa a cair também.
Niklas encaixa os braços por baixo dos meus, me segurando antes que eu bata no chão.
— Peguei você. — Eu o ouço dizer. — Peguei você. — Sua voz parece mais distante agora, embora eu sinta que estou encostada no peito dele, e que o vento roça meu rosto quando ele me carrega pelo galpão.
— Passe ela para mim — escuto Victor dizer lá de fora, e é a última coisa que escuto.
Victor
A trama — Três semanas atrás...
Niklas está sentado diante de mim à longa mesa coberta por documentos espalhados, manchas de café e fotos de alvos futuros. Seu cabelo castanho está desgrenhado e as bordas dos seus olhos, vermelhas, pois ele bebeu demais na noite passada. Ele passa as mãos pela pilha de várias fotos de Edgar Velazco, um famigerado chefe de quadrilha venezuelano que fomos contratados para matar.
Niklas balança a cabeça, contrariado, e se reclina na cadeira, erguendo as mãos e passando-as pelo rosto.
— A gente não pode adiar isso — afirma ele, olhando para mim por cima da mesa. — Temos o paradeiro de André Costa. Precisamos resolver isso agora.
Não ergo o olhar do texto que está à minha frente.
— As coisas mudaram — digo, sem levantar a voz. Passo para a próxima folha. — Sarai é a minha prioridade. Foi inesperado, eu sei, mas não posso mudar o que ela fez. — Olho bem nos olhos dele, torcendo para que Niklas entenda e não discuta comigo. — Niklas, não vou abandonar nem prejudicar o que estamos fazendo aqui. O contrato de Edgar Velazco vai ser cumprido. Antes do prazo.
Ele suspira de novo e baixa os olhos por um momento. Depois tira um cigarro do maço na mesa diante dele. Pondo-o entre os lábios, ele o acende com um estalo do isqueiro.
Niklas sabe que não gosto quando ele fuma aqui dentro, mas acho que preciso dar uma folga ao meu irmão, considerando tudo o que ele fez por mim e por Sarai nos últimos meses.
— Sem querer desrespeitar você, irmão — começa Niklas, com a fumaça saindo de seus lábios —, mas o que vai fazer com ela? Você não pode levar uma vida dupla e sabe disso. E a gente não pode usar nossos recursos eternamente para fazer serviço de babá, não para alguém como ela, que não é fácil acompanhar. Ela é tão impulsiva quanto eu era com 23 anos.
Concordo com um aceno.
— Sim, nisso você tem razão. Ela é mais parecida com você do que eu gosto de admitir.
Niklas sorri e bate as cinzas do cigarro no cinzeirinho de plástico.
— Ah, vamos lá, irmão, eu não sou tão ruim assim, sou?
Não preciso responder a essa pergunta, e Niklas sabe.
Ele dá mais uma tragada rápida no cigarro e o deixa na borda do cinzeiro.
— Então o que você vai fazer?
Niklas relaxa as costas na cadeira novamente e entrelaça os dedos atrás da cabeça.
— Tem certeza de que quer saber a resposta?
Isso parece atiçar sua curiosidade.
— Porra, claro que quero. — Ele tira as mãos da nuca e se inclina para a frente, apoiando os braços no tampo da mesa, com ar preocupado. — O que você fez?
Espero um minuto e respondo:
— Enquanto estávamos na casa de Fredrik, depois de muitas súplicas, e das ameaças de Sarai sobre sua segurança, concordei em ajudar a treiná-la.
— O quê?
— Sim — confirmo, pois ele parece precisar disso. — Ela está determinada a matar Hamburg e Stephens com as próprias mãos. Eu poderia fazer isso, mas...
— Você deveria fazer isso, Victor.
— Não — retruco, balançando a cabeça. — Dei a ela minha palavra...
— E daí, caralho? — rebate Niklas. — Victor, isso é suicídio. Onde é que você estava com a cabeça?
Ele pega o cigarro de novo e dá um trago mais longo, como se estivesse precisando da nicotina para acalmar os nervos. Esticando o pescoço, ele solta uma fumaça espessa dos lábios.
— Já pensei nisso antes, bem antes que ela inventasse essa confusão com Hamburg, bem antes que ela me desse o ultimato. Eu a quero comigo, Niklas. Quero treiná-la. Acho que ela é capaz de conseguir. E ela se recusa a ser tratada como uma criança. Por qualquer um. Especialmente por mim.
— E se ela não conseguir? — Niklas olha para mim, com uma expressão sincera e preocupada. Preocupação comigo, não necessariamente com Sarai. — Victor, você está se metendo em uma vida de sofrimento. Apaixonar-se por alguém. — Ele ri com desprezo, embora mais de si mesmo, eu sei. — Eu já me apaixonei uma vez, você lembra, e veja como acabei. Como ela acabou. Ela acabou morta e eu, destruído por causa disso. — Ele balança a cabeça. — E preciso lembrar o que aconteceu quando Fredrik se apaixonou? Não, achei que não precisava mesmo.
Ele fica de pé e apaga o cigarro no cinzeiro.
— Sinto muito, Victor, mas acho que essa ideia é ruim pra caralho.
— Mas é a única ideia — digo, sem perder a calma. — E espero que você a respeite o suficiente para não termos uma repetição do incidente de Los Angeles.
Eu sabia que minhas palavras iriam incomodá-lo. Usar o incidente no qual ele atirou nela em um hotel, um incidente que ele considerava já superado. Niklas me encara com ressentimento e dor no olhar.
— Sério, irmão? — pergunta ele, descrente, apoiando as mãos na borda da mesa e se curvando para a frente. — Depois de tudo o que fiz nestes meses para ajudar a proteger essa garota? Depois que dei minha palavra de irmão, de sangue do seu sangue, de que nunca mais iria fazer nada para machucá-la? Se eu quisesse, já poderia ter matado Sarai mil vezes. Você sabe, Victor. Achei que a gente já tivesse superado isso.
Abaixo o olhar, deixando a culpa que sinto fazer o que quiser comigo. Niklas é leal a mim. Sempre foi. Quando atirou em Sarai em Los Angeles e tentou matá-la, foi só por causa de seu amor e lealdade a mim. Porque ele sabia que a forma como ela me afetou seria minha perdição, que eu acabaria morrendo por esse motivo. E, embora eu não justifique o que ele fez e jamais vá perdoá-lo por isso — e ele sabe —, entendo os motivos, de qualquer forma.
Em uma vida como a nossa, às vezes precisamos fazer coisas terríveis com quem amamos a fim de abrir um caminho para novos começos. Meu irmão, por mais insuportável que seja, não é exceção. Aliás, ele é um exemplo claro dessa regra.
E hoje as coisas estão diferentes. Ele não vai matar Sarai, mas não vai hesitar em matar por Sarai.
— Eu confio em você, Niklas. Espero que acredite nisso.
Ele assente devagar, aceitando minhas desculpas e parecendo absorto em pensamentos.
— Não estou pedindo que você prove isso, Victor. Mas tem uma coisa que precisa ser feita. Pelo bem do nosso negócio. Pelo bem da nossa vida. — Ele começa a andar de um lado para outro na frente da mesa.
— O que é? — pergunto, olhando-o da minha cadeira.
Ele para ao lado da mesa, cruza os braços e me encara com desconforto no rosto.
— Se Sarai vai se envolver nas nossas operações de qualquer maneira — começa ele, com cuidado —, você sabe que ela precisa passar pelo mesmo nível de testes que qualquer outra pessoa que trabalha para nós enfrentaria. Só porque você sente algo por ela não significa que essa regra deva mudar.
— O que você está sugerindo?
Sei exatamente do que ele está falando, mas o que quero saber, na verdade, é até onde ele quer ir com isso. Niklas não costuma fazer nada pela metade. Ele continua:
— Eu estou dizendo que sei que você não quer passar pelo que Fredrik passou com Seraphina. E sei que você não quer lidar com outra Samantha. A lealdade de Sarai a você precisa ser testada. Não digo isso como forma de me vingar dela nem porque quero que ela traia você para provar alguma coisa. — Ele ergue as mãos. — Só quero ter certeza de que a gente pode confiar nela, de que, se um dia ela for capturada, não vai ceder e entregar a gente.
— Eu confio nela. Sei que ela não me trairia. Confio nela.
Não importa quantas vezes eu diga essas palavras em voz alta ou na minha cabeça. Confio nela. Confio em Sarai. Confio nela. Sei que Niklas tem razão. Há muita coisa em jogo. Nossos negócios no mercado negro, nossa vida e a vida de muitas pessoas que trabalham para nós. E com Vonnegut e a Ordem atrás de mim, não posso me arriscar.
— O que você propõe? — pergunto, aceitando a verdade.
Niklas balança a cabeça, aliviado com a minha cooperação e compreensão.
Ele respira fundo e se prepara para explicar.
— Vou abordar Hamburg. Ganhar a confiança dele fingindo que estou vendendo você para ele. Ele vai acreditar que sou só um irmão que não perdoa e que foi incumbido pela minha própria Ordem de matar você, já que saiu da organização e traiu a nós todos. Tudo pelo amor de uma garota. Uma garota que, não é segredo, Hamburg agora quer ver morta mais do que nunca.
Concordo antes que ele termine de explicar, com uma imagem nítida da situação na minha mente. Niklas continua o raciocínio:
— Na hora certa, vou levar os homens de Hamburg até Sarai...
Niklas continua a explicar a trama para iniciar Sarai e ao mesmo tempo ter Hamburg e Stephens onde queremos que eles estejam.
— Mas não quero que ela se machuque. Se fizermos isso, você precisa me dar a sua palavra de que não vai deixar ninguém ir longe demais. Que você não vai longe demais. — Estreito o olhar para ele.
— Quanto ela aguenta? — pergunta Niklas.
— Ela aguenta muito. É forte. Mas, antes que isso aconteça, quero que ela treine o máximo que puder. Posso levá-la para Spencer e Jacquelyn, em Santa Fé. A experiência vai fortalecê-la um pouco mais. Deixe-me prepará-la o máximo possível no curto tempo que temos antes de começar essa história.
— Certo — concorda Niklas.
— Sabe que ela vai odiar você ainda mais quando tudo isso acabar.
Niklas assente.
— É, imagino que sim. Mas não me importa quanto ela me odeie. Não sou eu quem tem que dormir com ela. — Ele ri, baixinho. — É um risco que estou disposto a correr em nome de tudo. A verdadeira preocupação é: quanto ela vai odiar você, depois que tudo isso acabar.
Desvio o olhar e fito a parede.
— É um risco que eu também estou disposto a correr — digo, distraído.
— Talvez ela entenda — comenta Niklas, tentando acalmar os pensamentos preocupados que estampam meu rosto. — Se ela se juntar a nós, se vai se juntar a você, vai precisar saber como e quando separar a relação entre o trabalho de vocês e o relacionamento afetivo.
— Sim. Ela vai precisar aprender isso.
Ele bate de leve na mesa.
— E, se ela é tão forte quanto você diz, vai entender e superar.
Fico em silêncio.
— Então está combinado. Vou para Los Angeles à noite. Tenho mesmo uma reunião com Fredrik.
— Presumo que ele ainda não tenha falado nada a meu respeito para você.
— Não — confirma Niklas. — O cara é tão firme quanto um católico em um confessionário. Ele não vai trair você, Victor. Por que ainda tem medo de que ele faça isso? — Niklas pega o maço de cigarro e a chave do carro de cima da mesa. — Ele passou no seu teste há meses. Quanto tempo o prenderam naquela sala? Seis dias? Fredrik é leal. Ninguém dobra esse cara.
— Não tenho tanta certeza — digo, olhando para os veios da madeira da mesa. — Você parece esquecer qual é a especialidade de Fredrik. Ele tortura as pessoas com brutalidade e sente prazer nisso. Acho que se alguém pode passar por um interrogatório sem ceder, esse alguém é Fredrik Gustavsson.
Niklas me olha de lado.
— O que você está pensando? — pergunta ele, intrigado com meu raciocínio.
Olho para ele.
— Tenho mais um teste que preciso fazer com Fredrik. Se eu o deixar a sós com Sarai, ele vai acreditar que confio nele cem por cento. Vai parecer que eu abaixei a guarda. — Eu me levanto e vou até a estante, refletindo sobre o novo plano que acabo de elaborar. — Se ele entrar em contato com você e contar que está com Sarai, então saberemos que sua lealdade na verdade está com a Ordem. Sarai é a isca perfeita. Qual é a melhor maneira de permitir que Vonnegut me atraia do que usar a garota pela qual eu...
Ficamos em silêncio. Sinto o olhar inquisidor de Niklas nas minhas costas.
— A garota pela qual você está se apaixonando?
Faço uma pausa.
— Sim...
CAPÍTULO VINTE E OITO
Sarai
Não falo com Victor há horas. Três, pelo menos. Deixei que ele me despisse, me desse banho e cuidasse dos meus ferimentos. Eu o ouvi “se explicar”, mas de uma maneira que só alguém tão travado para relacionamentos quanto Victor Faust poderia fazer. Não implorou para que eu falasse com ele, para que acabasse com o gelo. Ele só falou. Tão calmo quanto em qualquer outra conversa que já teve comigo, embora dessa vez o papo tenha sido bem unilateral. Mas detectei a preocupação em sua voz, ainda que ele a tenha disfarçado bem. Senti, quando me tocou enquanto escovava meu cabelo e limpava a sujeira das feridas nas minhas costas, que ele queria me tocar com mais carinho. Queria me puxar para perto e me abraçar. Mas eu sabia que ele não queria passar dos limites.
E foi esperto em não passar, porque levaria um soco na cara.
Ao anoitecer, embora exausta e ainda dolorida da cabeça aos pés, estou bem o suficiente para andar pela casa sozinha, mas com cuidado, porque minhas costas estão bem detonadas. Victor me deixou sozinha no quarto da casa em Albuquerque. Eu precisava de um tempo para pensar em tudo o que aconteceu, pelo que ele e Niklas me fizeram passar. Precisava de tempo para refletir sobre os motivos de Victor. Eu estava cagando e andando para os motivos de Niklas ou para o papel que ele teve naquilo. Niklas não merece meu tempo, muito menos meus pensamentos. Victor, por outro lado... Parte de mim quer se sentir traída, como se essa fosse a reação normal. Sinto que deveria me encolher no chão e chorar, esmurrar as paredes, chafurdar na autopiedade, também apenas porque essa tende a ser a reação esperada. Mas não sou assim. E não sou normal. E nada na minha vida ou na vida de Victor chega perto de ser normal.
Sei que Victor está se perguntando o que estou pensando. Ele se preocupa com o tamanho da raiva que sinto dele, se ela é tão profunda que eu nunca mais vou conseguir perdoá-lo. Sei que ele deve estar convencido de que meu silêncio é a única resposta que vou lhe dar.
Mas ele está enganado.
Ele entra no quarto para pegar algo em sua maleta, e eu o intercepto.
— Foi ideia de Niklas? — pergunto, da cama.
Torço muito para que tenha sido.
Victor para diante da porta, de costas para mim. Em vez de abrir por completo, ele a fecha. Deixando a pasta preta que tirou da maleta na cômoda alta perto da porta, ele se aproxima de mim. Sua camisa preta está para fora da calça. As mangas compridas estão arregaçadas até os cotovelos, expondo a virilidade de seus antebraços e a força de suas mãos.
Desencosto os ombros da cabeceira e me sento na beirada da cama, pondo os pés no chão. Estou usando uma blusinha vermelha folgada e fina que não adere muito às minhas costas e um short de ginástica.
— Sim, tecnicamente, foi.
— Tecnicamente? — pergunto, franzindo o cenho.
Ele se senta ao meu lado, com os braços sobre as pernas e as mãos nos joelhos.
— Ninguém está isento dos testes. Niklas apenas teve que me lembrar disso, no seu caso. É uma questão de confiança...
— Você já não confiava em mim?
— Sim, confiava — assume ele, olhando para a frente. — Mas o que fizemos você passar era necessário, Sarai. Você queria fazer parte. Eu queria que você fizesse parte. Para isso acontecer, teria que ser feito de acordo com as regras, ou sempre haveria um conflito com os outros membros. Meu juízo seria sempre questionado. Você estaria sempre sob suspeita. Ninguém está isento. Fredrik não estava. Aquele homem nos fundos do restaurante de Hamburg, que ajudou você a fugir. O homem que leva a sra. Gregory para os nossos abrigos.
— E Amelia? Ela não sabia nada sobre o que você e Fredrik fazem, pelo que você me contou. Ou isso também era mentira? Ela foi espancada como eu fui?
— Não — responde ele, olhando para mim. — Não era mentira. E, não, ela não passou por nada do que você passou. Testamos de outras maneiras a confiabilidade de Amelia e de outros como ela, aqueles que não sabem nada sobre o que fazemos. Mas, para aqueles que estão por dentro, que sabem tanto quanto você sabe sobre nós, os testes são mais... extensivos.
Desvio o olhar.
— Você mandou Stephens para a casa de Amelia? — pergunto, baixinho.
— Não — responde Victor, e me viro para encará-lo à minha esquerda, desconfiada.
— Então como eles sabiam sobre ela? Como sabiam que Dina esteve lá? — A raiva aumenta na minha voz. — Você pôs Dina em risco? Por favor, diga a verdade!
Victor balança a cabeça antes mesmo que eu termine de perguntar.
— É verdade. Talvez a gente nunca saiba ao certo como Stephens descobriu sobre Amelia, ou que a sra. Gregory estava escondida lá. Quem poderia responder a essa pergunta agora está morto. Mas posso garantir que nem eu nem Niklas nem mesmo Fredrik tivemos qualquer coisa a ver com isso. Podem ter acontecido várias coisas, Sarai. A sra. Gregory pode ter entrado em contato com algum parente em algum momento. — Ele gesticula ao falar. — Pode ter acessado sua conta bancária, revelando sua localização.
— Stephens poderia ter me matado — digo, com amargura, pulando de um assunto para outro. — Ele queria tanto me matar que teria atirado em mim, se Niklas não tivesse atirado nele primeiro. E se ele tivesse me matado dias antes? E se Stephens tivesse me espancado até a morte? — Meu peito sobe e desce enquanto tento conter minha raiva.
Victor suspira e olha para as mãos, passando os dedos da direita nas costas da esquerda, constrangido.
— Sinto muito por isso — diz ele, arrependido, e então ergue os olhos devagar. — Sim, era possível que Stephens matasse você, não nego, mas eu sabia que Niklas faria de tudo para que isso não acontecesse.
Rio com descrença e desdém.
— Niklas? — pergunto, incrédula. — O mesmo que atirou em mim? Você está me dizendo que botou fé em alguém que me quer morta desde a primeira vez que me viu? — Começo a levantar a voz, e Victor passa a demonstrar sinais de constrangimento.
— Talvez eu nunca consiga fazer você entender — reflete ele, ainda controlado. — Mas sei que Niklas nunca vai machucá-la. Nós dois passamos por muita coisa desde que saí da Ordem. Chegamos a um entendimento. Ele aceita você...
— Eu não preciso que ele me aceite! — Fico de pé em um salto e o encaro de cima, com os punhos cerrados. — Niklas é a última pessoa da Terra de quem necessito qualquer tipo de aprovação! Ele tentou me matar!
Ergo os punhos cerrados diante de mim e prendo a respiração, rangendo os dentes. Meu corpo enrijece, crispado de ressentimento.
Victor fica de pé e segura meus ombros. Hesitante, expiro e me acalmo, mas não consigo olhá-lo nos olhos. A sensação é a mesma de antes, quando queria me sentir traída porque seria a reação normal. Agora, quero odiá-lo pelo mesmo motivo. Mas não odeio. Posso não entender por que ele foi confiar minha vida logo a Niklas, mas acho que o único motivo de não entender é porque não quero. Quero sentir raiva. Quero ser inflexível. Porque é mais fácil do que aceitar a verdade impensável: a de que Niklas merece uma chance. Porque, se eu fosse ele e estivesse tentando proteger meu irmão da Ordem, provavelmente teria atirado em mim também.
Victor afasta o cabelo do meu rosto, prendendo-o atrás das orelhas. Ele me olha por um momento como se estivesse evocando uma lembrança que tenho certeza de que me envolve de alguma forma. Como poderia não envolver? Essa expressão pensativa e encantada de seus olhos verde-azulados, o modo como ele fez questão de tocar meu rosto ao afastar meu cabelo. Quero gritar a plenos pulmões com ele, mas só consigo ficar ali e observar aqueles lindos olhos sombrios me examinando.
Ele olha para o quarto ao redor.
— Na noite em que encontrei você no meu carro — diz ele, sem olhar para mim —, na mesma hora a vi como uma ameaça. Eu queria me livrar de você. Rápido. Levar você de volta para a fortaleza, abandoná-la na estrada. Eu queria muito matar você.
Como já sabia de tudo isso, não fico surpresa, mas continuo curiosa para saber por que ele está tocando nesse assunto agora. Fico em silêncio, cruzo os braços e faço uma cara de dor quando o movimento repuxa a pele das costas.
— Eu poderia, e muitas vezes pensei que deveria ter matado você — continua Victor. — Tive todas as oportunidades. Mas não consegui.
— Você precisava de mim. Como moeda de troca. Talvez, se eu não tivesse dado essa ideia, avisado sobre o modo como Javier negociava, você tivesse me matado.
— Não — responde ele, em voz baixa, balançando a cabeça de leve. Então sinto seu olhar em mim e me viro. — Eu não precisava usar você como moeda de troca, Sarai. Sabia, quando saí daquele encontro com Javier Ruiz, que, quando eu contasse da recompensa que Ruiz me oferecera para matar Guzmán, no fim só seria contratado para matar Ruiz. Porque a oferta de Guzmán era mais alta do que a dele. Receber ou não a outra metade do dinheiro de Ruiz era irrelevante. Eu não precisava usar você como moeda de troca, afinal.
— Não entendo aonde você está querendo chegar — digo, e é verdade.
Victor inspira e desvia os olhos novamente.
— Naquela manhã, quando Izel estava vindo buscar você naquele hotel, antes de você acordar, minha intenção era lhe entregar para ela. Cheguei até a contar a eles onde a gente estava. Mas quando você acordou... — Ele para no meio da frase e ergue os olhos para o teto, soltando o ar dos pulmões mais uma vez, concentrado. Então Victor baixa o queixo e me olha nos olhos. — Se você não tivesse acordado, ainda estaria com Javier Ruiz, neste momento.
Com os braços cruzados, dou alguns passos na direção dele e inclino a cabeça para o lado, pensativa.
— O que você está dizendo? Eu estou aqui com você agora porque acordei antes de Izel chegar? Não entendi.
— Eu não consegui. Foi como atirar em um inocente, qualquer um que tem consciência não consegue fazer isso olhando nos olhos da pessoa. Quando você acordou, eu não consegui entregá-la.
Ainda não tenho certeza do que Victor está tentando dizer, mas sei que não foi por causa de algo ridículo como amor à primeira vista. Contudo, ao estudar seu olhar perturbado, entendo aos poucos que ele está aprendendo algo extraordinário a respeito de si próprio. Deixo que ele fale, pois parece que Victor precisa pôr aquilo para fora, exteriorizar para talvez se entender por completo.
— Batalhei a cada passo do caminho enquanto você estava comigo, dizendo a mim mesmo que precisava me livrar de você. Você era uma ameaça para mim, para o meu emprego, para a minha vida, e mais tarde ameaçou minha relação com meu irmão. Eu soube disso assim que a vi pelo retrovisor, quando você estava apontando a arma para a minha nuca, com aquela cara desesperada e assustada. Você ameaçava tudo. Mas, pela primeira vez na vida, fui contra tudo o que eu era: um assassino treinado com uma consciência reprimida... — Seu rosto endurece e ele se aproxima de mim. — Eu poderia ter abandonado você há muito tempo, mas não abandonei. Não queria abandonar então, e não quero abandonar agora.
Um calafrio percorre meus braços quando Victor esfrega as mãos neles, para baixo e para cima.
— Sinto muito por tudo o que você passou — diz ele, baixinho. — Quero que você fique, mais do que tudo, mas, se não quiser ter mais nada a ver comigo, eu vou entender. — Ele pressiona os lábios no alto da minha cabeça e vai até a porta, pegando a pasta preta do gaveteiro.
— Victor? — chamo, baixinho, antes que ele toque a maçaneta.
Ele olha para trás.
Começo a dizer “Fico feliz que você não tenha me abandonado”, mas paro e engulo as palavras. Por mais que eu queira revelar que aquela história me tocou, que não consigo imaginar a vida sem ele, ainda estou furiosa pelo que ele fez comigo, e não posso desculpá-lo. Ainda não. Não com tanta facilidade assim.
— Era só isso? — pergunto, no lugar do que ia dizer. — O teste que eu fiz? Foi o último? Foi a única vez que vou ter que passar por algo assim? Preciso ser sincera, não quero acordar todo dia achando que vou ser sequestrada, espancada ou afogada. Não quero não confiar em você...
Ele põe a mão na maçaneta e a vira. A porta se abre.
Olhando para trás, ele diz:
— Não, tem só mais uma coisa.
Meu coração endurece como uma pedra quente. Por essa eu não esperava.
— O maior teste é saber se você consegue ou não trabalhar com meu irmão — diz Victor. — Mas pode confiar em mim. E pode confiar em Niklas. Você nunca mais vai passar por nada assim.
Ele faz uma pausa e completa:
— Espero que você fique.
Então sai do quarto, fechando a porta.
Algum tempo passa, e fico sozinha para pensar em tudo. Sei que neste momento, não ontem nem no dia em que fugi da fortaleza no carro de Victor, mas neste momento é que o resto da minha vida está começando.
E sei que só há uma escolha certa.
Saio do quarto e vou encontrar Victor, Fredrik e Niklas na sala. Eles estão falando que Fredrik não sabia de nada e que passou em todos os testes de Victor e Niklas. Fico escutando sobretudo os comentários de Fredrik e Niklas, pois Victor parece mais calado do que de costume.
Os três me olham quando entro na sala, interrompendo a conversa no meio de uma frase.
— Ah, aí está ela — comenta Fredrik, com um sorriso largo e lindo. Ele me chama com um gesto. — Vem sentar com a gente. Estávamos discutindo qual o próximo passo para nós quatro. — Percebo que Fredrik não tem tanta certeza da minha decisão quanto finge que tem.
Niklas apenas acena com a cabeça para mim.
Victor fica de pé e estende a mão, oferecendo o lugar ao lado dele para eu me sentar.
— Antes, preciso dizer uma coisa.
Ele põe as mãos atrás das costas e dá um passo para o lado, esperando pacientemente.
Olho para os três, um por um, e paro em Victor.
— Se eu vou ficar aqui, há algumas coisas que preciso deixar bem claras.
Um lampejo de esperança passa pelos olhos verde-azulados de Victor.
Olho para Fredrik e Niklas de novo e continuo, falando com todos:
— Eu faço o que eu bem entender. Vou seguir as ordens de Victor como vocês dois seguem, vou treinar até sangrar e não conseguir andar direito. Conheço o meu lugar. Mas não porque sou mulher ou mais jovem do que vocês. Nem porque vocês acham que vou me “machucar” — continuo, fazendo aspas com os dedos. — É claro que vou me machucar, mas não preciso de nenhum de vocês... — meus olhos pousam em Victor de novo — correndo para pegar uma porra de um curativo cada vez que eu cair.
Fredrik ri baixinho.
— Ei, nada contra isso — afirma ele, erguendo as mãos e deixando-as cair nos joelhos.
Olho para Niklas. No entanto, não demonstro nenhuma emoção enquanto o encaro. Acho que ainda não tenho certeza de quais deveriam ser essas emoções.
Ele abre um sorrisinho, embora eu saiba que é completamente inocente.
— Acho que você sabe que eu não vou correr para ajudar cada vez que você cair.
Só reviro os olhos e encaro Victor.
— Sarai... — começa Victor, mas levanto o dedo indicador para ele.
— Isso é outra coisa. Sarai Cohen morreu há muito tempo. Ela morreu quando eu tinha 14 anos e passei a primeira noite naquela fortaleza no México. — Baixo a mão e olho para cada um deles. — Quero ser chamada de agora em diante de Izabel Seyfried.
Todos se entreolham e depois balançam a cabeça, me observando.
— Izabel? — pergunta Victor, continuando de onde o interrompi.
Eu o olho nos olhos.
— Vou entender se você jamais me perdoar, mas...
— Você me perdoaria se fosse o contrário? — pergunto, tentando usar um argumento que ele entende na hora. — Victor, você fez o que precisava fazer, como na noite em que manipulei você para... — Paro de falar antes de revelar demais sobre nossa relação para Niklas e Fredrik. Mas percebo, pela expressão de compreensão nos olhos de Victor, que ele sabe a que me refiro.
— Mas isso está longe de ser a mesma coisa.
— Não importa. Quero dizer, só para constar, bem na frente do Bonitão e do Advogado do Diabo, que o inferno que eu enfrentei não só é perdoável, mas também foi totalmente necessário. Eu sei no que estou envolvida. Nós matamos gente, alguns de nós para ganhar a vida, outros por vingança. Não estou trabalhando em um banco. Muito mais do que uma pesquisa de antecedentes e uma análise de crédito precisa ser levado em conta, se vou fazer parte desse esquema. E, para ser sincera, eu me sinto muito mais segura perto de todos vocês, sabendo que são capazes de chegar a extremos assim para ter certeza de que todo mundo nesta sala é confiável. Que qualquer um que se juntar a nós mais tarde vai passar pelo mesmo inferno.
Meus olhos pousam em Victor mais uma vez.
— Não tem nada para perdoar — repito, e a expressão dele se abranda.
Niklas se levanta da poltrona de couro.
— Sar... Izabel — corrige-se ele, aproximando-se de mim. — Olha, preciso dizer uma coisa. Sinto muito por atirar em você em Los Angeles. De verdade. Nunca mais vou tentar machucar você.
— Acredito em você — digo, e, pelas expressões no rosto de cada um, ninguém esperava isso. — Acho que posso afirmar com segurança que vai ser difícil para mim até ficar na mesma sala que você, Niklas. Neste momento, por exemplo, não estou gostando. Sinceramente, eu preferia nem ter que ver muito a sua cara. Acho você um babaca, um doido psicopata que deveria estar em um manicômio judiciário. Nunca vou gostar de você e duvido que um dia eu tenha algum respeito pela sua pessoa. Mas você é irmão do Victor, e quando implorei para ele não matar você foi por um motivo, e não me arrependo. Mas nunca vou gostar de você e estou avisando para não cruzar a porra do meu caminho.
Ele levanta as mãos em um gesto de rendição e dá um passo para trás.
— Ok, ok, entendi. Não cruzar o seu caminho. — Ele ri baixo.
É mais teatro do que qualquer outra coisa. Sei que ele ainda tem problemas comigo (é tão teimoso quanto eu), mas por amor a Victor vai me tolerar tanto quanto eu a ele. Desprezo aquela expressão sempre pretensiosa no rosto dele. Desprezo a sua autoconfiança e arrogância e prevejo que Niklas e eu vamos bater de frente muitas vezes. Mas, por Victor, vou aguentar.
Niklas vira de costas para mim e se dirige à poltrona.
— Niklas — chamo.
Ele para e me olha. Eu me aproximo.
— Só tem mais uma coisa que quero dizer.
— Pois não?
Ele se vira e me olha com curiosidade, esperando. Quando ele está ao alcance do meu braço, levanto o punho e o golpeio na lateral do rosto, bem na altura do maxilar. A força do soco causa um tremor doloroso na minha mão. Tento aliviar a dor abrindo e fechando os dedos, mas ela só piora.
— Aaaaiii, caralho! Qual é o seu problema, porra? — Niklas põe a mão no canto da boca. — Tudo bem. Entendi. Eu atirei em você e agora estamos quites. Eu mereci. — Com a mão ainda sobre a boca, como se estivesse tentando colocar o queixo no lugar, ele termina o caminho até a poltrona e se joga sobre ela.
— Isso não foi porque você atirou em mim — retruco, ríspida. — Foi por matar Stephens. Ele era meu. — Aponto para ele. — E o único jeito de estarmos quites por você ter atirado em mim é se eu atirar em você. Por isso, como já falei, não cruze o meu caminho.
Niklas olha para Victor, de pé atrás de mim, como quem diz: Essa garota existe? Victor não diz nada, mas quando olho para ele por um instante noto que está sorrindo.
Fredrik está jogado no sofá, com os braços no encosto e um enorme sorriso.
No fim, seguro a mão de Victor e aceito me sentar. Estou dolorida demais para ficar de pé sozinha por muito tempo. Ele me leva até o sofá e me ajuda a sentar nas almofadas macias, segurando minha mão até eu me ajeitar. E então se senta ao meu lado.
Fredrik se curva e olha para mim do outro lado de Victor, com seu sorriso sombrio e encantador intacto.
— Fico feliz que tenha se juntado a nós. Claro que ainda vai ter que treinar muito, de acordo com Faust. — Ele aponta para Victor. — Mas algo me diz que você tem um talento natural. — Ele dá uma piscadinha. — Teimosa. Imprudente. Desbocada. Nada delicada. Mas acho que eu não ia gostar muito de você se não fosse todas essas coisas.
— Obrigada, Fredrik — digo com sinceridade e um sorrisinho irônico.
Niklas relaxa na poltrona, apoiando seu coturno preto no joelho. Não sei por quê, mas reparo nesse detalhe. Coturnos? Eu o olho de alto a baixo. Jeans escuro. Camiseta cinza que contorna seus bíceps. Cabelo desgrenhado.
Meus olhos vão e vêm entre ele e Victor, sempre sofisticado, e não consigo deixar de me perguntar se não estou deixando passar algo importante. Olho para Fredrik do lado direito de Victor, e, como Victor, Fredrik está usando as roupas de sempre, sapatos e um terno refinado.
— Por que ele está vestido assim? — pergunto para Victor, indicando Niklas com um aceno da cabeça.
Victor olha por um instante, mas é Niklas quem responde.
— Porque prefiro isto a usar esses ternos ridículos. E, como não estou mais na Ordem, acho que posso me vestir do jeito que eu quiser.
Surpresa, volto a olhar para Victor sem mexer a cabeça.
Victor assente algumas vezes, confirmando o que Niklas disse.
— Ele saiu há alguns dias. Fredrik é o único que continua lá dentro.
— Mas... por quê? Isto é, não seria melhor que Niklas continuasse de olho em Vonnegut, sobretudo no que se refere a você?
— Saí porque precisei — conta Niklas. — Eu estava demorando demais para matar Victor.
— E, como era de esperar — acrescenta Victor —, Vonnegut estava começando a questionar a lealdade de Niklas. Vonnegut pode não saber que Niklas e eu somos irmãos, mas nós tivemos uma relação muito próxima de trabalho por muitos anos. Estava demorando muito e ficando arriscado demais.
Solto um suspiro preocupado e tento me reclinar no sofá, até me lembrar das minhas costas.
Olho para Fredrik.
— E você? A Ordem sabe da sua relação com Victor? Ou com Niklas, aliás?
Fredrik sorri para Victor.
— Viu? Ela já entrou de cabeça no trabalho — observa ele, com uma risadinha, e então volta a olhar para mim. — A Ordem sabe que trabalhei com Victor algumas vezes no passado, mas não mais do que qualquer outra pessoa com quem ele já trabalhou. Quanto ao irmão dele, quando Victor saiu da organização, eu fui abordado por Niklas para ajudar a encontrá-lo, agora todos sabemos disso. Eu achava que Niklas seria meu superior depois desse episódio.
— Mas Vonnegut nunca soube do meu envolvimento com Fredrik — intervém Niklas.
— Então, por enquanto — acrescenta Victor —, Fredrik está seguro na Ordem.
— E represento os únicos olhos e ouvidos deles lá dentro — intervém Fredrik.
— Uau — comento, balançando a cabeça, tentando absorver tudo isso e o que significa para nós.
— Está ficando com medo? — pergunta Niklas, abrindo um sorriso.
— Nem um pouco — respondo, sorrindo também. — Só estou tentando decidir qual serviço é mais urgente, a fortaleza no México ou eliminar a Ordem para eles pararem de caçar a gente.
Niklas sorri e parece que, ao perceber o que fez, desvia o olhar de mim.
— Acho que estou apaixonado pela sua mulher — diz Fredrik para Victor, brincando.
— Por algum motivo, duvido que você seja capaz disso — rebate Victor, despreocupado.
Ele olha para mim.
— Eu sei qual serviço é mais urgente. — Ele dá um sorrisinho e segura a minha mão.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
Izabel
Poucos convidados circulam no corredor, e seus passos são fracos. Saltos altos. Sapatos elegantes. Vozes ricas fingindo estar intrigadas, dramatizando demais as coisas insignificantes da vida. Risadas artificiais. Música clássica — Bach, acho — vem do andar de baixo, tão nítida, elegante e sofisticada que me sinto em uma festa para a rainha da Inglaterra, e não sentada em um quarto escuro, com meu punhal favorito na mão. Eu o chamo de Pérola.
O cheiro deste quarto é o mesmo da última vez em que estive aqui: colônia demais, suor, pot-pourri velho e lencinhos umedecidos. Uma pesada mesa quadrada de mármore está do outro lado do quarto. Eu me lembro dessa mesa. Nunca vou esquecer o modo como Victor me curvou sobre ela, ou o porco nojento que ficou olhando quando minha calcinha desceu até os tornozelos.
Está escuro lá fora, passou das nove da noite, e o luar que entra pela varanda atrás de mim inunda a maior parte do quarto. Fiz questão de deixar as portas abertas para sentir o ar noturno na pele. Está muito quente com estas roupas apertadas. Preto do pescoço para baixo. Botas, parecidas com as de Niklas, só que as minhas têm facas escondidas no couro. Uma arma está acomodada em um coldre na minha cintura, mas só está ali para o caso de eu precisar. Gosto do meu punhal.
Eu me sento em uma cadeira no centro do quarto espaçoso, fora da suave luz acinzentada que vem da varanda. Minha perna direita está cruzada sobre a esquerda. Minhas mãos repousam no colo, o cabo de pérola do meu punhal encaixado com firmeza na mão. Bato a fina lâmina de prata na minha coxa.
Já se passaram 26 minutos desde que me sentei. Mas sou paciente. Disciplinada. Tanto quanto consigo ser, acho. Prometi a Victor que esperaria. Que ficaria sentada aqui, praticamente imóvel, até a hora certa. Eu disse que conseguiria, que aguentaria sem correr para o andar de baixo e resolver o assunto ali. E pretendo provar. Embora admita que é difícil.
Olho para Niklas, de pé em uma sombra perto das portas da varanda, com as mãos entrelaçadas. Ele sorri para mim, achando graça da minha crescente frustração. Sorrio de volta e olho para a porta do outro lado do quarto.
Trinta e dois minutos.
Ouço as vozes dos dois seguranças sempre postados do lado de fora do quarto. Eles estão falando com Arthur Hamburg.
Segundos depois, a porta se abre e um clarão vindo do corredor inunda o quarto, mas não me alcança. E, com a mesma rapidez, a luz some quando o segurança fecha a porta depois que Hamburg entra. Ele não me nota ao passar pela grande cama e pela mesa de mármore.
— O que você achou do cabelo? — pergunto.
Hamburg fica imóvel na hora.
Eu me inclino para a frente na cadeira, entrando no alcance da luz.
— Preto retinto — digo, despreocupada. — Ainda me acha deslumbrante com qualquer peruca? — Uso a mão livre para tocar o penteado e exibi-lo.
As luzes do quarto se acendem quando Hamburg diz: Acender luzes.
— Como você entrou aqui? — pergunta ele, desesperado, seu olhar correndo pelo quarto em busca da resposta e de qualquer sinal de mais alguém.
Quando Hamburg nota Niklas e Victor de pé perto da entrada da varanda, atrás de mim, com as armas nas mãos ao lado do corpo, ele chama os guarda-costas. Mas então uma forte pancada é ouvida do lado de fora. E depois outra. Hamburg para a centímetros da entrada, sem saber mais se é seguro abri-la.
Ele me olha de novo.
Sorrio e bato com a lâmina na minha perna mais uma vez.
A porta atrás dele se abre, e Fredrik está de pé ali, segurando dois colarinhos brancos. Ele arrasta os corpos dos seguranças pelo chão de mármore e os larga. As cabeças batem ruidosamente no mármore.
Hamburg olha para Fredrik, de olhos arregalados como um peixe, seu corpo balofo imóvel, seus dedos roliços mal se mexendo sobre a calça, nervosos, como se ele estivesse procurando por uma arma que costuma carregar e não quisesse acreditar que não está com ela quando mais é necessária.
Fredrik fecha e tranca a porta. Ele vai até os corpos, pegando-os pelos colarinhos de novo e arrastando-os pelo quarto. Não há sinal de sangue neles. Ele deve ter usado sua arma favorita, uma seringa cheia de algo letal e que não deixa vestígios.
Olho para Hamburg.
— S-sim... você fica bem de cabelo preto — afirma ele, agitado. — P-por que estão aqui? Willem está desaparecido. Eu-eu não sei onde ele está. Juro. Não o vi nem tenho notícias dele há mais de uma semana.
Sorrio e inclino a cabeça para o lado.
— É porque ele está morto — digo, sem rodeios.
Hamburg olha para Victor atrás de mim. E para Niklas. Depois para Victor de novo.
— Olhem, eu-eu disse a ele para esquecer o assunto — diz Hamburg, ainda gaguejando. — Não fui eu que mandei. Fa-falei para não procurar nenhum de vocês.
O suor brota em seu rosto rechonchudo, brilhando no queixo duplo. As axilas de sua camisa branca estão empapadas, a umidade se espalhando depressa pelo tecido. O colarinho da camisa muda de cor ao absorver o líquido como uma toalha de papel barata.
Fico de pé.
— Você é um mentiroso. — Ando devagar na direção dele. — Mas não importa. Não estou aqui por causa de Willem Stephens. Estou aqui por sua causa.
Hamburg anda para trás conforme me aproximo, seu rosto inchado e enrugado contorcido de pavor, suas mãos grossas tateando atrás de si, procurando a porta ou uma parede.
Fredrik fica na frente da porta, bloqueando o caminho de Hamburg, que para. Vejo sua garganta se mover quando ele engole em seco. O medo em seus olhos é cada vez maior.
Ele continua olhando para Victor e Niklas atrás de mim, sempre concentrando sua atenção em Victor por último.
Victor se afasta da varanda e vem para o meu lado.
— Olhem aqui, eu cumpri minha promessa, cacete! — grita Hamburg, aprofundando as rugas ao redor dos olhos. Ele aponta um dedo gordo para nós, adornado por um grosso anel de ouro. — Nunca fui atrás de nenhum de vocês depois que mataram minha esposa! Cumpri minha promessa! — Ele aponta para mim. — Foi você que veio atrás de mim! V-você começou tudo isso!
Balanço a cabeça e sorrio para ele, rindo do desespero e do medo. Só isso já me dá alguma satisfação, vê-lo se retorcer, ver o modo como está implorando por sua vida sem fazê-lo de forma explícita.
Eu me aproximo mais um pouco.
Hamburg não se mexe porque não consegue. Fredrik está atrás dele.
— Ah, isso não tem nada a ver comigo — diz Victor para Hamburg. — Eu cumpri minha promessa. Nunca fui atrás de você. Izabel, por outro lado... — Victor está provocando, do jeito relaxado que é sua marca registrada. — Bom, você não fez nenhum acordo com ela, para a sua infelicidade. E eu não sou o dono dela. Nunca fui. Ela está aqui por vontade própria, e não há nada que eu possa fazer a respeito.
Hamburg olha diretamente para mim, a raiva em seu rosto se transformando em algo mais patético.
— P-por favor... eu faço o que você quiser. Dou o que você quiser. Meu dinheiro. Minha casa. É só pedir, é tudo seu. Eu tenho milhões.
Chego perto dele e sinto o cheiro fétido de seu suor. Ele me olha nos olhos, com uma expressão cheia de ódio e horror. Seu corpanzil treme a centímetros do meu, e sei que, se ele achasse que poderia sair impune, me agarraria agora e me estrangularia até a morte.
De repente sua expressão muda, combinando melhor com as palavras ríspidas:
— Você não vai fazer isso — provoca ele, desdenhando de mim com frieza e me encarando. — Não é capaz de matar a sangue-frio. Você matou meu segurança em legítima defesa. Não vai me matar. Não assim. — Há humor em seus olhos.
Fico alerta diante dele, com o indicador apoiado na lâmina do meu punhal, encostado na minha perna. Não digo nada. Só o observo, com um sorriso tênue, mas óbvio, achando graça de suas tentativas inúteis de salvar a própria vida.
Ele dá um passo para a esquerda e começa a se afastar. Eu deixo.
— Vou servir uma bebida para vocês — diz ele, levantando um dedo. Ele tira o paletó gigante e o coloca nas costas da poltrona de couro perto da mesa de mármore. Então começa a desabotoar a camisa.
Chego por trás dele como um fantasma, passando a lâmina em sua garganta antes que ele consiga tirar os dedos do último botão. Um som arrepiante de gargarejo se espalha pelo quarto, seguido por Hamburg se engasgando com o próprio sangue. Ele ergue as mãos como se estivesse tentando escapar de um saco plástico. O vermelho espirra da lateral do seu pescoço, e ele cai de joelhos pressionando o corte com as mãos. O sangue escorre por entre todos os dedos e empapa sua camisa.
Eu o observo. Não com horror, arrependimento ou tristeza, mas com um sentimento de vingança. Meus olhos parecem se abrir ainda mais, atingidos pela brisa que vem da varanda. Não consigo parar de olhar. Não consigo virar a cabeça. Mas posso sentir os olhos de Victor, Fredrik e Niklas em mim, observando como me regozijo no momento do meu primeiro assassinato oficial a sangue-frio.
Hamburg engasga e chora, lágrimas caindo, enquanto vou para diante dele e me agacho. Eu o examino, o modo como seu rosto se contorce, o modo como o vermelho do sangue faz contraste com o branco da camisa. Vejo o terror em seus olhos, o medo do desconhecido tomando conta dele bem depressa.
Um sorrisinho aparece no canto da minha boca.
Hamburg cai para a frente no chão, seu corpo pesado tremendo e estremecendo só por alguns momentos antes de ficar imóvel. Ele jaz com a bochecha encostada no piso de mármore, a boca aberta, assim como os olhos. Eles olham para o nada, estão cheios de nada. O sangue empoça ao redor da cabeça e do peito, encharcando as roupas.
Ainda agachada diante dele, me apoio nas pontas dos pés e me aproximo do corpo, com os antebraços apoiados nas pernas.
— É isso que aquelas pessoas que você matou estranguladas sentiram — sussurro para o cadáver de Hamburg.
Fico de pé e dou um passo para trás, antes que o sangue empoçando no chão chegue à minha bota. Um por um, olho para Fredrik, Niklas e depois Victor, e todos manifestam a mesma aprovação silenciosa. Mas é nos olhos de Victor que vejo muito mais. Um elo eterno entre nós, criado não por este momento, mas por aquela noite em que nossos caminhos se cruzaram no México. Jogados um na vida do outro por um capricho do destino e mantidos unidos pelas nossas raras semelhanças e nossa necessidade de ficarmos juntos.
Somos um só.
CAPÍTULO TRINTA
Izabel
Um ano depois...
Victor entra no banheiro da nossa casa em Nova York e me encontra relaxando em um banho de espuma. Despreocupada, eu o vejo tirar a arma da parte de trás da calça e deixá-la na bancada. Meu cabelo está preso no alto da cabeça em um coque desalinhado. Estou deitada na banheira com os braços estendidos nas laterais, um joelho fora da água, parcialmente coberto pela espuma. Foi um dia cheio. Matei John Lansen, presidente da Balfour Enterprises e estuprador de primeira linha, e ainda tenho o sangue dele debaixo das unhas.
Fecho os olhos e relaxo.
— Onde você estava? — pergunto para Victor, sem levantar a nuca da banheira.
— Limpando a sua sujeira — responde ele, calmo.
Compelida a olhá-lo depois dessa acusação, abro os olhos novamente e o vejo de pé ao meu lado.
— Como assim? Foi um serviço limpo.
Ele ergue uma sobrancelha e olha para as minhas mãos.
— É mesmo? — pergunta ele, em tom acusatório. — Limpo significa sem sangue. Sem digitais. Sem deixar nada para trás, nem o seu cheiro.
Suspiro e fecho os olhos.
— Victor — digo, fazendo gestos dramáticos por cima da borda da banheira. — Eu não deixei nada para trás. Limpei tudo depois. Não ficou nada. Pergunta para o Fredrik. Ele estava lá. Verificou tudo depois.
Sinto o corpo de Victor mais perto quando ele se senta na borda da banheira.
— Mas quais são as ordens que eu dei, Izabel? — questiona ele, com tanta calma quanto antes. — Antes de começar essa missão com Fredrik, o que eu pedi?
— Nada de sangue — respondo, ainda de olhos fechados. — Envenene o cara, para parecer um ataque cardíaco.
Abro os olhos de novo e encontro seu olhar dominador, o verde de seus olhos mais escuro do que de costume.
— Veneno é o lance do Fredrik, não o meu.
— Você desafiou minhas ordens. E vai ser a última vez.
Sorrio para Victor e afundo as mãos na água para sentir a espuma na pele. Sei que Victor não está bravo de verdade comigo. Isso se tornou um jogo que fazemos: às vezes faço o contrário do que ele manda, e ele me castiga. É o tipo de jogo em que ambos ganhamos. Eu jamais teria desafiado as ordens dele em uma missão importante. John Lansen era só uma ponta solta, e mais uma das minhas missões de treinamento.
— O que você vai fazer comigo, Victor? — pergunto, com um brilho sedutor nos olhos. Tiro a perna esquerda da água e a apoio na borda da banheira, atrás de onde ele está sentado. — Vai me castigar?
Com a manga já arregaçada acima do cotovelo, sua mão direita percorre lentamente o comprimento da minha perna e mergulha na água. Gemo quando seus dedos me encontram.
— Vou tirar você do trabalho de campo até aprender a se controlar — diz ele, pondo dois dedos entre meus lábios inferiores.
Minha nuca pressiona com mais força a borda da banheira e minhas pernas se abrem mais.
— E se eu nunca conseguir me controlar? — pergunto, ofegante, mal capaz de me concentrar na conversa, com seus dedos se movendo entre minhas pernas daquela maneira.
Ele é um canalha. E eu o amo pra caralho por isso.
Dois dedos entram em mim e minhas pernas começam a enrijecer e formigar quando seu polegar esfrega com força meu clitóris em um movimento circular.
— Abra os olhos — manda ele em voz baixa, mas imperiosa.
Abro, só um pouco, pois está cada vez mais difícil controlar minhas pálpebras. Soluço, gemo e mordo meu lábio inferior com tanta força que dói.
— Se você não conseguir se controlar, então não terei escolha.
— Não terá escolha... do quê? — Meu peito nu sobe e desce. Mexo na água procurando sua mão, fechando os dedos em volta do seu pulso forte e descendo até os dele, que continuam se movendo em círculos.
Então ele para.
Ele tira a mão da água, fica de pé e enxuga o braço com minha toalha, pendurada na porta do boxe.
Olho para ele sem entender.
Ele sai do banheiro e me deixa sentada lá, sozinha, insatisfeita e sexualmente frustrada.
— Ei! — grito para ele. — Aonde você vai, cacete?!
Nenhuma resposta.
— Victor!
Nada.
Rosno baixo, fico de pé e saio da banheira. Pego a arma de Victor com minha mão molhada e ensaboada e vou para o nosso quarto. Ele está de costas para mim, perto da nossa cama king-size, tirando a camisa com uma graça casual e desinteressada, o que só me deixa mais frustrada.
Chego por trás dele, ensopada, pingando água e espuma no chão, e começo a apontar a arma para suas costas. Mas Victor é rápido demais e se vira, tirando a arma da minha mão e enfiando-a sob o meu queixo, tudo em dois segundos, que passam por mim como um borrão.
O cano frio toca minha pele. A intensidade nos olhos dele provoca uma onda de calor no meu corpo e entre minhas coxas. Meus seios estão pressionados no seu tórax duro e quente, sua mão livre posicionada no meio das minhas costas, com seus longos dedos abertos.
— Nenhuma disciplina, Izabel. — Ele estuda o meu rosto com um movimento faminto e calculado dos olhos. Ele lambe o canto da minha boca e enfia mais a arma na minha garganta. — Você nunca vai aprender.
Tento beijá-lo, procurando sua boca com a minha, mas ele me rejeita, me provocando com a distância de seus lábios, a 2 centímetros dos meus.
Ele me lambe de novo. E então me joga na cama e se encaixa no meio das minhas pernas nuas, ainda vestido da cintura para baixo com a calça preta. Estremeço quando sinto sua ereção me pressionando sob a calça. Meu corpo se desfaz em calafrios quando ele passa a ponta da língua de baixo para cima entre os meus seios.
Ele beija um lado do meu queixo, depois outro.
— Talvez você devesse se livrar de mim — sussurro nos lábios dele.
— Nunca — diz Victor, me beijando de leve uma vez. — Você é minha enquanto respirar. — A boca dele cobre a minha, faminta.
Foi assim que me tornei o que sou, uma escrava sexual transformada em assassina. E foi o início não só de um caso de amor entre mim e Victor, mas também de um novo círculo clandestino de assassinos, tão secreto que nem tem nome.
Quatro viraram cinco seis semanas atrás, quando recebemos o diabo louro de olhos castanhos, Dorian Flynn, no nosso grupo. E, embora haja muitos que trabalham para nós, espalhados por vários países, nós cinco somos o centro de toda a operação, com ninguém menos do que Victor Faust no comando de tudo.
Niklas continua um canalha insuportável, que adora dinheiro, mulheres e me deixar puta. De maneira indireta, é claro, mas ele sabe o que está fazendo. Mesmo depois de um ano, ele e eu praticamente nos desprezamos. Talvez eu o despreze um pouco mais do que ele a mim, mas nós nos suportamos, por Victor. A maior parte do tempo, evitamos cruzar o caminho um do outro. Ainda preciso ficar quite com Niklas e atirar nele. Mas essa hora vai chegar. Um dia.
Quanto a Fredrik, as mulheres ainda o adoram, mas desisti de tentar entendê-lo há muito tempo. Entender por que as mulheres praticamente tiram a calcinha quando o veem. Concluí que a única maneira de saber seria dormir com ele. Mas, como isso nunca vai acontecer, decidi manter o mistério. Mas Fredrik é como um irmão para mim, e, como Victor, não consigo imaginar ficar sem ele na minha vida. Sem perceber, ele tenta correr atrás de mim com aqueles malditos curativos de vez em quando, seja depois de uma sessão brutal de treinamento com Victor, seja na noite em que levei uma facada no ombro durante uma missão. Preciso lembrar a Fredrik, usando minha voz mais inclemente de Izabel Seyfried, de não me tratar como uma garotinha frágil. Lá no fundo, contudo, gosto de ver como ele é protetor comigo. Só que nunca vou contar isso a ele.
Dina, a mãe que eu deveria ter tido há 24 anos, agora mora em Fort Wayne, Indiana. Nós a instalamos em um abrigo tão pequeno e modesto quanto sua casa em Lake Havasu City. Victor tentou convencê-la a morar em um lugar grande e imaculado porque queria que ela tivesse o melhor, mas ela recusou. “Gosto das coisas simples”, disse ela naquele dia.
Dina ainda não sabe tudo sobre o que fazemos, mas é mais seguro assim, e ela aceita isso. E quanto ao abrigo dela, só é aberto para mim e para Victor. Eu a visito uma vez por mês. Mas a saúde dela está piorando. Eu me preocupo mais com ela do que comigo mesma ou com Victor. Mas ela é uma velha forte, e acho que ainda vai viver por muitos anos.
Quanto a Amelia McKinney, Fredrik não a matou. Matar mulheres inocentes não é o estilo dele. Ele a instalou em outro abrigo do outro lado do país, em algum lugar de Delaware. Nova identidade. Novo tudo. Mas ele nunca a visita. A última coisa que ele quer é uma mulher achando que ele está interessado em algo mais do que sexo.
Essa é a história da vida de Fredrik.
Conforme o prometido, depois que terminamos com Hamburg e Stephens, começamos a bolar uma estratégia para matar os irmãos de Javier Ruiz e libertar as garotas aprisionadas na fortaleza mexicana. Passei por seis meses de treinamento massacrante — treinamento de verdade, não apenas ser largada em algum lugar para estranhos me ensinarem — antes de partirmos para a missão. Infelizmente, a maioria das garotas da fortaleza que eu conhecia já tinha sido vendida ou estava morta quando chegamos lá. Matei Luis e Diego Ruiz, cortei a gargantas deles como fiz com Hamburg, depois que Victor, Niklas e Dorian derrubaram os guardas ao redor e dentro da fortaleza com uma chuva de balas. Não sou tão boa com armas de fogo e ainda preciso treinar muito. Por anos. Mas consigo fazer o serviço com minha coleção cada vez maior de punhais. E estou aprendendo mais a cada dia.
Quando a missão no México acabou e salvamos quem era possível — seis garotas, no total, tão traumatizadas que, mesmo livres, imagino que não consigam muita coisa na vida —, fomos atrás dos homens que as compravam. E ainda hoje, como amanhã e daqui a um ano, nós os procuramos e os eliminamos. Vai ser um longo caminho até localizarmos todos eles e lhes dar o que merecem, mas não vou parar enquanto não terminar.
Mais importante do que tudo, sobretudo para mim, é eliminar a Ordem. Vai demorar muito tempo até que eu possa de fato dormir tranquila à noite, sabendo que há homens procurando Victor a cada hora do dia. É uma empreitada muito mais perigosa e complexa do que provavelmente qualquer missão que realizaremos.
A Ordem é imensa, com milhares de membros, e é uma das mais antigas organizações de assassinos ainda existente. Vai levar algum tempo. Mas vai ser feito, mesmo que seja a última coisa de que eu participe.
Victor é a minha vida e eu vou morrer ajudando a protegê-lo.
Mas essa missão vai continuar a ser uma empreitada difícil, agora que Fredrik precisou sair por causa das suspeitas e não temos mais olhos e ouvidos confiáveis lá dentro. Temos novos informantes infiltrados na Ordem, mas eles ainda não provaram ser confiáveis como Fredrik.
E Victor... Victor continua pensando só no trabalho. Ainda é o assassino de aluguel e a sangue-frio, com nenhuma ou quase nenhuma consciência, quando o assunto é cumprir uma missão. Ele ainda parece desprovido de emoções, impiedoso e mortal em todos os sentidos. A portas fechadas, no entanto, quando estamos a sós, ele é outro homem. Ele me ama sem precisar dizer. Ele me adora sem ter que provar. Quando ele me toca, sei o que está pensando, o que realmente sente por trás daquela máscara que usa diante dos outros. Sou a única alma que ele já deixou entrar em sua vida completamente. E a única que ele nunca irá abandonar.
Ele se tornou o meu “herói”, no fim das contas. Minha alma gêmea que jamais vai deixar que nada de ruim aconteça comigo. Confio minha vida a ele, por mais que ele me diga para sempre confiar primeiro nos meus instintos. A verdade é que tudo o que fazemos é arriscado. Dar um passo para fora da porta. Dar um telefonema. Comer um pãozinho em uma lanchonete. Todos com quem cruzamos são ameaças até que provem o contrário. Qualquer um de nós pode morrer a qualquer momento. Mas pelo menos sei que Victor vai me pôr sempre em primeiro lugar e fazer tudo o que pode para me manter a salvo, como sempre vou fazer por ele.
Ficar um passo à frente da morte é o nosso estilo de vida. É o meu estilo de vida, e acredito que era para ter sido assim desde sempre. Contudo, por mais estranho que pareça, me sinto perfeitamente segura na companhia de assassinos.
J. A. Redmerski
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