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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RETRATO DA MÃE DE HITLER / Domingos Amaral
O RETRATO DA MÃE DE HITLER / Domingos Amaral

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

No mesmo dia em que Hitler morreu, 30 de abril de 1945, um coronel das SS chamado Manfred apodera-se de um valioso tesouro nazi, roubando um cofre em Munique, que contém alguns bens pessoais do próprio Führer, entre os quais uma pistola dourada e o retrato da mãe de Hitler.

Perseguido pelos judeus, Manfred acaba por chegar a Portugal, onde irá tentar vender o seu tesouro aos colecionadores de relíquias nazis.

Jack Gil a ajudá-lo na sua demanda pelos valiosos artefactos, que muitos nazis, como Manfred, tentam vender em Lisboa, antes de fugirem para a América do Sul.

Dividido entre o desejo de ajudar o pai e o desejo de partir de Lisboa, Jack Gil está também dividido nos seus amores, pois embora esteja apaixonado por Luisinha, uma portuguesa que adora cinema e acredita na democracia, fica perturbado pelo regresso de Alice, o seu amor antigo, uma mulher duvidosa, misteriosa mas entusiasmante, que fora a sua paixão de uns anos antes, e que desaparecera certa noite da sua vida.

 

 

 

 

Londres, maio de 1996

O amor deixa-nos sempre em alarme. Alarma-nos quando começa, ou quando não é correspondido; alarma-nos enquanto dura, e mesmo que seja correspondido; alarma-nos quando acaba e nos dói; e continua a alarmar-nos mesmo que tenham passado mil anos desde o dia em que terminou. Não há homem, nem mulher alguma, que não se alarme enquanto ama, e também não há homem nem mulher alguma que, ao cruzar-se com uma pessoa que um dia amou, não sinta um sacudimento de alarme. Muita tempo já passou, e sabemos que já não amamos essa pessoa. No entanto, alarmamo-nos como se ainda a amássemos, como se a força dos sentimentos que um dia sentimos ainda nos dominasse. Pode ser apenas por um breve instante, facilmente ultrapassado, mas não deixa de ser um estado de suprema perturbação, um alarme geral. É assim que me sinto agora, mesmo cinquenta anos depois estou alarmado com a ideia de rever uma mulher que tanto amei. A culpa é tua, meu querido neto Paul. Disseste-me há pouco que descobriste essa espantosa mulher chamada Alice, e com isso perturbaste a minha paz e a minha serenidade, e deixaste-me, assim, em estado de alarme.

No teu habitual telefonema, começaste por me dizer que eu tinha de voltar a Lisboa, agora que o meu bisneto nasceu. Fiquei contente por ti e pela tua mulher, mas argumentei contra a viagem. Dizem que nunca devemos voltar a um local onde um dia fomos felizes. Seja a uma casa, a um trabalho, ou a um país, qualquer regresso é sempre ensombrado por um passado notável, que impede o presente de o superar. Contudo, comigo não foi assim. Cinco décadas depois, regressei a Lisboa, cidade onde tanto vivi e tanto amei, e fui de novo feliz. Saíra de lá em 1945, no final da guerra, e durante cinquenta anos não voltara, apesar de me ter casado com uma portuguesa. Fi-lo pela primeira vez o ano passado, para estar presente no teu casamento, meu querido neto Paul, que, como eu também casaste com uma portuguesa. Regressei à minha Lisboa, à cidade cheia de luz que eu batizara, na comoção do dia da despedida, de «Luzboa». Pisei as calçadas da Lapa, onde antes tanto corri, passeei pela bela Sintra, fui até à tão agradável Cascais e mesmo à serena Ericeira, onde tantas emoções vivi; e gostei de o fazer, meu querido neto, principalmente porque tinha a tua companhia. Só que, Paul, não devemos abusar da sorte. Foi maravilhoso voltar uma vez, mas voltar uma segunda parece-me um desafio aos deuses, que podem enervar-se com o meu atrevimento. Regressar um ano depois, tão depressa, é uma ousadia, principalmente para um homem de oitenta e tal anos, para quem um avião é um mecanismo de tortura, como se as suas cadeiras fossem máquinas da Inquisição.

Lembra-te das minhas varizes, das minhas pernas bambas, da minha coluna massacrada, da maldita osteoporose que me infeta e me deixa os ossos como gesso velho, rachados em mil minúsculos pedaços. É o meu corpo decadente, as suas fraquezas inabaláveis, que marcam o ritmo lento dos meus dias. Sei que vou durar pouco, mais três ou quatro anos talvez. As coisas têm vindo a piorar. Os pulmões estão uma lástima, malditos Gauloises que tanto fumei em Lisboa. E vejo cada vez pior, ao perto ou ao longe, pouco me importa já a distância a que as coisas estão. Sejamos realistas, querido neto Paul: quanto mais velho, mais propenso a azares e mais obrigado ao sedentarismo. Mas entendo o teu entusiasmo, e sei que não queres que volte só para conhecer o meu bisneto, mas também para te contar mais histórias do meu passado. Sei que, desde os nossos passeios há um ano, te tens transformado num especialista em Segunda Guerra Mundial, tens lido biografias do Hitler, do Estaline, do Churchill, memórias de escritores, ensaios de historiadores, e mil e umas outras palavras sobre o embrutecimento do mundo, naqueles anos trágicos entre 1939 e 1945.

Gosto muito de conversar contigo, és um rapaz fantástico, sei disso perfeitamente, embora talvez to diga poucas vezes, sou um velho rabugento que não merece o neto que tem. Sei que vibraste com as minhas narrativas, com tudo o que te contei quando aí estive, e que tens procurado mais, num entusiasmo que me comove, pois é a tua maneira de me mostrar que me amas. Tal como eu, não és muito de declarações de amor, «avô gosto tanto de ti», essas coisas açucaradas. Gostas de mim de outra forma e tornares-te um especialista em nazis e em Salazar é a tua forma de mostrar amor pelo teu avô.

Naquele preciso momento em que me alarmaste, não compreendi, de repente, porque me perguntaste se estava sentado. PauI, por favor, claro que sim, respondi-te! Sou velho, achas que conseguia estar tanto tempo em pé, ao telefone contigo? Mas porquê essa inquirição tão melodramática? Isto não é o teu género habitual. Quando falas dos espiões do MI6 ou das redes nazis em Lisboa, nunca me mandas sentar! Qual o assunto tão espetacular que merece que me sente?

Não me digas que vais falar das mulheres, disse-te! Sabes que sempre amei a tua avó até ao dia da sua morte, e embaraça-me falar contigo sobre as outras, tu és neto dela. Já te disse tudo o que tinha para dizer, e não faz sentido revelar mais pormenores. O que eu vivi com as mulheres nesse tempo foi especial e intenso, mas só se explica pela época, pelo turbilhão da guerra. Lisboa nesses anos era única, e as mulheres também. E de repente, tu disseste-me: - Avô, descobri a Alice, está viva. E eu reagi, o que dizes tu, meu neto? Repete lá isso!

- Descobri a Alice. A tua Alice, a espia. Vive numa quinta no Douro, tem oitenta e tal anos, filhos, netos e bisnetos. Como tu. Ui, isto foi um golpe baixo, e não sei o que dizer. E foi aí que nasceu o meu alarme. Alice…está viva? Tens a certeza de que é ela? Explicas-me que sim, falaram ao telefone, é a minha Alice, a Alice que amei loucamente entre 1941 e 1943, a Alice monumento físico que enlouquecia os homens, a Alice espia dupla que trabalhava para os nazis ao mesmo tempo que para o Michael, o meu melhor amigo, chefe no MI6, espião ao serviço de Sua Majestade em Lisboa.

«Dragonfly» era o seu nome de código, a bela Alice que eu expus e denunciei sem o saber, a inimitável Alice que eu amei enganado, a irrequieta Alice que elogiava Hitler só para me incomodar. .. Meu Deus, será possível? Será a mesma Alice de quem me despedi uma noite, no Guincho, em 1943, pensando que ela iria partir para sempre de Portugal?

Dizes-me que sim, que é a mesma, e acrescentas que não sabias que eu a tinha voltado a encontrar em 1945. Foi ela quem te disse isso? Falaram disso porquê? Será que ainda me ama, será que tem saudades minhas?

Eu não devia falar contigo sobre esse reencontro terrível. Por causa dela, quase perdi o amor da minha vida, a tua avó Luisinha. Não é tema que queira ou goste de falar contigo, percebes? Sim, eu sei que já és um homem, que a tua avó já morreu há muitos anos, mas há uma coisa que se chama respeito pelos mortos.

- Avô, foi há tanto tempo. Gostava de saber o que se passou, só isso. Estiveste dividido entre as duas, sem saber qual escolher?

Sim. No final da guerra, em 1945, a fogosa Alice voltou, e quase arruinou o meu futuro casamento com a tua avó Luisinha. Amei as duas, dilacerado por dentro, e quase enlouqueci. E foi tudo culpa de Alice, a imprevisível Alice, que me fez zangar com o meu pai, e que me quis roubar o tesouro de Hitler. Portanto, não sei se é boa ideia falar-te dela, quanto mais ir a Portugal para a ver.

- Avô, ela alegrou-se por saber que ainda estás vivo. Disse que gostava de te rever.

Paul, Paul, o que fizeste tu? Eu não quero ir, não quero vê-la! Ou quero? Deixa-me pelo menos dormir sobre o assunto, é uma emoção muito forte, muita coisa que ficou por dizer, uma ferida profunda que não devia reabrir, muitas memórias que me assaltam. Mesmo enquanto falo contigo, o meu espírito divaga: o corpo nu de Alice na minha cama; o perfume dos seus cabelos no meu ombro; Alice a subir a escadaria do Hotel Aviz, bamboleando as ancas; ou em minha casa, na Rua dos Remédios à Lapa, esticando as pernas. Os seus beijos demorados, a sua voz áspera, as suas unhas sempre polidas pela manicura, o seu olhar de corça, a sua perdição pelo dinheiro, o seu desejo de deitar as mãos a um tesouro tão valioso.

- Vá lá, avô, conta-me.

Sim, meu querido neto, eu conto, pelo menos o que posso contar. Se te conto tudo? Isso não sei, vamos vendo, à medida que formos andando. Mas não sei se quero vê-la, não sei se aguento. Sinto-me alarmado, aflito, só por falar nela, mesmo apenas ao telefone contigo estou a suar debaixo dos braços e tremem-me as mãos. Alice, ó Alice! Em busca de um retrato maldito, quase me endoideceste. Ia morrendo por tua causa, e por causa do meu pai e daquele maligno nazi, que, na destruída cidade de Munique, encontrou um sinistro tesouro, num dia impossível de esquecer.

Sim, lembro-me bem, e vou contar-te, meu querido neto Paul. Tudo recomeçou no dia em que tudo parecia ter acabado: no dia da morte de Hitler ...

 

Munique, 30 de abril de 1945

Manfred só soube que Hitler tinha morrido uns dias depois, e lembrar-se-ia sempre de que, provavelmente à mesma hora em que, em Berlim, se suicidava o chanceler do Terceiro Reich, ele apreciava a sua emocionante descoberta, na cave do Führerbau de Munique. Pelo menos, foi assim que me contou a história, meses mais tarde, quando nos encontrámos em Lisboa.

A canalização rebentara, as suas botas estavam cercadas por água pestilenta, havia cerca de um palmo de altura dela no chão. O edifício fora saqueado, à bruta, tanto pelos soldados americanos da 144ª Divisão do Exército, que cercava a cidade há vários dias como pelos agora ousados populares alemães, que roubavam o que podiam, sem qualquer respeito pelos seus símbolos nacionais. Traidores. Atirada para os cantos, havia muita mobília despedaçada, e à sua volta Manfred viu pilhas de pinturas a óleo, com rótulos específicos do país ou do artista, pertencentes ao espólio privado do partido nazi, cobertas de água.

Estar ali era um perigo, a qualquer momento os americanos podiam regressar. A cidade rendera-se já, mas à noite os conquistadores ainda se enchiam de medo, em especial dos atiradores furtivos, snipers nazis que se escondiam nos escombros dos edifícios, camuflados pelas vigas, pela argamassa e pela caliça, e cujos tiros se ouviam de vez em quando, como pancadas secas, cujo eco assustava até a própria noite. O Führerbau era enorme e ficava na Koningsplatz, junto a um monumento aos heróis nazis do putsch de Munique, um golpe levado a cabo em 1923 pelo partido nazi contra o Governo legítimo da Baviera, e que valera a Hitler uma estada na prisão. Quem andasse por ali sem saber onde se esconder, como sabiam os ratos ou Manfred, corria risco mortal. Na imensa cave, que ele me descreveu, guardavam-se numerosos tesouros, pertencentes ao próprio chanceler do Terceiro Reich. Manfred estivera lado a lado com Hitler por diversas vezes no Fuhrebaun, pois era lá que este se instalava sempre que vinha a Munique. E era lá que guardava os seus bens pessoais, naquelas caixas de cristal partidas, muitas delas com o monograma A. H. gravado nos lados, e que agora chocavam com outros detritos, desordenadas, na água escura que encharcava a cave.

De repente, Manfred reconheceu uma delas e o seu coração acelerou. Encontrei-o. Certa noite, fora lá dentro que Hitler colocara o seu diário. Avançou sobre a caixa, deu-lhe uma pancada com a ponta da bota cardada e a fechadura cedeu, emitindo um estalido frouxo. Na véspera, Manfred desertara, ajudado pela confusão desesperada que reinava nas tropas nazis. Escondera-se a três quarteirões da Koningsplatz, num prédio esventrado pelas balas da artilharia aliada, enquanto os soldados americanos entravam na cidade, ao final da tarde. Às três da manhã decidira agir, determinado a cumprir um objetivo superior à mera sobrevivência. Roubara umas roupas e vestira-se à paisana. Agora, já não era um coronel SS, mas um civil, com uma pistola escondida no cinto. Alto e de testa larga, espadaúdo e loiro, mal vestido e envolto em trapos poeirentos, com a cara coberta de fuligem e olhos azuis frios como o gelo, Manfred era portador de uma crença profunda. O Führerbau podia ter sido violado com brutalidade, mas nem os americanos, nem os habitantes da cidade conheciam os mistérios daquela cave. Só eu.

Abriu a tampa da caixa, e retirou lá de dentro um estojo preto, que continha um relógio de ouro, também ele com as iniciais A. H. Depois, procurou o livro vermelho, mas depressa a angústia lhe encheu a alma, pois percebeu que desaparecera. Canalhas. Abanou a cabeça, desolado. Esperara com entusiasmo febril o momento em que colocaria as mãos no diário de Hitler.

Frustrado, observou muitas páginas rasgadas, flutuando naquela água podre, e sentiu uma primeira onda de raiva. Escumalha. Precisava daqueles tesouros. Sem o diário, teria de encontrar outras preciosidades. Apontou a sua lanterna para o chão escuro, examinando a superfície inundada. Remexendo no entulho, aos pontapés, afastando a lama e a restante porcaria, ao fim de meia hora descobriu outra caixa, com idênticos monogramas gravados nos lados.

Reanimou-se. Sem forçar demasiado as dobradiças, iluminou com o foco de luz o interior do pequeno baú. Havia vários estojos pretos. Abriu o primeiro e viu uma arma, com as gravações A. H. na coronha e no cano. Manfred sorriu: era a pistola de Hitler!

Agora é minha.

O segundo estojo envolvia um globo dourado, com símbolos nazis gravados nos pólos. Abriu, pressionando o topo contra a mão, e aos seus olhos apareceu um anel de ouro, platina e rubis, em forma de suástica: o anel que Hitler usava nos eventos mais importantes. Manfred vira-o, há meses, no dedo anelar do Führer. Lindo. A sua respiração agitou-se: aquilo ia garantir-lhe a fuga ea liberdade, permitir-lhe escapar aos americanos e ao fuzilamento!

Havia outros pequenos estojos, sempre pretos. Encontrou dúzias de moedas de ouro antigas; uma moldura dourada envolvendo a fotografia da cadela de Hitler, com o nome Blondie escrito no verso pela própria mão do Führer; uma medalha com uma cruz; e, por fim, um exemplar da revista Time, de 13 de março de 1933, com a imagem de Hitler na capa, tirada aquando do seu discurso ao Parlamento alemão, e acompanhada pelo título «Renascimento ou Bolchevismo?»

Satisfeito, recolocou os artefactos no baú, cuidadosamente, e ao fazê-lo deu-se conta de que, no fundo dele, havia ainda uma última e pequena gravura oval, com uma moldura prateada. Examinou-a. Era o retrato da mãe de Hitler! Klara Hitler, o ventre sagrado! Sofreu uma comoção violenta, uma mistura de orgulho e euforia apossou-se dele. Fora naquelas entranhas que o mundo começara a mudar! Milhões, em todo o planeta, iriam querer ver o retrato dessa histórica mulher, que gerara o supremo líder da Alemanha nazi!

Uma segunda onda de raiva fê-lo estremecer: eles iam ver, a vingança seria monumental! Voltaremos. Imaginando um grandioso futuro, Manfred fechou o pequeno baú com os tesouros, e saiu, a rastejar, do Führerbau. Horas mais tarde, segundo o seu relato, estava a caminho da saída sul da cidade, com a caixa escondida no casaco, aos ziguezagues entre crateras no chão e prédios tombados, atento a qualquer perigo, como um lobo solitário, que um apurado instinto de sobrevivência preserva vivo. Munique encontrava-se cercada, a leste pelos russos, a oeste e a norte pelos americanos, mas a sul a tenaz fraquejava, aliviando a pressão e abrindo uma rota possível. Para lá dos limites da cidade, ficava a Baviera, onde tinha conhecimentos em várias aldeias, e a fuga seria mais fácil. Não me apanham. Assim foi.

No entanto, desconfio de que apenas me brindou com um resumo insípido, desprovido de confissões criminosas. Não duvido de que, pelo caminho, matou e cometeu atrocidades, ele era capaz disso, e talvez tenha sido essa implacável ferocidade que lhe permitiu chegar à fronteira com a Áustria em apenas dois dias, ao volante de uma camioneta roubada, com o pequeno baú escondido a seus pés, debaixo do banco do condutor. Safo.

Se queres que te conte tudo, meu querido neto, é preciso ter paciência. Sou dado aos detalhes e prometo não esquecer nenhum que seja relevante. Mas agora vamos ter de parar, agora estou cansado, vou desligar. Telefona-me amanhã. Prometo falar-te de uma pessoa fundamental, que nesses dias voltou à minha vida, ainda antes de Alice. Não, não vou dizer já quem foi, querido Paul. Fala-me amanhã. Boa noite.

 

Por vezes, antes de nos aparecer em pessoa, é nas palavras dos outros que alguém regressa à nossa vida. Foi assim com Alice.

Primeiro, voltou nos relatos de terceiros, e só tempos mais tarde nos reencontraríamos, finalmente. Sentado à minha secretária, no escritório da companhia de navegação onde trabalhava, numa rua próxima do Cais do Sodré, naquela tarde eu lia O Século, sem pausas, mas também sem pressas. Jamais me passaria pela cabeça que, minutos depois, iria ouvir falar de Alice; ou de mirabolantes fugas de alemães perigosos, como Manfred; ou da busca frenética por tesouros nazis, com que o meu pai se entretinha por esses dias, com a ganância de um pirata do século XVII.

Naquele momento, e um pouco macambúzio, limitava-me a ler as sensaboronas prosas jornalísticas do dia. Hitler morrera no dia 30 de abril. A BBC dera a notícia nessa mesma noite, Lisboa ouvira-a pela voz de Fernando Pessa, e a imprensa escrita inglesa apresentara-a, nas suas primeiras páginas, no dia 2 de maio, depois das confirmações oficiais.

Contudo, devido às limitações da censura, só no dia seguinte, em textos envergonhados e sem especial condenação das suas tremendas ações, é que os jornais portugueses noticiavam o assunto. Hitler lançara o mundo na mais violenta guerra da história da humanidade, mas para os escribas de Salazar era ainda um «grande estadista». Que prosa entediante, mais valia ler a enciclopédia dos animais, com que me entretinha à noite, em casa!

Irritado, lembrei-me da profecia da minha mãe. Católica, portuguesa, lúcida e serena, filha de boas famílias de Moçambique, ela previra pouco antes de morrer que as reparações que os Aliados tinham imposto à Alemanha em Versalhes, depois da Primeira Guerra Mundial, eram uma violência económica, que impediria o país de se levantar, com mínima dignidade, do chão e da derrota. Da boca da minha mãe soltara-se uma profecia sombria: revoltada, a Alemanha depressa se transformaria num monstro vingativo, consumido e alimentado por uma raiva danada, que um dia fustigaria os seus opressores, os outros países europeus.

A minha mãe morreu em Sydney, tinha eu doze anos, no início da década de 20 e muito antes de Hitler ser um político relevante na Alemanha, mas infelizmente a sua profecia tornou-se verdadeira. Duas décadas depois de ela morrer, aquele ditador transformara a Europa num brutal cemitério, destruíra nações inteiras e varrera do mapa cidades seculares, qual monstro vingativo das histórias mitológicas, que lança a hecatombe e a morte por onde passa, sobrevoando as suas presas, cuspindo fogo à direita e à esquerda. Finalmente morrera. Segundo os jornais, suicidara-se no seu bunker, juntamente com a sua fidelíssima companheira, Eva Braun, tendo depois sido queimado, os restos enterrados nos jardins, da Chancelaria de Berlim. Julgo que ninguém realizara ainda o significado total daquela morte. Era demasiado cedo, ainda estávamos mergulhados em pensamentos e emoções guerreiras, sem a plena consciência de que, com o desaparecimento de Hitler, a tragédia planetária aproximava-se do seu tão desejado fim. Apesar de a Alemanha ainda não se ter rendido, e de o Japão continuar a resistir ferozmente aos americanos, na estéril ilha de Okinawa, aquele era o gong terminal, que anunciava ao mundo a derrocada dos nazis e do Eixo.

Durante mais de uma década, a Europa vivera refém de Hitler, das suas ideias e dos seus atos, dos seus pensamentos negros e das suas emoções desvairadas. A sua figura histriónica, por mais absurda, delirante ou ridícula que fosse, dominara a nossa imaginação coletiva. A representação do mundo mudara, a dinâmica da humanidade alterara-se, os nossos corações modificaram-se, as nossas razões transformaram-se por causa de Hitler. No centro do universo, tudo se definia por ele, ou contra ele. Fosse nos desertos africanos ou nas estepes russas, nas areias da Normandia ou nas calçadas de Portugal, era Hitler quem marcava o ritmo do nosso tempo. Em Portugal, também. Desde 1939, mas sobretudo a partir de 1941, quando o Terceiro Reich invadiu a URSS, Portugal dividira-se ao meio, entre os pró-germânicos, defensores de Hitler e da Alemanha nazi, e os pró-aliados, aqueles que o odiavam, fossem eles democratas, ingleses, comunistas, defensores do capitalismo americano ou republicanos, socialistas ou apenas simpatizantes da velha aliada de Portugal, a Inglaterra. Hitler dividiu os jornais, o regime, a PVDE (a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), os militares, os empresários, os trabalhadores, os agricultores, a Igreja e, claro, dividiu as famílias portuguesas como nunca antes um líder europeu tinha conseguido.

Hitler, sempre ele, a provocar a discórdia. E também a arruinar-me os namoros. Durante a guerra, apaixonara-me três vezes. Primeiro, e em 1941, por Mary, uma inglesa que me recrutou para os serviços secretos em Portugal; perto do final, já em meados de 1944, emocionara-me com Anika, uma jovem alemã, conspiradora contra os nazis; e pelo meio, em 1943, o meu coração batera por Alice, a mais forte paixão da minha vida. Hitler intrometeu-se entre mim e Alice. Por causa dele, discutimos violentamente pela primeira vez, e ergueu-se entre nós uma parede de incompreensões. Ela admirava Hitler, a sua luta contra Estaline e os comunistas, e exaltei-me ao ouvi-la defendê-lo. Desatei a gritar-lhe, e respondeu-me à letra. Descontrolámo-nos, dois amantes desavindos num arrufo mais intenso, e dei-lhe uma estalada, tendo ela ripostado, atirando-me com violência um sapato à cabeça. Agredimo-nos e minámos o nosso amor de forma irreparável. Hitler, sempre ele, a tornar-nos pequenos monstros agressivos, que mostram os dentes e as garras uns aos outros... A minha mãe tinha razão na sua profecia, se ela estivesse viva gostaria muito de a ver sorrir, feliz com a morte do monstro. Mas, infelizmente, ela já cá não está há muito tempo e é também por isso que me sinto tão sozinho, e leio O Século devagar, perdendo-me em recordações melancólicas. Sofri uma longa série de perdas, muitas pessoas partiram cedo de mais da minha vida. A minha mãe, as minhas paixões, Mary, Anika e Alice, o meu melhor amigo, Michael, todos morreram ou me deixaram muito antes do que deviam, e eu fiquei para trás. Sem mãe, sem amigos, sem mulher.

O que me vale é que também eu estou de partida, vou deixar esta Lisboa, esta cidade que devia chamar-se «Luzboa», devido à maravilhosa luminosidade que a caracteriza, e que sempre iluminou, sem descanso ou hesitação, tanto os meus amores como os meus sofrimentos. O meu pai, dono da companhia de navegação para a qual trabalho, escreveu-me há dois meses, dando instruções para «levantar a tenda». Justificou-se e tem razão, Lisboa já não é o local «onde tudo acontece». Com a guerra a chegar ao fim, já abriram muitos portos no Mediterrâneo, como Nápoles, Atenas, Marselha, e alguns no Norte de África. Lisboa perdeu o monopólio dos mares, a sua condição de única porta de saída da Europa. Desde 1940 e durante cinco anos, Lisboa foi o único grande porto europeu aberto, a única rota livre e não dominada pelos nazis. Embora o Atlântico tenha sido um oceano perigoso, por causa dos submarinos U-boats do almirante Doenitz, a verdade é que os navios de passageiros e mercadorias chegavam quase sempre intactos a Lisboa, e de cá partiam para as Américas, do Norte e do Sul, para a África e para o Índico.

Lisboa reinou, solitária, nesses anos, um raro farol de liberdade numa Europa submetida ao jugo nazi, e era o local certo para expandir os lucros de uma companhia de navegação, que o meu pai nos negócios raramente se engana. Foi por isso que, no início da guerra, ele me nomeou diretor da companhia aqui, antes de partir para as Américas, onde se sentia mais seguro, pois, apesar de ser uma águia comercial, não é a pessoa mais corajosa que conheço. Não tenho saudades dele e não me queixo da sua ausência. Os seus caprichos, os seus berros, o seu temperamento irascível e instável, o seu sentido de humor ácido, transformaram a minha hereditariedade num deus irado e desagradável. Só de pensar que me quer em Nova Iorque, ao pé dele, invade-me um mal-estar pesado, como se a digestão de um exagerado almoço tivesse parado no meu estômago. Desde que a minha mãe morreu, tentámos, sem sucesso, conviver, e aprendi que a distância é a única garantia da minha tranquilidade. Contudo, é o dono da companhia e, portanto, tenho de executar as mudanças que ordena. «Quem paga, manda», escreveu ele, na sua missiva, mas nem era necessário. Não me custa deixar Portugal, nada mais me liga a este país. Já não sou espião do MI6 há meses, e só tenho dois amigos: Harry, o dono do Aviz, e Roberto, o mais divertido e leal taxista de Lisboa, que goza sempre com o bigodinho de Hitler, e com quem desejo celebrar a morte do «facínora», como ele lhe chama. Quanto a mulheres, estou no deserto. Tenho uma única amiga: Luisinha. É a irmã mais nova da minha antiga noiva, Carminho, que entretanto morreu. Duas vezes por mês, costumamos ir ao cinema, depois tomamos um chá na Suíça. Afeiçoei-me à sua companhia. É uma rapariga imensamente simpática, sei que me admira, mas nunca nasceu desejo entre nós, só um sentimento bonito de amizade. É evidente que, às vezes, sentados no cinema a ver um filme americano, encostamos os ombros, ou damos a mão numa cena em que ela se assusta, mas não passamos daí, e qualquer instinto menos próprio morre no escuro. Talvez porque eu ando amorfo, e ela é uma portuguesa de boa família, conservadora, daquelas a quem as criadas chamam «menina», e que são educadas numa moral católica, bem mais apertada do que as saias que já usam, e que garante que chegam virgens ao casamento. Sei que cresceu, já não é a rapariga inocente que conheci, e por vezes dou por mim a apreciar o seu corpo. Mas nunca me aventurei, nem ela mostrou abertura. Há semanas que não a vejo, foi para Évora, passar a Páscoa em casa de uma tia, e ainda não voltou. Vou ter saudades dela, bem como de Harry e de Roberto, mas a vida é assim. É tempo de partir, agora que a guerra acabou e Lisboa vai aos poucos regressar à paz podre do regime de Salazar. Estes foram, apesar de tudo, anos diferentes. Portugal, mesmo contra a vontade de Salazar, durante a guerra teve de se abrir aos refugiados, às novidades que eles traziam, à confrontação entre alemães e ingleses, às divisões políticas vindas de fora. Não estando em guerra, Portugal foi forçado a aceitar a guerra e as suas consequências imprevisíveis, e isso criou um ambiente original, como um quadro acinzentado tivesse sido de repente, atravessado por pinceladas de cores vivas, que o aligeiram. Durante seis anos, o país foi uma espécie de oásis no deserto da Europa, mas agora isso vai mudar. Como uma ostra, o regime de Salazar fechar-se-à, e não me apetece nada viver nesse país que Portugal será daqui a um ou dois anos. Mais vale partir já, com boas memórias dos anos que cá vivi, do que assistir ao regresso das sombras. Até porque, mesmo não tendo conhecido a guerra de perto, sinto que estes anos me desumanizaram. Há uns anos, era um homem diferente e melhor, mas mudei muito. A guerra transformou-me num mentiroso, num vingativo, num ser muito pior do que era. Hoje, sou mais duro, mais egoísta, mais desumano, mais indiferente aos outros. Fui capaz de trair, de ser infiel, de manipular e até de matar. Sujei-me, corrompi-me, mudei para sempre. E gosto menos de mim hoje, sinto-me pior na minha pele do que há seis anos, quando a guerra teve início. Talvez num outro lugar, num outro país, possa recomeçar, melhorar, ultrapassar esta lenta, mas progressiva, degradação da minha personalidade.

De repente, oiço barulho no corredor, uma voz que se sobrepõe às outras, alguém que fala inglês, num tom autoritário. Demoro alguns segundos a identificar o autor dos sons, o meu cérebro recusa-se a admitir a verdade. Incrédulo, levanto os olhos do jornal O Século, vejo a porta do escritório abrir-se e uma cabeça espreitar. Uns olhos brilhantes e ágeis procuram.

O meu pai.

- O meu bisavô?

Sim, Paul, ele mesmo, em carne e osso.

- Pensava que nunca mais se tinham visto ...

Isso foi depois de Lisboa. Zangámo-nos, para sempre. A culpa foi dele, como irás perceber. Ou terá sido minha? À medida que os anos passam, vou tendo cada vez menos certezas sobre a minha vida. Mas deixemos a atribuição de culpas suspensa por agora, primeiro é preciso conhecer os factos.

 

Era só o que me faltava, o meu pai em Lisboa: Bem vestido como sempre, num fato de caqui, liso e claro, aposto que feito à medida, e no melhor alfaiate de Nova Iorque. O meu pai é um vaidoso, mas não lhe chega causar uma boa impressão geral, e acrescenta sempre à indumentária principal vários acessórios, normalmente de uma notoriedade festiva. Uns botões de punho, com a cabeça redonda, de marfim; um lenço branco e imaculado, colocado na lapela; uma camisa, também branca e engomadíssima, contrastando com a gravata, castanho-escura, com dezenas de cornucópias deslizando na seda. Nos pés, calça uns sapatos castanhos, de bico e reluzentes, e enquanto entra, em passo firme, na minha saleta reparo no meu chapéu também de caqui, laçado por uma tira castanho escura e colocado ligeiramente descaído para a esquerda, no alto da sua cabeça. É um homem bem-parecido, de testa frondosa, cabelo ralo, um ar inteligente e moderno, o queixo bem desenhado, o nariz fino, os olhos verdes e ágeis, a pele cuidada, as unhas polidas. Por momentos, parece-me aperaltado para um safári, preparado para atirar em elefantes, leões ou rinocerontes, só lhe faltando a espingarda a tiracolo e os indígenas atrás, carregando trouxas e munições. Os seus olhos observam-me, desagradados com a minha lentidão, a minha paralisia ao vê-lo. Traz incómodos escritos nas rugas do rosto, na testa já franzida, como se dissesse: Porque estás sentado, seu malcriado? O meu pai veste-se como um príncipe urbano, mas fala com a agressividade de um estivador.

- Jack júnior, não levantas o teu rabo sujo para me cumprimentar?

Nem me dá tempo para me refazer do espanto, e solta palavras críticas umas atrás das outras, duras e implacáveis, como balas de uma rajada de metralhadora de um Spitfire de salão, que sobrevoa os seus atarantados inimigos. Eis, ao vivo e a cores, o esplendoroso senhor Jack Deane. Sim, tem o mesmo nome que eu, que azar!

Por sua causa, obriguei todos a chamarem-me Jack Gil Mascarenhas, só usando os apelidos portugueses. Apesar de nos passaportes termos o mesmo nome, na vida social deixei cair o Deane de propósito, tal era o meu embaraço, e na esperança de que com ele caíssem também as associações à figura do meu pai. Foi assim em Sydney até aos quinze anos, em Hong Kong aos vinte e tal, ou mesmo quando cheguei a Portugal, há pouco mais de oito anos. O meu progenitor envergonha-me. Tem excessos temperamentais, fama de negociante duvidoso e uma tendência irreprimível para baralhar as pessoas em seu proveito. Passei grande parte da vida a afastar-me dele. Fui para um colégio interno, uma universidade, tentei a minha sorte noutras empresas que não as suas, mas os seus estratagemas, e sobretudo a sua persistência, venciam-me sempre. A hereditariedade é o único deus difícil de anular. Podemos esquecer Alá, Buda, Jeová ou Jesus, mas raramente se consegue evaporar um pai abrasivo.

Levanto-me, ainda mal refeito da surpresa: - Desculpe ...

Investiga-me, silencioso, como se me atirasse à cara: Nunca gostaste de mim. Coloca uma pose altiva e ofendida. E tem razão no que afirma: - Uma carpideira parece mais feliz do que tu, Jack júnior. Repugna-lhe o meu desentusiasmo, quer humilhar-me, ouvir­me dizer que estou contente por vê-lo, expulsar de dentro dele a sensação desagradável que lhe provoquei. Não se trata um pai assim, anos sem te ver e nem me abraças! Como se os seus olhos falassem. Justifico- me:

- Não estava à sua espera.

Avanço a contragosto, estendo-lhe a mão, solto um murmúrio forçado: - É bom vê-lo.

Mentiroso é a mensagem do seu olhar. É evidente que não é bom vê-lo, nem ele acredita. Mira-me como um animal ferido, um daqueles leões do Kruger que ele atingia num tiro de raspão, e que ficavam irritadiços, quiçá preparando o contra­ataque. Recuo uns anos, vejo-nos aqui, neste mesmo escritório, a última vez que estivemos juntos, numa despedida agreste. «Tu ficas, eu vou para Nova Iorque», ordenou. Com receio da guerra, foi-se embora de Lisboa. Quase lhe chamei cobarde, mas calei­me no último segundo, afinal ele é meu pai.

- Devia ter-te enviado um pombo-correio para avisar?

Observa o escritório, vê o sofá de cabedal castanho, com dois fundões amolgados, nos locais onde os rabos assentam. Esco­lhe o fundão da esquerda e senta-se. Tira o chapéu, relaxa, sorri e pergunta-me se há o que beber. Vai buscar o brandy ..., humilha-me a memória da voz dele, vinda do passado. Foram anos disto. Pai, filho; patrão, empregado; mestre, servo. Ele sabe perfeitamente onde está o brandy, no armário do costume, este escritório foi seu, não mudei nada de lugar. Porém, quer mostrar que manda em mim, e eu obedeço, submisso. Preciso de ganhar tempo, entender as suas motivações para regressar. O que vem ele caçar, se em Portugal não há leões?

Encho o copo, ofereço-lhe, e ele bebe dois goles. Depois sorri novamente, misterioso, sobrancelhas levantadas. Estás no escuro, júnior, isso dá-me gozo. Relembro a carta que me escreveu, as diretivas que cumpro, a desmontagem da companhia, daqui a semanas podia partir para a América. Pergunto-lhe porque atravessou o Atlântico sem me avisar.

- Não vim por causa desta trampa.

Executa um gesto vago com a mão, refere-se ao escritório, à companhia de navegação. Lisboa interessa-lhe já pouco, explica: - Este poço está seco. Nesta terra de pobres, já não se ganha mais dinheiro.

Sempre o dinheiro. Para o senhor Jack Deane, é a única coisa que interessa. O meu pai nunca me agradeceu, nem uma única vez, o meu inteligente trabalho estes anos em Lisboa. Não me elogiou o talento, o rigor ou a prudência com que me movimentei entre o perigo dos submarinos alemães e o bloqueio naval imposto pelos ingleses. Para ele, a companhia lucrou porque a guerra inflacionou os preços. Nunca o irei ouvir aplaudir o meu discreto, mas eficaz, relacionamento com as autoridades portuárias de Lisboa, com os manhosos pilotos da barra, com os marinheiros bêbados, com os comandantes venais e corruptos, com os passageiros ansiosos, pobres ou ricos, legais ou clandestinos. Ele sempre disse: «A mãe elogia, o pai exige.» Como a minha mãe morreu cedo, fiquei limitado aos seus caprichos. Portanto, soa-me a previsível a sua conclusão: - Lisboa acabou, Jack júnior. E tu também.

Sorri, lambe ligeiramente os lábios, sabe que me irrita quando me chama Jack júnior, julga que pode gozar-me a qualquer hora.

És um fraco, rebola a frase nos seus olhos, divertidos e verdes e cruéis. Com um suspiro conformado, pergunto:

- Quer que eu vá para Nova lorque?

O significado do seu encolher de ombros é límpido: Estou-me nas tintas para ti, fazes o que eu mandar. É-lhe indiferente, um dia destes pensará sobre o meu futuro. Dá mais um gole no brandy, cala-se por momentos, aposta que as suas pausas me enervam. Lentamente, afirma: - Ouvi dizer que deixaste o MI6.

Espanto-me, imediatamente tenso. Ele rejubila, sorrindo, olhos que me humilham, dizendo sem o dizer: Estás a ver, sei tudo sobre ti! Sabe que trabalhei para os serviços secretos ingleses em Portugal. Mas como? Nunca lhe falei disso! Quem o informou?

Está divertido, mais uma vez atrapalhou-me, vai continuar a fazê-lo.

- Jack júnior, sei muito mais de ti do que tu pensas ...

Chocalha o brandy no copo, quase consigo ouvir o ribombar do seu contentamento, a sua alegria interior por dispor de informações sobre a minha vida. Eh, eh, palerma, eu sei tudo. Falava sempre assim em Sydney, em Hong Kong. Tantos anos e nada mudou? Ergue os olhos, escarafuncha mais na minha surpresa, de novo um Spitfire em voo acelerado, lançando mais umas rajadas:

- Sei de tudo ... Do noivado falhado com a filhinha do general, a que esticou o pernil. Das redes de espionagem que o teu relatório desmantelou. Da amante inglesa, a bêbada e maluca, que morreu em Londres, com as bombas. Mary, correto?

Dá-lhe prazer encher-me da sensação angustiante de que nada na minha vida lhe escapa, dá-lhe prazer converter o espião que fui no espiado que agora sou. Eh, eh, palerma, eu sei sempre tudo, dizem os ecos do meu passado.

Tento ganhar tempo: - Chegou hoje, ou há uns dias?

Percebe onde quero chegar e, orgulhoso de si próprio, dá uma risada. Não te vou dizer quem me contou. Os risos também falam.

- Até uma macaquinha alemã o júnior conseguiu pôr a guinchar, correto? - Um remate final acompanha esta última revelação: - Estou impressionado.

Não está nada, ele nunca se impressiona com os meus feitos.

Está é impressionado consigo mesmo, é um egocêntrico há mais de sessenta anos, cujos feitos serão sempre mais gloriosos do que os meus.

Um dia, o meu pai levou-me a um bordel de Hong Kong, num ritual de iniciação sexual inútil, pois sabia que eu já não era virgem. Ao transpormos uma cortina aveludada, entrando numa grande sala iluminada por luzes vermelhas, avisou-me: - Por mais que forniques, nunca vais fornicar tantas como eu!

De que tinha ele medo? Da minha energia, da minha juventude, do meu talento sedutor com as mulheres? Do amor que a minha mãe me tinha, que ele considerava uma inaceitável afronta à sua personalidade solar?

O meu pai engole mais brandy. Depois, numa abrupta mudança de rumo, como se o spitfire regressasse, bem embalado, após criar a ilusão de que se fora embora, declara, num tom duro e rápido:

- Deixaste morrer o teu melhor amigo.

DEIXASTE ... MORRER ... O TEU ... MELHOR ... AMIGO. Assim, sincopado, metralha o Spitfire de salão. Franze ligeiramente a testa, sabe que este é um ataque sujo. Foi culpa tua! , acusam os seus sobrolhos. Quer obrigar-me a uma reação drástica. A acusação é tão forte ... Resisto, não quero responder, mas não sei como.

A morte de Michael ainda me rasga por dentro, como se eu fosse apenas papel fino. Justifico-me, a voz muito séria e cavada, procurando a solenidade que o tema impõe:

- Foi um nazi que o matou.

Estou de pé, encostado à secretária, não me voltei a sentar.

Enervado, endireito-me, pego num copo, encho-o de whisky. Ele observa-me, calado. Examina cada gesto meu. Sabe que digo a verdade. Sabe que sofro. Mas não larga a presa e lança um murmúrio cínico:

- Parece que esse nazi nunca mais foi visto ...

A insinuação paira sobre o escritório, como um gás maligno contra o qual não tenho máscara, invadindo-me os pulmões, apertando-os, sufocando-me. Só eu e Klop sabemos o que se passou naquela casa, não o contei a mais ninguém. Fecho os olhos, revejo a cena: o nazi a sair do quarto, eu a golpear-lhe a garganta, a lâmina da faca Randall do Michael a tingir-se de sangue. Como pode o meu pai saber disto?

Abro os olhos, ele admira a minha confusão, sorri quase impercetivelmente, sabe que me atingiu num ponto fraco. Eh, eh, palerma, eu sei sempre tudo! , diz o eco de Sydney, como quando descobriu que eu copiava na escola, ou de Hong Kong, quando me apanhou na cama de uma criada chinesa. Encosta o copo ao nariz, usando-o como uma mira, e pergunta, fazendo de mim o alvo:

- Odeias mesmo os nazis, não é verdade, Jack júnior?

Respiro fundo e aponto para a capa do jornal O Século, em cima da mesa.

- Não sou o único, pai. Hitler morreu, a Europa celebra.

De repente, o seu espírito voou, já não sei no que está a pensar, mas com certeza que já não é em mim. Há quantos anos o perdi? Levanta-se, olha para o jornal.

- Os nazis estão a fugir, Jack júnior.

Com a pompa própria de quem revela um sólido segredo de Estado, endireita a coluna, estica o corpo e fica mais alto do que eu, que estou de novo encostado à secretária, como uma lança pousada, oblíquo. A postura física também é nele um expediente, um truque para melhor impor a sua autoridade paternal.

- Sabes o que isso quer dizer?

Inicia uma curta dissertação: os nazis perderam e, como cometeram atrocidades impronunciáveis, querem evitar prisões ou condenações, escapar ao abraço final justiceiro dos vencedores da guerra, e fogem, desesperadamente, quais animais da savana à frente do fogo.

De repente, baixa a voz e murmura, num tom confidencial: - E trazem muitos tesouros com eles.

Como é sabido, as pessoas que fogem à pressa dos seus países tentam levar os seus bens mais valiosos. Foi assim com os refugiados há uns anos. Fugiram de França, da Polónia, da Hungria, da Rússia, da Holanda, atravessando a Europa com medo, carregados de malas e trouxas, e trazendo com eles tudo o que podiam, o dinheiro, as joias, os carros, as obras de arte, o ouro, qualquer coisa que os ajudasse na sua debandada dolorosa.

Milhares, entre os que chegaram a Portugal a partir de 1939, tiveram de vender os seus bens em troca de um quarto numa pensão, em troca de comida, em troca de um bilhete e de um visto que lhes permitisse fugir para a América. Lembro-me de centenas de histórias. Conheci famílias inteiras, senhoras de idade, crianças órfãs, homens solitários, raparigas bonitas e assustadas, que só queriam atravessar o atlântico e fugir depressa da barbárie nazi, da onda avassaladora que destruíra os seus pequenos e privados mundos e os seus grandes países. Agora, em 1945 e perdida a guerra, era a vez de os nazis fugirem, numa pressa ainda mais aflita e dramática, pois carregavam aos ombros a culpa por camadas infinitas de brutalidade, e sabiam que o castigo da Europa estava prestes a chegar. Sim, já escutara histórias em Lisboa sobre nazis aterrados ou cobardes, coronéis da Gestapo que se disfarçaram de operários de alpergatas, funcionários do Terceiro Reich que se fizeram passar por meros comerciantes, e até de assassinos das SS que se transformaram, à pressa, em cozinheiros polacos. Mas de tesouros nunca ouvi falar.

- Que tipo de tesouros?

Os nazis saquearam a Europa. Roubaram museus, palácios, casas, levaram o que puderam para a Alemanha. Porém, ironizo, duvido de que possam agora fugir carregando às costas as riquezas do Museu Hermitage, de São Petersburgo.

O meu pai proclama: - Tudo.

Dá novo gole no brandy, depois estala a língua, um princípio de excitação nasceu-lhe na alma. Como que impulsionado por uma inflamada genica, fala mais depressa e agita-se:

- Obras de arte, ouro, pinturas, esculturas, joias, tesouros incalculáveis! Tudo o que saquearam durante seis anos e não querem deixar para trás! Quem conseguiu roubar, roubou! Quem conseguiu fugir, fugiu! E quem conseguir vender, venderá!

É possível. Apesar de cercados a oeste pelas tropas que haviam desembarcado na Normandia, em 44; a este pelos soviéticos; e a sul pelos exércitos-aliados que libertaram a Itália, o anel militar não é propriamente um círculo fechado na perfeição. Há falhas, zonas abertas, fugas possíveis. Mas é preciso ter dinheiro.

Respiro fundo e comento, com a segurança de um especialista: - A Suíça deixa-os passar.

O meu pai sorri, contente. Não apenas com a atitude helvética, mas porque há mais países que deixam os nazis fugirem, como ele enumera: - Em França também passam. No Sul, em Marselha. Na Grécia, ou na Itália, especialmente em Nápoles. Até no Norte, na Holanda, embora aí seja mais difícil. Entusiasmado, exclama:

- E ainda bem!

Por momentos, fico confundido. O meu pai é um homem de negócios, nunca foi de sofisticações políticas, mas sei duas ou três coisas sobre ele. A primeira é que acredita no capitalismo e no lucro; a segunda é que odeia comunistas, pois eles querem destruir o capitalismo; e a terceira é que considera os nazis uns histéricos, que só se diferenciam dos comunistas porque acreditam em Deus, o que para o meu pai não é obviamente relevante, pois, apesar de protestante, ele nunca deu qualquer importância à religião. Ora, onde encaixar esta sua satisfação com os países que estão a deixar fugir os nazis? Descobrindo uma oportunidade para revelar superioridade moral, indigno-me perante o seu contentamento: - Ainda bem? Deviam era prendê-los, são criminosos de guerra!

Encolhe os ombros, despreza o meu acesso de indignação, com olhos que dizem não percebes nada de nada, és um nabo! , e as seguintes palavras:

- Por favor, Jack júnior, poupa-me a moralismos de cordel!

Dirige-se ao sofá, volta a sentar-se. Observa-me, os olhos brilhantes, cheios de expectativas. Money, money, money, foi o que eles sempre me disseram, quando me olharam assim. Por fim, abre os braços de par em par, como um pregador protestante, e declara: - A guerra acabou, os nazis estão a fugir, e trazem tesouros com eles. É isso que interessa!

Franzo a testa, intrigado: - Isso o quê?

Ele atira-me um olhar extático, como o de um possuído por uma estranha e insondável fé, o único bafejado por uma revelação divina, e exclama: - Os tesouros!

Desculpa, Paul, mas não posso evitar, não gostava mesmo dele, do teu bisavô. Tenta dar o desconto, talvez assim te seja possível formar uma opinião mais equilibrada. Eu não consigo.

 

- Jack júnior, já ouviste falar na Safe Heavens?

Se o meu pai veio para caçar num safári, conhece o trilho dos leões. A Safe Heavens é uma operação dos serviços secretos americanos, o OSS, e eu pensava que só quem tinha boas ligações nessas áreas, como é o meu caso, sabia que ela decorria em Lisboa. Demiti-me há uns meses do MI6, já não sou um espião ao serviço de Sua Majestade o Rei de Inglaterra, mas frequento ainda os círculos sociais do passado, conheço gente nas embaixadas inglesa e americana, estou a par do que se passa. Sei, por exemplo, que os ingleses e os americanos não vão tirar o tapete a Salazar, para grande desapontamento dos republicanos e socialistas, e sei igualmente que o OSS anda a recolher informações sobre os alemães em Portugal, redes nazis que ainda funcionam. Ninguém conhece o objetivo destes exercícios yankees e, além disso, no universo restrito da espionagem, o OSS é considerado um principiante nestas andanças, com rios de dinheiro, mas ausência de estratégia ou experiência. Muitas vezes éramos nós, Michael e eu, que os ajudávamos em Lisboa. Mas, perante a pergunta do meu pai, sou defensivo: - Vagamente.

O meu pai observa-me, contrariado. Procura descobrir uma falha na minha opacidade. Mentiroso. Insatisfeito, exclama:

- Os americanos sabem onde estão os nazis, mas deixam-nos fugir, entre os dedos, como areia na praia!

Explico-lhe que a Safe Heavens é apenas uma operação de recolha de informação, essencialmente para pressionar Salazar, para o obrigar a congelar os bens dos alemães em Portugal. Não é uma gloriosa «caça aos nazis». O meu pai confirma a primeira parte da minha opinião: - Ora, Jack, os americanos até já sabem que há ouro nazi guardado no Banco de Portugal! Qualquer dia, vão apertar com o Salazar…

O ouro não é novidade. Nem para mim, nem para os americanos. Portugal recebeu, durante anos, ouro nazi como pagamento das suas exportações de volfrâmio para a Alemanha. Todos o sabem.

- Salazar só parou os negócios com Hitler depois do desembarque da Normandia, em junho de quarenta e quatro. E foi sempre pago em ouro.

O meu pai sabe-o também, e abana sucessivamente a cabeça, como um boneco, com uma mola no pescoço, a quem se deu um pequeno empurrão na nuca.

Depois, saltita de tema e entusiasma-se outra vez, os olhos a brilharem de ganância: - Quem conhecer as redes nazis, sabe onde estão os tesouros! Correto, Jack júnior?

Foi sempre assim, desde os doze anos, desde que a minha mãe morreu ele chama-me Jack júnior. Dou mais um gole no meu whisky e suspiro, enfadado: - Não vejo o Salazar interessado em tesouros. Nem os americanos ...

Então, o meu pai força uma careta e contorce a boca, num pretenso sorriso. Usa o rosto como uma arma de humilhação. És um inútil. Explica-se: - Tanto o Salazar como os americanos sabem perfeitamente que os nazis estão a fugir por Portugal, com imensos tesouros

às costas. Mas não os prendem, nem impedem as fugas! Correto?

É verdade, não agem. Já algumas vezes me interroguei sobre o porquê de tal passividade, mas desconheço a razão. Foi para não ter de me preocupar com tais questões que abandonei o MI6, limitando-me a ser um mero diretor de uma companhia de navegação, que até se preparava para «levantar a tenda», rumo a outras paragens mais rentáveis.

Então, qual visionário, o meu pai exclama:

- É aí que está a nossa oportunidade! Se ninguém prende os nazis, podemos comprar-lhes os tesouros!

Negociante exímio como é, o meu pai sentiu aquilo que nos negócios sempre o entusiasmara: o momento de fragilidade do vendedor. Em fuga, com medo de serem apanhados e enviados de volta para a Alemanha, os nazis encontravam-se vulneráveis.

Precisam de vistos, de documentos falsos, de bilhetes em navios que os transportem para a América do Sul. Para os obter, terão de vender os seus bens, os tais «tesouros». É esse o motivo do júbilo do meu pai. Ele farejou uma oportunidade de lucro, como um leão fareja uma gaze la solitária.

Pergunto-lhe:

- Vai vender bilhetes da nossa companhia para comprar tesouros?

Exasperado, o meu pai revira os olhos, como se gritasse: Falhado! Sempre odiei aquele reviralho ocular, sinto-o desde pequeno, como uma permanente acusação de menoridade mental.

- Por favor, Jack júnior, continuas o mesmo!

Vinda do meu passado, voa até mim, veloz como um raio, a expressão tijolo com olhos, mas ele não a profere. Exaltado, explica-me:

- Claro que não vou vender bilhetes! A nossa companhia não é para aqui chamada! Quero é comprar-lhes os tesouros!

E para isso preciso de saber por onde fogem, quem os ajuda, quem lhes facilita a vida em Portugal! Preciso de ajuda!

Nesse instante, aponta o dedo indicador da mão direita para mim, qual Uncle Sam dos posters americanos, como se eu fosse um jovem do Midwest que quer mobilizar para a guerra.

- Preciso de ti!

Fico espantado. Tantos anos sem me ver e não tem quaisquer saudades minhas. Não quer conversar comigo, falar das coisas boas da vida, da guerra que acaba, das recordações da minha mãe, da minha infância em Sydney, da minha adolescência em Hong Kong. Só voltou a Lisboa porque quer aproveitar oportunidades de negócios sujos, e só veio ter comigo porque precisa dos meus conhecimentos secretos!

É pouco num pai, mas é tudo a que tenho direito.

Prossegue, muito agitado:

- Tu conheces os americanos! Tu conheces as redes nazis, fizeste um relatório sobre elas para o MI6~ Juntos, podemos caçar os tesouros dos nazis!

Fico pasmado ao ouvi-lo. O meu pai propõe-se ser um caçador de tesouros nazis e, mais espantoso ainda, quer transformar-me também num desses vis e venais abutres, que se alimentam dos despojos das guerras.

Imparável, continua:

- Jack júnior, foi por isso que eu regressei a Portugal! Não foi só por isso, mas essa é a principal razão ...

Não me preocupo em conhecer as outras. Nem ele me dá tempo para isso. Volta a subir o tom de voz, e torna a apontar o dedo na minha direção:

- Juntos, seremos imbatíveis! Eu tenho dinheiro, tu os conhecimentos! Jack júnior, tu conheces amigos de Salazar, a família da tua antiga noiva! E também os segredos do MI6, os documentos ingleses sobre as redes alemãs foram escritos por ti! Correto? - o meu pai faz uma pausa, mas é uma falsa interrupção, pois logo recomeça, sem me deixar ripostar: - Tu conheces o dono do Aviz, americanos, judeus, pessoas na banca, até no Banco de Portugal, nos ministérios, nas empresas! Tu ...

Baixando inesperadamente o tom de voz, como alguém que confessa um segredo íntimo de alcova, acrescenta:

- Tu até conheces, e muito bem, segundo me disseram, aquela que foi a espia dupla mais bem-sucedida em Portugal, uma macaquinha de circo, uma tal Alice: A frase cai sobre mim como uma bomba. Eu pensava que os Spitfires eram caças, mas este é um bombardeiro: O meu pai não só sabe que eu tive um caso com uma mulher portuguesa chamada Alice, como também que ela era uma espia dupla, dos alemães e dos ingleses em simultâneo: Começo a sentir dores de barriga.

Ele sorri, cinicamente, sabendo que me acertou uma violenta estocada. Porta-aviões ao fundo, dizem os seus olhos, como um eco do passado, quando me humilhava a jogar à batalha naval.

- «Dragonfly», era esse o nome de código, correto?

Meu Deus, ele até conhece o nome de código secreto pelo qual os ingleses se referiam a Alice: O que é que o meu pai não sabe? Neste momento, já estou subjugado pela sua exibição de conhecimentos secretos. Mas o meu esmagamento só é total quando ele acrescenta, com um sorriso malicioso: - Ouvi dizer que ela está em Portugal, sabes disso?

Com esta, tenho mesmo de me sentar: Nas palavras do meu pai, Alice começou assim a regressar à minha vida. O meu coração acelera, a minha pulsação também.

Alice em Portugal? Balbucio:

- O quê?

O meu pai bate as palmas, como se estivesse a festejar no dia do meu aniversário, no final do cântico de parabéns.

Está eufórico, possuído por um delírio de alegria perverso, e grita:

- Com esta é que te apanhei, Jack júnior!

Como pode ele saber do paradeiro de Alice? Será verdade que ela está de volta a Portugal? Sinto-me, mais uma vez, uma marioneta. Como sempre, como em Sydney, como em Hong Kong, o meu pai puxa-me os fios a seu bel prazer. És meu. O Spitfire furou-me de balas com esta última rajada. Ri-se e continua, debitando novidades que eu desconhecia: - Ela esteve uns tempos fora, nos Açores, mas agora voltou.

E anda por aí em Lisboa, a fazer as suas macacadas.

Não consigo conter a minha curiosidade e pergunto:

- Como sabe disso?

Ele sorri, inchado de orgulho. Ascendeu finalmente a um claro patamar de superioridade, domina a minha mente. Estás no escuro, Jack Júnior isso dá-me gozo.

- Sei porque sei.

É sempre o seu primeiro instinto: demonstrar o seu poder.

Quase que posso ouvir as engrenagens do seu cérebro: Eu mando, tu obedeces. Estica o braço, oferece-me o seu copo. Encho-o de novo com mais brandy e devolvo-o, enquanto ele diz: - Terás de encontrá-la, Jack júnior. Não serei eu, um sexagenário, que vou a correr atrás dela. Tu é que vais. E tens uma ótima razão: um velho amor que renasce, a saudade dos antigos amantes! - executa uma nova careta: - Como num filme de Hollywood, uma coisa romântica, de levar às lágrimas!

Sorri, uma vez mais, a gozar-me:

- Ninguém vai suspeitar de ti. Lisboa inteira soube que arrastavas a asa por dela. Mas o importante não é isso, isso é para entreter as raparigas tolas!

O amor, para o meu pai, não passa de uma história para iludir raparigas tolas. Alice, defende ele, é quem melhor conhece as redes alemãs em Lisboa. Sabe onde os nazis têm amigos, onde se escondem, quem os persegue, quem os pode trair, quem tem dinheiro para os meter em navios, camuflados de cozinheiros polacos ou de operários de alpergatas. Ele também ouviu as mesmas histórias do que eu. Só que ouviu mais, muito mais: ouviu falar de Alice!

- Se a trouxermos para o nosso lado, pomos as mãos nos tesouros!

O meu pai quer recrutar Alice? Mas como? Ele sabe, ele sabe tudo, e responde:

- Com dinheiro. Ela é uma rameira. Correto, Jack júnior?

Triunfante, declara que pode comprar Alice e depois os tesouros nazis. Mas, para chegar a ambos, precisa de mim. O que é uma sorte, visto que já sou seu empregado, explica. Fecha-se assim sobre mim o círculo de ferro do seu poder. Ele não é só o meu pai, ele é o meu patrão, dá-me ordens a dobrar. E eu terei de cumpri-las, correto? Encontrar Alice, seduzi-la, comprá-la, só para ele chegar aos nazis e aos seus tesouros. Pouco lhe importa que me doa reabrir uma ferida no coração, nunca sarada. O amor é para as raparigas tolas é a frase que vejo escrita no seu olhar.

Definida a estratégia, o meu pai quer correr contra o tempo:

- Temos de ser rápidos ... Os americanos já falaram com ela, e há mais gente, até judeus, à procura dos tesouros.

Deixo-o prosseguir, definir truques e investidas, mas dentro de mim cresce uma vontade de recusa. Não desejo nada disto, não quero «caçar» tesouros nazis, não quero conviver com ele, e sobretudo não quero rever Alice, por mais que isso me custe.

Ignorando as suas divagações, tomo coragem e declaro:

- Pai não conte comigo.

Ele olha-me, enervado. Vai batalhar contra os meus argumentos. Quem pensas que és? Odeia ser desafiado assim. Preparo-me para mais uma forte investida, quiçá palavrões, mas ele surpreende-me. De repente, encolhe os ombros, como se a minha declaração não fosse importante, e decide ir-se embora, numa falsa indicação de desistência. Mais: sorri-me, como se me estimasse. Ele consegue ser encantador e charmoso quando quer.

Ao chegar à porta, abre-a devagar e olha-me mais uma vez, com um sorriso simpático, que transporta a certeza dos iluminados:

- Esta noite vais pensar na Alice e nas nozes - ri-se, com malícia de macho, e acrescenta: - Depois falamos.

Ele tinha razão, querido Paul. O amor é alarmante, mesmo quando já o perdemos. Saber que Alice tinha regressado era uni sobressalto, uma perturbação perigosa. Mesmo para quem estava tão ressentido, como eu, por tudo o que se passara em 1943.

- O avô ainda sonhava com ela?

Querido Paul, a partir deste dia em que o meu pai me falou de Alice, voltei a falar com ela todas as noites.

 

Lisboa, 4 de maio de 1945

Amei outras mulheres em Lisboa, mas nenhuma tanto como Alice.

Ela era a mulher, aquela paixão única e suprema que nos domina só cem um olhar, aquela em quem, mesmo sem o desejarmos, estamos sempre a pensar. Mistura explosiva entre corpo fantástico e mente ágil, Alice era dotada de uma moral imprevisível e confusa, e aplicava-se no amor com uma dedicação intensa, mas intermitente. Juntos, éramos bons, muito bons. Éramos harmonia física e mental, cumplicidade, disponibilidade. Mas, separados, não passávamos de dois vagabundos, com um desencontro permanente entre a força das emoções e o destino dos interesses.

Quando ela se foi embora, naquela noite em que me fui despedir dela ao Guincho em 1943 uma ironia amarga separara-nos. As regras superiores de um complexo e vasto jogo haviam-nos ultrapassado, e não passávamos de duas vítimas dos nossos estratagemas de insignificantes peões.

Alice chegara uns anos antes a Portugal, talvez em 1939.

Bonita mas solitária, fantasista mas entediando-se com facilidade, era morena e alta, de olhos negros profundos, redondos e suaves como os de uma corça, com umas enormes pestanas, uma boca carnuda e uma cara larga, quase redonda. Os seus longos cabelos, também negros, até meio das costas, davam nas vistas, e é surpreendente que nos teatros da capital ninguém a tenha aceitado como atriz, a sua atividade original em Moçambique, donde saíra à pressa.

Durante semanas, vagueou por Lisboa, nas sombras da cidade, e não me admirava de que, tal era a sua escassez de meios, certas noites tivesse passado para o lado errado da vida. No entanto, a sua original beleza, a sua sofisticação intelectual, o seu talento como atriz, rapidamente a elevaram a um patamar feminino invulgar. Nem era uma corista, nem uma prostituta, mas um ser que flutuava suavemente no limbo urbano, disponível por necessidade, mas contida por instinto de sobrevivência. Foi nessa época que Michael a conheceu. Ele disse-me que nunca dormiram juntos, ela também o negou, mas, sabendo das capacidades de ambos para a falsidade, não ponho as mãos no fogo. Pouco importa agora, pois Michael morreu. Foi ele quem a recrutou para o MI6, que a batizou de «Dragonfly», nunca percebi porquê, pois, apesar de ser alta e de ter pernas longas, não era tão magra como uma libelinha. Mas voava em silêncio, e as suas principais armas, além da mistificação permanente, eram a beleza das suas feições, o magnífico corpo que possuía e a arte do espetáculo sexual, sempre privado, a que se entregava com paixão.

Michael, esse safado, inventou uma lenda, imagens poderosas de luxúria, que rapidamente correram Lisboa, excitando os machos. Dizia que, toda nua, ela apanhava nozes do chão com a boca, de joelhos à frente deles, antes de se deixar cavalgar.

Na verdade, esta Alice mitológica era um artifício inventado, que muito a auxiliou. Cavalheiros de renome caíram na sua teia, em especial portugueses que negociavam com a Alemanha. Com o passar dos meses, Alice não só ascendeu à rara condição de acompanhante de luxo, de ricos industriais nacionais, como entrou no círculo do poder germanófilo e nazi em Lisboa. Deitou-se mesmo com Von Kasthor, o chefe da Abwehr, os serviços secretos alemães, em Portugal. E, quanto mais ia aprofundando os segredos nazis, mais valiosa se tornava para Michael e para o MI6. Vi-a pela primeira vez no Aviz, linda, sedutora e misteriosa.

Nasceu aí uma reação química cuja explosão seria gloriosa. Amámo­nos, só que eu nada sabia sobre as suas atividades secretas de espionagem, pois nem ela nem Michael as revelaram. Foi intencional: dado eu ser a fachada necessária naquele intrincado jogo de espelhos. Alice era vista comigo, em público, para que os seus amigos alemães pensassem que seria através de mim que se apoderava dos segredos ingleses. Ao namorar com ela, dei-lhe uma credibilidade fortíssima junto dos alemães. Como é evidente, o que ela lhes contava depois eram apenas informações controladas, fornecidas por Michael, mas os nazis julgavam ser eu a sua fonte secreta.

Era um jogo de alto risco: no MI6, o meu trabalho era precisamente descobrir e desmantelar as redes alemãs em Lisboa. Um dia, maldita hora, queimámo-nos mutuamente. De tanto dançar à beira de um abismo, caímos nele. O único que podia ter impedido essa tragédia era Michael, só que estava no Norte e perdeu o controlo da situação em Lisboa. Em meados de 1943, Alice e eu fomos para o Estoril. Instalara-me em casa do meu pai, para vigiar uma rede nazi na região. Para meu espanto, descobri que Alice também fazia parte dessa rede. Depois do choque e da desilusão, senti-me furioso e traído, e escrevi um relatório para o embaixador Campbell, onde revelava os nomes de todos os envolvidos na rede, fossem eles alemães ou portugueses, entre os quais estava o dela. A minha lealdade à Inglaterra, a minha raiva aos nazis, vencera o desejo de proteger a minha duvidosa namorada.

O relatório foi enviado para a PVDE e Alice ficou exposta, classificada como «espia nazi», o que, não sendo a verdade completa, a impossibilitava de atuar a partir daí como joguete de Michael, como «Dragonfly». Temendo que os nazis descobrissem a traição e a duplicidade de Alice, Michael fê-la sair de Portugal à pressa. Foi por isso que, uma certa noite, me fui despedir dela ao Guincho, já depois de Michael me desvendar a farsa mais vasta, na qual eu desempenhara o papel de idiota útil.

É claro que, nos rodopios desta perigosa valsa, me senti enganado e o nosso amor estragou-se. Já amargara aos poucos, pois tínhamos discutido sobre Hitler, dormido com outras pessoas e estilhaçado a confiança um no outro, mas foi esse golpe final que deu cabo de qualquer futuro a dois. Assim, perdi essa paixão tão forte da minha vida, desaparecida certa noite no mar do Guincho, levada por uma canoa para um submarino.

Dois anos haviam passado e não voltara a ouvir falar de Alice. Sentira violentas saudades, mas também sabia que aquela mulher me enganara tanto, e tão profundamente, que teria dificuldade em perdoar-lhe. Caso a voltasse a ver, estava certo de que acabaríamos desavindos, zangados e tristes, incapazes de renovar um amor que deixáramos destruir.

Só que ... Depois da conversa com o meu pai, e como ele previra, a minha noite foi um suplício, carregada de memórias tórridas e dolorosas de Alice. Nos últimos meses, desde a morte de Michael, andava deprimido e solitário, desinteressado de mulheres. A única com quem me dava era Luisinha, que não era como as outras. Sendo a irmã mais nova da minha falecida noiva Carminho, sentia por ela um enorme afeto, mas não me passava pela cabeça seduzi-la. Talvez por respeito fúnebre à irmã, e certamente por amizade, o consolo que encontrava na sua companhia não incluía o sexo.

E agora o meu pai dissera-me que Alice voltara e regressaram as minhas insónias. Recordei-me do cheiro dela, do umbigo dela com uma gota de água-de-colónia lá dentro, dos sorrisos marotos dela, dos chapéus franceses dela, das redondas nádegas dela, dos inesperados penteados dela, do som dos seus passos no corredor de minha casa, do tom da sua voz a cantarolar baixinho um pregão de Alfama, dos gemidos sexuais dela, dos oblíquos olhares dela, das infantis brincadeiras dela, das ligas pretas dela espalhadas na cama da suíte do Aviz.

O Aviz ... Como que puxado por um íman, disparei para lá, para aquele hotel célebre, o melhor de Lisboa, onde eu tanto amara a minha Alice. Queria falar com Harry, o meu amigo Harry Ruggeroni, que dirigia o hotel inaugurado pelo seu pai, Robert, em 1933. Queria perguntar-lhe se a vira, se sabia dela.

Ainda na rua, antes de entrar naquele pequeno e mágico castelo, onde todos os quartos tinham nomes de reis portugueses, reparo que alguém me chama da janela de um táxi parado.

É Roberto, o meu fiel escudeiro, o taxista mais irrequieto de Lisboa. Baixo e frenético, cara sempre rosada pelo vinho que bebe em demasia, a curta testa tapada pelo boné, acena-me profusamente. Dou um passo na sua direção, mas ele antecipa-se.

Abre a porta, salta do lugar, e vem a correr ter comigo.

- Ó doutor, que alegria! Há tempos que não o via! Já andava em preocupações!

Abraço-o e nos seus olhos descubro nostalgia, tantas foram as aventuras vividas em conjunto. E também preocupação. Examina-me. Estará doente? Tranquiliza-se com o meu sorriso. Retira o boné e espreme-o nas mãos, à altura do peito. Parece-me um esquilo a segurar uma noz, onde irá ferrar o dente. Ando com a cabeça cheia de animais, é das leituras noturnas da enciclopédia. Pergunto-lhe:

- E como estás -tu, meu bom amigo?

Roberto assobia, pisca os olhos, mostra-se preocupado:

- Ó doutor, isto está mau, quase nem dá para trabalhar.

O racionamento imposto por Salazar afeta os taxistas, que, sem gasolina, têm dificuldade em exercer a sua profissão.

Lamenta-se de que há também menos turistas e recorda, olhos a brilharem: - Ó doutor, há uns anos é que era! Agora, é ó lá vai um! Somos sete cães a um osso!

Coça a cabeça, contrariado, e justifica-se, olhando para o táxi: - Ó doutor, quem me dera ficar, mas tenho um cliente ...

Não o retenho e abraçamo-nos mais uma vez. Com os dedos da mão direita abre um V de vitória e exclama: - Ó doutor, finalmente o facínora do bigodinho esticou o pernil!

Rio-me. Num último momento, quando começa a correr para o seu carro, pergunto-lhe:

- Olha lá, Roberto, viste a Alice por aqui?

O taxista mais irrequieto de Lisboa para bruscamente, a olhar para mim, inquieto. Ó doutor está doido? Atrapalhado, roda o pescoço de um lado para o outro, entre mim e o cliente que o espera no táxi, como se fosse esse o seu dilema. Coça a cabeça, volta a enfiar o boné e, como se uma resolução íntima o tivesse decidido, diz por fim: - Ó doutor, não a vi.

O seu olhar cruza-se com o meu. Um segundo, apenas um segundo. Ó doutor, não se meta com ela outra vez! Mentiu-me: ele viu-a, mas não lhe levo a mal. Roberto tem boas razões para me mentir, quer proteger-me. Só que a mentira atrapalha-o, tropeça ao correr para o carro, quase cai, reequilibra-se e só depois entra. Sem olhar para trás, liga o motor, acelera bruscamente e segue para a Fontes Pereira de Melo.

Suspiro: Alice está de regresso, agora tenho a certeza. Voltara igual a si própria, a mesma mulher perigosa de quem Roberto me quer afastar.

Entro no Aviz, atravesso a sua porta larga, guardada por duas águias douradas, quais sentinelas imperiais. No grande átrio, saboreio uns segundos a espessura daquele famoso tapete, enfiando os meus sapatos nos seus fofos vinte centímetros de altura. As luzes de enormes candelabros iluminam o hall e as suas paredes, onde repousam, como se as forrassem, retangulares tapeçarias persas, lindíssimas, contornando e envolvendo a escadaria de ferro forjado. Mais águias douradas separam os lanços, na companhia de belos e altos vasos de porcelana, com pequenas palmeiras crescendo no seu interior.

Quanto vivi naquele hotel! Quantas noites passei no seu bar, no seu salão de festas, no seu restaurante, quantos cocktails festivos frequentei! O Aviz foi o palco principal da minha vida em Lisboa. Ali pedira, num jantar, a mão da minha noiva Carminho, ao seu pai general. Ali conhecera Alice, no corredor dos quartos, ela a sair da suíte D. João II eu à procura da suíte D. Duarte.

Ali amara Mary e Rita, numa fogosa noite.

Ao balcão da receção pergunto por Harry. Dirigem-me para o bar, onde ele ouve a BBC, na companhia da sua cadelinha terrier, deitada a seus pés, e a quem faz festas no lombo, com a ponta do sapato. Ao ver-me, levanta-se, surpreendido e contente, dá-me um abraço e pergunta:

- Melhor, senhor comandante?

Harry, o único verdadeiro amigo que me resta em Lisboa, o meu muro das lamentações, aquele que ouve as minhas tristezas e dilui a minha solidão. Por brincadeira, ele, que é um exímio velejador, trata-me por comandante, pois diz que são muitos os navios que comando na minha companhia. Observa-me com o seu ar dedutivo e sereno, e concluiu que o aspeto geral é melhor do que da última vez. Na ausência de uma resposta minha, comenta:

- estás com melhor cara!

Encolho os ombros e murmuro:

- Não me queixo da cara.

Harry exige de imediato ao barman um whisky duplo com gelo, pois conhece as minhas preferências. O rapaz, novo e efeminado, sorri para mim, convidativo. Ignoro o seu atrevido avanço, e Harry lança-lhe um olhar crítico. Depois, relata as peripécias do racionamento que Salazar e a guerra impõem. O hotel sofre com a escassez do gasogénio, o combustível que obrigou os carros a adaptarem-se, quando a gasolina se tornou uma raridade, mas agora até esse já falta.

Harry teme os fantasmas de 1943, quando se viu na iminência de fechar o restaurante, pois o abastecimento de bons produtos era praticamente impossível. O maitre Alberto Rapetti, cujo currículo incluía o Claridge's, de Londres, e o Savoy, do Funchal, aflige-se diariamente com as limitações que a economia de guerra impõe.

- É um quebra-cabeças. Ainda por cima, há cada vez menos estrangeiros!

O desolado Harry confirma, com mais detalhes, a narrativa simplista de Roberto: longe iam os anos em que Lisboa se enchera de milionários em fuga ou de refugiados de luxo que se instalavam no Aviz. Não prevê bons tempos para o hotel, e o seu entusiasmo existe apenas com um novo projeto, uma concessão de exploração de umas termas no Norte, nas Caldas de Felgueiras. O Governo parece inclinado para lhe dar essa possibilidade, embora existam alguns problemas pendentes, instalaram lá uns alemães que ainda não saíram.

Já com o Aviz, ele está pessimista. O que o vai ajudando, reconhece, são as festarolas organizadas pelos americanos, o que nos faz brindar aos vencedores da guerra. Informa-me da próxima festa: - Dia oito, aqui no salão, um grande cocktail para festejar o fim da guerra e a morte do Hitler, Mais de cinquenta convidados.

O teu embaixador também deve vir.

O embaixador Campbell, para quem trabalhara durante a guerra, era um conviva habitual das celebrações americanas e, embora já há meses se dissesse que iria ser colocado noutro posto, ainda por cá andava.

Batendo as suas pestanas arranjadas e curvas, o barman sorri para mim, sedutor, enquanto pousa o whisky duplo no balcão, à minha frente, com uma pequena hóstia de papel por baixo, para não manchar a madeira. Baixo os olhos, indiferente ao seu charme, e respondo a Harry: - Não fui convidado. Desde que me demiti, afastei-me.

Harry observa-me e sente o quê? Será pena? Os bons velhos tempos, em que eu e Michael fazíamos furor nos cocktails do Aviz, acabaram e 1941 parece tão longínquo como a Belle Époque, duas décadas antes.

Decido bruscamente mudar de assunto e pergunto-lhe: - Viste a Alice?

Harry muda a expressão de imediato, aflito. Já sabes?

Como? À nossa frente, o barman franze a testa, e desata a esfregar um copo com um pano, depressa de mais, como se estivesse ofendido. Parece um pinguim, com uma farda preta e uma camisa branca. Harry baixa os olhos, dá mais dois ou três suaves toques com o bico do sapato na cadela terrier, e murmura: - Não, senhor comandante, não a vi, mas sei que veio cá.

E dou-te o mesmo conselho que há uns anos, e que tu não seguiste: afasta-te dela. - Harry suspira e acrescenta: - A Alice é perigosa. É um Satanás sem cauda.

Ele, lembra-se do meu calvário. Vira-me interessado em Alice, depois eufórico, por fim, amargo. Só me dera bons conselhos, no princípio, no meio e no fim, mas eu nunca os seguira. E desta vez não ia ser diferente. Pergunto-lhe:

- Sabes onde ela vive?

Respira fundo, as suas sobrancelhas movimentam-se, para cima e depois para baixo. És tão teimoso, que canseira.

Se soubesse, dizia-te. Conta-me o pouco que sabe, Lisboa continua pequena, as intrigas correm à velocidade do som. Alice voltou, é tudo. Azar o teu. Ficamos em silêncio um minuto, cada um a moer os seus pensamentos interiores. O barman fixa-me, com um leve sorriso, esperando talvez beneficiar do meu desgosto. Informo Harry de outra novidade inesperada:

- O meu pai chegou ontem, de surpresa.

Ele sorri-me levemente, já sabe. Meu Deus, porque sou o último a saber de tudo?

- Veio cá ontem, conheci-o.

Não me escapa o seu tom de voz seco, a sua frase curta e enxuta, sem entusiasmo. Como se dissesse: Rica peça, o teu pai.

Sendo um diplomata subtil, e o melhor proprietário de um hotel que conhecia, em nome do negócio Harry aprendera a suportar mesmo quem ele abominava, como os nazis. Mas, para alguém que privava com ele, a secura da sua observação espelhava a sua desilusão.

Sem sorrir, acrescenta:

- Tenho o mesmo nome que tu, senhor comandante. O primeiro e o último. Jack Deane.

O barman bate as pestanas, talvez contente por agora saber como me chamo. Afasta-se um pouco, vai buscar copos, regressa e começa a arrumá-los. Harry descreve-me a breve passagem do meu pai pelo Aviz. Apresentara-se, viera almoçar. No fim, deixara-o mal impressionado, quase o obrigara a apresentar-lhe o milionário Calouste Gulbenkian.

Justifico-o: o meu pai é assim, um abusador social. Suplico a Harry compreensão e revelo-lhe o que o meu pai veio fazer a Lisboa, as ordens que me deu para o ajudar na sua empreitada imoral em busca de tesouros nazis. Harry faz um esgar de desagrado, depois encolhe os ombros. É o teu pai, tu é que sabes.

De seguida, baixa o tom de voz, talvez para que o barman não o escute: - Devias falar com o Francis.

Quando o assunto não é Alice, sigo os bons conselhos de Harry.

Francis é adido na Embaixada americana, pertence ao OSS, conheço-o dos tempos em que, com Michael, realizámos uma pequena operação conjunta. Simpatizava com ele e iria contactá-Io.

Dada a dica, Harry regressa às suas preocupações com Portugal. Não admirava Salazar, mas já compreendera que o presidente do Conselho se iria eternizar. Volta a pressionar com a ponta do sapato a sua cadela terrier, que ronrona, satisfeita, e comenta:

- Ainda não é desta que volta para Santa Comba Dão.

Ao ouvir este lamento, o barman sorri-me e bufa, também entediado. Depois, afasta-se devagar, abanando o rabo de um lado para o outro, como um pinguim andando sobre o gelo.

O meu neto atira-me uma piada.

- O avô não me diga que teve um caso com um barman gay?

Explico-lhe que só refiro certas pessoas porque serão importantes mais à frente na história. Quanto ao atrevimento do moço, Lisboa era assim nos tempos da guerra, andava tudo ao ataque, em todas as frentes e em todas as costas.

Paul volta a rir e acrescenta: - Gostei do Satanás sem cauda. A Alice era assim tão má?

Sim, meu neto, era levada da breca.

 

Marselha, 7 de Maio de 1945.

A rota de Manfred foi tortuosa, mas conseguiu chegar a Marselha na noite do dia 6 de maio, apenas cinco dias depois de ter escapado de Munique. Com o pequeno baú debaixo do braço, demorou dois dias a percorrer o Sul da Baviera e a sair da Alemanha, passando a fronteira nos arredores de Innsbruck. Atravessou a Áustria apenas num dia, entrando na Suíça sem qualquer problema e dirigindo-se de pronto a Zurique, onde conhecia pessoas influentes.

Foi com a ajuda delas que obteve um passaporte suíço falso e um visto para entrar em França. Para tal, vendeu as moedas de ouro e a cruz por um excelente preço. Contudo, não abriu para ninguém o cofre. Aquela gente era linguaruda. Intriguistas. Manfred receava a cobiça alheia, sobretudo do valioso retrato que transportava.

Arranjaram-lhe transporte para os Alpes do Sul e, já em território francês, comprou um bilhete para o autocarro entre Nice e Marselha. Quando chegou, depois de uma longa e desconfortável viagem, instalou-se numa pensão, na parte velha da cidade do Sul de França. Apesar dos ruídos metálicos das gruas do porto e dos cantares roufenhos dos marinheiros bêbados, que vagueavam pelas ruelas, dormiu nessa noite um sono calmo e profundo.

Acordou a meio da manhã de dia 7, lavou-se na casa de banho comunal e depois vestiu uma das duas camisas novas, compradas na Suíça, saboreando o cheiro a naftalina. Vida nova.

Acrescentou calças, meias, sapatos e casaco, e escondeu a pistola nas costas, enfiada no cinto. Quanto ao pequeno baú, não o largou de vista um segundo, mantendo-o sempre debaixo do braço.

Porém, ali não tinha porque temer: era um cidadão suíço, legal e bem-parecido, e ninguém o ia importunar.

Horas mais tarde, descobriu que se equivocara. Dirigira-se à loja que os suíços lhe haviam indicado, mas rapidamente se deu conta do seu erro. Os empregados falavam com receio, tremendo das mãos. Borrados. Manfred conhecia bem o medo, vira muitos homens mijarem-se pelas pernas abaixo, momentos antes de lhes enfiar um tiro nos miolos. Gabava-se de ter desenvolvido um instinto canino ao longo dos dez anos de serviço nas SS. Farejava a aflição nos outros, e foi a isso que lhe cheirou a loja de Marselha.

O fim da guerra mudara as lealdades. Nos últimos meses, haviam explicado os suíços, inúmeros nazis tinham percorrido a mesma rota que ele, fugindo da derrota e da inevitável prisão.

Mesmo durante a guerra, nunca faltara em França quem os quisesse espreitar e espiar, mas agora era diferente, pretendiam mesmo denunciá-los ou caçá-los. Era isso que amedrontava os empregados da loja, negociantes que agora tinham receio de ser acusados de colaboração com os nazis. Decidiu sair dali e rumou ao porto, sempre a espreitar por cima do ombro. Aparentemente, não era seguido, mas Manfred sabia que havia gente muito hábil na arte da perseguição, e tomou precauções adicionais. Movimentou-se com cuidado, queimando o tempo, e só ao fim da tarde rumou ao que procurava: um cargueiro que partia, na madrugada seguinte, com destino a Barcelona.

Combinou com o comandante o preço da viagem e prometeu apresentar-se a horas.

No seu pequeno baú, ainda restavam o globo com o anel, a pistola de Hitler, a moldura dourada com a foto da cadela, a capa da Time e, por fim, a moldura oval, prateada, o retrato da mãe do Führer. Emocionou-se uma vez mais ao contemplá-lo, e à sua cabeça veio, sem ele o desejar, a imagem da sua mãe. Degenerada. Não guardava boas recordações dela, era uma mulher falsa. Depois de o seu pai morrer, uns anos antes de a guerra ter começado, a mãe afeiçoara-se a um outro homem, um escritor judeu. Fora obrigado a denunciá-los. A mãe morrera durante a guerra, na prisão, mas nem visitara a sua campa. Não era como a mãe do retrato, KIara Hitler, um motivo de orgulho histórico, um ventre fundamental, abençoado pelo destino.

Nessa noite, enquanto jantava num pequeno restaurante, paredes meias com a pensão, ouviu a notícia da redenção da Alemanha. Começou a tremer por dentro, furibundo. A rádio confirmava também que Hitler morrera e uma onda de raiva invadiu-o. Canalhas. O barco só partia de madrugada, e regressou ao quarto, abatido. A sua fantasia de uma colossal vingança nazi começou a desmoronar-se. Sem Hitler, era uma quimera impossível. Estamos perdidos. Deixou-se ficar deitado em cima da cama.

Em vez de sonhar com o regresso do Terceiro Reich, talvez devesse vender os seus tesouros, como lhe haviam sugerido os gananciosos suíços.

Por volta das dez da noite e para sua surpresa, alguém tocou à porta. Era um francês, de aspeto manhoso, que dizia vir da parte de um comerciante da África do Sul, chamado Jack Deane.

Fora informado, certamente pelos empregados da loja, de que Manfred dispunha de material valioso. O interessado tinha muito dinheiro, mas antes era imprescindível avaliar a mercadoria, explicou o francês. O alemão hesitou, suspeitando dos trejeitos daquele intermediário. Porém, restava-lhe pouco na carteira, o suficiente apenas para pagar a viagem até Barcelona, e talvez não fosse mal pensado vender alguma coisa ainda em França. Abriu o pequeno baú para o francês, mas manteve a sua própria pistola por perto. Mostrou o globo com o anel, a imagem da Blondie (tendo explicado que era mesmo a cadela de Hitler) e, por fim a capa da Time, mas o intermediário não se entusiasmou, considerando as relíquias de pouco valor, exceto o globo e o anel. Sovina pensou Manfred, que rejeitou as ofertas, abortando a negociação.

Não voltou a ver o francês. Mas quando, pelas seis da manhã, desceu à rua depressa percebeu que o manhoso fora seguido, denunciando o seu paradeiro. Vindo do escuro da noite, um homem alto e entroncado tentou agarrá-lo. Um soldado? Ouviu­o gritar, chamando por reforços, em inglês. Sentiu que o homem não o queria matar, apenas prender.

Só que não é qualquer um que anula um coronel das SS, revelou-me Manfred tempos mais tarde, com orgulho, sem, no entanto, esclarecer o destino do seu adversário. É possível que o tenha morto, não me admirava, o alemão era um homem cruel e perigoso.

Horas depois, contudo, já estava no mar Mediterrâneo, dentro de um barco, apontado a Barcelona. Ninguém me apanha.

O meu neto Paul pergunta-me se eu alguma vez vi o retrato da mãe de Hitler que o alemão Manfred trazia no pequeno baú.

É natural a sua curiosidade, e digo-lhe que sim, claro que vi. Contudo, até chegar a Lisboa e às minhas mãos, o retrato ainda iria dar muitas voltas, e eu prometi que lhe contava esta história com a cronologia certa. Não vou andar a fazer fast-forward, como nos vídeos.

Tem calminha, rapaz, aprende a esperar, lá chegaremos.

 

A Alemanha rendeu-se finalmente, uma semana depois da morte de Hitler. Em Reims, foi ontem assinada a capitulação da máquina de guerra nazi, e mil e uma festas começaram, Europa e mundo fora. A notícia é oficial: a mais brutal guerra que a humanidade vivera chegou ao fim, pelo menos numa das suas principais frentes, a europeia.

Desde Moscovo até Lisboa, os povos saem à rua, eufóricos, celebrando a suspensão dos combates, o calar das metralhadoras, o silêncio dos tanques e dos canhões, o abafar inexorável das sirenes que anunciavam bombardeamentos, a despedida aos aviões sinistros que traziam a morte nas asas e a despejavam do céu.

Hitler morrera e a Alemanha ajoelhara, vencida e humilhada, e era o meu lado, que tanto sofrera, que se libertava de um medo demasiado prolongado e olhava o futuro com esperança.

Tinha combinado encontrar Francis no Hotel Avenida Palace e estacionara, numa rua da Baixa, o meu sempre estimado e hoje bem lavado Citroên azul. Entro no Rossio vindo da rua Augusta, e naquela imponente praça, onde um dia o meu amigo Michael me avisara contra os perigos das mulheres casadas e infelizes, dou de frente com uma manifestação recém-nascida, que engrossa com a chegada de gente proveniente das redondezas, carregando estandartes de Portugal e dos Aliados, de Inglaterra, dos Estados Unidos da América, do Brasil, da Itália e, até, um da URSS. Bandeiras pequenas, que se agitam, esvoaçando por cima das cabeças e dos olhares felizes dos muitos homens e das poucas mulheres que entoam cânticos, palavras de ordem como «vitória», «liberdade», ou até «democracia». A alegria daquela multidão é contagiante, mas também ligeiramente perigosa. Nos cantos da praça, descubro os homens do costume, da PVDE, com os seus inconfundíveis casacos, a sua habitual pose hirta. Seria boa ideia a bandeira da URSS desaparecer rapidamente, não fosse a polícia de Salazar prender o homem que a transportava. Como se me tivesse ouvido, o portador do pavilhão em causa baixa-o, e alguém ao seu lado levanta logo outro, com as insígnias do Benfica. Sorrio. É um velho truque comunista, usar os estandartes vermelhos do clube para mostrar a todos que eles estavam presentes e eram espertos, impedindo a PVDE de reagir, pois ninguém iria prender sócios do Benfica!

Era evidente que naquela manifestação se festejava a derrocada do Terceiro Reich, mas não só. A vitória dos Aliados era uma faca de dois gumes para Salazar: por um lado, significava o fim da guerra e dos graves transtornos económicos da nação; por outro, a vitória de regimes opostos ao dele. Venciam os comunistas e a união soviética, os americanos e o capitalismo, a Inglaterra e a democracia livre, um triunvirato de países, e sobretudo de ideais rejeitados pelo Estado Novo. O povo que festejava não o fazia apenas porque uma guerra, apesar de tudo distante, tinha terminado, mas também porque pressentia que a vitória daquelas nações equivalia a uma derrota de Salazar, e talvez ao prenúncio do seu fim. O fim das hecatombes originava, naturalmente, um momento de euforia popular geral, mas não era preciso ser muito versado em política para compreender que, em Portugal, representava também uma encruzilhada perigosa, tanto para o regime, que se sentia ultrapassado pelas circunstâncias externas, como para a oposição, que via nascer uma oportunidade forte para contestar Salazar e talvez tentar derrubá-lo. Porém, tais esperanças eram infundadas. Há meses que eu avisava os meus contactos na oposição, os republicanos e os socialistas, de que a Inglaterra e os Estados Unidos não teriam como prioridade a instauração da democracia em Portugal, mas sim a reconstrução da Europa devastada pela desumanidade nazi. Só que, por mais que os chamasse à razão, eles não acreditavam. Não queriam. A crença nos seus valores, o entusiasmo com os vencedores da guerra, tinham aumentado as expectativas das oposições portuguesas para patamares de sonho, iludindo-as. Era nisso que eu pensava enquanto atravessava o Rossio, a caminho do Avenida Palace, observando a multidão barulhenta. Nem notei que alguém me chamava. Só à terceira ou quarta vez é que ouvi com clareza o meu nome. Afonso Caldeira, o meu advogado na companhia de navegação, acenava-me e virei na sua direção.

Aproximei-me dele. Era um homem já de uma certa idade, mas com um ar generoso e bonacheirão. Roliço e quase calvo, estava de bem na vida, orgulhoso dos quatro filhos e cinco netos, e só perdia a compostura quando falava de política. Vi-o acompanhado por um jovem, com uma testa alta e uma cara onde pontificavam umas salientes bochechas, largas e ligeiramente descaídas. O meu advogado revela de imediato o seu contentamento: - Que grande dia, meu caro Jack! - exulta com a paz na Europa e exclama: - Como você sempre disse, os nossos venceram!

Aceno com a cabeça, não porque os meus poderes de previsão tivessem sido superiores aos do resto da humanidade, mas porque era reconfortante que aqueles em quem acreditamos tivessem ganho.

O rapaz permanece calado, embora sorridente, partilhando da nossa alegria. Afonso Caldeira, entusiasmado, aponta para o centro da praça e proclama: - Isto é que é Portugal, meu caro Jackl O verdadeiro Portugal está aqui, a manifestar-se contra o Hitler, a celebrar a vitória dos Aliados! É bom que o Salazar veja! - eufórico, prossegue: - Meu caro Jack, isto vai mexer! Portugal não pode continuar o mesmo depois desta grande vitória!

Faz um V com os habituais dois dedos da mão direita e lança o braço para cima, várias vezes, na direção da multidão em geral, mas para ninguém em particular. Depois, volta a virar-se para mim: - Então, meu caro Jack, o Salazar vai perceber a mensagem? Disso tinha a certeza. Salazar era um político inteligente, sabia perfeitamente descodificar todas as mensagens que lhe enviavam, mas não acreditava que essa compreensão significasse alguma alteração relevante das suas ideias. Sem convicção, declaro: - Ele é que sabe, tem a faca e o queijo na mão. A reação é instantânea. Afonso Caldeira franze a testa, desconfiado. Outra vez a mesma lengalenga!, questiona o seu olhar inquieto. A seu lado, o rapaz desfaz o sorriso e deita-me um ar crítico. O meu advogado pergunta:

- Não me diga que os ingleses não nos vão auxiliar?

Os ingleses não vão patrocinar ativamente a oposição, já os tinha avisado. O rapaz de testa alta e bochechas descaídas não se contém, oiço-o manifestar a sua indignação: acha «inadmissível» a Inglaterra não promover a queda do ditador, «o Botas», como ele o apelida. Apresenta argumentos inteligentes e emocionais, fala no sofrimento do povo. Aponta para os PVDE, furioso, acusa-os de torturarem os presos no Aljube. Tem uma potente retórica, uma clareza argumentativa rara para um rapaz tão novo.

A seu lado, Afonso Caldeira escuta-o, embevecido, como um professor ouvindo o seu melhor aluno. O jovem acrescenta ser inaceitável «viver sob a pata», é esta a expressão usada, de um regime que foi o único da Europa onde a morte de Hitler foi celebrada com três dias de luto nacional! A bandeira de Portugal a meia haste por causa de um ditador nazi é um insulto, vocifera o rapaz!

Até a mim, que não sou dado a grandes exaltações, me chocara a decisão de Salazar. Caramba, eu era inglês, Londres fora fustigada meses a fio, milhões de soldados e civis ingleses tinham morrido por causa de Hitler, e no final da guerra Portugal ainda baixava a bandeira em honra e respeito pela morte deste assassino? Não era preciso ser republicano, socialista ou comunista para o nosso coração se ofender.

Afonso Caldeira revolta-se: - Está visto que só nos resta lutar!

Olho para a praça, a multidão cresce. Afirmo, para lhes dar algum alento: - Salazar vai ter de convocar eleições, mais tarde ou mais cedo. É a minha esperança. A vaga democrática que a paz vai trazer à Europa obrigará o regime português a mudar. Mesmo contrariado, Salazar terá de ceder um pouco, para não perder tudo. Contudo, verifico que os meus companheiros de conversa não acreditam nessa hipótese. O advogado encolhe os ombros, lança um «ora!» desiludido, e o rapaz volta a indignar-se. De súbito, declara que a única saída é «um golpe» Em simultâneo com esta perigosa declaração, gera-se um grande burburinho do outro lado do Rossio, a caminho do Palácio da Independência, o que suspende a nossa celeuma privada. Vejo homens a correrem para lá, oiço gente a gritar «policial». Como uma rajada de vento, um nervosismo geral varre a praça, e o jovem que conversava connosco lança-se em passo apressado na direção dos tumultos, sem sequer se despedir.

Segundos depois, Afonso Caldeira comenta, com indisfarçável satisfação: - Este rapaz é um talento, vai dar um grande político! É jovem, mas tem muito carisma!

Diz-me que o rapaz se chama Mário Soares, é filho de um republicano conhecido, João Soares. O meu advogado augura-lhe um futuro brilhante, mais até na política, que já pratica, do que no direito, que ainda cursa. Concordo, o rapaz impressionou-me, mas parece-me que ainda terão de passar uns anos até ser influente no país.

Consulto o meu relógio. Aproxima-se a hora do encontro com Francis e despeço-me de Afonso Caldeira com um abraço, não sem antes lhe dar a novidade de que o meu pai está em Lisboa. Ele fica hirto e murmura: - Não me diga ...

Mesmo tantos anos depois, ainda abomina o meu pai. Um traste é a tradução da sua careta. No passado, nunca teve paciência para a sua arrogância, a sua insensibilidade humana, os seus caprichos sociais. Abana a cabeça, desolado: - Meu caro Jack, não percebo como você saiu assim!

Sorrio. Repito o que sempre disse aos desiludidos do meu pai.

- Saio à minha mãe.

Afonso Caldeira concorda e depois, curioso, pergunta-me:

- Agora que a guerra acabou é que o senhor Jack deane regressa a Lisboa? E para quê?

Também ele considerara uma cobardia a partida do meu pai, no início da guerra. E, estando ao corrente da ordem de fecho do escritório, não entendia o porquê deste súbito regresso. Franze as sobrancelhas. Aí há gato. Infelizmente, não lhe posso explicar que o meu pai veio caçar nazis e tesouros, em mais uma das suas enlouquecidas quimeras. Assim, despeço-me e rumo ao hotel nos Restauradores, enquanto, nas minhas costas, a multidão se agita e grita, cada vez mais exaltada.

Desta vez, Paul está verdadeiramente surpreendido: - O avô sabe que o Mário Soares foi presidente da República de Portugal até ao ano passado?

Sorrio: claro que sei, Paul, eu estou atento a essas coisas. Mas, na altura, ele não passava de um rapaz, embora já revelasse talento para a política. Porém, foi a única vez que o vi. A trapalhada política em que eu e Afonso Caldeira nos iríamos meter, uns meses depois, não o incluiu a ele.

 

Em 1942, um documento dos serviços secretos ingleses distinguia os hotéis da zona de Lisboa consoante as suas tendências políticas, classificando-os como pró-nazis ou pró-ingleses. Entre os <mossas», como eu e Michael os costumávamos nomear, estavam o Aviz, o Palácio Estoril, o Grande Hotel Itália (mesmo antes de a Itália ter mudado de lado na guerra), o Grande Hotel do Estoril, o Metrópole e o Europa. Do outro lado, existiam o Vitória (muito perigoso, pois à superfície era pró-aliado, mas era, na verdade, controlado pelos nazis), o Tivoli, o Suíço, o Atlântico, o Duas Nações, bem como aquele por cuja porta eu acabava de entrar, o Avenida Palace, nos Restauradores, onde existia um corredor secreto de ligação à estação de comboios do Rossio, por onde circulavam os amigos da gerência, normalmente nazis relevantes.

Dizia-se que até almirante Canaris, o todo-poderoso chefe da Abwher em Berlim, tinha atravessado aquele caminho misterioso, na sua curta estada em Lisboa. Todavia, nos últimos meses, quando se tornara evidente a derrota nazi, o Avenida Palace perdera esse carisma de covil dos fãs da suástica e começara a diversificar a sua clientela. Agora, era possível a Francis marcar um encontro aqui sem receios, pois já não havia «bufos» pró-germânicos a controlarem os salões.

A caminho do bar, passei frente à entrada do célebre corredor.

Quinze metros ao fundo existia uma ante câmara, e era lá que supostamente começava a secreta ligação à estação do Rossio.

O meu coração agitou-se. Na penumbra, vi o vulto de uma mulher, cuja altura e andar bamboleante eram semelhantes aos de Alice. Parei, olhando fixamente, mas ela desapareceu. Imaginei-a a fugir, de bilhete na mão, a caminho de um comboio, descoberta pelos seus antigos amigos nazis... Ainda me sentia culpado pela minha denúncia, e agora, que a sabia de volta a Lisboa, temia pela sua vida. Temia ou desejava vê-la, acertar o passo com aquela mulher que tanto amara? Não tinha resposta, e por isso viera falar com Francis, um americano loiro, alto e entroncado, com um pescoço quase tão largo como o cérebro.

Nascido no Kentucky, era um tipo um bocado primário e pouco sofisticado, mas esperto e divertido. No passado, juntamente com Michael, tínhamos feito umas patuscadas e, embora o meu amigo considerasse que Francis tinha «a subtileza de um rinoceronte e a rapidez de raciocínio de um caracol», concordava comigo na ideia de que ele era leal e sólido, «como a Torre de Londres». Porém, era também preguiçoso e amante da bebida, além de dar demasiada importância a mexericos de alcova, como se o verdadeiro objetivo da espionagem fosse descobrir clandestinos adultérios e ocultas fornicações. Ao ver-me, o americano levanta-se e abraça-me fortemente, dando-me violentas palmadas nas costas, qual amigo de infância que há anos não me via. Depois, grita ao barman, exigindo para mim um whisky duplo, e por fim exclama: - Velho pirata!

Velho pirata? Senti uma pontada. Michael tratava-me assim, e era abusivo da parte de Francis açambarcar a expressão, para se promover à condição de meu grande amigo. Das vezes em que estivemos juntos os três, Francis esforçara-se por nos imitar, tentando agradar-nos, perceber os nossos gostos e tiques privados, numa ânsia infantil e tipicamente americana, crente de que as grandes amizades se decidem em momentos iniciais de forçada intensidade e não num processo, longo mas permanente, de partilha de vivências e intimidades.

- Ele sabe que me tocou num ponto fraco, ao recordar Michael, e fica assustado. Abre muito os olhos. Desculpa! Para se redimir, levanta o copo, e proclama, numa voz mais grave:

- Ao Michael

Ergo também o meu copo. Francis acrescenta:

- Era uma puta velha, sabia muito deste ofício ...

Nunca ouvira ninguém batizar Michael com aquele título, mas não era inapropriado. Ele sabia muito, às vezes de mais.

Francis prossegue:

- Como ele dizia, enquanto Salazar dormia, nós trabalhávamos!

Uma onda de nostalgia invade-me, e lembro-me da manhã em que Michael morreu, de ele a cortar cascas de maçã com a sua faca Randall, dentro do meu Citroên, enquanto víamos um barco a afastar-se, saindo da Rocha do Conde de Óbidos. Oiço a sua voz: «E nós aqui, enquanto o Salazar dorme.» Baixo os olhos, triste.

Francis de imediato me procura animar.

- E tu, buddy?

Sorrio. Talvez o meu olhar crítico inicial o tenha decidido a deixar cair o «velho pirata», substituindo-o pelo mais apropriado buddy. Quer saber se me tenho divertido e pergunta:

- Ainda vais à Bompernasse à caça das refugiadas?

No início da guerra, quando Lisboa se encheu de estrangeiros, os machos lisboetas passaram a nomear a Pastelaria Suíça como «Bompernasse», pois era lá que se podiam admirar as mais belas pernas da cidade, pertencentes às refugiadas que vagueavam por Lisboa. Vindas da Bélgica, de França, da Holanda, da Polónia, vestiam-se de forma diferente das portuguesas, muito mais modernas, sem meias, luvas ou chapéus, e usavam o cabelo curto, penteado «à refugiada», como ficou conhecido. Passavam a tarde na esplanada, a ler revistas francesas ou americanas, a fumar e a trocar olhares com os portugueses mais afoitos, que as catrapiscavam.

Há um ano, tínhamos ido uma tarde os três à Suíça, e contáramos a Francis as nossas «aventuras» de saias. Ele considerava-nos dois Casanovas, éramos os seus ídolos. Sem talentos visíveis para a sedução, talvez por ser demasiado brusco, Francis roía-se de inveja com as nossas conquistas, e sonhava um dia possuir histórias idênticas, troféus que pudesse abanar no ar, em êxtase.

Abano a cabeça, desiludido:

- Já não se vêem as pernas de antigamente.

Era verdade: Lisboa tinha cada vês menos raparigas disponíveis para umas brincadeiras rápidas.

Francis resmunga: - Tens razão, buddy. Agora só me restam as secretárias da Embaixada.

O meu amigo Michael era um aficionado das secretárias da Embaixada americana, embora fosse bastante misógino na apreciação que delas fazia, denominando-as de «pintas tontas». Apesar disso, beneficiava da sua lendária disponibilidade sexual, e costumava dizer que nunca conhecera mulheres que «gostassem tanto de metê-lo». Opinião que não posso confirmar, pois nunca comerciei a minha anatomia com nenhuma delas. No departamento secretárias de Embaixada, só conheci uma, Rita, mas era inglesa.

Francis sobe o tom de voz e pergunta:

- Por falar nisso, hoje à noite há uma festarola no Aviz, não queres ir? Umas danças, umas bebidas à borla, buddy!

Não estava com disposição, mas Francis insiste comigo, pois acha-me carrancudo. Perante os argumentos, concedo: - Está bem, passo por lá.

Satisfeito, o americano do OS S pergunta: - Então buddy, em que posso ajudar-te?

Dou um gole no whisky e baixo os olhos, fingindo-me embaraçado. Revelo que o assunto é melindroso, mas Francis incentiva-me: - Vá lá, desembucha! Comigo estás em terra firme!

É sobre mulheres, digo. Os olhos dele abrem-se muito e quase se baba, como um guloso retriever em frente da comida.

Força! A maneira suave como começo a contar a minha história com Alice não provoca nele qualquer reação inicial, e só quando refiro que ela era uma «espia nazi» é que exclama: - Ah, a Alice! Buddy, já podias ter dito! Tantos rodeios, devias ter ido direto à cueca!

Francis conhecia não só a minha relação privada com ela, mas também a sua duplicidade. Em Lisboa, nem mesmo na espionagem os segredos resistiam. Dá uma gargalhada: - Buddy, toda a gente sabe dessa história! Foste um tolo, andavas pelo beicinho e ela a usar-te!

Solta nova risada: - E, no fim, puseste a boca no trombone e lixaste o melhor espião da Inglaterra!

Com a sua habitual rudeza, Francis não perdera tempo, e esfregara-me na cara a minha suposta incompetência. Mas depois acrescenta: - Buddy, a culpa foi do Michael. Não podias saber que ela era o «Dragonfly». O Michael arriscou de mais, deixou-te andar demasiado perto dela sem te avisar.

Acena a mão no ar, como as pás de um helicóptero, e pede ao barman um novo whisky duplo. Já me esquecera o quanto ele bebia. Depois, olha para mim, sorrindo: - O Michael tinha ciúmes teus. Franzo a testa, como se não entendesse a insinuação. Ele explica-se: - Buddy, o gajo tinha-a coberto primeiro, e andava lixado, ela gostava mais de ti! Assim, matou dois coelhos de uma cajadada só. Perdeu um espião, mas tirou-te de cima da Alice!

Finjo surpresa e digo-lhe que tanto Michael como Alice me garantiram nunca terem dormido juntos, e que ele apenas dirigia o trabalho dela.

Com os olhos a brilhar, Francis solta uma curta gargalhada:

Buddy, não devias acreditar numa única palavra do que esses dois te disseram! São ambos uns artistas. Ou eram, no caso do Michael - percebendo que continuo cético, Francis adianta: - Sei disso porque fomos nós que a ajudámos, quando ela teve de fugir.

Matuto na sua afirmação. Alice deixara Portugal numa noite de nevoeiro, um submarino inglês fora-a recolher ao Guincho, nunca ouvira falar do envolvimento dos americanos na sua fuga.

Pergunto: - Como?

Francis sorri-me, condescente.

- Buddy, só te conto porque és da velha guarda.

Dá um gole no novo whisky, que o empregado acaba de pousar à sua frente, e conta: - O Michael tinha medo de que a Gestapo a eliminasse, e pediu-nos ajuda. O submarino levou-a para os Açores, onde ficou dois anos a viver.

Por momentos, parece que tem pena de mim. Foste bem levado! Depois, divertido, acrescenta: - O safado do Michael ainda lá foi uma vez, no ano passado!

Mais uma surpresa. Eu fora com Michael aos Açores, em 44, desmantelar uma rede nazi! Voámos num avião militar inglês e permanecemos quatro dias por lá. Não era possível que Michael tivesse encontrado Alice nesses dias. Ou era? Como se não admitisse ter sido logrado assim, protesto: - Eu também fui com ele!

Francis sorri, mais uma vez condescendente. És tão palerma!

Parece o meu pai quando revira os olhos. Dá mais um gole na bebida e informa: - Buddy, ele esteve com ela uma noite.

Rebusco a minha memória. Na última noite, Michael dissera-me que precisava de se encontrar com uma «amiga» local, mas tinha de o fazer em segredo, pois nos Açores tudo se sabia,e não seria bem visto andar a brincar com uma moça solteira.

Teria ido ter com Alice?

Divertido, Francis exclama: - Como é que isso te espanta? Buddy, ela é uma rameira!

A sorte dela é que, nos Açores, ninguém a conhecia!

Não tinha qualquer forma de saber se Michael fora ou não dormir com Alice. A não ser que a encontrasse. Porém, não me escapara um precioso detalhe: Francis dissera «ela é uma rameira», usara o verbo no presente. Será que já tinha estado com ela? Respiro fundo e pergunto-lhe: - É verdade que ela voltou a Lisboa? O americano fica subitamente sério, como se tivesse sido apanhado em flagrante. Olha para a sala, depois para o barman, não fosse alguém ouvir-nos. De seguida, aproxima-se lentamente de mim. O seu bafo a whisky atinge-me, como uma brisa inesperada e desagradável.

- Buddy, há coisas sobre as quais não posso falar. Nem contigo.

Mantenho o contacto visual, sem pestanejar. Quero dar-lhe a entender que não estou impressionado. Ele fica convencido disso, pois murmura: - Sabes de alguém que conheça bem as redes alemãs? Não como tu e eu, por fora, buddy, mas alguém que as conheça por dentro? Indirectamente, está a dizer-me que Alice regressou a Lisboa e trabalha para o OSS. Sempre em voz baixa, continua: - Andamos a recolher informações. Toda a gente sabe disso.

A operação chama-se Safe Heavens, e há malta portuguesa a ajudar. Malta que pode, ou não, ter colaborado com os nazis.

Suspiro. Francis não me vai dar mais do que isto, não me vai dizer onde posso encontrar Alice. Conheço-o. Julga-se um profissional sério, tem imbuída uma ética de funcionário público americano. Apesar do deslumbramento com as moças e do vício

da lassidão, leva a sério o seu patriotismo de burocrata. Não vale a pena insistir, e por isso não lhe pergunto se era ela o vulto que vi há meia hora, no corredor sombrio do Avenida Palace.

Decido avançar em oblíquo e murmuro, também em voz baixa: - Dizem que eles passam por cá carregados de tesouros.

Contente com o meu desvio, Francis sorri e, com um aceno de cabeça, confirma que há nazis com tesouros a passarem em Portugal. Mas depois encolhe os ombros, indiferente a essa atividade paralela: - Ordens são ordens, Buddy, e as nossas são para não ligar ao que eles trazem. Estamos mais preocupados com outro grupo…

Fala-me dos Nazis de Ferro. São um grupo que pretende reorganizar as forças nazis em Portugal e Espanha, e lutar pelo regresso do Terceiro Reich. São perigosos e ricos, e com muitos apoios no regime português e na PVDE. Esses é que são a maior preocupação dos americanos, não os que trazem supostos tesouros. Tal como o meu pai dissera, os americanos do OSS não estavam a denunciar os nazis à PVDE, nem sequer a investigar o que traziam nas malas. Aparentemente, só realizavam um levantamento geral daquela azáfama fugitiva, que usava Lisboa como porto de saída, e só se preocupavam com os que não queriam fugir, mas sim voltar à Alemanha, para uma desforra.

Com uma pompa discreta, só justificável se conhecesse os profundos segredos da criação do universo, Francis acrescenta: - Buddy, olha que anda muita gente interessada nesses supostos tesouros ... E do piorio: mercenários, colecionadores sem escrúpulos, tarados do Terceiro Reich, que desejam relíquias para idolatrar. É um mundo de bandidos, de saqueadores ... É sempre assim nas guerras, buddy.

Com profundo desprezo, executa um movimento do braço, como se a sua mão fosse pousar nalgum lugar, imitando o voo de um pássaro que já decidiu onde aterrar, e afirma:

- Os abutres rondam os cadáveres.

É esta a sua opinião sobre pessoas como o meu pai, mas Francis não possui requinte suficiente para me enviar uma mensagem cifrada. Sobretudo porque ele não faz ideia de que o meu pai é um desses homens, aposto que nem sabe da sua existência, senão tê-lo-ia dito na minha cara.

Por fim, o americano desfaz o ar sério e abre um enorme

sorriso: - Buddy, esquece lá a rameira e os boches. Vem mas é à festa hoje, que há lá do melhor que a América tem para dar ao mundo!

Ao dizê-lo, abre as duas mãos em concha, à frente dos seus peitorais, informando-me da existência de grandes seios femininos no cocktail da sua Embaixada, uma oportunidade que não posso perder. Sorrio-lhe de volta. Não me sinto muito animado, mas prezo as suas tentativas, por isso prometo que, mais logo, irei ao seu encontro.

Paul, meu querido neto, era por estas e por outras que amar Alice era uma tortura! Mesmo nos tempos em que o meu amor foi correspondido, em 1943 e mesmo em 1945, quando julgava que já não a amava, voltei a amá-la e sentia estas revelações sobre Michael como verdadeiras facadas no coração.

-Mas, avô, ela estava ou não em Lisboa?

Calma Paul, tem calma! Eu não a procurei, eu quis esquecê-la, entendes? Fiz tudo para a tirar da cabeça!

 

Guiei o meu Citroen pela Baixa, passei pelo Terreiro do Paço e cheguei ao Cais do Sodré, ao escritório da companhia de navegação. A manifestação continuava, com ainda mais gente, mas não era nela que pensava quando entrei no meu local de trabalho. Alice voltara, agora estava certo disso. Roberto, Harry, Francis, os três tinham confirmado, cada um à sua maneira, o regresso da mulher que me enfeitiçara no passado. Tal como o meu pai me contara, trabalhava para os americanos, provavelmente paga pelo próprio Francis. Porém, conhecedores das labaredas enormes que a nossa paixão gerara, alguns queriam afastar-me dela. «Um Satanás sem cauda», avisara Harry. Roberto mentira-me, temendo a minha insanidade. «Esquece a rameira», sugerira Francis, que não queria o seu trabalho perturbado pelo reavivar de um romance perigoso.

Encontrá-la não seria, pois, tarefa fácil, e ao longo do caminho, enquanto conduzia o Citroên, cheguei à conclusão de que era melhor assim. Não queria Alice de volta, não a queria a perturbar os meus dias. Bastavam-me as noites solitárias, cheias de imagens dela. Alice, a mera possibilidade de me cruzar com ela, de a ter nas minhas mãos, de a beijar, de a possuir outra vez, reavivara o meu desejo masculino, tão adormecido nos últimos meses.

Entro no escritório, alheado, e abro a porta do meu gabinete.

De imediato estaco. Sentado na minha cadeira, à mesa, debruçado sobre os livros da contabilidade, está o meu pai, que retira os óculos que usa para ler. Desta vez, veste um bonito fato azul­claro, que contrasta com uma gravata e um lenço azul-escuros, fiéis exemplos da sua permanente vaidade.

- Boa tarde, Jack júnior.

Saúdo-o de volta. Não posso ordenar-lhe que se levante, ele é o patrão, portanto permaneço parado, de pé, à frente da minha mesa. Ele mostra os dentes, já sei o que lá vem. Mandrião. Era sempre assim em Sydney ou em Hong Kong.

- Isto parece a loja do Machado: de manhã aberto, à tarde fechado.

No seu rudimentar português, o meu pai não perde uma hipótese para me atirar à cara qualquer expressão que tenha aprendido neste país e que lhe seja útil para criticar os meus comportamentos. Como se o escritório tivesse grande movimento e a minha presença ali, a qualquer hora do dia, fosse essencial.

Afinal, fora ele quem me dera instruções para fechar o negócio, mas isso era um detalhe indiferente quando se tratava de apoucar o filho…

De repente, o meu pai tossica e sinto um contentamento interior. A tosse dele é uma das minhas grandes aliadas em Portugal.

Desde que viera para cá viver, antes da guerra, queixava-se de que o país era mau para os seus pulmões. Havia muita humidade, muitas variações de temperatura, tão depressa estava sol como depois vinham as nuvens, e soprava sempre um vento desagradável, que enchia as casas de correntes de ar e lhe causava tosse. Fora ela, a tosse, a principal desculpa para a mudança para Nova Iorque, quando a guerra na Europa começou. Era bom sinal ele já tossir, talvez se fosse embora mais depressa.

Oiço-o dizer: - Estive a dar uma vista de olhos, a coisa podia ter sido bem pior.

Como quem diz: Esperava que, estando tu à frente do negócio, isto fosse um desastre, mas afinal...

Ainda assim, justifico-me com as suas ordens:

- Estamos a cancelar contratos, disse-me que fechasse o escritório.

O meu pai folheia os livros de contabilidade e protesta: - Não devias recusar tudo, temos de faturar até ao último dia!

Nem contesto aquela observação contraditória. Numa atividade de transporte, com navios fretados a terceiros e cuja carga não nos pertence, fechar as portas é recusar contratos futuros, não é liquidar o stock em armazém antes do encerramento, como se a nossa atividade fosse idêntica à de uma drogaria de bairro.

Sento-me no sofá, no fundão da direita, e decido muda de assunto: - Ninguém ouviu falar em tesouros nazis. Nem o Harry do Aviz, nem o Francis, um americano do OSS.

É mentira, mas não estou com disposição para ajudá-lo na sua cruzada saqueadora. Acrescento: - E também ninguém ouviu falar de Alice.

O meu pai tossica de novo. Faz um ligeiro esgar de incómodo, e eu sorrio impercetivelmente. Depois, fulmina-me com os seus olhos verdes. Mentiroso. Afirma:

- Não digas mais, não é preciso.

Finjo que não percebo o seu enigma. Ele explica-se: - São Pedro também mentiu três vezes, pelo menos é o que a tua mãe dizia e, portanto, o que vais inventar a seguir seria a tua terceira mentira, depois das duas iniciais.

Continua a observar-me. A mim não me enganas tu. Aposto que vai revirar os olhos, dou-lhe talvez dois ou três minutos. Ele prossegue: - Os dois sabem que a Alice está em Lisboa. Sobretudo o americano.

Solta uma pequena casquinada, o que lhe precipita a tosse.

Fica irritado por segundos, mas depois controla-se. Fixa-me intensamente, e eu sei o que aquele sorriso cínico significa. Idiota. Sei que ele me vai atingir com precisão, e por isso ergo o meu escudo protetor, quando ele diz: - É difícil não ouvirmos falar de uma mulher que andamos a montar, noite sim, noite não.

Faço-me de parvo e pergunto com candura: - O Harry, a dormir com a Alice? Lamento, mas está mal informado. O meu pai revira os olhos, enervado. Foi mais rápido do que eu esperava. Indigna-se: - Qual Harry, qual carapuça! O Francis! O ianque é que anda a cobri-la! O que não admira, visto que é ele quem lhe paga!

Não ficara com essa impressão. Gabarolas como era, se Francis andasse «a cobrir» Alice não teria resistido a contar-me.

Ou teria? O meu amigo Michael conseguia falar de qualquer mulher sem nós percebermos se já dormira com ela. Ainda hoje não sei se dormiu com Alice, ou com Mary. Com o tempo, talvez Francis tivesse aprendido a imitar essa capacidade suprema de mistificação, o anulamento do desejo de exibição de um macho à frente dos outros. Talvez andasse «a cobrir» Alice ... O facto de a ter reduzido «a uma rameira» poderia ser uma tentativa de me despistar, desconsiderando-a de uma forma grosseira, para melhor esconder a sua secreta folgança com ela. O meu ai, vendo-me de olhar perdido interrompe de imediato as minhas divagações:

- E da Safe Heavens, há novidades? Encolho os ombros desinteressado. Confirmo que os Americanos têm em curso a operação, destinada apenas a recolher informações sobre as atividades nazis em Portugal. Falo-lhe nos perigosos Nazis de Ferro, mas ele não se impressiona. Franze a testa e questiona-me: - É tudo?

Confirmo com um aceno de cabeça. Ele irrita-se: - Jack júnior, em cinco dias, não foste capaz de melhor?

É isso que valem os teus contactos, a tua rede de espiões?

Não respondo, mas preparo-me para uma nova investida o Spitfire de salão. Ele exclama, furibundo: - Agora já percebo porque foste despedido do MI6! Sem o Michael, não vales nada, és um zero à esquerda!

É um golpe baixo, mais do que eu esperava, por isso riposto, em voz pausada, fazendo um esforço para não lhe gritar: - Não me despediram, fui eu que me demiti.

O meu pai tosse mais uma vez, e eu fico satisfeito. Posso não conseguir causar-lhe mossa, mas a tosse consegue. Com um gesto brusco, fecha o livro de contabilidade à sua frente, como se fosse ele o verdadeiro culpado da sua irritação. Estúpido! Depois pergunta: - Sabes o que descobri, em apenas cinco dias, Jack júnior?

Está orgulhoso de si mesmo. Vê como eu sou mesmo bom nisto! Olha para mim e diz: - A Alice já fez as pazes com o Fulgêncio Nobre, o industrial amigo dos alemães!

Fulgêncio Nobre era um industrial do Norte de quem Alice fora acompanhante de luxo. As suas empresas colaboravam abertamente com os alemães, e ele próprio fazia parte da rede que eu havia desmantelado no Estoril, em 1943. O reatamento do relacionamento entre eles tinha um significado óbvio: Alice colaborava de novo com os amigos dos nazis. E, pela segunda vez, estava a traí-los. Pelos vistos, eles não a toparam à primeira.

O meu pai exclama:

- Foi com ele às Caldas de Felgueiras!

Nos últimos dias, muitos dos importantes nazis, em Lisboa, tinham sido «convidados» pelo regime de Salazar a recolher a um «campo de refugiados especial». Era uma forma subtil de os prender e de os proteger ao mesmo tempo, mantendo-os debaixo de olho até ao momento em que fossem repatriados para a Alemanha, já como prisioneiros oficiais dos Aliados. Nas Caldas de Felgueiras, havia homens e mulheres da Gestapo e da Abwehr, e uma ida até lá significava que Alice chegava com facilidade à cúpula do remanescente poder nazi em Portugal. E também aos perigosos Nazis de Ferro. Destas novidades, retirei uma conclusão imediata: Alice atuava outra vez como espia dupla, trabalhava para ambos os lados, sendo paga por Francis e por Fulgêncio. E, tal como no passado, dormia com quem lhe pagava. Para minha surpresa, não senti irritação ou ciúme. Há dois anos, se alguém me falasse num outro parceiro sexual de Alice, explodia de raiva, num descontrolo de adolescente apaixonado. Hoje, reagia a cada nova facada como se de uma distante e envelhecida desilusão se tratasse. É provavelmente isso que o meu pai estranha: a minha blindagem a estas notícias, à metralha do Spitfire de salão. Irado, sobe mais uma oitava o seu tom de voz:

- E sei mais, Jack júnior!

Respirei fundo, em guarda. Qual seria a bomba desta vez?

Porém, ele executa uma inesperada mudança de agulha. Os seus olhos começam a brilhar, como há uns dias, quando falou de tesouros. Murmura:

- Corre por aí uma história ...

Ergo as sobrancelhas, espero calado, e ele continua: - Está a caminho de Lisboa um tesouro muito valioso, um tesouro do próprio Hitler. Parece que foi roubado do Führerbau de Munique.

Já vira fotografias da Koningsplatz da capital da Baviera.

O Fuhrerbau era um dos seus vários edifícios. O meu pai adianta, guloso: - Coisas pessoais do Fuhrer. Seria fabuloso deitar-lhes as mãos…

Encolho os ombros, indiferente ao seu entusiasmo ganancioso.

Quero lá saber desses tesouros! Mas ele olha-me, furioso. Estúpido!

Desmancha-prazeres! A minha absoluta ausência de emoções lança-o em nova diatribe. Pergunta, irritado:

- O que se passa contigo? Não queres saber de mulheres, nem de dinheiro! Estás um frouxo! Deste em maricas?

Isto era ir longe de mais. Decido responder-lhe: - Não vale a pena ofender-me. Enquanto o pai foi a correr para Nova Iorque, eu é que fiquei aqui.

Nasce mais raiva no seu rosto. O quê? Como te atreves?

Semicerrando os olhos, o senhor Jack Deane interrompe-me prontamente: - Estás a chamar-me cobarde?

Digo-lhe que não, embora me apetecesse dizer que sim.

Recordo que Lisboa já não é o que foi. As estrangeiras rareavam e as portuguesas não dormiam com os homens antes de casar, tirando as prostitutas de rua, as coristas, as camponesas mais afoitas, ou uma criada, mas nem isso tenho. Além disso, não andava para aí virado, sentia-me triste. Queria partir do país o mais depressa possível, recomeçar a vida noutras paragens.

O meu pai mantém-se uns segundos silencioso, a cismar, e depois comenta: - Sais à tua mãe. És só coração e sentimentos.

Ofende-me que despreze assim o caráter da minha mãe. Ela era bem melhor do que ele. Mas falar dela parece suavizá-lo, altera o tom de voz, torna-se simpático. Lança-me um inesperado convite: - Devias vir ao Casino Estoril hoje, comigo. Podíamos jantar por lá ...

Uma oferta de paz do meu pai é mais perigosa do que uma declaração de guerra. Vou jazer de ti um homem, diz a sua expressão agora. Como em Sydney, como em Hong Kong. Nem morto.

Ele arqueia a sobrancelha, sorri, questiona: - Jogar na roleta, dançar com as coristas, qualquer coisa?

Recuso. A última coisa que desejo é ser visto em público

com ele, no Casino ou noutro local qualquer. Ele abana a cabeça, desolado: - És um chato, Jack júnior, um monumental chato! És como a tua mãe, não se sabem divertir!

Irritado, levanta-se e sai porta fora, sem se despedir. Fico afundado no sofá, a recordar-me da minha mãe, da falta que ela me faz, do quanto ela sofria com este homem insuportável.

É mentira que ela não apreciasse festas. Ela não gostava era das figuras que ele fazia nelas, das celeumas conflituosas que causava, das polémicas afirmações que chocavam terceiros, da recusa persistente em dançar com ela. Por isso, deixou de o acompanhar, preferia ficar em casa comigo.

Suspiro. Sinto-me dividido. Parte de mim está sem entusiasmo para ir ao cocktail. Sem paciência para frivolidades, brindes, gargalhadas histéricas. Mas há outra parte que me diz que devo ir.

Dançar, beber, divertir-me. Recomeçar a viver. Está na hora.

De certa forma, à sua maneira perversa, foi o meu pai quem me espicaçou, com estas agressões permanentes. Paul, ele era impossível, o teu bisavô! Mas as pessoas impossíveis, quando estão demasiado perto de nós, acabam por nos obrigar a mudar.

- Ele foi sempre assim, ou só ficou assim depois da morte da bisavó?

Foi sempre assim, Paul, nem imaginas o que a minha mãe sofreu. Nem eu sabia bem. Houve coisas, coisas terríveis, que só soube mesmo no fim.

 

Não nego que tinha a expectativa de encontrar Alice naquele cocktail. Afinal, ela agora trabalhava para Francis, para os americanos. Havia uma hipótese forte de aparecer por lá, a saracotear o decote. Malditas visões, malditos peitos, tenho tantas saudades de os beijar que até sinto dor física. Porém, é evidente que ela nunca apareceu. A primeira surpresa daquele encontro festivo e concorrido foi um homem: Eduardo, o português que me substituíra nos afetos de Carminho, pouco tempo antes de ela morrer.

Em 1941, aquela que na época era a minha noiva revelara uma consistente simpatia pelos alemães, que muito me dececionara. Ao contrário da irmã, a esfuziante Luisinha, e do pai, o general admirador de Churchill, Carminho adorava os nazis, tal como a matriarca, Dona Guilhermina, e os seus dois irmãos militares, António e Luís. Ao quarteto, juntara-se depois um tipo chamado Eduardo, um gramofone boche de trazer por casa, que chegara a publicar artigos na revista A Esfera, um pasquim pago pelos alemães para difundir a sua abjeta propaganda.

Aos poucos, o indivíduo ganhara o afeto de Carminho e a intimidade daquela família, e o seu alinhamento com a minha noiva, ao lado de quem se passara a sentar à mesa de jantar, foi uma das razões do naufrágio do nosso noivado. Cada vez mais frios e distantes, rompemos o acordo na véspera do Natal de 1941, e quem acompanhou a rapariga à Missa do Galo já foi Eduardo.

Hoje, sei bem que nunca amei Carminho. De início, sentia ternura e carinho por ela, mas foi um namoro suave, sem beijos sequer, e progressivamente destruído pelas paixões políticas da guerra. Ela contestava sempre as minhas ideias e lealdades, e com o tempo percebi que essas eram manifestações do seu desamor.

O deslumbramento dera lugar ao desencanto, passara a considerar-me um frio inglês, incapaz de aceitar a sua admiração pela Alemanha.

A minha saída de cena foi suave, sem choros ou ressentimentos, mas a minha quase imediata substituição por Eduardo, na estima de Carminho e de parte da família, causara mossa ao meu orgulho próprio. Aquele tipo era um papagaio das ideias de Goebells e da camarilha nazi. Incomodou-me, mas ter-me-ia doído infinitamente mais se ele tivesse casado com ela, o que nunca chegou a acontecer, pois, um ano mais tarde, Carminho morreu, vítima de uma tuberculose.

Assim, nunca mais me cruzara com aquele manga-de-alpaca germanófilo, magro, de tez pálida e nariz esguio, sobrancelhas escuras e demasiado farfalhudas. Era uma espantosa surpresa encontrá-lo aqui hoje, no Aviz, em plena festa americana, celebrando a derrota da Alemanha e de Hitler. Afinal, ele fora um escriba empenhado no Terceiro Reich! O que fazia ele numa festa onde se celebrava a sua espectacular queda?

Foi esta curiosidade que me fez procurá-lo depois de ter cumprimentado Francis e alguns dos seus conterrâneos, a principal fauna daquela noite. O americano, com uma avidez boçal e demasiada fanfarra, apresentara-me a torto e a direito, como se eu fosse um misterioso e abastado rei de uma obscura ilha do Pacífico.

Sem hesitar, colocara à minha frente duas das fogosas secretárias da Embaixada, ambas loiras platinadas e de peito volumoso, que possuíam um sotaque sulista. Minutos depois, descobri que eram irmãs e se chamavam Jennifer e Pamela. Esta última, já com um grão na asa, segurando um whisky que por pouco não se entornava, lançara-me olhares convidativos, entrecortados por súbitas risadas.

Lembrei-me das «pintas tontas», a apurada definição de Michael, e cheguei a perguntar-lhes se o haviam conhecido, mas elas negaram, e a conversa rapidamente me desinteressou.

Observei a sala. Como aquelas duas, contava mais dez americanas, todas elas risonhas e loiríssimas, esganiçando-se e contorcendo-se, cercadas por homens bajuladores e excitados.

Alguns portugueses passeavam-se, de grupo em grupo, mas notei pouco influentes. Os americanos ainda não tinham ligações fortes com a sociedade lusitana, ao contrário dos ingleses e dos alemães.

A um canto da sala, descobri o embaixador Campbell e cumprimentei-o com um discreto aceno de cabeça, que foi prontamente retribuído. A minha demissão do MI6 dera-se sem azedume, e guardava boas recordações daquele homem, sereno, hábil e persistente, que conduzira com competência os assuntos ingleses em Portugal, durante a guerra. Dizia-se que estava de partida, mas ninguém ainda sabia a data.

Atrás do balcão do bar, reparo que o barman efeminado me observa, com um sorriso malicioso. Ignoro-o e chego por fim junto de Eduardo, que está sozinho, como um peixe fora de água naquele ambiente onde os sotaques do Sul dos Estados Unidos são o som dominante.

Cumprimentamo-nos. É cordial, simpático mesmo. Informa-me de que é solicitador, trata de «assuntos» com os americanos, que ainda não conhecem bem Portugal. Diz: - São muito afáveis.

Eu acrescento: - Um bocado barulhentos também.

Ele ri-se, concordando. Pergunto-lhe se ainda escreve na revista A Esfera, e ele fica embaraçado.

- Hum ... O doutor Mascarenhas sabe, agora tenho muitos afazeres. Ahnn, falta-me o tempo que tinha há uns anos.

Trata-me por «doutor Mascarenhas», com aquela subserviência provinciana que existe em certos portugueses, como se, por ser inglês e vitorioso na guerra, eu pertencesse a uma classe social superior. Que tipo mais submisso! É evidente que me deu uma desculpa. Decido pressioná-lo, e trato-o pelo nome próprio.

- O Eduardo sempre acreditou que a Alemanha ia ganhar a guerra, que era mais forte do que a Inglaterra e do que a Rússia!

Ele engole em seco, ligeiramente atrapalhado, e explica:

- Com o tempo, dei-me conta de que eram ideias excessivas.

Hitler era uma pessoa perigosa, um desvairado! O doutor Mascarenhas certamente sabe que, quando somos mais novos, às vezes enganamo-nos! Mas depois amadurecemos.

De seguida, conta-me um pequeno episódio, acontecido num escritório de advogados situado no mesmo prédio onde ele trabalha.

O sócio principal mandou retirar todos os retratos do Hitler ou do Mussolini até aí pendurados nas paredes. Depois, substituiu-os por retratos do Churchill e do Roosevelt. Ri-se, e remata: - É mesmo à portuguesa, não é?

Dá-me vontade de lhe dizer na cara que ele é, tal como o «sócio principal» da sua historieta, um vira-casacas. Mas contenho-me. Eduardo e o vizinho são uma tendência crescente, não uma raridade. Muitos portugueses que pertenciam ao chamado «partido germanófilo», tão pujante e forte durante a guerra agora que Hitler morrera e soara a badalada final estavam rapidamente a mudar de lado, juntando-se aos vencedores. Como Eduardo, ontem um prosador a soldo dos alemães, hoje um solicitador sabujo dos americanos.

Senti saudades de Luisinha. Nos tempos difíceis de 41, à mesa de casa da família, quando Eduardo e Carminho me humilhavam com a sua aliança pró-nazi, a irmã mais nova da minha noiva fora a minha defensora mais entusiástica e leal. A única com os valores certos. Mesmo depois de o noivado ter terminado, mesmo depois da morte de Carminho, enquanto os irmãos continuavam a destilar fel contra mim, tentando proibir-me de a ver, Luisinha vinha tomar chá comigo, ou acompanhava-me a uma sessão de cinema, duas vezes por mês, às escondidas da mãe.

Pergunto a Eduardo se esteve com a família Silva recentemente. Diz-me que não, a morte de Carminho dissolveu o principal laço que o unia a eles. Para meu espanto, acrescenta ainda que, nos últimos tempos, se incomodara com os excessos dos irmãos, António e Luís, ou mesmo da mãe, Dona Guilhermina. Depois, exclama:

- A Luisinha é a única pessoa simpática: É uma rapariga muito jovial e muito bem-educada, doutor Mascarenhas!

Como se um raio me atingisse, e de uma forma absolutamente inesperada, aquela declaração provocou em mim uma raiva irracional.

Era só o que me faltava, o tipo andar a fazer a corte à Luisinha!

Além de vira-casacas na política, agora arrastava a asa pela minha Luisinha! Fingindo desinteresse, mas enfurecido por dentro, pergunto-lhe: - Tem estado com ela? Já não a vejo há algum tempo.

Eduardo abre um sorriso e na sua cara pálida nasce um ligeiro rubor, o que quase me provoca uma apoplexia.

- Sim, vi-a, duas ou três vezes. Ela frequenta muito o cinema, eu também, já nos cruzámos. Por mero acaso, doutor Mascarenhas!

Uma vez foi no Condes, das outras foi no Politeama!

Sem revelar o incómodo interior que sinto, sorrio-lhe também: - Ela é muito simpática, lá isso é verdade:

Entusiasmado por descobrir que partilhamos finalmente a mesma opinião sobre um tema, Eduardo desdobra-se em elogios: - É mesmo: Uma joia de moça, de uma alegria e de uma vivacidade contagiantes! E o que ela gosta de cinema? Vê tudo, o doutor Mascarenhas nem queira saber: De repente, ao reparar na minha cara suspeita, talvez tomando por crítica o que não passa de ciúmes, declara: - Por favor, doutor Mascarenhas, não interprete mal as minhas palavras: Tenho o maior respeito por ela, e nenhuma intenção pouco recomendável. Jamais me passaria pela cabeça qualquer pensamento impróprio sobre a irmã mais nova da Carminho!

Que mentiroso: O rubor nas suas faces, que nascera contra a sua vontade, negava as suas virtuosas palavras. Era evidente que aquele ectoplasma estava pelo beicinho pela minha Luisinha, e certamente se desfazia em salamaleques à porta do Politeama ou do Condes, insinuando-se nos seus afetos. Apeteceu-me esganá­lo. Que me tivesse roubado Carminho, que era uma mosca-morta, ainda vá, mas que estivesse prestes a seduzir Luisinha, isso era inadmissível: O único impedimento para lhe cortar as vazas foi a certeza interior de que Luisinha jamais se encantaria com um aspirante a jurista seco e míope, como ele.

Sorrio para Eduardo, e declaro: - Esteja descansado, ela também não ia olhar para si. Só gosta de atores de Hollywood!

Ele empalidece, angustiado, como se o chão lhe estivesse a fugir debaixo dos pés, a sua fantasia desfeita com estrondo.

Balbucia qualquer coisa, mas não o entendo. Satisfeito, despeço­me dele, confiante de lhe ter espetado uma bandarilha no cachaço, que lhe impediria novas ousadias com Luisinha.

Atravesso mais uma vez a sala, dirigindo-me ao bar. O rapaz olha-me, agradavelmente surpreendido pela minha chegada, lançando-me novo sorrisinho atiradiço, mas ignoro-o mais uma vez, pedindo-lhe apenas que me encha o copo. Observo a festa cheia e ao meu cérebro regressam imagens do passado, de outros cocktails, com Michael e os amigos da Embaixada inglesa. Recordo a noite em que o coronel Bowles, marido de Mary, me insultou, e a conversa que tive no jardim, com Michael, sobre Mary e o seu histérico esposo. Com nostalgia, já com o copo de whisky duplo de novo cheio, dirijo-me para o mesmo local onde anos antes acendi um Gauloise. À saída para a varanda, reparo que Pamela me sorri mais uma vez, de forma bem sugestiva.

Cá fora, corre uma brisa fresca e alguns convidados fumam os seus charutos ou cigarros. Entre passas, reflito no que senti.

A emoção forte que me nasceu no peito ao ouvir Eduardo louvar Luisinha é difícil de entender. Estranhamente, nas últimas noites pensara em Alice, as minhas fantasias encheram-se do corpo dela, mas no coração não existia ponta de ciúme. Era como se já não existisse qualquer emoção, apenas um vago desejo carnal, uma nostalgia física.

Com Luisinha passa-se o oposto: o desejo é omisso, ou submerso, pois apreciava a sua figura e o seu porte, mas a emoção está lá, sentira um violento ciúme quando Eduardo falara dela. Procuro entender o significado desta ambígua dualidade quando, nas minhas costas, alguém se aproxima. Uma voz dá-me as boas noites em inglês e, quando me viro, vejo uma mulher baixa e gorda, papuda nas mãos, nos braços e nas bochechas, com uns belíssimos olhos azuis e um nariz arrebitado. Envolta num vestido azul florido, com girassóis berrantes estampados, exibe uns lábios carregados de batom vermelho, demasiado pó-de-arroz na cara e tilintantes pulseiras.

Sorri-me e pergunta: - Jack Gil Mascarenhas Deane?

Desculpa, meu querido neto, mas tu pediste-me honestidade e é honestidade que vais ter. Por mais emoções que eu já sentisse pela tua avó, a verdade é que ainda não a desejava como à outra.

No princípio, era afeto sem desejo, emoção sem carnalidade. Mas isso também iria mudar, e é por essas e por outras que esta época foi tão complicada para mim. O amor é um passaporte para a loucura, somos praticamente psicopatas quando amamos ...

- E quem era esta senhora que o abordou, avô?

Já vais saber. ..

 

O nome daquela roliça mulher é Ruth Vanderbildt, e define-se como «uma milionária», casada com um financeiro da Costa Leste americana. Tivera o azar de ser apanhada pela guerra em França, ainda em 1940, e demorara quase dois anos para regressar ao seu país. Durante esse tempo, vivera em Marselha, nos subúrbios da cidade, tendo depois transitado por Lisboa, onde conseguira um visto para Nova Iorque. Agora, com o fim da guerra, voltara.

- Viajei na sua companhia, inglês, num barco fretado por si.

Inglês ... Há uns anos, uma outra mulher chamou-me assim, inglês, mas sei que a história não se repete, esta não é uma mulher como Mary. Pergunto-lhe se a viagem a satisfez. Encolhe os ombros, recorda o terror que invadia os passageiros, aterrados com os submarinos alemães. Os sinistros U-boats cruzavam o Atlântico, como lobos numa alcateia, e nem sempre respeitavam os barcos de passageiros, tendo afundado muitos. Principalmente se fizessem parte de comboios de navios, conjuntos de embarcações de passageiros ou de mercadorias, protegidos pela marinha inglesa.

Dou uma passa no meu Gauloise francês e garanto: - A próxima viagem será mais tranquila.

Ela esclarece-me: - Já não irei de barco. Demora muito tempo, inglês. O meu marido vai comprar-me um bilhete num Clipper da Pan Am.

Os hidroaviões da companhia americana partiam de Cabo Ruivo e faziam escala nos Açores, demorando apenas um dia a chegar a Nova lorque. As passagens eram bastante caras, mas para «uma milionária» isso não era problema. Ruth tilinta as pulseiras mais uma vez, é o seu tique, e diz: - Ouvi dizer que está de partida. Vai ter com o seu pai, inglês?

Sendo o marido um investidor da Wall Street, não era impossível que ela se tivesse cruzado com o meu pai. Curioso, pergunto-lhe:

- Conhece o meu pai?

Novamente um misterioso sorriso trespassa o seu rosto. Oh se conheço! Como se ele também a tivesse desiludido. Depois observa-me com alguma demora e com uma inesgotável curiosidade. Sinto-me um livro que ela tenta catalogar, ainda indecisa em que estante o colocar. Por fim, parece satisfeita e ajeita ao de leve o vestido. Alguns dos girassóis estampados mexem-se, como que embalados por um estranho vento. Murmura: - Conheci-o em Marselha, há umas semanas.

Pisco os olhos, confundido. Não sabia que o meu pai tinha estado no Sul de França recentemente. Dou mais uma passa no Gauloise: - Deve ser engano. Ele veio da América.

Mais um sorriso, mais um enigma. Sei mais do que você. Depois, procurando cumplicidade, a milionária Ruth Vanderbildt pisca-me o olho e afirma: - Inglês, sabe pouco da vida do seu pai. O que só abona em seu favor. Expiro o fumo com suavidade, executando pequenos círculos redondos com a boca, em parte para exibir a minha perícia, em parte para lhe demonstrar que não estou minimamente nervoso com a conversa. Tilintando mais uma vez as pulseiras, Ruth quer saber se estou contente com a derrota dos nazis, o que confirmo. Depois pergunta:

- Acredita nos campos da morte?

Como muitos, das primeiras vezes tive dificuldade em aceitar a verdade sobre Auschwitz, Dachau e vários outros campos de concentração. Parecia demasiado sinistro, demasiado desumano.

Mas pouco a pouco, dia a dia, as mentes de todos nós haviam processado o horror nefasto e negro. Pessoas, aos milhares, tinham sido executadas em câmaras de gás. Novos e velhos, ricos e pobres, homens e mulheres e crianças, e quase todos eles judeus. Ao ouvir a questão de Ruth, associo o seu nome bíblico à religião hebraica e à temática de que fala, e deduzo que é judia.

- Acredito.

Parece agradada, como se a minha afirmação a poupasse a uma longa e cansativa argumentação sobre a veracidade de um Holocausto de que muitos ainda duvidam. Diz: - Sofremos tanto, inglês, que nem toda a eternidade vai ser suficiente para apagar as feridas.

Pergunto-lhe se alguém da sua família morreu nos campos, se foi por isso que regressou à Europa neste final de guerra. Ela sorri, sempre enigmática:

- Sim e não.

Há um homem junto a uma porta do salão, a cerca de dez metros de nós, que me observa, mas que baixa os olhos quando procuro o contacto visual com ele. Um empregado carregando uma bandeja de bebidas passa por nós. Retiro mais um wisky duplo, mas Ruth recusa, enquanto conta que, em Marselha, ajudou muitos a fugir da morte. Ouvi relatos semelhantes: escritores e pintores, artistas e intelectuais judeus, escondidos da Gestapo nos arredores da cidade francesa. Depois e a conta-gotas, muitos haviam chegado até Lisboa. A alguns até os conhecera pessoalmente e ajudara a obter vistos e passagens para as Américas. Refiro-o, e Ruth fixa em mim os seus belos olhos azuis: - Por isso me espanta o seu pai. .. Ele também é inglês?

Como se a nacionalidade do meu pai o impedisse de alguma coisa ... Está na altura de um esclarecimento definitivo e digo-lhe:

- Ruth, não nos conhecemos e parece-me boa pessoa. Mas, sinceramente, não faço ideia do que está a falar! O meu pai apareceu há uns dias em Lisboa, e sempre pensei que vinha de Nova Iorque. Talvez se me explicar ...

Ruth é uma mulher com um sorriso perturbador e um olhar que nos parece enfeitiçar, de tão bonito e límpido que é. Mas a magia é quase instantaneamente desfeita por um rosto demasiado largo, dominado por aquele nariz arrebitado. É como se existisse uma contradição insanável entre aqueles transcendentes olhos e o resto do rosto, redondo e gorducho. Tilinta mais uma vez as pulseiras e diz:

Os nazis sentem-se bem em Portugal, pelo menos por uns dias. Ruth usa uma linguagem críptica, quase codificada, e por momentos admito que seja uma espia, pois não abre o seu jogo.

Dou mais uma passa e afirmo: - As rotas de fuga deles são as mesmas que os refugiados usaram no passado. Qualquer pessoa que tenha trabalhado nestes meios sabe disso.

Ruth sorri, mais uma vez, e aqueles sorrisos começam finalmente a provocar um efeito estranho sobre mim, incomodando-me.

Ela diz: - Nós temos andado a segui-los, inglês.

Deduzo que aquele «nós» se refira a uma organização judaica que se dedica a perseguir nazis fugidos da Alemanha. Ela prossegue, revelando que os nazis têm ainda muitas facilidades em França, em Espanha, em Portugal. Fala nos Nazis de Ferro, um grupo que pretende a ressurreição do Terceiro Reich a partir de Portugal, mas acha que eles não vão ter grande futuro, estão a ser colocados em «campos de residência fixa» e muitos já planeiam a fuga. Tal como antes ninguém impedia a saída dos refugiados, fossem judeus ou outros, também agora Salazar não se opõe à fuga dos nazis. A neutralidade é o seu princípio, para o bem e para o mal.

Sem grandes contrariedades, o destino dos nazis é assim a América do Sul, o seu santuário. De repente, Ruth acusa: - O seu pai anda a ajudá-los. Estuda a minha reação, mas eu franzo a testa, finjo-me desentendido.

- Não sei mesmo do que está a falar.

Ela brinda-me com novo sorriso misterioso, mas parece satisfeita. Depois, murmura: - Até Salazar nos ficou com o ouro. Em alguns casos, são dentes dos nossos familiares, de pessoas como eu e você, inglês. Dentes que foram retirados à força e depois fundidos em barras, com a insígnia nazi. Sobre o ouro nazi sabia pouco e não era questão que me empolgasse.

- O meu pai não negoceia em ouro.

Ela olha para o jardim, sinto que esta minha última afirmação a enervou. Cerra os dentes, e diz: - O seu pai anda a comprar tesouros nazis, tesouros que eles nos roubaram, na Alemanha ou noutros países. Está a dar­lhes a mão, a dar-lhes dinheiro que lhes permite fugir! Eles são assassinos, inglês, alguns dos piores da história da humanidade!

Mataram milhares de inocentes nas câmaras de gás, e agora o seu pai ajuda-os?

É evidente que sei do que ela está a falar, mas mantenho-me no meu registo opaco, quero saber mais sobre as atividades do meu pai em França. Ela pergunta-me se já ouvi falar de Mengele, a quem chama «o anjo branco da morte», um médico de Auschwitz, um monstro que fez experiências horríveis com as pessoas. Injetava os olhos das crianças com químicos, para lhes mudar as cores; e às meninas fazia tratamentos de choques, para as esterilizar. Depois, enviava todos para as câmaras de gás. Um assassino sinistro, que chegou a ser preso, mas que em abril fugiu e, segundo ela conta, parece que se dirige para Portugal.

Só uns dias depois soube de quem Ruth falava. Naquele momento desconhecia aquele nome. Pergunto: - Foi isso que o meu pai andou a fazer em Marselha, a ajudar nazis? Ruth revela que, nas últimas semanas, esteve em França, tal como o meu pai. Olha para mim, indignada: - Assassinos em fuga para a Argentina, para o Brasil, para o Paraguai. Foi o seu pai quem lhes abriu a porta de saída da Europa, nos vossos barcos. Alguns estavam escondidos há meses, tinham fugido do Leste ou do sul da Alemanha como ratos, só saíam à noite, durante o dia desapareciam. Mas o seu pai descobriu-os. Cheirou-lhe a bom negócio…

Escuto a música vinda do salão. Lá dentro dança-se, celebrando o fim da guerra, bebendo e rindo. O homem junto a uma das portas do salão está de novo a olhar para nós. Ruth continua: - Espero que não o ajude, inglês. Mengele não pode fugir, especialmente com o dinheiro e a ajuda do seu pai!

Anos a trabalhar para o MI6 conseguiam facilmente transformar dúvidas em certezas. Portanto afirmo, com veemente convicção, como se fosse um leal filho a defender o seu progenitor, cuja fama fora ofendida: - Não fazia ideia. Só sei que o meu pai está em Lisboa, quer fechar a empresa, e espero que regresse depressa à América. Ruth solta um suspiro, como que desalentada com a minha falta de colaboração. Depois, pergunta: - Não quer ajudar-me? Ajudar-nos ...

Sorrio-lhe: - Já contribuí com a minha parte nesta guerra. Ela mira-me, com o nariz a ameaçar arrebitar. Parece ir indignar-se outra vez, mas depois suspende a sua vontade e permanece silenciosa. Acendo mais um Gauloise, olhando para o salão e pergunto: - Quem lhe falou de mim?

Ruth ajeita a saia e os girassóis rodam, mais uma vez.

- Uma mulher.

Ergo as sobrancelhas, ligeiramente surpreendido. Pergunto­lhe como se chamava e ela diz: - Alice.

Foi como se me tivesse tirado o chão debaixo dos pés. Como teria conhecido Alice, quando estivera com ela, porque tinham falado de mim? Mil e uma perguntas explodiram-me na cabeça, e tive de beber dois goles seguidos de whisky antes de conseguir falar. Ruth percebe perfeitamente que tocou num nervo sensível.

Agora já estás interessado!

Pergunto-lhe: - Esteve com ela?

Viu-a há dois dias, aqui no Aviz. Conversaram. Alice descreveu-lhe o nosso romance. Ruth sabe que ela conhece as redes alemãs, que agora trabalha para os americanos, e que nunca viu o meu pai. Tentou contratá-la, mas não conseguiu. Suspira, desiludida: - É uma mercenária. Pediu-me muito dinheiro.

Com nítida malícia feminina, acrescenta: - Não sou homem, inglês. O Francis que durma com ela.

Depois mira-me, mais uma vez, com o seu sempre enigmático sorriso: - Ela ainda tem sentimentos por si, inglês. Mas espanta-me que um homem bonito e inteligente como você se tenha encantado hora e naquele local, é uma tortura que me dilacera a carne e o espírito. Ruth sente o meu nervosismo, mas não o comenta. Orgulhosa, arrebita o nariz mais uma vez, e remata: - Se mudar de ideias, venha ter comigo!

Enervado, não resisto a uma pequena provocação: - Pensei que fosse casada ...

Ela lança-me um olhar furibundo e eu pisco-lhe o olho, a brincar. Sem pinga de sentido de humor, Ruth dá meia-volta e nem se despede de mim, reentrando no salão pela mesma porta onde já não está o homem que nos observava. Tenho a certeza de que não a voltarei a ver.

Naquela noite, querido Paul, eu estava a dar mais atenção ao que ia sabendo sobre Alice do que àquilo que me iam revelando sobre campos de concentração ou nazis em fuga.

- Não voltou a ver a milionária, avô?

Sim, voltei, mas estava longe de pensar que ela iria ser um personagem fundamental nesses dias. E, no entanto, foi a sua procura pelos nazis, ou por um nazi em particular, que determinou uma parte importante do meu futuro.

Contudo, naquela noite, meu querido neto, o que eu queria era esquecer Alice. Dizem que para tirar uma mulher da cabeça é preciso outra ou outras. E o que te posso dizer, meu querido Paul, é que isso não é verdade, mas ajuda.

 

Reentro no salão decidido a escapulir-me daquela festa e aponto à porta, iniciando a travessia daquele mar de convidados, lento como um tubarão num aquário, desinteressado dos outros peixes.

Sob o efeito de vários whiskies duplos, sinto-me irritadiço, ensombrado pelas apreciações inesperadas de Eduardo sobre Luisinha, ou da milionária Ruth acerca do meu imprevisível pai, e sobretudo por Alice.

Ao sair, confronto-me, porém, com Francis, que regressa, vindo da receção do hotel. De imediato, e de forma alcoolicamente exagerada, abre os braços à minha frente, como se estivesse esfuziante por me rever. Contudo, existe no seu olhar um alarme inesperado, contraditório aos seus gestos apalhaçados. Não consigo resistir ao seu peso, o homem é um bisonte! Com veementes protestos, empurra-me de volta ao bar, onde me obriga a emborcar mais um wisky duplo, e a executar vários brindes aos velhos tempos e ao meu amigo Michael.

O barman sorri-me, procurando cumplicidade, mas ignoro-o mais uma vez. Francis parece um bêbado de rua, daqueles que mantêm a compostura com esforço, fazendo um movimento brusco de contrapeso ao seu próprio corpo, quando se sentem a inclinar demasiado para um dos lados. Todavia, pressinto uma dose de teatro nas suas ações, como se me desejasse ali parado, à força. De súbito, chama alguém e aparece ao meu lado Jennifer, uma das irmãs loiras e peitudas que conheci na alvorada festa.

É uma mulher muito alta, cuja perna direita abana, frenética, ao som da música. Conta-me que Pamela, a sua irmã mais nova, a que me sorriu no início, foi cear «com um amigo». Esta expressão é acompanhada por um sorriso matreiro, cujo significado é óbvio. Ao contrário da irmã, ela ficou, pois, segundo diz, e a sua perna confirma, ainda lhe apetece dançar mais.

Desconfio de que não foi essa a razão, mas outra bem mais prosaica: Jennifer não arranjou um «amigo» que a levasse a cear. E é certamente por isso que se dedica a mim, quando no início me ignorou.

Entretanto, Francis garantiu que estou atracado e faz gesto rápido de justificação. Com um aceno de mão, a meio caminho entre o «vou ali» e o «volto já», parte rapidamente na direção da receção, mas sem andar aos bordos, o que é uma alteração demasiado repentina para não me levantar suspeitas. É evidente que exagerou a sua bebedeira, afastando-me de propósito do átrio do Aviz. Ainda penso em segui-lo, mas os efeitos do whisky sobretudo, a movimentação de ancas de Jennifer, que roçam nas minhas pernas, levam a que adie tal intenção. Minutos depois, a americana convence-me a dançar e misturamo-nos com os outros casais, ao som de um swing. Com inúmeros requebros de corpo, evoluímos saracoteando os pés, num dueto acelerado e quase cómico. A sua cabeça loira parece um periscópio, acima da linha de água formada pelos cocurutos de outros dançarinos e dançarinas, e com o queixo a raspar no seu decote confesso-lhe que me sinto um português baixote, como seu par. Ela galhofa imenso, nega a evidência e proclama-me um «matulão»! Não sendo muito dotada nos comentários espirituosos, é bem-intencionada, e a verdade é que aqueles momentos de movimentação física e de inebriação musical me estão a aliviar o espírito. Minutos mais tarde, qualquer nuvem pesada na minha disposição foi já dissolvida pela sonoridade dos saxofone, da bateria ou dos violinos. E também pelo sorriso esfuziante, embora um pouco tonto, daquela girafa sulista.

Quando, terminados os volteios, nos sentamos à conversa, dou-me conta, porém, de que não sou a principal razão de tanta boa disposição. Jennifer está eufórica, mas só porque nos últimos dias tem corrido com a irmã as casas de penhores de Lisboa, à procura de artefactos dourados deixados pelos refugiados. Diz­me que são ambas «fascinadas» com tudo o que seja de ouro, e têm sido muito bem-sucedidas nos seus raides. As poupanças amealhadas, em dois anos a trabalhar na Embaixada americana em Lisboa, estão a ser torradas nestas compras, antes de voltarem à sua terra natal, na Georgia.

- Vão regressar à América?

Explica-me que deverão partir ainda antes do verão, embora a data concreta esteja por definir. E justifica-se:

- É por isso que vamos comprar tudo o que pudermos: Estás a ver estes brincos dourados?

Jennifer gira o enorme pescoço e mostra-me a sua orelha direita, onde está acoplado um pretensioso e burilado brinco dourado, e eu pergunto: - E que mais compraste? A americana enche o peito de ar, entusiasmada, empinando­se para mim, e debita uma lista de artigos que ela e a irmã adquiriram em Lisboa. Estão verdadeiramente orgulhosas das negociatas realizadas, como se uma pequena descida dos preços dos bens em escudos, regateada por elas com arte e manha, tivesse um enorme significado para o seu orçamento. Na verdade, em dólares, os seus ganhos são quase insignificantes, mas a sensação de vitória que ela exibe é avassaladora!

De repente, exclama, quase em êxtase:

- Morria se encontrasse umas águias douradas como as que existem à porta do hotel! Fiquei fascinada à chegada:

Sorrio, e faço um ar desolado:

- Infelizmente, não estão à venda.

Ela esboça uma careta e afaga o brinco, com pena de si própria. Já entediado das bugigangas, pergunto por Francis e Jennifer atira-me um esgar matreiro.

- Ó matulão, por favor, o Francis a esta hora já está de ceroulas!

Franzo a testa, espantado, e Jennifer fica de imediato aflita. Teme que o mexerico sobre o seu chefe tenha sido entendido por mim como uma denúncia maliciosa de um subordinado. Ao perceber a sua inquietação, acalmo-a:

- Ele deve ter por aí uma namorada americana ... É um malandro, o Francis! Somos amigos há vários anos, não te preocupes. Aliviada, Jennifer ganha coragem e de imediato me elucida sobre as atividades de alcova do meu suposto buddy.

- Americana não, que o Francis nunca tem olhos para nós!

É portuguesa, matulão.

Olha em volta, para se assegurar de que ninguém a observa, e aproxima a cabeça do meu ouvido, murmurando: - Há bocado estava cá, na receção do hotel. Foram para casa dele. Na Embaixada, toda a gente sabe, é uma tal Alice ...

Está explicado o alarmismo e a teatralidade de Francis. Por isso me abraçara e me empurrara de volta para o salão! E, temendo que eu me cruzasse com Alice na receção, aprisionara-me nos braços sólidos de uma americana adoradora de pechisbeques!

Porém, a verdade é que, seja do álcool, seja da companhia frívola, mas agradável, de Jennifer, finalmente sinto-me divertido, depois de muitos meses deprimido. Naquele momento, um pouco embriagado, já me estou nas tintas para Alice, para quem dorme com quem, para o meu pai ou para as mulheres que perdi em Lisboa, e começo a concentrar-me em exclusivo no pescoço alto e esguio daquela americana sardenta. Quando ela se aproxima do meu ouvido, cheiro o seu perfume barato, e observo a sua profusão de sardas, na cara, no pescoço e no nascer do peito. São elas que me despertam e pergunto: - O que estarão eles a fazer agora, o Francis e a tal portuguesa?

Jennifer cora imediatamente e leva a mão à boca, fingindo­se escandalizada, mas fica entusiasmada com a direção do nosso diálogo e murmura:

- Ai, ai, ai, que marotos ...

Pisco-lhe o olho, divertido. Aproximo-me dela e declaro, espreitando para o seu decote ostensivamente:

- Momentos de ouro!

Ao escutar aquela associação de ideias, a mistura explosiva entre os desejos carnais e o metal precioso, Jennifer desata a arfar, ruborizando-se novamente, e solta um gritinho, ao mesmo tempo que me pousa a enorme mão na perna, quase tocando na minha virilha. Então, excitado, segredo-lhe ao ouvido: - O que eu gostava mesmo era de assaltar o teu cofre ... dourado.

Batendo as pestanas a alta velocidade, a americana olha-me muito séria, arqueando a coluna. A sua mão sobe um pouco mais na minha perna. Sorrindo, Jennifer gira o pescoço e pergunta: - Com a tua pistola dourada, matulão?

Desatamos a rir e trocamos o nosso primeiro beijo ao de leve, na boca. Depois, entusiasmados, rapidamente nos levantamos e marchamos na direção da receção, onde recolhemos os nossos casacos, saindo pela porta do Aviz em passo apressado. Ela é bem mais alta do que eu e, nos trinta metros que percorremos a pé até ao meu Citroên, temos dificuldade em conversar, pois sou obrigado a olhar para cima e a dobrar para trás o pescoço, o que é deveras desagradável. Descubro que Jennifer e também a irmã Pamela vivem muito perto de mim, na Lapa. A pequena casa delas, com apenas uma sala e dois quartos, fica na rua das Trinas, a poucas ruas da minha casa, na dos Remédios à Lapa. No entanto, anos de trabalho no mundo da espionagem levam-me a omitir à rapariga essa proximidade.

Subimos e quando entrámos, depois de despir o casaco, dirijo-me naturalmente para a sala. Acendo a luz e avanço. Para meu espanto, Jennifer reage com um acesso de terror doméstico, libertando um grito escandalizado, no preciso momento em que a luz do candeeiro do teto ilumina a pequena sala, revelando uma profusão de caixotes e caixinhas em cima da mesa e dos sofás.

Dá a ideia que as irmãs são contrabandistas de ouro, tal o número de artefactos dourados naquela salinha! Os caixotes estão abertos, os objetos em exposição, como numa baixela de casamento, para aprovação geral dos visitantes. Mas aquele conjunto de brincos, anéis, fios, joias, castiçais e loiças douradas não se destina a ser exibido a estranhos, e apenas está ali para deleite diário das duas mulheres. É esse o significado do seu gritinho:

Jennifer está aterrada com a possibilidade de eu revelar a terceiros aquele açambarcamento algo exagerado de bijutaria dourada. Tenta de imediato impedir a publicitação do facto, como se ele fosse proibido ou pecaminoso.

- Que vergonha! Não vais comentar isto com o Francis, pois não? Parece que somos umas assaltantes!

Espeto-lhe um beijo na boca e juro-lhe que pouco me importam os tesouros dourados pousados na sala, desejo é conhecer os dela. De pronto, a rapariga se derrete nos meus braços e rumamos à sua toca, não sem antes Jennifer espreitar o quarto da irmã, certificando-se de que está vazio, e de comentar, satisfeita: - Pelos vistos, a Pamela também teve sorte.

Sorte tive eu. Há meses que não dormia com uma mulher. Foi Jennifer quem me espertou o marasmo e ressuscitou a minha alegria de macho. Está tão faminta quanto eu, e entrega­se com o entusiasmo de uma galdéria. Despe-se num minuto, talvez com demasiada pressa. Descubro os poderes do seu impressionante físico, que me cerca e envolve, como se ela fosse uma jiboia. Michael descrevera-me as americanas como deveras expansivas, «elas não gemem, berram!», e assim é Jennifer, dotada de uma irreprimível tendência para a gritaria. A barulheira é tão alta que nenhum dos dois se dá conta de que a porta de entrada bate, e alguém entra em casa. De joelhos à minha frente, em posição canina, apoiada na cabeceira da cama com as duas mãos, e com a cara pousada na almofada, Jennifer ruge roucamente num planeta distante de prazer quando, de repente, a porta do quarto se abre e aparece Pamela, a sua irmã mais nova!

Ao ver-me ali nu, de joelhos em cima da cama e de frente para ela, Pamela fica paralisada e em choque. Nesse momento, suspendo o meu movimento de vaivém sobre a sua irmã, e os nossos olhos encontram-se. Embora ligeiramente embaraçada, não parece chocada por ter apanhado a irmã numa situação daquelas. Pelo contrário, parece cobiçar Jennifer. Parva, tem sempre tudo. É como se estivesse a sofrer por não ser ela, ali de bruços, dobrada à minha frente. Sorri-me a medo, reconheceu-me, mas não é já o sorriso que me destinara no salão, convidativo e sedutor, mas sim um esgar tristonho, amolgado pela dúvida da inveja feminina. Sou pior do que ela?

Dura apenas um instante a nossa peculiar cumplicidade. Num gemido roufenho, ainda com a cara mergulhada na fronha, Jennifer protesta, dando palmadinhas no seu próprio rabo, exigindo que eu recomece o meu movimento. Ao sentir que não o faço, levanta finalmente a cabeça e vê a irmã à porta. Depois de um segundo silencioso, liberta uma gargalhada histriónica, cujo som desfaz aquele instante mágico em que o meu olhar e o de Pamela estiveram suspensos um no outro. Pamela fica enervada. Parva, não gozes comigo! Mas o riso da irmã é contagiante e, de forma um pouco forçada, Pamela começa também a rir. Então, autoritária, Jennifer ordena-me que continue, voltando a baixar a cabeça na direção da almofada.

Recomeço a penetrá-la, recuperando o ritmo, ao mesmo tempo que Jennifer, a rir, numa voz abafada e entrecortada por gemidos, pergunta a Pamela como correram as coisas com o seu «amigo».

Enquanto me observa a possuir a irmã, como que enfeitiçada, Será bom assim?, a pobre rapariga revela a sua desastrosa epopeia noturna: o «amigo» bebeu de mais e adormeceu no sofá.

Mas conversar nestas circunstâncias é uma arte complexa. A excitação de Jennifer cresce a cada momento, bem Como a minha, e naturalmente Pamela sente-se excluída e secundarizada. De repente, diz que já volta e olha para mim, ressentida. Não me quiseste! Desaparece no corredor.

Depois de mais gritos e terminada a nossa mútua explosão, Jennifer chama pela irmã. Sento-me na cama e tapo-me com o lençol, pudicamente. Pamela reaparece e os seus olhos molhados são prova evidente de que chorou na casa de banho. Sou uma parva. Sorri à irmã, e senta-se no canto da cama, contando-nos a sua frustrante aventura noturna. O «amigo» era um americano, não diz o nome, dançaram os dois e apanharam um táxi para casa dele, mas lá chegados ele adormecera no sofá, completamente embriagado, obrigando-a a regressar a casa sozinha! Tivera de vir a pé desde o Bairro Alto, o que era deveras perigoso, pois a iluminação das ruas apagava­se à meia-noite, para poupar energia.

Sorrio-lhe e digo: - És corajosa.

Ela sorri-me de volta, bate as pestanas. Afinal gostas de mim?

Genuinamente impressionada com o azar da irmã, Jennifer comenta: - Que traste!

Pamela sorri e troca de novo comigo um furtivo olhar, no fundo do qual há uma espécie de saudade pelo início da festa, uma nostalgia do que nós não fomos. Eu gostei de ti. Depois comenta para a irmã: - Pelo menos tu ficaste bem servida!

Contudo, numa mímica absolutamente inesperada e bastante exagerada, Jennifer leva as mãos à cabeça, como se estivesse aflita, e proclama: - Isto foi um desastre! Tu nem sabes o que se passou!

Pamela franze a testa, sem perceber tanta indignação. Jennifer explica-se:

- Tu queres acreditar que aqui o matulão viu o nosso tesouro?

Pamela leva a mão à boca, aflita: - Meu Deus, ele foi à sala?

Olha para mim, quase implorando: - Não vais contar a ninguém, pois não? Ainda nos prendem!

Damos uma gargalhada os três e o ambiente desanuvia um pouco. Neste registo, Pamela sente-se menos inferiorizada. Sorri­me. És simpático. Então, Jennifer proclama: - Mas, se nós formos presas, o matulão também vai!

Ela é demasiado rápida nos seus raciocínios. Pamela e eu esperamos, sem a entender. Divertida, Jennifer pisca o olho à irmã. Aponta para o meu baixo-ventre, tapado pelo lençol, e sorri: - Pamela, ele tem uma pistola dourada! Ao princípio é uma pistolinha, mas no fim é um pistolão!

Dá uma estridente gargalhada, num evidente sinal de histeria. Embora de novo embaraçada, Pamela força também um sorriso.

Olha para mim. Que sorte a dela! Como quem capta um pensamento por telepatia, e ao mesmo tempo tem uma ideia peregrina, Jennifer olha para a irmã. Também queres? Depois ri-se, observa­me, inquisidora, e ri-se mais. E tu? Por fim, pergunta-me, com um inesperado descaramento: - Matulão, ainda tens balas na tua pistola dourada?

Franzo a testa, curioso, e pergunto: - A madame quer levar mais um tiro?

As irmãs dão risadas excitadas, parecem duas adolescentes, diverte-as o meu uso do francês e da terceira pessoa do singular.

Mas, ao canto da cama, na verdade Pamela está ansiosa, expectante, como se a resposta da irmã fosse determinar o destino do mundo.

Mana ... Teatral, Jennifer leva as mãos aos peitos, segurando-os em concha. Depois aperta-os, de uma forma lasciva, como se fosse uma mulher da rua satisfeita e exclama: - Eu estou muito bem morta!

Riem-se as duas, aos gritinhos. Não quero interferir, para não ferir suscetibilidades. Deixo que Jennifer troque sugestivos olhares com a irmã. Eu não me importo, e tu? Pamela pisca os olhos, relutante. Achas? Não sei. Observo a sua fraternal empatia, uma estranha excitação a invadir-me. Jennifer dá mais um risinho, olha a irmã, incentivando-a.

Não sejas tonta! Mas Pamela não reage ainda e olha-me, angustiada. Se calhar não me quer ... Então, decidida e mais ousada, mas também generosa e altruísta, Jennifer pousa a mão na perna da irmã, olha para mim e declara:

- A minha irmã é muito bonita. Merece tudo.

Confirmo, com um ligeiro aceno de cabeça. Jennifer sorri-me e acrescenta: - A Pamela teve azar esta noite, não encontrou a pistola dela, matulão.

Debaixo do lençol, sinto O meu desejo a crescer. Jennifer murmura: - Acho que não se importava nada de levar um tiro.

Pamela abre muito os olhos, fingindo-se espantada com o atrevimento da irmã mais velha. Ai mana, que parva! Ficamos os três envoltos num breve e emocionante silêncio. Depois, Jennifer questiona-me: - Matulão, fazes feliz a minha irmã?

Rio-me, divertido: nunca uma mulher me ofereceu a sua irmã, mas sinto um desejo cada vez forte. De súbito, Jennifer surpreende-nos novamente e pega na mão direita de Pamela. Vá, parvinha, aproveita. Puxa-a para junto de nós e o corpo de Pamela vem arrastado, atrás da sua mão. Chega-se a mim, mas ainda olha a irmã, apreensiva. Mana???

Com um gesto brusco, Jennifer afasta o lençol que me cobre e fico exposto e nu para elas. Pamela abre muito os olhos, tapa a cara com as mãos, como se exclamasse: Ai, mana, que vergonha! Jennifer ignora o seu falso pudor, puxa de novo a mão da irmã e pousa-a sobre mim. Pamela solta um gritinho aflito, ao tocar no meu duro desejo. Ai, mana ... Olha para mim, atrapalhada. E agora? Sorrio, convidando-a, mas ela paralisou de ansiedade. Então, Jennifer dá um ligeiro toque na nuca da irmã, dirigindo-a, para que ela baixe a cabeça. Vá, maninha, não sejas parva. Pamela assim faz, finalmente. Cumprida a sua tarefa incentivadora, Jennifer afasta-se e dá-me uma palmadinha no ombro, dizendo, a sorrir: - Trata bem da minha mana mais nova, matulão. Sai do quarto, deixando-nos a sós. Quando regressa, dez minutos mais tarde, Pamela já está nua, de cara enfiada na almofada, imitando a mesma posição canina em que vira a irmã ao chegar a casa.

Enquanto a possuo, os meus olhos cruzam-se, mas desta vez com os de Jennifer, e vejo neles consideração e admiração por mim, bem como felicidade genuína pela irmã. Obrigada, matulão. Senta-se ao canto da cama e limita-se a ver-nos e a ouvir os gritos descontrolados da irmã, tão barulhenta como ela.

Hora e meia depois deixo-as, de cabeça limpa e espírito rejuvenescido. Ficámos amigos, mas não prometemos repetir a dose, pois as duas irmãs informam-me, à saída, de que são casadas.

Olham para mim, com um ar culpado. Foi a única vez. Os respetivos maridos, ambos soldados americanos colocados na frente italiana, devem regressar a casa em breve. Para elas, esta noite foi a despedida da guerra.

Eu avisei-te, Paul, isto ia ser assim, com os pormenores todos.

Espero que não penses mal de mim, não julgues que sou um velho tarado que falo de sexo só para te impressionar. Isto passou-se assim, como eu te disse, faz tu o julgamento se quiseres. Pela minha parte, apenas te posso confirmar que ter estado com estas duas mulheres me aliviou. Libertei-me do jugo de Alice sobre os meus pensamentos. Senti-me mais forte, mais independente. Pelo menos, por uns tempos.

- Avô, eu nunca estive com duas mulheres na mesma noite.

Não te preocupes com essas coisas, meu querido neto, não se é mais homem por causa disso.

 

Longo fora o dia, longa fora a noite. Cansado, entro no Citroên, satisfeito por estar tão perto de casa. A lua está cheia, ilumina a cidade, cujas luzes estão apagadas por decreto, poupanças de um Salazar que dorme aqui perto, em São Bento. Ainda nem acendi os faróis quando, ao fundo da rua, reparo nuns vultos, no passeio da esquerda. Tão depressa como aparecem, desaparecem, escondidos atrás dos carros estacionados. Então, ouço ao longe apitos estridentes, uma inesperada tensão àquela hora. Por precaução, manobro sem luzes, devagar, o motor a ronronar, e viro na primeira à esquerda, a caminho da rua dos Remédios à Lapa. Escuto de novo os apitos. Conheço aquele som, é o da polícia a perseguir. Há uma busca, fugitivos nas ruas vizinhas. Mas, até próximo da rua de São Domingos à Lapa, não volto a ver vivalma. A agitação parece ter-se afastado e estaciono o Citroên tranquilamente.

Mal coloco a chave na porta da frente do edifício, noto, porém, nova movimentação, no alto da minha rua. Um apito acentua-se, bem mais perto. De súbito, um vulto desce as escadinhas da minha rua, um homem corre na minha direção. Abro a porta do meu prédio e encosto-me à parede, para não ser visto.

Em breve, o indivíduo terá de passar por mim. Ouvem-se mais apitos e alguns gritos. Os polícias berram uns com os outros, avisam-se. O cerco a este desgraçado está a fechar-se e, quando o vejo passar à minha frente, assobio, chamando-o. No escuro, o homem olha para mim. Estranhamente, parece-me alguém que conheço.

Sussurro-lhe: - Entra.

Está desconfiado, teme cometer um erro fatal. Quando fugimos, queremos aumentar a distância entre nós e quem nos persegue, e por isso ficar perto, mesmo escondido, é uma decisão de alto risco. No entanto, noto que está cansado, já corre há algum tempo, e vai soçobrar, se não retemperar as forças.

- Esconde-te aqui.

O homem faz a sua escolha e num pulo coloca-se ao meu lado. Entramos e fecho a porta, sem acender a luz do hall. Ordeno que se baixe e ficamos de cócoras, para que as lanternas da polícia não nos possam iluminar. Cerca de meio minuto mais tarde, ouvimos os guardas a passar, de casa em casa, aos berros, vociferando impropérios e sugestões, apontando os feixes de luz para dentro dos prédios. Quase nem ouvimos a nossa respiração.

Deixo a polícia afastar-se e, alguns minutos mais tarde, ordeno que me siga, escada acima, no escuro. O meu andar é o segundo e só à porta tomo consciência de que vou dar guarida a um desconhecido. Ou talvez não. Escutamos ainda a berraria lá em baixo, ao fundo da pequena rua. Distinguem-se ordens diferentes. A PVDE também está presente, procura estes indivíduos, o que significa não serem meros assaltantes, mas agitadores políticos. Rodo a chave na fechadura e aviso, em voz baixa: - Espero que não faças nenhum disparate. Estou armado.

No derradeiro degrau, o homem permanece calado e quieto, como uma estátua viva. Está exausto e respira com dificuldades.

- Vou buscar-te água, fica aí.

Abro a porta de casa. Deixei uma luz fraca acesa na sala, e a mancha de iluminação invade o patamar. Confirmo que o reconheço. Continua de olhos no chão, à espera, não se lembra de mim. Avanço pelo corredor e vou à cozinha, onde encho um jarro com água e pego num copo. Trago-os de volta e digo-lhe que entre.

Relutante, fecha a porta nas suas costas. Vira três copos de água, sem sequer parar para respirar. Tem o cabelo rapado, a cara magra e chupada, os ossos do rosto salientes. Não fez a barba e descubro uma pequena cicatriz no sobrolho. Está suado e sujo, as roupas modestas cobertas de pó .. Continua pobre e revoltado. Tem pingos de sangue na camisa e nos pés calça umas alpergatas velhas, talvez as mesmas que vi anos antes, próximo de Montemor, num casebre semiabandonado onde pernoitei.

Por fim, enfrenta o meu olhar, mas não vejo nele qualquer sinal de recordação do nosso encontro. Então, repito a frase que proferi, há anos: - Posso oferecer-te pão, chouriço e cerveja. Outra vez.

Ele franze a testa, surpreendido, mas permanece em silêncio.

Talvez tenha esquecido o nosso diálogo tenso, em 1941.

- Não te lembras de mim, pois não, Henrique?

Há quatro anos, uma das minhas primeiras missões com Mary foi no Alentejo. Fomos buscar uns pilotos ingleses que vinham a salto de Espanha e ficámos a dormir em Montemor.

Nessa noite, Mary usou os conhecimentos do marido, o coronel James Bowles, chefe do SOE (Special Operations Executive! em Portugal, e pediu ajuda aos comunistas. Três homens, que viviam escondidos num casebre, aceitaram que passássemos a noite com eles, mas só porque Mary era esposa do coronel. Não gostaram de mim, tive de dormir no Citroên. Especialmente este homem, o chefe do bando, Henrique. E agora, tanto tempo depois, uma coincidência levava-o a aparecer à porta de minha casa, fugindo da PVDE.

Digo-lhe quem sou, falo-lhe de Mary e parece acalmar.

- Soube que tinhas sido preso, no Aljube.

As redes do coronel James Bowles foram denunciadas e anuladas pelos nazis e muita gente foi presa. A operação ficou conhecida em Portugal como «o caso da rede Shell», pois existiam vários executivos da petrolífera envolvidos, tendo a maior parte sido convidada a sair do país. Além disso, o coronel tinha desenvolvido imprudentes contactos com os comunistas, em especial no Alentejo, e muitos deles foram presos pela PVDE. Henrique foi um deles.

- Já saíste há muito tempo?

Confirma com um aceno de cabeça e depois fala finalmente: - Agora trabalho nas docas.

Sei que ele foi torturado no Aljube. A imprudência de Mary e do coronel Bowles haviam-no atirado aos lobos.

- Porque te estavam a perseguir hoje?

Henrique encolhe os ombros. Lembro-me de que é de poucas falas, mas provavelmente não quer dizer-me porque teme que o denuncie.

- Henrique, não te vou entregar à PVDE. Podes ficar aqui a dormir, amanhã de manhã levo-te às docas.

Ele olha para mim, espantado, e interroga-me:

- Porque me ajuda, homem da faca americana?

Sorrio. Ele lembra-se da minha faca Randall. Levo a mão ao bolso do casaco, tiro um Gauloise do maço, e ofereço-lhe. Ele recusa. Acendo um e sento-me numa cadeira, já na sala de jantar.

Passo a mão pelo cabelo, depois pela testa e pelos olhos. Estou muito cansado. Foi um dia longo e intenso, embebedei-me na festa e, nas últimas horas, pratiquei sexo como há muito não fazia. Bebo água, pelo mesmo copo que ele usou, na esperança de que veja isto como um sinal de confiança.

Respiro fundo: - Henrique, sou inglês. Não gosto da PVDE. Não gosto deste regime, nem do Salazar, e vou-me embora de Portugal logo que puder - dou uma passa e depois continuo: - Não te ajudei a ti.

Não sabia que eras tu. Ele permanece calado, a olhar-me. Eu sei.

- Ajudei um homem que estava a fugir à polícia, é tudo.

É uma enorme coincidência seres tu.

Continua a observar-me. Eu sei. Aponto para uma cadeira:

- Senta-te, estás cansado. Queres tomar um banho?

Ele abana a cabeça, não quer. Do que me fora lembrar! Henrique viveu no Alentejo toda a sua infância e adolescência, não toma banho, na maior parte das casas nem água potável há, quanto mais banheira!

Aponto para o sofá: - Podes dormir, se quiseres. Quando o Sol nascer vemos o que fazer.

Henrique mexe-se, gira sobre as alpergatas. Está preocupado: - A PVDE vai andar por aí de manhã.

Eu sorrio, confiante: - Não te preocupes, enfio-te na mala do Citroên e só sais nas docas!

Ele levanta um pouco os cantos da boca, num projeto de sorriso. Eu suspiro e fecho os olhos. Sinto-me exausto, mas ao mesmo tempo leve, como se me tivessem tirado uma tonelada de cima do lombo. «Pila bem usada, alma bem lavada», costumava dizer Michael.

Então, Henrique pergunta-me se sei de Mary, se a tenho visto, e uma emoção triste pousa sobre mim.

- Morreu.

Ele franze a boca, num brevíssimo esgar de dor. Morta? Terá ele amado Mary também? Terá ela dormido com este comunista teimoso, mas digno? Abalado, Henrique pergunta: - Como?

Conto-lhe que, em Inglaterra, uma bomba V-2 destruiu a casa de saúde onde ela vivia. Mary nem deve ter sentido nada.

Henrique murmura: - Era uma mulher corajosa.

No princípio sim, mas para o fim já estava louca. Quando partiu de Lisboa era uma alma perdida. As imprudências e as incompetências do coronel deram cabo dela. A partir do momento em que o marido começou a colaborar com comunistas, como Henrique, Mary ficou em perigo. Assim que os nazis puderam, deram cabo do coronel, dos comunistas e dela.

Comento, com uma ironia um pouco azeda: - Quem se dá com os comunistas lixa-se ...

Henrique riposta de imediato: - Então não me devia dar guarida, homem da faca americana.

Sorrio.

- Pois não, Henrique. Mas ... Estou demasiado cansado para te ir levar agora. E, além disso, uma noite não são noites.

Permanecemos em silêncio enquanto termino o cigarro.

Começo a levantar-me quando Henrique volta a falar, em voz baixa.

- A manifestação do Rossio deu para o torto. Depois do jantar. Ainda estava lá muita gente a gritar contra o Salazar.

A PVDE achou que era altura de acabar com aquilo.

Cerra os dentes, está furioso. Eu encolho os ombros e aviso-o:

- Vocês não se deviam animar. O Salazar ainda vai durar muito tempo.

Ele reflete nas minhas palavras e depois inicia uma curta dissertação: - O senhor é inglês e está a ajudar-me. É assim que tem de ser. Os ingleses, os americanos e os russos devem juntar-se a nós, para deitar abaixo o Estado Novo. Já derrubaram o Mussolini e o Hitler, só falta o Franco, em Espanha, e o Salazar.

Até entre os comunistas existe este tipo de expectativas.

Mas os Aliados não vão patrocinar golpes. Há uma Europa inteira para reconstruir, Portugal não é uma prioridade.

Sorrio-lhe e afirmo: - Posso ajudar-te hoje, Henrique. Posso até ajudar-te amanhã, ou depois de amanhã, ou noutro dia qualquer. Mas não posso fazer mais.

Respiro fundo e remato, olhando nos seus olhos:

- O Salazar não é um assunto meu, nem da Inglaterra.

Ele observa-me com um olhar inexpressivo. Nem alegria, nem deceção, nem maldade, nem bondade. Limita-se a ficar calado. Mas os seus olhos acusam. Traidores. Cobardes. Fracos.

Saio, abro um armário no corredor e regresso com um cobertor. Ele continua no mesmo local, à entrada da sala, não se sentou.

Agarra no cobertor com a mão e diz: - Obrigado.

Depois pergunta: - Ainda tem a sua faca americana?

Mostro-lhe onde guardo sempre a faca Randall, que herdei com a morte do meu amigo Michael, e que ele me emprestava em épocas de operações especiais, como naquela ida ao Alentejo, quando conheci Henrique. E digo: - Não há faca que corte melhor do que esta.

Henrique sorri ligeiramente. Mais uma vez só os cantos da boca mexeram. Questiona-me: - Continua sem cortar gargantas soviéticas?

Rio-me. Naquela noite, há quatro anos, eu dissera-lhe que a faca só cortava gargantas nazis, e não soviéticas, e portanto ele, que era comunista, não me devia temer. Ele recorda-se.

- Podes dormir descansado, Henrique, boa noite.

Ouço o seu boa noite já a caminho do quarto. Nem sequer tenho paciência de me despir, apenas retiro os sapatos e as calças e deito-me. Adormeço imediatamente, tal é o meu estado de falência física. Nessa noite, sonho com mulheres altas, que se riem aos berres, e com castiçais dourados. Quando acordo, o dia já vai alto.

Só me lembro de Henrique um pouco depois. Vou à sala e ele já lá não está. O cobertor encontra-se pousado no sofá por abrir. Volto para trás e enfio-me na banheira cheia de água quente, refletindo sobre o dia anterior. O prazer carnal que vivenciei com as duas americanas desanuviou-me, como uma massagem ao ego e aos sentidos. Sinto-me revigorado, ressuscitado, rejuvenescido.

Submerso em espuma, chego a uma certeza: já não desejo Alice. A agitação em que vivi nos últimos dias foi filha de uma carência aguda de mulheres. Como fantasia, como promessa, como sombra, Alice alvoroçou-me, mas, depois de saciado pelas irmãs sulistas, ela perdeu o seu estatuto de fêmea perturbadora.

É apenas uma mulher que eu um dia amei, mas em quem já não confio. Pela primeira vez, sinto-me livre dela.

- O avô tinha de repetir isso a si próprio, como uma mnemónica, para acreditar?

Sim, Paul, acho que sim. Mas agora vamos ter de desligar, quero ir dormir, estou cansado. E a tua avó está quase a chegar. ..

Amanhã, amanhã ela chega a esta história. Meu Deus, aí é que vai começar a ser difícil contar-te tudo, mas está bem, eu prometo tentar, prometo não omitir nem atos nem palavras, vais saber tudo, está descansado.

Mesmo que depois gostes menos de mim ...

 

Barcelona, 14 de maio de 1945

Os tesouros estavam espalhados em cima da cama de mais uma pensão. Manfred começava a estar farto de fugir. Já mudara de pensão duas vezes, na mesma cidade. Sabia que o perseguiam e que tinha de se esconder, mas sentia-se cansado. Desiludido.

Abatido. O meu sonho morreu.

Admirou o retrato, as feições daquela mulher, e viu nela semelhanças com o filho tão admirado. Ainda não acreditava que tinha morrido.

Sempre pensara em Hitler como um imortal, um ser destinado à eternidade, ao grandioso, ao sublime, incapaz de falecer.

Anos e anos de glória, uma crença inabalável na vitória, a organização superior dos seus exércitos, tinham convencido Manfred de que a Alemanha nazi era um império eterno, que duraria mais de mil anos, como Roma.

A mãe de Hitler olhava para a câmara, serena, tranquila, alheia à calamidade que acontecera, ao pesadelo de Manfred.

Tudo acabou! Passou os dedos pelo retrato, afagando-o, como se fizesse uma festa na cara daquela mulher, agradecendo-lhe o que vivera. Pensou em matar-se. Tinha a pistola com ele, estava pousada na mesa-de-cabeceira, carregada. Uma bala na têmpora chegava. Matara vários assim, com a sua Walter, mas repugnava­lhe esse tipo de desistência.

Nos primeiros dias em Espanha ainda alimentou a esperança de um milagre. Talvez fosse mentira, talvez Hitler não tivesse morrido. Os nazis, ou os Aliados, eram especialistas em desinformação, em propaganda negra. Se calhar, tinham posto a correr a notícia para despistar, para que todos acreditassem que a guerra acabara, para o Führer poder escapar, partir para um local secreto, reorganizar o contra-ataque, ripostar.

Falou com os seus contactos, havia muitos em Espanha, agora que Franco mandava. Mas eles mataram-lhe as ilusões. Estúpidos. Descrentes. Juraram-lhe que era verdade, que Hitler tinha mesmo morrido, o corpo fora queimado nos jardins da Chancelaria de Berlim, ao lado do da mulher, Eva Braun. Depois, fora levado pelos russos, desaparecera. Os soviéticos não queriam um túmulo de um mártir para alimentar romarias. Manfred continuava a duvidar. Talvez os russos não mostrassem o corpo porque não havia um corpo morto para exibir, talvez ele afinal estivesse vivo.

Observou mais uma vez o retrato. O teu filho continua vivo, mulher! A rendição da Alemanha era uma cabala, uma mentira colossal, inventada pelos jornalistas! As rádios estavam controladas, os jornais também, mesmo ali em Espanha. Não podia ser verdade, não era possível que aquela extraordinária máquina de guerra, que durante seis anos espantara a humanidade com as suas conquistas, tivesse soçobrado! Manfred agarrava-se a esta crença com desespero, mas depois a realidade abatia-se sobre ele, a tempestade chegava ao fundo da sua alma, e sabia que tudo estava perdido.

O meu sonho morreu.

Restava-lhe, portanto, sobreviver. Olhou para a pequena pistola de Hitler e para o globo de ouro. Com o dinheiro de novo prestes a acabar, tinha de vender um deles, pois queria manter os retratos. O da mãe do Führer, mas também o da cadela Blondie, pareciam-lhe bens íntimos e, por isso, mais valiosos para os colecionadores. Tal como a pistola, com o monograma. Então, decidiu-se pelo globo. Beijou o retrato da mãe de Hitler ao de leve, e colocou todos os artefactos no pequeno baú, com a exceção do globo, que guardou num estojo e enfiou no bolso do casaco.

Nessa mesma tarde, vagueou mais uma vez pelas ruas da cidade catalã, e bateu à porta de uma loja, cujo dono apreciou o globo com uma lente, com receio de falsificações, mas depois ofereceu um bom dinheiro, e Manfred vendeu mais um dos seus bens. O comerciante ainda lhe perguntou se queria negociar os retratos, pois considerou-os muito valiosos, mas o alemão preferiu guardá-los. Não queria chegar a Lisboa sem nada, principalmente sem o retrato da mãe de Hitler. Nessa mesma noite, dirigiu-se ao porto e arranjou forma de embarcar clandestinamente numa traineira de tunisinos, sujos e duvidosos, mas que não faziam perguntas. Estava com medo, mas não daqueles pescadores desdentados e magros. Ao sair da loja onde transacionara o globo, reparara que estava de novo a ser seguido. Dois homens, um deles talvez fosse o mesmo que o agarrara em Marselha, andavam trinta metros atrás dele, como dois lobos seguindo um veado ferido. Judeus. Escumalha.

Despistou-os, mas sabia que tinha de partir. Estava marcado por eles, desde Auschwitz, desde que fora o oficial mais prestável de Mengele. A sua transferência para Munique, onde estivera no início da guerra e onde voltara perto do final, não apagara o que fizera naquele enorme campo, e não o retirava da lista dos mais procurados. Judeus vingativos.

Ouvira dizer que Mengele também fugira, mas que já fora apanhado, num comboio, com outros soldados e médicos da sua companhia. Se Manfred tivesse ficado até ao fim com eles, no campo de concentração, a esta hora também estaria preso. Ou, quem sabe, fuzilado. Os judeus não iam perdoar. Nem a Mengele, nem a Manfred, nem a nenhuns dos que com eles haviam promovido as matanças, as gasificações.

Teria de fugir. Ia por Cádis e Faro, queria chegar de barco a Lisboa, foi o que disse, na loja, ao comprador do globo. Era mentira. Ele também aprendera uns truques e deixar pistas falsas era um deles. Os judeus iriam disparados à sua procura para o Algarve, mas ele entraria no país por outra rota, e só poria os pés na cidade mais ocidental da Europa quando tivesse, a garantia de que a fuga para a América do Sul era certa. Vou enganar-vos, escumalha.

- Eles odiavam mesmo os judeus ...

Sim, Paul, nem fazes tu ideia quanto e eu também ainda não sabia o mal que este homem fizera a outras pessoas, um mal tão horrível que nos espanta e enraivece. Nesta altura, eu nem sequer ainda o conhecera, e muito menos sabia como ele iria acabar e porquê. Só o estou a contar aqui porque há datas a respeitar, e são importantes.

E, agora, vamos então falar da tua avó.

 

Lisboa, 14 de maio de 1945

Com a velocidade de um ciclone, Luisinha invade o meu escritório sem pré-aviso, excitada como jamais a vira, e grita: - Jack, tenho bilhetes para a estreia do Casablanca!

Eufórica, exibe os bilhetes na mão, quais troféus arduamente conquistados. Ainda de chapéu na cabeça, as bochechas coradas, a rapariga apresenta-se num estado de felicidade contagiante.

Chegou ontem de Évora, de casa da tia, e não perdeu tempo, obtendo aqueles tão desejados ingressos!

Amante fervorosa do cinema americano, Luisinha não perdia as estreias nacionais dos grandes sucessos de Hollywood.

Aquando da exibição do filme Rebecca, ainda em 1941, vieram a Portugal o ator Lawrence Olivier e a sua mulher, Vivien Leigh, para publicitar a película, e fui com ela assistir ao espetáculo, no Condes. As suas palpitações com a cultura do celuloide, principalmente a proveniente do outro lado do Atlântico, exasperavam a sua mãe, Dona Guilhermina, uma feroz opositora dessas «poucas-vergonhas», como as denominava. E até conseguiam enervar o pacato general Joaquim Silva, cuja vida de militar na reserva era todas as semanas apoquentada pelos encantamentos de Luisinha com as divas, os atores «bem-parecidos» e um romantismo geral que o paizinho, Como ela lhe chamava, considerava uma «doença».

Todavia, além de fanática por cinema, Luisinha era uma rapariga encantadora, sensível e inteligente, e bastante mais alegre do que a irmã, Carminho, de quem eu fora noivo algum tempo.

O fim do noivado afastara-me dela, mas não de Luisinha, que constantemente me procurava. A pretexto da sua paixão cinematográfica, Luisinha encontrava formas de me ver, e eu sempre estimara a sua companhia, aprendendo a admirar a sua pureza e a sua franqueza.

Ao contrário da mãe e dos irmãos, ela demonstrava uma instintiva preferência pela democracia e pela liberdade, bem como uma compaixão pelo sofrimento e pela miséria humanas. Uma vez por outra, ouvira-lhe diatribes contra Salazar, que a mãe ou o paizinho atribuíam a acessos de inocência tonta, e tentavam suprimir, com um «a menina cale-se!».

Depois da morte da irmã, Luisinha cumpriu um inequívoco período de seis meses de nojo, revelando a sua sabedoria social, e depois começou a convidar-me para a acompanhar ao cinema.

Esses simpáticos encontros, na aparência inofensivos, foram severamente criticados pelos irmãos, que tentaram sabotá-los.

Contudo, em outubro de 1944, estes haviam sido colocados fora de Lisboa, em quartéis diferentes, e recuperáramos as idas quinzenais ao Politeama ou ao Condes. Sem eu ter a noção clara do que isso significava, o nosso afeto suportara já duas prolongadas separações e não diminuíra. Pelo contrário, fortificara-se. Se havia alguma mulher de quem eu gostava mesmo, ela era Luisinha, a minha única amiga em Portugal, que sempre desejava rever.

Porém, talvez o facto de ser irmã da minha defunta noiva impedira-me de a olhar como se olha uma mulher. Havia uma estranha suspensão do meu desejo quando estava próximo dela, e por isso me confundira tanto o sentimento de atroz ciúme que me atingira durante a conversa com Eduardo, no cocktail. A que se devia tanto desagrado? Que tipo de emoções me despertava Luisinha?

Abraço-a, dou-lhe um beijo na cara, e depois admiro-a. Ela não para de falar do Casablanca, do sucesso que é o dueto Bogart e Bergman e do play it again do pianista Sam, mas observo-a com detalhe e sinto que algo nela mudou, e algo em mim também.

Aos vinte e cinco anos, Luisinha transformou-se numa bonita mulher, e já não é a inocente e jovial adolescente que conheci quase seis anos antes. Embora seja baixa, mede pouco mais de um metro e sessenta, hoje parece mais alta, não percebo bem porquê. E também mais mulher. Apresenta um vestido creme, que lhe desenha as formas do peito e cuja saia apertada lhe realça umas firmes ancas, e também o seu frondoso rabiosque, que abana e rodopia à minha frente antes de aterrar nos fundões do meu sofá, sorridente e feliz, com um ar sensual. Gosta?

Depois desse estranho olhar, diz: - Estou numa excitação que não aguento. O Jack não acha maravilhoso?

Sorrio-lhe e exclamo: - Vai ser de arromba, tenho a certeza' É um grande filme, segundo li!

Estreado em 1942, na América, o Casablanca só agora chegava a Portugal, pois a censura de Salazar considerara o filme exagerado e inoportuno, pelo menos enquanto a guerra durasse, e apenas com o final desta e com a derrota nazi se podia agora exibir em Lisboa aquela ode à liberdade e vitória dos Aliados.

Mas o sucesso do filme correra o mundo e, mesmo num país atrofiado pela ditadura, já todos tinham ouvido falar no amor impossível de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, e no simbólico gesto final do capitão Renault, um francês que, num acesso subtil de rebeldia, atira para o lixo a água de Vichy, renegando assim a França que colaborara com Hitler.

Há muito que Lisboa esperava, com expectativa, aquele épico filme. Os portugueses também se sentiam orgulhosos devido a um pequeno pormenor que lhes insuflava o ego patriótico. No final do Casablanca, alguém perguntava, a propósito do avião onde fugiam Victor Lazlo e a sua mulher: «o que há em Lisboa?»

Ao que outro alguém respondia: «O avião para Nova Iorque.»

Esta singela construção de palavras soava a um reconhecimento do papel histórico que Lisboa desempenhara naquela terrível guerra, a de pequeno mas essencial porto de abrigo e de passagem para os que fugiam ao jugo nazi e prezavam a liberdade. Naturalmente, os portugueses, sempre muito sensíveis ao que diziam deles os estrangeiros, em especial os ricos e os cultos, comoveram-se com a frase e abriram ainda mais os seus corações àquele notável filme, uma verdadeira obra de arte, que obrigava cada um de nós a definir-se naquele crazy little planei, como lhe chamava Bogart.

Sim, eu já lera sobre Casablanca na revista americana Mundo Gráfico ou na inglesa A Guerra Ilustrada, e também estava morto por ver o filme, desejoso de me emocionar com o que previa ser uma das mais ricas manifestações que Hollywood oferecera ao mundo.

- Mas como conseguiu a Luisinha bilhetes para a estreia?

Não era nada fácil, meia Lisboa deve querer o mesmo, comento.

Luisinha abre muito os olhos e depois encolhe os ombros, como uma menina mimada que não revela os seus truques e manhas. Quando quero uma coisa ...

- O paizinho teve de se empenhar ... Há de valer alguma coisa ser amigo de Salazar.

Rio-me. O general Joaquim Silva sempre recusou usar tal prezado privilégio em proveito pessoal ou familiar. Embora uns bilhetes para a estreia de um filme fossem um benefício inofensivo, não acredito que incomodasse Salazar por tão pouco.

- Não me diga que o seu pai telefonou à Dona Maria!

Luisinha ri-se da minha graçola, como sempre o faz. A sua cara redonda ilumina-se, os seus olhos castanhos brilham e sorri, a sua boca formando um semicírculo perfeito. Está feliz e retira o chapéu, pousando-o ao lado, no outro fundão do sofá. Abana a cabeça ligeiramente. Será que ele gosta do que vê? Mas não me conta como arranjou os bilhetes, e apenas comenta: - Pouco faltou.

Os seus cabelos morenos têm hoje mais volume. Reparo também que usa um batom mais colorido do que habitualmente, que pôs pó-de-arroz nas bochechas e que cruza as pernas para as exibir, como as atrizes dos filmes. Hoje, Luisinha é uma mulher mais sofisticada, noto-lhe anéis nos dedos, brincos nas orelhas, unhas pintadas da mesma cor do que os lábios. Feminina, como nunca antes me pareceu. Ou como nunca antes reparei?

Digo-lhe que está muito bonita, gabo-lhe o vestido e o penteado, e ela cora ligeiramente, lisonjeada e também aliviada. Finalmente reparou.

De seguida, coloca um ar sério e acrescenta:

- Só há um pequeno detalhe, ligeiramente desagradável...

Deixo-a esclarecer, reparando nos seus sapatos novos, de salto alto e fino. Ah, é essa a razão por que hoje me parece mais alta do que é! Sinto uma pontada de orgulho nela, como se a tivesse conhecido em criança, a tivesse ajudado a crescer e agora a admirasse, já adulta.

- A minha família foi toda convidada. O meu pai, a minha mãe e os meus dois irmãos, que estão cá em Lisboa.

Olha para o chão, um pouco embaraçada:

- Eu sei que o Jack não se sente muito bem na presença deles, mas é a nossa única hipótese. O Jack pode ficar na coxia, e eu fico entre o Jack e eles!

A sua preocupação comigo encanta-me. Sim, conviver com aquela família é desagradável. A mãe Guilhermina é um ser terrível, nunca foi simpática comigo. E os irmãos, então, nem se fala, embora agora tenham de meter a viola no saco, pois os seus admirados ídolos, os nazis, foram copiosamente cilindrados pelos Aliados.

Ergo as sobrancelhas, mostro o meu incómodo:

- O António, eu contei-lhe, foi muito hostil a última vez que o vi. Insinuou que eu andava a tentar aproveitar-me da sua inocência ...

Num acesso de irritação, Luisinha indigna-se e levanta a voz: - O meu irmão António é um intriguista, sai à minha mãe!

Era só o que faltava eu não poder ir ao cinema com o Jack! O Jack foi noivo da Carminho, mas ela morreu! E, além disso, o noivado terminou antes!

Melindrada, Luisinha dá, com o dedo indicador da mão direita, um piparote autoritário no chapéu que está pousado ao seu lado. Não é justo! Ela morreu! Eu não! Depois, declara, sem olhar para mim:

- E ainda bem que terminaram! O Jack e a Carminho não tinham nada a ver um com o outro!

Rio-me e dou-lhe razão: - Isso é bem verdade.

Ela volta a sorrir, mas noto que ainda está com a respiração um pouco alterada, enerva-se com a recordação da hostilidade com que a família me brinda. Estão errados! Aproximo-me dela, pego no seu chapéu e sento-me a seu lado no sofá. Lentamente, rodamos um pouco, eu para a direita, ela para a esquerda, para ficarmos frente a frente, e os nossos joelhos tocam-se. Sinto um frenesim a percorrer-me o corpo, ao sentir o calor do seu. Admirando o seu bonito chapéu, que tenho na mão, confesso: - Hoje, quando olho para trás, tenho dificuldade em perceber o que aconteceu entre mim e a sua irmã. Talvez eu quisesse apenas ser bem aceite pela sociedade lisboeta, e casar fazia parte desse processo ...

Luisinha, agora mais calma, respira fundo. Ela não gostava de si. Depois, comenta: - Deve ser difícil. O Jack sente-se sempre um bocado estrangeiro. Vi um filme em que o personagem principal tinha o mesmo problema ...

Não lhe pergunto o nome do filme, pergunto-lhe como acabava. Ela encolhe os ombros, desconsolada, e diz:

- Era triste, ele ia-se embora no fim. Ninguém gostava dele.

Só uma pessoa.

Fingindo-me comovido com tal enredo, suspiro e pergunto: - E essa pessoa ia com ele?

Ela nega, com um abanico da cabeça, muito séria. Odiei o filme. Está a olhar para a parede, como se fosse nela que as suas memórias da película se projetam. Diz baixinho:

- Por isso é que era triste: eles amavam-se, mas separavam-se. Não gostei. Não gosto de fins tristes, fazem-me chorar.

As pessoas que se amam devem ficar juntas, o Jack não acha?

Ergo as sobrancelhas, sempre realista e digo: - Nem sempre é possível.

Não lhe adianto que é assim que acaba o Casablanca, a história de um amor impossível que nasce em Paris, mas que não tem futuro, só passado. Não gosto de estragar surpresas e decido mudar de tema, falar-lhe sobre as novidades da minha vida. Chego­me um pouco mais para ela, o meu joelho pressionando o dela.

Então, ela pousa a mão esquerda na minha perna e abre os olhos, expectante. O que se passa?

- O meu pai está cá em Lisboa.

Conto-lhe a inesperada chegada, e confesso-lhe que não me dou bem com ele. Luisinha sorri. Ela sabe, não é a primeira vez que lhe falo do meu pai.

- O Jack dava-se bem era com a sua mãe.

Esta rapariga não esquece um único pormenor da minha biografia. Certa vez, comentou que a minha propensão para a solidão eram saudades da minha mãe. Não sei se tem razão, não sou psicólogo. De qualquer forma, o importante é que ela nunca se esquece. E continua com a mão pousada na minha perna.

Narro-lhe as intenções obscuras do meu pai. Luisinha é provavelmente a única pessoa em Portugal a quem contei muitas das minhas operações secretas. Sabe que me demiti do MI6 e já não sou espião. De repente, levanta a mão da minha perna e olha para as unhas, toca-lhes com os dedos da mão direita, raspando um minúsculo desalinhamento. Parece distante, mas não está e diz: - É compreensível. O seu pai não ignora que o Jack sabe muitas coisas, especialmente sobre os alemães em Portugal.

Curiosa, olha-me de novo e pergunta: - Que tipo de tesouros trazem os nazis com eles?

Divago um pouco, eu próprio não sei, mas suspeito de que sejam obras de arte, joias preciosas, ouro, produtos dos saques que eles fizeram por essa Europa fora. Para além disso, falo-lhe de Mengele, de Auschwitz, das mortes. Ela baixa a cabeça, impressionada e pergunta:

- Como conseguem eles fugir?

Explico-lhe as rotas de fuga, a cumplicidade das gentes, os subornos. Luisinha continua a parecer distante, agora a olhar para a janela, mas não está, nunca está, fica sempre pendurada nas minhas palavras, e comenta:

- O dinheiro paga tudo.

Abano a cabeça, num acesso de dignidade, e exclamo:

- Tudo não. Eu não sou capaz de ajudar nazis, principalmente assassinos! O meu pai que me perdoe, mas nisso não vou ajudá­lo! Ainda por cima, estou a fechar esta companhia, a seguir as ordens dele, e em breve vou para a América. A última coisa que quero é meter-me em mais aventuras complicadas! Já tive a minha dose!

Luisinha fica silenciosa por uns momentos, com um ar alarmado. Vai-se embora? Para a América? Noto que está agora um pouco mais pálida, talvez seja do pó-de-arroz. Ou então são as conversas pesadas, sobre campos de concentração e nazis em fuga, que a afetaram. Pergunto-lhe se está tudo bem, e ela confirma que sim, antes de me interrogar, quase com receio: - O Jack vai para Nova Iorque? Quando?

Encolho os ombros, e digo a verdade:

- Ainda não sei. Em breve. Logo que isto estiver fechado.

Um mês ou dois, mais coisa, menos coisa. Sabe, Luisinha, está na altura.

Explico-lhe que Portugal vai voltar a ser o mesmo país pasmado do passado, que Salazar não vai permitir a democracia e que eu, sem liberdade, tenho dificuldade de viver. Recordo-lhe que não tenho mulher, nem filhos, nem família, e agora também vou ficar sem emprego. Nada me liga a Lisboa. É o momento certo de partir.

Verifico que Luisinha continua pálida. Parece angustiada.

E eu? Mas força um sorriso e diz, numa voz sumida: - Eu compreendo isso ... Mas ...

De repente levanta-se, os nossos joelhos deixam de se tocar.

Dá uns passos até à janela, olha para o rio, abana a cabeça. Não pode ser. Depois, diz: - O que não compreendo é que o Jack deixe fugir os nazis.

Passou tantos anos a lutar contra eles e agora eles fogem por aqui ... São criminosos, mataram tanta gente.

Luisinha sempre revelara um profundo sentido de justiça, sempre tivera os valores certos, e agora chamava-me à pedra.

Tinha mais uma vez razão. Pensativa, observa o mundo lá fora, o Tejo e o céu. Não o deixo fugir. Volta a falar: - Se o seu pai sabe onde eles estão, o Jack deve avisar os seus amigos ingleses. Não pode é deixá-los fugir.

Justifico-me: já não trabalho para o MI6. Além disso, teria de aldrabar o meu pai. Não queria trabalhar para ele, mas também não queria fazê-lo contra ele.

Sempre a olhar para o rio, Luisinha declara: - O Jack sempre fez o que está certo, não o errado.

Horas mais tarde, ainda no meu escritório, recordo a forma como, com uma simplicidade quase mágica, Luisinha me apontara as minhas prioridades. Não teria de me afastar do meu pai, mas de me aproximar dele para melhor perceber por onde andavam os alemães e os poder denunciar. Porém, ao mesmo tempo que me elucidava com a sua doce serenidade, Luisinha parecia consumida por uma sensação de triste abandono. Chegara eufórica e saíra murcha, como se eu a tivesse desiludido. Mas porquê?

Tive de esperar pelo Casablanca para finalmente desvendar este segredo.

Eu não sabia que a tua avó me amava, que sempre me amara, e não percebi o quanto ela ficou desorientada com a notícia da minha partida de Portugal. Mas logo que me dei conta desse amor agarrei-o com determinação. Julgava que o amor seria menos terrível para a tua avó se eu lhe correspondesse.

- De certa forma, o avô usou a avó para esquecer a Alice ...

Foi muito pior do que isso, meu querido neto. Sim, ao princípio talvez me tenha apegado à tua avó porque era a melhor forma de ocupar o meu coração e esquecer Alice. Mas, depois, tornou-se mais grave e destrutivo do que isso. Pior do que amar duas mulheres ao mesmo tempo é ser amado por duas mulheres ao mesmo tempo. Nenhum homem aguenta. Amor a mais é terrível, sobretudo quando é correspondido.

 

Lisboa, 17 de maio de 1945

Um furo! Luisinha ia matar-me se chegasse atrasado ao Politeama ...

Observo o pneu vazio, idêntico à barriga de um homem gordo, com bordas de lado. Faltam vinte minutos para as seis, hora a que tenho de estar no cinema. Ainda dá tempo. Dispo o casaco, pouso-o no banco de trás do carro, abro a mala, retiro o macaco e dedico-me à árdua tarefa.

Já dão as primeiras badaladas quando chego à porta do Polite ama, sem fôlego. Estacionei o Citroên uns quarteirões acima, na avenida da Liberdade, e corri como um desalmado, na esperança de não desiludir Luisinha. Nunca me atrasara nas idas ao cinema, sabia que ela gostava de entrar antes das badaladas, de as luzes se apagarem e de a cortina correr. Adorava aquele ritual, e não suportava a ideia de ficar de pé, à entrada, até ao intervalo.

Dou com ela nas escadas, cá fora, esquálida e aflita, e mostro-lhe as mãos ainda sujas, como comprovativo do que me sucedeu. Fica tão aliviada por me ver que suspende qualquer crítica.

Pega-me na mão, ignorando o óleo e os vestígios de borracha, e puxa por mim, ao som da décima badalada. Reboca-me, passamos a trote pelo arrumador, a quem ela grita «já sei onde é», e descemos até aos nossos lugares, a meio da sala. Ficamos junto à coxia os dois, enquanto o resto da família se estende pela fila. Luisinha segreda-me ao ouvido: - É a primeira vez que o meu paizinho vem ao cinema desde que a Carminho morreu.

Estendo a mão ao general, sentindo compaixão. Ele levanta­se, para me dar o abraço do costume. A seu lado, Dona Guilhermina ignora a minha presença, mexe e remexe na sua carteira, finge procurar alguma coisa. Nem penses que me levanto. Mais distantes ainda, Luís e António fulminam-me com os respetivos olhares e trocam impressões em voz baixa. Desprezam-me, mas sinto um secreto gozo, pois sei que Casablanca irá humilhá-los.

As luzes apagam-se e sorrio para Luisinha. Está feliz, de olhos brilhantes. Que bom ter chegado. Pouso a mão no seu braço, com ternura, e ela faz-me uma festa carinhosa. Depois, olhamos para a tela.

É hábito em Portugal passarem notícias da guerra antes dos filmes e ouvem-se palmas, em vários pontos da sala, à rendição dos alemães. Onde estou, não me é possível observar as caras dos antipáticos irmãos e da insuportável mãe. Mas imagino os seus rostos fechados. Para os fãs de Hitler, aquele é o momento da vergonha. Seguem-se imagens de Portugal, uma listagem visual das obras públicas do Governo, acompanhadas por uma voz que debita uma estafada propaganda. Troco um olhar cúmplice com Luisinha, que bufa, enfadada. Que chatice. Pela plateia, ouvem-se vagos assobios de protesto e num dos cantos da sala, solta-se um berro: - Viva o Benfical

Liberta-se uma gargalhada geral. O comentário só na aparência é uma mera charla, pois transporta as sementes da rebeldia contra aquela sistemática lengalenga, e mostra o sentimento geral daqueles dias, onde o desagrado com o Estado Novo se mistura com a secreta esperança na sua queda.

Passado este breve interlúdio, a sala remete-se a um absoluto silêncio às primeiras imagens do genérico de Casablanca.

O efeito de sedução da película impõe-se e a audiência fascina-se com aquela fauna extravagante e rica, onde os espiões intrigam e as belas mulheres se apresentam torturadas pelo amor, pelo medo ou pela bebida; onde os refugiados têm receio de ser apanhados e os polícias ou são corruptos, ou colaboracionistas venais.

A meu lado, Luisinha mexe-se constantemente, como que à procura de posição. As suas pernas tocam nas minhas várias vezes. Finalmente, encosta-se e deixa cair ligeiramente a cabeça, pousando-a no meu ombro. Suspira. Assim está bem.

Casablanca faz crescer em mim uma profunda nostalgia.

Recordo-me dos últimos anos em Lisboa, dos que amei e que perdi. E quando Humphrey Bogart, o Rick de Casablanca, dono do café Rick's, profere a sua célebre frase: I stick my neck out for no one, lembro-me do meu amigo Michael. Tal como Bogart, ele fizera o contrário do que dissera. No filme, Bogart garante que não arrisca o pescoço por ninguém, mas depois vai expor-se, e muito, para salvar a mulher que ama. Em Lisboa, Michael também arriscara o pescoço e morrera.

Esta lembrança provoca-me uma comoção fortíssima, os meus olhos enchem-se de lágrimas, levo a mão à cara e tapo-os.

Nunca mais iria estar com Michael, esse tão grande amigo, e sei que nunca mais serei o mesmo sem ele.

Luisinha pressente o meu abatimento e dá-me a mão. Sabe que sinto saudades do meu amigo e sorri-me. Chore se quiser.

Mas eu não quero, com o dedo enxugo o canto do olho, e faço um esforço para me tranquilizar. Ela sorri-me outra vez. É mesmo homem.

É então que Casablanca me levanta do abismo. No café Rick's, um coronel alemão, impecável na sua farda de gala e exibindo uma orgulhosa cruz suástica no peito, aproxima-se da orquestra e exige, com autoridade e muita arrogância nazi, que seja tocado o hino da Alemanha do Terceiro Reich, o Die Wacht am Rhein. Os músicos, com genuíno desconforto, lá vão iniciando os acordes, perante o desagrado geral da assistência, enquanto os oficiais alemães cantam, orgulhosos.

Num genial volte-face, só possível em cinema, eis que se levanta uma mulher de uma das mesas do café e começa, sozinha, a cantar as primeiras estrofes do hino da França, a Marselhesa.

Há um imediato e perigoso contágio e, uma a uma, ouvem-se vozes solidárias naquele bar, já afeitas, mas ainda assim receosas, entoando baixinho Allons, enfants de la patrie, le jour de gloire est arrivé! E depois o cântico propaga-se, como um fogo alimentado a gasolina, e todos ganham coragem, levantam-se e cantam a Marselhesas

A meu lado, e para meu espanto, ouço uma voz de menina, a cantar baixinho aquele refrão francês. É Luisinha, os seus lábios mexem, trauteando a canção. Olha-me, sorri, incentiva-me. Cante também, cante comigo. Então, atrás de nós, mais acima na plateia do Politeama, à direita, mas também à esquerda, um som expande-se, mais pessoas cantam, acompanhando as imagens projetadas à nossa frente.

Luisinha sorri-me. Vê? Cante comigo! De súbito, como se estivesse ela própria no Rick's, dentro do Casablanca, Luisinha ergue-se num pulo, como que impulsionada por uma mola, e canta, mais alto e com convicção, a Marselhesa! Puxa-me pelo braço e eu levanto-me também, emocionado, com a voz embargada, e verifico que à minha volta se erguem mais e mais espetadores, cantando a plenos pulmões o hino francês!

A mão de Luisinha fecha-se na minha, enquanto cantamos, com o Politeama a acompanhar-nos: Aux armes, citoyens! Ela olha-me, orgulhosa. Amo-o. Nesse momento vertiginoso, a tristeza abandona-me totalmente e é substituída por um sentimento puro, espontâneo e leve, mas também grandioso e quente, que me enche por dentro. Pela primeira vez, sinto amor por Luisinha, a mulher coragem, a mulher sem medo, a mulher alegre.

Ela ainda canta, corada, ofegante, excitada. E não para de me olhar. Amo-o tanto! De repente, num gesto arrebatado, atira-sea mim e beija-me na boca! As nossas línguas tocam-se, a boca dela é quente. Fecho os olhos, sinto o seu corpo tremer, agitado, enquanto à nossa volta o Politeama aplaude, aos gritos, o Casablanca.

Abrimos os olhos ao mesmo tempo e digo: - Amo-a.

É como se ela observasse o fundo do meu coração. Que bom, que bom. Depois, sorri e diz: - Jack, eu sempre o amei ...

Estamos perdidos no nosso novo mundo, mas há vozes que nos mandam sentar, as pessoas querem é ver o filme, não querem saber de nós, e sentamo-nos, de mão dada. Aquele ambiente mágico envolve-nos outra vez, e a nossa história de amor mistura-se com a do amor impossível de Bergman e Bogart.

Todavia, e ao contrário dos protagonistas de Casablanca, que reencontram o amor para depois melhor e mais nobremente o perderem, não será esse o nosso destino. Decido-o ali, sentado, ao ver a célebre cena final, em que o capitão Renault diz a Bogart I think this is the beginning of a beautiful friendship, e os dois se afastam, lado a lado, desaparecendo no nevoeiro do aeroporto de Casablanca.

Desta vez, eu não vou perder a mulher que amo, nem vou partir sozinho. No passado, em Lisboa, não fora feliz com as mulheres. Conquistara várias, mas nunca as conservara. A minha vida fora uma sequência de trepidantes eventos, de mamas a abanar, de gritos ofegantes, de rabos para o ar, e depois elas desapareciam, no nevoeiro da noite ou da manhã. Namorava muito, mas perdia depressa.

Desta vez, ia ser diferente. Desta vez, ela não me ia fugir, nem eu dela. Agora já sabia porque Luisinha ficara tão pálida e triste no meu escritório. Eu dissera-lhe que ia partir e o seu mundo desabara, pois ela amava-me. Como fui cego tanto tempo ...

Estes anos todos, sempre tivera por perto a única mulher que valia a pena amar. Esta sim, era a mulher da minha vida e não um amor fugitivo e sem futuro. Como o de Bogart e Bergman, no Casablanca, ou o do suposto protagonista do suposto filme que Luisinha descrevera no meu escritório, cujo nome nunca me referira porque não existia, O protagonista era eu. Se eu partisse, ela ficaria triste, porque ela me amava, e por isso teríamos de partir os dois!

Quando, no final do filme, regressamos à rua, um pouco à frente do resto da família de Luisinha, abraço-a, beijo-a na testa e depois digo-lhe: - Venha comigo, vamos partir, só nós os dois. Para a América, para o Brasil, tanto faz ...

Os olhos dela brilham. Vamos! Contudo, não o proclamamos, pois já estamos rodeados pelos dois irmãos, pelo general e pela mãe dela, Dona Guilhermina, que brinda a filha com um esgar enojado:

- Que filme horrível que a menina nos obrigou a ver!

Como é possível uma rapariga tão fantástica ter nascido nas entranhas desta criatura horrível, sem alma e sem coração, que odiou o Casablanca? E, como um mal nunca vem só, eis que António, o irmão mais velho de Luisinha, me aponta o dedo e acusa: - Não descansaste enquanto não a desviaste!

Fico calmo, evitando uma peixeirada à porta do Politeama, e digo: - Boa tarde para ti também.

Ele faz uma careta. Patife. Quer prosseguir a sua arenga, mas Luisinha interrompe-o: - António, era só o que me faltava ter de dar satisfações ao meu irmão. Eu amo o Jack e, se você não gosta, o problema é seu, não é nosso!

Esta declaração impetuosa da rapariga, habitualmente calma e pacata, deixa António siderado. Mas, ao seu lado, há quem não se impressione, e Dona Guilhermina comenta, com desdém: - A menina vê é muito cinema. Luisinha fulmina-a com o olhar. Corajosa, pergunta-lhe:

- Ainda se lembra do dia em que se apaixonou pelo paizinho?

Espantada pela inesperada questão, Dona Guilhermina abre muito os olhos. Que topete! Que é que lhe deu? Mas Luisinha não está disposta a suspender a sua veemente argumentação: - Lembra-se do que sentiu, ou foi há tanto tempo que o seu coração já esqueceu o sentimento de descoberta de um amor por um homem?

Ofendida, a mãe riposta: - Que descaramento, a menina veja lá com quem está a falar!

Ora esta, se isto tem cabimento!

Luisinha olha para mim. Amo-o! Dou-lhe a mão, ela aperta-a, com força. Depois, olha de novo para os irmãos e para a mãe, e diz, numa voz mais calma:

- Estou apaixonada pelo Jack. Quer vocês gostem ou não.

Nesse momento, o general surpreende-nos a todos e solta uma pequena risadinha, bem-disposto, dando um toque carinhoso na bochecha da filha:

- Sempre achei que olhavas para ele de uma forma ...

Nós sorrimos, um pouco envergonhados, mas a criatura que a pôs no mundo não está para romantismos. Dona Guilhermina, irada, vira-se para o marido e protesta:

- Por favor, ele foi noivo da Carminho! Tenha respeito por ela.

Contudo, o general não parece incomodado pela exigência da esposa, e afirma: - Não me parece que eles tenham faltado ao respeito à Carminho, que Deus a tenha.

O fim da frase foi proferido numa voz sumida, num tom emocionado, mas esta proclamação pública liberta-nos da desagradável sensação de estarmos a ofender a memória da defunta.

Pelo menos do general, temos a bênção. Apesar de contrariada, Dona Guilhermina sabe quando tem de se acalmar e decide evitar mais celeuma, optando pela evasão:

- Ora, vamos mas é para casa, que já é tarde!

É então que alguém me chama. Olho para a porta do Politeama e vejo o meu pai.

Querido Paul, o meu amor pela tua avó Luisinha teve contra ele uma conspiração vastíssima, e ainda hoje me espanto que tenha sobrevivido. Naquele dia, em que pela primeira vez nos beijámos, eu acreditava que a minha vida podia mudar com ela, mas nunca pensei que fosse tanto, que o meu pai, a família da Luisinha e o seu país fossem determinar tão decisivamente o nosso futuro.

É que, por vezes, temos tendência para esquecer que um amor não existe num vácuo, só um homem e uma mulher com os corações a baterem ao mesmo tempo. O amor existe na vida, onde há famílias, pais, mães, regimes políticos, valores, essas coisas todas. Capaz de colocar em risco o meu amor com Luisinha não existia apenas o Satanás sem cauda que era Alice, mas outros Satanás, alguns bem mais perversos do que Alice.

- Foi por isso que o avô nunca veio a Portugal visitar os seus sogros?

Sim, querido Paul, houve feridas que não sararam. A culpa não foi só minha, foi sobretudo do meu pai, como irás perceber.

 

Ali está ele, o meu pai, num belíssimo fato azul-claro, exibindo uma esplendorosa gravata, fumando um tubular charuto e mostrando os dentes, divertido, enquanto examina o nosso grupo.

Jack Deane, o dandy troglodita, o cavalheiro abutre, preparado para me embaraçar perante a mulher que amo e a sua original família.

Levando Luisinha pela mão, apresento-a ao meu pai, que com o olhar vivo e perverso me questiona, num esforço macarrónico de pronúncia correta portuguesa:

- Já voltaste a ser homem?

Luisinha franze a testa, intrigada. O quê? O meu pai dá uma pequena gargalhada e tenta tranquilizá-la:

- Oh, cara linda, não se apoquente! Ele não é maricon! Mas andava um frouxo, farto de mulheres!

A restante família aproximou-se já de nós, com Dona Guilhermina na liderança. Os bons costumes lusitanos impeliram-na para a frente, é assim que ela justifica a sua intrometida pergunta: - O cavalheiro é o pai do Jack?

Atrás dela, António e Luís olham o meu progenitor com sôfrega curiosidade, e o general Joaquim Silva, circunspecto, examina a fatiota espampanante que ele usa, decerto incomodado por não se apresentar fardado, capaz de concorrer com tão vistosa indumentária.

Apresento-os:

- Dona Guilhermina, senhor general, o meu pai, Jack Deane.

A mãe de Luisinha solta um comentário, onde há um suave desdém: - Ah, têm o mesmo nome.

O meu pai dá um passo na sua direção e, enquanto lhe apanha a mão enluvada com cuidado e a beija com forçada pompa, declara, sorrindo-lhe: - O mesmo nome, mas ideias diferentes, cara senhora! Tenho muito gosto em conhecê-la, tão bela e tão distinta!

Para meu espanto, Dona Guilhermina cora! Sim, pela primeira vez desde que a conheço, aquela pedra granítica revela um descontrolo inesperado, e ruboriza as faces perante o galanteio do meu pai. Que ainda por cima lhe pisca o olho, antes de lhe largar a mão e virar atenções para o marido.

- Como está, senhor general? Ouvi falar muito bem de si nos últimos dias, desde que estou em Portugal. Ninguém se esquece dos altos serviços que prestou à sua pátria!

O general Joaquim Silva fica genuinamente atrapalhado perante tanta bajulação. Embora seja menos vulnerável à lisonja do que a esposa, é vaidoso e também gosta de ter o seu ego polido, mesmo daquela forma porventura demasiado exuberante. Não sei exatamente a que se referiu o meu pai, pois não conheço nenhum grandioso feito que seja património individual do general, que passou a maior parte da vida no quartel, sentado atrás de uma mesa, com as nádegas pousadas em duras cadeiras, a assinar papéis.

O meu pai pergunta: - E gostaram do filme?

Enquanto aperta a mão a António e a Luís, o meu pai lança a pergunta, sem um destinatário específico, e as reações não se fazem esperar. Dona Guilhermina torce de pronto o nariz, o seu azedume é visível, e os rapazes abanam as respetivas cabeças.

O general encolhe os ombros, discretamente, evitando assumir a sua opinião, mas Luisinha não se acanha e entusiasma-se:

- Um espetáculol É lindo! Até chorei! Que bonita que está a Ingrid Bergman!

O meu pai sorri-lhe, mas captou imediatamente o sentimento geral da restante família, que não é nada favorável ao filme. Como exímio manipulador de sentimentos que é, de imediato cavalga aquela tendência maioritária.

- Pois, mas os americanos são sempre uns exagerados! Esta vitória subiu-lhes à cabeça!

Ele sabe que Casablanca foi filmado em 1941 e exibido pela primeira vez em 1942, numa estreia que passou quase despercebida, e que só em 1943, depois do célebre encontro de Roosevelt e Churchill na cidade marroquina com o mesmo nome, é que o filme regressou aos cinemas americanos, tornando-se um aclamado sucesso popular. Não é, nem pode ser, um filme pós-vitória, é sim um filme prenunciador de uma vitória, filmado num momento em que poucos acreditavam nela. Contudo, para o meu pai, o relevante é o presente. Pressentindo os sentimentos antiamericanos prevalecentes na família de Luisinha, colou-se a eles com astúcia, só para subir na consideração de quem os emitiu.

Com redobrada confiança, Dona Guilhermina resmunga:

- É bem verdade, não suporto americanos! Nem ingleses!

A sua afiada opinião é suportada com entusiasmo pelo meu pai, que exibe um enorme sorriso e avança a seguinte afirmação: - Eu também não! Odeio ingleses! Só falo inglês porque nasci na África do Sul e me ensinaram! Senão falava italiano, que é muito mais bonito!

Dona Guilhermina fica conquistada num ápice. Ela costuma apregoar que «ama» a língua italiana, «ama» Roma, o Papa, o latim.

Emocionada, não se contém: - Ai, que língua linda! E eles são lindos também! O que eu gostava do Mussolini!

Cala-se, com a voz embargada, o coração apertado pela morte de Mussolini, que diz ter «padecido como um mártir, nas mãos dos comunistas». O meu pai ignora o comentário sobre o ditador italiano, mas, para demonstrar o seu acordo genérico com as opiniões dela, sustenta: - Os italianos é que sabem! São os melhores em quase tudo! Olhe para este fato, este corte! É italiano, Dona Guilhermina!

Ao dizê-lo, estica o braço, obrigando a distinta senhora a tocar no tecido, na zona do antebraço. Embora ligeiramente espantada com a ousadia do meu progenitor, Dona Guilhermina sorri, satisfeita, e comenta, deslizando os dedos sobre o algodão: - Tem razão, é mesmo suave.

A seu lado, o general funga, num óbvio sinal de incómodo com a intimidade física que se estabeleceu entre a sua mulher e o meu pai. Este, captando de imediato aquele sintoma de desconforto, não deixa o desagrado assentar arraiais e, virando as suas atenções para ele, pergunta:

- Senhor general, decerto gosta dos crepes flambeados do mestre Rapetti?

O pai de Luisinha tem um conhecido calcanhar de Aquiles: o seu estômago. Come como um desalmado e adora o Aviz.

Admira o talento do maitre, e os seus olhos faíscam de gula.

Apercebendo-se de que o peixe está prestes a morder o anzol, o meu pai lança-lhe uma sugestão: - Que tal convidá-los para uma ceia no Aviz?

Olha para todos, um a um, sorrindo, e quando sente que os pais de Luisinha estão inclinados a aceitar olha finalmente para mim e declara: - Ainda por cima, hoje não há, lá americanos, nem americanas, para nos importunarem!

Eu sei que ele já sabe. Os seus olhos não enganam. Porta­te bem, senão estrago-te o romance. Está preparado para me denunciar, me trucidar, se eu o contestar. É assim que ele negoceia, à bruta. Sustenho o seu olhar com elegância, mas Luisinha é uma rapariga esperta. O seu sexto sentido capta a nuance na voz do meu pai e observa-me, inquieta. O que se passou?

Um pouco mais tarde, quando entramos no meu Citroên - o meu pai dá boleia ao resto da família no carro que alugou ­ ela pergunta: - O que era aquilo dos americanos e do Aviz?

É subtil, mas vigilante. Não fala em «americanas», limita-se a referir os «americanos». Mas não deixou de perguntar. O meu pai é um safado, sabe que as mulheres não resistem a uma boa intriga. Decido contar-lhe o que é possível contar.

- No dia oito, houve lá um cocktail, para celebrar a vitória dos Aliados, e eu fui. Não percebi o que o meu pai quis insinuar, ele nem sequer lá esteve.

A rapariga parece satisfazer-se com a minha curta explicação.

À chegada, já no hall do hotel, apresento-lhe Harry e, enquanto ela vai à casa de banho, o dono do Aviz diz-me que está enervado.

Afinal, já não pode explorar as termas das Caldas de Felgueiras este verão, o Governo requisitou-as outra vez, para manter por lá uns alemães. E, para cúmulo, terá de lá ir falar com o gerente, pois há questões pendentes e investimentos feitos, que agora têm de ser acertados. Interessado, desafio-o a uma viagem juntos às ditas termas e digo-lhe que depois lhe explicarei as minhas razões, pois Luisinha entretanto regressa.

À mesa do restaurante do Aviz, apreciamos todos a famosa sela de cordeiro, um dos ex-líbris locais. Enquanto a deglutimos, o meu pai encanta a família Silva com histórias de caçadas no Kruger e de viagens de barco atribuladas pelos mares do Pacífico.

Puxando pelos galões da sua vivência cosmopolita, vangloria-se da sua suposta aceitação entre a sociedade nova-iorquina mais fina, e chega mesmo a impressionar Luisinha, quando jura conhecer «meio mundo em Hollywood», o que para a rapariga é semelhante a ter convivido com metade dos deuses do Olimpo.

Sentindo que a deslumbrou, bem como à sua família, o meu pai espera pelo aparecimento dos famosos crepes flambés para depois, com firmeza e frieza, me espetar uma farpa.

- Conheci muitas atrizes bonitas, bem mais belas do que a corista que o meu filho passeou por Lisboa: Os crepes maravilhosos ficam suspensos no ar, em garfos que esperam a pormenorização daquela intriga maldosa, mas ainda vaga, que me atinge a reputação e, sobretudo, preocupa a família Silva quanto ao destino do seu benjamim feminino. Satisfeito com aquele silêncio perigoso que gerou, o meu pai sorri-me, inebriado com o seu poder. Dou cabo de ti, se quiser. Depois, levanta o copo ao alto, num projeto de brinde que me tem como destinatário:

- O que vale é que já passou muita água sobre a ponte, não é assim, meu querido e recuperado filho?

A dimensão da sua malícia é gigantesca: depois de os perturbar com a afirmação inicial, tenta tranquilizá-los com a garantia de que qualquer episódio duvidoso já pertence ao passado. Porém, acrescenta no fim aquele sibilino «recuperado», que carrega dentro dele uma insinuação ainda mais gravosa. Como se as minhas tropelias fossem a causa de um desentendimento entre nós, que apenas foi ultrapassado pela passagem do tempo e pelo seu perdão paternal, mas não pelo meu arrependimento.

Há olhares críticos em Dona Guilhermina e nos irmãos, e uma enorme angústia estampada na cara de Luisinha, que me fita perplexa. Zangaram-se por causa de uma mulher?

O meu pai insiste. Fingindo girar a cabeça para a esquerda e observar a sala, liberta um remate final mordaz, num murmúrio que só se destina a ser ouvido por Luisinha, sentada desse seu lado.

- Cuidado que ela anda por aí outra vez ...

Este lembrete desespera ainda mais a rapariga, que não sabe como digeri-lo. Ela quem? Uma coisa é Luisinha contra-atacar os irmãos por causa das suas tendências nazis, defendendo-me.

Outra, completamente diferente, é desafiar o meu pai, no campo dos meus desejos, um território menos conhecido dela, onde o chão é fino e fácil de quebrar, como o gelo que cobre um lago no fim do inverno. Outra vez porquê? Amou-a?

Para minha surpresa, quem me salva é o general, que escutou o remoque do meu pai e me sorri, aprovando o meu comportamento. É assim mesmo. Com cumplicidade masculina e marialva, pisca-me o olho e diz:

- Rapazes são rapazes.

Depois desta profunda tautologia, enfrenta o olhar do meu pai e pergunta-lhe:

- Qual de nós nunca se divertiu?

À sua direita, os olhos de Dona Guilhermina chispam, mais de desconsideração social do que de ciúme íntimo. Não admito poucas-vergonhas à minha frente! Mas o general ignora o olhar crítico da esposa, e acrescenta:

- Já dizia Jesus: quem estiver limpo que atire a primeira pedra!

Dona Guilhermina enxofra-se e resfolega qualquer coisa que ninguém entende, mas o marido encolhe os ombros, sem desejar causar uma polémica. É a vez de ele optar por uma saída airosa, desviando o rumo da conversa. Leva a sua última garfada de crepe à boca e declara:

- Estes crepes são um manjar dos deuses! Um dia destes, tenho de convencer o meu amigo Salazar a vir cá almoçar comigo!

Basta esta breve referência para as diversões noturnas dos machos serem totalmente submersas por Salazar. Como água numa cascata, jorram da boca do meu pai adjetivos extraordinários ao homem que conduz os destinos de Portugal, e sinto crescer à volta da mesa um orgulho nacional fortíssimo. O meu pai gaba a decisão de manter a neutralidade na guerra, gaba a Exposição do Mundo Português, gaba o acordo dos Açores e das Lajes, gaba a forma como Salazar tem gerido a crise económica.

Nada disto é inocente. Ele é um exímio manobrador, e vejo que, seja o general, seja Dona Guilhermina, sejam os irmãos António e Luís, todos estão babados em orgulho, absorvendo as palavras do meu pai com um fervor quase religioso, apesar de elas se limitarem a repetir o que eles também repetem, dia sim, dia não.

Sabendo que os apanhou na rede, o senhor Jack Deane coloca então um ar de enorme desconsolo, baixa o tom de voz e revela, com uma ponta de amargura que parece sincera: - Sabem qual é uma das minhas maiores tristezas?

Todos esperam, olhando-o com avidez. Então, ele fixa o ramo de camélias que ocupa o centro da mesa e, emocionado, suspira, lamentando-se e deixando cair os ombros de forma intencional, como se tivesse sido vencido pela vida: - É ter vivido tantos anos em Portugal e nunca ter conhecido esse grande homem!

Eis finalmente o âmago da questão, a verdadeira intenção da sua ida ao Politeama e deste faustoso jantar! Ele não quis conhecer Luisinha, nem a sua família, para saber se a amo ou se eles são pessoas de princípios aceitáveis. O que ele quer é obter uma audiência com Salazar! Por isso, destilou toneladas de charme e encanto para cima da sela de cordeiro e dos crepes e daquelas alminhas, tão vulneráveis à glorificação do seu ídolo. O efeito é deveras positivo. O general, conquistado pelo palavreado cuidadoso e elaborado do meu progenitor, concede:

- Nunca se sabe, pode ser que um dia destes o conheça.

Esta singela profecia é suficiente para fazer os olhos do meu pai brilharem de ganância contida. Mas, hábil, não deita foguetes antes da festa. Por hoje, chega-lhe esta elegante tramoia. Caiu nas boas graças do casal Silva, lavrou uma garantia clara, mas apenas provisória, da minha honorabilidade e, por fim, entreabriu uma porta essencial, uma possível Sésamo do seu futuro, que o levará a São Bento e a Salazar. Sorri-me e quem o vir pensará que está orgulhoso de mim, mas não é verdade. Vês do que sou capaz?

Muito mais do que o seu desejo de chegar a Salazar, a mim preocupa-me Luisinha e os danos que as malícias por ele proferidas à mesa possam ter causado aos seus sentimentos. Mas só no regresso a casa, os dois no Citroên, conseguimos conversar. Ainda antes de arrancar, beijo-a suavemente na boca e sinto um enorme desejo de abraçá-la, mas contenho-me.

Ela sorri-me e pergunta: - O Jack quer mesmo ir comigo para a América, ou para o Brasil?

Admiro-a. Está mesmo uma mulher sofisticada, coloca os braços de forma mais sensual, fala de forma mais pausada e tem as pestanas com mais rímel, e mais levantadas. Elogio o seu vestido, a sua maquilhagem e ela ri-se. Reparou, outra vez. Depois, recordo­lhe as ordens do meu pai e a minha vontade de partir.

- Podíamos casar e depois ir.

Franze um pouco as pestanas, intrigada. Vai pedir-me a mão aqui, dentro do carro? Depois, declara: - As pessoas que se amam devem ficar juntas.

Amo-a. Um dia, vou pedi-la em casamento, mas hoje não.

Não sem ter um anel para lhe oferecer. Abraço-a, dou-lhe mais um beijo e depois acelero o Citroên, e começamos a descer a Fontes Pereira de Melo. Ao longo da curta deslocação até à rua onde eles vivem, Luisinha defende que a família precisa de tempo para se habituar ao nosso namoro, e prevê que o paizinho tenha um desgosto se ela viajar comigo. Sem a Carminho e sem mim ...

Procuro amenizar a sensação de abandono do general:

- Podemos vir cá no Natal e no verão.

Decidimos adiar uns tempos qualquer comunicação nossa e, depois de parar o Citroên à porta de sua casa, todos nos despedimos do meu pai, que parte, no seu carro alugado, na direção do Estoril.

Há um momento de dúvida, será que vou subir de novo, entrar mais uma vez naquela casa? Decido não o fazer, dou a mão a Luisinha, mostrando a intenção de me despedir dela na rua. A família avança então para a porta e Dona Guilhermina, ao ver-nos ficar para trás, ordena:

- Não se demore, menina, não quero comentários no prédio.

O general abraça-me e os irmãos dão-me dois apertos de mão desinteressados, mas esqueço-os num segundo quando desaparecem todos no interior do edifício. Fazemos um compasso de espera, para os deixar subir, e depois abraço de novo Luisinha e beijo-a, mais uma vez. Sinto a sua boca quente, a sua língua na minha, e abro ligeiramente as pálpebras. Ela está de olhos fechados, enquanto me beija, apaixonada, e a sua respiração agita-se. Instintivamente, as minhas mãos descem pelas suas costas, até ao rabo, mas Luisinha abre de imediato os olhos, apreensiva. Calma.

Chama-me à razão: - Jack, aqui não.

Suspendo as minhas intenções, com um sorriso que revela a minha vontade e ao mesmo tempo a minha pena. Quero mais, mas ela deita-me um olhar inquiridor. Na rua? Não insisto. Luisinha pode ser deslumbrada pelo cinema americano, mas não é rapariga para desonrar. O sexo terá de ficar para depois do casamento. Faço-lhe uma festa carinhosa na bochecha e reparo que há uma sombra no seu olhar.

- O que foi?

Encolhe os ombros, observa a avenida vazia. Tenho medo.

Depois, respira fundo, ganha coragem e pergunta: - O seu pai estava a falar daquela mulher por quem o Jack se encantou há uns anos?

Alice. Luisinha lembra-se. Olha-me, alarmada. O amor assusta sempre. Ela voltou? Há uns anos, contei a Luisinha quem era Alice. Nessa altura, não estava apaixonado por ela, embora talvez ela já estivesse por mim. Mas agora era diferente. Agora, amo-a, não a quero perder. Olho nos seus olhos e o que vejo é um pedido.

Não me minta.

- Isso passou-se há dois anos, Luisinha. Já acabou. Nunca mais a vi. Nem quero ver.

Ela força um sorriso, mas continua aflita. Não me magoe.

Abraço-a mais uma vez, aperto-a contra mim.

- Amo-a.

Ela sorri-me, a sua dúvida desapareceu. Eu também o amo.

Beijamo-nos e depois despedimo-nos. Através da grande porta de vidro do seu prédio, vejo-a subir as escadas. Vira-se para trás, dizendo-me adeus. Amo-a, estou feliz, certo do futuro com ela.

Alice já não existe, dissolveu-se do meu coração. Regresso ao Citroên, contente, sem saber ainda que, semanas mais tarde, tudo irá mudar.

- Mas, avô, quando viu a Alice?

Estás à espera, querido neto, eu compreendo-te. Mas ainda passaram uns tempos até ela me aparecer. E ainda fui às Caldas de Felgueiras, à procura de nazis e de tesouros.

 

Caldas de Felgueiras, 16 de junho de 1945

As termas das Caldas de Felgueiras são um edifício antigo e granítico, e estão repletas de alemães. Segundo o gerente, o senhor Pereira, nos explica, há presentemente dois tipos deles aqui instalados.

Uns, um grupo de cerca de quarenta pessoas, veio da Argentina.

Foram deportados e chegaram a Portugal há já vários meses, porém ainda não foi conseguido um transporte que os leve para a Alemanha.

O segundo grupo, no local há umas semanas, é mais importante. São trinta dos nazis mais perigosos e influentes que estavam em Portugal, gente da Gestapo, das SS e do SD, o serviço de informações do partido nazi, e também alguns da Abwher e da Embaixada, adidos navais ou militares. São a nata da nata, os herdeiros de Hitler em Portugal, e há entre eles um subgrupo subversivo já formado, chamado Nazis de Ferro, que pretende o regresso do Terceiro Reich e, dizem os rumores que correm em Lisboa, prepara a desforra da guerra.

Conseguiram já conquistar para a sua causa alguns dos importantes alemães que vieram da Argentina no primeiro grupo, e são comandados pelo chefe do SD em Portugal, o coronel Lang, um tipo que conheço há vários anos, dos meus tempos de espião no MI6.

Foi por saber que eles tinham sido enviados para as Caldas de Felgueiras, e aproveitando a coincidência de Harry estar envolvido num projeto com as termas, que lhe pedi que me deixasse acompanhá-lo nesta viagem ao Norte. Caldas de Felgueiras fica próxima de Viseu e viemos desde Lisboa os dois, no meu Citroên, tendo pernoitado no Hotel do Buçaco.

É evidente que, com a guerra terminada devido à rendição da Alemanha, se iniciou um corrupio de nazis na Península Ibérica, que para eles é uma espécie de santuário temporário, pois nem Franco nem Salazar estão dispostos a fazer tudo o que os Aliados querem, e deixam-nos circular relativamente à vontade.

Tanto eu como Harry sabemos das complexas negociações que Salazar tem desenvolvido com os Aliados acerca das questões relativas aos alemães. Com a teimosia que sempre o caracteriza, o presidente do Conselho ainda não aceitou as condições dos vencedores da guerra para regular as deportações, o congelamento dos bens alemães em Portugal, ou o tratamento dos prisioneiros de guerra e dos nazis considerados perigosos. Vai adiando um acordo, sem pressas, e para já limitou-se a colocar os nazis em locais destes, a que o regime chama «campos de residência fixa», e onde eles (e elas, pois também há várias mulheres) circulam livremente entre as termas e a vila, mas que não podem abandonar, a não ser com autorização superior.

Quando lhe perguntamos se é assim, o senhor Pereira olha para nós e arqueia as sobrancelhas. Era bom que fosse. Na verdade, explica, falando mais baixo, com receio de que alguém o oiça, os nazis gozam de total liberdade e saem das termas sempre que lhes apetece, sem sequer pedirem autorização.

O senhor Pereira aponta para a janela. Lá fora, num grande terreiro, estão parados vários carros, desde Mercedes a Volkswagens.

- Esses carros alemães são deles e passam a vida a ir a Lisboa e ao Porto, com o Lang e com outros. A PVDE fecha os olhos.

Depois, o senhor Pereira roça o indicador no polegar, dando a entender que a polícia política de Salazar está a ser subornada pelos alemães, para os deixar andar à vontade. Encolhendo os ombros, acrescenta:

- Mas nem era preciso!

Baixando mais uma vez a voz, o gerente das termas conta que a PVDE tem fortes simpatias pelos nazis, em especial por Lang, e que se vê perfeitamente que houve muita colaboração entre todos no passado. Por mais que os Aliados protestem junto de Salazar, estas lealdades antigas ainda contam muito, e não quebram só porque a milhares de quilómetros de distância os nazis estão a ser presos.

O senhor Pereira adianta:

- Além disso, os tipos têm muito dinheiro. Não sei donde ele vem, mas não lhes falta.

Conta que Lang e os seus mais próximos estão sempre a exigir champanhe, caviar, patés, vinhos franceses, e que muitas das viagens ao Porto ou a Lisboa são para se abastecerem de luxos. Um dia destes, até trouxeram um pato recheado, que Lang e mais alguns comeram alegremente na varanda. De repente, o senhor Pereira arqueia de novo as sobrancelhas e exclama: - E as meninas! Nem queiram saber o que isto é!

No primeiro grupo, vindo da Argentina, há algumas mulheres e crianças, e gente de todas as idades, mas desde que chegou o segundo grupo, composto apenas por homens entre os trinta e os cinquenta anos, o senhor Pereira foi obrigado a colocar as mulheres e as crianças numa zona mais afastada do edifício, deixando a ala oeste, a mais luxuosa e maior, para os recém-chegados, pois estes exigiram que fosse possível trazer «meninas» para as termas, a fim de os satisfazerem sexualmente. O senhor Pereira abana a cabeça, desagradado, e murmura:

- É uma pouca-vergonha. Ainda ontem, estiveram aí duas ou três, de Viseu.

Hoje de manhã, embora a medo, o senhor Pereira tentou falar com o coronel Lang, alertando-o para a falta de respeito que tal prática demonstrava, mas o nazi desatou a insultá-lo de uma forma grosseira, dizendo que conhecia muita gente influente em Portugal e que o conseguia despedir num segundo, se quisesse, ao ponto de o senhor Pereira ter recuado e evitado mais celeuma.

A arrogância de Lang era imensa, o homem julgava-se com as costas quentes e fazia o que queria, satisfazendo todos os seus caprichos, com a PVDE a fechar os olhos, ou mesmo a ajudá-lo ativamente.

O senhor Pereira debruça-se para a frente, aproximando-se de mim e de Harry, e conta: - Foi a PVDE que foi buscar e levar as meninas a Viseu.

Era uma ironia do destino. Ao mesmo tempo que o Estado Novo se dedicava a combater a prostituição no país, que obviamente aumentara muito durante a guerra, a PVDE trazia meninas para os nazis das Caldas de Felgueiras, à socapa!

Já quanto aos Nazis de Ferro, o que são exatamente e o que pretendem, o senhor Pereira está menos seguro. Como não fala alemão, não os entende. Vê-os a executarem as saudações hitlerianas, a cantarem o hino nazi, a fazerem grandes proclamações, mas não sabe de planos concretos, nem de especiais segredos.

Olha para mim e diz: - Se estiver interessado em falar com alemães, há um que fala consigo de certeza!

Chama-se Otto e é um pote de banha, careca e com óculos, que trabalhou na Embaixada alemã em Buenos Aires, durante a guerra. Está nas Caldas de Felgueiras há tempo suficiente para conhecer os cantos à casa e, como fala espanhol e português, ajuda o senhor Pereira a perceber quem é quem, a falar com os outros, e vai contando uns segredos pelo caminho.

A meu pedido, o senhor Pereira chama Otto ao seu gabinete.

A troco de umas benesses monetárias, o alemão desfia o que sabe sobre os Nazis de Ferro e suas intenções malignas. Diz que Lang já tem planos preparados para a reconquista da Alemanha, e que são esperados em breve altos comandos nazis que andam fugidos pela Europa, mas já sabem que a reconquista e a desforra começará em Portugal, país a partir do qual se organizará a resistência à ocupação da Alemanha pelos Aliados. Otto adianta ainda que Lang tem muito dinheiro disponível, pois Salazar não implementou a «congelação de bens alemães» que os Aliados exigem. Por fim, cauteloso e pessimista, Otto revela que lhe parece que há mais entusiasmo do que realidade naqueles mirabolantes planos.

Pergunto-lhe se ouviu falar de Mengele, o criminoso de Auschwitz, que fugiu e, diz-se, estará a caminho de Portugal. Otto desconhece a situação, mas sabe que Lang espera a chegada de importantes nazis e ouviu dizer que eles virão pelo Algarve, e não por Vilar Formoso ou por Elvas, pois as rotas de fuga terrestre estão mais vigiadas do que as mediterrânicas.

Otto nada sabe de tesouros nazis. Ouviu dizer que há fugitivos que trazem quadros roubados, obras de arte, mas ali, nas Caldas de Felgueiras, não apareceu ainda nenhum com tesouros valiosos.

Ali, o perigo é Lang, as suas ideias loucas de ressurreição do Terceiro Reich, que podem transformar Portugal num local de peregrinação nazi e num viveiro dessa ideologia. Terminada a curta conversa, dou ao pançudo mas bondoso alemão a minha morada do escritório, dizendo-lhe que a forneça a qualquer fugitivo que queira vender tesouros. Ao ouvir o nome que indico a Otto, Harry olha-me e arqueia as sobrancelhas. Jack Deane? Ele sabe que aquele não é o meu nome completo, mas o do meu pai.

 

Londres, final de maio de 1996

Que tormenta, Paul, ir a Lisboa por causa de Alice! Não se pode exigir de um idoso uma viagem dessas, e ainda por cima por essa razão, para visitar uma velha amante, que um dia foi bela e fogosa, que um dia nos encantou com o seu corpo, mas hoje já não é quem foi! Como eu, aliás! Que podem fazer dois velhos de mais de oitenta anos? Dar as mãos e fingir que não têm Alzheimer?

Recordar pormenores que só aumentam a nossa tortura, o nosso desespero por já não sermos jovens?

- Vá lá, avô, não exagere.

Paul, uma coisa é eu contar-te a história toda, outra é tu continuares a insistir que eu me vá encontrar com Alice em Portugal! Falas como se fosses um arqueólogo que, no Egito, acabou de descobrir um túmulo de um faraó. Como se a Alice fosse o Tutankhamon! Descobriste uma mulher, que grande coisa, uma velha rameira lisboeta, e daí? Tenho de atravessar o canal da Mancha, sobrevoar França, o golfo da Biscaia, Espanha e aterrar na Portela, só para te fazer sentir bem?

- Sim, tem de vir, é óbvio que tem de vir.

És mesmo um teimoso, é o que é. Já não te posso ouvir!

Está bem, eu vou! Rendo-me, como a Alemanha. Mas, 161

deixa-me dizer-te, imponho condições! Tens de ser tu a marcar os bilhetes e o hotel, pode ser o da Lapa outra vez, gostei muito de lá ter estado. E, já agora, trata de me arranjares um carro, um motorista que me venha buscar a casa nesse dia e me leve até Heathrow, aquele aeroporto odioso, onde se anda quilómetros só para chegar ao terminal que queremos. E podes também alugar uma cadeira de rodas! Quero alguém que me empurre até à gate, não tenho pernas para andar tanto tempo, nem mesmo em cima daqueles tapetes rolantes infindáveis, lentos e enervantes.

- Em que dia quer vir, avô?

Porque me vou sujeitar a isto, a vê-la, a confrontar-me com aquela mulher ambígua, aquela mulher fugidia, que me mentiu tantas vezes, que me fez sentir um palerma, um tonto inexperiente, quando me ludibriou da primeira vez, e que me tentou enganar uma segunda, no final da guerra, só porque queria dinheiro?

Paul, ela só pensava em dinheiro, nunca vi mulher tão interesseira! Era só alguém abanar umas notas e lá ia ela, dormindo com este e com aquele só para encher os bolsos. Por causa dela estive para perder o amor da minha vida, Luisinha, a tua avó. Eu juro-te que já estava apaixonado por Luisinha, decidido a fugir com ela, a amá-la até à eternidade, mas depois Alice surgiu e confundi-me, desnorteei-me. Por causa dela, Paul, aconteceu o que sabes com o meu pai. Foi sempre ela quem se intrometeu em tudo, parecia que eu não podia relacionar-me com outras mulheres, ela estragava de imediato os meus afetos. E que também não podia ter homens por perto, que ela tinha de se meter com eles! O Michael, o Francís, o meu pai, houve sempre suspeitas, com ela nunca se sabia a verdade.

- Com o seu pai também, avô?

Ora, Paul, sei lá! Aqueles dias de 1945 podiam ter sido diferentes, se ela e o meu pai não tivessem aparecido para me infernizar a vida. Paul, aqueles dois podiam-se juntar a um canto, eram barro da mesma qualidade. Quase vivi uma tragédia à conta deles e das suas intenções gananciosas. Sim, quase me atiraram para um precipício profundo, donde não havia maneira de sair. Foi Luisinha quem me salvou da perdição, do fogo dos infernos. Não foi Alice, essa condenou-me.

E agora Paul, eu vou a Portugal dizer-lhe o quê? Olha, Alice, passaram mais de cinquenta anos, mas continuo a considerar-te uma mentirosa, uma impostora e uma grande cama, isso não te posso acusar de não seres. E digo-lhe isto à frente dos filhos, dos netos, dos bisnetos? Por favor, não me obrigues a isso! Tem juízo, Paul, não vamos perder a compostura por coisas do passado, que não passam de roupas velhas enfiadas numa mala, guardada na garagem da minha memória e sem qualquer valor.

Ela nunca me revelou certas coisas, para quê acreditar que agora me vai contar verdades? Eu era um pouco nabo nesses tempos, mas hoje já não sou. Vivi muito e aprendi muito sobre a natureza das pessoas, o seu caráter, a razão por que fazem as coisas. Há umas que agem por princípios, outras por emoção, outras que não agem e ainda outras que só têm interesses. Alice era destas últimas e não são cinquenta anos que mudam a alma de uma mulher bonita, fogosa, fantástica, alegre, emocional, instável, perigosa, ardilosa, inteligente, ansiosa, rápida, batoteira, esperta, bígama, preguiçosa, gulosa, teatral, venal, inimitável, bestial, apaixonada, bombástica, cínica, angélica, demoníaca, um Satanás sem cauda, brochista, animalesca, perfumada, empolgada, infantil, ciumenta, controladora, poderosa, mamalhuda, tonta, servil, histérica, parva, aventureira, enjoada, esfomeada, fantasiosa, animada, desnorteada, possante, traidora, imoral, simplória, venenosa, pacífica, atrevida, ladrona, divertida, ávida, contorcionista, libidinosa, intrigante, abrasadora, bera, requintada, rabuda, dolente, pernilonga, inflamada, carnívora, balsâmica, turbulenta, barata, juvenil, putéfia, labiríntica, vadia, mole, autoritária, engenhosa, perfumada, invejosa, ensandecida, chupista, sádica, laboriosa, masoquista, sagaz, letal, falsificadora, dotada, incandescente, orgulhosa, ambiciosa, erótica, judiciosa e, só às vezes, serena.

- Avô, esteve a beber?

Achas que estou bêbado Paul? Sim, talvez, bebi um bocado, isto não é nada fácil para mim, o que pensas tu, que é só desbobinar a história e que fico indiferente? Não fazes ideia do que sinto!

- Está zangado comigo, avô?

Se estou zangado contigo? Não, claro que não, desculpa ...

Não tenho o direito de te fazer sentir mal, eu prometi contar-te a história toda. Quando regressou ela, meu querido neto Paul?

Julgo que foi em julho de 1945 ... Sim, foi no início desse mês, apareceu finalmente a Dona Alice, cuja sombra já vagueava por Lisboa há algum tempo. Não sei porque foi naquele dia, ela nunca me explicou, mas sei que por essa altura o Manfred, o homem do tesouro, do retrato da mãe de Hitler, estava ainda por Espanha, a saltitar entre quartos alugados, a tentar passar despercebido, com o baú sempre escondido debaixo das camas, e mesmo assim ele era previdente, pois tirava as coisas valiosas e guardava-as noutros locais, fosse no quarto, fosse na própria roupa. O homem andou com os retratos nas cuecas, não fosse perdê-los, e isso não se passou num dia ou dois, que ele esteve em Espanha mais de um mês! Como um urso hibernado, para ver se os judeus não davam com ele.

Não sei bem quando chegou a Madrid, quanto tempo lá esteve, o que sei é que o pequeno baú continuava com ele, bem como a pistola de Hitler e os dois retratos. E sei que andou gente atrás dele, mas se safou sempre.

Nesses dias, ele ainda pensava que era dos da laia de Alice, dos que se safam sempre. Mas não era verdade. Ela era única, um portento de astúcia, de vigor ludibriante, parecia um mágico, daqueles que conseguem cortar ao meio pessoas e depois fazê­las aparecer inteiras, minutos mais tarde. E foi como por magia que um dia apareceu, com um descaramento que só visto, à porta da minha casa, na rua dos Remédios à Lapa.

Querido Paul, espera um pouco, vou servir-me de mais whisky, isto está a pedir um duplo ...

 

Lisboa, 2 de julho de 1945

Desde que o meu pai chegou a Lisboa, visto-me melhor, como um menino pobre que enriqueceu de um dia para o outro.

O senhor Jack Deane forçou-me a acompanhá-lo aos alfaiates de Lisboa, que frequenta com regularidade apesar de os detestar, pois considera-os armazéns de mau gosto, completamente fora de moda.

É claro que os incentivos de Luisinha ajudam. As mulheres que nos amam gostam mais de nos vestir do que de nos despir.

Sem elas estaríamos ainda nas cavernas, apenas com uma tanga de peles a proteger o baixo-ventre. Assim, naquele quente final de manhã acabara de me aprumar num fato cinzento-claro, de linho, com gravata a condizer e lenço na lapela, quando a campainha da porta tiniu. Mal abro, fico em estado de choque. À minha frente está Alice, a mulher por quem me apaixonei dois anos antes. Nasce­me de imediato um nó na garganta e não consigo falar.

Ela ri-se, divertida. Que nervos, homem! Mostra superioridade na gestão das emoções, um evidente domínio da situação.

Enquanto eu suo da palma das mãos, ela goza. Já se desapegou da paixão mais depressa do que eu, que me sinto subjugado e entontecido.

- Jack Gil, há quanto tempo ...

Está ainda de chapéu na cabeça e parece esperar que a convide. Posso entrar? Vendo que não falo, ela invade o corredor de minha casa e só depois me beija na cara. Como se isso não lhe chegasse, abraça-me. Apesar de rígido como um poste, no meu interior explodem vagas de adrenalina, enquanto ela, calorosa, se espalma contra mim.

Inspiro o seu perfume. Não é o mesmo do passado. Alice cheirava a alfazema, agora é a laranja. Mas continua bela, embora tenha engordado um pouco, talvez com as manteigas e os leites dos Açores.

Ela recua, sente a minha relutância em a apertar. Não abraças a tua velha amiga? Orgulhosa, tenta disfarçar o desapontamento e diz:

- Deixa-me olhar para ti.

Observa-me de cima a baixo, com os seus olhos de corça. Estás diferente! Examina a minha indumentária, impressionada com O bom gosto do meu fato, e parece perplexa. Terás enriquecido? Força um sorriso e pergunta: - A vida corre-te bem, Jack Gil?

Tira o chapéu e solta o seu cabelo negro, que lhe cai pelas costas, ondulado. Quase a gaguejar, conto-lhe que o meu pai está em Lisboa e me obriga a usar trajes novos. Ela ergue as sobrancelhas, intrigada. O teu pai? Depois declara: - Pensei que fosse a tua noiva.

Engulo em seco. O jogo começou. Ela ri-se, bem-disposta. Já sabes como eu sou! Enquanto caminha para a sala e se senta no sofá, com o à-vontade de quem conhece os cantos à casa, afirma: - Que coincidência engraçada, Jack Gil... Quando te conheci também estavas noivo, mas da irmã mais velha, a que morreu.

Agora, que nos reencontramos, estás noivo outra vez, mas da mais nova!

Há mil implicações naquele raciocínio. Ela sorri-me, maliciosa. Esses teus noivados ... Sabe que nunca dormi com Carminho, a primeira noiva, e suspeita de que nunca devo ter dormido ainda com Luisinha, a segunda noiva. Ergue as sobrancelhas, como se retirasse uma conclusão certa, mas desagradável. Andas a pão e água ...

Recupero a compostura e sento-me numa cadeira. À sua frente, mas a uma distância segura, deixando uma mesinha entre nós. E declaro: - A Luisinha é muito diferente da irmã.

Falar de Luisinha faz-me sentir seguro, ela é o meu porto de abrigo. Alice sorri, desdenhosa. Diferente em quê? E riposta, sibilina:

- É o que me dizem, Jack Gil. Mas não ao ponto de abrir a flor para ti ...

Felina, ataca o ponto fraco da outra, a sua abstinência sexual.

Implícita no seu argumento, e na sua atrevida postura, está a memória do que já vivemos na cama, da nossa voracidade mútua.

Compete com a rival e é feroz, pincelando de veneno as suas frases, como um índio faz à sua lança. Inspira, olha-me e enche o peito de ar, relevando ostensivamente o poder sedutor dos seus seios. Ela não é como eu.

Rio-me, dando-lhe a entender que a sua má-língua me diverte sem me atingir, e pergunto: - Vieste cá para evitar que eu me case? Estou lisonjeado!

Ela liberta uma curta gargalhada, mas fica irritada, é uma ditadora dos afetos. Não me desprezes! Depois, encolhe os ombros e murmura, com um toque de enfado forçado:

- Jack Gil, por favor.

Desferiu um primeiro ataque a Luisinha e agora recua, fingindo desinteresse. O jogo está lançado, mas é altura de fazer de conta que não. Mudo de assunto e conto-lhe o que ouvi dela nas palavras dos outros, nos últimos tempos: - Sei que estiveste nos Açores. Sempre pensei que tinhas ido para Inglaterra ou para a América. O Michael nunca me contou nada, tinha medo de que a Gestapo te apanhasse.

Alice fica séria ao ouvir falar do meu amigo. Coitado. Depois diz, impressionada: - Ouvi dizer que morreu à tua frente.

Descrevo o episódio, o tiro do nazi, Michael a partir deste mundo nos meus braços. Alice escuta o relato de olhos postos no chão, mas depois levanta a cabeça para mim, confirmando.

Foi isso que me contaram. Suspira: - A última vez que o vi foi nos Açores.

Em 1943, O submarino deixou-a na Terceira, onde se começara a construir uma base militar nas Lajes. Alice integra-se na vida local e, quando os britânicos abandonam a ilha, a sua guarda é transferida para os americanos. Adota um nome falso e dá aulas aos filhos dos oficiais instalados em São Miguel. No verão de 1944, Francis vai visitá-la e propõe-lhe o regresso ao continente

a troco da colaboração com o OSS americano. Alice sorri, agora parece genuína, sem truques, quando confessa:

- Tenho saudades dos Açores. Foi uma época serena, das poucas que tive.

Acredito que aquele interregno a pacificou, mas é-me difícil imaginá-la como uma metódica, mas simples, professora. Sobra-lhe em tédio o que lhe falta em agitação, turbulência, risco.

E dinheiro. A precisar dele com urgência, aceita a proposta de Francis. O americano está convencido de que os conhecimentos de Alice sobre as redes nazis em Portugal lhe podem ser muito úteis. Voam para o continente juntos, e começa a colaborar na operação Safe Heavens, fornecendo informações preciosas sobre as movimentações dos alemães em Lisboa e noutros locais do país. Investiga os Nazis de Ferro, a principal preocupação dos americanos, mas age de forma diferente do que fez no passado.

Sem nostalgia, Alice declara: - Já não sou «Dragonfly».

Foi como «Dragonfly», o seu nome de código de espia dupla, que me enganou em 1943, foi por isso que perdi totalmente a confiança nela. Alice aponta-me um olhar neutro. O que queres?

A vida é assim. Contraponho que, embora ela já não seja espia dupla para os alemães e para os ingleses, o seu trabalho atual não é assim tão diferente. Concede, com um aceno de cabeça. Pensas que sou a mesma ... Revela-me que reativou os seus contactos do passado com os portugueses que colaboraram com os nazis. Todos acreditaram na falsa versão que Michael colocou a correr, de que, em 1943, ela fugira para Espanha com receio de ser presa pela PVDE. Com malícia no olhar, acrescenta:

- Reencontrei o Fulgêncio Nobre.

Aquele nome paira sobre a sala como um fantasma. O industrial nortenho foi um dos motivos de zanga entre nós. Ela dormia com ele. Mas não quero recordar esses tempos, não reajo. Alice nota a minha apatia perante as suas provocações. Examina-me, levemente intrigada. Já não tens ciúmes?

De repente, despe o casaco, tem calor. Veste uma camisa branca, imaculada e apertada, que lhe realça as formas sensuais.

Sorri, satisfeita. Gostas? Esta mulher é perigosa, junta uma beleza rara a uma disponibilidade vulgar. Recupero memórias: ela nua, na minha cama; ela em cima de mim, aos gritos; ela debaixo de mim, de olhos fechados. Alice parece que está dentro do meu cérebro e sorri, agradada. Eu também me lembro. Porém, é tempo de um novo interregno na sua tentativa de sedução. Volta a ficar séria, e diz: - Já ouviste falar em Auschwitz?

Quem não ouviu? Alice refere a possibilidade de o médico Mengele, o assassino desse campo de concentração e um dos maiores carrascos de Hitler, poder estar em Portugal.

De súbito, e contra a minha vontade, dou uma gargalhada.

Ela fica surpreendida, arqueia as sobrancelhas. O que foi? Eu explico: - Lembrei-me da nossa discussão sobre Hitler.

Ela também se ri. Recorda-se bem e, num gesto brusco, descalça os sapatos, um movimento que tem tanto de imprevisível como de perturbador. Naquela noite, a discussão fora tão acesa que ela me atirara um sapato à cabeça. Ainda a rir, questiona-me: - Tu bateste-me, lembras-te?

Di-lo com gozo, semicerra as pálpebras, brincalhona. E eu gostei. Depois, acrescenta: - Tu gostavas muito de me dar palmadas ...

Esta mulher é um suplício. Num segundo, foi da violência ao sexo. A estalada tinha sido uma agressão, de que sempre me arrependi, mas as palmadas eram diferentes, dadas no auge da excitação, eram as minhas mãos abertas a bater no rabo dela, enquanto a possuía. Ambos gostávamos. As memórias regressam, aceleradas, e sinto-me excitado. Sernicerrando agora só o olho direito, Alice olha para as minhas calças e ri, sabe que estou em fogo. E ainda gostas!

À pressa, tento escapar daquele forno e relembro: - Estavas a falar de Mengele ...

Alice faz uma careta instantânea, contrariada. Que chato.

Mas, num segundo, recupera a seriedade. Tem uma capacidade extraordinária para mudar de expressão, não me posso nunca esquecer de que foi atriz de teatro, em Moçambique. Afirma: - Ouvimos dizer que está no Algarve.

De seguida, gaba os meus conhecimentos de espionagem, defende que sou das pessoas que melhor conhecem as redes alemãs do Algarve. É verdade. Fui lá várias vezes, com Michael, e escrevi relatórios para o MI6. Por isso, precisa da minha ajuda.

Nem Francis, do lado dos americanos, nem Fulgêncio, do lado dos portugueses, conhecem as células nazis ainda ativas no Algarve.

Além disso, é voz corrente que os fugitivos, como Mengele, virão a Lisboa apanhar barcos, para o Brasil ou para a Argentina. E talvez juntar-se aos Nazis de Ferro, para, juntos, tentarem relançar o Terceiro Reich.

Mantendo-se descalça, Alice faz uma pausa e depois muda de novo a expressão. Agora sorri, convidativa, e murmura: - Hoje está mesmo calor...

Sim, é verdade, está uma canícula, cá dentro e lá fora.

Levanto-me e vou à cozinha buscar água fresca. Quando regresso, de copos e jarro na mão, reparo que subiu as saias, enrolando-as, apanhando-as com as mãos. Destapou as pernas, os joelhos e até um pouco das ancas. A visão da sua pele macia, e daquela terra prometida, excita-me ainda mais, mas faço um esforço para evitar olhar. Encho um copo, entrego-lho e ela sorri. Bebe lentamente, a observar-me. Agrada-te o que vês?

Depois, pousa o copo na mesinha em frente ao sofá e diz: - Por isso preciso de ti, Jack Gil. Tens contactos nas alfândegas, nas docas, podes ajudar-me a descobrir os navios que eles usam para fugir.

Alice é honesta, desta vez não me omite a sua condição de espia dupla, mas não gosto do que ouço. Acendo um Gauloise, dou uma passa e aviso-a dos perigos de jogar dos dois lados. Ela sabe como isso acabou da primeira vez, em 1943. Contudo, defende que os tempos são outros, e justifica-se com imperativos morais:

- Estes são criminosos de guerra, Jack Gil. Não os podemos deixar sair de Portugal, têm de ser apanhados!

Por momentos, parece-me que estou a falar com Ruth, a milionária judia, pois os argumentos são semelhantes. Observo-a com atenção, desconfiado. Ela franze a testa. O que foi? Eu pergunto: - Só trabalhas para os americanos?

Fica confundida, não percebe. O que queres dizer? Digo-lhe que sei que Ruth Vanderbildt a tentou contratar. Enervada, Alice abana o indicador da mão direita. Nada disso! Explica-se: - Não gostei dessa mulher. Deve pensar que basta abanar umas notas à minha frente para eu ia a correr. Já não sou assim!

Cada uma com o seu ponto de vista: Ruth revelou-me que Alice exigiu dinheiro de mais, Alice jura-me que recusou o dinheiro dela. Ambas convincentes na sua narrativa. Em quem acreditar?

Nesse momento, Alice verte água do jarro na mão direita, molhando-a, e depois leva a mão à anca e pousa-a na pele, refrescando-se.

- Que agradável. ..

Repete o exercício várias vezes, nas duas pernas, sentindo que estou preso aos seus movimentos vagarosos, cada vez mais excitado. Consigo ver a bainha das suas cuecas, o rebordo das suas nádegas, e o meu cérebro é de novo percorrido por vertiginosas lembranças. Ela olha-me, a sorrir. Queres? Ser torturado deve ser parecido com isto.

Depois, Alice volta a ficar séria e diz: - Só trabalho para o Francis. Cada macaco no seu galho.

Essa senhora tem as suas intenções, nós temos as nossas. E quanto a enganar o Fulgêncio e os amigos nazis, depois de ter sabido dos campos de concentração, até me dá gosto traí-los!

Suspiro, dou uma baforada e repito a minha preocupação de há pouco: - Cuidado, Alice. Nem todos os nazis foram enfiados nas Caldas de Felgueiras. Há tipos perigosos por aí. Se descobrem que os andas a tramar ...

Num primeiro momento, ela parece comovida com o meu protecionismo. Obrigado. Mas depois encolhe os ombros e empertiga-se, corajosa: - Sei cuidar de mim!

Sorrio, dou mais uma passa no cigarro e comento em voz baixa: - Disso não tenho qualquer dúvida.

Esta frase provoca-lhe uma súbita irritação. Olha para mim, semicerrando as pálpebras. O que queres dizer? Depois, volta a verter água na mão e, desta vez, leva a mão ao pescoço e ao nascer do peito. Abre os botões da camisa e reinicia o exercício, refrescando-se. De cada vez que leva a mão acima, abre a camisa mais um pouco, e agora já vejo os contornos dos seus seios, onde tantas vezes me perdi. Mira-me de novo. Queres? Por fim, suspira, lânguida, e pergunta:

- O que te irrita tanto em mim, Jack Gil?

Ao longo da conversa, já tirou o chapéu, já despiu o casaco, já se descalçou, já subiu as saias, já abriu a camisa. Mais óbvia é impossível. Sorrio-lhe e respondo:

- Que mistures o amor e a espionagem. É isso que me irrita em ti, Alice. E que te vendas tão barato ...

Fulmina-me com aqueles olhos cor de azeitona, agora é uma corça zangada. Estupor! Tenta manter a compostura e rosna, entredentes: - Não tenho um paizinho rico que me paga o salário e me compra fatinhos de linho.

Encolho os ombros, indiferente à sua crítica e, muito calmo, pergunto-lhe: - Porque não continuas professora? Ou voltas ao teatro? Não estás farta de vender a alma ao diabo?

Enervada, Alice levanta-se do sofá num pulo e as saias ficam suspensas a meio da anca, sem descerem totalmente. Parece uma estouvada, está corada do calor, e vai até à janela assim, em passo apressado. Talvez tenha pensado em abri-la, para deixar entrar uma brisa, mas hesita e não o faz, limita-se a olhar para a rua.

Depois, vira-se para mim, ainda uma corça zangada, mas já mais suave. Desprezas-me. Defende-se: - Tu achas que sou uma mentirosa, uma rameira, que só penso em dinheiro. Mas, Jack Gil, diz-me lá, onde errei? Durante anos, trabalhei para o Michael em segredo, enganei os nazis e corri enormes riscos só para ajudar os ingleses. Agora, faço o mesmo para os americanos. O que tem de mal? O que te irrita é que me paguem bem por arriscar a minha vida? Mas, Jack Gil, eu não sou rica, não nasci em berço de ouro como tu, tenho de me esfolar para ter que comer à noite. Cheguei a Lisboa com uma mão atrás e outra à frente, precisei de me fazer à vida! É muito fácil para ti, que és um menino rico e mimado, teres esse ar superior! Claro, nunca te faltou a comidinha na mesa!

Fala com paixão e inteligência e, tirando a parte do «mimado», tudo o que diz é verdade. Mas ainda não lhe perdoei as mentiras, nem a facilidade com que se deita com os homens. Apago o cigarro e pergunto: - É isso que queres para o teu futuro? A guerra está a acabar.

Ela encolhe os ombros: - Não tenho alternativas. Preferias que abrisse um bordei?

Sorrio da sua piada, mas não a desculpo e digo: - Para ter comida na mesa, não é preciso dormir com tantos homens.

Ela incendeia-se e avança para mim; muito corada. És insuportável! Passa em frente à minha cadeira, de novo a caminho do sofá, e comenta em voz baixa: - És tão ciumento, Jack Gil.

Rio-me do seu ataque, desprezo-o, e relembro-Ihe:

- Ciumento, eu? Por favor, Alice. O Michael, o Fulgêncio, tantos outros, e agora o Francis! Não sabes parar? - Irritado, resmungo: - Contigo vai tudo à frente. E atrás também!

Já sentada, Alice abre muito os olhos, entre chocada e divertida com a minha última afirmação. Estás com ideias? Mas eu ignoro o seu olhar lascivo e prossigo:

- Deves achar que basta abanar as perninhas à minha frente para eu voltar a cair-te nos braços!

Alice fica desorientada, como um coelho iluminado pelos faróis de um carro, a olhar para mim. Sacana. Mas permanece calada, não me contesta. Acendo mais um Gauloise, dou uma passa e pergunto: - Nos Açores, na noite em que o Michael foi ter contigo, sabias que eu também lá estava?

Ela franze a testa. O quê? Bate as pestanas, pensa um segundo e nega: - Não, claro que não! Ele nunca me disse!

Dou mais uma passa. Sem forma de confirmar a verdade, mesmo assim insisto: - Vocês dormiram juntos, nessa noite?

Alice enfrenta o meu olhar. Para que queres saber? Depois suspira e murmura: - Jack Gil, podia ter acontecido, mas não aconteceu.

Há muito tempo que desejo esclarecer a natureza da relação dela com Michael. Nenhum dos dois foi límpido e cristalino, o que me deixou uma suspeita permanente. Quão profunda foi a traição dela? E a dele? Lanço nova pergunta: - No passado, antes de me conheceres, dormiram juntos?

Alice mira-me, intrigada. O que é isto, um interrogatório?

Depois, indigna-se: - Jack Gil, tens ciúmes de um morto?

Fico calado, sem ripostar. Quero saber, mas ela nunca me irá esclarecer. Prefere deixar dúvidas, sabe jogar este jogo bem melhor do que eu. E está a vencer, despertou-me ciúmes. Vejo-a baixar os olhos, examinar as pernas e murmurar, em voz baixa: - Nem sabes o quanto te amei.

Ergue o olhar para mim. É verdade, estúpido. De repente, está com lágrimas nos olhos, parece sofrer. Mas perdi-te. A corça está triste. É genuína ou uma grande atriz, que apela agora à minha compaixão? Ouço-a dizer, com mágoa na voz: - Não vale a pena irmos por este caminho, não leva a lado nenhum.

Suspira e, devagar, compõe a saia. Parece ter desistido de me seduzir. Com a voz a fraquejar, aperta os botões da camisa e diz: - O Francis perguntou-me se podemos falar com o teu pai.

Os americanos sabem que o meu pai esteve em Marselha, que anda a tentar comprar tesouros nazis. Querem descobrir se tem informações novas sobre o paradeiro de Mengele ou de outros nazis. Explico-lhe que o meu pai é um comerciante: se querem alguma coisa dele, terão de lhe dar algo em troca.

Nesse momento Alice levanta-se e aproxima-se de mim.

Sem que o possa evitar, retira-me o cigarro da mão, leva-o à boca e dá uma passa. Depois, sorri e pergunta, numa voz ainda sumida: - Lembras-te?

Sim, lembro-me. Uma vez, no bar do Hotel Palácio, no Estoril, ainda antes do começo do nosso tórrido namoro, fizera­lhe o mesmo, e justificara a minha surpreendente ação com a vontade de a beijar na boca, sendo o seu cigarro a forma indireta de o conseguir.

Não lhe respondo. Alice olha-me, desiludida. Parvo. Depois, suspira, vencida, e afirma: - Agora és um homem sério, vais casar com a irmã mais nova, é melhor eu tomar juízo.

Proferida esta proclamação derrotista, encosta a anca ao meu braço, e devolve-me o cigarro, que apago no cinzeiro com rapidez.

Sinto o seu corpo quente contra mim e fecho os olhos. Ela sabe o efeito que me provoca, mas não vence a minha relutância.

Então, avança lentamente na direção da porta, como alguém que abandona o campo de batalha.

Nesse momento, eu aviso, apontando para o chão: - Não te esqueças dos sapatos.

Alice volta atrás e pega neles. Mas, ah!, Satanás sem caudal, vira-se, de costas para mim, e pousa um pé no sofá, dobrando-se mais, para se calçar. Repete o exercício com o outro pé, enquanto mantém intencionalmente o seu rabo a dois palmos da minha cara, tentando-me. Se quisesse podia agarrar aquele tesouro com as duas mãos, podia subir-lhe as saias num segundo, podia sentá-la em cima de mim, podia possuí-la sem sequer me levantar. É essa a mensagem da sua postura animalesca, mas eu resisto-lhe.

Segundos mais tarde, já calçada e direita, caminha de novo para a porta. Depois, vira a cabeça para mim. Não me queres mesmo? Como não reajo, ela sorri, levemente desapontada.

O jogo terminou por hoje, não ganhou ela. Nem eu. Finalmente, Alice suspira e relembra:

- Pensa no que te disse, Jack Gil. Tu e o teu pai têm de nos ajudar.

Avança para a porta da rua, abre-a e sai, fechando-a nas suas costas. Aliviado, respiro fundo e bebo um copo de água fresca.

Apesar de ansiar pelo corpo dela, pelos gemidos dela, por entrar dentro dela, sei que fiz bem em recusar os seus avanços. Quero amar Luisinha, não quero perder-me em Alice. Mas até quando o conseguirei, agora que ela voltou, que quer falar com o meu pai, que quer a nossa ajuda?

Ó meu Deus, Paul, ela era mesmo irresistível! Estava um bocadinho mais gordinha, mas mesmo assim era um portento, um naco de mulher. Desculpa lá o desabafo, Paul, mas, porra, uma gaja destas dá com um homem em maluco! Tu tens a noção do que é ter uma mulher destas a virar o rabo para nós, quase a pedir que eu lhe salte para cima? Ela era uma mulher única, ela oferecia-me o rabo, miúdo, tu sabes o que isso é?

- Sim, avô, eu sei ...

Pois, pá, vocês agora sabem tudo, fazem tudo, e julgam que antes não havia disso! Mas havia, sempre houve, e com Alice era tudo inesquecível, forte de mais, profundo de mais. Desculpa, Paul, agora tenho mesmo de desligar, não consigo falar mais disto, é impossível, tenho oitenta e tal anos e estou para aqui que não posso, desculpa lá ... Até amanhã.

 

Lisboa, 3 de julho de 1945

O desejo do meu pai de conhecer Salazar, anunciado um mês antes no jantar do Aviz, foi repetido nos encontros de família que tivemos no último mês. Em dois domingos, em casa do general, primeiro, e, depois, em casa do meu pai, no Estoril, tínhamos almoçado todos juntos, e das duas vezes o pai de Luisinha sorrira misteriosamente sempre que se falara em Salazar, como se soubesse um importantíssimo segredo de Estado. No entanto, nada adiantara e o meu pai ficara desiludido no final de ambos os repastos, as suas expectativas frustradas, tendo proferido um resmungo mais abrutalhado que só eu escutei, onde se lamentava da perda de tempo que era aturar «esta gente».

Para minha surpresa, estas reuniões reabilitaram um pouco a minha reputação e aliviaram o desagrado inicial com que fora recebida a notícia do meu namoro com Luisinha. A atitude charmosa do meu pai e os seus constantes salamaleques transfiguraram Dona Guilhermina, e mesmo os irmãos da rapariga já me tratavam de forma mais saudável. As rocambolescas histórias que o meu pai sempre contava e a exímia arte social que revelava, amoleceram os azedumes dos meus opositores, e eu já admitia que o nosso futuro casamento fosse bem visto, e que talvez já nem tivéssemos de partir de Portugal.

O bom ambiente entre as duas famílias atingira o clímax ontem. O meu pai telefonara-me, entusiasmado, dizendo que o general marcara finalmente um encontro com Salazar para o dia de hoje, antes de o presidente do Conselho partir para umas merecidas férias em Santa Comba. O meu pai exigiu que fosse eu que o levasse a São Bento, no meu Citroên, como seu motorista, pois recusava-se a contratar desconhecidos para uma função tão confidencial.

Ao volante, a caminho da casa de Luisinha, onde vamos buscar o general, revelo-lhe que Alice me procurou. Avançamos pela 24 de Julho, e o meu pai está reluzente, em mais um fato notável, cinzento-escuro. Evitou um fato claro, tem medo de passar por frívolo, não quer causar má impressão em Salazar. Mas exibe a habitual profusão de adereços: gravata às riscas, azul-petróleo; um lenço idêntico na lapela; camisa branca; botões de punho lacados; sapatos pretos, engraxados e lustrosos. Revela-se em êxtase ao saber que Alice o quer conhecer.

- Primeiro o Salazar e depois ela! Isso é fantástico, Jack júnior!

Dá-me uma forte palmada no braço e exclama: - E eu a pensar que não valias um chave! Afinal...

Os seus olhos chispam de curiosidade. Conta-me tudo. Lambe os lábios, com evidente gosto, e pergunta:

- Montaste-a?

Fala de sexo como se fosse hipismo. Quer saber detalhes.

Mas eu frustro a sua excitação de macho, recordo-lhe que estou apaixonado, além de noivo de Luisinha. Porém, com uma ponta de orgulho, acrescento: - A Alice queria, mas eu resisti.

Ele abre muito os olhos, espantado. És doido? Não quer acreditar que não aproveitei o momento. Abana a cabeça, incrédulo.

Que grande palerma! Franze a testa, intrigado e pergunta:

- o que tem uma coisa a ver com a outra? Podes casar com a Luisinha e deitar-te com a outra! Se ela queria ...

Para ele, a fidelidade não é um valor. Nunca foi. A minha mãe sofria muito, não aceitava a necessidade dele de frequentar bordéis. Não entendia o que lhe faltava, pois estava sempre disponível para ele, nunca se recusava. Não entendia que o meu pai não se contentasse só com uma.

De repente, ele tosse, mas só uma vez. Pelos vistos, não foi tão atacado nesta estada. Teve sorte, a chegada do verão trouxe mais calor, afastou as correntes de ar frio, o pólen e as alergias derivadas. Não será por causa das tosses que se irá embora do país.

Ao virar para a Infante Santo, comento: - Não piorou da tosse.

Ele ignora o meu comentário agradável. Semicerra as pálpebras, pensativo, e depois pergunta: - Será que ela me pode aliviar?

Olho para ele, sem compreender à primeira. Sorri, com um brilho no olhar. Eu também sou macho. Inquire: - Quanto é que ela leva?

Recordo-lhe que Alice não é uma mulher da vida. Ele ri-se na minha cara. És mesmo pateta! Seguro no volante com mais força, enervado. Ele continua a rir. É uma rameira! E murmura: - Se tu não queres, mais fica para mim.

Confesso-lhe, a custo, que ainda me importo que outros homens durmam com ela. O meu pai dá uma pequena gargalhada e abana a cabeça. O que interessa o que tu pensas? Acrescenta: - As rameiras só pensam em dinheiro, Jack júnior.

Ao passarmos à frente da Basílica da Estrela, um carro atravessa-se à nossa frente e sou obrigado a travar bruscamente, para evitar um acidente. De pronto, o meu pai abre a janela e grita, na direção do outro condutor: - Palhaço, bandalho!

Agitado e tenso, só uns segundos depois acelero de novo o Citroên, continuando o nosso caminho, enquanto o meu pai solta impropérios contra os portugueses, assegurando-me que não sabem guiar, que são um perigo ao volante, que a maior parte dos condutores devia ser presa! Para ele, Lisboa é pior do que Bombaim, pior do que o Cairo, o que me parece, apesar de tudo, um exagero, pois, no presente, em Lisboa há poucos carros, devido ao racionamento de combustíveis.

Um pouco mais à frente, e já mais calmo, manda-me marcar um jantar com Alice ainda hoje, no Hotel Palácio do Estoril. Está com pressa. Os nazis têm cada vez mais dificuldades de fugir da Alemanha, as fronteiras estão agora quase todas controladas. Com solenidade e fatalismo, declara: - Quem não escapou até agora está com os pés para a cova.

Revelo-lhe a possível presença de Mengele em Portugal, mas ele afasta a ideia, com um abanico da mão. Essa hipótese é uma desilusão, como foram os Nazis de Ferro, das Caldas de Felgueiras!

- Esses peixes graúdos dão muito nas vistas. E não trazem nada! São os que andaram nos saques que me interessam. Esses é que têm os tesouros.

Estamos a chegar a casa de Luisinha e estaciono o carro.

Caminhamos lado a lado até à entrada do edifício e, enquanto esperamos que nos abram a porta, pergunto ao meu pai qual é o objetivo do seu encontro com Salazar. Não acredito que o queira apenas conhecer.

O meu pai franze a testa. Porquê? Antes de me responder, leva os dedos à minha gravata e refaz o nó. Murmura: - Nunca acertas com isto ...

Entretanto, a porta abre-se e entramos. Quando começamos a subir a escada, ele diz: - Quero fazer-lhe umas propostas.

Intrigado, pergunto-lhe:- Vai falar ao Salazar nos tesouros nazis?

Ele revira os olhos, exasperado. Já há umas semanas que não o fazia. És mesmo idiota! Suspira, como se estivesse enfadado com a minha pergunta, e afirma: - Jack júnior, és tão infantil. Achas que lhe vou falar nisso?

É um negócio meu, não é para contar ao Salazar!

Estamos quase a chegar ao patamar da casa de Luisinha, quando ele murmura, referindo-se ao presidente do Conselho: - Ainda mos roubava ...

Depois, olha para mim mais sério, como se estivesse desconfiado das minhas intenções. E o que são essas perguntas? Decidido, ordena: - Nada de te meteres nisto, ouviste?

Enquanto a porta se começa a abrir à nossa frente, acrescenta: - Ficas cá fora, no jardim, e não vais à audiência. Entendido?

A minha oportunidade de conhecer Salazar pessoalmente esfuma-se, assim, naquele patamar. A única vez que estive próximo dele foi no enterro de Carminho, há uns anos. O presidente do Conselho compareceu ao velório da filha mais velha do seu velho amigo general, mas eu vi-o apenas, a rezar uns minutos pela alma da minha antiga noiva. Pelos vistos, também não ia ser hoje que o cumprimentava.

Luisinha espreita pela porta, entusiasmada, e saúda-nos.

O meu pai estende-lhe a mão, à inglesa, mas ela dá um passo em frente e beija-o na cara, o que lhe provoca um sorriso de agrado um bocado grosseiro. Depois, a rapariga abraça-me e beija-me ao de leve na boca, segredando-me que teve «muitas saudades».

Atrás, já dentro de casa, ouve-se a voz roufenha de Dona Guilhermina, excitada. Entramos no hall, onde ela exclama, dirigindo-se ao meu pai: - Seja muito bem-vindo quem vem por bem!

A matriarca da residência só tem olhos para ele, a quem recolhe o chapéu. O meu pai não se faz rogado: executa uma pequena genuflexão do joelho, como se ela fosse uma rainha, e beija-lhe as mãos de uma forma exageradamente teatral. Depois, aprecia: - Que alegria vê-la, está todos os dias mais bonita!

Este elogio é patético e deslocado. Dona Guilhermina não é, provavelmente nunca foi, uma mulher bonita, e as feições mais suaves de Luisinha devem-se certamente à herança paterna.

Além disso, a senhora não se ma quilha, nem se veste bem, e mais parece uma matrona de uma comédia burguesa italiana.

Contudo, o elogio é certeiro e produz lucros imediatos. Lisonjeada, ela cora um pouco e engata-o pelo braço, conduzindo-o para a sala.

Como é hábito, nem me cumprimenta. Luisinha abana a cabeça, desagradada. Que desconsideração ... Aperta-me o braço e murmura: - Deixe lá, vai ter de se acostumar.

Não percebo se ela acha que sou eu que me vou ter de acostumar a estas velhacarias, ou se acha que é a mãe dela que vai ter de se habituar à minha presença. Pouco importa, pois ao chegarmos à sala cruzamo-nos com o general, envergando a sua farda de gala e com algumas medalhas penduradas ao peito. Compensando-me da desfeita da esposa, abraça-me efusivamente. Ainda antes de apertar a mão ao meu pai, pergunta-me: - Então, meu caro Jack, também vem?

Antes que eu possa responder, o meu pai afirma, em voz alta, com autoridade: - Só vai guiar o carro, é o nosso motorista!

Pretende apresentar a minha pontual função como positiva, mas Luisinha pressente a evidente desconsideração daquela decisão.

E o general também, pois olha para o meu pai, franzindo a testa.

Motorista? O meu pai coloca um sorriso ligeiramente cínico e explica: - Assuntos sérios não se falam em frente das crianças.

O general fica intrigado com a natureza de tais «assuntos sérios», pois pensava ser uma visita de pura cortesia. Mas Dona Guilhermina aprova a decisão do meu pai e comenta, de olhar crítico virado para mim: - Nem sequer está vestido a rigor.

Os olhos de Luisinha chispam de irritação com mais esta farpa da mãe, mas o general aproxima-se do meu pai e exclama: - Nem imagina a honra que tenho em apresentá-lo a Salazar!

O pai de Luisinha parece sobretudo agradado consigo próprio, com a sua capacidade para marcar um encontro com Salazar, com o seu poder social e político. Olha para nós, transpirando vaidade.

Fui eu que consegui. Impressionada, Dona Guilhermina é acometida por um curto chilique e, como se lhe faltassem as forças nas pernas, senta-se de repente no sofá, murmurando: - Ai, que até estou com palpitações!

Este deslumbramento com O esposo gera no meu pai um instantâneo ataque de ciúmes, e ele sente-se na necessidade imperiosa de mostrar que também se dá com os poderosos do mundo, e diz: - Dona Guilhermina, sabe que eu já conheci o Roosevelt?

É um nítido passo em falso, pois a mãe de Luisinha odeia o presidente americano desde que, há uns anos, este declarou, em pleno Congresso, que os Açores eram território americano, disponível para ser usado pelas suas tropas. Com uma careta, geme: - Credo, nem me fale nesse senhor!

Rápido como uma chita, o meu pai corrige o tiro: - Tem razão, é um arrogante! Bem mais divertido é o Mussolini, que também conheci pessoalmente! Foi pena acabar como acabou, pendurado de cabeça para baixo!

Confrontada com a lembrança da execução do ditador, que ela tanto admirava, Dona Guilhermina benze-se e roga pragas aos autores do enforcamento, os comunistas italianos. Olha para mim, zangada, como se eu fosse um deles. Canalhas!

O meu pai coloca um ar desolado, como se estivesse totalmente de acordo, mas olha para mim, sorrindo com falsidade, com cinismo nas pestanas. Estou farto desta gente. Apetece-me denunciar a sua mentira, perguntar-lhe onde raio conheceu Mussolini, pois, apesar de gabar a Itália a torto e a direito, nunca lá pôs os pés!

Bem a propósito, e sublinhando mais uma vez a sua condição de privilegiado, o general comenta: - O Salazar é um grande admirador do Mussolini. Até tem um retrato dele na secretária. Do Hitler não gostava, mas do Mussolini, sim!

A compita prossegue, com cada um deles a tentar ultrapassar o outro com os seus feitos, e desinteresso-me. Deixo de os ouvir, penso em como vou conseguir marcar o jantar com Alice, e se é boa ideia eu estar presente. A meu lado, Luisinha pressente o meu alheamento e olha-me. O que foi? Como me limito a sorrir, ela pergunta: - Está tudo bem, Jack? Parece cansado.

O meu pai capta de imediato a sua preocupação e a minha distração, e observa-me. Estás a pensar na outra. Lança-me uma farpa: - O meu filho anda com a cabeça no ar. Ainda há pouco, no caminho para cá, íamos tendo um acidente!

O general e Dona Guilhermina colocam um ar reprovador, como se eu fosse um inábil ao volante, o que é completamente falso. Asseguro que foi o condutor da outra viatura que se atravessou à nossa frente, obrigando-me a travar a fundo para impedir uma colisão. Porém, na opinião dos meus futuros sogros, a acusação enviesada do meu pai pesa mais do que a minha defesa, e o ar reprovado r mantém-se.

Enervada, Luisinha dá-me a mão e declara: - Ora, o Jack não é de manobras perigosas, guia maravilhosamente!

O meu pai franze o sobrolho, finge-se duvidoso, mas os seus olhos frios são contundentes. Vês como ela é cega? Sibilino, deixa cair um comentário assaz misterioso, destinado a manter acesa uma perpétua dúvida sobre as minhas atitudes masculinas:

- Está enganada, minha querida. Olhe que o meu filho é perito em manobras perigosas.

Esta insinuação maliciosa não escapa a Luisinha, mas é ignorada pelos seus pais, que prosseguem a conversa com o meu, trocando argumentos a propósito de um artigo que a revista Time publicou sobre o banqueiro Ricardo Espírito Santo.

A rapariga faz-me então um sinal com os olhos. Vamos para a varanda? Levantamo-nos e dirigimo-nos para lá, onde me interroga: - O que quis o seu pai dizer?

Encolho os ombros e relembro a minha sina: o meu pai está sempre a criticar-me, para ele nunca tenho qualidades, só defeitos!

Ela sorri e observa a rua. Sei o que isso é. Depois diz: - A minha mãe também é assim comigo. Não perde uma oportunidade para me apoucar. Porque gosto de cinema americano, porque tenho mau gosto nos homens, porque estou sempre a mudar de penteado, porque uso as saias curtas de mais, porque isto, porque aquilo.

Abraço-a, examinando a sua cara, o seu rosto, o seu cabelo.

- Já tinha dado conta de que estava com um penteado diferente.

Ela ri-se. Que bom, reparou. Pergunta: - Gosta?

Inspirou-se no penteado da Ingrid Bergman, no Casablanca.

Sorrio: - Eu sabia que estava a reconhecer o estilo.

Nesse momento, a voz do general chama-me:

- Vamos, Jack, são três da tarde, olhe que o Salazar não espera!

Reentramos na sala e reparo que Dona Guilhermina parece angustiada pela ideia de que o presidente do Conselho pode não nos receber apenas devido a um ligeiro atraso horário, enquanto o meu pai sorri, inchado de orgulho pela honraria que em breve vai vivenciar.

O que eu hoje te quis mostrar, meu querido neto, foi o quanto a tua avó Luisinha lutava por mim. Penteado novo, à Ingrid Bergman, vê lá tu, miúdo! Ela gostava mesmo de mim. E eu dela, juro-te que gostava.

Era como se eu estivesse a ser rasgado ao meio, metade ia para o lado de Alice, a outra metade para o lado dela. Juro-te que eu tentava ir para o da tua avó, era o que eu queria mais.

Alice era só perigo e inconstância ... Mas o pior na tua avó não era ela, ela era o melhor. O pior era a família dela e as manigâncias do meu pai. Tu nem imaginas o que aconteceu em São Bento!

 

Quando entramos pelo portão de São Bento, já estou farto de tanta pompa e circunstância no banco traseiro do Citroên. O meu pai decidiu que ele e o general se sentariam atrás, como dois ministros ou embaixadores, remetendo-me ao papel secundário de motorista, ao qual só faltam a farda e o boné. No curto caminho entre a Álvares Cabral e São Bento, escutei pelo menos trinta vezes a expressão «que honra ser amigo dele» e talvez umas vinte cinco a exclamação «é raríssimo ele conceder audiências a estrangeiros»

Era como se ambos tivessem sido bafejados pela brisa da fortuna e fossem receber uma palma de ouro das mãos do próprio César, mas precisassem de justificar aquela augusta audiência com as suas próprias gloriosas condições, de estrangeiro ou de amigo, pois não existia qualquer outro motivo para o encontro, além da mera cortesia.

No entanto, mal passo o portão de São Bento, um silêncio sepulcral abate-se sobre o Citroên, como se a circunstância de já estarmos agora no território privado e oficial de Salazar impusesse uma compostura espartana, que só o calar das vozes satisfazia.

Os ocupantes do banco traseiro observam a porta do pequeno palacete com ansiedade, como se já lá estivesse o próprio Salazar, a recebê-los; ou como se os angustiasse a ideia de que em breve passariam aquela fronteira épica. O poder tem este efeito sobre muitas pessoas, mas não deixo de estranhar que dois homens daquela idade se assemelhem a duas crianças que chegam à escola no primeiro dia de aulas.

Paro o Citroên e dirijo-me à porta do lado direito, abrindo­a para o general. Com esta hierarquia espontânea, remeto o meu pai para segundo lugar. Naturalmente, ele protesta, em inglês, para não ser entendido pelo outro: - E eu não tenho direito a esse tratamento?

Esboço uma careta, convidando-o a deixar-se de incómodos tolos e a sair da viatura sozinho, mas faz-me uma cara de fúria.

Era só o que faltava! Contrariado, contorno o carro pela traseira, abro-lhe a porta e ele murmura: - Estava a ver que não.

O general nem se apercebeu desta ligeira celeuma, pois já caminha em direção à porta, subindo lentamente cada degrau, como que esmagado pela dimensão do acontecimento. O meu pai, irritado por ele não ter esperado, é obrigado a acelerar o passo para o apanhar, de forma a entrarem os dois ao mesmo tempo, como um casal de aristocratas num baile de gala.

Sozinho cá fora, olho para o relógio e calculo que a audiência deve demorar no mínimo meia hora. Fecho o carro e volto a sair pelo portão, desta vez a pé, explicando ao polícia que tenho de ir à farmácia, fazer um telefonema. Existe uma a cerca de cinquenta metros, subindo pela Calçada da Estrela, onde se diz que Dona Maria, governanta de Salazar, vai comprar os remédios que ele toma para as insónias que o afligem.

Já no estabelecimento, falo para o número que Alice me deu, de uma pensão onde se instalou, na Graça. Como ela não está, deixo recado para ir ter connosco ao Hotel Palácio, no Estoril, a partir das oito da noite. Deslocar-se na região de Lisboa nunca foi um problema para Alice, e regresso a São Bento sem qualquer dúvida de que ela estará, e a horas, no nosso jantar.

De novo junto ao carro, aproveito para fumar um cigarro, sem pressas. No final, quando me preparava para apagar a beata com o sapato, uma voz nas minhas costas avisa-me:

- o senhor presidente do Conselho não gosta disso.

Dou meia volta e vejo, a cerca de dez metros de mim, uma senhora já idosa, com um fato escuro, como uma empregada de mesa. Deve certamente ser Dona Maria, a governanta. Traz no braço uma cesta com ovos, provavelmente das ocupantes do galinheiro, que se diz existir nos fundos do jardim. Faço um gesto de assentimento, levanto a beata do chão e dirijo-me ao carro, para a deitar no cinzeiro. No final deste cívico exercício, reparo que, tão depressa como apareceu, a governanta esfumou-se, qual alma penada numa história de fantasmas.

Ainda matutando na brevíssima aparição de tão estranha criatura, oiço movimento vindo da entrada do edifício e, para minha enorme surpresa, vejo aparecer o general, esbaforido e zangado, num trote apressado, avançando na direção do Citroên.

Resoluto, dirige-se para o mesmo lado do carro em que veio, sem sequer me dar tempo de o ajudar. Furibundo, entra na viatura, bate a porta na minha cara estupefacta e afunda-se no banco traseiro do Citroên.

É nesse mesmo momento que vejo o meu pai. Vem mais lento, mas também de cara fechada e ar de poucos amigos. Aproximo­me dele e pergunto, em inglês, o que se passou. Ele limita-se a resfolegar um palavrão incompreensível. Ao chegar ao carro, começa a contorná-lo, para regressar também no mesmo lugar onde veio, mas para a meio da viagem. Irritado, dá meia-volta e dirige-se para o lugar ao lado do condutor. Decidiu não se sentar atrás, junto ao general, o que é um claro sinal de desconsideração e de rutura, um sintoma do ofendido mal-estar que se instalou entre aqueles dois.

A viagem de regresso a casa de Luisinha é o oposto da que fizemos um pouco antes, infetada por uma deceção profunda, um azedume e um ressentimento calados. Nem o meu pai nem o general falam, não se explicam e também não se acusam. Ignoram com desdém a presença um do outro, bem como a minha.

Quando paramos à porta de sua casa, o general de imediato abandona o carro num ímpeto demasiado brusco para a sua idade, e depois fecha a porta da viatura com estrondo nas suas costas, sem sequer olhar na direção do meu pai. A boa educação obriga-me a acompanhá-lo. Ajudo-o a abrir a pesada porta do prédio, e subo com ele até ao patamar do segundo andar. Só aí diz, num murmúrio entredentes:

- Que grosseria, que vergonha!

O que terá feito ou dito o meu pai para desencadear tanta fúria e tanto desapontamento no general? Ele não me elucida, abre a porta de casa e despede-se com secura: - Boa tarde.

Por sorte, Luisinha ouviu o pai chegar, vem de pronto recebê­lo e logo se espanta com as suas trombas. Como O general não pia, ela espreita para o patamar e é aí que me vê, abrindo muito os olhos. O que se passou? Encolho os ombros, não sei, e ela aproxima-se, encostando a porta de casa nas suas costas. Descrevo-lhe então a cena e a zanga final. Luisinha leva a mão à boca e murmura:

- Meu Deus ...

Encolho de novo os ombros, digo-lhe que pouco me importam as zangas daqueles dois velhos jarretas, e ela ri-se. Vendo que a porta se mantém encostada, abraço-a e beijo-a na boca, com sofreguidão. Ela responde favoravelmente à minha investida, sinto o seu corpo amolecer, a sua boca quente na minha. Mas, de repente, para e olha para a porta em frente, como se um vizinho estivesse a assistir. Sussurra: - Jack, podem ver-nos e depois vão comentar.

Sorrio, divertido. Olho para lá e saúdo o vazio, como se alguém lá estivesse: - Boa tarde, doutor Antunes, como está?

É o nome do médico que ali vive e Luisinha ri-se da minha chalaça: - Gosto mesmo de si.

Beijamo-nos de novo, abraçando-nos, e quase sem dar por isso as minhas mãos descem pelas suas costas, procuram o seu rabo, mas quando lá chegam Luisinha desfaz de novo o beijo e afasta-se. Olha para mim. Então? Baixo os olhos, contrariado. Ela faz-me uma festa na cara, como consolação. Ergo os olhos, ela sorri, encolhe os ombros. Eu gosto, mas ... E diz: - O Jack tem de compreender. A minha família ... - força um sorriso e acrescenta: - Eu sei que nos filmes não é assim, mas ...

Em Portugal, é assim, diz o bater das suas pestanas. Casamos virgens. Olho-a como um homem que deseja uma mulher. Ela suspira. Ó Jack ... Morde o lábio e murmura: - Sou uma desilusão para si.

Pergunto-lhe se quer passar a tarde comigo. Podemos ir para minha casa. Ela morde de novo o lábio. Para sua casa? Parece aflita, não sabe o que fazer às mãos, abre muito os olhos. Quer dormir comigo? Depois justifica-se, atrapalhada: - Não posso, combinei ir à Baixa com a minha mãe.

Encolho os ombros e suspiro: - Nesse caso, tenho de ir, o meu pai está lá em baixo, à espera.

Ela fica alarmada. Está zangado? Pergunta: - O Jack gosta mesmo de mim?

Tranquilizo-a, mas ela permanece alarmada. Onde irá depois?

Pergunta: - Vai jantar com o seu pai?

Digo-lhe que jantamos no Hotel Palácio, e depois vamos ao Casino. A afirmação é intencional, para lhe mostrar que irei ver outras mulheres, que o perigo para ela é real. As mulheres têm de sentir medo de nos perder para outras mulheres, caso contrário não se entregam. Ela morde de novo o lábio, ainda mais ansiosa.

Vai estar com outra? De repente, impulsionada pelo terror do abandono, ou da substituição, abraça-me e diz:

- Tenho tanto receio de o perder.

Dou-lhe um novo beijo na boca, mas não digo mais nada.

Despeço-me, deixando uma incerteza no ar, e ela olha-me, insegura.

Não se esqueça de mim. Dou meia volta e desço as escadas, sem olhar para trás.

Regresso ao Citroên, irritado com a nega dela, e ignoro a casmurrice calada do meu pai. Só ao passar por Belém ele se digna a falar. Então, tudo aquilo que estivera contido extravasa, e cai sobre mim como uma avalanche. Explode, num palavreado boçal de carroceiro: - Fuck Salazar, fuck the general!

A fúria do meu pai é imensa, contra Salazar e a forma como foi tratado. Sentiu-se desprezado, humilhado, rejeitado pelo ditador.

- É um cabeça dura, um obtuso!

Durante os vinte minutos seguintes solta mil palavrões, esmaga o presidente do Conselho e o general com grosserias, mas só aos poucos vou compreendendo o que aconteceu em São Bento. Colo pequenas frases e forma-se uma imagem coerente.

O meu pai tentou propor a Salazar vários negócios, insinuando que podia compensar o presidente do Conselho, se eles fossem aprovados, o que originou o desastre. Como ele devia saber, Salazar coloca a sua honestidade pessoal ao serviço de Portugal como um valor supremo, e a mera insinuação de corrupção é imperdoável. Com a sua habitual falta de tato e a sua ausência de princípios, o meu pai passou uma fronteira proibida. A audiência terminou abruptamente, não lhe tendo sequer Salazar apertado a mão no final.

O meu pai adianta: - O homem deu um raspanete ao palerma do general por me ter trazido ali! À minha frente!

Sem uma única vez admitir que foi a sua falta de diplomacia ou bom senso que provocou tal cataclismo, esbraceja: - Quem julga ele que é? Já lidei com dezenas de políticos, do Brasil, da Argentina, do Paraguai, mexicanos, malaios, australianos, até americanos! São todos iguais, todos querem o deles!

Está genuinamente espantado com o que batiza de «imaculada honestidade» de Salazar, um defeito anacrónico para o meu pai, que acha que o dinheiro tudo compra. Ironiza: - O tipo deve achar-se um santo, que vai ser canonizado pelo Vaticano!

A mim, o que me preocupa são as consequências deste inesperado e intempestivo conflito. A rutura entre o general e o meu pai vai causar danos insuperáveis para as duas famílias. Tinha sido ele que me fizera subir na cotação deles, e a sua derrocada vai arrastar-me também. Para mais, o meu principal aliado, o general, o único que me devotava simpatia, é o principal atingido por esta rutura. O meu pai, com a sua negligente imprudência, sabotou indiretamente o meu namoro com Luisinha, que seria certamente vetado pela família dela depois deste trágico vexame. Desolado, concluí que o meu amor por Luisinha se transformou numa quimera de alto risco, com uma ínfima probabilidade de atingir um final feliz. Começara abençoado pelo Casablanca, mas acabaria proibido, vítima de uma ofensa a Salazar.

Percebes agora onde eu estava metido, meu querido neto? Se calhar ainda não compreendes bem, que isto ainda vai a meio, mas começas a vislumbrar a trapalhada, não é assim? O meu desejo pela tua avó já existia, estou a contar-te a verdade com todas as letras, mas estávamos em 1945, era normal que uma rapariga como ela tivesse relutância em dar-se a um homem. Só que, com Alice por perto, uma recusa da tua avó era um convite à minha prevaricação, uma porta que se abria, escancarada, para a outra mulher entrar.

 

Fazemos um compasso de espera na casa do meu pai, no Estoril, pois ele quer mudar de fato, e aguardo na sala, enquanto o ouço, no andar de cima, a cirandar e a tomar banho.

Fumo cigarros, penso em Salazar: a honestidade, que provocou a rutura com o meu pai, é uma das suas principais forças. Não será fácil derrubá-lo. Há dias, o empenhado Afonso Caldeira passou no meu escritório. Contou-me que republicanos e socialistas estão animados com as debilidades do regime e com a crise económica que assola o país. Houve muitas greves e mais se preparam para o verão, e até entre os militares grassa um invisível desagrado.

O advogado está convencido de que a sociedade portuguesa quer derrotar Salazar, mas eu não. Admito um descontentamento crescente, mas o poder de Salazar é muito sólido.

Afonso Caldeira referiu pela primeira vez um possível líder, Norton de Matos. Defende que o antigo governador de Angola, maçon, republicano e socialista, é o militar certo para «dar um golpe», sublevando os quartéis. Pediu-me que insistisse com os ingleses, pedisse o seu apoio, mas relembrei-lhe que eles mostram-se mais empenhados na ressurreição da Europa do que em mudar o regime em Portugal. Além disso, eu estou já bastante afastado do poder político inglês em Lisboa, e nem sequer fui convidado para o banquete de despedida do embaixador Campbell, que Salazar organizou em finais de junho, nas Necessidades.

Uma das últimas razões de fúria de Afonso Caldeira é o novo «regulamento da moral e dos costumes públicos», recentemente aprovado em Portugal. Indignado, o advogado barafustou: - Não se podem usar fatos de banho nas praias, nem homens nem mulheres! Onde já se viu isto, meu caro Jack?

Nos anos da guerra, sobretudo devido à presença de muitos refugiados europeus, os costumes tinham sido mais soltos e, nas praias, viam-se muitas mulheres de fato de banho e homens de tanga, o que agora passava a ser proibido. Tal como as «casas da luz vermelha». O regulamento atacava ferozmente a prostituição, que crescera nestes tempos de guerra.

- É tudo a eito, meu caro Jack. Nem os bordéis escapam!

Afonso Caldeira ridicularizara o texto do regulamento, o atroz português em que fora escrito, e dera exemplos: multas para «mulheres que fossem apanhadas com a mão no coiso» ou para «mulheres que fossem apanhadas com a boca no coiso»! Chocado com tal palavreado, o advogado bramira: - Onde é que isto já se viu, linguagem de caserna nas nossas leis?

Para mim, este era mais um claro sinal de que Portugal se estava a fechar, que a suave abertura vivida durante a guerra não ia durar. Concluí que, se a desgraça se abatesse sobre o meu noivado com Luisinha, teria de regressar à minha ideia inicial, e abandonar o país.

O meu pai desce as escadas e emana dele um intenso perfume, que cheiro a vários metros. Observo-o. O senhor Jack Deane sabe mesmo cuidar das suas aparências, e pergunto-me se serei assim quando tiver a idade dele. O seu olhar cruza-se com o meu.

Não sou como tu, um desmazelado. Comenta:- Mesmo as putas gostam de homens com boa pinta.

Esta máxima dura há anos, desde Sydney, quando a ouvi pela primeira vez. Como um pavão, que encanta as fêmeas com a magnificência da sua cauda, o meu pai cuida-se a rigor e não foram poucas as mulheres que sucumbiram aos seus encantos.

Começa a andar para a porta e acrescenta: - Nada excita tanto as mulheres como o luxo.

O meu desconforto aumenta: a ideia de que vai abrir para Alice a sua cauda de pavão causa-me desagrado. Pergunto: - Prepara-se para catrapiscar a Alice à minha frente?

Ele ignora a minha questão. Já na rua, próximo do meu carro, diz: - Devias comprar um Buick, ou um Oldsmobile. Os carros americanos são muito mais espaçosos do que os franceses.

O meu apego ao Citroên é grande, não tenciono vendê-lo ou trocá-lo, mas não vale a pena contestá-lo. Só quando começamos a circular o meu pai responde à minha anterior pergunta.

- Alguém tem de zelar pela honra masculina da família.

Digo-lhe que é incorreto meter-se com Alice, pois foi minha namorada. Ele abre muito os olhos, incrédulo. Incorreto? Depois, grosseiro, pergunta: - Porquê, deixaste alguma coisa lá dentro que me faça mal?

Nem vale a pena ter esta conversa com ele, eu já devia saber e permaneço calado até chegarmos ao Hotel Palácio. Depois de estacionar o carro, seguimos para o espaçoso e imponente restaurante, cujo interior examino, à procura de Alice, enquanto nos indicam a mesa. Ela ainda não chegou. O meu pai senta-se e olha para mim. Então? Como encolho os ombros, ele pergunta: - Será que a corista se baldou?

Chamo-lhe à atenção que Alice é uma mulher sofisticada, habituada a conversar com homens inteligentes, e que abomina a boçalidade masculina. Ele arqueia as sobrancelhas. Estás a insultar-me? Depois resmunga: - Estou a ver, é uma puta com tiques de senhora.

Quem acabara de ofender Salazar, não ia certamente empenhar-se em subtilezas de etiqueta com uma desconhecida duvidosa.

Era o que eu pensava, mas tenho de dar a mão à palmatória logo a seguir. Mal Alice chega, uma imediata metamorfose atinge o o meu pai. O ser brusco e desagradável dá lugar a um cavalheiro gentil e amável, que se desfaz em galanteios.

Contente, Alice sorri-me. Simpático, o teu pai. Ao terceiro ou quarto elogio, diz mesmo: - O Jack Gil bem que podia ter herdado a sua cortesia, senhor Deane.

Uma subtil aliança parece nascer entre eles. As pessoas que vivem próximas de nós tornam-se com o tempo especialistas nos nossos defeitos, e eles não perdem a oportunidade para me dar umas bicadas.

Passado este introito amável, a conversa segue para o tema dos nazis. Alice resume ao meu pai a sua biografia de espia.

Trabalha para o OSS americano e, como me conhecia do passado, pediu-me ajuda. Eu conheço bem o Algarve e há informações de que importantes nazis podem estar por lá. Refere também o perigo da reorganização, os Nazis de Ferro, que querem fazer de Portugal a sua sede. Além disso, explica Alice, os americanos souberam que ele, Jack Deane, estivera recentemente em Marselha e que tinha informações preciosas sobre nazis em fuga, a caminho de Portugal. Alice menciona o perigoso Mengele e insinua que o meu progenitor poderá saber do seu paradeiro.

O meu pai ergue as sobrancelhas. Eu? Ri-se, divertido: - Minha bela senhora ...

Também com um sorriso na cara, ela interrompe-o:

- Pode tratar-me por Alice. Afinal, por pouco não fui sua nora.

O meu pai solta uma gargalhada divertida, como se tivesse adorado a ideia de ser o sogro dela. Depois, olha para mim, já com o cinismo pendurado nas pálpebras. Esta tem uma lata! Por fim, acrescenta: - Seja ... Alice. Você é bem paga pelo Francis?

Ela fica momentaneamente abalada. Franze a testa, os seus olhos procuram-me, aflitos. O teu pai está a chamar-me puta?

Porém, recupera em segundos a presença de espírito e justifica-se. Tem de ganhar dinheiro, chegou a Portugal de mãos a abanar, o pai morreu em Moçambique cheio de dívidas. No entanto, não é essa a sua principal motivação: estes nazis são assassinos, gasearam pessoas nos campos de concentração.

O meu pai sorri, divertido, e comenta: - Você e o meu filho são uns moralistas. O bem contra o mal, essas coisas. Defendo a nossa posição, a superioridade da moral sobre o dinheiro, e Alice sorri-me com agrado. Mas o meu pai desdenha de nós: - Meus jovens, a moral é sempre a dos vencedores, sempre foi assim em dez mil anos de história da humanidade!

Depois, semicerra as pálpebras e foca-se em Alice. A mim não me enganas tu. Dá um pequeno gole no vinho que o empregado trouxe para a mesa e questiona-a, com malícia: - Você dorme com o Francis?

Alice olha-me, atrapalhada, mas não cora. O que é isto?

E revela uma enorme capacidade de domínio, respondendo: - O seu filho não me quer.

Em segundos, transformou um ataque à sua honra numa falha minha. O meu pai ri-se e eleva o copo, aprovando a sua declaração. És das minhas! Depois, olha para mim e abana a cabeça. És mesmo um palerma. Porém, acrescenta, sibilino: - Mas, Alice, o americano é um zero à esquerda.

Discorre sobre a inutilidade de Francis, dos americanos em geral e, em especial, do OSS e da sua operação, a Safe Heavens. Apelida-a de uma farsa, um passe-vite para nazis. Mira Alice e murmura: - Você não se dá com as pessoas certas.

Ela, ferida no seu orgulho, endireita as costas. Eu passei por muito! Declara que só sobreviveu com a ajuda dos americanos, que a esconderam da Gestapo nos Açores, e que um dever de gratidão a fez aceitar trabalhar para Francis, sobretudo porque os nazis que agora fogem são criminosos de guerra, perigosos e letais.

O meu pai encolhe os ombros, já um pouco zangado. O que interessa essa merda? Proclama, em voz alta: - Quero lá saber se são nazis, de ferro ou de lata, se são criminosos de guerra ou se mataram alguém na Polónia ou na Cochinchina! O que me interessa é o que eles trazem, os tesouros que roubaram durante a guerra! Já disse isso várias vezes ao Jack júnior, mas ele não me ouve. Entretanto, o prato principal do jantar já foi servido, e o meu pai batalha com as pequenas costeletas de borrego, que são difíceis de comer com faca e garfo. Irritado, num gesto repentino pousa os talheres e leva uma delas à boca, com a mão, cerrando os dentes nela e mastigando com gosto a carne. A juvenil forma de tratamento que me aplica não passa despercebida a Alice, que me dirige um sorriso de gozo e pergunta: - Jack júnior? É assim que o teu pai te trata?

Encolho os ombros, nada posso fazer para o impedir. E ele, que entretanto já tem nova costeleta na mão, a caminho de ser ferrada, prossegue, talvez com o tom de voz alto de mais para aquele restaurante, onde as paredes costumam ter ouvidos: - Os nazis vêm carregados de tesouros! Ouro, joias, quadros valiosos, obras de arte, que sacaram nas conquistas! Aquilo na Alemanha está um caos e muitos conseguem fugir!

Por um instante, vejo um brilho assustador nos olhos de Alice. Ouro? Joias? Mas nada diz, como se não estivesse deslumbrada pelas riquezas saqueadas dos nazis. Numa estranha cumplicidade com o meu pai, noto, no entanto, que também ela já come as costeletas à mão, enquanto o ouve declarar, com pompa e circunstância: - Eu sou um colecionador. Eu compro! Se pudesse, estava à saída dos museus que eles saquearam, de notas na mão, e comprava o que traziam! Quero lá saber se são assassinos, esta é uma oportunidade única! Isto só acontece uma vez na vida!

Está irredutível e continua a morder costeletas e a defender as suas teses, regando as palavras com um tinto de Bordéus. Quando termina a última, remata: - Um dos nazis tem um tesouro especial, coisas do Hitler. Mas perdi-o, em Barcelona ... Tenho de o reencontrar.

Já cansado de o ouvir, quando os pudins aterram na mesa, aviso ambos de que promovi aquele encontro com boas intenções, mas pelos vistos existe uma divergência de propósitos entre eles.

Alice quer apanhar os nazis, o meu pai quer agarrar os tesouros. Pela minha parte, sugiro ajudar no que puder os dois. Já fui às Caldas de Felgueiras e a viagem não deu em nada. Proponho partilhar com ambos os meus conhecimentos sobre as redes alemãs no Algarve, pois ainda tenho o relatório que fiz para o MI6 bem presente na memória, e no fim declaro: - Depois, cada um fará o que quiser. Eu tenciono casar e partir para Nova Iorque. Com a minha mulher.

Já não pertenço ao MI6 e a última coisa que pretendo é tornar-me um caçador de tesouros, ter problemas com a PVDE, o OSS ou os alemães. Além disso, estou apaixonado e coloco um ênfase especial ao dizê-lo. Vejo uma sombra passar nos olhos de Alice. Não digas isso. Já o meu pai, observa-me com desdém.

Isso julgas tu ... Dirijo um sorriso triunfante a ambos e peço escusa, pois preciso de ir à casa de banho.

Ao regressar à mesa, vejo que os piropos iniciais do meu pai e o agrado de Alice foram substituídos por uma tensão desagradável, que sempre existe entre duas pessoas com interesses irreconciliáveis. Alice olha-me, aliviada. Ainda bem que voltaste. O meu pai aprecia um whisky. Depois, enervado, resmunga: - Vocês são uns idealistas! É só moralidade a pataco! São como o Salazar, como os americanos, com a boca cheia de palavras grandiosas, mas depois fazem de conta e deixam fugir os nazis para a América do Sul.

Olha para Alice, com frieza e pergunta:

- Acha que o seu amiguinho americano vai prender alguém?

Vai é ficar a coçar os tomates enquanto o Mengele se pira!

Alice mexe-se, com um incómodo genuíno com aquela linguagem de caserna. Sugiro que está na altura de regressarmos a Lisboa e levantamo-nos, despedindo-nos do meu pai. Deixamo­lo a bebericar vinho no enorme restaurante do Hotel Palácio, um sexagenário solitário, desiludido e zangado.

Querido Paul, naquele momento, ao caminhar rumo ao Citroên ao lado de Alice, sentia-me aliviado. Por mais que desejasse libertar-me das emoções que ainda sentia por ela, preferia mil vezes levá-la comigo do que deixá-la nas mãos do meu pai. Ao contrário do que ele prometera, não ma roubara. Pelo menos, era o que eu pensava.

- Porquê, eles não simpatizaram um com o outro, pois não?

Sim, Paul, era o que parecia. Mas com aqueles dois nem tudo o que parecia era verdade. Aliás, normalmente não era.

 

Um homem a quem a sua amada se negou é um homem frágil.

Ao guiar pela Marginal, com Alice no banco do lado, há uma luta dentro de mim. Luisinha não quis estar comigo esta tarde, e isso doeu. Preciso dela, preciso de mulher. Mas não Alice, não quero submeter-me a ela, apesar de a tentação ser forte.

De olhos postos no mar, as luzes da estrada vão iluminando a sua bela cara, de forma intermitente. É como se ela estivesse acesa umas vezes, outras ficando na sombra. Vamos serpenteando junto às ondas, na estrada que o regime inaugurou há uns anos, enquanto Alice revela o seu desapontamento com o meu pai: - Jack Gil, dizem que as mulheres são interesseiras, que casam por dinheiro. É verdade. Mas ganância como os homens têm nós não temos.

Os homens, defende Alice, perdem a cabeça por um bom negócio, tornam-se irracionais. Às mulheres o que lhes importa é a garantia do futuro, de que terão com que alimentar os filhos. Já os homens são capazes de vender tudo, até os filhos, por dinheiro.

Naquela noite, guiando o Citroên com atenção, pois as curvas da Marginal são apertadas, talvez me tenha escapado o oculto sentido desta frase, até porque de imediato me distraí com a seguinte.

- Conheci muitos como o teu pai.

Ouvir isto afasta-me dela. Parto para longe, para perto de Luisinha, para perto da fidelidade. Mas estou farto de ouvir falar do meu pai, por isso ordeno a Alice que abra o porta-luvas, há lápis e papel por lá, para ela tomar notas sobre o que vou dizer.

Alice sorri. Não gostas da conversa? Abre o porta-luvas, mas o que retira de lá é o coldre de uma faca. Fica intrigada: - O que é isto, Jack Gil?

Explico que é a Randall do Michael, que trago sempre comigo desde que ele morreu. Alice retira a faca do coldre e admira a sua lâmina, enquanto a aviso de que tenha cuidado, pois é muito afiada e pode magoar-se. Ela recoloca a faca no seu lugar, pousa ambos dentro do porta-luvas e murmura: - Se fosse um quebra-nozes, ainda lhe dava uso, agora uma faca ...

É um Satanás sem cauda, como avisou Harry. A referência ao quebra-nozes é para me recordar da reputação lasciva que Michael construiu para ela. De Alice dizia-se que caminhava nua pelo chão, apanhando nozes com a boca, excitando os homens.

A pantomima, apesar de inventada, ainda tem poder erótico sobre mim, e sinto desejo. Ela ri-se, agradada. Lembras-te? Atrapalhado, pergunto porque não tira o papel e o lápis. Ela diz que tem boa memória, precisou de decorar muitas peças de teatro nos seus tempos de Moçambique.

Então, começo a descrever-lhe o que sei sobre as redes alemãs no Algarve. A de Vila Real de Santo António, as várias que existem em Faro, a de Portimão, a de Lagos e a de Sagres. A maior parte delas estão desativadas, sendo que esta última foi desmantelada por mim e por Michael, há dois anos. Recordo-me em silêncio de Rosa, a rapariga corada e muito marota com quem dormi uma noite, num palheiro, como nos filmes americanos. O que será feito dela?

Alice vai memorizando as minhas informações. Asseguro­lhe que, se os nazis estiveram escondidos no Algarve, devem ter contactos com as células que descrevi. No entanto, não lhe revelo a única que ainda sei que está ativa, em Faro. Gosto de guardar trunfos na manga.

Sem saber de tal omissão, Alice parece agradada e diz: - Obrigada, Jack, o Francis vai ficar contente.

Ouvir esta declaração afasta-me outra vez dela. Aposto que irá a correr entregar a Francis as novidades, receber o seu dinheiro e depois deitar-se na sua cama. Já a conheço. O que vale é que estamos quase a chegar à sua pensão, na Graça. Alice vai-me indicando o caminho até pararmos, uns metros à frente da porta.

Parece-me ver pena no seu olhar. Vamos acabar assim?

Acendo um Gauloise, pergunto-lhe se foi sempre aqui que viveu no passado, antes de partir para os Açores. Ela nunca me disse onde vivia.

Alice elucida-me: - Tenho umas amigas por perto. Vivi com elas uns tempos, mas depois mudei-me para aqui. Dou-me muito bem com a dona, faz-me um bom desconto. Tenho cama e roupa lavada e não preciso de limpar a casa.

Alice não é dada à vida doméstica, faz sentido que viva numa pensão. Coloca um sorriso triste no rosto e depois suspira: - Não tenho homem a quem lavar camisas. Infelizmente, cheguei tarde ...

Pede-me um cigarro e acende-o. Devias ter sido tu, diz o seu olhar. Suspira outra vez, inconformada, e diz: - Nos Açores, pensei muito sobre o futuro.

Sentira-se bem como professora, mas sabia que a Terceira era um porto de abrigo provisório, um dia iria voltar ao continente.

Assim foi. Contudo, Francis exigiu que a colaboração fosse total.

Ela resistiu. Queria ser professora em Lisboa, o resto podia fazer nas horas vagas. Francis não autorizou. Alice suspira mais uma vez, olha para mim. Foi um erro. Depois, diz: - Eu queria assentar. Ir falar contigo. Mas o Francis proibiu-me. Só me pagava se eu prometesse que não ia procurar-te. Tive de aceitar ...

De repente, Alice sorri e acrescenta: - É irónico. O mundo deu uma volta e acabei mesmo por ter de falar contigo. O OSS não sabe nada sobre o Algarve, nem eu sei, só tu.

Dá uma passa no cigarro, expirando o fumo, que se escapa pela janela. No outro lado do passeio, caminha um polícia de giro, que nos observa a conversar dentro do carro e prossegue, rua abaixo. Alice convenceu o americano da necessidade imperiosa de falar comigo, pois só ela me conhecia bem. Olha-me, ansiosa.

É verdade! Francis estava renitente, mas acabou por ceder. Ela murmura, com a voz sumida: - Queria mesmo ver-te, Jack Gil, tinha tantas saudades tuas.

Mas ele obrigou-me a esperar tanto tempo que te perdi ...

Entre o início de maio e o início de julho, eu apaixonara-me por Luisinha e tomara a decisão de casar com ela. Noto que uma lágrima nasceu no canto do olho de Alice, que ela rapidamente seca com a ponta do dedo. Depois, funga e diz: - Só me deixou falar contigo depois de saber que tu já estavas noivo.

Uma primeira lágrima cai-lhe pelo rosto. Retiro o lenço da lapela, que o meu pai me obriga a usar, e que Luisinha tanto gosta que eu use, e ofereço-o a Alice. Ela enxuga as lágrimas e depois assoa-se. Embaraçada, pede desculpa e faz um gesto para sair do carro, mas eu seguro-lhe no braço. Olha para mim, dorida. Não sabes o que sofri! Não a quero deixar ir assim e digo: - Alice, eu amei-te muito, tive uma paixão por ti. Mas ...

Ela abre um sorriso ao ouvir-me falar em amor e paixão. Eu também! Todavia, no segundo seguinte, fica suspensa no meu «mas». Franze a testa. Mas o quê? Explico-lhe que não podemos viver de memórias, por mais fortes e intensas que sejam.

Ela interrompe-me, com um sorriso feliz: - Podemos sim. Só pensava em ti nos Açores!

Suspeito deste acesso de romantismo. Lembro-me de Michael, de Francis, de Fulgêncio, de todos os homens com quem dormiu ao mesmo tempo que me amava, e isso afasta-me de novo dela, sinto-me outra vez mais perto de Luisinha. Essa não me trai, nunca me enganou.

- Alice, eu estou noivo e ...

Devia ter acrescentado que estava apaixonado por Luisinha, mas não o fiz, acho que ainda estou irritado pela rejeição dela, pela sua falta de vontade em ir para minha casa, esta tarde. Alice pressente a minha hesitação, semicerra as pálpebras um segundo, como se tivesse descoberto um segredo só meu. Não a amas!

Depois, muda num segundo de expressão, recupera o ar dorido, funga mais uma vez, comovida, e declara em voz baixa: - Nunca fui tão amada como por ti. Posso ter tido muitos homens, mas nenhum me levou ao céu como tu. Por ti dava tudo ...

Estranha e perversamente, acredito nela. Tenho a certeza de que me amou e muito. O amor é terrível, mesmo quando é correspondido. O problema de Alice não é a força dos seus sentimentos, mas a sua permanência, a sua constância. E os seus interesses.

Contra a minha vontade, esta declaração arrebatada produz efeitos, e nascem imagens no meu cérebro. O corpo dela, nu, deitado numa cama; o umbigo dela, os seus gritos roucos de fêmea satisfeita. Começo a ficar excitado, o meu corpo a exigir revisitar a comunhão com o seu.

Alice sente a minha emoção, entre nós sempre houve uma espécie de telepatia sexual. Olha para mim. Tu queres, eu sei!

Movimenta-se no banco do carro, pousa a sua mão na minha perna, encosta-se a mim. Aproxima a cabeça, beija-me na cara, e depois, com a mão, força o meu pescoço a girar, para me poder beijar na boca.

Com gentileza, recuso o seu beijo, afasto a cara para o outro lado e murmuro: - Alice, desta vez é diferente.

É verdade, mas também é mentira. Eu quero resistir, quero ser fiel, quero proteger o meu amor por Luisinha da corrupção desta traição, mas, ao mesmo tempo, sei que fui rejeitado, não fui satisfeito por ela esta tarde, o meu corpo sabe disso, está vivo o meu sexo, mexe-se já, crescendo. Alice sabe-o também. Semicerra as pálpebras e olha para lá. Tu queres, olha para baixo, para as tuas calças. Instintivamente, mexo as pernas, para que ela não veja com tanta nitidez o quanto a desejo. E murmuro: - Para, por favor.

Alice não se afasta um milímetro, a sua mão continua pousada na minha perna, o seu corpo quente encostado ao meu, a sua boca tão perto da minha que sinto o seu hálito saboroso. Os seus olhos brilham. Quero-te! Avança a mão, toca-me no meio das pernas e eu fecho os olhos, em luta. Não quero passar esta fronteira, não posso, mas já quase não há resolução em mim, estou cego por ela!

Alice continua a tocar-me, observa-me e sorri, orgulhosa de si própria. Só eu sei o que tu gostas. As mulheres sentem as falhas das rivais, cheiram a fome de sexo dos homens. Os dedos de Alice chegam ao meu fecho éclair, puxam-no para baixo, e tocam nas minhas cuecas, apenas um pequeno tecido entre a sua pele e a minha. Respiro, agitado. Não vou conseguir resistir, não é possível.

Ela sorri. Vês? Sabe que venceu e então desaperta-me o cinto das calças e o botão, cria espaço, e enfia a sua mão dentro das minhas Cuecas. Os seus olhos brilham. Tu és meu! Aproxima a sua boca da minha e beija-a, as nossas línguas tocam-se, enquanto lá em baixo me envolve com a mão. Fecho os olhos, inebriado, esqueço-me das minhas promessas, das minhas decisões, e cresço mais, forte e cheio, entre os seus dedos.

Depois, ela liberta-se do beijo e olha para baixo, para a sua mão. Sorri, triunfante. Tu também és meu! Mexo-me no banco, atabalhoado, ela puxa-me as cuecas e as calças para baixo, e lentamente, vai baixando a cabeça até a sua boca pousar sobre o meu sexo, beijando-o primeiro, depois lambendo-o com a língua e só no fim o envolvendo, metendo-o na boca. Estou em fogo, doido com o que sinto, e ela sabe-o, e começa a chupar-me, a sua cabeça movimentando-se, para cima e para baixo, dando-me enorme prazer.

Fixo as mãos no volante e observo a rua, e nesse majestoso momento em que me sinto enlouquecer vejo o polícia, o que há pouco passou, vir na nossa direção. Está a dez metros de nós e já viu o que se passa, pois avista o cocuruto da cabeça de Alice aos pulos, para cima e para baixo, já percebeu o que ela está a fazer. Enquanto avança, puxa do apito, leva-o à boca e ouve-se um silvo estridente, que faz eco nos prédios da rua.

Com brusquidão, grito a Alice, ao mesmo tempo que a afasto para o lado, com força. Atarantada, não percebe. Estás doido? Mas o polícia apita outra vez e ela vê-o finalmente, fica aflita, enquanto eu, o mais rápido que posso, puxo calças e cuecas para cima, aperto o cinto e componho-me, até que o agente chega ao pé do Citroên e toca no vidro da janela, exigindo-me que o desça.

Assim faço. Alice, a meu lado, está com um ar alarmado, mas composta. Oiço uma voz dizer: - Boa noite, os seus documentos.

É um homem gordo, de bigode, com uns olhinhos nada espertos, saltitando atrás de uns óculos com aros pretos e grossos, mas parece determinado. Não me observa diretamente, examina a rua, como se estivesse a procurar testemunhas, a aprovação de alguém, enquanto espera que lhe entregue os meus papéis. Vendo que Alice não reage, avisa: - Os da senhora também ...

Entrego-lhe a minha identificação e depois a de Alice, e ele passa alguns minutos a examiná-las, como se fossem longos e minuciosos textos, com elevado grau de dificuldade. Talvez o facto de eu ser inglês o esteja a incomodar. Relutante, pergunta: - Senhor ... ahh Jack ... Deane, é assim?

Corrijo-o: é Deane, sem acento, digo em português. Ele aceita, com um aceno de cabeça, e depois interroga-me:

- O senhor sabe que são proibidos comportamentos impróprios na rua?

Lanço-me numa defesa acesa da nossa moralidade: não se estava a passar nada dentro do carro, somos apenas dois amigos a conversar. Afirmo que Alice está instalada na pensão, como hóspede permanente, mas ele franze o sobrolho e questiona: - Hóspede permanente, essa senhora?

Alice confirma: vive ali há quase um ano. O polícia murmura algo incompreensível e depois declara, em voz pausada: - A senhora trabalha ali na casa da luz vermelha, a duas ruas daqui. Já a vi sair de lá a altas horas ...

Alice indigna-se de imediato. Em voz alta, protesta, diz que a dona da pensão coloca a chave lá, quando ela chega mais tarde, pois tem medo de deixar a porta aberta, não vá a pensão ser assaltada! Além disso, a dona da casa da luz vermelha é sua boa amiga, mas isso não quer dizer que ela trabalhe lá!

O polícia escuta-a com atenção, mas não parece acreditar nela e acusa: - A senhora estava a praticar um ato proibido!

É a minha vez de franzir o sobrolho, fingir ofensa da honra.

Contesto-o, mas ele rapidamente cita o novo regulamento moral e dos costumes, de que me falou o meu advogado, e proclama, confiante: - Está lá dito: com a mão no coiso, ou com a boca no coiso, dá direito a prisão e multa! Prisão para a senhora e multa para o senhor!

Num segundo, Alice desata num pranto e jura que não é uma mulher da vida, nem estava a praticar o ato de que ele a acusa. Adianta que ele deve ter visto mal, ela apenas se baixou para enfiar uns papéis no porta-luvas!

De pronto, imita esse gesto, baixa a cabeça e retira o meu caderno do porta-luvas, deixa-o cair, para poder baixar e levantar a cabeça várias vezes, numa tentativa de provar o que estava a fazer. É muito convincente, nunca me posso esquecer de que ela é atriz de teatro, e o polícia começa a ceder, duvida agora de que ela seja uma profissional do sexo, e então olha para a rua.

Como ninguém veio à janela, não há plateia, ninguém para criticar o seu recuo, ele lá acaba por admitir que não a vai prender.

- Se não foi solicitação, não a prendo. Mas eu sei o que vi, e é um comportamento impróprio, dá direito a multa. A senhora pode ir para casa, mas o senhor terá de me acompanhar à esquadra.

Alice está perplexa, não sabe o que fazer. Pergunto ao polícia se posso ir de carro e ele diz que sim, mas sem a senhora. Então sugiro a Alice que entre na pensão e suba ao quarto, vou tentar voltar logo que puder. Relutante, lá acede, mas resmunga que é melhor eu não voltar hoje, pois vou demorar muito tempo na esquadra, estes polícias mal sabem escrever. Diz que me fala depois. Vejo-a sair, bater a porta do carro, enervada, e entrar na pensão.

Estranhamente, sinto-me outra vez aliviado.

É verdade, Paul, foi exatamente assim que me senti. Na mesma noite, primeiro senti-me aliviado por estar com ela, por a ter livrado do meu pai, e no fim senti-me aliviado por ter sido afastado dela. O amor é assim, difícil de entender.

- E o que aconteceu a seguir?

O polícia fez-me sinal para o seguir e lá fui no Citroên, atrás dele, que ia a pé, percorrendo as ruas da Graça. Dei por mim a pensar que há males que vêm por bem. Se não fosse a súbita aparição deste agente, teria traído Luisinha. Pior do que isso, teria ficado de novo enfeitiçado por Alice.

Já estava, mas naquela noite ainda achava que não. O amor é complicado, meu querido neto. Às vezes, o que não chega a acontecer é mais perigoso do que o que acontece.

 

Madrid, 12 de julho de 1945

Por estes dias, Manfred circulou por Madrid. Não sei se esteve lá sempre, mas sei que andou por lá. Conseguiu despistar os que o seguiam, fossem eles os judeus ou os caçadores de tesouros pagos pelo meu pai, que lhe perderam o rasto em Barcelona, pensando que ele tinha embarcado com os pescadores tunisinos, rumo a Cádis, e sem nunca o terem encontrado por lá, ou em qualquer porto intermédio.

O alemão era esperto, sabia sumir-se, e em Madrid era muito mais difícil darem com ele. A cidade era maior, além de existirem bem mais apoiantes das suas ideias do que em Barcelona, terra de esquerda, de republicanos, comunistas, socialistas e maçons.

Madrid era diferente, era franquista, falangista, fascista, e ele passou dias a falar com homens que admiravam a Legião Condor, que agradeciam aos alemães por terem bombardeado Guernica, e que lamentavam a morte de Hitler e o fim do Terceiro Reich.

Em certos dias, Manfred acreditou mesmo que seria ali, na capital de Espanha, que o fascismo renasceria, que os nazis se iriam reorganizar. Ouviu falar pela primeira vez nos Nazis de Ferro, que, em Portugal, tentavam relançar o Terceiro Reich.

E também ouviu dizer que os sobreviventes do regime nazi iriam chegar a Madrid e reagrupar-se, relançando a causa e a desforra da Alemanha contra os Aliados.

Encheu-se de ânimo. Queria lá saber da Conferência de Potsdam, que diziam estar a preparar-se para breve, entre Estaline, Truman e Churchill! Os supostos vencedores bem que podiam dividir o seu país, festejar, que seria sol de pouca dura. Os nazis iriam renascer das cinzas, como a Fénix, e não faltaria muito para chegarem os seus líderes.

Esperou ansiosamente essa aparição, mas aos poucos foi-se dando conta de que ninguém chegava, nem um único general nazi, nem um único chefe saíra da Alemanha vivo. No entanto, teimoso, não perdeu a esperança, e por várias vezes, em reuniões em casa de outros alemães, mostrava as suas relíquias, o retrato da mãe de Hitler, a pistola com as iniciais A. H., a fotografia da cadela Blondie, como prova de que o espírito do Führer estava vivo nesses bens, de que à volta dele se podiam reunir e relançar, de que era necessário continuar a acreditar que o futuro seria risonho e o fascismo alemão não tinha perecido.

As pessoas olhavam para ele um pouco desconfiadas, e ele pensava mal delas. Cobardes, traidores. Era gente fraca, gente patética, que temia ser deportada para a Alemanha, mesmo estando instalada em Madrid, o centro da sua fé, protegida pela Seguridad de Franco, que era quase tão boa como a Gestapo.

Furioso, deixou de comparecer a jantares e convívios, e tentou aproximar-se dos falangistas, imaginando que conseguiria convencê-los da necessidade de ajudar a Alemanha a renascer.

Ao princípio, os espanhóis com quem falava estavam de acordo com ele e animavam-no, mas um dia um deles abanou a cabeça, no meio de uma discussão, e disse a outro: «Vais acabar como o Manfred, maluco.» Foi aí que ele percebeu a opinião que todos tinham dele. Consideravam-no um desmiolado, cujo cérebro havia sido moído parcialmente pelas bombas de Munique, e que delirava com a quimera do regresso do Terceiro Reich. Como era simpático e inteligente, gostavam da sua companhia, como quem estima a presença de um gato. Mas não acreditavam nele, nem davam qualquer tipo de credibilidade ao retrato da mãe de Hitler. «É feia», ouviu um dizer nas suas costas. «É parecida com o filho», acrescentou outro. Mas nenhum reconhecia que aqueles retratos eram o futuro, uma garantia de renascimento dos nazis, e nenhum se dispôs a ajudá-lo a reconstruir o partido nazi a partir de Espanha. «Então, Manfred, a guerra acabou, tens de te conformar!», dizia um. «Deixa lá o retrato e come um jamon», consolava-o outro. Passavam a vida a beber, a comer, a fumar e a ir às putas, e depois chamavam-lhe louco, doente da cabeça, pírulas, impotente. Velhacos. Putanheiros.

Começou a odiá-los e decidiu que estava na hora de partir.

Um dia, acordou prostrado. Estava a chover em Madrid e ele quase que nem conseguia levantar-se, tal era o peso das suas desilusões, das suas ideias apodrecidas. Sentia-se doente, mas sobretudo estava agora certo de que tudo tinha acabado, de que o fascismo já não iria crescer na Alemanha. Enervado, esteve tentado a deitar o retrato da mãe de Hitler na retrete da casa de banho. Mas parou no último momento. A mulher não tinha culpa.

Além disso, aquela relíquia podia ser valiosa para alguém.

Manfred possuía cada vez menos dinheiro e lembrou-se dos caçadores de tesouros. Talvez eles pagassem uma boa maquia por aqueles artefactos. Podiam já não servir como inspiração política, mas eram do próprio Hitler, vestígios da história do mundo!

Poderia vendê-los, mas não ali, em Madrid. Mais valia continuar a sua marcha para Ocidente e despachá-los só em Lisboa.

Decidiu partir. Porém, na véspera de se ir embora encontrou um alemão que lhe disse que o renascimento do Terceiro Reich se começara a preparar numa pequena vila portuguesa, Caldas de Felgueiras, para onde tinham sido enviados os principais nazis que viviam em Portugal. O regime de Salazar, pressionado pelos Aliados, recolhera estes homens numa «residência fixa», e eles estavam a organizar a revolta. Eram os célebres Nazis de Ferro, e tinham dinheiro e poder no país, e muitos amigos na polícia secreta de Salazar. Manfred foi incentivado a ir ao seu encontro, a falar-lhes no retrato da mãe de Hitler, e para isso teve de mudar o rumo da sua viagem.

Decidiu entrar em Portugal pela fronteira de Vilar Formoso.

De lá, conseguiria transporte para as Caldas de Felgueiras. De repente, sentiu-se outra vez animado, renovado, crente na capacidade de regeneração das forças nazis. Os seus conterrâneos que viviam em Madrid podiam ser preguiçosos, venais, corruptos, cobardes, mas talvez os que estavam em Portugal tivessem outra fibra.

Sorriu, ao soletrar o nome: Nazis de Ferro. Estes sim, eram da sua estirpe. Indomáveis! O abatimento que o tinha prostrado ainda ontem desvaneceu-se, e sentiu-se imbuído de uma nova força interior, capaz de mover montanhas. Os nazis iam regressar, iam vingar-se, iam voltar a dominar a Europa e o mundo! Já não com Hitler, mas com outro, que surgiria das cinzas, limpo e magnífico! Pôs-se a caminho no dia seguinte.

Hoje, ficamos por aqui, com um nazi a decidir ir para Portugal.

Estamos mais ou menos a meio desta história e aproximam-se situações que me custam a descrever-te, querido neto.

Portanto, tens de aceitar uma regra: quando estiver a falar de sexo com a tua avó, não conto detalhes. Com Alice, ou com as outras, está bem, mas com a tua avó não, okay?

- Porquê, avô? Parece-me que os pormenores são importantes.

Este rapaz é só curioso, ou é mesmo um bocadinho perverso, como o avô?

- Avô, as mulheres contam tudo umas às outras, sejam avós, tias ou amigas. Porque temos nós de sentir tanta relutância?

Este miúdo é esperto e ainda vai acabar por me obrigar a falar sobre o que não queria. Mas amanhã veremos ...

 

Lisboa, 12 de julho de 1945

Sentada num banco do Jardim da Estrela, ao meu lado, Luisinha exibe um desespero evidente. Mentiu à mãe para poder encontrar-se comigo. Disse que ia à farmácia e a mãe acedeu, não lhe passou pela cabeça uma patranha, nem que era falsa a indisposição que a filha dizia sentir, ou inventada a necessidade de ouvir os conselhos do farmacêutico que as mulheres da família costumavam consultar, aquando das enxaquecas.

Prosseguiam as réplicas do nefasto encontro entre Salazar e o meu pai. A família Silva ficara profundamente ressentida com a falta de respeito que ele demonstrara perante o presidente do Conselho, a quem tentara corromper! O general mortificava-se: nunca mais Salazar o iria olhar com os mesmos olhos! No seu espírito ficaria, até à eternidade, uma nódoa irreversível, a descolorar aquela amizade antiga!

O que ele e o resto da família mais temiam era serem despromovidos no afeto do governante, perdendo o estatuto de amigos íntimos. Não perdoavam ao meu pai não só a ofensa concreta, mas sobretudo as suas consequências, o golpe profundo na sua posição ímpar de notáveis no círculo, muito íntimo e reduzido, do ditador.

Desalentada, Luisinha conta: - O paizinho nem parece o mesmo, está sempre zangado.

Ontem declarou que, lá em casa, o seu pai era persona non grata!

Assim, em latim e tudo!

Pior ainda do que as proclamações dramáticas do general eram as raivas venenosas de Dona Guilhermina. Apesar de ter sido seduzida pelo charme do meu pai no início, a matriarca sofrera um tal choque ao saber da refrega com Salazar que de pronto se convencera da existência de malignas características naquele cavalheiro, em que decerto nunca reparara. A admiração apatetada de donzela transformara-se num surpreendente ódio, destilado em desabafos irrazoáveis, como conta Luisinha: - Diz que só um comunista falta ao respeito ao Salazar!

No cérebro assaz limitado de Dona Guilhermina, a pura má-criação e a ousadia corrupta e venal do meu pai eram rapidamente reduzidas a «comunismo», por mais estranho que isso pudesse parecer, pois, na verdade, as crenças do meu progenitor eram opostas às dos comunistas. Sinto-me na obrigação de defendê-lo, digo a Luisinha que ele pode ter muitos defeitos, mas comunista não é, bem pelo contrário, é um capitalista com cê maiúsculo.

Luisinha olha para mim, ainda mais alarmada: - O Jack não está a perceber! Quando a minha mãe chama comunista a alguém, isso é o fim. É assim que ela despede as criadas!

O importante não era a avaliação política errónea de Dona Guilhermina, mas sim o seu significado prático. Se ela chamava comunista ao meu pai, jamais voltaria a aceitá-lo por perto, e o nosso namoro estava condenado.

Suspiro, abatido, e murmuro: - É uma maçada, não sei o que fazer.

A meu lado, a rapariga agita-se, abre muito os olhos, incrédula.

Uma maçada? Abana a cabeça, desagradada.

- Acho que o Jack não está mesmo a perceber ...

Há qualquer coisa retida dentro dela, que lhe custa deixar sair. Olha para o fundo do jardim, desiludida comigo. Uma maçada ... Então dou-lhe a mão, procuro acalmá-la, e afirmo, com convicção.

- Luisinha, eu amo-a, nada vai alterar isso.

Ela tenta sorrir, mas está torturada pelos seus pensamentos.

Os olhos enchem-se de água e choraminga. Aproximo-me mais, abraço-a, tento carinhosamente confortá-la, pergunto-lhe o que a faz chorar. Ela não responde ainda, e então defendo que o tempo cura tudo, que daqui a uns tempos Salazar já nem se lembra do meu pai. Mas ela abana a cabeça e olha para mim, abatida. Não é isso, o Salazar não me interessa. Por fim, soluça e revela: - Jack, a minha mãe proibiu-me de casar consigo!

Eu já esperava que a enxurrada me atingisse com força. Mas proibir o nosso casamento? Isso é de mais! Indignado, grito: - Mas eu limitei-me a guiar o Citroên, o Salazar nem me viu Luisinha sabe que não tenho qualquer culpa naquele cartório, mas a fúria da mãe é implacável. Dona Guilhermina proferiu o seu castigo supremo há dois dias, ao jantar, e ninguém se opôs.

Os irmãos aplaudiram a minha expulsão e até o general, que sempre me tratara com simpatia, declarou que a sua filha não podia casar com o filho de um gangster de Chicago! Por mais que Luisinha me defendesse, e gritasse bem alto que era maior de idade e casaria com quem quisesse, a família recordou as minhas antigas falhas - o noivado abortado com Carminho, as duvidosas companhias femininas, a defesa das democracias - com o evidente propósito de me eliminar.

Luisinha conta-me que, a dada altura, se levantara da mesa, derrotada pela intensidade da refrega, onde era minoritária e solitária, e se escondera no quarto consumida por uma enorme revolta, além de constantes dores de cabeça. Olha para mim, aflita. Não sei que fazer ...

Respiro fundo, colocando um ar muito sério, e pergunto-lhe se tem dúvidas sobre nós, se considera que é melhor terminarmos o namoro. Ela faz uma expressão de puro terror, abre os olhos ainda encarnados do choro. Nem pensar! E exclama: - Tudo menos isso! Eu amo-o, sempre o amei, desde o primeiro dia!

Sorrio-lhe, agradado pela declaração, e sinto uma emoção forte por ela. Esta é a minha Luisinha: determinada, apaixonada, arrebatada. É dela que eu gosto, é com ela que quero ficar. Pode ser menos ousada e muito menos sabida do que a outra, mas é pura de coração e segura, como uma rocha, nas suas convicções.

Tenho de a apoiar. Estamos unidos, os dois contra o mundo. Exclamo: - Luisinha, vou casar consigo, mesmo que a sua família proíba.

E, se for preciso, fugimos!

O efeito é instantâneo. A sua cara abre-se num sorriso alegre e jovial. A sério?! Está entusiasmada com a minha segurança e com a ideia de uma fuga a dois. Os seus olhos já brilham. Que romântico! Então diz, animada: - Ó Jack, o que eu gostava! Podíamos ir para a América, adorava conhecer Hollywood!

Por um segundo, temo que a paixão de Luisinha pelo cinema americano e a sua vontade de conhecer a Meca do celuloide sejam uma motivação mais inflamada do que o seu afeto por mim. Ela parece em êxtase, bate as pestanas, sonhadora. Hollywood! Depois murmura, emocionada: - Credo, até estou com pele-de-galinha.

Num arremesso de excitação talvez um pouco prematuro, Luisinha quer determinar a logística, se casamos antes ou depois da viagem, se vamos de barco ou num Clipper da Pan Am. Surpreendido, murmuro: - De Clipper é difícil, os bilhetes são caríssimos!

Mas ela não está para realismos. Há uma luz nos seus olhos que nunca vi. Que espetáculo! Murmura, sorridente: - Fugíamos de avião, como no Casablanca!

Abraça-me, feliz, e dá-me um longo beijo na boca. Em segundos, as minhas mãos deslizam pelo seu corpo, aproximando-se perigosamente das pernas, e logo ela me avisa de que estamos num jardim público. Continuamos então a conversa sobre o futuro, indecisos sobre qual o melhor caminho. Casar primeiro e fugir depois, ou fugir primeiro e casar depois? Chegamos à conclusão de que é melhor a segunda hipótese, pois a oposição da família dela impedirá certamente qualquer casamento católico em Portugal.

Aliás, verifico que, tal como eu, Luisinha está farta do país, de Salazar e do seu regime. De repente, murmura: - A não ser que antes haja um golpe ...

Franzo o sobrolho, curioso, e ela refere que ouviu os irmãos preocupados com algumas movimentações militares nos quartéis.

Devido à recessão, que todos os dias se agrava, temem que se repitam as agitações. Mas ela não tem grande fé nisso e, portanto, prefere claramente a segunda hipótese. O problema são os documentos. Para obter um passaporte, Luisinha precisa também da aprovação dos pais, apesar de maior de idade.

Então eu afirmo: - Talvez haja outra solução.

Ela olha-me, com enorme expectativa. Qual? Conto-lhe que posso obter documentos falsos, conheço quem os faça. Ela abre ainda mais os olhos. Que excitação! Damos um novo beijo, decididos a fugir. Como, veremos depois. Talvez possamos ir para Espanha e de lá apanhar o avião.

De repente, Luisinha fica muito séria, e pergunta: - E o seu pai, acha que ele nos ajuda?

O comportamento do senhor Jack Deane é sempre difícil de prever e defendo que não devemos revelar-lhe as nossas intenções. Ninguém saberá do nosso projeto, só nós. Luisinha abraça­me mais uma vez, apaixonada. Os seus olhos continuam brilhantes.

Amo-o tanto. Depois, mais serena, declara: - Nesse caso, é melhor continuar a ajudá-lo, para ele não suspeitar.

Logo a seguir, pergunta:

- O Jack soube mais coisas sobre o tal criminoso nazi?

Respiro fundo e sinto um certo embaraço. Ainda não lhe contei de Alice e, se uma parte de mim prefere evitar fazê-lo, a outra sente-se mal por ocultar a Luisinha o encontro. Acendo um cigarro, digo-lhe que continuo a tentar saber mais sobre Mengele e que talvez tenha de ir ao Algarve em breve. Por fim, sinto que chegou o momento e afirmo: - Luisinha, quero contar-lhe uma coisa.

Ela abre os olhos, mais uma vez alarmada. O quê? Mas permanece calada, à espera. Revelo-lhe que Alice voltou. Aos poucos, vou explicando quem é ela, o que vivemos juntos, porque se foi embora e porque regressou agora. E descrevo-lhe o jantar com o meu pai, no Hotel Palácio.

Ela mostra-se preocupada, e pergunta: - O Jack ainda tem sentimentos por ela?

Os seus olhos estão parados, fixos nos meus. Não me minta. Revelo que já estive apaixonado por Alice, no passado. Garanto­lhe que duvido do seu caráter, não confio nela, enganou-me muitas vezes, com outros homens e também como espia. Não é mulher para mim, declaro com convicção.

Reparo que Luisinha está a aguentar este momento com estoicismo. Nenhuma mulher gosta de que o homem que ama fale das outras mulheres da sua vida, e todas temem que, por baixo de uma verdade declarada, exista um turbilhão de emoções ainda vivas, um passado que se quer reviver. E têm normalmente razão nesses receios, embora prefiram saber com o que contam do que andar no escuro. O amor é terrível, mesmo quando é correspondido...

Por fim, afirmo: - Achei que devia ser eu a contar-lhe isto, temia que chegasse aos seus ouvidos e isso a magoasse, a desiludisse comigo.

A rapariga aprova a minha decisão. Fez bem. Pergunta-me o que tenciono fazer, e eu revelo que irei ajudá-los, ao meu pai e «à outra».

Luisinha franze a testa, desconfia da expressão que usei.

À outra? Parece-lhe talvez uma falta de respeito por alguém que se amou, ou uma apressada forma de a desvalorizar com o óbvio propósito de a impressionar a ela.

Mas a sua curiosidade mantém-se: - Ela vai ao Algarve consigo?

Mantém-se fixada em mim, de novo de olhos parados, mas presos nos meus. Não me minta. Digo-lhe que não, ela não tem de se preocupar. A sombra de Alice desaparece daquele banco de jardim e voltamos a beijar-nos. No entanto, a presença de um polícia, a passear no Jardim da Estrela, recorda-me o que se passou há dias e o maldito «regulamento dos costumes», e suspendemos os nossos beijos, não vá o homem implicar connosco.

Regressamos a casa e, no caminho, passamos na farmácia, para ela comprar uns remédios para mostrar à mãe.

Já no hall do seu prédio, agarro-a e aproveito a relativa escuridão do local para a beijar apaixonadamente, na boca. Para minha surpresa, desta vez Luisinha empurra o seu corpo contra o meu. Aperto-a nos braços, digo-lhe que a quero muito, e levo a mão ao seu rabo, que apalpo com intenção. Ela murmura, de olhos fechados: - Oh, Jack, quero casar depressa ...

De súbito, ouvimos um barulho, alguém desce a escada e chega ao patamar da entrada. Desengatamo-nos e vemos o doutor Antunes a observar-nos, com um ar reprovador. O vizinho da frente da família Silva é um acérrimo defensor dos costumes antigos, além de muito dado a mexericos, e logo que puder fará certamente chegar aos ouvidos de Dona Guilhermina o nosso inflamado pecadilho. Damos-lhe as boas-tardes, sabendo já que vamos pagar um elevado preço por este abrasador momento.

Pronto, Paul, pus a mão no rabo da tua avó, ela empurrou-se contra mim, começou uma nova vida entre nós! Mas, ao mesmo tempo menti-lhe, disse-lhe que não tinha sentimentos por Alice, e omiti-lhe a cena do carro.

- Avô, não há ninguém que não minta nessas coisas ...

Tens razão, meu querido neto, tens razão. O amor nunca foi incompatível com a mentira. Muitas vezes, é mesmo uma vítima da verdade.

 

Lisboa, 15 de julho de 1945

O homem parece ter envelhecido dez anos, tal é o seu estado.

Tem os olhos raiados de sangue, os dentes amarelecidos pelos cigarros, a barba cristalizada, há dias por fazer, a pele enrugada e encardida e um ar de desolação geral na sua postura. Klop é um urso enorme, quase com um metro e noventa de altura e largo como o tronco de um carvalho, mas aquele maciço colosso parece uma marioneta desengonçada, atirado para cima de um sofá, com a camisola interior apenas a cobrir-lhe o tronco, as calças sujas, o que são aquelas manchas, terá vomitado?

Encontrei o russo onde menos esperava, numa casa sombria para mim. Foi aqui que matei um homem, com a ajuda de Klop, e nunca pensei que ele estivesse cá a viver, é uma imprudência.

Durante dias, Roberto e eu procurámo-lo. O russo é um especialista em interrogatórios e com má fama, de bruto e cruel. Mas foi-nos muito útil no passado, Michael e eu recorremos várias vezes aos seus serviços, e esteve no Algarve, conhece as redes alemãs por lá.

Odeia nazis e também comunistas, pois a família teve de fugir da Rússia aquando da revolução bolchevique. É um russo branco, costuma dizer, com orgulho, e acabou a trabalhar para o MI6, em Lisboa. Não faço ideia de como cá chegou, ele nunca contou.

Foi Klop quem me ajudou a cometer um crime, executado precisamente nesta casa, e não percebo porque aqui voltou.

A habitação está desarrumada, cheia de lixo, cheira a chulé, a mijo, a comida podre. Roberto leva a mão ao nariz e abana a cabeça, sem perceber como pode o russo viver nesta pocilga. Nos dias anteriores, batemos à porta duas vezes, mas ninguém abriu.

A vizinha de baixo disse que ele estava lá dentro, mas devia ter-se embebedado, como sempre, e nós fomos obrigados a regressar.

Só à terceira vez Klop abriu a porta, e foi este o espetáculo que encontrámos: um homem em decomposição, perdido no seu universo privado de sinistros fantasmas. Klop, sabia-o desde que trabalhara com ele, era um homem que não se importava de causar dor noutro ser humano, e que usava a tortura com gozo para atingir os seus objetivos.

Durante anos, fora importante para o MI6, pois tinha o dom de fazer falar quem lhe caísse nas mãos. Diferenciava os sexos nos seus tratamentos de choque: com os homens nazis, entusiasmava-se com as brutalidades, tendo morto vários e quebrado ossos como quem partia pinhões; com as alemãs empenhava-se sobretudo em montá-las, pois dizia que não havia forma mais fácil de retirar um segredo a uma mulher do que quando se tinha a pila dentro dela. Sobretudo as casadas, acrescentava.

Porém, o fim progressivo da guerra deixara-o desocupado.

Ouvira dizer, há uns meses, que também deixara o MI6, mas talvez fosse ao contrário. Os serviços de espionagem britânicos já não precisavam daquele mastodonte sem limites para a brutalidade, pois a maior parte dos nazis ou fugira, ou já tinha regressado à Alemanha, ou estava nas Caldas de Felgueiras, à espera da deportação.

A ociosidade deixara Klop sem atividade e, aos poucos, a tentação da decadência apoderara-se dele, como uma doença, e remetera-se ao álcool para suportar os dias, e talvez as memórias das horríveis atrocidades de que fora vítima, primeiro, ou que praticara, mais recentemente.

Vê-lo assim faz-me pena. Tenho uma dívida de gratidão para com ele, sem a sua ajuda jamais teria executado a minha vingança, jamais conseguiria matar o assassino de Michael. Pergunto-lhe, ainda intrigado: - O que te deu para vires para aqui viver?

Klop fecha os olhos e resfolega. Depois olha para Roberto.

À frente dele? O taxista franze a testa. Então, faço-lhe um sinal para sair, e ele assim faz, ouvimo-lo descer a escada, de regresso ao seu táxi. Comento: - O Roberto é boa gente.

Klop encolhe os ombros. E então? Avisa, num murmúrio: - Cuidado ...

Tem razão, se eu me descuido, alguém pode ficar a saber do meu crime, o que nos põe em perigo sem necessidade.

Klop resfolega outra vez e depois resmunga: - Não tinha para onde ir. A casa estava sem gente há meses.

Falei com a dona, vive no rés-do-chão.

Olha em volta pela sala, parece perdido, sem dominar o motivo por que as coisas estão como estão. Que trapalhada. Murmura: - Não acredito em fantasmas. Poucos seriam capazes de viver numa casa onde tinham visto um homem ser assassinado. Mas Klop não é como os outros, a violência e as suas consequências eram parte integrante da sua alma, só sabia viver no meio delas. De repente, olha para mim.

Tem estômago para a verdade? Pergunta: - Sabe o que fiz ao corpo?

Não sei, nem quero saber, mas Klop conta-me. Fecho os olhos, foi uma carnificina, mas pelo menos tenho a garantia de que o cadáver nunca será encontrado. Klop rosna: - Cabrão do nazi, tinha mais sangue do que um porco!

Pergunto-lhe se me quer ajudar e, com surpresa, verifico que Klop sabe muito do que se passa no submundo de Lisboa.

Refere a milionária Ruth, que também o contactou; o OSS que nada faz; o MI6 que já quase não existe; os caçadores de tesouros e os nazis em fuga; os Nazis de Ferro, que deliram com o relançamento do Terceiro Reich, a partir das Caldas de Felgueiras. Julgava-o um bêbado retirado e, afinal, está muito bem informado.

Refiro-lhe que Alice voltou, trabalha para os americanos, e ele franze o sobrolho. Essa puta? Depois, funga e resmunga: - Lisboa está uma confusão. A PVDE anda nervosa.

Segundo Klop, a polícia política teme tanta agitação. Principalmente, porque muitos dos intervenientes mantêm contactos com a oposição a Salazar e até com os comunistas. Klop acrescenta, na sua voz rouca:

- Temem um putsch ... fala-se nisso ...

Concordo, mas não preciso dele para desestabilizar o Estado Novo, só para encontrar nazis. Falo-lhe da célula de Faro, que ainda está ativa, da possibilidade de Mengele andar por lá. Klop torce o nariz, descrente: - É improvável.

O russo diz que são os próprios nazis que lançam esses rumores, para despistar. Se americanos e judeus continuarem entretidos à procura de «peixe grosso», os outros alemães menos célebres passam despercebidos e fogem com mais facilidade. Além disso, se andasse por Portugal, Mengele certamente se juntaria aos Nazis de Ferro, que ficariam muito mais fortes e entusiasmados. Klop tosse e escarra, e dirige-se à cozinha para cuspir. Quando regressa, refere: - Também corre o rumor de que o próprio Hitler anda por aí.

Há coisa de um mês ouvi essa versão, de que o chefe supremo dos nazis não se tinha suicidado, como se dizia, em Berlim, mas que havia sido outro a ser queimado, enquanto ele fugia secretamente. O rumor assegurava que Hitler estava já a caminho de Lisboa, para apanhar um barco para o Brasil. Embora dois jornais tivessem escrito sobre a hipótese, considerava-a uma história rocambolesca e não lhe dava crédito. Mengele era outra coisa: sabia-se que andava fugido.

Aos poucos, o russo parece ganhar alento, a nossa conversa levanta-o daquela letargia alcoólica em que o encontrei. Incentivo-o: - Tens de te vestir, tomar um banho, comer.

Ele olha para mim, de sobrolho carregado. Um banho?

Depois, pergunta: - Onde quer ir?

Ao Algarve, explico-lhe, é importante saber se Mengele está, ou esteve, por lá. Antes de partir de Portugal, quero ajudar mais uma vez os Aliados, será a minha maneira de me despedir e Lisboa. Klop suspira, diz-me que também vai partir, para Inglaterra, ter com a mulher. Está na altura de arrumar as botas deste ofício, afirma o russo. Eu garanto-lhe que será a nossa última aventura em Portugal, e ele sorri, com malícia. E diz: - Conheço a tipa do Algarve. A alemã.

A referida célula nazi de Faro é dirigi da por um empresário das conservas, chamado Hans Muller, e Klop conhece a mulher dele. Já a «trabalhou» no passado, quando lá foi, e pisca-me o olho. Abriu-se toda para mim! Comenta: - Guincha bem.

Rio-me: ele é intratável. Estabeleço depois as minhas condições: desta vez, o trabalho será por minha conta. Serei eu a pagar, a ele e a Roberto, e iremos no meu Citroên. Klop tosse, escarra outra vez e mais uma vez se desloca à cozinha. Quando volta, afirma que o tal Muller de Faro tem um irmão, chamado Klaus, que opera um barco de transporte de mercadorias, que já foi várias vezes à América do Sul, no último ano. É assim que têm fugido muitos nazis, e Klop ouviu dizer que Klaus regressará da Argentina em breve, para levar mais.

Eu contraponho: - Nesse caso, teremos de ir às docas.

As docas andam também a ser vigiadas pela PVDE com especial empenho, afirma o russo. Os estivadores, os pilotos da barra, os marinheiros, os pescadores, são gente pobre, fácil de sublevar contra o Estado Novo, pois ganham pouco e sofrem muito. Os comunistas recrutam muitos deles para a sua causa, enquanto a maioria dos outros se vende facilmente a quem lhes acena umas notas. Todos os estrangeiros sabem disto e todos lucram com isso, e os nazis não são diferentes, embora o perigo para eles, agora que a guerra terminara com a sua derrota, seja mais elevado. Os comunistas têm uma predileção especial para os tramar, denunciando-os à PVDE, explica o russo.

Lembro-me de Henrique, o comunista das alpergatas, que ajudei há uns tempos na minha rua, e decido que o irei procurar.

Talvez me possa retribuir, auxiliando-me na minha demanda privada.

Klop continua a observar-me, desconfiado. E que mais?

Como permaneço calado, pergunta: - Está a trabalhar para o seu pai?

Digo-lhe que não, embora o meu pai pense o contrário. Não quero os seus tesouros, quero meter os nazis na cadeia. Klop suspira, como se estivesse cansado de ilusões infantis. Depois afirma: - O seu pai é perigoso.

Paul, o russo não me explicou porque pensava aquilo do teu bisavô, mas eu sei. O meu pai era como um vidro na areia da praia, que alguém podia pisar, era um perigo permanente. Klop estava a avisar-me, mas eu não lhe liguei muito. Sentia-me contente por ele me ir ajudar a caçar nazis, isso é que era importante naquele momento.

 

Lisboa, 20 de julho de 1945

Alice sempre foi assim, inconstante. Depois do que se passou à porta da pensão, não mais me contactou. Nem um telefonema, nem um telegrama, nem um recado. Ela só me amava às vezes e quando queria, não me amava sempre. Desta vez, só pretendeu as minhas informações e pagou-as com disponibilidade sexual, a sua retribuição preferida. Depois, afastou-se, o que para mim é um alívio. Vê-la seria uma tortura, persegue-me a imagem do cocuruto da sua cabeça a baixar-se sobre mim, mas aprendo a afastá-la, e a minha melhor ajuda é o amor por Luisinha.

Penso nela, sempre que me sinto a cair em tentação. Só que Luisinha está proibida de atender os meus telefonemas. Dona Guilhermina já me desligou três vezes o telefone na cara, implacável. E suspeito de que ela e o general proibiram a filha de sair à rua, pois ela faltou aos encontros no Jardim da Estrela.

Enervado, executo uma manobra imprevisível, decido uma visita surpresa a sua casa. Não quero partir para o Algarve sem a ver. Entro pelas traseiras do edifício, subo a escada de serviço sem fazer barulho, e toco ao de leve à porta secundária.

Uns segundos depois, aparece Ofélia, a cozinheira da família.

Espanta-se, mas levo um dedo à boca, pedindo-lhe silêncio.

Gosto dela e ganhei a sua simpatia, pois sempre elogiei os seus méritos culinários à mesa, contrariando as permanentes críticas com que a patroa a brindava, humilhando-a enquanto servia a sopa.

Ofélia sabe da proibição que nos massacra, no entanto não hesita em facilitar uma comunicação secreta, e desaparece para ir discretamente chamar Luisinha, fechando a porta atrás de si, não vá Dona Guilhermina entrar na cozinha de surpresa. Três minutos depois, Luisinha salta cá para fora, abraça-me de imediato e dá-me um beijo na boca. Estou com saudades dela e ela de mim, e ficamos longos momentos abraçados, sem dar pelo tempo a passar.

Depois, descemos até ao rés-do-chão, a uma zona mal iluminada nos fundos do prédio, para podemos conversar mais à vontade. Digo-lhe que vou amanhã ao Algarve. Ela olha-me, desconfiada. Com quem? Refiro que vou com dois amigos, um português e um russo, procurar nazis. O meu pai pensa que vou caçar tesouros, mas não é verdade. Ela pergunta: - E quando volta?

Serão três ou quatro dias, não mais do que isso, mas Luisinha parece angustiada. Não aguento tanto tempo. Tento aliviá-la daquelas trepidações interiores, faço-lhe festas no cabelo, só que os meus mimos não estão a aplacá-la. Pergunto: - O que foi?

Ela baixa os olhos, triste. Sinto-me infeliz. Insisto para que fale, e lá desabafa. A mãe mantém a perseguição feroz, não desarma a sua campanha permanente contra o nosso namoro.

O ambiente é insuportável, gritam com ela, até o general chegou a ameaçar «metê-la num convento», o que me provoca uma exclamação: - Que disparate, a Luisinha é adulta!

A rapariga queixa-se. Sente-se numa prisão. Para mais, cúmulo da asfixia e para ela tão doloroso quanto não me ver, é o impedimento decretado às suas idas ao cinema. Indigna-se:

- Ó Jack, só me deixam ir com os meus irmãos! É o mesmo que não deixar!

Sinto-a desorientada, farta daquele jugo. Olha para mim, exasperada. Ajude-me, não aguento mais! Suspira: - Só penso em fugir com o Jack, para longe daqui!

Prometo-lhe tratar da nossa fuga quando regressar do Algarve, mas ela interrompe-me, agitada: - Não, temos de fugir já, antes de irmos para Cascais!

Como é hábito todos os verões, a família partirá, para a casa alugada naquela localidade, nos últimos dias de julho e por lá ficará o mês de agosto, a banhos de sol e mar. Ela não quer ir, teme não me ver mais, quer fugir antes. No entanto, chamo-a à razão. Não temos tempo para isso, falta pouco mais de uma semana. Ainda nem sequer tenho a foto dela, para tratar do passaporte e do visto falsos.

Então, Luisinha abre muito os olhos e sorri, triunfante. Ai isso tem! Leva a mão ao bolso, e retira de lá uma foto pequena e quadrada e entrega-ma. Conta que foi tirá-la há uns dias, às escondidas da mãe, com a ajuda da Ofélia, Sorrio e dou-lhe um beijo, dizendo que está linda. Sorri, orgulhosa. Acha mesmo?

Contudo, confesso-lhe que não posso garantir ter o passaporte e o visto prontos em tão poucos dias, e que ainda não temos uma ideia sobre como iremos fugir.

Falei para a Pan Am, para saber se havia bilhetes nos Clippers, e disseram-me que até finais de agosto já está tudo reservado, o que nos deixa sem essa hipótese. Para além disso, ir para Cascais até lhe pode fazer bem, poderá passear na praia, tomar uns banhos de mar.

Será mais difícil à mãe mantê-la presa em casa, no pico do verão, e eu posso ir até lá com mais facilidade, de carro ou de comboio!

Luisinha olha-me, expectante. Vai mesmo? Prometo-lhe que sim, e também que ainda antes de ela partir de férias virei visitá­la, logo que voltar do Algarve. Ao ouvir falar de novo na minha viagem, regressa a sua ansiedade. Beijo-a mais uma vez, mas sinto o seu corpo tenso. Com carinho, pergunto:

- O que foi agora?

Está aflita, os olhos mexem-se, de um lado para o outro.

A outra vai? Pressinto que é o receio de Alice, mas nada digo.

Então ela pergunta, quase a medo: - O Jack esteve com a Alice?

Tranquilizo-a: não estive, nem vou estar, pois Alice não irá ao Algarve comigo. Não a quero perto de mim, não tenho confiança nela. Luisinha bate as pestanas, morde o lábio. Terá medo de estar com ela, de se apaixonar? O coração de uma mulher é quase impossível de serenar na hora da partida do seu amado. O amor é brutal, mesmo quando é correspondido.

Ela pergunta: - Porque não a quer o Jack perto de si? Tem medo dos seus sentimentos?

Sorrio, e abano a cabeça, negando o medo que sei que sinto.

- Luisinha, acredite, eu amo-a a si, não a ela.

Aproximo-me, beijo-a na boca e então começo a sentir que ela se está a acalmar finalmente, o corpo a distender os músculos.

Nasce mesmo um princípio de sofreguidão nela, e abraça-me com mais força. Puxa-me para si, ao mesmo tempo que se encosta à parede. Para minha surpresa, começa a movimentar as ancas, numa simulação óbvia de atividade sexual. Olho para ela, espantado, e ela ri-se. Gosta? Leva as mãos ao meu rabo, enquanto se mexe, como se dançasse lentamente, aumentando a minha excitação. As nossas respirações aceleram e digo: - Amo-a.

Ela beija-me na boca, mais sôfrega ainda, e geme. Parece uma mulher nova, mulher carnal, mulher animal. Mexe as ancas mais, e eu desço os dedos, subo as suas saias e toco-lhe nas coxas.

Geme novamente, sinto que pela primeira vez deseja que eu a possua. Ali, encostada à parede.

Mas não vai acontecer. Há berros de repente, gritos vindos lá de cima, e somos obrigados a parar. Desatamos a rir, nervosos e depois ela olha-me, exasperada. Quero mais! Eu também quero, mas não com esta gritaria, vinda lá de cima. Ouve-se perfeitamente a voz de Dona Guilhermina, acusando Ofélia, com impropérios.

E ouvem-se vozes masculinas, são os irmãos, talvez mesmo o general.

Decido ir-me embora e vamos de mãos dadas até ao pequeno portão que dá para a rua, e que saltei à socapa quando cheguei.

Beijo-a de novo, mas num segundo encosto-a à parede, imitando o que fizemos há pouco, para lhe mostrar que quero repetir. Ela ri-se e o seu riso é a última coisa que recordo antes de o portão se abrir e entrarem de rompante os dois irmãos de Luisinha, com um ar esbaforido e zangado.

António, o mais velho, avança sobre mim e grita: - O que é isto?

Num segundo, está ao meu lado, de mão levantada, para me bater, mas Luisinha é mais rápida do que ele e coloca-se à minha frente, gritando com o irmão: - Ó António, pare!

Uma gritaria geral nasce: ela grita com os irmãos, eles gritam com ela e comigo, eu grito dizendo que eles não têm nada que se meter na nossa vida, todos gritam com todos, numa estranha confusão que só se agrava ainda mais quando António, de cabeça perdida, ordena a Luís, irmão mais novo, que agarre a irmã para a bloquear, o que ele faz de pronto, e avança novamente sobre mim, prometendo-me uma «carga de pancada».

Nesse momento, cometo um grave erro. Saco, num segundo, da Randall, a faca do Michael, que quase sempre trago comigo, e aponto-a ao irmão de Luisinha, murmurando entredentes: - Não brinques comigo.

António estaca de súbito, Luís ficou branco como a cal da parede do edifício em frente, e mesmo Luisinha paralisa em choque e geme: - Jack, não ...

Fico parado, a olhar para os dois irmãos à vez, a faca na minha mão direita, como se esperasse que um anjo qualquer descesse à terra, para colocar um ponto final naquela refrega. No entanto, quem aparece não é um anjo, mas sim um demónio. Dona Guilhermina, ainda a arfar por ter descido as escadas principais do edifício depressa de mais, irrompe pelo portão seguida pelo general e ambos estacam, surpresos, ao darem com aquela cena teatral.

- Jack, o que vem a ser isto?

A voz do general atinge-me como um soco. Já não sou o «caro Jack», o «amigo Jack», sou apenas o «Jack». Despromoveu­me, ficou chocado. Ele está habituado a armas e, portanto, sabe quais os momentos em que elas não devem ser usadas. A sua pergunta é uma condenação absoluta do meu gesto e uma desquaIificação do meu caráter. Sempre gostei dele, mas agora sei que sente asco à minha pessoa, e também que, a partir deste segundo, qualquer esperança que eu tivesse de reabilitação junto daquela família está hipotecada.

Luisinha ainda tenta uma manobra desesperada, alegando que António e Luís se preparavam para me agredir, mas o pai manda-a calar. Olha-me de uma forma fria e proclama: - Um homem nunca levanta uma arma contra alguém que só tem as mãos para se defender. Devias saber isso.

Sinto nos seus olhos uma desilusão profunda e irremediável.

És um cobarde, nunca pensei. Depois, com uma ira gelada e infinita, ordena: - Sai de minha casa. Já. Antes que eu cometa uma loucura.

Ao ouvi-lo falar assim, até a sua esposa se cala. Dona Guilhermina, sempre pronta a contradizer o general, remete-se a um orgulhoso silêncio, encantada com a autoridade e o carisma do marido.

Enfio a faca no coldre e depois viro-me para Luisinha, mas o general repete, entredentes: - Eu disse já e não volto a repetir. Olho Luisinha nos olhos. Está a chorar. Jack, não me deixe!

Sabe que passei uma fronteira final, que agora terá de escolher entre mim e eles, para sempre. Inspiro e digo-lhe: - Eu volto. Para a buscar.

Depois, avanço na direção do portão e passo pelo general.

Nem Dona Guilhermina fala, tal é a tensão. Enfrento o olhar dele, e digo: - É impossível proibir o nosso amor.

Enervados, os dois irmãos movimentam-se na minha direção, mas o general manda-os ficar quietos, com um gesto autoritário.

Dá um passo para mim, sem tirar os seus olhos dos meus. Não me afrontes, não te atrevas! Diz, em voz pausada: - Posso mandá-lo embora de Portugal. A si e ao seu pai.

Ambos sabemos que a ameaça é credível, ainda para mais depois da bizarra tentativa de corrupção de Salazar que o meu pai tentou. Mas forço-me a ignorar esta demonstração de poder e respondo: - O meu pai não é para aqui chamado. Amo a sua filha, quero casar-me com ela e ela quer casar-se comigo. Não pode impedir­nos!

Estou a desafiá-lo, a andar sobre gelo fino. O general semicerra os olhos, sereno e determinado. Atreve-te! Por fim, murmura: - Veremos.

Foi assim que acabou a minha relação com o general, foi a última vez que o vi. Quanto mais eu avançava no meu namoro, mais me perdia. Eu queria tanto a tua avó, queria tanto ligar-me a ela, esquecer Alice, que acabara apanhado como um jovem adolescente, que os mais velhos têm de castigar. De que me servia tocar nas coxas dela, se seria a última vez?

- Foram proibidos de se ver?

Sim, meu querido neto, embora não tenhamos respeitado a proibição. Eu já estava a endoidecer, mas não sabia. Mas olha, digo-te, se calhar, se não tivesse endoidecido, tu não existias, o que seria uma terrível infelicidade para mim.

 

Faro, 22 de julho de 1945

Na viagem para o Algarve, permaneci quase sempre calado a cismar no banco de trás enquanto Roberto guiava o meu Citroên, e Klop ressonava ao seu lado. Partimos de manhã de Lisboa e chegámos já de noite a Faro diretos a uma pensão. Passei uma noite desagradável e insone.

Depois do almoço Klop foi «visitar» a mulher de Hans Muller, enquanto Roberto e eu fomos às docas e à Alfândega.

Ninguém viu Mengele, ninguém sabe de nazis em fuga os alemães de Faro são os de sempre. Regressámos ao café de mãos a abanar.

Já o russo reaparece com um sorriso de orelha a orelha.

Decerto quebrou a mulher. Os homens riem sempre depois do sexo sobretudo quando partilham as façanhas com outros homens.

Como um paquiderme que se assenta ao sol Klop deixa-se cair numa cadeira do café. Descreve-nos os suculentos detalhes do seu folguedo. A alemã assustou-se quando o viu bater à porta das traseiras. Gargalha ufano:

- Eu entro sempre pela porta de trás ...

Entusiasmado com o segundo sentido da frase Roberto está excitado. Parece um cão a babar-se por comida pendurado na descrição de Klop. A senhora tentou recusar a sua visita, conta o russo, mas ele ameaçou-a: podia revelar as suas infidelidades, ou então denunciar as ligações nazis do esposo, e ela corria o risco da vergonha e de um divórcio, ou pior ainda, da deportação para a Alemanha.

A mulher cedeu, aos poucos, e contou o que sabia. Depois, Klop obrigou-a a levantar a saia, dobrou-a sobre a mesa da coxinha, e atacou-a por trás sem misericórdia. No fim, para gáudio dele, ela pediu mais, e ele atacou-a pela frente!

Falsamente indignado, Roberto grita: - Que porca!

Faz muito calor neste fim de tarde algarvio e as nossas camisas estão abertas. O russo sua, a cara parece uma cachoeira. Roberto bufa e eu sinto-me carente de sexo. Apetece-me uma mulher, desde as irmãs americanas que não estou com uma. Alice não me aliviou até ao fim, e tocar nas coxas de Luisinha não me chegou.

Enquanto bebemos e comemos, Klop revela que a alemã nunca ouviu falar de Mengele. Há uns meses, estiveram cá nazis, que foram para Lisboa e depois seguiram para a Argentina no barco do cunhado Karl, mas desde maio que ninguém cá aparece.

Klop é de opinião de que ela diz a verdade. É praticamente impossível sair da Alemanha, os nazis importantes já foram quase todos presos.

Torço o nariz, sei que Mengele anda a monte, mas admito que é falso o rumor que o coloca no Algarve. Pergunto a Klop: - E os judeus, já cá estiveram?

O russo não faz ideia. A milionária Ruth queria contratá-lo, mas ele recusou. Pisca-me o olho e diz: - Não uso dois chapéus. Foram os ingleses que ajudaram a minha família na Rússia, na revolução. Limito-me a retribuir. Os judeus que se safem como puderem, dinheiro não lhes falta.

Não voltou a falar com Ruth, não sabe se ela veio ao Algarve, mas acha improvável, pois não conhece ninguém por cá. Sorri, malicioso:

- Além disso, não pode dar à alemã o que eu dei!

O russo imita os gritinhos da mulher que possuiu umas horas atrás, e até o dono do café se ri ao ouvi-lo. Com inveja, Roberto declara: - Também quero! Vamos às meninas!

Olha-me, à procura de aprovação. Posso ir? Como não lhe respondo, insiste: - Ó doutor, estou que arrebento!

Klop conhece uma «casa da luz vermelha» ali perto, cuja dona se chama Conchita. É uma espanhola, de Toledo, que veio para o Algarve quando a guerra civil de Espanha começou. Como já passara dos cinquenta, não tinha grande sucesso a vender o próprio corpo, por isso decidiu abrir um estabelecimento onde passou a vender o das outras.

Roberto ergue as sobrancelhas, espantado: - Ainda tens genica, russo?

Klop tem energia para muito mais, e rosna: - Vais ver, maricon! Roberto nega ser assim, mas o russo insiste na acusação: ele nunca se casou, já vai com mais de trinta anos e nada! O taxista protesta, o trabalho não lhe deixa tempo para catrapiscar moças.

Mas garante que, no princípio da guerra, quando havia mais estrangeiros em Lisboa e ele ganhava bom dinheiro, frequentava as «meninas» com regularidade.

O russo abana a cabeça, descrente: - És um falsário! A não ser que te veja em cima de uma, não acredito! Para mim, és maricon!

Roberto indigna-se, ofendido, e depois vira-se para mim: - Ó doutor, agora temos mesmo de ir, isto não fica assim!

Os dois discutem tanto que acabo por aceder. Terminamos o repasto e partimos a pé, animados, com Klop a indicar o caminho.

A «casa da luz vermelha» não tem qualquer luz vermelha à porta, mas toda a gente a chama assim porque, desde que a guerra começou, estas expressões estrangeiras entraram no vocabulário luso. Como os refugiados eram tantos, e era por esse nome que tratavam os bordéis, os portugueses adotaram-no. Temo que seja por pouco tempo, pois o novo regulamento dos costumes vai reforçar a sua proibição, e sei de algumas, em Lisboa e no Porto, que já foram encerradas pela PVDE.

É uma casa pobre, com uma salinha pequena à direita da entrada, onde se ouve uma música romântica a tocar, num pequeno rádio, e estão sentadas duas raparigas, ambas desdentadas e morenas. Parecem marroquinas ou tunisinas e não são nada apetecíveis, apesar de terem à mostra as pernas e partes dos seios, e apenas uns saiotes lhes cobrirem o baixo-ventre. Riem-se quando nos vêm, e Roberto retribui os sorrisos, nervoso.

Conchita vem receber-nos à porta, mas deita-me um olhar intrigado, estranha a presença de um homem da minha classe social em sua casa. Informa-nos dos preços e aponta para a escada, revelando que lá em cima existem três quartos, que são usados à vez. Depois, estica o braço para o fundo do corredor e diz que lá fora há um terraço, onde se pode beber e conversar, mas não fazer o que quer que seja com as «meninas», para os vizinhos não se escandalizarem.

Avançamos até lá. É um pequeno espaço de trinta metros

quadrados, onde existem apenas uma mesa e três cadeiras de madeira, com um ar decrépito. Klop franze a testa e pergunta: - Só tem as duas «feiosas» a trabalhar?

Nervosa, Conchita diz que existem mais duas raparigas. Uma delas aparece, vinda da cozinha. É gordinha, baixa e também morena. Klop abraça-a, contente, como se fosse um familiar dela que a reencontrou. Entediada, a rapariga força um sorriso enjoado, enquanto Conchita acrescenta:

- A outra chegou hoje, está a preparar-se. É bonitinha, pode ficar para si. ..

Sorri-me, deduziu que devo ser eu a pagar as despesas e quer tratar-me bem. Irritado com a preguiça da moça gordita, Klop levanta-a no ar. Ela grita, aterrada por estar nos braços daquele monstro, que tem quase o dobro da altura dela.

Conchita olha-me, alarmada. Ele é maluco? Digo-lhe que não tem motivos de preocupação, mas Klop começa a andar às voltas, rodopiando a rapariga no terraço, ao mesmo tempo que ralha com ela, como um pai autoritário. Depois, pousa-a e ri-se. A rapariga, meio tonta, tem de se agarrar à mesa, para não cair.

De seguida e imparável, Klop provoca Roberto e repete as

acusações. O taxista sente-se na obrigação de mostrar que é macho. Vai até à sala e pouco depois uma das raparigas desdentadas vem para o terraço ter connosco, informando que Roberto e a outra já subiram para o quarto. Klop dá uma gargalhada e comenta que ele «é dos que precisam de ser espicaçados».

Por fim, o russo olha para mim. Qual delas quer? Sem aviso, dá uma palmada no ombro à que rodopiou no ar, castigando-a por ser medrosa. Conchita vai à cozinha e regressa com três cervejas, que pousa na mesa. Klop pega numa delas e bebe.

Em seguida, ri-se para a desdentada, como se estivesse a gozar com ela, mas a rapariga não se incomoda e ri-se de volta. Então, Klop bate com a mão na própria perna, indicando que ela deve vir sentar-se ao seu colo, e a desdentada assim faz, obediente.

Conchita lamenta-se dos tempos maus que se vivem no Algarve, da falta de dinheiro e de clientes, e Klop faz-me um sinal discreto, roçando o polegar no indicador. Pergunto à mulher se quer que pague já, mas ela finge embaraço e diz que só depois de o serviço estar terminado.

Dou um gole na cerveja. Devia soltar-me, aproveitar. Sorrio para a rapariga gordinha. Desgrenhada, não compôs o cabelo depois dos rodopios a que Klop a obrigou. Boceja, preguiçosa, e devolve-me um sorriso enjoado. Decido que não será com ela que me vou aliviar.

Cinco minutos depois ter subido, Roberto regressa. Vem de mão dada com a desdentada. Mostra-se desiludido e diz a Klop:

- Russo, com esta não consigo. Podes trocar?

Klop solta uma gargalhada, mas como já está a apalpar os peitos da outra desdentada não a quer largar agora. Então, dá um berro à gorducha: - Vai tu com ele! Vá, levanta-te e trabalha!

Conchita torce-se, incomodada por ser ele quem mais ordena.

A rapariga não obedece de imediato e Klop dá-lhe um segundo grito, e então ela ergue-se, contrariada, e parte com Roberto. Irritado com tanta falta de brio, o russo levanta-se também e diz às duas desdentadas que quer subir com ambas. Conchita olha-me, preocupada, e embora eu lhe garanta que não vai haver desaguisados segue-os escada acima.

Acendo um Gauloise. Está uma noite típica de Algarve, quente e sem vento, e preciso de mulher, mas nenhuma das que vi me serve. Recordo Alice, no meu carro, a descer a cabeça sobre mim, mas afasto a imagem. Substituo-a por Luisinha e as suas coxas, mas essa visão também não me agrada. Não quero o sexo na cabeça.

De repente, escuto movimento no corredor e dois vultos aproximam-se. Um deles é Conchita, que avisa ter de ir ouvir as notícias da BBC, pois são nove horas e vai falar o Fernando Pessa.

Por isso, volta para trás, enquanto a outra mulher entra no terraço, de cabeça baixa.

De repente, o meu coração dá um pulo quando lhe vejo a cara! É Rosa, a filha de Leopoldo, o dono de uma quintarola em Sagres. Há dois anos, passei com ela uma bela noite num palheiro.

Não acredito que esteja ali, não faz sentido ela andar naquela vida! Levanto-me como uma mola, ainda antes de ela perceber que ali estou, e exclamo: - Rosa!

Só quando ouve o seu nome ela levanta a cabeça, totalmente surpreendida. Vê-me e a sua expressão revela uma mistura de confusão, alegria e vergonha. O senhor aqui? Que bom vê-lo, nem acredito! Não, que horror! Abraço-a e cubro-a de perguntas. Rosa tem um ataque de nervos, não se contém e começa a chorar. É o seu primeiro dia ali, está atarantada, ainda por cima porque o seu primeiro cliente sou eu, com quem ela dormiu por vontade!

Retiro o lenço da lapela, ofereço-lho, obrigo-a a sentar-se ao meu lado e deixo-a recuperar da comoção. Quando os soluços se espaçam, Rosa narra a sua triste história, que em apenas dois anos a trouxe de um palheiro feliz, em Sagres, para uma decrépita «casa da luz vermelha», em Faro.

Uns meses depois de a ter conhecido, em 1943, o pai de Rosa morreu, e ela ficou sozinha, pois não tinha nem mãe nem irmãos. Para seu grande azar, apareceram os credores. O pai acumulara avultadas dívidas de jogo, em Lisboa, aonde ia várias vezes. Há coisa de um ano, Rosa perdera a quinta rola e ficara sem nada. Ainda trabalhara como lavadeira em Sagres, mas depressa percebera que o dinheiro recebido não dava para viver, e então rumara a Faro.

A sua lenta descida aos abismos prosseguiu e, esfomeada e sem trabalho certo, acabou a viver num quartinho alugado, naquela mesma rua. Há umas semanas, conhecera Conchita e as suas raparigas. A dona da «casa da luz vermelha» desafiara-a, dizendo que ela era bonitinha e podia arranjar mais clientes do que as desdentadas, que obviamente passaram a odiá-la de imediato, bem como a gorducha, que, como era preguiçosa, se mostrou ainda mais maldosa. Conchita precisava de alguém como Rosa para relançar o negócio, mas só a fome a levara a aceitar e só hoje se decidira a começar. O sofrimento evidente de Rosa comove-me. Ela fora atrevida naquela noite, no palheiro da sua quintarola, mas porque se entusiasmara comigo, não por leviandade. Saber que chegara ao ponto de precisar de se prostituir faz-me dó. Por sorte, numa dessas coincidências do destino que só acontecem uma vez na vida, apanho-a precisamente na primeira noite de trabalho, sou o seu primeiro cliente, e por isso Rosa ainda não está corrompida pela luxúria fácil e venal do negócio de Conchita.

Nasce-me uma ideia, mas é cedo para falar nela. Pergunto­lhe se tem namorado, algum homem na vida, e ela diz que não.

Olha para mim, desalentada. Ninguém me vai querer agora ...

Sorrio-lhe. Não ter ligações em Faro é uma vantagem.

Rosa encolhe os ombros e diz: - Conheci um em Sagres, antes de vir para cá, mas bebia muito. Uma vez levantou-me a mão e fugi dele. O outro, já o conheci cá, mas era um marinheiro e seguiu viagem.

Agora está mais à vontade, passou-lhe a emoção inicial de me ver. Vai à cozinha buscar outra cerveja e regressa, sentando­se ao meu lado. Acendo mais um cigarro e observo-a, pensativo.

Ela sorri-me, ergue as sobrancelhas. Quer subir?

Nesse momento, Conchita retoma ao terraço, o noticiário da BBC terminou. Rosa lança-me um olhar alarmado. Não lhe diga nada! Sorrio-lhe, tranquilizando-a. Quando Conchita me pergunta o que me parece a «Rosete», o nome de guerra com que decidiu batizar Rosa, digo que está na hora de descobrir. Os olhos de Rosa brilham. Obrigado! Levantamo-nos e Conchita sorri, agradada. Olha para Rosa, exigente. Esforça-te! Ela garante que o fará, com um aceno de cabeça, e depois segue à minha frente, pelo corredor fora.

Subimos as escadas. Ouvem-se gritinhos vindos dos dois outros quartos. Roberto e Klop estão satisfeitos, ainda bem. Atravessamos uma porta, e quando a fecho nas minhas costas e Rosa se começa a despir, mando-a parar. Revelo-lhe a minha ideia.

Proponho levá-la para Lisboa comigo, instalá-la em minha casa uns dias, até lhe arranjar trabalho, como doméstica, em casa de alguém. Conheço muita gente na capital e não me sentirei bem se a deixar no Algarve. Prevejo que a vida vai ser dura nos próximos meses e ela não tem alma de rameira.

Rosa fica surpreendida, não sabe o que pensar. Olha para mim, intrigada. Leva-me consigo? Para Lisboa? Pergunta-me se quero dormir com ela e eu respondo que para o futuro não, só hoje. O que eu pretendo não é uma concubina, mas apenas ajudá-la a sair deste buraco, dar-lhe uma vida decente! Emocionada, ela começa de novo a chorar. Está espantada com a minha gratidão e parece-me tentada. Insisto e repito argumentos, até ela aceitar.

Rimo-nos e abraço-a, contente por ela, e só a seguir lhe peço que se dispa e se abra para mim.

Fá-lo de uma forma empenhada e agradecida. É outra vez a Rosa do palheiro de Sagres, marota e alegre. Quando descemos, uma hora mais tarde, ela já traz a sua mala, que ainda nem sequer desfizera. Explico o que pretendo e Conchita fica perplexa, pasmada e incrédula. As desdentadas estão surpreendidas e a gorducha lança-me um olhar de raiva. Devia ter sido eu! Roberto e Klop ficam também espantados.

Então, furiosa, Conchita desata a gritar. Sente o negócio em risco, contava com Rosa, e pega-se comigo. Barafusta, diz palavrões, insulta a rapariga, mas não a deixo continuar a arengar como uma peixeira. Coloco o dobro do dinheiro que lhe devo em cima da mesa e informo-a de que nos vamos embora. Conchita sabe que não tem maneira de impedir a saída de três homens, um dos quais é do tamanho de um armário de sala. Mas não deixa de urrar, ao ponto de Klop a ter de ameaçar. O que só piora a situação, pois as duas desdentadas também desatam a berrar, e a gorducha foge para o terraço, medrosa, aos gritos.

No meio daquela barafunda, ouvimos bater à porta, com força.

Furibunda, Conchita manda calar-nos e abre. Entram dois homens de casaco comprido e de imediato os identifico como sendo da PVDE. Fico em alerta, o que quererão? Depois, tenho a segunda surpresa do dia. Reconheço um dos polícias: é o agente Sertório, que, em 1941, me interrogou na sede da PVDE de Marvão.

Ao ver-me, ele sorri levemente e pergunta: - Por aqui, senhor Jack Mascarenhas?

Ainda mais irritada, devido a esta inesperada vantagem que tenho sobre ela, Conchita exige explicações, e Sertório apresenta­lhe um papel. A PVDE veio encerrar a «casa da luz vermelha», pois, além de existirem muitas queixas dos vizinhos nos últimos meses, há fortes suspeitas de atividades ilícitas, ligações aos comunistas da região.

No sofá, as desdentadas desatam em pranto, e Conchita repreende-as, dizendo que as avisou dos perigos! Pergunto a Sertório se nós podemos abalar, mas ele não nos autoriza. À vez, cada um será interrogado na sala. Peço-lhe que seja eu o primeiro, e digo-lhe que posso falar em nome dos meus amigos e de Rosa.

Ele aceita e dá ordens aos outros para esperaram no terraço, vigiados pelo segundo agente.

A sós com ele, revelo a Sertório que fizemos uma viagem de amigos ao Algarve, uma espécie de despedida de machos, e por acaso encontrei Rosa naquela casa. Conheço-a há dois anos, e, como era o seu primeiro dia de trabalho, fiz-lhe uma proposta, vou levá-la para Lisboa.

Sertório franze o sobrolho. Para Lisboa? Quer saber com que intenções e eu explico. Espantado, ele abana a cabeça e comenta: - O senhor anda sempre rodeado de mulheres.

Não está ainda convencido, suspeita da nossa vinda a Faro, mas garanto-lhe que já não colaboro com os ingleses da Embaixada, e que irei partir de Portugal em breve. Ele fica em silêncio, pensativo.

No terraço, aos berras, Conchita repreende Rosa pela sua traição, mas Roberto defende-a. Sertório suspira, sem paciência para a berraria, e grita aos outros que se calem. Depois diz: - Eu também me vou mudar, em breve, para Lisboa.

Parece cansado, e o facto de já nos conhecermos de outras andanças possibilita um certo à vontade entre nós. Revela-me que a mulher está doente, o tratamento é muito caro e terá de ser feito em Lisboa. A sua transferência para a capital está iminente.

Para mais, diz que, pelo menos no Alentejo e no Algarve, os bons tempos da guerra já lá vão. Agora, o importante é andar de olho nos comunistas, não nos estrangeiros. Desde que não andem feitos com os vermelhos!

Sorrio-lhe e garanto-lhe que isso não se passa. Conto-lhe mesmo que Klop é um russo branco, odeia comunistas. Dez minutos mais tarde, depois de ter verificado os documentos de identificação de todos, Sertório dá-nos ordem de saída. Incluindo a Rosa, para grande fúria de Conchita, da gorducha e das desdentadas.

Nesse noite, a rapariga dorme comigo na pensão.

Paul, não dês muita importância a esta noite, foi só um alívio.

A tua avó não me satisfizera, Alice não reaparecera, Rosa caiu­me à frente por acaso, e um homem é um homem. Por favor, não dês a isto a importância que elas, as três, deram.

 

Lisboa, 29 de julho de 1945

No regresso do Algarve, alterei a minha decisão sobre Rosa. Não era boa ideia instalá-la em minha casa e, vendo que ao longo da viagem nascera uma certa empatia entre Roberto e ela, ao pararmos numa gasolineira chamei o taxista à parte e perguntei-lhe se seria possível ela ficar em casa dele.

Roberto mostrou-se surpreendido, pensara que eu a queria para minha «menina» privativa! Neguei tal cenário e expliquei­lhe a minha intenção: de dia, Rosa faria limpezas no meu escritório até eu lhe arranjar um ofício permanente; à noite, arrendaria um quarto a Roberto, pago por mim. O taxista aceitou e, à chegada a Lisboa, convenci Rosa do arranjo.

Por isso, ela hoje está a varrer o corredor do meu escritório quando, de rompante, entram Alice e Francis. Alice fica espantada, ao ver ali uma mulher, ainda para mais bonitinha. Olha para mim, de dentes cerrados, ciumenta. Quem é esta serigaita?

Rosa dá as boas-tardes a ambos, e Francis parece desconfortável por estar finalmente no mesmo espaço que eu e Alice. Como um macho que se sente ameaçado, está em tensão, as veias do pescoço contraídas.

Convido-os a entrarem no meu gabinete, sem dar explicações a Alice sobre a minha nova empregada de limpezas. Francis aperta­me a mão, com uma certa brusquidão e sinto que está zangado comigo.

- Julgava que éramos amigos, buddy.

Invoca o passado, as boas relações entre ele e Michael, entre o OSS e o MI6, e, embora saiba que eu já não sou oficialmente um funcionário dos serviços secretos ingleses, esperava um comportamento mais franco.

Pergunto-lhe: - O que queres saber?

A seu lado, Alice sorri-me, mas eu conheço-a suficientemente bem para perceber que está contrariada. Eu por mim não tinha vindo! Sente-se humilhada por Francis, que não confia nela e a obrigou a vir. Preferia falar a sós comigo, pois assim perde protagonismo e poder.

O americano coloca uma cara muito séria. Não te faças de parvo. Inspira fundo, com falta de paciência para jogos do gato e do rato.

- Soubemos que estiveste no Algarve. Conseguiste descobrir o Mengele?

A pergunta dá-me vontade de rir.

- Francis, acho que não é isso que queres perguntar, pois não? - o americano faz um ar de desentendido. O quê? Eu continuo: - Se eu tivesse descoberto o Mengele, já o mundo inteiro sabia. Tinhas ouvido a notícia na BBC. ..

Alice ri-se, divertida, e atira-me um beijo com os lábios.

Adoro-te. Francis olha para ela, furioso com a sua pontual traição.

Ela ignora-o, ele ainda fica mais enervado e vira-se para mim, com a voz alterada: - Claro que sei que não o descobriste, mas podes estar na posse de alguma informação útil!

Imito um zero, juntando o polegar e o indicador da mão direita, indicando que nada soube sobre o famoso nazi. E acrescento:

- Ao Algarve não foi.

Francis força o sorriso e depois pergunta:

- Não queres que eu acredite que foste com o russo e com o taxista ao Algarve só para uma ... folia de homens?

Portanto, Francis foi informado da minha justificação à PVDE.

Será que o capitão Agostinho Lourenço, o diretor da polícia secreta de Salazar, já fala com os americanos? Ou terá sido Alice a obter essa informação através das suas «fontes»? É a minha vez de forçar um sorriso:

- Foi exatamente isso!

Enfrento o olhar de Alice e confesso: - E trouxe de lá esta minha empregada, a que viram a varrer o corredor, e que já conhecia há uns anos.

Por um segundo, um raio de fúria cruza os olhos de Alice.

Sacana! Mas ela recompõe-se depressa e contra-ataca, com presença de espírito: - Julguei que eras fiel a esta nova noiva. À outra, já sei que não foste ...

Sorrio-lhe e replico: - Burro velho não aprende línguas.

Ela fulmina-me com o olhar. Tu dormiste com esta fulana!

Abana a cabeça, incrédula. Está-me a dar um enorme gozo torturá-la assim. Alice sente-se ferida, a sua enorme vaidade não admite que eu possa preferir estar com outra mulher que não ela, para me aliviar do jugo a que a virgindade de Luisinha me obriga.

A seu lado, Francis continua enervado, mas agora porque, num instante, passou para segundo plano. As vibrações entre mim e Alice estão a sobrepor-se à sua presença. Julgava que, por andar a deitar-se com ela, era mais importante do que eu, mas essa crença dissolve-se a cada segundo que passa. Tenta interromper a nossa picardia:

- Buddy, isso não me interessa. Se andas ou não a saltar a cerca é para o lado que durmo melhor!

Sorrio-lhe, bem-disposto: - Claro, até te dá jeito.

Ele cora de imediato e engole em seco. O que queres dizer?

Oportuna, Alice pega na minha deixa e dispara uma bala suja na minha direção: - Percebo-te ... Eu também tenho sempre uma relação muito próxima com as pessoas com quem trabalho. O Michael, o Francis ...

Mais uma vez, atira-me à cara a possibilidade de ter dormido com o meu amigo Michael. Contudo, talvez porque estar com Rosa me aumentou a confiança, não fico impressionado e riposto, divertido: - Ao pé de ti, a vida é uma animação! Só que ... – encolho os ombros e continuo: - Quando deixas de ser útil, acabas sozinha.

Alice fulmina-me mais uma vez com o olhar. Bruto! A seu lado, Francis mexe-se, de novo agitado, pois na minha frase há implícita a previsão correta de que também ele irá abandonar Alice, quando ela lhe deixar de ser útil. Desejoso de mudar o rumo do diálogo, pergunta: - Buddy, o que eu quero saber é se tiveste alguma informação extra sobre os alemães?

Faço-me mais uma vez de desentendido: - Quais alemães?

Francis fica de novo sério e depois fala mais baixo, quase num murmúrio. Como se o facto de Rosa estar no corredor, a varrer, pudesse ser equivalente a ter um potencial espião a dois passos de nós!

- Ouvimos dizer que andou por lá um tipo com uns tesouros, diz-se que coisas do Hitler. .. Sabes se era um dos Nazis de Ferro?

Esses tipos são perigosos e, se têm coisas do Hitler, ainda mais perigosos se tornam. Faço uma careta de gozo e exclamo: - Francis, estamos no meu escritório!

Aponto em volta, para lado nenhum em concreto:

- Achas que há microfones secretos aqui? Não é preciso falar mais baixo, ninguém nos ouve.

O americano não sorri, nem Alice o faz. Devem considerar que Rosa não é de confiança. Francis respira fundo e diz:

- Responde à minha pergunta, buddy.

Este bordão idiota que ele usa faz cada vez menos sentido, este tipo está a irritar-me. Olho para ele e franzo a testa: - Será que tenho de te recordar que estás no meu escritório?

Ele empertiga-se e resmunga: - Pensava que éramos amigos.

Eu respondo: - E ainda somos. Mas isso não te dá o direito de me vires aqui interrogar.

Alice força um sorriso, quer baixar a tensão no gabinete.

Pousa a mão direita na perna do americano, como se fosse sua esposa e o quisesse acalmar, e diz: - Francis, não vale a pena, ele não quer ajudar-nos. Vamos embora, ainda temos de passar no hotel.

O efeito pretendido por ela dá-se. O americano olha-a, surpreso. No hotel? Anima-se num segundo, a expectativa de passar uma tarde na ramboia com aquela mulher é muito mais relevante do que qualquer informação que eu tenha para ele. É assim que Alice manipula os homens: nele tenta gerar desejo, a mim procura gerar ciúme.

Sorrio a ambos e digo: - Se souber de alguma coisa relevante, aviso-os.

Alice fixa o seu olhar no meu, tenta avisar-me. Fala comigo primeiro! Satisfeito com a minha promessa, Francis levanta-se, estende-me a mão, numa tentativa de esquecer qualquer atrito, e é nesse momento que alguém bate à porta.

Incentivo a pessoa a entrar e Rosa aparece. Depois, afasta­se um pouco e atrás dela vem Luisinha, que dá um passo em frente e entra no gabinete, estacando de imediato ao ver Alice e o americano.

As três mulheres olham umas para as outras. Luisinha observa Alice, incomodada. O que está ela aqui a jazer? Depois, vendo o americano, parece acalmar um pouco. Olha para Rosa, agradecendo por ela lhe ter aberto a porta. A seguir, olha para mim, franzindo a testa. E esta, quem é?

Rosa, por sua vez, agradece com um requebro de cabeça a Luisinha e também me mira. É esta a noiva? Eu, ainda em casa de Conchita, contei-lhe que estava noivo. Depois, Rosa observa num segundo Alice e volta a pousar os seus olhos nos meus. Essa é má rês, cuidado com ela. Por fim, respeitadora, desaparece e fecha a porta.

Já Alice procura examinar a minha expressão quando Luisinha aparece. Não a amas, vê-se logo. De seguida, enfrenta Luisinha e logo a seguir Rosa, pois estão ao lado uma da outra, e volta a virar a cabeça para mim. Sorri, orgulhosa. Chego para as duas.

Reparo que Luisinha vem esbaforida, traz o chapéu na mão, está despenteada, com um ar de preocupação. Espera que eu vá ter com ela, o que faço no meio do fogo cruzado desta troca de olhares, enquanto Francis sorri, um pouco apatetado. Abraço Luisinha, beijo-a na cara e pergunto, surpreendido: - O que se passa?

Luisinha está pálida, não sei se da notícia que traz consigo, se da presença da rival. Observa-a de novo, intrigada. É mesmo bonita ... Mas Alice está a admirar os próprios sapatos, fingindo desinteresse. Sinto-me na obrigação de proceder às apresentações, e Francis cumprimenta a minha noiva, enquanto Alice permanece sentada e se limita a um ligeiro aceno de cabeça. Digo a Luisinha que estávamos a terminar o nosso encontro e, com ternura, toco­lhe na cara com os dedos, fazendo-lhe uma festa.

De imediato, Alice levanta-se, dá o braço a Francis e copia o meu gesto, fazendo igualmente uma carícia terna no rosto do americano. Depois diz:

- Vamos, Francis, para o hotel.

Os seus dotes teatrais são evidentes e convincentes, mas está com azar. Aquele bailado tonto não surte qualquer efeito.

Não tenho ciúmes de Francis. A presença de Luisinha blinda o meu coração contra ela. Enervada, Alice pressente a minha força interior e semicerra os olhos um segundo, só para mim. Bandido, vais ver!

Despede-se de Luisinha, com um sorriso cínico, e diz:

- É uma rapariga com sorte, eu sei do que falo!

Luisinha aguenta a estocada com calma, limita-se a um sereno sorriso, mas Alice não está satisfeita e solta uma última insinuação pérfida, aproximando-se da minha noiva, como se houvesse já entre elas uma espécie de cumplicidade feminina: - O Jack Gil diz que trouxe a criadita do Algarve, mas eu, se fosse a si, tinha cuidado. Esta é das que esfregam tudo muito bem esfregadinho ...

Luisinha fica de olhos esbugalhados, é óbvio que também teme a presença de Rosa perto de mim, mas faz um esforço para não se descompor. Logo que eles saem do escritório, fecho a porta do meu gabinete, enquanto Rosa esfrega o chão do corredor, de joelhos no chão, compenetrada no seu trabalho.

Convido Luisinha a sentar-se no sofá a meu lado e narro-lhe a viagem ao Algarve. Sobre Rosa, revelo a verdade possível: conheço-a há uns anos, reencontrei-a em Faro, o pai morreu, sugeri que viesse para Lisboa, vou arranjar-lhe um emprego, mas para já faz limpezas e aluga um quarto em casa do taxista Roberto.

Depois, conto que Alice e Francis apareceram de surpresa, querem saber se encontrei nazis no Algarve, o que não aconteceu.

Luisinha ouve-me atentamente, sem fazer perguntas, exceto quando refiro Alice. Respira fundo e comenta:

- Jack, ela ainda gosta de si.

As mulheres têm mesmo um sexto sentido, ou conversam Com os deuses do amor? Luisinha acrescenta, com humildade:

- Ela é muito bonita. Parece uma atriz de Hollywood, misteriosa e bela.

É evidente que qualquer ser humano sedutor é para Luisinha um potencial personagem dos filmes americanos. No entanto, julgo que está a ser genuína e sei também que um homem deve desconfiar destas armadilhas femininas. Por vezes, as mulheres elogiam as outras apenas para ver se nós concordamos, se revelamos uma admiração escondida. Portanto, aprendi a nunca concordar com os elogios de uma mulher a outra, principalmente no caso em que a primeira é a que eu quero e amo. Murmuro, fazendo uma festa na perna de Luisinha: - Quem lhe dera a ela ...

Contudo, Luisinha ignora este meu remoque e afirma:

- Ela não consegue resistir ao caráter que tem. Se conseguisse, era uma grande mulher. Assim, perde-se nos seus próprios abismos.

Aquela rapariga não cessa de me surpreender. Alice é mesmo assim. De repente, tenho um desejo forte, abraço-a e desato a beijá-la na boca. Luisinha retribui, mas depois obriga-me a parar e anuncia: - Vou para Cascais daqui a dois dias, de férias, com a minha família.

Para vir ao meu escritório, a rapariga teve de aproveitar uma oportunidade única: Ofélia, a empregada, ia à praça, comprar abastecimentos para as férias, e conseguiu convencer Dona Guilhermina de que precisava da ajuda de Luisinha. Enquanto conversamos, Ofélia anda às compras no mercado da Ribeira, mas não temos muito tempo. Luisinha consulta o relógio e diz: - Tenho de a ir ajudar.

Sinto-a desesperada e temerosa. Teme a solidão, teme perder-me, receia Alice. Por um lado, diz, quer dar-se a mim, por outro, não sabe como. Sorrio e sugiro irmos passar a tarde num hotel, ou mesmo em minha casa, mas ela abana a cabeça.

- Não quero que a minha primeira vez consigo seja à pressa. Quero que seja um momento memorável, para mim e para si.

Respeito o seu desejo de simbolismo, a sua fantasia romântica, e aceito esperar pela hora certa. E prometo ir visitá-la a Cascais. Ela sorri. Que bom! Escreve num papel a morada da casa, diz-me qual a praia que costuma frequentar e combinamos o dia da primeira visita. Depois, levantamo-nos e saímos do gabinete.

Passamos em frente a Rosa, que nos sorri, enquanto esfrega o chão. Reparo que Luisinha está angustiada a descer as escadas, recordo-me da sibilina acusação de Alice, de que Rosa esfrega tudo, e digo-lhe que não ligue ao que ouviu.

- A Alice é uma intriguista, está sempre a lançar veneno.

Luisinha sorri, mas é um sorriso forçado. Eu sei, mas tenho medo na mesma! Tem receio de me perder, receio de qualquer outra mulher que me ronde, até de uma que esfrega o chão de um corredor, de joelhos. Abraço-a e digo: - Eu amo-a, Luisinha.

Beijo-a novamente e depois saímos. Na rua, encontramos Ofélia, já carregada de sacos. Ao despedir-se de mim, Luisinha limita-se a dizer: - Jack, faça o que está certo.

Querido Paul, era por isto que eu gostava da tua avó, ela tinha a cabeça e o coração no sítio certo! Alice era uma estouvada, embora magnífica e irresistível. A tua avó era quem eu queria.

Nem sempre fazemos o que está certo, mas pelo menos devemos tentar. É uma boa máxima de vida, aquela que a tua avó me pediu, e naqueles dias prometi a mim mesmo tentar fazer o que estava certo.

- O amor é tremendo, mesmo quando é correspondido, não é avô?

Sim, meu querido neto, mas já me estás a roubar as frases!

E fica sabendo que a maior parte das vezes, nesses dias, não fiz o que estava certo, e por isso me ia perdendo.

 

Caldas de Felgueiras, 2 de agosto de 1945

No edifício das termas, nas Caldas de Felgueiras, todas as noites havia um grande jantar, onde os trinta residentes se reuniam para cantar o hino da Alemanha e saudar Hitler, esticando o braço. Porém, depois desse ritual inicial, um absurdo coletivo apoderava-se dos presentes, que rapidamente se embebedavam, para grande consternação de Manfred.

Ele chegara convencido das virtudes dos Nazis de Ferro, e pensara neles a cada minuto da sua viagem desde Madrid, mas eles dececionaram-no. Passara a fronteira em Vilar Formoso, depois seguira para a cidade de Viseu e dali apanhara um táxi para as termas, onde estavam os seus últimos heróis. À chegada às Caldas de Felgueiras, não fora fácil convencer a polícia de Salazar de que era um alemão, pois o seu passaporte era suíço. Mas Manfred tinha as suas artes e os seus truques, e rapidamente ultrapassou a relutância da PVDE, que também não era demasiado empenhada.

A polícia tinha instruções para deixar os alemães à vontade, e eles podiam circular livremente pela vila e até, se quisessem, ir e voltar a Lisboa, desde que avisassem e fossem acompanhados.

Aquela «residência fixa» dos Nazis de Ferro era, literalmente, para inglês ver. Salazar cedera finalmente às pressões dos Aliados, prendendo os nazis que eles consideravam perigosos, mas não apertava na vigilância. Lang, o principal oficial das SS que estava nas Caldas de Felgueiras, declarava orgulhosamente que a PVDE jamais o enviaria para a Alemanha, e que ia ficar ali a viver para sempre.

Manfred rapidamente percebeu que existia uma enorme cumplicidade entre os nazis e os agentes da PVDE, e que o dinheiro que os primeiros ainda tinham, e eram somas muito consideráveis, lhes permitia untar as mãos dos polícias portugueses, que acediam a todos os caprichos e desejos de Lang e dos seus colegas. Se eles queriam álcool, a polícia arranjava um fornecedor local; se queriam mulheres, a polícia deixava-os ir buscá-las a Viseu ou mesmo ao Porto; se queriam jornais, cigarros, ou falar com outros alemães importantes, a polícia fazia o obséquio.

Os Nazis de Ferro pareciam viver numa cápsula de segurança, como se, para eles, a derrota na Europa não tivesse consequências, nem prenunciasse a sua condenação, desgraça e morte. Lang gabava-se de ter amigos importantes em Portugal e dizia conhecer pessoalmente Salazar, bem como o capitão Agostinho Lourenço, diretor da PVDE. Não tinha qualquer receio do poder dos americanos ou dos ingleses em Portugal, pois considerava que eles nunca conseguiam ultrapassar os obstáculos que Salazar lhes colocava.

Contudo, Manfred rapidamente se desiludiu com os Nazis de Ferro. Na verdade, eles bem podiam fazer saudações, dar vivas a Hitler, no início das refeições, e gritar que o Terceiro Reich ia regressar para se desforrar dos Aliados, mas a meio dos repastos já estavam completamente bêbados, arrotando para cima da mesa, num descontrolo diário que se lhe tornou insuportável. Intitulavam-se Nazis de Ferro e imaginavam estrondosas conspirações e mirabolantes revoltas, mas ao fim de cinco minutos deixavam de ser coerentes e a bebida tomava conta dos seus cérebros, toldando-lhes os raciocínios.

Mesmo Lang estava contaminado por esse delírio irresponsável e cobarde, que parecia atrofiá-Ios a todos. Quando Manfred lhe mostrou o retrato da mãe de Hitler, a pistola dourada e o retrato da cadela Blondie, o coronel Lang riu-se e desprezou-o, dizendo que os seus planos para recuperar a Alemanha para os nazis não incluíam o recurso a relíquias absurdas como aquelas.

Depois, iniciou um monólogo inflamado, onde revelou a sua suposta lucidez e imenso poder, a partir das suas ligações a Portugal e a Salazar. Quem o ouvisse iria julgar que o país estava nas suas mãos e não nas do presidente do Conselho. Lang gabava-se de ter sido ele quem exigiu os três dias de luto nacional que Portugal fizera, aquando da morte de Hitler, e de ser também ele quem decidiu quando se congelavam os bens alemães e quais as regras dessa decisão.

Ufano, Lang estava convencido de que era a partir das Caldas de Felgueiras que se mexiam os cordelinhos que iriam decidir quem era repatriado para a Alemanha e quem podia fugir para a América do Sul. Por mais que Manfred quisesse acreditar nele, não conseguiu. Lang falava dez ou quinze minutos, mas a partir daí o álcool tomava o seu lugar. Qualquer autoridade que tivesse sobre aqueles vinte e nove companheiros de fortuna se desvanecia, e o caos passava a imperar.

A meio da tarde, os nazis bêbados já não se dignavam a ir urinar às casas de banho, faziam-no da varanda, debruçados sobre o jardim, abraçados aos quatro e aos cinco, cantando velhas canções das suas terras natais.

O próprio Lang, naquela tarde, enquanto conversava com Manfred, passeando pelo jardim, parara e abrira a braguilha, urinando contra uma árvore, enquanto discorria sobre a enorme e vasta rede de operacionais que os Nazis de Ferro tinham pronta a atuar em Portugal. Atirara-se depois para um sofá na varanda e adormecera, ressonando violentamente e babando-se pelos cantos da boca.

À noite, as coisas ainda eram piores, pois chegavam as putas.

Apareciam quatro ou cinco, vindas de Viseu, umas raparigas magras e sem grande beleza, com penugem no lugar do bigode e pelos nas pernas, e que pareciam sempre tristes. Contudo, os alemães não se importavam com aquele sorumbático estado de espírito delas, e bebiam ainda mais, rodando-as à vez pelas salas.

Algumas, já nuas, subiam aos quartos, mas a maioria era fornicada na sala de jantar, regada com vinho e cerveja, no meio de grande algazarra.

Lang nunca se incomodava com estas tristonhas orgias. Pelo contrário, incentivava-as e ele próprio participava, possuindo raparigas em cima da mesa de jantar, à frente dos outros Nazis de Ferro, que o aplaudiam de uma forma caótica, como se o poder sexual do coronel fosse um sinal da sua enorme ascendência sobre o grupo.

Nos dias em que esteve nas Caldas de Felgueiras, Manfred ficou a dormir num quarto partilhado com outro nazi, um tipo gordo chamado Otto, que rapidamente desatou a detestar, pois não tomava banho, cheirava muito mal e, além disso, era um ladrão. Certa noite, Manfred acordou e viu Otto a remexer nas suas coisas, com a mão no pequeno baú onde estavam os tesouros.

Deu um pulo da cama e apontou-lhe a arma à têmpora, mas o outro mijou-se pelas pernas abaixo, e depois disse-lhe que não estava a roubá-lo, queria apenas perceber se era mesmo verdade que Manfred tinha tesouros de Hitler!

Aterrado com a pistola, Otto contou que conhecia um inglês em Lisboa, chamado Jack Deane, que estava muito interessado nesses tesouros. Ao ouvir aquele nome, Manfred perdoou a Otto a sua ousadia e agarrou no cartão que ele lhe entregou, pensativo.

Mesmo assim, Manfred foi-se queixar a Lang no dia seguinte, só que o chefe do bando disse-lhe que as quinquilharias dele não valiam nada, não percebia porque se preocupava que alguém lhas roubasse.

Esta perigosa tendência para o desregramento coletivo e para a anarquia acabou por convencer Manfred de que aqueles Nazis de Ferro não passavam de uma falsa metáfora, de uma ilusão estúpida. Cobardes e degenerados. Eram apenas um bando de inúteis, arruaceiros e sem propósitos. Estavam convencidos de que seriam a ressurreição da Alemanha nazi, mas eram apenas os seus últimos desgraçados, a cheirar a urina e a descrença, vítimas já não das bombas aliadas, mas dos caprichos da carne e do estômago.

- Se não acreditas em nós, vai-te embora.

A sugestão de Lang soou-lhe como um epitáfio para aqueles dias nas Caldas de Felgueiras. De súbito, como numa revelação, Manfred viu o futuro, viu aquele homem desmiolado a ser fuzilado por um pelotão aliado, depois de deportado para a Alemanha, e pressentiu que seria esse o destino daqueles tontos Nazis de Ferro. Foi nesse momento que, vários meses depois de ter fugido da Alemanha, tomou finalmente a decisão de abandonar a Europa.

Sabia que podia fugir por Lisboa, ouvira nas termas muitas histórias de outros nazis que o tinham feito nos últimos meses.

Da capital portuguesa partiam barcos para a América do Sul, para o Brasil ou para a Argentina, e ninguém incomodava os alemães ali. A neutralidade do país de Salazar dera muito jeito a todos os intervenientes naquela guerra e continuava a dar agora. De Espanha, todos desconfiavam que fosse amiga de Hitler, mas não tanto de Portugal, o que facilitava a fuga.

Para mais, ele conhecia bem Lisboa, vivera lá quando era mais novo, durante uns anos, na altura em que o pai estivera colocado na Embaixada. Foi num tempo que lhe parecia agora muito distante, quando o pai e a mãe ainda eram felizes, antes de o pai morrer e de a mãe deixar de ser respeitável. Degenerada.

Tirou a memória da mãe da cabeça e pensou nas pessoas que conhecia em Lisboa. Não sabia se ainda lá viviam, mas sentia-se confiante, pois conhecia a cidade, as suas ruas, o porto, e não teria dificuldades para passar despercebido, enquanto negociava com os caçadores de tesouros.

A desilusão que teve nas Caldas de Felgueiras, com Lang e os Nazis de Ferro, não só o incentivou a fugir daquela insanidade, como também o fez repensar a Sua decisão quanto aos tesouros.

O poder encantatório daqueles artefactos, em especial do retrato da mãe de Hitler, parecia inexistente, mesmo para ferrenhos defensores do Terceiro Reich. Se estes tipos não se entusiasmavam com o retrato, ninguém se entusiasmaria e, portanto, mais valia vendê-lo. Tanto o intermediário francês que o abordara em Marselha, como agora Otto tinham referido o mesmo nome: Jack Deane.

Antes dele, esse homem estivera em Marselha e depois nas Caldas de Felgueiras, mas partira para Lisboa. Se lá continuasse, Manfred iria encontrá-lo.

O meu neto não sabia que os nazis das Caldas de Felgueiras tinham atingido aquele ponto de corrupção moral, e que nunca os seus planos chegaram a lado algum.

- Em quarenta e cinco, os americanos fizeram um relatório sobre eles, estavam com receio. Mas aquilo nunca deu em nada, não passavam de um bando de maluquinhos ...

O meu neto pergunta-se se eles acabaram por ser deportados para a Alemanha, e eu respondo-lhe que sim, a maioria foi, em 1946, mas houve alguns que fugiram para a América do Sul.

- E o Manfred conseguiu escapar?

Cada coisa a seu tempo, Paul. Primeiro vamos tratar da Rosa e do golpe contra Salazar.

 

Lisboa, 3 de agosto de 1945

Afonso Caldeira está convencido de que, com um empurrão valente, Salazar se afunda, mas quando entramos numa pequena loja de um fotógrafo, na rua dos Sapateiros, de repente ele leva o dedo à boca, indicando que agora não é o momento de continuar a nossa conversa política.

O homem atrás do balcão usa óculos, é baixo e sorri ao ver o meu advogado. Atrás dele, há uma profusão de fotografias a preto e branco, caras de homens, mulheres e crianças, um mostruário dos trabalhos que executa. Porém, também se dedica a outras atividades mais clandestinas.

Sempre que, nos tempos do MI6, precisava de um passaporte falso, ou mesmo de um visto, ia falar com o meu advogado, pois um dia ele dissera-me que conhecia um dos melhores falsificadores da cidade. Através dele, encomendara vários serviços e os documentos apresentados eram preciosos, tão credíveis quanto os verdadeiros. No entanto, jamais conhecera o seu autor, pois Caldeira queria protegê-lo contra possíveis denúncias.

Por isso, quando ontem lhe telefonei a dizer que precisava de usar, uma vez mais, o expediente não esperava que me trouxesse a visitar este local. Mas o meu advogado considera que agora já não há perigo, o seu falsificador temia mais as denuncias alemãs do que a PVDE.

Trago comigo a fotografia que Luisinha me deu, bem como um papel com o seu nome completo, e os do pai e da mãe, para que este artista possa produzir ambos os documentos. O meu advogado está satisfeito por poder ajudar, delicia-se com histórias de amor românticas e complicadas, onde rapazes e raparigas têm de fugir da família para poderem casar.

Pelo caminho, trocámos impressões sobre o país. Ele está animado com os progressos da revolta, diz misteriosamente que «as coisas estão em preparação», mas não dá pormenores, referindo apenas que, mais tarde, falaremos «em segurança».

A possível queda de Salazar empolga-o. Soube, pelos seus contactos, que o presidente do Conselho está exausto. Ao fim de dezassete anos no Governo, Salazar envelheceu, tem o cabelo grisalho, dorme mal e anda nervoso e desgastado.

É compreensível, comento, foram muitos anos de vigilância e de tensão. Primeiro, foi a guerra de Espanha, entre 1936 e 1939.

Depois, a guerra na Europa, durante mais seis anos. Quase uma década de turbilhões políticos, económicos, sociais. Embora sabendo que conseguiu atingir os seus fins, e que grande parte do mundo o admira, Salazar sente-se atacado, mas também único.

A maioria dos homens grandes do mundo já caiu, mas ele resiste. Mussolini acabou miseravelmente assassinado numa praça pública: Hitler, que aterrorizou O planeta, suicidou-se no dantesco cenário de Berlim; Roosevelt morreu, esmagado pela longa presidência onde enfrentara a grande recessão, primeiro, e uma guerra terrível, depois; Churchill, que emergira como o grande salvador do mundo livre, foi derrotado nas umas por um povo ingrato, sendo forçado a abandonar a Conferência de Potsdam a meio; e Pétain, o general suave e conciliador, acabou preso por colaboracionismo. Mesmo em Portugal, alguns dos que haviam ajudado Salazar tinham desaparecido, como Duarte Pacheco, vitimado por um estúpido acidente de carro; ou Teixeira de Sampaio, vítima de uma doença súbita.

Agarrados ao poder, só ele e Franco ainda resistem, mas admito que talvez esteja na hora da mudança. Salazar pode ser um sobrevivente, um malabarista exímio nas artes políticas do mundo e um inteligente negociador, que evitou a guerra em Portugal, mas agora está cansado e o país está cansado dele.

Chegou a sua hora, defende Afonso Caldeira, enquanto caminhamos, num trote apressado, pela rua dos Sapateiros. É tempo de lhe mostrar a porta de saída, de o expulsar de São Bento! Caldeira diz que conta comigo, conta com os ingleses, mas meto água em tanta fervura. Em Potsdam, refiro-lhe, os grandes do mundo analisaram os países europeus e ninguém hostilizou Salazar. Até Estaline, segundo se diz, referiu que o regime do Estado Novo era mais legítimo do que o de Franco, pois não conquistara o poder com a ajuda dos nazis. Ajudas externas eram uma miragem.

O meu advogado estaca de súbito, quase à porta do fotógrafo, e olha-me nos olhos. Vão deixar-nos sozinhos? Abana a cabeça, e resmunga: - O Mário Soares diz o mesmo. Sabe, aquele rapaz que você conheceu no dia da manifestação.

Recordava-me, era um jovem com grande capacidade retórica, um futuro tribuno. Caldeira encolhe os ombros e declara, dando um passo para a porta da loja:

- Se é assim, avançamos sozinhos!

Só meia hora mais tarde, quando caminhamos de novo na rua, tomo consciência da gravidade do que me disse. Deixei a fotografia na loja, e o homem prometeu que teria o passaporte e o visto de Luisinha prontos daqui a duas semanas. Deixei também um sinal e exigi-lhe total confidencialidade, depois saímos e fomos descendo a rua da Prata, na direção do Martinho da Arcada, onde iremos almoçar.

Afonso Caldeira refere-me, em voz baixa, que está a ser preparada uma operação secreta. Murmura ao meu ouvido:

- Um putsch, um golpe ...

Torço o nariz: o último destes exercícios foi em janeiro e não teve qualquer sorte, como relembro ao meu advogado. Mas ele despreza os golpistas dessa aventura inglória, que apelida de «monárquicos e republicanos tontos», acrescentando: - Onde já se viu andarem unidos dois grupos que acreditam em ideias opostas?

Para ele, era evidente que tal desvario ia «borregar», mas não será o mesmo com O que «aí vem». Desta vez, assegura o advogado, as coisas não serão feitas à toa e há uma enorme frente, que inclui várias forças políticas democratas, para suportar a ofensiva rebelde de certos militares. Maçons, republicanos, socialistas, comunistas, têm-se encontrado em segredo, unificando apoios para o derrube do Estado Novo.

Quanto à logística golpista propriamente dita, Afonso Caldeira não dá mais pormenores, continua a dizer que essas coisas só se falam «entre quatro paredes», e chego ao célebre café de Lisboa, onde se diz que Fernando Pessoa escrevia muitos dos seus versos, sem ter percebido patavina sobre a operacionalidade do «tremendo golpe».

Durante o almoço, impedidos que estamos de trocar impressões sobre esse subversivo tema, pois o café está cheio de outros comensais, abordo o meu advogado a propósito de Rosa. Sei que ele vive numa grande casa, na Lapa, onde moram também os seus filhos e netos, e onde há muito trabalho doméstico. Pergunto­lhe se, por acaso, não necessita de uma empregada. Por precaução, jamais lhe digo que reencontrei Rosa numa «casa da luz vermelha», em Faro, apenas lhe conto a azarenta história da rapariga, a sua infelicidade e falta de recursos, e a minha preocupação com a sua situação.

Afonso Caldeira promete falar com a esposa e, com o bom coração que o caracteriza, acrescenta que, caso não seja necessária uma nova empregada em casa dele, haverá certamente outras famílias a precisar. De pronto me diz que ela pode começar já a fazer limpezas no seu escritório, pois é grande e nem sempre bem cuidado.

Mas, vivaço como sempre, não evita um franzir de sobrolho e pergunta-me, baixando a voz: - Não me diga que se meteu num sarilho ...

Sorrio e nego. Ele faz um ar matreiro e acrescenta:

- Sei de um amigo meu, também advogado, que já tem dois bastardinhos!

Asseguro-lhe que não se trata de um problema desses: Rosa é uma rapariga séria, conhecia o pai dela, que morreu, e faz-me impressão vê-la órfã e sem dinheiro. Afonso Caldeira está de acordo e acena a cabeça a confirmá-lo, mas depois pisca o olho e pergunta: - E nem lhe apeteceu dar-lhe uma bicadinha? As raparigas, quando estão assim, frágeis e necessitadas, são normalmente muito dadas.

Por um segundo, reflito se será boa ideia deixar Rosa nas mãos deste senhor, que parece tão bom pai de família e um avô tão decente, mas debaixo dessa capa de respeitabilidade é afinal um pocinho de malandrice masculina. Contudo, o advogado pressente a minha desconfiança e olha-me, surpreendido. O que está a pensar? Ri-se, pacificador: - Meu caro Jack, não fique com esses olhos, eu não quero proveito para mim: Estava a falar de si: Depois, faz um ar desiludido. Que desconfiado ... E acrescenta: - Não pense que sou como o seu pai:

Asseguro-o de que não imagino tal coisa, ele não tem a voracidade e a imprevisibilidade do meu pai, nem a sua descortesia.

Agastado com o general e com Salazar, desiludido com Alice e comigo, o meu pai remeteu-se a uma prolongada hibernação no Estoril há várias semanas, por certo divertindo-se no Casino com as coristas e aparentemente desinteressado das suas caçadas aos tesouros nazis. Informara-o de que a minha ida ao Algarve fora infrutífera e de que não havia novidades sobre qualquer nazi em Portugal, e ele não me voltara a telefonar nem a aparecer desde esse dia, o que me provocava uma enorme sensação de alívio.

Pena não estar com tosse, caso em que já teria regressado a Nova Iorque.

Desfeito o meu equívoco sobre as intenções de Caldeira quanto a Rosa, e terminado o repasto, caminhamos até ao meu escritório, atravessando primeiro o Terreiro do Paço e depois seguindo pela Ribeira das Naus, até chegarmos ao Cais do Sodré.

À porta do meu escritório, tenho a impressão de que há um carro que desconheço parado na rua, e temo que alguém me esteja a seguir. Talvez a PVDE ande interessada em mim, depois do interrogatório de Sertório, em Faro.

Subimos e apresento Rosa a Afonso Caldeira, que aproveita para a contratar de imediato, como empregada de limpezas do seu escritório. Ela olha-me, agradecida. Obrigada. Afonso Caldeira entrega-lhe um pequeno cartão, com a morada do local, e diz­lhe que passe por lá no dia seguinte, ao final da manhã. A rapariga sorri, contente.

Ao entrar no meu gabinete, Afonso Caldeira pisca-me o olho. É bem bonita, a moça. Deixo-o entrar e olho para Rosa, nos olhos de quem vejo um sentimento de gratidão, mas também algo mais.

Se me quiser... é só dizer. Sorrio-lhe, mas afasto esse pensamento erótico.

Na segurança das minhas quatro paredes, o advogado solta­se e revela finalmente pormenores sobre o golpe. Há vários regimentos militares preparados, de norte a sul. A primeira sublevação ocorrerá na Mealhada e Norton de Matos será o comandante da revolta. É o homem em quem todos confiam, sobretudo os militares, que se encontram muito descontentes, principalmente com o que se passa em Timor. Mesmo com a guerra praticamente perdida, não há forma de os japoneses abandonarem a ilha. Nos quartéis, muitos temem que Timor seja ocupado pelos holandeses, pelos americanos ou pelos australianos. Para Caldeira, tal até seria útil num primeiro momento, pois assim Salazar seria humilhado perante a opinião pública. Pede-me que insista com os ingleses, promovendo o avanço dos Aliados sobre a ilha, mas eu tenho dificuldades em fazer isso, a minha relação com a Embaixada é agora quase nula.

Exasperado com a minha descrença, o advogado exclama, desiludido:

- Meu caro Jack, você tem de nos ajudar! Você gosta disto assim?

Declaro-lhe que não. Não sou nem socialista, nem republicano, como ele, mas apenas um democrata, acredito na liberdade e nas eleições livres, e enerva-me a ditadura, a polícia política, a opressão sobre o país, a moral caduca e apertada do Estado Novo.

Agradado, Caldeira exclama:

- Então, tem de nos ajudar, meu caro Jack! Isto desta vez vai ser de arromba, «o Botas» vai cair! Está velho e caduco, chegou a nossa hora!

Entusiasmado, conta que, para além das dificuldades económicas que assolam o país e revoltam as almas, há mais greves em preparação, por todo o lado, do Porto a Setúbal. Segundo se diz, os comunistas vão desestabilizar as cidades e as fábricas. Só falta os ingleses e os americanos darem uma mão, seria mais fácil depor Salazar, se o fizessem.

Perante o seu convicto arrebatamento, prometo pensar numa forma de o ajudar. Recordo-me de umas informações do passado que penso que lhe podem ser úteis. Em 1941, naquele que ficou conhecido como «o caso da rede Shell», os ingleses foram acusados de terem uma operação preparada, se Portugal fosse invadido pela Alemanha. Foi realizado um levantamento dos locais onde se deviam colocar bombas, pontes e linhas férreas, por exemplo; foram lista dos os sítios onde estariam escondidos explosivos; e constituída uma extensa rede de células de combatentes, preparados para a guerrilha.

Infelizmente, a operação derivou para uma ligação inglesa a muitos comunistas, o que foi uma imprudência. Para caírem nas boas graças de Salazar, os nazis denunciaram a rede da Shell à PVDE, o que obrigou ao seu desmantelamento. Contudo, alguma da informação mais secreta nunca fora conhecida pela PVDE nem pelos nazis, só pelo MI6. Eu sabia que existiam mais «casas secretas», onde haviam sido guardadas armas e explosivos, e também quem eram os operacionais, a maior parte dos quais portugueses, que há quatro anos estavam a soldo dos ingleses, mas hoje talvez disponíveis para colaborar num golpe contra Salazar.

O meu advogado fica encantado e eu digo-lhe que preciso apenas de fazer uns contactos e depois poderia passar-lhas informações. Despedimo-nos e, à saída, Caldeira volta a relembrar Rosa que a espera no dia seguinte, para as limpezas. Ela agradece-lhe mais uma vez e depois olha para mim, com expectativa.

Quer-me agora?

- Avô, já marquei o seu voo para Lisboa, no início de junho. E o hotel também. A Alice convidou-nos para irmos almoçar à quinta dela, no Douro.

A Alice o quê? Almoçar com ela? Meu Deus, nem acredito que isso é verdade!

Nesses dias, eu estava outra vez convencido de que ela saíra da minha vida. Até porque tinha Rosa e, quando se tem uma mulher com quem podemos praticar sexo, as outras tendem sempre a ficar um pouquinho menos importantes. Paul, não é fácil fazer o que está certo com uma empregada das limpezas como aquela ...

- Mas voltou a divertir-se com a Rosa?

Oh! se voltei, meu querido neto, oh! se voltei! Deixa-me lá encher o copo de whisky que já te conto ... Eu prometi que te revelava tudo!

 

Nas quase duas semanas desde que a trouxera do Algarve, não tocara uma única vez em Rosa. Dizia a mim próprio que apenas a queria ajudar. Porém, um homem é um homem. Por mais que me obrigasse a ser fiel a Luisinha, a verdade é que a sua ida para Cascais me impedia de falar com ela!

Planeara ir lá no dia nove, pois a mãe e o pai viriam a um almoço em Lisboa, permitindo-nos passar a tarde juntos. Mas ainda faltavam seis dias! Até lá, iria penar sozinho. Alice estava com Francis e a minha vontade voltara a apertar nas últimas noites. Por isso, quando Rosa, depois de o meu advogado sair, me lançou aquele olhar quente e disponível, esqueci as minhas promessas de tentar fazer o que está certo.

A rapariga encosta a vassoura a um canto do corredor e vem na minha direção. Parece contente e até aliviada por eu a querer.

Já estava a estranhar. Desaperta os botões da bata azul que veste, e de imediato lhe vejo o peito, seguro num soutien esbranquiçado.

Tem umas gotas de suor na testa, o cabelo apanhado atrás, num carrapito, e os seus antigos brincos dourados, como se fosse a camponesa que conheci em Sagres.

Sinto-me bem por a ter tirado daquele triste destino e abraço-a. Rosa cheira a perfume barato, aposto que já comprou um, ou terá sido Roberto que lho ofereceu? Não me escaparam os sorrisos que ambos trocaram no carro, durante a viagem, ou aqui curiosidade em saber Como têm convivido em casa dele, e pergunto: - O Roberto tem-te tratado bem?

Ela sorri, estranhamente embaraçada, e cora. Porque quer saber? Depois, encolhe os ombros e diz: - É bom moço, muito trabalhador. Mas é um bocado tagarela.

E tímido.

As mulheres, ricas ou pobres, têm tendência para desconfiar de homens que falam muito e fazem pouco, mas parece-me que ela não está a ser totalmente verdadeira. Por isso, questiono-a: - Gostas dele?

Ela franze a testa, intrigada, e olha para mim. Tem ciúmes?

Depois, tenta provar-me que, para ela, eu sou especial.

- É boa companhia, mas ... O senhor Jack é quem me ajuda, quem me paga tudo, não é ele.

Dou-lhe um primeiro beijo na boca e ela responde de imediato, oferecendo-me a língua, que luta com a minha. Beija bem, mas faço uma pausa. Mantenho-a abraçada, e digo: - Rosa, tens de pensar no teu futuro - ela fica muito séria.

O que quer dizer? Espera que eu fale. - Eu vou partir em breve para a América. E levo a minha noiva.

Ela baixa os olhos, parece triste. E eu, quem me vai ajudar?

Digo-lhe que lhe vou procurar mais trabalhos, que a quero deixar bem, mas também que ela deve procurar um homem, um que goste dela, que a trate bem, que seja bom moço e trabalhador. Ela ergue o olhar. Como o Roberto? Eu confirmo o que ela pensa: - O Roberto é muito bom homem.

Ela evidencia uma certa pena no olhar. Eu gosto é de si.

Depois, encolhe os ombros e diz: - Quando o senhor Jack se for embora, eu penso nisso. Até lá, tenho de o ajudar nas limpezas ... Já que tenho fama de esfregar tudo bem «esfregadinho», também quero o proveito!

Dou uma gargalhada: Rosa escutou o comentário de Alice no outro dia, afinal aquelas paredes têm mesmo ouvidos! Ela ri-se também e depois acrescenta: - Aquela mulher é uma cobra, tenha cuidado com ela!

Já não a ouço, beijo-a nas orelhas e no pescoço, e ela geme baixinho.

Rio-me e ela também, e depois olha-me. Sou sua ... Levo a mão direita ao peito dela e aperto-lhe o seio esquerdo, e ela fecha os olhos. Então, dispo-lhe a bata e Rosa fica só em soutien e cuecas à minha frente. Puxo-a para mim, agarrando-a no rabo, e depois conduzo-a para o sofá, onde caímos os dois.

Começo a despir-me, com a sua ajuda, e depois tiro-lhe o soutien e aprecio as suas mamas. São redondas, perfeitinhas, mas não muito grandes. Gosto mais do seu rabo, é mais carnudo que o peito, e puxo-lhe as cuecas para baixo, massajando-lhe depois as nádegas. A seguir, encosto-a ao sofá, lambo-lhe os mamilos primeiro e depois o sexo, e por fim caio sobre ela com convicção.

Rosa recebe-me com gratidão, abrindo as pernas, cruzando­as nas minhas costas, e penetro-a com movimentos lentos e firmes, que a ambos nos dão imenso prazer. A rapariga olha para mim, ri-se, parece esgazeada. Estou doida ... Depois, diz que quer como no Algarve, e saio de dentro dela.

Levanto-a e pouso-a no braço do sofá, de rabo virado para mim. Começo a beijar-lhe as nádegas, a massajar-lhe as costas, e por fim desfaço-lhe o carrapito, solto-lhe os cabelos e puxo-os com a mão, como se fossem as rédeas de um cavalo. Ela arqueia um pouco a coluna e encosto-me a ela por trás. Devagar, começo a penetrá-la no sexo, e vou acelerando o movimento aos poucos.

Ela estremece primeiro, mas aguenta-me dentro de si o tempo que eu preciso, até ao meu arrebatamento final.

Exausta, Rosa diz, pouco depois, que tem de ir à casa de banho e eu consulto o relógio. São quase seis da tarde, Roberto e Klop devem estar a chegar para irmos às docas. Visto-me e, mal acabo, oiço tocar à porta. Vou até lá, compondo o cabelo e a camisa. O russo e o taxista entram, e vejo este último procurar Rosa com os olhos. Como não a vê, pergunta:

- A Rosa já saiu?

Respondo que não, que está na casa de banho, foi tirar a bata para se ir embora também, e nesse momento ela aparece, já vestida de saia e casaco, com os seus sapatos e com o cabelo outra vez apanhado num carrapito no alto da cabeça. Fica ligeiramente corada ao ver Roberto e dá-lhe as boas-tardes, bem como ao russo.

O taxista sorri-lhe e pergunta: - Vais para casa, Rosinha?

Ele gosta dela, é evidente. Rosa cora mais um pouco e baixa os olhos. Ai meu deus, ele vai perceber. .. Decido intervir e olho para o taxista como se tivesse tomado uma decisão.

- Roberto, acho que não precisas de vir connosco.

Ele franze a testa, surpreendido. Porquê? Explico-lhe que tenho o meu Citroên lá em baixo, podemos ir às docas nele, e faço-lhe uma sugestão.

- Leva a Rosa para casa. Ela andou a limpar o pó dos armários todos, está cansada. Podias levá-la de carro.

Roberto pisca os olhos, confundido, e balbucia: - Ó doutor ...

Eu levanto a mão e ordeno:

- Não se fala mais nisso. E, já agora, toma lá dinheiro. Passem pela gelataria e comam um gelado, que está um calor dos diabos!

Entrego algum dinheiro a Roberto, que fica espantado a mirar a sua mão, e olho para Rosa. Ela sorri. O senhor é mesmo boa pessoa ...

Descemos os quatro pelas escadas. Roberto não para de falar e, quando nos separamos, na rua, Rosa olha para mim e arqueia as sobrancelhas. Vê o que lhe disse, é um tagarela ...

Despedimo-nos, e Klop e eu entramos no Citroên. O carro de que desconfio continua parado na rua e menciono o facto ao russo, mas ele diz que não está lá ninguém dentro, que não me devo preocupar, ninguém anda a seguir-me, ele já teria topado se assim fosse.

Seguimos até Santa Apolónia e estaciono próximo da estação de comboios. Caminhamos para as docas a pé e noto que o russo parece bem-disposto. Aliás, está de sapatos engraxados e camisa engomada, e o fato é novo. Pergunto-lhe: - Estás muito aperaltado ... Que se passa, temos moça?

Ele ri-se e lá me revela que conheceu uma húngara, criada do rei Carol da Roménia, que vive no Estoril e com quem tem passado umas noites divertidas. Depois acrescenta, sibilino: - E o Roberto? Está-me cá a parecer, anda a aviar-se com a Rosa!

Coloco um ar espantado: - O Roberto? Tu achas? Que mafarrico!

Klop pergunta-me se isso me incomoda, ele também pensou que ela seria para meu uso privado. Eu garanto-lhe que não é assim, que só me comovi com a situação dela e a quis ajudar.

Não me incomoda nada que Roberto a ande a catrapiscar, até me sinto um bocado Cupido, pois fui eu que os juntei.

Klop sorri. É verdade! Depois, encolhe os ombros: - Mas sabe como é o Roberto, um bocado atado, sou eu que o ando a espicaçar. Talvez hoje, com o gelado, a coisa vá ao lugar.

Ela deve ser uma bela cabrita, tem ar disso ...

Faço um ar de indignado: - Se o Roberto a quer, não podes falar assim dela.

Então Klop olha para mim, de sobrolho franzido: - E o senhor, não molha o pincel? A sua noiva está para Cascais ...

Fingindo-me contrariado, resfolego e encolho os ombros.

Klop mostra-se de imediato disponível para ajudar: - Precisa de esvaziar o depósito ... Quer que lhe arranje companhia?

Chegámos à zona mais escura das docas e vejo ao fundo, no meio dos armazéns, alguns vultos. Não respondo à pergunta do russo e aponto para lá. Ele semicerra os olhos, mas é difícil àquela distância perceber quem são aqueles homens. Klop murmura: - Cheira-me a PVDE.

Minutos mais tarde, vagueando discretamente entre contentores, confirmamos a suspeita: as docas estão a ser vigiadas, tal como Klop me tinha avisado há tempos. Afastamo-nos da polícia de Salazar, não queremos mais encontros, chegou-nos o que se passou em Faro. Ambos sabemos que o agente Sertório não engoliu a nossa patranha e, portanto, a PVDE de Lisboa já deve ter sido informada.

Agora que a guerra acabou, Salazar já não aceita que ingleses, alemães e outros atuem livremente em Portugal, executando as suas operações secretas. Nos últimos meses, todos os operacionais estrangeiros foram discretamente informados de que as regras do jogo tinham mudado, e não seriam mais admitidas certas liberdades.

Dirigimo-nos para a zona dos armazéns e passamos por vários estivadores. Ao longe, reconheço um deles. É Henrique, o comunista que em maio escondi, à noite, em minha casa. Aproximo­me e saúdo-o. Ele é frio, mas aperta-me a mão. Explico-lhe que procuro informações sobre um homem, KIaus Muller, cujo cargueiro faz viagens entre Portugal e a América do Sul.

Sem alterar a sua expressão facial, Henrique pergunta: - Porque querem saber?

KIop bufa, irritado. Digo a Henrique que suspeitamos de que o barco transporta nazis, que irá levar alguns que andam escondidos em Lisboa, e ele confirma com um aceno de cabeça, e diz que já não será a primeira vez.

Eu pergunto: - Sabes se o barco está cá?

Henrique fica calado e sério, a olhar para mim. Não sou seu informador.

Enervado, KIop bufa mais uma vez e exclama: - Vá lá, homem, desembucha!

Henrique ignora-o e eu pergunto-lhe, com uma voz calma:

- Precisas de dinheiro, Henrique?

Sem sequer olhar para mim, o comunista faz um sorriso de desdém.

- Não preciso de ser pago para caçar nazis.

Klop encolhe os ombros, irritado. Henrique acende um cigarro e diz: - Anda por aí imensa gente. PVDE, judeus, vocês ... Mas o barco não está cá. Só deve chegar mais para o fim de agosto, foi o que ouvi dizer ...

Henrique dá mais uma passa. Depois, olha-me e questiona: - O senhor trabalha outra vez para os ingleses?

Não lhe quero mentir, por isso reconheço que não. Mas pretendo saber se há nazis a fugirem, falo em Mengele, nos seus crimes. Henrique olha para mim, depois dá mais uma passa e diz: - O seu pai esteve cá. Tem o mesmo nome do que o senhor.

Andou por aí a oferecer dinheiro a muitos, mas ninguém sabe nada sobre nazis em fuga. E muito menos sobre tesouros ...

Portanto, o meu pai também não ignora que este barco costuma transportar nazis para a América do Sul, e anda na mesma pista do que nós.

Henrique resmunga: - Ninguém quer saber de tesouros aqui. Temos mais em que pensar.

Refere que há muita revolta entre os trabalhadores do porto, há quem fale em greves, quem se prepare para a luta. Ao ouvi-lo falar nesses termos, Klop cospe para o chão. Já se apercebeu de que Henrique é comunista, e ele odeia comunistas, culpa-os pela revolução na Rússia, pelo mal que lhe fizeram e à sua família. Rosna: - Logo vi que eras bolchevique! Sempre com a mesma conversa, as greves, a revolução. Deviam era ser todos fuzilados!

Lanço-lhe um olhar reprovador, mas o russo está fora de si.

Nutre um ódio puro e visceral pelos admiradores de Lenine e Estaline. Ao senti-lo, Henrique fica tenso de imediato e semicerra os olhos, quando diz:

- É melhor não dizeres isso aqui ...

Klop enfurece-se e desata a gritar, completamente descontrolado: - Se tivessem morto a tua família, como fizeram à minha; se te tivessem roubado as fábricas, como aconteceu às nossas; aí já não eras comuna, meu merdas!

Embora Klop seja bem mais alto e mais forte do que ele, Henrique não parece amedrontado com o palavreado ofensivo do russo. Mas, para evitar um confronto mais aceso, puxo Klop para o lado, e grito-lhe:

- Cala-te, a PVDE anda aí!

Ao lembrar-se da polícia de Salazar, Klop silencia-se, mas mira o comunista, os seus olhos chispando raiva e ressentimento.

Aponta um dedo para ele e ameaça: - Um dia destes passo por cá, vermelhusco!

Henrique não lhe responde e eu arrasto o russo para longe dali, e tento acalmá-lo. Passados uns minutos, Klop dá uma gargalhada quase histérica e exclama: - Adoro lutar antes de fornicar! Um gajo fica enraivecido e depois rebenta com elas!

Dá nova gargalhada, parece um louco, mas forço-o a ficar em silêncio, para sairmos dali sem ser importunados pela PVDE. Quando chegamos ao Citroên, Klop declara que tem de ir a casa, e que vai a pé. Antes de o deixar ir embora, faço-o prometer que não vai regressar para agredir Henrique, nem criar transtornos nas docas, pois isso só nos causará problemas.

Assim como assim, cometemos um crime os dois, há um ano, e não devemos brincar com o fogo.

- O avô que me desculpe, mas eu acho que andava sempre a brincar com o fogo.

Querido Paul, pareces estar impressionado com a minha

duplicidade: possuí Rosa e depois ofereci-a a Roberto, o que te parece um comportamento duvidoso para um amigo.

Paul, tens razão, mas para mim Rosa não era uma paixão, eu não a amava, embora fosse alguém a quem queria bem. Além disso, parecia-me que Roberto era um bom homem para ela.

- O avô andava um bocado confundido, é o que eu acho ... E tens toda a razão, meu neto, eu nada percebia do que me estava a acontecer, sem conseguir controlar o que se passava à minha volta. E as coisas só iriam piorar, agora que falava com comunistas nas docas e que ajudava a oposição a preparar golpes de Estado.

Tinha entrado numa espiral de confusão: nos afetos, no sexo, mas também nas minhas atitudes sociais e políticas. Não podia acabar bem ...

Só que, naqueles dias, nem por um segundo pensei em parar, para pensar no que estava a fazer à minha vida. Rodopiava ao sabor das vontades alheias como um louco: Luisinha, Alice, Rosa, o meu pai, o general, os comunistas, golpes, tesouros nazis e Nazis de Ferro, Salazar. .. Que trapalhada.

 

Cascais, 9 de agosto de 1945

Nos últimos dias, desleixei-me no vestir, e só voltei a aprumar-me hoje, ao final da manhã, porque vim agora para Cascais. Em Lisboa, só se fala nas bombas, de Hiroxima, primeiro, há quatro dias, e de Nagasaqui, ainda hoje de manhã. Diz-se que o Japão se vai render, o que me parece evidente, nenhum país aguenta duas bombas daquelas. Mas agora a guerra é já uma coisa distante, já não acontece na Europa, já não mexe com o dia-a-dia de Portugal, transformou-se apenas num argumento nas discussões.

Vim pela Marginal e decidi não ir a casa de Luisinha, mas rumar direto para a praia, na baía de Cascais. Luisinha avisou-me de que estaria aqui, à minha espera, até me revelou qual era a barraca de praia que a família todos os anos aluga. Deixei o Citroên numa rua próxima, vesti um fato leve, de linho, fácil de despir, e tenho um fato de banho por baixo, só os calções, sem camisa interior de alças.

Vejo-a ao longe, sentada na areia, junto às barracas, com Ofélia à ilharga, mas não aceno, não vá haver alguém a vigiá-la.

É melhor não me fazer notado. Apesar de não estar muita gente na praia, talvez trinta ou quarenta pessoas, algumas encontram-se perto dela, podem ser amigos da família, que amanhã irão contar a Dona Guilhermina o que viram. Por isso, vou avançando lentamente, rodeando as barracas por trás.

Quando me vê, Luisinha dá um pulo de alegria e vem a correr ter comigo, com os olhos a brilharem. Que saudades! Abraçamo-nos e algumas pessoas olham, curiosas. Ela não se importa e diz:

- Já estava a ficar preocupada, nunca mais chegava!

Sorrio-lhe, digo-lhe que vim pela Marginal, não era boa ideia vir a acelerar. Pergunto-lhe como tem passado, se aquele seu exílio é suportável. Ela sorri:

- Agora é.

Sinto-a feliz por me ver. Pergunta-me como vão as coisas em Lisboa, digo-lhe que há poucas novidades, não se encontram nazis em lado algum, e a companhia de navegação já pouco tem a fazer, o negócio está encerrado, só lá vou por rotina. Para a tranquilizar, conto que a empregada das limpezas, Rosa, foi já trabalhar a tempo inteiro para o meu advogado, ele contratou-a para o escritório, mas depois também para casa.

Luisinha parece-me satisfeita com o facto de Rosa já não estar todos os dias perto de mim. É melhor assim. Não demonstra ciúmes, ou preocupações por causa da empregada. É demasiado orgulhosa, ou demasiado esperta, ou demasiado inocente para o fazer. Prefiro assim. Quando uma mulher não faz perguntas incómodas, facilita a vida aos homens e a si própria, pois escusamos de lhe mentir. Além disso, tenho a certeza de que Luisinha nunca deu muita importância a Rosa, ao contrário do que se passa com Alice. Preocupada, pergunta-me: - A Alice voltou a aparecer?

Digo-lhe que não, nem voltei a falar com ela. E afirmo:

- Ela anda de caso com o americano, o que estava com ela no outro dia.

Luisinha não comenta, mas vejo um certo alarme nos seus olhos. Está com ciúmes? Observa o mar e depois pergunta: - Isso incomoda-o?

Sorrio-lhe e sento-me, tentando evitar que os sapatos se encham de areia. Juro-lhe que a vida de Alice e os seus sentimentos não têm já nada a ver comigo. Quem dera que assim fosse, mas Luisinha fica agradada com a minha resposta e, depois de uma pequena pausa durante a qual se senta também, pergunta: - E o seu pai, tem falado com ele?

Conto-lhe que o meu pai está igualmente a banhos, um pouco mais para a nossa esquerda, algures no Estoril. Não tenho falado com ele e ainda bem, a sua presença na minha vida só tem trazido dissabores, como ela bem sabe.

Luisinha suspira. Ó se sei ... De imediato acrescenta:

- O paizinho continua danado.

Todos os dias, tanto o general como Dona Guilhermina relembram à filha a proibição que lavraram contra o nosso namoro, e insistem que não só sou filho de um tipo pouco recomendável, como sou eu próprio um homem sem caráter, que aponta facas a pessoas desarmadas.

Suspiro e murmuro, desiludido: - O seu pai nunca me irá perdoar.

Luisinha suspira também, mas depois sorri e exclama: - Vamos falar em coisas alegres! O Jack tem ido ao cinema?

Digo que não, ao que ela responde: - Ainda bem. Se tivesse ido sem mim, aí é que o namoro acabava já! O Jack pode apontar facas ao meu irmão e zangar-se com o meu paizinho à vontade, agora ir ao cinema sozinho é que nem pensar!

Abraço-a e dou-lhe um beijo. É este espírito jovial e alegre que admiro nela. Contudo, Luisinha não se sente confortável abraçada e enxota-me um pouco, dizendo: - Está muito calor para isso, devíamos era ir tomar banho!

Ó Ofélia, onde está o meu fato de banho novo?

Ri-se para mim e informa: - Comprei um, no Paris em Lisboa, antes de vir para cá.

Mas só o vou estrear hoje, de propósito para o Jack!

Levanta-se, enquanto Ofélia sai de dentro da barraquinha e me sorri. Está vestida de bata, as faces encarnadas que nem um tomate, devido ao calor, mas sorri-me, com simpatia, antes de dizer, apontando para a barraca: - É melhor a menina mudar-se lá dentro!

Luisinha dá uns pulinhos na areia quente e saltita até à barraca, entrando. Ofélia fecha o pano nas suas costas, como se estivesse no teatro e tivesse chegado ao fim o primeiro ato. Acendo um cigarro, enquanto espero, e olho para a praia. Há algumas pessoas à borda de água, com os pés no mar, mas a maioria está sentada, por vezes tendo de se afastar das pequenas ondas que as salpicam. A nadar no mar não vejo ninguém.

De repente, abrindo o pano da barraca, Luisinha espreita e pergunta: - Jack, quer despir-se? Eu já estou pronta!

Fico boquiaberto, ela está maravilhosa, no seu novo fato de banho azul. É um modelo arrojado, que ainda só tinha visto em fotografias nas revistas americanas ou inglesas, nos corpos de atrizes! Um fato de banho que deixa as pernas todas à mostra, bem como as coxas e até bocadinhos das nádegas, e que tem um decote cavado no peito, realçando as suas formas arredondadas.

Luisinha ri-se, olhando para mim. Gosta? Está a sentir-se muito orgulhosa. Comenta, em voz baixa: - Acho que me fica a matar!

Eu é que estou quase a matar alguém! De repente, ao ver as formas do seu corpo, a sua pele macia, desejo-a fortemente, e aproximo-me. Contudo, ela saltita para longe num segundo, brincalhona, e grita: - Despache-se, quero ir ao mar!

Entro na barraca e rapidamente dispo o fato de linho, pendurando as suas peças nos paus que suportam a tenda. Descalço os sapatos e procuro evitar que fiquem com mais areia do que já estão. O meu fato de banho não é tão moderno e recente como o dela, mas ainda está bem apresentável. Saio da barraca, procuro-a com os olhos e vejo-a já com os pés dentro de água, a refrescar-se. Corro para lá e, só pelo canto do olho, reparo que a praia toda nos observa. Finjo que isso não me incomoda e chego perto dela.

Com um gritinho, Luisinha diz: - Não está nada fria

Apetece-me abraçá-la, mas seria imprudente. Uma coisa é tomar banho, outra é promover comportamentos impróprios.

Observo-a apenas. Luisinha recolhe a água com as mãos em concha e liberta-a sobre a cara, sorrindo e fechando os olhos ao mesmo tempo, e murmurando:

- Ai que bem que isto sabe ...

Refresco-me também e dou umas passadas em frente, na direção das ondas, e ela prepara-se para me seguir quando de súbito ouvimos um apito. Surpreendidos, olhamos para a areia e vemos um homem fardado, baixote e gordo, a vir em passo estugado na nossa direção. Faz gestos, chamando-nos, e ambos franzimos a testa. O que quererá? O mar está tão calmo, não há qualquer perigo nesta praia, mas ele chama-nos com tal veemência que somos forçados a regressar.

Na areia molhada, com os pés enfiados naquela lama agradável, ouvimo-lo gritar: - Os senhores não podem andar nesse preparo!

Não compreendemos, dizemos-lhe que queremos apenas tomar banho no mar, mas ele abana a cabeça, diz que é proibido andarmos assim! Aponta para os nossos fatos de banho, mostrando-se embaraçado quando olha para Luisinha. Cita o novo «regulamento» das praias, diz que são proibidos fatos de banho como os nossos, principalmente como o da senhora! Está descomposta, é proibido, repete ele, excitado! Terá de aplicar-nos uma multa, a mim também, falta-me a camiseta de alças para estar composto Ou vamos à barraca mudar-nos, ou tem de nos multar!

Luisinha protesta, furiosa, e diz que o «regulamento» é um disparate, que ela só quer dar um mergulho, mas o homem mostra-se irredutível, e ameaça mesmo chamar a polícia para nos prender, se não pararmos imediatamente com o nosso exercício despudorado!

Furibunda, Luisinha exclama: - Que porcaria de país, nem se pode tomar banho no mar em paz:

O homem fica de olhos esbugalhados, esperava tudo menos uma crítica ao regime, mas eu faço-lhe um sinal de compreensão e aceno com a cabeça, a dizer-lhe que está tudo bem, vamos seguir as suas ordens. Luisinha olha-me, furiosa. O quê? Desiludida comigo, desata a caminhar depressa na direção da barraca, entra e fecha-se lá dentro, amuada.

Regresso calmamente e encolho os ombros ao chegar perto de Ofélia, enquanto vejo a praia toda a olhar para mim, com ar reprovador. O cabo-do-mar faz-me um gesto a dar a entender que nem ali posso ficar assim descomposto, e pergunto a Luisinha se posso entrar na barraca. Lá de dentro, ela responde que sim, numa voz fraca. Entro e vejo-a sentada no chão, a choramingar.

Protesta: - Comprei este fato de banho novo, caríssimo, e agora não mo deixam usar? Que país é este?

Tento explicar-lhe que as coisas mudaram, que agora já não há estrangeiros por cá, e que sendo assim o Salazar já pode proibir os portugueses e as portuguesas de usarem fatos de banho iguais aos deles, já não fica mal visto aos olhos dos estrangeiros.

Ela olha para mim, irritada: - O Jack podia ter protestado mais, nem se zangou com o cabo-do-mar: É a primeira vez que a ouço criticar-me e fico desorientado.

- Agora a culpa é minha? O Salazar é que faz estas leis estúpidas e você zanga-se comigo? Preferia ter ido para a esquadra?

Ela fica aterrada por me ter chateado. Não se zangue, não se zangue! Diz, de imediato:

- Desculpe, o Jack tem razão, não valia a pena zangar-se com o homem, ele também só está a cumprir ordens.

Incomodado com a forma como ela falou comigo, sem dizer mais nada começo a vestir-me. Ela olha-me, alarmada. Vai-se embora? Levanta-se num pulo e aproxima-se de mim.

- Não precisa de se vestir a correr, aqui dentro ele não vem.

Olho-a, sem perceber o que quer dizer. Então, Luisinha sorri e bate as pestanas. Há nela um brevíssimo olhar maroto. E se ... ?

Depois, estende uma toalha, ocupando quase todo o chão da barraca e senta-se, convidando-me a fazer o mesmo, ao seu lado.

Olha para mim, ansiosa. Vá lá, não se zangue.

Respiro fundo e penduro de novo o fato na armação. Depois, deixo-me cair ao lado dela. Ela faz-me uma festa rio ombro e encosta-se a mim, dengosa. Diz: - Podemos namorar aqui um bocadinho ... Ninguém nos vê e a Ofélia está lá fora, não deixa ninguém entrar.

Vejo a sombra do carrapito de Ofélia a dois metros de nós.

Está suficientemente perto para ver quem chega, mas suficientemente longe para não nos ouvir bem. Começo a amansar, mas aviso-a: - Não gosto que se zangue comigo.

Ela sorri. Desculpe. É O que dizem os seus olhos, mas ela não, é orgulhosa. Encosta-se mais a mim e murmura: - Não vamos falar mais, as palavras não são importantes. Beija-me na boca e, entusiasmado, levo a mão direita ao seu peito, e envolvo-o. Ela geme, de olhos fechados. Então, puxo-lhe a alça do fato de banho para baixo, toco-lhe com a mão no peito, na pele primeiro, depois aperto-o e, por fim, passo com os dedos no seu mamilo.

Luisinha estremece de prazer. Geme mais e eu puxo a segunda alça, fazendo com o seu peito fique à mostra. Ela abre os olhos e sorri para mim. Gosta? Baixo a cabeça e começo a beijá-la no peito, dou pequenas mordidelas nos seus mamilos, e ela estremece mais vezes, muito corada.

Inesperadamente, uma voz grita! É Ofélia, a sua sombra levantou-se do lado de fora da barraca. Sem ter coragem para abrir o pano, avisa: - Ó menina, a sua mãezinha vem aí, cuidado!

Era só o que nos faltava! Desengatamo-nos e desatamos a vestir-nos, sem saber o que dizer, a olhar um para o outro, azougados e frustrados, mas ao mesmo tempo contentes com o que se passou, com aquele momento de intimidade. Mal me visto, investigo a possibilidade de escapar pelos fundos da barraca, mas é inútil. Fomos apanhados por Dona Guilhermina, o que é mais uma tragédia a somar às dos últimos tempos!

O que se segue é uma gritaria sem sentido. Nós saímos da barraca e a mãe dela, já perto, desata aos urros, a chamar-me todos os palavrões do mundo: «comunista», «selvagem», «Satã», «Belzebu»! Insatisfeita, grita pela polícia, dizendo que eu sou um «gatuno»! Luisinha bem tenta acalmá-la, mas ela está imparável e, segundos depois, vejo o cabo-do-mar aproximar-se, atraído pela gritaria.

Luisinha olha-me, aterrada. Vá-se embora! Fuja! Parece-me uma cobardia abandoná-la assim e fico quieto, obrigando-a a gritar, veemente: - Vá-se embora Jack, senão ele prende-o!

Então desato a correr, pela areia fora, na direção do meu Citroên.

Era assim Portugal, em 1945, meu querido neto! Nem fatos de banho se podiam usar na praia ... Foi também isso que nos levou a fugir, não conseguíamos mais viver num país assim, tão castrador!

Mas acabei por te contar mais do que devia, sobre mim e a tua avó, talvez não te devesse ter dito tanto.

- Ó avô, por favor, foram só umas mãos nas maminhas, não foi nada de grave! Não se esqueça de que, no ano passado, me contou que tinha morto um homem ...

É por isso que gosto tanto de ti, meu querido neto. Umas mãos nas maminhas não são nada de grave comparadas com o assassínio de um homem, lá isso é verdade.

- Qual a nota que dava à avó? Quinze? Dezasseis?

Rimo-nos os dois e eu declaro que dava um dezasseis! Mas, daqui a dias, acrescento, ela lança-se ao dezoito, meu querido Paul!

É tão bom conversar contigo, nem sabes o bem que me fazem estas conversas!

 

Lisboa, 18 de agosto de 1945

O Japão já declarou que se irá render, afirma o meu advogado, e que irá devolver Timor. Segundo ele soube, o embaixador Morishima, chamado a São Bento, garantiu ontem a Salazar que o Governo japonês vai restituir a ilha à soberania portuguesa. Mas, acrescenta Caldeira, a coisa está complicada: os australianos querem também eles o território, e já informaram os Aliados de que vão invadir e ocupar Timor!

- O Salazar está tramado, estes barcos não vão chegar a tempo!

Estamos na Rocha do Conde de Óbidos, a assistir à partida de dois navios de guerra da Marinha portuguesa, o Bartolomeu Dias e o Gonçalves Zarco, que zarpam hoje para Timor, para garantir a segurança e a devolução do território ocupado pelos japoneses desde princípios de 1942. O meu advogado murmura, ao meu ouvido: - Ainda bem que vão, assim ficam menos do lado deles ...

A Marinha portuguesa não é a força mais bem vista pela oposição ao regime, que a considera demasiado «salazarista», e a partida de dois vasos de guerra e respetivas tripulações é contabilizada como um enfraquecimento das forças que suportam o regime, vindo mesmo a calhar em vésperas do golpe que se avizinha. Afonso Caldeira sugeriu que viéssemos assistir à sua despedida, supostamente porque um sobrinho seu vai a bordo, mas na prática apenas para verificar que não há mais barcos militares no Tejo.

Franzo a testa e pergunto, em voz baixa: - Está para breve o golpe?

Ele abre muito os olhos, como numa reprimenda. Não fale nisso aqui! Não quer dar informações no meio da multidão, teme que existam elementos da PVDE disfarçados entre os familiares dos marinheiros, que vieram despedir-se dos embarcados, no meio de grande comoção. Só vejo crianças, mulheres e alguns idosos à nossa volta, todos de olho pingado e lenço húmido, como se nunca mais fossem ver a rapaziada, que atira adeuses pendurada nas amuradas dos dois barcos.

O meu advogado puxa-me então pelo braço e regressamos em passo apressado para o meu Citroên, parado a uma centena de metros. Pelo caminho, Afonso Caldeira olha várias vezes por cima do ombro, para ver se somos seguidos, mas nada acontece, não vejo ninguém a dar-se a esse trabalho. Só já sentado no meu carro é que ele volta a falar: - Está por dias, poucos ... Mas ainda bem que estes se vão embora, assim já não conseguem voltar a tempo: Pergunto-lhe se não lhe parece que o discurso que hoje Salazar fez, de manhã, na biblioteca da Assembleia Nacional, perante a União Nacional, e onde anunciou a intenção de dissolver o Parlamento e convocar eleições, não poderá de certa forma baixar a pressão política que se sente no país.

Indignado, ele agita-se: - Ora! Meu caro Jack, isso são balelas! As eleições neste país são uma fraude, ele ganha sempre: Isto não vai lá sem ser à força: Insisto que poderia haver uma forma diferente de mudar o regime, um putsch é sempre imprevisível, nunca se sabe se corre bem. Talvez fosse melhor ideia formar uma coligação política, liderada por um homem credível. Sugiro Norton de Matos, mas o meu advogado nem quer ouvir falar em tal coisa!

- Era só o que faltava, meu caro Jack. É óbvio que perdia, está na cara!

Afonso Caldeira jura que qualquer eleição será sempre «uma aldrabice» e que, portanto, a única forma de derrubar Salazar é com um golpe. E acrescenta: - Já está tudo preparado, desta vez vai ser de arromba!

No entanto, continua relutante em revelar a logística operacional e só quando entramos no meu escritório é que, mal abro a porta, ele exclama: - Até que enfim ... Aqui, sim, podemos falar à vontade!

Está eufórico e solta-se finalmente. Descreve-me as operações que estão em preparação, os regimentos e as forças que já deram o seu aval, a logística geral do golpe. Confirma que será liderado pelo referido Norton de Matos, e que começará no dia 24 de agosto, na Mealhada.

Entusiasmado, declara: - O meu caro amigo já não vai ter de fugir de Portugal com a sua noiva!

Luisinha escreveu uma carta, que me chegou ontem, onde dizia que o general ia fazer queixa à polícia, para impedir que me aproximasse dela. Depois do sucedido na praia, em Cascais, as coisas estão duras para o meu lado, e pergunto ao advogado se trouxe os documentos de Luisinha. Ele lança a mão ao casaco e retira de lá um envelope grosso, dentro do qual se encontram o passaporte e o visto falsos. Contente, tenta animar-me: - Ficaram um mimo, o homem é um artista de primeira! Verifico que estão muito bem feitos e ele prossegue, entusiasmado: - Mas nem vai precisar deles! Daqui a dias, o Salazar vai à vida! - Depois, pergunta: - E os seus contactos, falou com a sua gente?

Revelo-lhe que alguns contactos estão desativados e outros precisam de ser convencidos, e passo-lhe as listas de pessoas e os respetivos telefones, bem como os mapas dos locais onde existem as «casas secretas» e onde há explosivos guardados, prontos para serem utilizados. Ele olha para os papéis com emoção e murmura: - Explosivos ... Isto vai ser de arromba!

Pergunta-me se quero participar, se há alguma função que possa desempenhar no golpe, e eu sugiro ser o elemento de ligação às embaixadas inglesa e americana, pois tenho ainda conhecimentos em ambas. Com pompa, Afonso Caldeira coloca-me a mão no ombro e diz, com a voz embargada: - Este é um momento para a eternidade, assim se escreve a história de Portugal! - Sorrio-lhe e ele acrescenta: - É desta que o Salazar vai ao tapete!

De repente, ouvimos uma voz vinda do meu gabinete, convicta e autoritária, dizer: - Se vão derrubar o Salazar, também quero ajudar!

Aterrados, o meu advogado e eu olhamos um para o outro.

Alguém ouviu a nossa conspiração, alguém está dentro do meu gabinete e já sabe os nossos segredos! E é evidente quem é: o meu pai! Cerro os dentes, irritado, e murmuro: - Merda, não sabia que ele estava cá ...

Afonso Caldeira leva a mão à testa, transtornado. Não sabe o que dizer ou fazer, mas tento acalmá-lo, faço um gesto para que me siga e avançamos até ao meu gabinete. A porta está aberta, e lá dentro encontra-se o meu pai, sentado na minha cadeira, com os pés em cima da mesa.

Fuma um charuto e apresenta-se, como sempre, bem vestido, desta vez com um fato branco às riscas azuis finas e uma camisa azul, de linho. Parece um veraneante de Biarritz, o que não é inesperado, pois tem estado no Estoril. Dá duas baforadas num charuto, que acabou de acender, e olha para mim e para o advogado, que entramos. Que ricas peças ... Sorri e diz:

- Com que então, os dois a planearem uma golpada!

Afonso Caldeira mostra-se indignado e nega, mas o meu pai sorri-lhe e levanta a mão, obrigando-o a calar-se.

- Ó Caldeira escusa de gastar o seu latim, eu ouvi tudo!

O advogado fica siderado e aflito, e o meu pai declara, para confirmar o que acabou de dizer: - Mealhada, Norton de Matos, dia vinte e quatro, explosivos com o Jack! - Pisca-nos o olho e ri-se, divertido: - Vocês para espiões não serviam, o que vale é que fui eu que os ouvi!

Dá mais uma baforada no charuto, bem-disposto, mas de repente fica sério, e proclama: - Pela minha parte, que não vos doam as mãos! E, se precisarem de financiamento, contem comigo!

Afonso Caldeira fica surpreendido e olha para mim. Estará a gozar connosco? Faz um ar sério e declara ao meu pai, olhando­o nos olhos: - Agradecia que se mantivesse fora disto.

O meu pai finge que fica surpreendido, ergue as sobrancelhas.

Ainda zangado comigo? Ri-se e declara que já é tempo de Afonso Caldeira esquecer as desavenças do passado, ele também já as esqueceu. O que importa é o futuro, diz o meu pai! Além disso, defende que sempre pensou que Salazar não era boa rês, coisa que só confirmou quando o conheceu.

- O homem é intragável, foi de uma deselegância comigo que só visto!

O protesto do meu pai dá-me vontade de rir, mas não é o momento e contenho-me. Ele revela a Caldeira o seu ressentimento contra o presidente do Conselho, acha que ele o maltratou e ofendeu, além de ter recusado os seus préstimos financeiros.

O meu pai queria fazer negócios em Portugal e Salazar expulsou-o de São Bento, num gesto infame e sem desculpa! Por isso, declara, está connosco, quer derrubar o homem! E, como tem dinheiro disponível, coloca-o à disposição da oposição, através de Afonso Caldeira. Se for preciso comprar armas, diz, ele compra-as; se for preciso petróleo, também!

- Tudo o que quiserem!

Aos poucos, tanto eu como o meu advogado vamos ficando convencidos das suas intenções. O meu pai é um homem muito hábil e persuasivo, e acredito que, depois da desfeita de São Bento, não tem qualquer admiração por Salazar, e está interessado em derrubá-lo, talvez para lá colocar outro homem mais fácil de manipular ou corromper. Certamente por isso, nem se preocupa em conhecer melhor as qualidades do putativo líder do golpe, Norton de Matos, e declara: - Isso é irrelevante, qualquer um serve.

Para o meu pai, os políticos são todos marionetas e, portanto, o mais importante é ter acesso a eles, poder influenciar as suas decisões e obrigá-los a decidirem o que é melhor para os negócios.

Afonso Caldeira não admira muito este estilo, mas faz de conta que não ouviu, contente como está com a aliança com o meu pai.

À despedida, junto à porta, o advogado mostra-se emocionado e abraça-me, dizendo em voz embargada:

- Voltamos a ver-nos no dia vinte e cinco, já num país livre!

Regresso ao meu gabinete e o meu pai informa-me de que veio hoje para Lisboa e se instalou no Aviz, na suíte D. João II, um rei que ele admira, pois matava os inimigos à punhalada! Não percebo bem se isto é uma indireta para mim ... Provavelmente, admira mesmo a crueldade do soberano luso, deve identificar-se com ele. Depois, ordena: - Quero que venhas lá jantar comigo, tenho uma coisa para te mostrar, antes de me ir embora para Nova Iorque!

Segundo conta, irá no dia 25, já conseguiu bilhete para o Clipper da Pan Am que sai nesse dia de Cabo Ruivo. Ao ouvir isto, sinto uma sensação de alívio, mas ao mesmo tempo de enervamento. Ele nem sequer me perguntou se queria ir com ele, nem sequer pensou em mim, e não faço ideia quais são os seus planos quanto à minha partida. Por isso, pergunto: - E eu, quando posso ir? Já não há nada a fazer aqui em Lisboa!

Fica pasmado a olhar-me. Tu? Encolhe os ombros, nem se dignou a refletir sobre isso. Sei lá! Mas avança uma sugestão:

- Vais depois, quando arranjares barco.

O costume: só pensa nele, o egoísta. E agora levanta-se, quer ir ao Aviz, quer que eu o leve e assim faço. Pelo caminho, pergunto-lhe como pretende financiar um golpe de Estado, se não vai estar cá, ele encolhe os ombros e nem me responde, vai calado o tempo todo, a pensar noutra coisa qualquer.

Entramos no Aviz, mas na receção não vejo Harry, e o meu pai sobe de imediato as escadas. Vou atrás dele até que chegamos ao quarto e entramos. Já conheço esta suíte, já aqui estive uma vez há uns anos, com Alice. Ele manda-me fechar a porta e depois olha para mim e afirma: - Não precisei de ti e consegui um tesouro.

Fico a olhar para ele, sem entender, e ele continua a observar-me, cheio de desdém. És um palerma. Será que vai tudo recomeçar? Então o meu pai dirige-se a uma das paredes e desloca uma gravura lá pendurada. Atrás dela aparece a porta de um cofre e ele toca-lhe ao de leve, satisfeito, e pergunta: - Sabes o que vai estar aqui dentro em breve?

Não faço ideia e espero que ele me diga. O meu pai semicerra os olhos e exclama: - O retrato da mãe de Hitler!

Fico estupefacto a olhá-lo. De que está ele a falar?

Então, o meu pai esclarece-me: teve informações de que chegou a Lisboa o mesmo alemão que há uns meses esteve em Marselha e que há umas semanas ainda andava por Madrid. Sabe que ele foi primeiro às Caldas de Felgueiras, falar com Lang e os seus Nazis de Ferro, mas nada conseguiu. Rumou por fim a Lisboa e há uns dias visitou uma casa de penhores, na Baixa, a tentar avaliar uns artefactos. Um deles, muito estimado pelo alemão, é o retrato da mãe do Führer.

Não faço ideia de como sabe o meu pai isto tudo, mas é bem mais do que eu sei. Olha para mim, triunfante. Sou muito melhor do que tu! Por fim, exclama: - Agora, tens de o encontrar!

Muito agitado, exige-me que descubra o alemão, onde ele se esconde em Lisboa. Autoritário, o meu pai declara: - Tens até dia vinte e cinco para mostrar o que vales! Senão ... Deixa em suspenso a ameaça e pergunto-lhe o que quer dizer. Ele fica muito sério, semicerra as pálpebras. Tu não me enfrentes!

Porém, desta vez não me acanho e pergunto: - O que vai fazer para estragar a minha vida? Já deu cabo do meu noivado, já me deixou sem trabalho ... O que vai fazer agora?

Furibundo, o meu pai volta a semicerrar os olhos. Nem sabes do que sou capaz ... E murmura: - Era bom que fizesses o que te mando ... Ainda posso mudar de ideias sobre o vosso golpezinho, não te esqueças!

Nem quero acreditar no que estou a ouvir! O meu pai ameaça denunciar o golpe das oposições contra Salazar só porque eu não me presto a correr Lisboa à procura de relíquias nazis! Abano a cabeça, incrédulo, e ele, percebendo que foi longe de mais, muda a expressão, esboçando um ligeiro sorrio. Esquece isso.

Depois, diz: - Bom, falamos melhor ao jantar ... Espera por mim lá em baixo, Jack júnior, já desço.

Dou meia-volta e saio pela porta do quarto. Caminho pelo corredor, ainda atarantado com os disparates que ouvi. Tudo isto por causa de um retrato da mãe do Hitler? Não faz qualquer sentido...

Lembro-me de que trago sempre o retrato da minha mãe, na carteira.

Retiro-a do bolso, abro-a e sorrio à fotografia antiga dela. Este, sim, é um tesouro valioso. O que ela passou por aturar o meu pai ...

Para que quer ele um retrato da mãe do Hitler? Isso é um tesouro que se apresente? Se fosse um quadro do Rubens, roubado num saque ao Hermitage de São Petersburgo, ainda vá, agora um retrato de uma desconhecida? Quem se dará ao trabalho de pagar por isso?

- O bisavô era mesmo uma pessoa desagradável, dá para ver...

Nem sabes tu, meu neto! E o que veio a seguir foi bem mais desagradável ainda! Daqui para a frente, foi sempre a piorar, ele conseguiu ser ainda mais maléfico do que eu pensava, deu comigo em doido ... vais ouvir, meu querido neto, e perceberás.

- E o avô está pronto para vir para Lisboa? Já fez a mala?

Sim, Paul, está tudo em ordem, não te preocupes, e ouve o que tenho para te contar ainda esta noite, antes de chegar aí...

 

No bar do restaurante, continua o mesmo rapaz bonito que me faz olhinhos, ao ver-me sentar num banco, à sua frente. Peço­lhe um whisky duplo e ele sorri-me, como se estivesse feliz da vida por me rever, como se me conhecesse! Vai buscar a bebida e, ao pousar o copo, bate as pestanas e diz:

- Aqui está ...

Atrevido, pergunta-me se venho jantar com alguém, e eu confirmo, com um ligeiro aceno de cabeça. Ele sorri, bate as pestanas outra vez e lança nova questão, numa voz fininha e nasalada: - Homem ou mulher?

Fixo o seu olhar e respondo: - Homem.

Ele suspira e lamenta-se, muito afetado, num murmúrio:

- Que sortudo que ele é ... Só eu é que não tenho sortes dessas!

Ignoro mais uma vez as suas investidas e, por sorte, nesse momento aparece Harry, que olha mais uma vez para o seu empregado com um ar de crítica. Outra vez? O rapaz afasta-se, fingindo-se ofendido, e Harry cumprimenta-me e pergunta: - Em forma, senhor comandante?

O dono do Aviz quer saber como estou e garantir que não me caso antes de ele voltar. No dia vinte e cinco, irá para Espanha, numa viagem de carro, visitar uns hotéis em Madrid e não quer perder a festa. Aliás, oferece-me o Aviz para o copo-d'água, mas digo-lhe que não há qualquer perigo de isso acontecer nos próximos tempos. Resumo as minhas mais recentes atribulações e os riscos gravíssimos que corre o meu namoro com Luisinha. Desanimado, confirmo que a causa dos meus sarilhos foi o patético encontro do meu pai com Salazar.

Harry suspira: - Pois ... o teu pai.

Este desabafo, vindo de um cavalheiro como ele, um diplomata subtil e sofisticado que todos sabe receber e satisfazer, é suficiente para me deixar os pelos do pescoço eriçados. Pergunto­lhe: - O que fez ele agora?

Harry Ruggeroni é cauteloso, mas nas entrelinhas percebo que, embora apenas hóspede há um dia, o meu pai já se está a transformar numa dor de cabeça para o Aviz, pois persiste em exigir falar com Gulbenkian e com outros milionários. O dono do hotel já não sabe como evitar a polémica. Eu lamento as quezílias: - É sempre o mesmo. Peço desculpa, pela parte que me toca.

Harry encolhe os ombros e pergunta: - Quando se vai ele embora?

Digo-lhe que irá também no dia vinte e cinco, de avião, mas com o meu pai nunca se sabe. Harry olha para a entrada do restaurante e murmura: - Fala-se no Diabo ...

O meu pai chega e nem se digna a vir ter connosco, faz apenas um gesto na direção pretendida. Vamos embora, já para a mesa! Suspiro e despeço-me de Harry, dirigindo-me para o canto do restaurante, onde o meu pai já se está a sentar.

Minutos mais tarde, a conversa começa a resvalar e o seu tom de voz sobe para níveis quase insuportáveis, e completamente descabidos num local glamoroso como aquele. Enfurecido comigo, o meu pai dá-me um raspanete por ter sido interrogado pela PVDE no Algarve.

- És um nabo, Jack júnior! Um lorpa! Como foi isso possível? Declara que, de certeza, a polícia já tem uma ficha sobre mim e avisa que é bem possível que em breve seja chamado, para interrogatório. Nada que eu diga o parece acalmar. Olha-me, irritado. Nabo, palerma, trouxa! Exasperado, declara: - E se descobrem como morreu um alemão, há uns tempos, na Graça?

Olho em volta, algumas pessoas da mesa ao lado estão a observar-nos, curiosas com o que ouvem. Ao fundo da sala, vejo Ruth Vanderbildt, a milionária judia, que janta com o mesmo homem que vi na outra noite, à entrada da varanda. Ruth cumprimenta-me com um aceno de cabeça, que retribuo. Baixo o meu tom de voz intencionalmente e murmuro: - Assim, não tenho dúvidas de que a PVDE me vai chamar ...

E a si também.

O meu pai semicerra as pálpebras, furioso por eu o repreender. Estúpido. Depois, mas em voz mais baixa, pergunta: - Como tencionas descobrir o alemão?

Dou um gole no meu vinho e digo-lhe que não compreendo o seu entusiasmo com o tal retrato de que me falou. Irritado, exclamo: - Isso não passam de quinquilharias! Qualquer um pode vender bugigangas dessas e dizer que as roubou num palácio secreto da Alemanha! Ou que estavam debaixo da cama do Hitler, mesmo junto ao penico da Eva Braun!

Dou uma pequena risada, contente com o meu sentido de humor, e bebo mais um gole de vinho. Este Bordéus está a dar­me coragem. Mas o meu pai fuzila-me com o olhar. Idiota!

E comenta: - Nem sabes do que falas!

Encolho os ombros, indiferente ao seu desprezo. Ele observa-me e de imediato me tenta enxovalhar: - Olha para ti, pareces um pedinte!

É verdade que hoje não estou bem vestido. Sem Luisinha por perto perco a motivação para me aperaltar. Mas ele julga que é por causa dele, porque já não me obriga a comprar fatos nos alfaiates da Baixa, e ataca: - Mal te deixo, perdes o brio!

Ignoro mais uma vez a sua estocada e isso é o pior insulto que lhe posso fazer. Olha-me, irritado. Sem mim não vales nada!

De repente, decide atacar-me noutra frente: - E a serigaita que desmaia a ver filmes de Hollywood, ainda andas a arrastar a asa por ela? Que família a dela! Um lambe­botas do Salazar e uma fascista, que acha que o Vaticano devia canonizar o Mussolini! Não és capaz de melhor?

Dando novo gole no vinho, limito-me a uma defesa da honra: - Agradecia que se dispensasse de ofender a minha noiva.

O meu pai dá uma curta risada: - Como se ela abrisse as pernas para ti!

Fecho os olhos e invade-me uma enorme vontade de me levantar daquela mesa e deixá-lo sozinho. Mas quando os volto a abrir, reparo que ele já não está a olhar para mim, mas para a entrada do restaurante, e sorri, como quem está agradavelmente surpreendido.

Volto a cabeça para lá e vejo Alice. Está também espantada, não esperava ver-nos aqui, e avança lentamente na nossa direção, cumprimentando à esquerda e à direita. Reparo que Ruth e ela trocam acenos de cabeça, e que a milionária judia a continua a observar, à medida que ela vai chegando perto da nossa mesa.

Já ao nosso lado, Alice sorri-nos e exclama: - Que coincidência!

Sorrio-lhe, mas é um sorriso forçado, e observo a sala, para tentar perceber com quem ela veio. Não vejo Fulgêncio Nobre e apenas Ruth continua a olhar para nós, enquanto Alice se senta, mais perto de mim do que do meu pai, um subtil sinal que, apesar de tudo, me agrada.

Contudo, rapidamente percebo que o senhor Jack Deane não me vai deixar ter mais protagonismo do que ele. Competitivo, desata a lançar charme sobre ela, que, é preciso reconhecer, está lindíssima. Das últimas vezes que a vi, achei-a ligeiramente mais gorda e não tão bonita como a recordava, mas hoje Alice está magnífica. Com um vestido encarnado decotado, o cabelo longo a cair-lhe pelas costas, os lábios pintados, realçando a Sua boca carnuda, e um sorriso radioso e quente, que nos seduz num segundo.

O meu pai pergunta-lhe: - Continua a mesma idealista de sempre, a correr atrás dos nazis? - ela esboça um sorriso envergonhado e ele exclama: - Não entendo como pode uma mulher tão bela dedicar-se a assuntos tão sórdidos!

O desenrolar de elogios é permanente e, como qualquer mulher, Alice não é imune à lisonja. Dou conta de que a sua cadeira se vai afastando aos poucos de mim e aproximando-se da do meu pai, como que para melhor sorver as suas palavras mágicas e a sua bajulação permanente. Sempre a bater as pestanas, Alice responde às perguntas dele e defende a necessidade de, apesar do fim da guerra, ajudar os vencedores a prenderem os assassinos nazis. A dada altura, porém, olha para mim. Tu é que não me ajudas! Faz um ar desapontado e protesta: - O seu filho é que me anda a desiludir. Prometeu colaborar com os americanos, mas até agora nada! Se calhar, quer ser ele a encontrar os tesouros ...

Aquela sibilina acusação produz um efeito instantâneo no

meu pai, que abre os olhos e os aponta na minha direção, espantado. O que disse ela? Pergunta-me, já a transparecer uma certa irritação: - Andas a esconder-me alguma coisa, Jack júnior?

Como eu não lhe respondo, ele insiste, cada vez mais zangado: - Andas a trair-me?

À superfície uma pergunta, na verdade trata-se de uma acusação e de uma condenação em simultâneo, arte em que o meu pai é perito. Ele consegue que o conteúdo e o tom das suas palavras tenham significados sobrepostos, sendo que o primeiro lança a acusação, mas o segundo transforma-a numa condenação.

- À Alice dizes que me ajudas e, a mim, que a ajudas a ela?

E, no fim, ficas com o tesouro para ti, é isso?

Resfolego, em sinal de desprezo pelas suas acusações e digo­lhe que não traí ninguém. Não sei de alemães, no Algarve não descobri nenhum e nas docas não há qualquer novidade, o barco de Muller ainda não chegou. Além disso, o meu pai sabe mais do que eu, ainda há pouco me informou de que o tal alemão já estava em Lisboa. Como o podia andar a trair? Ou a trair Alice?

O que sei eu que ambos não saibam?

Mas a maliciosa insinuação de Alice gerou uma suspeita. Na cabeça do meu pai, sempre contaminada pelos ímpetos gananciosos do dinheiro e do lucro fácil, qualquer surpresa é a ante câmara de uma traição. Por isso, continua de testa franzida, olhos frios como o gelo, ameaçando-me. Nem sabes o que te faço ... Por fim, murmura: - Estou a ver que tenho de andar de olho em ti, Jack júnior.

Alice ri-se e aponta para o meu fato. Faz uma careta. Que horror! Depois, diz, rindo-se para o meu pai: - Tem mesmo, o Jack Gil parece um pobre pedinte, assim vestido!

O meu pai dá uma gargalhada, animado por ela me ter criticado. Alice entusiasma-se com aquela evidente cumplicidade e chega a cadeira mais um pouco para perto dele. Olha-me, subtilmente ameaçadora. Vê só do que sou capaz ... Ao mesmo tempo, murmura: - Jack Gil, a tua noiva, pelos vistos, tem mau gosto.

O meu pai não pega na deixa dela, mas critica igualmente a minha gravata e a minha barba por fazer. Observa-me, como se tivesse um certo nojo. Que vulgaridade... Depois, com alguma pompa e muito convencimento, declara: - As mulheres não gostam de um homem assim! Não é verdade, Alice?

Ela, obviamente, concorda. Olha para mim, ligeiramente cínica. Ele é que sabe, tu não percebes nada... E acrescenta, sorrindo ao meu pai: - As mulheres gostam de homens que se vestem bem e que cheiram bem! Como o senhor, por exemplo.

Chega-se mais perto dele e inspira, absorvendo o seu perfume.

Depois, olha-me, desafiadora. Gostas? O meu pai não perde tempo e baixa a cabeça para ela. Coloca o nariz praticamente no decote dela e cheira-a também. Depois, ergue a cabeça, olha para mim e pisca-me o olho. Que mamas! E declara, em seguida, sorridente: - Dois magníficos perfumes!

O meu pai é um macaco velho. A referência dual tanto se pode aplicar aos perfumes de ambos, como aos seios de Alice.

Para minha irritação suprema, ela ultrapassa-o em ousadia. Olha para mim, divertida. Viste o que ele fez? Depois, encara o meu pai com evidente gula e exclama:

- É isso que gosto nos homens mais velhos, sabem o que é importante para uma mulher!

Embora esteja a ferver por dentro com esta química entre

o meu pai e ela, sorrio, tentando mostrar desportivismo, e depois contra-ataco e o meu alvo é Alice:

- O teu amigo Fulgêncio, anda por aí? Ou será o Francis? Sem hesitar, sem sequer pestanejar, ela sorri-me, triunfante.

Falhaste. Depois, dá uma risadinha e diz:

- Graças a Deus, nem um nem outro, estou livre como um passarinho!

Entusiasmado, o meu pai pisca-me mais uma vez o olho.

É minha! De seguida, repete o movimento anterior, volta a baixar a cabeça sobre ela, colocando o nariz no seu decote, sem que ela faça qualquer movimento para o impedir. Deixa-se estar ali uns segundos, contente.

Alice olha para mim, maliciosa. Gostas? Entretanto, o meu pai levanta a cabeça, finge-se tonto com tanta luxúria e olha para mim. Vais ver o que lhe vou fazer... Decide então mostrar-se humilde e subjugado, e convida-a: - Se quiser pousar no meu ninho, estou na suíte Dom João II.

Ela dá uma curta risadinha, e comenta: - Que maroto, e logo nessa suíte, que me é tão familiar! Foi à porta dela que conheci o seu filho! Lembras-te, Jack Gil?

Olha para mim, feroz. Vês o que perdeste? Há vários anos, eu e aquela deusa cruzámo-nos pela primeira vez no corredor dos quartos do Aviz, mas não quero relembrar esses tempos. Sobretudo hoje, aqui, à frente do meu pai, a assistir a este espetáculo de sedução mútua que temo que acabe onde as coisas sempre acabam com Alice, na cama!

Não estou capaz de ficar ali nem mais um momento, por isso levanto-me e despeço-me dos dois, bruscamente. Saio do restaurante, sentindo um enorme alívio por ter deixado de os ver juntos. Por mais que já não esteja apaixonado por Alice, é uma tortura para mim vê-la cair nos braços do meu pai.

No hall, cruzo-me com Ruth Vanderbildt, que regressa à sala de jantar, provavelmente depois de ter ido à casa de banho. Vendo­me alterado, ela pergunta: - Inglês, que se passa?

Cumprimento-a e invento uma desculpa, estou indisposto, vou retirar-me. Ela mostra pena de mim: - Você tem azar: filho daquele homem e apaixonado por aquela mulher!

Sorrio-lhe, mas não lhe respondo. Então, Ruth pergunta: - Não quer mesmo ajudar-me?

Digo-lhe que nada sei que a possa ajudar, despeço-me e deixo o hotel.

O meu neto Paul está em silêncio. Acho que tem algum pudor em fazer a pergunta óbvia que este episódio impõe. Espicaço-o: - Então, Paul, não perguntas se a Alice foi dormir com o teu bisavô?

Ele ri-se, diz que não lhe apetece perguntar hoje, fá-lo-á manhã, quando eu aterrar na Portela, ao final da tarde.

O meu voo é às quatro, havia uns mais cedo, mas não quis, não tenho idade para ter stresse. Já chega o que chega, odeio Heathrow ...

A única pergunta que Paul faz é sobre o retrato da mãe de Hitler. Quer saber se era mesmo autêntico, se era mesmo verdade que o alemão estava em Lisboa, e eu digo-lhe que sim e acrescento que já falta pouco para ter o tão falado retrato nas minhas mãos.

 

Heathrow, início de junho de 1996

O meu neto Paul não desistiu enquanto não me enfiou dentro deste avião! Chegou a ameaçar que me vinha buscar a Londres, e me colocava um colete-de-forças para me obrigar a ir até Portugal visitar Alice.

Parece que falaram algumas vezes ao telefone, mas o meu neto não me forneceu muitos detalhes. Isso só me causa mais ansiedade, pois não sei bem quem vou encontrar. Que Alice, que mulher vou rever? Já faz tanto tempo e foi tudo tão intenso!

Aquelas últimas vezes que a vi, a sombra do meu pai a esvoaçar à volta de nós, as desilusões, as falhas, as tentações, os perigos, ficou tudo misturado numa amálgama vibrante, mas bastante confusa, que não impediu um desenlace, mas o tornou menos claro e menos esclarece dor.

O que se passou naquela noite em que os deixei no Aviz, a ela e ao meu pai? Será que algum dia vou saber? Será que algum dia terei a certeza? Naqueles tempos, Alice mentia, mentia sempre, pois fazê-lo era a sua principal arma, mas as mentiras eram tantas que talvez nem mesmo ela já soubesse o que era verdade e o que não era.

Mesmo tantos anos depois, não consigo ainda tirar conclusões definitivas. Será que ela gostava mesmo de mim? Em 1943, a meio da guerra, quando começámos o nosso namoro, não tenho qualquer dúvida de que ela sentia uma emoção forte por mim.

No entanto, as complexas situações por que ambos passámos, a minha descoberta de que ela era uma espia dupla, trabalhando ao mesmo tempo para os nazis e para nós, rompera o elo de confiança que entre nós existia. Alice jamais fora honesta comigo e, quando descobri isso, nunca mais fui capaz de confiar nela.

Assim, quando regressou à minha vida, naqueles meses de 1945, já a trabalhar para os americanos, todas as suas atitudes eram vítimas desse meu precipício original, desse trauma inicial.

Como ela me traíra no passado, em 1943, dois anos depois não conseguia olhar para ela de uma forma pura, e dava sempre um significado sombrio e duvidoso a qualquer das suas atitudes.

O amor é diabólico, sobretudo quando já foi correspondido e se estragou.

Nunca acreditei muito no que me disse à porta da pensão, da primeira vez que a fui levar lá, nem no que me revelou nos dias seguintes, antes de tudo acabar. Qualquer palavra dela, qualquer demonstração de afeto por mim, qualquer declaração de amor, era sempre minada pela minha descrença, sempre colocada sob reserva na minha mente e no meu coração. Além disso, e para agravar, Alice não sabia jogar o jogo da sedução e da conquista sem estratagemas duvidosos, que ainda me faziam desconfiar mais dela.

Sim, era possível que, tanto as suas supostas aventuras com Francis, como as suas investidas sobre o meu pai, não passassem apenas de formas de estimular o meu ciúme. O mesmo se passava com as recordações de Michael, que ela manipulava a seu belo prazer, para me desequilibrar. Alice sabia que eu era ciumento, e que me espicaçava a honra de macho, se me provocasse com a concorrência de outros, fossem eles mortos ou vivos, pai ou amigos.

Contudo, e esse era o seu erro, cada passo que ela dava nesse sentido ainda afundava mais a minha já minúscula crença na sua autenticidade, a minha vacilante fé nos seus sentimentos. Para mim, era evidente que uma mulher tão volúvel e tão agressiva nos seus truques não provocava a minha tranquilidade ou o meu deslumbramento. Mas, para ela, nada disso era evidente.

Alice acreditava, é isso que penso ainda hoje, que bastava um dia eu ceder aos seus encantos e sucumbir à sua frente, dormindo com ela uma noite, para me conquistar definitivamente outra vez. Orgulhosa das suas capacidades femininas e das suas artes sexuais, apostava que a minha ligação a Luisinha, por mais sentimental que fosse, dissolver-se-ia logo que Alice me desse a provar, uma vez mais, os seus encantos carnais.

Era evidente para ela, como era para o meu pai, que a ausência de Luisinha em Cascais me estava a deixar à deriva e, portanto, muito mais vulnerável a uma estocada de uma profissional como Alice. Homens sem sexo são fracos, prontos a caírem na teia de uma mulher experiente, e Alice sabia isso.

Fugir dela era, pois, a minha única opção. Se eu tivesse ficado naquela mesa, a jantar, certamente que colocaria um ponto final naquela química patética que vi nascer entre o meu pai e ela, mas a única forma eficaz de o fazer teria sido puxá-la para mim, conquistá-la, o que me obrigaria a deitar-me com ela. Naquela noite, evitei tal desgraça, mas os acontecimentos dos dias seguintes acabaram por precipitar um turbilhão de emoções que ainda hoje me baralha.

Será que ela se lembra, por acaso, do que vivemos? Decorreram mais de cinquenta anos, mas para mim o passado está vivo, vibrante, aqui dentro da minha cabeça, neste lugar de avião que me vai levar para Lisboa e para o reencontro com Alice. E ela sentirá o mesmo? Agora, que já não existe Luisinha para nos separar, que não há ninguém para se interpor entre nós, nem o meu pai, nem Francis, nem a memória de Michael, já tão distante, será que vamos ser diferentes? Será que vai ser honesta comigo, pela primeira vez na sua vida?

Ao pé destas dúvidas íntimas, que ultrapassaram cinquenta anos bem vivas, como se, praticamente, não tivessem envelhecido, sem uma variz, sem uma ruga, sempre as mesmas jovens dúvidas; ao pé delas o que vale um distante golpe de Estado contra Salazar?

O que valem os tesouros nazis? O que vale aquele encontro com o alemão Manfred, no Castelo de São Jorge, naquela tarde em que ele me mostrou, pela primeira vez, o retrato da mãe de Hitler?

 

Lisboa, 22 de agosto de 1945

Olho para o passaporte de Luisinha que tenho nas mãos. Admiro a sua fotografia, o seu ar sério mas tranquilo, o seu cabelo bem penteado, a sua boca bem desenhada e a sua esperança num futuro a meu lado, que baila no fundo dos seus olhos. Vamos fugir, parecem dizer. Mas para onde, quando? E como, se ela está presa em Cascais, proibida de me ver para sempre, e o general até já fez queixa à polícia contra mim?

Olhar para esta fotografia faz-me pensar noutra. O que vê o meu pai numa relíquia absurda, na cara de uma mulher que deu à luz um filho que se tornou o pior ditador da história da humanidade? Que sentido faz andar a correr atrás do retrato da mãe de Hitler? O meu pai será um doido, um patético ganancioso, um mirabolante colecionador de quinquilharia?

E logo ele, que nunca gostou de fotografias, que sempre evitou que lhas tirassem, que tentou proibir a minha mãe de colocar molduras com imagens nas estantes de casa, que as retirou logo que ela morreu? Logo ele, que me quis proibir de andar com o retrato da minha mãe na carteira, que dizia que assim eu iria transformar-me num choramingas, num pateta, só porque alimentaria permanentemente as saudades da minha mãe, olhando para o retrato dela?

Pai, tenho para lhe dizer que ainda hoje sinto saudades dela, cada vez mais por cada dia que passa, daria tudo para a ter agora perto de mim, para lhe poder pedir conselhos, para lhe perguntar se era possível eu sentir-me assim por causa das mulheres, e dos estragos que elas causam à minha vida, ou se eu já estava estragado antes disto, estragado pela guerra e por tudo o que fiz de errado e de mal?

Mãe, será possível viver dividido, sem saber quem amar, querendo uma mulher e pensando noutra, desejando Luisinha mas também Alice, sem alívio ou descanso, e ainda por cima torturado pelo meu pai, pela sua perfídia, pela sua falta de respeito pelos meus afetos? O que o levou a enfiar o nariz nas mamas de Alice, à minha frente? Não suporto a ideia de que ela se entregou a ele, mãe, ajuda-me, como posso ver-me livre destes pensamentos horríveis, destes abismos, como me posso segurar num amor por uma mulher que está praticamente presa em Cascais? Como posso aturar este homem mau, que tanto te fez sofrer? Ensina-me, mãe, tu conseguias!

Agora só tenho raiva dele e é terrível saber isso, não é uma emoção que se deva sentir pelo próprio pai, mas é a verdade.

Fiquei assim com a guerra, fiquei mau. A guerra degradou-me, desumanizou-me. E é evidente que agora já não tenho mesmo vontade alguma de o ajudar, jamais irei mover uma palha para encontrar o tal alemão, quero que ele se dane e mais o seu nazi!

Ouço tocar à porta, pergunto-me quem será? KIop anda alheio, pouco aparece. Roberto vive entretido, ou trabalha, ou vai para casa ter com Rosa. E essa, durante o dia, já cá não vem, tem de fazer limpezas a Afonso Caldeira. Por favor, meu Deus, faz com que não seja o meu pai, nem Alice, nem Francis, nem nenhum desses que me visitaram nos últimos tempos, já não os suporto!

Dirijo-me à porta e quando a abro vejo um rapazinho, talvez de catorze ou quinze anos, que me entrega um pequeno papel, dobrado em quatro. Fica parado, à espera de uma moeda. Procuro na carteira, encontro uma e dou-lha, e ele desaparece escada abaixo. Fecho a porta e regresso ao meu gabinete, a olhar para o papel. O que será?

Não tem nada escrito por fora, nenhum nome, e quando me sento no sofá, no fundão da esquerda, desdobro-o e aos meus olhos aparece uma mensagem, redigida à mão: Tenho obras de arte valiosas de A. H. muito do seu agrado. Encontro hoje, às dezasseis horas, no Castelo de São Jorge.

Sirvo-me dum whisky, releio a frase. De quem será? De repente, tenho um momento de lucidez. Na pequena mesa em frente ao sofá há um exemplar, já com meses, da revista A Guerra Ilustrada. Na capa, está uma fotografia de Hitler, e o título inclui o seu nome completo, Adolf Hitler. O meu cérebro capta a ligação entre aquelas duas palavras e as iniciais que estão no papel, A. H.

Será possível? Será esta uma mensagem do tal alemão que o meu pai diz que está em Lisboa e que tem tesouros de Hitler para vender? Mas porque ma dirige a mim?

Faço um esforço de memória, tento relembrar-me do que o meu pai me contou, mas não encontro qualquer razão para ele querer contactar comigo. Porque não foi ter com o meu pai, diretamente? Será uma armadilha, uma cilada? Mas de quem, e porquê contra mim? Não há qualquer razão para isso ...

De repente, lembro-me: Otto, Caldas de Felgueiras. O nome que eu lhe dei foi Jack Deane, e é o meu, mas também é o do meu pai. Terá sido Otto a encaminhar o autor da mensagem para mim? É possível. Animo-me. Aos poucos, nasce em mim a antiga vontade do espião, o gosto pelos mistérios, pelos encontros furtivos, a curiosidade pelo desconhecido, o desejo de entrar num mundo secreto e oculto.

O meu estado de espírito muda bruscamente, decido que irei ter com esta pessoa e lá saberei o que me espera. Olho para o relógio e são três e meia, consigo chegar ao Castelo em meia hora. Mas terei de ir sozinho, não há forma de avisar Klop a tempo. Levanto-me, saio do gabinete, atravesso a rua e sento­me ao volante do Citroên. Trago comigo a Randall do Michael, para o que der e vier, e olho em volta a ver se alguém me segue, mas não registo nada de suspeito.

Próximo do castelo, paro o Citroên e continuo a pé. As ruas que levam até ao velho monumento estão repletas de gente, bastante humilde, que por ali vive. Como se existisse um coro, ouve­se sempre um cantar distante, gente que canta a vender fruta, mel, leite, sardinhas ou pão. Uma mulher da vida oferece o corpo, à janela, fingindo-se discreta, não vá a polícia vê-la. Matulões com olhares avermelhados passam, com grandes botifarras, vindos de mais um dia de trabalho. Há, à porta das casas, crianças quase nuas, sujas e só com panos na parte de cima, as pernas ao ar da tarde, cheias de feridas e manchas de porcaria, talvez lama, ou outras coisas ainda mais porcas.

Ouvem-se mais cantares, pregões dos ardinas que querem vender os jornais, que carregam num saco, a tiracolo. E também os das muitas varinas, de caras coradas e canastras à cabeça, cheirando ao peixe que ainda levam, descendo a ladeira.

Quando chego às muralhas, procuro um homem, mas a princípio não o descubro. Só depois de dar umas voltas o encontro, de pé, encostado a uma árvore. Observo-o com minúcia e admiro num segundo a sua inteligência. Para quem não tenha experiência em disfarces, parece um pedinte. Mas não é, está é habilmente camuflado. O cabelo foi sujo com intenção, cheio de pó e fragmentos de terra, e por isso não parece loiro, mas por baixo é.

A cara também está manchada, talvez com óleo de automóveis, que aliás se espalha igualmente pelo resto da vestimenta, pela camisa, casaco, calças e até pelas alpergatas.

Contudo, o meu apurado sentido de observação capta de imediato uma incongruência. Este homem parece um mecânico de automóveis, mas as suas mãos estão limpas. Não como se ele tivesse passado um pano despreocupadamente, como faz um mecânico quando tem de apertar a mão a alguém. Estão desencardidas, o que me leva a pensar que ele as limpou com cuidado depois de ter colocado aquele disfarce, com o óbvio intuito de poder mexer com as mãos em algo mais valioso, que não pode ser corrompido pela porcaria e pelo óleo. Como uma obra de arte, um tesouro.

Apresento-me como Jack Deane, comerciante. O homem não diz logo o seu nome e observa-me. Será ele? Comenta, intrigado: - Pensava que era mais velho.

É nesse instante que percebo que ele esperava o meu pai e não a mim. Mas, como não nos conhece, não tem forma de afastar a dúvida. Sorrio e largo uma piada, «as mulheres também me costumam dizer isso», e ele permanece a olhar para mim. Não brinques comigo. Leva a mão ao cinto, e vejo a coronha de uma pistola. Para o acalmar, digo: - Estou à sua procura desde Marselha.

Eu sei que o meu pai lá esteve e por isso a afirmação faz sentido, e o homem parece relaxar um pouco, o seu bater de pálpebras alivia a tensão no olhar. Não nos encontrámos. Pergunta se eu sei que estou a ser seguido, e eu olho para trás, por instinto.

Não há ninguém por perto. Questiono-o: - Por quem?

Ele murmura: - Judeus.

Diz que o bairro está cheia de bufos, pergunta se vi a prostituta à janela, acusa-a de ter ido contar aos judeus que me viu, está a soldo deles. É preciso ter cuidado, dizem os seus olhos. Encolho os ombros e afirmo: - Não tenho nada a temer, não fiz mal a ninguém.

Ele sorri ao de leve, com um certo desdém. Não és tu que és seguido, idiota. Depois diz: - Mas eu fiz.

Nesse momento, vira-se e ordena-me que o acompanhe. Não me agrada a ideia, toco na Randall, que trago enfiada no fundo das calças e sigo-o com relutância. Saímos do terreiro do castelo e andamos pelas ruas, no meio das pessoas. A dada altura, ele enfia por um beco e depois entramos para o que parece ser uma antiga cocheira, com argolas nas paredes, para prender os cavalos.

O alemão senta-se num barril, num canto, acende o cigarro e diz com agrado: - Já os despistámos.

Pergunto-lhe como sabe orientar-se tão bem neste bairro tortuoso, e ele sorri. Estás espantado? Conta-me que no passado viveu em Lisboa, na adolescência, o pai trabalhava na Embaixada alemã. Dá uma passa e diz que morava perto, quando era miúdo vinha aqui ver os cavalos. É só aí que me revela que se chama Manfred e que só em 1935 regressou a Munique, para se alistar no exército nazi e nas SS. Fica em silêncio ao dizer aquilo, com o olhar perdido. Por fim, murmura: - Agora, tudo acabou.

Dá mais uma passa no cigarro e prossegue a sua narrativa. Fala sem paixão, mas há uma ponta de raiva nas suas palavras. Sinto que está furibundo, odeia um mundo que o desiludiu. Mas é minucioso no relato. Diz-me que pertenceu à unidade das SS que guardava o Führerbau de Munique, onde Hitler ia muitas vezes quando estava na cidade, e em cujas caves estavam guardados imensos segredos e riquezas do Terceiro Reich. Enquanto fuma, recorda os acontecimentos de abril, com a cidade já cercada pelas tropas aliadas, as guarnições nazis a serem dizimadas como tordos, e os civis a serem chacinados nas ruas. Esboça um estranho sorriso: - Mesmo assim, tivemos sorte. Ouvi dizer que em Berlim foi pior, os russos são uns carniceiros.

Eram comuns, nos relatos de guerra dos alemães, as acusações aos russos, que na ofensiva vinda de Moscovo até Berlim tinham executado uma vingança histórica contra a Operação Barbarossa.

Devolviam, com juros altíssimos, os sofrimentos que a invasão de Hitler lhes provocara uns anos antes. Diz-se que nenhuma mulher alemã que encontraram pela frente deixou de ser violada, que as cidades foram saqueadas e os homens fuzilados, sem misericórdia ou apelo.

Com um certo orgulho, Manfred explica-me depois como entrou nas caves do Führerbau, como encontrou as umas com os tesouros de Hitler, como se apoderou do retrato da mãe de Hitler.

Descreve-me o sentimento alucinante que se apossou dele, a crença gloriosa de que o nazismo iria renascer. Aqui, à minha frente, em Lisboa, vários meses depois desses acontecimentos, Manfred parece-me apenas um louco, um alucinado, um desvairado, que vagueia perdido no lado errado da História.

Descreve-me a sua fuga, pelo Sul da Alemanha, e tenho a certeza de que este homem matou gente pelo caminho, além dos que liquidou nos campos de concentração. Sei que devia ter medo dele, sei que ele é um SS armado, mas não tenho. Quando me fala dos seus amigos na Suíça, ou da sua breve estada em Marselha, sinto que foi aí que começou a perder o juízo, esmagado pela notícia da morte de Hitler, pela imensidão da sua perdição, individual e coletiva. Toda a sua força interior de nazi, apoiada na fé no seu país e no seu partido, se começou a esvair, como sangue por uma ferida aberta. Mas continua mau, vê-se pelos apartes e comentários que faz, até sobre a própria mãe.

Manfred passou depois por Barcelona e por Madrid e pressinto que caiu várias vezes no ridículo. Foi aí que a sua esperança doentia na ressurreição do Terceiro Reich se começou a dissolver. A sua visita às Caldas de Felgueiras e o seu profundo choque com o patético comportamento dos Nazis de Ferro só serviram para confirmar essa ideia e para ainda aumentar a sua angústia, desequilibrando-o para sempre. Se nem os melhores entre os melhores se comportavam como crentes e trabalhadores, nada iria resultar, o renascimento dos nazis era uma quimera impossível.

Quando Otto lhe falou no meu nome, sentiu que era a sua última vontade: vender-me os tesouros, antes de fugir. Manfred é hoje um farrapo humano, um farrapo que me provoca asco, mas continuo a ouvi-lo sem revelar qualquer emoção. Apesar de perdido, é perigoso, sabe matar. Este tipo de homens maus, que odeiam a mãe, as pessoas e o mundo, são capazes das maiores atrocidades, e não vale a pena criar neles a suspeita de que os odiamos.

Limito-me a perguntar-lhe: - É aqui que tem estado escondido?

Olha para mim, de novo mais sério, como se desconfiasse das minhas intenções. Nem penses nisso. Responde:

- Não é da sua conta.

Levanto as mãos, em sinal de pacificação, e ele afirma:

- Vou partir em breve. Em Marselha, você chegou tarde, os judeus quiseram matar-me primeiro. E ainda querem. Se puderem matar-me aqui, não vão hesitar.

Curioso, pergunto: - Porque o querem matar?

Manfred não olha para mim, mas murmura: - Tenho as mãos sujas do sangue deles. Estive em Auschwitz, um ano. Com o Mengele.

Ergo a sobrancelha, alerta: - E sabe dele?

Ele encolhe os ombros: - Não, mas sei que não está por cá.

Depois, como quem afasta um pensamento negro, abana a cabeça e olha para mim. Não fales mais disso. Não quer pensar no terrível mal que fez, por isso muda de assunto:

- Na Suíça, deram-me o seu nome. Disseram-me que, se não o encontrasse em Marselha, teria de vir até Lisboa. E o Otto, nas termas, confirmou e deu-me a sua morada. Aqui estou.

Manfred atira a beata consumida para o chão e esborracha-a com a sola da bota. Não deixo de reparar que é uma bota militar. Conta que passou dias a vigiar o meu escritório, agora já sei quem me andava a seguir. Depois, decidiu contactar-me, estava na altura, o barco onde ele vai fugir parte amanhã. É o do irmão Muller tenho a certeza, mas não lhe pergunto, apenas o questiono, sobre o que quer fazer.

O alemão tosse e descreve-me as suas posses, os objetos de Hitler: a pistola dourada, com as iniciais A. H., e as duas molduras, uma com o retrato da cadela e outra com o retrato da mãe. Franzo a testa: - É mesmo o retrato da mãe de Hitler?

Considera aquele o seu bem mais valioso, e diz qual o preço que quer por ele. Assobio, é muito dinheiro, não sei se o consigo reunir num dia. Ele olha para mim, ameaçador. Consegues sim.

Depois remata: - Ou está interessado, ou não está.

Permaneço algum tempo calado, como que a matutar sobre aquela transação, e então Manfred, pressentindo a minha relutância, leva a mão direita ao bolso direito das calças e retira de lá um pequeno embrulho. Com cuidado, abre o papel que envolve o artefacto, e depois mostra-mo. É uma moldura prateada e no centro tem o retrato de uma mulher, numa fotografia. Manfred gira a pequena moldura, de forma a virar para mim o verso, e vejo, escrita, uma dedicatória, com a caligrafia da mãe de Adolf Hitler.

Klara Hitler, a mãe ... Sinto uma estranha emoção, ao mesmo tempo de desprezo e de fascínio, e não duvido nem por um momento da veracidade daquela modesta joia, que só tem valor por ter pertencido a quem pertenceu. Confirmo que desejo comprá-la. Manfred sorri. Eu sabia. Depois diz: - Traga o dinheiro. Amanhã à noite, pelas nove, venha ter comigo às docas. Sozinho.

Tenho a perfeita sensação de estar a falar com um louco.

- Paul, foi a primeira vez que vi o famoso retrato ... Não valia nada, ela era muito feia.

O meu neto ri-se. Estamos sentados os dois na varanda de sua casa, em Lisboa. A cidade está aos nossos pés, calma e iluminada, e no rio há pouco movimento à noite.

- O que se sabe sobre essa Klara, a mãe de Hitler?

Em 1945, eu não sabia nada, mas cinquenta anos depois já sei um pouco mais. Klara Hitler foi a terceira mulher de um funcionário das alfândegas do Império Austro-Húngaro chamado Alois Hitler. Era vinte e dois anos mais nova do que o marido e sua prima em segundo grau, além de ter sido sua amante durante meses, e de já estar grávida dele quando a segunda mulher de Alois morreu.

Segundo os biógrafos, meu querido Paul, Alois não era um homem simpático, dedicava-se mais às suas abelhas do que aos seus filhos, ou aos sentimentos das suas mulheres. Klara não terá sido mais feliz do que as suas antecessoras como esposa de Alois, e com o tempo tornou-se triste e desapontada, embora tenha conseguido manter uma boa harmonia familiar, entre os seus dois filhos e os seus enteados.

Em 1903, Alois Hitler morre, mas o filho não sofre. Nunca gostou do pai, a sua ligação especial é à mãe. É com Klara que o jovem Adolf brinca, aprende, ganha personalidade e desenvolve as suas supostas tendências artísticas. Hitler sempre se verá a si próprio como um génio artístico que todos rejeitaram em jovem, e a Klara se deve esta convicção nos seus dotes.

Porém, em 1908 Klara adoece gravemente. Hitler ficará ao seu lado até ao fim, em Linz, mas a morte da mãe foi um enorme choque para um rapaz de apenas dezanove anos. Hitler devia-lhe muito. Freud disse um dia que «um homem que foi o favorito da mãe entra na vida sentindo-se um conquistador, e é essa confiança no seu sucesso que muitas vezes induz o seu sucesso real».

Tenho a certeza, meu querido neto, de que muito do que fez de Hitler um líder tão intenso e poderoso começou no amor da sua mãe. Em certos casos, são poucos, graças a Deus, o amor maternal foi uma tragédia para a humanidade.

Paul fica algum tempo calado, remoendo o que eu disse.

Depois, a curiosidade sobre o passado regressa e pergunta: - O avô denunciou o tal Manfred aos americanos?

Suspiro: - Sim e não.

Explico ao meu neto que vivi as horas seguintes num estranho dilema. Deveria contar ao meu pai a conversa com o alemão?

Deveria avisar Francis e Alice? Afinal, Manfred era um SS perigoso, um carniceiro de Auschwitz, não o queria deixar fugir para a América do Sul. O tesouro, o retrato da mãe de Hitler, era um assunto secundário, podia comprá-lo, se quisesse, e depois entregava-o ao meu pai.

Mas não fui eu que tomei a decisão final, meu querido neto.

- Então? O bisavô apareceu?

Não, miúdo, quem apareceu em minha casa foi a Alice ...

 

Embrenhado em dúvidas, ouço tocar a campainha de casa. Estranho o facto, pois já passa das dez da noite. Vou à varanda, vejo lá em baixo o vulto de uma mulher, parece-me Alice. Mesmo sem querer, o meu coração falha uma batida. O amor deixa-nos sempre em alarme, mesmo quando achamos que já acabou.

Quando ela me entra pela casa dentro, reparo imediatamente que está alterada. Mas não por minha causa. Chora, as mãos tremem-lhe, tem os olhos encarnados. Ajuda-me! Convido-a a sentar-se no sofá da sala, ofereço-lhe água, mas prefere uma bebida forte e preparo-lhe um brandy, que bebe num trago. Depois, olha-me, angustiada. Estou perdida! Exclama, aflita:

- Jack Gil, fui chamada hoje à PVDE. Fala depressa de mais, descontrolada. Foi denunciada como espia nazi, nem quer acreditar. Olha-me, desesperada. Eu, espia nazi? A sua duplicidade do passado virou-se contra ela e pergunto-lhe quem a acusou. Esbugalha os olhos. Eu sei quem foi!

Furiosa, grita: - Foi a judia, a milionária, que me tramou!

Acusa Ruth Vanderbildt, para quem se recusou a trabalhar há uns meses. Na altura, ela já a catalogara como colaboradora dos nazis. Ruth Vanderbildt é muito rica e bem informada, pode bem executar uma razia nos antigos informadores nazis em Lisboa, especialmente nos portugueses que se recusaram a ajudá-la, como Alice.

Tento animá-la: - Alice, não é muito grave ... Já há poucos nazis por cá, a maioria está presa nas Caldas de Felgueiras.

Ela faz uma careta furiosa. Achas que estou a exagerar?

Indigna-se: - Logo agora, que trabalhava para os americanos, é que me fazem isto? Não percebes as consequências?

Abana a cabeça, desolada, e recomeça a chorar. Uma lágrima cai-lhe pela cara. Soluça e diz: - O Francis despediu-me!

Mal soube que ela foi acusada de ser espia nazi, Francis suspendeu a colaboração, aos gritos! Alice abana a cabeça, zangada: - É um bruto, um estafermo!

As voltas que a vida dá. Há semanas atrás, iam para um hotel os dois, como se fossem amantes apaixonados. Tempos depois, ele dá-lhe um pontapé, com receio da sua fama de traidora. De uma assentada, Alice perdeu o trabalho e o companheiro de cama.

Olha para mim, agitada. Ajuda-me, por favor! Pergunta:

- E, agora, o que posso fazer?

Sem Francis, ela fica sem dinheiro, pois é o americano que lhe paga as contas. Não resisto a criticá-la e relembro: - Eu avisei-te de que ias acabar sozinha.

Ela fica desapontada, faz beicinho. Porque estás a ser tão mau? Uma lágrima volta a correr-lhe pela cara e funga mais uma vez. Depois, murmura: - Jack Gil, para ti é fácil. És rico ...

Lança-se num monólogo lamentado, fala na sua difícil vida em Moçambique e na morte do pai; na solidão que sentiu ao chegar a Lisboa, há uns anos, com uma mão à frente e outra atrás.

Soluça: - Não sabes o que é uma mulher estar sozinha ... Tive de me safar, Jack GW De fazer pela vida. Eu sei que cometi muitos erros, mas devia ter feito o quê? Ninguém me aceitou no teatro!

Podia ter acabado na rua, a vender-me, mas ...

Digo-lhe que não se atormente mais, o seu passado nebuloso já não conta. Agora, é tempo de recomeçar, pensar nas suas possibilidades futuras. Lanço-lhe uma sugestão: - Porque não tentas ser professora, como nos Açores? Alice recusa: o problema dela é urgente, não tem dinheiro, Francis nem lhe pagou a última mensalidade! Por mais que acredite nela, tenho ressentimentos à tona, que recordo à primeira Oportunidade. Não resisto à tentação de a provocar: - Talvez o meu pai te ajude.

Olha-me, de forma pungente, como se eu não soubesse o que fez por mim. És um ingrato ... Depois, comenta, em voz baixa: - O teu pai vai-se embora daqui a uns dias.

Permaneço calado, só que o meu silêncio é uma gigantesca acusação, e ela fica pasmada. Depois, franze a testa. Tu ... ? Achas que eu ... ? E o teu pai ... ? Como quem não acredita na minha insinuação, insurge-se:

- Jack Gil, por favor, santa paciência, já nem sentido de humor tens? Achas que eu ia dormir com o teu pai?

Tusso e dou um gole no meu whisky: - Tens uma predileção por homens mais velhos. E ricos.

Alice protesta: - Por favor, Jack Gil, ele é o teu pai! Achas que eu te fazia isso?

Olha para mim, espantada e ao mesmo tempo desiludida.

O mal que pensas de mim ... Abana a cabeça, incrédula, e murmura: - Posso ter muitos defeitos, mas há limites para tudo.

Cai-lhe mais uma lágrima pela cara, e olha para o chão, infeliz. Funga de novo, soluça e só depois murmura: - Já não me amas. Para ti, só tenho defeitos.

Mantém-se de olhos postos no chão, magoada. E diz baixinho: - Perdi-te. Perdi o único homem que amei desde que cheguei de Moçambique.

A sua declaração não deixa de me lisonjear, mas em Alice a verdade dos sentimentos, por mais pura e forte que seja, não costuma resistir às atribulações das suas imprevisíveis circunstâncias.

De qualquer forma, questiona-me: - Jack Gil, será que não temos futuro, nós os dois, juntos?

Recorda-me o nosso amor, o que ele foi e já não é, a intensidade pura e bruta e irresistível dos nossos sentimentos. Sabe que me desiludiu, mas apela à minha capacidade de compreensão.

Foram as ironias da guerra, e não ela, que hipotecaram um futuro a dois. Nos Açores, percebera o quanto me amava e agora chegara de novo à certeza do seu amor por mim. Só que, repete, a vida é muito difícil para ela, tem de conseguir dinheiro para viver.

Além disso, relembra, eu pareço decidido a casar-me com outra mulher e a partir de Portugal. Por fim, respira fundo, como que a tomar coragem, e diz: - Se tu ficasses ... tenho a certeza de que podíamos ser felizes!

Digo-lhe que é tarde para isso, mas ela abana a cabeça, defende que nunca é tarde para ressuscitarmos um amor que julgamos perdido. O amor é possível, sempre que é correspondido.

- Basta querermos, Jack Gil.

Nos minutos seguintes, imagina o futuro a meu lado. Vê-se a trabalhar comigo, até no meu escritório. Vê-se a mudar de vida, a assentar. Fala em casar, em ter filhos, mas tudo isto me soa distante e improvável. Não me sinto capaz de casar com esta mulher tão imprevisível, mas não lho digo assim, de uma forma fria.

Relembro-lhe que amo outra mulher. Alice abana mais uma vez a cabeça e protesta: - Mas sem ti, Jack Gil, o que posso fazer? Queres que eu vá trabalhar para a casa da luz vermelha da minha amiga, em frente à pensão?

É evidente que não quero que se prostitua. Prometo-lhe pensar numa solução. Tenho amigos em Portugal, não será necessário ela descer a tal decadência. As mulheres de quem gosto nunca acabam assim, eu não deixo. Todavia, Alice não parece acreditar, soluça outra vez, lamenta-se: - Todos me abandonam ... O Fulgêncio nunca mais quis saber de mim, O Francis dá-me com os pés, O teu pai vai-se embora e tu vais casar e ...

De repente cala-se, enervada. As mulheres têm sobretudo dificuldade em lidar com a concorrência das outras mulheres e ela não é diferente. Mais do que a sua necessidade por dinheiro, é Luisinha quem a perturba agora. Mira-me, olhos a brilharem de ciúme. É ela que te afasta de mim. Alarmada, pergunta: - Ela é assim tão boa?

Não vou discutir os méritos de Luisinha com ela e mantenho-me calado, o que a irrita. Nem a defendes? Enfrenta o meu olhar e declara: - Tu e ela não são como tu e eu!

Regressa aos momentos que vivemos juntos, à nostalgia do passado, como se a nossa força estivesse toda lá. É inteligente, sabe que eu me perturbo com as memórias do que fomos. O amor alarma sempre, mesmo quando só o recordamos. Alice relembra a primeira vez que nos vimos, O delírio em que ficávamos quando estávamos juntos, a profundidade e a intensidade da nossa entrega mútua. E murmura, sibilina: - Não vejo isso entre vocês ...

Tem uma certa razão. O meu amor por Luisinha, o que já fiz com ela, é diferente do que vivi com Alice, e não chegou ainda a esses momentos de arrebatamento. Perturbado, levanto-me e encho o meu copo com whisky. Alice observa-me, semicerrando as pálpebras. Não estás feliz, não tens o que queres com ela.

Suspira e pergunta: - A tua noiva é virgem?

Digo-lhe que sim. Ela fica uns segundos pensativa e depois interroga-me: - E vais casar-te com uma mulher que não sabes o que vale?

Nunca ter dormido com Luisinha não é coisa que me preocupe muito. Tenho a certeza de que, com o tempo, nos vamos entender.

Mas Alice sabe que aquele é o meu ponto fraco, a porta por onde pode entrar. Sabe que só a força da carne é capaz de vencer a resolução da mente ou do coração. O amor é frágil, sem o sustento do sexo. Portanto, lança uma nova pergunta: - E se, depois do casamento, ela te desiludir?

Bebo mais um pouco de whisky e respondo-lhe: - O amor é difícil, mesmo quando é correspondido.

Ela sorri, gostou do que ouviu. Acrescenta que se diz por aí que a família de Luisinha a proibiu de me ver, e até o general se queixou de mim à polícia, um problema complexo, pois ele é amigo de Salazar.

- Não te deixam casar com ela, Jack Gil - de repente, o rosto de Alice ilumina-se e pergunta: - Porque não foges comigo?

Rio-me, mas ela insiste na ideia. Afirma ser impossível eu levar Luisinha para fora de Portugal, o general nunca irá deixar que ela saia do país, portanto esse amor é inviável. Já o nosso, está só à espera do momento certo, do passo final. Entusiasmada, Alice exclama: - Podíamos ir os dois para Nova Iorque, no Clipper!

Pelos vistos, fugir de Lisboa nos aviões da Pan Am é uma das maiores fantasias femininas do momento, pois Luisinha também deseja essa solução. Eu sorrio, mas faço um ar desiludido: - Os bilhetes estão esgotados ...

Ela fica surpreendida. Esgotados? Franze a testa, como se tivesse uma informação oposta. Depois, protesta contra a minha falta de entusiasmo: - Jack Gil, nós somos uma boa dupla, tu e eu. Entendemo-nos tão bem na cama que fora dela não será difícil...

Sorrio. É exatamente ao contrário. Mais tarde ou mais cedo, um homem e uma mulher serão capazes de se entender na cama, mas, se não se entenderem fora dela, nunca serão muito felizes.

O amor é duríssimo e a parte difícil é a que se passa fora da cama, e não a que se vive em cima dela. É isso que digo a Alice, mas ela abana a cabeça e riposta: - Ó Jack Gil, por favor, nós fomos vítimas disto tudo! Da guerra, do Hitler, dos espiões, da política! As nossas zangas, as nossas desconfianças, eram por causa do que fazíamos! Foram as circunstâncias que nos separaram, não o nosso caráter, o teu e o meu. Sem essas trapalhadas todas, já estaríamos juntos.

Sorri-me. Tenho a certeza. Declara em voz baixa: - Somos mais parecidos do que pensas, Jack Gil.

Respiro fundo e bebo whisky. A verdade é que estou alarmado e, pouco a pouco, a ceder aos seus encantos. Não é o que ela diz que me perturba, é ela, o seu olhar de corça, os seus movimentos de gata, a maneira como mexe as pernas, como afasta o cabelo dos olhos. Tento manobras de diversão, afirmo que irei ajudá-la, hoje e no futuro, sou seu amigo, preocupo-me com ela, quero o seu bem.

Alice franze a testa. Não tentes desviar a conversa. Não quer falar de outras coisas, mas apenas de nós. Com convicção, afirma: - Um amor como o nosso dura mil anos e nunca morre.

Volta a enfrentar o meu olhar. Eu amo-te! Diz: - Não sou capaz de te esquecer, Jack Gil. E tu também não.

É verdade, nunca fui capaz de a esquecer totalmente. Sinto que a amei muito, de uma forma apaixonada, e que a desilusão que me provocou destruiu totalmente a confiança que tinha nela, mas não O desejo puro e carnal, nem o alarme que sinto no coração quando a vejo. E, por estranho que isso possa parecer, estes sentimentos não são incompatíveis com os que sinto por Luisinha. Estou seguro de que a amo, mas é um amor diferente, um amor ainda incompleto e não vivido, uma promessa de amor, mas com falhas de realidade, e é nessas falhas que entra Alice.

Por isso, concedo: - Tens razão. Não sou capaz de te esquecer.

Ela sorri de imediato, os seus olhos de corça alegram-se.

Mesmo? Parece uma criança feliz, os vestígios de choro desapareceram. Ainda me amas? Levanta-se e aproxima-se, e depois senta-se ao meu colo. Sinto o cheiro dela invadir-me as narinas, o calor do seu corpo aquecer o meu.

Devagar, Alice começa a beijar-me no cabelo e no pescoço e sei que hoje me vou perder, aqui e agora, com ela. A ideia de que o namoro com Luisinha é inviável e proibido, no Portugal de Salazar, pesa sobre mim e finalmente caio nos braços de Alice.

Ela é irresistível, doce, quente, meiga, a melhor mulher do mundo quando quer. Não vou pensar em nada, não vale a pena, agora perdi-me e já não é tempo de voltar atrás. Esta noite não vou fazer a coisa certa, vou trair, mas faço-o sobretudo porque quero saber se o meu amor por Alice se renova e renasce, se tem futuro. Se hoje formos felizes, talvez seja possível fugir com ela, um dia destes, no Clipper ou noutro avião qualquer.

Um dos nossos passatempos favoritos, em 1943, era ela meter-se na banheira e depois chamar-me para lhe ir lavar as costas. É o que quer fazer, repetir o que funcionou, relembrar e reviver. Sorri-me. Vamos brincar? Uns minutos mais tarde, chama por mim e, quando chego à casa de banho, a porta ficou aberta. Alice está nua, de pé na banheira, e sorri-me. Gostas?

Tem no rosto uma inevitável expressão de triunfo. Sou a melhor, não resistas!

Observo cada pormenor do seu magnífico corpo. Os antebraços, fofos, aonde me apetece sempre ferrar uma dentada; as ancas, firmes, onde eu muitas vezes descansei a cabeça; os ombros, que são o caminho para as terras prometidas; as nádegas, cheias e ligeiramente levantadas, como dois gomos de uma laranja que temos de afastar um do outro; e as mamas, roliças e sempre empinadas. Avanço na sua direção, recebo a bacia cheia de água quente que me entrega e ordeno-lhe:

- Senta-te.

Alice obedece e despejo-lhe água sobre o cabelo, vendo-a escorrer pela sua cara. Ri-se, limpa os olhos, como uma criança incomodada, e diz: - Obrigada, Jack Gil.

Repito a operação mais duas vezes e então ela pede-me que pare, e aponta para o sabonete: - Esfrega-me as costas.

Assim faço, como um escravo. Passo o sabonete na sua pele, sentindo os ossos da coluna, as costelas, subindo até ao pescoço e aos ombros, e depois descendo, lentamente, até à zona lombar.

Nesse momento, Alice ergue-se um pouco, fica de joelhos na banheira, e passo o sabonete pelo seu rabo, massajando-o, vendo a espuma a fazer bolhinhas nas nádegas. De olhos fechados, ela murmura: - Lava-me bem.

Estou de joelhos também, fora da banheira, as mangas da camisa arregaçadas. Deixo cair o sabonete na água e começo a lavá-la apenas com as palmas das mãos. Primeiro, mantenho a pressão nas nádegas, mas depois desço para o meio delas e começo a lavá-la ali, com a mão direita, e ao mesmo tempo levo a mão esquerda ao seu sexo, massajando-o igualmente.

Aos poucos, sinto o seu desejo a crescer e ela geme baixinho, emite quase só um rumor, de olhos cerrados, inebriada de prazer. Depois, a minha mão direita sobe, na direção do seu peito, e lavo os seus seios, suavemente. Envolvo-os, massajo-os com leveza e ela geme mais vezes. Seguro o seu mamilo esquerdo entre o polegar e o indicador, como se o quisesse espremer, ao mesmo tempo que a minha mão esquerda lhe estimula o sexo. Alice dá um gritinho de prazer, dobrando a cabeça para a frente.

Lavo o seu peito com água e de seguida baixo a cabeça, tocando com a ponta da língua no seu mamilo esquerdo. Ela agita­se e dobra-se mais para a frente. Abocanho-lhe o mamilo, mordendo-o suavemente com os dentes e rodopiando depois a minha língua nele. Aumento também a movimentação dos dedos da mão esquerda e sinto que Alice está a aproximar-se do esplendor.

Começa a gritar, o seu corpo descontrola-se, às sacudidelas, em convulsões de prazer.

De repente, atira a cabeça para trás, de olhos fechados e a boca muito aberta, num esgar espantoso, que é acompanhado por um grito animal, descontrolado, mas absurdamente feliz. A sua manifestação de excitação demora e observo cada estremecimento seu, cada músculo contraído, oiço cada som que liberta, como se o quisesse gravar para sempre na minha memória.

No fim, a tremer e a arfar, com a respiração irregular, Alice senta-se dentro de água, em cima dos calcanhares, e permanece de olhos fechados mais algum tempo, até olhar para mim. Maldito ... Ri-se, afasta-se para o canto da banheira, e diz: - Leva-me para a cama.

Nas horas seguintes amamo-nos até que nos rendemos, esgotados, e recomeçamos a conversar. Só aí lhe conto que um alemão, talvez um dos Nazis de Ferro, vai sair de Lisboa num barco, amanhã à noite, por volta das dez. Insisto que ela deve avisar Francis, a Operação Safe Heavens tem de estar ao corrente desta fuga, e assim o americano poderá desculpá-la, ou pelo menos pagar-lhe o que ainda lhe deve. Porém, acrescento também que, se ela precisar de dinheiro, lhe empresto algum, não a deixo mal até lhe arranjar outra ocupação.

Alice olha-me, agradecida, com lágrimas nos olhos. Acho que é a primeira vez que a sinto tão vulnerável, tão à mercê das circunstâncias, tão frágil. No passado, no tempo da Lisboa do auge da guerra, ela sempre me pareceu uma mulher forte, decidida, determinada, confiante na sua capacidade de sobreviver, com glória e proveito. Hoje não. Portugal mudou, já não há estrangeiros a quem espiar, as pessoas já não aceitam mulheres como ela, estão a apontá-las a dedo, e o palco onde ela era heroína e protagonista desapareceu.

Alice está insegura, aterrada com o futuro, e por isso se refugiou debaixo da minha asa. No passado, ela amara-me, mas nunca precisara de mim e a sua independência destruiu o nosso amor.

Agora, talvez ele seja possível porque ela necessita, com desespero, de um homem como eu, que lhe pague as contas e não a deixe tombar no mundo do mal.

Os seus olhos são os de uma adoradora. Amo-te. Num instante de pura magia, sinto que me ama como a um deus, está nas minhas mãos, absolutamente entregue e submissa. Mas a dependência que sente incomoda-a, e logo nasce dentro dela o medo de me perder, o medo de ser abandonada, de ser substituída. Até os seus olhos de corça parecem ter diminuído de brilho. Não me deixes ... Quer de mim uma garantia. Mesmo quando lhe digo que vou tomar conta dela, insiste que tenho de terminar o namoro com Luisinha, que tenho de ser só dela.

O amor é uma tortura, mesmo quando é correspondido. Alice ama, mas ao amar aflige-se, fica dilacerada e aterrorizada.

Nos seus olhos há uma espécie de estranho terror. Morria, se me deixasses. Este desespero alimenta-a, dá-se toda, mas sempre em estado de alarme. De manhã, já vestida para sair, entrego-lhe dinheiro, não quero que passe dificuldades, mas olha-me de soslaio, desconfiada. Tratas-me como se fosse a tua puta. Prometo procurar uma forma de ajuda mais permanente e ela dá uma gargalhada e exclama:

- Podes pagar só o sexo, é só isso que queres!

O amor é assim, expande-se primeiro e depois regride e atrofia. Perante a separação, perante a dúvida, nascem ressentimentos, ameaças, patifarias, que nos consomem. Ao fechar a porta, Alice diz: - Já te conheço, Jack Gil. Vais namorar a outra e dormir comigo.

Pois é, Paul, foi assim que quase perdi a tua avó Luisinha. Depois daquela noite, julguei que Alice vencera. Ela era estrondosa, inesquecível, indomável. Nem devia contar-te estes pormenores todos, até parece mal, aqui em tua casa ... A tua mulher ainda me ouve e vai pensar que eu sou um velho tarado.

- Ela já se foi deitar, avô, está a dormir com o bebé, não se preocupe.

Talvez devêssemos ir dormir também, estou cansado da viagem, continuamos amanhã, pode ser?

- Não, avô, agora não, tem de me contar como correu a ida às docas!

Mal, meu querido neto, correu mal. Naqueles dias, tudo corria mal na minha vida! Mas, desculpa lá, vai acontecer tanta coisa na noite seguinte que temos mesmo de deixar esse relato para amanhã.

 

Lisboa, 23 de agosto de 1945

Por mais que Roberto e eu tenhamos tentado, não conseguimos avisar Klop. O russo dissera-me que se instalara num hotel, mas Roberto visitou vários esta tarde e não o encontrou. Em casa também não está, viemos de lá agora. Não é um comportamento habitual nele. O russo costuma ser fiável e hoje precisava mesmo dele.

Trago no cinto a Randall do Michael, mas Manfred é perigoso e está armado, uma faca é pouco. Ao final da manhã, depois de Alice sair lá de casa, levantei no banco dólares para pagar o tesouro ao alemão. Escondo-os no bolso do fato, mas receio ser assaltado.

Não tenho a certeza se os americanos lá vão estar, se avisaram a PVDE, se isso vale de alguma coisa. Os alemães, em especial o grupo os Nazis e Ferro, têm muitos amigos na PVDE, e o mais certo é conseguirem embarcar e fugir.

Decidimos que Roberto fica de guarda ao Citroên, a cerca de duzentos metros da estação de Santa Apolónia, e que esperará por mim. Será a minha rota de fuga, para o caso de a situação se descontrolar. São quase nove da noite, a hora a que combinei o encontro com Manfred, e reparo que Roberto, apesar de nervoso, está menos falador. Pergunto-lhe a que se deve a sua nova serenidade e ele encolhe os ombros:

- Ó doutor, sei lá eu ... Deve ser do calor.

Despeço-me dele, que me pede cuidado e deseja sorte, e começo a caminhar na direção das docas. À noite, há pouca iluminação. Salazar ainda impõe poupanças de energia, em certas zonas os candeeiros estão apagados e as docas são uma delas. Só os armazéns têm uma lâmpada acesa na porta, e no rio há também alguns barcos com as luzes ligadas, mas a orientação não é fácil naquela escuridão repleta de obstáculos, desde contentores abertos a caixote vazios de mercadorias.

Ao aproximar-me do local combinado, verifico que há movimento, a cerca de duzentos metros de mim, no local onde está atracado o barco que vai hoje partir para a Argentina. Paro, para observar melhor a azáfama. Quatro ou cinco homens carregam cargas às costas, para o navio. Junto a um armazém, mais ao fundo, noto mais vultos. Talvez sejam os americanos, ou a PVDE, é difícil saber. Disse a Alice que o nazi só apareceria por volta das dez, o que me dá uma hora de avanço, mas não estou confiante no meu estratagema.

A cerca de cinquenta metros do barco, encosto-me a um

contentor e, uns minutos mais tarde, oiço um subtil assobio, vindo do meu lado direito. Dou uns passos nessa direção e vejo um vulto, encostado à parede de um armazém. É Manfred e aproximo-me dele sem fazer barulho. Apesar de estarmos num local escuro, num canto entre dois armazéns, reparo que está bem vestido, e fato, e não com as camuflagens que usou ontem. Vai de viagem, está solene e composto. Pergunta:

- Trouxe o dinheiro?

A voz denota nervosismo, agitação, a ansiedade do momento, a expectativa da transação. Ou talvez se deva à sua iminente fuga de Portugal. Reparo que tem um pequeno baú, debaixo do braço, os tesouros devem estar lá. Digo-lhe que só consegui levantar um certo número de dólares, não tive tempo para mais. Ele vira a cabeça de um lado para o outro, como um boneco de corda. Irritado, sobe o tom de voz:

- Não foi isso que combinámos.

Digo-lhe que só quero comprar o retrato da mãe de Hitler, não tenho mais dinheiro. Observa-me, desconfiado, e esboça um sorriso desdenhoso. Não mandas nada ... Seco e frio, murmura, insinuante:

- Disseram-me que você era mais velho. Jack Deane, um homem com os seus sessenta ... Começo a ficar tenso e forço um sorriso:

- As pessoas confundem-me com o meu pai. Temos o mesmo nome.

Manfred mantém os seus olhos fixos nos meus. Mentiroso.

À pressa, retiro do bolso um envelope com os dólares e digo: - É o que posso dar pelo retrato.

O alemão abana a cabeça, desapontado. Semicerra os olhos e a mandíbula fica tensa. Aldrabão. Murmura: - Você não quer o tesouro.

Depois, dá um passo na minha direção, cresce para mim, coloca-se à minha frente, com o óbvio propósito de me intimidar, e pergunta: - Para quem trabalha?

Ia protestar, mas ele move-se muito depressa. Num segundo, dá um passo atrás e aponta-me uma pistola à barriga. Fico siderado, sinto uma onda de adrenalina a invadir-me, enquanto oiço a sua ordem: - Leva-me a quem manda.

Nesse momento, as coisas descontrolam-se. Nas minhas costas, oiço ruído e espreito pelo canto do olho. Vejo um vulto surgir, enorme, e o alemão olha de imediato para lá, mas não é suficientemente rápido. Um clarão ilumina o canto escuro onde estamos, logo seguido pelo estampido de uma bala.

Com um esgar de dor, Manfred cai à minha frente, atingido em cheio no peito, e fica imóvel aos meus pés, deixando cair o baú, que rola na minha direção. A tremer, volto-me para o local donde veio o tiro e espero que seja disparado outro, na minha direção. Vou morrer, é óbvio. Porém, isso não acontece e, na penumbra, vejo um vulto enorme avançar para mim.

De repente, sofro um novo choque. O homem que disparou é Klop! O russo aproxima-se calmamente. E eu estou siderado, estupefacto, ainda a tremer. Ao chegar, Klop comenta: - Menos um nazi no mundo.

A sua frase tem o condão de me despertar. Pergunto-lhe o que fez, porque matou o alemão, está louco? Klop olha para mim e ri-se. Olha quem fala ... Indiferente à minha preocupação, recorda: - Um mata, o outro cala-se. É assim connosco.

Nem acredito no que estou a ouvir. Ele relembra-me que eu matei um nazi, no passado, à sua frente, e agora ele fez o mesmo, sob os meus olhos. Há uma ameaça clara nas suas palavras: ele quer-me como cúmplice, não aceita a minha crítica. Cerro os dentes e digo-lhe: - Klop, tu trabalhas para mim, mas eu não te mandei matá-lo!

Nesse momento, o russo dobra o joelho, debruça-se sobre o alemão e confirma que ele está morto. Depois, pega no pequeno baú com o tesouro, e olha para mim. Isto vale uma fortuna. Abre um sorriso maldoso: - O seu pai é que vai gostar.

Ele está a trabalhar para o meu pai? Questiono-o: - Foi o meu pai quem te mandou matar o alemão.

Klop pisca-me o olho, divertido. É impressionante a sua calma perante a morte. Foste enganado. Depois, murmura: - Nunca uso só dois chapéus, prefiro três ...

Não percebo o que ele quer dizer e, de repente, oiço um apito estridente.

A PVDE deve ter sido avisada pelos alemães do barco, já deve vir a caminho, precisamos de sair dali. Mas tenho de compreender porque Klop fez isto! Agarro no seu braço com força e pergunto-lhe:

- O que queres dizer?

O russo olha para o seu braço, furioso. Depois, lança-me um olhar gelado. Tira a patas Rosna: - Cuidado, sou eu que tenho uma pistola.

Não é possível que me esteja a ameaçar, que me tenha traído desta forma brutal, mas sei bem que o russo é perigoso, não vale a pena afrontá-lo. Largo-lhe o braço e ele sorri-me. Lindo menino.

Depois, encolhe os ombros e diz: - Um homem tem de viver.

Dinheiro, ele traiu-me por dinheiro! Vejo-o levantar o pequeno baú, como se fosse um troféu. Diz: - O seu pai vai pagar bom dinheiro por estes tesouros.

Cerro os dentes. É evidente que o meu pai lhe pagou para se apoderar do baú, mas não acredito que o mandasse matar o alemão. Por pior que o meu pai seja, não é o seu estilo. Contudo, Klop não me vai dizer mais, já começou a andar. Aproxima-se do alemão, cospe-lhe e dá-lhe um pontapé. O corpo inerte de Manfred rola e fica de costas para mim. Depois, Klop passa por cima dele e começa a afastar-se.

Nesse momento, algo totalmente inesperado acontece. Como um morto-vivo, Manfred faz um último esforço, levanta o tronco e o braço, aponta a arma e dispara um tiro no meio das costas do russo, caindo depois, esgotado, um moribundo gorgolejando sangue.

Mortalmente atingido, Klop nem se volta. Lentamente, dobra os joelhos e tomba, rebolando depois para o lado. O pequeno baú solta-se da mão e cai ao chão. Dou um grito, corro na sua direção, mas percebo de imediato que o tiro foi fatal. Klop está a morrer, já lhe sai sangue da boca, às golfadas. Debruço-me sobre ele, peço-lhe que aguente, mas apenas solta um murmúrio terminal:

- Os judeus ...

Oiço mais apitos, a PVDE aproxima-se. Instintivamente, agarro no pequeno baú e desato a correr para as traseiras dos armazéns. Avanço aos ziguezagues, entre os contentores, procurando evitar os espaços abertos, mas pouco depois verifico que ninguém me segue. Quando chego ao lado oposto da doca, continuo a ouvir os apitos, mas soam mais longe, junto aos armazéns, onde Klop e Manfred se mataram um ao outro.

A zona onde agora estou parece deserta, mas não baixo a guarda. Na meia hora seguinte, regresso a Santa Apolónia descrevendo um círculo largo. A cerca de cem metros do Citroên, dou-me conta de que o meu carro está cercado por polícias da PVDE. Por ali não posso ir. Deixo-me ficar quieto, a avaliar as minhas hipóteses, e por fim decido ir a pé para casa. Será uma longa caminhada, mas é a única solução.

Já a andar, tento reconstituir o que se passou. Klop mencionou «três chapéus». Eu, o meu pai, os judeus? Recordo-me de que, quando o contratei na sua casa da Graça, ele referiu que Ruth Vanderbildt o tinha abordado e que o meu pai era «perigoso».

Sei agora que me mentiu, que acabou a trabalhar para eles por dinheiro. Ao mesmo tempo que me ajudava nas minhas buscas, caçava o tesouro para o meu pai. E para Ruth Vanderbildt? Teria ela contratado Klop para matar o alemão? Mas porquê? Uma coisa era impedir que os nazis fugissem para a América Latina, outra era matá-los ali, em Lisboa, a céu aberto! E qual o motivo de Ruth para mandar matar Manfred? Ele não era um nazi muito importante não era um Mengele, nem um Nazi de Ferro! Porque quereria ela eliminá-lo?

Enquanto andava, ainda muito agitado, uma segunda dúvida começou a formar-se no meu espírito. Quem informara Klop de que o encontro se daria naquela noite, naquele local? O russo podia saber que alguns alemães iriam fugir naquele barco, mas como podia ele «adivinhar» que eu e Manfred nos iríamos encontrar àquela hora? Não fora Roberto a informá-lo, pois só soube que íamos para Santa Apolónia mesmo em cima da hora, não dispusera de tempo para avisar ninguém! Teriam sido os judeus a descobrir, pelos seus meios, que Manfred apareceria ali?

De súbito, escuto um triplo assobio, que reconheço. Encosto-me à porta de uma casa, num pequeno beco, e pouco depois vejo Roberto.

Querido Paul, acho que o bebé acordou outra vez ...

Trá-lo para aqui, deixa a tua mulher descansar, podemos conversar enquanto o embalas. É isso ser pai, tens de te habituar.

Há que acordar muitas vezes, dormir mal, mudar muitas fraldas.

Deita o bebé em cima da tua barriga, vais ver que ele adormece melhor. Eu sei, fazia isso ao teu pai muitas vezes. E, se falarmos, ainda é melhor, os recém-nascidos gostam de adormecer a ouvir vozes.

- O avô ficou com o tesouro?

Sim, meu querido neto, nesse momento, sim. Mas aquela espantosa noite ainda só estava a começar. As surpresas das horas seguintes multiplicar-se-iam. Roberto, Rosa, Luisinha, Alice, o meu pai, todos iriam cumprir um papel especial nessa noite.

- A avó também?

Sim, Paul, também, já lá chegaremos, está quase ... Vês como o teu filho já dorme?

 

Abraço Roberto, que está mais aflito do que eu. Arfa, nervoso, quer saber o que se passou. Descrevo-lhe os acontecimentos, a traição de Klop, a morte dos dois homens. Ele fica transtornado, não acredita: - O russo traiu-nos?

Abana a cabeça, tem lágrimas nos olhos. É evidente que se habituou a gostar de Klop, nunca pensou que ele nos fosse desleal.

Uns minutos depois, recupera um pouco da comoção e conta o que se passou do seu lado. Ouviu os tiros, pensou em ir à minha procura, mas a PVDE chegou depressa. Ele afastou-se, como se nada tivesse a ver com o Citroên, e viu os polícias cercarem o carro. Para minha surpresa, acrescenta que eles não foram os únicos a passar por ali. Olha para mim, aflito. Nem faz ideia ...Por fim, conta-me: O seu pai apareceu.

Não estou espantado. Klop disse-me que trabalhava para o meu pai, devem ter combinado que ele esperava ali para receber o tesouro. Roberto baixa os olhos, embaraçado. Tem mais para dizer. Incentivo-o a falar e ele diz: - O seu pai estava com a Alice. Os dois no mesmo carro.

O nó que ainda resistia naquele complexo jogo desata-se e tudo se torna evidente para mim. Alice também me traiu, também trabalha para o meu pai. Invade-me uma raiva fria, sinto o corpo a tremer. Mentirosa, aldrabona, traidora! Desde quando me engana com o meu pai? Desde a primeira vez que os apresentei, no restaurante do Hotel Palácio, enquanto fui à casa de banho? Ou desde o último jantar, no Aviz, quando ela apareceu supostamente de surpresa?

Ignoro, mas agora sei que foi ela quem o avisou. A cadeia de informação deve ter sido essa: Alice informou o meu pai, o meu pai contactou Klop e este, por sua vez, avisou Ruth, que o mandou matar Manfred. Na origem de tudo está Alice, a culpa é dela! Odeio-a, com uma fúria profunda. Tudo o que ela me disse ontem eram mentiras! Provavelmente combinadas com o meu pai, na cama com ele! É uma víbora, uma desgraça, aquela mulher, e eu fui um idiota por me ter deixado ir na sua conversa.

O prazer de dormir com ela não paga o que sinto agora: a dor da traição, o alçapão da desconfiança e da deslealdade. Alice não presta!

Respiro fundo, tento controlar-me. Pergunto a Roberto se viu mais gente. Diz que sim: além da PVDE, alguns homens, que lhe pareceram americanos. Os operacionais de Francis também andavam por lá, avisados por Alice.

Desolado, murmuro: - Que confusão.

Mal os tiros se escutaram, conta Roberto, o meu pai e Alice zarparam no seu carro, enquanto o taxista assistia à imediata agitação da PVDE, cujos homens partiram a correr na direcção das docas.

Permanecera perto do Citroên longos minutos, à minha espera, mas depois dois polícias regressaram e apontaram as lanternas para o meu carro. Roberto olha para mim, preocupado.

É mau para si ... Avisa-me: - Ó doutor, vai ser envolvido nisto!

Apreendido o meu carro, rapidamente a PVDE chegaria a mim. Tenho no máximo uma noite para me afastar de Lisboa.

O meu amigo taxista sugere uma ida a sua casa. Mora ali perto, quase ao lado da Casa dos Bicos. O táxi está lá, pode levar-me aonde eu quiser. Com o pequeno baú debaixo do braço, continuamos a pé e chegamos ao local em menos de dez minutos.

À porta, sinto-me esgotado. Preciso de sentar-me, beber

água, mas Roberto parece relutante em convidar-me a subir. Justifica-se com o meu cansaço: são muitos degraus, mora num quarto andar, e propõe ser ele a descer com um jarro e um copo.

Contudo, vemos ao longe um carro que se aproxima, e tememos que seja a PVDE, o que faz Roberto mudar de ideias.

Subimos e o taxista abre a porta de casa, mas não acende a luz. Leva um dedo à boca e aponta para a cozinha. Não quer acordar Rosa, mas, de súbito, ouvimos ambos uma voz de mulher: - Beto, porque não te vens deitar?

A pergunta de Rosa, mas sobretudo o diminutivo com o que o chama, transportam uma implicação evidente: eles estão a dormir no mesmo quarto, provavelmente na mesma cama, e foi por isso que Roberto não queria que eu subisse a sua casa. Porém, ao contrário do que ele pensa, não me importo nada que durmam juntos. Digo-lhe: - Já podes acender a luz, Roberto.

Ele assim faz e depois murmura um «com licença» ainda envergonhado. Ouço os sons das suas vozes, mas não o que dizem. Entro na cozinha e bebo água, antes de me sentar. Pouso o pequeno baú em cima da mesa e fico a admirá-lo, como se ele fosse uma lâmpada de Aladino, donde sairá um génio do e eu a Roberto regressa e atrás dele vem Rosa, de camisa de noite até aos pés, a cara amarrotada pelo sono. Sorri-me. É bom vê-lo.

Roberto está nervoso, tem receio de a perder para mim, mas eu sorrio a ambos e digo: - Fico contente por vocês, estão bem um para o outro.

Rosa encolhe os ombros, como se me dissesse que tem de se contentar com o taxista. Depois, observa o pequeno baú, intrigada. O que tem aí dentro? Pergunta:

- Foi por causa dessa caixa que o Klop morreu?

Confirmo com um aceno de cabeça. Cheia de curiosidade, Rosa aproxima-se e agora está ao meu lado, encostada a mim, de camisa de noite, a sua anca tocando no meu antebraço. Faço de conta que não sinto o seu contacto, nem o seu cheiro, e abro o pequeno cofre.

Um a um, retiro os artefactos e pouso-os em cima da mesa.

São apenas três: uma pequena pistola dourada, com as iniciais A. H. gravadas; uma moldura com o retrato de um pastor-alemão, a cadela de Hitler, chamada Blondie; e o retrato da mãe do ditador.

Por fim, no fundo do baú, há um exemplar da revista Time, datado de 13 de março de 1933, com a fotografia de Hitler na capa e o título «Renascimento ou Bolchevismo?»

Rosa e Roberto, que está à nossa frente, do outro lado da mesa, debruçam-se para examinar os objetos e, de repente, a rapariga pega na pequena moldura prateada e pergunta: - Quem é esta?

Digo-lhe que é a mãe de Hitler e que aquela moldura pertence ao próprio ditador. A fotografia está dedicada ao filho, no verso.

Ela vira a moldura, curiosa. Ergue as sobrancelhas. É mesmo a mãe de Hitler?

Roberto faz um esgar de desdém, sempre odiou o «facínora do bigodinho», e acusa: - Malditas entranhas. Se não fossem elas, a guerra não tinha acontecido!

A mãe de Hitler tem a cara banal de uma mulher sem história, com uns cabelos morenos como mi ões de outras, apanhados atrás, provavelmente num carrapito, como as criadas. Usa um aço escuro no pescoço e um vestido luzidio, escolhido certamente de propósito para aquela ocasião especial, quando se dirigiu a um estúdio de um fotógrafo, talvez austríaco, talvez em Linz, talvez em Viena.

Só o nariz, arredondado, e um pouco a testa têm semelhanças com os traços do filho, o monstro que ela gerou sem o saber.

Como se o retrato fosse o culpado dos males do mundo, Roberto resmunga:

- Se lhe tivessem dado um tiro, poupar-se-ia muita tragédia.

As pessoas são assim, culpam a hereditariedade pelos pecados dos filhos, mas é inevitável. Hitler não foi um homem qualquer e decerto a educação daquela mãe o marcou. Rosa continua a olhar fixamente para a cara da mulher e depois, como se só agora tivesse ouvido o primeiro comentário de Roberto, diz em voz baixa, solenemente: - Ela foi a mãe do Diabo, mas não sabia.

Hesitante, olha para mim e pergunta-me: - Acha que a culpa é dela?

Não há muitas referências nas revistas e nos jornais que expliquem a importância desta senhora. Penso na minha mãe: era a ela que eu devia muita coisa boa no meu ser e a sua educação fizera de mim um homem melhor, mesmo tendo sido brutalmente interrompida aos doze anos.

As coisas que me dissera, mas sobretudo o amor e o carinho que me transmitira e me encheram o coração, eram parte fundadora e integrante da minha humanidade. Sentia saudades dela todos os dias.

Olho primeiro para Rosa, depois para Roberto e, por fim, digo: - Sim, também é dela.

Aquela cara, aquela mulher, por pequena que tenha sido a sua influencia na vida de Hitler começa então a personificar o ódio generalizado que sinto aos nazis. Por mais que uma mãe não tenha culpa das ações do seu filho, aquela ao e a aquela é a mãe do maior facínora que o mundo conheceu em milhões de anos! Sinto pura raiva, como se essa emoção brutal que me nasce no peito pudesse corrigir anos de erros e tragédias, como se fazer mal ao retrato reparasse a história do planeta.

Vendo-me carregado de maus pensamentos, Rosa pergunta, de sobrancelhas arqueadas: - Vai destruir o retrato?

É o que me apetece fazer. Puxo do isqueiro e acendo-o.

Roberto olha para mim, aprova o meu desejo, mas Rosa chama­me à razão: - Isso agora vale de pouco.

Ela está certa. De que vale destruir o retrato da mãe de Hitler? Não há uma única alma no mundo que se salve com o meu inútil exercício.

De repente, Roberto consulta o relógio e relembra: - Temos de ir embora.

Rosa troca olhares comigo e parece ter pena de que eu me vá embora. Quando o volto a ver? Mas não posso entrar neste jogo, quero deixar a Roberto a possibilidade de a conservar, sem interferências. Começo a colocar os objetos no pequeno baú e, ao olhar para a pistolinha dourada, tenho uma ideia. Pergunto a Rosa:

- Tens uma caixa onde colocar este baú? Talvez uma caixa de sapatos ...

A rapariga diz que comprou uns no último sábado, com os primeiros dinheiros que ganhou a limpar a casa e o escritório de Afonso Caldeira. Sorri-me, contente. Foi o senhor que mudou a minha vida ... Diz que a caixa deve estar no quarto e vai buscá-la.

Enquanto esperamos, Roberto evita o meu olhar, pois sente-se diminuído na minha presença. Com um ar triunfante, com uma pequena caixa de cartão retangular na mão, Rosa regressa à cozinha. Pousa-a na mesa, levanta-lhe a tampa, retira-me o baú das mãos e coloca-o dentro da caixa, que volta a tapar. Sorri-me, contente, e murmura: - Cabe.

Depois, vai buscar um pequeno cordel e ata-o à volta da caixa, como se estivesse a embrulhar um presente. Ri-se, satisfeita, e comenta: - Tenho muito jeitinho com as mãos.

Divertida, prepara-se para levar o cordel à boca e olha para mim, piscando o olho:

- E também sou jeitosa com a boca.

Antes que ela o possa cortar com os dentes, eu saco da faca Randall e retiro-lhe o cordel da mão, cortando-o no local indicado.

Rosa fica a olhar para mim, ligeiramente desiludida. Já Roberto sorri, agradecido por eu não me deixar levar pelas insinuações óbvias da rapariga.

Pergunto se têm, em casa, papel e algo com que escrever, e Rosa aproveita a deixa e sai da cozinha, moendo o seu passo em falso. Volta e entrega-me uma folha de papel e um lápis. Olho para Roberto, enquanto alinho uma mensagem: - Vamos entregar isto numa casa.

Rosa franze a testa, intrigada e curiosa. Numa casa? Força um riso e pergunta: - Para quem é o presente?

Explico-lhe que os tesouros de Hitler não me interessam, só trazem desgraças à minha vida, mas não lhe respondo. Ela mira­me, desiludida. Vai dá-lo a outra ... Quando me beija, à saída, continua amuada. As mulheres são um bicho estranho: Rosa esperava por Roberto na cama dele, mas, agora que me viu, já me queria a mim, e ainda mais enervada ficou, pois suspeita de que vou fazer uma visita a outra mulher. O amor é terrível, sobretudo porque nos coloca em permanente necessidade de competição.

O bebé voltou a acordar, Paul, tens de ir entregá-lo à mãe, para ele mamar. Como vai ser amanhã, meu neto?

- Partimos para o Douro ao final da tarde, talvez só às oito, a minha sogra só pode vir a partir dessa hora. Dormimos no Porto, na sexta, e vamos à quinta de Alice, no sábado. Está ansioso por vê-la, avô?

Nem por isso, Paul.

Agora estamos na parte em que eu descobri a sua traição mais profunda: a sua aliança com o meu pai para deitar as mãos ao tesouro, ao retrato da mãe de Hitler. Ora, se estava a trabalhar para ele, provavelmente dormira com ele. Mentira-me, uma vez mais.

A minha raiva era tão intensa que, naquela noite, tomei a decisão de não entregar o tesouro ao meu pai, frustrando-o, e destruindo a sua união de interesses com Alice. Ela só queria dinheiro dele, mas só o teria se eles conseguissem o tesouro.

Ora, pela primeira vez, eu podia causar um dano ao meu pai e, de caminho, prejudicar também Alice. A minha vingança seria enorme.

Paul, vês como eu digo que eu me tornara num homem mau?

Mas, avô, a quem enviou o tesouro?

Acho que foi uma ideia genial que tive, mas não te posso revelar já quem acabou por ficar com o retrato da mãe de Hitler, com a pistolinha dourada e com o retrato da cadela Blondie.

 

Lisboa, 23 de agosto de 1945

Entro no meu prédio pelas traseiras, como um ladrão ou um foragido. No caminho para cá, parámos num local e Roberto foi entregar a caixa de sapatos a quem lhe indiquei. Agora, irá regressar a casa e volta aqui pelas sete da manhã, para me vir buscar.

Ainda enfurecido com Alice e a sua traição, salto um pequeno mureto, e abro a porta das traseiras do edifício. Sem acender a luz interna, vou subindo as escadas, pé ante pé, até ao patamar da minha casa, com a faca Randall do Michael na mão, temendo uma surpresa desagradável. No entanto, quem encontro não é quem e espero. Na penumbra, vejo um vulto, escuto uma voz feminina receosa, que murmura: - Jack?

O meu coração agita-se: é Luisinha! Subo o resto dos degraus dois a dois, enquanto ela se levanta, e caímos nos braços um do outro, beijando-nos, sem tempo para perguntas. Depois, peço-lhe silêncio, ao ouvido, e ela fica calada, enquanto coloco as chaves na fechadura. Entramos e só após fechar a porta explico, em voz baixa:

- Não posso acender a luz. Estou em apuros.

Apresso-me a ir à cozinha, buscar uma vela. Acendo-a e coloco-a sobre a mesa, e aquela luz alaranjada ilumina de uma forma estranha o local e a cara de Luisinha. Puxo-a para mim, beijo-a de novo e pergunto-lhe o que se passou, o que faz ela ali?

Conta-me que colocou na mala umas roupas e, mal os pais se haviam recolhido, pelas dez da noite, fugiu de casa, com a cumplicidade muda mas chorosa de Ofélia, que temia pela sua «menina». Correu até à estação de comboios de Cascais e apanhou um táxi, a quem deu instruções para a levar a Lisboa, até minha casa.

Por sorte, há cerca de meia hora um outro inquilino abriu­lhe a porta e ela subiu até ao meu patamar, onde permaneceu, no escuro, até à minha chegada. Ainda aflita, olha-me. Amo-o de mais. Depois, desabafa: - Não aguentava nem mais um dia sem o ver.

Abraço-a mais uma vez, orgulhoso da sua coragem e da sua dedicação, mas ao mesmo tempo nervoso, pois agora a complexidade dos meus problemas duplicou. Relato-lhe o que se passou nos últimos dias: o encontro com o alemão, no Castelo; a combinação para novo encontro, nas docas; e o desesperante desenlace final, a traição do meu amigo Klop e os tiros que trocou com Manfred, que os mataram aos dois.

Por fim, revelo o meu azar, o Citroên foi cercado pela PVDE, em Santa Apolónia. Apesar da minha raiva, não refiro Alice.

Engulo em seco, agitado:

- Podem acusar-me de os ter morto aos dois, é muito sério.

Ela olha-me, surpreendida. Não entendo. Depois, pergunta: - Porque não conta a verdade?

Fico pasmado e sinto uma onda de orgulho invadir-me. Ela é tão simples e tão tranquila. Luisinha olha-me. Faça o que está certo. Depois afirma: - Se foram eles que se mataram um ao outro, que culpa tem o Jack?

Depois, senta-se num banco de cozinha e observa-me. Não minta. Pergunta: - Quem ficou com o tesouro?

Digo-lhe que me desfiz dele e ela olha para mim intrigada.

Porquê? Interroga-me: - O que era o tesouro?

Pego num copo de água, encho-o, bebo dois goles e depois descrevo a Luisinha o que estava dentro do baú. Ela está pasmada.

O quê? Em voz alta, como se tivesse de se ouvir a dizer tal coisa para nela acreditar, repete: - O retrato da mãe de Hitler? - fica em silêncio uns segundos e depois murmura: - Uma pessoa esquece-se de que os homens como ele também têm mãe.

Pergunta-me de seguida porque não entreguei o tesouro ao meu pai, era o que ele queria. Então, conto-lhe finalmente as traições de que fui vítima: a de Klop e a de Alice, a aliança de ambos com o meu pai. Cerro os punhos sobre a mesa, irritado, e exclamo:

- Enganaram-me todos. O meu pai. A Alice. O Klop.

Luisinha arqueia as sobrancelhas. Já devia saber que ela é assim. Depois pergunta-me, alarmada: - Esteve com ela?

Falo no encontro com o meu pai, no jantar do Aviz. À saída, ajudei-a, falei-lhe do alemão. Luisinha está de testa franzida, insegura e desconfiada. Só isso? Como eu não digo mais nada, suspira:

- Ele já o enganou várias vezes.

Luisinha está a aprender a jogar este jogo, já sabe quando minar a rival. Mas não quero falar em Alice, tenho receio de que a minha raiva me faça perder a compostura e cometer inconfidências. Sei bem que é a minha desilusão com ela que me voltou a reaproximar de Luisinha, mas ela não pode perceber. Tenho de saber mentir, omitir, esconder a minha zanga. Sei que não fiz o que estava certo, mas agora quero redimir-me, e tenho de proteger Luisinha de qualquer sofrimento ou deceção. Ela não merece que o meu erro, a minha entrega a Alice, a destruam.

Informo-a de que não posso ficar em casa, a partir das oito da manhã a PVDE pode aparecer, querer levar-me para interrogatório, temos de sair às sete.

Ela olha-me, espantada. Para onde? Depois sugere, em voz pausada, que podemos ir para a casa da tia dela, em Évora. É a sua madrinha, se lhe pedir ela não telefona para o general. Enquanto eu lhe sorrio, surpreendido com a sua capacidade para imaginar cenários naquele momento difícil, ela acrescenta que podemos fugir para Espanha e declara, determinada: - Não volto para trás: Não vou deixar que a minha família mande em mim: E, se calhar, também é melhor para si não regressar a Lisboa:

Apesar de orgulhoso dela, revelo-lhe a minha esperança: talvez não seja necessário fugirmos do país. Conto-lhe do golpe que se prepara para daqui a umas horas, que começará na Mealhada e que pode derrubar Salazar. Acredito que o país talvez mude depois disso, que o general não mais conseguirá perseguir-me ou queixar-se à polícia, ou sequer impedir o nosso casamento, pois a liberdade que o novo regime trará vai alterar radicalmente as vidas de todos em Portugal.

Ela está verdadeiramente pasmada, de olhos muito abertos.

Um golpe? Demora uns segundos a interiorizar as implicações, mas depois pergunta animada: -Acha que Portugal vai ser uma democracia? Vai acabar a censura dos filmes?

Sorrio: o cinema, sempre o cinema, como se a vida se resumisse a cinema: Digo-lhe que, apesar de os ingleses e os americanos não estarem muito ativos no apoio ao golpe, acredito no que Afonso Caldeira me contou, nos exércitos revoltosos, na união das oposições, na liderança de Norton de Matos. É possível que Portugal mude amanhã, estou pela primeira vez certo disso, e nós, eu e Luisinha, podemos ser felizes.

Ela ri-se, contagiada com o meu entusiasmo. Amo-o tanto!

Atira-se para os meus braços e diz que, mesmo que o golpe não dê certo, fugirá comigo e não mais me deixará. Iremos para Évora, e depois para Espanha. Já não fugiremos de avião, no Clipper, como ela sonhou, mas escaparemos na mesma!

Eu insisto: amanhã as coisas vão mudar. Precisarei apenas de ter cuidado, não ser apanhado pela PVDE durante o dia, e estou certo de que depois tudo será diferente. Entusiasmado, abraço-a de novo e beijo-a, agora mais intensamente, na boca. As nossas línguas dão voltas uma na outra, e sinto as suas mãos procurarem as minhas costas, afagando-as. Pouco a pouco, descem para as minhas pernas, para o meu rabo, tocam-me. Começo também eu a tocá-la com suavidade e, quando chego à cintura, ela afasta um pouco a cabeça. Olha para mim, contente. É hoje.

Depois, pega-me na mão e afirma: - Vamos para o quarto. Não é um pedido, nem uma ordem, é uma declaração segura, como se apenas me recordasse uma certeza previamente definida entre nós. Gosto cada vez mais dela e avançamos pelo pequeno corredor, abraçados. Como o meu quarto tem uma janela para a rua, por precaução deixo a vela no chão, à entrada, junto à porta, iluminando apenas um pouco a minha toca. Em silêncio, deitamo-nos, vestidos, em cima da cama, como se no mundo não houvesse pressa e não nos faltasse tempo para amar. Beijo-a, a sua respiração acelera, e depois desabotoa os primeiros botões. Os seus olhos brilham de expectativa. Quero vê-lo. É o sinal de que necessito para ousar avançar. Então, retiro-lhe o casaco, e depois também a camisa, e admiro o seu peito, coberto por um soutien. Ela parece fascinada, a olhar para mim. Gosta? Baixo a cabeça, beijo os seus seios cheios, e ela geme.

As suas mãos procuram o meu cinto e desapertam-no com rapidez. Sem hesitar, Luisinha abre-me o fecho éclair e depois puxa para baixo as minhas calças e observa as minhas cuecas, onde já se destaca claramente o meu desejo. Sorri, os seus olhos brilham de orgulho. Que bom! De seguida, puxa também para baixo as minhas cuecas, com as duas mãos, libertando-me. Sem que eu o espere, Luisinha debruça-se sobre mim e começa a beijar-me, envolvendo­me com a sua boca quente, e o meu sexo fica ainda mais duro.

Passados alguns segundos, Luisinha levanta a cabeça e beija­me na boca, com cada vez mais intensidade e paixão. Olha-me, arrebatada. Amo-o tanto. Sei que agora não vamos parar. Dispo a sua saia com rapidez e depois desaperto-lhe o soutien, e admiro, apesar da pouca luminosidade, aquele peito farto e firme. Beijo­a nos mamilos e ela geme, e depois levo as minhas mãos às suas cuecas e retiro-as também.

Então, chego-me para trás, apoio as costas na cabeceira da cama e sento Luisinha nas minhas pernas. Ela ergue as sobrancelhas. Quer assim? Recomeço a beijá-la nos mamilos, ao mesmo tempo que as minhas mãos afagam o seu rabo e depois o seu sexo. Ela beija-me também, no pescoço, nas orelhas, nos olhos, no cabelo, e as suas mãos mexem-me no sexo, apertando-o, com firmeza.

Quando sinto que chegou o momento, pego-lhe nas ancas e aproximo-a mais de mim, e os nossos sexos tocam-se, pela primeira vez. Ela arqueia a coluna, soltando um pequeno gritinho. Rimo­nos, está a acontecer o que tanto queríamos, há tanto tempo.

Luisinha olha-me, desejosa, imperativa. Entre! Com a sua mão direita conduz-me para dentro de si, e sinto um calor molhado envolver o meu sexo.

Luisinha perde a virgindade momentos depois, quando já estou enterrado nela, mas se lhe dói não se queixa e vai-se abrindo cada vez mais para mim, como se há muito me esperasse e soubesse o que fazer em cada momento. Continuo a beijá-la nos mamilos, a afagar-lhe o redondo rabo, e mostro-lhe como deve acelerar os seus movimentos, subindo e descendo sobre mim. Ela olha-me, executando-os, à espera de aprovação. Assim? Depois repete-os, mais depressa.

A primeira vez de uma mulher não costuma ser muito espantosa, e também não costuma ser fantástica a primeira noite que estamos com uma. Como os corpos não se conhecem ainda, não sabemos do que o outro gosta e há uma espécie de cerimónia que costuma embaraçar as pessoas, impedindo-as de uma maior liberdade e soltura, que só a habituação permite. Contudo, não é assim entre nós. Parece que os corpos se encaixam na perfeição, que já conhecem o ritmo um do outro, que sabemos os pontos sensíveis de cada um, os locais onde o nosso prazer cresce. É um encontro notável de dádiva e recebimento, como se fôssemos especialistas um no outro desde o primeiro instante.

Rebentamos ao mesmo tempo, mas sem gritos, libertando apenas sons abafados e roucos, como se a nossa formalidade iniciática se tivesse instalado nas cordas vocais, enquanto os estremeções dos corpos, a força que as nossas mãos fechadas fazem nos músculos e na pele um do outro, são correias de transmissão da nossa convulsão física, da nossa comunhão carnal.

A intensidade daquele arrebatamento é tal que no final permanecemos unidos, calados, arfando apenas, beijando-nos, rindo e suando, mas sem qualquer vontade de nos afastarmos um do outro, de nos desengatarmos daquela fusão. Como se o desejo de união fosse tão forte que este momento inicial tem de permanecer e durar. Conversamos abraçados, entre cortando as palavras com novos beijos, e prometemos um ao outro que faremos amor e que nada nem ninguém o possa estragar ou corromper.

Quando lhe pergunto onde aprendeu a amar assim, Luisinha cora e vira a cara, envergonhada. Que pergunta! Uns segundos depois, ri-se e admite:

- Com a Ofélia.

Desato a rir. Ela fica séria. É verdade! Explica-me que foi a empregada, que já casara e enviuvara, e tivera três namorados antes do marido, que lhe ensinou as artes das intimidades femininas. Ofélia nasceu no Minho e por lá permaneceu até aos vinte cinco anos. Só depois de casar veio para o Barreiro, pois o marido empregara-se numa fábrica, e só aos quarenta teve de procurar emprego, confrontada com a morte do seu homem num acidente de trabalho.

Luisinha acrescenta: - Tem um filho, com oito anos.

O miúdo vive na terra, com os avós, Ofélia só o vê duas ou três vezes por ano. A vida é agreste por lá, mas ela prefere juntar dinheiro a trabalhar para os pais de Luisinha, para no futuro ajudar o filho, quando ele for mais velho.

Suspiro: é assim o Portugal dos campos, triste e pobre à superfície, mas inesperadamente saudável e ousado nas maroteiras.

Rindo, Luisinha continua: - Nos últimos anos, ia muitas vezes ao quarto dela, depois do jantar e pedia-lhe que me ensinasse o que fazer quando estivesse consigo.

- Dou um grito, feliz:

- Obrigado, Ofélia, mil vezes obrigado!

Rimo-nos mais uma vez, e depois Luisinha levanta-se e vai à casa de banho, às escuras, só com a ajuda da vela, e oiço a água a correr. Quando regressa, volta a pousar a vela no corredor. Traz uma toalha molhada e lava-me o sexo, retirando o sangue dela, enquanto me olha. É lindo. Por fim, declara: - Estou mesmo apaixonada por si.

Puxo-a para mim e digo-lhe que também estou. Depois, aos poucos, caímos na realidade, regressamos ao perigo que ambos corremos. Do seu lado, ela afirma-se, segura:

- Os meus pais não me vão procurar. Deixei-lhes uma carta, a dizer que ia fugir consigo, mas não disse para onde!

Eu não estou tão certo dessas facilidades. Acendo um cigarro, dou uma passa e digo: - O seu pai vai procurá-la, tenho a certeza. Não podemos ficar muito tempo escondidos, em Évora ou noutro local qualquer.

E também não vai ser fácil passar a fronteira.

Ela encolhe os ombros, cheia de convicção:

- Tenho a certeza de que conseguimos! Tenho dinheiro, algum. Eu acrescento: - Isso não é problema. Tenho os dólares, não cheguei a dá-los ao nazi.

Luisinha olha para mim, pensativa. Há coisas que não entendo.

Depois, questiona-me: - Se o Jack já tinha informado os americanos, porque quis ir às docas ter com o nazi?

Dou mais uma passa e respondo: - Quis fazer tudo ao mesmo tempo. Por um lado, informava os americanos. Por outro, acabava por entregar alguma coisa ao meu pai ... Foi um erro - ela confirma com um aceno de cabeça, e eu continuo: - Estava fascinado por aquele retrato. Não o vi bem da primeira vez, mas mexeu comigo. Era tão estranho ...

Dou mais uma passa, e prossigo: - A cara daquela mulher, a mãe de Hitler! Houve um momento em que aquilo se tornou muito importante, quase místico. Mas depois revoltou-me. Era como se ...

Luisinha, ainda nua, tem um arrepio e produz um ligeiro esgar de horror. Puxo-a para mim, abraço-a e comento:

- Era como se tivesse o mal do mundo nas minhas mãos. Então, subitamente ela declara que não quer voltar a ouvir falar naquele fantasma. Ainda bem que não viu o fantasma, nem quer ver! Prefere falar de amor, e coisas bonitas e eu beijo-a de novo. Abraço-a, e ela recomeça a fazer festas no meu sexo, a puxar por mim. Entusiasmada, Luisinha estica o braço até encontrar a mesa-de-cabeceira, tateia-a, descobre o interruptor da luz e acende-o.

O quarto ilumina-se e vejo que ela olha não para a minha cara, mas para o meu sexo. É meu ... Parece fascinada e vai recomeçar a beijá-lo quando, de repente, oiço a campainha da porta tocar, e aquele som estridente produz-me um arrepio na espinha.

Luisinha olha para mim, em pânico. Quem é? Aflita, lamenta-se: - Desculpe, acendi a luz, esqueci-me!

Mal o diz, desliga o interruptor, mas já é tarde. A campainha retine novamente, insuportável. Salto da cama e aproximo-me da janela, espreitando para a rua. Vejo quem é e um novo arrepio percorre-me. Ordeno a Luisinha que se vista e se esconda na casa de banho.

Estou ainda um pouco constrangido, Paul. Nunca pensei contar­te estas situações, ela era tua avó, há um certo respeito. Mas pediste detalhes e eu dei, desculpa-me.

- E quem era à porta?

Eram os traidores, Alice e o meu pai. Vinham à procura do tesouro e pareciam dispostos a tudo, Paul. E, com a tua avó escondida na casa de banho, eu nunca estivera tão próximo de um desastre, tão perto de perdê-la. Enfurecido com Alice, já nada queria com ela, mas seria trágico que as duas se cruzassem em minha casa.

O meu neto Paul sorri-me e diz: - Uma vez, já há uns anos, fui apanhado por uma antiga namorada a beijar outra rapariga, numa festa. Tinha vinte e três anos, era um puto palerma. Graças a Deus, aprendi e a minha mulher nunca me apanhou em situações dessas…

Meu querido neto, escusas de ser tão condescendente comigo.

Não se compara ao que eu passei, percebes? Isso não era amor, era outra coisa. No meu caso, era amor e qualquer amor tem sempre ao seu lado um abismo, no qual podemos cair facilmente. Imagina, pois, o meu alarme ...

 

Lisboa, 24 de agosto de 1945

Já é uma da manhã. Alice e o meu pai estão à porta de minha casa e, apesar do nervosismo que me consome, não deixo de notar que ele vem, como sempre, aperaltado, num fato cinzento muito bonito, com uma gravata azul-escura e um lenço da mesma cor na lapela, como se fosse jantar com a rainha de Inglaterra.

Porém, o seu olhar é feroz, frio e duro. Traidor. Pergunta, cerrando os dentes: - Boa noite, Jack júnior, podemos entrar?

A pergunta é retórica, eles já estão no corredor e avançam para a sala. A luz da casa de banho permanece a apagada Luisinha mantém-se em silêncio. Alice vê-se a mirar o fundo do mar e sorri. Boas memórias… Pensa que recordo o que vivi ali com ela, ontem à noite.

Noto que também se vestiu para a ocasião, com um fato preto, de saia rachada que lhe realça as pernas, uns sapatos de saltos altos e afiados. Traz o cabelo volumoso e apanhado de lado por um gancho, onde nasce uma flor de pano, a imitar uma rosa negra, e os seus lábios apresentam-se encarnados e brilhantes, decerto produto do último batom das lojas de Lisboa.

Iriam cear os dois depois de apanharem o tesouro, seria esse o plano?

O meu pai não perde tempo e quase grita: - Onde guardaste o tesouro?

Está irado, capaz de me saltar ao pescoço. Consigo ver a fúria a dançar nos seus olhos. Diz-me a verdade, ou então ... Oiço a memória de ameaças antigas, como há muitos anos, em Sydney ou em Hong Kong. Declara: - O alemão morreu e tu fugiste! Não é preciso ser um génio para perceber quem ficou com o tesouro!

Alice senta-se no sofá, mas o meu pai fica de pé. Eu estou à entrada da sala, a controlar o corredor, para não os deixar avançar para perto de Luisinha. Mas sinto uma fúria imensa crescer dentro de mim. De repente, aponto para Alice: - A culpa foi toda tua. Além de falares com o Francis, foste a correr bufar ao meu pai. Por vossa culpa, o Klop morreu!

Conto-lhes o que sucedeu: a matança mútua entre Manfred e o russo. Responsabilizo-os: a culpa é deles. Acuso o meu pai: - O senhor é que mandou o Klop lá ir, apoderar-se do tesouro!

Noto que o meu pai está confundido. Olha para mim, franzindo o rosto. De quem estás a falar? Pergunta, espantado: - Quem é o Klop?

Tenho a sensação de que ele está a ser genuíno, mas insisto que a culpa é dele, foi ele quem pagou ao russo para ir às docas.

De repente, o meu pai manda-me parar e solta um grito: - Jack júnior, eu não conheço nenhum Klop! Ou Tlop, ou Flop, o que seja! De quem estás a falar, do outro homem que morreu? Mas eu não sei quem é, nunca falei com ele!

De repente, faz-se luz na minha cabeça. O meu pai ignorava a existência de Klop, o russo é que sabia que o meu pai andava à procura daquele tesouro! Quando matou o alemão, por ordem de Ruth, Klop agarrou no baú porque deduziu imediatamente que podia ainda ganhar mais dinheiro, e não porque o meu pai o tivesse contratado previamente!

Mas, se essa é a verdade, então a traição de Alice ainda é mais profunda. Ela não é apenas cúmplice do meu pai, está também a trabalhar para Ruth Vanderbildt, a milionária! A cadeia de informação não funcionou como eu pensei, há duas horas: de mim para Alice, de Alice para o meu pai, deste para Klop e do russo para Ruth! Foi diferente. Alice informou o meu pai e Ruth no mesmo dia, e foi a milionária quem lá mandou o russo para matar o alemão. Depois de executado esse serviço, e por sua iniciativa, Klop iria vender o tesouro ao meu pai! Como eu sempre pensara, o meu pai não está envolvido na morte do alemão, o que, apesar de tudo, me deixa aliviado!

Olho para Alice, enquanto o meu pai espera explicações.

Ela bate as pestanas, como se estivesse a gozar comigo. O que foi? Irritado, eu pergunto-lhe: - Foste tu, não foste?

Ela volta a bater as pestanas, fingida. Não percebo. Coloca uma voz fininha e teatral: - Perdão?

Então, desfio em voz alta o novelo que existe na minha cabeça. Digo ao meu pai que tem de escolher melhor as pessoas que contrata. Acuso Alice de nos ter tramado aos dois, mas o meu pai defende-a: - Ela não teve culpa nenhuma, esteve comigo a noite toda!

Refiro o nome de Ruth Vanderbildt, a milionária. Noto que Alice descalça ligeiramente um dos sapatos e digo-lhe: - Não vai valer de nada atirares-me com um sapato à cabeça.

     Ela não desvia o seu olhar do meu, mas a volta a calçar-se. Estúpido. E eu continuo, digo que agora sei que Alice foi também contratada pela milionária. Conto ao meu pai o que se passou nesta mesma casa, na noite de ontem. Alice apareceu, muito chorosa, a dizer que tinha sido despedida por Francis, e eu comovi-me, falei-lhe no encontro de hoje nas docas. Com essa informação, ela foi a correr procurar a milionária, e a morte de Manfred ficou decidida nesse momento.

Só depois de falar primeiro com Ruth é que Alice foi ter com o meu pai, e acompanhou-o a partir daí, fingindo que nada sabia sobre a sentença de morte que já pendia sobre Manfred.

O meu pai observa-me, espantado. O que estás a dizer? Olha para Alice, procurando explicações, mas ela encolhe os ombros, como se não tivesse nada a ver com o assunto. É mesmo boa atriz. Então, o meu pai senta-se, confuso, e pergunta-me: - Mas não foi a PVDE que matou o alemão e o outro homem?

Eu dou uma pequena gargalhada e digo que eu estava lá, e vi o que se passou. Depois, pergunto-lhe quem lhe disse tal coisa, e ele olha para Alice, confuso. Eu rio-me, com desdém, e acuso: - A Alice nunca falou com ninguém na PVDE ... Nem ontem, nem hoje à noite! Pai, ela enganou-o, como me enganou a mim!

A PVDE estava lá, mas por outras razões, andam a vigiar as docas há meses ... A PVDE nem sequer deu um tiro! Os tiros foram entre o alemão e o Klop, o russo. O meu pai permanece silencioso, está momentaneamente abalado. Olha para Alice e depois para mim. Não é possível ...

Mas eu insisto: acuso Alice de andar a receber dinheiro dos americanos, do meu pai e da milionária.

- É ela a grande traidora desta história ...

O meu pai mostra-se perplexo, perdeu a iniciativa, não estava à espera disto. Pressentindo o seu abatimento e a sua fragilidade momentânea, afirmo que também foi um choque para mim perceber que todos me andavam a trair. Primeiro Klop e depois o meu pai e Alice, que Roberto viu em Santa Apolónia, juntos dentro de um carro.

Faço uma pausa para me servir de um whisky duplo e depois regresso ao local onde estava, para controlar o corredor, e acuso: - O senhor não confiou em mim. Pagou à Alice para me espiar!

Pergunto a ambos quando começou a aliança entre eles. Foi logo na primeira noite, no jantar no Hotel Palácio, quando eu me levantei para ir à casa de banho? Ou da última vez que os vi juntos, no Aviz, quando o meu pai mergulhou o nariz nas mamas dela?

Nesse momento, ele recupera o sangue-frio e a genica. Olha para mim, irritado. Não te atrevas a falar-me assim. Depois, protesta: - Tu não me ajudavas!

Levanta-se também e serve-se de um brandy. Depois, olha para mim. Se pensas que me dás a volta, estás enganado, palerma.

Permanece de pé e declara, apontando para Alice: - Estou-me nas tintas que ela trabalhe com todos, ou que durma com todos! Por mim, até pode fornicar com a milionária, estou-me a borrifar! O que eu quero é o tesouro do Hitler! Vais dizer-me onde está?

Ignoro a sua impetuosidade e afirmo: - O senhor não está a perceber! Eu fui lá para comprar o tesouro ao alemão, mas a Alice arruinou a minha iniciativa! Se não fosse ela, eu agora estava a entregar-lhe o tesouro a si!

Nesse momento, Alice levanta-se do sofá, irritada. Olha-me, ameaçadora. Nem penses que me derrubas ... Aproxima-se de mim, lentamente, e diz: - És um mentiroso, Jack Gil! Foste tu que ficaste com o tesouro! Quem sabe o que aconteceu nas docas? Só tu, os outros morreram! És do piorio! Agora que puseste a mão no tesouro toca de minar-me, dar cabo de mim aos olhos do teu pai!

Chispa dos olhos, zangada. Patife, safado! Parece genuína na sua fúria, mas eu conheço-a bem demais e sei que nela a teatralidade é sempre mais forte do que a verdade. Alice mente tanto que já não consegue distinguir a verdade da mentira. Porém, desta vez noto que há algo mais, ela está mesmo fora de si. Olha-me e parece que me quer matar. Dou cabo de ti! Levanta a mão para mim, mas depois hesita, arrepende-se, controla-se com esforço e volta sentar-se no sofá. Só depois grita: - Nem na cama prestas, o teu pai é dez vezes melhor do que tu!

O meu pai esboça um sorriso orgulhoso. Vês? Eu só estou preocupado com Luisinha, com o que ela pode estar a ouvir.

Vejo que o meu pai endireita as costas, altivo, e me repete a pergunta: - Jack júnior, onde está o tesouro?

Alice, prevendo que eu vou faltar à verdade, volta a gritar: - Não acredite no seu filho!

Nesse momento, olhe para Alice e replico o seu pestanejar de há pouco, fingindo que sou um tonto. Pergunto, imitando a sua voz doce: - Perdão?

Com um gesto brusco, Alice leva a mão direita ao sapato, retira-o num segundo e atira-mo à cabeça. Eu já estava à espera deste arremesso e desvio-me. Dou um pulo para o centro da sala, rio-me e provoco-a: - Queres tentar com o outro?

O meu pai manda-a acalmar-se e insiste para que eu diga o que se passou com o tesouro. Volta a sentar-se, para dar o exemplo.

Então eu minto-lhes: digo que não sei, que fugi no meio do tiroteio, que não faço ideia do que se passou com o pequeno baú de Manfred. Encolho os ombros: - Talvez o tenham atirado ao Tejo, sei lá. Eu só queria fugir dali, eles desataram aos tiros um ao outro! Corri e nem olhei para trás!

O meu pai está a observar-me com atenção redobrada. Estás a mentir…! Pergunta se eu sei o que era o tesouro e eu conto-lhe que vi umas relíquias, supostamente do Hitler. Um pistola dourada, com as iniciais dele, A. H., na coronha. Uma moldura com uma fotografia da cadela dele, acho que se chamava Blondie.

E uma outra moldura com o retrato da mãe do Hitler. Encolho mais uma vez os ombros, faço uma careta, declaro que eram umas bugigangas sem interesse nenhum, que no retrato a mãe de Hitler parecia muito feia!

O meu pai indigna-se, abrindo os braços:

- Não percebes o quanto valiam essas coisas? Meu Deus, és tão burro! Bugigangas, o retrato da mãe do Hitler? Tu fazes ideia dos milhares de dólares que isso vai valer daqui a uns anos? Jack júnior, és um perfeito idiota! Um pedregulho com olhos!

Já cá faltava a expressão do passado! Furioso, ele grita mais e, por momentos, penso que lhe vai dar uma apoplexia, mas depois acalma-se, até porque Alice insiste:

- Não acredite no seu filho!

Decidida, levanta-se do sofá e declara: - Tenho a certeza de que o tesouro está cá em casa!

O meu pai levanta-se também. Avança para mim, muito sério, e avisa: - Se me estás a mentir, Jack júnior, deserdo-te!

Nesse instante, oiço passos no corredor e avanço para a entrada da sala. Só que Luisinha foi mais rápida do que eu, e aparece subitamente, vinda da casa de banho. Há um silêncio geral -quando os outros a vêm e até eu estou surpreendido.

Ela parece uma atriz, saída diretamente dos filmes de Hollywood que tanto admira. Tem o cabelo despenteado, tombado para o lado esquerdo, como se estivesse a afastá-lo intencionalmente da cara, para poder beijar alguém. Além disso, apresenta-se descalça, e apenas de saia e soutien, com a parte central dos seios deliberadamente à mostra. Olha com um ar de desafio para o meu pai e para Alice e declara:

- O único tesouro que o Jack tem cá em casa sou.

É como se numa inesperada revelação de enorme capacidade teatral, ela se transformasse numa femme fatale, que transpira sexo por todos os poros e que culpa o meu pai e Alice por lhe terem interrompido um momento de luxúria, o que muito lhe desagrada.

Corri imensa lata, Luisinha pergunta ao meu pai: - Antes de deserdar o seu filho, posso amá-lo outra vez?

O meu pai fica completamente desarmado perante a tranquilidade e, sobretudo, a ousadia dela. Olha para mim divertido, pisca-me o olho e murmura:

- É muito melhor do que eu pensava. Estás de parabéns, Jack júnior.

Reparo que Alice empalideceu, está aflita, alarmada. Não é possível. Ela aqui, com ele ... Fazendo um enorme esforço para de recompor, e para reequilibrar a sua desvantagem evidente em relação à Luisinha, pergunta-lhe: - Por acaso, não encontrou uns brincos, na casa de banho?

São duas lágrimas ...

Luisinha estremece ligeiramente, mas aguenta o desafio e tenta sorrir. Diz que não. Alice sorri-lhe de volta e murmura: - Iria jurar que os deixei lá ontem.

Vira a cabeça para mim e olha-me com desdém. Mentiroso.

Depois, pergunta: - Não os vistes, Jack Gil?

Reparo que Luisinha empalidece mais a cada segundo que passa. Perdeu a sua vantagem inicial devido a este golpe sujo de Alice. Por mais que a sua entrada tenha impressionado todos, não tem nem o traquejo nem a amoralidade de Alice, por isso arrisca-se a sair dali mortalmente atingida.

Digo-lhe: Luisinha, a Alice é atriz de teatro. Tinha muito sucesso em Moçambique, embora por cá ninguém lhe dê o devido valor.

Não acredite numa palavra dela.

Ela olha-me, aflita. Ela está a mentir? Oiço Alice dar uma gargalhada vitoriosa e murmurar, dirigindo-se agora meu pai:

Eu não lhe disse que o seu filho era um bom mentiroso?

Mente quase tão bem como eu ...

O meu pai sorri, divertido. Depois, volta a perguntar-me onde está o tesouro, é o seu único interesse verdadeiro. Ao ouvi-lo, Luisinha intervém, recuperando a iniciativa. Diz que estava sentada à minha porta quando cheguei e jura que eu não trazia nada comigo. Muito calma, encosta-se à porta da sala, como se estivesse disposta a esperar, e declara:

- Por mim, podem revistar a casa toda, tenho muito tempo.

Não sei o que há debaixo da cama, só estive em cima, mas podem ir ver - provocadora, sorri para Alice e acrescenta: - Pode procurar também os seus brincos. Tal como o tesouro, aposto que não os vai encontrar.

O meu pai, ao ouvir Luisinha, fica carregado de dúvidas.

Olha para mim, desconfiado. Ela está a falar verdade? Eu garanto-lhe mais uma vez que não fiquei com o tesouro, nem sei dele, e o meu pai abana a cabeça. Observa-me, cada vez mais zangado. Não acredito. E explode em acusações: - Se não está aqui, é porque já o vendeste!

Levanta-se, enervado. Há maldade no fundo dos seus olhos.

Vais pagar por isto, traidor! Aponta-me uma vez mais o dedo indicador da mão direita: - Tenho a certeza de que me traíste, e vais ver o que te faço!

A sua ameaça assusta Luisinha, mas deito-lhe um olhar que a pretende tranquilizar. O meu pai avança para a porta e depois chama Alice. Só que esta está desorientada, parece absorta, noutro mundo. Não esperava que eu não tivesse o tesouro, nem que Luisinha estivesse aqui. Percebe rapidamente que perdeu tudo. Perdeu-me a mim e perdeu o dinheiro, pois, se não há um tesouro, o meu pai não tem de dividir nada com ela. O jogo está a chegar ao fim e ela vai acabar mais uma vez do lado errado, do lado dos derrotados. E a partir de hoje nem sequer vai poder contar com a minha ajuda.

O meu pai volta a chamá-la, e eu afasto Luisinha da porta, puxo-a para ao pé de mim. Alice permanece sentada no sofá, de olhar perdido. Mas, ao ver-me abraçar a Luisinha, olha-me, alarmada. Não me faças sofrer. Num segundo, passa do receio à fúria, e levanta-se, agitada, dizendo:

- Vais mesmo ficar com esta serigaita?

Nesse instante, tenho pena dela. Todavia, não mostro o que sinto. Provoco-a: a única frase que lhe digo é que não se esqueça do sapato. Reparo que está aos meus pés, dobro o joelho e apanho-o. Entrego-o a Alice e digo: - Boa noite.

Depois de se calçar de forma atabalhoada, Alice tenta uma manobra desesperada. Olha-me, de olhos muito abertos, angustiada. Não te quero perder! Abraça-me e aperta-me fortemente contra o seu peito, o decote a roçar-se na minha camisa. Tento afastá-la suavemente, mas ela grita: - Jack Gil, és o único homem que eu amo!

Afasto-a outra vez, mas ela não quer largar-me. Olha-me, aflita. Não me mandes embora! Depois, muda subitamente de expressão, parece furiosa. Mentiroso! Afasta-se e olha para Luisinha, apontando-me um dedo acusador: - Ele é um mentiroso. Na mesma cama em que tu te deitaste, deitei-me eu ontem!

Luisinha sorri levemente, com um certo desdém por ela, sente já que venceu esta batalha. Ergue as sobrancelhas, como se o destino de Alice fosse uma fatalidade. Se o perdeu, a culpa é sua ...

Contudo, Alice insiste, volta a dizer que me ama, que sou o homem da vida dela, que não sabe viver sem mim! Como eu não reajo, sente-se rejeitada. Enfurece-se, dobra-se e tenta descalçar o sapato. Quer atirar-mo outra vez e tem de ser o meu pai a envolver-lhe os braços, impedindo-a. Ela esbraceja, grita, mas o meu pai é forte e empurra-a para a porta.

Saem no meio de muitos gritos, ela continua a chamar-me nomes, «patife, aldrabão, mentiroso», e vamos escutando os seus erros pela escada abaixo, que só terminam quando meu pai a enfia finalmente no carro.

Na sala, Luisinha senta-se numa cadeira e eu decido ir buscar água à cozinha, mas no regresso passo pela casa de banho. Para urinar, mas também para investigar se os brincos de Alice estão por ali. Contudo, não os encontro e volto à sala.

Então, Luisinha pede que me sente ao lado dela e sorri-me. É um sorriso perturbador e perigoso, que me deixa imediatamente desconfortável. Estou à beira do precipício, é agora que vou cair. Então, ela abre a mão direita e apresenta-me os brincos de Alice. Pergunta: - Foi à procura disto?

Engulo em seco. Fui apanhado. Estou perdido. Fui traído por Alice, por KIop, pelo meu pai, mas também traí. Traí Luisinha e agora vou perder a mulher que escolhi, a mulher que desejo.

De que me vale mentir, negar a minha prevaricação?

Luisinha olha-me, investiga a minha alma. Não minta. E eu não digo nada.

Estamos num restaurante próximo do Guincho, a acabar o almoço, o meu neto e eu. Comemos um fresco robalo ao sal, maravilhoso, regado com um excelente vinho branco. O Paul está pasmado, a olhar para mim. Tem olheiras, vê-se que dormiu mal, é isso que fazem os bebés aos pais, roubam-lhes os sonos.

- A avó deu-lhe os brincos e não falaram mais sobre o assunto?

Fico calado, mas o meu neto está verdadeiramente incomodado! Acha que lhe estou a esconder alguma coisa e sinto-me na obrigação de o esclarecer.

A tua avó, querido Paul, disse-me que não queria saber o

que se tinha passado na véspera ou em todas as vésperas, mas que a partir daquele dia eu era só dela e que queria todos os meus amanhãs para ela e para mais ninguém.

«Agora o Jack é meu, só meu, e não quero saber o que se passou ontem», foram as palavras dela, Paul. Perdoou-me a infidelidade, dando-me a entender que só agora, que a nossa relação era carnal, é que ela exigia de mim a dedicação total.

- Que estranho, avô. Se fosse hoje, não seria assim ...

Tens razão, meu neto, as pessoas hoje têm muito menos sabedoria de vida do que a tua avó. Ela sabia que entre um amor novo e um amor antigo, os homens escolhem quase sempre o novo. Ora, acabado de nascer, um amor novo suporta com mais capacidade certas agressões do passado, principalmente se é correspondido e deseja durar.

É difícil, mas vale a pena. Como as dores de parto.

 

Lisboa, 24 de agosto de 1945

Roberto veio buscar-nos pelas sete da manhã e fomos de imediato para o Aviz. Harry dissera-me que ia para Espanha no dia 25 e queria pedir-lhe boleia, pois não tinha carro, nem podia obrigar Roberto a levar-nos até Évora, ou até à fronteira.

Embora soubesse que corria o risco de me meter na boca do lobo, pois o meu pai estava instalado no Aviz, conhecia os fundos do pequeno castelo, as portas para as cozinhas e para o escritório de Harry, e foi aí que Roberto parou o táxi e que esperámos pelo despertar do estabelecimento.

Só pelas nove consegui falar com Harry, que de imediato nos encaminhou para um quarto especial, próximo dos seus aposentos onde seria impossível o meu descobrir-nos. Contei-lhe discretamente sobre o iminente golpe contra Salazar, o que muito o entusiasmou. Harry era um bom amigo, não fez mais perguntas e depois deixou-nos dormir umas horas.

Contudo, eu estava muito agitado. Por volta do meio-dia, saí do quarto e avancei pelo pequeno corredor até à cozinha, pois tinha fome e queria pedir uma refeição. Ao chegar à copa, dei de caras com o barman, que se agitou muito, nervoso e cheio de tiques efeminados. Expliquei-lhe o que queria e ele prometeu servir-me depressa.

Oiço tocar à porta do quarto e deixo-o entrar. Quando estaciona o carrinho com as comidas junto à mesa, olha para mim, esperançoso. Quer mais alguma coisa? Bate as pestanas e diz: - Se desejar algo, estou ao seu dispor. Tudo o que precise ...

A sua frase carrega uma evidente insinuação, mas estou mal­disposto e enervado, dormi mal, a minha vida está virada do avesso e a última coisa para que tenho paciência é para um «mocinho» a sugerir-se. Portanto, respondo-lhe secamente: - Não se ponha com disparates, não sou dos da sua laia.

O rapaz cora, ofendidíssimo. Que bruto! De pronto me vira as costas e sai do quarto, agitado. Não penso nele nem mais um segundo, e começo a comer. Só depois de me satisfazer é que me sinto finalmente com sono. Deito-me ao lado de Luisinha, vejo-a dormir e estou contente por estar ali. Ela é a mulher certa.

Só acordo ao final da tarde e conversamos, mais calmos e serenos, mas ainda assim carregados de expectativas. O que estará a acontecer na Mealhada? Será que o golpe já se iniciou? As horas vão passando e não temos novidades. Só depois do jantar Harry vem ter connosco e nos conta que não ocorre qualquer agitação invulgar na cidade, não há notícias na rádio, em Lisboa foi mais um dia igual aos outros.

O que terá acontecido? Telefono para o escritório de Afonso Caldeira, mas ninguém atende. Por volta das nove da noite, o barman volta a bater à porta. Observa-me de esguelha, com um ar antipático. Parvo. Luisinha lança-me um olhar inquisidor mas eu encolho os ombros. Então, o barman informa Harry de que está à porta da cozinha uma mulher chamada Rosa, uma criada doméstica, que tem muita urgência em falar comigo. Levanto-me num pulo, saio do quarto a correr e vou direto ter com ela.

Rosa sorri ao ver-me aparecer. Que bom vê-lo. Mas no fundo dos seus olhos há angústia. Pergunto-lhe o que se passou, e ela responde:

- O senhor advogado foi preso pela PVDE!

Conta-me que, pelas seis da tarde, estava ela a preparar-se para sair do escritório, pois tinha acabado as limpezas, apareceu um grupo de polícias e surpreendeu uma reunião política, liderada por Afonso Caldeira. Estavam lá vários senhores, que pareciam esperar com muita ansiedade por notícias. Ficaram aterrados quando a PVDE chegou. A polícia começou com perguntas e depois entrou no gabinete do advogado e levou muitos papéis. Todos os que estavam na reunião foram levados para a sede da PVDE, para interrogatório, acrescenta Rosa. Antes de sair, acompanhando a polícia, Afonso Caldeira chamou-a e fez-lhe um pedido especial.

Rosa diz: - O senhor advogado pediu que o avisasse de que o golpe falhou e eles foram todos presos. E disse-me que o senhor Jack tem de fugir, pois também vai ser preso por causa da lista que lhe deu.

Rosa olha para mim, expectante. Percebe? Eu estou abatido, todas as minhas esperanças de uma mudança em Portugal acabaram de ruir. Rosa continua a olhar para mim, intrigada. Vai fugir?

Depois, pergunta: - Precisa de mais alguma coisa?

Agradeço a Rosa pela ajuda e peço-lhe que não se aflija, pois tenho a certeza de que o advogado vai ser libertado pela PVDE.

Pergunto-lhe se está com Roberto e ela encolhe os ombros. Tem de ser, não tenho mais ninguém.

Sorri-me e oferece-se:

- Se o senhor quiser, posso subir ao seu quarto.

Sorrio também. Rosa está sempre disponível para mim. Será só gratidão, ou será amor? No entanto, esse tempo já passou.

Abraço-a e explico-lhe que estou com Luisinha. Ela fica com um ar desiludido. Contra essa não posso nada.

De seguida, peço-lhe que chame Roberto e, quando ele aparece, explico a ambos que vou ter de fugir. Provavelmente, aquela será a última vez que me vêem. Com o crime nas docas e com o meu envolvimento no golpe não tenho chances, e por isso partirei de manhã. Abraço Roberto e ordeno-lhe que tome conta de Rosa. Ele está de olhos molhados. Ó doutor, que tristeza ...

Prometo escrever a ambos, a dar notícias, e depois abraço Rosa.

Preparava-me para lhe dar um beijo na cara quando ela me surpreende. Agarra-me no rosto com as duas mãos e beija-me na boca, com entusiasmo.

Quando me liberta, sorrio, embaraçado, e ela olha-me intensamente. Ai se eu pudesse ... Atrás dela, Roberto olha para o chão e coça a cabeça, aparvalhado. Depois, Rosa abraça-me mais uma vez, e então vira-se e desata a andar, sem olhar para trás, seguida pelo taxista.

Regresso ao quarto profundamente desanimado e partilho a informação com Luisinha e com Harry. O golpe da Mealhada falhou e eu vou ter a PVDE à perna, pois serei implicado naquela conspiração. Vendo-me aflito, Harry vai ao seu gabinete de trabalho e faz uns telefonemas, e quando volta confirma que as notícias são péssimas. Na Mealhada, à hora de almoço, vários regimentos iniciaram a revolta, mas rapidamente foram surpreendidos pela chegada de outros regimentos, o que é uma novidade sintomática e preocupante.

À medida que vamos falando, torna-se evidente para nós que alguém teve informações sobre o golpe antes de ele acontecer, e Santos Costa, o ministro da Guerra, reagiu de forma preventiva. O putch morreu antes de começar, logo a PVDE se pôs em campo para descobrir quem tinham sido os conspiradores.

Preocupado, Harry olha para mim:

- O grupo do seu advogado é dado como o principal responsável.

Portanto, é uma questão de tempo até eu ser detido. Isso, a juntar à trapalhada nas docas, é o suficiente para estar metido num grande sarilho. Terei de fugir, amanhã de manhã, não fico em Lisboa nem mais um dia. Ficar é perder tudo. Principalmente Luisinha. Sem mim, ela terá de ir para Évora sozinha, mas será presa fácil do pai e da mãe. Só se fugirmos os dois é que podemos ficar juntos.

Ela olha-me, preocupada. O Jack não pode ser preso! Mas faz um esforço para se mostrar forte, sem temores, e declara: - Eu faço o que o Jack decidir.

Dirijo-me à minha mala e retiro de lá um envelope, onde estão o passaporte e o visto dela. Mostro-lhos, garantindo que ninguém vai notar que são falsos, e que lhe permitem passar nas fronteiras sem problemas. Luisinha observa-me, extasiada e orgulhosa. O Jack consegue sempre tudo! Depois, abre o passaporte, admira a sua própria fotografia e exclama: - Pareço a Joan Fontaine, no Rebecca! Em morena, claro!

Harry sorri e eu encolho os ombros. Mesmo num momento de aflição, Luisinha não deixa de pensar em cinema. Continua a admirar-se com a fotografia, muito vaidosa da sua bela imagem, que mostra ao proprietário do hotel.

Olho para Harry e pergunto: - Acha que passa na fronteira de Elvas?

Ele está convencido de que sim, a falsificação é boa e, além disso, a PVDE de Elvas ainda não deve ter sido avisada. Congratulo-me mentalmente por o agente Sertório já não estar colocado nessa zona do Alentejo, caso contrário seria fácil reconhecer-me.

Quando estamos a fazer as últimas combinações para uma partida às oito da manhã, ouvimos bater à porta.

Porém, aquele não é a suave pancada do barman Luisinha. Olha para mim, alarmada. Será a polícia? então, a porta abre-se e à nossa frente aparece… o meu pai!

Há algo de surreal naquela súbita aparição. O meu pai está de pijama e roupão, e calça um par de chinelos. O pijama é azul­petróleo, às riscas brancas, e o roupão é bordeaux, com nuances, enquanto os chinelos são também azuis, mas escuros, quase pretos.

Na mão, o meu pai traz um charuto aceso e olha para nós, a sorrir, com cinismo. Mira-me com gozo. Apanhei-te!

Como nenhum de nós lhe diz nada, é ele o primeiro a falar.

Entra no quarto, fecha a porta e depois pergunta: - O gato comeu-vos a língua?

Estamos os três a olhar para ele, sentados nos nossos lugares. Luisinha arqueia as sobrancelhas, intriga da, e olha para mim.

O que é que ele quer? Eu estou mais interessado em saber como nos descobriu aqui, e Harry também, pois pergunta: - Quem o informou de que estávamos aqui?

Se o meu pai fosse boa pessoa, não entregaria o seu informador, mas não é, e por isso conta-nos que foi o barman, o «mariquinhas», como ele lhe chama. Ri-se para mim: - Pelos vistos, está muito desiludido contigo, Jack júnior.

Partiste-lhe o coração.

O meu pai relata que o barman, ao trazer-lhe uma bebida ao quarto, tinha comentado que ele era muito mais simpático do que o «filho», afirmação que o meu pai estranhara. Por isso, perguntou-lhe donde ele me conhecia, ao que o barman respondera que eu era muito bonito, um homem que não se esquecia facilmente, mas havia sido muito brusco e desagradável, ainda esta manhã o tratara mal, ele não percebia porquê ...

Ao dizer isto, o meu pai olha-me de soslaio. Deste em maricon? Comenta: - Até parecia que vocês os dois ...

Deixa a insinuação pairar no ar, maldoso, mas eu limito-me a suspirar sem paciência para o rebater. Luisinha olha para mim e ri-se. Ele está a brincar! O meu pai pisca-lhe o olho e murmura:

- Ela tem mais sentido de humor do que tu, Jack júnior.

Portanto, foi o ressentido barman quem lhe disse que nós

estávamos aqui. Dá uma baforada no charuto e depois pergunta­me:

- Estás à espera do golpe que falhou?

Intrigados, Harry e Luisinha observam-me, de sobrancelhas arqueadas. Ele sabe? Conto-lhes que o meu pai escutou uma das minhas conversas com Afonso Caldeira e até prometeu ajudar financeiramente. Ao ouvir isto, ele grita, irritado:

- Isso era se tu me tivesses ajudado, idiota!

Está agora no meio da sala e continua de pé. De pijama e chinelos, a fumar um charuto, é como se a intimidade da sua vestimenta fosse contraditória com o local e a companhia. Para mais, um homem irado de pijama e chinelos parece cómico, quase patético!

Mas ele não suspende o seu olhar recriminador. Traidor.

Ainda não perdoou a desfeita do tesouro, e aponta-me o dedo, sempre o mesmo dedo: - Eu disse que ias pagar pelo que fizeste!

Eu observo-o, espero que se explique, não senti qualquer retaliação dele até agora. Mas o meu pai está com um ar triunfante e isso é revelador. Examina-me. Foi a paga pelo que fizeste ... Dá mais uma baforada no seu charuto e exclama: - Pensavas que amanhã já não ia haver Salazar! Mas eu tramei-te ...

Nem quero acreditar no que estou a ouvir, não é possível, isto é que não! Porém, o meu pai está eufórico e exclama: - Se o Estado Novo caísse, tu já podias casar com ela, ficar em Portugal e nem eras preso pelos teus crimes! Não é verdade, Jack júnior?

Aterrado, escuto a sua tremenda fúria contra mim. Acusa­me de traição, de lhe ter roubado os tesouros, o retrato da mãe de Hitler, e declara então que se vingou! Hoje, às primeiras horas da manhã, enviou uma carta a Salazar e outra a Santos Costa a avisá-los do golpe da Mealhada, revelando quem eram os conspiradores, entre os quais me incluiu a mim e ao nosso advogado Afonso Caldeira. Na missiva a Salazar, escrevera que sentira ser aquela a melhor forma de lhe provar que não guardava ressentimentos do primeiro encontro. Apesar de reconhecer que correra mal, aquela carta era também uma forma de se penitenciar. Semicerrando os olhos, o meu pai murmura:

- Dei cabo do teu golpezinho e só com duas cartinhas ...

A violência do que ele diz é tal que fico transtornado, sem conseguir falar. Levo as mãos à cabeça e pouso os cotovelos nos joelhos, olhando para o chão. O meu pai denunciara-nos, por causa dele o golpe falhara, Afonso Caldeira fora detido pela PVDE e eu estava com a cabeça a prémio! E tudo isto só porque eu não lhe entregara o tesouro! O maldito retrato da mãe de Hitler, de que me desfizera, zangado com a deslealdade de Alice e do meu pai.

E este, traumatizado com a traição e a morte de Klop, continuava a perseguir-me! Por causa daquele maldito retrato, o meu pai vingara-se contra mim e bufara-se a Salazar! A mudança de regime, a esperança num futuro melhor, numa democracia sem censura, fora destruída pelo meu pai apenas para se vingar de mim, seu filho! A enormidade do que ele fizera não era aceitável.

Contudo, o meu pai está orgulhoso das suas atitudes e apresenta uma nova justificação: - Depois daquele fiasco inicial, enviar estas cartas foi uma bela ideia, para me reabilitar aos olhos de Salazar ... Eu preciso dele, preciso de falar com ele sobre os petróleos! Há muito negócio para fazer por aí, já falei com o Gulbenkian ...

Sempre de pé, olha para um estupefacto Harry e avisa-o: - Afinal, já não me vou embora. Vou ficar por cá. E você vai mesmo ter de me juntar com o velho Calouste! Quer uma percentagem no negócio? Eu ofereço-lhe!

Entusiasmado e totalmente alheio ao nosso triplo silêncio, o meu pai diz que estava para se ir embora no dia seguinte, até tem os bilhetes para o Clipper da Pan Am guardados no cofre do quarto, e iria levar com ele Alice. Mas, vistas bem as coisas, agora que o golpe abortara até preferia ficar, pois estava convencido de que, se Salazar o ajudasse como paga de ele ter denunciado os conspiradores, ainda podia ganhar rios de dinheiro com os petróleos!

Eu estou capaz de vomitar, de ódio e de fúria contra ele, mas o meu pai ri-se na minha cara. Não vales nada, és um verme! Dá mais uma baforada no charuto e proclama:

- Tu é que estás tramado, Jack júnior. Dois mortos nas docas, o envolvimento num golpe de Estado, a somar a um crime no currículo, uma vingança pela morte do Michael... Mataste um homem o ano passado e ontem mais dois homens morreram nas docas, e tu estavas lá. Terás sido tu a matá-los? A coisa está escura para o teu lado ... Eu, se fosse a ti, preparava-me, vais acabar onde mereces, na cadeia!

Harry e Luisinha, ao ouvirem o meu pai falar num crime do passado, olham os dois para mim, preocupados. De que está ele a falar? O meu pai observa-os, satisfeito, dá mais uma baforada no charuto e depois começa a andar para a porta.

Só quando ele pega na maçaneta para a rodar é que eu murmuro: - O senhor é um monstro.

Então, o meu pai volta-se para mim, de sobrancelhas arqueadas. O que disseste? Semicerra os olhos e rosna:

- Eu sou um monstro? Tu matas um homem há uns tempos, hoje matas mais dois, dormes numa noite com uma mulher, prometes-lhe amor e o futuro; na noite seguinte dormes com outra, prometes-lhe também amor e futuro a dois; trais o teu pai, trais o país que te acolheu ... E eu é que sou um monstro?

Luisinha baixa os olhos, angustiada. Harry olha para mim, preocupado. Eu continuo a enfrentar o terrível olhar do meu pai, em silêncio. E, para finalizar a tentativa da minha destruição, ele afirma:

- Jack, eu sempre soube que eras má rês. Desde os teus doze anos….desde que fizeste aquilo à tua mãe!

Agora o almoço acabou, e regressamos a casa, no carro do Paul, pela Marginal. É das mais belas estradas do mundo, esta, cheia de curvas, de rochas e mar e rio, mas o Paul está calado, a guiar, esmagado pelas revelações que escutou da minha boca.

O meu pai e eu odiávamo-nos, meu querido neto, mas ele era muito pior do que eu. Ele era capaz de me culpar, e eu nunca fui capaz de o fazer. Não sobre a minha mãe ...

- Ele culpava-o pela morte da bisavó Matilde?

Sim, Paul. Há anos que me acusava, mas nunca o dissera como disse dessa vez. Só que, Paul, a culpa não foi minha, como te vou explicar. Não fui eu que a matei, foi um acidente.

- Um acidente?

Sim, meu querido neto, foi um acidente. A acusação do meu pai era uma brutalidade e uma falsidade. Nunca o odiei tanto como depois de a ouvir, e quase perdi a cabeça e cometi uma loucura ...

 

Lisboa, 25 de agosto de 1945

Luisinha está a olhar para mim, atarantada, confusa com tantas acusações. De que está ele a falar? Eu contei-lhe que a minha mãe morreu com um aneurisma cerebral, e é verdade, mas o que o meu pai insinua é muito mais tenebroso. Harry também me observa, de sobrancelhas arqueadas. Ele é doido?

O meu pai permanece irado e tenso. Está corado, as veias do pescoço salientes, como cordas a serem esticadas. Há uma fúria absurda nos seus olhos e aponta o dedo para mim. Na sua mão continua um charuto, com a ponta parcialmente em brasa.

Repete o que disse: tinhas doze anos, Jack, e já eras má rês.

De repente, dou-me conta de que ele já não me chama Kack júnior, mas apenas Jack. E isso é um péssimo sinal, por mais estranho que pareça. Começo a tremer por dentro. Ele sente o meu pânico, o meu medo terrível e sorri, cínico. Depois diz, numa voz cavada e solene:

- Ela pediu-te que segurasses no escadote, lembras-te? E tu deixaste-a cair. .. Ela morreu por tua culpa, porque tu és mau, Jack, sempre foste má pessoa!

O golpe que me crava é profundo e sinto as entranhas a abrirem-se. O quarto do Aviz desaparece à minha frente e sou transportado para um tempo antigo, longínquo, num lugar distante. Eu sou um rapazinho de doze anos, estamos em Sydney, a nossa casa tem um alpendre, uma pequena varanda a dar para um relvado. Ontem, uma telha caiu com o vento e a minha mãe quer colocá-la no lugar. Foi buscar um escadote, pediu-me que eu o segurasse, subiu e de repente o escadote gira e, num mísero segundo, ela despenha-se. Há uma pancada surda, na varanda do alpendre, um gemido rouco, um corpo a rebolar, a estatelar-se no chão. Eu estou paralisado, a tremer, e vejo-a caída. Mãe, mãe, mãe ...

Não me consigo mexer, não consigo reagir, e ela também não se move, está inanimada. Depois, há um grito, olho para trás, o meu pai vem a correr, grita comigo, Jack ... Foi a última vez que me chamou Jack, nunca mais o voltou a fazer até hoje, a partir dali foi sempre Jack júnior, como se assim me castigasse, despromovendo-me, menorizando-me.

Mais tarde, há gente que chega, a minha mãe está na cama, no seu quarto, há um médico de óculos a examiná-la. Dá-lhe remédios, mas ela está mal, nunca mais sorri. No dia seguinte, o meu pai está à cabeceira e, quando eu tento entrar no quarto, fecha-me a porta na cara. Volto ao alpendre e choro, mas ele nunca me vem confortar. O médico diz, ao final desse dia, que ela sofreu um aneurisma cerebral, a causa foi a sua pancada no chão, ao cair do escadote, mas eu nunca deduzi que a culpa tivesse sido minha. Sei que não larguei o escadote, não o larguei, eu adorava a minha mãe, ainda adoro, não fui que a matei, não fui…

- Agora estou aqui de novo, no quarto do Aviz, e o meu pai já se foi embora, fechando a porta com estrondo nas suas costas. Quando somos assim acusados, em frente de pessoas de quem gostamos, sentimo-nos na obrigação de nos justificar. Conto a Harry e Luisinha a minha verdade despejo tudo o que me sufoca por dentro e me tira a paz à alma: a morte do alemão que assassinara Michael, o ano passado; o que se passara nas docas, na noite anterior; e o que me lembrava sobre o dia da morte da minha mãe, em Sydney, quando eu tinha doze anos.

Sei que eles acreditam em mim, que me compreendem, mesmo que não aprovem o meu crime do ano passado. Nenhum deles simpatiza com o meu pai, que acham um ser desprezível e ganancioso, sem palavra e maligno. Mas eu sou outra pessoa agora, o meu pai desumanizou-me, endoideceu-me de fúria.

Harry despede-se de nós, combinamos o encontro de manhã, às sete, e depois Luisinha fica a meu lado, mas não consigo sossegar. A meio da noite, ela adormece. Sinto receio de a ter desiludido, mas ela não parece abalada no seu amor. Antes de se deitar, abraçou-me e repetiu várias vezes que me amava, e que queria ficar comigo até ao dia em que morresse. Mas hoje eu não sei dormir. São cinco da manhã, é noite cerrada lá fora, o hotel está em silêncio, e eu levanto-me e visto-me sem fazer barulho. Coloco no cinto a minha faca Randall e vou até à escada interior do Aviz, aquela que poucos conhecem. Subo até ao primeiro andar.

No corredor, espero e escuto, parado, para ver se há movimento. Depois, caminho até à porta da suíte D. João II, onde o meu pai está instalado. Rodo a maçaneta e lentamente, sem fazer barulho, entro, fechando depois a porta nas minhas costas.

Durante um minuto mantenho-me parado, a examinara a salinha da suite que tem alguma luz, pois há um candeeiro na rua que está aceso, e as cortinas das janelas não estão corridas.

Depois avanço, até ao quarto onde o meu pai dorme. Oiço o seu ressonar, um barulho que sempre me irritou.

Espreito: o meu pai dorme de barriga para cima, e tem apenas um lençol fino a cobrir-lhe parte do corpo. O pijama está desarranjado, tem o ombro direito quase descoberto, como se alguém o tivesse tentado despir. Na sua cara, há um ar pacífico. Aproximo-me dele e agora estou ao seu lado, os meus joelhos tocam na sua cama. Levo a mão à faca Randall e viro-a para baixo, segurando-a no punho. Levanto o braço, procuro o local do coração do meu pai, onde pretendo cravar a minha faca. Estou calmo, certo do que quero fazer.

O meu pai é um monstro. Acusou-me de ter morto a minha mãe, mas é mentira. Não foi ele quem a matou, nem eu, mas foi ele que esteve na origem do acidente e não eu. Ele é que gritou o seu nome, ele é que chamou por ela. «Matilde».

Foi ao ouvir o seu nome que a minha mãe se voltou de repente, em cima do escadote, e de repente perdeu o equilíbrio, e de repente caiu, batendo com a cabeça na varanda do alpendre, durante a queda. Não fui eu que larguei o escadote, foi ele que a chamou, e por isso ela se desequilibrou. O meu pai é um monstro, não consegue aceitar que tudo não passou de um acidente, um terrível azar, e que a culpa de a minha mãe ter morrido não é minha nem dele. Mas, com o terror de se sentir culpado de a ter chamado, passou a odiar-me, a culpar-me, acusando-me de ter sido eu que larguei o escadote e a matei.

E isso eu não lhe admito. Pode fazer-me todo o mal que quiser, destruir-me a vida, lixar-me os amores, tirar-me o dinheiro, chamar-me palavrões, mas não acusar-me de ter morto a minha mãe. Não ela, ela é intocável, ela é a única mulher que nunca me fez mal, nunca me magoou, nunca deixou de me amar. Que ele tente quebrar a corrente que me liga à minha mãe, isso não lho permito.

Hoje, ela só existe nos meus sonhos, nas minhas memórias, mas mesmo assim é o único amor incondicional que Deus me deu neste universo de loucos, onde as pessoas se matam por causa de paixões políticas, por causa de dinheiro, por causa de retratos de mães de monstros.

A faca está nas minhas mãos, a trinta centímetros do coração do meu pai, que dorme, o seu peito enchendo-se de ar a cada vinte segundos, o seu ressonar enchendo o quarto de um som desagradável, hostil aos meus tímpanos desde criança. Mas a faca não desce, permanece levantada, como se eu fosse um Abraão, à espera de que chegasse um anjo e me impedisse de cometer um crime, não o de matar o filho, mas o de matar o pai.

E então o anjo chega. Lembro-me de que no meu bolso tenho o retrato da minha mãe, e sinto que ela fala comigo, que quer ver-me. Mudo a faca para a mão esquerda, levo a direita ao bolso e abro a carteira. Naquela estranha penumbra, vejo os olhos da minha mãe que me fixam e me dizem: Não Jack, não faças isso!

Ela era a única pessoa que sempre me chamava Jack, todos me tratavam de outras formas, exceto o meu amigo Michael e agora Luisinha, que dorme lá em baixo, noutro quarto como este.

Continuo a olhar para o retrato da minha mãe e a Randall do Michael começa a pesar cada vez mais na minha mão. Já matei um homem com ela, mas os olhos da minha mãe continuam a falar comigo: Não, Jack! Depois, a minha mãe sorri-me e diz: Vai ter com ela, Jack. A minha mãe mexe-me no coração, por dentro, e insiste: Ela ama-te Jack, não percas esse amor, não te deixes destruir. E então uma lágrima corre-me pela cara, fecho a carteira e coloco-a no bolso. O retrato da mãe de Hitler ia-me perdendo, mas o da minha mãe salvou-me.

Dou meia volta e saio do quarto, a tremer, sem sequer observar uma última vez o meu pai. Na salinha, olho para a parede e dirijo-me para lá. Coloco a faca no coldre, volto a enfiá-lo no cinto, atrás das costas, e depois desvio o pequeno quadro e abro a porta do cofre. Tateio o fundo e descubro o que quero: dois bilhetes de avião para o Clipper da Pan Am que sai, daqui a umas horas, de Cabo Ruivo.

Estamos à porta de casa do Paul e são quase cinco da tarde. Daqui a pouco sairemos, rumo ao Porto, onde vamos dormir hoje.

O meu neto está transtornado, acho que este episódio o abalou.

Precisa de se afastar um pouco de mim e, quando entramos em sua casa, ele vai a correr ter com a mulher e com o bebé.

Pega nele ao colo, sorri-lhe, faz-lhe festas, abraça-o, coloca-o em cima do seu ombro.

Está a amar, a procurar ser feliz, a recuperar a sua crença no mundo, posta em causa por tudo o que ouviu da minha boca.

Passado um bocado, olha para mim e sorri, e depois aproxima-se e diz, com o bebé ao colo: - Avô, não estou zangado, foi apenas um momento mau.

Entrega-me o meu bisneto para eu lhe pegar ao colo. Sento­me no sofá, recebo-o nos braços e olho para a sua cara. É parecido com o pai, parecido com a minha Luisinha, e ainda bem.

Oiço o Paul dizer, em voz baixa, para a mulher e o bebé não nos ouvirem, pois aquele é um segredo que só duas pessoas no mundo conhecem, eu e o meu querido neto, e não pode ser partilhado com mais ninguém: - Avô, ainda bem que a sua mãe o ajudou a fazer o que está certo.

 

Lisboa, 25 de agosto de 1945

Na gare de Cabo Ruivo reina uma grande azáfama e vejo vários grupos de passageiros a descerem a rampa de cimento, a caminho do Clipper, que está a flutuar no rio Tejo, encostado ao cais.

O hidroavião da Pan Am é um mastodonte, largo, alto e pesado, e visto à distância parece um hipopótamo, cujas asas abertas são semelhantes a uma cruz, que ele carrega às costas. Nunca viajei num aparelho destes, mas ouvi relatos que gabam a sua estabilidade e o seu conforto, e comenta-se em Lisboa que estas são viagens de milionários e milionárias, que até se vestem de smoking e de vestido comprido para as realizar, impressionando assim os indígenas.

Ao meu lado, Harry informa-nos :

- Vão fazer escala nos Açores, mas já não vos controlam os passaportes lá. Se passarem aqui, estão safos. Ele veio trazer-nos ao aeroporto e segue depois sozinho para Espanha. Apoia-nos, mas teme que a minha solução não funcione.

Como tenho o mesmo nome que o meu pai, Jack Deane, estou safo, mas não sei se o meu pai deu o nome de Alice à Pan Am, ou se apenas avisou que trazia uma acompanhante.

Observo a alfândega. Dois funcionários da companhia americana recebem os passaportes, examinando-os, bem como aos bilhetes, antes de recolherem a bagagem dos passageiros. Acredito que será fácil convencê-los, e temo bem mais o controlo policial, executado uns metros à frente, antes da rampa de acesso ao Clipper. Reparo que estão lá dois homens à paisana, provavelmente da PVDE, bem como dois polícias fardados.

Luisinha esforça-se por parecer serena, mas está ansiosa, e dou-lhe um beijo na testa, para a tranquilizar. Depois, murmuro­lhe ao ouvido que a amo. - Ela sorri-me. Eu também.

A Pan Am não levanta qualquer problema e entregamos as nossas malas sem complicações. Noto que atrás de nós estão dois casais, americanos, talvez dois industriais e suas mulheres, bem como um terceiro casal, que lidera uma família vasta, com cinco crianças e uma empregada.

Devem ser refugiados de luxo, que viveram em Portugal algum tempo, talvez num dos hotéis de Lisboa ou mesmo do Estoril, e que agora partem para as Américas, com um rasto de dezenas de malas atrás.

Harry estende-me a mão, a voz emocionada: - Adeus, senhor comandante.

Abraço-o, comovido. Devo-lhe muito e guardarei para sempre a sua amizade no coração. Digo-lhe que talvez um dia nos voltemos a ver, quem sabe se na América ou no Brasil. Ele sorri e confirma, com um abanar de cabeça:

- Na Quinta Avenida, um dia destes.

Despede-se de Luisinha com um beijo na cara e depois avançamos de braço dado, a caminho do controlo da polícia. Só uns metros antes reparo que um dos homens da PVDE que examinam os passaportes dos viajantes é o agente Sertório, que há uns tempos encontrei em Faro e me conhece. Preocupado, aperto um pouco mais o braço de Luisinha e ela mira-me de repente, franzindo o sobrolho. O que foi? Não tenho tempo para a esclarecer, pois o agente Sertório descobre-me, fica surpreendido e, quando chegamos próximo dele, comenta:

- Senhor Jack Mascarenhas, vai deixar-nos?

Sorrio-lhe, tentando mostrar calma e confiança, e digo-lhe que estou finalmente de partida, tal como o avisei em Faro. Vou deixar Lisboa de vez, mudando-me para Nova Iorque. Depois, sorrio-lhe e pergunto: - Foi transferido para aqui?

Sim, explica Sertório, sorrindo também, os olhinhos a brilharem. Tive sorte! É um trabalho mais agradável, diz. Estar no aeroporto é uma promoção para quem vem de Marvão e de Faro. De seguida, observa Luisinha e pergunta, com um ar levemente matreiro:

- É a sua esposa?

O agente Sertório sabe que eu não sou casado, mas a sua pergunta admite que isso possa ter acontecido desde que nos vimos em Faro, há um mês. Abano a cabeça, sorrindo-lhe: - É a minha noiva. Vamos casar na América:

Sertório ergue as sobrancelhas, e volta a olhar para Luisinha, decerto para tentar calcular mentalmente a sua idade. Porém, ao verificar o seu visto, repara que tem autorização do pai para casar e sair do país. Como é evidente, ele não desconfia de que tanto o visto como o passaporte são falsos, mas está curioso, pois conhece o nome dela, e pergunta-lhe: - O senhor general não veio despedir-se da menina?

Luisinha abre um enorme sorriso, como se estivesse encantada por ele saber quem é o pai dela. Mas depois tem a presença de espírito para encolher os ombros, fingir um ar pesaroso e explicar que que a mãe está acamada, atingida por uma súbita gripe de verão, e que a sua família irá ter em breve à América, para assistir ao casamento.

Sertório arqueia as sobrancelhas, intrigado. A menina vai já para lá? Não é nada habitual uma rapariga de boas famílias sair do país antes de se casar, na companhia do noivo, mas como ela é maior de idade, e tem a autorização do pai, Sertório decide evitar perguntas adicionais. Suspira e murmura: - A menina é que sabe ...

Nesse momento, pede ao outro agente da PVDE uma lista que ele segura na mão, e afasta-se um pouco, dizendo-me que se trata apenas de uma formalidade que tem de ser cumprida.

Contudo, ao examinar o papel, franze o sobrolho e olha para mim de esguelha. Ó diabo ... Devagar, regressa para junto de nós e diz-me que vou ter de acompanhá-lo. Aponta a Luisinha um banco corrido, onde ela se deverá sentar e esperar, e dirige-se a uma porta que abre, obrigando-me a entrar num pequeno gabinete.

Senta-se à secretária, pousa a lista na mesa e ordena que eu me sente também. Depois, olha para mim, incomodado. Isto não é bom. Engole em seco, e finalmente diz: - Senhor Jack Mascarenhas, temos um problema. O senhor está numa lista de estrangeiros que não podem sair de Portugal.

Atiro-me para trás, contra as costas da cadeira, fingindo uma enorme surpresa. Pergunto-lhe a que se deve tal infâmia, mas Sertório não sabe. Diz que não foi informado das causas e que, para as conhecer, terá de falar para a sede da PVDE. Ergue as sobrancelhas, preocupado. Ordens ... De seguida, pergunta:

- O que fez o senhor desta vez?

Conheceu-me em Marvão, em 1941, quando suspeitou de que eu estivesse a colaborar com contrabandistas. Depois, viu­me em Faro, numa casa de prostitutas. Sabe que eu tive ligações à espionagem britânica, mas, graças a Deus, ignora as coisas mais graves, como o crime do ano passado, e as mais recentes, como o que se passou nas docas. E, evidentemente, não faz a mais pequena ideia de que eu estou incluído no grupo dos conspiradores, que ontem tentaram um putsch contra Salazar. Sorrio, tentando parecer calmo, e digo-lhe que apenas vou levar para a América uma bonita mulher com quem me quero casar, não entendo a razão de estar na tal lista que ele tem pousada na secretária.

Ele sorri, um sorriso cúmplice de macho. Que rabo de saias ...

E comenta, em voz baixa:

- Lá bom gosto com as damas não lhe falta, mas não deve ser por isso que está na lista.

Num momento de lucidez de espírito, tento uma jogada adicional. Digo-lhe que o meu pai e eu temos o mesmo nome, Jack Deane, talvez alguém tenha feito confusão. Tusso e baixo a voz, digo-lhe que o meu pai teve uns pequenos problemas com o presidente do Conselho, Oliveira Salazar.

Ao ouvir este nome, Sertório fica hirto. Olha para mim, preocupado. Isso é bem mais grave! Abana a cabeça, insatisfeito e diz:

- Nesse caso, tenho mesmo de falar para a sede!

Leva a mão ao telefone e eu sei que, se ele falar com alguém da PVDE, é o meu fim. Tenho de o impedir e, de repente, lembrando-me de algo que ele me contou em Faro, pergunto-lhe:

- E a sua mulher, tem passado melhor?

O efeito é imediato. Sertório não esperava que uma pessoa como eu se lembrasse da sua mulher e fica ligeiramente comovido. Agradece-me a preocupação, mas revela que infelizmente o estado de saúde dela não melhorou muito. A sua «sócia», estranhamente é assim que ele fala da mulher, até está pior e os tratamentos são muito caros. De repente, cala-se, talvez um pouco envergonhado por ter dado a entender que não tem meios para os pagar.

Nesse momento, eu abro um ligeiro sorriso e digo:

- Talvez eu possa ajudar.

Num primeiro instante, Sertório finge que não percebeu o que eu disse, e volta a falar em hospitais e em remédios, mas depois encolhe os ombros, como se a doença da mulher fosse uma fatalidade que ele não pudesse vencer.

- É como se costuma dizer: o homem põe e Deus dispõe. Chego-me um pouco para a frente e baixo o tom de voz, dizendo: - Posso ajudar. ..

Ele ergue as sobrancelhas. Como? Então, eu coloco um maço de dólares em cima da mesa. São os que levantei no banco para comprar o retrato da mãe de Hitler a Manfred, mas que não cheguei a usar. Sertório observa-me, muito sério. Sempre em voz baixa, digo-lhe que ele pode ficar com os dólares, ir a um cambista trocá-los e comprar os remédios de que a mulher precisa, salvando-a e diminuindo o sofrimento dela.

Sertório hesita, dividido entre a ética de polícia e o desejo de salvar a esposa. Olha para mim, de sobrancelhas arqueadas.

Ó Diabo ... Depois, em voz baixa, pergunta: - O senhor não matou ninguém, não conspirou contra o regime de Salazar?

Fiz exatamente isso, porém coloco um ar tremendamente convicto e afirmo, já em voz mais alta: - Por favor, agente Sertório! Acha que eu sou um assassino ou um comunista?

Ele franze a testa e depois abana a cabeça. Isso não, não é.

Então, devagar, chega a mão à frente e toca pela primeira vez no maço de dólares. Aperta-o, investiga-o, vira-o de um lado para o outro, como se estivesse a brincar com ele. Depois, num segundo e com um gesto súbito, o maço de dólares desaparece de cima da mesa, e ele coloca-o no bolso do casaco.

De seguida, Sertório levanta-se, sem sequer olhar para mim, e dirige-se à porta. Abre-a, sai e eu vou atrás dele, sem proferir uma única palavra. Mal me vê, Luisinha levanta-se do banco, aflita, e olha-me. Tudo bem? Eu sorrio-lhe e oiço Sertório comentar com o outro agente a PVDE que eu tenho o mesmo nome o que o meu pai e isso gerou uma confusão.

Por fim, o polícia faz-me um gesto, indicando-me a rampa de acesso ao Clipper da Pan Am e diz: - Senhor Jack Mascarenhas, menina Luísa, espero que façam boa viagem.

Parámos num restaurante da auto estrada, a caminho do Porto, na AI, e Paul pergunta-me se estou nervoso por ir rever Alice.

Diz-me que falou com ela hoje à tarde, combinou tudo para amanhã.

Não, não estou. Fiquei foi bastante atrapalhado com as pessoas que encontrei a bordo do Clipper da Pan Am.

- Quem eram?

Nem sabes, querido Paul, vais adorar esta ...

 

Descemos a rampa de acesso ao Clipper e chegamos junto do hidroavião, onde duas bonitas hospedeiras nos sorriem e nos pedem amavelmente os nossos bilhetes, indicando-nos depois os respetivos lugares. Entusiasmada, Luisinha entra sem sequer olhar para trás, mas eu fico um pouco à entrada e viro-me para a gare.

Sertório observa-me, desconfiado, mas é evidente que agora não vai impedir-me de partir. Respiro fundo, aliviado, e entro no enorme avião. O Clipper é um portento e o seu interior está dividido entre as cabinas individuais, que podem ser de duas ou de quatro pessoas, e cujos bancos se transformam em camas durante a viagem; e a zona comum, semelhante à dos outros aviões, com filas de bancos dos dois lados.

O meu pai comprou uma cabina de dois lugares, e essas ficam na parte da frente do avião, pelo que temos de atravessar a zona comum, avançando pelo corredor central. Qual não é o meu espanto quando, já quase a chegar à nossa área, ouço alguém chamar-me, numa voz histriónica:

. - Jack, Jack!

Olho, para trás e para a direita, e verifico que, sentadas nos bancos corridos, estão as duas secretárias americanas, Pamela e Jennifer, enormes e bastante apertadas naqueles lugares. Ao verem-me, tentam levantar-se as duas ao mesmo tempo, no meio de enorme excitação, entrecortada com gritinhos, o que leva de imediato uma hospedeira a correr para junto delas pelo corredor.

Naquele momento, avisa a rapariga, não podem levantar-se, pois o comandante deu ordens para todos permanecerem sentados, enquanto os últimos passageiros sobem a bordo.

Protestando, lançam-me teatrais gestos de adeus e beijos com as mãos enluvadas, e prometem ir visitar-me mais logo, durante a viagem. Enquanto as duas raparigas se voltam a acomodar, prossigo, mas logo paro, pois Jennifer grita: - Adorámos o presente, matulão!

Volto a olhar para trás e fico siderado: ela ergue nas mãos o pequeno baú de Manfred, onde está o retrato da mãe de Hitler!

Foi para elas que eu enviei o cofre do nazi, acompanhando-o com um cartão simpático, como se fosse um presente meu, uma recordação divertida da nossa noitada. Por escrito, justifiquei-me: como sabia que elas gostavam de objetos dourados, enviava-lhes aquela pistolinha dourada!

E agora, numa inesperada coincidência, elas estão a bordo do Clipper, a caminho da América, e trazem com elas o tesouro de Hitler que o meu pai tanto desejou, que levou à morte de Manfred e de Klop, o retrato que infernizou a minha vida durante os últimos meses! Como é possível? Que ironia dos deuses! Baixo a cabeça e avanço, com o coração aos pulos.

Quando me sento, já no nosso compartimento, Luisinha pergunta: - Quem são aquelas?

Obviamente, não lhe revelo que passei uma noite inesquecível com as duas irmãs sulistas, digo-lhe apenas que são duas secretárias da Embaixada americana, amigas de Francis, e que foi para elas que enviei o pequeno baú com os tesouros de Hitler. Luisinha abre muito os olhos, espantada. Para elas? Pergunta porquê e eu balbucio uma desculpa: pedira-lhes que entregassem o baú a Francis, o homem do OSS, mas elas não o fizeram, não sei porquê.

Ficamos a olhar um para o outro, sem saber o que pensar.

Depois, decidido, afirmo: - Ora, que importa agora, quero lá saber: Aquilo não vale nada: Luisinha acalma-se e sentamo-nos nos nossos lugares, preparando-nos para a partida. Pela janela, admiramos o Tejo, mesmo ali ao nosso lado, tão perto que quase lhe podemos tocar. Quando o hidroavião inicia a manobra, auxiliado por um pequeno rebocador, damos as mãos. A sensação de que vamos sair de Lisboa, de que nos vamos afastar daquelas trapalhadas todas, do meu pai, de Alice, da recusa da família dela em aceitar o nosso casamento, enche-nos de excitação e contentamento.

Já no meio do rio, o hidroavião começa a acelerar os motores, e passados alguns minutos ganha velocidade em cima da água e levanta. Ouve-se um «bruaaa» na zona comum, sobreposto a gritos alegres de crianças, e rimo-nos, divertidos. É a nossa primeira viagem a dois e estamos felizes. Espreitamos Lisboa, vista do ar, e nesse momento a comoção assalta-me. Vivera ali tanto e agora vou partir, sem saber quando regresso.

Durante mais de seis anos, aquela foi a minha cidade, a minha vida, e sei que dificilmente vou passar por tantas e tão intensas aventuras como as que tive ali. Recordo as pessoas que amei e que perdi, sobretudo o meu amigo Michael, e admiro a cidade, com pena de a deixar para trás.

Então, digo a Luisinha que Lisboa devia chamar-se “Luzboa” pois é a sua luz que a distingue. Não há cidade com luz mais bonita, mais intensa, mais brilhante e mais límpida do que Lisboa.

Acredito que o Sol fez, há mil anos, um pacto com ela, para melhor nela se espelhar.

Quando ele nasce, como naquela manhã, parece que a cidade se incendeia, num magma alaranjado que se pousa nas janelas das casas, nos telhados, na pintura metalizada dos automóveis, e numa ou noutra nuvem que peregrina pelo céu a caminho de um outro qualquer lugar sagrado.

Mas dura pouco esse fogo, que só voltará ao fim do dia, pois o Sol levantou-se e impôs-se à cidade, lá no alto, como um orgulhoso deus do Olimpo, lançando sobre nós uma claridade branca e espetacular. As nossas sombras, como agora a do hidroavião, andam à nossa frente, como se nos fugissem, ou atrás de nós, como se nos perseguissem, mas nós nem reparamos nelas e na sua permanente frustração, pois estamos demasiado encantados, demasiado ofuscados com a «Iuzboa» que nos envolve, a mim e à minha amada.

Lá em baixo, Lisboa tem rio, mar dos dois lados, casarios descendentes, sete colinas cujos nomes e poiso raramente conseguimos apontar, tem o Bugio à frente, muita tralha atrás das costas e também um trabalhar lento e quase solene. Mas possui sobretudo uma luz mágica que a atravessa e que agora se reflete nos olhos negros e brilhantes de Luisinha.

Daqui de cima, do céu, parece que Deus é uma criança a brincar com uma bola de espelhos, correndo de um bairro para o outro, imaginando um novo jogo infantil, lançando mais um raio de luz que rasga uma avenida e nos ofusca durante um segundo divino ...

Em dias de inverno, sem essa «luzboa», a cidade murcha e os seus habitantes metem-se nas suas tocas, num amuo de adolescentes, e resmungam contra a chuva e as nuvens, enquanto essa pequena neurose os transtorna. Sem essa «luzboa», a vida da cidade suspende-se, como se sustivesse a respiração à espera de que aquela notícia desagradável passe depressa e que regresse esse deus das pequenas coisas que todos os dias se levanta em Lisboa, só para nos ressuscitar.

O que nos vale é que sabemos sempre que ela volta, a «luzboa». Se houve alguém em quem pude confiar neste anos que aqui vivi foi nessa luz que abraça Lisboa. Já aqui estava ao sétimo dia do mundo, já aqui estava quando Roma foi Roma, ou quando Portugal nasceu. Sempre cá esteve, mesmo nas várias vezes que o país ia morrendo, e aqui estará para sempre e até ao dia do meu regresso, a sua claridade límpida iluminando, à velocidade da luz, a própria eternidade. Que só ela, a «luzboa», terá o privilégio único de contemplar.

Eu não teria esse privilégio, pelo menos nos tempos mais próximos não voltaria, e por isso mantenho-me de olhos abertos, despedindo-me de Lisboa, observando-a em silêncio. Vamos calados, a primeira meia hora do voo, encostados um ao outro, como se recuperássemos as forças depois das emoções fortes das últimas horas. De vez em quando, uma hospedeira espreita para a nossa cabina, perguntando em inglês se queremos alguma coisa. Pedimos umas bebidas.

É a primeira viagem de avião de Luisinha, mas ela continua tranquila, como se fosse há muito uma passageira habitual daquele Clipper. Parece completamente satisfeita com a ideia de que está perto de mim e mais nada lhe interessa.

De repente, a cortina que separa a nossa cabina do corredor afasta-se e as duas secretárias americanas espreitam. Como estamos sentados e elas de pé, parecem ainda mais altas do que são, duas enormes girafas com dois horríveis e possidónios chapéus, enfiados na cabeça como se fossem capacetes, que as protegem de esmurrar-se contra a carlinga da aeronave.

As duas a rir, e ao mesmo tempo, perguntam: - Podemos?

Levanto-me, mas não há lugar para elas se sentarem, por isso obrigam-me a sentar de novo e ficam a falar de pé, rindo-se muito, encostadas á parede da cabina. Reparo que não trazem o pequeno baú e, por um segundo, alarmo-me com a ideia de que alguém pode roubá-lo. Mas elas exclamam, em uníssono: - Vamos para casal

Falam em simultâneo, com enorme excitação, e no meio daquela balbúrdia de gritinhos lá consigo perceber que finalmente receberam a ordem para regressar aos Estados Unidos, e que fizeram uma «loucura», comprando dois bilhetes no Clipper, em vez de irem de barco, como «as colegas».

Infelizmente, é com tristeza que revelam que, para obterem dinheiro, tiveram de vender algumas das peças da sua coleção de dourados, deixando para trás anos de esforço e de buscas nas casas de penhores da cidade, Pamela exclama, indignada: - A maior parte das coisas tivemos de enviar por barco! Era peso a mais para o porão do Clipper!

De repente, Jennifer faz uma careta malandra e olha-me. Matulão. Dá um gritinho e diz: - Mas trouxemos connosco o seu presente!

As duas parecem totalmente alheias à presença de Luisinha.

Entusiasmada, Pamela estica o seu longo braço e faz-me uma festa carinhosa na perna. Abana-se em êxtase e proclama: - O Jack foi um querido em ter-se lembrado de nós!

Ao seu lado, Jennifer, como que competindo com a irmã, estica-se também ela para a frente, toca-me igualmente na perna e desabafa: - Nunca o vamos esquecer, nem à sua pistolinha dourada. Engulo em seco, embaraçado. Tusso e justifico-me, mais a Luisinha do que a elas:

- Eu sabia que faziam coleção de peças douradas.

Elas riem-se ainda mais, quase histéricas, e Jennifer insiste: - Mas pistolinha dourada como a sua nunca tivemos nenhuma. Ao ouvi-la, Pamela dá uma estrondosa e luxuriante gargalhada, e explode: Nem vamos ter!

Depois, pisca-me o olho. Oh, oh! Por fim, mais calma, acrescenta: - Agora vamos voltar para os nossos maridos!

Luisinha, ao ouvir esta preciosa informação, decide intervir, e pergunta-lhes, curiosa: - São as duas casadas?

Elas abanam as respetivas cabeças em simultâneo, e Pamela explica que os respetivos cônjuges, soldados americanos, foram finalmente desmobilizados. Também vão regressar à América, na próxima semana, e elas irão recebê-los já lá, com fanfarra e pompa!

De repente, Jennifer revira os olhos para mim. Já era tempo!

E diz: - Caramba, já não os vemos há três anos!

Falam como se nós fôssemos obrigados a reconhecer a sua impressionante resistência, como se devessem receber uma medalha pelo seu esforço conjugal de guerra. Na realidade, o que me estão a dizer, por outras palavras, é que a sua estoica fidelidade aos maridos soldados só abriu uma exceção para mim.

Pamela lamenta-se, também pesarosa: - É tempo a mais para uma mulher ...

Mas, de repente, muda radicalmente de expressão e abre um enorme sorriso para mim. Aqui o matulão é que nos valeu ...

Volta a tocar-me na perna, agora apertando-a mais ostensivamente e murmura, como se fizesse uma confidência íntima:

- Você gosta mesmo de cães ...

Espantada, Luisinha olha para mim e franze a testa, intrigada.

De cães? Quais cães? Pamela leva a mão à boca, divertida, abafando uma gargalhada. Então eu digo, com um ar sério, para não me denunciar:

- É uma cadela. Na fotografia ...

As duas americanas explodem a rir, num quase delírio, que lhes ruboriza as faces. Pamela dá uma cotovelada na irmã e grita:

- Claro que é! Duas cadelas!

Luisinha está pasmada, sem entender patavina daquela excitação das americanas. Se alguma vez descodificou os significados daqueles remoques, nunca o disse. Indiferentes à sua presença, elas continuam às gargalhadas, até que Jennifer exclama, fazendo uma careta de horror: - Mas aquela mulher, que susto! Quem é?

Subitamente, olha para Luisinha e, como se tivesse cometido uma gafe, murmura: - Espero que não seja da sua família.

Obviamente, refere-se ao retrato da mãe de Hitler e tranquilizo-a: - Nada disso, nem a conheço! A moldura era bonita, por isso juntei-a às outras coisas!

Pamela imita a irmã, executando também um esgar, torcendo a boca: - Tem uma cara horrível. Ainda pensámos em deitá-la ao lixo, em casa.

Luisinha abre muito os olhos, siderada. O tesouro que o meu pai tanto desejara, o retrato da mãe de Hitler, estivera prestes a acabar no lixo da casa de duas secretárias da Embaixada americana!

Por fim, Jennifer remata:

- É parecida com a minha sogra, talvez lhe dê o retrato.

Por razões totalmente diferentes, largamos os quatro a rir.

Luisinha e eu estamos deliciados com a ironia da situação, com a possibilidade de o retrato da mãe de Hitler acabar no fundo de uma gaveta de uma sogra americana! Já as irmãs riem da perversidade de Jennifer. É evidente que ela abomina a sogra e quer humilhá-la com a oferta de um retrato de uma mulher tão feia quanto ela.

Interrompendo a chalaça geral que se instalou entre nós, nesse momento a cortina do meu compartimento abre-se novamente e, para grande surpresa minha, outra pessoa espreita lá para dentro. É Ruth Vanderbildt, a milionária judia. Ao ver-me cercado de mulheres pergunta:

- Inglês, sempre me disseram que era mulherengo, mas três ao mesmo tempo? Luisinha sente-se atingida na sua honra e diz de imediato, a sorrir para a americana:

- Quatro, se contar consigo.

Jennifer e Pamela dão uma gargalhada, divertidas com a ousadia de Luisinha, mas a milionária não apreciou a piada. Séria, olha para mim e informa-me:

- Vi-o a embarcar.

Examina Luisinha e acrescenta: - Disseram-me que a sua companheira de viagem se chamava Alice.

Ao ouvirem aquele nome, é como se um raio caísse na cabeça das duas irmãs americanas. Pamela e Jennifer olham para Luisinha com desagrado, e depois fazem um ar de desaprovação na minha direção. Que desilusão, matulão. Levantam-se e despedem-se à pressa, como se estivessem ofendidas e despeitadas comigo.

Lembro-me então de que não conhecem pessoalmente Alice, apenas sabem que era a mulher que andava com o chefe delas, Francis. A impressão que têm de Alice deve ser mesmo péssima, a julgar pelo comportamento de ambas. Luisinha sorri-me, divertida, e arqueia as sobrancelhas. Eu sempre disse que a Alice não prestava.

Já estamos no Porto, no Hotel Infante de Sagres. O meu neto e eu ficamos a dormir no mesmo quarto, acho que pela primeira vez na nossa vida. O Paul pergunta-me outra vez se eu estou nervoso por ir rever Alice, e eu volto a dizer-lhe que não.

Estamos a chegar ao fim desta história e eu digo-lhe que só falta explicar um acontecimento, tudo o resto já foi encaixado no seu lugar.

- O quê, avô?

A razão da morte de Manfred. Que ele era mau, que era nazi, que tinha estado em Auschwitz, já eu sabia. Mas o que eu ainda ignorava era por que razão Ruth Vanderbildt o queria morto, o que tinha ela contra Manfred.

Foi isso que ela me contou, na cabina do Clipper, a mim e à tua avó.

 

Oceano Atlântico, 25 de agosto de 1945

Ruth Vanderbildt permanece de pé, junto à entrada da cabina.

Olha para Luisinha e franze a testa. Quem é esta? Sinto-me na obrigação de as apresentar, e digo à milionária que a minha noiva Luisinha conhece a história de Alice, do meu pai, de Klop e de Manfred.

Ruth olha para mim, ainda desconfiada, e eu coloco no rosto um sorriso cortês e bem-educado e digo-lhe:

- Teve o que queria, Ruth. Apanhou o seu nazi - mantenho o sorriso intacto e acrescento: - Acho que me deve agradecer. Se eu não tivesse dito à Alice onde era o encontro com o nazi, nas docas, a esta hora, se calhar, a Ruth ainda estava em Lisboa. A milionária observa-me, ligeiramente contrariada. Convencido. Mas acaba por relaxar um pouco e depois afirma que aquilo que me vai contar não sairá nunca das paredes daquela cabina, e pede-nos que juremos que nunca repetiremos o que vamos ouvir.

Eu encolho os ombros e digo-lhe que desde que a história que se prepara para contar não envolva o meu pai, nem a mim, nem ninguém da família de Luisinha, não haverá problema.

Esta acena com a cabeça, concordando, e então Ruth começa a falar: - Em mil novecentos e trinta e seis, viviam em Munique um homem chamado Peter e uma mulher de nome Monika. Eram casados há muitos anos, ambos alemães, e tinham um único filho já adulto. Peter era um funcionário do Estado, que trabalhara para o Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão durante grande parte da vida. Porém, nos últimos anos a sua saúde degradara-se e tivera de regressar a Munique, a sua terra natal, com a mulher.

«Perto do Natal desse ano, Peter morreu, deixando Monika viúva. Como tinha estudos, ela empregou-se na Universidade de Munique e foi aí que conheceu um professor de Literatura e Poesia, chamado Simon, mais ou menos da mesma idade do que ela, um homem muito meigo e sereno, e que pouco a pouco a conquistou com a sua doçura.

«Um ano depois da morte do marido, Monika e Simon começaram a namorar. Ao princípio, fizeram-no às escondidas, achavam que ainda tinha passado pouco tempo depois da morte de Peter e não queriam ofender a sensibilidade de ninguém, sobretudo do filho de Monika.

«Já em meados de trinta e oito, o namoro tornou-se mais intenso e decidiram ir viver juntos, em casa de Monika, que era mais espaçosa e tinha uma luz muito bonita durante todo o dia. Simon mudou-se para lá e foram felizes durante uns

«Porém, um dia e de surpresa, o filho de Monika veio visitá-la e descobriu que ela tinha um homem a viver em casa e, pior do que isso, soube que esse homem dormia com a mãe, na mesma cama que antes era do seu pai, Peter.

«O filho ficou completamente transtornado, mas a razão não era apenas a memória ofendida do pai. A razão era outra. É que Simon era judeu, e o filho de Monika odiava-os. Saiu de casa furibundo e prometeu vingança, chamando nomes horríveis à mãe e piores ainda a Simon.

«Durante uns meses, nada aconteceu, mas perto do final de trinta e oito deu-se o desastre. Um dia, a Gestapo entrou em casa de Monika e prendeu o casal. Ela foi levada para uma prisão de mulheres, em Munique, interrogada durante dias e depois julgada por um tribunal sumário, sem direito a defesa, e condenada a quinze anos de cadeia, que cumpriria na mesma prisão onde estava desde o primeiro dia.

«Já Simon foi enviado para outra prisão, fora da cidade, e nunca o julgaram por qualquer crime, mas acabou por ser enviado, em quarenta e um, para o campo de concentração de Auschwitz, onde ficaria até finais de quarenta e três, quando foi executado numa câmara de gás, juntamente com muitos outros judeus. Os nazis nunca o deixaram ler um livro durante o tempo que esteve preso, mas, por vezes, permitiam que escrevesse cartas à família.

Nesse momento, emocionada, Ruth Vanderbildt acrescenta com um suspiro: - O Simon era meu irmão. Eu vivia entre a França e a América, com o meu marido, mas quando a guerra começou já estava a tentar libertar o meu irmão, escrevendo cartas, movendo influências.

Foi também por isso que fiquei em Marselha até quarenta e três, tentando salvar o meu irmão e de caminho ajudando muitos outros judeus, mais afortunados do que Simon, a fugirem dos nazis.

«Um dia, em finais desse ano, recebi uma carta de Monika, enviada da cadeia onde ela estava, em Munique. O que li deixou-me revoltada e profundamente triste. Mónica relatava que seu filho, agora um SS, tinha pedido que o colocassem em Auschwitz durante uns tempos, como oficial responsável da ligação aos médicos e tornou-se um dos mais fiéis apoiantes de Mengele, o criminoso mais odiado dos campos de concentração. Essa amizade permitira ao filho de Monika decidir que Simon devia ser exterminado, o que viera a acontecer.

«Na carta, Monika relatava que fora o próprio filho que lhe viera comunicar à cadeia, na única vez que a visitou, que fora ele a supervisionar a morte de Simon. Naturalmente, ela ficara profundamente transtornada com a visita do filho, mas sobretudo com as suas ações, a sua raiva contra Simon e contra ela.

Mas o que a derrotara totalmente fora a notícia da morte de Simon, a quem ela tanto amara. Deprimida e destruída por dentro, Monika despedia-se na carta, dizendo que nada mais queria da vida.

Ruth faz uma pausa e depois diz, em voz baixa: - O filho de Monika primeiro assassinou Simon, o amor da mãe, e depois matou-a de desgosto, dando-lhe a notícia da morte de Simon.

A meu lado, vejo que Luisinha está de lágrimas nos olhos, comovida. Eu olho para Ruth e pergunto: - O filho era o Manfred?

Ruth confirma com um acenar de cabeça e depois murmura: - Foi por isso que eu não descansei, enquanto não o encontrei. Em finais de 1944, Ruth soube que Manfred saíra de Auschwitz, e fora para Munique trabalhar no Führerbau, que Hitler visitava muitas vezes. E, quando a guerra acabou, disseram-lhe que ele tinha fugido. Foi visto na Suíça e estivera quase a apanhá-lo em Marselha, mas depois perdera-o de vista em Barcelona.

Foi por essa altura que Ruth descobriu que um intermediário do meu pai falara com ele em França. Veio a correr para Lisboa, pois tinha a certeza de que era em Portugal que todos os nazis acabavam, a caminho da América do Sul. É claro que, pelo caminho também procurava Mengele e outros nazis que estivessem em fuga mas tinha uma razão pessoal para encontrar Manfred, e foi isso que alimentou os seus esforços. Já em Lisboa, contratou Alice e Klop, falou comigo e vigiou atentamente todos os meus passos e os do meu pai. Ruth sabia que, mais tarde ou mais cedo, Manfred iria aparecer, talvez para tentar vender o tesouro, ou para fugir para a Argentina. E, quando soube onde ele ia estar, não hesitou. Logo que Alice a informou do meu encontro com o alemão nas docas, ela deu a ordem a Klop para matá-lo ali mesmo, em Santa Apolónia, pois temia que ele conseguisse fugir para a Argentina e ela nunca mais o conseguisse encontrar.

Ficámos os três calados, a remoer as nossas conclusões. Não há muito mais a dizer. Eu tive sorte, para mim as coisas acabaram bem, mas Klop não a teve. Digo-o a Ruth e ela olha-me, muito tensa. A culpa foi dele! Irritada, diz:

- Nunca se vira as costas a um nazi, mesmo que ele pareça morto! O russo devia saber isso!

Luisinha olha para mim e abana a cabeça, confirmando. Ela tem razão. Depois, murmura: - Nos filmes, também é assim.

E não há mais a dizer, é o que me parece, pelo silêncio que se instala entre nós. Ruth sente o mesmo e por isso despede-se e deseja-nos boa viagem. Mas quando abre a cortina do meu compartimento, para se ir embora, lembra-se de repente de uma última questão que pairava no seu espírito, volta-se para trás e pergunta-me: - E o tal tesouro? Encontrou-o? Eu sorrio-lhe e respondo:

- Está neste avião.

A milionária franze a testa, surpreendida. Neste avião? Espantada, pergunta: - No Clipper?

Dou a mão a Luisinha e declaro, sorrindo a Ruth: Sim, aqui ao meu lado. O meu tesouro é Luisinha.

 

Lisboa, início de junho de 1996

É verdade, Paul: Luisinha foi o meu tesouro durante quarenta anos, meu querido neto. Fomos muito felizes, vivemos por esse mundo fora, como dois saltimbancos ou nómadas, sem deixar raízes em lado algum, saltitando entre Singapura, Montevideu, Atenas, Nairobi ou Cairo.

O nosso primeiro destino foi Nova Iorque, onde chegámos no Clipper e vivemos uns tempos. Depois, fomos a Los Angeles passar uma semana, para ela conhecer Hollywood e os estúdios de cinema, e a seguir seguimos para o Rio de Janeiro, onde casámos e vivemos uns anos já com a sua situação regularizada. A primeira aquando da morte do pai, o general; depois quando a mãe morreu; e as outras vezes para assistir aos casamentos dos irmãos. Mas eu nunca voltei.

Nunca o tinha feito até ao ano passado, quando cá vim para o teu casamento, querido Paul. Como sabes, só tivemos um filho, e infelizmente não me dou muito bem com o teu pai, o afeto enorme que sentia pela minha amada Luisinha transferiu-se para ti, Paul, que agora guias o teu carro, nesta estrada do Douro, a caminho da casa de Alice.

Durante décadas, amei Luisinha e fui-lhe fiel. É verdade,

quando digo isto a alguém toda a gente torce o nariz, ou encolhe os ombros. Ninguém acredita que um homem pode ser fiel a uma mulher quarenta anos, mas eu fui. O que vivi antes sobrou­me para esquecer o desejo, sempre latente nos homens, de procurar mais mulheres. Luisinha amava muito e muito bem, oferecia sempre mais do que recebia, afeto e carinho e tudo o resto que uma mulher pode dar a um homem, e eu nunca tive qualquer razão para ir à procura de outra enquanto ela foi viva.

Infelizmente, morreu há onze anos e, apesar de eu estar já com oitenta e muitos, é evidente que sou homem, tenho pensamentos e desejos de homem, por mais raros que eles possam ser agora, comparados com a minha época de Lisboa. Às vezes, sinto falta de uma mulher e, talvez por isso (terá sido só por isso?) aceitei fazer esta viagem, vir ao Douro contigo à procura de Alice, essa mulher misteriosa e vulcânica que tanto me perturbou no passado.

Não sei nada sobre a vida dela desde 1945. Tu apenas me disseste que ela casou, teve dois filhos e cinco netos, mas já enviuvou e é rica, dona de umas adegas e de umas marcas de vinho.

Ainda bem, Paul, fico feliz por ela, mas não sei mais nada. A última vez que a vi foi quando saiu aos gritos de minha casa, a insultar-me, despeitada por eu ter escolhido Luisinha. Foi o meu pai que a forçou a sair e acabou com aquele encontro em minha casa, onde tantas traições aconteceram. Eu enganei Alice, o meu pai e Luisinha: o meu pai e Alice enganaram-me a mim; E a tua avó enganou a família, fugindo de casa.

Era preciso muita coragem para fazer isso no Portugal de Salazar, e ela tinha-a. Sabes, querido Paul, a tua avó era a melhor de nós todos. Melhor do que eu, com as minhas tentações e dúvidas; melhor do que o meu pai, com a sua imoralidade e a sua intempestividade; e melhor do que Alice, com a sua malícia e duplicidade. A melhor de todos, Paul, e tu sais a ela, és bom.

O meu neto fica embaraçado, muda de assunto: - E o retrato, sabe o que lhe aconteceu, avô?

Aparentemente, nos anos 60 ou 70, já não me lembro bem, o pequeno baú foi vendido pelos filhos de um soldado americano, que nessa data já tinha morrido. O comprador terá sido um milionário que fazia coleção de relíquias nazis e que depois, em finais dos anos 80, doou tudo à Academia de West Point.

É verdade, meu querido neto: a pistola dourada com as iniciais A. H., a moldura com a fotografia da cadela Blondie e o retrato da mãe de Hitler, bem como o exemplar da Time, estão hoje num museu, em West Point, e podem ser vistos pelo público.

Nunca lá fui e não faço ideia se o tal soldado era o marido de Jennifer ou o de Pamela, mas isso agora pouco importa. Continuo a sentir um desconforto grande em lembrar-me do retrato daquela mulher, Klara, pois foi daquelas entranhas que saiu um monstro terrível, que tanto mal trouxe à humanidade inteira, e isto repugna-me.

Para evitar pensar nela, recordo logo a minha mãe e o meu mundo equilibra-se. Foi sempre assim, a minha mãe, a saudade dela, o afeto que me invadia o coração quando pensava nela, era sempre o que me equilibrava. Nunca o meu pai, esse era uma perturbação constante. A tua avó Luisinha teve razão quando me disse, um dia em Los Angeles, à frente dos estúdios da MGM: - Tens de viver longe dele.

Assim foi. Nunca mais o vi nem falei com ele, mas depois ele morreu, a Luisinha também e só eu fiquei por cá, a arrastar as pernas, e não há maneira de me ir embora. Ainda tenho energia suficiente para me meter no avião, logo naquele horrível aeroporto de Heathrow, e vir até Portugal, aterrar em Lisboa, dormir no Hotel da Lapa, como há um ano, e depois meter-me no carro contigo, meu querido neto, a caminho do Douro, para procurar uma mulher que não vejo há cinquenta e um anos!

Sim, Paul, agora estou nervoso! O que lhe vou dizer? O que vou dizer a esta mulher que deve ter a minha idade? Por acaso é curioso, nunca soube a idade dela, mas deve ter mais ou menos a mesma do que eu, oitenta e tal. Seremos dois cacos velhos a barafustar com a Alzheimer um do outro, com a surdez um do outro, com a cegueira um do outro, com as dores, as maleitas, as partidas maquiavélicas de dois corpos que envelheceram e já não são nada, comparados com o que foram na época em que se amaram.

Já chegámos, já entrámos, a casa é bonita, a luz é espetacular, a vista para o rio aumenta a sala, e tu, meu querido neto, meu querido Paul, dizes que esperas por mim lá fora, no carro, e uma empregada de bata dirige-me para uma varanda, e quando lá chego vejo uma mulher, sentada, que tem dificuldades em levantar-se para me receber, e que continua bonita.

Damos um beijo na cara um do outro, sinto o cheiro que emana dela e é diferente, não é aquele de que me lembro, a alfazema ou a laranja, agora cheira a Chanel.

Ao longo da nossa conversa, vou-me dando conta de que Alice mudou. Não apenas na idade, isso é evidente, mas a sua identidade alterou-se, é hoje uma mulher a quem o que conquistou na vida deu uma segurança tranquila. Lembro-me do que ela disse um dia, sobre o desespero de não saber se no dia seguinte teria dinheiro para comer, e compreendo que ter casado com um homem rico e ter constituído família transformaram a mulher que eu conhecia.

A mim parece-me que eu não mudei tanto assim, mas ela é uma mulher diferente. Embora mantenha os tiques do costume.

Pergunta-me: Há quantos anos morreu a tua mulher?

Há dez. Ela conta que o seu marido morreu há nove, um ano depois de Luisinha, e acrescenta: - É pena que não me tenhas vindo visitar mais cedo.

Sorri e há naquele sorriso de Alice um vislumbre do que ela foi, mas agora já não é. Conto-lhe como foi a minha vida, o que fiz e o que não fiz, e ela apenas diz que tem pena de que eu não me relacione bem com o meu filho. Ela dá-se bem com os dela, dois rapazes, e também com os cinco netos, que a visitam sempre que podem.

De repente, olha para mim e pergunta: - Foste feliz, Jack Gil?

Digo-lhe que fui, gostei da minha vida, foi bem passada, embora nunca tenha vivido tantas aventuras como aquelas por que passei em Lisboa, no tempo da Segunda Guerra Mundial.

Alice sorri-me e afirma: - Foi o Hitler que nos separou.

De certa forma tem razão, foi Hitler e aquela guerra e tudo o que ela nos trouxe que nos separou, fosse da primeira vez, em 1943, fosse da segunda, em 1945. Mas não foi só isso, também fomos nós.

É por isso que lhe digo: - Não éramos feitos um para o outro.

Ela sorri e contrapõe: - Posso não ter sido grande mulher antes de casar, mas depois fui boa mãe e o meu marido nunca se queixou.

De seguida, olha para mim e pergunta: - És capaz de me perdoar tudo o que eu te fiz? Os enganos, as mentiras, as traições?

Respiro fundo, olho para o rio que corre à nossa frente, em baixo, para lá das ladeiras, das encostas carregadas de vinhas, onde nascem as uvas que tornam este local famoso no mundo. Será que vale a pena confrontá-la, perguntar-lhe se dormiu ou não com o meu pai e porque o fez, se dormiu ou não com Michael, se me traiu e quantas vezes? Nada do que ela diga, nenhuma negação ou confirmação, irá mudar o que foi a minha vida.

Então, abano a cabeça e digo: - Alice, esquece isso.

Decido contar-lhe o que era o tesouro que o alemão trazia naquela noite, o que lhe fiz e como ele acabou por ir parar a um museu americano, e reconheço que, tantos anos depois, parece um disparate tanta gente ter perdido a cabeça por tão pouco, termo-nos zangado tanto uns com os outros por causa daquele retrato de uma mulher tão feia.

Ela ri-se, divertida, e exclama: - Afinal também mentias, Jack Gil! Mentiste ao teu pai e a mim! Eu tinha a certeza de que tu tinhas ficado com o tesouro!

Encolho os ombros, olho mais uma vez para o rio tão belo que corre à nossa frente, e digo: - Nunca fui nem melhor nem pior do que tu.

Então ela sorri-me, pousa a sua mão na minha, carinhosamente, e diz: - Afinal, se calhar éramos feitos um para o outro.

Sinto um alarme crescer dentro de mim e acho que sei o que é. O amor alarma sempre. Alarma quando nasce, quando morre, ou quando renasce; alarma quando não é correspondido, mas também quando é; alarma quando somos novos, ou se somos velhos; alarma ontem, hoje, amanhã ou mesmo quando já passaram mil anos desde que acabou.

O amor alarma sempre, mas mesmo assim ficamos ali os dois, de mão dada, a sorrir e a olhar o rio, que corre à nossa frente, alheio a nós e ao que acabámos de dizer, e que correrá sempre, mesmo daqui a mil anos.

 

                                                                               Domingos Amaral 

 

 

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