Biblio VT
Series & Trilogias Literarias
De uns tempos para cá, os aldeões espalhavam rumores sobre a Lua de Sangue, que estava perto de acontecer e muitas jovens começaram a desaparecer em todas as vilas e cidades, inclusive dos reinos do outro lado do mar. As bruxas estavam procurando alguém cujo sangue pudesse libertar Breedja, uma Bruxa cruel que havia sido lacrada no interior da Montanha do Caos, numa tentativa de conter seu imenso poder e acabar com todas as atrocidades que cometia.
Minha irmã adotiva, Ellyn trabalhava numa instalação de cura na cidade de Mirlut do outro lado da floresta e vinha para casa tarde da noite a cavalo, ela tinha dezenove anos, mas pela falta de tempo, não consegui lhe ensinar a usar armas, ela não sabia empunhar uma espada, andava apenas com uma pequena adaga de aço-luz que havia comprado para ela.
Normalmente eu não conseguia chegar das caçadas a tempo de buscá-la, ficava até de madrugada caçando, quando chegávamos, ela já havia preparado a comida e estava dormindo. Mas com esses boatos sobre as bruxas e o retorno de Breedja, preocupava-me e temia por sua vida. Em nossa simples rotina diária, mal sabia eu que estava prestes a descobrir algo que mudaria nossas vidas para sempre.
1
Os sons da floresta
O outono estava prestes a acabar e já trazia com ele o frio que entrava pelas brechas largas da casa de madeira antiga que havia sido construída pelo meu bisavô, minha família vivia ali a mais de setecentos anos, e desde sempre eu achava que estava na hora de partir. A cabana antiga ficava no meio da floresta de Graistar, a floresta mais perigosa do reino Oeste. Minha família descendia de uma linhagem de caçadores e vivíamos de forma humilde, com o que ganhávamos pelos serviços difíceis que quase ninguém se atrevia a aceitar e com o dinheiro que Ellyn ganhava como herborista na instalação de cura em Mirlut.
Numa madrugada cinzenta e fria, estávamos Niesen, meu pai e eu em volta dos restos de uma fogueira tentando nos manter aquecidos, havíamos preparado armadilhas para capturar um kelpie no rio, num ponto onde vários viajantes e alguns coletores haviam sido atacados. Aquele também era o caminho que Ellyn pegava todos os dias para ir e voltar do trabalho também, acompanhada apenas por uma raposa cinzenta que vinha noite sim, noite não para lhe fazer companhia, quando Ellyn chegava em casa, ela sempre esperava a raposa desaparecer na floresta antes de entrar na cabana, Ellyn a havia apelidado carinhosamente de Nuvem.
Ellyn havia tecido uma rede com pele de afogador, o que tornaria a captura do kelpie fácil se ele caísse na armadilha. Porém aconteceu algo que não esperávamos naquela madrugada, enquanto meu pai enchia a cara de vinho depois de muito o alertarmos sobre o perigo de beber numa hora como aquela, avistamos um estranho brilho vermelho vindo em nossa direção do fundo da floresta.
– Merda, Fergus! Acho que é um Lobisomen! – Niesen ficou branco como uma vela e se levantou agarrando seu arco. Meu pai se levantou balançando pesadamente para os lados e sacando sua espada quase acertando Niesen com um movimento desajeitado.
– Deveria ficar sentado ai, velho! Antes que nos atrapalhe mais do que se tentasse ajudar! – Ralhei, ele me olhou de cara feia, coçou a cabeça e ajeitou suas calças que estavam caindo.
– Não seja idiota, moleque! Acha que tem experiência para enfrentar um mostro como esse sozinho? Guarde esse machado que eu vou te mostrar como se faz! – A bebida não o deixava corajoso, apenas o deixava mais arrogante, agressivo e imbecil do que de costume, era por isso que Manien e Ellyn não o deixavam entrar em casa quando bebia.
– Não deveria tentar enfrentá-lo sozinho! – Respondi enquanto ele andava em direção ao par de olhos vermelhos na escuridão da floresta.
– Fique aí e vigie a armadilha, se o Kelpie escapar, perderemos a recompensa! – Ralhou ele afastando-se.
– Isso não vai dar certo! – Disse Niesen com a voz trêmula, seus olhos estavam fixos no par de olhos vermelhos na floresta. – Devia ir ajudar o mestre Lucian! – Niesen ainda o chamava de mestre, mesmo tendo sido eu que lhe ensinei quase tudo sobre caça.
– Esqueça! Preste atenção apenas à armadilha, não foi o que ele nos mandou fazer? Afinal, está com uma adaga de prata, pode matar o lobisomem! – Respondi dando de ombros.
Os cavalos estavam agitados e um vento incomum começou a soprar espalhando as brasas da fogueira por todos os lados. Um grito agonizante seguido de um uivo terrível veio do lado que meu pai havia ido para tentar matar o lobisomem.
– Merda! – Resmunguei levantando-me rapidamente e correndo em direção a floresta. Ao me aproximar, vi meu pai caído no chão com o ombro parcialmente estraçalhado pelas mordidas do lobisomem e a criatura estava abaixada sobre o braço que meu pai havia arrancado dele com a espada. Girei o machado e arranquei sua cabeça antes que ele tentasse nos atacar.
– Ei, velho! Olhe para mim! – Falei dando uns tapas em seu rosto pálido.
– Ele era mais rápido que os outros... – balbuciou ele revirando os olhos e os fechando.
– Temos que levá-lo de volta para a cabana! – Assobiei, os cavalos vieram trotando ao nosso encontro, tirei meu pai do chão puxando-o rapidamente e jogando seu peso em cima do cavalo, marcando seu pelo cinzento com o sangue que escorria da ferida que o Lobisomen havia feito.
– Não é melhor eu ficar e vigiar a armadilha? – Perguntou Niesen olhando assustado para meu pai.
– Não vai conseguir capturar um kelpie sozinho mesmo com a rede de Ellyn! – Falei montando no cavalo que reclamou por causa do grande peso que carregaria, Niesen xingou então pegou o outro cavalo e me seguiu. Adentramos na parte mais densa da floresta, indo em direção à cabana onde poderíamos tratar dos ferimentos de meu pai.
As sombras longas e escuras das árvores contra a lua baixa indicavam que faltava menos de três horas para amanhecer. Corremos pela floresta evitando os obstáculos para que a ferida não sangrasse ainda mais, já estava horrível daquela forma e não queria piorar a situação. Avistei a cabana ao longe, a lamparina em frente à porta estava acesa, indicando que Ellyn nos aguardava acordada.
Fiz com que o cavalo aumentasse a velocidade mesmo sob os relinchos dele. Parei em frente à porta, com ajuda de Niesen desmontamos meu pai do cavalo, chutei a porta fazendo um barulho muito alto e o levamos para dentro, o sentamos na cadeira em frente a lareira, então fui até a cozinha pegar água quente no fogão à lenha e um pano para limpar a ferida.
– Fergus? O que aconteceu? – Perguntou Ellyn se aproximando de nós, de onde ela saiu eu não sei, mas ela não estava em nenhum lugar à vista quando nos aproximamos. Seus olhos me analisaram antes de olhar para nosso pai e ver o que havia de errado, com o horror estampado no rosto, ela tomou o pano e a vasilha com água de minhas mãos, eu rasguei o manto que ele usava e a camisa também para que ela pudesse trabalhar. Ellyn começou a cuidar dos ferimentos com habilidade treinada, ela era uma das melhoras curandeiras de Mirlut, se não a melhor.
– Um lobisomem nos atacou enquanto esperávamos o selkie aparecer! – Falei cortando a parte da idiotice que meu pai havia cometido ao querer enfrenta-lo sozinho, sabia que ela me daria uma chamada por não tê-lo ajudado para evitar aquilo. Ela mantinha os olhos fixos na ferida que limpava cuidadosamente. Ele rosnava e grunhia conforme o pano limpava os retalhos de pele e nervos em seu ombro.
– Pegue as agulhas e o rolo de linha de pesca em cima do armário da cozinha, Niesen! – Ellyn ordenou à Niesen sem tirar os olhos de meu pai, Niesen estava esverdeado e não recusou uma oferta para tirar os olhos daquilo.
Lucian havia começado a espumar pela boca e seus olhos estavam com um aspecto de infecção em volta.
– É muito incomum um ataque de lobisomens nessa região, Fergus! – Disse ela tentando estancar o sangramento. Suas mãos eram hábeis no trato com feridos e doentes, mas ela não parecia estar conseguindo consertar aquela bagunça. O sangue não parava de escorrer e sua cor estava ficando cada vez pior.
– Era para estar assim? – Perguntei sentindo meu estômago embrulhar.
– Acho que ele está começando a mudar! – Ellyn deu um passo para trás, ela me encarou nervosa, as mãos ensopadas de sangue penderam inertes ao lado do corpo quando ele começou a se debater e espumar pelos cantos da boca.
– O que está havendo aqui? – Perguntou Manien, minha mãe, descendo as escadas. Ela devia ter acordado com a barulheira que ele estava fazendo ao se debater sobre a cadeira. Quando Lucian ouviu sua voz ele parou de se debater e virou a cabeça lentamente em sua direção, seus olhos haviam passado de um castanho escuro para um tom de vinho e seus dentes haviam ficado amarelos e estavam perfurando seus lábios. Ele se levantou num pulo, saltando em direção a Manien que havia parado assustada no meio da escada e o olhava apavorada.
– Mãe, cuidado! – Gritou Ellyn movendo as mãos como se fosse segurá-lo antes que ele a alcançasse. Nesse momento um lampejo prateado iluminou o ambiente, meu pai bateu pesadamente no chão com várias estacas de prata atravessadas em seu corpo. Meus olhos não conseguiam sair dele, do sangue escuro que manchava o assoalho e escorria pelas frestas da madeira, porém o grito assustado de minha mãe me fez sair do choque. Ao olhar para onde estava Ellyn, vi seus olhos prateados fixos no corpo ao chão os cabelos que antes eram castanhos estavam em um tom branco acinzentado assim como a pele, onde pequenas marcas marrons iam dos dedos aos ombros, e o pingente de cristal que sempre carregava em seu pescoço, estava brilhando vermelho.
– Bruxaria... – sussurrou Niesen olhando para Ellyn. – Sua irmã é uma bruxa! – Ele me encarou apavorado antes de sair da cabana correndo e berrando agitando os braços como se quisesse afastá-la. Os olhos de Ellyn voltaram ao castanho normal e ela soltou um soluço e cobriu a boca com as mãos.
– Me...me desculpe! Eu só queria te proteger! – Disse ela dando um passo na direção de Manien que a olhou com medo e subiu as escadas correndo, ouvi a porta do quarto batendo com força e o som de móveis sendo arrastados no andar de cima, na certa ela estava bloqueando a porta.
– Irmão! Por favor, eu não queria fazer isso, não queria matá-lo! Mas ele ia machucar a mamãe! Você acredita em mim, não acredita? – Perguntou ela olhando-me assustada, olhei para suas mãos e seu rosto manchados com o sangue dele e sem responder, virei de costas e saí de dentro da cabana. Só queria um motivo para sair dali, então fui recolher lenha para acender uma fogueira e queimar o corpo antes que atraísse alguma besta pior do que o Lobisomen que o atacou.
Ellyn havia sido deixada no meio da floresta quando era apenas um bebê de algumas horas de nascida, ainda estava suja de sangue e com o cordão umbilical quando a encontrei enrolada em um pelego de ovelha e um manto de linho num pequeno amontoado de folhas, era um dia de inverno antes da primeira noite da Lua de Sangue, eu a encontrei enquanto recolhia galhos para ascender a lareira, minha mãe havia perdido uma criança que nasceu sem vida, então levei aquele bebê para casa para que minha mãe cuidasse dela, para mim havia sido um presente dos deuses para ela. Será que uma bruxa havia abandonado sua filha para morrer? E eu havia cometido um erro ao salvá-la?
Virei para trás na direção da cabana a tempo de ver Ellyn, com uma sacola atravessada nos ombros, correr em direção a floresta e desaparecer sem olhar para trás. Nunca me arrependi tanto de ficar em silêncio quanto naquele momento em que ela me perguntou se eu acreditava nela e eu não respondi que sim, que estava apenas chocado e abalado demais para abraçá-la e dizer que estava tudo bem e que eu teria feito o mesmo por elas.
Foi difícil convencer Niesen que Ellyn não era perigosa, queria sua ajuda para encontrá-la, ela estava desaparecida havia uma semana, a raiva de Manien já havia passado, ela finalmente havia entendido que Ellyn não sabia que tinha poderes e os havia despertado afim de salvá-la de meu pai. Ele sempre foi um homem desprezível que as feria sempre que tinha oportunidade, não fazia ideia de como Ellyn não havia o matado antes, como havia o suportado por tantos anos.
Reuni alguns caçadores das vilas próximas e fomos em direção a floresta na subida da montanha ao Sul de Mirlut onde havia uma estreita passagem que levava as planícies de Merine e a uma vila pequena de pescadores, talvez ela tivesse buscado abrigo naquela vila já que o inverno se aproximava. O frio estava cortante, a geada havia caído durante a madrugada e coberto as folhas vermelhas no chão da floresta, o som do rio me deixava um pouco menos ansioso com o caminho que tomaríamos para chegar à Vila.
– Não creio que a encontraremos com vida, Fergus! A passagem entre a montanha é cheia de feras que atacam os viajantes, se bem que ela é uma bru...
– De bico fechado, Niesen! – Rosnei, ele havia começado a reclamar cedo demais hoje, mas os outros homens não podiam saber que Ellyn era uma bruxa, ou ao invés de um resgate, teríamos uma caçada.
As bruxas não eram bem aceitas por aqui, eram associadas aos demônios e monstros, todas as vezes que aconteciam ataques as cidades, eles culpavam as bruxas, dizendo que elas ordenaram os ataques. Os mestres Magos vindo dos outros continentes nos ensinaram as técnicas para caçar as feras e defender as cidades de seus ataques, eles nos ajudaram muito trazendo armeiros e conhecimento sobre remédios e poções que nos ajudavam muito em caçadas. Ellyn havia estudado com um dos magos para ser uma curandeira, não fazia ideia de como ela conseguia conciliar os estudos e o trabalho, já que ela trabalhava em dois turnos para não deixar faltar nada em casa.
Continuamos a cavalgar pelo caminho semicongelado e torcia para encontrar Ellyn sã e salva.
Ellyn:
O inverno se aproximava em passos largos, trazendo o frio cruel e mortal com ele. Os dias cada vez mais curtos e noites mais longas estavam atrapalhando minha jornada até Viventia, a cidade portuária do reino de Frallyr, o reino à Oeste do Mar de Heresis, onde vivi desde que nasci com minha família, uma família que eu havia destruído no dia em que achei que usar meus poderes não seria uma demonstração de agressividade, só queria ajudar e mesmo Fergus que sempre esteve ao meu lado, que um dia prometeu me proteger e nunca virar as costas para mim, me abandonou.
Havia feito uma parada para comprar mantimentos em Selide, a vila dos pescadores depois das planícies de Merine. Enquanto atravessava a cidade, comprei de um comerciante em uma pequena loja escondida próxima às barcas de pescas, um manto de lã e uma arma, não sabia usar uma espada ou lança, mas um machado pequeno poderia ser de grande ajuda já que iria pegar o caminho mais curto pelas montanhas até o outro lado, até o porto de Viventia, onde tomaria um navio para o reino do Sul, um lugar onde podia aprender a usar meus poderes com mestres Magos e me tornar uma mestra em cura também, ou talvez ter a oportunidade de trabalhar no castelo da rainha Iriel.
– Devia tomar cuidado com as estradas, mocinha! Os viajantes estão dizendo algo terrível sobre uma bruxa que está prestes a despertar! – O comerciante de aparência pálida e doente falou, mostrando os dentes amarelados em um sorriso quase divertido para mim.
– Obrigada pelo aviso! Mas não vou pegar a estrada, pretendo passar pela floresta... – Respondi o mais rispidamente que pude mas acabei falando demais tentando mostrar que não era uma jovem indefesa, que tinha coragem para atravessar a Floresta das Sombras, embora minha aparência dissesse o contrário. Ao passar pelo arco da porta, reparei em meu reflexo no espelho de cristal que era mantido atrás da porta, uma técnica antiga para aprisionar a alma de uma bruxa ou feiticeira, caso elas tentassem entrar no estabelecimento. Sorri mentalmente ao perceber que aquilo não adiantava nada, afinal, minha alma continuava bem presa dentro de mim. Mas minha aparência parecia errada, frágil demais, havia perdido um pouco de peso durante os dias que estive na estrada, meus cabelos castanho-avermelhados agora estavam sem brilho e sob meus olhos castanhos, haviam sombras escuras por causa das noites mal dormidas, escutando os sons da floresta, mesmo sabendo que nenhuma criatura ousaria se aproximar de mim, pois o cheiro da magia as espantava, um alerta silencioso que mantinha-me protegida, mesmo assim não conseguia dormir. O vestido longo e cinza de mangas justas que usava estava ficando folgado em algumas partes que antes ficava bem justo, eu havia perdido mais peso do que imaginara.
Saí da cidade antes do sol desaparecer totalmente no horizonte e segui em direção a floresta sombria, queria ficar o mais distante possível das estradas, já que alguns espalhavam a notícia de que bruxas estavam caçando jovens para receber a alma de uma bruxa lendária. Se os boatos fossem verídicos, não estava com vontade de receber uma alma cruel em meu corpo, então era melhor me manter fora de problemas, nesse caso, fora das estradas era mais que suficiente. A floresta estava escura e especialmente silenciosa essa noite, já que a lua quase cheia no céu estava escondida por grossas camadas de nuvens escuras. Eu não sentia medo, apenas me incomodava com o silêncio sobrenatural, sentia falta do som da risada de Fergus e das histórias de suas caçadas, do jeito que seu cabelo castanho caía ao redor do rosto quando ele gargalhava, não sabia a quanto tempo estava apaixonada por ele, mesmo com todas as dificuldades, nós éramos felizes, até eu mostrar quem eu era de verdade. Eu acabei com aquilo, então eu tinha que aceitar e lidar com o fato de que não os veria novamente e se os visse, eles não me aceitariam de volta, tudo que tinha a fazer era sufocar os sentimentos que uma hora eles desapareceriam, também sentia falta de Nuvem, minha raposinha, ele sempre me acompanhava pela floresta até o trabalho, mas provavelmente não a veria mais.
Parei no centro de uma clareira quando a lua já devia estar bem alta, juntei um pouco de lenha e montei uma fogueira, não estava muito longe de um rio, pois ouvia o som baixo da água corrente, então fui até lá buscar água para fazer um chá, que usaria para conseguir engolir os pães pesados de massa escura que havia comprado na vila.
Do local onde parei para abastecer o cantil e encher o pequeno caldeirão, ainda podia ver a luz do fogo na clareira, que fazia longas sombras se projetarem ao meu encontro. Voltei em passos rápidos até a fogueira, coloquei o caldeirão sobre ela e aguardei em silêncio a água ferver. Os sons dos galhos das árvores sendo movidos pelo vento pareciam uma doce sinfonia, o farfalhas das folhas me faziam lembrar das tardes que corria pela floresta próxima ao chalé e me divertia pulando sobre as pilhas de folhas que Fergus fazia para mim, tardes de outono que eu nunca mais teria.
Depois de comer os pães e tomar o chá, me encolhi sobre o pelego de ovelha e me cobri com o manto pesado de linho e veludo que havia comprado. O Frio estava ainda mais intenso aquela noite, então me deitei o mais próximo que pude da fogueira, sem ter o risco de brasas queimarem minha cama improvisada, o sono veio rápido essa noite, estava exausta e uma noite inteira de sono era tudo que eu precisava, adormeci sem me preocupar com a floresta ao meu redor.
Acordei sobressaltada no meio da madrugada escutando cascos de cavalo partindo os galhos secos que forravam o chão da floresta, batendo ritmados no chão em um trote quase silencioso, aproximando-se de mim. A fogueira ainda estava acesa, embora o fogo estivesse quase extinto, a luz com certeza podia ser vista a alguns metros.
Antes que pudesse apagar a fogueira, os vi se aproximando entre as sombras das árvores e congelei de pé ao lado dela, sentia como se todo o sangue tivesse sumido do meu rosto ao ver quem eram os que se aproximavam, tudo que consegui fazer foi puxar o manto sobre mim, enfiar o cristal pendurado na fita de veludo dentro do decote em meu vestido e torcer para que eles não percebessem o que eu era.
Montados em cavalos negros, com uniformes da mesma cor e cobertos por mantos cinzentos, eles se aproximaram de mim e saltaram dos cavalos, não conseguia ver nada dos rostos por baixo dos capuzes mesmo quando eles se aproximaram ainda mais de mim e da fraca luz da fogueira.
Os Mardans das sombras!
Os Mardans, um clã de caçadores guerreiros mortais, impiedosos e devastadores, conhecidos por caçar e destruir todos os tipos de criaturas malignas, inclusive demônios e magos negros, naquele momento, eu era uma das caças. Eles estavam em um grupo pequeno, no máximo sete deles me rodeavam agora, cercando-me para que eu não pensasse em fugir.
Quem se aproximou de mim devia ser o líder deles, pois tinha uma espada longa e afiada presa à bandoleira nas costas e outra menor de prata no cinto, duas adagas presas nas pernas e uma sacola que fazia um suave tilintar quando ele caminhava, na certa eram frascos cheios de pós e poções para incapacitar criaturas mágicas e moedas.
Eu não teria nenhuma chance contra eles mesmo que soubesse usar meus poderes de forma plena, mesmo com o pequeno treinamento que recebi do Mago mestre de Mirlut quando ele descobriu sobre meus poderes, eu não conseguiria escapar deles, talvez ao menos os distrair para fugir... não, aqueles Mardans estariam cientes de cada movimento que eu fizesse e estariam preparados para matar caso eu representasse uma ameaça.
– O que uma jovem como você faz acampada sozinha no meio da floresta? – A voz grave do caçador me alcançou e fez com que meus joelhos tremessem, podia ver o sorriso predatório por baixo do capuz, os dentes brancos brilhando com a luz da fogueira.
– Estou viajando, indo encontrar parentes do outro lado da montanha. – Menti descaradamente mesmo sabendo sobre as lendas de que eles podiam sentir as mentiras, mas pelo menos consegui fazer minha voz sair firme.
– Ou é muito corajosa por ter a audácia de mentir para mim, ou muito tola! – Ele deu uma gargalhada grave quando levei a mão ao machado que estava encostado em minha bolsa, mas antes que pudesse tocá-lo, alguém me segurou por trás, erguendo meus braços na altura de meu rosto e puxando meu capuz. O líder dos Mardans tirou o capuz, revelando seu rosto para mim, se meu coração estava prestes a falhar antes, ele parou de vez naquele momento.
Uma cicatriz perturbadora marcava o rosto dele desde a têmpora direita, descendo em uma curva para baixo da orelha até o ombro, um ferimento que havia rasgado seu rosto e pescoço, provavelmente um ferimento que quase o levou à morte, não queria nem imaginar o tipo de criatura que havia feito aquilo, e se ele estava de pé diante de mim com tal cicatriz, podia imaginar o fim terrível da criatura que a causou. Os cabelos cinzentos na altura dos ombros e a barba por fazer lhe davam uma aparência ainda mais selvagem. Os olhos negros como carvão me analisaram e um sorriso maldoso apareceu em seu rosto ao soltar meu manto, puxando a fita de veludo com ele e revelando o colar com o cristal que eu havia tentado esconder, pude ver uma sombra alarmada em seu olhar, ele o desviou por um instante, fitando um dos Mardans atrás dele, que pareceu se encolher um pouco sob aquele olhar, então ele me encarou novamente e soltou o colar.
– que interessante... – Ele riu com escárnio e puxou uma das adagas do cinto. – Faz quase duas décadas que não vejo uma como você! – O meu fim estava próximo, podia sentir os sentir o frio acumulando-se em meu coração e escorrendo por minhas veias. Tentei me soltar das mãos que me mantinham presa, mas tudo que consegui foi me chocar contra o corpo do caçador que me prendia.
– Por favor! – Implorei quando ele se aproximou colocando a adaga em meu pescoço. Ele manteve os olhos fixos nos meus, a prata da adaga lançava ondas geladas de pânico por meu corpo. – Por favor, me deixe ir... – consegui dizer novamente sem me movimentar muito, com medo de que a adaga afiada abrisse um corte em minha garganta.
– Nunca vi um monstro implorar pela vida, normalmente eles lutam para sobreviver! – Os outros deram gargalhadas debochadas, o líder ele riu também, seu hálito quente acariciou meu rosto, ele estava tão próximo que podia muito bem sentir minha magia lutando para que eu vivesse. O Mardam atrás dele era o único que não estava rindo, ele parecia tenso, pousou a mão sobre a espada embainhada do lado do corpo e pude ver um brilho avermelhado por baixo de seu capuz, um olhar alertando-me.
– Então é isso que vou fazer... – respondi suavemente dando um sorriso sarcástico, por mais que estivesse morrendo de medo, que soubesse não ter chance contra eles, não morreria como uma covarde que apenas implorou antes da cabeça rolar.
Uma explosão de luz saiu de mim, derrubando os caçadores ao meu redor, espalhando as brasas da fogueira, ouvi o som de galhos partindo e o ruído das folhas sendo varridas de onde eu estava, até mesmo os cavalos fugiram assustados e desnorteados. Meu coração saltava contra as costelas, meu poder havia saído de dentro de mim como uma explosão, dando-me uma pequena chance de fugir, uma chance que agarrei com unhas e dentes. Então corri, corri como nunca em toda minha vida, sentindo meus pulmões arderem e as pernas protestarem enquanto disparava para a floresta escura sem olhar para trás.
Segui para o rio que havia pego água mais cedo, ele estava bem no caminho à minha frente, mal podia vê-lo na escuridão mas conseguia escutar o barulho das águas contra as pedras. Se eu tivesse sorte e pulasse na água e a correnteza não fosse muito forte, conseguiria atravessar o rio e despistá-los caso eles estivessem vindo atrás de mim. Porém antes de alcançar a margem do rio, algo se chocou contra mim com tanta força que me atirou ao chão e me esmagou, fazendo todo o ar dos meus pulmões sair de uma só vez. Tentei lutar e me levantar, mas alguém ainda estava sobre mim, mãos grandes me seguraram e me viraram para cima, era o caçador, o líder deles. Ele passou as pernas por cima de mim, segurou minhas mãos prendendo-as sob seu corpo também e sem aviso passou uma fina corrente de prata em meu pescoço e a prendeu com um cadeado do mesmo material que causou um estranho incômodo em minha pele, quase como se estivesse queimando, então ele girou a chave nos dedos e sorriu.
– Quase, bruxinha! – Ele deu uma gargalhada divertida enquanto eu tentava sem sucesso sair de baixo dele, sentindo-me ainda mais fraca do que antes.
– Me solta! – Gritei, mas ele cobriu minha boca e encarou à escuridão à nossa frente, colocando um dedo sobre os lábios para que eu fizesse silêncio. Foi então que eu percebi, que descobri o segredo por trás da força deles, aquele Mardam me segurando contra o chão era um bruxo! Os olhos prateados brilhando no escuro o denunciaram, ele deve ter percebido o espanto em meu olhar, pois em menos de um segundo seus olhos escureceram novamente.
– É melhor ficar quietinha, vai chamar atenção de outras coisas, mais perigosas para você do que eu seria! – Disse ele ajeitando os cabelos, mas sem tirar a mão da minha boca, então eu o mordi com força, suficiente para arrancar sangue de sua mão. Ele soltou um grunhido e puxou a mão, fazendo a pele rasgar, cuspi o sangue e o encarei.
– É por isso que conseguem ser tão letais, não é? Vocês não são humanos! – Ele ficou sério e desviou o olhar novamente, olhando para além do rio, procurando por algo que talvez não devesse estar ali.
– Sou humano tanto quanto você, coisinha! – Retrucou ele saindo de cima de mim e me levantando num puxão, parecia que todos os meus ossos e músculos haviam sido esmagados por aquele brutamontes, ele então me jogou sobre o ombro, eu lutei contra seu aperto, mas ele apenas me ignorou e segurou-me com mais força e deu um assobio baixo, pouco depois um cavalo negro apareceu trotando como se tivesse surgido da escuridão, ele me colocou em cima do cavalo e montou também, não havia muito tempo para pensar, então apenas agi por impulso e desespero, mas antes que meu cotovelo acertasse seu rosto, ele o segurou e riu novamente.
– Vai descobrir, bruxinha, que vai preferir estar aqui comigo do que solta nessa floresta! – Disse ele pegando meu queixo e virando meu rosto em direção ao rio, na margem oposta um par de olhos amarelos espreitava entre as árvores, atentos e preparados para atacar ao menor movimento errado que fizéssemos. O local que eles estavam parecia ainda mais escuro, como se a própria escuridão emanasse deles.
– O que são? – Consegui fazer minha voz sair mais baixa que um sussurro.
– Bestas que você não ia querer ver nem em seus piores pesadelos. – Respondeu ele fazendo um movimento para que o cavalo partisse. Em pouco tempo estávamos de volta onde deveria estar restos da fogueira, mas fiquei completamente imóvel em cima do cavalo ao ver o que eu tinha realmente feito ali, a clareira foi completamente destruída, as árvores foram arrancadas e atiradas para longe, o chão estava limpo, não haviam folhas ou galhos partidos, nada no chão, apenas uma marca escura onde eu estive quando fiz aquela explosão. Os outros Mardans estavam preparados para partir, montados em seus cavalos e me analisavam discretamente, um tanto surpresos, não, assustados mesmo, eu tinha conseguido assustar um grupo de Mardans! Não fazia ideia se isso era bom ou ruim, mas sorri tendo o cuidado de manter a cabeça abaixada, não queria provocar a fúria de ninguém.
– De volta ao Vale da Lua. – Ordenou o Mardam que estava me carregando. Meu estômago embrulhou ao ouvir aquilo, o Vale da Lua ficava à Oeste de onde estávamos, um vale cercado de montanhas tão altas que diziam tocar as nuvens, um vale que tinha apenas uma entrada e que aqueles que ousavam pisar naquele território nunca voltaram para contar o que encontraram lá, e agora eu sabia o porquê, era o território dos Mardans.
– Eu estou indo para o sul! Para Viventia! – Protestei tentando me soltar novamente, mas o bruxo riu e segurou as rédeas do cavalo, fazendo uma gaiola com os braços ao meu redor.
– Você é uma prisioneira! E se você não sabe, prisioneiros vão aonde são levados! – Ele falou num rosnado, então começaram a cavalgar. A princípio fiquei imaginando que se eles seguissem pela estrada principal, a caminho do Vale da Lua passaríamos por Igraes, uma das cidades nas redondezas da floresta de Graistar, então poderia escapar e entrar na floresta, correr até em casa, mas ao imaginar que eles poderiam me caçar e matar minha mãe e Fergus, fez com que a ideia se desmanchasse tão rápido quanto surgiu. Estava exausta, com tanto sono que a cada minuto que se passava, mais pensamentos loucos e planos de fuga invadiam minha mente.
Alcançamos a estrada principal pouco antes de amanhecer, mas eles não continuaram na estrada, ao invés disso entraram na floresta do outro lado, uma floresta ainda mais densa e escura que a floresta das sombras.
Não conseguia me lembrar de ter visto nenhum caminho por essa direção nos mapas pendurados na parede da instalação de cura que estudava trabalhava, apenas uma cadeira de montanhas que pareciam fazer uma barreira separando o reino do Governante Tarilles em duas partes. Estava com tanto sono que precisei cravar as unhas na coxa sob o vestido para não dormir.
Os Mardans eram silenciosos, silenciosos até demais, parecia que os sons morriam quando eles se aproximavam. Conforme o sol começou a surgir, não se ouvia o canto dos pássaros ou o som dos animais, apenas o silêncio sobrenatural que os acompanhava.
– Se estiver com sono, pode dormir, bruxinha! – Ele falou quando sem querer encostei a cabeça em seu ombro.
– Prefiro ficar acordada! – Retruquei – E pare de me chamar assim!
– Não sei o nome da bruxinha!
– É Ellyn!
– Uma bruxinha com nome de fada! – Ele riu.
– Não vai dizer seu nome? – Perguntei agarrando-me àquela convença para tentar me manter acordada.
– Não é importante que você saiba meu nome.
– Quero saber mesmo assim!
– Gwyndion. – Disse ele por fim, depois de um longo silêncio, depois de ouvir aquele nome, um nome que não me era estranho, já ouvira falar dele, Fergus falava esse nome e mais outro com uma certa frequência em casa, durante as histórias de suas caçadas. Fiquei tentando lembrar-me por um tempo, mas uma estranha névoa envolveu meus pensamentos e então eu dormi, mesmo sem querer.
2
Passagem das estrelas
Acordei assustada ainda sobre o cavalo que trotava suavemente na trilha de folhas secas, havia dormido enquanto atravessávamos a floresta. Ainda estava tonta e com a cabeça pesada quando abri os olhos e pisquei para a luz do sol alto sobre nós, já devia ser quase meio dia, meu estômago reclamou inquieto, só então percebi que estava encostada no peito de Gwyndion, minha cabeça estava apoiada na curva de seu ombro. Me ajeitei sobre o cavalo sentindo meu rosto queimar de vergonha, ele apenas riu, uma risada grave e baixa que fez meu rosto esquentar ainda mais.
O grupo parou as margens de um rio para que os cavalos pudessem beber água e para prepararem o almoço. Gwyndion me tirou de cima do cavalo e entregou-me minha sacola, para mim ela havia se perdido na explosão que causei na clareira, mas fiquei aliviada por ela ter sobrevivido já que precisava urgente de um banho e o sol quente ajudaria nisso mesmo que a temperatura já estivesse baixa a essa altura.
– Aonde pensa que vai? – Perguntou Gwyndion quando fiz menção de descer o rio.
– No rio, posso? – Perguntei sarcasticamente.
– Claro! Se não tentar fugir... pois se tentar, eu vou te achar e cortar sua garganta! – Ele deu um sorriso perverso e brincou com uma adaga nas mãos. Lancei a ele um olhar frio e respirei fundo, mordendo a língua para não o mandar pro inferno, provavelmente ele não se sentiria ofendido com isso, pelo jeito dele agir, ele já deveria ter dado um passeio pelos campos em brasas do fundo da terra.
Fui o mais longe possível do local em que eles haviam parado para descansar, mas não longe suficiente para que eles achassem que eu havia fugido. Coloquei minha sacola sobre uma pedra na margem do rio e tirei algumas peças de roupa limpa de dentro, um vestido longo de lã azul que havia comprado algumas semanas antes, as mangas iam somente até os cotovelos e o decote em “V” marcava um pouco mais do que eu queria mostrar a esses brutos, mas podia resolver isso facilmente com meu manto negro. Tirei as roupas e entrei rapidamente na água, olhando por cima do ombro na direção dos caçadores para ter certeza de que ninguém estava vindo até mim. A água fria correndo contra meu corpo foi uma das melhores sensações que tive nos últimos dias, porém a corrente de prata em meu pescoço parecia deixando uma marca em brasas na minha pele, quase como se estivesse realmente queimando. Afundei a cabeça na água e lavei os cabelos até sentir o couro arder com uma mistura essência de flores. Era um habito um tanto incomum para essa época do ano para a maioria das pessoas, a frequência de banhos, a maioria fazia apenas poucas vezes na semana no inverno, mas por ser curandeira, não conseguia ficar mais de um dia sem um banho, nem que tivesse que congelar num rio para isso. Depois de ter quase soltado a pele e ter certeza de que estava bem limpa, dei uma olhada rio acima para ter certeza de que ninguém estava olhando, mal podia vê-los dali, apenas a movimentação entre as árvores, então saí do rio e coloquei a roupa sem me secar, a lã macia parecia acariciar minha pele quando puxei o vestido e o arrumei. Se não tivesse saído correndo de casa, podia ter colocado outras roupas na sacola, como calças de montaria, elas seriam mais úteis para mim agora.
Voltei até onde os caçadores estavam, o cheiro da comida me alcançou e fez meu estômago revirar e quase sair atrás da fonte daquele aroma, não percebi que estava com tanta fome até sentir o cheiro da comida.
Gwyndion estava sentado não muito longe da fogueira, não queria ficar perto dele, mas também não queria me arriscar a ficar perto dos outros caçadores, que de vez em quando me olhavam como se eu devesse estar girando no espeto em cima da fogueira. Gwyndion fez um sinal para que eu me sentasse perto dele, amarrei a cara, mas fui mesmo assim, não tinha certeza se conseguiria ficar muito tempo de pé com o buraco que tinha no lugar em que deveria estar meu estômago.
Sentei-me no tronco partido perto dele, tendo o cuidado de ficar alguns palmos de distância. Ele estendeu uma tigela cheia de ensopado e um pedaço de pão para mim, peguei a comida de suas mãos meio receosa, mas murmurei um “obrigada” entre os dentes antes de começar a comer. Estava simplesmente maravilhoso, bem temperado e a carne estava macia, quase desmanchando na boca, tive que me conter para não comer como um animal já que era observada por gente demais. Notei que Gwyndion estava me observando há um bom tempo, acabei de comer e coloquei a tigela sobre a pedra ao meu lado e o encarei.
– Algo errado? – Perguntei da forma mais grosseira que pude. Gwyndion me encarava de maneira tão fria que não pude evitar desviar o olhar.
– Estava apenas pensando que agora vai ficar mais... agradável te levar comigo! – Ele mantinha o sorriso perverso no rosto quando passou os olhos por mim, sentindo meu rosto arder, puxei o manto ainda mais sobre mim, agradecendo por não estar calor para que eu pudesse usá-lo sem parecer que estava tentando me esconder sob o manto. Depois de comerem, eles ainda descansaram por uma meia hora antes de voltar a andar, um dos caçadores se aproximou de Gwyndion e começou a falar baixo, Gwyndion riu e olhou em minha direção, depois respondeu algo ao jovem bruxo que saiu de perto sorrindo. Ele não parecia ser ruim, Ceiran era o nome dele, ele devia ser o mais jovem ali, apesar de Gwyndion parecer estar perto da casa dos trinta, Ceiran tinha a aparência bem jovem, ele devia ter no máximo minha idade, tinha os olhos cor de mel e cabelos ruivos na altura dos ombros, um sorrido bonito, quase alegre, o rosto marcado por cicatrizes leves, finas. Ele era alto e não era tão musculoso quanto os outros, talvez devesse tentar uma aproximação com ele.
Ele estava parado perto de sua égua negra, preparando-se para montar quando eu me aproximei em passos suaves.
– Oi... – Ele parou de ajustar a sela da égua e ficou de pé empertigado, aquilo me fez encolher um pouco, mesmo parecendo ser o menor deles, ele ainda era uma cabeça maior que eu. Ceiran olhou surpreso para mim, na certa deveria estar imaginando um motivo para uma prisioneira dirigir a palavra a ele. Ele não parecia que ia responder um simples “oi” então continuei.
– Há quanto tempo você é caçador? – Perguntei tentando puxar assunto, ele me olhou da cabeça aos pés e deu um sorriso travesso.
– Mais tempo do que você está viva, menina. – Ele sorriu e piscou para mim, seu sorriso foi encantador, mas as palavras dele fizeram minha alma congelar.
– Eu... – Não sabia mais o que dizer, fiquei completamente desconcertada com o fato de que ele era caçador antes mesmo de eu nascer, mas fui poupada de tentar manter a conversa, pois Gwyndion parou com o cavalo ao meu lado e estendeu a mão para que eu montasse, Ceiran virou as costas, montou e ficou junto com os outros aguardando as ordens. Montei novamente a contragosto, fui colocada em sua frente e tentei arrumar o vestido o melhor que pude para não enrolar em minhas pernas.
– Não adianta fazer isso! – Disse ele perto demais de minha orelha.
– O quê? – Franzi o cenho para ele.
– Nenhum deles vai te ajudar, ou vai te safar caso você resolva fazer algo de errado, também não pense que qualquer um deles vá ter interesse em você, bruxinha!
– Ah! – Senti meu rosto corar novamente. – Não era... não estava tentando fazer nada disso, só queria conversar com alguém!
– Ninguém quer ouvir sobre assuntos de meninas mimadas como você! – Ele franziu o cenho.
– Você é sempre arrogante, cretino e idiota assim? – Ceiran soltou uma risada mal disfarçada de tosse e virou o rosto para o outro lado, fingindo prestar atenção em algo na floresta, Gwyndion soltou um grunhido e Ceiran mordeu a boca para não rir mais, então montou e seguiu em frente, olhando-me de soslaio de vez em quando, só pelo fato dele ter sido o único a rir da minha grosseria, fez com que eu o odiasse menos que os outros.
O silêncio foi entediante a maior parte da cavalgada para fora da floresta, as árvores altas e sombrias foram cobertas pelas nuvens pouco depois do meio dia e então uma chuva fina e gelada começou a cair sobre nós, os galhos pelados das árvores não dos davam proteção alguma, eu não fazia ideia de onde estávamos já que havia dormido uma boa parte do caminho, então tentei reparar melhor na floresta para encontrar qualquer pista sobre nossa localização. A chuva gelada caía sem dó, agora mais pesada do que antes fazendo com que meus ossos doessem, o único conforto que tinha era o corpo quente de Gwyndion atrás de mim, me odiei por aquilo, pois se não fosse aquele calor, a chuva teria me congelado.
A chuva fez uma névoa densa surgir e aos poucos não podíamos mais ver nada, pelo menos eu não, não podia dizer o mesmo dos Mardans à minha volta, eles não pareciam incomodados com a chuva ou com a névoa, pelo contrato, pelas expressões que carregavam podia afirmar com toda certeza de que eles estavam gostando do clima, isso me fez começar a pensar no que encontraria no Vale da Lua, fazendo minha pele se arrepiar, uma prisioneira de Mardans era o que eu havia me tornado.
Aos poucos, mesmo sob a névoa pude ver os contornos escuros e rochosos das montanhas, estávamos no meio do reino, nas Montanhas Velians, as montanhas que dividem o contente em dois. Os topos dessas montanhas, diziam as lendas, serem moradas das bruxas Sorcys um clã quase tão terrível quanto os Mardans, mas estavam desaparecidas á muitos anos e elas perderam a maior parte dos seus poderes com o aprisionamento de sua líder, Breedja, ou era o que contavam. Mesmo assim, não pude deixar de olhar para Oeste, onde estava a montanha do Caos, prisão eterna de Breedja.
– Esse lugar é perigoso para estarmos, não? – Minha voz não passou de um murmúrio sob o som da chuva pesada. Gwyndion deu uma gargalhada grave e baixa.
– Perigoso para qualquer um que estiver em nosso caminho, você quis dizer. – Não foi uma pergunta. Queria retrucar e dizer-lhe que ele estava se achando muito, mas os Mardans podiam, ainda mais este, Gwyndion... Era isso que eu tentava me lembrar mais cedo! Gwyndion, o Mardam lendário, segundo na liderança do clã dos caçadores e filho de Maddox, o Senhor das Tempestades, o líder dos Mardans! Gwyndion, pelo que Fergus contava, havia conquistado o título de Conde ao salvar a Cidade-Arca no reino Leste de um dragão das cinzas, animal feroz que destruiu grande parte da cidade antes de finalmente ser morto, provavelmente a cicatriz no rosto e pescoço de Gwyndion deveria ser dessa luta, pois as marcas foram feitas por algo com garras muito, muito longas e afiadas. Meus joelhos teriam cedido e eu teria caído no chão se estivesse de pé, mas eu estava sobre o cavalo do caçador lendário. Se algum dia escapasse, poderia contar que eu encontrei Mardans, fui capturada e sobrevivi.
A Cidade-Arca é onde vive a rainha Iriel e sua corte, uma cidade maravilhosa que só via em meus melhores sonhos, descrita pela voz doce de Fergus, ele a descrevia para mim como um pedaço do paraíso esculpido nas Montanhas brancas, não sabia dizer se ele já estivera em Cidade-Arca, mas o que era importante para mim era ouvir sua voz que embalava meu sono.
Nos aproximávamos da estrada cada vez mais, a partir dali seria quase impossível manter caminho fora dela não havia passagem entre as montanhas, só um túnel escavado sob uma montanha, uma descida perigosa por caminhos escuros e úmidos, a maioria dos viajantes preferiam perder alguns dias de viagem e contornar essas montanhas do que se arriscar por esse caminho.
Gwyndion não ia na frente do grupo como eu esperava que fosse já que os líderes deveriam conduzir o grupo, ele ia atrás, poucos metros atrás do grupo e não dizia nada, outro Mardam ia à frente guiando e dando instruções sobre os caminhos que deveriam seguir. Ceiran ia um pouco à frente de nós, as vezes lançava olhares à Gwyndion como se pedisse aprovação para fazer algo, pois após aqueles olhares ele desaparecia na floresta e voltava a seguir, dando pequenos acenos quase imperceptíveis.
Alcançamos uma espécie de caverna pouco antes da chuva engrossar, os homens desmontaram dos cavalos e os soltaram, para meu espanto, os cavalos tornaram-se sombras e desapareceram como espirais de fumaça em meio à chuva, Gwyndion me lançou um olhar medonho ao reparar na expressão assustada que estava estampada em meu rosto, ele fez um aceno e todos entraram na caverna.
Minha pele se arrepiou completamente ao entrar naquele lugar, as sombras pareciam vivas dentro daquela caverna. Adar, o que ia à frente do grupo acendeu uma tocha e iluminou o caminho, meu estômago começou a rolar desesperado ao perceber que as paredes da caverna eram cobertas por ossos humanos amarelados e que ali dentro era úmido e o ar pesado, era difícil de respirar. Gwyndion puxou meu braço para que eu acompanhasse o grupo, pois eu já estava ficando intencionalmente para trás.
– Com medo, bruxinha? – Ele me lançou outro daqueles sorrisos sinistros.
– Já lhe disse meu nome antes, dá para parar de me chamar assim? – Reclamei tentando desviar sua atenção do medo que eu sentia.
– Te chamo como quiser! Você é minha prisioneira, se não se lembra! – Ele puxou o colar em meu pescoço e mexeu no cadeado, verificando se estava bem preso.
– Porque pôs isso aí? – Perguntei, mas ele me ignorou completamente, não ia falar mais nada então, ótimo.
A estrada dentro da caverna começou a inclinar para baixo aos poucos, o caminho foi ficando escorregadio e difícil de caminhar, precisei colocar a mão na parede por várias vezes para evitar cair no chão lamacento. Alguns metros mais para baixo, a estrada se dividiu em duas, dois túneis que estavam separados por uma enorme pedra esverdeada, marcada com runas quase invisíveis sobre o limo que a cobria.
– Gwyn. – Adar chamou-o, Gwyndion fez um aceno para Ceiran para que o substituísse ao meu lado, Adar trocou algumas palavras com o líder e cada um foi por um túnel, instruindo os outros a ficarem e esperarem ali. Ceiran veio até mim e segurou meu braço como se achasse que eu pudesse cair ou fugir a qualquer momento. Tentei me soltar de seu aperto, mas ele sorriu e moveu a cabeça lentamente, um “não” para minha tentativa de escapulir. Os outros homens montaram uma fogueira e se juntaram ao redor dela, sentando em pedras e pequenos banquinhos que sabe-se lá deuses de onde tiraram. Um caldeirão foi colocado sobre o fogo e um cheiro maravilhoso começou a espantar o odor repugnante de podridão daquele túnel. Ceiran me arrastou para que eu sentasse perto do fogo, minhas roupas estavam molhadas e eu tremia muito, mas algo em meu olhar de pânico para os caçadores que agora me olhavam novamente como se eu devesse estar rolando num espeto em cima da fogueira o fez parar e ficar comigo um pouco mais afastado dos outros, ele indicou uma pedra para que eu sentasse, mas o ignorei, ficando de pé com os braços cruzados. Ele balançou a cabeça e soltou um suspiro irritado. Quando ele sentou e soltou meu braço, tentei virar para correr, mas minhas pernas dormentes e frias não responderam bem, então caí de joelhos antes de conseguir começar a correr.
– Tenho autorização para arrancar sua cabeça caso você tente fugir, Ellyn, então, faça-me um favor, não tente. – Disse ele gentilmente pegando em meu braço ajudando-me a levantar e colocando-me sentada na pedra, antes que eu tivesse tempo de falar algo, seus olhos ficaram com um brilho avermelhado e minhas roupas estavam secas num piscar de olhos. O encarei por um momento, ele havia usado meu nome ao invés de me chamar de “bruxinha” e havia acabado de me secar.
– Por que não fez? – Ele ergueu uma sobrancelha. – Quero dizer, por que não me mataram ainda? Porque me levar como prisioneira? – Ceiran olhou para o túnel que Gwyndion havia entrado e suspirou.
– Porque Gwyndion decidiu que a levaria conosco, não desobedecemos suas ordens, embora a maioria deles tivesse preferência por ver sua cabeça rolar... – Ele deu um sorriso maldoso para mim, engoli em seco.
– Você está nessa maioria? – Perguntei.
– Não gosto de matar pessoas que não podem se defender... mas aparentemente você pode! – Ele rolou a adaga na mão, mesmo aquecida, senti meu corpo ficar frio e dormente novamente.
– Claro, tenho muita chance contra um bando de assassinos covardes... – Murmurei.
– Covardes? – O sorriso de Ceiran havia se tornado divertido, curioso.
– Covardes, com um líder mais covarde ainda que vai atrás do grupo, nunca vi alguém tão medroso a ponto de querer ficar para trás no grupo, para não ser o alvo fácil! – Ri com deboche, mas os olhos de Ceiran se tornaram sombrios.
– Gwyndion vai atrás, por que covardes são as criaturas da floresta que atacam pelas costas, ele vai atrás pois é o mais forte do grupo, e mantém nossas costas protegidas, ele se põe como o “alvo fácil” para nos defender! E Gwyndion não é nosso líder! Ele é líder apenas do grupo dos caçadores! – Ele rosnou para mim, então seu olhar se amenizou ao perceber o quão desconcertada eu fiquei com sua resposta.
– Desculpe.
– Você não está familiarizada com nossos costumes, então está perdoada, dessa vez! – Ele se levantou e foi até a fogueira, trocou algumas palavras com os outros e voltou com duas tigelas de ensopado de cebola e coelho. Não me importei de queimar a boca enquanto engolia avidamente a comida, estava faminta e nunca havia provado nada tão maravilhoso quanto aquilo, era estranho como a comida deles parecia muito melhor, mesmo feita de forma improvisada.
Ceiran ficou observando-me durante um bom tempo, os olhos atentos a cada movimento meu, deixando-me completamente sem jeito.
– O que é? – Perguntei por fim, depois de me irritar com tanta atenção.
– Estava apenas pensando, como pode ter um poder tão grande se é tão frágil... – Ele puxou minhas mãos, não haviam marcas ou calos, estavam macias e delicadas, havia muito tempo que eu não tentava treinar, erguer uma espada ou qualquer outra arma e Fergus não permitia mais que eu fizesse as tarefas pesadas da casa, deixava-me apenas com as tarefas mais simples.
– Não sou frágil! – Reclamei puxando as mãos.
– Não é o que parece!
– Eu sou uma curandeira! – Falei mostrando o pequeno bracelete em meu braço, sete fios vermelhos trançados com uma pequena cruz de ouro pendurada nele, havia sido colocado ali por um dos Magos que me ensinava a curar com magia, para que as feridas mais difíceis fossem tratadas, para evitar a morte de alguém que não teria chance nas mãos de um curandeiro normal.
– Bom, estamos precisando de mais uma no Vale, Amanda tem muito trabalho por lá! – Ele ficou pensativo e meu estômago se embrulhou novamente, pelo menos não estava sendo levada para ser torturada ou algo do tipo. Meu pescoço estava coçando tanto com a corrente, devia estar suando também pois algo escorria por ele, quando fui tocar a corrente, senti como se meus dedos queimassem, olhei para minha mão e o sangue nas pontas dos dedos me fez perder o fôlego.
– Ceiran... – Ele olhou para minhas mãos e xingou baixo várias vezes.
– A chave está com Gwyn! – Disse ele olhando alarmado para o túnel, ele pegou um lenço e cuidadosamente ergueu a corrente e enrolou o lenço em meu pescoço para que a corrente ficasse sobre o tecido e não diretamente sobre a pele.
– O que está acontecendo? – Perguntei sentindo o pânico começar a me tomar.
– A prata está queimando sua pele, cortando-a...
– Por que?
– Prata, ela sela poderes de alguns tipos de criaturas mágicas, afeta algumas mais que outras... dependendo da quantidade de poder que a criatura tenha. – Ceiran tirou o pano para olhar e o recolocou, ele mantinha a expressão impassível, mas seu olhar estava alarmado.
– Eu sou humana! – Olhei espantada para ele, sentindo meu coração começar a saltar, Ceiran deu uma risada abafada e pigarreou.
– Bruxas, minha querida, não são nada humanas! Nem de longe! – Ele sorriu novamente.
– Você parece bem humano para mim! – Ceiran então fez um pequeno movimento com a mão sobre o ombro esquerdo e sua aparência mudou. O choque passou por meu corpo, deixando-me completamente paralisada, nem ao menos consegui respirar ao ver como ele mudou. Seus cabelos ruivos ficaram em um tom cinza pálido, a pele bronzeada se tornou branca como uma vela e marcas negras como palavras antigas cobriam seus braços, seus dentes ficaram mais longos e pontiagudos e os olhos vermelhos vivos pareciam chamas na caverna escura, ele havia ficado maior e mais forte e em suas mãos, garras longas e negras se projetavam nas pontas dos dedos, onde deveriam haver unhas, fora uma linha de espinhos que se projetava desde os nós de seus dedos e cobriam a parte superior seus braços até os cotovelos. Ceiran fez um movimento suave em minha direção, como se fosse se aproximar. Encolhi o corpo para longe dele, que num piscar de olhos voltou a sua aparência “humana”.
– Eu não... – Não conseguia me lembrar de como falar, mas desta vez tive certeza de que se tentasse fugir, eu não iria longe. – Eles também ficam assim? – Ceiran sabia que eu me referia a Gwyndion e aos outros caçadores e assentiu.
– Mais ou menos...Todos os Mardans tem aparência similar ao se transformarem, eles mantem aparência humana apenas para conquistar as fêmeas! – Ele deu uma piscadinha e apertou minha bochecha. Ceiran era muito bonito em sua forma humana, mas duvido que não conseguisse uma “fêmea” em sua verdadeira forma, era assustador, mas não era nada feio.
– Porque as fêmeas Mardans não gostam da real forma de vocês? – Perguntei curiosa, Ceiran soltou uma gargalhada divertida e sacudiu a cabeça.
– Não existem fêmeas Mardans, Ellyn. Não mais. – Sua expressão se tornou sofrida.
– E então?
– É melhor deixar essa conversa de lado, ou você não vai conseguir dormir depois! – Ele me deu um sorriso encantador e um arrepio passou pela minha espinha. Nada daquela criatura assustadora estava mais à vista. Era estranho estar perto de Ceiran, mesmo depois de tê-lo visto daquela forma, ele não parecia querer me fazer mal, me sentia estranha perto dele, quase confortável, diferente de quando Gwyndion estava por perto.
“Sou tão humano quanto você!” Disse Gwyndion na floresta quando me capturou, isso queria dizer que eu poderia ser assim também? Será que fiquei assim quando matei Lucian?
– Então eu, posso mudar também? – Perguntei.
– Bruxas costumam mudar ao utilizarem seus poderes, mas você eu não sei, apenas... – Ceiran ficou tenso e fez silêncio, ele havia falado demais, mostrado demais. Decidi não o pressionar mais, devagar conseguiria respostas.
Quase duas horas depois Adar retornou, ele estava com o ombro ferido, mas parecia nem se incomodar com o ferimento, a espada em sua mão estava manchada de sangue escuro e fedorento, tive que segurar o impulso de ir até ele e curar aqueles cortes irregulares, mas lembrei que não estava lidando com humanos e que ele podia se curar sozinho.
– Não é o caminho da direita. – Ele deu um sorriso debochado mostrando a lâmina manchada. – Um ninho de Nagas nessa direção!
O grupo esperou Adar comer e descansar um pouco, então se ergueram e foram em direção ao túnel por onde Gwyn havia partido. Ceiran deu um leve puxão em meu braço para que eu o seguisse.
O túnel da esquerda era mais estreito e úmido do que aparentava ser o da direita, eles seguiam o caminho em passos rápidos, ia agarrada a Ceiran com medo de cair no caminho lamacento e com nojo de tocar nos ossos que decoravam as paredes do túnel. Após quase meia hora naquele buraco de minhoca, o caminho fez uma leve inclinação para cima e o chão foi ficando seco, coberto por pedrinhas irregulares, o cheiro de podridão havia ficado mais fraco também, agora eu conseguia caminhar normalmente, mas não me atrevia a soltar o braço de Ceiran, já que mal enxergava o caminho em minha frente.
Pouco mais à frente encontramos Gwyndion, ele vinha pelo caminho rapidamente, fez um aceno positivo para os outros e esperou que eles passassem sua frente, Ceiran voltou para o meio dos outros, deixando-me com Gwyndion novamente, precisava admitir que aquilo me deixou um pouco chateada, preferia a companhia de alguém não tão grosseiro e que conversaria caso eu puxasse assunto.
Gwyndion não trocou uma palavra comigo, apenas segurou meu braço firmemente e me levou adiante. Parecia que caminhávamos a uma eternidade quando uma fraca luz pode ser vista a frente e comecei a ouvir o som de água corrente, uma cachoeira, talvez.
Achei que estávamos na saída da estrada sob a montanha, mas quando a passagem ficou maior e saímos do túnel, pude ver que era apenas um bolsão dentro da montanha.
– O que é isso? – Perguntei cerrando os olhos para a claridade que me atingiu vindo do alto do bolsão.
– A passagem das estrelas. – Gwyndion levantou meu rosto para que eu olhasse a fonte de luz, eu poderia ter flutuado até lá se ele não estivesse me segurando, meus olhos lacrimejaram e um sorriso se formou em meu rosto sem minha autorização.
– É tão lindo! – Acima de nós no teto não muito alto do bolsão, havia um pedaço de céu, negro coberto de estrelas brilhantes de várias cores e uma lua crescente que me lembrava um sorriso, ela estava sorrindo para mim, cumprimentando-me. As bordas daquele céu pareciam ondular, parecia instável, como se a qualquer momento pudesse desaparecer. Embaixo daquele pedaço de céu havia um lago de águas cristalinas que emanava um fraco brilho azulado, ao fundo uma pequena queda d’água fazia as águas dançarem e preenchia o lugar com a música das águas.
– O que é realmente esse lugar? – Perguntei curiosa, agora caminhávamos mais devagar em direção a uma pequena plataforma próxima ao lago coberta por grama e com pequenos arbustos.
– O céu, é uma passagem! Um portal para outro mundo, se você o tocar será levado para outro lugar. – Explicou Gwyndion para minha surpresa, não achei que ele fosse me responder. – Nem pense em tentar!
– Sim, claro! Como se eu pudesse voar até o teto da caverna e entrar naquele céu! – Retruquei sarcasticamente, o olhar preocupado de Gwyndion foi resposta suficiente para mim, o encarei de volta boquiaberta. – Eu posso?
– Não com isso no pescoço! – Ele tocou a corrente e só então reparou que a pele estava coberta por uma fina tira de tecido, mas ele não a retirou.
Os caçadores montaram um acampamento improvisado sobre aquele pedaço de grama e começaram a se espalhar para dormir. Gwyndion colocou meu pelego de ovelha próximo ao seu e me mantou sentar.
– Não vou ficar perto de você! – Ralhei abaixando para tirar minha cama dali.
– Pode ir aonde quiser, mas vai perder a cabeça enquanto dorme! Só vou tirar a corrente se você ficar aqui! – Ele deu um sorriso presunçoso e girou a pequena chave nos dedos. Bufei e lhe xinguei dezena de vezes mentalmente antes de me ajoelhar sobre a pele. Gwyndion sentou sobre os calcanhares e pegou o cadeado, tirando-o cuidadosamente, muito mais do que imaginei ser possível para um bruto como aquele. Antes que eu me movesse para deitar, ele tirou o lenço e olhou a marca que a corrente havia deixado.
– Até de manhã isso estará curado. Não se atreva a fazer nenhuma gracinha...
– Já sei! Já sei! Cabeças vão rolar! – Resmunguei revirando os olhos e deitando a cabeça sobre o braço. Gwyndion deitou perto demais, senti vontade de lhe dar um chute para que se afastasse, mas em sua mão repousava tranquilamente uma adaga quase do tamanho de meu braço, ele viu que eu estava olhando para ela e riu.
– Apenas uma precaução. – Fiz um gesto obsceno para ele e virei para o outro lado, ficando de costas para ele. – De costas para caçadores? Corajosa! – Ele soltou uma risada grave, que me fez virar novamente em sua direção.
– Porque não me mata de uma vez?
– E qual a graça nisso? – Ele mostrou um sorriso feral e se ajeitou sobre as peles.
– Então eu vou ser uma diversão para vocês, é isso? – Minha voz saiu trêmula, o medo estava estampado em meu rosto quando me inclinei para longe. Toda a diversão desapareceu de seu rosto, ele se inclinou para perto de mim.
– Não somos os monstros que pensa que somos, Ellyn. Pelo menos não o tipo que faz isso! – Ele rosnou e virou para o outro lado, ficando de costas para mim.
– De costas para uma bruxa sem correntes de prata? Corajoso... – Foi minha vez de provocá-lo, vi seus ombros ficarem tensos, mas ele não virou novamente em minha direção, preferia que eu o atacasse pelas costas do que admitir que eu poderia representar uma ameaça, novamente, Ceiran estava prestes a rir, do outro lado do acampamento ele fez um aceno e se deitou também.
No meio da madrugada, grunhidos e gemidos me fizeram acordar alerta. Me levantei e olhei por cima do ombro, onde havia um pequeno tumulto ao redor de Adar. Ele estava com a pele pálida demais e a boca azulada e sua pele brilhava com o suor. Na certa estava com febre e delirando devido aos ferimentos da Naga, então, mesmo contra minha vontade, me levantei andei até eles, abrindo espaço entre os caçadores para ver o que estava deixando-o daquela maneira. Os cortes no ombro dele estavam amarelados, começando a infeccionar, na certa havia muito veneno ali.
– Saia daqui, bruxinha! Se não pode ajudar, então não atrapalhe! – Revirei os olhos e sacudi o bracelete quase dentro da cara dele, Gwyndion bufou e me deu passagem. Não havia como conseguir veneno de Naga rápido suficiente para fazer um antídoto, então eu teria que curar usando meus poderes. Coloquei as mãos a poucos centímetros das feridas e senti a energia fluindo devagar, os caçadores me observavam curiosos, me deixando ainda mais sem jeito. Aos poucos, o veneno amarelado começou a sair pelos cortes, escorrendo junto com o pus e o sangue escuro. Pouco depois, a pele começou a se juntar e não passavam de cortes rosados, a febre tinha sumido e ele agora estava em sono profundo. Gwyndion olhava-me boquiaberto, expressão semelhante à dos outros caçadores, apenas Ceiran sorria para mim.
– A “bruxinha” sabe curar com magia! Então, pense bem antes de ser grosseiro comigo de novo! Qualquer hora pode precisar de mim para salvar esse seu traseiro e eu posso piorar sua situação ao invés de te ajudar! – Grunhi voltando para minha cama e me enterrando nela, ouvindo os caçadores se acomodarem para dormir novamente. Sorri comigo mesma pela pequena demonstração, pelo menos, havia conseguido deixá-los surpresos com algo, e minhas chances de sobreviver, deles me deixarem viva, seriam maiores.
Acordei antes do amanhecer, com os olhos ardendo, cansados da madrugada mal dormida. Fui silenciosamente até Adar para verificar se ele estava bem, pelo visto, a cura funcionou perfeitamente. Eu estava precisando ir ao banheiro e aproveitei que todos os caçadores ainda dormiam, então passei por eles mais silenciosa que um gato ladrão e fui em direção ao lago. A lua ainda estava lá, brilhando na noite eterna naquele pedaço de céu, talvez aquele portal fosse uma noite eterna. Circulei o lago, indo em direção aos pequenos arbustos que cresciam nas margens. Olhei uma última vez na direção dos caçadores e me escondi entre os arbustos. Após fazer o que queria, fui até o lago, a água que descia pela cachoeira era morna, fiquei tentada a entrar na água, mas eles poderiam acordar e não queria uma plateia para um banho, então apenas tomei um pouco da água.
Fiquei sentada brincando com as mãos dentro da água, distraída olhando para o céu, quando senti um pulso de energia sair de mim para a água. Olhei assustada para os caçadores, com medo de que eles tivessem sentido algo, mas eles nem se mexeram. Olhei novamente para o meio do lago e minha pele se arrepiou, a poucos centímetros acima da água, flutuava uma bolha de luz branca do tamanho de uma mão, ela parecia viva e chamava meu nome baixinho com uma voz doce, melodiosa, sem pensar duas vezes eu pisei na água, mas não afundei ao tocar a superfície, parecia que a água era sólida sob meus pés. Caminhei ao encontro da bolha devagar, quase como se estivesse hipnotizada e não conseguia desviar o olhar. Algo ao me aproximar dela me disse para correr, para fugir dali o mais rápido possível, mas meu corpo não me obedecia mais, estava a poucos passos da bolha agora, só então percebi que era uma borboleta branca emanando luz.
“Chegue mais perto! Toque em mim!” – A voz ordenou, reduzi o espaço entre mim e a luz e estiquei a mão, mesmo com a outra voz gritando “Não! Não! Não!” Em minha cabeça. Estiquei a mão e senti meus dedos roçarem a superfície morna daquela luz, quando ia fechar a mão em volta dela, uma flecha a atravessou, fazendo um guincho ensurdecedor abafar o som dos meus próprios gritos. A luz ao redor da borboleta tornou-se vermelha e cobriu toda a caverna, depois desapareceu mergulhando no lago. Só então a água voltou a ser líquida então afundei também, sendo arrastada para baixo por um redemoinho de luz vermelha que descia muito rápido e cada vez mais fundo.
Não consegui segurar o fôlego por muito tempo, comecei a engolir água, sentia meus pulmões se enchendo rapidamente, mas não consegui me mover direito, não conseguia nadar, era como se estivesse paralisada, o brilho do céu acima de mim não era mais visível, apenas a escuridão gélida da água ao meu redor, engolindo-me.
Enquanto tudo se apagava ao meu redor, pude sentir mãos me puxando para cima, para fora da água. Senti meu corpo bater pesadamente no chão do lado de fora do lago, onde Gwyndion me jogou. Ele estava parcialmente sobre mim com a mão ao lado do meu rosto, o dedo polegar tocando em minha bochecha, ele estava respirando forte e me encarando com olhos incrédulos. Consegui virar o rosto a tempo de vomitar e tossir água até que meus pulmões ardessem, que minha garganta estivesse tão arranhada a ponto de eu não conseguir nem ao menos murmurar um “obrigada.” Gwyndion se levantou, meu corpo parecia que desmancharia a qualquer momento, o frio fazia com que cada parte de mim doesse e meus dentes batiam tanto de frio quanto de medo.
– Que diabos estava fazendo? – Ele perguntou num rosnado, os outros caçadores, agora menos agitados voltaram para a fogueira e começaram a preparar o café, como se o rosnado de Gwyndion não fosse um alerta só para mim, ele não tirava os olhos de mim.
– Estou esperando uma resposta! – Ele passou os dedos estre os fios prateados de seus cabelos molhados, os ajeitando para trás, o peito ainda se movia rapidamente enquanto ele tentava se acalmar, a adaga em seu cinto estava a centímetros de sua mão e imaginei que ele a puxaria a qualquer momento para mim.
– Não estava tentando fugir. – Consegui dizer por fim, quando ele já estava mostrando os dentes, irritado pela demora em obter uma resposta que o agradasse, ele me ajudou a ficar de pé e bufou irritado.
– O que te deu na cabeça para seguir uma Sorcys? – Ele me puxou, colocando-me de pé, estava tremendo tanto e com tanto frio que mal sentia minhas pernas.
– Aquilo era uma Sorcys? – Precisei sentar no chão, se não teria caído sentada. Gwyndion ficou ainda mais irritado, mas respirou fundo e segurou meus braços, pondo-me em pé novamente.
– Você tem medo de uma Sorcys, mas não tem medo de Mardans? – Ele deu um sorriso zombeteiro, perverso e manteve os olhos negros nos meus, analisando, calculando.
–Tenho medo de vocês também, caso não tenha percebido isso ainda! – Falei por fim, ele respirou fundo, parecia que minha resposta tinha o agradado, pois diminuiu o aperto em meus braços.
– Eu disse sem gracinhas... – Ele puxou a corrente novamente, mas dessa vez não a colocou em meu pescoço, ele se ajoelhou em minha frente e levantou um pouco a saia de meu vestido, colocando uma tira de tecido em minha perna, seguida da corrente de prata e do cadeado. O toque de suas mãos em minha pele fez um arrepio percorrer meu corpo, e novamente tive a vontade de chutá-lo para longe de mim. Gwyndion olhou para meu rosto e outro sorriso maldoso lhe desenhou na face. Ele deu um tapinha em minha perna e disse:
– Espero que não apronte até o resto da viagem, ou... – Ele girou a adaga na mão.
– Talvez vocês sejam apenas igual a cachorros, ficam latindo mas não mordem! – Acabei colocando para fora, talvez o encontro com a Sorcys tenha me feito perder a cabeça ou o medo de vez.
– Experimente! – Ele mostrou os dentes, então virei de costas para ele, ignorando o gesto e o deixando para trás, Gwyndion me alcançou e me puxou de volta ao acampamento, onde os outros preparavam o café.
Ceiran tinha uma caneca nas mãos, ele a entregou para mim quando sentei-me ao seu lado, quando Gwyndion se afastou, Ceiran deu um sorriso divertido e piscou para mim. Ele havia me dado um chá perfumado, anis, canela e laranja e soltava um agradável vapor em meu rosto semicongelado, Ceiran riu do meu baixo gemido ao sentir o calor do chá, então, como na noite anterior, antes que eu percebesse, estava seca novamente.
– Conveniente esses seus poderes. – Comentei distraidamente tomando o chá.
– Você também tem! – Ele piscou para mim. – Mas não pode usá-los com isso ai, provavelmente nem saiba usá-los sem ser para cura, se não, não teria ido até a Sorcys. – Minha pele se arrepiou novamente com a simples menção das bruxas Sorcys. Uma raça de bruxas, as bruxas da luz eterna, assim como as chamavam por causa de suas aparências belas e luminosas, mas seus corações eram escuros e tomados por maldade. As Sorcys eram inimigas mortais dos Mardans e a guerra entre Sorcys e Mardans foi violenta e devastadora. Dentre os contos que Fergus me contava, havia um que eu mais tinha medo de ouvir, o conto da guerra dos sons, uma guerra tão feroz travada entre os Mardans a favor da rainha das fadas e as Sorcys que lutavam por Breedja.
– Ceiran... a guerra, entre Sorcys e Mardans... foi real, quero dizer, ela realmente aconteceu? – Perguntei tão baixo quanto pude, imaginando que nem Ceiran seria capaz de ouvir minha voz, mas ele se encolheu um pouco e assentiu.
– Quando estivermos na estrada, fora dessa montanha, te conto. – disse ele num tom igualmente baixo, olhando de soslaio para Gwyndion, que dava instruções para Adar, agora recuperado e forte.
– Quanto tempo até chegar no vale? – Ceiran juntou as sobrancelhas e bufou.
– Seriam dois dias pelos caminhos das montanhas, mas creio que com a sua travessura... Nós seguiremos pelas estradas da floresta, por lá vai demorar cinco dias! – Ele me lançou um olhar irritado e levantou-se, vi de relance o arco ao seu lado, ele havia disparado aquela flecha.
Os caçadores desmontaram o acampamento antes mesmo que eu pudesse terminar meu chá e o pão com geleia que Ceiran havia me dado.
Dessa vez, Gwyndion ficou ao meu lado pelo túnel das montanhas, enquanto andávamos no silêncio escuro das cavernas, sentia pulsos, estranhas pulsações de energia, como se fossem as batidas de um coração, era como se a montanha estivesse viva e nós caminhávamos em suas veias. Gwyndion mantinha uma expressão severa no rosto e a espada ao lado de seu corpo as vezes arrastava nas paredes estreitas, fazendo-me encolher com o som do metal contra as rochas, ele fazia aquilo de propósito para alertar aos “moradores” dos túneis que nós estávamos ali, assim, nenhuma criatura se arriscaria a nos atacar.
Aos poucos o caminho começou a inclinar, as pedras ásperas sob meus pés estavam mais secas aqui e o ar era mais leve, por vezes sentia lufadas de ar fresco vindo de algum lugar, mas não enxergava a saída daquele túnel. Paramos mais uma vez para comer e descansar, a essa altura já me sentia claustrofóbica, com as passagens estreitas e a escuridão. Gwyndion durante a parada verificou a corrente em meu tornozelo, olhando se ela não estava me arrancando o couro, mas a verdade é que eu sentia uma dormência naquele pé e as vezes o sentia falhar, mesmo assim não pedi que ele a tirasse, sabia a resposta, o “não” estava estampado em seu rosto junto com o “Arranco sua cabeça se tentar escapar!”
Sabia que devia estar anoitecendo pois a fome voltou com tudo, os caçadores eram tão silenciosos como sombras, talvez daí venha o nome de “Mardans das Sombras”. Estava quase implorando para que eles parassem para que eu pudesse descansar, dormir um pouco, pois as pedras do chão da caverna estavam machucando meus pés e o ar úmido fazia meus pulmões doerem, mas a luz da lua nos alcançou quando chegamos à uma pequena passagem, a saída da montanha. Então, me despedi daquela caverna e desejei nunca mais ter que passar por ali.
3
Cascata dos Sussurros.
A noite estava clara do lado de fora dos túneis, o vento gelado aos poucos foi apagando a terrível lembrança do cheiro de podridão da montanha, o motivo daquele cheiro foi o que me deixou de cabelos em pé a maior parte do tempo, ninhos abandonados de nagas, que podiam ou não voltar a qualquer momento.
O grupo se afastou bastante da caverna antes de montar acampamento novamente, para minha alegria, pararam bem próximos à um rio, não me importava com o frio desde que pudesse tomar um banho e tirar o cheiro dos túneis, que parecia estar impregnado na minha pele.
Esperei Gwyndion tirar a tornozeleira para que eu pudesse escapulir até o rio, meu pé estava dolorido, não havia marca de que a corrente tivesse feito algum dano em minha pele, mas a perna estava formigando. Dessa vez, quando fui descer o rio para tomar banho, Ceiran me acompanhou.
– Não precisa ir atrás de mim, se não fugi até agora, não vou fugir mais! – Falei enquanto ele caminhava a alguns passos de mim. Ceiran deu um sorriso travesso ao me responder:
– Estamos perto de outras vilas, talvez tenha ideias erradas sobre estar segura de nós se fugir até elas! – Ele parou e sentou na raiz exposta de uma árvore, de costas para o rio. – Pode ir, não vou olhar! – Disse ele olhando-me de soslaio.
– Já disse que não precisa ficar vigiando!
– Não estou aqui para vigiar caso você fuja, estou aqui para manter você segura! Não sabe o que tem nessas florestas a noite? – Ele apontou com o queixo, a floresta escura além da margem do rio, a luz da lua que passava por entre as folhas dava um ar sombrio ao lugar.
– Se olhar pra cá...
– Vai fazer o quê? – Ele ergueu as sobrancelhas e cruzou os braços, virando o corpo totalmente em minha direção, cruzando as pernas e mantendo um sorriso zombeteiro no rosto.
– Gwyndion tirou a corrente... – Falei num tom mais baixo, dando-lhe um sorriso que me esforcei bastante para parecer assustador, mas Ceiran não pareceu abalado, ele apenas gargalhou, pisquei atordoada, antes que eu pudesse me mover novamente, Ceiran estava em minha frente, a centímetros de mim, com sua “outra” forma completa. Um arrepio desceu por minha espinha, ele estava perto demais, e eu não fazia ideia de como usar os poderes novamente. Ceiran deu um sorriso travesso, segurou meus pulsos e passou a perna por trás da minha e me derrubou na água, que estava tão fria que fez meus ossos doerem.
– Por que fez isso? – Gritei tentando me soltar enquanto ele dava gargalhadas e voltava a sua forma humana e sentava na margem do rio comigo ainda presa em suas mãos.
– Pra você aprender que não pode ameaçar um bruxo, muito menos me desafiar. – Ele piscou, então me soltou, estava tão empenhada em me soltar de suas mãos, que cai novamente, sentada dentro da água.
– Não tenho medo de você! – grunhi me levantando e erguendo um dedo para ele, Ceiran apenas revirou os olhos e virou de costas para mim.
– Não estou nem tentando meter medo em você, Ellyn, se estivesse, você não teria coragem de apontar esse dedo para mim! – Ele parecia estar faltando sério, mesmo assim o encarei irritada.
– Tente! – Desafiei rosnando para ele ficando de pé e me ajeitando.
– Não quero! – Ele olhou por cima do ombro, encarando-me com os olhos cor de mel faiscando no escuro. – Não preciso de mais uma com medo de mim!
– Como assim, mais uma? – Perguntei, toda diversão parecia ter sumido dos seus olhos.
– Faça logo o que veio fazer, estou com fome! – De divertido a emburrado em alguns segundos.
Voltamos ao acampamento pouco depois, estava com muito frio, mas entrar no rio tinha valido a pena, agora estava com um suave perfume floral. Nunca mais passaria por aquele lugar, e torceria para não ser levada para lá a força novamente.
Ceiran trouxe o jantar para mim e ficou ao meu lado dessa vez, Gwyndion e Adar não estavam em nenhum lugar à vista e os outros caçadores haviam se posicionado em um semicírculo bem próximos a mim.
– O que está acontecendo? – perguntei a Ceiran quase num sussurro. Ele respirou fundo e apontou com o queixo em direção a cadeira de montanhas ao Sul de onde estávamos.
– O lar das Sorcys fica acima daquelas montanhas, Gwyndion e Adar foram verificar as redondezas, pois elas costumam caçar em noite de lua cheia. – Explicou ele cruzando os braços e olhando desconfiado para as montanhas.
– Como funciona... o clã de vocês? – Ele ergueu as sobrancelhas e sorriu.
– Porque quer saber?
– Sou curiosa e se estou sendo levada para lá e não é para morrer, gostaria de saber mais. – Apoiei a cabeça no braço e fiquei observando-o, esperando que dissesse alguma coisa. Ceiran observou os companheiros ao seu redor e me lançou um olhar significativo, percebi que se ele começasse a conversar demais comigo, com a prisioneira, poderia ter problemas com os outros, então resolvi mudar de assunto.
– Bom... que idade você tem? – Perguntei.
– De novo, porque quer saber? – Ele tinha um olhar malicioso e mordeu os lábios quando perguntei, senti meu rosto corar e desviei o olhar.
– De novo, estava apenas curiosa, mas já que não posso perguntar nada, porque não me coloca uma mordaça de uma vez? – Ceiran riu e afagou minha cabeça, um gesto carinhoso e íntimo demais que fez eu me encolher, ele franziu o cenho e retirou a mão. “Não preciso de mais uma com medo de mim” foi o que ele disse, mas não estava com medo, só não esperava por aquilo, antes que pudesse me desculpar, ele pigarreou e começou a falar:
– Tenho vinte e oito! – Disse dando uma piscadinha para mim.
– Ah! Isso não é velho! – Franzi o cenho para ele.
– Nunca disse que era velho! Você havia me perguntado a quanto tempo eu era caçador, te disse que era a mais tempo do que você estava viva, mas não sou velho como Gwyn ou Adar! Sou o mais jovem dos Mardans e o terceiro no comando depois deles dois. – O olhei espantada.
– Como?
– Sou um dos mais fortes do clã e o terceiro mais forte dentre os caçadores! – Seu sorriso aumentou e dessa vez tive que fazer força para não me afastar dele. – Entrei para o grupo dos caçadores aos seis anos.
– Então, nem todos os Mardans são caçadores? – Perguntei.
– Não, claro que não! Apenas os que treinam e passam no teste final.
– E qual é esse teste final?
– Matar uma Sorcys. – A expressão dele endureceu e ele desviou os olhos de mim.
– Você... matou uma delas? – minha voz havia se tornado um sussurro.
– Duas. E antes que pergunte... – ele se aproximou e sussurrou tão baixo que mal pude ouvir. – Eu me odiei por fazer aquilo, mas eu precisava me tornar um caçador, ou não poderia cumprir uma promessa que fiz para alguém há muitos anos! – O encarei por um momento, os olhos cor de mel estavam fixos nos meus quando ele soltou um suspiro cansado e deitou em sua cama improvisada.
– Posso saber que promessa foi essa?
– Estou realmente pensando em lhe colocar uma mordaça, você pergunta demais, Ellyn! – Bufei e deitei a cabeça sobre o braço, era menos terrível dormir sem Gwyndion por perto, ou melhor, mais fácil dormir perto de Ceiran. Ele tinha algo em comum com Fergus, podia ser feroz, um caçador, mas não era mal, ou pelo menos eu achava isso, e torcia para não estar enganada.
Uivos medonhos me fizeram pular da cama de madrugada, o som assustador vinha da floresta do outro lado do rio. A lua brilhava cheia no céu e o vento gelado batia nas montanhas, uivando também, como se respondessem aquele chamado.
– Ceiran... – Chamei, mas ele não estava ali, nenhum dos caçadores estava. Levantei assustada, estava sozinha no acampamento. Me movi rapidamente pegando o pequeno machado em minha bolsa. Porém um silêncio mortal caiu sobre o mundo naquele momento, como se nada mais respirasse, até o vento havia parado.
O único som que ouvia, agora alto e descontrolado, era de meu coração se chocando contra as costelas. As brasas da fogueira estavam quase apagadas e se não fosse a luz da lua, que banhava tudo com um brilho prateado, estaria em pânico.
Bem próximo a mim, as árvores começaram a se movimentar, como se algo saltasse de uma para outra, fazendo com que os galhos balançassem num ritmo sobrenatural, pareciam estar vivos, movendo-se sozinhos e se aproximando.
Um brilho prateado chamou minha atenção entre os galhos, dei alguns passos naquela direção, imaginando ser um dos Mardans voltando ao acampamento, mas quando a criatura saltou em minha direção eu não tive reação. Ela pousou a poucos centímetros de mim com uma pequena adaga na mão, os olhos vermelhos faiscando contra a luz da lua e os cabelos brancos selvagens ao redor dos ombros definidos, a pele de cor bronze e as garras afiadas, dos nós de seus dedos até seus ombros, haviam pequenas linhas de um marrom escuro, como uma espécie carapaça sobre a pele, como linha espinhos muito curtos. Ela estava com os lábios retraídos, mostrando as presas brancas afiadas para mim e me deu um puxão e num rápido movimento, cortou a palma de minha mão com a adaga.
Estava apavorada demais para gritar, quando ela apertou minha mão para que o sangue vertesse mais rapidamente, então a puxou para a boca e provou meu sangue, eu não conseguia me mover, estava em choque, o pânico me deixou completamente paralisada. A criatura arquejou e olhou em meus olhos, parecia que estava rasgando minha alma com aquele olhar cruel. Ela emitiu um estalo com a língua e assoviou alto, um som agudo que quase fez minha cabeça explodir. Logo em seguida, mais cinco como ela apareceram:
– Achei, ela realmente estava com os Mardans! – Explicou a mulher para as outras.
– Vamos logo! Eles já devem ter se livrado dos lobos e devem estar voltando! – Alertou uma das outras com a voz esganiçada, ela tinha uma tatuagem circulando seu pescoço, uma marca de um selo antigo, já havia visto aquela marca nos pergaminhos do mago mestre. Elas eram Sorcys!
– Me solta! – Consegui reagir quando me dei conta do que estava para acontecer. Forcei meus braços para que ela me soltasse, mas ela apenas deu uma gargalhada debochada e me apertou ainda mais.
– Vamos! – Disse ela fazendo outro som com a boca, dessa vez baixo, grave e trêmulo. Da floresta, algo brilhou e se levantou no ar, batendo enormes asas escuras e vindo em nossa direção, nunca havia visto algo como aquilo, elas eram como mariposas gigantes, com olhos grandes e vermelhos e asas que soltavam um pó fino e negro ao se movimentarem.
Eu tive mais medo delas, do que dos Mardans, e desejava com todas as minhas forças que eles voltassem. O motivo? Mardans eram cruéis, mas eram associados a rainha Iriel, e não a uma bruxa maligna.
Sem saber como reagir ou o que fazer, soltei o peso do meu corpo, fazendo a bruxa se desequilibrar para frente e mordi seu braço, ela urrou e cravou as garras em meu pescoço, fazendo-me ficar paralisada novamente.
– Sua... Fique quieta ou vou te levar em pedaços! – Ela gritou puxando meu cabelo para trás, fazendo as garras enterrarem em minha pele e perfurarem meu pescoço. Era como ter água gelada nas veias, um movimento em falso e ela arrancaria minha cabeça.
– Solte ela. – Uma ordem seguida de um rosnado ameaçador, senti a bruxa tremer, ela virou com cuidado na direção daquela voz. Era Ceiran em sua forma completa, porém dessa vez ele estava armado, uma besta em sua mão com uma flecha com ponta de prata. Um tiro daquilo e a bruxa morreria, ou eu, caso ele errasse.
– Vamos... ela não pertence a vocês! – Ela falou baixo, tentando negociar. – Só queremos levá-la para casa! – O tom de voz sarcástico dela fez meu estômago afundar.
Ceiran mostrou as presas para ela e deu um passo em nossa direção, mas a bruxa fechou ainda mais a mão contra minha garganta, fazendo o sangue escorrer por cima de seus dedos.
– Se der mais um passo...
– Ela vai servir pra vocês caso esteja morta? – Ele perguntou num tom de deboche.
– Não preciso dela. Só disso! – Ela sacudiu os dedos sujos de sangue e riu novamente. Gwyndion e os outros caçadores apareceram também, todos com posturas defensivas e não ofensivas, e aquilo não combinava com o que diziam sobre eles. Os caçadores estavam evitando atacar o pequeno grupo de bruxas por minha causa?
Aquelas mariposas enormes se aproximaram, parando atrás das bruxas, que rapidamente montaram, apenas a que me segurava continuou em terra.
– Quando ela sair do lacre, vou garantir que ela venha pessoalmente varrer aquele vale do mapa! – A bruxa sorriu.
– Ela não vai sair! – Ceiran retrucou atirando a flecha numa das mariposas, assustando as outras e derrubando as bruxas, duas delas subiram ao céu e a que estava me segurando, distraiu-se por um momento, tempo suficiente para que eu reagisse.
– Ellyn! – Ceiran fez um gesto com o punho, o sinal dos raios, que simbolizava uma tempestade. Entendi o que ele estava querendo me dizer, o que eu deveria fazer para me salvar e no mesmo instante, como havia feito na clareira, desejei que a energia fluísse por meu corpo, liberando o poder que comecei a treinar com os magos e não consegui controlar totalmente. Ceiran ergueu um escudo rapidamente, uma fina membrana amarela translucida os cobriu, protegendo-os de meu poder, mas as bruxas não foram rápidas como ele. Uma descarga elétrica saiu de mim, como se minha pele fosse energia pura, então os raios saíram para todas as direções, clarões de luz estrondosos percorrendo o solo, indo em direção as florestas, as montanhas, os caçadores e às bruxas.
A que estava me segurando, caiu no chão com a pele completamente queimada, apenas as duas que voaram conseguiram fugir. As outras três, haviam se desintegrado, junto com aquelas mariposas gigantes. Os animais estavam no chão, parcialmente destruídos, como se tivessem virado cinzas de dentro para fora. Meu estômago se embrulhou e perdi a força nas pernas, mas Ceiran me pegou antes que eu caísse. Não conseguia tirar os olhos da bruxa morta aos meus pés.
– Vamos. – Não fazia ideia de onde os cavalos haviam surgido e não me importei muito com aquilo, só queria sair dali. Dessa vez, Gwyndion não me mandou montar com ele, Ceiran me ajudou a subir num dos cavalos e foi junto comigo no meio dos outros Mardans, um braço em volta de mim, apertando-me contra ele.
Parecia que toda energia do meu corpo e de minha mente haviam desaparecido, senti meus olhos pesarem e arderem, sem pedir permissão, encostei a cabeça no ombro de Ceiran e fechei os olhos. Pude escutar seu coração que batia tão rápido quanto o meu, minutos antes, quando estava perto de ser levada por aquelas criaturas.
– Por que elas queriam me levar? – Perguntei sonolenta com a voz falhando.
– Porque você é uma Mardam. – Eu não consegui absorver aquelas palavras.
– Mentiroso! Você mesmo disse que não existem Mardans fêmeas! – Virei a cabeça o suficiente para olhar para ele pelos cantos dos olhos.
– Eu menti. Mas é uma história muito longa...
– Pode me contar? – Pedi, seu braço que estava em volta de mim se apertou ainda mais.
– Agora não. Espere chegarmos no Vale primeiro.
– Quando estávamos no caminho sob a montanha você disse que me contaria da guerra...
– Tudo um tempo certo, menina! Espere que eu te conto depois! – Ele resmungou baixo, notando olhares dos outros Mardans sobre nós, olhares tensos e até mesmo alguns irritados.
– Eu vou te perturbar a madrugada toda se não me contar, Ceiran! – falei, ele rosnou baixo, estava com a boca muito perto de minha orelha quando falou:
– Não vai, vai ficar quieta ou nós dois vamos ter problemas com eles, e não estou afim de ser castigado ao falar sobre um assunto proibido. – Sua voz suave e o calor de seu hálito em minha orelha, fez algo se revirar inquieto dentro de mim. Assenti, continuei com a cabeça encostada em seu ombro, sentindo o trote suave do cavalo e a respiração agora tranquila do caçador atrás de mim.
O som de uma queda d’água me acordou, havia dormindo enquanto cavalgava com Ceiran, olhei em volta atordoada, procurando pela fonte daquele som, pela cachoeira que deveria estar perto de nós, só então me dei conta de que estávamos passando por uma ponte estreita de pedras sobre uma imensa cachoeira, ao olhar para a esquerda, notei que a queda d’agua estava a poucos metros abaixo de nós e que ali parecia os limites do mundo. Meu corpo ficou tenso e me encolhi, mas Ceiran chiou.
– Não vou te deixar cair. – Disse ele acalmando-me.
– Onde estamos? – Perguntei.
– Na Cascata dos Sussurros.
– Parece que o mundo termina aqui... – Inclinei um pouco a cabeça para olhar para baixo, mas era tão alto, que minha pele se arrepiou. Ceiran segurou meu queixo e o levantou, fazendo-me olhar para o horizonte, meus olhos lacrimejaram e soltei um soluço sem querer. Havia um lago imenso no vale abaixo da cachoeira, as arvores que o cercavam tinham suas folhas amarelas, alaranjadas e vermelhas e pareciam brilhar contra a luz do sol nascente. Flutuando a alguns metros acima do lago, estava uma cidade, mantida lá nos céus por magia.
– Nunca viu a cidade dos Sussurros? – Ele perguntou, vendo que eu não desviava os olhos de lá.
– Nunca vi nada além da floresta de Graistar e da cidade de Mirlut. – respondi. – Quando estava indo para Viventia, vocês me prenderam.
– Não é tão ruim, olhe pelo lado bom, ninguém de fora que entrou no Vale da Lua, viveu o suficiente para ver o que havia lá.
– E eu vou? – perguntei.
– Eu te disse mais cedo, você é uma Mardam. – As palavras saíram baixas.
– Ceiran, por que mentiu?
– Bom, eu menti e não menti. Não existem mais fêmeas Mardans, só você. – Virei o corpo o máximo que pude para olhá-lo, Ceiran me encarava com os olhos cor de mel, estava sério demais, parecia tenso.
– Não sei se entendi. – Resmunguei, a voz abafada pelo som da cachoeira, não sei se ele escutou, pois não falou mais nada, ficou apenas olhando a ponte em nosso caminho. Olhei uma última vez o cenário do lago, absorvendo cada detalhe, como se fosse a primeira e última vez que o veria.
Quando entramos novamente na floresta, percebi que estávamos apenas Ceiran, Adar, Gwyndion e eu. Os outros caçadores haviam desaparecido, não os vi durante a travessia da ponte também.
– E os outros? – Perguntei.
– Foram na frente, um grupo muito grande poderia chamar atenção de mais Sorcys, as que fugiram com certeza passaram a informação que estávamos em um grupo grande. Se formos só nós quatro, podemos parar nas cidades protegidas e passar as noites por lá. – Aquilo me deu uma pontada de esperança e meu coração pulou alegre, pois a estrada que levaria ao Vale da Lua, passava por dentro de Igraes e Serazen, duas cidades muito próximas à floresta de Graistar, se eu fugisse durante a noite poderia correr para a floresta e atravessá-la durante a madrugada até minha casa, agora com um grupo pequeno de Mardans, tornaria minha fuga muito mais fácil, especialmente pois havia matado as bruxas e agora tinha uma leve noção de como meus poderes funcionavam. Gwyndion não havia recolocado a corrente de prata em mim, isso significava que eles estavam começando a confiar em mim, ou pelo menos, acreditavam que eu não tentaria fugir.
Paramos pouco depois de entrarmos na floresta para tomar café. Ceiran saltou do cavalo e me ajudou a descer, Adar me olhava desconfiado e cochichava algo para Gwyn, não sei se foi boa ideia dar um meio sorriso para ele, pois ele empalideceu e voltou a falar com Gwyndion, que dessa vez trouxe novamente a corrente de prata e a prendeu em meu pulso. Não esperava gratidão por tê-lo salvo do veneno de Naga, mas podia ao menos fingir que não me odiava.
– Eu já estava tão feliz achando que não ia ter que usar isso novamente... – Suspirei, os olhos de Gwyndion se estreitaram e ele sorriu.
– Depois do que você fez com as Sorcys ontem, fique feliz por eu não te enrolar com correntes de prata da cabeça aos pés, menina. – Fiquei irritada com aquilo e o encarei com o máximo de desprezo que pude.
– Vocês fazem coisas muito piores, e mesmo assim tem a coragem de falar uma coisa dessas? Como se eu fosse uma ameaça e vocês não? Olhe! Eu estou sendo levada contra a minha vontade por vocês, qual a diferença se eu as deixassem me levar? – Ceiran ficou imóvel encarando-me com ira nos olhos.
– A diferença, minha querida, é que elas estariam te levando para o altar da montanha do Caos e tentariam usar seu sangue para soltar Breedja como vem fazendo nos últimos meses, atacando e sequestrando jovens em muitas cidades, nós estamos te levando para um lugar seguro, tentando evitar que aquela bruxa retorne.
– Eu estava indo pra um lugar seguro de verdade! – Gritei, Gwyndion deu uma gargalhada assustadora, puxou minha mão e colocou uma pequena sacola de dinheiro em minha palma aberta.
– Um mercador em Selide pagou para que a caçássemos e a matássemos. Ele disse: “Uma bruxa veio à minha loja mais cedo, vi o reflexo dela no espelho encantado. É uma das bruxas sombrias!” – Fiquei em silêncio olhando o pacote de moedas em minhas mãos. – Bruxas não são bem vindas em lugar nenhum, menina, agora me diga, você estava fugindo de casa, não estava? Por quê? – Eu o encarei irritada, não iria responder a ele, porém senti uma pontada na cabeça, algo como uma fisgada, como uma agulha puxando um fio de dentro de minha mente, Ceiran olhou apavorado de mim para Gwyndion, ele levou a mão em direção a espada em sua cintura, mas não a puxou. A pontada em minha cabeça aumentou, fazendo-me gemer e me encolher, então acabei respondendo a Gwyndion mesmo sem querer:
– Porque matei meu padrasto quando ele começou a se transformar num lobisomem e vi o olhar de nojo de Fergus e de minha madrasta quando perceberam o que eu era, então eu fugi. – Minha voz saiu trêmula, mordi os lábios com força querendo evitar falar algo que não quisesse.
– Nem o irmão que você amava de uma forma nada fraternal a aceitou, não é? – Ele segurou meu queixo com força quando tentei virar o rosto para o lado. Ceiran desviou o olhar e contraiu os lábios, como se aquelas palavras de Gwyndion o tivessem afetado mais do que a mim.
– Não é da sua conta! – Grunhi me soltando de seu aperto.
– Nenhum lugar é seguro para nós, Ellyn, bruxos e bruxas não são aceitos por nada, nem ninguém! Em todos os lugares que você for, as pessoas vão te olhar do mesmo jeito, vão se esquivar de você, vão fugir quando você se aproximar. Entenda, nós não somos os monstros que os humanos descrevem! Não somos nós os demônios de verdade! – Ele soltou minhas mãos, pegou o dinheiro e o guardou.
– Prove! – pedi.
– Pode ir conosco se quiser, viver entre nós, ou posso te matar aqui e agora.
– Escolher viver presa ou ser morta por você? Isso não é uma prova! – Retruquei irritada.
– Não disse que ia te provar nada, só estou te deixando escolher, e o tempo que estamos perdendo aqui já poderíamos estar próximos a Igraes. – Resmunguei qualquer coisa e fui me sentar ao lado de Adar e Ceiran para tomar o café e seguir viajem. Ceiran não me olhou ou falou comigo durante todo o dia.
Depois de um longo tempo cavalgando, de algumas paradas para que pudéssemos comer e descansar, alcançamos os limites de Igraes no fim da tarde, quando o céu estava pintado de laranja e púrpura, um vento agradável soprava as pereiras ao nosso redor, fazendo-as dançar suavemente contra o vento.
Haviam algumas casas perdidas pelos campos, os donos das plantações estavam em suas varandas aproveitando o entardecer e observando com alegria os campos vivos e verdes.
Porém, quando olhavam para a estrada e nos viam, eles entravam para dentro de suas casas e fechavam as portas, os olhares eram sempre os mesmos, nojo, raiva, por vezes indiferença. Gwyndion me lançou um olhar calmo, um lembrete de suas palavras mais cedo, mostrei a língua para ele, mas ele apenas riu e continuou seu caminho.
A cidade não era muito grande, bem menor que Mirlut, as casas e o comercio eram mais simples também, todos construídos em pedras e madeira, o movimento nas ruas no final da tarde era pequeno, todos já estavam se recolhendo para jantar e dormir.
Igraes era uma cidade relativamente nova, tudo aqui fazia parte da floresta de Graistar antes da chegada dos humanos nesse continente. Eles derrubaram uma parte da floresta para construir Igraes e Serazen, que eram coladas uma a outra. Gwyndion nos guiou até uma estalagem escondida numa viela, o lugar não era dos melhores, talvez uma espelunca caindo aos pedaços fosse a maneira certa de chamar aquele lugar. A placa na frente do lugar havia caído e as janelas tinham um aspecto sujo, algumas quebradas e fechadas com tábuas. Torci o bico para aquele lugar, mas era mais seguro do que ficar na floresta novamente e atrair a atenção das bruxas. Subimos a escada de apenas quatro degraus que levava à varanda da pensão e entramos.
Do lado de dentro, não parecia tão ruim quanto por fora, o lugar era limpo e quente, com uma decoração rústica e simples, uma grande lareira de pedra estava acesa nos fundos da sala principal, que parecia ser uma sala de jantar também pois haviam algumas mesas espalhadas por ali. Só havia um grupo pequeno sentado nos fundos perto da lareira e pelas roupas que usavam, eram caçadores humanos.
Adar trocou algumas palavras com a senhora atrás do balcão de atendimento pegou duas chaves, uma entregou para Ceiran, então sem dizer nada, subimos as escadas para o segundo andar, onde havia um corredor estreito e escuro com apenas seis portas. Ceiran me puxou para uma das portas à esquerda e Gwyndion e Adar foram para o lado oposto do corredor. Ele abriu a porta para que pudéssemos entrar e me deu passagem para que fosse na frente.
O quarto não era tão pequeno quanto imaginava, haviam duas camas estreitas em lados opostos do quarto, uma escrivaninha em madeira com um castiçal e algumas velas apagadas e uma lareira próxima a uma janela com tamanho desproporcional ao quarto, ela era grande demais, quase como uma porta. Fiquei feliz em descobrir que a porta no canto do quarto era um banheiro e não um armário, mais feliz ainda em descobrir que havia uma banheira e água quente.
– Quero a cama perto da janela. – Falei cruzando os braços, esperando que ele não começasse a reclamar.
– Fique à vontade, estamos bem perto da sua floresta, não é? Pensando em pular a janela no meio da madrugada e fugir para casa? – Engoli em seco, Ceiran me fitava com os olhos vermelhos brilhando no escuro do quarto. Ele não moveu um dedo sequer, mas a lareira e as velas no castiçal acenderam, fazendo-me pular contra a parede como um gato assustado.
– Como fez isso? – Perguntei, olhando maravilhada as luzes azuladas das chamas que ele havia conjurado.
– Apenas me concentrei, você pode moldar seu poder ao que precisa no momento. Ontem, criou uma descarga elétrica para se livras das Sorcys, mas no dia em que a encontramos, fez uma explosão de poder puro... – Ele ficou pensativo, olhando para minhas mãos como se pudesse ver o poder envolvendo-as.
– É muito difícil, aprender a controlar? – Me aproximei da lareira, sentindo o calor do fogo para ter certeza que era real.
– Você precisa ter noção dos limites de seu poder, depois moldá-lo conforme sua necessidade, mas sem ultrapassar seus limites, afinal, você é uma bruxa, não uma maga. – Observei Ceiran brincar com uma esfera de luz nas pontas dos dedos, depois ela se tornou um pequeno pássaro luminoso e voou para fora do quarto, atravessando a parede como se não houvesse nada em seu caminho.
– Vou pegar o jantar. – Disse indo em direção à porta. – Se tentar escapar, o que espero que não faça, vou torcer pra um lobisomem ou um vampiro te encontrar e te matar antes das Sorcys ou de Gwyndion! – Ele deu uma piscadinha para mim antes de bater a porta atrás de si. Só então me dei conta que ainda era lua cheia e me lembrei que a floresta de Graistar na parte Oeste era muito mais perigosa do que no centro, onde vivia com minha família.
Aproveitei que Ceiran havia saído do quarto para tomar banho, a água quente quase me fez soltar gritinhos histéricos de alegria. Fiquei submersa até que ela começasse a esfriar e que meu estômago começasse a implorar por comida, só então saí da banheira, entrei no vestido preto e simples de linho forrado com lã e saí do banheiro.
Ceiran estava sentado à mesa, esperando que eu saísse de lá, então ele entrou no banheiro sem dizer mais nada. Fiquei feliz por a comida ainda estar quente, levando em consideração o tempo que fiquei dentro d’água. Terminei de comer o assado com batatas, fui até a janela e a abri com um pouco de dificuldade pois estava emperrada, então puxei o vestido até o joelho me sentei na soleira, encolhendo as pernas e prendendo os pés na madeira de um lado e apoiando as costas do outro lado, para que ficasse equilibrada no meio da janela.
Ceiran saiu do banheiro um tempo depois, usando apenas uma calça folgada e a toalha sobre a cabeça, os longos cabelos ruivos caiam ao redor de seu rosto, deixando-me completamente sem fôlego, não consegui controlar os pensamentos sobre qual seria a sensação de tocar aquele corpo. “Ah merda!”. Ele viu quando desci os olhos por seu corpo e sorriu.
– Gostando da visão? – Virei o rosto para fora e fiquei olhando para o céu, sentindo meu rosto queimar e meu sangue ferver.
– Pelo menos não estava mentindo quando disse algo sobre ficar bonitinho para atrair as fêmeas! – Falei e me odiei por cada palavra. Ceiran riu ainda mais e se aproximou, fazendo meu coração acelerar.
– Não devia ficar na janela, pode atrair atenção de alguém e você deveria dormir! Vamos partir antes do sol nascer. – Ele me deu a mão para que saísse da janela, eu bufei e sai contra minha vontade, mas não tirei os olhos da lua prateada brilhando no céu escuro e estrelado.
– Uma coisa que nunca entendi, a noite é tão linda, tão cheia de vida, tão serena... então porque mesmo em lugares protegidos, as pessoas ficam dentro de suas casas ao invés de aproveitar a noite? – Não era uma pergunta, era apenas um pensamento alto.
– As pessoas têm medo da escuridão e do que se esconde nela, Ellyn. – Ceiran olhava para o céu também.
– Isso é bobagem, a escuridão não esconde nada, tudo que tem na escuridão, tem na luz, a diferença é que a escuridão nos faz ver as coisas de forma diferente. – Ele ergueu as sobrancelhas para mim.
– Você não tem medo do escuro?
– Tenho medo de ficar sozinha, independentemente de estar escuro ou não. Mas tenho mais medo do coração escuro de algumas pessoas e de suas almas sombrias. – respondi. – A escuridão interior é mais perigosa do que a exterior, pois o que te ataca de dentro e você não vê, é o que te mata de verdade. – Expliquei, Ceiran Assentiu e sorriu para mim, um sorriso doce e gentil demais. Uma mariposa bateu contra o vidro agora fechado da janela, fazendo-me pular para longe dela. Ceiran riu e bateu no vidro com as pontas dos dedos, fazendo-a sair voando para a noite.
– Aquelas mariposas gigantes com as Sorcys, o que eram?
– Apenas mariposas normais, as Sorcys têm uma ligação muito grande com a natureza e os elementais, então elas os modificam dependendo de suas necessidades, como uma extensão do poder delas.
– Elas podem fazer aquilo com qualquer animal? – perguntei.
– Sim, uma vez, vi uma Sorcys montada em uma formiga gigante. – Ceiran fez uma careta.
– Não quero cruzar com uma formiga gigante nunca!
– Meu problema não foi com a formiga, mas com a bruxa em cima dela. – Ele coçou o braço, onde havia uma marca, uma cicatriz clara de uma mordida que parecia ter quase dilacerado seu braço, mas alguém muito talentoso o havia curado, pois a marca era quase imperceptível. Ia perguntar o que aconteceu, mas ele virou de costas para mim, foi para a cama e deitou, em suas costas havia uma grande tatuagem de uma raposa negra desde a base de suas costas, como se fosse pular por cima de seu ombro. Dei um suspiro irritado e um último olhar para a lua e fui me deitar também. Era outra coisa poder deitar em uma cama macia novamente, estiquei o corpo deixando-o se derreter sobre o lençol aquecido. Não me importei com o caçador dormindo a menos de dois metros de mim, apenas fechei os olhos e me entreguei ao sono.
4
Memórias de uma Sorcys
Júlia estava sentada no parapeito da sacada observando a noite, sua expressão preocupada refletia agora os anos esperando por uma notícia, uma única notícia que poderia ou não mudar o futuro de todos, se a verdade viesse à tona, sobre o que fez, sobre o que precisou fazer para sobreviver, para que Ela sobrevivesse, ela estaria condenada e o pior, poderia condenar a todos com a escolha que fez a quase duas décadas atrás.
Todas as noites Júlia sobrevoava a pequena cabana na floresta, alegando estar vigiando qualquer mudança nos movimentos de seus inimigos, os Mardans. Mas na realidade só estava passando para sentir a presença da criança, saber se ela estava bem, se estava viva e segura.
Observava as vezes o jovem de aparência tranquila chegar a noite da caçada, sempre trazendo algo para a menina de sorriso fácil e olhar meigo, por vezes avistava o caçador também, o menino de cabelos ruivos escondido em sua forma mística, vigiando a casa, como havia prometido.
Ela sabia que a menina havia se libertado de seu pequeno encantamento de proteção, sentira a pouco mais de uma semana a explosão de seu poder e aquilo fez seu coração apertar aflito, desesperado, ainda mais porque estava perto da Lua de Sangue acontecer. A bruxa voou sobre a cabana naquela noite e observou o jovem queimar um corpo modificado por uma maldição, sentiu o cheiro do sangue na cabana, mas não o dela, ela estava segura... Mas não estava mais na cabana. Aquilo fez o coração de Júlia quase parar, ela procurou pela noite, voou desesperada procurando pelo rastro da menina, mas não encontrou nada. Ficou por dois dias procurando, vigiando todos os lugares possíveis que a menina pudesse ter se escondido, mas sua magia surgiu e desapareceu tão rápido que não pode ser gravada, não pode ser rastreada.
Porém algumas noites atrás, houveram boatos, sussurros e fofocas vindos de uma pequena vila. Uma Mardam fêmea fora vista em uma vila de caçadores, procurando por suprimentos e partindo em seguida em direção à floresta sombria.
Júlia nunca havia voado tão rápido em toda sua vida naquela tarde, mas era tarde demais quando chegou a floresta. Parecia que algo com um grande poder havia destruído uma clareira no centro da floresta, então soltou duas bestas da terra para procurar pela menina, ela viu pelos olhos das feras, o filho do líder Mardam levar a menina embora pela floresta.
Júlia sentia o olhar desconfiado das bruxas sobre ela ao retornar para a Morada da Lua, o palácio sobre a montanha. Seu clã esperando uma ordem, elas já sabiam sobre a bruxinha Mardam e queriam acima de tudo libertar sua mestra. Júlia sabia o que deveria ser feito, a ordem que deveria dar para evitar desconfiança, mas as palavras travaram em sua garganta naquela noite. Se as Sorcys soubessem sobre sua traição... Não importava, ela era a mais forte delas, abaixo apenas de Breedja, que agora se encontrava presa em um lacre sob a montanha e assim deveria permanecer, então enviou suas bruxas para outro lugar, afim de dar tempo aos Mardans chegarem ao Vale com a menina, iria cobrar uma explicação do protetor dela depois.
Júlia esteve ao lado de Breedja quando essa lutou contra os Mardans, querendo tomar o trono da rainha Iriel para si. Ela viu o poder destrutivo de Breedja, o ódio nos olhos da bruxa quando foi derrubada por Maddox na guerra dos Sons, mas uma Sorcys como Breedja não podia ser morta facilmente e Maddox não a matou em respeito aos anos de aliança que teve com Breedja e com o clã das Sorcys, ele apenas a aprisionou e quando isso aconteceu, antes de cair em sono eterno, ela jurou que voltaria em uma noite de Lua de Sangue, quando seu poder estaria no ápice e amaldiçoou todas as crias dos dois clãs, e se algum dia nossos clãs se misturassem novamente... Breedja definitivamente não podia voltar e ela se encarregaria disso.
A bruxa olhou mais uma vez o céu noturno, apreciou o vento fresco no rosto enquanto esperava notícias das Sorcys que partiram na noite anterior, elas haviam recebido uma informação sobre um grupo de Mardans levando uma bruxa para o caminho das estrelas e foram atrás deles sem esperar uma ordem, elas iriam esperar eles saírem na estrada principal e os atacariam lá.
O coração da bruxa não conseguia se acalmar enquanto torcia em segredo para que eles matassem aquelas traidoras. Antes que ela pudesse as ver, sentiu a presença delas, as bruxas retornando, algo estava errado, algo de ruim havia acontecido. Voando sobre os pinheiros que cobriam a montanha, ela viu Ayres e Shian voltando, elas vinham em mariposas negras e estavam lentas demais.
Júlia empertigou-se e aguardou que as duas pousassem perto dela. Elas não estavam feridas, um olhar rápido para elas e Júlia já sabia que elas haviam saído ilesas do que quer que tivesse acontecido com o grupo.
– Partiram sem permissão! – Disse ela asperamente semicerrando os olhos para as duas.
– Pedimos perdão, Senhora das Estrelas, mas era algo de grande importância! – Ayres estava encolhida.
– Reportem. – Disse com um olhar impassível.
– Nós... a achamos, Senhora das Estrelas. – Disse Ayres curvando-se um pouco diante de sua Líder, a segunda bruxa mais forte do clã.
– Acharam quem, Ayres. – Júlia deu um sorriso debochado e enrolou uma mecha do cabelo escuro no dedo, escondendo o verdadeiro sentimento por trás daquele simples movimento descontraído. Medo.
– Senhora das Estrelas, achamos uma Mardam fêmea! Está sendo levada para o Vale da Lua pelo Caçador lendário, filho de Maddox. – Shian tomou a palavra e a pele clara e sedosa de Júlia se arrepiou com a simples menção do nome de Maddox, Júlia teria dado qualquer coisa para poder ir até o Vale agora e alertá-lo, ele não sabia sobre a menina.
– E porque diabos não a capturaram! – Júlia rugiu mudando de forma e mostrando as presas, os espinhos nos braços erguendo-se ligeiramente, pronta para atacar, as duas se encolheram para longe e baixaram os olhos.
– Lilian, Sennir Mabin e Lunna foram mortas pela Mardam, senhora. Nós escapamos por pouco! – Subitamente o sangue de Júlia congelou nas veias e ela desejou poder encontrar a bruxinha e escondê-la, livrá-la do que estava por vir, quando viu no olhar de sua subordinada o ódio pela perda de quatro de suas melhores guerreiras. Júlia apenas deu um sorriso sarcástico e limpou as unhas.
– Se tivessem me informado o que iam fazer, eu as teria alertado que os Mardans estão andando em grupos grandes, e elas não teriam morrido, talvez isso tenha sido um bom castigo pela impertinência! – Ela falou num tom mais baixo, com um sorriso no mínimo cruel no rosto. Ayres e Shian abaixaram as cabeças ainda mais e murmuraram desculpas.
– Que tipo de poder... essa bruxa tem? – perguntou tentando parecer curiosa, embora tivesse uma noção do poder da bruxa.
– É livre, senhora. O poder dela assume a forma que quiser, assim como o poder dos Caçadores, só que o dela... – Ayres fez uma careta. – Ela o libera sem controle algum, a magia dela é crua! – Júlia ergueu o queixo e bufou, mostrando uma pontada de irritação.
– De seis das minhas melhores guerreiras que partiram para encontrá-la, quatro mortas por uma única Mardam? – Júlia lançou um olhar de desdém para elas.
– Nós não sabíamos o que esperar! Ela estava prestes a vir conosco! Não estava mostrando resistência, mas o pirralho com cabelos de fogo apareceu e ela reagiu a ele! – Shian sibilou e um arrepio tomou conta do corpo da bruxa, e ela soltou um rosnado medonho, fazendo as duas se afastarem assustadas.
– Eu cuido deles! Digam as outras que podem parar de procurar, parem de trazer aquelas porcarias humanas para cá! Estão dando muito trabalho! – Júlia se afastou em passos largos sob o olhar nervoso das duas bruxas.
– O que faremos com as que ainda estão presas nas masmorras? – Perguntou Ayres. Júlia virou-se para elas e deu um sorriso sombrio.
– Livrem-se delas e sejam criativas! – Ela viu o sorriso de satisfação no rosto das bruxas, no fundo ela se odiou por aquilo, mas precisava que elas acreditassem que ainda continuava sendo a Senhora das Estrelas, a bruxa cruel que controlava o clã das Sorcys e que queria acima de tudo libertar sua rainha, a Senhora da Lua.
Júlia desceu as escadas de mármore branco em espiral até o salão principal, ele estava deserto àquela hora da madrugada. Porém, alguém a estava espreitando na escuridão. Ela estalou os dedos e olhou para o jovem com desdém.
– O que faz acordado, Halles. – O jovem saiu da escuridão, movendo-se com leveza sobrenatural. O rosto estreito estava escondido pelos longos cabelos prateados, a pele branca como a lua parecia brilhar suavemente, o verdadeiro filho da lua. Seus olhos vermelhos vivos estavam fixos nela, ele se aproximou o suficiente para respirar o mesmo ar que a bruxa. Júlia mudou o peso do corpo para a esquerda e colocou a mão na cintura.
– Fui até a passagem das estrelas ontem à noite... – Ele deu um sorriso sinistro. – A bruxinha Mardam que eles estão levando é tão parecida com a Senhora das Estrelas... – Ele tinha um tom afiado na voz, ergueu a mão para tocar o rosto da bruxa, que semicerrou os olhos mas não recuou ao toque que lhe causou repulsa, não deixando sua ira transparecer para ele. – As duas parecem até irmãs, ou melhor dizendo, mãe e filha... – Júlia sentiu o estômago afundar como se tivesse engolido pedras, mas ela puxou sua adaga afastando o jovem.
– Você pode ser o filho da Senhora da Lua, mas também é um Sorcys! – Ela lhe lançou um olhar cruel. – E isso o faz ficar abaixo de mim também! Então, Halles, ponha-se em seu lugar e não se atreva a dizer bobagens para mim novamente! Todos os outros Sorcys foram mortos! Menos você, pois amamos a nossa Líder e não permitimos que a cria dela fosse morta por aqueles bárbaros! – Ela percebeu o brilho assustado nos olhos dele, ela nunca o havia ameaçado, apesar de ser o único Sorcys macho conhecido pelas bruxas e filho de Breedja, ele parecia não ser um demônio como ela, pelo menos não até agora.
– Quero minha mãe livre. – Ele sussurrou afastando-se.
– É um desejo de todas nós ter a Senhora da Lua de volta, então não se preocupe, faremos tudo para libertá-la. – Mentiu ela afastando-se, deixando-o no salão e sentindo o olhar desconfiado do jovem. Ele suspeita ou sabe demais! Está mais do que na hora de deixar o mundo dos vivos também! Pensou ela caminhando pelo palácio.
Ela atravessou o corredor escuro, as janelas fechadas do palácio sobre a montanha não deixavam a luz suave da lua entrar. Júlia se irritou com a escuridão e entrou em seu quarto, o último quarto no corredor leste.
O aposento era bem decorado, as janelas deste estavam abertas para que a luz pudesse entrar, as cortinas azuis de seda dançavam suavemente contra a brisa. Ela bateu a porta e a trancou para ter certeza de que ninguém entraria ali naquele momento. Então ela escorregou pela porta até o chão e chorou em silêncio, cobrindo a boca para abafar os soluços.
Sua filha, sua pequena Ellyn havia sido encontrada e agora estava condenada.
As Sorcys a caçariam até que conseguissem capturá-la e usariam seu sangue para romper o lacre que mantinha Breedja aprisionada e mesmo que não fosse necessário o uso de todo sangue, sabia que elas a matariam por vingança, por Júlia ter escondido por todo aquele tempo que havia uma Mardam para liberar Breedja.
“Ela se amaldiçoou pelo que fez, por ter cedido a ele, por ter desejado algum dia viver ao lado dele. Mas as matriarcas do clã Mardam declararam que nenhum deles poderiam mais ter laços afetivos com as Sorcys a partir do momento em que Breedja jurou se libertar através do sangue de uma Mardam, concebida por uma Sorcys e um Mardam. Maddox sabia dos riscos e mesmo assim esteve com Júlia uma última vez depois daquela batalha, a melhor noite da vida dela.
As Matriarcas, temendo o retorno de Breedja, ordenaram também a morte de qualquer menina nascida Mardam, para que Breedja nunca retornasse.
Os guerreiros Mardans, com raiva daquela ordem, por perderem suas filhas, caçaram e mataram qualquer bebê Sorcys menino, pois eles só nasciam da união dos dois clãs, isso fez com que a última esperança de Júlia em ter uma aliança com eles desaparecer. Suas companheiras odiavam os Mardans tanto quanto eles as odiavam a partir daquele fatídico dia.
Júlia sabia no minuto que descobriu a gravidez, que deveria se esconder de todos ter seu bebê bem longe, ela voltou à Morada da Lua e escondeu a gravidez com magia até o último momento. Se fosse um menino, seria entregue ao pai, Maddox e criado como um caçador e ela nunca mais o veria, mas ele estaria seguro, pois os Sorcys machos poderiam ser exatamente iguais aos Mardans se conseguissem esconder as asas, porém tinham o mesmo dom de se transformar em luz como as Sorcys.
Mas o tempo passou e nasceu uma menina, e para tristeza e desespero de Júlia a menina não nasceu Sorcys, era um bebê lindo de olhos prateados e cabelos brancos. Uma menininha Mardam.
Júlia soube na hora que a viu que não a entregaria para as matriarcas Mardans, jamais! Mesmo que aquele ato egoísta condenasse a todos, ela não mataria a única prova do amor de Maddox por ela, a única prova que ele pudera lhe dar antes de terem que se separar para sempre. Mas aquele bebê... ela era tudo que restara a Júlia.
Depois que ganhou a pequena no lago do Caminho das Estrelas, Júlia usou seus poderes ainda fracos e fugiu para dentro da floresta de Graistar, afim de cortar caminho até o mar, ela iria fugir sozinha com a menina, abandonar o clã, abandonar tudo, ela tinha que deixar a menina em segurança. Porém Júlia foi surpreendida por um menino Mardam. Ceiran era o nome dele, ele tinha pouco mais de oito anos, era o pupilo de Maddox e estava no meio da floresta com uma espada grande demais para ele na mão, os olhos prateados brilhando no escuro.
– Onde vai? – Ele perguntou dando um passo para perto de Júlia.
– Vá embora, menino! – Ela rosnou, dando um passo para trás. Mesmo muito pequeno, ele era letal. Haviam duas marcas negras no tornozelo exposto do menino, a marca negra que aparecia toda vez que alguém matava uma Sorcys, para que ele fosse identificado e morto por elas. Mais um dos presentes de Breedja.
– Maddox está te procurando a meses. Ele disse que você deu as costas a ele, que seu coração escureceu igual ao das outras bruxas. É verdade? – Ele deu outro passo na direção da bruxa, fixando os olhos no embrulho que ela carregava.
– E se for? – Ela mostrou os dentes e tocou a adaga em seu cinto. – As matriarcas não nos queriam mais por perto de vocês! E vocês invadiram nossa casa e mataram os filhos das Bruxas! Eles não tinham nada a ver com aquilo! – O jovem a encarou e deu um sorriso velho demais para o rosto infantil.
– Ele está chegando... – Disse ele olhando para um ponto atrás da bruxa, ela virou a cabeça rápido, procurando pela ameaça, mas o menino era esperto demais, só havia ganhado tempo para descobrir o que tinha no embrulho nos braços dela. Ela o atacou instintivamente com a adaga, mas ele desviou no último segundo, pulando para fora do alcance dela, ela apenas fez um corte superficial em seu braço, mas ele logo se curou, deixando apenas uma mancha de sangue.
– É uma Mardam! – Ele arregalou os olhos para a bruxa, ela sabia que ele teria que morrer, que ele contaria aos outros sobre ela e ela seria caçada pelas matriarcas e morta. Mas antes que Júlia o atacasse, o menino pegou sua mão e correu arrastando-a consigo.
– Tem uma cabana de humanos no meio da floresta, passamos por aqui algumas semanas atrás e a mulher estava com a barriga grande... hoje quando passei, a vi ao redor da cabana, ela parecia muito triste e não tinha nenhum bebê com ela. – O menino era inteligente, talvez até demais para sua pouca idade.
– Por que está me ajudando? – Ela perguntou, o menino virou os olhos grandes para ela.
– Porque minha irmã foi queimada pela Matriarca. – Ele olhou o embrulho no colo da bruxa. – Não quero que façam o mesmo com a filha do meu mestre! – A bruxa soltou um soluço sofrido, ela poderia abraçar e beijar aquele menino, mas ele não parou de correr. – Eles estão mesmo por perto! Vamos logo! – Ele resmungou.
– Aqui ficará muito perto de nós! Muito fácil dela ser descoberta por todos! – Ela alertou, mas o menino sorriu.
– As coisas que estão embaixo do nariz, as vezes são as mais difíceis de achar! Assim, seu clã também não desconfiará! Se você fugisse, elas iriam descobrir logo o motivo! – Ele era realmente esperto demais.
A cabana estava a alguns metros à frente, um menino, ainda mais jovem que Ceiran estava ao redor da casa catando galhos, provavelmente para acender a lareira da casa.
Ceiran e Júlia se aproximaram o máximo que puderam sem serem notados pelo menino, Ceiran fez um bolo de folhas e indicou que a bruxa colocasse o bebê ali.
– não sei se consigo... – Ela olhou o rosto da pequena adormecida em seus braços, não fazia nem três horas que ela havia nascido.
– Eu vou cuidar dela pra você! Vou estar sempre por perto dela e prometo te falar tudo que acontecer! – Ele olhou por cima do ombro, esperando ver a qualquer momento os outros caçadores. A bruxa apenas acenou, então tocou a testa da pequena, adormecendo seu poder para que ela assumisse uma aparência humana, então a colocou no bolinho de folhas e sem olhar para trás, saltou para os galhos das árvores próximas e ficou vigiando enquanto Ceiran assumia a forma de uma pequena raposa cinzenta e corria entre as pernas do garoto humano que recolhia lenha e o fazia ir até onde Júlia havia deixado a bebê. Ela observou o menino pegar o embrulhinho e o levar para dentro da cabana. Ceiran voltou a sua forma normal e saltou até onde a bruxa estava.
– Eles estão chegando, vão sentir o cheiro dela ao se aproximarem da cabana. – O menino alertou. Ela engoliu em seco, sabia o que deveria ser feito para afastá-los.
– Prometa para mim que vai impedir que eles a matem! – O menino franziu o cenho para a bruxa, mas assentiu.
– Prometo. – Ela deu um sorriso triste e saltou da árvore, desaparecendo em direção a floresta.
Júlia encontrou os Mardans pouco depois de atravessar o rio, eles à estavam caçando. Gwyndion vinha à frente dos outros e notou o cheiro do sangue do menino na lâmina da bruxa. Ela deu a ele um sorriso provocativo e saltou sobre eles, girando com graça e atingindo dois deles com as adagas, não para mata-los, apenas para ferir e incapacitar. Gwyndion urrou e correu atrás dela floresta a dentro, Júlia sentiu o peso de seu poder sobre ela quando ele o lançou numa onda para derrubá-la. Ela parou e se virou, girando as adagas na mão. Filho de Maddox ou não, ela daria uma surra naquele Caçador para ele se pôr em seu lugar.
– Sempre o avisei que tipo de demônio você era. – Ele cuspiu as palavras, os olhos prateados semicerrados, os traços do rosto muito semelhantes aos do pai, com a diferença que Gwyndion era frio e cruel e seu pai não.
– Olha quem fala, assassino de bebês! – Ela retrucou apertando as adagas com mais força. Gwyndion havia gerado uma criança com uma de suas subordinadas, mas ele mesmo a matou quando a criança nasceu, ele a caçou e ateou fogo à elas, não só a menina, como sua mãe também, Ellarin, uma das melhores amigas de Júlia. Gwyndion moveu-se em uma velocidade sobrenatural, e atacou a bruxa, que se chocou contra uma árvore. Ela estava fraca, ainda não havia se recuperado totalmente do parto. Gwyndion a prendeu no chão, o corpo pesado sobre o dela a fez querer vomitar, mas ela apenas soltou uma das mãos e lhe rasgou o belo rosto com as garras, puxando-as mais para baixo até o meio do peito do guerreiro, que urrou e caiu para o lado com a dor lacerante. Ela havia deixado mais veneno que o normal fluir por suas garras para ter certeza que conseguiria fugir de volta à montanha.”
A bruxa fugiu de suas memórias, se ergueu do chão e andou até a gaiola ao lado da janela, onde Chu, sua coruja das neves repousava em silêncio.
– Não vou deixar que ela saia, não vou deixar que peguem minha Ellyn, nem que destruam minha casa. – Sussurrou para si, pegando um pedaço de papel sobre a escrivaninha de madeira e escrevendo com letras perfeitas um pequeno bilhete.
“Maddox, me encontre na passagem de Arizal até o Vale à meia-noite de amanhã.” – Ela não precisava assinar o bilhete, ele reconheceria sua letra e seu cheiro preso ao papel. Ela contaria a verdade a ele antes que a menina chegasse ao Vale, assim, ele a protegeria, se não o fizesse... não importaria o quanto ela o amasse, ela rasgaria sua garganta e destruiria o Vale e todos lá dentro, mas ninguém tocaria em sua filha. Ela cobraria a promessa a Ceiran mais tarde.
A bruxa enrolou o papel e o prendeu a pata da coruja:
– Destrua-o se for pego por qualquer outro que não seja Maddox! – Uma ordem, a coruja piou alto e saiu da gaiola em direção às sombras da noite.
Ellyn:
Ceiran me acordou antes do sol nascer, eu me enrolei nas cobertas e o ignorei, mas ele continuou me sacudindo, puxando meu braço.
– Vamos, Ellyn! – Ele puxou a coberta de cima de mim.
– Só mais um pouquinho! – Resmunguei tentando encontrar a coberta novamente, mas não a achei em lugar algum, então enrolei a saia do vestido de lã nas pernas e deitei sobre o braço, encolhendo-me mais.
– Vamos logo, menina! – Ele rosnou, mas apenas o empurrei com o pé para longe.
– Ainda está escuro lá fora. – Murmurei pelos cantos da boca escondendo o rosto no travesseiro apreciando um pouco mais a maciez contra minha pele, mas um peso em cima de mim me fez perder o ar e me encolher. Ceiran passou as pernas ao redor de meu tronco e me girou para cima antes de sentar em cima de mim.
– Quero sair daqui antes do sol nascer, antes da cidade ficar cheia demais, não quero humanos curiosos nos vigiando, esperando uma oportunidade de vender nosso paradeiro às Sorcys, entendeu? – Os olhos como mel aquecido estavam fixos nos meus.
– Não posso levantar se você estiver em cima de mim! – Falei com dificuldade, já que seu peso estava impedindo-me de respirar corretamente. Ele deu um sorriso preguiçoso e se inclinou para frente, sua boca muito perto de meu rosto, muito perto da minha, o que fez meu coração acelerar de forma descontrolada, Ceiran baixou os olhos, como se pudesse ver meu coração pulando através do vestido e saiu de cima de mim.
– Vamos.
Levantei-me da cama com as pernas ainda trêmulas. Ninguém nunca chegava tão perto assim, não da forma que ele chegou. Ninguém agia como se me conhecesse a minha vida inteira, como ele parecia me conhecer.
– Por que faz isso? – Perguntei.
– Te acordar? Eu disse que te acordaria cedo! – Ele retrucou.
– Não! Estou dizendo me tratar assim, diferente dos outros... Você é gentil comigo as vezes! – Ele ergueu as sobrancelhas e riu.
– Então você prefere que eu te trate igual eles? – Revirei os olhos.
– Claro que não... só acho estranho. Não combina com caçadores! – Falei.
– O que combina com caçadores então? – Aquele sorriso divertido estava de volta em seu rosto.
– Sei lá, ser grosseiro, porco e estúpido, agindo como feras irracionais e famintas. Isso parece adequado! – Respondi. Ceiran gargalhou e virou a cabeça.
– Seu irmão é um caçador, ele agia assim? – Vi uma pontada de algo cruel em suas palavras.
– Ele não, mas Lucian era... – Engoli em seco.
– Então! Você o matou! Se eu fosse como ele, você me mataria também! Prefiro ser gentil e continuar vivo! – Ele piscou para mim e se afastou.
– Claro, como se eu fosse conseguir! – Ele suspirou.
– Podia ter cortado minha garganta enquanto eu dormia, eu tenho um sono pesado! – Ele parecia estar avaliando-me quando disse aquilo, mas sobre eu o matar, algo se revirou inquieto dentro de mim.
– Não faria isso.
– Porque? – Ele me encarava sério.
– Por que é cruel, covarde e eu não sou covarde! – retruquei começando a ficar irritada com aquela conversa.
– Você não parece uma curandeira também! Curandeiras são doces, delicadas e gentis. – Mordi os lábios para não manda-lo pastar no inferno, mas não contive a resposta.
– Em Mirlut havia uma curandeira, Giena, ela parecia meu padrasto, grande forte e com bigode também! Todos tinham medo dela, ela era bruta e quando alguém tentava fugir da sala de cura antes de estar totalmente bem, ela apagava a pessoa e a amarrava em uma das camas. – Contei.
– Acho que você descreveu um urso com dons de cura! – Nós dois rimos, Ceiran abriu a porta e saiu, eu o segui sem reclamar.
Tomamos um rápido café no salão da pensão e saímos para a cidade. Ceiran me ajudou a montar e enquanto cavalgávamos para fora da cidade sob o olhar atendo e cruel de alguns habitantes da pequena cidade, Ceiran ia cantando algo baixinho, uma música alegre que nunca havia escutado antes, em uma língua que eu nunca me atreveria a falar mesmo se soubesse. Ele cantava baixo no idioma das sombras, a música fazia minha pele se arrepiar e meu coração bater mais rápido e assim que saímos da cidade, voltando para a estrada larga e cercada pelas altas árvores coloridas da floresta ao nosso redor, notei que Gwyndion e Adar cantavam a mesma canção.
Eles continuaram cantando por quase todo o caminho até a hora do almoço, quando pararam de cantar e desmontaram dos cavalos. Gwyndion montou uma fogueira enquanto Adar foi a um rio pegar água e Ceiran me levou junto com ele floresta a dentro.
– Vamos caçar. – Disse Ceiran pegando o arco e parando silenciosamente atrás de um tronco caído de uma árvore. A floresta estava tranquila, uma brisa fria soprava nossos rostos e Ceiran tinha uma expressão calma e concentrada no rosto enquanto observava atentamente a floresta, o único som era dos pássaros ao nosso redor, a respiração do caçador ao meu lado estava tão serena que ele parecia estar apenas descansando. Depois de um bom tempo em silêncio, Ceiran deu um pequeno sorriso, ele encaixou a flecha no arco e retesou a corda.
– O que está na sua mira? – perguntei olhando para o lugar que ele estava mirando e não vendo nada.
– Um Pisuri. – Ele sussurrou.
– Não estou vendo nada... – Ele soltou a flecha, que zuniu, o som da flecha cortando os ventos veio seguido de um estampido quando a flecha atravessou carne e osso, olhei para frente, inclinando-me sobre o tronco.
– Vamos. – Ele acenou para que eu o seguisse, passamos por cima do tronco e fomos em direção a um barranco, quase duzentos metros à frente havia uma ave colorida caída no chão, a flecha havia atravessado sua cabeça e estava presa em uma árvore atrás da ave. O olhei boquiaberta, Ceiran sorriu e pegou a ave.
– Como fez isso? – Minha voz quebrou o silêncio da floresta, fazendo alguns pássaros voarem dos galhos em que estavam pousados.
– Caçador... – Ele piscou para mim e foi em direção ao rio que Adar havia ido buscar água. Ele limpou a ave, soltando as penas coloridas e as deixando serem levadas pela correnteza.
– Queria aprender a atirar assim. – Falei depois de outro longo silêncio em que só ouvia Ceiran trabalhar na ave.
– Posso te ensinar, se você quiser. Mas não creio que Amanda a deixará sair muito da sala de cura... – Ele fez uma careta, pegando a ave já limpa e começou a caminhar para a fogueira.
– Quem é Amanda?
– Esposa de Gwyn. Uma curandeira também.
– Aquele bruto tem uma mulher? – O olhei espantada, Ceiran riu assentiu.
– Quase todos os caçadores são casados, Ellyn.
– Até você? – Senti meu estômago embrulhar, estava perguntando demais, algo pessoal demais. Ceiran me encarou por um instante, um sorriso satisfeito no olhar que me deixou ainda mais sem graça, pois ele parecia ter gostado da pergunta. Ceiran respirou fundo e olhou para longe, mas continuei esperando por uma resposta.
– Não, não sou.
– Algo errado com sua habilidade de ficar bonitinho para as fêmeas? – Provoquei, mas ele franziu o cenho.
– Nada errado com isso, tem muitas, aliás, que se jogam para cima de mim! – Ele deu um sorriso malicioso olhando dentro de meus olhos, senti algo como uma pontada de irritação bem lá no fundo.
– Por que Amanda não vai me deixar sair de lá? – Perguntei mudando rapidamente de assunto antes que ele pudesse pensar que eu tinha algum interesse nele. Ceiran desviou os olhos para as montanhas atrás de nós.
– Lá dentro é mais seguro. Longe do alcance das Matriarcas, elas nunca saem do templo, mas os olhos delas podem ver tudo, exceto o grande salão, e a sala de cura fica lá dentro.
– Porque elas representariam perigo? – Os olhos de Ceiran se tornaram sombrios.
– Por que elas são os verdadeiros monstros... – Ele sussurrou, dando-me a certeza de que aquilo foi um pensamento alto que ele não pretendia revelar, porém antes que eu lhe perguntasse algo mais, ele colocou a ave num espeto sobre o fogo.
– Porque não usaram magia como das outras vezes? – Gwyn bufou e cruzou os braços sobre o peito.
– Sorcys podem captar magia muito facilmente. Prefiro não arriscar ser encontrado. – Ele estava claramente irritado.
– Com medo delas? – Dei um sorriso debochado.
– Ainda estou pensando se te deixo viva, menina, então dobre sua língua e não me provoque! – Ele rosnou afastando-se da fogueira.
– O que eu fiz de errado? – Perguntei, Ceiran apenas riu e apontou com o queixo para Adar.
– Gwyn e ele estão acostumados com mulheres se atirando aos pés deles, não lhes dando patadas! – Ele virou a ave no fogo, estava começando a soltar um cheiro delicioso e meu estômago reclamou.
– Fiz uma pergunta simples, não tive culpa se ele ficou irritadinho! – Retruquei. Ceiran deu de ombros e continuou vigiando a comida.
Adar ainda olhava desconfiado para mim, ele tinha olhos castanhos escuros profundos, o olhar de um assassino, analisando-me, por vezes o peguei me observando da cabeça aos pés com um olhar predatório no rosto, ele estava sempre com seu machado na mão, pronto para qualquer coisa errada que eu fizesse.
No fim da tarde, quando estávamos na estrada cavalgando num trote acelerado, Ceiran deixou que Gwyn e Adar fossem um pouco mais na frente e sussurrou algo ao meu ouvido.
– Ele desconfia de quem você é. Acho que percebeu seu cheiro ou se lembrou dela ... – Ceiran falava tão baixo que tive que me inclinar um pouco para escutar. – Espero que tenha se esquecido de Júlia! – Ele murmurou.
– Do que está falando? Quem é Júlia? – Perguntei.
– Quando chegarmos em Serazen eu te conto, estamos quase na fronteira... – Adar olhou para trás, no momento que Ceiran estava falando comigo. Adar semicerrou os olhos para nós, Ceiran ainda estava com a boca perto de minha orelha, mas para minha surpresa, ele segurou meu queixo com uma mão e passou a língua em minha orelha. Adar deu uma gargalhada medonha e virou para frente novamente, Gwyndion deu uma rápida olhada para trás e sacudiu a cabeça franzindo o cenho, um aviso silencioso para Ceiran, senti meu rosto queimar e minha pele formigar.
– O que você fez? – Minha voz não passou de um sussurro assustado, tentei me soltar de seu aperto mas Ceiran não permitiu que eu me movesse.
– Estava salvando nossa pele! Adar só vai sossegar quando chegarmos ao Vale, se tudo correr bem, claro! – Ele sussurrou, ainda perto de mais, sentia seu hálito em minha orelha, acariciando minha pele. Ele sentiu quando me encolhi e diminuiu seu aperto. Virei para trás o suficiente para ver seu rosto, ele estava sério novamente, um tanto distante. Mas não podia perguntar mais nada agora, iria esperar até chegar à cidade.
5
Lembranças
Maddox Agarathis, o líder do clã Mardam saiu de sua casa no momento em que o sol desaparecia por detrás das montanhas. A casa rustica de madeira ficava de frente para o lago das estrelas, alguns metros e ele poderia caminhas pelas margens verdes. Ele olhou em volta, admirando silenciosamente as casas, as pequenas plantações, os animais e os Mardans e as mulheres humanas que viviam em harmonia ali.
O vale estava mais silencioso do que de costume aquela noite, pois os Caçadores que saíram a alguns dias para investigar uma explosão de poder próxima as montanhas, voltaram mais cedo com informações. Gwyndion vinha com Adar e Ceiran e traziam uma pequena bruxa como prisioneira com eles, não uma Sorcys, ela era outra coisa, algo que eles não souberam identificar, uma bruxa com poderes das sombras.
Aquela notícia fez Maddox sentir que algo ruim se aproximava, ele tentou, e como tentou não pensar em Júlia, em como ela se foi, como tentou matar seu filho. Ele não acreditava que depois de tudo que fez para provar seu amor, para provar que não tinha raiva das Sorcys e que ainda tinha esperança em uma aliança com elas, Júlia o deixou.
Ele não a culpava, afinal, Breedja foi bem específica em suas últimas palavras, fazendo com que as Matriarcas Mardans ordenassem a morte de todas as meninas nascidas Mardans, ele não pode impedir quando seus guerreiros enfurecidos, caçaram e mataram os bebês Sorcys também. Aquele ato de vingança fez com que uma aliança entre os dois clãs de bruxos mais temidos do mundo, se tornassem inimigos declarados.
Maddox nunca desejou que os clãs se separassem, afinal, eles eram os melhores e apenas juntos podiam fazer com que machos e fêmeas das duas espécies nascessem. Porém, com a separação dos clãs e com a união dos Mardans com fêmeas humanas, nasciam apenas meninos Mardans ou meninas humanas.
Mesmo com todo cuidado, mesmo evitando matar Breedja para que não houvesse rixa entre os clãs, para que conseguisse uma nova aliança com a líder que viesse depois, ele não conseguiu evitar que se separassem.
Fazia quase vinte anos que ele não tivera nenhuma notícia de Júlia, só soube que com o aprisionamento de Breedja na montanha ela havia se tornado a Líder. A senhora das Estrelas, era como as Sorcys a chamavam, abaixo apenas da própria Breedja, Senhora da Lua.
Mas na noite passada enquanto estava deitado em sua cama perdido em pensamentos, Maddox estremeceu ao ver Chu voar para dentro por sua janela aberta. A coruja branca piou baixo e pousou sobre a cama de Maddox. Ele a olhou com estranheza, sabia que ela o bicho preferido de Júlia e que ela não arriscaria a coruja até ele se não fosse algo realmente importante.
Maddox acariciou a cabeça do animal, que se inclinou para receber o carinho, ele tirou o bilhete de sua pata e mal acreditou nas palavras do bilhete, sentiu seu coração que há muito estava silencioso, agitar-se novamente.
Ele havia sido fraco, entregou seu coração a ela e ela desapareceu, levando junto uma parte dele. Porém dessa vez ele não seria fraco, ele iria exigir uma explicação pelo que aconteceu, por ela ter o deixado sem ao menos dizer adeus. Ele sabia que teriam sido considerados traidores caso continuassem juntos após a matança que as Matriarcas os obrigou a cometer, sabia que ela fez a coisa certa em se distanciar, pelo bem se seu Clã e pelo próprio bem, mas depois de tudo que viveram juntos antes de Breedja cair, e da última noite juntos, ele não podia aceitar que Júlia não sentisse nada por ele a ponto de lhe virar as costas como ela havia feito.
Maddox deixou o Vale assim que a noite caiu, armado até os dentes, caso o convite para uma conversa de Júlia fosse algo a mais do que algumas horas de conversa. Ele conhecia o poder daquela bruxa, assim como sua habilidade de se transformar em uma fera selvagem, sabia que com o poder que possuía, poderia ser facilmente derrubado pela Sorcys, e isso não podia acontecer, pois Gwyndion não estava pronto para assumir o clã, ele os levaria a ruína, com certeza iniciaria uma guerra contra as Sorcys e se isso acontecesse, levariam metade do continente para cova com boa parte dos guerreiros dos dois clãs.
A lua iluminava as montanhas que cercavam o vale, protegendo-o como muralhas ao redor de uma fortaleza e fazendo com que tudo ficasse com um brilho prateado, desde as montanhas congeladas até o lago no centro do vale. Maddox atravessou a passagem e foi rapidamente até a passagem que levava a Arizer montado em seu cavalo de sombras, um vulto negro correndo na noite.
O guerreiro e líder dos Mardans parou a poucos metros das grandes rochas que formavam um arco ao redor da estrada, ele deixou que o cavalo desaparecesse nas sobras e esperou. A ansiedade tomando conta de seu corpo, os músculos travando a cada som, cada ruído que pudesse indicar a chegada dela.
Depois de algum tempo, quando a lua já estava alta, um farfalhar de asas chamou a atenção de Maddox, ele olhou para o sul e viu. Ela vinha com as asas abertas a alguns metros de distância, ele sentiu o coração acelerar por um momento, pois nunca achou que fosse ter aquela visão novamente. Júlia vinha voando até ele, sua aparência luminosa, como uma estrela caída, a lua clareando ainda mais suas asas brancas e puras. Sua pele clara brilhava exposta ao luar e os cabelos negros voavam ao redor dos ombros.
Júlia pousou a poucos passos dele, as roupas negras e apertadas revelavam o corpo pequeno e belo. Em seus quadris presas ao seu cinto estavam suas lâminas gêmeas, Assys e Alys, as armas feitas de um metal transparente, trazido por estrangeiros através da Passagem das Estrelas. Um pequeno lembrete de que ela estava ali para conversar, mas que estava pronta para qualquer coisa, os olhos escuros faiscaram quando ela se aproximou mas alguns passos de Maddox, analisando-o. Ela inclinou a cabeça um pouco para a direita ao chegar perto o suficiente para que ele pudesse tocá-la ao esticar a mão. Maddox olhou encantado para ela, para tudo que ela representava para ele e mesmo que tivesse se preparado para aquele momento, não conseguiu conter os sentimentos que invadiram sua mente, as memórias sobre aquela bruxa, aquela mulher parada diante dele com as mãos a poucos centímetros das armas. Ele observou enquanto Júlia encolhia as asas, fazendo-as desaparecer atrás de si, ela não tirava os olhos dos dele nem por um momento, o peito se movendo rapidamente, como se estivesse cansada, recuperando o fôlego depois de um voo rápido, ou simplesmente por estar tão nervosa quanto ele para aquele encontro.
Durante um bom tempo os dois não se moveram, não ousaram respirar de forma diferente, apenas se encararam, até que Maddox não aguentou ficar apenas olhando e avançou segurando Júlia pela cintura e puxando-a para perto dele, ela se moveu ao mesmo tempo, levantando o rosto e ficando nas pontas dos pés. Suas bocas se encontraram num cumprimento gentil e passaram para uma longa caricia, quando a língua de Maddox roçou o céu da boca da bruxa, ela se soltou de seu aperto, ainda respirando com dificuldade para encará-lo incrédula. Mesmo depois de tudo, ele ainda a amava e aquilo fez o coração da bruxa saltar esperançoso. Ele tinha tantas perguntas, tanto o que dizer depois de todo aquele tempo, mas foi ela quem começou aquela conversa.
– Mesmo depois de tudo? – Ela quis saber, agora ignorando Assys e Alys em seu cinto, apenas encarando os olhos azuis e doces de Maddox.
– Mesmo que o mundo fosse destruído pelas suas mãos, ainda assim eu te amaria. – Ele respondeu segurando a mão trêmula da bruxa e a beijou, os olhos dela se tornaram vermelhos quando ela se transformou, revelando a verdadeira aparência, as marcas escuras que cobriam seus braços como pequenas estrelas, a Senhora das Estrelas, junto as marcas estavam os espinhos das pontas de seus dedos até os cotovelos. Maddox passou os dedos sobre aquela trilha de pequenos espinhos afiados, mostrando a ela que não se importava, ela deu um breve sorriso.
– Pra um Mardam, você é bonzinho demais, Mad! – Júlia sorriu e jogou os cabelos para o lado, Maddox apenas sorriu.
– Sou bonzinho com você. – Retrucou.
– Manso, manso... Poderia me aproveitar disso. – A bruxa com um sorriso travesso deu um passo na direção dele, mas ele a segurou, prendendo-a contra as padras do arco.
– Por quê? Por que você foi embora? Por que me deixou daquela maneira? – A tristeza nos olhos daquele guerreiro fez Júlia se sentir um monstro, mais do que sabia que era de verdade e sua garganta apertou.
– É sobre isso que vim falar com você. – Ela sussurrou olhando cautelosamente para a entrada do Vale. – Eu fui embora, porque estava esperando um filho seu. – As palavras de Júlia foram como ácido descendo pela garganta de Maddox, ele inspirou fundo antes de soltar os braços dela e cambalear para trás.
– E mesmo assim você foi embora? – Ele a olhou incrédulo.
– Eu tive que fugir, Maddox! Não ia arriscar que as Matriarcas descobrissem que eu estava grávida, elas me matariam antes mesmo da criança nascer! – O tom suplicante na voz da bruxa fez Maddox parar e encarar os olhos amendoados dela, os dele agora estavam quase totalmente prateados enquanto ele se transformava aos poucos, revelando sua verdadeira forma.
– O que aconteceu... depois que você se foi? – Maddox perguntou, ela respirou fundo, um nó quase impedia que as palavras saíssem dela.
– Era uma menina, Mad, uma menina Mardam! – disse ela sentindo as lágrimas escorrerem por seu rosto. – Quando ela nasceu, quando eu vi os cabelos e os olhos prateados, eu soube que teria que fugir, eu a levaria para o outro lado do mar. Mas estava fraca demais e fui impedida de fugir por um dos seus...
–Onde ela está? Quem a impediu? – Ele se aproximou e a segurou pelos ombros, a ira crescendo dentro dele com tanta força que ele não podia conter.
– O seu protegido, Ceiran. Encontrei com ele na floresta de Graistar quando estava fugindo na noite em que ela nasceu. Ele me ajudou a escondê-la, eu lacrei seus poderes e a entreguei para uma família humana! – Ela explicou tomando cuidado com cada palavra, pois Maddox já havia mudado sua aparência, os cabelos castanhos claros estavam cinzentos e os olhos prateados.
– Ceiran sabia que era minha filha? – Ela assentiu. – Aquele moleque...
– Não vai fazer nada a ele! Eu o fiz prometer que cuidaria dela que a esconderia e que não a deixaria morrer!
– Júlia, por favor, não me diga que a bruxa que eles estão trazendo para o vale... – Ela se encolheu um pouco para longe de Maddox.
– Sim, é ela, nossa filha! O lacre que coloquei sobre os poderes dela se rompeu... – Maddox ficou pálido e engoliu em seco. Ele sabia o que as Matriarcas fariam se pusessem os olhos nela, se sentissem o cheiro deles, de Júlia na menina.
– Você precisa protegê-la dentro do Vale! Impedir que as Sorcys a capturem! – Ela suplicou, apertando as mãos dele com força. – Ontem elas saíram sem minha permissão, ansiosas demais por causa da Lua de Sangue... Elas quase a capturaram!
– Os... outros sabem? O que ela é? – Perguntou ele endurecendo a expressão, montando um plano em sua cabeça.
– Não, pelo menos até onde eu sei, eles pensam que ela é uma das bruxas do clã das sombras de Serenus, apenas Ceiran sabe a verdade. Ele vem cuidando dela para mim durante todo esse tempo. – Ela fez questão de dizer novamente, caso Maddox ainda quisesse castigá-lo por ficar em silêncio todo aquele tempo.
Maddox então descobriu o motivo pelo qual seu discípulo desaparecia algumas noites, ele teria muito que agradecer a Ceiran quando eles chegassem ao vale. Mas ainda haviam dois problemas, as matriarcas e Gwyndion.
– Maddox, sabe o que Ceiran é, não sabe? – Ele a olhou com estranheza, conhecia o pequeno guerreiro Mardam desde que era uma criança;
– Ele é um dos Mardans mais fortes do clã, creio que seja até mais forte que Gwyn... – Explicou ele, mas a expressão nervosa da bruxa o deixou tenso. – Não é?
– Ceiran é um Sorcys. – Júlia disse aquelas palavras devagar, para que Maddox as absorvesse e não surtasse. – Ele tem a habilidade da raposa. O vi se transformar quando ainda era uma criança. – Maddox parecia ainda mais tenso agora. Ele olhava de fora inexpressiva o céu escuro.
– Ele escondeu seus poderes para não ser pego pelas Sorcys então. – disse ele por fim, Júlia assentiu e se aproximou de Maddox, alguns passos apenas, ela hesitou em tocá-lo novamente.
– Me desculpe, por ter escondido de você, eu só...
– Você estava certa! Agiu com a razão. Agora o problema é que ela está vindo para cá e as Matriarcas... elas descobrem tudo. – Um frio desceu pela espinha de Maddox, mas aquelas velhas mandonas, Ahh elas aprenderiam a ficar fora do caminho dele caso mexessem com a menina!
– O que vai fazer então? – Júlia ficou ainda mais nervosa. Maddox sorriu para ela, da forma que só ele fazia, um sorriso que significava que ele iria derrubar seus inimigos.
– Elas não vão fazer nada, se fizerem, faço questão de arrancar a cabeça delas eu mesmo, nem que o Vale tenha que ficar sem as sacerdotisas e perder a barreira delas!
– E seu filho? Ele nunca gostou de mim, estou até surpresa ele não ter descoberto quem é a Ellyn ainda. – Maddox sorriu ao ouvir o nome de sua filha, ela ainda não havia dito.
– Gwyn está a muito tempo casado com uma humana mística, ela concertou ele aos poucos, ainda é um bruto ignorante, mas não como era quando fez aquilo com Ellarin.
– Certeza? – Ela estava preocupada, afinal, ele não hesitou em tentar matá-la quando teve a chance.
– Gwyndion não fará nada. – Ele garantiu. Júlia assentiu e olhou para as montanhas ao sul dali.
– Se elas a pegarem...
– Não pegarão! Ela estará segura dentro do Vale, ninguém entra ou sai daqui sem que eu permita. – Maddox afirmou aquilo, dando certeza a ela de que sua filha estaria segura, mesmo assim, ela ainda sentia que algo podia acontecer. Halles, ele sabia de Ellyn, ou pelo menos suspeitava e se Maddox iria cuidar das Matriarcas Mardans, ela iria cuidar do jovem Sorcys.
– Ela não pode se libertar! – Júlia disse por fim, abrindo suas asas novamente, pronta para partir.
– Eu ainda tinha esperanças em manter a aliança entre nós, eu não a matei por isso, mas parece que não deu certo!
– Nada deu certo, Maddox, desde que você a deixou por mim, nada deu certo. Agora tenho que ir, antes que elas sintam a minha falta. – Júlia o olhou tristemente uma última vez antes de abrir as asas e se lançar ao céu noturno e ele a acolheu como uma de suas estrelas mais brilhantes.
Maddox sabia que Breedja havia quebrado a aliança e iniciado aquela guerra por causa dele, por raiva, despeito e vingança. Breedja tomaria o trono da rainha Iriel apenas para poder marchar seu exército imortal contra o clã Mardam e destruir a todos por que Maddox havia a deixado e ela não aceitou aquilo, porém, os Mardans foram chamados por Iriel para proteger seu reino de Breedja e das Sorcys. Maddox se arrependeu amargamente de tê-la deixado viva, pois se tivesse simplesmente a matado naquela guerra, Júlia teria se tornado a senhora da Lua e os clãs poderiam continuar unidos por uma nova aliança, mas talvez, apenas talvez aquilo não fosse um futuro perdido.
Escolhas erradas podem ter fins trágicos, as vezes, o que parece certo à primeira vista é a escolha errada, e muitas vezes, ser ruim, ser cruel, é a única forma de manter a paz. Maddox manteve Breedja viva em memória há um sentimento que havia morrido e muitas vidas foram perdidas por aquela fraqueza, porque a bondade em meio a uma guerra não é nada mais que uma fraqueza.
Maddox voltou imediatamente para o Vale e assim que passou pelos portais, jogou um feitiço poderoso ali, para quando a menina entrasse para aquele mundo, ela não seria sentida pelas Matriarcas, elas não veriam seu poder, sua verdadeira natureza, seus poderes seriam ocultos por aquela barreira. Ellyn, sua filha estaria segura ali, e aquela noticia havia dado uma nova esperança a Maddox, os clãs ainda poderiam se unir um dia, não há nada que não possa ser concertado.
6
Vale da Lua
O esquema ao chegarmos em Serazen foi quase o mesmo que quando chegamos a Igraes. Adar, Gwyndion em um quarto, Ceiran e eu no outro, eles não arriscariam me deixar sozinha. Porém, esta noite, Gwyn deixou a corrente em meu pulso, o que me deixou ainda mais nervosa.
Ceiran não havia falado comigo desde sua tentativa de “desviar” a atenção de Adar de nossa conversa, fazendo-o pensar que estávamos flertando. Só de lembrar a forma que ele me tocou meu corpo ficou tenso. A chuva havia começado a cair pesadamente lá fora pouco depois que chegamos ao estabelecimento, deixando o clima ainda mais frio e tenso. Estava sentada na cama do pequeno quarto, aguardando Ceiran voltar com comida e desejando com todas as forças que meu corpo parasse de tremer. Não conseguia entender a sensação estranha que eu o conhecia desde sempre, não entendia a forma como me sentia à vontade perto dele, mas ele reagia de forma estranha toda vez que ficava nervosa com a forma que ele me tratava, com intimidade, como se me conhecesse também.
Ele voltou quase meia hora depois, trazendo comida apenas para mim.
– Achei que não fosse voltar mais! – Resmunguei levantando-me da cama e indo até a mesinha para comer.
– Não tenho para onde fugir! – Ele resmungou deixando o prato sobre a mesa e indo até o banheiro, batendo a porta com força demais. Comi a sopa de avelãs que ele havia trazido com algumas torradas e voltei para a cama. Fiquei quieta olhando a chuva cair lá fora, os raios iluminavam o céu de vez em quando, fazendo-me lembrar das noites de chuva na cabana, quando Fergus e eu ficávamos no sobrado da cabana observando pela pequena janela a chuva cair sobre as folhas vermelhas no chão da floresta, as vezes, conseguia colocar minha raposinha, nuvem, para dentro de casa também, para que ela ficasse protegida da chuva, mas ela sempre sumia ao amanhecer.
Ceiran saiu do banheiro completamente vestido dessa vez e foi até sua cama, deitou-se de costas para mim e se cobriu.
– Não vai comer?
– Já jantei, Gwyndion e Adar estavam me esperando lá embaixo. – respondeu ele rispidamente.
– Não ia me contar algo? – Pedi tentando entender seu humor.
– Não, é melhor dormir. – Aquilo fez uma ira acender dentro de mim, eu peguei meu travesseiro e fui até onde ele estava deitado, ergui o travesseiro e o acertei com o máximo de força que consegui, fazendo-o olhar abismado para mim. – O que é isso? – Ele rosnou, tomando o travesseiro de minha mão e o atirando de volta para minha cama.
– Você está agindo de forma estranha desde aquela hora de tarde! – Falei sentindo meu coração acelerar com o olhar penetrante de Ceiran.
– Estou agindo normalmente. – Disse ele dando-me as costas e deitando novamente, porém, puxei seu travesseiro e o usei como arma dessa vez.
– Não está não! Você está agindo como um... – Minha voz morreu quando ele se virou novamente tomando o travesseiro de mim e o transformando em uma pilha de penas.
– Agindo como? Como um caçador? Bom, estou mais parecido com um agora? – Ele rosnou, segurou meus braços e me empurrou até minha cama. – Está com medo agora? – O encarei por um longo tempo enquanto brincava com uma das penas que havia agarrado em minha roupa.
– Não tenho medo de você. – Falei ainda com meus olhos fixos nos seus. Ele bufou e sentou-se na cama, passando as mãos por seus cabelos ruivos.
– Mentirosa! – Ceiran me soltou e virou de costas novamente.
– Você consegue entrar na mente das pessoas?
– O quê? Claro que não!
– Então como me chama de mentirosa?
– Eu sei o que você sente ao se aproximar de mim, eu reconheço o medo de longe, Ellyn.
– Acho que seus sentidos estão ficando ruins então! – Falei.
– Gwyndion me chamou para conversar, para chamar minha atenção. Ele falou que eu estava assustando você, que viu como você estava com medo em cima do cavalo comigo! – Ele desviou o olhar para a janela, para a chuva lá fora tocando uma suave melodia quando as gotas batiam nos vidros.
– Então, acho que os sentidos dele estão tão ruins quanto os seus! – Falei, Ceiran me encarou novamente, os olhos agora estavam vermelhos e brilhantes, ele aos poucos mudou de aparência e se aproximou, os pequenos espinhos em seus braços se ergueram levemente, reluzindo com algo que parecia ser veneno os cobrindo. Ceiran ergueu a mão e pegou a minha, meu coração disparou.
– Ainda assim não tem medo? – Eu engoli em seco e sacudi a cabeça negativamente.
– Não.
– Não parece!
– Você está sendo um idiota. – Falei, Ceiran franziu o cenho.
– Então, o que é isso? – Ele colocou a palma da mão em meu peito, onde meu coração batia tão violentamente que poderia quebrar algumas costelas no desespero de saltar para fora dali.
– Eu fico nervosa com você tão perto de mim, por que me irrita o quão me sinto confortável perto de você, por que me deixa sem jeito a forma que você age comigo, como se me conhecesse desde sempre! – Admiti, Ceiran fechou os olhos e respirou fundo, achei que ele fosse voltar a sua aparência humana, mas ele não fez. – Não tem nada a ver com medo!
– Eu vou te contar algo, você vai prestar atenção e vai ter que fingir que não sabe de nada. – Disse ele sentando-se em minha cama. Ele pegou meu pulso e num movimento simples fez a corrente de prata desaparecer e outra aparecer em seu lugar, mas de um metal que não feria minha pele.
– O que você disse que ia me contar na estrada? – Ele assentiu.
– As Sorcys e os Mardans são os dois clãs de bruxos mais poderosos dos três reinos, todos os outros bruxos, feiticeiros e magos os temiam por terem as maiores habilidades em combate e por serem os mais fortes, embora os clãs fossem pequenos, eram os mais perigosos e devastadores. – Ceiran deu um sorriso assustador. – Uma ameaça vinda do reino do Sul, os feiticeiros de Grisath estavam vindo para o reino do Oeste e queriam tomar o Vale da Lua e a Montanha do Caos. Eles não eram tão poderosos quanto as Sorcys ou os Mardans, mas eram em maior número, mesmo os dois clãs juntos não os venceriam em quantidade, mas os poderes dos dois clãs unidos, era quase invencível. Então Maddox e Breedja fizeram uma aliança e uniram os dois clãs para derrotar os feiticeiros do Sul. A aliança deu tão certo para aquela batalha que Maddox e Breedja decidiram manter a aliança, só que Breedja era apaixonada por ele e propôs que o casamento entre os líderes dos clãs, poderia promover uma aliança eterna, e a mistura das duas raças poderiam nascer guerreiros ainda mais poderosos e eles seriam temidos por todos os reinos. – Ceiran fez uma pequena pausa e foi até a porta, verificando se não havia ninguém escutando.
– E ai? – perguntei ansiosa. Ceiran fez um gesto para que eu baixasse a voz, então voltou até a cama e começou a contar novamente, bem baixo dessa vez.
– Maddox aceitou a ideia dela e permitiu que eles se misturassem e eles perceberam que da união das Sorcys com os Mardans nasciam Mardans fêmeas e Sorcys machos, ao contrário do que acontecia quando os Mardans e as Sorcys se misturavam com os humanos, nesse caso, de um Mardam e uma humana só nasciam meninos Mardans e meninas humanas, com as bruxas era o mesmo, só nasciam Sorcys fêmeas e meninos humanos. Porém, depois de algum tempo de convivência com Breedja ele percebeu o tipo de criatura que ela era, cruel, possessiva e fria, ao contrário de sua segunda, Júlia. Júlia era uma Sorcys também, mas havia sido criada por humanos e encontrada pelas bruxas quando já era adulta, elas descobriram seu poder e o quanto ela era habilidosa, ela imediatamente conquistou o segundo lugar no clã.
“Júlia aos poucos conquistou o coração de Maddox e ele acabou deixando Breedja por ela. Como vingança, Breedja seduziu Adar e ficou com ele, achando que fazendo ciúme em Maddox ela o conseguiria de volta, quando ela percebeu que não deu certo, ela obrigou as Sorcys que estavam no Vale da Lua a voltarem para a cidade no topo da montanha e declarou guerra aos Mardans...
– Como que ficar com Adar, causaria ciúme em Maddox? De onde ela tirou isso? – Ceiran bufou por causa de minha interrupção.
– Adar é o irmão mais novo dele! – Ele explicou, como não perguntei mais nada, ele continuou a falar. – Depois de quase um ano sem notícias das Sorcys, Breedja atacou o castelo de Iriel afim de matar a rainha e tomar o trono para ter poder sobre o exército imortal de Iriel. Mas Iriel tinha uma ligação mais antiga com os Mardans, uma espécie de contrato de proteção e eles foram até lá defendê-la, foi aí que a guerra dos Sons teve início.
– Por que chamavam de guerra dos Sons? – Perguntei.
– Por causa dos sons de trovões e das tempestades que Maddox invocava para derrubar as bruxas.
– Então... Maddox não matou a bruxa, não é? – Ele assentiu.
– Maddox usou seus poderes para criar um lacre, uma prisão para Breedja sob a montanha do Caos, onde é o lar das Sorcys. Ele não quis matá-la em respeito aos anos de aliança e em respeito à Júlia, já que Breedja quem trouxe a bruxa para o clã. Mas nos últimos momentos antes de ser lacrada, Breedja disse que se os clãs continuassem unidos, se eles se misturassem novamente, uma Mardam nascida da união desses dois clãs, a libertaria do lacre com o próprio sangue e como vingança ela destruiria o Vale da Lua com todos os Mardans dentro. – Ceiran deu um suspiro cansado.
– Então os clãs se separaram!
– Não só isso... as matriarcas Mardans ordenaram a morte de todas as meninas nascidas Mardans para evitar que a bruxa retornasse e não permitiram que mais nenhum Mardam se envolvesse com uma Sorcys. Muitos guerreiros eram pais de meninas nascidas Mardans, com raiva, eles foram até a montanha e mataram todos os meninos nascidos Sorcys também. – Engoli em seco e senti como se o chão tivesse sumido debaixo dos meus pés.
– Mas isso... é uma monstruosidade! Como eles puderam! – Olhei para longe, sentido as lágrimas se acumularem nos meus olhos.
– É, isso foi horrível.
– E por que eles não podem saber que você me contou essa história? – perguntei.
– Não é isso, Ellyn. – O olhar de Ceiran fez algo afundar ainda mais dentro de mim. – Você é uma Mardam, é filha de meu mestre, Maddox e de Júlia. – Quando ele disse aquilo, o quarto começou a girar ao meu redor.
– O quê? – O encarei assustada, mal respirava.
– Eu encontrei Júlia no dia que você nasceu, eu ajudei ela a te esconder, eu chamei aquele menino humano para perto de onde você estava para que ele pudesse te levar para dentro de casa. – Não tinha certeza se eu estava respirando, meu peito doía tanto que mal consegui falar.
– Por que...
– Eu prometi a ela que não deixaria que eles te matassem também! – Disse ele se levantando e segurando minha mão, um brilho ofuscante fez com que eu desviasse o olhar, quando o brilho sumiu, pude voltar meus olhos para ver o que havia acontecido. Ceiran havia desaparecido, em seu lugar, ao redor de suas roupas acumuladas no chão, havia uma raposa prateada com olhos cor de mel.
– Nuvem! – olhei espantada a raposa que me encarava silenciosamente. Ele regougou baixinho e pulou para a outra cama, enfiando-se embaixo do cobertor e voltando a ser Ceiran, ruivo, em sua forma humana.
– Você é Nuvem... – Falei.
– Eu te conheço desde sempre, estive quase todas as noites perto daquela cabana tomando conta de você por causa da promessa que eu fiz. – Ele explicou enrolando-se no cobertor, peguei suas roupas no chão e lhe entreguei automaticamente, mas sem sentir exatamente o que estava fazendo.
– Por que prometeu isso, se as Sorcys são suas inimigas? Porque ajudar minha...mãe a me esconder? – Ceiran pegou a roupa de minha mão, mas não desviou o olhar.
– Sorcys não são minhas inimigas. Meu pai morreu na guerra dos Sons, mas minha mãe e minha irmã eram Sorcys, as matriarcas mataram minha irmã e minha mãe tirou a própria vida de tanta tristeza. Maddox foi quem me acolheu, quem me treinou e me deu um lugar no grupo dos caçadores.
– Todos os Mardans podem se transformar assim? Eu posso mudar assim também? – Ele deu um sorriso triste.
– Não sou Mardam, Ellyn. Eu sou um Sorcys. – Dessa vez eu não estava preparada para mais uma notícia como aquela. Caí sentada na cama e fiquei observando-o se vestir escondido pelos cobertores.
– Mentira...
– Eu tenho olhos vermelhos, Ellyn! Olhos vermelhos, asas, pele branca quase cinza... Os Mardans machos em sua forma real têm a pele num tom marrom dourado, olhos e cabelos prateados e não tem asas!
– Você tem asas? – Olhei ainda mais espantada para ele. Ceiran deu um sorriso tímido, saiu debaixo do cobertor e alterou sua aparência novamente, só que dessa vez, asas grandes e brancas apareceram, dei um pulo para trás e fiquei olhando aquilo por um bom tempo.
– As Sorcys da luz Eterna... – ele encolheu as asas e ficou normal novamente.
– Você... pode voar? – Ele ergueu as sobrancelhas e riu.
– Nunca as usei. – Disse ele timidamente. – Finjo ser um Mardam para que eles me aceitem, nunca aprendi a voar. Só sei usar minha forma animal, que é uma raposa.
– Então só os Sorcys podem se transformar em animais? – Ele assentiu. – Sabe a forma animal dela? – Ele franziu o cenho, mas falou:
– Uma coruja das neves. – Ele ficou sentado na cama olhando para fora, a chuva havia aumentado e agora a tempestade parecia assolar o mundo lá fora. Engoli em seco, mesmo que estivesse com raiva por ele não ter me dito nada antes, por meus pais não terem ido me buscar, Ceiran esteve comigo todo o tempo, ele nunca saiu de meu lado, como nuvem, mas ainda assim estava lá.
– Obrigada. – Ele olhou para mim, novamente com as sobrancelhas arqueadas.
– Pelo que?
– Por confiar em mim, por me contar e por estar lá! – Deitei na cama e fiquei olhando-o, ele estava deitado sobre o braço, ainda olhando pela janela.
– Vou manter minha promessa, mesmo quando entrarmos naquele Vale.
– Vou tentar facilitar sua vida e ficar longe de problemas, principalmente longe dessas matriarcas. – Ele riu.
– Obrigado. – Então ele dormiu, eu tentei, realmente tentei dormir depois daquilo, mas o medo do dia que quase fui pega pelas Sorcys, cismou em me assombrar.
Nos dois dias que seguiram, Ceiran passava a maior parte do dia me ignorando, algo que combinou comigo quando estávamos saindo de Serazen, já que Maddox e Adar haviam o chamado aquela noite para jantar para poder o alertar a ficar longe de mim, até saberem o que exatamente, eu era.
Durante aqueles dois dias, tive que dormir perto de Gwyndion novamente, e durante a noite, tinha súbitos desejos de lhe cravar o machado nas costas e tentar escapar, mas sempre encontrava os olhos vermelhos de Ceiran me vigiando, alertando para que eu não tentasse nada idiota.
Um dia de viagem depois da última cidade que paramos, chegamos à uma estrada larga, cercada por árvores ainda maiores e escuras, ali estava muito frio e soprava um vento irritante, fazendo com que eu agradecesse por Ceiran estar no cavalo junto comigo, pois ele mantinha seu manto ao meu redor.
No final da tarde, tive um pequeno ataque de pânico ao ver a cadeia de montanhas à nossa frente, mais alguns minutos, estaríamos dentro dos limites do Vale da Lua. Ceiran me apertou devagar para que eu me acalmasse, já que meu coração parecia querer sair por entre as costelas.
– Com medo? – Ele sussurrou para mim.
– Não, claro que não! Imagina se eu teria medo de entrar em um Vale totalmente fechado cheio de bruxos e caçadores malignos e cruéis! – dei um baixo assobio – Nem estou com nenhum pingo de medo de entrar lá! – Ceiran riu baixo, para não chamar atenção dos outros dois.
– Ainda mais depois do que te contei, não é? – Um arrepio subiu por minha espinha. Se aqueles bruxos desconfiassem do que eu era... eu com certeza seria morta por eles.
– Ceiran...
– Não vou deixar que eles te matem! – Ceiran disse baixinho.
– Obrigada. – Olhei novamente para as montanhas que cercavam o Vale, formando uma muralha de montanhas ao longo de quilômetros.
– Seu pai vai te reconhecer quando bater os olhos em você. Pelo menos, vai saber que é filha de Júlia. – Ele riu.
– Isso é bom ou ruim? – Perguntei.
– Não sei dizer, Maddox é imprevisível! Embora seja calmo e justo, não sei como descobrir sobre você pode afetá-lo.
– Antes, perguntei a você sobre os costumes dos Mardans, mas tinha algo que Fergus sempre me contava sobre eles... sobre esses caçadores...
– A forma que eles matam os prisioneiros, não é? – Ceiran leu meus pensamentos, ou talvez meu olhar assustado para a entrada do Vale a alguns metros à frente.
– É verdade?
– Sim... Eles ferem e jogam os prisioneiros dentro da fenda na montanha que fica de costas para o mar, par serem mortos por uma criatura antiga que viva lá.
– O que é essa criatura? – Minha garanta oscilou.
– Não sei, nunca fui um prisioneiro e também nunca fui jogado lá! – Lhe dei uma cotovelada quando ele deu um riso baixo, mas ao invés de machucá-lo, devo ter deixado meu braço roxo.
Gwyndion olhou para trás, poucos segundos antes, havia me ajeitado sobre o cavalo e olhava com cara de “paisagem” para as montanhas, desviei o olhar delas para ele, Gwyndion amarrou a cara e diminuiu o trote para ficar mais próximo a nós, Adar aumentou sua velocidade, indo na frente provavelmente para “abrir caminho” para nós.
– Você vai se comportar lá dentro, Ellyn! Ou então... – Gwyn alertou.
– Já sei! Não precisa ficar me ameaçando a cada cinco minutos! – Resmunguei, Gwyndion deu um sorriso cruel quando emparelhou os cavalos e me puxou de cima da égua para montar com ele, logo em seguida prendeu grilhões de prata em meus braços. O encarei incrédula:
– Por que isso agora? – resmunguei sacudindo os braços com os grilhões.
– Porque você não está indo passear, menina! Ainda é minha prisioneira até que seja decidido o que fazer com você! – Ele deu um rosnado em alerta e segurou meus braços para que eu parasse de sacudi-los.
– Nossa! Todos ficarão orgulhosos do caçador levando uma presa tão perigosa e toda acorrentada! Eles irão pensar: “Como Gwyndion é forte! Capturou sozinho aquela bruxa grande e poderosa!” – Zombei perdendo completamente a noção do perigo, talvez fosse aquele lugar, ou talvez fosse o que Ceiran havia me contado sobre mim que tivesse subido a minha cabeça. Olhei de soslaio para Ceiran, ele estava vermelho e mordendo os lábios, parecia prestes a rir, mas Gwyndion não gostou ele apertou meu braço com tanta força que perdi o ar, um pouco mais de força e ele teria o quebrado.
– Já te disse que você é uma prisioneira! Então comporte-se como tal! – Retrucou falando num tom baixo e mortal.
– Então acho melhor descer do cavalo e ir me arrastando atrás dele e suplicando por minha vida! – Respondi sentindo uma estranha agitação em meu peito conforme nos aproximávamos dos grandes portões do Vale.
– Não me tente a fazer isso! – Ele respirou fundo, acalmando-se, mas algo em mim começou a se agitar ainda mais, aqueles grilhões começaram a arder, minha respiração ficou acelerada e eu comecei a me mexer inquieta em cima do cavalo. O animal também percebeu minha agitação e começou a relinchar incomodado, porém, parecia que o mundo começou a ficar mais nítido ao meu redor, algo se moveu sob minha pele, como se tomasse forma, tomando vida, uma espécie de energia que estava fazendo os grilhões de prata esquentarem.
– Olhei para o lado onde Ceiran estava, ele olhava para frente, para os portões quando sentiu que eu o encarava, no momento em que seus olhos encararam os meus ele franziu o cenho e diminuiu o trote.
– Gwyndion... – Ele chamou baixo, erguendo as mãos num movimento suave, como se tentasse me acalmar, porém senti aquela energia tentando sair e meu desespero aumentou. Me soltei dos braços de Gwyndion e pulei de cima do cavalo afastando-me deles cos as mãos erguidas, soltas. Os grilhões haviam derretido e escorrido por meus braços, deixando a pele avermelhada, mas não estava queimada. Pequenos raios se formavam em minhas palmas, minha pele estava pálida, cinzenta e os cabelos prateados caiam ao redor de meus ombros, mesmo reparando em todos os detalhes, não perdia o foco dos dois caçadores que agora desmontavam dos cavalos e vinham em minha direção.
– Não acredito... – Gwyndion me olhou da cabeça aos pés e soltou um rosnado terrível, a expressão de puro ódio no rosto me fez tremer. – Ela é Mardam! – Ele baixou a voz e ergueu a espada, Ceiran entrou em sua frente, ficando de costas para mim. Gwyn o olhou incrédulo.
– Conhece as leis das Matriarcas, Ceiran! – Gwyndion fez menção de passar por ele, mas Ceiran ergueu a espada bloqueando o caminho dele. Meu poder se agitou como se percebesse a ameaça implícita naquelas palavras.
– Não pode tocar nela, Gwyn! Olhe! – Ceiran virou-se para mim e me apontou com o queixo. – Ela não parece familiar para você? – Gwyndion me olhou novamente de cima a baixo e ficou pasmo, depois soltou um baixo assovio.
– É filha de Júlia!
– E de Maddox! – Ceiran completou baixando a espada e vindo em minha direção.
– Ellyn, se acalme! – Ele estendeu a mão para que eu a pegasse, mas o medo fez-me afastar novamente, não medo dele, medo de atravessar aqueles portões. Algo maligno espreitava ali dentro, como um grande par de olhos invisíveis vigiando cada movimento.
– Se ela é filha da Senhora das Estrelas, esse é mais um motivo para matá-la! – Gwyndion urrou, saltando em minha direção com a espada em punho. Ceiran não teve tempo de impedir aquele ataque repentino e mesmo com o poder fluindo por mim, não conseguiria pará-lo só com aqueles raios. Fechei os olhos me preparando para a morte certa, mas o som da arma se chocando contra algo metálico fez com que eu me encolhesse. Alguém estava me segurando contra um corpo grande, acolhedor. Não era Ceiran, pelos poucos dias na estrada cavalgando com ele, já havia gravado seu cheiro. Abri os olhos e olhei para cima. Aquele Mardam era provavelmente o homem mais bonito que eu já vira em toda minha vida. Ele tinha longos cabelos negros e olhos castanhos intensos, a pele bronzeada e longas cicatrizes em seu lado esquerdo. Ele segurava a espada de Gwyndion com a mão, com uma estranha luva metálica cobrindo seu braço esquerdo, não uma luva, aquilo era seu braço! O braço esquerdo até o ombro onde as cicatrizes começavam era inteiro feito de metal.
– Mestre Maddox! – Ceiran fez uma breve reverência e manteve os olhos fixos em mim, Gwyndion apenas semicerrou os olhos e baixou a espada, saindo do caminho do guerreiro. Maddox! Aquele era meu pai! Eu estava diante de meu pai, o líder Mardam!
– Vamos. – Ele não disse mais nada, apenas segurou meu braço, ignorando as correntes elétricas que estavam vazando de mim. Quando ele me tocou, a transformação cedeu e voltei a ficar com aparência humana. Ceiran se colocou ao meu lado e acenou discretamente para mim. “Está tudo bem, agora está tudo bem!” foi o que li em seus lábios enquanto andávamos para dentro do Vale.
7
Encontros
Não sabia o que esperar quando os grandes portões de madeira do Vale se abriram para nós. Meu coração disparou ao ver que ali dentro havia uma cidade, não tão grande quanto Mirlut, mas o comércio e as casas eram todos bem organizados, construídos em madeira bruta, em toras perfeitamente talhadas e encaixadas umas nas outras, formando casas grandes e bonitas em cores naturais.
O lugar era simplesmente lindo, havia um lago enorme no lado esquerdo do vale, alimentado por um riacho que serpenteava através das montanhas e entre as árvores aos pés delas. O Vale da Lua era vivo! A natureza estava por todos os lados, as mulheres caminhavam tranquilamente por ali, elas não pareciam ter medo dos Mardans a sua volta, e isso me fez ficar um pouco mais tranquila.
Quase no meio do lago havia uma ponte branca de madeira, trabalhada com detalhes em meia lua, que ligava a terra a uma pequena ilha no canto do lago. Sobre aquela ilha, um templo construído em pedras brancas e ligeiramente brilhantes chamou minha atenção. Meu instinto de sobrevivência fez com que eu tentasse me afastar o máximo possível daquele lugar, Maddox olhou para mim e ergueu as sobrancelhas, surpreso com minha atitude.
– O que ela sabe? – Maddox perguntou a Ceiran.
– Tudo. – Ceiran respondeu sério, olhando para o templo.
– Bem-vinda ao Vale da Lua, Ellyn! – Ele deu um breve sorriso para mim, talvez o sorriso mais encantador que eu já havia visto em toda minha vida. Gwyndion fez uma careta para aquele sorriso e com um aceno, seguiu em direção a uma das casas de madeira mais próxima ao lago. Caminhamos pela estrada de chão até um grande salão no final dela, construído em pedras cinzentas, aquele salão parecia ter duas ou três vezes o tamanho do templo. Ceiran foi na frente e abriu as portas, O salão estava deserto e escuro, mas num piscar de olhos, tochas foram acesas em toda sua extensão desde as portas até um arco no fim do grande salão. Maddox me levou até aquele arco, ao passar por ele, havia um grande corredor com uma dúzia de portas, mas a direita, havia uma porta de madeira com uma cruz dourada e soube imediatamente que ali era uma sala de cura. Fiquei curiosa para ir até lá, mas Maddox me levou para o outro lado até o final do corredor à esquerda.
Entramos numa sala grande, bastante confortável para aquele lugar, o chão de pedra era coberto por tapetes de pele e havia uma lareira acesa no canto próximo à uma janela que ficava de frente para uma plantação de milho e trigo.
Maddox sentou-se na cadeira atrás de uma grande mesa de madeira e mostrou as duas cadeiras da frente para que sentássemos, Ceiran e eu.
Parecia que nenhum de nós sabia como iniciar aquela conversa. Ceiran parecia tão constrangido quanto eu, mas ele mantinha a cabeça erguida e encarava Maddox com respeito.
– Ellyn... – Maddox pigarreou e se endireitou na cadeira, fechando a mão metálica sobre a mesa. – Quero que saiba que não ficará aqui como uma prisioneira. Você é... – Ele ficou tenso e olhou para Ceiran como se pedisse ajuda.
– Acho que ele quer dizer que você pode ficar à vontade por aqui e que ele está muito satisfeito em ter você aqui no Vale da Lua! – Ceiran piscou para mim, mas Maddox franziu o cenho.
– Considere minhas, as palavras dele! – Ele me deu outro lindo sorriso e eu engoli em seco.
– Como sabia? Quem eu era? – Perguntei, ele se mexeu desconfortável.
– Além do fato de você se parecer muito com sua mãe... Ela esteve aqui algumas noites atrás e me alertou que você estava vindo para o Vale. – Só então que eu me dei conta de uma coisa, minha mãe era uma Sorcys, não uma Sorcys qualquer, mas a atual líder delas, e mesmo assim, ela havia permitido que aquelas Sorcys tentassem me capturar e aquilo fez meu sangue congelar. Talvez aquele fosse o real motivo por ela ter me deixado naquela cabana de humanos e não ter ido embora comigo, porque ela realmente queria libertar sua líder um dia.
– O que eu vou fazer? – Perguntei mais para mim mesma, mas Maddox ouviu e fez um breve aceno com aquele braço metálico.
– Pode fazer o que quiser! – Ele olhou para mim, para o bracelete em meu pulso e ergueu as sobrancelhas. – Você é uma curandeira? – Cobri o bracelete com a manga do vestido.
– Sim...
– Uma Mardam curandeira, Mestre! Chega a ser engraçado, não é? – Ceiran deu um tapinha em meu ombro e riu.
– O que é engraçado? – Perguntei franzindo o cenho para ele.
– Mardans normalmente tiram vidas, não tentam salvá-las.
– Filha de peixe... – Olhei para Maddox, ele perdeu um pouco a cor, sabia que eu estava me referindo a prisão de Breedja.
– Você pode ficar em minha casa. – Disse Maddox apontando pela janela para uma casa de madeira próxima à margem do lago.
– Fica muito às vistas do templo... – Refleti olhando mais para baixo, para a pequena ilha. Maddox me encarou por um bom tempo, deixando-me totalmente desconfortável, Ceiran percebeu isso e falou:
– Acho que tem um lugar que você vai se sentir confortável agora! – Ele pegou meu braço e me tirou da cadeira, virei apenas para dar um até logo a Maddox, que estava encarando Ceiran com um olhar quase psicótico, que fez minha pele se arrepiar.
Andamos devagar pelo corredor, meu coração se chocava contra as costelas e eu ainda tentava absorver aquela tentativa de interação.
– Isso foi estranho! – Falei, Ceiran gargalhou e assentiu.
– Muito estranho! Você estava olhando para ele como se ele fosse saltar da cadeira e arrancar sua cabeça!
– Sinceramente, estava mais preocupada que ele fizesse isso com você! – Falei sem querer, Ceiran parou de andar e seus olhos encontraram os meus, um esboço de um sorriso apareceu em seu rosto, não divertido como segundos atrás, mas um sorriso convencido.
– Preocupada comigo? – Ele semicerrou os olhos.
– Até onde eu sei, você é meu bichinho de estimação! Minha raposinha, nuvem! – Coloquei as mãos nos quadris e dei meu melhor sorriso sarcástico.
– Você é má por dentro! – O sorriso havia sumido de seu rosto. Ele me levou até o final do corredor à esquerda, até a porta com a cruz dourada, ele deu duas batidas suaves antes de abrir a porta. A sala era pintada em um tom verde claro, haviam três camas vazias e alguns armários cheios de potes, ervas e vários produtos medicinais, conhecia a maioria deles só de olhar. Mas o que me chamou atenção foi a jovem atrás da mesa perto da janela aberta que ficava de frente para o lago. Ela nos olhava com curiosidade, os olhos verde musgo me avaliaram antes de pousarem sobre a pulseira que eu usava, ela passou as mãos em seus cabelos cor de cobre e sorriu levemente:
– Até que enfim arrumaram alguém para me ajudar! – disse ela com uma voz doce e alegre.
– Ellyn, conheça Amanda, a esposa de Gwyndion! Amanda, trouxe uma nova amiguinha para você brincar de curar! Essa é Ellyn Agarathis! Caçula do mestre Maddox! – Ceiran me empurrou para dentro da sala e saiu antes que eu pudesse protestar pela forma que ele me apresentou.
Amanda se levantou da cadeira e deu a volta na mesa para me avaliar melhor, ela era um pouco menor que eu, sua pele dourada, bronzeada quase brilhava ao passar pela fresta de luz avermelhada do entardecer que entrava pela janela.
Ela tinha uma aparência delicada e parecia frágil, embora seu olhar vivo dissesse outra coisa. Esposa de Gwyndion! Disse Ceiran antes de escapulir para fora da sala de cura. Quase soltei uma risada inconveniente, ela era tão pequena perto dele, que mal pude imaginar os dois juntos, pelo visto, ele não devia ser tão bruto quanto eu imaginava.
– Então... filha de Maddox? – Ela se aproximou, analisando-me, erguendo a cabeça para poder olhar em meus olhos.
– Pois é. – Estava tão nervosa que não sabia como agir, pelo jeito eu havia esquecido como socializar depois de alguns dias com os Caçadores.
– Não sabia que Maddox andava escapulindo por aí depois de Júlia! – Ela deu uma risadinha e passou os olhos sobre mim novamente, então ela perdeu a cor. – Que idade você tem, menina?
– Tenho dezenove! – Respondi agarrando-me aquela oportunidade de manter a conversa, mas Amanda voltou a sua mesa e sentou-se sobre ela, com a boca parcialmente aberta.
– Você é filha dela! – Ela cobriu a boca, então ela deu um pulo da mesa e se aproximou de mim, ficando perto demais.
– O que foi? – Dei um passo para trás, mas ela girou meu pulso e tocou a parte interna de meu antebraço, fazendo pressão com o polegar bem no meio dele. Como se ela tivesse convocado meu poder, eu me transformei, mudando de aparência e fazendo-a saltar para trás dando gritinhos histéricos.
– Mãe das Águas! Você é Mardam! – Ela tocou meu rosto e mexeu em meu cabelo.
– Sou. – Talvez ela tenha percebido meu olhar sofrido para a curiosidade dela, então Amanda estendeu a mão para mim, quando viu que eu não repeti o gesto, ela puxou minha mão e a apertou.
– Espero que seja boa com cura, menina! – Ela piscou para mim e pegou uma longa lista sobre sua mesa e me entregou, passei os olhos rapidamente pelos nomes na lista e percebi que eram plantas, ervas medicinais.
– O que farei com isso? – Perguntei.
– Vai me ajudar! Primeiro, verifique quais dos itens dessa lista estão na sala, anote as quantidades e marque as que estão faltando! – Aquilo era um teste, ela queria saber se eu realmente conhecia as plantas e ervas medicinais ou o quanto eu sabia.
– Não parece ter muito serviço por aqui! – Falei quando a vi sentar-se novamente atrás de sua mesa e ficar em silêncio me observando.
– Não tem agora! Os guerreiros não estão em treinamento hoje. Normalmente eu passo horas do dia os remendando!
A olhei incrédula e lembrei das várias cicatrizes nos braços e no peito de Ceiran.
– É tão pesado assim? – Perguntei.
– O treino deles? – Ela perguntou e eu assenti. – Brutal, seria a palavra correta para definir os treinos deles! Ainda mais quando envolve magia! – Senti meu rosto perder a cor.
– O braço de meu pai... – As palavras saíram mais casuais do que imaginei, chamar Maddox de pai talvez fosse algo que não estivesse preparada ainda, mas foi assim que Ceiran me apresentou, a caçula de Maddox. – Foi em um treinamento desses? Você que o curou daquela maneira? – Amanda sorriu e balançou a cabeça negativamente.
– Um trabalho perfeito! Mas não, não fui eu! Aquilo foi na guerra contra os feiticeiros de Grisath, o General deles arrancou o braço de Maddox, mas mesmo assim Maddox o matou! – Vi o brilho nos olhos dela, admiração. – Eu nem era nascida na época, mas foi uma das curandeiras da rainha Iriel que fez aquele braço! – Ela sorriu novamente.
– Sabe como funciona?
– Ele é articulado, feito de aço-luz mas é movido pela magia de seu pai, ele meio que criou uma extensão de sua magia para dentro daquele braço, como um nervo, assim faz com que ele se mova de forma natural!
– Incrível! – Fiquei parada olhando para o nada, imaginando como ele conseguia manter sua energia fluindo daquela maneira, então talvez, apenas talvez eu devesse pedir para que ele treinasse meus poderes.
– Vai ficar aí sonhando acordada ou vai fazer o que eu mandei? – Amanda apontou para os vidros de ervas, eu revirei os olhos e comecei a analisar atentamente cada frasco, cada erva, não queria errar nenhuma, se não ela poderia me considerar inapta.
Já havia escurecido totalmente quando terminei de conferir a lista, aproveitei e anotei duas ervas que estavam faltando em sua lista, uma para cortar dor e outra anestésica. Amanda estava com as pernas cruzadas e apoiadas na mesa e lia um livro, ela levantou os olhos quando estendi a lista e avaliou silenciosamente, fazendo com que eu tivesse um pequeno ataque de pânico com a demora.
– Verisco e Giveriana? – Ela riu. – Realmente, muito úteis e fazem falta aqui, porém, não dá para cultivar no vale, nem nas redondezas, são plantas de locais áridos, Ellyn. – Amanda Suspirou e colocou a lista presa à parede da sala. – Amanhã iremos encontrar as ervas que estão faltando nas estufas.
– Entendi.
– Esteja aqui depois do almoço amanhã! – Ela apagou as estranhas luzes brilhantes que flutuavam no interior da sala e bateu a porta atrás de si quando saiu, logo em seguida pegou uma chave e trancou a porta.
– Por que precisa trancar? – Perguntei curiosa, já que qualquer um ali poderia simplesmente derrubar a porta e pegar o que quisesse.
– Hábito. – Ela deu um meio sorriso e me acompanhou pelo corredor em direção ao salão. Conforme nos aproximávamos, pude ouvir um murmúrio aumentando, eram muitas vozes misturadas, conversando, rindo. Quando alcançamos o salão principal, meu estômago parecia cheio de borboletas e minha garganta oscilou. Haviam pelo menos quinhentos Mardans ali, ocupando pouco mais da metade do salão, todos pararam de conversar e olharam para nós, as mesas estavam abarrotadas de comida e eles ainda não haviam tocado em nada, na certa, aguardando uma ordem do líder.
Maddox estava ao lado de Ceiran, Gwyndion e Adar em uma mesa à frente das outras, Gwyndion piscou para Amanda, que corou e fez um breve aceno para ele antes de fazer cara de assassina psicopata e atravessar o salão em direção as portas de queixo erguido. Dei os primeiros passos para segui-la mas a voz grave de Maddox ecoou por todo salão:
– Ellyn, venha cá! – Respirei fundo, puxando energia do fundo de minha mente para me virar e andar até ele, sob os olhares fixos de todos os bruxos ali presentes. Andei até a mesa onde ele estava, meu pai ergueu a mão para que os presentes fizessem silêncio, Ceiran fez um aceno para que eu repetisse o gesto altivo de Amanda, eu o fiz, com muita dificuldade e encarei aquele salão.
– Esta é Ellyn. – Ele começou. – É minha filha e a partir de hoje viverá no vale conosco! Ela terá nossa proteção assim como todas que recebem a marca das sombras! Ellyn é uma de nós, é uma Mardam! – Houve então uma explosão de gritos e protestos quando ele disse aquilo, dei um passo para trás quando vi a cena dos guerreiros e caçadores se levantando de seus lugares, prontos para vir até mim, eles me entregariam para as matriarcas e eu não passaria da primeira noite, constatei. Porém, um estrondo como de um trovão ecoou no salão, olhei nervosa na direção de meu pai e dessa vez não consegui não me encolher diante dele. Os olhos e cabelos prateados faiscavam e em seu corpo haviam marcas prateadas acesas, como anéis ao redor de seus braços.
– Ela é uma Mardam! E o juramento que todos vocês fazem ao chegarem a maioridade é de proteger e defender a todos os que possuem a marca das sombras! Aquele que ousar tocar num fio de cabelo dela, que abrir a boca para as matriarcas e contar sobre sua existência, perderá seus poderes e sua força e terá que entrar na fenda da montanha como um bruxo sem clã! – O salão todo ficou em silêncio novamente, meu pai estendeu a mão para que eu a pegasse sua mão. Ele me colocou sentada ao lado de Ceiran e sentou-se também.
– Podem comer. – Foi Gwyndion que deu o sinal para que o ataque começasse e foi exatamente o que aconteceu, nunca havia visto pessoas comendo com tal brutalidade, mas eles não eram “pessoas” comuns, os Mardans pareciam travar uma guerra para servir a comida, para comer e até brigavam entre si para tomar a comida um do outro, era hilário e assustador.
– Se eles se alimentam com essa voracidade, não quero ver esse povo lutando! – Murmurei para Ceiran, que engasgou com o vinho e tossiu, tentando não rir. Meu pai e Gwyndion pareciam bem mais comportados à mesa do que o resto deles, Ceiran, parecendo ler meus pensamentos disse: – Estão sendo comportados assim pois a uma dama na mesa! – Ele deu um risinho, eu revirei os olhos, olhei a comida em minha frente, meu estômago se revirava de fome mas eu não conseguia criar coragem para esticar a mão e me servir. Ceiran novamente percebeu meu constrangimento e serviu meu prato, ele estava mordendo os lábios para não rir.
– Obrigada. – Agradeci aliviada pegando o garfo e pegando uma porção de salada de batatas.
– Você está adorando, não é? – Ele estava sorrindo abertamente agora, deliciando-se com meu constrangimento.
– Gostaria de me misturar a decoração do salão e flutuar para fora daqui! Me sentiria mais feliz comendo dentro da sala de cura! – Ceiran revirou os olhos e voltou a comer.
– Cabeça erguida, menina. Você é filha do Mardam lendário! Tem que agir como se tivesse um rei na barriga ou amarrado num saco em seus ombros, literalmente! – Ele deu uma gargalhada e a abafou com o copo. Meu pai o olhou feio e Ceiran pigarreou e se esforçou para parar de rir da minha desgraça.
– Porque não há mulheres aqui? Apenas os Mardans comem no salão? – Perguntei o mais baixo que pude a Ceiran, com medo de ofender ou que minha pergunta fosse interpretada de maneira errada. Ceiran tentou não rir novamente, mas apontou discretamente o salão diante de nós, os homens ali se alimentando como cães de briga famintos.
– As mulheres desistiram de comer aqui, acha que elas gostam de ver isso? – Franzi o cenho. – Nem eu gosto de comer os assistindo! Se você reparar bem, vai ver pedaços de comida voando! – Ele apontou para um pequeno grupo em especial no canto esquerdo do salão, então pude ver o que ele quis dizer, enquanto comiam, comida voava pelos ares. Olhei a cena boquiaberta por um longo tempo, até que um deles, o menor do grupo me encarou de volta e mostrou os dentes.
– Ele vai te morder se continuar olhando! – Os olhos de Ceiran faiscavam, acho que ele nunca se divertiu tanto em sua vida quanto me ver assustada naquele salão.
– Posso jantar com as mulheres na próxima? – Perguntei, mas Ceiran balançou a cabeça negativamente.
– Vai odiar! Aqui você se diverte com o espetáculo, lá... – Ele se encolheu um pouco, algo no olhar dele fez com que toda a curiosidade acumulada em mim despertasse.
Terminamos de jantar, e aos poucos os homens começaram a se retirar da sala, até ficarmos apenas nós da mesa de cabeceira.
– Então, Ellyn, vai ajudar Amanda na sala de cura? Tem habilidade para isso? – Gwyndion perguntou provocando-me enquanto andávamos até a saída.
– Acabou o “bruxinha”? – perguntei.
– Desculpe, não sabia que tinha se apegado ao apelido, a partir de agora irei usá-lo sempre que me dirigir a você, bruxinha! – Ele respondeu dando um sorriso sarcástico, Ceiran ficou tenso nos observando e Maddox olhava-nos com surpresa.
– Sua esposa é um doce, Gwyn, não faço ideia de como ela te aguenta! – Seu sorriso tornou-se malicioso, mas quando ele abriu a boca para responder, Ceiran se intrometeu:
– Basta, Gwyn. Ela não vai entender sua piadinha de mal gosto! – Eu pisquei atordoada e Maddox riu.
– Amor fraternal! – Debochou ele dando um soco de leve no braço de Adar.
– Espero que não! – Gwyn retrucou. – Ela ama seus irmãos de forma que eu jamais poderia retribuir. – Aquilo não tinha sido uma alfinetada, foi mais uma facada, Ceiran bufou irritado e meu pai, graças aos céus, não tinha entendido a piadinha cruel de Gwyn com relação aos meus sentimentos por Fergus. Senti meu rosto perder a cor, mas deixei que algo escapasse de mim, e Gwyndion saltou de onde estava chingando mil palavrões diferentes. Eu não havia percebido que havia lhe enviado uma corrente elétrica até ver uma marca de queimado no piso encerado do salão. Ajeitei uma mecha de cabelo prateado para trás da orelha e dei um sorriso sarcástico a Gwyn.
– Boa noite! – Gwyndion fez uma careta e deixou-nos ali e foi em direção à uma casa próxima à lateral do salão.
– Ele vai ficar menos irritante com o tempo! – Maddox deu um sorriso sem graça, Ceiran começou a andar para a beira do lago e eu o segui.
A noite ali era tão linda! As estrelas brilhavam ainda mais forte naquele lugar, a Lua ainda cheia refletida no lago, junto com todas aquelas estrelas. Era tudo calmo, agradável ali.
– O lago das Estrelas. Bonito, não é? – Ele ainda olhava para o céu. Observei as pessoas ao redor do lago, muitos haviam saído de dentro de suas casas para aproveitar a noite, casais sentados na grama observando as estrelas.
– Ceiran... Gwyndion, o que ele faz? Ele entrou em minha cabeça aquele dia? – Ceiran franziu o cenho e assentiu.
– Ele herdou de seu avô, a estranha habilidade de ver dentro da cabeça das pessoas mas só pode ver memórias e sentimentos recentes. Também tem a habilidade de fazer com que as pessoas falem a verdade, não importa o quê, ele as manipula a serem sinceras. – Ele se encolheu.
– Deve ser difícil viver aqui escondendo um segredo como o seu. – Falei, Ceiran inspirou profundamente e se abaixou, tocando as águas do lago com as pontas dos dedos.
– Era mais difícil viver aqui escondendo você! – Ele me encarou com tristeza no olhar. – Imaginei que no dia que a encontrassem, o inferno cobriria a terra, mas está sendo até mais fácil do que imaginei! – Ele sorriu, olhei novamente a paisagem para ter uma desculpa de fugir de seu olhar e encarei o templo. Escuro, sombrio, com uma aura pesada sobre ele.
– O que elas são? – Ceiran acompanhou meu olhar e rosnou ao ver o templo escondido pelas sobras longas das árvores.
– Elas são as três anciãs Mardans, mães dos primeiros guerreiros do Vale. São tão antigas quanto a própria terra, tão velhas que não se movem mais! Mas se alguém der o sangue para uma delas, sua força se regenera instantaneamente e ela rejuvenesce por algumas horas e pode se mover livremente, seus poderes são tão fortes, tão obscuros que elas se cobrem com roupas bordadas com prata para evitar que o poder escape e destrua o vale... – Ceiran semicerrou os olhos e bufou irritado.
– Então, elas não saem de lá, certo? – Ele sacudiu a cabeça negativamente.
– Não enquanto ninguém for lá despertá-las.
– E se isso acontecer?
– Prefiro que nunca aconteça! – Ele se virou para mim e segurou meu rosto, então beijou minha testa de leve e saiu.
– Boa noite, Ellyn! – Ele acenou enquanto se afastava.
– Boa noite, nuvem! – Debochei tentando esconder o quanto aquele pequeno gesto de carinho mexeu comigo. O segui com os olhos, ele atravessou a ponte sobre o rio e andou até uma casa do outro lado do lago, próxima aos paredões das montanhas.
– Vamos entrar? – Meu pai estava parado alguns metros atrás de mim, senti meu rosto corar ao perceber que ele me pegou olhando para onde Ceiran havia ido.
– Tudo bem! – Respondi rapidamente entrando com ele na casa de madeira na beira do lago.
A casa por dentro era simples, mas espaçosa, na sala um sofá de madeira com almofadas grandes e fofas estava de frente para a lareira que acendeu-se sozinha quando entramos. Ao lado do sofá também a uma estante com alguns livros. A escada estava no canto esquerdo da sala, que levava ao segundo andar, e embaixo dela havia uma porta, na certa um banheiro. A cozinha estava vazia, não parecia que era usada.
– Como eu não sei cozinhar... eu não a utilizo... – Ele estava tão desconfortável quanto eu.
– Eu posso cuidar disso. – respondi passando o dedo sobre a pedra lisa e empoeirada e a bacia de pedra seca. O forno e o fogão estavam com muitas teias de aranha e a mesa de madeira estava completamente branca.
– Não é porque não usa, que precisa deixar sujo assim! – Cruzei os braços e o encarei olhando feio para ele, só depois de já ter aberto a boca que percebi o quanto foi idiota dizer isso a um guerreiro que devia ter muito mais o que fazer a ficar limpando uma casa. Mas ele apenas riu e coçou a cabeça.
– Desculpe.
– Ah, tudo bem! Eu limpo isso amanhã! – Falei.
– Pode conseguir o que precisar na feira de manhã. – Ele respirou fundo e indicou para que eu o seguisse, eu o fiz.
– Banheiro. – Ele apontou para a porta debaixo da escada e seguiu por ela até um pequeno corredor com duas portas, uma de frente para a outra. Ele abriu a porta da esquerda e passamos por ela.
Era, ou foi um dia um ateliê, haviam cerâmicas quebradas por todos os lados, alguns frascos de tinta por cima dos móveis, telas gastas e muita sujeira.
– E isso? – Perguntei.
– Era o cantinho especial de sua mãe. – Suei frio quando ele disse aquilo, entrei no quarto em passos lentos e peguei um vaso grande e o limpei com as costas da mão, ele era azul marinho salpicado de tinta branca e prateada. Maddox andou até a janela e fechou a cortina, fazendo o quarto ficar mergulhado num breu. Porém, o vaso que estava em minha mão começou a brilhar, os salpicos de tinta, na verdade.
– Ela gosta muito das estrelas. – Ele se aproximou, uma pequena bola de luz saiu de sua palma metálica apontada para o chão, então o som de madeira se quebrando e coisas arrastando me fez pular para a frente assustada. Um castiçal prateado com três velas acesas apareceu na mão dele, olhei em volta e o cômodo havia se transformado num quarto de verdade, estava limpo, com uma cama grande e aconchegante, uma poltrona perto da janela e uma estante com livros, e uma escrivaninha perto da porta.
– Mas e as artes dela? – Perguntei imaginando o porquê dele nunca ter mexido naquele quarto antes.
– Você é a maior obra de arte que ela fez! – Ele sorriu. – Boa noite, se precisar de algo, só chamar! – Ele deslizou para fora do quarto, deixando-me só para que eu me ajustasse, olhei o local, como ele havia feito tudo ficar brilhando com um simples gesto, então, porque raios a cozinha estava tão suja? Peguei o vaso luminoso e terminei de limpá-lo, colocando-o em cima da escrivaninha.
– Uma obra de arte quebrada. – Sussurrei para mim antes de me sentar na poltrona e dormir ali, olhando para o céu através da janela aberta.
Acordei pouco antes do sol nascer, estava em minha cama enrolada em cobertas, não sabia como havia chegado ali, mas pelo menos estava quentinho, teria congelado onde havia dormido ontem à noite.
Desci as escadas ainda sonolenta e perambulei pela casa, olhando os cômodos que não havia visto direito na noite anterior. No banheiro havia uma banheira grande, então pensei que podia aproveitar estar sozinha ali e tomar logo um banho, acendi o pequeno fogareiro de ferro no canto do banheiro para aquecer a água e fui até a cozinha.
Ao chegar lá, notei que estava tudo limpo e em seus devidos lugares, em cima da mesa haviam vários ingredientes e temperos, revirei os olhos, ele havia levado a sério a brinca sobre a cozinha bagunçada.
Acendi o fogão a lenha também e coloquei água para ferver, voltei ao banheiro tomei um banho e voltei ao meu quarto ainda enrolada na toalha e fiquei parada, sentada em minha cama pensando no que fazer, já que não tinha ideia de onde havia deixado minha bolsa. Por sorte, meu pai havia pensado em tudo e atrás da cama, havia um biombo e atrás dele um armário cheio de roupas, vestidos e outras peças. Peguei o primeiro que vi, um vestido longo, preto simples e um manto, os vesti e fui para cozinha preparar um chá, chegando ao final da escada quase caí de susto ao ver Ceiran sentado no sofá com um livro na mão.
– Você não sabe bater? chamar? avisar que está entrando ou algo do tipo? – perguntei tentando me acalmar, passando direto por ele até a cozinha.
– Imaginei que não se importaria, uma vez que sempre fazia isso quando você vivia na cabana! – Ele virou para onde eu estava colocando as ervas para o chá no bule e piscou.
– Eu achava que você era uma raposa, estava muito feliz por ter conseguido domesticar uma. Era de se esperar que entrasse lá as vezes! – Retruquei pegando um pedaço de pão e procurando por algo para comer junto. Ceiran andou até a mesa e colocou um pote de creme de amendoim em minha frente.
– Ainda sou uma raposa domesticada! – Ele deu um sorriso preguiçoso e sentou-se. Servi o chá para mim, e para ele também, mas não empurrei a xicara de imediato, a cobri com a mão e o encarei.
– Raposas são como gatos, tem línguas sensíveis a calor! Então acho que não deveria dar chá para você! – O sorriso dele aumentou com algo malicioso brilhando nos olhos. Só então percebi que o que eu tinha dito, poderia ser interpretado de outra forma e senti meu rosto pegar fogo, soltei a xicara e o sorriso dele aumentou.
– Talvez eu devesse te mostrar que não sou tão sensível assim ao calor? – Respirei fundo e precisei de toda minha concentração para não mandá-lo testar sua resistência a calor no lago de fogo do inferno. Ao invés disso, decidi mudar de assunto:
– Então, o que vamos fazer hoje? Estou livre até a hora do almoço, depois terei que ajudar Amanda a procurar as ervas medicinais! – Falei tomando um gole do chá. Ceiran ainda sorria de forma maliciosa e enquanto circulava a borda da xicara com as pontas dos dedos.
– Tenho algumas ideias interessantes para botar em prática com você! – Ele disse ainda me encarando e tomando o chá, novamente, quase engasguei, senti meu rosto pegar fogo e baixei os olhos.
– Você não presta! – Grunhi. Ceiran soltou uma gargalhada divertida e sacudiu a cabeça.
– Quem está sendo maldosa agora? Eu estava pensando em começarmos a treinar seus poderes! Mas é bom saber que tem pensamentos pervertidos ao meu respeito! – Ele piscou e eu revirei os olhos.
– Não tenho, não! Pare de tentar colocar ideias erradas em minha cabeça! – Ele deu um sorriso divertido e terminou o chá.
– Vamos andar um pouco pela cidade, para você conhecer melhor o lugar e depois vamos ver a melhor maneira de te treinar!
– Não era perigoso? Por causa das Matriarcas?
– Pelo que seu pai me disse, ele jogou um feitiço ao redor do templo, assim as velhas monstruosas vão ficar cegas para o mundo externo por um bom tempo! – Ele sorriu satisfeito.
– Acho que está tudo bem então... – Me levantei e fui até a porta.
Ceiran me levou para fora e caminhamos lado a lado pelo caminho até a cidade, iluminados pelos primeiros raios de sol da manhã.
8
Tentativa e erro
Passeamos pela cidade em passos lentos, Ceiran estendeu o braço para que eu o pegasse, e não o recusei, reparando na grande quantidade de olhares curiosos sobre mim. Na certa, a reunião de ontem à noite no salão, as palavras de meu pai, já eram conhecidas por todos.
O procurei discretamente, mas não o vi em lugar algum, a maioria das pessoas que estavam na cidade, trabalhando, limpando, cuidando do comércio eram mulheres e crianças, alguns adolescentes machos também. Notei que a maioria das mulheres se esquivava de Ceiran, ou o olhavam de canto de olho, nervosas, assustadas, olhei para ele mas ele não parecia se importar, ou sabia fingir muito bem que não ligava.
– Onde estão os outros? – Perguntei.
– Treinando! Oras! – Ele riu.
– É sempre assim?
– Não, os treinos acontecem cinco dias na semana desde antes do sol nascer até o horário do almoço. – Ele explicou, depois andou até uma barraca onde uma jovem ruiva e sorridente estendeu-lhe duas maçãs, ele me entregou uma e continuamos caminhando.
– Porque não está treinando então? – Ele revirou os olhos.
– Por que estou aqui com você! O mestre pediu para que eu te levasse para conhecer o Vale, assim ia sentir-se mais à vontade aqui! – Assenti devagar observando o movimento.
– O que é aquilo? – Apontei para uma casa maior escondida entre duas lojas, uma alfaiataria e a outra parecia ser uma ferraria.
– É uma sauna, uma casa de banho, mas só para as mulheres!
– Interessante! – Sorri.
– Os dois lugares mais assustadores para alguém como você estar! Aquela casa de banho e a cozinha do salão! – Ele deu uma risada e continuou andando.
– Por qual motivo?
– Os assuntos que as mulheres conversam nesses lugares. – Ele deu um suspiro pesado e sacudiu a cabeça, tentando livrar-se de alguma memória.
– Que assuntos? – Estava curiosa. – E como você sabe o que elas conversam lá se homens não podem entrar? – Ceiran corou levemente e mordeu os lábios, então ele se aproximou para sussurrar algo ao meu ouvido.
– Mulheres adoram raposas! Elas as acham fofinhas! – Ele gargalhou ao ver minha expressão de incredulidade.
– Você entrou lá como raposa? – Perguntei um pouco alto demais, ele chiou e assentiu. – Pervertido!
– Não entrei lá com segundas intenções, Ellyn! – Ele franziu o cenho e eu coloquei as mãos nos quadris e ergui as sobrancelhas. – Tá! Só um pouquinho, era um menino muito curioso! – Ele riu desviando quando estiquei a mão para lhe dar um beliscão.
– Você não presta! – Ele riu. – E a cozinha? – Perguntei.
– Fui mandado lá por Gwyndion para ser castigado, para ajudar a descascar batatas. – Ele parou de rir. – Elas são assustadoras! – Disse ele olhando para o grupo de mulheres que partiam para a cozinha com grandes quantidades de ingredientes.
– É assim todos os dias? Todos comem lá?
– Sim, o Mestre Maddox acha que assim tudo fica dividido de forma mais justa! Todos trabalham em conjunto aqui. As mulheres mantem a cidade funcionando em grupos, algumas cuidam das crianças, outras da alimentação de todos, os Mardans mais jovens cuidam das hortas e plantações e os mais velhos treinam para a proteção do clã, mantem todos seguros. Não que os jovens não treinem, mas o treinamento deles é menos intenso. Sempre que surge uma nova família, todos se juntam para ajudar, constroem as casas e fazem o resto com magia.
– Parece que é tudo tão pacífico e harmonioso! – Falei, Ceiran riu novamente.
– O que mais tem aqui, são brigas! Por todos os motivos! Mas o Mestre os manda pedir desculpas em público quando ele é envolvido, como todos são orgulhosos, eles evitam brigar ou se resolvem o mais rápido possível!
– Porque o chama assim?
– De mestre? – Ele quis saber, eu assenti, estávamos quase perto da saída do Vale agora. – Porque ele assumiu minha criação quando fiquei só. – Senti um nó na garganta quando ele disse aquilo. – Podia me virar sozinho como raposa, mas depois de transformado por dias seguidos, você começa a ter lapsos de memória e começa a se transformar num animal de verdade. – Nós nos sentamos à beira do lago e ficamos observando os raios de sol iluminarem o Vale.
– Quanto tempo você já conseguiu ficar transformado? Sem ser afetado?
– Não arrisquei mais de uma semana. – Ele admitiu. – Mas acho que daria para ficar até quinze dias e voltar a forma humana.
– Interessante... – Coloquei as mãos dentro do lago sentindo a água gelada dar pequenos choques em mim.
– Vamos treinar? – Ele deu um sorriso travesso.
– Agora?
– Sim! – Ele jogou a maçã que a jovem havia lhe dado e a jogou no meio do lago. – Agora, direcione sua energia para acertar aquela maçã e parti-la no meio! – Ele sorriu. – Sem mudar de aparência, ou vai dar um susto nas mulheres questão trabalhando! – Ele apontou com o queixo o grupo atrás de nós. Engoli em seco e coloquei as palmas das mãos na superfície do lago, a maçã boiava a alguns metros de nós, alguns peixes a beliscavam agora.
– Tente não acertar os peixes também!
– Ao invés de ficar falando o que eu deveria fazer, podia me dizer como fazer! – Resmunguei, os magos só haviam me ensinado a sentir a energia e fazê-la fluir pelo corpo para me curar ou para curar outras pessoas, mão não a usá-la como arma. Ceiran se ajoelhou ao meu lado e passou os braços ao redor de mim, segurando minhas mãos com as dele, tentei ignorar os pulos de meu coração e me concentrei nas palavras dele:
– Deixe a energia fluir como uma extensão de você, imagine como se fossem mãos que podem se estender até onde você quiser e mover as coisas por você, nesse caso imagine como se estivesse com uma faca nessa mão de energia e use-a para cortar a maçã! – Ele explicou calmamente, mas sua boca estava perto demais da minha orelha, o cheiro suave e amadeirado dele acariciou meus sentidos, e eu simplesmente soltei a energia por minhas mãos, fazendo-o se afastar num pulo. Um som como de um trovão fez todas as pessoas que estavam trabalhando na cidade pararem, e nos olharem assustadas. No lago, haviam peixes boiando e a maçã estava partida em vários pedaços.
– Eu disse, direcionar... – Ceiran estava mordendo os lábios para não rir. – Não sabe seguir ordens? Onde estava sua atenção, Ellyn? – Eu o encarei frustrada e com o rosto quente.
– Você é um péssimo professor! – Reclamei levantando-me e caminhando rapidamente pela beira do lago de volta à casa, todos na cidade me olhavam espantados, só então percebi que havia mudado de forma enquanto tentava usar os poderes, e isso me fez querer entrar no lago e desaparecer. Ceiran me seguiu ainda com um enorme sorriso no rosto, e a única coisa que eu queria, era bater nele.
Entrei em casa e Ceiran me seguiu, ele sentou no sofá e ficou observando enquanto eu estava arrumando as coisas em seus lugares na cozinha, olhando irritada para ele de vez em quando para enfatizar que eu estava com raiva dele.
– Acho melhor deixar que seu pai se te ensine a treinar a magia! – Ceiran quebrou o silêncio depois de alguns momentos.
– Concordo.
– Então eu vou te ensinar a lutar! – Ele sorriu, parei de revirar a cozinha para encará-lo.
– Discordo.
– Porque?
– Você tira minha atenção! – respondi mordendo a língua como castigo por ter falado demais. Em resposta, o sorriso dele aumentou.
– Isso é ruim?
– É claro! Vai me cortar ao meio pois vou estar distraída com... – Franzi o cenho, peguei a faca que estava sobre a mesa e dei alguns passos na direção dele, o sorriso dele sumiu imediatamente.
– Ellyn?
– O que está fazendo comigo? – Perguntei chegando muito perto com aquela faca afiada, Ceiran ergueu as sobrancelhas, não parecia nem um pouco intimidado.
– Não estou fazendo nada! – Ele ergueu as mãos.
– Mentira! Você pode fazer aquilo que Gwyndion faz também, não é! – Vociferei – Aquela coisa com a mente das pessoas, para que elas falem a verdade! – Ele fechou os olhos e num movimento muito rápido, tomou a faca de minha mão e a atirou contra a parede, a lâmina enterrou na madeira quase até o cabo. Ceiran então puxou minhas mãos, fazendo com que eu caísse por cima dele no sofá, ficando com o rosto a milímetros do meu.
– Não posso fazer nada disso! – Os olhos cor de mel faiscavam, uma pontada de divertimento e algo mais, algo que não conseguia reconhecer. – Mas fico feliz em saber que causo isso em você! – Ele segurou minha mão tocou os lábios em meu pulso, que estava acelerado demais, a sensação de sua boca contra minha pele fez uma corrente elétrica passar por meu corpo, não como aquela que fritou os peixes do lago, não, essa era mais intensa. Ele percorreu a mão livre pelas minhas costas, fazendo-me arquear o corpo contra aquele toque e o calor se intensificou em mim.
Foi de repente, Ceiran levantou-se rápido, tirando-me de cima dele e deixando-me cair no sofá, então transformou-se em raposa, suas roupas desapareceram em uma pequena bola de luz branca e ele desapareceu escadas acima. Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, meu pai apareceu na porta da cabana, com um longo machado na mão e cara de poucos amigos. Levantei a cabeça do sofá para olhar para ele, Maddox estava vestido com uma calça de couro marrom e sem a camisa, o cabelo escuro preso em um coque bagunçado, na certa estava treinando com os outros. Ele franziu o cenho e olhou para as escadas, meu coração disparou e meu rosto queimou. Duvidava que ele não pudesse descobrir facilmente o que estava acontecendo pela expressão de pânico estampada em meu rosto.
– O que aconteceu aqui? – Ele perguntou caminhando lentamente para a escada com o machado na mão, meu estômago afundou.
– Nada! – Menti, minha voz saiu tão trêmula e covarde quanto imaginei que ela estaria. Ele olhou novamente para mim, e depois para a faca na parede e ergueu uma das sobrancelhas. Ele soltou o machado no chão, fazendo um baque assustador, caminhou até a faca e a tirou da parede, colocando um pouco de força para fazê-lo.
– Nada... – Ele girou a faca na mão e olhou feio para mim.
– E como essa faca de carne veio parar na parede? – Engoli em seco.
– Não viu o lago? Fui tentar treinar minha magia com Ceiran e matei os peixes...
– E como isso explica a faca na parede? – Ele semicerrou os olhos.
– Frustração! Imaginei que estava atirando contra a cabeça do meu péssimo professor! – Tinha certeza de que ele não havia acreditado em nenhuma palavra, mesmo assim, ele riu e moveu a cabeça para os lados.
– Não se preocupe com isso, vou te ajudar, mas longe do lago, está bem?
– Acho melhor ficar longe de tudo que respire! – Falei, ele assentiu, foi até a cozinha e tomou água, depois foi em direção à porta, ele parou sob o arco da porta e falou num tom mais alto.
– Ceiran! No campo de treino em cinco minutos! - Ele olhou para mim por cima do ombro e meneou a cabeça negativamente. – Conversamos mais tarde. – Meu estomago afundou, ele desapareceu pela porta. Ceiran desceu as escadas ainda como raposa e pulou no sofá, os olhos vermelhos brilhando contra a os raios do sol que entravam pela janela aberta.
– Eu vou te matar! – estiquei as mãos em sua direção, ele abaixou as orelhas e colocou a cabeça em meu colo. – Nem adianta fazer essa cara de raposa arrependida! – Grunhi puxando seus pelos para cima, ele voltou a forma humana, dessa vez estava vestido. – Como ele percebeu? – Perguntei.
– Maddox tem mais de trezentos anos, Ellyn! Ele não é bobo! Deve ter percebido ontem quando chegamos... – Ele desviou o olhar e se levantou.
– Percebido o quê? – Perguntei, mas Ceiran bufou e foi em direção a porta sem dizer mais nada.
– Ele dá castigos severos quando nos atrasamos! – E dizendo isso, saiu da casa sem me explicar o que quis dizer com “percebido ontem quando chegamos” Percebido o quê?
Depois que arrumei a cozinha, me dei conta de que meu pai havia levado aquelas coisas para mim, para que eu me sentisse confortável, para que eu não precisasse ir a cozinha do salão se eu não quisesse, ou se estivesse com vergonha de ir até lá. A culpa caiu cobre mim como uma pedra e me senti horrível por ter mentido para ele para defender Ceiran, nem fazia ideia do porquê havia feito aquilo, não costumava mentir, então mais tarde me desculparia com ele. Também decidi ajudar as mulheres do Vale nas tarefas enquanto não estava com Amanda na enfermaria, mas hoje eu iria almoçar em casa mesmo, uma vez que meu espetáculo no lago possa ter deixado todas com medo de mim.
Fiquei andando pela casa por um tempo, tentando me acalmar. Conheci meu pai apenas a um dia e já tinha mentido para ele! Bom, pelo menos essa era uma boa desculpa, por não conhecê-lo, não podia prever sua reação se eu dissesse que estava gostando de um bruxo que ele criou como filho e que na verdade não era um Mardam, era um Sorcys.
Então, aquilo caiu como uma pedra sobre mim. Eu estava realmente gostando de Ceiran! O conhecia a pouco mais de uma semana e já estava apaixonada por ele.
Não...
Ele me conhecia. Conhecia minha vida, minha personalidade, esteve comigo quase todo o tempo. Por muitas vezes acordei com Nuvem sobre minha cama e o enxotei de lá, para que Manien não o visse e o ferisse. Foram várias as vezes que Fergus me contou como me encontrou na floresta, como aquela raposinha havia o guiado até mim. Ele esteve sempre ao meu lado e talvez, apenas talvez, bem lá no fundo eu soubesse que não era apenas uma raposa.
Desvencilhei-me de meus pensamentos confusos e fui para cozinha preparar o almoço, antes que ficasse tarde demais e me atrasasse para ajudar Amanda a procurar as ervas, ficaria muito feio para mim caso me atrasasse no primeiro dia.
Quando a torta de carne estava quase pronta, me virei para a mesa para arrumá-la e dei de cara com Ceiran parado na porta da cozinha, quase pulei sobre o forno aceso.
– Céus! Bata na porta! – Reclamei jogando um pano em cima da mesa irritada.
– Desculpe! Raposas são sorrateiras! – Ele deu um sorriso, prendeu o cabelo num rabo-de-cavalo e sentou à mesa.
– Talvez eu coloque uma coleira com um sininho em você! Quero ver ser sorrateiro com isso! – Bufei tirando a torta do forno e colocando-a na mesa, sem formalidade, Ceiran pegou a faca, cortou um pedaço para ele e colocou no prato que havia surgido sabe deus da onde, junto com uma porção de legumes ensopados.
– Não quis ir almoçar com as moças no salão por causa do que eu te disse ontem? – Ele perguntou servindo-se de vinho.
– Não quis ir porque achei que elas não iriam se sentir à vontade comigo por lá depois da cena do lago! – Lhe lancei um olhar cortante, Ceiran apenas riu e suspirou.
– Elas não se sentiram intimidadas por você! Apenas surpresas de ver outra mulher com poderes além de Amanda no Vale!
– Amanda é Mardam?
– Claro que não, Ellyn! Eu não disse que você era a única Mardam aqui? Pelo menos, a única fora do templo...
– Então?
– Ela veio pela Passagem das Estrelas! Gwyndion a achou tem pouco mais de vinte anos... – Ele parou e ficou pensativo.
– O que ela é?
– Hibrida de Silfo e humano, ela tem poderes de mago, mas raramente os usa, pois assusta muita gente! – Ele deu um pequeno sorriso e comeu mais um pouco da torta.
– Entendo. – O olhei discretamente, lembrando das mulheres se esquivando dele na cidade, apenas a menina da barraca o havia tratado normalmente. – Quando estávamos vindo para cá... você disse que “não precisava de mais uma com medo de você”. – Falei cautelosamente, a atenção de Ceiran se voltou para mim, os olhos atentos, curiosos. –Eu notei que as mulheres na cidade te olham com medo, porque? – Fui direta, talvez enrolar fosse pior. Ceiran estendeu o prato para que eu lhe servisse mais torta, eu fiz, tentando comprá-lo para que falasse.
– Acho que elas sentem a diferença, sabem que não sou Mardam, ou pelo menos, acham que sou diferente dos outros, por causa do meu poder. – Ele disse baixo demais, tive que me inclinar sobre a mesa para ouvi-lo.
– Não sei se entendi.
– Assim como Mardans fêmeas são mais fortes que os Mardans machos, Sorcys machos são mais fortes que Sorcys fêmeas. E, se você não percebeu, Sorcys são fisicamente mais fortes que Mardans, mas eles são mais poderosos. – Disse ele casualmente, como se estivesse conversando sobre algo normal.
– O quê? Isso significa que...
– Você pode ser mais forte que seu pai, que Gwyndion, ter mais poder que eles! – Eu o encarei perplexa, não tinha a mínima possibilidade de eu ser mais forte que eles.
– Então, aqui eu só perderia para você? – Perguntei, Ceiran sorriu e acenou lentamente com a cabeça.
– Se fosse bem treinada, provavelmente poderia ser melhor que eles! – Ele mantinha o olhar fixo na comida.
– Entendi... – terminei de comer e fiquei brincando com o prato. – O que ele queria com você?
– Nada demais... só me ameaçar caso eu entrasse aqui sem a permissão dele novamente e me mandou deixar a filha dele em paz! – Eu soltei o garfo no prato e fiquei olhando para Ceiran. Que direito Maddox achava que tinha sobre mim, para dizer algo assim para Ceiran. Ia abrir a boca e começar a reclamar, mas Ceiran continuou. – Eu argumentei que estou cuidando de você a mais tempo que ele, que se você está viva, segura e saudável foi porque eu cuidei de você! – Ele sorriu, pisquei perplexa, não acreditava que ele teria realmente dito aquelas palavras para Maddox.
– Disse mesmo isso a ele?
– Disse! E disse mais, Júlia confiou em mim para cuidar de você e não nele! Todas as cicatrizes que eu tenho, ou a maioria delas, foi por correr na floresta a noite cuidando de você enquanto você voltava do trabalho...
– O quê? – Ceiran deu um sorriso brincalhão.
– Você vivia na parte mais perigosa da Floresta de Gheshira, acha que teria vivido tanto tempo, fazendo o mesmo percurso todos os dias à noite se ninguém estivesse te protegendo das criaturas da floresta? – Ele não desviou o olhar em nenhum momento.
– Tudo pela promessa que fez? – Perguntei temendo a resposta.
– No começo foi, eu era uma criança, por sorte, te proteger enquanto você brincava pela floresta ajudou bastante em meu treinamento! Eu mantinha tudo longe de você! – Ele deu outro sorriso e continuou. – Mas você me viu um dia, quando estava recolhendo lenha... você me chamou e se recusou a voltar para casa se eu não te acompanhasse. Quando chegou na porta da cabana, você me abraçou e me chamou de nuvem e me mandou voltar no outro dia, como se um animal pudesse entender, eu senti como se você se importasse, como se eu fosse fazer falta se não voltasse, então comecei a ir todos os dias... – Engoli o caroço que havia se formado em minha garganta com muita dificuldade, eu me lembrava daquele dia, estava escurecendo e eu fiquei sentada na clareira esperando a raposa se acostumar comigo e se aproximar de mim, não tinha nem doze anos ainda.
– Acho que percebi que estava apaixonado por você, no dia que te segui quando você estava indo para o trabalho algum tempo atrás! – Disse ele chamando minha atenção novamente para seu olhar. – Foi bem no começo do último verão, o céu estava escuro aquele dia, estava trovejando e você não quis ficar em casa, mesmo com o tempo ameaçando uma tempestade. Eu estava andando ao seu lado aquele dia, então, no meio do caminho começou a chover e você parou, a princípio achei que fosse para procurar abrigo em algum lugar na floresta, mas você tirou o capuz e ficou de braços abertos na chuva, sorrindo e dançando! – Ceiran estava de olhos fechados agora. – Eu mordi seu vestido e tentei te puxar para algum lugar seguro quando a chuva começou a engrossar, mas você sentou no chão e me puxou para o colo e disse: “Ficar apenas olhando a chuva cair de um lugar protegido e nunca senti-la na pele, é a mesma coisa que existir mas não viver de verdade!”. Você ficou sentada naquela floresta até a chuva estiar, só então voltou para casa...
– Então eu te levei para dentro e sequei seu pelo, pois achei uma maldade você todo molhado por que ficou comigo na chuva. – Completei, ele assentiu ainda com um sorriso no rosto.
– Porque me tratou como se não me conhecesse antes, então?
– Por que se eles desconfiassem que eu te conhecia, iam começar a fazer perguntas, e seria perigoso para você.
– Então... Você realmente gosta de mim? – Perguntei, Ceiran puxou minha mão, virando minha palma para cima.
– Não teria enfrentado a Ira de um Mardam lendário se não te amasse. – Ele beijou minha palma aberta e soltei um suspiro pesado, encarando-o tensa.
Se não te amasse. Não disse “gostar”, disse “amar”. O que eu sentia por Fergus era algo platônico, por mais que gostasse dele, nunca teria coragem para tocá-lo, afinal, nós fomos criados como irmãos, mas Ceiran estava ali, e durante os dias na estrada eu percebi o quanto estava gostando dele, e eu não fazia ideia de como corresponder, mas sabia que sentia algo por ele, só ainda não sabia como reagir aquilo. Percebi que Ceiran ainda esperava que eu dissesse algo, ele estava com as mãos em concha ao redor da minha.
– Eu acho que preciso entender melhor isso que sinto por você... – Sussurrei.
– Eu entendo. – Realmente havia compreensão em seu olhar quando ele me encarou novamente. – Só não me faça esperar muito! Raposas são impacientes! – Eu revirei os olhos e apertei sua mão.
– Então acho melhor arrumar uma coleira de verdade para você! – Brinquei.
Tirei a mesa e limpei a louça, precisava ir até o salão pois iria colher ervas com Amanda e ver se realmente havia necessidade de outra curandeira no vale. Ceiran estava parado no arco da porta me esperando, quando passei por ele para irmos até o salão, ele segurou meu braço, girando-me para ele e puxando-me pela cintura, ele pressionou os lábios contra os meus. Estava nervosa, paralisada, mas ele sorriu contra minha boca e passou a ponta da língua por meu lábio inferior, fazendo com que meu corpo amolecesse sob suas mãos, ele apertou de leve minha cintura, eu correspondi ao seu beijo e abri a boca, deixando que ele deslizasse suavemente sua língua na minha, toquei seu rosto e deslizei as mãos até enrolar meus dedos em seus fios acobreados. Ceiran finalizou o beijo mordendo minha boca de leve, depois meu queixo, eu estava sem fôlego.
– Achei que tivesse dito que ia esperar...
– Achei que tivesse deixado bem claro que raposas não tem paciência, Ellyn! – Ele sorriu.
– Assim fica até difícil negar alguma coisa para você! – Falei, Ceiran deu uma gargalhada rouca e me puxou mais para perto dele.
– Essa era a ideia! – Ele beijou minha testa. – Vamos, Amanda vai se irritar se eu te atrasar e Maddox vai me matar se me encontrar aqui dentro! – Ele me puxou para fora da casa.
– Achei que tivesse dobrado ele!
– Pois é, mas ele disse “Não na minha casa! Lá dentro eu posso te matar! E Júlia não pode te defender!” – Eu parei de andar e o encarei.
– Como assim?
– Sua mãe era a única que sabia como eu me sentia em relação a você, talvez até mesmo antes que eu percebesse...
– E?
– Ela disse que um Sorcys era melhor que um caçador bruto, ignorante! – Porém o sorriso dele sumiu.
– O que foi?
– Talvez Maddox não confie mais em mim, talvez agora que ele sabe que sou um Sorcys.
– Não acredito que ele deixaria de confiar em você por isso, Ceiran. – Ele passou os dedos pelos meus cabelos e sorriu.
– Espero que não!
Ceiran me deixou na entrada do Salão e sumiu para o campo de treino, eu não havia perguntado onde ficava, se não teria ido até lá espiar, mas Amanda já estava entrando pelas portas do salão, então a segui para a sala de cura. Ela estava com olheiras leves e bocejava com frequência.
– Não dormiu bem? – Perguntei, ela me lançou um sorriso malicioso e meneou a cabeça negativamente.
– Tive que cuidar de um caçador irritado a noite toda, porque alguém o provocou no salão! – Ela apoiou uma das mãos na mesa e tateou às cegas embaixo dela, em busca de algo.
– Não entendi! Ele ficou reclamando com você por eu ter implicado com ele? – Ela parou de procurar e me observou novamente de cima abaixo.
– Que idade você tem mesmo, Ellyn? Dezenove? – Ela sorriu maliciosamente para mim. Então entendi o que ela quis dizer com Gwyndion e eu corei.
– Ah! Desculpe! – Ela gargalhou, alcançou a pazinha que estava procurando e se levantou, pegando alguns frascos e saquinhos de tecido e os enfiando em uma bolsa de couro.
– Vamos? – Amanda pegou meu braço e me levou para fora do salão. – Vamos começar pelas que estão fora do Vale, assim as que temos aqui dentro, podemos colher ao anoitecer! Aqui dentro estaremos seguras depois que escurecer. – Atravessamos o Vale em passos rápidos, o sol estava alto no céu, mas o frio era intenso, passamos pelos portões do Vale e me senti mal em sair dali, como se estivesse desprotegida.
Andei agarrada com Amanda, ela parecia tranquila, a vontade, então me forcei a relaxar e não me sentir como uma prisioneira fugindo do cárcere.
Do lado de fora do Vale, seguimos um pouco para o Sul, na direção dos arcos de pedra de Arizal, a paisagem ao longo da estrada era pintada em tons de marrom e vermelho, simples, mas bela. As árvores desfolhadas se preparavam para receber o peso da neve que logo começaria a cair, cobrindo tudo com seu manto branco e pacífico, aproveitei a sensação do vento frio no rosto, Amanda também sorria contra o vento, sem se importar com a bagunça que estava se transformando seu cabelo.
Perto de Arizal, havia um campo que era mantido vivo por magia, onde muitos magos iam buscar ingredientes para seus preparados e poções. Estava empolgada, pois pisaria ali pela primeira vez, todos diziam ser um campo de beleza incomparável.
Nos aproximamos dos arcos quase uma hora de caminhada depois, Amanda reduziu o passo e circulou os arcos, observando atentamente o chão ao redor das pedras.
– Sabe o que é isso? – Ela perguntou apontando um pequeno tufo de folhas alaranjadas ao redor das pedras.
– Parece vereira vermelha.
– Não parece vereira vermelha, é vereira vermelha! – Ela estendeu a mão para recolher a erva e eu soltei um gritinho, abaixando-me ao lado dela e pegando um dos frascos dentro da bolsa, usei as unhas para arrancar um punhado de terra ao redor da erva e a tirei inteira para colocar num dos frascos. Amanda estava com as sobrancelhas erguidas e sorriu quando limpei as unhas e guardei a erva.
– Ela tem as folhas venenosas! Deve ser arrancada pela raiz ou pode... – Ela estava me testando, revirei os olhos e Amanda começou a rir.
– Parabéns, achei que os seus mestres eram uns completos inúteis! – Não sabia se estava brincando ou falando sério.
– Eu aprendi o suficiente. – Falei seguindo-a pela estrada.
Não demorou muito para encontrarmos um pequeno desvio na estrada feito por marcas de rodas de carroças, nós seguimos aquela rota até encontrar um campo grande e verde, onde o tempo parecia ter parado em eterna primavera. Ali estava morno, o vento soprava um agradável aroma de plumeria em nossa direção, uma das plantas que eu teria que colher também. O campo era realmente belo! A grama era macia e fofa, haviam poucas árvores ali, algumas frutíferas, outras apenas para fornecer sombra.
Ao entrar no campo, tive que tirar o manto, dobrar as mangas do vestido e usar o cinto para encurtar a saia dele, pois estava muito quente. Amanda estava preparada, ela tirou o mando e usava um vestido curto vermelho, destacando a pele dourada e os olhos verdes.
– Podia ter me avisado sobre a temperatura daqui! – Reclamei movendo os braços e entrando na sombra de uma das árvores. Amanda revirou os olhos e estalou os dedos, num instante, estava num vestido curto verde claro e sem mangas, como o dela. – Obrigada!
Começamos a procurar e recolher as ervas espalhadas pelo campo, mas sem sair para longe uma da outra. Alguns minutos depois, já estava entediada com o silêncio que só era quebrado pelos estalinhos dos talos das ervas sendo rompidos e o tilintar dos vidros na bolsa de Amanda. Resolvi puxar conversa antes que ficasse louca.
– Como você e Gwyn se conheceram? – Perguntei mesmo sabendo parte da história por Ceiran.
– Eu vivia do outro lado, em outro mundo. Era uma curandeira lá, eu viajava pelas cidades junto com um grupo de Sacerdotisas, ajudando as pessoas, aprendendo a curar, a salvar vidas... Mas um dia, uma das sacerdotisas se descuidou do caminho e entramos em uma floresta proibida, perigosa demais. – Amanda havia parado de colher as ervas, e agora estava sentada sob a sombra de uma macieira. Sentei ao lado dela e lhe ofereci o coldre com água, ela deu um gole longo antes de continuar a contar; – Um grupo de bandidos viu que estávamos perdidas e nos atacaram, eles só queriam nos roubar, mas eu não aceitei que eles levassem nada e os ataquei com magia! – Ela suspirou pesadamente.
– Você os enfrentou?
– Sim... mas eles eram elfos negros, souberam repelir a minha magia. Então eles me espancaram e me arrastaram até um poço no centro da floresta e me jogaram dentro, por sorte aquilo era um portal instável. Acordei dias depois no Vale, perto de Maddox, naquela época a sala de cura ficava dentro do templo. – Ela piscou, levando aquela lembrança embora, e pela sua expressão tensa, devia ser algo assustador. – Foi Gwyndion que me encontrou na passagem das estrelas e me levou para que a Senhora da Lua me curasse.
– Você conheceu Breedja? – A olhei espantada.
– Eu estava lá, fiquei amiga de Júlia, estava lá quando Maddox trocou Breedja por ela. – Ela engoliu em seco. – E também estava lá quando a guerra começou, quando Breedja foi lacrada e proferiu suas últimas palavras, aquela profecia. Senti a dor de cada mãe quando as matriarcas ordenaram a morte das Mardans fêmeas. Gwyndion era casado com uma Sorcys na época, ela tentou fugir do clã quando descobriu sobre a ordem de matarem todas as fêmeas Mardans, pois estava grávida, mas Gwyndion a fez ficar lá até que a criança nascesse, se fosse menino, ele ficaria com ele, se não fosse, se não nascesse Sorcys... Eu fiz o parto dela, de Ellarin, a melhor amiga de Júlia. Ele as matou, queimou as duas quando a menina nasceu com cabelos e olhos prateados. – Estava prestes a vomitar, Amanda estava com as bochechas cobertas de lágrimas, não queria mais saber, mas ela continuou a contar. – Um bom tempo depois que os Mardans e as Sorcys cortaram relações, depois dos rumores delas terem perdido os poderes e desaparecido para sempre, Maddox ainda procurava por Júlia. Eles tiveram notícias de uma Sorcys vagando pelo Caminho das estrelas um dia antes da primeira Lua de Sangue, e com medo de algo acontecer e de Breedja se soltar, os caçadores foram atrás dela.
– Eles não a pegaram, não é? – Amanda meneou a cabeça.
– Adar e Ceiran trouxeram Gwyndion dias depois para que eu o curasse. O rosto, o pescoço e os ombros mutilados por garras Sorcys, cheios de veneno, ele morreria em poucas horas se eu não o curasse. – Ela tomou mais um pouco d’água e suspirou. – Eu ia deixar ele morrer, pelo que fez com Ellarin, eu queria que ele morresse! Mas ele havia me salvado, não me conhecia, podia ter me deixado para morrer naquele poço sob a montanha. Eu o curei para pagar minha dívida, nessa época a sala de cura já estava no salão, pois Maddox queria distância das Matriarcas.
– Se você o odiava, como está com ele hoje?
– O veneno de Júlia era muito potente, não queria sair do sistema dele, então ele ficou por quase dois meses na instalação de cura. Por mais que eu o odiasse por aquilo, não consegui apagar um sentimento que já tinha antes mesmo de tudo aquilo acontecer... – Ela parecia envergonhada de si.
– Acho que é justo, das as pessoas uma segunda chance, Manien vivia perdoando Lucian, e ele sempre a maltratava, chegava bêbado em casa, acho que nunca o vi tratá-la com carinho, mas mesmo assim ela o amava. – Até eu o matar.
– Obrigada. – Ela me mostrou um sorriso tristonho.
– E minha... mãe? Como ela era?
– Júlia era um amor, embora fosse muito poderosa e perigosa. Ela era excelente com as armas, mas não superava Maddox em magia. – Havia algo mais que gostaria de perguntar.
– O que é a tal marca das sombras que meu pai disse que todos que a tinham, eram protegidos pelo clã? – Perguntei, Amanda se encolheu e olhou para mim com uma pontada de pena.
– É o ritual de passagem, que marca as mulheres que entram para o clã, passou a ser obrigatório de alguns anos para cá e você terá que passar por ele também! – Ela não havia respondido minha pergunta.
– O que é essa marca, e esse ritual? – Amanda virou-se de costas para mim e soltou as alças do vestido, deixando as costas à mostra. Desde a base de sua coluna até o ombro esquerdo, havia uma tatuagem serpenteando por sua coluna, a marca era uma serpente negra que terminava com as presas perto do pescoço de Amanda.
– A marca é a mesma para todas? – Eu perguntei assustada.
– Não... Varia de mulher para mulher, dependendo de sua personalidade! – Ela resmungou recolocando a parte de cima do vestido. – Uma cobra... o símbolo da traição! – Ela escondeu a marca com os cabelos.
– Na verdade, pelo que ouvi os magos contando na sala de cura onde eu trabalhava, a cobra simboliza a força vital, o renascimento, a renovação e a sensualidade. – Falei, Amanda olhou para mim por cima do ombro e sorriu.
– Bom, pelo menos não vou ter tanta vergonha de deixá-la a mostra agora! – Ela se recostou na árvore e começou a anotar todas as ervas que já havíamos colhido.
– E quanto ao ritual? – Perguntei, Amanda soltou a pena e me encarou novamente com um olhar sentido. – Tão ruim assim?
– Para uma garota tímida como você? Será uma tortura! – Ela me passou a lista para que eu riscasse as ervas que colhi.
– Me diga logo, por favor! – Implorei.
– Na última lua cheia de cada mês, as mulheres que entraram no clã no período desde a última lua cheia do mês anterior até o atual, irá até a pedra da terra receber a marca. Um pequeno altar sobre o salão principal, onde as sombras das quatro grandes montanhas se encontram. Exatamente à meia noite da última lua cheia de cada mês, as sombras das quatro montanhas ocultam aquele altar e o ritual se dá início.
– Você está enrolando!
– Eu sei... – Ela mordeu os lábios e respirou fundo. – Você vai estar deitada sobre a pedra negra do altar coberta apenas da cintura para baixo, enquanto os cinco principais membros do clã, os guerreiros mais fortes assistem o líder invocar a Alma da escuridão e te dar a marca das sombras.
– Diz que é brincadeira! – Pedi agarrando os pequenos ombros dela.
– A pior parte, é que a marca queima como ferro em brasa, e se você gritar, a marca desaparece e você vai ter que passar o período até a próxima lua cheia escondida da luz do sol, pois se não, você morre queimada.
– Isso é loucura!
– Isso é tradição e é muito importante, pois assim os Mardans terão uma obrigação com você, em te proteger pelo resto da vida! – Engoli em seco. Pelas minhas contas, a última lua cheia do mês, seria amanhã.
– Será que vão esperar até mês que vem? – perguntei, Amanda negou.
– Ele já mandou preparar o altar... O seu ritual será amanhã à meia noite. – Ela falou, se levantou e terminou de recolher as ervas que precisava. Peguei algumas maçãs da árvore que estávamos sob a sombra a pouco e as levei comigo, faria uma torta com elas, mas estaria menos doce agora.
Enquanto caminhávamos de volta para o Vale, pude sentir como se alguém me observasse e me seguisse, mas me agarrei ao braço de Amanda e voltamos antes que o sol desaparecesse por trás das montanhas.
9
A marca
Naquele final de tarde, depois de ter voltado do campo de ervas com Amanda, decidi que iria comer com as mulheres a cozinha, pois não conseguia encarar meu pai, nem Ceiran. Depois de tomar banho, procurei por Amanda que ainda estava na sala de cura, arrumando as ervas e as catalogando.
– Posso comer com vocês na cozinha hoje? – Pedi, Amanda entendeu o motivo de meu nervoso e me levou com ela para a cozinha. Descemos uma escada atrás de duas portas que eu não havia reparado do lado direito do salão, a cozinha ficava no subsolo, era imensa, os fornos e fogões espalhados deixavam o lugar quente demais. As garotas estavam ajudando algumas mulheres bem mais velhas a cortar legumes, verduras e carnes, enquanto as jovens cozinhavam, sovavam massas e conversavam em alto e bom som para que todos ouvissem.
Havíamos chegado tarde para ajudar, o jantar já estava quase pronto, porém ajudamos como pudemos, arrumando as travessas para levar até o salão principal. Nenhuma mulher me olhou torto pelo acontecimento no lago, elas apenas acenavam timidamente, acostumando-se com a novata.
– Mais alguém chegou no clã esse mês? – Perguntei, Amanda fez que não e continuou arrumando uma pilha de pãezinhos.
– Então serei só eu amanhã? – Ela me encarou e respirou fundo.
– Esqueça isso por hoje, Ellyn, tem que estar calma para amanhã, ou vai gritar como um porquinho sendo abatido e vai ter que ficar em casa por um mês! - Amanda piscou para mim, mostrando-me um sorriso quase debochado. – Você é a filha do Mardam lendário, se falhar naquele ritual, como seu pai vai ficar? – Sabia o jogo que ela estava fazendo, me assustar para que o medo de falhar fosse maior que a vontade de que tudo desse certo, para mim tudo funcionava melhor quando estava com muito medo de fazer uma bobagem.
Quando todas as travessas estavam arrumadas, as levamos escadas acima e as arrumamos nas mesas e voltamos a cozinha alguns segundos antes deles entrarem pelas portas, rugindo, rosnando como feras mortas de fome.
Sentei a mesa junto com Amanda e a mesma jovem ruiva que havia visto no mercado mais cedo, as duas estavam caladas e parecia que não se falavam, então resolvi puxar assunto com Amanda enquanto enchia uma tigela com ensopado e pegava alguns pães.
– A maioria são mulheres humanas, não são? – Perguntei baixinho, Amanda assentiu. – E como funciona? Já que nós envelhecemos e os Mardans não? – Ela arqueou as sobrancelhas e riu.
– Nós? Você é como eles, Ellyn! Você não vai mudar! – Ela mordeu um pãozinho e olhou um grupo de senhoras idosas no canto da cozinha. – Aquele é o motivo pelo qual as humanas que vem para cá passam pelo ritual da sombra! Aquelas senhoras são algumas das que se recusaram a passar por ele, o ritual, a marca das sombras serve para além da proteção, se humanas comuns não passarem por ele, elas irão envelhecer e morrer normalmente. Eles não costumam aceitar muito bem quando suas mulheres partem... – Havia uma sombra em seu olhar, mas continuei a conversa.
– E elas? – Apontei com o queixo para as velhinhas.
– Elas estão aqui a bastante tempo, mesmo sem a marca estão sob a proteção dos Mardans. – Amanda as olhou com ternura e sorriu.
– Que idade você tem? – Ela me olhou espantada.
– Não te disse mais cedo?
– Não!
– tenho duzentos e dois. – Ela mordeu os lábios, sou mais velha que Gwyndion! – A jovem ruiva que estava ao lado de Amanda mostrou os dentes, como se estivesse provocando-a e ajeitou os cabelos para trás, não sei o porquê, mas aquele gesto me pareceu uma pequena declaração de guerra.
– Interessante como ainda aguenta montá-lo, não é vovó! Os quadris não doem em fazer tanta movimentação nessa idade toda? – A jovem provocou, eu a olhava com os olhos arregalados, depois olhei para Amanda, que respondia a ela com um sorriso feral.
– Niera, se você chegar a minha idade. – Ela disse se chegar a idade dela. – Você vai ter esquecido como montar num homem, já que mal consegue se lembrar de como descascar batatas! Acho que foi por isso que Adar deu a ideia de todas as mulheres cozinharem juntas, ele tinha esperança que você aprendesse algo com elas! – Amanda rebateu, e eu tive que beliscar a coxa para não rir. Niera ficou vermelha, mas logo voltou à pose e rebateu:
– Com tudo que tenho a oferecer, Adar nem se importa que eu não saiba cozinhar! Não sou como você que tem que saber cozinhar muito bem para manter Gwyndion entretido com comida! Assim ele acaba dormindo de barriga cheia e não exige nada de você a noite! – As outras mulheres à mesa ficaram em silêncio e encararam Amanda, que deu um sorriso assustador, então pegou uma cenoura inteira que estava em uma das travessas sobre a mesa e a colocou inteira na boca, deixando Niera boquiaberta, e eu, completamente desesperada e envergonhada.
Então, foi como se aquela pequena discussão das duas e a provocação de Amanda com a cenoura tivesse puxado o assunto, outra delas um pouco mais distante na mesa falou:
– Esse truque é antigo! Eu posso fazer melhor! – E dizendo isso, mostrou um gesto obsceno para Amanda, que gargalhou e respondeu:
– Gestos simples as vezes são mais bem vindos e muito mais prazerosos! – E todas as outras começaram a falar coisas ainda mais provocativas e fazer gestos ainda piores umas para as outras e ensinar as outras... Eu estava com a pele ardendo.
Me levantei da mesa com meu prato na mão e saí rapidamente em direção as escadas, pulando de dois em dois os degraus, entrei no salão que parecia uma zona de guerra e fui até a mesa de cabeceira, Ceiran estava me observando desde a hora em que pisei no salão até que eu sentei ao seu lado e voltei a comer. Ele tinha um sorriso divertido no rosto e não desviava o olhar de mim.
– Você tinha razão, aqui é bem mais divertido! – Não ousei olhar para ele, mas vi pelos cantos dos olhos seus ombros sacudindo em quanto ele gargalhava.
– Eu disse, elas são assustadoras! – Eu assenti enquanto comia, ainda peguei o vinho dele e bebi todo de uma vez.
– Acho que Amanda é mais assustadora que todas as outras juntas! – Sussurrei para que Gwyn não escutasse. – É assim todas as noites? – Ceiran não conseguiu conter a gargalhada dessa vez.
– É assim no café e no almoço também! O que muda é o que elas usam para...
– Não complete essa frase! – Falei sentindo o rosto ficar ainda mais quente.
– Então, se divertiram colhendo ervas? – Ele perguntou mudando de assunto.
– Claro! Adorei saber que você não se incomodou em me contar que eu teria que passar por um ritual de passagem amanhã! – Disse sarcasticamente, Ceiran ficou pálido.
– Amanda te contou, não foi?
– Quem mais contaria? Eu só saí com ela! – Rosnei.
– Desculpe... eu pretendia contar.
– Quando?
– Amanhã, quando faltasse pouco menos de meia hora! – Ele riu quando lhe acertei com o cotovelo.
Naquela segunda noite, meu pai me acompanhou até em casa, deixando Ceiran, Adar e Gwyndion para trás, não me atrevi a voltar até a cozinha e ver o que tinha acontecido com as mulheres lá.
Já estava deitada em minha cama, em uma camisola longa de algodão e me esticando sobre o colchão macio quando meu pai deu algumas batidas na porta e entrou. Ele estava vestindo uma calça azul escura folgada e uma túnica branca, os cabelos enrolados para trás num coque. Ele acenou com o braço metálico e sentou na beirada da cama.
– Ellyn, amanhã à noite...
– Posso te adiantar que eu já estou sabendo sobre esse tal ritual amanhã. – Cruzei os braços e semicerrei os olhos, mas ao invés de deixá-lo sem graça por não ter me dito antes, ele apenas riu.
– Sua mãe faz a mesma cara quando escondem algo dela.
– Ah, mas eu divido muito que você iria rir se fosse ela que te olhasse feio assim! – Retruquei, definitivamente tinha algo naquele Vale que me deixava sem noção de perigo. Baixei a cabeça sem graça e murmurei umas desculpas. – Desculpe...
– É coisa de Mardam! Você percebeu a mudança no comportamento depois de usar os poderes pela primeira vez, não é? – Ele perguntou, afagando minha cabeça com a mão, como se eu fosse uma criança que havia sido pega numa travessura e precisasse de um consolo, ao invés de um castigo. Assenti e suspirei olhando para o vaso sobre a escrivaninha.
– Não se preocupe com isso, uma hora você vai poder controlar isso, vai ser como respirar.
– Não parece que deu certo com Gwyn! – Falei, ele torceu a boca e concordou.
– Ele é exceção, não controla a língua por que sabe que tem poucos que possam enfrentá-lo.
– Ceiran pode? – Ele me encarou tenso por um momento.
– Ele é um Sorcys, sua mãe com metade do poder dela, por estar fraca depois de ter tido você, quase o matou. Ceiran poderia fazer isso com qualquer um dentro desse vale facilmente.
– O senhor acha que ele pode ser uma ameaça, por ser um Sorcys? – Perguntei.
– Ele continua sendo o terceiro melhor Mardam do clã, para mim, e se ele não quiser dizer para os outros o que é, vai continuar sendo um Mardam para eles também.
– Isso não responde minha pergunta, pai. – Foi a primeira vez que o chamei assim, algo brilhou em seus olhos, algo doce, terno.
– Se ele quisesse, teria feito algo enquanto eu não sabia o que ele era, enquanto esteve em minha casa quando era mais jovem. Mas acho que ele percebe que vingança não as traria de volta, e que os verdadeiros culpados não foram nós...
– Porque não acabam com elas de uma vez? – Minha voz saiu quase como um sussurro.
– Por que as Matriarcas só podem morrer se houverem outras para substituí-las, Ellyn! Elas são as sacerdotisas que mantém uma barreira em volta do Vale, são as primeiras Mardans fêmeas. As Matriarcas naquele templo devem ter mais de sete mil anos cada! – Dei um baixo assovio.
– Acho que já passaram do tempo! – Falei baixinho.
– Todos acham isso também! – Ele suspirou e afagou minha cabeça. – Mas sem outras Mardans... – Ele olhou para o vaso em cima da mesa e voltou a me encarar.
– Ellyn, sobre amanhã, eu sei que pode ser difícil, mas eu preciso que você aceite, só assim para você estar totalmente segura aqui dentro! A marca das sombras vai fazer com que a proteção do Vale se estenda a você também! Ainda mais por que a Lua de Sangue é no próximo mês e só acontecem a cada dez anos, as Sorcys não vão querer perder essa oportunidade de libertar sua líder! – Ele ficou tenso, eu também, me encolhi pensando naquilo.
– Se ela conseguisse a liberdade, seria difícil matá-la? – Ele franziu o cenho para mim.
– O poder das Sorcys está no auge durante as luas de sangue, seria uma batalha difícil!
– Você não me respondeu. – Ele apertou a boca numa linha fina e desviou o olhar.
– Só uma Sorcys pode matar outra durante as luas de sangue, e não pediria para Júlia enfrentá-la, por mais forte que ela possa ser, não arriscaria perdê-la... – Pude sentir o medo dele em seu olhar quando disse aquilo, então desviei a conversa.
– Existe algo similar para os Mardans? Algo semelhante à Lua de Sangue?
– Existe, quando ocorre um eclipse lunar, quando as sombras fazem a noite ficar completamente escura. Os Mardans das Sombras ficam com os poderes ainda mais fortes. – Meu pai beijou minha testa. – É melhor dormir agora! – Ele se levantou e foi em direção à porta.
– Pai... quanto ao Ceiran... – Não sabia como falar sobre aquilo, meu rosto corou quando ele se virou e franziu o cenho para mim.
– Eu o criei como um filho, sei exatamente o tipo de pessoa que é e o que fez por sua mãe e por você! – Ele fechou os olhos e respirou fundo, como se estivesse tomando coragem para dizer algo. – Se você disser para mim que vai ficar com ele, eu ficaria aliviado por saber que fiz um bom trabalho o ensinando como tratar as mulheres! Não poderia dizer o que deve ou não fazer, pois você já é adulta e deve saber o que quer e o como lidar com suas escolhas e as consequências delas!
– Obrigada, por confiar em mim.
– Eu que agradeço por estar aqui, por me aceitar mesmo depois de eu nunca ter te procurado. – Aquilo mexeu comigo.
– Se soubesse antes, teria ido atrás de mim? – Arrisquei perguntar.
– Eu teria revirado o mundo atrás de você! – Ele sorriu e saiu, batendo a porta de leve atrás de si.
Minha mente ficou alerta, vagando por pensamentos aleatórios enquanto pensava em tudo que estava acontecendo ao mesmo tempo, tudo rápido demais. Sentia falta de Fergus, falta de suas histórias, de seu carinho. Talvez o que sentisse por ele fosse apenas afeto, pois quando Ceiran se aproximava, quando ele me olhava com aqueles olhos como mel aquecido, tinha a vaga sensação de que o mundo parava ao meu redor. Fiquei pensando no beijo que ele me deu, em como aquilo fez com que eu me sentisse inteira, como se de alguma maneira eu estivesse vazia até agora e Ceiran preenchia algum buraco em minha alma.
“Oi, Ellyn!” Disse uma voz masculina e suave para mim. Levantei-me num pulo e comecei a vasculhar o quarto com os olhos procurando pelo dono daquela voz, mas não havia ninguém ali, apenas o brilho do vaso de estrelas de minha mãe clareava o quarto.
– Quem está ai? – Chamei baixinho, pensando ser coisa da minha cabeça.
“Um amigo!” A voz respondeu e meu sangue congelou. Senti os raios se formando na palma de minha mão, fazendo cócegas ali.
– Então porque se esconde? – Falei tentando manter a calma.
“Você quer me ver?” Ele perguntou, a voz vinha de trás do vaso fluorescente. De trás do vaso apareceu uma borboleta quase do tamanho de minhas mãos, ela era prateada e emanava uma luz branca e viva, fazendo com que eu quisesse me aproximar, mas em minha cabeça algo gritava para que eu me afastasse. A borboleta pousou na beirada da cama e moveu as asas graciosamente.
– Quem é você? O que quer aqui? – Falei dando um passo para longe da cama, podia sentir o seu poder, algo pulsante, poderoso demais, como se estivesse me suprimindo aos poucos, criando algo ao meu redor, como uma prisão.
“Só vim ver você novamente, aquele dia, aqueles brutos me atacaram sem nem ao menos deixar que eu falasse com você!” Disse a voz doce, melodiosa.
– O que você é? – Perguntei com a voz trêmula.
“Sou seu amigo.”
– Não, não é! Eu não te conheço! – Dei outro passo para longe, aumentando a quantidade de energia em minhas mãos e sentindo aquela outra energia tentando me fazer ceder.
“Eles mentem para você, Ellyn, eles são maus, cruéis, matam sem pensar duas vezes! Você não está segura aqui!”
– Eu me sinto segura aqui! – Retruquei, a borboleta bateu as asas e pousou perto de minha mão, como se não se importasse com os raios e minhas pernas ficaram moles, o pânico estava crescendo em mim conforme percebia que não conseguia me mover mais. Estava colada à parede agora, paralisada, um grito meu era o que bastava para que meu pai derrubasse a porta e viesse me ajudar.
“Eles irão te ferir, de uma forma ou de outra! E quando você pensar que está tudo bem, eles vão tomar tudo de você!”
– Saia daqui! – Grunhi ameaçando-o com os raios, tentando não deixar o medo vencer.
“Posso te levar para um lugar seguro de verdade, onde eu possa cuidar de você! Basta que você toque em mim!” A luz da borboleta ficou mais intensa, enquanto ela se aproximava de minha mão apoiada na soleira, não conseguia movê-la. O brilho frio da borboleta me alcançou e por um segundo achei que aquilo realmente me levaria dali. Porém, algo branco saltou pela janela aberta e por pouco não abocanhou a borboleta, que voou rapidamente pela janela.
A raposa ficou parada no chão do quarto, encarando-me silenciosamente, escorreguei pela parede do quarto caindo sentada no chão e respirando normalmente agora, aquela sensação de peso havia desaparecido.
Ceiran tomou forma humana e sentou-se ao meu lado no chão, ele vestia apenas uma calça cinzenta que estava com a barra dobrada, deixando duas marcas negras visíveis em seu tornozelo. As velas sobre a cômoda se acenderam e a claridade do quarto me fez sentir mais tranquila.
– O que era aquilo? – Perguntei.
– Uma Sorcys. – Ele passou os braços ao redor de meus ombros, só então percebi que ainda tremia.
– Tinha voz de homem. – Falei, Ceiran franziu o cenho, a trança ruiva caiu de seu ombro quando ele se inclinou um pouco para frente para me encarar melhor.
– Falou com você?
– Sim, disse que eu não estava segura aqui! – Ceiran se levantou e estendeu a mão para que eu levantasse, tentei ignorar o calor que seu toque provocou em mim e voltei até minha cama caindo sobre ela. Ceiran fechou a janela e cruzou os braços sobre o peito nu, ficou me encarando por um tempo, enquanto eu o observava, contando as pequenas cicatrizes em seu corpo, tinha que achar algo para me distrair dele rapidamente:
– Barulheira demais, como meu pai não acordou com isso?
– Ele não está! Os líderes estão preparando o ritual, estarão em cima do salão principal até o alvorecer. – Foi nessa hora que o medo desceu por minha espinha somo uma mão física esfregando minhas costas. Se eu tivesse gritado, ele não estaria aqui para me ajudar e aquela Sorcys teria me levado. Ceiran se aproximou da cama e sentou na beirada, como se tivesse lido meus pensamentos, ele começou a falar:
– Eu estava de olho, não se preocupe, você está segura aqui, Ellyn! – Ele puxou minha mão e a beijou, novamente, tentei ignorar o calor em meu corpo e procurei rapidamente um assunto para manter meu foco em qualquer coisa que não fosse aquele sorriso.
– O que são as marcas no seu tornozelo? – Perguntei sobre os quatro anéis de palavras em volta do tornozelo esquerdo dele.
– São marcas de quando se mata uma Sorcys, um anel de palavras aparece em volta de seu tornozelo, para que elas possam reconhecer as bruxas que você matou e vingarem as parceiras. – Engoli em seco, Ceiran pegou meu pé e levantou minha perna, mostrando quatro anéis negros de palavras em volta de meu tornozelo também. – Estamos empatados na quantidade de Sorcys! – Ele deu um risinho de deboche. Suguei o ar e me apoiei nos cotovelos para tentar ler o que estava escrito ali, mas não conseguia entender aquele idioma. A camisola escorregou pela minha perna e eu a segurei, sentindo meu rosto queimar, então me enfiei rapidamente embaixo das cobertas. Ceiran riu, apagou as velas e foi em direção a janela, mas ao invés de fechá-la ele estava se preparando para sair.
– Onde vai? – Sentei na cama e o olhei assustada, não queria ficar sozinha agora.
– Tenho que ir, pode deixar, eu vou ficar de olho em você, dá para ver sua janela de meu quarto! – Ele piscou e fez menção de sair, mas pulei da cama rapidamente e agarrei seu braço.
– Não vai embora! – Pedi, Ceiran deu um sorriso malicioso e mordeu os lábios.
– Não sei se vou me comportar bem se passar a noite aqui!
– Vai ficar e vai se comportar! – Ceiran revirou os olhos e reclamou:
– Tá bem! Mas se você me provocar, não respondo por mim, menina! – Ele deu um meio sorriso, voltei para a cama e me embrulhei nas cobertas, Ceiran se esticou sobre a poltrona e colocou os pés na soleira da janela. Estava muito frio aquela noite e não fazia ideia de como ele fazia para não sentir frio, usando apenas aquela calça.
– Não está com frio?
– Estou bem! – Ele não parecia estar com frio, mas também não parecia confortável.
– Vamos! Pode deitar aqui! – Ele ergueu as sobrancelhas e sorriu novamente. – Como raposa! – Completei, Ceiran revirou os olhos e sacudiu a cabeça, mas sua pele brilhou e ele saltou sobre a cama, transformado na pequena raposa branca. Ceiran deitou a cabeça sobre minha barriga e ficou parado observando-me. Estiquei a mão e cocei sua cabeça, atrás das orelhas, até ele fechar os olhos e dormir, pouco depois, me sentindo calma e segura, peguei no sono novamente.
O som das batidas na porta do quarto me fez pular na cama de manhã, olhei rapidamente para baixo, onde Ceiran dormira, mas ele não estava mais lá. Me arrastei até a porta e a abri, para minha surpresa, eram Amanda e a jovem ruiva da noite anterior, a esposa de Adar, Niera.
– Oi... posso ajudar? – Perguntei, mas Amanda fez um gesto para que eu ficasse em silêncio e pegou meu braço, Niera andava atrás de nós para fora da casa, elas nem sequer esperaram eu trocar de roupa, me tiraram de dentro de casa com a camisola. Do lado de fora o frio era cortante, ainda não havia amanhecido completamente, o Vale ainda estava escuro e a geada cobria a grama ao longo do caminho até o centro da cidade. Niera tinha uma longa espada nas costas, estava nos guardando.
– Amanda, o que está havendo? – Ela emitiu um chiado para que eu ficasse quieta.
– Já te explico! Não acorde ninguém! – A cidade estava silenciosa, não havia ninguém do lado de fora das casas, parecia uma cidade deserta. Elas me levaram até a casa de banho que Ceiran havia me mostrado antes, nós circulamos a casa em passos rápidos e silenciosos, Niera abriu uma porta estreita de madeira nos fundos e nos deu passagem, subimos por uma escada curta até uma antessala com vários arcos, neles estavam penduradas toalhas e roupões de banho, Amanda me fez tirar a camisola e vestir um dos roupões. Assim que passamos pelas portas para a sala principal, mais duas mulheres vieram ao nosso encontro. Uma era alta, tinha pele cor de chocolate e olhos cinzentos e a outra era loira e baixinha, com grandes olhos amendoados.
– Essas são Cassis e Liny! – Amanda nos apresentou. – Liny, já está pronto? – A mulher loira fez um aceno e nós seguimos para dentro da casa de banho. O local era bem grande, as paredes interiores eram cobertas por pedras lisas marrons, encaixadas perfeitamente umas nas outras, dando um ar natural ao local, as janelas eram estreitas e altas, assim, ninguém do lado de fora poderia olhar o que se passava ali dentro. O chão era feito de tábuas longas e polidas, e das frestas de quase um dedo de largura, subia um vapor com aroma de bétula e laranja.
No meio da sala, havia uma piscina de pedra e no canto esquerdo, uma pequena queda d’água artificial que movimentava a água quente na piscina. A Sala era iluminada por muitas velas perfumadas e o ar ali dentro era um tanto pesado, mas dava uma sensação agradável e aconchegante.
Amanda tirou meu roupão, ela mesma estava sem roupa, então entrou na banheira, junto com as outras três mulheres e acenou com a mão para que eu entrasse também. Por sorte meu cabelo estava grande o suficiente para que eu cobrisse parcialmente o corpo com ele. Entrei na água também, estava muito quente, fez minha pele formigar, mas era uma sensação de ardência agradável. A água estava levemente perfumada, plumeria, sândalo e outro aroma que não consegui identificar.
– E? – Olhei as mulheres relaxando na água, elas pareciam apreciar a sensação daquela água perfumada e estranhamente pesada. Amanda recostou na parede de pedra da piscina e me encarou com um olhar tranquilo.
– Água com carvão das montanhas do sul! – Disse ela formando uma concha com a mão e entornando a água com uma leve cor acinzentada de volta na piscina.
– Para que isso? – Perguntei.
– Purificação. – Niera quem respondeu, lavando o pescoço e os braços com uma toalhinha. – Serve para limpar o corpo e soltar as impurezas da alma antes do rito de passagem, assim você tem mais chances das sombras de aceitarem!
– Que tipo de impurezas da alma? – Elas me olharam surpresas.
– Malícia! As sombras gostam de habitar corpos de seres pacíficos com almas puras! Sem maldade, de preferência, imaculados! – Quem respondeu foi Cassis.
– Ainda não entendi.
– Mulheres cujos corpos nunca foram tocados, elas têm mais chance de serem aceitas pelas sombras! Então, esse banho serve para camuflar essas impurezas! – Amanda falou, porém Niera riu, Liny afundou um pouco mais na água, deixando apenas os olhos de fora.
– Então vocês trouxeram ela aqui só para tomar um banho quente! – Ela zombou apertando minha bochecha. Amanda ergueu as sobrancelhas;
– O que quer dizer com isso?
– Oras! Não viu a reação dela quando começamos as brincadeiras ontem no jantar? Ela preferiu ver a batalha dos Mardans com a comida do que ficar conosco! Duvido que alguém tenha tocado nela! Estou errada? – Niera olhou para mim, as outras também, com expressões cada uma mais surpresa que a outra.
– Duvido! Essa menina é bonita demais para terem ficado apenas olhando! – Cassis passou os dedos em meus cabelos e eu me encolhi, envergonhada. Liny soltou um breve rosnado para ela, que tirou a mão de mim e piscou para Liny. – Sem ciúme! Só estava sendo sincera! – Cassis ergueu as mãos em um gesto de rendição e Liny semicerrou os olhos para ela.
– Bom mesmo. – Ela bufou. – Mas é verdade? – Ela perguntou diretamente, eu assenti devagar, Amanda começou a rir e apertou minha bochecha.
– Realmente, desnecessário esse banho! Mas do jeito que Ceiran olha para você... achei que já.
– Não aconteceu nada, Amanda! – resmunguei.
– Bom, sendo assim! Melhor para você!
Passei a maior parte do dia com Amanda na sala de cura, ajudando a secar e preparar as ervas para infusões, preparando emplastros e poções. Dois Mardans apareceram até a hora do almoço, com ferimentos de espada tão profundos que não fazia sentido eles estarem de pé ali esperando por atendimento. Mas Amanda não os atendeu, ela esperava que eu o fizesse, usei do treinamento que recebi anteriormente e os curei com magia, o ferimento de Danar, o guerreiro mais novo de cabelos curtos escuros e olhos cinzentos, se fechou em poucos minutos, deixando uma cicatriz tão leve que mal podia ser vista, já o do outro não ficou sequer uma marca. Então, tive aprovação de Amanda para trabalhar com ela.
Tentei ao máximo esquecer o que aconteceria de noite, mas o pânico tomava conta de mim toda vez que via meu pai ou Adar.
Resolvi jantar em casa aquela noite, talvez sozinha conseguisse lidar melhor com aquilo e me acalmar, então, pouco antes do jantar, quando Amanda deixou a sala de cura, voltei para casa afim de fazer algo para comer.
– Porque veio comigo? – Perguntei a Ceiran, quando vi a raposa embaixo da mesa da cozinha, escondendo-se. Ele saiu dali e saltou sobre o banco, tomando forma humana e sorrindo para mim.
– Só queria ter certeza de que estava tudo bem! – Ele apoiou o rosto na mão e ficou observando enquanto eu preparava o jantar.
– Quem vai estar lá? – Estava nervosa demais, mas tinha que perguntar se não ficaria louca antes da meia noite.
– Maddox, Adar, Gwyndion, Narun, e eu. – Eu virei para encará-lo e ele deu um meio sorriso.
– Tecnicamente, você não é um Mardam.
– Sou um Sorcys que recebeu a marca das sombras, então, eu sou do clã, independente da raça que nasci. – Ele deu um sorriso convencido, bufei e virei para o caldeirão novamente, tentando não deixar que ele visse meu rosto corar.
– Não se preocupe, vai dar tudo certo! Só não gritar e não assustar as sombras! – Revirei os olhos mentalmente e terminei o jantar.
Ceiran ficou comigo em casa até pouco antes da meia noite, faltava meia hora quando ele saiu pela porta em direção ao salão e Amanda e Niera vieram me buscar. Elas mandaram que eu tirasse toda a roupa e me vestiram com um tecido negro, longo e suave, elas o prenderam debaixo dos meus braços e passaram as pontas ao redor do meu pescoço, prendendo-o com um grampo de prata.
Caminhamos em silêncio até o salão, o vento frio cortava minha pele e estava tremendo tanto que por vezes achei que fosse travar no meio do caminho, mas Amanda mantinha os braços ao meu redor. Seguimos para o corredor nos fundos, até a sala de meu pai, no canto esquerdo, atrás de uma estante de livros havia uma escada em espiral. Subimos por ela até sair na parte superior do salão.
Parecia um jardim ali! O chão era forrado por grama azulada, estava tão claro que parecia ser dia, a lua iluminava as pequenas flores brancas espalhadas por toda a extensão daquele lugar. Bem no centro, havia uma espécie de cama de pedra, um altar, porém não havia mais ninguém ali. Amanda me guiou até aquele altar, sentei sobre ele, ela tirou o grampo do tecido e mandou que eu deitasse de bruços. A essa altura meu corpo já estava dormente com o frio, ela ajeitou meus braços, para que ficassem ao lado do corpo e virou meu rosto para a esquerda, podia ver o lago brilhando à luz da lua dali. Amanda deslizou o tecido, deixando a parte superior de meu corpo direto contra a pedra gelada. Tive que morder a boca para não soltar um gritinho, ela enrolou o tecido em volta de minha cintura, soltou meus cabelos e o dividiu em duas mechas, colocando-as por baixo de meus ombros, de forma que cobrisse as laterais expostas.
– Vai doer, mas você não vai gritar, ouviu? Assim vai ser uma vez só! – Ela acariciou meu rosto, e deu um sorriso tenso.
– Obrigada! – Agradeci. Ouvi os passos de Amanda e Niera se afastando, pouco depois, ouvi outros passos se aproximando, esses eram mais pesados e rápidos, o pânico voltou com tudo nessa hora.
Alguém se aproximou de mim, e se abaixou ao meu lado, ele estava coberto por um manto negro do mesmo tecido que eu estava parcialmente vestida, era meu pai e pelo seu olhar incomodado, estava gostando tanto daquilo quanto eu.
– Vamos começar. – disse ele suavemente para mim. – Não se preocupe, vai acabar logo. – Ouvi ele se afastar alguns passos, então os outros se moveram me circulando, cada um em um ponto da pedra, poucos passos de mim. Ceiran estava em minha frente, assim como meu pai, um manto negro cobria seus ombros, porém seu peito estava exposto, marcado com tinha vermelha, algumas marcas e espirais que brilhavam suavemente quando seu peito se movia com a respiração, os cabelos ruivos pareciam fogo vivo com a brisa gelada os movimentando.
– No ponto onde luz e trevas se encontram, habita o equilíbrio, a força e a magia. Há uma linha tênue entre o corpo e a alma, que os divide e os une, a linha onde as sombras se escondem, onde elas se transformam. Onde há luz, também tem que haver sombras, para que possam manter o equilíbrio da força e do poder. – A voz grave de meu pai fazia uma estranha ressonância com a pedra, conforme ele falava, a pedra parecia vibrar, enviando correntes através de meu corpo trêmulo, gelado. – Ellyn Agarathis, que as sombras te aceitem como uma amiga, que elas possam te marcar e habitar em você, te proteger e te manter segura! – Dizendo isso, ele tocou o meio das minhas costas com a palma da mão, que estava quente como se estivesse em brasas. Então algo me envolveu em uma escuridão, algo sufocante e pesado, senti como se algo cortasse minhas costas, desde a base da coluna até meu ombro esquerdo, desenhando marcas sem um padrão, aquilo me deixou tonta e fraca, pouco depois a dor veio com tudo, como se estivesse queimando, como mil ferros em brasa tocando minha pele, eu queria gritar, mas havia perdido completamente a força, minha voz havia sumido e tudo parecia girar ao meu redor. Nunca havia experimentado dor tão terrível em toda minha vida, era como estar cozinhando de dentro para fora. Cravei as unhas em minhas pernas, tentando disfarçar uma dor com a outra, mas mesmo com as unhas grandes, aquilo parecia cosquinha comparado ao que estava queimando em minhas costas.
Aquilo pareceu durar uma eternidade, a dor. O lado bom foi que o fogo ou seja lá o que estava me queimando, tinha feito todo o frio desaparecer. Depois de não sei quantas horas aquela dor finalmente diminuiu, deixando para trás apenas uma sensação de formigamento ao longo de minhas costas. Meu pai veio até minha frente e se aproximou para olhar a marca, ele xingou baixo e olhou para Adar, que parecia tão surpreso ou assombrado quando ele, Gwyndion ou Narun, apenas Ceiran sorria e parecia satisfeito com algo.
– Impossível! – Rosnou Gwyndion se aproximando para olhar a marca de perto, se pudesse me mexer, teria lhe dado um chute, mas isso me deixaria completamente nua, então deixei a oportunidade passar. – As sombras nunca marcam alguém igual a outro! Nunca! – Ele sussurrou para meu pai.
– Marcaram agora! – Ceiran sorriu ainda mais e os outros o olharam irritados.
– Você... – Meu pai tocou a espada com a mão e deu um passo na direção de Ceiran.
– Não fiz nada! – Disse Ceiran erguendo as mãos. Narun segurou o braço de meu pai e maneou a cabeça negativamente.
– Aconteceu antes uma vez, então, não se preocupe, agora temos que esperar o sol nascer. – Dizendo isso, Narun o tirou dali em direção as escadas, Gwyndion deu uma risada sinistra e os seguiu. Fiquei ali sozinha, deitada na pedra fria com Ceiran me observando com um sorriso enorme no rosto.
– O que houve, afinal? – Perguntei.
– Shiih! Espere o ritual acabar, eu te mostro quando for para casa! – Ele passou os dedos em minha bochecha, estava tão cansada, mas não conseguia dormir com o frio que fazia ali. Meu corpo todo tremia, mas não podia me cobrir e o vento estava piorando a situação. Ceiran mudou de forma e abriu as asas grandes e brancas, fazendo uma barreira ao meu redor parando o vento. Os olhos vermelhos cor de sangue brilhavam no escuro do ninho de asas, ergui um pouco a mão para tocar a sua, passando o dedo levemente sobre aqueles espinhos nos braços.
Ficamos em silencio nos olhando até o sol nascer e iluminar tudo ao nosso redor, Ceiran rapidamente recolheu as asas e mudou de forma. Ele puxou o tecido para me cobrir, me pegou no colo e começou a andar até as escadas, poucos passos antes delas eu adormeci.
10
O som do Trovão
Júlia já estava de pé antes mesmo do sol nascer, a noite anterior ela havia sentido uma sensação horrível, algo vindo do norte, uma sombra pairou sobre a cidade da montanha e as bruxas também perceberam aquela presença. Por volta da meia noite, as bruxas saíram para observar as sombras cobrirem a lua, bem à frente, a sombra pairou sobre o Vale da Lua e desceu sobre ele.
A bruxa estava na sacada de seu quarto, olhando para o norte quando Shian e Ayres entraram trazendo o café naquela manhã.
– Deviam estar marcando mais uma! – Sibilou Ayres olhando para o norte também, servindo uma xicara de chá e sentando-se a mesa ao lado da líder.
– Deviam estar marcando a Mardam que vocês deixaram escapar! – Júlia retrucou sarcasticamente encarando Ayres com os olhos vermelhos. Ayres bufou e enrolou os dedos em seus cabelos loiros cacheados, era uma das bruxas mais bonitas entre as Sorcys.
– Isso dificulta as coisas, agora ninguém pode tocá-la, ou eles sentirão! – Shian resmungou, sentando-se ao lado das outras duas e pegando uma xícara também.
– O que faremos? Falta pouco para a Lua de Sangue! – Ayres estava tensa, observando as montanhas enquanto comia. Júlia percebeu o que devia ser mais do que preocupação no olhar da jovem bruxa, medo talvez.
– Vocês deviam ir cuidar de seus afazeres e pensar num bom plano! – Julia murmurou para as duas. – E verificar se Halles está comportado! Ele anda me dando problemas demais ultimamente! – Ela grunhiu, a porcelana da xícara trincou em sua mão. As duas a encararam surpresas, mas assentiram e se retiraram, deixando a Senhora das Estrelas só.
Júlia sentiu um alívio imenso e agradeceria muito a Maddox por marcar a menina imediatamente, pois as coisas estavam começando a ficar preocupantes, já que Halles desaparecia todas as noites e na anterior, havia voltado com o cheiro da menina. Júlia não queria nem pensar no motivo dele ter retornado com aquele cheiro e torcia para que Ceiran desse uma boa surra em Halles, agora que Ellyn estava marcada e Ceiran era um dos cinco membros principais do clã dos Mardans, ele saberia se a tocassem, assim como podia sentir a vida de todos os outros membros do clã.
Júlia invejava a forma que os Mardans cuidavam uns dos outros. As Sorcys já tiveram aquilo um dia, antes de Breedja, Taynar havia contado para ela sobre a primeira líder Sorcys, Lênia. Ela era uma boa líder, diferente de Breedja, era gentil e protegia seu clã, Breedja só protegia os próprios interesses e nada mais.
Durante os anos que Júlia liderava as Sorcys, ela tentou o máximo possível trazer aquele amor, aquele carinho e cuidado de volta, mas com a aproximação da Lua de Sangue, Júlia havia se tornado rígida e até cruel com suas irmãs de clã, com medo de que sua gentileza pudesse fazer com que sua filha fosse encontrada e pega.
Um grande dragão branco voou sobre o palácio no topo da montanha, fazendo círculos até diminuir a velocidade, então pousou sobre o parapeito da sacada onde Júlia tomava café tranquilamente. O dragão moveu suas asas rosadas e bufou, brilhando suavemente e começando a alterar sua forma, até uma mulher de estatura mediana, pele de chocolate e longas tranças vermelhas estar sentada sobre o parapeito. Outra mulher que antes estivera nas costas do dragão, caminhou equilibrando-se no parapeito e pulou até uma das cadeiras, servindo-se de chá. Ela tinha a pele cor de caramelo e olhos cor de mel, cabelos negros cacheados na altura dos ombros e um pouco mais baixa que a primeira.
– Taynar e Tori... – Júlia cantarolou. – Atrasadas! – Ela sorriu para as duas, que sorriram de volta levantando as xícaras num brinde silencioso.
– Estávamos vigiando as coisas no continente Sul! – Tori inspirou profundamente. – Desculpe, Jujú! Dei a adaga que você me deu à uma pequena caçadora que conheci lá! Ela estava iniciando o treinamento! Uma fofura! – Tori riu e Taynar revirou os olhos.
– Ela quase trouxe a menina junto! – Júlia riu e assentiu.
– Agora não é uma boa hora para você adotar um filhote de caçadores! – As três riram.
– E como estão as coisas aqui? Soube por Ayres que Acharam uma Mardam... – Júlia endureceu ao ouvir aquelas palavras, mas Tori inclinou-se para frente, tocando o braço da amiga.
– É a sua Mardam que encontraram, não é? – Júlia engoliu em seco e assentiu devagar. Tori fez uma careta e se encolheu na cadeira.
– Elas vão caçá-la, vão descobrir minha traição e vão libertar Breedja e ela vai matar minha Ellyn como uma punição! – Ela soluçou, tentando a todo custo manter a compostura.
– Júlia, tem algo que você não percebeu ainda... – Foi Taynar que começou a falar, enquanto Tori abraçava Júlia carinhosamente. – Ninguém quer que Breedja volte! – Júlia a encarou surpresa.
– O quê? – Tori sacudiu a cabeça, confirmando as palavras de sua irmã.
– Por que acha que elas ficaram trazendo todas aquelas meninas humanas para cá? Para disfarçar! Fingir que estavam tentando! – Júlia ainda olhava para as irmãs boquiaberta.
– Ora! Por favor! Qualquer uma delas podia seduzir um Mardam e ter um filho, podiam tentar até nascer uma menina para libertá-la se quisessem! – Taynar continuou. – Elas nem tentaram!
– Mas os Mardans não aceitariam...
– Me poupe, Júlia! Eles são mais obcecados por mulheres do que por luta! Acha que se alguma de nós aparecesse completamente nua na frente de um deles, eles iriam virar as costas e ir embora em obediência aquelas velhas petrificadas inúteis? – Tori riu.
– Se elas estivessem insatisfeitas antes, porquê nunca reagiram? – Júlia quis saber. Tori balançou os cabelos e pegou uma fatia de torta de queijo e começou a comer.
– Por que, minha cara Senhora das Estrelas, o laço de poder de Breedja sobre nós era muito forte e nós simplesmente a obedecíamos. Você não nos impõe suas vontades, nos deixa soltas! Nós a obedecemos por respeito, mas obedecíamos Breedja por medo, por obrigação! – Tori falou com a boca cheia, Taynar revirou os olhos e resmungou:
– Você viveu muito com aqueles brutos, Tori! Come igual a eles agora! – As três acabaram rindo, mas Júlia voltou a ficar séria.
– Mas os Mardans, eles mataram os nossos meninos! – Júlia lembrou.
– E não foi culpa deles, apenas! Breedja ameaçou voltar com o sangue de uma Mardam! A culpa de tudo isso foi das Matriarcas! Elas ordenaram a morte das meninas! Se não fosse isso, todos estariam bem! – Tori confirmou as palavras de Taynar e acrescentou:
– Acho que nenhuma Sorcys aqui os culpa por aquilo! Mas se Maddox coração mole a tivesse eliminado... – Tori deixou as palavras saírem num sussurro quase inaudível, como se as montanhas abaixo delas pudessem escutar. – Os clãs estariam unidos até hoje!
– Mas elas tentaram capturar Ellyn!
– São poucas as que estão a favor de Breedja! Se as chamarmos para uma reunião, todas elas, podemos ver quem está a favor ou contra despertá-la. Assim, as que estiverem a favor, poderão fazer companhia a ela dentro do lacre! – Tori mostrou um sorriso assustador as duas.
– Elas vão te seguir, Senhora da Lua! – Disse Taynar a Júlia, que suspirou. – Basta você continuar a ser quem sempre foi! Se continuar latindo para elas como tem feito esses dias, vão escolher outra para pôr em seu lugar! – Júlia a acotovelou e riu.
– Tem apenas mais um problema.
– Qual?
– Halles. Ele ama a mãe que não conhece, acha que ela era uma bruxa incrível! – Júlia franziu o cenho para as próprias palavras, bebendo o último gole do chá que havia esfriado.
– E quem diabos pôs isso na cabeça dele?
– Não sei, talvez venha do fato de termos o protegido quando os outros Sorcys foram mortos. – Disse Júlia fazendo uma careta sofrida.
– Ah, deixa que eu cuido dele! – Tori girava a adaga nas mãos.
– Nem se atreva a deitar com o moleque, Tori! – Taynar rosnou para a irmã, que corou levemente e mordeu os lábios.
– É mais legal brincar com a presa antes de comê-la! – Júlia sacudiu a cabeça.
– Ele já dormiu com metade das bruxas do clã! Sinceramente não sei como ainda não temos uma centena de bebês a mais agora! – Júlia bufou irritada.
– Mas ele é tão lindo! – Tori mordeu os lábios com um olhar suplicante.
– Ele já foi atrás de Ellyn duas vezes, Tori! Faça o que quiser, mas não se esqueça o que tem que fazer com ele depois! – Júlia advertiu, Tori deu um sorriso em agradecimento e desapareceu para dentro do palácio. Taynar ficou observando até que a irmã desapareceu nas escadas.
– Acha que vai dar certo? – Júlia perguntou a amiga.
– Tenho certeza! As outras estavam muito insatisfeitas com Breedja, principalmente as mais velhas!
– Halles é muito forte... Eu treino com ele as vezes, ele é rápido e habilidoso demais! – Júlia sussurrou para Taynar.
– Tem outro, não é? O menino que cuidava de Ellyn?
– Ele já é um homem, Taynar, um Sorcys adulto. Não conheço as habilidades de Ceiran, mas quando ele me ajudou a esconder Ellyn, já tinha duas marcas no tornozelo e sei que ele matou duas das melhores dez anos atrás, antes da segunda Lua de Sangue depois que Breedja foi aprisionada. – Taynar a olhou espantada.
– Qual a idade que ele tinha na época?
– Dezoito ou dezenove... – Júlia suspirou, ela tinha muito a agradecer aquele menino por aquilo. – As duas estavam próximas a floresta de Graistar naquela noite e ele as perseguiu para que não encontrassem Ellyn. – Júlia limpou as lágrimas que escorriam pelo rosto. – Acho que mais do que Maddox e eu, Ceiran merece estar ao lado dela. Ele nunca a deixou sozinha! – Taynar observou a líder se levantar e andar até o quarto, Júlia pegou um vestido longo e vermelho de seda e o vestiu, amarrou os cabelos num coque solto, deixando alguns fios soltos pelo rosto e colocou a tiara de ouro que estava escondida em uma caixa sob a cômoda. Uma tiara dourada com uma lua crescente no meio e estrelas ao redor.
– Convoque as Sorcys, Taynar. Está na hora de assumir o clã como a primeira, como a Senhora da Lua! – Taynar sorriu e fez uma reverência, antes de desaparecer num pulso de luz branca. Júlia ergueu o queixo e admirou o próprio reflexo, então seguiu para o salão principal.
A maioria das Sorcys estavam ali tomando café juntas, conversando, brincando com suas filhas quando Júlia adentrou no salão com queixo erguido e olhar fixo no trono branco à sua frente. Todas fizeram silêncio enquanto ela caminhava até o trono branco, feito de penas e pedras preciosas trabalhadas no formato de pequenas luas. Júlia parou em frente ao trono e pela primeira vez, ela sentou nele. As bruxas ali presentes murmuraram e a encararam surpresas com a atitude, pois Júlia nunca havia assumido o lugar de primeira no clã.
Ela olhou para as companheiras e vasculhou o salão em busca de Halles, mas ele não estava em lugar algum dentro daquele espaço. Taynar apareceu no salão poucos minutos depois, trazendo consigo o resto das bruxas, Júlia as observou se espalharem pelo salão e se acomodarem, enquanto todas as observavam e aguardavam pelo que viria a seguir.
Haviam mais de seiscentas Sorcys ali, contando com as bruxinhas jovens e bebês, Taynar andou até Júlia e sussurrou ao seu ouvido:
– Todas aqui, mas Halles não está em parte alguma do palácio! – Disse ela olhando preocupada para Júlia, que sentiu um frio na espinha. Tori apareceu pouco depois e ficou nos fundos do salão, perto da porta principal, fechando o caminho, ela fez um gesto com a cabeça, alertando que não havia encontrado o jovem Sorcys. Taynar então se posicionou ao lado de Júlia e falou em alto e bom som, para que todas a ouvissem:
– Atenção, todas vocês! – Disse ela mudando sua aparência, os espinhos pontiagudos se projetaram nos braços e as armas que carregava pareceram ainda mais afiadas e perigosas agora. – A partir de hoje, Júlia Agarathis será sua nova Senhora da Lua! Aquelas que forem a favor dessa nova liderança, permaneçam sentadas! E todas que forem contra, que fiquem de pé! – Júlia engoliu em seco, sabia que podia destruir aquele salão com todas as bruxas dentro, se fosse preciso, mas sabia também que aquilo podia funcionar, que poderia manter sua Ellyn segura, e mais que isso, poderia unir os dois clãs novamente contra um inimigo em comum. Houve um murmúrio na sala, pouco menos da metade delas se levantaram, iradas, apontando e xingando e indo em direção ao Trono. Júlia então se levantou e respirou fundo.
– Sei quem são vocês, conheço cada uma de vocês como as palmas de minhas mãos. Vocês, a maioria, foram as que tiveram as filhas Mardans mortas pela ordem de Breedja, não é? – A voz de Júlia fez o salão tremer, então, muitas das bruxas que ficaram de pé, pararam de andar em direção ao trono, ficaram em choque, como se o que havia acontecido quase vinte anos atrás dentro do Vale da Lua, ainda pudesse ser visto claramente por elas.
– Vocês a querem de volta? Uma líder que colocou o próprio interesse acima de todas nós? Que nos fez marchar numa guerra contra os bruxos mais poderosos que já existiram por que não aceitou perder o macho para outra? – Júlia deu um passo para o meio do salão, as lâminas gêmeas, Assys e Alys em suas mãos.
– Você roubou Maddox dela! Se não fosse isso, estaríamos em paz até hoje! – Uma das bruxas gritou do fundo do salão e deu um passo à frente. Júlia a conhecia, Laizen, ela era esposa de um dos Mardans que morreu na Guerra dos Sons, que teve os dois filhos mortos por ordem das Matriarcas Mardans, uma menina Mardam e um menino Sorcys.
– Ele a rejeitaria mais cedo ou mais tarde, se não fosse Júlia, teria sido qualquer uma de vocês, ou uma humana, ou qualquer outra que oferecesse a ele o que Breedja não podia oferecer, por que nunca teve! – Taynar retrucou, ficando de pé ao lado de Júlia. Algumas das bruxas que se levantaram contra ela, voltaram para seus lugares e permaneceram em silêncio de cabeça baixa.
– Breedja é nossa líder! – Gritou outra se aproximando ainda mais com a espada na mão. Ela olhou irada para o salão a sua volta. – Breedja fez esse clã ser o que é hoje!
– Não, não foi! Breedja só nos deu problemas! – Tori gritou do fundo do salão, ela foi até o centro do salão em passos rápidos, as botas de couro batendo suavemente no piso de mármore enquanto andava. – Lênia fez com que esse clã fosse o que é hoje! Breedja só sujou nosso nome! Ninguém lembra de nós como as Sorcys da luz Eterna por causa de Breedja! Hoje nós somos consideradas piores que Mardans por causa dela! – Tori rosnou girando a espada na mão de forma ameaçadora, então a bruxa também retornou ao seu lugar. Júlia observou enquanto as outras que estavam de pé sentaram-se também, então voltou a falar:
– Quantas de vocês deixaram maridos e filhos para trás quando foram forçadas a deixar o Vale da Lua? – Júlia quis saber, muitas ergueram as mãos, inclusive Tori. – Quantas ainda os veem? – Dessa vez, as mãos foram para baixo, e os olhares tristes fizeram algo se mover inquieto no peito de Júlia. Esperança.
– Vocês não sentem saudades? Não tem curiosidade de descobrir como estão seus filhos, vontade de ver seus maridos? – Júlia perguntou.
– Eles não vão nos aceitar de volta! As matriarcas nunca permitiriam que voltássemos ao Vale! – Outra delas gritou e muitas concordaram.
– Então está na hora de darmos o troco nas Matriarcas, não é? Cobrar a dívida de sangue com sangue! – Júlia gritou e as bruxas ergueram suas mãos e gritaram em resposta.
– As matriarcas não podem ser mortas, não sem pelo menos uma Mardam fêmea para substituí-las! – A Sorcys atravessou o salão em direção a Júlia e a encarou. Ela era uma das mais antigas, mais que as gêmeas Tori e Taynar.
– Existe sim! Rajina. – Júlia fez uma breve reverência para a bruxa e ergueu os olhos para ela novamente.
– Nós a encontramos a poucos dias, ela está em segurança dentro daquele Vale! – Foi Ayres que falou, ela parecia empolgada com a possibilidade, como se tivesse esquecido completamente que havia perdido quatro companheiras, mortas pela Mardam. O que era perder as companheiras de clã, perto da possibilidade de viver com o marido e os filhos novamente? Ayres tinha três filhos com Narun, um dos cinco mais fortes Mardans do clã.
– Como sabe que eles nos aceitariam, como sabe que fariam uma nova aliança conosco? – Rajina perguntou, olhando desconfiada para Júlia.
– Maddox prendeu Breedja com a ideia de que se não matasse nossa líder, nós não os odiaríamos, seríamos gratas por sua benevolência e não quebraríamos a aliança! – Júlia explicou, muitas concordaram com ela.
– Sabe que mesmo que você assuma o clã, se ela se libertar, ela vai poder nos controlar, não sabe? – Rajina semicerrou os olhos negros, encarando Júlia de forma penetrante. – Está disposta a correr esse risco? Se estivermos todas lá dentro quando ela se libertar, uma ordem, e os Mardans estarão todos mortos! O laço dela ainda vai nos controlar! – Disse Rajina calmamente.
– É só não deixarmos que ela saia! E se sair... – Júlia ergueu as mãos, fazendo o fogo branco irromper pelo salão ao redor das Sorcys. As chamas da lua, a herança de Lênia. – As bruxas no salão gritaram em aprovação e aplaudiram. A verdadeira herdeira da Lua.
Júlia descobriu anos antes, quando estava vasculhando o escritório de Breedja. Uma parede falsa no canto do escritório levava a uma sala abarrotada de livros antigos, feitiços, poções e registros. E em uma parede, desenhada com carvão e óleo já quase apagada, havia uma árvore grande com os nomes das líderes Sorcys. Júlia descobriu seu nome nas ramificações de Lênia, era por isso que ela possuía o poder que nenhuma das bruxas naquele salão possuía. As chamas da lua, um poder que Breedja descobriu e ocultou, e para que mantivesse Júlia sob seu controle, a colocou como segunda no clã, mesmo sendo quem deveria sentar no trono.
– Quem está comigo? – Júlia perguntou por fim, deixando que as chamas se extinguissem. As bruxas se ajoelharam e gritaram em uníssono:
– Salve Júlia, Senhora da Lua! – E Júlia sorriu satisfeita consigo mesma e sorriu para suas gêmeas, Taynar e Tori, que acenaram de volta e se colocaram ao lado da líder.
– Não pensei que seria tão fácil! – Júlia falou inspirando profundamente.
– Ainda nem começou, Jujú, essa foi a parte simples! – Tori afagou as costas da líder e observou enquanto uma estranha borboleta prateada voava para fora do salão sem que ninguém percebesse.
– Qual a forma mística de Halles, Júlia? – Tori Perguntou sacando o arco e preparando a flecha com ponteira de prata.
– Uma borboleta monarca branca, porque? – Tori bufou e retesou o arco, mas antes que a flecha fosse disparada, Halles desapareceu numa bola de luz.
– Por que o filho de Breedja estava aqui o tempo todo! – Júlia sentiu o sangue sumir de seu rosto. Agora que ele sabia, ele iria fazer tudo ao seu alcance para pegar a menina.
Júlia correu de volta ao seu quarto, deixando as Sorcys festejando no salão. Ela atravessou o corredor em passos rápidos e escancarou a porta do quarto, enviaria uma mensagem para Maddox, para que ele fechasse as barreiras ao redor do Vale.
– Sabia que viria! – Halles estava segurando Chu pelas asas amarradas, a coruja se debatia ferozmente, lutando contra as mãos dele.
– Solte-a agora! – Julia rosnou, as adagas prontas nas mãos, porém, com um brilho frio no olhar Halles atirou a coruja ainda presa pelas asas pela janela. Júlia avançou para ele, mas Halles era mais rápido, ele girou num movimento gracioso, prendendo os braços de Júlia com as mãos, imobilizando-a. Ele a derrubou no chão e a prendeu contra o tapete, aperando o rosto dela contra o chão. Halles não era só mais rápido, era mais forte também. Júlia buscou pelas chamas, mas elas pareciam dormentes, apagadas. Então esse era o poder que ele herdou de Adar, ele tinha a habilidade de suprimir o poder de qualquer um desde que estivesse próximo o suficiente ou tocando seu alvo. Halles se debruçou sobre a bruxa, o suficiente para roçar os lábios na orelha dela e riu baixo e profundamente. Ela deu um solavanco, tentando tirá-lo de cima, mas foi em vão, até sua força havia desaparecido.
– Eu sei quem ela é, Senhora da Lua! – Disse ele com desdém, deslizando os dedos para o pescoço da bruxa. – Eu vou pegá-la, eu vou brincar muito com ela antes de trazê-la para casa, e vou apresentá-la para minha mãe, mas não precisa se preocupar... não vou fazer mal a ela! Vou deixar ela presa comigo, no meu quarto e você e Maddox vão aprender uma lição importante... – O sangue de Júlia congelou nas veias e ela tremeu. – Vão aprender a esconder melhor seus joguinhos, os dois vão saber o que é ter alguém que amam aprisionado sem poder fazer nada para ajudar! – Ele rosnou apertando o pescoço dela. Júlia sentiu o desespero quando o ar começou a lhe faltar e a tentativa inútil de sair debaixo dele, porém alguém lhe acertou um chute com força sobrenatural, atirando-o contra a parede com tanta força que as janelas quebraram. A mão metálica de Maddox ergueu a bruxa do chão, e ela forçou-se a respirar normalmente, com a dor ainda latejando em seu pescoço. Júlia olhou o guerreiro em pé ao lado dela e não conseguia acreditar que ele estava realmente ali, Maddox sorriu brevemente para ela, entregando-lhe Chu, que estava embrulhada no ombro de Maddox e sem nenhum ferimento. Maddox passou os olhos por Júlia, tendo certeza de que estava tudo bem, então avançou para o Sorcys, com raios cobrindo suas mãos. O tempo ao redor da montanha fechou, nuvens negras embolaram-se nos céus, travando uma batalha contra os ventos intensos do lado de fora da barreira que mantinha a ventania longe do palácio, pouco a pouco a tempestade tomou forma, os raios e trovões sacudiram as montanhas junto com a tempestade que tomou forma e começou a despencar sobre o mundo, fazendo com que todas as bruxas do palácio da Morada da Lua soubessem que Maddox, o Senhor das Tempestades, líder dos Mardans, estava ali.
Os Sorcys podiam superar Mardans em força física, mas nunca em poder, e naquele momento, Halles estava em desvantagem, pois estava próximo a tempestade conjurada de Maddox e sabia que se recebesse uma daquelas descargas, ele morreria.
O jovem sacou sua própria espada quando o líder de cabelos prateados saltou sobre ele com as espadas em punho, ele mal conseguira ficar de pé antes que o choque das lâminas o derrubasse novamente, ele não havia reparado que Taynar e Tori estavam no quarto também, usando de uma espécie de selamento para retirar os poderes de Halles. O jovem soprou a névoa sobre todos ali, uma extensão de seu poder de dormência, fazendo com que eles perdessem o foco por um momento.
– Halles, você não entende? – Rajina gritou tentando encontrar o jovem através daquela névoa sufocante. – Ela era um monstro! Você não é assim! Por favor, pare! – Ela havia criado aquele jovem como seu filho.
– Vocês todos mentem! Júlia, você é uma traidora! E traidores pagam o preço, cedo ou tarde vocês irão pagar! – Ele esbravejou transformando-se e voando para fora do palácio enquanto a névoa ainda os deixava cegos.
Halles voou para baixo, em direção as fendas na montanha e entrou numa das fendas mais estreitas, mergulhando da densa escuridão da Montanha do Caos. Ele voou até o ponto mais escuro, onde as raízes da montanha se emaranhavam as raízes das árvores milenares. No meio daquelas raízes profundas, havia uma bolha, uma espécie de casulo transparente do tamanho de uma pessoa adulta. Halles voou até ali e pousou nas pedras, voltando a sua forma humana.
– Foi exatamente como a senhora disse que aconteceria! Júlia tomou o seu lugar como senhora da Lua e quer unir os clãs novamente! – Disse o jovem passando a mão sobre o casulo cristalino. Lá dentro, mãos tocaram a superfície daquela bolha e soltou um gemido quando os raios fizeram-na se afastar da superfície gelada.
“Eu tenho que sair daqui...” Disse a voz sonolenta dentro da bolha. “Por favor, meu filho, me tire daqui!”
– A garota está sob a proteção dos Mardans agora! Eles a marcaram na noite anterior! – Ele murmurou, a bruxa dentro da bolha urrou, batendo as mãos na superfície da bolha, ela não ficaria ali mais dez anos, ela não aceitaria adormecer novamente nas profundezas até a próxima Lua de Sangue. Precisava sair, e quando saísse, Júlia, Maddox e todos os que ficaram contra ela, teriam que dobrar os joelhos diante dela.
“Tem outra forma... mas vai exigir um preço, tente mais uma vez, trazer a menina! Primeiro, faça que saia do Vale, assim a proteção deles diminuirá! Do lado de fora, tente trazê-la. Se não der certo, tenho outros planos...”
– Sim, senhora! – O jovem percebeu que ela havia adormecido novamente, o selo a mantinha sonolenta, adormecida a maior parte do tempo, drenando seu poder. O jovem partiu novamente, ele esperaria nas proximidades do Vale, logo logo ela sairia novamente para recolher as ervas de inverno.
Enquanto voava para fora daquele lugar, sentiu a energia de pessoas passando pelo caminho das estrelas, ele sempre sentia quando aproximavam-se daquela passagem. Halles usou sua magia para viajar por entre as fendas de energia que uniam as montanhas o mais rápido que pode e se aproximou das passagens subterrâneas.
Um grupo pequeno de caçadores humanos estavam atravessando a passagem, indo em direção às cidades, pegando o caminho mais curto no interior da montanha. Não era da conta dele, não se interessava pelos assuntos dos humanos e não tinham nenhuma mulher bonita com eles no grupo, então Halles os ignorou e começou a voar de volta para a saída, porém, escutou as palavras de um dos jovens caçador que acompanhava o grupo:
– Fergus, se Ellyn estiver mesmo com os Mardans, como acha que iremos recuperá-la? Eles nos matarão se chegarmos perto daquele Vale! Conhece as histórias! – O jovem que liderava o grupo, chamado Fergus ergueu a mão, mandando que o outro fizesse silêncio e olhou atento em volta.
– Nós daremos um jeito, Niesen! Não seja tão covarde!
– Ainda acho que não vale a pena, Fergus! É só uma bruxa! Tem muitas outras garotas na cidade! Humanas, bonitas! Esqueça ela e vamos embora! – Fergus parou de andar, sacou uma arma e colocou contra a garganta de Niesen, apertando-o contra a parede coberta de ossos.
– Não é “esqueça e vamos para casa”! Ellyn é única! Eu não vou deixá-la naquele lugar! – Fergus grunhiu apertando-o mais contra a parede. – Nós três brincávamos juntos! Acha que só por que ela é uma bruxa que deixou de ser Ellyn? Pode dar meia volta e desaparecer se quiser, eu vou atrás dela! Mesmo que não sentisse o que sinto por ela, eu iria buscá-la, de qualquer maneira, é minha irmã de criação! – Os outros que haviam parado para ouvir a discussão, arrumaram-se e continuaram andando lentamente pela trilha perigosa e escorregadia. Halles viu aquele grupo como uma oportunidade de fazer a menina sair do Vale. Ele transformou-se, usando a forma mais humana e diferente da sua real aparência que pode, um jovem de cabelos loiros e olhos azuis, vestiu-se como os caçadores, manto negro calças e túnica cinzenta e botas de couro, e caminhou entre as rochas até o grupo. Os homens pararam e olharam desconfiados o caçador que se aproximava, vindo sabe-se lá deuses de onde.
– Bom dia, amigos! Parece que precisam de ajuda para sair daqui! – Halles os cumprimentou com uma breve reverência, e um sorriso – estava vindo de Igraes, mas esqueci de colher algumas ervas no campo em Arizal! – Disse ele tentando não parecer suspeito demais.
– Que bom! – Fergus sorriu e lhe apertou a mão. – Um guia por esses caminhos seria muito bom! – Ele coçou a barba por fazer e acenou para os outros, que deram de ombros, um a mais, um a menos...
– Vamos, então! – Halles sorriu mentalmente, agora, tirar a Bruxinha do Vale seria muito mais fácil.
De volta à Morada da Lua, Maddox estava com Júlia no quarto, ela acariciava a pequena coruja em seu colo, agradecendo centena de vezes a Maddox por ter conseguido salvar seu bichinho.
– O que veio fazer aqui, afinal? – Foi Tori que perguntou num tom afiado, olhando com os olhos semicerrados para o líder Mardam. Maddox passou a mão nos cabelos prateados, mostrando as presas num sorriso feral à Tori.
– Nada que diga respeito a você! – Ele retrucou, os dois se encararam irritados, já que Tori e Maddox nunca se deram bem, antes que ele pudesse piscar, Tori atirou uma adaga contra a cabeça dele, mas Maddox desviou alguns milímetros, antes da adaga cravar ao lado de sua cabeça.
– Basta! De castigo, as duas crianças! – Rosnou Júlia encarando Tori, prometendo uns tapas mais tarde por aquilo. Júlia dispensou as bruxas e ficou a sós com Maddox, ela o encarou por um tempo, depois olhou para o quarto destruído e resmungou:
– Você não sabe bater sem destruir tudo ao seu redor? – Ele revirou os olhos, e num estalo de dedos, o quarto estava concertado. – Melhorou! – Ela respirou fundo e passou os dedos nas penas macias da cabeça de Chu, levantou-se e colocou a ave de volta em sua gaiola.
– Ia mandar uma mensagem à você, alertando-o sobre ele, que ele pode querer entrar no vale para pegar Ellyn. – Disse ela com a voz um pouco trêmula. Júlia olhou o guerreiro da cabeça aos pés e mordeu os lábios, tanto tempo e ele não havia mudado nada, ainda fazia o sangue da bruxa ferver. Ela desviou os olhos antes que se distraísse demais com seu corpo e perguntou:
– E você, o que veio fazer aqui? – Ela cruzou os braços e observou Maddox sentar-se na poltrona no canto do quarto, perto demais da cama, de onde ela estava sentada observando-o.
– Vim perguntar se você sabia de algo sobre Ceiran e Ellyn.
– Porque? Ele fez alguma coisa? Aconteceu algo com ela durante o ritual? – Ela se levantou e o encarou nervosa.
– Acalme-se, não aconteceu nada demais! Só um fenômeno estranho e muito, muito raro...
– O que houve, Mad? Ela não passou? – Júlia estava apoiada nos braços da poltrona, perto demais de Maddox, sua respiração irregular acariciava o rosto dele, o Mardam esqueceu completamente o que ia falar, só conseguia imaginar a sensação daquela boca sobre ele novamente. Ele a pegou pela cintura e a empurrou na direção da cama, derrubando-a sobre ela. Júlia não se importou, queria aquilo tanto quanto ele, esperou tempo demais para tê-lo em seus braços novamente. Maddox a beijou, acariciando sua boca com a ponta da língua, deslizando os dedos metálicos pelo corpo dela, embora não sentisse o toque, ela sempre dizia que causavam arrepios em sua pele. Ela gemeu contra sua boca quando ele a tocou daquela forma e ele riu, pressionando o corpo contra ela.
– Senti sua falta. – Júlia disse baixinho para ele, prendendo-o com as pernas ao redor de sua cintura, deixando que o vestido vermelho deslizasse para baixo. Maddox mordeu de leve sua orelha, provocando-a.
– Eu sei que sentiu! – Retrucou com a voz grave e sedutora, puxando a alça do vestido e traçando uma linha de beijos do ombro até o pescoço dela.
– Convencido! – Ela segurou o rosto dele com as mãos, e o beijou novamente, cedendo ao aperto em seu quadril e deixando o caminho livre para ele.
11
Tempestades
Acordei em minha cama, o corpo dormente, dolorido e as costas queimando terrivelmente, tentei me levantar, mas além de um peso em cima de mim, parecia que havia acabado de levar uma surra daquelas. Olhei por cima do ombro para ver o que estava pesando sobre mim e quase tive um pequeno ataque ao ver Ceiran deitado em forma de raposa sobre minhas costas ainda nuas, ele dormia profundamente.
Tentei me mover novamente, mas minhas costas arderam tanto que acabei soltando um gemido de dor. Ceiran levantou as orelhas e me encarou com os olhos vermelhos, ele virou um pouco a cabeça e se levantou, mudando de forma.
– Oi... – Ele sentou ao meu lado e ficou esperando que eu dissesse algo.
– O que aconteceu lá? – Perguntei, lembrando de um alvoroço um pouco depois que fui marcada. Ceiran mordeu os lábios tentando não rir e seu rosto ficou corado.
– Deixa eu te mostrar... – Ele me ajudou a sair da cama, estava com uma saia preta longa, e segurando aquele tecido em minha frente, deixando as costas descobertas. Cada pedaço do meu corpo doía, realmente parecia que eu havia apanhado. Ceiran me colocou de frente para o espelho e me virou de costas, quando olhei por cima do ombro, meu coração parou por um momento. Desde a base das minhas costas, até meu ombro esquerdo, havia uma raposa negra tatuada, como se estivesse pronta para saltar sobre meu ombro, ela era desenhada em traços vasados, eram várias palavras formando o desenho da raposa, uma espécie de texto ou encantamento.
– Ceiran, isso é...
– A mesma marca que eu tenho! – Ele deu um sorriso largo e alegre, e aquele sorriso tão lindo e iluminado me fez entender o porquê os chamavam de Sorcys da luz eterna, aquele sorriso podia espantar qualquer escuridão.
– O que tem de mal nisso? – Olhei mais uma vez para as marcas e franzi o cenho, não parecia nada demais, que nós tivéssemos a mesma marca.
– Apenas Narun e Ayres receberam as mesmas marcas! Não sei exatamente o que significa.
– Ayres?
– Aquela Sorcys que escapou voando no dia em que quase te capturaram na saída da montanha.
– Ela é esposa de Narun? – Perguntei surpresa. Ceiran assentiu e riu.
– Eles tinham uma ligação muito forte, quando as Sorcys deixaram o Vale após a prisão de Breedja, cinco delas foram necessárias para arrastar Ayres para fora, ela não queria deixar Narun por nada... – O olhar de Ceiran voltou a ficar sombrio.
– Então? – ele voltou a atenção para mim e deu um breve sorriso.
– Acho que estamos ligados! – Disse ele piscando para mim.
Voltei para a cama e deitei novamente sem querer cobrir a marca que ainda ardia. Ceiran olhou para mim um pouco tristonho, percebi que foi porque ele disse que estávamos ligados e eu não disse nada, assim como quando ele me disse sobre seus sentimentos, e até agora ainda não havia dito nada sobre aquilo. Me ergui um pouco para falar com ele, mas ele saiu do quarto, murmurando um “volto logo” e desapareceu.
Senti meu coração apertar, embora gostasse muito dele, não havia criado coragem para falar sobre o que eu sentia também. Assim que ele voltasse, eu diria algo a ele, e esperava sinceramente não ser traída pela minha covardia novamente.
O som de alguém batendo a porta do quarto me acordou, havia pego no sono enquanto esperava Ceiran voltar. Ele colocou uma bandeja sobre a mesinha, com uma tigela de sopa e alguns pães e uma xícara de chá com um estranho cheiro amargo.
– Oi... o que é isso? – Ele me entregou a caneca de chá e sentou-se em silêncio, esperando que eu tomasse.
– Amanda preparou, vai cortar a dor da marca e do corpo, aí você vai conseguir vestir alguma roupa normalmente. – Disse ele friamente olhando pela janela. Olhei para o chá e o tomei, era horrível! Mas se ia cortar aquela dor incômoda, então valia o esforço. Depois que acabei de tomar, percebi que Ceiran ainda estava de cara amarrada, ele viu que eu havia terminado o chá e tirou a caneca na minha mão. Sentei-me cruzando as pernas sobre a cama e prendendo o tecido embaixo dos braços e pegando a tigela de suas mãos. Novamente ele sentou na poltrona e voltou a me ignorar.
– Onde está meu pai? – Tentei quebrar aquele silencio horrível.
– Foi até a Morada da Lua falar com sua mãe sobre a marca, perguntar a ela se ela sabia algo sobre mim que podia ajudá-lo a entender o motivo de você ter sido marcada como eu. – Ele respondeu de forma ríspida, fazendo-me ficar ainda mais irritada.
– Ceiran... Você é muito temperamental, sabia? – Ele franziu o cenho para mim. – Já é a segunda ou terceira vez que você fica com essa cara feia para mim! – Ele bufou e virou para a janela.
– Você foge de mim...
– Ah! Por favor! Você esperava que eu me atirasse em cima de você duas semanas após te conhecer? – Ele abriu a boca para falar mas eu ergui a mão. – Não vem falar que eu te conhecia desde sempre, eu conhecia uma raposa selvagem que estava as vezes comigo! Não você! E por mais que eu esteja apaixonada por você, não consigo simplesmente ir direto ao ponto e dizer isso! – Ele ergueu as sobrancelhas e sorriu.
– Acabou de dizer! – Meu rosto começou a pegar fogo. Ceiran veio até a cama novamente, tirando a tigela de minha mão e a colocou sobre a mesa.
– O que vai fazer? – Meu coração começou a bater violentamente quando ele voltou até a cama e acenou para que eu deitasse. Sacudi a cabeça negativamente e ele revirou os olhos e bufou.
– Só quero ver se o chá fez efeito e se a marca perdeu a vermelhidão! – Então deitei sobre os braços cruzados novamente, não sentia vergonha de estar ali com ele, mas era desconcertante que Ceiran estivesse cuidando de mim.
– Está ardendo? – Ele passou as pontas dos dedos suavemente por cima da marca, não doía mais, mas minha pele se arrepiou e meu corpo inteiro começou a tremer. – Ellyn? – Não consegui responder, mal conseguia ouvir sua voz, abafada pelo som alto dos meus batimentos. – Ellyn! Está tudo bem? – Ele se estava sentado ao meu lado e se inclinou sobre mim para ver meu rosto, seus cabelos fizeram cócegas em minhas costas quando caíram sobre mim. Mordi os lábios com força, e ele riu.
– Ah... desculpe, não sabia que ainda estava sensível! – Ele estava claramente me provocando, novamente passou os dedos por minhas costas até onde a marca terminava, próxima à base de minha coluna. Dessa vez não consegui evitar que um baixo gemido escapasse de mim, Ceiran riu, fechei os olhos e tentei acalmar o calor que crescia dentro de mim com aquele toque. Ele percebeu que eu estava tentando me conter, então debruçou-se sobre mim novamente, mas dessa vez ele beijou a curva de meu pescoço, onde a marca começava.
– Não precisa se conter comigo... – Ele começou a beijar toda a extensão de minhas costas, a sensação de sua boca macia contra minha pele fez com que eu me derretesse e ficasse completamente relaxada. Então eu me virei, deixando que o tecido escorregasse e segurei seu rosto, os olhos vermelhos encararam os meus. Ele estava em sua forma real, com os longos espinhos e tudo, e aquilo não me importava. Eu avancei para ele e o beijei, deixando que ele me tocasse, acariciasse meu corpo e sentisse o quanto eu o queria. Ceiran me deitou na cama, e ergueu meu queixo, passando a língua em meu pescoço, ele tirou minha saia devagar, como se esperasse uma aprovação para o que estava fazendo, em resposta eu passei a língua em sua boca, apreciando a sensação daqueles lábios macios, ele fez uma trilha de beijos desde meu pescoço até minha barriga e gemi novamente, enrolado meus dedos em seus cabelos.
Suas mãos apertaram gentilmente meu quadril, Nossos corpos estavam juntos, quentes e parecia que a energia ao nosso redor vibrava e pulsava em harmonia. Ceiran entrou em mim devagar, lentamente com medo de me machucar, mas não sentia dor alguma, meus sentidos se embolaram e eu me perdi em seu corpo, enquanto ele se perdia em mim, com movimentos lentos e suaves, até que eu não conseguisse mais lembrar meu próprio nome, até que eu me desfizesse sob suas mãos. Ele mordeu os lábios e ficou me admirando por um longo tempo, roçando de leve os lábios em meu pescoço.
– Você é minha! E não vou permitir que ninguém tire você de mim, jamais! – Ele me beijou novamente, meu corpo tremia e minha respiração estava irregular, mas estava completamente feliz.
– Acho que me apaixonei por você, quando eu desafiei Gwyndion e você riu! Na hora pensei que te odiava menos que os outros por ser o único que não me ignorou, depois percebi que não conseguia mais tirar os olhos de você...
Ceiran estava deitado ao meu lado, brincando com a mão em minha barriga, ele riu e semicerrou os olhos.
– Achei que tivesse se dado conta disso em Igraes quando saí do banheiro, você estava quase babando olhando para mim!
– Ah, sim! Naquela hora eu estava pensando coisas terríveis a seu respeito!
– Eu já pensava nessas coisas naquele dia da chuva, quando seu vestido ficou transparente... – Ele mordeu os lábios e desceu as carícias para meus seios, arquejei com o toque, ele passou a língua novamente na curva de meu pescoço e rosnou baixinho. – Teria sido mais doloroso, o ritual se eu tivesse feito isso antes... mas eu queria você naquele dia que te derrubei sobre mim no sofá! – Disse ele contra minha pele.
– Hoje você seria uma raposa morta se tivesse tentado algo naquele dia! – Falei com a voz trêmula.
– Serei uma raposa morta se Maddox voltar da montanha e me pegar aqui! – Ele gargalhou e se levantou. – Acho melhor você ir, Amanda te mandou aquele chá para que você pudesse ajudá-la na parte da tarde! – Levantei da cama num pulo e coloquei a primeira roupa que vi.
– E você só me disse isso agora?
– Esqueci de dizer antes... – Disse de forma inocente esperando eu me arrumar. Parecia que o quarto tinha sido atingido por uma ventania, não daria tempo de arrumar tudo antes de sair para ajudar Amanda, e se meu pai chegasse e visse o quarto daquela maneira... Ceiran parecia ter lido meus pensamentos, pois num estalo de dedos, tudo se arrumou.
– Tem que me ensinar a fazer isso! – Falei.
– Você disse que eu era um péssimo professor! – Revirei os olhos e saí do quarto com Ceiran atrás de mim.
– Você é! Tudo bem, peço ao meu pai depois! – Ele assentiu e caminhou comigo até o salão, depois desapareceu em direção ao campo de treino.
Passava um pouco da hora do almoço quando entrei na sala de cura e peguei Amanda e Gwyn ali, por sorte, estavam apenas abraçados, Gwyn estava com os lábios sobre as mãos dela, murmurando algo. Pigarreei alto e saí entrando, ele franziu o cenho e me olhou da cabeça aos pés, então sorriu maliciosamente e foi em direção à saída.
– Parece que alguém estava muito ocupada para chegar na hora certa, não é? – Ele deu uma risada medonha e parou ao meu lado. – Já desistiu do seu irmãozinho? – Senti o rosto corar, mas não deixaria aquele comentário morrer sozinho.
– Nunca corri atrás de você, Gwyn! Você é o único irmãozinho que eu tenho! – retruquei, Gwyn pareceu desconcertado o bastante para me deixar satisfeita com minha resposta.
– Você tem a língua cumprida demais! – Ele rosnou para mim. – Nesse caso, não se incomodaria se eu caçasse aquele moleque, não é? – Algo se revirou dentro de mim, junto com uma ira tão grande que não pude conter o que aconteceu a seguir. Mal entendi como girei no calcanhar esticando a perna e derrubando Gwyndion no chão, mas ele estava em choque quando passei as pernas cor cima dele e chegue minha mão bem perto de seu rosto, com as palmas cobertas de raios.
– Não se atreva a tocar em Fergus! – Grunhi perto demais de seu rosto, os cabelos prateados caindo ao meu redor e as garras longas perto demais de seu rosto.
– Solte-o, Ellyn! – Gritou Amanda mostrando os dentes para mim, e por mais que Gwyndion tentasse se soltar, eu o mantinha no chão, preso com aquelas correntes elétricas, podia ver o medo em seus olhos quando ele ergueu a mão para me acertar, mas um braço metálico se enrolou em minha cintura, puxando-me de cima de Gwyndion. Lutei contra ele, mas meu pai me apertou mais, fazendo com que expelisse o ar que estava em meus pulmões. Ceiran apareceu na sala no momento em que Amanda se ajoelhou ao lado de Gwyndion, ajudando-o a se levantar.
– O que está havendo aqui? – A voz de Maddox saiu como milhares de trovões fazendo com que eu me encolhesse, ele não me soltou, mantinha-me presa contra ele, só então reparei que era porque os raios ainda não tinham parado de vasar de meu corpo.
– Ela não aguenta ouvir certas brincadeiras... –Gwyndion passou a mão pelos cabelos e me encarou com um olhar debochado.
– Eles dois perderam a linha, Maddox. Mas Gwyn ameaçou o irmão de criação de Ellyn e ela reagiu mal! – Torcia para que ela ou Gwyn não tocassem no motivo do meu surto de raiva.
Pude sentir o olhar de Ceiran sobre mim, meu pai deu um rosnado e apontou um dedo para Gwyndion.
– Não a provoque mais, Gwyn! Estou te ensinando a ser um líder, e não é assim que um age! – Então ele me jogou sobre o ombro e me levou para fora da sala de cura, atravessamos o salão rapidamente até o lado de fora, passamos por uma das plantações até uma grande área aberta entre duas das montanhas. Os Mardans que estavam ali treinando pararam para nos olhar. Com um gesto de Ceiran, eles deixaram as armas no chão e desapareceram.
Meu pai me colocou no chão e segurou minhas mãos, ele me encarou por um momento antes de desviar os olhos para Ceiran, e franzir o cenho.
– Ela é Mardam, sabia? – Disse ele a Ceiran, que deu de ombros e sentou-se em um tronco caído ao lado da área limpa, onde não havia mais grama, apenas a terra batida de tanta movimentação.
– O que significa isso? “Ela é Mardam?” – Perguntei, meu pai franziu o cenho para mim também e bateu as mãos, o som que ouvi foi de um trovão distante, quando olhei para cima, notei que o dia ensolarado havia se tornado nublado.
– Vou te ensinar a controlar esses seus poderes agora, e na próxima vez que pegar você e Gwyndion brigando, vou fazer vocês se abraçarem até ficarem de bem novamente! – Ceiran pigarreou e cruzou os braços encarando meu pai de forma ameaçadora, será que ele tinha perdido o juízo?
Quando olhei de volta para meu pai, ele parecia tenso ao encarar Ceiran, e isso deixou-me boquiaberta.
– Bom, talvez não seja uma boa ideia...
– Gwyndion tem uma rixa com Ellyn desde o dia que a capturamos, ela derrubou todos os caçadores de uma vez com uma explosão de vento... – Ele piscou aturdido para mim e pegou minhas mãos novamente.
– Parece que herdou meu poder de conjurar tempestades então... – Disse ele pensativo. – Assim pode ser mais fácil te ensinar! – Ele ergueu a mão metálica, então, seu braço ficou coberto por raios, como eu havia feito pouco antes com Gwyndion.
– Mestre, temos um problema! – Gritou um jovem entrando correndo na arena de treino, ele estava ofegando e tinha uma espada em suas mãos, meu pai olhou para ele e bufou, deixando que seu poder morresse nas palmas das mãos.
– Talvez mais tarde... – Ele apontou um dedo para Ceiran e respirou fundo antes de sair em passos rápidos atrás do jovem. Fiquei parada de pé no meio da arena olhando para o nada por tempo suficiente para sentir o mundo vibrar sobre meus pés, sabia que Ceiran estava me olhando mas não queria olhar para ele e ter que enfrentar a verdade, eu quase dei uma surra em Gwyndion por causa de Fergus.
– Sabia que não tem nem duas horas que você me chamou de temperamental... – Ele falou, fazendo com que minha atenção se voltasse para ele, então cruzei os braços e esperei que ele continuasse. – Sinceramente, sempre quis ver Gwyn tomar uma surra de alguém, mas não sei se gostei muito do motivo pelo qual ele apanhou!
– Ele disse que iria caçar Fergus, não importa o que eu sinta por você ou o que nós temos, não quero que Gwyndion ou qualquer outro faça mal a ele! Saí de lá para evitar que algo de ruim acontecesse com ele e com Manien. – Ceiran ficou sério e se levantou do tronco, deu alguns passos em minha direção e parou a menos de um palmo de mim.
– Se você não tivesse libertado seu poder aquele dia, você nunca teria de casa, não é? Você só saiu para mantê-los seguros, por que teve medo de aceitar a realidade, que ele não te aceitaria sendo uma bruxa... – Pude ver tristeza naqueles olhos cor de mel.
– Não, eu jamais teria saído de casa se aquilo não tivesse acontecido por que não fazia ideia do que me esperava fora daquela cabana! Mas e você? Teria aparecido para mim como você mesmo, sem a forma de raposa? Teria tentando me mostrar tudo isso? – Gesticulei mostrando o Vale ao nosso redor. – Teria falado de seus sentimentos, ou apenas ficaria por perto, observando? Será que ia ficar tudo bem para você, se um dia ele começasse a me corresponder? – Ceiran grunhiu mudando de forma, os espinhos em seus braços pareciam ligeiramente maiores do que mais cedo.
– É isso que você quer? Voltar para sua casa na floresta e esperar para saber se algum dia ele vai te corresponder? – Suas palavras desceram como navalhas por minha garganta.
– Não, Ceiran! Eu só gostaria que você deixasse de ser tão chato em relação a isso! Eu estou aqui, não estou? Não importa os meios que me trouxeram até aqui! Eu realmente estou feliz em ter conhecido você, meu pai, até mesmo aquele pé no saco do Gwyn! Então pare! Apenas pare com isso! Eu fui criada com ele! Eu o considero como uma família e vou pensar assim até morrer, quando ameaçam a minha família, como Lucian fez, eu os defendo! – Passei os braços em volta do pescoço de Ceiran e toquei de leve seus lábios com os meus, ele relaxou e escorregou as mãos pela minha cintura.
– Desculpe, é que as vezes eu acho que vou acordar e isso tudo vai ter sido um sonho, aí vou até aquela cabana e você ainda vai estar lá e eu não vou poder te tocar dessa maneira novamente. – Ele me abraçou apertado, descansando a cabeça em meu ombro e respirou profundamente.
– Se você acordar, e isso for um sonho, significa que eu vou acorda e vou ter sonhado também! Então, se isso acontecer, me faça um favor, entre naquela cabana e me traga direto para cá! – Senti ele concordar movendo a cabeça.
Demoramos no caminho de volta à cidade, o caminho até a cidade era muito bonito, um túnel de árvores desfolhadas cercava a pequena estrada e o chão ao redor delas estava coberto por folhas secas até chegarmos as plantações, que mesmo com o frio e a aproximação da neve, estavam vivas e verdes. A tempestade que meu pai havia conjurado ainda pairava sobre o vale e aos poucos, a neve começou a cair em flocos delicados, enfeitando as casas de madeira do Vale.
Tive que me desculpar com Amanda pelo problema que causei com Gwyn, mas ela deu de ombros e disse que ele era chato assim mesmo, e que cedo ou tarde eu iria querer bater nele. Fiquei com ela terminando de preparar todas as ervas que havíamos colhido e no fim da tarde, uma mulher grávida chegou a sala de cura prestes a dar à luz. Amanda queria me tirar da sala de cura, mas eu queria ficar para ajudá-la, então mesmo sob os protestos dela, eu fiquei para ajudar.
Havia ajudado Giena em muitos partos em Mirlut, não era algo difícil. Porém aquela mulher na sala de cura parecia estar sentindo muito mais dor do que qualquer mulher que já havia atendido em Mirlut.
– Amanda, o que está havendo? – Perguntei depois de muito tempo tentando acalmar a mulher.
– Virian, se acalme! – Amanda fez um gesto com a cabeça para mim. – Pegue um pouco de mentrasto e prepare uma infusão para ela! – Sabia que Amanda queria que eu saísse dali, mas fui rapidamente até a cozinha e peguei um pouco de água fervente em uma xicara e voltei até a sala de cura, preparei o chá e ajudei Virian e se sentar para tomá-lo. Ela estava sofrendo bastante, então não entendi o motivo de Amanda pedir que desse aquele chá para ela. Virian tomou o chá e descansou a cabeça em meu ombro, passei um pano úmido em seu rosto, a pele morena da jovem estava pálida e os olhos azuis cinzentos pareciam apagados.
– Amanda, o que está havendo? – Murmurei quando ela se aproximou para medir o pulso de Virian.
– Ela está tendo um bebê, Ellyn! – Amanda revirou os olhos tentando parecer calma, mas era óbvio que não estava tudo bem. A jovem parecia cada vez mais fraca e se contorceu de dor quando Amanda mediu sua dilatação.
– Nunca vi nada assim! – Sussurrei para Amanda quando Virian se apoiou em mim novamente, tentando descansar, empilhei alguns travesseiros para que ela se recostasse, e ela desfaleceu sobre eles, respirando com dificuldade.
– Ela é humana, Ellyn, o pai da criança é Mardam! O bebê não é compatível com o corpo dela! Apenas as Sorcys e as Mardans fêmeas são compatíveis com Mardans! – Ela sussurrou para mim e se voltou para Virian.
– E isso acontecia com Sorcys também? – Perguntei, Amanda balançou a cabeça num gesto que não entendi.
– Nunca vi um bebê Sorcys nascer de uma humana ou de uma Mardam, mas sei que eles nascem com os espinhos dos braços e as garras das asas desenvolvidos... deve sair causando uma dor terrível! – Ela se encolheu, e aquele pensamento me fez chegar à conclusão que eu não gostaria de saber como seria ter um bebê Sorcys.
– Onde está o pai, afinal? – Resmunguei, Amanda franziu o cenho e colocou as mãos na cintura.
– Deve estar amarrado dentro do salão! – A encarei incrédula.
– Porque?
– Porque Mardans são quase como animais! Ele teria quebrado meu pescoço na hora que a examinei, mesmo que a dor dela não fosse culpa minha! Eles são protetores e territoriais, se algo ameaça suas famílias, eles se livram da ameaça.
– Que horror! – Ela me encarou e riu sem nenhuma alegria.
– Você derrubou o terceiro Mardam mais forte do clã porque ele ameaçou sua família, não é tão diferente deles assim! – Ela me lembrou, fazendo com que encolhesse os ombros e murmurasse umas desculpas. – Mardans ficam ainda mais agressivos depois de... você sabe! – ela mordeu os lábios e sorriu, então eu entendi o que meu pai quis dizer com “ela é Mardam”, a agressividade quando ataquei Gwyndion.
Passamos a maior parte da noite cuidando de Virian, naquele intervalo de tempo, ela teve febre e desmaiou mais algumas vezes, até que no fim da madrugada o bebê finalmente nasceu.
Era um menininho, pele branca-acinzentada e cabelos espessos prateados, e muito, muito grande. Virian chorava abraçada com o menino grande e gorducho. Vi Amanda usar magia naquela hora, ela fez a sala e nós duas ficarmos limpas com magia, limpou o bebê de Virian e foi até o salão avisar ao pai do bebê que ele havia nascido. Porém, quando ela saiu da sala, os braços de Virian amoleceram e me movi rápido o suficiente para segurar o bebê em seus braços.
– Virian? – Chamei, mas ela não respondeu, seus olhos haviam se fechado e sua respiração estava irregular. Tirei o bebê dela e o coloquei na outra cama, a pulsação da jovem estava fraca, ela estava morrendo!
– Não se atreva! Não depois de tudo isso! – Rosnei forçando meus poderes para curá-la como meu mestre havia me ensinado em Mirlut. Nas primeiras vezes que usei magia para curar alguém, podia apenas sentir o poder fluir de forma suave e ir até onde o problema se encontrava, mas dessa vez eu pude ver ao meu redor, ao redor de Virian, aquela membrana prateada pulsando, preenchendo a sala com um ar morno e agradável.
Amanda entrou na sala seguida por um Mardam sorridente, alto de cabelos castanhos e olhos negros, porém os dois pararam e perderam os sorrisos quando me viram com ela. O Mardam deu um passo em minha direção, mas Amanda o impediu.
– Está feito? – Perguntou ela quando a membrada pulsou uma última vez e desapareceu. Olhei para Virian, para a forma que sua barriga ainda inchada começou a diminuir até voltar para o lugar e sua pele recuperar o a cor. Olhei para Amanda e dei um breve sorriso, acenando com a cabeça.
Saí da sala em passos largos até o salão, que agora estava deserto e frio. Do lado de fora, a neve caía mais pesada, forrando tudo com seu manto branco e macio, respirei fundo e apreciei a sensação dos flocos gelados em meu rosto e em minhas mãos abertas.
Fui direto para casa, onde meu pai dormia tranquilamente no sofá com um livro no colo, a lareira acesa e o ambiente aconchegante me fez sentir realmente em casa. Ao chegar em meu quarto, me atirei na cama e me estiquei, pensando no que tinha acontecido naquela sala, se eu não estivesse lá aquela mulher teria morrido. Nunca havia me sentido tão necessária em um lugar antes, e aquilo me deu a certeza de que estava onde deveria estar e que não sairia dali.
“Gostei do que você fez!” – Era aquela voz novamente, pulei da cama procurando em volta o dono dela e lá estava sobre minha poltrona, a borboleta prateada movendo as asas lentamente, virada em minha direção.
– Diga logo quem é e o que quer, ou eu vou fritá-lo! – Falei erguendo a mão, dessa vez, conjurando uma bola de fogo e ficando surpresa com a facilidade que consegui usar meu poder.
“Já disse antes, sou um amigo!”
– Você é Sorcys, não é? Se é um amigo, mostre-se! – Sussurrei para ter certeza de que meu pai não ouviria.
Então aquela borboleta começou a se deformar e crescer, até que um homem estava sentado em minha poltrona, de pernas cruzadas e roupas leves e brancas, cabelos claros, brancos como a neve, porém seus olhos eram de um vermelho vivo, e estavam pousados em mim. Quando eu encarei aqueles olhos, o poder sumiu de mim, e eu fiquei em choque, olhando para aquele homem sentado ali, embora cada pedaço de minha mente ordenava para que eu saísse dali ou gritasse por ajuda, mas eu não conseguia obedecer, em parte por estar paralisada com a surpresa, e também porque a aparência calma e tranquila dele não me assustava, não sentia medo, como se tivesse certeza de que ele não me faria mal.
– Quem é você?
– Agora acredita que sou um amigo? – Ele deu um sorriso bonito, e se aproximou alguns passos de mim, não me movi.
– O que quer?
– Vim apenas te alertar, você não está segura aqui! Nem você, nem sua família! Aquela que vive na floresta... Pelo que você fez hoje, em breve isso vai se espalhar, e eles não vão querer perder alguém com um dom desses! Vão temer que você retorne para sua verdadeira casa algum dia, e se acharem que podem perder você para eles... principalmente aquela raposa!
– Eu disse daquela vez e digo novamente, me sinto segura aqui e confio neles, então, sugiro que vá embora e não apareça mais! – Falei tranquilamente, escondendo o quanto estava realmente abalada por suas palavras.
– Eu entendo, eles são bons em fingir que está tudo bem! Não a culpo por confiar neles, mas quando perceber que está errada, basta me chamar e eu estarei aqui imediatamente para te ajudar! – Ele sorriu novamente, pegou minha mão e a beijou, depois voltou a ser uma borboleta, não queria dar a ele o gostinho de me ver curiosa, mas não pude resistir a perguntar:
– Qual seu nome?
“Pode me chamar de Halles!” Dizendo isso, ele desapareceu.
Fiquei acordada pelo resto da madrugada sem conseguir dormir, pensando no que Halles falou. Lembrei de como Ceiran ficou irritado quando chegou à conclusão de que eu nunca teria saído da floresta caso meus poderes não tivessem despertado. Não queria acreditar, nem podia acreditar que Ceiran pudesse fazer algum mal a Fergus por ciúme, muito menos qualquer outro ali, talvez Gwyndion... Não, acho que nem Gwyndion faria algo contra eles, ele estava apenas querendo me irritar, só isso.
Acabei descendo as escadas e me enfiando na banheira com água quase escaldando pouco antes do sol nascer e me cobri o máximo que pude com as roupas mais quentes que achei, depois fui para a cozinha preparar o café. Meu pai ainda dormia no sofá quando passei pela sala, ele parecia tão tranquilo, mas não sabia se devia acordá-lo ou não. Me aproximei e fiquei apoiada no encosto do sofá observando-o dormir. Os cabelos estavam prateados, escorridos por cima dos braços que lhe serviam de travesseiro e tinha um leve sorriso em seu rosto. Definitivamente, não tinha como ele fazer mal a minha família humana, afinal, eu estava aqui!
– Pai... – chamei cutucando seu ombro quando terminei de preparar o café, aticei a lareira e coloquei mais lenha, depois fui chamá-lo novamente. – Pai! Acorde! – Ele abriu um olho ainda sonolento e sorriu, apertando-me num abraço.
– Porque está acordada tão cedo?
– A pergunta certa não seria porque você ainda está dormindo? – Ele ergueu as sobrancelhas e bocejou, esticando-se no sofá e se levantando, o gesto mais humano que eu o vi fazer desde que pisei no Vale.
– Na primeira semana do ano que a neve cai, ninguém sai de casa para treinar, alguns ficam entocados! – Ele me seguiu até a cozinha, onde eu servi chá para nós.
–Algum motivo especial para isso? – Perguntei curiosa.
– Apenas descanso, por que nós gostamos da neve e do frio!
– Quando os primeiros dias de neve vinham, eu saia da cabana para brincar com nuvem do lado de fora. Corria na neve com ele até escurecer, sem me importar de voltar para casa para comer durante o dia inteiro. – Falei sem pensar, apenas quando aquela memória me veio à mente, a neve tão branca quanto a raposa que saltava entre os montinhos de neve, tentava me manter gargalhado até que eu cansasse e caísse.
– Nuvem? – Meu pai perguntou, erguendo as sobrancelhas e tirando-me de meus devaneios.
– Ceiran, quando eu achava que ele era apenas uma raposa que eu havia conseguido domesticar... – Expliquei, o rosto de meu pai se tornou branco, e ele arregalou os olhos.
– Ele me fez tirar os treinos da primeira semana de neve, para dar um descanso aos guerreiros e deixar que eles se divertissem um pouco com suas famílias. – Ele tomou um gole do chá, olhando para a janela embasada, com a soleira coberta por uma fina camada de neve. Aquilo deu um nó na minha garganta, “Para deixar que os guerreiros se divertissem com suas famílias” Mas na verdade, era para que ele pudesse ir me fazer companhia, já que Fergus viajava para as montanhas e não voltava por quase um mês. Senti algumas lágrimas escaparem por meus olhos, e as sequei rapidamente, agradecida por meu pai estar distraído olhando para fora e não tê-las visto.
– Acho que no fim das contas, ele te ama mais do que eu imaginava. – Ouvir aquilo de meu pai fez minha garganta oscilar. Talvez ele estivesse certo, e talvez o ciúme de Ceiran, foi por que ele se esforçou por todo aquele tempo para cuidar de mim.
Terminei de tomar café e limpei a cozinha antes de sair para a manhã congelada, chutando a neve acumulada na porta com as botas. Caminhei devagar, atravessei a pequena ponte e segui até a casa no outro lado do lago, até a casa de madeira quase colada aos paredões de pedra. A neve devia ter caído durante toda a noite, enfeitando a casa marrom com o branco puro e brilhante da neve.
Bati algumas vezes na porta e esperei, mas não houve resposta, bati novamente um pouco mais forte e nada.
– Ceiran? – Chamei batendo forte suficiente para que neve acumulada sobre o telhado caísse sobre mim. Como ele não abriu, tentei girar a fechadura, para minha surpresa a porta não estava trancada. Entrei devagar, olhando para a casa admirada. Ali dentro era tudo perfeitamente organizado. Ao lado da lareira na sala, havia uma estante com muitos livros, um lugar perigoso para eles estarem, mas não num ambiente protegido por magia. Ao lado da estante havia um portal que dava acesso a um corredor, uma porta aberta era uma cozinha, na outra um banheiro e na terceira, de frente para o lago, havia um quarto. Coloquei a cabeça para dentro, Ceiran estava ali, deitado em uma cama grande de madeira, dormindo com a parte superior do corpo descoberta. O quarto também era muito bem organizado, as roupas dobradas de forma meticulosa no armário aberto próximo a janela e haviam alguns desenhos empilhados em cima da escrivaninha. Me aproximei dele em passos suaves, como um gato ladrão e olhei a marca em suas costas, a raposa era exatamente igual a minha, porém, sua pele era marcada por várias cicatrizes, longas e curtas, os cabelos caídos ao redor dos ombros, lembraram-me de folhas no começo do outono, em vários tons de vermelho e laranja. Subi na cama lentamente, tirando seu cabelo do caminho e beijei seu rosto, depois a marca gêmea em suas costas, notei quando o corpo dele se arrepiou e virei para ver seu rosto. Os olhos cor de mel estavam arregalados, com surpresa talvez, por eu estar ali. Ele sentou-se na cama e me olhou com os olhos semicerrados.
– Ellyn?
– Hmm?
– O que está fazendo aqui? – Minha garganta apertou e meu sorriso vacilou, Ceiran percebeu logo o que havia dito de errado e riu, esfregando os olhos. – Desculpe, só imaginei que fosse demorar mais para que você viesse até aqui! Ainda mais sem que eu convidasse! – Ele passou os braços ao redor de meus ombros e me derrubou na cama, puxando a coberta sobre nós. Os cobertores estavam com aquele aroma amadeirado que fez minha pele se arrepiar, passei as mãos sobre seu peito e as deslizei até seus ombros, passando as unhas suavemente sobre suas costas, Ceiran deu uma risada baixa e apertou os braços ao redor de minha cintura, ele abaixou a cabeça e me beijou, forçando minha boca a se abrir um pouco, porém ele parou subitamente e passou os polegares em minhas bochechas.
– O quê?
– Porque não dormiu? – Ele perguntou, no escuro das cobertas, podia sentir sua respiração alterada em meu rosto.
– Fiquei até de madrugada ajudando Amanda com uma mulher que foi até lá para ter um bebê. – Falei ocultando parte da verdade, sobre Halles. – Depois, quando cheguei em casa, não conseguia dormir mais. Acabei ficando acordada até agora! – Expliquei. Ceiran suspirou e tirou a coberta de cima de meu rosto.
– Feche os olhos... – Disse ele suavemente beijando cada um de meus olhos, acariciando o topo de minha cabeça até que eu senti meu corpo ficar quente e relaxado.
– Sabe, Ceiran... eu percebi que te amo, e quero ficar com você para sempre!
– Certeza?
– Sim... acho que vou passar a dormir aqui... – Minha voz saiu um pouco embolada, mas senti seu sorriso contra meu pescoço e em poucos minutos, estava mergulhada até os cabelos no mundo dos sonhos.
12
Traição
Fazia alguns dias que Halles estava acompanhando os caçadores humanos pela estrada principal até o Vale da Lua, eles chegariam lá no entardecer do dia seguinte. Halles observou os caçadores comendo em volta da fogueira, sentia-se tentado a matar o líder pelo que representava para Ellyn, mas precisava de Fergus para obrigar a jovem a deixar o Vale por conta própria, se os planos dessem certo, Ellyn iria confiar totalmente nele e seria mais fácil levá-la até a Montanha do Caos e teria um empecilho a menos.
Halles não tinha nenhuma intenção de ferir a jovem, não como falou para Júlia, para assustá-la por sua traição, e embora fosse preciso derramar seu sangue para conseguir libertar sua mãe, nada que um pequeno corte não resolvesse, não queria de qualquer modo, marcar a pele dela. Só de lembrar do rosto da jovem, do sorriso doce e da coragem que ela tinha, Halles estremeceu.
O pior é que ela havia sido marcada como aquele outro Sorcys, e na última vez que foi ver a jovem, ela estava com o cheiro dele!
Halles inspirou profundamente, tentando manter-se sob controle, já havia estado com mais mulheres do que podia contar, com quase a metade das bruxas do clã, elas se atiravam aos seus pés e num estalo de dedos, estariam em sua cama caso ele desejasse. Mas aquela jovem Mardam não, ela nem sequer piscou ou corou quando ele apareceu para ela em sua forma real, também não havia medo em seus olhos, aqueles olhos escuros e belos. Ela era bonita, muito parecida com Júlia, mas não foi sua aparência que fez com que ele se apaixonasse por ela, não... talvez o desafio, por ela não se comportar como as outras, pelo menos, ele preferia acreditar nisso, era mais fácil entender, já que nunca tivera sentimentos parecidos por mulher nenhuma.
Halles sabia o que tinha que ser feito amanhã, e iria doer ver a jovem chorar, mas ele precisava fazê-lo. Fazia pouco menos de um ano que ele havia encontrado aquele ninho sob a montanha, onde encontrou sua mãe, as bruxas já haviam dito que ela estava presa em algum lugar na Montanha do Caos, mas ele nunca recebeu permissão para descer até lá, pois poderia ser perigoso, não para ele, mas para a bruxa presa lá. Elas nunca contaram a verdade a ele, o motivo pelo aprisionamento, Rajina sempre desconversava quando ele perguntava da mãe, e isso só aumentava sua curiosidade e desconfiança.
No dia em que Júlia se intitulou como a Senhora da Lua, ele entendeu o porquê o mantiveram longe dela, pois queriam fazê-lo aceitar Júlia quando sua traição viesse à tona. Mas ele havia descido sob a montanha e encontrou o casulo, encontrou a bruxa ali dentro e ela estava desperta, e chorou ao ver o filho ali e lhe contou que havia sido presa pelo líder Mardam para que ele pudesse se livrar da ameaça que ela era, a bruxa o avisou que Júlia provavelmente tentaria controlar o clã, mas pediu que o jovem não a matasse, ela mesma queria fazer isso quando estivesse livre, então, contou a Halles como libertá-la.
Ele não queria ver Júlia morrer, embora ela merecesse, ela sempre o tratou com gentileza, mas mais do que vê-la viva, ele queria ter sua mãe de volta. A única lembrança que tinha dela antes de ser aprisionada, era de um sorriso que ela lhe deu pouco antes de partir para a guerra, ele era pequeno demais para lembrar dela direito, mas se lembrava de como a montanha estremeceu alguns dias depois dela ter partido, lembrava das bruxas voltando para a montanha sem ela, trazendo com elas muitas meninas Sorcys e bruxas que não viviam na cidade da montanha.
Halles havia conversado com sua mãe muitas vezes, nas horas em que conseguia manter-se acordada dentro daquele lacre, ele não conseguia acreditar que ela era ruim como falavam, mas confiava que ela era justa e quer faria os responsáveis por sua prisão pagarem o preço.
– Tales? Jantar! – O caçador chamado Niesen estendeu um prato para Halles, que fez um breve aceno de gratidão e pegou a tigela. O nome falso mais perto do real podia ajudá-lo a manter-se concentrado quando ouvisse o nome. A maior tortura em estar com aqueles humanos era o cheiro insuportável que exalavam ainda mais presos naquela proteção improvisada protegida da neve. Por ser inverno, os covardes, porcos e preguiçosos não se atreviam a entrar na água para se lavar, apenas Fergus tentava manter-se limpo. Halles mexeu o ensopado na tigela, irritado com a falta de alimentos descentes, quando os humanos dormissem, ele caçaria novamente.
– Sabe como podemos entrar no Vale? – Perguntou Fergus ao bruxo, que tentou não parecer entediado.
– Basta bater nos portões e pedir permissão para falar com o líder. – Respondeu Halles de forma mais casual que pode, Fergus semicerrou os olhos mas assentiu lentamente. – Por falar nisso... não perguntei antes, quais assuntos têm a tratar com aquelas bestas? – Fergus observou o homem com um pouco mais de desconfiança, mas bufou e respondeu:
– Eles sequestraram minha irmã, a levaram para aquele Vale.
– E como sabe que foram eles que a levaram? – Halles estava curioso em como chegaram à informação que a garota estava com os Mardans.
– Quando desistimos de procurá-la nas planícies de Merine, decidimos que seria mais fácil atravessar para casa pelas montanhas, então paramos na vila dos pescadores para comprar suprimentos e ouvimos o velho da loja dizer que havia mandado os caçadores atrás de uma bru... – Ele parou de falar subitamente, lembrando que aquela informação podia levar à morte da irmã adotiva, mas se os Mardans sabiam, talvez nem fizesse sentido ele estar ali, nada garantia que ela estivesse viva. Halles observou a expressão assustava do caçador, ele devia ser pouco mais velho que o bruxo, talvez um ano ou dois.
– Acha que vale a pena enfrentar Mardans para recuperar sua irmã? – Halles queria apenas provocá-lo, acender a ira que havia visto do jovem dias atrás, quando discutia com seu amigo sobre a importância da garota. Como ele esperava, os olhos de Fergus faiscaram.
– Ela vale o risco! Mesmo que morra tentando... – Disse ele, baixo o suficiente para os companheiros não o ouvirem. – Eu quero que ela saiba que não a abandonei! – Dizendo isso, Fergus se afastou e deitou nas peles protegidas pela barraca improvisada que haviam montado, grande o suficiente para o grupo, eram apenas sete. Halles riu por dentro, sete humanos, eles poderiam facilmente serem mortos por um Mardam criança em treinamento, mas ainda assim, enfrentariam os bruxos mais temidos da história por causa de uma única garota.
Halles esperou que todos estivessem dormindo profundamente para sair em sua caçada, precisava comer algo logo, a comida dos humanos era pobre demais. Ele saiu do alcance da visão dos caçadores e se alongou, depois, mudou de forma, optando por sua primeira transformação. Ele farejou o ar, sentindo qualquer presa em um raio de quase três quilômetros, o vento estava contra ele, trazendo o aroma de um ninho de Pisuri não muito longe. Ele trotou calmamente pela estrada coberta de neve até um ponto onde podia entrar na floresta sem deixar rastros. O lobo encontrou o ninho a menos de quinhentos metros de onde os caçadores estavam acampados, ele tinha que ser silencioso, não sabia o quão boa era a audição daqueles “caçadores”. Mas sabia que eram burros o suficiente para não montarem turnos de vigia.
Halles tinha duas formas místicas, a borboleta, essa foi a que copiou de Rajina, e o lobo, sua forma de berço, a mesma da mãe. Ele gostava muito do lobo, embora a borboleta fosse mais útil para espionar, voar com as correntes de ar e manter-se perto dos inimigos sem levantar suspeitas, pois naquela forma, ele podia ocultar totalmente seu poder. Apenas aquele Sorcys raposa havia conseguido identificá-lo como um Sorcys, ele quase destruíra a asa da forma de borboleta de Halles, por pouco conseguiu curá-la, ou jamais voaria com aquela forma novamente.
Depois de caçar e comer a ave de penas coloridas, Halles voltou para o acampamento, por sorte, nenhum dos homens havia acordado. Halles ficou dentro da barraca, incapaz de adormecer, parte pelo mal cheiro dos caçadores, parte pela ansiedade para o dia seguinte, ele precisava ser rápido, precisava que Fergus caísse em sua armadilha também, ou o plano iria por água abaixo, então ele teria que levar a menina a força para a montanha. Seria mais fácil se ela apenas confiasse nele, pois a segunda alternativa que sua mãe lhe dera... Ele não despertaria as Matriarcas, elas não! Conhecia a história das Matriarcas Mardans, os demônios petrificados do templo no Vale, elas ordenaram a morte de todas as Mardans e por isso os Sorcys também pagaram. Esperava sinceramente que sua mãe fosse aquela que ele conheceu naquele ano, e não o que algumas bruxas sussurravam histórias as vezes. Halles tinha certeza de que todos podiam mudar, e que ela pudesse realmente ter cometido tais crueldades, mas por raiva, por ciúme, não por que ela era realmente assim.
No dia seguinte, a neve caía ainda mais pesada, o mundo já estava completamente coberto de branco, puro, limpo. Halles respirou fundo fora da barraca, agradecendo pelo ar fresco. Os caçadores humanos tomaram café e começaram a caminhada bem cedo, pois a neve podia atrapalhar um pouco os planos.
Eles pararam mais cedo do que de costume para o almoço, queriam alcançar o Vale antes do anoitecer e partir imediatamente. Halles observava o nervosismo dos homens, sabia que alguns fugiriam na hora que chegassem lá. Niesen parecia ser o mais covarde do grupo, ele toda hora lançava olhares desconfiados a Halles, que respondia com sorrisos assustadores, deixando o rapaz de olhos arregalados.
Mesmo com o mau tempo, eles alcançaram o Vale mais cedo do que imaginavam, o bruxo ficou surpreso pelo tempo ter passado tão rapidamente enquanto caminhava pela estrada congelada, as horas provocando Niesen valeram a pena, no fim das contas.
Eles se aproximaram rapidamente dos portões, Halles, com o plano todo em mente, mantinha um sorriso quase provocativo no rosto ao perceber que às portas do Vale, estavam Ceiran, Gwyndion e um outro bruxo que não conhecia de nome, mas já havia visto seu rosto em alguns voos de reconhecimento pelo Vale. Os Mardans perceberam a aproximação daqueles homens e os olharam com desconfiança.
Gwyndion ao perceber quem era o que ia à frente quase riu, mas manteve a boca fechada ao ver Ceiran perder a cor. Sabia muito bem que aquilo poderia acabar mal, um dos homens entre os caçadores, o loiro de olhos claros, tinha um olhar cruel no rosto, ele com certeza estava esperando por algo além de uma conversa amigável.
– O que querem aqui! – Gritou o Sorcys entre os Mardans quando eles se aproximaram mais, fazendo os humanos ficarem paralisados. Halles pousou a mão em sua espada, já sabia o que fazer agora e aqueles bruxos no portão haviam facilitado seu trabalho.
– Viemos buscar uma mulher que vocês trouxeram para cá! Seu nome é Ellyn! – Fergus disse alto e claro, aproximando-se mais alguns passos. Ceiran rosnou mostrando os dentes, fazendo Fergus e os outros recuarem.
– Vão embora! Ela não vai a lugar algum com vocês! – Ele não parecia disposto a conversar, Halles deu um pequeno sorriso, tudo que precisava agora era começar a briga.
– Não vou embora sem minha irmã! – Fergus retrucou, Niesen agarrou seu braço em alerta quando o amigo pôs a mão sobre a espada e os Mardans sacaram as armas.
– Aqui é o lugar dela! Seus amigos sabem que vieram resgatar uma bruxa? – Foi Gwyndion que falou, deixando Ceiran, Fergus e Halles surpresos. Halles já havia percebido que o bruxo não tinha nenhum afeto pela garota, talvez estivesse apenas apoiando Ceiran, ou querendo livrar-se dos humanos. Os que estavam no grupo de Fergus começaram a murmurar e se afastaram alguns passos, mas Fergus não iria dar-se por vencido, ainda não.
– Eu não saio sem ela! – Fergus grunhiu andando até os Mardans, ignorando completamente os bruxos com espadas na mão, era realmente um idiota se achava que conseguiria entrar naquele Vale. Não foi preciso intervenção de Halles para a briga começar, antes que Fergus desse mais um passo para os portões, Ceiran o pegou pelo casaco e o atirou em direção aos outros humanos, que cambalearam ao segurar Fergus para que não caísse. Fergus levantou-se mais rápido do que o esperado para um humano e partiu para cima de Ceiran, mas Gwyndion impediu que Ceiran o atacasse, e com um olhar de advertência para Ceiran, ele simplesmente parou o golpe da espada simples de Fergus com a faca de caça que estava em seu cinto, Ceiran bufou e embainhou sua espada novamente.
– Vão embora, não há nada aqui para vocês! – Gwyndion rosnou mudando sua aparência, assustando os humanos e fazendo com que dessem meia volta e corressem de volta para a estrada, mas Fergus continuava ali com a espada erguida e Niesen mantinha-se alguns passos atrás, incapaz de deixar o amigo. Halles tinha que admitir, ele tinha coragem! “Ela vale o risco! Mesmo que morra tentando” foi o que o humano dissera na noite anterior. Halles então, fingiu afastar-se como os outros, porém correu para a floresta congelada em frente ao vale, longe o suficiente para poder transformar-se sem chamar a atenção dos bruxos. Ele chegou o mais próximo que pode, voando baixo sobre a neve, para que os bruxos não o percebessem. Halles viu Fergus avançar novamente, atacando Gwyndion repetidas vezes com a espada, viu o bruxo defendendo-se dos ataques, começando a ficar irritado com a impertinência do jovem, então algo que não estava nos planos aconteceu. Uma mulher saiu do Vale, ela era pequena, a pele morena e delicada, ela se aproximou de Gwyndion sem perceber o que estava acontecendo, Gwyndion virou para mandar a mulher sair dali, mas a espada de Fergus escorregou sobre a faca do bruxo quando ele se virou, acertando o ombro da mulher, abrindo um corte profundo. A mulher gritou e se encolheu, enquanto Ceiran virou-se rapidamente para curar a mulher, Gwyndion urrou, atacando Fergus, atravessando sua espada no peito dele.
– Gwyn! Não! – Gritou Ceiran, mas era tarde demais, Niesen agarrou o amigo antes que esse caísse no chão.
– Ele teve apenas o que mereceu! – Rosnou Gwyndion pegando a mulher e voltando para dentro Vale com ela nos braços. – Assim que Ellyn voltar, avise-a para entrar e curar Amanda, a culpa disso é dela! – O brutamontes urrou por cima do ombro, Halles sentiu um ódio incontrolável por aquelas palavras, culpar a garota pelo ferimento da mulher se ela nem estava ali, aquele idiota merecia uma surra! Mas o fato de Ellyn não estar no Vale, dificultava seus planos.
Ceiran se ajoelhou perto de Fergus, a espada de Gwyndion havia atravessado seu coração, não tinha mais o que fazer, ele já estava morto.
Niesen sentou ao lado do corpo e começou a chorar, segurando o ombro do amigo morto.
– Sinto muito ter chegado a isso. – Disse Ceiran erguendo-se, pegando a espada ensanguentada que Gwyndion havia deixado no chão. – Melhor tirar ele daqui! – Ceiran olhou em volta, a expressão preocupada no rosto, a qualquer momento a garota voltaria e seria um problema para ele se ela visse Fergus morto ali. Porém, ao olhar em direção a passagem que levava a Arizal, o bruxo congelou no lugar. Ellyn vinha caminhando com um cesto de ervas nas mãos e um sorriso alegre no rosto, o sorriso doce que fez Halles ficar imóvel na neve, observando-a. Porém aquele sorriso desapareceu ao ver Niesen ao lado de Ceiran e um corpo coberto de sangue entre os dois, ela parou de andar e encarou o corpo, o rosto lívido, os olhos arregalados começando a se encher de lágrimas. Ela soltou o cesto no chão e correu em direção a eles, ajoelhando-se no chão ao lado do irmão.
– O quê... – Ela segurou o rosto dele e gritou, um grito sofrido, tão cheio de dor que fez Halles se arrepender daquele plano. Ceiran tocou o ombro dela, mas ela o ignorou, continuava com as mãos no rosto do irmão. Ela estava tentando curá-lo, percebeu Halles, pela magia que vazava de suas mãos. O rosto lavado de lágrimas e o corpo trêmulo, ela soluçou e olhou para Ceiran, a ira brilhando nos olhos o acertou tão forte que fez o Sorcys cambalear para trás.
– Por quê? – Ela gritou, levantando-se com as mãos em punho, mudando de aparência. Foi a primeira vez que Halles a viu daquela maneira, os cabelos e olhos prateados, fizeram com que ele se aproximasse um pouco mais.
– Ellyn, eu... – Mas não adiantaria explicar, ele estava com a arma na mão, sujo de sangue, não do humano, mas de Amanda, eram provas contra palavras e a garota estava magoada demais para sentir o cheiro, para ver a diferença. Niesen, pelo visto, não ia falar a favor do bruxo, ele o olhava com desprezo, mas também olhou da mesma forma para Ellyn.
– Vocês se merecem! Monstros iguais! – Disse o jovem antes de jogar o corpo do amigo no ombro e começar a andar lentamente pela estrada.
– Não vai levá-lo! – Disse Ellyn indo em direção a Niesen, a voz tremula e o rosto vermelho de chorar.
– Não se aproxime! Demônio! Por sua culpa ele morreu! Você não merecia o amor dele! – As palavras a atingiram fisicamente, pois ela se encolheu olhando supressa para o jovem. Niesen semicerrou os olhos. – Você não sabia, não é? Então viva com essa dor, Ellyn! – E assim ele se foi, carregando o corpo pela estrada, fazendo uma trilha de sangue na neve. Halles o caçaria mais tarde por aquelas palavras, mas agora tinha algo a fazer. Ele direcionou sua voz para a jovem de joelhos na neve, chorando, Ceiran estava de pé atrás dela, com medo de se aproximar.
“Eu te disse, eles te trairiam cedo ou tarde!” Halles enviou a voz para que apenas ela ouvisse, como esperado, a jovem ergueu o rosto das mãos, procurando em volta de onde vinha a voz.
“Venha! Eu vou te levar para longe deles! Onde eles não te farão mais mal!” Como se estivesse hipnotizada pela voz, a jovem apoiou a mão no joelho, tomando impulso para levantar e começou a andar em direção a floresta. Mas Ceiran segurou seu braço, impedindo que ela continuasse.
– Ellyn, por favor! Me deixe explicar! Eu não fiz o que você pensa! Não o matei! Acredite em mim! – Ele implorava com o olhar, mas a jovem puxou o braço com força, cobrindo as palmas das mãos com raios. Ela apontou a espada na mão dele e gritou:
– Como vai explicar?
– Gwyndion pode te contar a verdade, ele estava aqui!
– Gwyndion é cruel como você! Não duvido que minta para me manter aqui! – Ela atirou as palavras nele. – Ele ameaçou Fergus uma vez! E você o odiava pelo que eu sentia por ele! E agora ele se foi...
– Ellyn! Por favor! – Ele esticou a mão para tocar o rosto dela, mas ela se esquivou, a raiva gravada no olhar.
– Não toque em mim! – Ela soluçou e virou as costas para ele, correndo para dentro da floresta.
Ceiran fez menção de segui-la, mas Gwyndion apareceu nos portões novamente, segurou o ombro do jovem e maneou a cabeça negativamente.
– Eu vou. – Disse ele para Ceiran, pegando sua espada e limpando-a na neve. – Vou trazê-la de volta, não se preocupe!
Halles voou atrás da garota, que adentrou na floresta atrás dele, havia pouco tempo de dianteira e Gwyndion logo a alcançaria, se alcançasse, Halles não conseguiria levá-la. A jovem parou numa pequena clareira, a respiração falhando e o rosto ainda manchado pelas lágrimas, a roupa suja de neve e sangue.
– Halles? – Ela chamou baixinho, olhando em volta, seu nome nos lábios dela pareceu música. Halles rapidamente voltou a sua forma real e se aproximou, os olhos amendoados dela encararam os seus e ele deu um sorriso triste para ela.
– Sinto muito, eu tentei alertar... se tivesse tentado intervir, eles me matariam também! – Ele falou, aproximando-se dela com uma mão erguida.
– Pode me levar embora daqui? – Ela limpou as lágrimas, ele assentiu devagar e pegou a mão dela.
– Espero que não se incomode, mas vamos voar! – Ele abriu as asas, as plumas brancas e macias roçaram nela quando ele a puxou para os braços, então, ele ganhou os céus, indo em direção as montanhas, mas não para a Cidade sobre a montanha, e sim para a floresta atrás da montanha, a Floresta Vermelha, fechada para todos, onde Halles havia feito aparecer uma casa, seu refúgio quando a Morada da Lua ficava barulhenta demais. Ele ficaria ali com Ellyn até a noite da Lua de Sangue, então a levaria até o casulo e libertaria sua mãe.
Maddox andava de um lado para outro dentro da sala de cura, Amanda estava curando-se lentamente, já que Ellyn ainda não havia retornado para ajudá-la e Gwyndion não disse o que aconteceu nos portões do vale, o motivo pelo ferimento de Amanda.
– Conte logo o que aconteceu, mulher! – Maddox esbravejou socando a mesa, Amanda franziu o cenho para ele e bufou, ela usava toda sua concentração para fechar o corte em seu braço.
– Eu também não entendi nada, Maddox! Só sei que Gwyndion me disse que foi culpa de Ellyn! – Disse ela soltando um chiado, olhando o ferimento no braço, agora não passava de uma linha vermelha. Maddox aproximou-se da janela, não podia ter sido nada não grave, pois não havia movimentação anormal na cidade. Ceiran entrou na sala alguns minutos depois, ele estava sujo de sangue também, mas não parecia ferido.
– Como está? – Perguntou para Amanda, ela deu de ombros e resmungou qualquer coisa, os olhos dele se voltaram para o líder, que mantinha expressão séria no rosto.
– Conte. – Um comando, Ceiran estava angustiado demais para se opor a falar.
– O irmão humano de Ellyn apareceu nos portões do Vale com um grupo, eles vieram buscá-la. – Disse o jovem, Maddox franziu ainda mais o cenho, apertando a borda da mesa com a mão metálica com tanta força que a madeira esfarelou. – Eles a feriram?
– Não, ela não havia chegado quando eles apareceram, mas Fergus comprou briga comigo, Gwyndion não deixou que eu lhe desse uma surra, ele só queria cansar o humano e depois lhe dar uns tapas para que fosse embora, mas Amanda apareceu, ele se distraiu e a espada de Fergus a acertou. – Ele virou-se para ela, olhando a marca no ombro da curandeira e a expressão cansada por usar a própria magia para se curar completamente.
– Até imagino! Gwyndion o matou, não foi? – Maddox perguntou e Ceiran assentiu.
– E Ellyn chegou pouco depois que Gwyn entrou no Vale com Amanda, ela viu a espada na minha mão e concluiu que eu o matei. O amigo humano que estava com Fergus ainda completou a desgraça falando que Fergus correspondia os sentimentos dela e que morreu por culpa dela. – Ceiran se encolheu, escondendo a tristeza no olhar, Maddox ergueu as sobrancelhas e olhou para fora novamente.
– Então foi isso que Gwyndion insinuou na primeira noite, não foi? Aquela brincadeira com Ellyn – Ceiran assentiu. – E você não explicou?
– Ela não quis me ouvir. Fugiu para a floresta e Gwyndion foi atrás dela. – Maddox sentiu um arrepio percorrer a coluna.
– Você a deixou ir embora? – Maddox rosnou segurando o manto de Ceiran. – Faltam poucos dias para a Lua de Sangue e você a deixou correr para a floresta? Você é louco, Ceiran?
– O que queria que eu fizesse? A arrastasse de volta à força?
– SIM! – Maddox gritou. – Podia ter feito isso!
– Gente, calma! Se Gwyn falou que a traria de volta, ele vai trazer mesmo! – Amanda tentou acalmar os ânimos, porém, Gwyndion entrou na sala bufando, ele passou os olhos por Amanda, para ter certeza de que estava bem, então olhou para os dois bruxos:
– Um Sorcys, ele levou Ellyn pelo céu, não consegui os alcançar! Mas eles foram para o Sul!
– A montanha do Caos! – Maddox saiu da sala rápido como um raio, seguido por Ceiran. – Se Breedja se libertar, ela vai matar Ellyn, Júlia e todos os Mardans, mas antes disso, eu mato você! – Rosnou ele para Ceiran.
– Vamos achá-la! – Ceiran apertou as mãos em punho, ele não ia deixar aquela promessa morrer.
Maddox e Ceiran foram para fora do salão, prontos para irem atrás de Ellyn, porém, alguém esperava por eles ali. Maddox sorriu ao ver todas as Sorcys, armadas até os dentes, pousando dentro do Vale. A Senhora da lua vinha na frente, com sua armadura de couro de dragão, os cabelos escuros dançando com o vento gelado, cobertos de flocos de neve, ao seu lado, Taynar e Tori.
– Maddox, o que está acontecendo? – Perguntou Ceiran, que estava com a mesa cara surpresa de todos os habitantes do Vale, todos admirando e temendo as bruxas ali presentes.
– Nós unimos os clãs novamente! – Ele disse com um sorriso triunfante.
– E as Matriarcas? – Ceiran deu um olhar significativo ao templo coberto de neve, as luzes dentro dele estavam apagadas, deixando-o com um ar ainda mais obscuro, sombrio.
– Elas vão aceitar bem, porque vamos derrubar a montanha do Caos, com Breedja dentro! – Maddox e Júlia, frente a frente compartilharam o sorriso sádico. – E elas vão ajudar!
– Onde está Ellyn? – Júlia perguntou ansiosa, olhando por cima do ombro de Ceiran, mas o jovem se encolheu um pouco e Maddox respondeu:
– Halles a levou. – Júlia empalideceu, perdendo o sorriso que havia se formado no rosto da bruxa, transformou-se em uma careta, e ela encarou Ceiran.
– Você prometeu...
– E eu vou manter aquela promessa até o fim! – Ele apertou o punho da espada.
– Não vai conseguir recuperá-la agora, Halles tinha um esconderijo para onde ia sempre que estava irritado. Ele não vai machucar a menina, não até a Lua de Sangue! – Foi Rajina que disse isso, aproximando-se de Júlia e colocando a mão em seu ombro.
– Como pode saber? – Júlia perguntou, a voz trêmula, ela estava segurando com todas as forças para não chorar. A bruxa de cabelos cor de cobre apertou seu ombro e suspirou.
– Eu o criei, sei que ele não vai fazer nada, no fundo Halles é bom! O que temos que fazer é esperar até a Lua de Sangue e ir até a montanha, acredite em mim, nessa hora, ele vai estar lá e você poderá pegar sua filha de volta! – A bruxa olhou para Maddox e ele assentiu, era a melhor chance deles.
13
A Lua de Sangue
Parecia que uma névoa havia coberto minha mente, sentia uma dor incessante no peito, minha garganta estava apertada e as lágrimas ainda escapavam de meus olhos. “Porque ele fez aquilo, se eu já havia dito que o amava e que ficaria com ele!”
Halles me segurava apertada contra seu corpo, o vento gelado parecia cortar minha pele enquanto voávamos para algum lugar, longe do Vale.
Já estava escurecendo quando Halles mergulhou para dentro de uma floresta, estava tão dormente que não senti medo ao ver as árvores se aproximando, não liguei, na verdade, apenas fiquei em silêncio e sem me mover em seu colo.
Atravessamos as copas das árvores, que estranhamente estavam avermelhadas apenas naquela parte da floresta, onde parecia que a neve não havia caído. Halles pousou no suavemente, deixando as asas desaparecerem atrás de si.
– Eu mantenho essa parte da floresta sempre no outono, um feitiço complicado, mas ajuda muito as vezes. – Ele tentou conversar, mas não conseguia responder, não com aquela pedra invisível esmagando meu peito. Halles pegou minha mão e me conduziu até uma casa no meio daquela clareira, ela não era nada modesta. Era grande, feita de pedras brancas e o andar de cima era todo feito de vidro. Subi as escadas da varanda, onde haviam vários vasos de flores, quase todas medicinais. Surpresa e curiosidade me invadiram ao vê-las ali, mas não estava em condições de conversar sobre elas.
A casa por dentro era muito bonita, tudo era claro e iluminado por bolas de luz que flutuavam pela casa, decorada com cores neutras e os móveis eram requintados, como os de um palácio, acima de uma grande lareira na sala, havia uma enorme variedade de armas, espadas, arcos e machados, e pelos calos nas mãos de Halles, imaginei que ele saberia como usar todas elas. Ele me levou para cima, para um quarto grande, onde as paredes da frente eram de vidro e nos cantos haviam cortinas de cetim num tom verde escuro muito bonito, uma cama grande de madeira branca estava no meio do quarto, de frente para a floresta. Na parte de trás do quarto havia uma parede de pedra com uma porta:
– Um banheiro... – Halles seguiu meu olhar, ele voltou a me encarar com os olhos vermelhos e deu um meio sorriso, então, sem que eu esperasse, ele me abraçou. Desvencilhei-me de seus braços, e me afastei um pouco, ele ergueu as mãos e suspirou.
– Desculpe, não quis te assustar, só achei que precisava de um abraço. – Ele murmurou, afastando-se com o rosto corado.
– Não quis ser grosseira, eu só...
– Eu entendo. – Engoli em seco, tentando fazer aquele caroço em minha garganta desaparecer.
– Tente dormir um pouco, talvez se sinta melhor. – Disse ele indo em direção a porta. – Vou estar no quarto da frente se precisar de mim! – Halles saiu, deixando-me ali sozinha, não que eu quisesse que ele ficasse ali comigo. Mas o que mais me atingiu quando fiquei ali só, foi a lembrança de Ceiran com aquela espada ensanguentada na mão em frente ao corpo de Fergus.
Aquilo me atingiu tão forte que meus joelhos cederam e não pude evitar que o choro voltasse, junto com todas as lembranças, todos os sorrisos, as histórias. Fergus foi quem eu amei desde criança e mesmo que eu tivesse feito aquele sentimento desaparecer com o tempo, com Ceiran, eu ainda o queria por perto, cheguei a imaginar um futuro que pudesse ir visitá-lo, onde não precisasse mais me preocupar com Breedja. Mas Ceiran... o homem, não, o Sorcys que passei a amar, que vivi junto naquelas últimas semanas, ele matou Fergus.
Me levantei do chão, limpando as lágrimas do rosto e fui até o banheiro, entrei na banheira e deixei a água me cobrir aos poucos. A marca em minhas costas pulsava me chamando, mas eu a ignorei, pressionando as costas na banheira como se pudesse sufocá-la, mantê-la em silêncio. Só saí dali depois que a água já havia ficado gelada, minha roupa estava manchada de sangue e não queria colocá-la novamente. Saí enrolada na toalha, ficaria deitada embaixo das cobertas, não precisaria da roupa para isso, mas em cima da cama havia um vestido longo azul escuro de lã. Era desconfortável vestir a roupa com aquele quarto “aberto”, fechei as cortinas com um rápido movimento e entrei no vestido. O tamanho estava certo e ele era quente e confortável. A cama era muito macia também, afundei no colchão, a cama vazia fez com que o nó voltasse para minha garganta, então abracei um travesseiro, deixando que as lagrimas rolassem e me deixei levar pelo sono e pela tristeza.
Aquilo tinha que ser um sonho, pois eu estava pequena novamente, aproximadamente, quando eu tinha sete anos.
“Olhei minhas mãos pequenas e frágeis, as unhas curtas e os cabelos roçando minhas bochechas. Manien estava sentada na varanda, bordando um manto e sorria discretamente para ele, era o manto que estava fazendo para Fergus.
“Porque não vai brincar nas folhas, querida?” Ela perguntou, sorrindo para mim.
“Fergus saiu com Lucian! Não tem graça brincar sozinha!” resmunguei abaixando-me e cruzando os braços irritada. Fergus e Niesen estavam em treinamento e saíam direto com Lucian, as vezes só voltavam a noite.
“Se não aproveitar agora, o dia vai passar, e talvez amanhã esteja nevando! Aí você não vai poder aproveitar os montes de folhas!” Ela sorriu apontando a floresta com o queixo, Manien colocou uma mecha de cabelos loiros atrás das orelhas, encarando-me com as sobrancelhas erguidas e um meio sorriso, os olhos azuis, iguais aos de Fergus, pareciam joias contra a luz do entardecer. Levantei a contragosto e corri para dentro da floresta, as árvores cantavam com o vento, que derrubava ainda mais folhas coloridas contra o chão, fazendo-o parecer coberto com um tapete vermelho e laranja.
Corri entre as árvores, brincando nas sombras que elas projetavam contra o sol poente. Poucos metros à frente, encontrei a enorme pilha de folhas que Manien havia dito, ela e Fergus fizeram aquele montinho para que pudéssemos brincar ao entardecer, mas ele teve que sair e a brincadeira acabou ficando para depois. Rodeei as folhas entristecida, não tinha graça brincar sem eles, então sentei no chão, cruzei as pernas e fiquei observando o vento derrubar as folhas das árvores como uma chuva.
Um barulho de galhos se partindo me fez virar assustada para trás a tempo de ver uma raposa branca me rodeando.
“Olá?” chamei abaixando-me e esticando a mão para ela, a raposa farejou o ar e aproximou-se um pouco.
“Está perdida?” Perguntei, mas a raposa apenas virou a cabeça e se aproximou mais em direção a minha mão estendida.
“Não precisa ter medo!” Insisti, inclinando-me para frente, para tocar sua cabeça. A raposa então abaixou as orelhas e empurrou a cabeça contra minha mão, eu ri e cocei atrás de suas orelhas com as pontas dos dedos, vendo-a se inclinar contra minha mão a ponto de desequilibrar quando eu a tirei.
“Nunca vi uma raposa branca!” Falei. “Quer brincar comigo nas folhas?” A raposa entortou a cabeça novamente, sem entender o que eu estava falando. Então, tomei alguns passos de distância e corri para o monte de folhas e saltei, mergulhando sobre elas, fazendo com que muitas voassem comigo e gargalhei.
“Viu?” A raposa ficou observando, depois deu um salto e mergulhou nas folhas também, desaparecendo entre elas.
“Teria mais graça se você fosse como eu!” Falei fazendo um bico e olhando triste o monte de folhas. Então, como se por mágica, aquela raposa começou a brilhar e transformou-se num garoto! Talvez um pouco mais velho de Fergus, pois era mais alto que ele, também era forte.
“Assim?” Ele perguntou, atirando-se no bolo de folhas, fazendo-as se espalharem para todos os lados. Os cabelos dele eram da cor das folhas caídas das árvores e os olhos tinham a mesma luz do sol poente.
“Assim mesmo!” Respondi, pegando impulso e pulando novamente, caindo ao lado dele.
“Não devia estar sozinha aqui na floresta!” Disse ele pegando minhas mãos e me levantando.
“Não estou sozinha, estou com você!” Ele riu e afagou minha cabeça sentando em minha frente de pernas cruzadas e olhando diretamente em meus olhos.
“Não tem medo de mim?”
“Não! Você é lindo!” Falei passando a mão nos longos cabelos cor de fogo, ele riu ainda mais.
“Mesmo se eu for uma raposa?” Eu sacudi a cabeça negativamente.
“Raposas são muito fofas!” Ele segurou minhas mãos e as beijou, depois sorriu para mim.
“Já está escurecendo, Ellyn, volte para casa!” Ele apontou com o queixo em direção a cabana.
“Vai voltar amanhã para brincar comigo?” Perguntei.
“Amanhã vai estar nevando!”
“Então nós podemos brincar na neve!” Insisti.
“Não sei...”
“Por favor, vai voltar amanhã, não vai?” Implorei apertando suas mãos, ele respirou fundo e balançou a cabeça, escondendo um meio sorriso.
“Eu sempre vou voltar, Ellyn, sempre estarei aqui para brincar com você! Mas não vai mais me ver assim! Quando você adormecer hoje, vai esquecer que me viu nessa forma, vai lembrar apenas de mim como raposa, está bem?” Eu fiz que sim com a cabeça.
Ele passou a mão em minha cabeça, então seu corpo brilhou e ele voltou a ser uma raposa.
“Vou te esperar amanhã, já que não falou seu nome, vou te chamar de nuvem!” a raposa fez um som como um espirro ou uma risada e me acompanhou até próximo à entrada de casa, depois correu de volta para a floresta, desaparecendo em meio as árvores. Quando acordei no outro dia, me lembrava da raposa, apenas dela saltando comigo entre as folhas, corri para fora de casa assim que o dia nasceu, e para minha felicidade, a raposa estava deitada na neve que havia caído na noite anterior.”
– Ellyn? – Alguém chamava meu nome, tateei a cama em busca de Ceiran, só então me lembrei que não estava mais em casa.
Casa.
Aquilo não era um sonho, era uma lembrança! Ceiran havia se mostrado para mim na primeira vez que o vi como raposa enquanto ele me vigiava! Ele estava lá comigo, e durante todo aquele inverno, ele esteve comigo e mesmo que chovesse, ou nevasse o suficiente para bloquear as estradas, ele estava lá, ele corria a noite inteira do Vale até a floresta para ficar comigo, engoli a vontade de chorar com força, percebendo que Halles estava a porta do quarto com uma caneca nas mãos.
– Ellyn? – Ele entrou no quarto, sentou na beirada da cama e estendeu a xicara para mim.
– Obrigada. – Murmurei segurando a caneca e tomando um gole do chá.
– Como está se sentindo.
– Como se alguém tivesse colocado uma pedra sobre meu peito. – respondi rispidamente, encarando-o irritada.
– Sinto muito.
– Não, não sente! Você não liga! – Dava para ver nos olhos dele, ainda mais quando ele ficou surpreso e corou um pouco.
– Eu...
– Não precisa se explicar, você queria me tirar do Vale a qualquer custo e aquilo... – Engoli em seco. – Foi uma desculpa perfeita, não foi? – Ele me encarou ainda mais surpreso, talvez possa dizer assustado.
– Eu só queria te deixar em segurança! – Abri a boca para replicar, mas ele franziu o cenho e continuou: – Ele era um humano, Ellyn. Humanos morrem rápido! O que acha que ia acontecer conforme o tempo passasse e você continuasse a mesma pessoa e ele começasse a envelhecer e morrer? Foi melhor assim! – Eu o olhei incrédula.
– Não é assim que funciona! Você não se desfaz das pessoas só porque elas vão se tornar algo que você não pode acompanhar ou porque fazem algo que você não aprova! O certo é lutar para estar ao lado das pessoas que ama até o fim!
– Assim como você fez com Ceiran? – O olhar dele foi cruel, frio e eu percebi o que realmente tinha feito, lembrei da espada embainhada em suas costas e da espada na mão dele suja de sangue, a espada com o cabo de pedra escura, aquela não era a espada de Ceiran, era a de Gwyndion. Ele havia dito a verdade? Não tinha sido ele quem matou Fergus?
– Eu quero voltar! – Falei levantando-me e indo em direção a porta do quarto, mas Halles segurou meu braço e fez que não com a cabeça.
– Preciso de você aqui! – Disse ele impedindo-me de seguir em frente.
– Eu quero ir pra casa! – Grunhi puxando meu braço, mas Halles me empurrou contra a parede e segurou meu rosto com uma mão.
– Você vai ficar aqui, eu preciso de você para ajudar alguém que eu amo. Então, por favor, não me faça perder a paciência com você, Ellyn! Não quero te ferir! – Ele estava perto de mais, um movimento e seus lábios roçariam nos meus, eu me encolhi em direção à parede tentando liberar meu poder para escapar, mas não conseguia, ele estava dormente.
– O que está fazendo comigo?
– Estou tirando seu poder, pra você não se machucar!
– Para me proteger? Ou para se proteger de mim? – Rosnei. Ele apenas deu um meio sorriso, os olhos ainda fixos nos meus.
Então o quarto, a casa inteira começou a vibrar, mover-se até que aquelas janelas gigantes de vidro ficassem rodeadas por grades, haviam grades em todo lugar ao redor da casa, percebi olhando para o alto, onde o teto também de vidro, mostrava que estávamos presos numa gaiola.
– Achei que fosse meu amigo... – Falei, sua respiração estava alterada, ele estava me apertando contra a parede mais forte agora, um olhar quase triste estampado em seu rosto.
– Sinto muito. – Foi tudo que disse antes de sair do quarto e trancar a porta. Escorreguei pela parede até o chão envolvendo as pernas com os braços, eu estava presa ali! Havia deixado o Vale sem ao menos deixar que Ceiran se explicasse, deixei Niesen levar Fergus embora e não insisti, nem sequer enterrei meu irmão. Agora estava trancada em uma casa no meio de uma floresta, não aprendi a lutar para me manter segura, não podia usar meus poderes e não fazia ideia de como sair dali. Halles tinha me dito que precisava de mim para salvar alguém que ele amava, mas ele era um Sorcys, então, quem ele queria salvar?
Halles voltou na hora do almoço com comida para mim, não disse uma palavra, apenas deixou a comida ali e saiu, estava com fome demais para rejeitar, então comi com cuidado, testando para tentar sentir se tinha veneno ou não. As horas ali pareciam se arrastar, o silêncio fazia com que me sentisse ainda pior. Fiquei a maior parte do tempo em frente à janela, observando a divisão da floresta, onde outono acabava e inverno começava.
O céu foi manchando-se de vermelho e cinza e aos poucos a noite escorregou para o mundo, pintando-o com a escuridão. Aquele silêncio constante era ainda pior de noite.
Halles apareceu novamente para me trazer o jantar alguns minutos depois que escureceu, ele colocou a bandeja com o prato em cima da mesa e foi em direção a porta, mas antes que ele saísse, segurei seu braço.
– O que quer? – Ele perguntou friamente, fazendo com que o soltasse como se tivesse levado um choque.
– Só queria conversar... – Ele me encarou por um momento, os olhos agora estavam de um tom castanho avermelhado, dessa vez reparei bem em seu rosto, no formato da boca e nas maçãs cheias e realmente senti o choque passar por mim ao perceber quem ele era. Ele era idêntico a Adar, o irmão de Maddox, tinham o rosto quase idêntico, a diferença era que Adar tinha os cabelos espetados, escuros e Halles tinha cabelos de um loiro pálido.
– O que foi? – Ele franziu o cenho para mim, notando minha expressão assustada, quando ele deu um passo em minha direção, me afastei automaticamente e ele parou.
– Quem você quer salvar? – Perguntei, minha voz saiu trêmula, mais assustada do que eu queria.
– Na hora em que formos até ela, você vai saber!
– Você é o filho de Breedja, não é? – As palavras quase travaram em minha garganta. Ele ergueu as sobrancelhas e apertou os lábios, dando mais alguns passos em minha direção com a mão erguida, novamente me afastei.
– Como soube?
– Porque você é igual ao seu pai! – Respondi, dessa vez, Halles pareceu abalado, ele parou de se mover e deixou a mão cair ao lado do corpo.
– Sabe quem ele é?
– Você não? – Ele negou com a cabeça.
– Diga quem é! – Ele pediu, movendo-se em minha direção rápido demais, apertando meus braços com força.
– Você quer libertar Breedja do lacre, não é? É por isso que precisa de mim! – Falei ignorando sua pergunta.
– Eu vou soltar ela.
– Vai condenar muita gente se fizer isso, Halles! – Falei.
– O que você sabe sobre ela? O que te contaram no Vale? Como pode julgar uma pessoa sem ouvir dois lados da história? – Ele esbravejou, apertando ainda mais meus braços.
– Digo o mesmo! – Falei, Halles sacudiu a cabeça e bufou.
– Eu sei a versão deles, a bruxa cruel e sem coração que entrou em guerra com os Mardans por causa de Maddox.
– E mesmo assim vai libertá-la?
– Estive na prisão onde ela está, eu a vi, ouvi as palavras dela e não creio que ela seja assim!
– Então porque nenhuma Sorcys tentou libertá-la antes, porque nenhuma bruxa tentou libertar sua líder, se ela era tão boa para elas? – Perguntei, ele franziu o cenho e respirou fundo.
– A lua de Sangue é em três dias. Até lá, acho melhor você ficar quietinha aqui. – Ele segurou meu rosto, passando os dedos pela minha bochecha. Me encolhi contra aquele toque e ele recuou um pouco, então deu um breve sorriso um tanto assustador e murmurou algo contra a palma de sua mão e soprou um pó fino e brilhante pelo quarto. Respirei aquele pó mesmo sem querer, ele tinha um cheiro adocicado e suave, então, meu corpo ficou pesado e meus olhos começaram a vacilar.
– Até depois, Ellyn! – A última coisa que senti, foi Halles me tirando do chão, depois disso, tudo se apagou ao meu redor.
O vento congelante cortando minha pele me acordou, abri os olhos devagar, sentindo uma dor de cabeça tão intensa que soltei um gemido e levei as mãos as têmporas. A noite estava muito escura e havia algo maligno no ar, uma sensação de peso que me fez querer estar num pesadelo.
Estava no colo de Halles, e ele voava para algum lugar comigo, algum lugar não, para uma cadeia de montanhas à nossa frente. Olhei em volta assustada, percebendo de onde vinha aquele brilho vermelho, uma lua crescente no céu, um sorriso vermelho e sangrento.
– Primeiro dia de lua crescente, a terceira lua de sangue desde que ela foi presa. – Disse Halles acompanhando meu olhar.
– Você me apagou por três dias? – Minha voz não passava de um sussurro rouco, o medo tomando conta de cada pedaço de mim.
– Sinto muito.
– Por favor! Não faça isso! Me deixe ir embora! – Implorei, tentando me soltar de seus braços.
– É uma queda de quarenta metros, Ellyn. Se eu te soltar...
– Então me solte! – Forcei meu corpo, tentando inutilmente me soltar.
– Prefere morrer do que me ajudar a libertá-la?
– Prefiro! Mil vezes! – Gritei para ele, mas sua resposta foi apertar ainda mais os braços ao meu redor.
Ele voou por alguns minutos sobre as florestas congeladas, até a sombra da montanha cobrir a lua. Logo em seguida, mergulhou em direção a uma fenda na montanha, estreita o suficiente para me fazer gritar, mas ele apenas riu, girando e entrando na montanha como se tivesse anos de prática em entrar ali, bom, talvez tivesse mesmo.
Halles pousou no chão da caverna, em um local parecido com a passagem das estrelas, porém, não havia nenhuma luz ali, a não ser por um fraco brilho vermelho que parecia pulsar no interior da montanha. Ele segurou meu braço e começou a caminhar naquela direção, enquanto eu tentava me soltar dele. Halles revirou os olhos e parou de andar.
– Acha mesmo que vai conseguir se soltar e escapar de mim? Acha que pode correr para fora daqui se fugir? – Ele deu uma breve risada sem graça e voltou a me puxar. Olhei para o cinto em sua calça escura, onde uma longa adaga estava presa, mesmo que eu conseguisse tomá-la dele, não conseguiria ferí-lo, pelos músculos, pelas armas que tinha visto na casa quando cheguei lá, ele deveria ser um guerreiro tão bom quanto Ceiran. Tão forte quanto, mas ainda havia algo que eu podia fazer para evitar aquilo.
– Eu não vou deixar que a solte! – Rosnei puxando a adaga de seu cinto, rápida o suficiente para surpreendê-lo, a girei no punho com a lamina para dentro e a puxei contra meu pescoço, o olhar de pânico de Halles me deu a certeza de que aquilo funcionaria e que ele não poderia mais libertá-la.
Não havia percebido o quanto ele era rápido, antes que a adaga cortasse minha pele, ele colocou o braço entre mim e a lâmina, o som de metal arranhando algo como pedra me surpreendeu. Halles tomou a adaga de minha mão e a colocou de volta do cinto, os olhos vermelhos fixos nos meus, no braço contra meu pescoço, uma linha de espinhos longos e escuros fizeram uma barreira contra aquela lâmina.
– Porque fez algo tão estupido assim? – Ele gritou, apertando-me contra a parede de pedra úmida da caverna.
– Eu disse que preferia morrer ao deixar que você a solte! Além do mais, ela vai fazer muito pior comigo quando você a soltar!
– Não, ela não vai!
– Tem certeza? Sou filha do bruxo que a prendeu lá! Acha que ela vai se vingar dele como? As pessoas nos atingem onde mais dói, Halles! Ela sabe que me matar vai afetar não só ele, como minha mãe também! Já que ela lutou tanto para me esconder, para que ninguém me usasse para libertar Breedja, assim como você quer fazer agora! – Retruquei puxando meus braços, mas ele não me soltou, sua respiração estava alterada e seus olhos ainda encaravam-me de uma maneira que não soube reconhecer.
– Não vou deixar que ela te mate!
– Não vai poder impedir.
– Vou. – Dizendo isso, ele segurou meu rosto nas mãos e me beijou, os lábios quentes e macios forçaram os meus a se abrirem, mas eu o empurrei, mordendo-o com força. Ele apenas riu, limpando o sangue da boca, o ferimento se fechou mais rápido do que pude ver.
– Não me toque! – Gritei limpando a boca.
– É por isso que gosto de você, Ellyn! – Ele me arrastou para dentro da caverna, em uma parte tão profunda que o ar ali havia ficado pesado e cada respiração minha era mais dolorosa. A luz vermelha pulsava cada vez mais clara conforme caminhávamos entre as galerias de túneis, indo cada vez mais fundo na caverna, até chegar a um ponto onde grandes raízes de árvores faziam uma espécie de ninho ao redor de uma bolha vermelha. Era daquela bolha que pulsava a luz.
– Falta pouco para meia noite. – Disse Halles me aproximando da bolha.
– Me solta! – Urrei lutando contra ele com toda força que consegui reunir, mas ele ainda mantinha aquela estranha névoa sobre meus poderes.
– Já vai acabar. – Ele me ignorou, passando grilhões em torno de meus pulsos.
– Espero que não se arrependa disso! – Ele apenas me encarou por um longo tempo, até que uma voz cantarolou, ressoando nas pareces das cavernas.
“Halles?” A voz fez um calafrio percorrer minha espinha e me esquivar, tentando escapar dali, mas Halles mantinha meus braços presos.
– Estamos aqui. – Ele respondeu, puxando-me mais para perto da esfera.
“Faça antes da meia noite, Halles! Eles podem vir até aqui!” A voz alertou, deixando-me paralisada de medo. Halles olhou-me de canto de olho, então puxou a adaga e abriu a palma de minha mão.
– Por favor... – Implorei tentando me soltar uma última vez, Halles me deu um olhar como se pedisse desculpas, então passou a lâmina em minha mão, abrindo um longo corte e pressionou-a em forma de concha para que o sangue vertesse mais rapidamente, tive que morder a boca para evitar gritar. No centro da esfera, um símbolo azulado com três luas entrelaçadas apareceu, em volta delas, algumas palavras mantinham o selamento completo.
Halles ergueu minha mão, pressionando-a naquela marca, até que ela ficasse completamente vermelha com meu sangue. A bolha começou a vibrar, as marcas agora vermelhas começaram a se desfazer, uma a uma as luas desapareceram, até restar apenas a mandala de palavras, que aos poucos foi se apagando também. Halles deu um passo para trás, ele pegou minha mão que ainda pingava sangue e a lambeu. Estava prestes a lhe dar um chute, mas notei que o corte havia desaparecido e ele olhava-me de canto de olho, provavelmente esperando algum ataque de minha parte.
A bolha começou a se deformar, até que se desfez completamente, deixando uma mulher caída no chão, entre as raízes da árvore. Ela era loira, os cabelos caiam em volta da cintura em ondas douradas, os olhos vermelhos vivos estavam em mim, em seus lábios, um sorriso sádico a fazia parecer linda e mortal. Dei um passo para trás, solta das mãos de Halles, precisava correr.
A bruxa se moveu, esticando-se e respirando profundamente, aproveitando a sensação de liberdade. Ela moveu os braços, esticando-os atrás da cabeça, então apoiou-se nas raízes ao seu redor e deu alguns passos vacilantes para fora da bolha. Ela ergueu os olhos para mim novamente e sorriu.
– Ora, ora... Você é igualzinha à minha segunda traidora, menina Mardam! – Ela veio direto até mim, ignorando Halles que ficou parado estático, olhando para a mulher em sua frente. Ela tinha apenas uma faixa branca de proteção cobrindo as partes intimas, e os cabelos que lhe cobriam parte do corpo.
– Mãe? – Ele chamou, ela desviou os olhos para ele, um olhar carregado de desprezo e tédio. Mesmo que eu não tivesse nenhum afeto por Halles, queria dar uns tapas naquela mulher por olhar assim para seu próprio filho.
– Obrigada por me libertar! – Ela acariciou o rosto dele, e sorriu com malícia ao tomar-lhe a faca e se voltar para mim. Dei um passo para trás, afastando-me dos dois, Halles estava tão chocado olhando-a que não percebeu que havia liberado meu poder, o senti voltar para mim como uma descarga elétrica, e aos poucos o reuni em minhas mãos. Ela avançou em minha direção, ainda um pouco zonza de ficar dentro daquela bolha, mas rápida o suficiente para eu mal conseguir desviar, mesmo assim, a lâmina arranhou meu rosto.
– Não vai fazer nada contra ela! – Disse Halles se colocando entre nós, mantendo-me atrás dele. A bruxa ergueu as sobrancelhas.
– Saia da frente! Vou me vingar nela antes de destruir aquele Vale! – Ela segurou o ombro dele, empurrando-o para o lado, mas foi como se tentasse mover uma rocha. Ela rosnou para ele, apontando a adaga para o rosto de Halles – Saia...
– Não acredito que você seja exatamente como eles disseram que era... – Ele ergueu a mão para tocar o rosto dela, mas ela o atacou com a adaga, rasgando a palma da mão dele com a lâmina. Suguei o ar assustada, e me coloquei ao lado dele, para curá-lo, mesmo que ficasse mais perto dela e sem defesa, ele havia se colocado entre mim e ela para me defender, curei sua mão enquanto ele a encarava decepcionado.
– Algo do que me contou, era verdade? – Ele perguntou, a bruxa lhe lançou um sorriso cruel enquanto meneava a cabeça negativamente.
– Você foi apenas um instrumento para conseguir o que eu queria, mas não deu certo... – Quando ela disse isso, Halles fechou os olhos, o peito inflando, dava para sentir a mágoa, a raiva e a vergonha emanando dele.
– Não vai sair dessa montanha! – Gritei conjurando uma tempestade de raios e atacando-a, ela saltou para longe, usando os espinhos de sua transformação como escudo e dando uma gargalhada assustadora.
– Você não pode me tocar, menina! Estamos na noite da Lua de Sangue! Seu poder não se compara ao meu! – Ela ergueu as mãos, fazendo com que os espinhos em suas mãos se projetassem dela e voassem em minha direção, porém eles se desfizeram, ao tocar uma barreira que havia aparecido ao nosso redor. Halles colocou a mão em volta de minha cintura e me olhou, havia um pedido de perdão gravado naquele olhar.
– O que está fazendo? – Ela rosnou, transformando a adaga em uma espada.
– Não vai fazer mal a ela! – Ele retrucou, sacando a espada e tomando minha frente novamente. – Ela não pode com você, por ser Lua de Sangue, mas eu posso. – Ela girou a espada na mão e bufou irritada.
– Saia daí, menino! Porque a defende? Interessado nela? – Ela riu novamente e Halles franziu ainda mais o cenho, segurando a espada firmemente na mão.
– E se estiver? – Ele perguntou, dessa vez, eu o olhei boquiaberta.
– Ela é sua prima se você não sabe, Adar, seu pai, é irmão mais novo de Maddox! – A bruxa mordeu os lábios e avançou para Halles, que estava chocado demais para reagir, mas ele ergueu a espada, parando o golpe dela com apenas uma mão em punho.
– O q...
– Eu acreditei em você, tinha esperança de que fosse boa, como Júlia é para o clã! Então me desculpe, mas se você é aquele monstro que todos queriam manter presa, eu não posso te deixar sair daqui! – Halles fez um movimento fluido, girando o corpo para o lado, e soltando aquela estranha névoa com as mãos, então, os choques das espadas começaram. O som dos metais se chocando eram amplificados pelas paredes da caverna ao nosso redor, fazendo minha cabeça doer. Os gritos de Breedja faziam a montanha tremer sob meus pés, e cada osso do meu corpo se encolhia com aquele som.
– Eu me arrependo de ter trazido você ao mundo! – Gritou ela golpeando com a espada com tanta força que desarmou Halles, ele ergueu o braço, parando o próximo ataque dela contra seu ombro com os espinhos, mas mesmo assim a espada dela enterrou em seu ombro, fazendo-o urrar de dor. Breedja apertou a espada contra o ombro dele com mais força, fazendo-o ceder, mas quando ela fez menção de atacá-lo para dar o golpe final, Halles prendeu os braços dela, derrubando-a com um golpe atrás dos joelhos.
– Sabe o que machuca o coração? – Ele perguntou, dando um sorriso para mim por cima do ombro destruído. – Um choque! – Ele sorriu enquanto a segurava. Entendi o que ele quis dizer, mas segurando-a daquela maneira...
– Halles...
– AGORA! – Ele gritou, prendendo-a no chão quando ela se contorceu contra o aperto. Juntei os raios rápido, demais, meus poderes estavam fracos e talvez tivesse suficiente para um ataque, então rapidamente concentrei aquela magia e a atirei pelo chão, como o estalar de um chicote de raios, Halles sorriu para mim e murmurou. “Te vejo no inferno, Senhora da Lua!”
Houve um clarão e a montanha estremeceu com o choque, quando os raios os alcançaram, seguidos de gritos e silêncio. A montanha começou a tremer novamente, e dessa vez rochas começaram a se soltar e areia caia do teto da caverna em alguns pontos. Precisava sair dali, mas não antes de ter certeza que ela estava morta, quando o clarão diminuiu, pude ver o corpo de Halles ao lado do que deveria ser os restos da bruxa, que havia se despedaçado com aquele ataque.
Meu estômago se revirou e quase vomitei tentando manter-me de pé. Olhei para Halles mais uma vez, ele não se mexia, seu peito estava parado, ele não estava respirando. Mesmo assim me aproximei, tentando ignorar os restos da bruxa espalhados ao redor dele, o peguei pelo braço bom e o arrastei para longe da poça de restos e curei aquele ombro destruído o mais rápido que pude, mas deixei uma cicatriz feia ali.
Pelas paredes da montanha podia ouvir o som das rochas deslizando, ela estava desabando e eu morreria soterrada ali em poucos minutos. Coloquei a cabeça em seu peito, o choque que despedaçou a bruxa, por um milagre havia apenas feito seu coração parar, mesmo assim, sabia que ainda podia dar tempo. Coloquei as mãos sobre seu peito, deixando a energia vazar apenas um pouco, dando-lhe um choque, mas ele não reagiu.
– Vamos! – Falei colocando as mãos novamente e dando outro choque. – Eu te devo essa, reaja, por favor! – Implorei dando outro choque.
Continuei fazendo aquilo, mesmo quando as esperanças já haviam desaparecido. E a cada vez que eu tentava, dizia ser a última, mas não conseguia parar. Aquela seria a última tentativa, pois mal sentia a energia em mim, então, ele reagiu dando um pequeno pulo e segurando minhas mãos, seus olhos me fitaram por um momento sem realmente me ver, só então ele percebeu onde estava e o que estava acontecendo e o que havia acontecido com ele. Halles tentou virar o rosto na direção que a bruxa estava mas eu segurei seu rosto e o impedi.
– Não olhe! – Falei apertando o rosto dele.
– Você me salvou...? – Ele perguntou incrédulo.
– Você me salvou primeiro. – Dei meio sorriso a ele.
– Mas eu te trouxe para cá!
– Não estrague o momento! Por favor! – Revirei os olhos, novamente, o som das pedras rolando abafou o som de minha voz;
– Halles, a montanha está desmoronando! Temos que sair daqui! – Levantei puxando-o para cima.
– Só tem uma saída. – Ele abriu as asas pegando-me no colo e disparando em direção a saída, a cada segundo que passava, podia ouvir e sentir a montanha se desfazendo, Halles grunhiu aumentando a velocidade e tentando sair pelo mesmo caminho, antes que fosse coberto.
– Não podia ter controlado melhor o poder? Tinha que derrubar a montanha? – Ele resmungou.
– Não aprendi a usar meus poderes! – Reclamei.
– Precisa aprender!
– E você precisa aprender a ouvir os outros! – Rosnei, ele encolheu os ombros.
– Desculpe. – Dizendo isso, disparou para fora da fenda, que graças aos céus, ainda estava aberta. Ele parou a alguns metros da montanha e observou enquanto ela desmoronava, porém, antes que desabasse por completo, Halles segurou-me com um braço só e moveu a mão em direção as montanhas, recitando uma grande quantidade de palavras na linguagem antiga, palavras quais eu jamais ousaria pronunciar. Então, a montanha se acalmou, e a cidade sobre ela, foi refeita. Olhei para ele espantada, Halles respirava com dificuldade agora, mas tinha um sorriso satisfeito no rosto.
– Incrível! – Falei.
– Um acréscimo de poder, graças à Lua de Sangue! – Ele deu um meio sorriso. – Não podia deixar a morada da Lua desaparecer. Ele olhou triste para baixo, para a fenda na montanha, e com mais algumas palavras, aquela fenda se fechou também.
– Quero ir para casa! – Falei.
– Parece bom. – Ele suspirou e voou em direção ao Vale da Lua.
14
O Templo Mardam
Era início da madrugada quando nos aproximamos de Arizal, os ventos gelados balançavam as arvores sempre verdes daquele local, mas sem deixar que a neve caísse ali, a lua vermelha deixava tudo ao redor com um brilho assustador, como se a própria neve estivesse coberta de sangue. Halles voava baixo, quase perto da estrada, quando pouco mais à frente, nos deparamos com um grupo muito grande marchando em direção ao sul.
Sorcys e Mardans seguiam juntos em direção a Montanha do Caos, mas pararam ao verem que nos aproximávamos. Meu pai e uma mulher correram à frente dos outros e nos alcançaram quando pousamos na estrada. A mulher se lançou contra mim, apertando-me em seus braços com tanta força que o ar escapou de mim.
– Ellyn! Você está bem? Está ferida? – a mulher perguntou, passando os dedos sobre o arranhão em meu rosto.
– Estou bem... – Ela entendeu que eu ainda não a conhecia, mas aquele não era momento para apresentações, mas sim para descobrir o que aconteceu. Ceiran se aproximou, vindo do meio da multidão atrás de meus pais, sem aviso ele passou por mim e avançou para Halles, acertando-lhe o rosto em cheio com um soco. Halles caiu no chão, cuspindo o sangue e bufou, mas foi impedido de revidar por duas Sorcys que saltaram sobre ele também, prendendo-o no chão.
– Deixem ele em paz! – Esbravejei quando vi a Sorcys puxar uma espada. Ceiran olhou surpreso de Halles para mim. – Ele já teve mais do que merecia! – Protestei sob o olhar tenso da bruxa que o segurava.
– Tori, se ela diz, deixe-o. – Disse a mulher que ainda estava com os braços ao meu redor. A bruxa puxou Halles para cima e prendeu os braços dele.
– O que houve? – Meu pai perguntou, não para mim, mas para ele, Gwyndion estava agora ao lado de meu pai, os olhos prateados fixos em Halles, sabia o que ele estava fazendo, estava obrigando-o a dizer a verdade.
– Libertei minha mãe do lacre! – Ele respondeu com uma careta de dor. – Usando o sangue de Ellyn, mas fui enganado pois ela não era o que eu achava que fosse, então lutei contra ela quando ela tentou matar Ellyn, e Ellyn matou a nós dois quando eu mandei que fizesse. – Dessa vez, todos os olhares estavam em mim.
– Se ela te matou, como está aqui? – A bruxa chamada Tori perguntou.
– Eu não sei, ela me trouxe de volta. – Disse ele olhando para mim agora.
– Por que a salvou se foi você que a levou daqui? – Ceiran perguntou, justamente o que eu queria que ninguém perguntasse. Halles manteve os olhos nos meus, e deu um breve sorriso antes de responder:
– Porque eu me apaixonei por ela, e não ia deixar que fizessem mal a ela. – A mulher me apertou mais em seus braços, xingando uma dúzia de palavrões diferentes. Muitos atrás de nós que escutavam o interrogatório começaram a murmurar.
– Ela está morta então? – Gwyndion perguntou e Halles assentiu, então a multidão atrás de nós gritou e aplaudiu, levantando as armas e comemorando. Halles baixou os olhos, senti pena dele, ele foi enganado e no fim, ela nem sequer ligava para sua existência.
– Vamos voltar para o Vale e comemorar! – Meu pai falou abraçando-me e beijando minha testa. – Aliás, Ellyn, conheça Júlia, a Senhora da Lua, sua mãe! – Ele sorriu de forma gentil para ela, e ela apertou um pouco mais os braços ao redor de mim.
– É um prazer poder revê-la! – Ela acariciou minhas bochechas com as mãos e sorriu, Maddox foi para o lado dela e segurou-a pela cintura, e a caminhada de volta ao Vale pela estrada congelada recomeçou.
A neve começou a cair novamente, o frio intenso estava me incomodando um pouco, mas os bruxos dos dois clãs comemorando a morte da bruxa, me manteve em silêncio. Olhei para trás, onde Tori e a outra bruxa ainda traziam Halles preso por grilhões, ele mantinha os olhos baixos, decepcionado, magoado, arrasado. Ceiran se aproximou de mim, mas antes, ergui a mão pedindo que ele esperasse e fui até onde Halles estava. Toquei em seu ombro de leve, ele me encarou com os olhos vermelhos faiscando e desviou o olhar novamente.
– Sinto muito. – Falei.
– Por tê-la matado? Não sinta, eu que sinto por não ter acreditado no que me disseram.
– Não por isso, por ela não ter mudado, pelas coisas que ela lhe disse... – Ele ergueu as sobrancelhas e sorriu um pouco.
– Você devia me odiar! Eu que te levei para aquela situação e mesmo assim você está aqui, tentando me consolar?
– Você lutou pelo que acreditava, mesmo que por uma causa errada, mas não desistiu! – Falei, ele olhou para frente, onde Ceiran o fulminava com um olhar, mas Gwyndion e meu pai o mantinha lá, e parecia que ele tentava a qualquer custo vir até onde estávamos.
– Foi minha culpa seu irmão morrer. – Então parei de andar, Tori e a outra bruxa também pararam, segurando-o.
– O quê? – Ele abaixou a cabeça novamente, contei sua respiração enquanto esperava que ele respondesse.
– Eu os levei até o vale e comecei a briga, Fergus e Ceiran começaram a brigar, mas Gwyndion não deixou que Ceiran o enfrentasse, então Fergus atacou Gwyndion que apenas se defendeu... – Ele parou para olhar o grupo que caminhava em direção ao Vale, Ceiran, Gwyn e meu pai haviam parado também. – A espada de Fergus atingiu a esposa de Gwyndion, e ele matou Fergus por isso, mas nada daquilo teria acontecido se eu não os tivesse guiado até o Vale. Sinto muito mesmo, Ellyn! – Ele implorou, estendendo a mão para mim, mas esquivei dele e respirei fundo, sentindo uma dor intensa em meu peito.
– Estamos quites então... – Falei através das lágrimas que lavavam meu rosto. – Uma vida por outra. – Virei as costas para ele e fui até o grupo à frente. Eles me olharam, mas entenderam que eu não ia falar nada, então, continuaram a andar.
– Ellyn, te devo uma explicação sobre o humano... – Gwyn começou a falar, mas o interrompi com um meio sorriso.
– Acabou o “bruxinha” de vez, não é? – Ele olhou para trás, depois para mim novamente e pigarreou. – Não se preocupe, Gwyn, eu teria feito o mesmo com qualquer um que machucasse alguém que amo! – Mesmo sentindo aquilo me rasgar por dentro, eu tive que dizer, pois era a verdade. Gwyn me encarou por um momento e então relaxou, fazendo uma pequena reverência.
Reduzi o passo, ficando um pouco para trás e lancei um olhar para que Ceiran fizesse o mesmo, ele se aproximou de mim, os cabelos ruivos estavam trançados, cobertos de neve, mas havia um pequeno sorriso em seu rosto.
– Te devo desculpas também... – comecei, mas ele não deixou que eu continuasse, Ceiran segurou meu rosto e me beijou, apertando os dedos no meu quadril. Queria rir de sua demonstração territorial se não tivesse gostado tanto dela, da forma que queria mostrar aos outros que nós éramos um do outro.
– Eu te perdoei na mesma hora, Ellyn! Não precisa pedir desculpas! – Ele pegou a capa que usava e a colocou em volta de meus ombros, colocando o capuz sobre minha cabeça a passando o dedo de leve sobre o corte seco em minha bochecha.
– Mas eu ainda me sinto mal! – Choraminguei, entrelaçando meus dedos nos seus e apertando sua mão. – Peça-me alguma coisa! Qualquer coisa! E eu farei! – Ele então mordeu os lábios e sorriu maliciosamente.
– Não, prefiro não fazer isso, depois vou ficar com a consciência pesada achando que aceitou por tentar me recompensar! – Ele desviou o olhar e me puxou pela cintura, caminhando ao meu lado, já estávamos quase na entrada do Vale agora.
– Sabe, tive um sonho estranho algumas noites atrás... – Falei, mas fui interrompida por gritos que vinham de dentro do Vale. Uma coluna de luz prateada se ergueu no canto esquerdo da cadeia de montanhas. Ceiran congelou ao meu lado, ele olhava para cima, para a coluna de luz prateada boquiaberto, os cabelos de minha nuca se arrepiaram ao ver aquela luz.
– Para dentro! – Gritou Maddox para o grupo, todos correram para dentro, as Sorcys porém, abriram suas asas e mudaram de aparência, mostrando suas verdadeiras formas, os espinhos, a pele branca-acinzentada e pequenos chifres enrolados em suas cabeças.
– Chifres? – perguntei, Ceiran assentiu devagar.
– Apenas as fêmeas os têm! Assim como os espinhos na coluna também! – Ele explicou rapidamente enquanto corríamos para dentro do Vale. Meu pai estava parado do lado de dentro dos portões, olhando assustado para três mulheres de pé na ponte que ligava a cidade ao templo na pequena ilha. Elas estavam cobertas por tecidos brancos finos, que mal lhes cobriam a nudez e caminhavam sobre a ponte congelada de pés descalços, como se o frio não as incomodasse. Uma era loira e baixinha, mas ainda assim parecia perigosa, a do meio tinha a pele ébano e olhos prateados, cabelos curtos encaracolados e a terceira tinha longos cabelos negros e olhos brancos e encarava o nada, as três estavam com os rostos sujos de sangue.
Aquelas mulheres emanavam um poder sombrio, como se as próprias sombras respondessem a elas. Aos pés das três mulheres, havia uma mulher caída, coberta de sangue e uma criança agarrada a ela, chorando e gritando.
– Que diabos... – Ceiran me apertou ainda mais contra ele e olhou por cima do ombro, para as Sorcys que mantinham Halles preso, mas para minha surpresa, elas o haviam soltado e entregaram uma arma a ele.
– Quem despertou as Matriarcas? – Gritou meu pai, a voz como de mil trovões ecoou pelo Vale, todos que estavam de pé ali, se prostraram baixando os olhos.
– Foi dada a ordem há vinte anos, que quando Breedja despertasse, alguém deveria vir até nós e nos acordar de nosso sono, para que nos livrássemos no mal que desceria sobre a terra! – A mulher do meio cantarolou, dando alguns passos pela ponte, passando por cima da mulher e da criança, sua boca ainda estava suja com o sangue dela.
– Quem desobedeceu as ordens? – Perguntou a outra delas, que tinha os cabelos curtos e brancos, e olhos negros como a noite.
– Onde está a Mardam que despertou Breedja? Ela deve ser punida! – Disse a última, saindo da ponte em direção a meu pai, ele não se curvou, como outros fizeram a presença delas.
– Não há necessidade da intervenção de vocês! – Disse minha mãe, apertando a mão de meu pai com força. – Breedja está morta, a Mardam a matou! – Ela completou, as três mulheres olharam em nossa direção, com sorrisos cruéis nos rostos perfeitos.
– Ah, minha querida bruxinha Sorcys, nós banimos vocês do Vale, o que estão fazendo aqui? – Ronronou a bruxa do meio, aproximando-se demais de minha mãe, pelas minhas costas, Halles se aproximou e colocou uma arma em minha mão sem que Ceiran percebesse, depois se afastou novamente. Engoli em seco, olhando-o de canto de olho. Halles fez um breve aceno com a cabeça e estendeu a mão, um aviso para que eu esperasse o sinal, para minha surpresa, Ceiran estava olhando-o também e havia entendido o recado, pois sua mão estava pousada sobre a espada em seu cinto.
– Nós unimos os clãs novamente, Hana. – Disse meu pai para a bruxa de pele escura.
– Sem a nossa autorização? – a terceira rosnou, dando um passo à frente, as sombras dançando ao redor dela.
– Sim, Kurai, dispensamos suas opiniões, já que é um assunto antigo e que não precisa ser discutido. – Ele retrucou, a bruxa de cabelos curtos semicerrou os olhos, mostrando os dentes para ele.
– Ah, mas a verdadeira ameaça ainda não foi destruída!
– Claro que foi! Breedja está morta! – Foi Gwyndion que falou agora, irritado com as mulheres.
– Vocês não estão entendendo! – Uma Sorcys estava parada ao lado de Halles, com as mãos carinhosamente sobre os ombros do jovem.
– Rajina, o que quer dizer com isso? – Minha mãe perguntou a bruxa, que deu um largo sorriso psicótico, tirando um par de adagas do cinto.
– O real motivo para elas terem mandado executar todas as fêmeas Mardans... – Ciciou a bruxa, limpando as unhas com uma das adagas. – Elas não estavam preocupadas com o retorno de Breedja, mas sim com as próprias vidas!
– O quê? – meu pai rosnou, olhando de forma ameaçadora para as três Mardans em sua frente.
– É isso mesmo, Senhor das Tempestades, suspeitei disso desde o começo, mas fui investigar e cheguei à conclusão de que com o poder que elas possuem, elas poderiam ter matado Breedja facilmente, sem precisar sacrificar ninguém, mas elas o fizeram porque apenas outra Mardam fêmea pode substitui-las! Elas não queriam abandonar o templo, elas queriam viver para sempre, então, usaram a prisão de Breedja como a desculpa que precisavam para se livrar das meninas Mardans e expulsar as Sorcys daqui, assim, não haveriam mais nascimentos de fêmeas Mardans, e elas estariam seguras! Poderiam viver para sempre! – Com a explicação de Rajina, as três se afastaram um pouco, amedrontadas, mas então sorriram para a bruxa ao lado de Halles.
– Como chegou a essa conclusão absurda? – Perguntou Kurai olhando Rajina com desprezo.
– Por documentos que achei no castelo de Iriel! Documentos raros e antigos, que contavam uma bela história de um clã de bruxos com dois lados iguais! Eles eram chamados os Cyfars de luz e sombras, composto por bruxos das sombras e bruxas da luz! Mas dizia nesses documentos, que as três soberanas dos Cyfars dividiram o clã em dois e os separaram em Sorcys e Mardans! – Rajina rosnou, desdobrando um pequeno tecido com um símbolo negro, uma lua crescente destro de um círculo negro.
– Essas são as marcas do chão do templo! – Meu pai olhou o tecido e voltou os olhos para as bruxas. – Então é verdade?
Elas sorriram, abrindo as mãos e liberando nuvens negras pelo vale, minhas pernas cederam e me dobrei quando aquilo me atingiu. Ao olhar em volta, percebi que todos os Mardans estavam prostrados também, apenas as Sorcys continuavam de pé.
– Está na hora de fazer outra limpeza, irmãs! – Disse Kurai para as outras duas bruxas. Elas então juntaram as mãos, fazendo uma onda negra varrer o vale, a dor me consumiu por completo, parecia que algo me rasgava de dentro para fora.
– Ahh, ali está a fêmea! – Disse Hana aproximando-se de mim, mas Ceiran e Halles se colocaram entre mim e ela.
– Ahh, sentimos muito, vovós! Mas hoje é Lua de Sangue e vocês são Mardans! – Halles disse com um pequeno sorriso no rosto.
As bruxas então atacaram, envoltas em sobras, com movimentos rápidos e fatais como cobras. Não fazia ideia de onde elas tiravam as armas, mas atacavam com ferocidade Ceiran e Halles.
– Acho que não! – Disse uma delas, quando minha mãe as atacou com as adagas em punho. – O sacrifício que nos deram era sangue mágico! – Hana mostrou os dentes, atacando minha mãe com uma lança, mas ela defendeu com as adagas, formando uma barreira.
A luta dos seis seguia feroz, as outras Sorcys, que achei estarem só assistindo, faziam um círculo ao redor de onde a luta acontecia e delas saiam pequenas quantidades de energia, que pulsava em direção aos três, enfrentando as bruxas.
Ceiran estava em uma luta difícil contra a bruxa de pele ébano, eles cruzavam espadas de forma que quando as lâminas se chocavam, raios saiam delas.
Minha mãe também estava concentrada em sua luta contra a bruxa de cabelos curtos, e por mais que lutassem, por mais que atacassem com todas as suas forças, nada daquilo adiantava, a força delas parecia ser eterna.
Porém, no meio da confusão, alguém me tirou do chão, passando os braços ao redor de minha cintura, coloquei a mão sobre seus ombros, então, sem aviso, começamos a correr em direção ao templo.
– O quê... – Mas a bruxa de tranças vermelhas no cabelo fez um sinal para que eu me calasse e continuou a correr, olhando de vez em quando para trás, para a luta. Nós estávamos sendo seguidas por Rajina, seguidas não, escoltadas!
– Vamos destruir essas cadelas velhas agora! – sussurrou para mim.
– Como?
– Elas só podem ser mortas, se outra Mardam assumir o posto como sacerdotisa, como soberana dos Mardans! – Disse Rajina atrás de nós. Foi nesse momento que as três perceberam o que estava prestes a acontecer e gritaram.
– SEGUREM ELAS, SORCYS! – Berrou Rajina por cima do ombro, os cabelos ruivos escuros dançando contra o vento quando ela corria.
A ponte congelada dificultava nossa corrida, de forma que escorregávamos, em cima dela. Já estávamos quase no meio da ponte quando um grito cortou os céus e um clarão atingiu a ponte, poucos metros atrás de nós e a metade da ponte em que estávamos, despedaçou.
Fomos atiradas dentro da água gelada do lago, por sorte os pedaços da ponte quebraram a camada de gelo que havia se formado sobre o lago, se não, estaria em pedaços agora. A água congelante fez o ar de meus pulmões ser expelido e o vestido de lã começou a pesar a ponto de me puxar para baixo. Mas Rajina agiu rápido, rasgando-o com a adaga e me empurrando para a cima, para que a outra bruxa me puxasse.
– Vamos! – Urrou ela por cima do frio, os dentes batendo e a pele arrepiada. – Falta pouco! – balbuciou ela, me ajudando a nadar para a margem congelada.
Cai sobre a neve na margem do lago e mal tinha forças para me mover agora, mas ao olhar para trás, ver todos ainda lutando contra elas, impedindo que elas me alcançassem. Forcei minhas pernas trêmulas a suportarem meu peso um pouco mais e corri até o templo escuro, com Rajina e a outra bruxa ao meu encalço.
– Taynar, não deixe ninguém entrar! – Rajina ordenou e Taynar sorriu, erguendo as lâminas e fechando o caminho até a porta do templo.
As pedras brancas que cobriam a construção, eram cobertas por pequenos cristais foscos, no chão de pedras amarelas e polidas, haviam marcas, as mesmas marcas que o tecido de Rajina exibia. Ela me arrastou até o final do templo, conforme andávamos, tochas eram acesas por magia nas pilastras, fazendo com que as sombras formassem uma espécie de desenho no chão.
No final do templo haviam degraus e três tronos negros aveludados, cobertos por joias e detalhes em ouro. Rajina foi até atrás de um deles e puxou algo que parecia ser uma alavanca, então, em frente aos tronos, uma pedra negra surgiu do chão, redonda, lisa e com poucos centímetros de altura.
– fique de pé ali, Ellyn, depressa! – Ordenou Rajina, sem demora, pulei sobre a pedra ficando de pé no centro e olhando-a trabalhar, pegando uma bacia de ouro cheia de algo que não soube reconhecer, mas parecia estar vivo.
Um estrondo na frente do templo chamou nossa atenção, Taynar estava com as mãos erguidas, mantendo uma barreira na porta, havia uma flecha atravessada em seu peito.
– Taynar! – Gritei.
– Está tudo bem! Apenas façam logo! Não sei quanto posso segurar! – Ela gritou em resposta.
Rajina correu até mim com a bacia em uma mão e uma pequena adaga em outra, sem aviso, ela cortou a palma de minha mão e gotejou o sangue na bacia de ouro. Seja o que for que estava ali dentro, vibrou e se espalhou pelo templo, rodopiando sobre nós numa massa cinzenta.
– O que está fazendo? – Perguntei.
– Transformando você em sacerdotisa! – Disse ela para mim, entregando-me um cálice com uma espécie de vinho. – Agora repita tudo o que eu disser! – Assenti rapidamente, então ela começou a murmurar as palavras em meu ouvido. Engoli em seco, olhei de canto de olho para ela, então repeti:
– Noite e dia, sombras e luz, sol e lua, duas metades que equilibram o mundo, duas forças que equilibram o poder, sem a luz não podem haver trevas, e sem as trevas, não reconheceríamos a luz! – Falei, ela continuou e repeti. – Bem e Mal, que sua harmonia permaneça intocada, que sua paz não seja destruída pelo caos... – Outra explosão, mas ela murmurou “não pare!” – E que a vida e a morte mantenham o ciclo, mantenham o mundo em movimento, que sejam eternas enquanto durarem, que sejam belas e perfeitas, que o esplendor da noite eterna nunca desapareça e que o sol traga sua luz ao amanhecer, e ao se deitar na última vida, que sejamos nós, os simples instrumentos que fazem tudo acontecer... – Repeti, mas antes de acabar, Taynar foi derrubada e as três entraram no templo, seguidas por Ceiran e Halles.
– Termine o Ritual! – Pediu Rajina, colocando-se no caminho com um escudo de luz nas mãos. Apertei o cálice em minha mão e falei:
– ... E eu serei aquela a guia-los pelos caminhos de sombras e luz! – Dizendo isso, bebi o vinho do cálice e o derrubei. Aquela sombra que flutuava no templo trovejou, e rodopiando, atingiu as três Matriarcas, que foram atiradas para trás, então a massa se voltou para mim, cobrindo-me como um manto negro, agarrando em minha pele, transformando-se num vestido feito de sombras. Aquele poder penetrou minha pele e aos poucos foi absorvido, e então desapareceu.
– Elas ainda estão vivas! – Disse Halles pegando uma das bruxas.
– Sim... mas estão mortais! – Disse Rajina com um sorriso triunfante, as três olhavam incrédulas para mim, o ódio estampado nos rostos agora marcados pela idade, o feitiço que as deixavam sair do templo estava chegando ao fim.
Aos montes, Sorcys e Mardans entraram no templo e arrastaram as bruxas para fora, que gritavam e se debatiam, provando o gosto de suas últimas e amargas palavras. Não queria saber o que fariam com elas, bastava de morte para mim por um dia.
O grupo que levava as bruxas, seguiu para fora do Vale, e nós ficamos parados do lado de fora do templo observando aquela cena. A ponte havia sido refeita por magia, Ceiran estendeu o braço para mim, e eu o peguei, assim ele me guiou de volta à cidade do outro lado.
– Onde está minha mãe? – perguntei a Ceiran, vendo que ele estava muito quieto.
– Na sala de cura... Nada grave! – Disse ele quando fiz menção de ir até lá. – O mestre Maddox está com ela! – Eu assenti e suspirei aliviada.
No fim da ponte, a garotinha ainda estava agarrada ao corpo da mulher, os cabelos dourados manchados de sangue e os braços encolhidos. Tori estava ajoelhada perto da criança que não devia ter mais que cinco anos. Me aproximei também, estendendo as mãos para a menininha, que ao me ver ali, soltou a mulher e me abraçou.
– Ela disse que nós íamos para casa! – Soluçou a criança, apertando os bracinhos em meu pescoço.
– Onde era sua casa?
– Naquele mundo onde tem o deserto vermelho! – A menininha respondeu. – Eu nunca vi, mas a mamãe disse que iriamos voltar! – Ela choramingou.
– Qual era o nome de sua mãe? – Perguntei, ela me encarou, os olhos azuis cheios de lágrimas, vermelhos de tanto chorar.
– Tiena. – Respondeu ela com um suspiro triste.
– Vamos arrumar um lugar bem bonito para ela descansar, está bem? – Ela chorou mais. Tori se levantou e pegou a menina no colo, limpando a neve da roupa dela.
– Vou levar ela para dentro. – Disse a bruxa dando um sorriso triste para mim. Pouco depois, algumas mulheres apareceram e recolheram o corpo, levando-a para além do campo de treino. Não queria saber o que estava acontecendo lá fora, mas o som de tambores e gritos fez um arrepio percorrer minha coluna, então, dei as costas para a entrada do Vale e comecei a caminhar para casa.
Ceiran me acompanhou em passos lentos, em silêncio total. A neve por toda a cidade estava manchada de vermelho, mas havia voltado a nevar, em poucas horas tudo estaria limpo novamente. Estávamos em paz agora.
Não fui para casa de meu pai, Ceiran sorriu ao perceber que eu estava indo para a casa perto das paredes das montanhas. Lá dentro, fui direto para a cama e caí nela como uma pedra, meu corpo estava gelado da água do lago e meus olhos ardiam, mas a sensação de que agora ficaria tudo bem me fez querer rir.
– Quando te vi correndo para a floresta, achei que não fosse mais voltar... – Ceiran quebrou o silêncio, sentando-se na cadeira ao lado da cama.
– Achei que não fosse voltar mais, também. – Respondi.
– Derrotou Breedja, as Matriarcas e agora é a sacerdotisa do templo Mardam! – Ele passou os dedos em meu rosto, estava sonolenta demais para discutir e dizer que quase todo trabalho, foi feito pelos outros e que não teria feito nada daquilo sozinha. Ao invés de falar sobre aquilo, continuei o que ia dizer quando chegamos ao Vale.
– Quando estava na floresta atrás da montanha, eu sonhei com você! – Falei, ele ficou completamente parado me observando. – Eu tinha uns sete anos no sonho, e você apareceu como você mesmo, não como raposa! – Ele riu e passou a mão em meu cabelo, sabia que não havia sido um sonho, mas queria ouvir dele.
– Eu apareci três vezes para você, Ellyn. – Ele sorriu. – Uma vez no final do outono, naquele dia das folhas, na segunda vez foi no seu aniversário de dez anos, na segunda Lua de Sangue desde que você nasceu. Duas Sorcys estavam na floresta, muito perto de onde você estava e elas te encontraram, eu mudei para poder impedir que elas falassem de você para as outras, então eu as matei. – Ceiran contou.
– E quando foi a terceira vez? – Perguntei curiosa com a voz embargada e quase fechando os olhos.
– Foi naquele dia da chuva. – Ele sorriu. – Quando você começou a dançar e rir na chuva... eu vou te mostrar! – Ele então se debruçou sobre mim, soprando meus olhos, eu os fechei e então como se estivesse sonhando acordada, as imagens vieram à minha mente.
“Estava dançando na chuva em meio a floresta de Graistar, dando gargalhadas e sorrindo conforme as gotas grossas e frias molhavam meu rosto e meu corpo. Nuvem corria ao meu lado, provavelmente irritada tentando se livrar da água encharcando seus pelos fofos e brancos, de vez em quando ela puxava meu vestido para que eu procurasse abrigo, mas eu a ignorava, sentei encostada do tronco da árvore e puxei a raposa para meu colo.
– Pare com isso, Nuvem! Ficar apenas olhando a chuva cair de um lugar protegido e nunca senti-la na pele, é a mesma coisa que existir mas não viver de verdade! – Falei coçando sua cabeça molhada com as pontas dos dedos, ele então ficou me encarando, em seguida, seu corpo brilhou e a raposa transformou-se em um homem de cabelos ruivos, os olhos cor de mel me encaravam fascinados. Ele estava ajoelhado em minha frente com um sorriso no rosto, não senti medo, aquilo parecia estranhamente comum para mim.
– É muito difícil ficar longe de você assim, Ellyn! – Ele segurou meu rosto e me beijou, passando a língua suavemente sobre meus lábios, eu retribui aquele beijo segurado seu rosto e desenhando seu contorno com as mãos, tentando memorizá-lo, pois sabia que ao cair da noite, eu o esqueceria.
– Então não fique longe! – pedi, ele sorriu em resposta e respondeu:
– Eu nunca estou longe! – Dizendo aquilo, voltou a ser raposa e deitou em meu colo novamente.”
E a memória se desfez.
– Por que eu esquecia você? – Perguntei.
– Achei que fosse mais seguro se você não se lembrasse de mim! – Ceiran respondeu acariciando meu rosto.
– Posso pedir um favor, Ceiran?
– Qualquer um!
– Nunca mais bagunce minha mente! – Ele riu e concordou, eu acabei fechando os olhos e dormindo com a certeza de que estava em casa, no lugar certo e que nada jamais nos incomodaria novamente.
Agora, eu jamais esquecerei você!
Epílogo:
Os Cyfars
Alguns dias após a Lua de Sangue, o Vale estava mais movimentado que nunca. Sorcys e Mardans estavam juntos novamente, mas agora como o clã Cyfars de luz e sombras, os bruxos mais temidos do mundo. Depois de me tornar sacerdotisa do templo, agradeci por não precisar viver lá ou ter que ficar o dia inteiro naquele lugar, mesmo sem as Matriarcas, aquele lugar me dava arrepios.
Dois dias depois daquela batalha, Ceiran me pediu em casamento, enquanto tentava me ensinar a controlar meu humor, para não deixar o poder que havia herdado das bruxas vazar e machucar os outros, a surpresa foi tão grande na hora, que o Vale inteiro foi coberto por sombras e ficou em escuridão total até que minha mãe conseguiu fazer as sombras se recolherem, e eu aceitei o pedido, claro! Não podia ter ficado mais feliz.
Amanda havia conseguido uma nova, antiga amiga para cuidar da sala de cura com ela, Taynar, que passava a maior parte do dia com ela no salão. As duas se davam muito bem, eram pervertidas iguais, passavam o dia assustando as garotas mais jovens com seus surtos de loucura, parecia que uma havia liberto a personalidade oculta da outra.
Meus pais, Júlia e Maddox estavam juntos novamente, felizes e tranquilos, assim como todas as outras famílias que haviam sido separadas por Breedja e pelas Matriarcas. Todos pareciam felizes, tentando recomeçar o que havia sido destruído por elas.
Tori decidiu ficar com a menina cuja mãe havia sido sacrificada para despertar as matriarcas. Gwendollyn era o nome da garotinha, que descobriram no dia seguinte, ser uma maga. Ela havia feito toda a neve desaparecer do Vale numa explosão de fogo vermelho, que não consumiu as casas por um milagre. Tori, disse ser a melhor pessoa para ensinar a menina a usar magia, uma vez que ela e sua irmã gêmea Taynar, eram mestras em Cidade Arca.
Aquele dia havia amanhecido especialmente bonito, embora a neve cobrisse todo o vale, o sol brilhava no céu azul e limpo e o Vale parecia brilhar. Era para eu ir direto para a casa de banho, onde minha mãe, Amanda e Taynar estariam esperando para me arrumar para o casamento, mas como Ceiran não estava em lugar algum quando acordei, então, aproveitei sua ausência para fazer algo que certamente o irritaria.
Andei pela estrada enquanto olhava a preparação para o casamento no templo, estava tudo muito bonito, decorado com folhas prateadas e flores de inverno, todos pareciam concentrados no trabalho e graças aos céus não prestaram atenção em mim.
Corri até o salão e entrei para ele, esgueirando-me nas sombras para que nenhuma das mulheres que entravam e saiam da cozinha me vissem e fui direto para o corredor dos fundos, onde havia uma escada escondida que levava a um porão, um calabouço, na verdade. O lugar não estava tão escuro, uma corrente de ar fresco circulava ali, mas o frio era ainda mais intenso ali dentro. Segui até o final dele, onde a única cela trancada mantinha-o preso, Halles estava sentado com as costas na parede, olhando pela janelinha estreita no canto superior, que dava uma curta visão do céu lá fora;
– O dia parece estar muito bom hoje. – Disse ele num suspiro pesado.
– Está sim. – Respondi abaixando-me perto da cela, ele desviou os olhos da janela e me encarou, um pequeno sorriso se abrindo em seu rosto.
– Posso saber o que a Sacerdotisa Cyfar está fazendo em um lugar como esse? – Ele perguntou de forma errada, sem desdém ou deboche, mas carinhoso demais.
– Só queria saber se você estava bem. – Ele fez uma careta e suspirou.
– Melhor, graças a você. – Seu olhar ficou sombrio. – Porque não deixou que eu fosse executado? – Perguntou chegando mais perto da grade, os olhos vermelhos e brilhantes tentando ler dentro de minha alma.
– Porque achei injusto, afinal, você não me fez mal de verdade, não intencionalmente. – Conclui.
– Sabe quanto tempo eles pretendem me manter aqui?
– Acho que não muito, Tori quer tirar você daqui a qualquer custo! – Ele deu uma risada divertida e apoiou a cabeça na parede. Não sabia como continuar a conversa, talvez não houvesse motivo para uma conversa.
– Você deveria voltar lá para cima, não é bom deixar o noivo esperando! Eu, no lugar dele, ficaria arrancando os cabelos se você se atrasasse! – Ele deu um pequeno sorriso e tocou minha mão apoiada na grade.
– Ele sabe que não vou fugir! – Retruquei ficando irritada.
– Então é bom que eu esteja preso, se não, roubaria você de novo! – Ele virou o rosto para cima, contemplando o céu através da janelinha.
– Vou agradecer por isso depois! – Falei levantando-me e indo em direção à porta. Halles não falou mais nada, ficou apenas olhando pela janelinha em silêncio, um olhar tristonho em seu rosto.
Saí de mansinho do Salão e corri para a casa de banho, onde as três me esperavam quase doidas, achando que eu não iria acordar. Depois de murmurar umas desculpas, elas começaram a trabalhar em mim, colocando-me num vestido preto muito bonito, com as costas abertas, deixando à mostra a marca das sombras. Elas prenderam meu cabelo num coque alto, com algumas mechas soltas e pequenas flores brancas entre as voltas do coque e em meus braços, desenharam aquelas marcas da lua, iguais às do chão do templo. Quando acabaram, guiaram-me para fora, pela cidade onde todos me olhavam com admiração.
Sentia-me feliz por ter feito algo de bom para todos, embora tivesse feito tudo com ajuda, não podia negar que valeu a pena lutar.
Atravessamos a ponte em passos largos, estava um pouco atrasada, mas eles já deviam estar esperando por isso. O chão do templo estava coberto por um tapete de veludo escuro e longas tiras de um tecido branco e fino, dançavam presas às pilastras do templo.
Elas me deixaram na entrada e foram para o lado esquerdo do templo, sentando-se no chão de pernas cruzadas como todos os outros, olhando para o altar e lá na frente estava ele.
Ceiran sorriu para mim, os cabelos vermelhos estavam soltos, adornados por uma coroa de folhas negras, ele usava túnica e calça branca e assim como eu, estava descalço também. Assim como havia sido instruída por Rajina, fiz uma pequena bola de luz negra na palma da mão esquerda, assim como a pequena bola branca de luz pulsante na mão direita de Ceiran. Sorri de volta para ele e caminhei até lá devagar, no ritmo das vozes suaves de duas Sorcys que cantavam ao fundo do Templo.
Ao chegar no altar, Ceiran me deu a mão e ficamos lado a lado segurando as esferas de luz em frente ao altar. Rajina estava de pé diante de nós e sorria de forma encantadora. Ela fez um breve aceno para as Sorcys que cantavam, quando elas pararam, Rajina começou a falar:
– Luz e trevas, juntas compõe as forças que regem nosso mundo, duas forças que nos mantém vivos, dia após dia e noite após noite... – ela colocou as mãos sob as nossas que seguravam as esferas e as juntou, fazendo as duas se unirem, mas não se misturaram, ficaram apenas circulando juntas dentro de uma esfera maior. – Assim como a luz e a escuridão se completam sem afetar uma a outra, serão vocês, a união entre as duas forças! – Então nos viramos de frente um para o outro, estava tão nervosa que não sabia se conseguiria ouvir minha própria voz acima do som do coração martelando em minhas orelhas, mas o sorriso de Ceiran, os olhos cor de mel e a lembrança daquele dia na chuva, fez com que eu me acalmasse e lembrasse exatamente o que tinha que dizer, os votos trocados, já que eu era uma Mardam das sobras e ele um Sorcys da luz:
– Ellyn, eu serei a sua luz do sol, o brilho que ilumina seus dias, o calor que aquece seu coração e suas sombras. – Ele apertou minha mão.
– Ceiran, eu serei a escuridão tranquilizadora que afasta seus pesadelos, a noite refrescante do verão mais quente, a sombra nos dias de sol, a mansidão que sussurra para sua luz. – Falei, Rajina parecia aliviada de eu conseguir dizer as palavras certas, então aquelas energias dentro da bolha tornaram-se dois anéis, um negro com palavras prateadas e outro branco com palavras douradas, nossos nomes, pude ver quando ela os aproximou de nós. Rajina colocou o anel negro na mão de Ceiran e o branco em minha mão. Ele deslizou aquele anel em meu dedo com um sorriso malicioso no rosto que me fez corar, mas lhe coloquei o anel também, devolvendo aquele olhar e rindo.
– Estão completos! – Disse Rajina segurando nossas mãos, Ceiran beijou as palmas de minhas mãos abertas para ele e todos no templo começaram a aplaudir e cantar. Segurei seu pescoço e fiquei nas pontas dos pés e o beijei com vontade, com alegria, deixando que algumas lágrimas rolassem.
– Até que sejamos apenas sombras na eternidade! – Sussurrei para ele, e ele respondeu apertando-me em um abraço:
– Sim, isso parece bom!
Emilly Amite
O melhor da literatura para todos os gostos e idades