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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ROCK DAS ESTRELAS / Carlos Queiroz Telles
O ROCK DAS ESTRELAS / Carlos Queiroz Telles

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ROCK DAS ESTRELAS

 

                   Olhou! Parou! Sorriu!

"Socorro!" Meu coração disparou no peito. "Socorro!" Minha garganta ficou tão seca que as palavras morreram de sede. "Socorro! Ela vem vindo aí, ela vem vindo... e agora?" Meu Deus! Vontade de ter um ataque, de me fingir de louco e de me jogar no chão com os olhos virados, bem na sua frente...

Vontade doida de agarrar suas mãos... Que horror! As minhas estavam tremendo e molhadas de suor. Melhor escondê-las nos bolsos... Não! Nos bolsos, não. Eu poderia ser mal-interpretado. Melhor atrás das costas, como quem se perfila em parada, peito pra cima, barriga pra dentro.

Ridículo. Parecia que eu tinha engolido uma vassoura ou entrado para o Exército. Agora só faltava bater continência para a Bandeira: "Salve lindo pendão da esperança..." Esperança... Mas que esperança! Ela nem ia me olhar. Quem sabe uma brincadeira...? Ia ser preciso muita coragem.

— Salve lindo olhar da esperança... Olhou! Parou! Sorriu! Era now or neverl

— Oi... Eu preciso muito falar com você. Não sei se você sabe...

— Sei.

"Ela sabe! Ela disse que sabe! O que é que eu falo agora?"

— Você está querendo me namorar?

Foi ela quem perguntou primeiro! Santa Maria, Mãe de Deus! Que menina corajosa!

— Eu... pois é... há muito tempo...

— Como é que é? Quer ou não quer?

Valente e decidida! Eu não podia dar uma de covarde:

— Quero sim! Quero muito! É tudo o que eu mais quero!

— Pois vai ficar querendo.

— Como é que é? Será que eu ouvi direito?

— Eu já tenho um namorado firme. Vê se me esquece...

Cretina! Estúpida! Idiota! Imbecil! Canalha! Lá ia a miserável rebolando pela calçada... E eu... Cretino! Estúpido! Um perfeito idiota! Um completo imbecil! Gozado e humilhado na frente de toda a turma. Droga de vida! Ainda não foi dessa vez!

 

                   Forró no galinheiro

Voltar para casa chutando pedra. Droga de vida! Salve lindo olhar da esperança! Droga de cantada! Droga de esperança! E o pior é que todo mundo viu a minha vergonha! Também... quem mandou eu me arriscar bem na saída da escola? Devia ter telefonado para ela. Devia ter procurado por ela em outro lugar. Devia...

Ai que dor no peito. Respiração presa.Vontade de chorar. Será que é isso que chamam de dor-de-cotovelo? Se for, dói pacas! Com tanta menina dando sopa, por que eu fui me apaixonar logo por ela? E agora ainda vou ter de disfarçar em casa. Se é que já não contaram para a minha querida maninha...

— E aí, malandro? Levou um fora daqueles, não é?

Contaram. Era só o que me faltava: agüentar as piadas da sacaninha. Ela ia tripudiar em cima do meu cadáver. Desgraça pouca é bobagem.

—- Quem se mete com galinha...

O quê? Galinha! Quem? A minha paixão! É hoje que vai acontecer um crime na família!

— Se você tivesse falado comigo antes...

Pronto! E ainda eu ia ter de agüentar os conselhos da sábia senhorita. Mania de bancar a mãe do mundo! Já não bastava ser a primeira da classe todos os meses e desgraçar a minha imagem em casa? Ela pensa que sabe tudo!

— Aquela menina...

— Chega! Eu não quero ouvir mais nada!

— Pergunte para os seus amigos...

— Pare! Pare senão eu mato você!

— Tonto! Parece que só você não sabia...

— O QUE É QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI?

Era só o que faltava: chegou a mãe! Agora a santinha da Mariângela ia querer transformar o caso em comício. Era melhor pedir arrego:

— Não conte nada para a mãe...

— Conto sim! Você envergonhou o nome da família na escola!

— Como é que é? Repita se for capaz!

— Minhas amigas morreram de rir do seu ridículo...

— Ridícula vai ficar a sua cara quando eu pegar você! Está querendo briga, vai ter briga. Ou pensa que vai ficar me humilhando de graça? É hoje!

Era... Mamãe percebeu que estava na hora de entrar no meio da briga:

— CADA UM PARA O SEU QUARTO!

— Mas foi ela quem me ofendeu!

— Eu não quero mais ser sua irmã! Daqui para a frente faça o favor de fingir que não me conhece!

— Com muito prazer!

— Principalmente quando resolver namorar as galinhas da escola!

— Melhor ser uma galinha magra e bonita do que uma pata gorda e feia como você!

Essa pegou no queixo! Bem feito! Mas aí foi ela quem avançou. E avançou em silêncio — o que é sinal certo de ataque bravo. Só pelo ódio que brilhava nos olhos da pata enfurecida eu já me sentia vingado.

- CHEGA! CHEGA! CADA UM PARA O SEU LADO!

Dessa vez o tom da mamãe não permitia desobediências. Mais um pouco e a mesada estaria seriamente comprometida. Esse risco a palmípede ofendida não queria correr. Nessa hora, é claro, a artista da Mariângela começou a soluçar. Truque velho e infalível. Assim a culpa final acabava sendo minha...

— Fingida...

— CALE A BOCA E VÁ TAMBÉM PARA O SEU QUARTO!

Agora só faltava a última e definitiva ameaça:

— QUANDO SEU PAI CHEGAR, A GENTE CONVERSA. Pronto. Não faltava mais... Merda de casa! Merda de irmã!

Merda de família! Ai que vontade de chorar! Chorar de raiva da escola, dos colegas, do mundo! Chorar de raiva do fora! Chorar de raiva daquela...

— Calma, meu filho.

Depois de tamanha humilhação, ainda ia ter de ficar de castigo! Não era justo! Mamãe percebeu que dessa vez a fungada não era de fingimento. O tapinha nas costas foi a gota que faltava para o soluço virar choradeira.

— Não esquente, Mané. Vá descansar no quarto.

O que restava de raiva virou tristeza. Nem deu para bater a porta com força (sempre um bom final para uma grande cena).

 

                   A dona do mundo

Quando eu era menor cansei de ouvir papai dizer: "Vá chorar na cama, que é lugar quente!"

Não é que papai tinha razão? Com a cabeça enfiada no travesseiro e a humilhação atravessada na garganta, eu funguei, solucei, berrei, gemi, babei, entortei a boca de raiva... e me acalmei. E depois ainda dizem que homem não deve chorar...

— Norminha! Norminha!

A memória da gente é muito sem-vergonha. Fica sempre reprisando na cabeça as horas de maior sofrimento. Tudo o que eu queria era mudar de pensamento, de emissora, de programação... e nada!

— Salve lindo olhar da esperança!

Nada podia ser mais ridículo! E agora eu ainda conseguia ver a cena de fora. Com todos os detalhes. Primeiro o fim das aulas e eu, o grande idiota, plantado feito um bobo perto do portão da escola, fazendo hora, à espera da boneca, a imaginação girando a mil por hora: "É hoje, tem de ser hoje, tem de ser hoje!"

Ai, que sonho mais doido! Tudo o que eu queria era chegar mais perto dela, sentir o cheiro dela, sentir a aura dela, sentir os pelinhos do braço dela. Falar parecia uma missão impossível. Me declarar... suicídio! E aí... ela veio vindo. Bonita! Gostosa! Nariz empinado, segurança de dona do mundo...

— Ai, que pernas! Ai, que cabelos! Ai, que olhar!

Para falar a verdade a Norminha era demais. Demais! Demais no jeito de andar. No jeito de sentar. No jeito de cruzar as pernas. Demais no perfuminho gostoso. Demais nas piscadelas... pestaninhas negras viradas para cima. Não havia um único menino da classe que já não tivesse se apaixonado por ela.

"Uma fresca!", era tudo o que as meninas do colégio diziam.

"Pura inveja...", os garotos pensavam e não diziam.

E, ainda por cima, aquele sotaque de artista da Globo, cheio de essesss e sussurrosss de promessasss. Tinha de ser carioca... Desde a sua chegada, a Norminha fez um estrago! Torpedo moreno no coração dos pobres coitados da Vila Clementino, que não entendiam nada de mar nem de ondasss, nem de curvasss tão perigosasss...

— Ai, que tentaççção!

Um a um, foram todos derrapando no visgo dos olhos verdes da Norminha. Por causa dela irmãos brigaram com irmãos e amigos se atracaram com amigos. Os melhores alunos da escola se envolveram em deprimentes e inexplicáveis recuperações. Notas e prestígios desabaram da noite para o dia. Pais, mães e mestres arrancaram cabelos. A Norminha não perdoava. Eu sabia... um dia chegaria a minha vez.

"Salve lindo olhar da esperança..." Eu achei que a carioca iria gostar da brincadeirinha. Ai de mim! Tanta encucação de frases bonitas, convites amáveis, pensamentos inteligentes... pra quê? Tinha até decorado uns versos do Vinicius para causar boa impressão:

"De tudo ao meu amor serei atento..."

Mas que atento nem meio atento! Treino inútil em frente ao espelho do banheiro, ensaio de boas Manéiras... e até dente escovado no capricho! Pra quê? Na hora do pega-pra-capar tratei a menina como se fosse uma bandeira! Droga de criatividade fora de hora!

"Salve lindo olhar da esperança..." Quem deu bandeira fui eu. Resultado: caí do mastro... e me enrolei na cordinha! E a tropa inteira perfilada na calçada da escola ficou batendo continência para a minha queda. Também... quem é que não embarcaria naquela provocação: "Você está querendo me namorar? Quer ou não quer?"

O que mais eu podia fazer? Abanei o rabo e cheguei rastejando como um cachorrinho à espera de agrado: "Au! Auuu! Auuuuuu!"

 

E agora estou aqui, deitado na cama e uivando como um lobo velho abandonado. E o pior é que nem consigo ter raiva da Norminha. Ela me humilhou em público, pisou no meu moral e eu ainda continuo pensando no seu beicinho... Maldita! Maldita, nada! Maldito sou eu, que me apaixonei por ela...

"De tudo ao meu amor serei atento, antes e com tal zelo e sempre e tanto..."

Será que poesia serve para alguma coisa? Hino à bandeira eu já vi que é porcaria. E se eu...? Bobagem... Depois do fora de hoje é muita humilhação insistir no caso. Melhor arranjar outra.

Quem sabe a Vera, a Simone ou a Lenita... essas eu acho que topam me namorar.

Eu podia dar um belo troco para a bandida. Seria uma espécie de vingança, um atestado público de que eu não sou um pobre coitado. Um qualquer que pode ser chutado por aí sem mais essa nem aquela. É... pensando bem, quem sabe a Lenita?

Quem sabe nada! Eu estou é com medo de tomar outro fora. Mas ainda deve haver algum jeito, alguma forma de mostrar para ela... E se eu tentasse escrever uma poesia? A professora de Português garante que eu tenho jeito para a coisa.

 

                   Bela Norma, linda Norminha...

Droga! Não é que o nome dela rima... com galinha? Assim não vai sair poesia nenhuma. Mas desistir, não! Eu não desisto! Minha irmã que se dane! A turma que se ferre! O mundo que se estrepe!

 

           Galinha ou não-galinha,

           eu adoro a Norminha!

 

E vamos à luta! Que bruta fome! Acho que eu chorei por mais de uma hora sem parar. Mamãe já deve ter preparado a janta. Só espero que a besta da Mariângela não me encha a paciência de novo.

 

                   Er com er, ão com ão

Graças a Deus terminou o jantar! Mamãe foi superlegal e não comentou a briga da tarde com papai. Ele, como sempre naquela hora sagrada, estava mais preocupado com o Jornal Nacional e nem percebeu os olhares irônicos e furiosos que eu troquei com a Mariângela por cima da travessa de sopa.

Também mamãe não precisava ter servido canja! Justo hoje? A santa irmãzinha passou o tempo todo me gozando:

— Experimente uma asinha, Mané...

Para quem ainda não sabe, o Mané sou eu. Manoel Otávio Leme da Fonseca, para ser mais preciso. Não é um lindo nome? Foi do meu avô, é claro. Muito prazer. Meu único defeito é ter uma irmã...

— Eu adoro caldo de galinha...

Por mais que ela me provocasse, tratei de ficar na minha. O máximo que eu me permiti foi um contra-ataque gastronômico:

— Pois eu prefiro pato à Califórnia... dos bem gordos e com bastante farofa!

Quando o telejornal começou eu aproveitei para dar o fora.

— Com licença, vou fazer a lição para amanhã. A Mariângela ainda ensaiou uma alfinetada:

— A minha eu já terminei à tarde... O que é que você ficou fazendo o tempo todo no quarto?

Delicadamente respondi que não era da sua conta e me arranquei escada acima. Não sei bem por que, mas ninguém pergunta nada quando você diz que vai estudar... Acho que os pais têm medo de checar a informação.

Antes de trancar a porta (coisa que mamãe não gostava) ainda virei para a maninha e, lá do bem-defendido último degrau, bati as asas com força:

— QUACK... QUACK... QUACK!

A pata gorda nem chiou. Foi assistir televisão com papai. Agora eu estou aqui, papel branco na frente, cara de bobo olhando para o espaço, lápis rolando no dedo...

 

Droga! Como é que a gente começa a escrever um poema? Quando você lê ou escuta, a coisa até que parece fácil. Os versos e as rimas encaixados nos seus lugares, tudo muito certinho. Agora, na hora de escrever... por onde será que anda a tal da inspiração? Começo pelo começo ou pelo fim? Sei lá!

Acho que o único jeito é ir escrevendo tudo o que vier à cabeça. Concentrar a idéia no que eu gostaria de dizer para a Norminha. Depois a gente conta as sílabas e vê se tem métrica. Vamos ver...

 

         Você é a minha bandeira...

 

Maldita idéia fixa! Preciso esquecer de vez esse raio de bandeira! Vamos tentar outro caminho...

 

         O que eu quero lhe dizer ...

         do fundo do coração...

 

Legal! Parece até que tem métrica. Vamos ver: uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete sílabas!

Os dois versos certinhos! Acho que eu tenho ouvido bom. Deve ser isso. Agora vai ser preciso combinar as rimas. Vou precisar de um verso terminado em er e outro em ao!

Ler, ver, ter, rever, prazer... Prazer é bom!

Vamos voltar para o começo e ver se o som combina com a idéia:

 

         O que eu quero lhe dizer

         do fundo do coração ...

         é que o meu maior prazer...

 

Está dando certo! Sete sílabas em cima! E agora...

 

     ... é que o meu maior prazer...

     ... é que o meu maior prazer...

         é... pegar na sua mão!

 

Acho que bateu! Coisa de doido! Até que enfim eu descobri minha vocação! Vamos copiar certinho:

 

         O que eu quero lhe dizer

         do fundo do coração,

         é que o meu maior prazer

         é pegar na sua mão!

 

Saí girando pelo quarto, cantando os versos, pulando de felicidade. Está certo que não eram tão bons quanto os do Vinícius ... mas eram meus! Os primeiros versos do poeta brasileiro Mané da Fonseca!

Coisa engraçada. O prazer de ter escrito a poesia foi tão grande que eu até me esqueci da Norminha. Só fui me lembrar dela na hora de pegar no sono, agarrado ao travesseiro...

— Ai, que pernas... Ai, que cabelos... Ai, que beicinho...

 

                   Maldito despertador!

A cabeça da gente é muito traidora. Eu dormi embalado, pensando nas mil e uma maravilhas da Norminha e sonhei com o raio da cena do portão. Pesadelo mais sem-vergonha...

Eu estava peladão no meio do mundo, bem em frente à escola, morrendo de vergonha, quando um engraçadinho me jogou uma bandeira do Brasil. Aí eu tratei de me embrulhar com ela. Fiz uma tanga verde e amarela e ia cair fora quando tocou o sinal de saída, abriram o portão e a manada desembestou para a rua.

— Olha o Mané! Olha a bandeira! Olha ele!

Começou a juntar gente à minha volta como se eu fosse um cadáver de pedestre atropelado. Então apareceu o professor de Educação Física e resolveu que era hora de cantar o hino. Todos se perfilaram e abriram a voz no mais retumbante salve lindo pendão... No meio do coro, uma vozinha aguda enchia de esses a cantoria.

Era ela. Só podia ser ela. A minha amada! A minha musa! A minha deusa! Eu resolvi enfrentar todos os riscos e corri para abraçá-la. Aí, é claro, as mãos se esqueceram de segurar a tanga patriótica e todos acabaram morrendo de rir da minha nobre presença ali... Situação miserável!

Ainda bem que eu acordei logo, antes que a minha cabeça aprontasse outra. Depois, para pegar no sono de novo foi uma luta. E dessa vez nem adiantou ficar fantasiando em cima dos encantos da Norminha. O sonho tinha me posto em dia com a realidade. Tentei pensar em futebol, na final do campeonato entre as escolas do bairro... o jogo deveria ser na quarta.

Quatro e meia da manhã! Droga de despertador! Eu precisava dormir mais um pouco. Às seis em ponto teria de pular da cama, engolir o café e sair correndo para pegar o ônibus. Junto com a pata, é claro. Sempre bem disposta, sempre pontual, sempre pronta antes de mim!

Vira que vira na cama... nada! E para piorar a situação a cabeça resolveu que eu devia me lembrar do poema da véspera. Er com er, ão com ão. Será que estava bãol O orgulho de ter escrito os versos se misturava com o medo de cair noutro ridículo.

Pensa que pensa... resolvi que ia mostrá-los para dona Helena, a professora de Português. Ela gostava dos meus trabalhos e podia me ajudar. Tem muita gente que acha que gostar de poesia é coisa de bicha... Escrever, então! Sei lá... Por via das dúvidas, era melhor manter a coisa em segredo.

Trimmmmmm!

Não é que pensando na minha poesia o tempo passou mais depressa? Agora... bem, vamos para a luta. Pernas para fora... ai, que frio! Droga! Como sempre, é claro que ela chegou no banheiro na minha frente!

— Sai logo que eu estou apertado!

E estava mesmo. Depois de uns cinco minutos de briga, empurros e atropelos, conseguimos chegar juntos à mesa do café. O velho relógio da família, com seus algarismos romanos, traçava uma reta fatídica entre o XII e o VI. A meia hora de aquecimento estava terminando. E toca o ritual! Beijo apressado com gosto de margarina e a despedida de todos os dias:

— Vão com Deus, meus filhos. Cuidado no ônibus. Seu pai disse que, se der, ele pega vocês na saída.

 

                   Trégua familiar

Às vezes Deus tem piedade de mim e reserva para os irmão-zinhos Fonseca dois lugares bem distantes dentro do ônibus. Infelizmente esse não era um dos tais dias de misericórdia divina. Um único banco vazio me obrigou a sentar ao lado da querida maninha.

— Desculpe...

— Parece que eu não ouvi bem? O que foi que você disse?

— Desculpe, Mané. Eu ontem estava furiosa com você. Não devia ter dito o que eu disse na frente da mamãe.

Milagre matutino! Eu nem acreditava no que estava ouvindo. A pata arrependida pedia perdão pelas suas ofensas da véspera. Meio sem graça com a súbita e comovente confissão, eu engoli em seco e tratei de arranjar alguma palavra amiga.

— Deixe pra lá... — foi o máximo que saiu.

Depois de uma pausa e mais duas paradas, Mariângela continuou seus esforços na árdua tarefa de aproximação:

— Você está gostando mesmo dela?

Ih! Eu sabia! A conversa já ia entrar por um mau caminho. Cala-te, boca! Eu me lembrei na hora daquela frase que os policiais americanos usam quando prendem um suspeito: "Tudo o que você disser poderá ser usado contra você".

O único jeito era disfarçar:

— Ela é muito bonita... Todo mundo da turma... Pois é... Eu achei que também...

— Está gostando! Eu já entendi.

Nova pausa constrangedora. Mais uma parada. E eu torcendo para que a gente chegasse logo no colégio.

— Desculpe por ter chamado ela de galinha.

Coitada da Mariângela. Ela até que estava tentando ser legal comigo. Mas o que é que eu podia dizer? Que estava vidrado na Norminha? Que tinha escrito um poema para ela? Que tinha passado a noite em claro? Que estava planejando atacar a Lenita só para fazer picuinha? Deus me livre! Ia ser muito pior.

— Eu podia ter falado namoradeira ou assanhada. Ofendia menos, não é?

Pronto! Ela pensava que mudava muito promover a outra de galinha para namoradeira ou assanhada! Ia começar tudo de novo! Vontade de sussurrar bem pausadamente nos ouvidos da querida irmãzinha: "Nem galinha, nem assanhada, nem namoradeira. O que acontece é que você e suas queridas coleguinhas morrem de inveja da beleza, do charme e da classe da Norminha. É isso!".

Vontade só... Melhor não mexer em assunto que pode feder mais. Fiz cara de quem estava comovidamente grato com as satisfações prestadas e logo depois, graças a Deus, o ônibus chegou à escola.

— Na volta a gente conversa.

A promessa de um futuro papo sobre o assunto teve uma resposta inacreditável. Fui beijado publicamente pela minha própria irmã! Caso espantoso, inédito na história da escola. Todos olharam com ar de reprovação para tamanha demonstração de amizade fraterna. Eu estava ficando definitivamente marcado. Por sorte o sinal tocou e cada um tratou de correr para sua classe.

 

                   Operação Picuinha

Aula de História. Não é o meu forte, nem é o meu fraco. Matéria que só depende de estudo e...

— MANOEL OTÁVIO... ATENÇÃO NA AULA!

O professor Ildefonso (onde já se viu um nome como esse?) era um bamba. Sabia tudo e dava uma aula cheia de casos engraçados e explicações sobre as coisas que estavam acontecendo no mundo. Era quase impossível não prestar atenção no que ele dizia. Por isso eu fiquei meio envergonhado com a bronca merecida.

Eu podia dizer que estava com sono... mas ia ser pior.

A classe riu da minha cara de susto e eu tratei de me concentrar na explicação do mestre:

— Quando os piratas franceses ocuparam o Rio de Janeiro, quiseram transformar o Pão de Açúcar em baguette ou croissant, mas a aventura não deu certo...

Foi só falar em Rio de Janeiro e a cabeça, como se fosse um videogame, pulou para a Fase Norminha. A última e mais difícil, é claro. Com o rabo dos olhos eu olhei para ela, uma fila à frente e três carteiras ao lado.

Imóvel, bela, olhar fixo no professor! Para falar a verdade, em matéria de estudo, a Norminha não era lá grande coisa. Regulava comigo, o que não recomenda ninguém. Vontade de suspirar fundo e de mandar um bilhete para ela:

 

         O que eu quero lhe dizer

         do fundo do coração...

 

Eu, hein? Ih! Ela percebeu que eu estava olhando para ela e ficou se ajeitando na carteira. Ai, que pernas! O melhor era voltar a prestar atenção nos piratas franceses, antes que o professor Ildefonso pegasse de novo no meu pé.

— Para combater os tupinambás, os índios tamoios se aliaram aos invasores... Foi uma comilança danada! Mocotó de bugre com tempero de champignon, patê de corsário com mandioca...

A turma caiu na risada. Sem querer, meu olhar parou no pescocinho bonito da menina que se sentava na carteira da frente. Cabelinhos amarrados para cima, orelhinhas bem-feitas, uma pelugem leve... Até que a Lenita tinha sido uma alternativa bem-pensada.

Rapidinho eu me concentrei na Operação Picuinha! Além de útil, podia não ser assim tão desagradável... A Lenita era muito jeitosinha: olho brilhante, narizinho um pouco empinado, arzinho atrevido, lábios finos, sempre sorridente... Só tinha um defeito grave: era amiga da minha irmã.

Se a Mariângela desconfiasse que eu estava dando em cima da Lenita só por causa da Norminha... isso podia atrapalhar todo o projeto. Era melhor pensar bem no caso, antes de fazer uma besteira. Nesse ponto das especulações a aula terminou.

Uma rápida espiada para o lado... a Norminha estava olhando firme para mim! O coração disparou mais do que coração de piloto de Fórmula 1 antes da largada. Aí... eu me portei como sou: um autêntico e orgulhoso Leme da Fonseca!

"Meu filho! Somos pobres, porém nobres!", papai costumava dizer nas horas em que o orgulho devia compensar alguma carência de ordem prática, especialmente financeira.

Engoli a ansiedade, fingi que a coisa não era comigo e muito gentilmente segurei de leve o braço da Lenita e saí da classe na maior conversa com ela. Agora, pelo menos, a iniciativa da ação era minha. Estava começando o contra-ataque!

 

                   Novas esperanças

No pátio eu fiquei sabendo de duas notícias muito interessantes para os meus interesses românticos. Primeira: a final do campeonato de futebol de salão tinha sido confirmada para o dia seguinte. Segunda: no sábado, o Tiago Maior daria uma festinha na casa dele para toda a classe.

O professor de Educação Física tinha acabado de fixar no quadro de avisos a escalação do time da escola. Eu estava no gol e ia começar jogando. Apesar de previsível (eu era um bom goleiro), o fato me abria uma súbita possibilidade de brilhar diante dos olhos da turma e da bem-amada.

"Amanhã não passa nada...", pensei.

 

O jogo fazia parte de um torneio entre as escolas públicas do bairro, promovido por uma emissora de rádio, e valia taça. Além de definir a escalação oficial do time, o animado mestre-treinador avisou que as aulas seriam suspensas mais cedo, com a condição de que todos fossem torcer pela equipe da escola.

— E tem mais... — ele disse. — O jogo vai ser transmitido ao vivo pelo rádio.

Nessa hora as minhas pernas quase tremeram. Que responsabilidade, meu Deus! A turma chegou mais perto.

— E aí, Mané? Vai lá e segura tudo! Já pensou na emoção? Seu nome vai sair no rádio, hein?

Pouco depois eu fiquei sabendo da tal festa. O Tiago Maior (na minha classe, como na Bíblia, também havia dois Tiagos: o Maior e o Menor) ia reunir a classe inteira para comemorar o seu aniversário. Ele era meu amigão; um dos melhores da turma.

O convite tinha vindo na semana certa. A festa podia ser uma ótima oportunidade para eu tentar outra vez chegar mais perto da Norminha e dar a volta por cima do fora vexaminoso da segunda-feira.

Agora, bem... agora estava tudo nas minhas mãos. Principalmente no dia seguinte, é claro. As minhas mãos não iriam me trair. Eu precisaria defender tudo, tudo! Os canalhas da Vila Mariana que se preparassem!

— Amanhã não passa nada! — grunhi, firmando pensamento positivo.

Uma atuação gloriosa com certeza facilitaria muito as coisas para o fim de semana. Enquanto a cabeça e a imaginação giravam adoidadas com as minhas possíveis proezas futebolísticas, tocou o sinal. Era hora de voltar para as aulas seguintes..

— Vamos, Mané?

Uma vozinha amiga, muito, muito perto, acompanhou um leve roçar de mão... do tipo ponta de unha na palma do próximo. Tudo quase sem querer. Quase tive uma parada cardíaca. Sem olhar para o lado retribuí rapidinho o encosto de mão. Arrepio gostoso... Pois é. Só aí eu olhei:

— Vamos, Lenita.

 

                     Bronca promissora

O resto da manhã passou rapidinho. Por maior que fosse a vontade, não olhei para o lado da Norminha. Tratei de me concentrar no raio do desenho geométrico... o que não era nada fácil. Bem na minha frente, indócil, a Lenita não parava quieta na carteira. Parecia que tinha sentado num formigueiro.

Um pouco antes de a aula terminar, senti que a mãozinha macia atacava de novo. E dessa vez trazia um bilhete muito bem dobradinho. Com cara de quem não quer nada, apanhei a mensagem e, entre um semicírculo e uma tangente, li o recado: "Vamos juntos à festinha do Tiago?".

Pela agitação demonstrada, a Lenita exigia resposta imediata. As tais formigas estavam atacando! Confesso que comecei a ficar com medo. A Operação Picuinha estava indo bem demais para o meu gosto... Era preciso arranjar uma forma de moderar o ritmo da conquista. Pensei um pouco e mandei a resposta:

— Combinado. Só que esse vai ser um segredo só nosso. Não quero que a Mariângela desconfie de nada.

O pescocinho na minha frente deu uma leve sacudida e um polegar virado para cima confirmou que a proposta tinha sido aceita. Bom. Pelo menos eu tinha adiado o problema mais imediato que seria a saída das aulas. Depois... Bendito sinal!

— Amanhã a gente conversa, tá?

Dessa vez fui eu que respondi com uma piscadinha positiva, evitando espichar a conversa. Tratei de juntar as minhas coisas e dar o fora. Quando estava saindo da classe (ó, destino!) esbarrei com a Norminha.

Com a maior e mais séria das gentilezas recuei e abri espaço para ela passar na minha frente. Foi uma linda mesura! A Norminha me encarou firme. Foi rapidinho, rapidinho, mas deu para perceber um brilho de raiva faiscando.

— Seu bobo!

Eu não acreditei no que ouvi. Ela estava furiosa comigo! Saiu pisando firme e nem olhou para trás. Será que... ?

— Sai da porta! Desatravanca, idiota!

Dessa vez, a bronca era da turma que estava atrás de mim e que também queria sair. Mais do que depressa (meu negócio não era chamar a atenção) grunhi uma desculpa e saí a mil pelo corredor. Se ela estava brava daquele jeito... quem sabe?

 

                     O Amarelinho

A Mariângela era quase dois anos mais velha do que eu. Por conta dessa diferença, desde pequena ela vivia se metendo a tomar conta da minha vida. Quando ela tinha quatro e eu dois, vá lá!

Era o dobro da minha idade! Mas agora... que raio de autoridade os seus dezesseis podiam ter sobre os meus quatorze?

— Como é que foi o dia, malandro?

— Fui escalado para jogar amanhã na seleção da escola. Vê lá se eu ia entrar na conversa da maninha! Eu sabia muito

bem o que ela estava querendo saber.

— E vão transmitir o jogo ao vivo pelo rádio! Preciso avisar papai e mamãe. Será que o velho vem buscar a gente?

A Mariângela sacou que eu não ia abrir o bico sobre o assunto de seu interesse.

— Coitado do pai...

— Se ele não pintar em dez minutos a gente pega o ônibus. O trato era esse. Quando achava um tempo para almoçar em

casa, papai nos apanhava antes na escola. Se o carro não quebrasse..., o que vivia acontecendo. Ele tinha um fusca amarelo sessenta e nada... um espanto!

Eu confesso que tinha até vergonha de entrar no carro. A turma da classe dava risada quando o Amarelinho aparecia peidando na esquina:

— Brobrobrobrumrnmmm!

Lá vinha ele! A Mariângela ficava uma fera com as gozações. Eu já tinha acostumado com a nossa eterna e orgulhosa pindura familiar. Situação danada a do pai! A família entrou pelo cano com uma tal de crise do café. Empresas, fazendas... foi tudo para o brejo. Das antigas glórias sobrou a casa em que nós moramos. Grande e caindo aos pedaços.

Depois que meu avô morreu papai acabou deixando os estudos e tornou-se funcionário público. Atraso de vida. Como ele não sabe se promover e é doente de honesto, empacou na carreira. Trabalha como um condenado e no fim do mês... quase nada. Ah... tem horas que o meu maior sonho é ser filho de marajá!

— Pipipipipipipipi!

Depois do pum, o pipi! Mas que buzina encardida!

— Olá, meus filhos!

Papai adorava a gente. Pulei para o banco de trás e deixei o lugar da frente para a "princesa". No caminho, fui contando o caso do futebol e da transmissão da partida pelo rádio. Papai ficou entusiasmado.

— Amanhã vou levar um radinho para a repartição. Quero acompanhar tudo. O pessoal vai torcer comigo, garoto!

"Tomara que eu corresponda...", foi só o que eu pensei. Agora além de impressionar a Norminha eu também tinha de defender a honra familiar. Mais do que nunca eu precisava jogar bem. Essa era uma alegria que eu queria dar ao velho.

 

— Tomara que eu corresponda... — murmurei.

O caso do futebol ainda rendeu conversa bastante para atravessar o almoço e escapar do interrogatório da maninha. Sob a alegação de que eu precisava descansar para estar em forma no dia seguinte, passei a tarde trancado no meu quarto.

 

                  Sessão da tarde

A solidão é uma coisa muito legal para a gente pôr a cabeça em dia. O mundo parece que não entende isso... todo mundo adora andar em bando. Não que eu não goste da minha turma. Eu adoro sair com eles, jogar futebol, ir ao cinema, passear no shopping, barbarizar num videogame, paquerar as meninas e descolar uma festinha de fim de semana.

Bem, para falar a verdade, eu nunca tinha namorado para valer uma garota. Só umas paquerinhas, coisa mais de falar e olhar do que amarração pra valer, com beijo, abraço, amasso... e sei lá mais o quê! Paixão brava (ai, meu Deus, que sofrimento e que emoção!), a primeira era mesmo a Norminha. Será que o plano ia dar certo? Mulher é um bicho tão estranho...

Sono à tarde é coisa que eu nunca curti, mas depois de uma madrugada com a cabeça quente, até que seria gostoso dar uma descansada. Esticadão, barriga para cima, fiquei pensando no de sempre: "Ai, que pernas, que beicinho, que jeito mais gostoso de andar!"

Quando os olhos estavam fecha-não-fecha, o telefone tocou lá na sala. Uma, duas, três, mil vezes.

— Droga! Será que não tem ninguém para atender? Tinha. Dois minutos depois a querida pata choca bateu na porta do meu quarto:

— Mané, Mané! A Lenita quer falar com você!

"Traidora!", foi tudo o que eu pensei, antes de enfiar a cabeça embaixo do travesseiro e embarcar num sono gostoso, com a imaginação solta, voando, voando...

 

         O que eu quero lhe dizer

         do fundo do coração

           é que o meu maior prazer

           é pegar na sua mão.

       "Acho que ainda dá para melhorar este poe...”

 

                   Aquecimento matinal

Jogo de taça é jogo de taça. Acordei assustado, com medo de ter perdido a hora. Bobagem. A família inteira estava ligadona com a história de o jogo ser transmitido pelo rádio. Até a maninha, que detesta esportes em geral e futebol em particular, amanheceu com uma inusitada crise de amabilidade:

— E aí? Dormiu bem, goleirão? Goleirão! Quem diria!

O espírito olímpico comandou o café da manhã. Mamãe estava preocupada:

— Não coma pão demais... para não pesar no estômago na hora da partida.

Papai, orgulhosíssimo com o querido filho, não se cansava de me fazer recomendações:

— Não fique nervoso. Faça de conta que o jogo não está sendo transmitido mas, se for entrevistado, lembre-se de que todo mundo na repartição vai estar ouvindo comigo e torcendo para você.

 

Coitado do papai... Nervoso estava ele. Tão nervoso que resolveu levar a gente para a escola no Amarelinho. O que, pensando bem, era um risco maior do que pegar o ônibus.

— Mesmo que eu chegue atrasado, não tem importância. Hoje quem não pode se atrasar é você.

Mamãe, pela décima vez, deu uma "última" revisada na minha sacola: tênis, meias, sunga, joelheiras e o calção acolchoado dos lados... tudo muito bem lavado e passado. Como não podia deixar de ser, a bênção final foi reforçada:

— Vou acender uma vela para Santa Gema antes de o jogo começar. Vá com Deus, meu filho.

Santa Gema! Era uma santa da devoção da mamãe, só invocada para grandes causas, tipo saúde em perigo, medo de drogas, prova de recuperação e aumento de salário para o funcionalismo. Mamãe estava demais! Para completar o serviço, ainda me enfiou um raminho de arruda na mão.

— Em todo caso, para ajudar, leve isto com você.

— Mãe! Desde quando você deu para macumbeira? Papai, excitadíssimo, já estava no carro. O fusqueta peidava e arrotava furiosamente no seu aquecimento matutino.

— Vamos embora, Mané! — berrou a Mariângela.

Catei minhas coisas, beijei a mamãe e... sentei no banco da frente! A maninha já estava acomodada atrás! Esse, sim, era um verdadeiro milagre! A Mariângela jamais abria mão do honroso posto de co-pilota do Amarelinho. A arruda já estava fazendo efeito.

— Brruumm... Cofcofcof... Prammmm... Pipipipi!

Lá fomos nós! No caminho, aproveitando uma trégua nas recomendações paternas, eu me dei conta do tamanho da responsabilidade que estava assumindo. Que Deus me ajudasse! Eu precisava jogar bem de qualquer Manéira. Além de defender a honra da escola, eu tinha acumulado um inacreditável bando de torcedores especiais: mamãe e Santa Gema, papai e a repartição inteira, Lenita... para manter a picuinha do namoro paralelo e... ELA!, a idolatrada Norminha!

Essa idéia me fez engolir em seco. Será que eu não ia tremer? Como acontece sempre nas horas de sufoco, a irmãzinha captou no ar os meus pensamentos...

— O que será que a Lenita queria com você?

— Sei lá...

— Ela é uma garota muito legal...

__ É...

— Bonita, educada...

— É...

— Bem melhor do que aquela...

Pronto! Era o que me faltava! Agora sim é que eu ia ficar nervoso! Papai percebeu que a conversa ia tomar rumos desaconselháveis para um momento de tão angustiante expectativa esportiva e sacou o cartão amarelo:

— Agora não! Vamos mudar de assunto que hoje não é dia para briga.

Logo em seguida, chegamos à escola. Papai me deu um tapinha nas costas:

— Boa sorte, garotão!

Para a maninha ainda sobrou uma advertência:

— Torça para o seu irmão...

 

                   Ser ou não ser goleiro

A escola estava num agito só. Em frente ao portão, uma perua para levar o time e três ônibus para transportar a torcida. Tio Euclides, o professor de Educação Física, que também era monitor dos escoteiros, ia anotando num caderninho a chegada dos jogadores:

— Assim que o time estiver completo, a gente vai para o ginásio.

Só estava faltando o Gabriel. Esse vivia atrasado e atrasando os outros, mas como era o melhor atacante do time, ninguém reclamava muito. Enquanto o artilheiro não chegava, eu resolvi dar uma sapeada no clima da torcida.

A primeira coisa que eu vi não me deixou nada tranqüilo. Num canto do pátio, perto do banheiro das meninas, a Mariângela e a Lenita levavam o maior papo. Conversa animada, com muitos gestos e risinhos.

Aquele lugar era uma espécie de área reservada para as fofocas femininas. Quando o bando se juntava ali, o assunto era quente! Com certeza a Lenita estava combinando com a amiguinha a melhor forma de me salvar das garras da terrível Norminha.

Nessa hora... nessa hora... nessa hora... uma vozinha cheia de essesss passou rente aos meus ouvidos:

— Estou torcendo por você..., seu bobo!

A paralisia foi instantânea! Nem deu tempo para me virar. Quando olhei para trás, ela já estava indo para os lados do portão com um bando de colegas. A vontade era gritar, berrar, pular, sair correndo e corcoveando pelo pátio feito um burro bravo de rodeio...

—luuuuuuuuuuuu!

Com o coração disparado, percebi que o tio Euclides me acenava perto da perua. O Gabriel já devia ter chegado. Agora... ia ser pra valer. Com o inesperado e empolgante estímulo da minha torcedora número um, eu ia pegar tudo, fechar o gol, defender até pensamento!

No caminho para o ginásio, o professor-técnico confirmou a escalação: Mané (eu), Pedrão, Maurício, Silney, Gabriel e Nando. No vestiário ele ia dar as instruções para o jogo. Queria que todos ficassem calmos e sentados nos seus lugares:

— Vamos poupar energia!

O meu reserva no gol era o Mário Japinha, um amigão. Ele sentou-se ao meu lado e ficamos conversando sobre o raio da nossa posição no time:

— Meu único medo é tomar um gol de cara... — confessei.

— Bobagem. Você sabe que pega bem — ele me animou.

— É... mas o nervoso e a raiva tiram a concentração... Isso já me aconteceu umas três vezes...

— Então faz de conta que a bola não entrou e que o jogo ainda está zero a zero! — aconselhou o Japinha, rindo.

Boa gente esse moleque. Se fosse outro, podia até estar torcendo para eu quebrar a cara e ele ter uma chance de ser titular... Ao contrário, estava me incentivando. E olhe que ele jogava bem... acho que só perdia para mim nas bolas altas e isso era só por causa da diferença de estatura.

O esporte é uma coisa legal. A gente aprende a respeitar os outros numa boa. O cara é melhor, ninguém discute. No fim, o que interessa é o time. Mesmo no banco de reservas, o coração bate como se a gente estivesse na quadra. Agora, essa história de ser goleiro...

Posição desgraçada! Se o time perde, a culpa é nossa. Se ganha, a glória é de quem marcou o gol. Mas, para falar a verdade, desde pequeno eu adorava jogar como goleiro. A emoção do pulo e a alegria de sentir a bola presa nas mãos... Isso sem falar no grande momento: o pênalti!

O pênalti parece coisa de tourada! Só que em vez de sair da frente do inimigo, você tem de pegar o inimigo a unha. Olho no olho do chutador. Adivinhômetro ligado. Para onde vai a bola? E depois, um segundinho de nada para cair do lado certo. Coisa difícil de acontecer... mas, quando acontece, felicidade maior não pode existir.

 

— Pronto! Chegamos! Ninguém esqueça nada e vamos direto para o vestiário.

A voz do tio Euclides me tirou do reino da fantasia e eu caí na real. O melhor da imaginação é que ajuda a passar o tempo. Mas bom mesmo seria eu pegar um pênalti hoje! Ia ser a glória! Ia...

 

                     Nocaute técnico

— Aiiiii! Me ajudem!

Como é que aquilo foi acontecer? A turma me ajudou a levantar.

— Eu acho que escorreguei...

— Alguém vá correndo arranjar gelo! — gritou tio Euclides. "Gelo? Pra quê?", pensei.

A dor no supercílio e o sangue escorrendo pela mão responderam à minha pergunta no ato.

— Você bateu com a cabeça na quina da calçada — grunhiu o Gabriel.

— Vamos levá-lo para dentro — ordenou o técnico.

O pessoal da escola, que estava chegando nos ônibus, percebeu que alguma coisa de errado tinha acontecido comigo. As caras amontoadas nas janelinhas e um silêncio danado substituindo a algazarra e a barulheira de sempre...

"Quebrei a cara...", foi tudo o que eu pensei.

E tinha quebrado mesmo. Sabe Deus como, eu havia conseguido pisar em falso na hora de descer da perua e me esparramado no chão. Deitado no banco do vestiário, com uma toalha cheia de gelo encostada no ferimento, eu não sabia se ria ou se chorava.

Tio Euclides me examinou com cuidado:

— Vai levar uns quatro pontos.

— Não! — eu berrei.

O professor fez uma pausa, olhou nos meus olhos e cumpriu o doloroso dever:

— Você não vai poder jogar com esse corte aberto.

— Fechem isso com bandeide, cola-tudo, esparadrapo, grampeador... fita isolante... — implorei.

— Negativo, Mané. O Mário vai para o gol.

— Eu não vou sair daqui nem amarrado!

— Se você quiser, a gente faz um curativo agora e espera para dar os pontos depois do jogo. É tudo o que eu posso fazer.

— Tá... mas pelo menos eu quero ficar na reserva.

Tio Euclides percebeu que era melhor concordar, antes que eu tumultuasse de vez o vestiário e acabasse com a já abalada moral do time. Aperta daqui, aperta dali, desinfetaram o ferimento e cobriram o corte com gaze e esparadrapo.

"Ridículo...", foi tudo o que eu pensei.

Nessa hora, bateram à porta do vestiário. Eram a Mariângela e a Lenita, que queriam saber o que tinha acontecido. Eu pedi para elas telefonarem para a mamãe avisando que estava tudo bem comigo. E que ela não esquecesse de dar um toque para o velho, para ele não ficar decepcionado na hora da escalação.

A Lenita ainda achou um jeito de me enfiar na mão um bilhete de caridosa solidariedade: "Que pena, querido!"

Querido! Era só o que me faltava! Fechei a porta na cara das duas e fui me trocar. Droga de vida! Mesmo que não fosse para jogar eu queria entrar na quadra uniformizado. Tio Euclides atirou a camisa número 1 para o Mário.

— Pegue essa, Japinha! A gente confia em você.

Eu fiquei com a de número 6, que era a do goleiro reserva. Antes de o time entrar, tio Euclides reforçou as instruções para que todo mundo ficasse calmo.

— Vamos ganhar essa partida em homenagem ao Mané! — ele terminou.

Todo mundo aplaudiu, se abraçou e lá fomos nós para a quadra. Quando eu apareci com a testa rachada a torcida berrou:

— Mané! Mané! Mané!

Só depois eles perceberam que quem ia jogar era o Mário Japinha. Aí, infelizmente, a coisa esfriou um pouco. Na condição de ídolo acidentado fui logo chamado para dar uma entrevista para a tal rádio:

— E então, Manoel, o que foi que aconteceu?

— Foi um acidente bobo... eu caí na hora em que o time estava chegando no ginásio e cortei a testa. O pai e a mãe podem ficar tranqüilos que eu estou bem...

— E vai dar para jogar?

— Não, o técnico disse que não. Eu só estou na reserva para animar os companheiros. É isso aí.

— Muito bem! Um belo exemplo! Obrigado Manoel, e boa sorte para o seu time! — berrou o locutor.

 

                   É canja, é canja...

Coitado do Mário Japinha. Cair numa fogueira dessas não é mole. O time inseguro, a torcida desconfiada e os adversários loucos para pegar o infeliz do reserva ainda frio ou nervoso. E tome chute de tudo quanto era canto da quadra!

— Vai, Mário! Boa, Japa!

Por sorte, as primeiras bolas vieram fracas ou foram para fora. Isso ajudou o Mário e o time a ganhar confiança. Devagar os jogadores começaram a se preocupar menos com a defesa e partiram para cima dos adversários.

— Vai, Gabriel! Chuta, Nando!

A nossa torcida estava na arquibancada em frente ao banco de reservas. De vez em quando eu achava um jeito de dar uma espiada na turma. Uma olhada para a Norma, outra para a Lenita. De repente alguém teve a idéia de puxar o corinho:

 

         É canja!

         E canja!

         É canja de galinha!

         Bota outro time

         pra jogar com a nossa linha!

 

Não sei por que, logo me passou pela cabeça que aquela história de canja de galinha devia ser invenção da Mariângela. Olhei para ela e não deu outra. Estava morrendo de rir. O diabo é que o raio do coro parece que deu azar.

O Silney perdeu uma bola no meio da quadra e o centroavante dos inimigos acertou um bico indefensável no ângulo. Aquela nem eu pegava! O Mário se esparramou todo, mas não teve jeito. Um a zero contra. Logo depois, graças a Deus, terminou o primeiro tempo.

No intervalo tio Euclides fez o que pôde para animar a turma e ainda deu umas dicas extras. O caminho era pela esquerda. A defesa deles não era grande coisa e o Gabriel precisava cair por aquele lado.

— Vamos lá! Calma que a gente ganha essa!

Pois não é que o nosso técnico entendia das coisas? Logo no começo do segundo tempo, na jogada ensaiada, o Gabriel escapou pela esquerda e soltou a bomba. GOL!!! A torcida berrou. A gente se abraçou no banco. Agora eles tinham de atacar também e a coisa ficava mais fácil.

 

         É canja,

         é canja...

 

A nossa torcida recomeçou o maldito corinho galináceo e foi a conta. O adversário é que partiu para cima da gente! Vinha bola de tudo quanto era lado. Um sufoco! Aí começou a brilhar a estrela do Mário.

— Boa, goleiro! Grande Mário!

O Japinha parecia um louco dentro do gol. Pulava de um lado para o outro e não soltava uma! Quanto mais aumentava o perigo, mais ele agarrava. Pegou bola alta, pegou chute cara a cara... um demônio! Nosso time estava completamente perdido em campo, mas a bola não entrava de jeito nenhum. Os adversários começaram a ficar nervosos. E isso era bom para nós. O locutor da rádio gritava:

— A bola não entrou por milagre! Esse goleiro está demais! Se a partida terminasse empatada, a decisão seria por pênaltis, e do jeito que o Mário estava jogando... a taça já era nossa. Foi aí que aconteceu o pior. Menos de um minuto antes de terminar a partida, o atacante avançou sozinho... dessa vez ele ia marcar.

— Vai, Mário! — eu berrei.

O maluco do Japinha não hesitou. Pulou para a frente e abafou a bola na hora do chute. Foi uma pancada muito feia. O adversário não teve culpa mas o braço do Mário fez um barulho muito esquisito. O jogo parou na hora.

— Quebrou, não quebrou... — todo mundo estava preocupado. O Mário saiu da quadra gemendo e o juiz achou melhor terminar a partida. Resultado: empate de um a um. Aí ficou o problema da taça. Regulamento é regulamento... e o locutor da rádio avisou que a decisão tinha de ser nos pênaltis. O patrocinador estava presente e queria entregar o troféu para o vencedor.

"Sobrou pra mim...", pensei.

 

                  A hora da verdade

Tio Euclides grunhiu:

— Não tem outro jeito. Vá lá e veja o que você consegue fazer. Só não ponha a cabeça na frente da bola.

Eu nem sei bem o que senti naquela hora. Mistura de medo com emoção. Que coisa doida! De repente, a bomba estava na minha mão e tudo aquilo que eu tinha imaginado estava acontecendo. O juiz apitou chamando os goleiros e os batedores.

— Mané! Mané! Mané! — a torcida começou a berrar para me incentivar. O Mário, meio branco de dor, fez questão de ficar até o fim da decisão e veio me dar uma força:

— Vai firme que eles estão com medo de matar mais um goleiro...

Eu firmei o pensamento, pensei no papai, na mamãe, pedi a proteção da milagrosa Santa Gema, abaixei a cabeça e fui para a luta. O nervoso era tamanho que dessa vez eu nem quis olhar para o lado da Norminha. A voz do locutor parecia vir de muito longe:

— E lá vai Manoel, o goleiro reserva, também contundido, defender sua equipe na decisão por pênaltis.

O juiz avisou que seriam três cobranças para cada lado. No cara ou coroa, nós resolvemos chutar primeiro. O Nando, o Silney e o Gabriel seriam nossos batedores. Eu só grunhi para eles:

— Eu estou gelado. Não errem, pelo amor de Deus!

O Nando bateu primeiro. Uma cacetada no meio do gol. Por sorte, o goleiro deles pulou para um lado. Um a zero para nós. A torcida berrou. Menos mal. Um pouco mais tranqüilo, eu fui para o cadafalso.

— Onde será que esse infeliz vai chutar?

Rasteira, no canto esquerdo. Nem consegui me mexer. Um a um. Foi a vez do Silney. Eu nem queria olhar. Ele bateu com raiva. Outra cacetada. Gol. Dois a um para nós. E lá fui eu de novo para o sacrifício. Com aquela pressão toda, a cabeça estava doendo muito.

— Chuta em cima de mim, idiota! — grunhi baixinho. Rasteira, no canto esquerdo. Igualzinha à primeira. Dois a dois!

Aí me deu uma luz. Cheguei para o Gabriel e garanti: . — Marca esse que o terceiro eu pego.

Ele fuzilou. Gol! Três a dois! Agora sim, era a minha vez. Se o meu palpite estivesse certo, os adversários tinham ordem do técnico para bater sempre no mesmo lugar. Com muita calma, fui para o centro do gol. Abaixei, preparei o pulo e firmei o pensamento: "Rasteira, no canto esquerdo!"

Nessas horas, o tempo parece que passa em câmera lenta. O juiz apitou. Muito devagar, o cobrador veio se aproximando da bola. Num relance, ele olhou para o lugar onde iria chutar.

"Vai ser lá mesmo!", pensei.

Chute e salto foram quase simultâneos. O corpo e a bola no ar entraram em rota de colisão. Perfeito!

"Vou pegar!", pressenti.

O impacto nas mãos espalmadas e o berro da torcida trouxeram a vida de volta ao seu ritmo normal! Quando o corpo tocou o chão, a bola já estava longe. O primeiro que chegou para me abraçar foi o Mário.

— Mané! Mané! Mané! O ginásio berrava! O mundo berrava! No bolo dos abraços, eu não sabia o que fazer com tanta emoção. E tome choradeira! Depois, com o troféu, a gente foi comemorar na frente da torcida. Aí sim, com muito orgulho e alegria, eu firmei os olhos na Norminha. Ela também estava emocionada. "Olha o bobo aqui...", pensei.

Quase ergui a taça para ela, mas seria dar muita bandeira. Quando percebi que a Mariângela e a Lenita vinham correndo me abraçar, corri para o vestiário.

Duas horas depois, estávamos saindo do pronto-socorro. O Mário com o braço engessado e eu com quatro pontos na testa. Na porta do hospital (como é que papai tinha adivinhado?), o Amarelinho já estava à minha espera.

— Olá, garotão!

Eu abracei o velho quase chorando. Acho que nunca tinha visto meu pai tão feliz. Quando chegamos em casa, descobri que o almoço familiar tinha virado quase uma festinha. Com convidados, é claro...

— Você foi maravilhoso!

Adivinhem quem a Mariângela tinha levado para passar a tarde lá em casa... Bem, já que o ataque era inevitável, eu achei melhor relaxar e aproveitar. Afinal de contas aquele era o meu dia de herói e eu merecia todas as homenagens do mundo!

Depois do almoço, fomos ouvir música no quarto da ma-ninha, conversar sobre o jogo, sobre nada, sobre tudo, sobre a vida. Como não poderia deixar de ser, eu caí na gostosa besteira de ficar namorando descaradamente a Lenita. Mãozinha, agradinho... e quando a querida e compreensiva irmã foi preparar um lanche, o beijo e o abraço mais demorados da minha vida.

Ufa! Que dia!

 

                   Decisões noturnas

Só à noite, na cama, eu avaliei com mais cuidado o que tinha acontecido. A Lenita era uma graça; a tarde tinha sido uma delícia; o beijo e os abraços, uma glória! O problema é que eu não conseguia deixar de pensar na Norminha.

"Acho que a Operação Picuinha foi longe demais...", pensei.

Seriamente decidido a não deixar o caso ir adiante, eu me lembrei de que a aula de Português seria no dia seguinte. Depois das glórias esportivas, precisava cuidar da minha carreira literária. Apanhei o caderno e comecei a trabalhar no poema:

 

         O que eu quero lhe dizer

         do fundo do coração

         é que o meu maior prazer

         é pegar na sua mão...

 

Li, reli e achei que estava muito bom. Só que uma quadrinha era pouco para um amor tão grande. Com a mesma decidida emoção com que tinha defendido o pênalti, resolvi espichar o poema. E entrei pela noite mergulhado em suspiros, métrica, rimas e invenções!

 

                   Sonno un poeta...

Uma das manias do papai é ouvir ópera. Antigamente, quando começava a sessão (quase sempre depois da novela), a Mariângela e eu corríamos para os nossos quartos. Mas, com o tempo, a gente foi se acostumando com as árias mais bonitas. Papai explicava as histórias, traduzia as letras e nós até decoramos alguns pedaços da cantoria.

Acho que a ópera foi inventada por alguém que gostava de cantarolar no banheiro. Naquela manhã, assim que entrei embaixo do chuveiro, eu me lembrei de uma ária da La Bohéme, que papai gostava muito de ouvir. Lá pelas tantas o cantor soltava o vozeirão:

"Sonno un poeta, che cosafaccio?"

Muito animado com as minhas poetizações da véspera, eu agitei o café da manhã familiar com o meu solo interminável. Até papai, inicialmente encantado pela súbita prova de amor ao canto lírico, acabou dando um berro:

— Já sabemos que o poeta não sabe o que fazer! Troque 0 disco!

Eu desci a escada, feliz, dando risada. A Mariângela me olhou com um certo ar de apreensão:

— Além de goleiro, agora também é poeta...

Café engolido, mãe beijada, bênção recebida, lá fomos nós para a fila do ônibus. Decididamente eu estava em paz com a vida. O meu esforço poético noturno tinha sido muito proveitoso. Agora eu só pensava no efeito que os versos causariam no coração da bem-amada...

— Olhe o ônibus, palerma! Está dormindo acordado? Dormindo, não. Sonhando! A quadrinha inicial tinha ficado

boa. Penso que já era verdadeira poesia! Copiada com capricho no caderno de Português ela ia esperar também o julgamento literário de dona Helena. De uma certa Manéira, o poema também era dedicado a ela.

 

                   A Serra do Rola-Neusa

Dona Helena era nossa professora há dois anos. No começo a turma tinha ficado grilada com o seu jeito de dar aula.

— Vamos fazer de conta que cada um aqui é um escritor e a classe é uma Academia de Letras!

— Academia do quê? — a galera chiou.

— Academia de Letras. Cada um de vocês vai ter um escritor como patrono e o primeiro trabalho será estudar muito bem a obra desse escritor. Vamos começar sorteando os patronos!

Ninguém estava entendendo nada, mas sorteio é coisa que sempre anima o ambiente. Dona Helena pegou uma sacola cheia de papeizinhos dobrados; cada um foi tirando o seu e lendo o nome do tal patrono.

Castro Alves! Chico Buarque! Machado de Assis! Jorge Amado! Oswald de Andrade! Jorge de Lima! Monteiro Lobato! Geir Campos! Luís de Camões! Mário de Andrade! Viriato Correia! Alguns nomes a gente conhecia. De outros nunca tinha ouvido falar. Aí chegou a minha vez.

— Vinicius de Morais! — eu gritei.

— Um grande poeta — comentou dona Helena. Terminada a aula, fomos todos para a biblioteca da escola procurar os livros escritos pelos nossos patronos. Na aula seguinte cada um deveria trazer copiado um trecho ou um poema escrito pelo seu patrono. Até que a coisa parecia divertida!

Foi assim que eu peguei gosto pela poesia. Uma descoberta! Para falar a verdade eu, como todos os garotos da minha turma, também achava que essa história de poesia era coisa de menina ou, pior ainda, de bicha.

Depois da primeira aula de dona Helena, meio envergonhado, apanhei o Livro dos sonetos do Vinicius de Morais e o levei para ler em casa. Depois do jantar, enquanto papai atacava de Rigoletto, eu me tranquei no quarto para escolher uma das poesias.

"La donna é mobilei", berrava o Pavarotti.

"De repente, não mais que de repente...", ensinava baixinho o Vinicius.

Que coisa mais bonita! Escolhi o "Soneto de separação" para apresentar na aula seguinte. Com a invenção da Academia de Letras dona Helena conseguiu o milagre de desinibir os alunos.

A aula foi um grande barato. Cada um tinha de ir à frente, subir numa cadeira (cadeira mesmo!) e ler o trecho escolhido. Todos foram muito aplaudidos. O mais engraçado aconteceu com a Neusa. O patrono dela era o Mário de Andrade e a "acadêmica" tinha decorado um poema chamado "A Serra do Rola-Moça". Muito animada, ela começou:

 

         "A Serra do Rola-Moça

           não tinha esse nome não..."

 

E foi contando o tal caso de amor, cada vez mais entusiasmada. Quando estava quase terminando... Desastre! Uma perna da cadeira se quebrou e a pobre declamadora quase se arrebentou no chão. Foi uma gozação só.

— Cuidado com a Serra do Rola-Neusa! — os colegas brincaram.

Depois do susto, a coitada ainda teve ânimo para terminar a sua leitura, num tom dramático muito bem ensaiado:

 

         "E a Serra do Rola-Moça

           Rola-Moça se chamou!"

 

Os aplausos foram tantos que até o Diretor foi ver o que estava acontecendo. Daí para a frente dona Helena virou o ídolo da classe. Se não fosse a sua bendita academia eu nunca teria conseguido escrever o meu poema.

 

                   Crítica familiar

Sem perceber que a enxerida maninha estava me espiando com o rabo dos olhos, abri o caderno para dar uma última revisa­da na obra-prima. Eu tinha mudado aquela história de pegar na mão... achei que era meio vulgar. Agora tinha ficado assim:

 

         Toda vez que eu a vejo

         se agita meu coração

         com um impossível desejo

         de sonho e de paixão!

 

Legal! Estava mil vezes melhor! Vejo e desejo são muito mais poéticos do que dizer e prazer.

 

         Eu sinto sua presença

         sempre tão perto de mim

         como o perfume da rosa

         no perfume do jardim!

 

Mesmo faltando uma rima, acho que ficou jóia. E agora o final... um achado! Uma mensagem cifrada para a minha musa.

 

         Seu amor é minha lei,

         minha norma, minha linha!

         Tudo o que eu quero e que sei

         é que um dia há de ser minha!

 

Será que ela vai entender? Tem norma e tem minha na mesma estrofe. Norma... Minha... Norminha! Deu um trabalho danado fazer essa encaixação...

— Não gostei do final. Está um porcaria comparado com o começo...

Pronto! Eu estava tão enfiado na minha própria inspiração que nem percebi que a querida companheira de banco estava de olho no meu caderno. Tratei de cortar o assunto na primeira:

— Ninguém pediu a sua opinião! Metida!

Como sempre acontece nessas horas, a Mariângela se fez de desentendida e continuou a sua crítica literária:

— Se eu fosse você, trocava a palavra norma por outra coisa qualquer. É o único porém que está estragando o verso... Fora isso, garanto que a Lenita vai adorar...

A pata tinha percebido tudo! Eu achei melhor não dar corda e ver se o assunto morria por ali mesmo. Não era hora de falar da Lenita... e de tudo o mais. Por sorte o colégio estava perto.

Dei uma de ofendido, me levantei e fui para perto da porta do ônibus. Pelo espelho do motorista eu saquei que a sonsa da Mariângela estava morrendo de vontade de rir atrás de mim.

"Aqui tem coisa!", pensei. "Ela está com cara de quem vai me aprontar alguma... mas eu vou descobrir o que é."

 

                   Miss Megera e o Vingador

A chegada na escola foi triunfal. O curativo na testa era uma lembrança perManénte dos meus feitos heróicos do dia anterior. Mais sucesso do que os meus pontos só o gesso no braço do Mário Japinha, a essa altura já coberto de mensagens, desenhos e assinaturas.

Rapidinho, dei uma olhada pelo pátio à procura da Norminha. Nem sinal dela. Só faltava ela não aparecer hoje! Em compensação, flagrei mais um rápido e sorridente encontro da dupla Mariângela e Lenita.

"Tanto tititi deve estar escondendo coisa...", pensei.

A Lenita percebeu que eu estava olhando para o lado delas e, na mais pública demonstração de intimidade, mandou-me um beijo voador. Prudentemente achei melhor ir logo para a classe. No corredor, que ainda estava vazio, quase trombei com dona Helena.

— Bom dia, Mané. Entrando antes do sinal? O que é que aconteceu?

Eu não podia dizer que estava fugindo da Lenita. Então aproveitei a oportunidade para fazer um pouco de média. Puxei o caderno e destaquei a folha com a obra-prima. Não sei por que, mas o coração disparou mais do que antes daquele bendito pênalti.

— Eu queria lhe entregar antes da aula um texto que eu escrevi. É um poema. Não sei se está bom e queria a sua opinião.

Dona Helena percebeu que eu estava ficando meio envergonhado (como custam a passar essas frescuras!) e não falhou:

— Deixe comigo que eu vou ler com calma. E parabéns pelo jogo de ontem! Soube que você salvou a honra da escola!

Nessa hora tocou o sinal e a turma começou a entrar. A idolatrada mestra foi para a Sala dos Professores e eu me mandei para a classe. Sentei na minha carteira, abri o caderno de Inglês e fiz a maior cara de concentração possível. Na cabeça, a imaginação corria solta: "Pensando bem, eu também gosto muito da dona Helena. Não é a mesma coisa que eu sinto pela Norminha. É um outro tipo de atração... uma vontade de estar perto, de saber da vida dela.

Atenção! A professora de Inglês entrou na classe com o seu tradicional mau humor.

— Silêncio!

Ninguém brincava com a fera. Respirei fundo e me preparei para atravessar os próximos quarenta e cinco minutos prestando a maior atenção possível na aula. O que... não ia ser fácil.

— Ih... Lá vem ela!

A Norminha entrou esbaforida, tropeçando na bolsa e nos livros. Como era previsível, não escapou da bronca tradicional:

— Sente-se, dona Norma! A senhora sabe que eu não gosto que ninguém entre na classe depois de mim.

Esse papo de chamar os alunos de senhor ou senhora era um péssimo sinal. O pescocinho da Lenita se agitou na minha frente. A sacana estava se divertindo com o aperto da outra. A Norminha nem respondeu. Era inútil discutir com Miss Megera. Quando ela marcava alguém...

— Dona Norma, vamos ver a sua lição! Apanhe o livro e leia o texto que eu assinalei na última aula.

Pronto! Tinha carimbado a coitada! Aquele dia a Norminha ia sofrer. Ela se levantou meio verde de medo. Não era um texto fácil: Shakespeare. Por sorte eu tinha estudado com atenção, procurando inspiração para as minhas próprias poetagens. Se sobrasse para mim...

 

         "Canst thou, O cruel, say I love thee not

           When I against myselfwith thee partake?

           Do I not think on thee when Iforgot

           Am ofmyself, all-ty..."

 

No all-tyrant a coitada, que já vinha gaguejando, empacou. O pescocinho da Lenita tremia de prazer. Miss Megera, triunfan-te, sapateou sobre o cadáver da infeliz:

— Na próxima aula a senhora me trará esse soneto copiado vinte vezes.

Depois, com o olhar esfomeado de sempre, a querida professora olhou para a classe à procura da próxima vítima. Um pouco mais democrática, ela perguntou:

— Alguém poderia traduzir esses versos?

Essa bola era para mim. Levantei a mão instintivamente. Mais uma vez a classe, pasma, se rendeu ao heroísmo do seu goleiro. Miss Megera sorriu e chutou:

— O senhor tem certeza de que sabe?

— É... eu estudei... acho que sei.

— Então vamos ver o tamanho e a competência do seu... acho. Pode traduzir, senhor Manoel.

Eu tinha me metido numa muito pior do que a do pênalti. A turma, gelada de medo, esperava em suspense. Um suorzinho frio apontou no alto da minha testa, mas agora o jogo estava feito. Firmando as mãos no livro para não tremer, comecei:

Como podes, ó cruel, dizer que... não te amo, se fico... contra mim mesmo... para ser teu aliado?

Pronto. O silêncio total de Miss Megera e da platéia mostrava que pelo menos eu tinha pulado para o lado certo. Mais calmo eu enfrentei os dois últimos versos:

Não é pensar em ti... se de mim me esqueço preso ao amor... tão tirano... que me causas?

Como no dia anterior, eu senti nitidamente a bola batendo na minha mão espalmada e sendo desviada para longe do gol. O corpo relaxou. Eu abaixei o livro e fiquei olhando para a cara da professora. Ela estava mais abismada do que eu.

— Parabéns, senhor Manoel. Uma bela tradução. Pode se sentar.

A bunda bateu com força na carteira. Eu olhei para o lado da Norminha e vi que ela estava muito emocionada. Eu tinha vingado a honra ofendida da minha amada. Vontade de puxar a espada, gravar a marca do Zorro na barriga de Miss Megera e sair gritando pelo mundo: "Aiôôôô, Silver!"

 

                       Frango à vista!

A aula seguinte era da querida dona Helena. Eu estava em plena maré de glória. A Norma me mandava os olhares mais comovidos e espichados, enquanto a Lenita jogava o delicado pezinho para trás da carteira à procura de algum contato mais íntimo. Essa eu driblava... Não escapei porém do bilhetinho.

 

             "Te amo, te quero, te adoro!

             Você é lindo demais!

            Vou te agarrar no intervalo!"

 

Terrível ameaça! Justo agora que a Norminha estava dando aquela bandeira toda para o meu lado? Senti que ia entrar em pane. O corte na cabeça começou a latejar. Depois de defender o pênalti e a tradução eu saquei que essa bola (a mais ameaçadora de todas) ia passar embaixo das minhas pernas. Frango à vista! Sufoco de situação!

"Tenho que dar um jeito de escapar dessa garota!"

Graças a Deus, Miss Megera passou o bastão direto para dona Helena. Sem intervalo entre as aulas, o perigo mais imediato foi provisoriamente afastado. Mas, como sempre acontece quando o professor é bom, a aula de Português passou rápido. Um pouco antes de tocar o sinal, a professora olhou firme para o meu lado.

"Lá vem chumbo!", pensei.

— Para terminar nossa aula eu gostaria de chamar à frente o nosso acadêmico Manoel Otávio Leme da Fonseca. Hoje, antes da aula, ele me entregou um poema de sua autoria.

Zoeira na classe! Decididamente aquele era o meu dia. Dona Helena pediu calma e continuou:

— Eu gostaria que ele mesmo lesse o trabalho para vocês. Por favor, Mané.

Sarava! Santa Gema! Jesus Cristo! Dessa vez com as pernas tremendo pra valer eu fui para a frente da turma. Dona Helena me estendeu a folha com o poema... eu agradeci e ataquei de cor, olhando o mais firme que a situação permitia nos olhos da Norminha.

 

         Toda vez que eu a vejo

         se agita meu coração...

 

Peguei confiança e embalei na declamação, até o grande final do "há de ser minha!". Dona Helena puxou as palmas. Aí... aconteceu a maior desgraça! Uma vozinha fina cortou o ar e o clima:

— Meu poeta!

Apesar da "norma" do verso, a Lenita se fez de desentendida, veio correndo, se jogou nos meus braços e me tascou o maior beijo! Os aplausos se transformaram em delírio. Quando eu consegui me livrar do amasso em público e a poeira baixou... a Norminha tinha sumido.

 

                   Picuinha, pênalti e poesia

Voltei para casa sozinho, chutando lata na calçada. Não quis esperar a carona do pai nem agüentar a irmã no ônibus. Fui a pé mesmo. Mais de oito quilômetros. Triste final para uma seqüência de tão maravilhosos sucessos.

 

Como é que eu ia explicar para ela?

A Lenita já não era problema. Para escapar do beijo interminável eu quase a joguei pela janela. Essa não iria me procurar nunca mais. Quanto à Mariângela, ela também não iria esperar muito para ter o seu troco... Eu ia torcer o pescoço daquela palmípede fofoqueira!

Agora eu só queria saber com que cara iria à festinha do sábado. Tudo que eu tinha montado — Operação Picuinha, Projeto Pênalti e Plano Poesia — tinha ido por água abaixo. Bem na hora em que eu já estava sentindo o gosto da vitória final.

Ela ia me namorar... estava na cara que ia.

Droga de vida! Cheguei em casa arrasado. Recusei o almoço materno guardado em banho-maria e me tranquei no quarto:

— Hoje não saio daqui nem para tomar banho! Droga de futebol! Droga de tradução! Droga de pênalti! Droga de poesia! Droga de irmã! Droga de Lenita! Droga! Droga! Droga!

Tanto praguejei, tanto chorei, tanto xinguei... que acabei me sentindo melhor. Quando a fome apertou, desci para fuçar na geladeira... Santo Deus! Bolo de abacaxi!

Mamãe sabia o filho que tinha. Para mim não há desgraça que resista a um grande, enorme pedaço de bolo de abacaxi. Caí de cabeça na massa fofa, na calda amarela e melada... e voltei a ficar em paz com a vida.

 

                   Febre, alho e limão

Dor de cabeça é pouco. Eu amanheci na sexta-feira com a cuca rachada ao meio. Nada a ver com o glorioso corte esportivo, que já estava até secando, formando casquinha. Eu, que nunca fui de beber mais do que taça de sidra em réveillon e colarinho de cerveja em almoço de domingo, pensei: "Ressaca deve ser isso..."

Acho que era ressaca de excesso de emoções... fora o medo de ter de ir à escola e enfrentar outro round do combate Lenita versus Norminha. Eu, hein... ?

— Vai ou não vai? Resolva logo, antes que eu perca a hora! A fofoqueira estava aflita. Mamãe subiu com o café da manhã.

Olhou a minha cara, entocado dentro das cobertas, viu que dali eu não sairia mesmo e tratou de liberar a pata afobadinha:

— Vá sozinha, Mariângela. Seu irmão está doente.

É claro que a Mariângela não saiu sem deixar no ar o seu comentário sobre o assunto:

— Desde quando covardia é doença?

Depois de meia hora e uma aspirina a dor começou a ceder, o corpo relaxou e os olhos conseguiram suportar a luz. Ufa!

— Deve ser enxaqueca... — comentou mamãe. — Agora fique mais um tempo no escuro até melhorar bem. Eu vou cuidar do almoço. Se precisar, chame.

 

Mais calmo, o cérebro deu a partida e começou a funcionar. Parecia o motor frio do Amarelinho peidando e rateando... Demorou a engatar o primeiro raciocínio: o que estaria acontecendo na escola?

Minha vontade era de que a Norminha desse uma surra na Lenita. Bobagem. A essa altura, o único bandido era eu. Vai ver as duas estavam até conversando sobre o caso no canto do pátio... e dando risada do idiota aqui.

Trimmmmmmmmmmmmm!

O telefone tocou lá embaixo, mas a campainha berrou dentro da minha cabeça...

— Atenda logo, mãe!!!

— Não, ele está com muita dor de cabeça. Só isso. Está bem. Eu digo para ele. Obrigada. Até logo.

Quem seria a alma caridosa? A Norminha, nem pensar. Talvez dona Helena. Com certeza a descarada da Lenita. Sabe-se lá o que a Mariângela teria dito para ela... Graças a Deus, não era nem uma nem outra.

— O Tiago ligou para saber de você, meu filho! Disse que é para você ficar bom logo e não se esquecer da festa de aniversário dele amanhã.

"Ainda bem que eu tenho amigos!", pensei.

Engraçada essa coisa de amizade! Desde pequenos criamos um laço muito forte com os colegas da classe. O esporte faz crescer ainda mais a confiança entre a gente. É uma espécie de trato de lealdade. Um respeita o outro e, se pintar sujeira, pode até resolver o caso no tapa, mas a briga não atrapalha a amizade. Agora... quando as meninas entram na história...

Acho que eu não entendo o que passa pela cabeça delas... Será que vai ser assim a vida inteira? Eta mistura complicada de atração com desentendimento! Você vai de peito aberto, bate com a cara na porta. Volta para casa arrasado, encontra uma carta de amor... Não dá para se prever nada! Parece que no jogo delas não tem regra...

De repente eu percebi que estava muito quente no quarto. Resolvi levantar e abrir a janela. Quando coloquei os pés no chão, o teto girou e eu quase caí no chão:

— MÃE!

O termômetro marcou 39 graus! Droga! Será que eu estava mesmo doente?

— Deve ser gripe. Tome mais uma aspirina e não saia da cama. Se a febre não ceder eu chamo o farmacêutico.

Pânico! E a festa, no dia seguinte? Eu tinha de ficar bom de qualquer jeito.

— Eu quero tomar uma injeção! A mais forte que existir! Mãe que é mãe entende das coisas. Passou a mão na minha cabeça e resmungou:

— Faça tudo o que eu mandar e até amanhã você estará curado. Vou fazer um chá de alho com limão.

Alho com limão! Bom... se fosse esse o preço da cura milagrosa. .. Preparei o estômago para ingerir a poção mágica da bru... da fada madrinha. Logo depois a mãe voltou com a xícara na mão.

— Arghhhhhh!

— Tome tudo!

Difícil inventarem coisa mais amarga e fedida do que aquela. Tapei o nariz e virei num gole. A curandeira ainda me gozou:

— Fique tranqüilo que até a festa também vai passar o bafo do alho... Agora durma um pouco. Você vai suar bastante e acordar bem melhor.

Eu resolvi obedecer. Agarrei o travesseiro, fechei os olhos e limpei a cabeça de tudo quanto fosse idéia nervosa. Principalmente meninas...

 

                   Um raio de luz!

Quando eu acordei não sabia bem onde estava nem que horas seriam. Efeito do chá ou da febre. Aos poucos fui me encaixando na realidade. Era o meu quarto. O raio de luz que entrava pela veneziana entreaberta estava batendo no pôster da baleia azul. Um belo efeito! Com certeza já era de tarde.

— Puxa! Como eu dormi!

Passei a mão na cabeça. Molhada e fria. Graças a Deus! A febre já tinha ido embora. Arrisquei levantar a cabeça do travesseiro. Um pouco de tontura mas nenhuma dor. Vontade de pular fora da cama e tomar uma enorme chuveirada!

"Hoje você não sai da cama..." Lembrei-me da recomendação materna. Era melhor não fazer nada sem consultar a santa curandeira. Nisso, a porta se abriu bem devagar...

— Eu já acordei. Pode entrar, mãe.

Não era a mamãe. Era a pata. Suspiro fundo de paciência fraterna.

— Oi, Mané!

— Oi...

— A mãe foi até o supermercado e pediu para eu ficar olhando você. Passou a febre?

— Acho que passou.

Com muita delicadeza e uma surpreendente dose de carinho a Mariângela sentou-se ao meu lado e colocou a mão na minha cabeça. Essa irmã! Às vezes eu tenho vontade de torcer o seu pescoço. Outras, de abraçá-la e de beijá-la.

— O pessoal da escola mandou um abraço pra você.

— O pessoal... quem? — arrisquei perguntar.

— O Tiago, o Gabriel, dona Helena... e a Lenita.

— Ela está muito chateada comigo?

Mariângela fungou e fez uma pausa inexplicável para quem não gostava de ficar quieta. Eu continuei no vazio:

— Ela é uma garota legal. Eu não devia ter usado a Lenita para fazer ciúmes para a Norminha.

— Pensa que a gente não sabia disso, seu bobo?

— A gente quem?

— Eu e a Lenita, é claro! Você quis jogar com ela... e nós jogamos com você.

— Como é que é?

— Não fique nervoso que a febre volta! Depois daquele vexame público da segunda-feira eu percebi que até você estava a fim de dar um troco para a Norminha... Arranjar uma namorada rápido para fazer picuinha... Então eu resolvi ajudar. Por sorte você escolheu a Lenita.

Eu estava abismado! As duas tinham feito de mim gato-sapato o tempo inteiro e eu nem aí! Homem é um bicho muito burro! E a Lenita se fingindo de apaixonada... e os beijos e os abraços! Só para me salvar das garras da Norminha!

— Mas no fim... eu ia acabar ficando com a Norma.

— Pois é... quando a Lenita percebeu que a bandida ia ganhar a parada e cair nos seus braços, pulou na frente.

— Mas que sacanagem... — foi tudo o que eu consegui murmurar.

Com a cara mais santa e inocente do mundo a santa irmãzinha pegou na minha mão.

— Desculpe, Mané. Eu sei que você está chateado e com razão. Eu não devia ter brincado com os seus sentimentos. O pior é que agora...

Valha-me Deus! Ainda havia um pior! Não conseguia nem imaginar o que poderia ser essa nova desgraça.

— Agora a Lenita está gostando de você pra valer.

— Dane-se... Eu quero a Norminha!

— Mas a Lenita é uma menina tão legal... Pense bem.

— Já pensei, já fui e já voltei. Agora é que eu não quero nada com ela! Nem de farra, nem de brincadeira! E tem mais: você vai desfazer esse rolo todo com a Norma!

— Eu sabia que isso ia acabar acontecendo. O que é que você quer que eu faça?

— Qualquer coisa, sei lá! Você telefona para ela e conta a história toda.

— Telefonar eu não telefono. Tenho vergonha. É muita humilhação...

— Então escreve uma carta.

— Dizendo o quê?

Comecei a perceber que o assunto estava engripando. Se eu não aproveitasse a rápida crise de remorso ainda ia perder a oportunidade de limpar a barra com a Norminha.

— Pegue o meu caderno em cima da mesa e escreva tudo o que eu ditar.

A Mariângela nem chiou. Finalmente eu tinha assumido o comando da situação.

— E capriche na letra!

— Não precisa. Minha letra é muito boa.

— Então escreva: Querida Norma...

— Querida eu não escrevo nem morta!

A coisa não ia ser fácil. Era melhor ter um pouco de paciência antes que a raiva começasse a esquentar a minha cabeça.

— Está bem, vamos ser mais formais. Comece de novo: Norma, estou escrevendo esta carta para explicar uma situação muito delicada.

— Devagar, que eu não sou taquígrafa! De... li... cada. Veja lá o que você vai me obrigar a escrever.

— Continue: Meu irmão Manoel, o Mané, está apaixonado por você e até escreveu uma poesia que tem o seu nome. Você deve ter percebido...

— Você está se entregando demais... — ponderou a maninha.

— Problema meu! Vamos lá: Acontece que eu e a Lenita aprontamos uma brincadeira e todos pensaram que ele estava namorando a Lenita, o que não é verdade. Ele gosta mesmo é de você...

— Ai, que tom horrível de intimidade...

— Quem mandou aprontar? Agora agüente! Está no fim. Escreva: Como eu gosto muito do meu irmão e não quero atrapalhar a vida dele, estou mandando esta carta para esclarecer as coisas. Sua amiga...

— Amiga, não!

— Está bem: Sua colega, Mariângela Leme da Fonseca.

A Mariângela acabou a mensagem, assinou e dobrou o papel com a maior cara de nojo.

— E agora? O que é que eu faço com essa porcaria?

— Entrega para ela, é claro!

— Eu? Nunca! Já fiz muito em escrever a carta! Você que cuide da entrega.                            

 

A Mariângela estava humilhada mesmo. Também... ela é que tinha inventado a encrenca! Meu problema agora era achar alguém de confiança para levar a carta até a casa da Norminha. Se eu pedisse para o Tiago... Não! Era dar muita bandeira. O melhor era eu resolver o caso sozinho:

— Amanhã cedo eu vou de bicicleta até a casa dela. Assim, pelo menos, eu tenho certeza de que ela vai receber a carta.

Levantei mais aliviado e tratei de esconder a mensagem salvadora num canto do meu armário:

— Vai que a outra se arrepende...

Já que eu tinha levantado... achei que podia tomar um bom banho. Além do mais eu estava fedendo a alho... por todos os poros. Entrei no chuveiro e fiquei horas curtindo aquela água gostosa que me encharcava a cabeça e escorria corpo abaixo.

A gripe tinha ido embora. A febre tinha ido embora. Eu já podia sonhar de novo com a Norminha. Lá pelas tantas, a Mariângela começou a esmurrar a porta do banheiro. Ela achou que eu tinha tido algum treco...

— Está vivo, cara? Abra, Mané!

Eu deixei que ela ficasse bem nervosa e depois soltei a voz no maior berreiro:

— Sonno un poeta, che cosafaccio?

— Cre-ti-no! — foi a única resposta.

 

                   Alegrias de um carteiro

Como é bom poder acordar mais tarde! E como é chato acordar cedo no dia em que você pode dormir até mais tarde... Assim que a luz do sol botou a cara na minha janela, os olhos se abriram espantados:

"O dia é sábado!", berrou a alma do poetinha Vinicius nos meus ouvidos.

Sábado... Era "Hoje ou nunca!". Era "Namorada ou morte!". Era "Norma, ainda que tarde!". O corpo se esticou gostoso na cama. Que semana, meu Deus! Só faltava agora a festa do Tiago. A carta da irmãzinha era meia certeza de vitória...

A primeira coisa a fazer era entregar a mensagem salvadora!

Esperei o barulho da mãe preparando o café na cozinha e pulei da cama. Enfiei correndo uma camiseta, o jeans e o tênis. Apanhei a missiva salvadora em seu esconderijo e desci a escada de três em três degraus.

— Que é isso, menino? Caiu da cama? Não faça barulho para não acordar seu pai.

Minha cara de felicidade não permitia perguntas sobre a saúde. Abençoado chá de alho com limão! Era evidente que eu estava ótimo! Engoli o café, dei dois beijos na mamãe e fui apanhar a bíci na garagem.

A rua estava quase vazia. Eu gostava do meu bairro. Tinha sido mais tranqüilo quando eu era pequeno: menos edifícios, pouco comércio, ruas calmas..., mas ainda era o meu lugar de sonhos e aventuras e eu me sentia seguro na geografia de suas esquinas.

A Norminha morava num prédio perto da escola. Eu só não sabia o número do apartamento, mas isso seria fácil descobrir. No caminho dei uma parada numa papelaria que estava abrindo. Com o maior cuidado escolhi e comprei um envelope para colocar a carta.

Ali mesmo, no balcão da loja, caprichei o nome da destinatária: Norma Maria de Freitas Bueno (era esse o nome inteiro da Norminha). Em mãos. Pensa que pensa, achei melhor não correr riscos e acrescentei com letras bem grandes: URGENTE!

— Ótimo! — olhei e aprovei o meu trabalho.

 

Enfiei o envelope dentro da camiseta para não amassar e toquei em frente. Delícia de manhã para uma bicicletagem. Pouco trânsito, brisa fresca no rosto, sensação de liberdade batendo no coração, vontade de cantar:

 

         Toda vez que eu a vejo

         se agita meu coração...

 

Em menos de uma semana eu já tinha esquecido o caso infeliz da bandeira e aquela conversa besta de galinha e de assanhada! Também, pudera! Depois do pênalti, do poema e da tradução para Miss Megera, eu era outra pessoa! Pensando bem... até o casinho com a Lenita tinha me dado uma força.

Era ali que a Norminha morava. Parei no portão do prédio e fui falar com o porteiro. Ele sabia quem era ela.

— A Norma, eu sei. A carioquinha do 104. Quer falar com ela? Por um segundo eu quase caí em tentação. Mas era correr um risco inútil. O melhor mesmo era deixar que ela lesse a carta sozinha. Depois... esperar o efeito na festa.

— Por favor, o senhor pode entregar a carta agora de manhã? Ele percebeu o meu nervoso. Deu uma risadinha meio sem-vergonha e me confortou:

- Pode ficar tranqüilo. Eu entrego a carta para a sua carioquinha...

Para falar a verdade eu não gostei muito daquele tom de intimidade, mas não era hora de brigar com o homem. Agradeci mais uma vez, montei na bíci e voltei, assobiando, para casa. A primeira fase do game estava terminada.

 

                   O melhor da festa...

Dizem que o melhor da festa é esperar por ela. Eram dez horas da manhã e eu já estava a mil por hora. Quando cheguei ao "lar, doce lar" iniciei a segunda etapa do jogo: arrumar a fachada. Há muito tempo o cabelo vinha pedindo uma podada legal.

— Oi, pai! Solta uma grana que eu preciso cortar o cabelo! O velho resmungou (eles sempre resmungam nessas horas),

enfiou a mão na carteira e soltou uma nota. Insuficiente.

— Só isso, pai? Hoje é sábado e vai ter festa. Me arranja um pouco mais, vá! Eu preciso comprar um presente para o Tiago e...

Ainda bem que eu parei por aí. A maninha vinha descendo a escada de ouvido ligado na conversa. Se ela ficasse sabendo que eu pretendia comprar alguma coisa para a Norminha ia pôr areia na hora!

— O carteiro já cumpriu a sua missão? — perguntou a sempre gozadora irmãzinha.

Achei melhor nem responder. O velho cocou a cabeça e soltou mais duas notas, dizendo:

— Desse jeito a gente não vai trocar de carro nunca...

O sonho do pai era comprar um carro mais novo. O pouco que ele conseguia economizar era para esse projeto. Volta e meia ele aparecia com revistas sobre automóveis para ver os preços dos usados, mas a poupança nunca dava para pagar a diferença. A ordem então era consolar o velho:

— Pra que trocar de carro, pai? O Amarelinho está tão bom... Essa a Mariângela não perdoou:

— Hipócrita! Está falando isso só porque acabou de levantar uma grana. Você vive morrendo de vergonha de andar no carro do pai...

Antes que eu tivesse tempo para responder ela disparou o segundo torpedo:

— E fique sabendo que eu vou à festa com você!

— Mas quem convidou você? O Tiago disse que só ia chamar o pessoal da classe.

— Pois é... mas a Lenita pediu e ele abriu uma exceção.

— Oferecida!

— Pode ser... mas você acha que eu ia querer perder o espetáculo da noite? "A grande conquista"!

— Você e a Lenita estão querendo me secar...

— Imaginação sua. O que a gente quer é se divertir...

Papai, que não estava entendendo nada da discussão, resolveu entrar na conversa.

— Chega de briga. Vá logo cortar o cabelo, meu filho.

— E eu, como é que fico nessa? Não vou ganhar um arranjo no visual? — atacou a pata.

Antes que papai sugerisse uma divisão da grana que eu já tinha faturado, tratei de me arrancar o mais rapidamente possível... não sem antes deixar a marca do Zorro:

— Não jogue dinheiro fora, pai... O caso dela é de cirurgia plástica e não de cabeleireiro!

Essa acertou em cheio! Antes de chegar ao portão eu ouvi o berro de mamãe vindo lá da cozinha:

— Não fale assim de sua irmã!

 

                   Tiaras ou tramelas?

Já que a ordem era caprichar, fui cortar o cabelo no shopping perto de casa. Eu sabia que era bem mais caro do que o salãozinho do seu Ronaldo... mas a ocasião era especial. Caí nas mãos de um tal de Zequito, uma bichinha muito Manéirosa, mas com cara de competente.

Depois de lavar a minha cabeça com meia dúzia de cremes e xampus, o artista me propôs fazer um corte curto e batido... sei lá mais o quê! Moda ou não-moda, fiquei com medo do resultado e acabei dando a ordem de sempre:

— Corte por igual, sem muita costeleta.

O malandro trabalhava bem com a tesoura. Acerta daqui, apara dali, o visual foi pegando jeito. Quando achei que já tinha sido tosado o suficiente, pedi que parasse. O espelho confirmou a beleza da retaguarda.

 

— Perfeito! — afirmei com a mais entendida das vozes.

O Zequito também parecia estar feliz com o trabalho. Só não gostou muito da gorjeta. Eu sabia que era meio micha, mas ainda precisava comprar o presente para o Tiago e a lembrança para a Norminha.

— Até a próxima — eu me despedi.

— Apareça quando quiser... — ele sussurrou baixinho.

Eu, hein! Tratei de me arrancar pisando duro para que ninguém tivesse a menor dúvida a meu respeito. A turma sempre dizia que frescura é doença contagiosa. Sei lá! Acho que cada um pode fazer o que quiser com a própria cuca e o próprio corpo... mas eu queria distância da bicharada.

O passo seguinte foi comprar os presentes. Primeiro fui procurar alguma coisa bem barata para dar ao Tiago. Assim sobrava mais dinheiro para gastar com a Norminha. Vira daqui, vira dali, cheguei a uma evidente conclusão:

— Tem de ser no jornaleiro...

Pobre Tiago! Acabou ganhando um adesivo de caveira para pôr no seu skate. E agora... agora era achar um presentinho legal para a Norma. Nessas horas é que a gente percebe que não foi mesmo preparado para entender de mulher... Droga! Tudo o que eu pensava era caro, tudo o que eu queria não ia servir para ela!

Depois de rodar na frente de todas as vitrines do shopping, bati os olhos numa bijuteria. Era um treco de prender o cabelo. Sei lá como é que se chama! Tiara? Travessa? Tramela? Não importa. Pensei no cabelão bonito da Norma e decidi:

— É isso aí!

Por sorte o preço também estava na casa do isso aí... Mandei embrulhar o objeto para presente e desci saltando os degraus da escada rolante. Quando cheguei em casa para o almoço tive uma ótima surpresa:

— Sua irmã foi passar o dia na casa da Lenita. Mandou dizer que encontra você na festa.

Maravilha! Eu ia poder descansar e me arrumar em paz sem ninguém batendo na porta do banheiro. A lasanha da mamãe estava ótima! Comi meia travessa. Depois subi para dar uma descansada. O livro do patrono Vinicius estava na mesinha de cabeceira.

"Vou dar uma lida para me inspirar...", pensei. Abri ao acaso. Eu imaginava que assim iria encontrar uma mensagem certa para mim. Vamos ver:

"Tu me levaste, eu fui... Na treva, ousados

Amamos vagamente surpreendidos

Pelo ardor com que estávamos unidos

Nós que andávamos sempre separados."

 

Meu Deus! Seria um aviso? Uma premonição? Tomara que 0 Vinicius estivesse certo! No embalo da imaginação, da lasanha e do passeio matinal de bicicleta os olhos foram se fechando rapidamente... Ainda pensei em ligar o despertador, mas a cabeça, quase apagando, me mandou um último recado: "Bobagem. Mamãe não vai me deixar perder a festa..."

 

                   0 rock das estrelas

Banho tomado, corpo esfregado, dente escovado, sovaco desodorizado, cabelo penteado, jeans lavado, camisa passada, tênis limpos... Será que faltava alguma coisa? Os presentes! Pronto. Agora uma última olhada de corpo inteiro em frente ao espelho da irmã. Se ela estivesse em casa, sabe Deus o que eu leria de ouvir!

Ainda bem que a noite estava bonita e o Tiago morava perto. Mamãe também deu uma revisada na aparência geral:

— Aprovado! Nem parece meu filho.

Papai informou que não iria dormir enquanto a gente não voltasse:

— Eu vou ficar vendo os filmes da Sessão Coruja. Podem me telefonar quando a festa estiver acabando. Eu vou buscar vocês.

— Boa sorte, Mané.

Mãe que é mãe sabe das coisas... e merece mais dois beijos de despedida. Agora... à luta! Olhei no relógio. Estava na hora.

Depois do portão um último pedido:

- Santa Gema que me proteja!

Fiz o sinal-da-cruz como motorista de caminhão quando sobe na boléia e me atirei noite afora. Eu tinha certeza de que tudo ia dar certo. A carta, o presente... O que eu estava sentindo era puro nervoso de vestiário. Sempre passa na hora em que o time entra na quadra.

— Mais dois quarteirões...

A casa estava toda iluminada. O ruído da música foi se aproximando aos poucos. A festa ia ser na garagem. Nessas horas eu queria ser como o Robocop, para enxergar os detalhes a quilômetros de distância.

— Será que a Norma já chegou?

— Calma, que ela não veio ainda... — informou a querida mana, plantada perto do portão.

— Boa noite, Mané... — emendou uma vozinha muito humilde e doce.

Passei reto para não ter de ficar batendo papo com a Lenita. Tudo o que eu queria era distância dela. Depois... vai que a Norma chega e me encontra conversando com a infeliz!

Fui direto falar com o Tiago. Não é que ele gostou do adesivo? Depois pedi para guardar no seu quarto o pacotinho do presente. O amigão não perguntou o que era nem para quem era. Só me fez uma pergunta:

— Me conte uma coisa, Mané. Você está namorando a Lenita? Eu fiquei besta. Por essa eu não esperava! Tratei de responder rápido e firme:

— Nem pensar! O que aconteceu aquele dia na classe foi só uma brincadeira. Se você estiver a fim dela... sinal verde e caminho livre!

Percebi que o Tiago fungou aliviado. A história estava indo melhor do que a encomenda. Se ele atacasse a Lenita, facilitaria ainda mais as coisas para o meu lado. Virei os olhos para cima e pensei: "Santa, Santa, Santa Gema!"

Antes de voltarmos para a garagem-salão de festas demos uma passada pela cozinha e uma bicada no ponche...

— Não adianta beber muito, pois está bem fraquinho... — avisou a mãe do aliviado e sorridente aniversariante.

Nessa hora começou a chegar gente. Eu fiquei conversando com a turma, de olho na porta. Da Norma... nem sinal! Em compensação saquei que o Tiago não parava de paparicar a Lenita. A sonsa parecia surpresa e encantada com o súbito interesse dele.

De repente, não mais que de repente... Agüenta, coração! Era ela! Linda! Lindona! Minhas pernas tremeram... Quem é que devia falar primeiro com quem? Eu nem podia tocar no assunto da carta... Tinha de fazer de conta que não sabia de nada. E esperar a reação.

Fiquei no meu canto, de olho pregado na Norminha. Ela estava procurando alguém. Seria eu? Seria?

SCRECKZZZZZZZZZ!

Era! Quando o olhar da gente se cruzou o ar tremeu. Eletricidade pura... Faísca! Relâmpago! Curto-circuito! Fogo! Incêndio! Queimada! Os pelinhos do braço arrepiaram tanto que eu me senti um porco-espinho eletrocutado por milhões de volts!

Flutuando! Atravessei a garagem flutuando. Leve, leve... muito mais leve do que a música e do que o ar. E ela veio em minha direção. Começamos a conversar com a cabeça roçando o teto e os pés a meio metro do chão:

— Oi...

— Oi...

— Que bom que você veio!

— Que bom que você está aqui!

— Eu adorei a sua poesia.

— Eu fiz para você.

— Eu percebi. E também a tradução...

— Eu fiz para você.

— Você quer me namorar?

— Quero... muito.

— Eu também. Desculpe pela cena da segunda-feira.

— Já esqueci.

Minhas mãos ancoraram nos dedos da Norminha e a gente começou a voltar à terra, balançando como duas pipas sem vento.

— Eu gosto de você...

— Eu te adoro...

— Quero dançar com você.

— Eu também quero.

— Me abrace...

Bem de leve, muito leve, leve, leve, eu abracei a Norminha e a garagem-salão-festa-vida-planeta-universo começou a girar como se fosse a estação orbital do filme 2.001! Meu tênis rangia no piso. Viva Strauss! Sei lá que raio de música estava tocando. Mesmo que fosse um samba, para mim aquilo era a "Valsa das estrelas"... se é que essa coisa existe!

— Você dança muito bem...

— Eu não estou ouvindo a música.

— Nem eu.

Voar. Emoção do pênalti. A bola voando. O corpo voando. Explosão da defesa. Dança pura. Voar. Emoção do verso. A palavra voando. A imaginação voando. De repente a rima se encaixa na métrica Amor! Corpo e sentimento voando juntos na mesma rota de encontro. Pele. Dança. Pênalti. Poesia. Paixão.

— Eu vou chorar de alegria.

— Eu vou chorar de emoção.

Nessa hora meu olho esquerdo semimergulhado nos cabelos da Norminha deu uma rápida focada na realidade. Pânico! Estava todo mundo parado, boquiaberto, abismado, de olho comprido na gente. Espanto e inveja de tanto amor.

— Não abra os olhos.

— Eu estou sonhando.

Liguei a audição. A valsa que girava na nossa cabeça era um tremendo rock — quem sabe, o uRock das Estrelas"... se é que essa coisa existe.

— Eu te amo.

— Eu te amo.

Aflito, meu olho disponível deu uma piscada para o Tiago. Ainda bem que o amigão é ligeiro no gatilho! Agarrou a Lenita, caiu na dança... e a festa começou pra valer. Encostada num canto da garagem a patinha comovida me mandou um adeusinho. Querida irmãzinha! A Norma percebeu.

— Sua irmã foi muito legal.

— A Mariângela é minha melhor amiga.

Será que felicidade é isso? Descoberta. Deslumbramento. A vida é deslumbramento! O amor é deslumbramento! Ser assim é um prazer. Rosto no rosto. Sonho no sonho. Voz, respiração, perfume...

 

         Eu sinto a sua presença

         sempre tão perto de mim,

         como o perfume da rosa

         no perfume do jardim...

 

—Você é maravilhoso.

—Você é linda.

—Você é meu.

—Você é minha.

— Você é...

—Você é...

—Você...

—Você...

 

                                                                                Carlos Queiroz Telles  

 

                      

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