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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ROMANCE DA ATLANTIDA / Taylor Caldwell
O ROMANCE DA ATLANTIDA / Taylor Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Aos 12 anos Janet Taylor Caldwell escreveu um romance sobre a Atlântida, uma terra presumivelmente lendária sobre a qual nada sabia, O pai dela, jornalista, ficou assombrado pela percepção encontrada no manuscrito, pelos detalhes e pela compreensão do assunto. Enviou o manuscrito para o avô da criança, um editor de livros em Filadélfia. O avô horrorizado sugeriu que se destruísse imediatamente o trabalho. Achava que nenhuma criança poderia ter escrito uma obra tão madura, quer intelectual quer filosoficamente. A única alternativa que lhe acudia ao espírito era que ela houvesse "tomado por empréstimo" de alguém ou de algum lugar. De certo modo, ele não estava errado: ela havia "pedido emprestado" ao passado, sem mesmo saber como estava desencavando esse passado. O manuscrito ficou inaproveitado por 60 anos. Depois, graças à minha colaboração com a romancista em The Search for a Souh The Psychic Lives of Taylor Caldwell (A Busca de uma Alma; As Vidas Mediúnicas de Taylor Caldwell), recebi a incumbência de preparar o manuscrito para publicação. Situações provocadoras que a Srta. Caldwell apenas sugerira foram ampliadas, um pouco da prosa infantil simplificada: mas as situações, as descrições, as personagens e o enredo permanecem os mesmos que, inexplicavelmente, nasceram do lápis de uma criança de 12 anos. O discernimento, a sabedoria, o espírito mordaz, a desilusão, mas também o eterno otimismo que me intrigaram e afetaram ainda estão presentes, juntamente com uma narrativa alegórica que parece adaptar-se ao nosso mundo de modo dramático. Na verdade, às vezes chega a parecer que a romancista famosa escreveu este seu primeiro romance, em criança, com um discernimento profético. Julguem por si mesmos.


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O Imperador tinha 200 anos de idade e, mesmo com a câmara de rejuvenescimento, poucos viviam mais do que 200 anos em Atlântida. Seus olhos fogosos estavam amortecidos, vincos de dor sulcavam-lhe o rosto cansado. A testa estava perolada de suor, e um eunuco moreno enxugava-a a intervalos com um lenço de seda de bordas douradas. Ao redor da garganta, o Imperador trazia uma corrente de ouro, presa na frente por uma gema cristalina de sete cores, que renovava a energia aos muito cansados. Suas mãos, antes possantes, estavam dobradas sobre o peito, resignadamente. Um médico de ar solene estava atrás da grande cama imperial, expressando a nota correta da preocupação. O Imperador já havia mandado chamar as duas filhas, Salustra, a mais velha, estava no alvorecer glorioso de uma feminilidade sazonada; Tyrhia ainda era uma criança, com uma silhueta de garoto. Os olhos febris do pai fixaram-se nelas com intensidade apaixonada. Salustra! Haveria algo mais magnífico do que essa moça? Ela não era diferente da mãe, graças aos deuses eternos! Pois a mãe, a incomparável Máxima, fora aristocrata até o seu âmago impenetrável, Salustra era alta, para uma mulher, e sua silhueta digna de dar uma pausa à imaginação. Possuía os olhos do Imperador, faiscantes de vitalidade. Sua pele era pálida e limpa; tinha um sinal de nascença no alto da maçã do rosto, que ficava escarlate quando ela se agitava. A boca, embora orgulhosa, era cálida e convidativa. O cabelo fulvo, que lhe chegava aos joelhos, tinha um brilho que parecia captar os raios do sol. O branco pescoço era como uma coluna que se erguia orgulhosamente dos ombros de mármore, forte e flexível, dando-lhe um porte de rainha. O Imperador moribundo pressentiu instintivamente a glória feminina que dentro em breve Salustra iria conhecer. Notou-lhe a curva sinuosa da coxa e do tornozelo e, com satisfação, a vigorosa linha do maxilar e o azul metálico dos olhos. Talvez caminhasse de modo arrogante e confiante demais para uma mulher, mas os músculos sob a pele lustrosa eram rijos como os de um homem. Lazar sorriu ao perceber em Salustra sua própria vontade indomável. Ao olhar para Tyrhia, o sorriso desapareceu. Embora apenas uns poucos anos mais moça do que Salustra, ainda não estava formada, e tinha uma fisionomia inexpressiva e desanuviada. Uma pulseira de ouro que trazia no braço combinava com os cachos dourados que lhe emolduravam o belo rostinho. Suas mãos eram brancas, inquietas e um tanto desamparadas. Era como a mãe, Láhia, de origem plebéia. Vendo a criança, o Imperador lembrou-se de Láhia, que fora uma escrava de beleza impressionante, um tributo do pequeno reino de Mântius, ao qual ele dera a independência, ficando apenas com a bela Láhia como espólio de guerra. Láhia fora fraca, quase sempre malvada, constantemente intrigante. Apesar disso, Lazar, sucumbindo à tirania dos fracos sobre os fortes, amara-a até ser atraiçoado. Só quando ela já estava grávida dessa criança é que ele descobrira que a Imperatriz havia conspirado com um enviado do poderoso Althrústri para envenenar o seu vinho. Estava quase na hora de Láhia dar à luz, e Lazar, ansioso por um filho, calarase. Contudo a Imperatriz, pela atitude reservada do marido, percebera que ele sabia tudo e morrera de medo depois do nascimento da criança. Lazar enterrara-a com toda a pompa, e o mundo inteiro (com exceção do governo de Althrústri) ignorara o acontecido. Há muitos anos que ele não pensava naquilo. Estendeu a mão trêmula às filhas. Tyrhia, com as lágrimas fáceis dos que são emocionalmente instáveis, ajoelhou-se junto ao pai, aconchegando-se na curva do braço emagrecido. Salustra continuou de pé, olhando com ar sério para o pai, à espera. Estava quase sem cor, e, embora
os lábios pálidos se mantivessem firmes, notava-se nos cantos um ligeiro tremor. Ela inclinou-se para mais perto do Imperador. Ao toque dos dedos dela, foi como se, sob a pele macia, ele tivesse sentido a rigidez do aço. Seus olhos pareceram ganhar novo brilho, e quaisquer dúvidas que porventura houvesse tido acabaram por se dissipar. — Minhas filhas — disse melancolicamente — estou morrendo. Mas é uma coisa natural e tranqüila; para onde vou, vocês também irão um dia. Simplesmente estou seguindo antes de vocês. Aceito a morte com tanta naturalidade quando aceitei a vida. Ela é apenas uma fase do drama humano. Os soluços de Tyrhia cortaram o ar, fazendo com que o médico olhasse para ela com ar de desaprovação. Sem ligar para a irmã, Salustra fitava o pai, com os olhos escuros atentos e firmes. — Salustra, minha filha. — Fez um sinal para ela, que tirou o lenço das mãos do eunuco e limpou o suor da testa do moribundo. Ele inspirou profundamente e fechou os olhos, como que prendendo pela simples vontade a alma que partia, fazendo com que ela interrompesse o seu vôo por mais um momento. — Salustra — disse, com a voz rouca pelo esforço despendido — nas tuas mãos eu deixo o meu império. Tu me compreendes, menina? — Ele olhou bem no rosto dela e o que nele viu deu-lhe alegria. — É chegada a minha hora, Salustra, mas eu preciso dizer-te o que é necessário: O meu império é teu. Pensa só nisso! Do leste para o oeste ele ocupa quase cinco mil quilômetros, de mar a mar! Do norte para o sul, seis mil e quinhentos quilômetros, das geleiras glaciais até as areias tropicais! Uma herança gloriosa para aquele que a merecer. Salustra nada disse, mas seus olhos começaram a luzir. Os raios de sol que surgiam por entre as pilastras davam um brilho dourado às suas feições. Uma veia pulsava na sua garganta. Ela tocou de leve a corrente do pescoço do pai, e ele fez um sinal débil para que ela a retirasse. O Imperador gemeu, e sua cabeça mexeu-se em agonia sobre os travesseiros de seda. Salustra colocou a mão firme sobre a testa dele: — Descanse, meu Senhor — disse baixinho. Ele virou a cabeça devagar para o lado dela, e de novo o seu olhar deparou com aqueles olhos serenos, e mais uma vez seu rosto se iluminou. Agarrou a mão dela. — Tu és apenas uma menina — ofegou ele. — Mas tens a sabedoria de muitos sábios. Sentaste ao meu lado nas cortes, ouviste os meus pronunciamentos. Ouviste os ataques feitos a mim, viste quando me bajulavam. Assim como eu odeio a mentira, tu também a odeias. Assim como abomino a injustiça, tu também a abominas. Tu possuis a visão que revela a falsidade e a dissimulação. Tal visão normalmente é uma maldição; afasta a pessoa até da imagem de uma amizade, Mas um governante não deve ter amigos. Os amigos nos embalam numa falsa sensação de segurança. Mantémte distante, Salustra. — Deu um profundo suspiro, — Não é preciso que eu te fale da monotonia do processo de governar, que aprendeste sentada nos meus joelhos, mas falo-te de coisas maiores, da alma do governo, do coração de um povo. Tu me compreendes?
Salustra inclinou de leve a cabeça. — Já houve época em que desejei um filho! Mas nenhum filho poderia ser mais capaz do que tu. Contudo és uma mulher, ainda assim. Tuas mãos são macias e brancas, embora sejam de aço por dentro. Tens mais necessidade de coragem e sabedoria do que um soberano. Sinto, porém, que o povo te aceitará. — A voz dele tomou um tom quase profético. — A morte que se aproxima está retirando um véu da minha vista. Escuta bem estas palavras, pois são como que vindas de alémtúmulo: Um governante pode criar leis que sejam verdadeiras maravilhas de precisão mecânica e de justiça, mas ainda assim ele falhará se não der atenção aos corações daqueles que governa. Um tolo amado por seus súditos sempre os tem. Um sábio, que não é amado, encontra sempre ouvidos moucos. Sua respiração era entrecortada, mas ele continuava, tenazmente: — Como, perguntarias, eu conservo o amor do meu povo? Não é amando-os, minha filha. Este povo intemperante, decadente no seu sofisma, pode ser governado apenas compreendendo-se os seus vícios, as suas insolências e ambições. Esta é uma nação em decomposição. Atingimos o ápice das realizações científicas, mas acabou-se a velha moral, os velhos padrões, códigos e restrições. A maior parte da humanidade compõe-se de almas gananciosas, que disfarçam a sua luxúria no amor da família, escondem os seus lábios lascivos sob sorrisos piedosos, amando o seu próximo externamente, mas odiando-o no seu íntimo; chocam-se com o vício, mas estão absortos subrepticiamente na sua lascívia. "Tem cuidado, Salustra! Não esperes demais desses animais, que embora não se balancem mais das árvores pelas caudas, ainda assim balbuciam no jargão da selva. Compreende-os, alimentalhes mais a vaidade que as bocas, e eles te amarão e aclamarão. Olhou para ela intensamente, para ver se havia compreendido. O brilho inteligente do olhar dela o tranqüilizou. Tyrhia ainda soluçava de encontro ao seu peito. O médico inclinou-se e tomou o pulso do homem moribundo. — A religião perdeu o poder de controlá-los — continuou o Imperador, — Eles debocham de todas as coisas, mas dão valor à religião nacional como um símbolo reconfortante da tradição. Eles enfeitam os templos e constroem grandes altares. Mantêm um sacerdócio corrupto, treinado no vício e na libertinagem. Comemoram o nascimento da deusa Sáti, filha do Caos e da Disputa. Mas cumprem de modo insincero os seus deveres religiosos. Sem acreditar, ainda assim são intolerantes com os que são honestos o bastante para confessar que não acreditam. Riem dos deuses, mas abateriam o primeiro homem que sugerisse aboli-los. "Eu te aconselho, Salustra, a conservar a religião nacional. As nações jovens podem sobreviver à violência eruptiva de novas idéias. Uma nação gorda e inchada, no limiar da desintegração, não pode suportar os embates constantes de um assalto viril às suas instituições cm decomposição. Esta nação está velha demais para coisas novas. "O pensamento débil amortece o braço da ação robusta, mas a época da ação já passou para este país. Não uses o divisor de átomos de modo algum, para evitar que seja usado contra ti por um
inimigo mais ousado. O nosso povo capitulará, antes de enfrentar tal ameaça. Ficamos civilizados demais com pensamentos, ricos demais com nossas conquistas; o sucesso em demasia traz consigo a própria semente da destruição para aquilo que o alimentou. É tarde demais para fazer o tempo voltar atrás. O mal está feito; tu serás carregada pela maré. — Com um gemido, conseguiu apoiar-se num dos cotovelos. Seus olhos tinham um brilho profético: — Se o povo, em qualquer época, exigir a tua abdicação, se tu fores da opinião que foste sábia e corajosa, agarra-te ao teu cetro e luta por ele. O vírus da democracia infecciona o próprio sangue vivificante de um povo imperial. Quando uma nação se cansa da moderação e da disciplina, exige a pretensa liberação como um modo de soltar os laços da autoridade. Desencoraja a democracia; ela é tua inimiga e inimiga do teu povo. — E quanto ao inimigo externo? — ela perguntou. Ele deu um suspiro. — Olha para o norte, filha. Os Althrústri são uma nação poderosa, jovem e aventureira. Os Althrústri têm o espírito empreendedor que nós já tivemos. Eu odiava o Imperador Notar, que era astucioso e cruel. Graças aos deuses, ele está morto! Mas cuidado com o filhote do lobo, o expedito Signar. Cuidado com ele! Enviei-lhe mensagens conciliatórias, mas ele não deu resposta, a não ser para semear a deslealdade nas nossas fileiras com o seu ouro e as suas promessas. — Ele descansou um minuto antes de continuar: — Houve época em que pensei em casar com ele uma das minhas filhas, mas não fui capaz de entregar o sangue do meu sangue a tal selvagem. "E quanto a ti, minha filha, minha querida! Faze tu o que fizeres, repudia a câmara de rejuvenescimento. É suficiente para o ser humano viver uma vida natural de 75 anos. Quando a vida é prolongada além do que a natureza deseja, existem lembranças demais para conviverem com a gente. Tornamo-nos enfastiados com as coisas que antes nos davam prazer, até que passamos a desejar apenas o esquecimento sem fim. Não te deixes chegar a isso, cara filha. Durante muito tempo ele ficou em silêncio, com os olhos fechados muito fundos no rosto cinzento. Tyrhia continuava a soluçar, mas ninguém lhe dava atenção. O médico balançou a cabeça, e umedeceu os lábios ressecados do moribundo com um pano molhado. Mas o Imperador ainda não terminara. Ergueu um dedo: — Guarda com zelo a câmara de rejuvenescimento. Utiliza-a como um prêmio a ser ofertado pela lealdade e pelas realizações, mas concede-o apenas uma vez na vida de cada um. Ao experimentá-la, ela pode perder o seu encanto, e tu não mais terás este incentivo para atrair os ignorantes. — Lazar moveu-se, debilmente. Continuou: — Minha filha, tu podes querer casar-te. Mas pensa muito antes de assumir tal fardo. Contudo não te aconselho uma vida insípida de continência. Tem teus amantes. Sem dúvida, tem teus amantes, mas escolhe ajuizadamente. Toma apenas os teus iguais em inteligência. Tomar inferiores significaria enfado e autodesprezo. Mas casamento... ah! minha filha, isso eu não te aconselharia. — Ele procurou a mão da filha mais moça, — Tua irmã, a minha pobre e pequena Tyrhia, entrego-a nas tuas mãos, sabendo que tu a amarás como eu a amo. "E agora, Salustra, tenho um pouco de filosofia aprendida a duras penas para te ensinar. Podes fazer pouco dela, mas depois de duas vidas de poder, para mim é verdadeira. É melhor apreciar um pôr-do-sol do que ser o senhor de mil cidades conquistadas. O homem que se emociona com a música é mais feliz do que aquele que é aclamado do alto das colinas. A alma não se desenvolve por
meios materiais, apenas pelo pensamento. Se um homem não pensa, mesmo que se sente sobre um trono, sua alma ainda está embrionária. — Ele parecia ter chegado ao fim do seu discurso. Estertorava. Ela se inclinou o mais que pôde para escutar suas últimas e débeis palavras. — A ti, Salustra, entrego o meu povo. Se eu tiver alguma consciência do outro lado deste grande golfo que nos vai separar, farei todo o esforço para ver-te e guiar a tua mão. Pois esses são tempos difíceis para a nossa querida Atlântida. Com um suspiro que era quase um gemido, ele caiu para trás. O médico tomou o pulso flácido do Imperador. Meneou a cabeça com uma expressão de dor. — O Imperador já não vive mais — falou. — Viva a Imperatriz! Foi só depois que o Imperador morreu que Salustra chorou. Ela atirou-se sobre o corpo do pai e soluçou até a hora em que o levaram. Foi bom que o tivesse feito, pois foi a última vez em que pôde se dar ao luxo de derramar lágrimas, durante muitos anos. Enquanto chorava, não sabia direito se lamentava mais a morte do pai ou a terrível responsabilidade que a esperava. Ela implorara ao pai que visitasse de novo o Templo Belo, de rejuvenescimento, mas ele explicara que de nada serviria: — Os deuses não permitem que homem algum viva mais de dois séculos. E isso é bom, pois eles sabem mais do que o homem, — Sorrira, debilmente, dizendo: — Quando chegar a tua hora, filha, tu entenderás melhor o que quero dizer. — Fizera um gesto na direção dos céus. — Quem sabe não existe algo melhor do outro lado do céu, algo que dê sentido à nossa busca vazia de felicidade! Ela ainda era moça demais para entender direito o que significavam as palavras dele e não via nenhum motivo para que os benefícios da vida não se estendessem indefinidamente. Na verdade, apenas uns poucos privilegiados da elite eram sequer considerados para o Templo Belo, para os raios especiais que reativavam as células e restauravam o equilíbrio endócrino das glândulas. As rugas desapareciam, o cabelo era restaurado, os músculos e a circulação se renovavam, e os anos eram eliminados, milagrosamente, exceto pelo que permanecia no coração e na mente. Lazar recebera os raios rejuvenescedores pela primeira vez aos 75 anos, e, pela segunda, aos 140. Da última vez, já estava cansado da vida e teria preferido o Desconhecido, mas na época ainda não tinha um herdeiro. Nenhuma mulher alcançara o Templo Belo, pois nenhuma, até que Salustra subiu ao trono, tivera a oportunidade de merecer tal recompensa. A própria Salustra não conhecia ninguém que fosse merecedor de tal distinção, exceto o velho Máhius, o Primeiro-Ministro de seu pai, e ele logo lhe implorou que não lhe prolongasse a vida, que já conhecera uma experiência de rejuvenescimento. Com lágrimas nos olhos, ele apelou para os bons sentimentos dela: — Mereço coisa melhor às suas mãos, Majestade. — Onde posso encontrar outro como tu? — ela replicou com tristeza. — Quem, senão tu, se manterá firme ao meu lado quando as hordas vierem do norte?
2
Como são estúpidos esses homens, pensou a Imperatriz. Já fazia uma semana, desde que uma névoa baixa e rodopiante cobria o país, que a Atlântida sofria de uma misteriosa escassez de força. Nada que fosse operado por energia solar ou nuclear se movia... nem embarcações marítimas, nem meios de transporte terrestres nem as naves aéreas. Toda comunicação rápida através das vibrações da atmosfera estava paralisada, a energia elétrica estacionara, e parecia que o próprio império se estava desmoronando. E contudo, aqueles homens, aqueles estúpidos, ficavam a debater besteiras durante horas, besteiras inconseqüentes, que não somente nada tinham a ver com a crise do momento, mas que também eram irrelevantes quanto às ameaças internas e externas com que a nação debilitada se defrontava. A Imperatriz já estava sentada há muitas horas na Assembléia, com os Nobres e os Plebeus, e os debates tinham sido mais opressivos que de costume. Ela se mexia inquieta no trono e batia com o pé no chão, irritada. Seus olhos percorriam vagamente a câmara em que se reunia a Assembléia, passando das paredes de mármore branco e lustroso às enormes pilastras e ao teto abobadado, tão alto que a parte superior das pilastras se perdia nas sombras. Seu olhar se moveu para o centro da imensa câmara, onde, numa fonte, uma ninfa erguia tocha tão brilhante que iluminava toda a câmara. Os olhos da Imperatriz retornaram aos 12 Nobres que representavam a aristocracia das 12 Províncias, e aos 12 Plebeus que representavam o povo delas. A Imperatriz mal ouvia o que eles diziam. Estava indescritivelmente enfadada, e vagamente preocupada com a falta de energia que ameaçava paralisar a nação. Contudo, como sempre, estava serenamente majestosa. Suas vestes, de brocado de ouro, mal ocultavam a curva arredondada do seio e os ombros macios. O cabelo estava entremeado de pérolas e na cabeça trazia a coroa de Atlântida, com as 12 pontas, símbolo das 12 Províncias. O rosto, com sua beleza fria e indiferente, dava a impressão de uma natureza impassível. Contra a palidez da face, a boca generosa dava um toque impressionante de cor. O nariz era um tanto alto e por demais arrogante; a posição da cabeça expressava obviamente uma imperiosidade fácil. Talvez o franzir do cenho fosse excessivamente pronunciado. Ao redor do pescoço trazia o colar do pai, elos pesados de ouro polido presos pela gema faiscante, que parecia um círculo de fogo contra a sua garganta cálida. Apesar de ele lhe fornecer energia, estimulando-lhe o corpo, mentalmente estava muito cansada. Um dos Nobres estava falando, e a voz soava como um cantochão monótono aos ouvidos dela. Olhou para além dele, para o Monte Atla adormecido. Através de uma bruma pesada, via-se um toque de vermelho acima dos picos e rochedos roxos. Embaixo, o seio azul da baía subia e descia suavemente, e grandes navios flutuavam ancorados nela, enquanto outros mergulhavam sob as ondas, ocasionalmente, para buscar no chão oceânico os minerais preciosos, cobre, urânio, níquel, cobalto, magnésio, prata e muitas ligas raras. A Imperatriz virou a cabeça, e a cidade atingiu-lhe os olhos com uma luz branca ofuscante. A cidade estendia-se para cima, até que as grandes pilastras e muros e abóbadas reluzentes se misturassem, como que numa vasta floresta de pedra brilhante. Ela franziu o cenho; detestava a capital, Lamora. Os seus melhores esforços não haviam obtido o sucesso desejado em acabar com a sujeira, as doenças e os lugares barulhentos. Lembrou-se do que o pai lhe dissera certa vez: "Não se pode ensinar bons modos aos burros, nem limpeza aos porcos." Assim, a despeito da brancura de pérola que a cidade apresentava a distância, ela sabia que becos estreitos e ruas fétidas se escondiam por trás das pilastras, abóbadas e muros reluzentes. Ela fizera plantar grandes árvores nas ruas principais e nos vastos parques, e o verdor delas destacava-se vivamente
entre as pedras brilhantes. Mas muitas tinham morrido por causa do ar estagnado e outras murchado por negligência. Acima de tudo, elevava-se da cidade um murmúrio incessante, um zumbido palpitante e distinto, que refletia a alma dos habitantes, que ia e vinha como o som mutável do mar. Os olhos dela voltaram-se para a câmara de reunião, mais uma vez, e ela olhou vagamente para um grande mapa em relevo esculpido a cores, sobre uma parede de mármore. Ele representava um grande continente. O continente inteiro chamava-se Atlântida, mas somente a parte central era realmente o país Atlântida. A nação Althrústri, a norte e a leste, tinha um território tão vasto quanto o de Atlântida, mas era uma terra de florestas de pinheiros sem fim, lagos gelados, montanhas estéreis, precipícios atordoantes e extensões terríveis de neve e gelo virgens. A parte superior do continente vivia coberta de neve quase que o ano todo, mas o país Atlântida tinha um clima versátil. Era frio. mas de um frio suportável no norte, que tinha um verão agradável; era quente e temperado nas zonas centrais; e quente e langoroso no sul. Era no sul, na Primeira Província, que ficava Lamora, a capital, com sete mil habitantes. Ao sul de Atlântida ficava um grupo de pequenos principados insulares, Mântius, Dímtri, Nahi. Létus, Antilla e Madura. O Imperador protegera a independência deles como um leão indulgente protegeria os seus filhotes. Certa vez, Lazar levara as duas filhas numa viagem pelo continente. Visitaram as 12 Províncias. Sete delas eram diligentes, com cidades prósperas e largas zonas férteis. Umas, centros realmente urbanos, possuíam grandes fábricas e indústrias. Outras eram rurais, dedicadas à agricultura, com cidades pequenas e aldeias escondidas. Duas eram províncias indolentes, preguiçosas, que sugavam as demais. Duas eram escassamente povoadas, com florestas densas, desfiladeiros rochosos e um solo estéril que tornava a vida precária demais para uma geração fraca. Numa enorme região que compreendia grandes partes de três províncias, havia pântanos e selvas sem fim. Aí os macacos, os babuínos, os leões, os crocodilos e os elefantes, que haviam reaparecido depois que os dinossauros sumiram, enchiam com seus gritos as noites tropicais. A outra província era um deserto grande e cinzento, vazio, exceto pelas criaturas das areias. Lamora, a capital devassa, sentia-se muito superior às suas irmãs. Lá a vida era agitada, alegre, cheia de vícios. As outras províncias chamavam-na de esgoto de Atlântida, mas para seus habitantes ela era o centro da terra. Nela abundavam os mais famosos poetas, artistas, filósofos, os mais hábeis charlatães, os mais cultos cientistas, as mais belas cortesãs. Seu luxo era famoso desde as geleiras de Althrústri até as cálidas águas tropicais de Létus. A cada ano, milhares de althrustrianos se infiltravam no país, quase que como uma força de invasão antecipada, atraídos pelo conforto, pelas riquezas e oportunidades oferecidas por esta terra privilegiada. A vida em Atlântida não era dura e sombria como em Althrústri, e as suas leis eram mais benignas e tolerantes. Também de outras terras afluíam à Atlântida imigrantes da mais baixa classe, aventureiros, miseráveis, incompetentes, gente biologicamente inferior, que achava que a existência era dura demais no seu país de origem. Lazar, durante os últimos anos de vida, muito se preocupara com essa horda que invadia as suas fronteiras. Propusera uma lei de imigração rígida, para selecionar os que tentassem se estabelecer ali. Mas os donos de fábricas e indústrias, sequiosos por novos mercados, conseguiram evitar essa rigidez. Os habitantes de Atlântida exigiam uma escala de salários alta demais, e os lucros chegavam a pouco mais de 200 por cento. Lazar falara a Salustra da reforma que se propunha fazer, meses antes de sua morte, mas ela nunca conseguira reunir os votos suficientes para fazer a
Assembléia aprovar a medida. Salustra estivera pensando em muitas coisas, nenhuma delas sequer remotamente ligada ao Nobre Cônsul Lústri, da Oitava Província, ou a qualquer coisa que ele estivesse dizendo. Os olhos dela pousaram nele com uma curiosidade superficial. Lústri era um homem moço e bonito, da melhor aristocracia, destacado na vida licenciosa da cidade. Possuía muito charme, um sorriso magnético. Comentava-se que a sua fortuna era tão ilimitada quanto sua devassidão. Corriam boatos que ele era amante da Imperatriz. Mas, se assim fosse, ela já estaria cansada do repertório limitado dele. O intelecto ágil dela exigia um espírito afim. Lústri era um encantador companheiro de folguedos, um amante delicioso, um parceiro estimulante, mas nunca seria capaz de ultrapassar a muralha atrás da qual ela sofria o isolamento das grandes figuras. Salustra deu-se conta de algumas palavras que Lústri estava dizendo. De pé, em frente ao trono, Lústri fitava nela os seus olhos escuros com uma ousadia confiante. Tanto os Nobres quanto os Plebeus o encaravam com inveja. A Imperatriz, pensavam, é incapaz de negar-lhe qualquer coisa. Lústri representava os elementos mais dissolutos da turbulenta Oitava Província, que contava com mais crimes violentos do que todas as outras juntas. Cada província fazia suas próprias leis locais, sujeitas somente aos estatutos nacionais, e estava autorizada a cobrar impostos para o tesouro nacional e a fornecer uma quota determinada de homens para o exército. Havia duas grandes cidades no estado de Lústri, e nem a polícia nacional nem a local conseguiam manter ordem na província eficazmente, pois os pobres eram praticamente revoltosos. Devido à corrupção em larga escala dos funcionários públicos, os impostos eram freqüentemente cobrados à força, e a rebelião, insuflada pela pobreza, estava à beira da ebulição. O dinheiro dos Impostos era esbanjado ilicitamente, desviado dos projetos públicos legítimos. As estradas não eram conservadas, milhares de pessoas permaneciam ociosas nas cidades: vastas regiões agrícolas jaziam inaproveitadas. A aristocracia dissoluta achava impossível cobrar os impostos para o tesouro nacional. Lústri, como representante deles, tinha a incumbência de pedir à Imperatriz uma moratória de emergência sobre os impostos. Propunha que impostos maiores passassem a ser cobrados da Nona Província, seu vizinho mais afortunado, para compensar as próprias deficiências. Mas a Nona Província era próspera porque era diligente, Lústri defendeu bem a sua causa, com os olhos sorridentes presos de modo eloqüente na Imperatriz, como que a partilhar com ela algum segredo especial. Enquanto sorria, pintava-lhe um quadro patético das misérias econômicas da Oitava Província. Os lábios dele pediam mais tempo, abertamente; mais compreensão dos problemas da Oitava e uma taxação maior, temporária, é claro, sobre a Nona Província. Enquanto isso, seus olhos transmitiam outra mensagem à bela mulher, pois lembrava-se dos momentos em que o peito dela se apertara de encontro ao dele, e ele lhe sentira o bater acelerado do coração. Recordava o perfume do cabelo dela, a maciez dos seus lábios, e com o olhar dizia-lhe tudo isso. Ele tinha certeza de que ela também se lembrava. Enquanto ele falava, um homem da Assembléia ficou de pé, indignado, e a custo foi contido pelos companheiros. Alto e magro, de meia-idade, tinha os olhos azuis muito pálidos num rosto bem queimado de sol. Era o Plebeu da Nona Província. Sem perder nada do drama que ali se desenrolava, a Imperatriz ergueu a mão, e Lústri fez uma
pausa. Os modos dela eram suaves, quase indiferentes. Como se ignorasse o Plebeu, ela fez um sinal de cabeça para Gátus, o Nobre da Nona Província, parente de Lústri. Ele adiantou-se, ansioso, e ajoelhou-se agradecido para tocar a sandália dourada de Salustra com a testa. — Milorde Gátus, vós ouvistes o apelo de Lorde Lústri — disse ela. — que tendes a dizer a respeito? Vós e vosso povo estais dispostos a aceitar isso? Gátus fitou-a atentamente, mas o olhar dela era inescrutável. Lústri sofria intimamente, um sorriso de confiança e de triunfo. Tentou chamar a atenção da Imperatriz, para um olhar secreto de apreciação, mas ela não olhou na direção dele. Gátus hesitou por um momento, aparentemente perplexo, depois fez uma mesura de assentimento. Imediatamente, Públius, o Nono Plebeu, com um grito de raiva, safou-se dos seus companheiros e pulou na frente do trono da Imperatriz. Os olhos dele falseavam de desprezo justificado, ao se dirigirem a Gátus e Lústri, que sorriam levemente. — Mui benevolente Majestade, protesto contra este ataque voraz ao meu povo! — gritou o Plebeu. — Nós nos esforçamos demais para sermos objeto de tamanha conspiração por parte dos Nobres. Salustra olhou para o Plebeu com surpresa. Vários Nobres se adiantaram para juntar-se a Lústri e Gátus, e todos tocavam de leve as espadas cerimoniais, prontos para vingar a afronta grosseira à sua Imperatriz. Salustra fê-los afastarem-se com um gesto lânguido, deixando apenas Lústri, Gátus e o Plebeu de pé em frente ao trono. Indicou o Plebeu em primeiro lugar: — Públius, aproximai-vos e dizei por que não devo impor este imposto ao vosso povo que é mais próspero. Lústri, supremamente confiante, brincava com o cabo enfeitado de pedras preciosas de sua espada. Gátus, sorrindo pouco à vontade, traçava com um pé nervoso a linha que unia duas secções de mármore do chão. Públius estendeu as mãos, apaixonadamente. Sua voz ressoou de ira justificada: — É injusto que os diligentes tenham que pagar pelos ociosos. Para que então deve um homem esforçar-se e trabalhar? Com que propósito? A Imperatriz ficou pensativa, de olhos fitos no chão. Não olhava nem para Lústri, nem para Públius. De repente, bateu com a mão espalmada no lado do trono, e seus olhos faiscaram. Falou numa voz bem clara: — Nego o pedido feito pelo Lorde Lústri. Um murmúrio controlado, como o princípio de um vento, perpassou pela Assembléia. Os Nobres se entreolharam, assombrados. Olhares malévolos, dantes ocultos pelo medo, eram dirigidos
ao pobre Lústri, que fitava a Imperatriz, incrédulo e atordoado. Lústri tremia visivelmente, e gotas de suor começaram a aparecer na sua testa. Estendeu a mão trêmula, num gesto quase de súplica. Ela o observava com olhos velados, e sua boca encrespou-se um pouco. — Mas, mui benevolente Majestade — começou Lústri, numa voz que era pouco mais que um sussurro — imploro-lhe que dê maior consideração ao assunto. Deve haver algum engano! A mão da Imperatriz moveu-se devagar até a garganta, e seus dedos esguios ficaram brincando com a pedra preciosa ali existente. Lançou a Lústri um olhar que o reduziu à plena consciência do abismo que os separava. — Já considerei — disse calmamente. — Não entendo porque o trabalho e a prosperidade devam ser punidos pela inferioridade e criminalidade. É só. Lústri estava acabrunhado. — É só? — sussurrou, umedecendo os lábios. A Imperatriz inclinou a cabeça, friamente. Pálido como cal, Lústri fez uma reverência e dirigiu-se a um dos bancos. Um grupo de Nobres, de rosto impassível, afastou-se ligeiramente dele. Como se Lústri nunca houvesse existido, a Imperatriz tomou um rolo de pergamínho que estava no seu colo e leu-o de cenho franzido. — E agora, o resto — disse bruscamente. — A vós, Gátus e Públius, damos-vos permissão para construir uma estrada provincial anexa à estrada nacional. Cobrareis os impostos necessários para o projeto. Podeis sacar dos fundos nacionais até 10 por cento da arrecadação local. Os negócios de rotina daquele dia prosseguiram. Salustra ponderou diversas propostas; ouviu os conselhos que lhe deram e tomou sua decisão. A palavra dela era final. E assim os assuntos rotineiros daquele dia foram concluídos. Durante uma década ela governara Atlântida, e durante aquele tempo todo fizera o melhor possível para deter uma maré inevitável. Era uma observadora astuta, e sabia que a hora da decisão se aproximava célere para o seu país. Tinha sempre presente no pensamento os bárbaros grosseiros do norte. Como estudante de História, ela sabia que, quando uma nação começa a apodrecer internamente, está no ponto de ser conquistada externamente. Atlântida lhe obedecia, mas não a amava. Ela não tinha lugar para sentimentalismos. Sabia, como seu pai antes dela soubera, que os homens respeitam a mão que maneja o chicote, e que consideram a suavidade de um soberano como uma fraqueza. Ela sabia que no começo de uma civilização os homens são simples e confiam em si mesmos, que as nações brotam das sementes de uma civilização mais antiga, crescem, tornam-se vigorosas, viris e supersticiosas, e, finalmente,
absorvem o organismo em decomposição que lhes deu a vida. Com malícia, chamavam-na de Rainha Virgem. Ela era um símbolo do florescer final de uma civilização moribunda. Para seus súditos, era a personificação de Atlântida. Comentavam os seus amores, gracejando que ela só escolhia para amantes os mais moços e fortes. Quanto à parte intelectual, era amiga sincera dos cientistas, filósofos, poetas e artistas. O verdadeiro valor não morria à míngua, embora ela bem soubesse que quanto mais viva brilha a chama do gênio, mais depressa se consome a si mesma. — É melhor um dia de vida radiante do que um século de escuridão — dizia com freqüência. Também com freqüência repetia para si mesma as palavras cépticas do Imperador, seu pai: "Pensar é começar a morrer." Numa tentativa de adiar o declínio, ela oferecera incentivos aos cidadãos de capacidade reconhecida, para aumentarem o tamanho das suas famílias, já que um dos motivos por que Atlântida estava morrendo era que os homens e mulheres de classe estavam praticando o controle de natalidade quase absoluto. Era tão simples estetizar tanto os homens quanto as mulheres por meio das injeções apropriadas, com validade para seis meses, que só os obtusos e os inferiores, que esperavam conseguir mais emoção nas suas vidas, reproduziam-se em índice superior à sua taxa de mortalidade. Também havia outro incentivo. Eles então poderiam requerer ao fundo nacional benefícios adicionais de assistência social. A própria sensibilidade dos superiores apressava o seu fim. Porque temiam não poder proteger adequadamente seus filhos contra uma sociedade turbulenta e devassa, recusavam-se a tê-los. Salustra havia tentado persuadir os ignorantes e os supersticiosos a praticar o controle da natalidade. Mas os grupos religiosos chefiados pelos sacerdotes protestaram em altos brados, e os ignorantes e supersticiosos protestaram com eles. Que direito tinha uma simples soberana temporal de ordenar que eles abrissem mão do seu direito divino de gerar os seus rebentos débeis, retardados mentais, dependentes, com tendências criminosas? Salustra pensara em recrutar os seus arquiinimigos, os membros do clero, para aumentar a taxa de natalidade entre as classes superiores por meio de ameaças de tormentos futuros indizíveis, se eles praticassem o controle. Ironicamente, só os ignorantes e os indesejáveis se dispunham a ouvir tais absurdos. Ela acabou por descobrir um plano para punir os estrangeiros, os miseráveis, os incompetentes, os dependentes e os inferiores por produzirem um número ilimitado de filhos. Negoulhes os benefícios monetários da assistência social. Proibiu as uniões dos doentes, dos incapazes e dos biologicamente inferiores. Pregava as relações sexuais entre os homens solteiros de superioridade comprovada e as mulheres da escolha deles, e tomava as crianças nascidas dessas relações sob a proteção do estado. A ilegitimidade não era nenhuma desgraça. O clero, os piedosos e os virtuosos ficaram indignados. Mas Salustra fê-los calar com firmeza: — Essas crianças são do estado — dizia. — Atlântida é o pai e a mãe delas. Os inimigos debochavam abertamente, Se ela pregava o nascimento de crianças fora de série, especiais, porque ela mesma, a flor de Atlântida, não dava o exemplo? A nata da mocidade masculina e patriótica do país estaria pronta a cooperar para o bem público. Salustra ignorava esses
comentários ferinos. Ela se regozijava com seus inimigos, avaliando a eficácia das suas leis pela oposição a elas em determinados setores: os senhores das indústrias, os indolentes, os reincidentes em pedir auxílio à assistência social, e as classes criminosas. Às vezes, epigramas obscenos eram rabiscados nos muros do seu Palácio. Circulavam histórias sobre as horas amorosas dela, encorajadas pelos sacerdotes malévolos. Mas a maioria silenciosa confiava na sua fria inteligência. Tinha poucos amigos e estes mantinham uma firme atitude de crença na sua virgindade, como que a distingui-la das outras mulheres. Essa ingenuidade tanto a irritava quanto a divertia. Ela entendia bem demais que eles estavam realizando nela, de modo enganador, os ideais sentimentais das suas próprias fantasias juvenis. Os homens sábios e astutos eram quase infantis em assuntos sexuais. Só os cínicos eram totalmente emancipados das convenções. Ela costumava dizer: "O cinismo é a empáfia dos jovens, a afetação dos maduros e o chá amargo dos velhos".
3
Salustra esfregava os olhos, sonolenta, enquanto Máhius a observava com uma expressão solene. — Por que essa cara, Máhius? — disse. — Como podia o dia de hoje ser mais desagradável que o de ontem? O ar compungido de Máhius dava-lhe a aparência de uma esponja espremida. — Majestade, os geólogos relatam um imenso ronco nas entranhas da terra, mais para o norte. Ela sentou-se na cama e olhou marotamente para o seu Primeiro-Ministro. — Olha para o outro lado, velho, enquanto eu saio da cama. Atualmente só uso a minha pele para dormir; está tão horrivelmente quente sem o sistema de refrigeração central. Por que os geradores do Palácio, que ainda alimentam as nossas lâmpadas, não são estimulados o bastante para enviar o ar refrigerado para os meus aposentos? Máhius replicou humildemente, de olhos postos no chão: — Os geradores têm pouca força, Majestade, suficiente apenas para uma iluminação parcial, e pode-se apenas fazer especulações sobre a hora em que vai acabar esse débil fiapo de energia. Sentada na beira da cama, era uma visão reluzente numa veste curtinha que começava na curva suave do seio e terminava à altura dos quadris. Máhius tossiu, meio sem jeito. — Agora, fala-me desse terremoto, velho — disse Salustra, num tom jocoso, O olhar de Máhius nunca estivera tão próximo de uma reprimenda à efervescente Imperatriz. — Não é para brincar, Majestade, quando se leva em conta a terrível situação em que nos encontramos. Salustra ficou atenta, imediatamente. — Fala claro, velho — disse bruscamente. — Que queres dizer com isso? O velho engoliu em seco algumas vezes. — Este não é um terremoto comum, e o sísmógrafo não registra tanta atividade no Monte Atla desde que o último divisor de átomos convenceu os nossos ancestrais de que ele era uma arma devastadora demais para ser controlada pelo homem.
Salustra jogou um penhoar colorido sobre o corpo, buscou a corrente com a pedra preciosa que pertencera ao pai e ficou de pé, imediatamente alerta. — Se nós não explodimos o átomo no ar pelo risco do que possa acontecer ao nosso povo, como é que outros poderão usá-lo com segurança? — Ela levantou os olhos, assaltada por uma idéia súbita. — Ao norte fica apenas o país de Althrústri, e ele é atrasado demais para ter desenvolvido a energia nuclear. Máhius agitou a mão de modo expressivo. — O fabrico dessa arma não é nenhum segredo, Majestade. Milhões dos nossos cidadãos estiveram envolvidos na sua produção e no seu uso, e alguns deles são naturais de Althrústri, com uma lealdade primordial ao seu país natal. — Que estás sugerindo, velho? Ele deu de ombros. — Como Vossa Majestade, eu me pergunto onde eles a conseguiram, e vejo apenas uma resposta razoável. Os olhos da Imperatriz faiscaram. — Não aceito a sugestão de que algum dos nossos, embora descontente, pudesse submeter o destino do seu país aos caprichos do bárbaro. Máhius ficou em silêncio por alguns minutos. — Não é isso que me preocupa no momento, Majestade. Ela fitou-o, surpresa: — Então o que é? — Sabemos que o divisor de átomos deve ser detonado subterraneamente, bem fundo, para não desencadear uma reação em cadeia que destruiria a terra com o seu calor terrível. Ela lançou-lhe um olhar impaciente. — Vamos, homem, continua. — Se os althrustrianos explodiram o átomo na atmosfera, ele já poderia ter começado, graças à enorme energia térmica que liberta, um movimento pulverizador nas montanhas de gelo sólido do pólo. Ela fitou-o, pensativa. — Se assim fosse, como isso se manifestaria? — Ainda é cedo para dizer, mas à medida que o calor mastigasse o gelo, passariam a existir todos os elementos progressivos de um grande degelo. Primeiro, o efeito pulverizador, depois, à medida que a radiação continuasse, o derretimento de um campo de gelo tão grande quanto o próprio Oceano Atlântico.
— Isto significaria o fim de Althrústri. Ele as sentiu, gravemente. — E talvez da Atlântida, como os oráculos vêm profetizando há séculos. Ela falou vivamente: — Eles não marcaram data, velho. — Não é bem assim, Majestade. — Recitou serenamente: — "Quando o país estiver tão corrupto que até os animais dos campos e os pássaros dos céus fujam dele, então veremos os últimos dias e a vingança dos deuses." Os lábios dela encresparam-se de contrariedade. — Não me fales dos deuses, Máhius. Ainda é muito cedo para oráculos. Além disso — ela olhou para um marcador de tempo próximo à sua cama — está na hora de reunir-me de novo às 12 Províncias. Preciso preparar-me para esta lambujem sem sentido que se dá à tradição. Máhius levantou-se com esforço, rangendo seus ossos velhos mais do que de costume. — Eu verei Vossa Majestade lá, talvez com mais informações. — Vamos, velho — disse ela, — E enfrentemos juntos esta provação mais imediata da Assembléia provincial. Quatro vezes por ano Salustra reunia-se durante três dias com os representantes das 12 Províncias. O Plebeu era escolhido por referendum popular, o Nobre pela aristocracia, cada um por seis anos, e nenhum deles podia servir mais tempo sem o consentimento expresso do soberano. Lazar dissera que "desse modo pode-se minimizar a corrupção. Leva-se três anos para ficar vulnerável à corrupção, e mais dois anos para sobrepujar o medo de ser apanhado!" O soberano era a autoridade suprema, e o mais íntimo podia apelar passando por cima do mais alto funcionário público. A traição e o abuso da confiança pública eram os piores crimes, punidos com o confisco e a morte. Os filhos dos representantes do povo que eram condenados perdiam os seus direitos por 10 anos. As eleições eram supervisionadas, e não se podia gastar mais do que mil decenários em qualquer campanha — uma quantia de pouca monta. Houve uma época em que surgiu um movimento para dar o direito de voto à mulher. Salustra vetara a proposição. Dissera: — No começo votarão como os pais, os maridos e os filhos. Desse modo, haverá apenas uma multiplicação do voto masculino proporcional. Mais tarde, elas se governarão pelas aparências, e votarão apenas nos candidatos mais bonitos e simpáticos. Serão todos atores ou modelos. Ela nunca pensava em si mesma como mulher, e era considerada mais fria, mais implacável e mais indomável que o seu próprio pai. Ocasionalmente, Lazar tivera gestos de piedade e generosidade. Mas Salustra não. Uma coisa ou era certa ou era errada; ou infringia a lei nacional ou não. Alguns a achavam cruel; outros a defendiam, dizendo que ela era dura, mas justa. E a justiça sem a misericórdia pode ser uma coisa terrível. Assim como se reunia com as províncias quatro vezes por ano, conferenciava por razões diplomáticas com os embaixadores dos pequenos reinos do sul e
de Althrústri. Os dois embaixadores de Althrústri geralmente exibiam um ar de tranqüilo desafio perante a rainha. — Althrústri — murmuravam eles — é tão grande quanto a Atlântida. — Os fortes não precisam da diplomacia — ela dizia com secura — ou de diplomatas como vocês, com toda a certeza. Eles mantinham o seu amo informado sobre essa extraordinária mulher, com relatórios regulares. Ela não tinha ilusões sobre as ambições do Imperador Signar. Sabia que Althrústri era mais jovem, mais vigoroso, mais faminto por poder que a Atlântida. Estava sempre atenta ao norte, ouvia sem comentários os protestos de amizade dos embaixadores de Signar. Não guardava ressentimentos. Signar meramente representava o inevitável. Para que ressentir-se das tormentas, dos terremotos ou das inundações? A juventude sempre perseguia ferozmente a maturidade. Atlântida já tivera a sua época; estava chegando a hora de Althrústri. Contudo ela adiaria este momento. — Sede pacíficos — era o lema dela. — Não tomeis nenhuma atitude abertamente, mas deixai que todos vejam que a vossa espada está bem afiada. — Seus ministros, com exceção de Máhius, haviam aconselhado o desarmamento. Eles diziam que uma exibição constante de aviões, navios e mísseis nucleares, juntamente com os raios desintegradores, era um convite à guerra. Que o vizinho do norte visse a Atlântida desarmar-se e ele logo seguiria o seu exemplo. Salustra sorrira, incrédula. Como esses pretensos sábios podiam ser tão simplórios? — Um homem desarmado é uma tentação para os seus inimigos — replicou ela. E disse ao seu povo: — Se amais a Atlântida e desejais a paz, armai-vos até os dentes. O povo confiara de tal modo nela que votara para um maior arsenal de armas. Signar fora compelido a fazer a Salustra um elogio de má vontade. — Ela é uma líder — disse aos seus embaixadores preocupados — embora lidere um rebanho doente e poltrão. Os althrustrianos não eram suficientemente adiantados tecnologicamente para serem páreo para a Atlântida em qualquer corrida nuclear. Mas, por meio de espionagem, por meio de promessas a cidadãos descontentes de Atlântida e a traidores de dar-lhes pequenos principados ou altos cargos, eles haviam roubado aquilo que não podiam criar. Haviam detonado as suas primeiras armas nucleares no deserto glacial ao norte da sua triste capital, Rayjava. Abriram-se enormes buracos nas montanhas de gelo, e formaram-se nuvens de névoa pesada, que pairavam sobre os picos de gelo como um grosso cobertor. Depois de certo tempo, o nível das águas logo ao sul de Althrústri havia subido visivelmente, mas eles não deram importância ao fato, pois pouco sabiam das armas que haviam roubado e não entendiam sua ação de longo alcance. E no seu desprezo pelas conseqüências, Signar deixou claro que não hesitaria em usar o átomo como ataque. — Qual o outro motivo para as armas, senão subjugar os nossos adversários? Ele desprezava a relutância do regime de Atlântida de anulá-lo, quando tiveram a oportunidade.
— Exceto pela sua Imperatriz — disse altivamente — são todos umas mulheres. Além do seu plano de anexar a Atlântida, ele denotava um interesse crescente por essa mulher. Quando ela prendia os agentes dele, ele ria, de modo apreciativo. Da parte dele, prendera alguns dos espiões dela e devolvera-os à Atlântida, com presentes esplêndidos para a Imperatriz. A resposta de Salustra fora mandar para Signar, numa cesta dourada, a cabeça do primeiro espião althrustriano preso a seguir. Não era tão fácil assim descartar-se da crise de energia. Como a necessidade é a mão da invenção, ao longo dos séculos Atlântida havia canalizado o fluxo de energia do sol e do mar até tornar-se a maior potência da terra. Tecnologicamente, ela era suprema. Suas indústrias e lojas, seus lares e veículos, todos serviam-se desse reservatório aparentemente ilimitado da natureza para manterem um complexo sistema de produção, transportes e comunicação. Mas enquanto essa tecnologia se desenvolvia até que a Atlântida dominasse claramente os seus vizinhos, não havia um desenvolvimento proporcional nos valores culturais e filosóficos. Em verdade, a própria abundância de energia, que contribuía para uma sociedade cheia de horas de lazer, que enfatizava o luxo e os confortos materiais, servira para apressar a decadência de uma sociedade que sabia o preço de tudo e o valor de nada, Salustra avaliava corretamente o seu povo. Indolentes, frouxos, auto-indulgentes, estavam apodrecendo no seu âmago, e estavam no ponto para serem dominados por qualquer adversário com astúcia suficiente para perceber a corrupção interna deles e com ambição necessária para capitalizar sobre essa fraqueza, A neblina misteriosa que cobria o país, juntamente com a falta de força e as antigas profecias de destruição, haviam criado um clima de confusão. Se não fosse pelas medidas drásticas tomadas por Salustra e seus ministros, o país estaria num caos. Antes de reunir-se de novo com a Assembléia Nacional de Nobres e Plebeus, Salustra havia convocado os seus Ministros do Transporte, das Comunicações, da Atmosfera, da Ciência, da Energia Solar e da Preservação Nacional numa sessão secreta para enfrentar a mais séria crise da nação desde a antiga luta pela sobrevivência contra os dinossauros gigantes. Os membros do Gabinete estavam tão confusos quanto o povo em geral, mas Salustra, renovando as suas energias um tanto gastas por meio do amuleto energético que usava ao pescoço, havia anunciado que não havia tempo para debates, pois o país em breve estaria estacionário, com a produção alimentícia apodrecendo nos campos, ou não sendo fabricada nem distribuída, Ela disse a Timeus, o Ministro do Transporte: — Dou-vos 12 horas para restabelecer o movimento de mercadorias e suprimentos nas nossas estradas e vias navegáveis. — Quando Timeus, um homem magro de compleição morena, abriu a boca para protestar, a Imperatriz levantou a mão. — Não me digais, Timeus — disse em tom de zombaria — que já tendes uma solução. Ótimo! Veremos a prova disso pela manhã. Os ministros, reunidos nos aposentos particulares dela. estavam com ar muito solene. Ela
lançou-lhes um olhar imperturbável. — Não preciso de nenhum ministro para dizer-me o que não pode ser feito, apenas o que pode ser feito. Vós, Fribian — indicou o Ministro da Energia Solar — dizei-me por que os nossos receptores de cristal e os nossos transmissores irradiantes não estão nem enviando nem recebendo energia pela atmosfera. Fribian, um homem impressionante, de ar jovem, levantou-se imediatamente e começou a falar com a franqueza da mocidade. — Achamos que isso está ligado à neblina, Majestade. Horas depois que a neblina apareceu, começamos a ter notícias de paradas em todos os navios, aeronaves e veículos terrestres movidos pelo sol, que não podiam sequer enviar mensagens contando a situação em que se encontravam. O nosso telessom e o aparato de imagens distantes pararam simultaneamente, do mesmo modo que todas, as instalações que dependiam da transmissão da eletricidade pela atmosfera. Salustra assentiu, pensativa. — E o que fizestes, Fribian? O ministro agitou as mãos de modo expressivo. — Na impossibilidade de mover o sol, posso apenas dar sugestões. — E quais são vossas sugestões? Fribian indicou o Ministro da Atmosfera, Hammu, que se sentava à sua frente, brincando com um lápis. — Discuti com o Ministro Hammu a possibilidade de dissolvermos a neblina, como já fizemos com grupos de nuvens quando sentimos a necessidade de um pouco de chuva adicional. — E daí? — Salustra olhou impaciente de um ministro para o outro. Hammu era um homem encorpado, de rosto redondo, olhos castanhos mortiços e ar truculento. Era famoso como físico. — É fácil dar sugestões, Majestade, mas sugestões não movem os céus. A Imperatriz lançou-lhe um olhar imperioso. — E o que fizestes, senhor? — Essas nuvens são diferentes de quaisquer outras, Majestade. Nós as enchemos de todo tipo de substâncias químicas produtoras de água, sem o menor efeito. A neblina parece apenas ficar mais espessa, pairando mais baixo na atmosfera. — Ele fez uma pausa de um momento, e seus olhos percorreram a mesa, vagarosamente. Sua expressão era sombria, e seus ombros estavam caídos. —
Os pássaros desapareceram todos dos céus de Lamora, como se tivessem uma premonição do desastre. Nada que ele houvesse dito teria oprimido mais os dignitários presentes, suscetíveis que eram aos presságios repetidos de catástrofe dos astrólogos. Salustra reagiu com presteza à bomba de Hammu. — Ora — exclamou — sem dúvida foram espantados pela fumaça nociva; esta névoa tresanda a enxofre. Seus olhos vieram pousar no seu conselheiro supremo, Máhius. — E vós, caro amigo, que dizeis desta conversa melancólica? Apenas Máhius ousava dizer o que pensava, não somente porque era o mais chegado à Imperatriz, como também porque duas vidas o haviam cansado, e ele não aspirava mais ao maior prêmio que uma Atlântida agradecida podia conceber — a câmara de rejuvenescimento. Por este motivo também, Salustra, que se tornara cínica com o seu reinado, sabia que podia contar com ele para uma opinião honesta. Ele nada tinha a ganhar ou perder. — Que dizeis? — repetiu ela, enquanto ele permanecia absorvido em seus pensamentos. Ele falou devagar, com ar solene: — Majestade, assim como Fribian não pode mover o sol, Hammu não pode alterar a atmosfera, e Timeus — indicou com a cabeça o Ministro de Transportes — não pode mover o imovível. Ela agitou a cabeça, impaciente. — Então vamos ficar aqui sentados sem fazer nada, enquanto o povo morre de fome, e Signar chega até aqui em embarcações movidas a combustíveis antiquados e se apodera de tudo o que construímos ao longo dos séculos? Havia um ar de sorriso nos lábios cinzentos de Máhius. — Não, Majestade, mas podemos aprender com o bárbaro. Temos a nossa rede de canais e frotas de pequenas barcaças, algumas movidas por energia nuclear, outras pelos raios do sol. Podemos adaptar-lhes velas e remos e deixar que cruzem as águas do modo que cruzavam na época dos nossos ancestrais, há séculos. Entrementes, vasculharíamos os museus atrás das máquinas de combustão interna que nossos antepassados usavam, e quem sabe acharemos no solo o combustível para elas. — Ele fez uma pausa, vendo o cenho franzido dela. — Seria um expediente temporário, Majestade, para poder movimentar os alimentos, perecíveis por falta de refrigeração, e para alimentar um império, enquanto os vossos ministros se dedicam a esta crise. Com seu jeito para decisões instantâneas, a cabeça da Imperatriz se inclinou.
— Timeus, ide andando, e que esses navios se estejam movendo antes do alvorecer. Timeus tinha os olhos argutos do marinheiro. As embarcações de pequeno porte eram o seu passatempo. Os olhos dele brilharam ao ouvir as instruções. — Será feito, Majestade. Lamora não morrerá de fome. Mas vou precisar de ajuda. Virou-se para o Ministro da Preservação Nacional, que até o momento mantivera uma atitude distante, quase desdenhosa. — Necessitarei da máxima cooperação de Sabian para os homens que forem precisos. Os olhos da Imperatriz voltaram-se para um homem baixo, de rosto gorducho, que parecia enfatiotado demais para uma ocasião tão severa. — E que dizeis vós, Sabian? Sabian hesitou. — Levará tempo, Majestade, para reunir uma força tão imensa, considerando o colapso dos sistemas de comunicação e trânsito rápido. Os olhos da Imperatriz flamejaram. — Tolo! — explodiu ela. — Se os sistemas estivessem funcionando, nós não estaríamos aqui, mas sim nos jardins ouvindo os pássaros, que também são ineficazes. O Ministro da Preservação Nacional empalideceu visivelmente ante essa reprimenda. — A Atlântida já não se pode dar ao luxo de vos manter, Sabian. Por tempo demais permitistes aos vossos devaneios indolentes transformarem a vossa pasta num cargo decorativo. — Os olhos dela fixaram o Ministro dos Transportes. — Timeus, vós sois agora também o Ministro da Preservação Nacional. Sabian estava branco como giz. Os outros ministros evitavam o olhar dele. Ele gaguejou por um momento. — Posso retirar-me, Majestade? — E já não é cedo demais para isso. Ide, homem. Vós não conseguis sequer preservar-vos a vós mesmo. Sabian parecia ter diminuído de tamanho, quando se esgueirou para fora da sala. Mal a porta se fechou, Salustra dirigiu-se a um homem alto e magro, com uma boca nervosa. — E vós que dizeis, Matthias? O Ministro das Comunicações estava pronto:
— Logo que começaram a chegar as notícias de que os navios e os veículos de diversos tipos haviam perdido o poder de navegar e de se comunicar, Majestade, estabeleci um sistema de mensageiros a pé e a cavalo para as comunicações terrestres, e semáforos, usados há muito pelos nossos ancestrais, para as comunicações marítimas. Mas, infelizmente, somos prejudicados no mar pela incerteza do sol que se reflete nos nossos espelhos e pela visibilidade limitada. Entrementes, ainda tentamos penetrar a atmosfera, mas os nossos sinais de rádio não funcionam. É como se a neblina houvesse colocado um cobertor na atmosfera, bloqueando todas as freqüências elétricas pelas quais as vibrações de som, luz e movimento são conduzidas por ela. Salustra tudo ouvira atentamente. — Bom trabalho, Matthias. Há outros que poderiam aprender convosco, com a vossa engenhosidade. Matthias inclinou a cabeça, modestamente. — Faço o que posso, Majestade, mas um adversário audaz poderia passar pelas nossas defesas prejudicadas sem o nosso conhecimento. O nosso sistema de aviso antecipado não funciona. Nada aparece nas nossas telas de telessom, nem mesmo as ondas buliçosas. Com ar sombrio, Salustra virou-se para os seus dois Ministros da Ciência. Eles expressaram a sua esperança de que a neblina logo desaparecesse e o sol voltasse a ser visto. Salustra encarou secamente os cientistas. — E que recomendaríeis, ó cientistas? Que apelássemos para a Alta Sacerdotisa Júpia, para que ela intercedesse a nosso favor junto aos deuses? Os ministros enrubesceram. Bronko, o coordenador científico, era uma figura corpulenta, com uma voz profunda, — Eu me demitirei de bom grado, se Vossa Majestade achar que outro pode fazer melhor que eu. Ela lançou-lhe um sorriso amistoso. — Não culpo a nenhum de vós por aquilo que está além de vosso alcance. Mas culpar-vos-ei por aquilo que puder ser feito e não o for. Atlântida ainda é o último bastião da civilização, e deve ser preservada. Os ministros estavam conhecendo outro lado da Imperatriz que os libertinos e os brincalhões da corte sequer imaginavam. — Todos darão o melhor de si — disse Máhius, em tom otimista. — Ide, então, e mostrai aos nossos adversários que ainda não estamos prontos para brincar de
mortos. Enquanto os demais saíam, em fila indiana, a Imperatriz fez um sinal a Máhius para que ele ficasse. Ela bebericava um copo de vinho. — O cristal de sete cores que meu pai me legou — disse ela, indicando a jóia ao redor do pescoço — tem sido sobrecarregado de exigências para conservar a minha energia, ultimamente. Máhius conseguiu dar um sorriso, mas disse com toda a franqueza: — Mesmo sem Signar, Atlântida está em situação crítica. Ela fitou-o, pensativa. — Sempre poderemos voltar aos combustíveis antiquados: carvão, petróleo e gás natural, embora esses materiais primitivos ocupem tanto espaço e poluam o meio ambiente. — Significaria ressuscitar os motores de combustão interna em larga escala, e outros dispositivos mecânicos arcaicos movidos por esses combustíveis. Ela concordou com a cabeça. — Que assim seja... dá as instruções necessárias a Góbi, o Ministro da Ciência. Ele nada acrescentou à reunião de hoje, e deveria ficar satisfeito de poder provar que não é tão decadente quanto a sua preciosa irmã, que é conhecida em toda a nação pelos calos que tem nas costas. Máhius sentiu-se exausto, de repente. — Há algo mais, Majestade? — Sim, quero que faças comigo uma visita pela cidade. Agora que os veículos terrestres não estão funcionando, podemos viajar numa das liteiras cerimoniais, sem chamar a atenção da população. A despeito do progresso tecnológico de Atlântida, para satisfazer à antiga tradição, a liteira cerimonial fora mantida, com os seus guardas, como o único meio de transporte para o monarca reinante viajar pela cidade, assim como as espadas cerimoniais ainda eram mantidas pela aristocracia como símbolo da antiga tradição. Máhius mostrou um ar de desânimo. — Sou um velho, Majestade, e a fadiga já se acomodou nos meus ossos. Ela lançou-lhe um olhar zombeteiro. — Talvez devêssemos recolocar-te na câmara de rejuvenescimento.
O rosto de Máhius contorceu-se de horror. — Por favor, Majestade, isso não, não de novo. A vida já tem lembranças demais para o meu cérebro sobrecarregado. Salustra sorriu carinhosamente para o seu leal conselheiro. — Estava apenas brincando. Podes ir, acharei outro companheiro para a minha visita à cidade. Com uma reverência agradecida, Máhius afastou-se da presença real. Mal ele se foi, a Imperatriz mandou chamar Creto, o jovem Prefeito da sua Guarda Palaciana. Ele chegou em poucos minutos. Era um rapaz corpulento com músculos salientes e um brilho no olhar. Fez uma mesura profunda, depois lançou à Imperatriz um olhar intrigado. Ela sorriu apreciativamente, por um momento, mas depois a sua voz se tornou enérgica e decidida. — Manda chamar uma liteira, pois vamos fazer uma inspeção da cidade e das suas usinas adormecidas. Creto ficou surpreso. — Mas é tarde, Majestade, em poucas horas estará amanhecendo. Ela deu ao soldado de tão belos músculos um sorriso cândido: — E o poderoso Creto teme os salteadores? Não é preciso; os carregadores da liteira te protegerão. Creto enrubesceu até as raízes do seu cabelo louro ondulado, — Bem sabe que de bom grado daria a minha vida por Vossa Majestade. — É melhor que a poupes para mim, meu protetor. Tu me serves bem melhor vivo. Salustra tinha a curiosidade normal do leigo pelas máquinas produtoras de força, que pareciam tão intrincadas e todo-poderosas, mas que no momento eram gigantes adormecidos e impotentes. Ela sempre desconfiara dessas máquinas, que eram incongruentemente muito mais poderosas que seus amos. Sempre defendera a idéia de que a mente do homem deveria ser capaz de fazer exatamente qualquer coisa que uma extensão da sua mente pudesse fazer. — Aquilo que um objeto inanimado pode fazer — insistia ela — na certa a mente que o concebeu também pode. Ela pensava em tudo isso ao começar sua visita de inspeção. Acompanhada pelo fiel Creto, ela foi levada até uma via navegável bem próxima, uma das muitas que formavam uma rede de canais
que ia de uma extremidade da cidade a outra, e que desaguavam num grande fosso de água do mar, com cerca de um quilômetro e meio de largura, que cercava a cidade. A barcaça dela, a primeira a que adaptaram velas, conduziu seu pequeno grupo em meio à noite pesada até uma importante estação bombeadora de água existente no começo da enseada. Aí, em condições normais, a água do oceano era forçada através de condutos à prova de corrosão, criando energia elétrica para as usinas de dessalinização que tornavam potável a água do mar e filtravam as suas riquezas, coletando, ao mesmo tempo, os elementos valiosos dos materiais de resíduos humanos e enviando as impurezas para o alto-mar. A barcaça entrou devagar no grande fosso, onde foi subitamente impulsionada por uma correnteza rápida e rodopiante, formada por imensos quebra-mares enfiados bem nas profundezas do mar aberto. A estação bombeadora, uma das muitas que circundavam o fosso, estava em silêncio, embora fossem de estranhar as luzes que brilhavam timidamente através das janelas do andar térreo, a despeito da falta de energia. Os guardas reconheceram Salustra imediatamente, e o contra-mestre da estação foi logo chamado. Era um homem de olhos sonolentos, com um bigode vermelho farto e sobrancelhas que contrastavam de modo estranho com sua cabeça calva. Salustra logo o identificou como integrante do pequeno exército de funcionários públicos eficientes que conseguia manter externamente intato o seu império em decomposição. Ela anunciou: — Vim eu mesma observar as coisas. Como é possível que tenham luzes se o resto da cidade está em escuridão? Minotaur, o gerente, fez uma profunda mesura: — Temos o nosso próprio gerador, para essas emergências, assim como Vossa Majestade, no Palácio e nas câmaras governamentais. Ela indicou uma das janelas: — Vejo as ondas encarneirando-se como sempre, tirando energia das marés; então por que tuas bombas não se agitam com toda essa força? — Majestade, as nossas bombas são movidas pela energia solar, do vasto centro solar que circunda a montanha, e por um motivo que ainda não compreendemos, esse fluxo de energia cessou. — Não é loucura depender de somente uma fonte de energia, quando o mar está à espera das nossas ordens, o mar que nuvem alguma pode obscurecer? — Minotaur hesitou, pouco à vontade sob o olhar severo da Imperatriz. — Fala, homem, não é hora para protocolos. Por que o oceano não move as tuas bombas? — Perdoe-me, Majestade. Normalmente conseguimos gerar força marítima suficiente para cento e um fins domésticos. Este programa alternativo era para tornar-se operacional quando o sol se
mantivesse escondido por trás das nuvens por três ou mais dias. e o suprimento solar tivesse diminuído. — Ele deu de ombros, tristemente. — Com o sol obscurecido, está sendo produzida a energia das marés, como indicam os nossos instrumentos, mas ela se dissipa antes que os nossos transformadores possam convertê-la em energia. É um mistério! — E como funciona o teu gerador? — A Imperatriz olhou significativamente para a lâmpada do teto. Minotaur ficou feliz por ter algo explicável para discutir. — Funciona num âmbito limitado, Majestade, num sistema de circuito-fechado, independente de vibrações atmosféricas, mas — ele franziu o cenho — mesmo assim, verificamos que o impulso está mais fraco que de costume, e algumas unidades perdem a força após poucas horas. Emocionada com a sinceridade do homem, Salustra colocou a mão no seu ombro: — São homens como tu, Minotaur, que fazem com que eu sinta que valem a pena os meus esforços. Minotaur enrubesceu e inclinou a cabeça. — A visita de Vossa Majestade é recompensa suficiente por qualquer serviço que eu tenha prestado. Ela virou-se para Creto, que estava por perto, com um aceno da mão. — Agora, vamos à usina de dessalinização mais próxima. Sem água potável — disse — quanto tempo poderemos sobreviver? — Há sempre a água das chuvas, Majestade, coletada nos rios das montanhas. — Poluída, meu caro Creto, com essa fumaça insuportável que tresanda a enxofre que cresce nos túmulos. A usina de dessalinização era um milagre de canos, tubos e câmaras subterrâneos, todos intricadamente interligados, para que os minerais como o sódio, o fósforo, o magnésio, o cálcio, o cobalto, o níquel e o manganês pudessem ser obtidos com sucesso da água do mar agitada, a diferentes temperaturas. Elementos voláteis como o cloro, o flúor e o iodo eram destilados em câmaras maciças, e aí refinados para uso comercial. Entrementes, a égua fresca, reforçada com minerais benéficos como o cálcio, era sugada para dentro de grandes canos e bombeada para os reservatórios espalhados pela cidade. Na zona de bombeamento, toda a atividade estava parada. O contramestre estava nervosíssimo, suando do calor acumulado sob a terra desde a falta de energia. A Imperatriz sentiu-se tonta com o calor.
— Como podes suportar essa temperatura? — perguntou. O contramestre era da mesma estirpe de Minotaur, leal ao seu monarca e bem treinado para essa atividade em particular. Respondeu, apologeticamente. — Nossas máquinas de refrigeração de ar requerem mais força do que os geradores de emergência podem reproduzir, e então é preciso agüentar este calor, Majestade, até tudo voltar ao normal. — É quando será isso, Fresto? — perguntou ela, verificando o nome dele numa plaqueta sobre a escrivaninha. Fresto deu de ombros, tristemente: — Ninguém sabe dizer, Majestade. O Ministro da Ciência esteve aqui hoje cedo e fez esta mesma pergunta. O rosto de Salustra tomou um ar incrédulo. — O ministro te perguntou? Então estamos realmente em apuros. — Fresto fitou-a inexpressivamente. — E quanto ao sistema de esgotos? Iremos morrer estrangulados no nosso próprio lixo? — Não, Majestade — falou o contramestre, meneando a cabeça. — As marés oceânicas, que entram e saem do fosso, ainda conduzem para fora os detritos, os quais fluem por gravitação para o próprio fosso; são tratados quimicamente nas nossas usinas purificadoras, e o resíduo é expungido. O grande Lazar criou este sistema com uma antevisão muito grande. Ela olhou para ele vivamente, procurando a sugestão de uma censura. O rosto dele estava inexpressivo. — Anda, Fresto. Estou interferindo no teu trabalho. Ela olhou para Creto com um suspiro. — Está quase amanhecendo, Majestade — disse ele. — E como podes saber nesta neblina amaldiçoada? — perguntou ela. com voz cansada. Jogou uma capa sobre os ombros ao subirem na barcaça, e estremeceu. — Se ao menos eu soubesse o que fazer!... Creto deu-lhe o braço, o forte braço. — É para isso que existem os seus ministros, Majestade. — Mas o povo me culpará, como o fez o honesto Fresto. — Não o ouvi falar de culpa alguma — Creto replicou, lealmente.
— Ah, mas sim, por que a filha de Lazar também não foi igualmente vigilante? — Mas como pode Vossa Majestade saber das maldades que os deuses fabricariam? Salustra sorriu, um sorriso sem humor. — Os meus súditos, acostumados que estão a que se façam as coisas para eles, não aceitam desculpas. — Ela estendeu a mão c tocou o rosto de Creto. — Só mais uma parada, caro protetor, e daremos a noite por finda. Havia uma luz bruxuleante no centro de energia solar, a mais acessível de uma cadeia de estações que subiam em espirais laterais pela montanha para captar o sol em todos os momentos. Os guardas colocados à entrada afastaram-se rapidamente ao reconhecerem a Imperatriz. O diretor aproximou-se segurando uma vela na mão. — Se tivéssemos tido idéia... — começou ele. Salustra interrompeu-o. — Na certa terias uma vela maior. O gerente foi inteligente o bastante para enrubescer. — Estamos em uma situação difícil e incomum, Majestade. Ela relanceou os olhos por um aposento às escuras, na direção de um balcão externo. Ali, à luz da alvorada que se aproximava, ela pôde ver uma série de cristais tipo rubi, enormes, enviesados na direção dos céus. — E o que está sendo feito para consertar esta situação? O gerente, Zeno, era um produto do sistema de funcionalismo público, como os outros que Salustra havia encontrado. Não fez nenhuma tentativa para dissimular: — O Ministro da Ciência acaba de sair, Majestade, e estamos sob as ordens diretas dele. — E as ordens são...? — Que fiquemos de plantão durante a crise. — Podes ficar aqui por muito tempo, Zeno. Ele fez uma reverência: — O meu pessoal e eu estamos prontos para fazer o que pudermos. — Muito bem, mas entrementes tu ofereces o espetáculo de um centro de energia solar sem luz suficiente para as pessoas circularem. Que aconteceu aos teus geradores independentes, homem, para que não possas ao menos ver a tua própria sombra?
Ele hesitou por um momento. — Fala, homem. — Majestade, o Ministro da Energia Solar nunca encorajou nenhuma outra forma de energia. — E por que não? — A voz dela era ríspida e insistente. O gerente ficou pouco à vontade, de repente. — Pela mesma razão — disse ele, constrangido — que o Ministro da Energia das Marés resistiu aos nossos esforços para modernizarmos o nosso sistema. — E que razão é essa? — Para que um não fosse mais importante que o outro. Salustra inspirou fundo, e seus lábios encresparam-se de desdém. — Não admira que não tenhamos um modo rápido de superar esta crise. Temos uns estúpidos para ministros. — Virou-se para Creto, mas falou como que para si mesma. — Sabe-se que uma civilização está moribunda quando os chacais disputam o primeiro bocado. — Seus olhos ficaram pensativos, concentrados. — Sob o nosso Monte Atla e 100 outras montanhas, existe energia vulcânica suficiente para aquecer 10 milhões de lares, mover 10 milhões de veículos terrestres e 1000 navios, e 100 grandes bombas, se for preciso. Os cientistas chamam a isso de energia térmica. É o próprio vapor quente da terra e, no entanto, não o aproveitamos, porque alguns acharam que iria estragar os aspectos estéticos dos topos das montanhas, enquanto outros, egoisticamente, pensaram em tornar o seu departamento o primeiro. — Ela suspirou. — Aqueles que os deuses querem destruir, eles primeiro os fazem desmiolados. Sua depressão melhorou e sua voz ficou menos profunda, ao indicar o refletor tipo cristal que se projetava sobre o balcão. — Dize-me, Zeno, como funciona isso? Zeno pareceu aliviado de estar pisando em terreno positivo. — Este é um de uma grande rede de refletores que capturam a força latente do sol, depois convertem a energia ilimitada do astro para os centros de abastecimento espalhados pelo país, enviando impulsos variados como um feixe diretor para navios, hovercrafts, veículos terrestres e unidades do sistema de trânsito rápido da cidade. — E quanto aos aeroplanos? — ela perguntou. — Como Vossa Majestade sabe, temos muito poucas aeronaves de longo alcance, pois não há civilização comparável à nossa para a qual viajar. Olhando nos olhos inteligentes dele, ela sentiu-se disposta a estender-se sobre os pensamentos que lhe povoavam a mente. — Conheces algo da História. Zeno?
— Alguma coisa. Majestade. Nasci na Atlântida, mas os meus antepassados vieram da mui honrada Dímtri. — Então deves saber que a Atlântida enfrenta a sua crise mais séria desde que os grandes dinossauros infestaram a terra há séculos, ameaçando a nossa população. Tendo destruído a maior parte da superfície terrestre, exceto Althrústri, que era fria e árida demais até para esses monstros, os dragões de armadura vieram atacar o nosso povo. A gente daquela época não possuía armas com as quais se defender daquelas criaturas impressionantes, algumas da altura de vários andares de um edifício e pesando centenas de toneladas. De que valiam lanças, espadas, machados, flechas, até mesmo catapultas contra monstros que podiam engolir um quarto cheio de homens de um golpe só? Mas, impulsionados por uma necessidade tão premente quanto a de hoje, os nossos ancestrais criaram novos meios de defesa. Primeiro, foram os lança-chamas. depois os explosivos, mas nem as chamas nem as armas de fogo comuns conseguiram penetrar aquele couro de 60 centímetros de espessura. Portanto os nossos antepassados, desenvolvendo ciências novas, movidos pela extrema necessidade, experimentaram com a atmosfera e verificaram que podiam captar grandes fontes de energia do sol, capazes de um grande poder explosivo quando levadas até uma temperatura tão alta que dividia o átomo. E assim nasceu o divisor de átomos nuclear. Mas, ao mesmo tempo que ele eliminava os animais monstruosos, também foi destruindo florestas, montanhas e áreas povoadas. Mas disso tudo surgiu a energia que deu à Atlântida uma tecnologia que nunca foi superada. Ela ficou quieta por um momento, pensativa, enquanto tanto Creto quanto Zeno mantinham um ar de atenção respeitosa. — E que foi que isso fez por nós? Fez-nos muito ricos, depois estúpidos e amantes dos prazeres. — Abruptamente, ela balançou a cabeça. — Vamos, estou mantendo-vos acordados, e a mim também. — Ela fez sinal a Creto. — Vamos despedir-nos do valoroso Zeno, que toma conta do farol depois que as luzes se apagam. Já amanhecera, embora não se enxergasse o sol, quando a Imperatriz finalmente voltou para o seu Palácio e sua cama. — Vai, Creto — disse jocosamente, fazendo-lhe um agrado carinhoso na cabeça. — Tu bem que mereces a tua própria cama pelos serviços que me prestaste esta noite.
4
Salustra conferenciou gravemente com seu ministro e seus representantes sobre um assunto inteiramente novo. Um bando de estrangeiros esquisitos tinha aparecido recentemente em Lamora. Quem eram, e de onde vinham, ninguém sabia. Eram homens morenos, com olhos negros famintos e grandes narizes aquilinos, muito diferentes das feições claras e regulares dos habitantes de Atlântida. Tradicionalmente, a Atlântida oferecia uma acolhida pacífica a todos, sem fazer perguntas, mas este grupo se havia tornado um problema, pois suscitava o ressentimento público pela sua manifesta falta de piedade. A religião nacional da Atlântida incluía a adoração de Sáti, a grande deusa da sabedoria e fertilidade. Nos primórdios da vida da nação, ela também fora a patrona zelosa da agricultura. Salustra prestava-lhe uma homenagem insincera, mas reconhecia a sabedoria do seu pai em prestigiar a religião nacional, para dar às massas algo em que se apoiarem nas horas amargas. Com os problemas que já possuía, ela ficou muito aborrecida com mais este. — Esses homens estranhos são de paz? — perguntou a Máhius. O velho replicou hesitantemente: — Eles declaram publicamente que se opõem ao conflito e à dissensão, mas recusam o tributo a Sáti e nunca freqüentam os templos, ou comemoram os feriados. Além disso, expõem as doutrinas da sua própria fé a quem os queira ouvir. — E que doutrinas são essas? — Eles declaram que há um único Deus, e que não é Sáti. Declaram que Ele é justo, virtuoso, zeloso, todo-poderoso quando assim o deseja; que Ele odeia ídolos, intemperança, incontinência e os prazeres mundanos. Salustra sorriu cinicamente. — A Atlântida sempre ofereceu santuário religioso, desde que os religiosos não se intrometam nos negócios de estado, não blasfemem contra Sáti, ou causem distúrbios públicos. Pelo que me dizes, Máhius, eles me parecem bastante inofensivos, exceto que eu não gosto deste conceito de todopoderio. Não é bom encorajar esta crença. As novas religiões são veneno nas veias de uma velha nação. Causam divisão e fazem com que a autoridade fique exposta a ataques. — Ela fitou a distância com olhos semicerrados. — O prazer! — disse. — O prazer de qualquer tipo é a única coisa que torna tolerável este mundo tão intolerável. São corruptos os que chamam o prazer de pecaminoso! Os novos religiosos falavam de maneira desconcertante sobre a liberdade. Um milhão dos habitantes de Lamora, quase que cada quarto homem, eram escravos, e um milhão de outros de Althrústri mantinham a sua antiga sujeição. Os escravos eram descendentes dos que tinham vindo das ilhas tropicais próximas à Atlântida, numa época em que esta era escassamente povoada e precisavase de homens para derrubar as florestas, domar os rios, plantar nas planícies. Os escravos se haviam multiplicado e formado uma enorme nação dentro de uma nação. Os antigos Imperadores tinham querido libertá-los quando o propósito original havia sido cumprido, mas os donos de escravos se opuseram, apesar de o Estado se ter oferecido para reembolsá-los. Pois media-se o prestígio pelo
número de escravos que se possuía. Salustra esperara poder devolver os escravos às suas ilhas de origem, mas depois de centenas de anos poucos sentiam elos a ligá-los às nevoentas terras natais, e a maioria se agarrava desesperadamente ao desejo de ter alguém que tomasse conta deles. Salustra via os perigos de uma grande população parasitária. Os escravos, apoiados pelos seus amos, viam apenas a urgência do presente. — Nunca provemos para nós mesmos — diziam — e tememos a idéia de não ter quem o faça para nós. Enquanto pensava nisso tudo (e os representantes pensavam com saudade nos seus banhos perfumados e nas suas escravas a massageá-los com óleos fragrantes), Salustra observava as nuvens escuras contra o contorno opaco do sol. Um grupo delas lembrava de modo surpreendente o horizonte de Lamora. Através de uma brecha momentânea na névoa perene, as pilastras, as torres, as abóbadas e os muros brancos foram momentaneamente salpicados de cor, assim como os altos picos na distância, como se a cidade inteira estivesse coberta de sangue. Abalada com essa visão, ela esfregou os olhos, num gesto vago. Ficou de pé, abruptamente, quando Máhius se pôs a falar. — Nenhum de vós tem nada a dizer — disse, impaciente. — Daqui a três meses a Assembléia se reunirá de novo. Amanhã, embaixadores do Imperador Signar de Althrústri trarão uma mensagem urgente do seu senhor, e será interessante verificar se a urgência dele é a mesma que a nossa. Ela ficou de pé, impaciente, enquanto cada representante se chegava a para tocar-lhe o pé com a testa, um precedente que preservava o abismo entre ela e seus conselheiros. Quando o último deles se foi, ela estava desgastada. Porém, sozinha mais uma vez, ela se recostou sobre as almofadas e fechou os olhos, agradecida. Estava não apenas exausta, mas doente do espírito, sabendo, bem no íntimo, o que o futuro reservava para Atlântida. "Estou exausta até a alma", pensou, estendendo-se num divã na sombra fresca de um aposento que dava para uma galeria sem teto. De onde estava deitada, Salustra podia ver a neblina envolvendo o céu e as montanhas normalmente roxas. Ela fechou os olhos e inspirou profundamente a ambrósia americana almiscarada dos jardins luxuriantes embaixo. Um escravo acionou um mecanismo na parede, e uma lâmpada redonda num esguio pedestal dourado inundou o aposento com uma luz suave, que tremeu por um momento antes de firmar-se. Espessos tapetes carmesins eram ilhas de cor no reluzente chão de mármore. Estátuas exóticas eram entrevistas nas sombras das imponentes pilastras. Os afrescos nas paredes muito brancas destacavam-se discretamente, em tons delicados. O teto abobadado era tão alto que se perdia de vista, como uma névoa. Grandes vasos, lindamente simétricos, mesmo nas suas formas estranhas, estavam cheios de muitas flores, multicoloridas e fragrantes. Os escravos trouxeram uma mesinha de marfim e, sem fazer barulho, serviram o jantar da
Imperatriz. Ela os observou, indiferente. Tinha uma sensação de irrealidade terrível e crescente, um pressentimento de desastre. Com esforço, virou-se para a comida. A refeição era simples: frutas, queijo, mel, bolinhos de trigo, uma ave assada, vinho. Ela ergueu a taça de cristal até os lábios e franziu o cenho por sobre a borda reluzente. Com um gesto seco, fez sinal a todas as escravas, menos uma, que saíssem. As moças trocaram olhares furtivos ao se retirarem entre as colunas, como sombras brancas. Algumas estavam trêmulas, pois, com a auto-importância dos insignificantes, estavam certas de que o aborrecimento da Imperatriz tinha algo a ver com elas. — Que há comigo? — Salustra sacudiu-se. irritada. Ora, pensou. Estou é precisando de um amante novo ou de um purgante. Mas, onde encontrá-lo? Somos uma nação de símios. Tagarelamos de modo vazio sobre as coisas, rotulamos as maravilhas com palavras e achamos que, deste modo, descobrimos seus mistérios. Chamamos a uma força misteriosa de eletricidade, e, portanto, ficamos satisfeitos. Demos um nome a ela! Que mais se pode desejar? Chamamos a nossa existência de vida, e, tendo-lhe dado um nome, nunca perguntamos o que é. Símios, com a paz de espírito de um símio. Onde está o homem que não é tolo? Mas, talvez seja eu a tola, afinal de contas. Ela apanhou um cacho de uvas e fitou-o com olho crítico. Havia levado uma uva à boca quando foi interrompida por uma risada suave. Ela franziu o cenho e ergueu os olhos, rapidamente. Uma moça esguia estava ao pé do divã, observando a Imperatriz com olhos alegres. Tinha uma guirlanda de flores brancas sobre a cabeleira dourada, e os olhos azul-escuros eram vivos sob as pestanas douradas. A luz suave da lâmpada, ao mesmo tempo que acentuava o tom dourado do seu cabelo, destacava as curvas desabrochantes das coxas esguias e do busto. Os lábios de Salustra suavizaram-se. Ergueu-se sobre um dos cotovelos e estendeu a mão. — Ah! Salustra — lamentou-se a garota — tu me prometeste que voltarias cedo hoje. Já te esqueceste que é meu aniversário? Os convidados já estão começando a chegar e tu ainda estás aí, deitada! Salustra puxou uma almofada azul para perto de si e fez sinal à moça para que se sentasse. — Tyrhia, bobinha! — disse a Imperatriz afetuosamente. — Achas que não tenho mais nada com que me ocupar? Não me esqueci. Mas teus convidados precisam esperar. Quem são eles, senão donzelas como tu, e seus acariciadores imberbes? A voz de Tyrhia tornou-se estridente. — Tu me tratas como se eu fosse uma criança, Salustra! E falas como se fosses uma velha de olhos turvos. Sabias que eu convidei Lústri? — Sorriu orgulhosa. — Pensavas que eu tinha te esquecido? Salustra franziu de leve a testa, depois sorriu indulgente. — Lústri não virá. Não me perguntes como sei disso. Vem cá. menina, queres um pouco de vinho, ou quem sabe preferes esta laranja?
Tyrhia amarrou a cara para a irmã. — Há outros, eles sempre vêm — continuou numa voz mormacenta. — Há sempre os teus amigos, e Máhius, e a Assembléia. Já estão chegando. A fisionomia de Salustra endureceu, e Tyrhia estremeceu um pouco. — Já não te disse que és jovem demais para andar em companhia dessa gente dissoluta? A Assembléia! Libertinos! E suponho que, na tua ingenuidade, também incluíste o Senado. Símios! Hipopótamos! Babuínos! Como ousaste? Os lábios de Tyrhia tremeram. — Não sou uma criança — disse obstinadamente. Salustra deu de ombros. — És uma criança. — Ela tocou as flores brancas na cabeça da garota e ajeitou um botão fora do lugar com dedos carinhosos, afetada pela radiância primaveril e pela virgindade imaculada da irmã. Logo em seguida, Tyrhia começou a tagarelar sobre os mexericos do dia, interrompendo o fluxo das próprias palavras com súplicas para que Salustra se apressasse. — Lembras-te daquela tolinha da Poymnia, Salustra? Imagina só! Apaixonou-se por Licon, filho de Gláurus, aquele açougueiro enfeitado! O pai dela já declarou que ela entrará para o convento de Sáti se não lançar seus olhares para outra direção, e ela o está desafiando. Não é um absurdo? Ela acha que é a heroína de um drama, a definhar, a morrer de amor. E o maior dos absurdos é que Licon nem percebe que ela o olha com olhos de peixe morto. Ele está serenamente apaixonado por Utânlia, e Utânlia o odeia, o que faz com que ele a ame mais ainda. Ah, e lembras-te de Zútlia, que chamaste de cara de crocodilo, com seus olhos sonolentos e dentes grandes e afiados? Está noiva de Sêneco, aquele farrista velho e gordo! Ele a cobre de jóias. O pai dela perdeu toda a fortuna em navios afundados e mesas de jogo; portanto ele vende Zútlia, que tem um corpo voluptuoso, Mas ela está bem satisfeita de ser vendida. Está cansada de ter uma única escrava para servi-la. Está tão convencida! Lúdia também esteve aqui hoje; ela anda como um gato, e a mãe dela ronrona como um gato, também. Elas se derretem quando falam de ti, mas também estremecem, apesar da sua fortuna. Lúdia enfiou os dedos na jaula do meu papagaio, e ele beliscou-os. Eu ri até chorar. Elas se foram na maior indignação, E hoje, Salustra, vi o colar de safiras mais encantador; as estrelas refulgiam nele. E por apenas dois mil sállions! Estão na loja de Sêneco, e ele o fez oscilar para que eu o admirasse. Só dois mil sállions, Salustra! Como refulgiriam no teu pescoço! — Ou no teu, hipocritazinha! — A Imperatriz sorriu, e enrolou no dedo um cachinho louro. — Vá lá! Manda buscar o colar, se é que tanto o desejas. Sêneco fecha a sua loja ao pôr-do-sol, mas ele a abrirá de bom grado outra vez. Que o colar seja um presente meu para ti. Tyrhia, com um grito de alegria, beijou a mão de Salustra. Esta viu apenas o azul infantil dos seus olhos, a luz nos olhos de uma criança satisfeita, como a considerava. Nada via em Tyrhia da sua mãe, Láhia. Ela chamou um mensageiro e mandou que fosse buscar o colar.
Tyrhia continuava a tagarelar, e Salustra escutava, sorridente, enquanto continuava a comer e a beber. Depois, o seu sorriso se desvaneceu e franziu os sobrolhos, pensativa. Seu olhar percorreu a moça encantadora, de modo avaliador e lisonjeiro. Sua mão deslizou sobre a cabeça dourada, afagou o veludo da face juvenil. Interrompeu a tagarelice da garota. — Não és mais uma criança, Tyrhia — disse de repente. — Já pensaste em te casar? Tyrhia fitou Salustra e, devagar, sob o olhar da outra, mudou de cor. — Não — respondeu em voz baixa. — E não desejas nenhum jovem? Tyrhia evitou o olhar dela. — Não — respondeu. Olhando para a irmã, Salustra teve uma idéia súbita. — Afinal de contas, Tyrhia, és uma princesa — disse vivamente — e deves casar-te segundo a melhor política. Nós vivemos e nos casamos não para nós mesmas, mas para Atlântida. — Ela rapidamente refutou a pergunta que nem sequer chegou a ser feita. — Eu mesma nunca me casarei. Uma rainha só pode reinar sozinha. Mas os teus filhos governarão a Atlântida. Num rasgo de percepção, Salustra havia descoberto um modo de salvar Atlântida para a descendência de Lazar. Sem prestar muita atenção à irmã, preocupada com a sua festa, Tyrhia ficou à janela por uns instantes e estremeceu quando um cheiro desagradável invadiu a galeria, trazido pela brisa. — Quando isso acabará? O meu aparelho de refrigeração de ar já não funciona, e está ficando úmido demais para a gente até mexer um dedo. Salustra deu-lhe um sorriso irônico. — E os aviões, os navios do mar, os veículos terrestres, as bombas, o rádio, o telessom, todas as coisas que dependem das vibrações elétricas da atmosfera? E quanto a elas, menina? Não te preocupas que nada disso funcione desde a chegada da grande nuvem? A Princesa fez um biquinho. — Preocupa-me mais a minha toalete do que o maior dos navios no mar. Salustra olhou para a irmã como se a estivesse vendo totalmente pela primeira vez. — Pões as tuas conveniências em primeiro lugar, preterindo as preocupações que deverias ter como a pretendente seguinte ao trono? A Princesa abafou um bocejo.
— Ora, mana, és apenas um punhado de anos mais velha que eu, e com a câmara de rejuvenescimento tu permanecerás para sempre. — Franziu a testa. — Além do que, isso é uma mera condição atmosférica, que logo passará. Isso é o que todo mundo diz. Salustra mordeu o lábio. A sua própria propaganda, destinada a acalmar o povo, ironicamente havia retornado ao palácio. Por um momento, sentiu um impulso de revelar sua vaga inquietação e a dos seus ministros, mas um olhar para aquele rosto inexpressivo convenceu-a que de nada serviria. Os pensamentos de Tyrhia não se afastavam por muito tempo dos prazeres e confortos.
5
O Palácio Real ficava sobre uma elevação num grande parque, com luxuriantes jardins suspensos, repletos de estátuas e fontes e pequenos lagos artificiais alimentados pelos canais de Lamora. Da sua colunata sul saía uma estrada larga que ia dos enormes portões ao fosso oceânico. A estrada, que tinha mais de um quilômetro e meio de comprimento, oferecia uma visão clara do oceano, da colunata. Salustra havia acrescentado uma galeria a um dos andares superiores, e era aí que ela, com freqüência, buscava a solidão. Enquanto guardava Tyrhia, cuidadosamente, sentia-se grata por terem nascido de mães diferentes. A sua própria mãe, Máxima, provinha de uma família mais antiga e mais distinta até do que a do pai. Lazar, um Nobre guerreiro da Quinta Província, havia sido adotado pelo estéril Imperador Clito. Lazar possuía uma veia melancólica, e Salustra às vezes se perguntava se o seu tédio crescente fazia parte do legado dele. Nessa noite, a sua disposição estava mais sombria do que de costume. Tendo obtido a lista dos convidados da rebelde Tyrhia, ela enviara mensagens aos convidados mais velhos e sofisticados da festa de aniversário, para que ficassem depois que a arraia-miúda tivesse deixado a festa. Ocorrera-lhe, de modo desconcertante. que não tinha nenhum companheiro para partilhar com ela as horas tardias. Esteve quase tentada a chamar Lústri de volta. Ele tinha a capacidade de excitála a um grau superlativo, se ela conseguisse não pensar em absolutamente nada. Abandonou a idéia com um suspiro. Ele era tão previsivelmente cansativo! Quem mais, então? Mentalmente, percorreu a lista de convidados, e a sua boca fez um trejeito de desgosto. Moços ou velhos demais, anêmicos ou gordos em excesso, ingênuos ou cínicos, ignorantes ou dessecados demais pelo saber. Era a sua mente, mais que o seu corpo, que tinha que ter o interesse despertado, ao menos no começo. Ela saiu da galeria para o banquete, de mau humor. Cinqüenta convidados estavam à espera da Imperatriz na antecâmara que dava para o grande salão de baile. A maioria deles eram jovens, filhos e filhas de Nobres e amigos de Tyrhia. Entre eles os filhos de Cicio, Rei de Dímtri, e os filhos de Pátus, Rei de Nahi. Os rapazes usavam túnicas brancas, apertadas à cintura por cintas douradas. As moças usavam vestes translúcidas, através das quais se percebiam os membros bem feitos, numa sensualidade sutil. Os convidados mais velhos, todos homens, estavam compenetrados nas suas togas roxas. Conversavam entre si, com ar sério, lançando olhares ocasionais e indulgentes aos rapazes inexperientes. As moças recebiam olhares mais prolongados, que avaliavam a curva suave de um seio virginal ou uma coxa tentadora. Em meio a essa reunião, abriu-se mansamente a grande porta de bronze na extremidade do aposento, e a Imperatriz, sozinha, sem nenhum acompanhante, surgiu no arco do umbral da porta. O corredor às suas costas estava escuro, mas a luz da antecâmara atingiu-a com um efeito estonteante. Ela usava uma túnica longa de ouro brilhante, presa na cintura por uma faixa incrustada de pedras preciosas. Seus cabelos estavam completamente ocultos por um capacete bem justo, do qual saíam doze pontas douradas, de uns 60 centímetros de comprimento. O brilho escuro dos seus olhos e o vermelho voluptuoso da sua boca destacavam-se na palidez fria do rosto.
Embora tivessem visto a sua Imperatriz muitas vezes, os convidados fitaram-na, admirados. Era quase como se a deusa Sáti tivesse aparecido. A cada movimento, a cada gesto, a pessoa dela se incendiava como se fosse o próprio sol. Nas mesas do banquete, a disposição dos lugares era de tal ordem que cada homem tinha uma donzela de cada lado. Salustra providenciara, já tendo em mente as festividades da meia-noite, para que os gostos já meio saciados dos convidados mais velhos pudessem agitar-se com as donzelas de cabelos fofos; os desejos assim despertados seriam satisfeitos mais tarde por mulheres mais experientes do que essas adolescentes ingênuas. Os homens mais velhos estavam visivelmente enfadados com os mais jovens, mas apreciavam, de modo óbvio, as mocinhas, e implicavam com elas, e as acariciavam, como se tudo fosse um jogo, como se fosse um tributo impessoal prestado por pessoas tão distanciadas delas pela disparidade dos anos. O vinho era fraco e servido com gelo em cubos. Lindas escravas despidas da cintura para cima traziam bandejas carregadas de faisões raros, assados em molho de vinho, línguas de rouxinóis, esturjões do norte, frutas exóticas, bolinhos dourados, peixes minúsculos no seu próprio óleo e doces perfumados. Tyrhia sentava-se em frente à irmã, na mesa principal, e sua voz estava um pouco estridente com a excitação, enquanto brincava com um rapaz ao lado dela, de quando em vez dando-lhe palmadinhas na mão, muito ousada e experimental. Salustra sentava-se impassível na sua cadeira. Sorria por dever de ofício, e com esforço visível. Fazia a maior parte dos seus comentários a Máhius, sentado à sua esquerda. Falava-lhe bem baixinho, pois não queria que os outros ouvissem: — Que dizem os teus geólogos e astrônomos desta neblina? — Meus cientistas? — suspirou o ministro. — Não sofismes — ela disse bruscamente. — Francamente, Majestade, como todos os que estão confusos, eles falam bastante, sem dizer muito. Molânti, o geólogo, ressalta que essa névoa apareceu alguns dias após um misterioso tremor de terra ao norte, que foi indicado pelos sismógrafos do Instituto Geológico. Estabelecendo uma conexão entre o terremoto e a neblina. Molânti acredita que poderá vir a explicar a falta de força. Ela resmungou para si mesma. — Teorias, sempre teorias. Dize a Molânti que precisamos é de respostas. E que se ele resolver esse mistério, providenciarei para que receba o raro privilégio de visitar a câmara de rejuvenescimento. Máhius suspirou pesadamente. — Tem certeza, Majestade, de que essa prolongação da vida é uma recompensa adequada para um serviço tão meritório?
Ela sorriu, astutamente. — Molânti, embora seja um cientista, considerará esse rejuvenescimento como valendo mais do que 12 palácios ou do que o mais verde dos bosques. Os cientistas lá entendem da vida? — E qualquer um de nós entende, Majestade? Ela sorriu, e disse de modo prático. — O que entendemos é que a vida se tornará insuportável, se não soubermos logo por que a eletricidade, normalmente transmitida pela atmosfera, se dissipou. — Ela apertou os lábios, pensativa. — E que diz o físico Goleta? Ele já foi indicado para o Templo Belo pela descoberta que fez do raio da saúde. — Majestade, Goleta relata que a atmosfera está tão carente que os sinais eletromagnéticos experimentais que ele está enviando não produzem nem a mínima estática. Salustra estava ficando cada vez mais irritada. — Será que esses idiotas não entendem que não podemos viver por mais tempo deste modo primitivo? Não somos bárbaros como os althrustrianos. Máhius deu de ombros e afastou de si a comida que nem sequer provara. — Não subestime esses bárbaros, Majestade. Eles possuem o modificador de atmosfera nuclear, e farão uso deles, se puderem. Salustra fitou-o, pensativa. — Isto é o que tu dizes, mas ele talvez nem possa funcionar nesta atmosfera amortecida. O rosto de Máhius ficou cinzento. — Mas podemos arriscar-nos, Majestade? Ela cerrou os dentes pensando na traição que levara Signar a possuir essa arma. — Virar-se contra o próprio país é uma coisa terrível. Contudo sempre fico agradavelmente surpreendida quando um amigo não me atraiçoa. — Ela estendeu a mão confortadora, ao perceber a reação de Máhius. — Eles pagarão, por meu intermédio ou por de Signar, pois nenhum governante confia naquele que atraiçoa a sua própria gente. — Eles são tão numerosos, Majestade! — É, não vale a pena salvar a maçã podre. Ele riu, um riso sem nenhum humor, — Vossa Majestade concorda com a Alta Sacerdotisa Júpia, que profetiza uma terrível catástrofe.
A Imperatriz bufou. — Aquela bruxa velha! Ela vem profetizando o dia do juízo final desde que Sáti lhe fechou o ventre. De que outro modo pode expressar suas frustrações? Os olhos dela percorreram os convivas, demorando-se nos Nobres e Senadores agrupados em mesas que haviam sido rebaixadas para que os comensais pudessem sentar-se ou reclinar-se confortavelmente. Eles pareciam indiferentes às ameaças crescentes à própria existência do seu país. Disfarçando uma expressão de nojo, ela virou-se para Máhius. — Que mais dizem esses teus cientistas? Máhius deu de ombros. — Goleta e Molânti concordam em que o tremor recente foi o responsável não apenas por esta maldita opressão do ar, mas também por certos movimentos irregulares nas marés oceânicas que podem afetar toda a potência elétrica dentro em breve. Salustra riu, tristemente. — Como dá para ver - apontou para os escravo que agitavam enormes abanos — o sistema de refrigeração do ar do palácio já parou de funcionar. — Apoiou o queixo na mão. — Sabes ao certo se o divisor de átomos foi explodido subterraneamente, ou na atmosfera? Ele respondeu, sombrio. — Não posso ter certeza, Majestade, mas mesmo subterraneamente ainda pode gerar calor suficiente para derreter o mar congelado e fazê-lo desabar sobre as nossas cabeças. Ela meneou a cabeça. — Meus cientistas me afirmam que a massa de terra subterrânea pode bem absorver uma explosão atômica e a radiação subseqüente, mas que na atmosfera ocorre uma reação em cadeia, com mais calor e energia se acumulando até que os próprios céus se incendeiem. Máhius deu de ombros, expressivamente. — Como sabe, o nosso próprio modificador de atmosfera foi utilizado uma vez, contra um exército invasor de dinossauros saqueadores. Não somente eles desapareceram, mas junto com eles o vasto território que saqueavam. Ela cerrou os sobrolhos. — E há quanto tempo foi isso, Máhius? — Há muitos séculos, Majestade.
— E nunca mais fizemos uso dele. — Somos civilizados demais, Majestade. Ela teve uma expressão amarga. — Civilizados não, Máhius, mas sim decadentes, degenerados, covardes. Não conseguimos suportar a idéia de infligir a morte a milhões, contudo não é igualmente horrível matar uma só pessoa? Se essa vida não tem importância, então um milhão de vidas não tem importância maior. Como costumava acontecer quando ficava sentado por muito tempo, os olhos cansados do Ministro começaram a ficar turvos, e sua cabeça grisalha já não se sustentava no pescoço. Tyrhia levantara os olhos do rapaz que não sabia controlar as mãos. — Uma cara tão séria no meu aniversário, Salustra? A incongruência do comportamento de Tyrhia, em face a um perigo tão real para a nação irritou Salustra mais do que ela imaginara ser possível. "Igualzinha à mãe", deu-se conta de que estava pensando, enquanto admirava a beleza frágil da moça. Antes que Salustra pudesse responder, foi posto à sua frente um braseiro fumegante. Ela derramou uma taça de vinho sobre ele, em honra de Sáti. A fragrância da oferenda perfumada perdurou na atmosfera pesada, enquanto as escravas esguias, brilhando na sua nudez, apressavam-se a servir os convivas, pisando macio, Salustra continuou a conversar a sério com Máhius, Ela pouco bebia do vinho fraco, e ainda fazia uma cara amarga. — Ficarás para a continuação da festa, Máhius? Ele olhou para a Imperatriz com olhos súplices. —- Haverá mulheres mais tarde, não é, Majestade? Os lábios de Salustra encresparam-se um pouco e ela inclinou a cabeça. — Nada de virgens comportadas; nada de mulheres com vinho fraco nas veias. Mas haverá fêmeas, Máhius, isso eu te garanto. Máhius enfrentou o olhar dela, e havia algo no seu olhar que fez com que fosse ela a desviar os olhos, Ela lançou um olhar pela sala, aos homens mais velhos, os cientistas, filósofos, escritores, engenheiros, músicos, escultores, dramaturgos. Esses homens distintos já estavam caceteados com as donzelas afetadas que os ladeavam, especialmente porque todas as tentativas deles haviam sido rechaçadas com risinhos encabulados. As mocinhas não se furtavam de modo tão óbvio às liberdades dos rapazes, nem mesmo quando uma mão caía casualmente sobre um seio macio. Os mais velhos começaram a conversar por sobre as cabeças das donzelas e a contar as horas com impaciência. Percebendo tudo isso, Salustra sorriu para si mesma, antecipando um fim próximo para a fase
da festa que pertencia a Tyrhia. — Tu ficarás? — ela insistiu, na sua voz baixa e lânguida. Máhius deu um suspiro preocupado. — Vossa Majestade se aborreceria se eu me recusasse? Ando muito cansado. Tenho um pressentimento de um desastre próximo, Não sou supersticioso, mas há algo no ar, algo sinistro. Não, não! Nenhum inimigo humano, nenhum perigo humano, não desta vez. Perdoe as minhas baboseiras, ó grande Salustra. As previsões dos astrólogos sempre me despertaram o mais profundo ridículo. Não, não! É outra coisa, algo de mais terrível... Salustra fitou-o, incrédula. O seu seio ergueu-se, como se ela estivesse sufocando o riso, — Com que medo infantil nos agachamos no abrigo do conhecido, escondendo-nos do vento frio do desconhecido. Mil legiões não conseguiriam perturbar a tua serenidade férrea, Máhius, mas ao primeiro sopro da caverna negra e gélida da superstição tu te congelas até os ossos! Besteira! Eu tenho um pó muito eficaz que meu médico me deu. É um laxativo esplêndido. Agita os intestinos como uma chicotada. A religião e a sua irmã gêmea, a superstição, não são nada mais nada menos que os fantasmas de um fígado preguiçoso, Máhius! Máhius sentiu o golpe, mas não deu resposta. Ela tocou de leve o braço dele. — Existem três épocas na vida de um homem em que ele acredita nos deuses, Máhius. Quando ele é criança, quando está bem alimentado, e quando está velho. Tu estás velho, caro amigo. Teu sangue já não corre rápido e quente; teus olhos já não buscam os seios virginais e os lábios jovens. A música já não te excita; tu preferes voltar aos seus livros e à grave contemplação dos deuses. O homem que diz a si mesmo que é velho, é velho, não importa que tenha pouca idade; o avô de cabeça branca que garante a si mesmo que é jovem, é realmente jovem. Máhius olhou para ela, quase com tristeza. — Eu sou velho, e Vossa Majestade é eternamente jovem. Talvez seja porque sou velho que tenha medo, que sinta algo perigoso no ar. Eu sei que a velhice é sempre apreensiva. Mas quando olho para Vossa Majestade, tenho tanto medo! É como se visse uma grande sombra sobre Vossa Majestade. Sabe o quanto eu a amo, e o quanto amei seu pai, e pode avaliar como a idéia de que corre perigo me enche de pavor e confusão. Medo! Eu, que nunca senti medo antes, sinto-o agora, e o vento gélido do medo faz meus dentes baterem e meu coração ficar tão frio! — A voz dele era tão autêntica, tão insistente que o sorriso tranqüilo desapareceu dos lábios de Salustra. Ela reagiu desafiadoramente, mais impressionada do que gostaria de admitir. — Medo! — exclamou, com desprezo. — Sáti, creio eu, pode achar possível perdoar ao tolo, ao adúltero, ao mentiroso e ao traidor. Pode até descobrir circunstâncias atenuantes para o hipócrita, pois qual de nós não é forçado a dissimular, de algum modo? Mas duvido que a Grande Deusa consiga perdoar ao covarde, que enche os salões escuros e altos dos céus com seus gritos
pusilânimes e que perturba até mesmo a ela com os seus gemidos poltrões. E eu, alguma vez, tive medo? Não, o medo nunca me tocou com a sua mão encarquilhada. Não descendo de sangue covarde, meu Máhius! Ela tocou a face do seu ministro com as costas da mão; depois, mudou depressa de disposição, e sentiu-se invadida por uma súbita onda de melancolia. — Abomino esta cidade, e estou exausta. Sabes por que aqueles bárbaros enviados por Signar solicitaram uma audiência especial para amanhã? As sobrancelhas grisalhas de Máhius cerraram-se, enquanto ele refletia. Salustra abriu as mãos, num gesto descuidado. — Gostaria que viesses aos meus aposentos por uns momentos. Essas crianças não sentirão a nossa falta. Ela se teria levantado naquele momento, se seus olhos não se tivessem detido num outro par de olhos. Um rapaz de 27 ou 28 anos, talvez um pouco mais moço que ela, fitava-a intensamente por sobre a borda de uma taça, do outro extremo da mesa. Ela nunca o vira antes. Seus olhares se sustentaram, e ela viu uma cabeça bem formada e olhos azuis sensíveis. Enquanto ela o fitava, ele largou devagar a taça, e deixou ver um nariz reto e uma boca forte, mas delicada. Ela rapidamente se deu conta do pescoço firme, dos ombros largos, dos braços nus e musculosos e das mãos de artista. Ela o observava com excitação crescente, e ele devolvia o olhar dela ansioso, mas com ar confiante. Ela olhou de novo para o rosto dele, e ele sorriu, inclinando a cabeça respeitosamente. Possuía um ar distinto, tão diferente dos jovens de Lamora. Máhius estivera observando o pequeno drama com uma sensação de cansaço. Olhou para o rapaz e franziu o cenho. Salustra recostou-se na cadeira. Um leve sorriso pairava-lhe nos lábios. Sua respiração estava mais rápida. Ela voltara a ser ela mesma. Máhius respondeu logo à pergunta que não fora feita. — Aquele, radiante Majestade, é primo de Cicio, Rei de Dímtri — disse com secura. — Ele me implorou hoje de manhã que lhe conseguisse uma entrevista. É poeta de grande fama no seu país e busca o apoio de Vossa Majestade sabendo que é tão devotada às artes. O nome dele é Erato. Salustra assentiu devagar, sem tirar os olhos do poeta, que agora sorria ironicamente. Ele levou de novo a taça aos lábios e na sua mão um grande rubi, como um olho irreverente, piscava para a Imperatriz. Salustra sorriu. — Ele deve ficar para o banquete a ser servido mais tarde, Máhius. Estamos sempre dispostos a servir à Poesia, especialmente quando ela tem um defensor tão galante e bonito. Salustra levantou-se, e os convivas espantados levantaram-se com ela. Ela fez um gesto com a
mão cheia de jóias. — Voltaremos — disse e deslizou para fora da sala, acompanhada pelo velho ministro. O poeta sorriu, e seus dedos nervosos batucaram na mesa.
6
Bem embaixo ficava a cidade. As ruas pareciam veladas numa bruma amarelada através das quais as altas abóbadas e pilastras brilhavam grotescamente à luz sombria do luar. Era uma cidade de ilusão, com os seus confins distantes ocultos pela cortina espessa que pairava sobre a cidade como um manto. O ar estava quente, imóvel, lânguido, fazendo com que os homens respirassem com dificuldade na atmosfera depressiva, e os animais corressem daqui para lá numa apreensão sem destino. Máhius, preocupado com a conferência repentina, olhou furtivamente para a Imperatriz. O perfil dela denotava orgulho e força. Ela começou a falar com um pouco de insegurança, numa voz baixa, como se estivesse num sonho. — Já foste afligido por esta estranha emoção, Máhius? Não sou uma mulher dada a fantasias, nem uma mulher mórbida. Mas tenho a sensação horrível de que uma fatalidade me cerca; o mundo retrocedeu para a irrealidade e a ilusão. Sou uma sombra que se move entre sombras. Máhius ficou em silêncio por um momento, depois respondeu, suavemente: — Eu mesmo me senti assim tantas vezes! A vida flutua, flui, oscila, vem das sombras e volta para elas. Só os deuses permanecem, sempre presentes e eternos. Salustra teve um gesto de enfado. — Qual! Deuses! E pensar que neste mundo de hoje, este mundo devasso, debochado e cínico haja quem acredite que o grande Desconhecido tome conhecimento de nós. Só os fracos, os débeis, os covardes podem ter tal fé. A fé é a marca registrada dos pusilânimes. Incapazes de enfrentar a vida adequadamente, eles sentem a necessidade de um aliado sobrenatural, sentem-se compelidos a vestir uma armadura contra um mundo predatório; de outro modo a vida crua e violenta se tornaria insuportável para eles. A armadura de uns é a fé, e escondem-se por trás das imagens nebulosas dos deuses. Outros se escudam por trás da filosofia, e olham com olhos tranqüilos para o combate, recusando-se, contudo, a tomar parte nele. Já a armadura de outros é o cinismo, e recusam-se a crer em qualquer coisa, até mesmo em que não crêem em nada. Há aqueles que se saturam de sentimento e observam a vida através de lágrimas deliciosamente lamurientas. E há aqueles que se armam com o machado severo do dever auto-infligido, e chamam a si mesmos de bravos, quando são meramente aquiescentes. Quase todos justificam a vida em termos de banalidades vazias. Se o homem não mentisse para si mesmo não poderia viver. Máhius olhou para ela com bondade. — Vossa Majestade é tão jovem para haver chegado a uma conclusão tão definitiva. Mas quando for mais velha não sentirá mais as coisas desse jeito. Aceitará a vida tranqüilamente, sem medo e sem esperança. A criancinha e o velho são os filósofos mais sábios. Salustra deu de ombros.
— Não precisamos de armadura contra a vida, de nenhuma filosofia — retrucou, um tanto malhumorada. Depois deu uma risada curta. — Precisamos da verdade. Mas, que é o verdadeiro e que é o falso? Quem é corajoso e quem é covarde? Que é o vício, e que é a virtude? Tudo o que sabemos é que hoje estamos aqui, e que amanhã não estaremos mais. De onde viemos, e para onde iremos, homem algum pode dizer. Como as sombras nós chegamos, como as sombras nós nos vamos, e os lugares familiares já não nos vêem passar. Quando o homem fala dos deuses, ele é como um macaco balbuciando para a lua. Máhius inclinou-se e ficou de novo em silêncio. Mas seus olhos estavam tristes. Salustra começou a andar daqui para lá na colunata. Parou, de súbito e falou no seu jeito imperativo de costume: — Amanhã os embaixadores de Althrústri virão falar comigo, confidencialmente. Já sei qual o assunto, embora tenha fingido ignorância. Eles vêm pedir a minha mão em casamento para o seu Imperador. Se isso fosse salvar a Atlântida, eu aceitaria, embora estremeça só em pensar num contato com aquele bárbaro. Mas isso não salvaria o país. Ele seria o Imperador das duas nações. Máhius fitou-a, numa tristeza muda. Ela ergueu a mão, como que a impedi-lo de falar. Continuou: — Ele está pensando nos seus filhos, que ainda nem nasceram. Deseja Atlântida para herança deles. Até mesmo os homens mais ambiciosos são meros instrumentos nas garras das forças biológicas. Na verdade, até o admiro por isso. É inevitável que o sangue de Signar corra nas veias do homem que um dia irá sentar-se no trono do meu país. Não guardo ressentimentos dele por isso. O sol se põe: amanhã um novo sol nasce no leste. É natural e inevitável. E quem sou eu para discutir com a natureza? — Máhius estava claramente intrigado com o rumo da conversa. — Repito que ele deseja Atlântida para seus filhos, assim como para si mesmo — continuou a Imperatriz, calmamente. — Eles a terão, mas só quando eu tiver morrido. Enquanto eu viver, a Atlântida será minha. Mas como, então, impedir a guerra que destruiria o nosso mundo? Simples, meu amigo! Darei a Signar a minha irmã Tyrhia por esposa. O filho mais velho deles herdará a Atlântida, desde que eu obtenha a promessa solene de Signar de que os dois impérios não serão reunidos enquanto eu for viva. — Ela levantou o olhar e viu que Máhius a fitava com olhos estreitados. Bateu de leve no braço dele. — Vamos, tens algo a dizer, caro amigo e mestre. Não tenhas medo. Que é? O ministro falou em voz baixa mas urgente. — Eu também tenho meus espiões. Eles me dizem que há algo que Signar deseja ainda mais que a Atlântida. — E que pode ser isso? Ele umedeceu os lábios, depois disse simplesmente: — Vossa Majestade.
O rosto de Salustra enrijeceu de indignação, depois exibiu um sorriso de deboche. — Pobre velho! — exclamou. — Estás mesmo senil! Ele me deseja apenas porque sou a Imperatriz de Atlântida, e por meu intermédio ele espera conquistá-la sem esforço. Eu também tenho meus espiões. Eles me dizem que Signar faz pouco de mim, e que gosta de ouvir histórias obscenas a meu respeito. — Ela deu de ombros. — Eu te digo. velho tolo e caro amigo, que ele deseja somente Atlântida. E quando ele vir a minha inocente e virginal Tyrhia, ficará felicíssimo em poder tê-la. — O ar de Máhius, que não parecia convencido, irritou Salustra. — Eu nunca o vi, mas abomino-o! Althrústri é uma terra selvagem e atrasada. E Signar é um Imperador adequado para ela. Mas é um país viril. Estou feliz de que o filho de Signar herde a Atlântida, de modo pacífico. — Ela se inclinou por sobre a balaustrada de mármore, e seus olhos suavizaram-se por um momento. - Meu país! — murmurou. — Minha esplêndida e deteriorada herança. Terei paz no túmulo, sabendo que tua corrupção foi preservada, que tua incontinência continuará. — Ela suspirou. — Meu pai me disse que, quando uma nação atinge certo estágio de podridão dourada, é afligida por todos os apetites depravados de um homem moral e mentalmente pervertido. E então fica ansiosa por novas sensações. Assim, alguns buscam um líder estrangeiro, como Signar; outros falam de uma liberdade que rotulam de democracia. Qual! O próprio nome democracia já é uma negação em si. Os homens nunca são fundamentalmente democráticos. A própria natureza os faz desiguais. Uma república é a forma mais autocrática de governo. Um só monarca é preferível a uma monarquia múltipla de homens rapaces, que, por terem apenas um período limitado para governar, roubam e pilham com destreza febril e sem escrúpulos. Atlântida atingiu um estágio em que está pensando em república por simples tédio. A expressão de amor por mim soa alto, mas deixem o vento soprar com força bastante na direção do republicanismo e eles derramariam o meu sangue com a mesma alegria com que agora me aclamam. Signar não é paciente como eu. Ele executará sumariamente esses democratas. Máhius começou a falar suavemente, tentando penetrar a couraça de Salustra. — Vossa Majestade disse que nunca se casaria? Ela meneou a cabeça com impaciência. — Não há estação própria para o meu casamento, mesmo que eu o desejasse. Se eu me casasse com um príncipe de Dímtri, Nahi, Madura. Antilla ou Létus, os meus filhos seriam os Imperadores de Atlântida. E Signar não o permitiria. Ele quer o que quer agora. Além disso, não tenho a menor vontade de me casar. Por que o faria? — E não tem vontade de amar, Majestade? Somente no amor nos acercamos dos deuses. O amor explica, interpreta e é a pedra angular de todas as coisas. O amor é a vida. Não gostaria que Vossa Majestade perdesse isso! Salustra riu com gosto. Deu uma palmadinha amistosa no velho. — Pobre Máhius! — exclamou. — Que tens, agora? Uma deliciosa escravinha da Ilha de Lúsi? E descobriste nos braços dela o que não descobriste nos braços da tua velha esposa? Ora, ora! Quando um homem fala de amor, não está pensando na sua esposa legítima! — Parou de rir, de repente, e seus lábios se encresparam. — O amor é a maior força do mundo, é o que dizem os sentimentais ignorantes. Não, eu digo que o ódio é onipotente... ódio, o dirigente dos destinos, vigoroso, ardente, gratificante. O amor é a morte; o ódio é a vida. Quando uma nação começa a se
babar de amor, está ficando caduca. O amor é parasitário; o ódio é empreendedor, ambicioso. O ódio constrói novos impérios. O amor, pelo enfraquecimento da lógica, os destrói. O ódio é o guerreiro conquistador; o amor é o simples acompanhante do guerreiro. Se eu pudesse, erigiria um templo ao ódio. Quando as nações proclamam em altas vozes o seu amor mútuo, estão afiando as suas espadas em segredo. Quando homens e mulheres falam de amor juntos, estão simplesmente vestindo a luxúria nua num traje recatado. Máhius fitou o chão durante a explosão da soberana, até que, finalmente, Salustra começou a falar de outras coisas. — Depois de amanhã reúne-se a Assembléia Nacional — disse a Imperatriz. Será um dia cansativo. Aqueles velhos senadores, briguentos e mesquinhos! Todos têm um machado pessoal para afiar, e um cofre particular para encher, e falam de patriotismo e de vontade de servir o povo. Por que não podem ser honestos? — Se fossem honestos, não confiariam em si mesmos — disse Máhius, secamente. — Meu pai costumava dizer "És honesto? Se responderes que sim, eu te chamarei de mentiroso!" — Ela sorriu. — Se fôssemos completamente honestos acharíamos a vida insuportável. Precisamos de uma névoa de cores delicadas para suavizar as asperezas duras e cortantes da verdade. Ouviu-se um murmúrio de risos embaixo nos jardins. As liteiras estavam chegando para os jovens convidados. De repente, os dois se deram conta de que o tempo havia passado rapidamente. Contudo Salustra ainda se demorava. Ela olhou para os céus. Os olhos de Máhius seguiram o olhar dela. Enquanto observavam o céu, uma nuvem agourenta, no formato de uma enorme mão com dedos encurvados, acercou-se da lua nebulosa. A nuvem parecia-se tanto com uma mão humana que Salustra e Máhius ficaram involuntariamente sobressaltados. Observaram, quase sem respirar. Devagar a nuvem-mão se estendeu para cima; e ante o olhar estarrecido deles, os dedos se encresparam, o pulso se torceu, e os dedos se estenderam como garras rapaces. Um momento mais tarde a mão tinha agarrado o contorno pálido da lua, e esta desapareceu completamente por detrás da cortina de neblina. Uma lufada de vento muito fria fê-los estremecer momentaneamente. Uma sombra escura, na forma de uma enorme mão encurvada. passou por sobre a cidade. Salustra tentou sorrir, tentou dizer uma palavra alegre. Mas nenhum som saiu de seus lábios. Em silêncio, preocupados com seus próprios pensamentos sombrios, eles entraram no Palácio. No corredor de mármore estava o Prefeito da Guarda, o jovem bonito e vigoroso que, comentava-se à boca pequena, havia servido muito bem à Imperatriz durante as horas tardias e solitárias. Distraída, ela deu-lhe o mesmo olhar que daria a um móvel de boa utilidade, e continuou o seu caminho com ar absorto. Chegou a tempo de despedir-se dos jovens convidados. Tyrhia estava visivelmente exausta, e as flores brancas já estavam meio murchas na sua cabeleira despenteada. Entrementes chegavam os convidados adicionais, os Senadores, os Nobres e outros da aristocracia ociosa de Lamora. Salustra deu um boa noite maquinal à irmã e começou a procurar o jovem poeta Erato. Tão logo seus olhos encontraram os dele, Máhius novamente pediu permissão para se retirar, e Salustra deu o seu consentimento, com indiferença. Já havia 50 homens presentes, incluindo alguns dos convidados que
permaneceram da festa de Tyrhia, e o jovem poeta que fora especialmente intimado a ficar. Guirlandas de rosas vermelhas, molhadas de orvalho, foram colocadas de brincadeira sobre as cabeças dos convivas. Os olhos astutos de Salustra percorreram todos os rostos. Cada um deles lhe dizia algo. Senadores gordos com bocas lascivas e olhos empapuçados trocavam piadinhas espirituosas e obscenas e olhavam ousadamente ao redor de si. As escravas seminuas haviam sido substituídas por uma equipe de ninfetas de grande beleza, totalmente nuas, cujas mãos suaves pareciam até delicadas demais para a sua tarefa de encher, e tornar a encher, as taças de vinho fulgurante. Era igual o número de convidados e o dessas sereias esguias e de pele rosada. As moças ruborizavam-se ocasionalmente devido às intenções indisfarçáveis dos velhos devassos. Havia algo de forçado no espírito festivo, pois nenhum dos presentes, nem mesmo o traiçoeiro Senador Divona, podia furtar-se totalmente à depressão que a neblina sufocante parecia lançar sobre a cidade. Eles haviam sido jogados à confusão pela súbita disrupção das instalações elétricas e estavam cada vez mais preocupados com as previsões sombrias dos astrólogos. Mas, no momento, todos seguiam a "deixa" da Imperatriz. Pois embora secretamente muitos a odiassem, Salustra ainda era o eixo central das suas vidas. Viram que ela estava aparentemente despreocupada, imersa em um novo admirador, e levantaram os ânimos. Salustra estava bem cônscia de tudo isso. Por ordem sua o poeta Erato sentava-se à direita dela. À esquerda, sentava-se Pellânius, embaixador-chefe em Althrústri. A mão de Erato tremia ao erguer a sua taça aos lábios, e seus olhos não deixavam Salustra. Salustra havia tirado sua túnica dourada; estava praticamente nua, exceto por placas de filigrana de ouro sobre os seios e uma leve veste dourada ao redor dos quadris. Seu corpo brilhava como mármore sob as luzes circulantes de um cristal no teto. O enfeite de cabeça, com as 12 pontas, reluzia de modo radiante. Não havia nenhuma ninfeta na sala, por mais jovem e linda que fosse, cujo rosto ou corpo pudesse rivalizar com o dela. A Imperatriz era uma expressão perfeita de feminilidade sedutora, surgindo como inatingível no seu régio esplendor. O ar ficou pesado de perfume e do aroma da comida e bebida. As risadas dos convidados ficaram mais altas. Alguns homens esparramavam-se pelos divãs, comendo com os olhos as ninfetas que passavam, com as guirlandas de flores caindo por cima das testas suadas. Ocasionalmente, uma bela escrava borrifava-os com perfumes fragrantes, o que tornava ainda mais pesado o ar úmido. Salustra, até então, trocara apenas umas poucas palavras com Erato, mas se inclinava para ele de vez em quando, e sorria ao ver como ele estremecia ao contato da coxa nua dela contra a sua mão. O Nobre Gátus estava falando, a boca retorcida de humor, os olhos brilhando. — Escutai esta! — gritou. — Dou a minha palavra de honra como é verdade. Salustra riu: — Tendes certeza de que honras tua palavra, Gátus? Estáveis bem disposto a vender a vossa província hoje, se me recordo bem.
Gátus fechou a cara. mas logo recobrou a alegria. — Ouvi essa história de alguém que sabe das coisas. Parece que Sêneco, aquele joalheiro trapaceiro, ficou enamorado da jovem esposa de um Nobre de Lamora. Não diremos o nome dele, é claro. O marido da mulher é muito devotado, mas meio distraído, às vezes. Não! Não me pergunteis de quem se trata! Pois, parece que certo dia ela estava na loja de Sêneco e ele lhe mostrou a mais graciosa das argolas para tornozelo, de diamantes. Ela ficou imediatamente fascinada e colocou-a no tornozelo delicado. Sêneco garantiu-lhe que a peça fora desenhada tendo em mente um tornozelo como aquele. Finalmente, com um suspiro, ela confessou que não poderia comprá-la. O marido já lhe dissera que ela possuía jóias suficientes para qualquer mulher. Um homem grisalho com a guirlanda caída sobre um dos olhos ficou em pé, embriagado. — Que crueldade! — exclamou Pellânius. — Sussurrai-me o nome dessa senhora e eu comprarei a argola para ela. A juventude deve ser enfeitada com jóias. Aos gritos de silêncio Pellânius sentou-se. Instou-se com Gátus que continuasse. Ele o fez, sorrindo. — A pobre moça estava realmente tristíssima. Chorou nos braços de Sêneco e permitiu que ele explorasse manualmente a maciez flexível do seu corpo. Ele então declarou-lhe a sua adoração. Pediu-lhe que permitisse que ele fosse visitá-la no dia seguinte, quando o marido estivesse fora a negócios, levando-lhe a jóia. A moça hesitou, timidamente. Murmurou algo sobre a virtude e a castidade matronal. Sêneco convenceu-a de que os diamantes tinham maior permanência que a castidade. Houve outra interrupção. — Qual! Mulher alguma vale um diamante — disse o Senador Divona que, tendo certa vez aspirado à Imperatriz e tendo sido rejeitado, nunca perdia uma oportunidade de menosprezar o sexo feminino na frente dela. — Um pedaço de cristal, uma turquesa delicada, talvez, mas não um diamante. As mulheres são muito fáceis. Salustra sorriu indolentemente. Pôs a mão com negligência no ombro de Erato, e ele beijou-a solenemente. Ela levou a sua taça aos lábios dele, ordenou-lhe que bebesse, e depois ela mesma bebeu. O rapaz estremeceu de prazer. Salustra fez sinal a Gátus para que continuasse com a história. — Finalmente — continuou Gátus — a jovem matrona consentiu em que o velho Sêneco fosse visitá-la no dia seguinte. Ele foi, cheio de amor e vinho, levando consigo o adorno para o tornozelo. Uma hora mais tarde, ele saía, sem a jóia e sem um pouco do seu ardor. — Deu um risinho. — Naquela noite, o marido voltou para casa. A dama havia escondido o adorno, discretamente. Contudo, encarando-a vivamente, o marido perguntou-lhe se Sêneco a havia visitado à tarde, e se havia deixado com ela uma argola para tornozelo. Ela confessou a visita, cheia de terror, sem saber como ele havia adivinhado o seu segredo. Ela se teria jogado aos pés dele e implorado misericórdia, mas estava paralisada de terror. Sem perceber nada disso, contudo, o marido explicou com sorrisos e carícias que ele mesmo havia comprado a jóia para ela, na véspera, e que Sêneco havia prometido entregá-la pessoalmente, no dia seguinte.
O vendaval de risadas que se seguiu fez com que as lâmpadas do teto vibrassem. A Imperatriz participou da alegria geral, apreciando ainda mais a história porque confirmava a sua opinião de que a traição era coisa comum. — Essas mulheres! — gritou Pellânius. — Mas não é sempre que conseguimos enganá-las desse jeito! Aposto que a senhora em questão não usa esse adorno para tornozelos em público com freqüência! Outras histórias se seguiram, ficando cada vez mais obscenas à medida que o vinho circulava. Alguns convivas haviam capturado as escravas e mantinham-nas prisioneiras, jocosamente, sobre os divãs de seda, beijando-as desajeitadamente, enquanto elas se contorciam nos braços dos seus captores. Houve muita risada quando uma garota valente, resistindo a certas liberdades, deliberadamente derramou uma taça de vinho sobre o velho Senador Contâni. O vinho pingava do seu rosto balofo, e ele balançava a cabeça como um porco velho para limpar os olhos nublados. — Ponham-no no espeto! — berrou Pátios, o Senador mais moço. — Comeremos porco amanhã no Palácio! — A festa continuava. Um cantor, homem de beleza afeminada, surgiu de uma alcova e começou a cantar uma letra obscena. Quando acabou e se retirou sob fortes aplausos, Pátios resolveu tomar o lugar dele. Jogaram-lhe em cima uma vasilha de vinho, e ele se retirou com uma dignidade de bêbado para uma fonte no centro do aposento. Em meio a gritos e risadas, ele entrou na água, solenemente, e abraçou com ardor uma das estátuas de mármore. — Está pensando que é a mulher dele — comentou Divona, em tom de desprezo. — A estátua é menos fria do que ela — resmungou em voz alta o Nobre Glárus. Em meio a toda essa folia, o Prefeito da Guarda apareceu de repente ao lado da Imperatriz. Tinha um rolo de pergaminho nas mãos e estava pouco à vontade. — Perdoe-me por perturbar Vossa Majestade — disse em voz baixa. — Mas deixaram isso insistindo muito para que fosse entregue imediatamente. Com a testa franzida, Salustra desenrolou o papel. Soltou uma exclamação. Era do desgraçado Lústri. "Quando estiveres lendo isso, ilustre Salustra, o teu pobre Lústri estará morto. Quando o despachaste de ti, despachaste-o da própria vida. Escolhi o melhor caminho; viver sem o teu sorriso é pior do que a morte. A lembrança seria um tormento. Deixo-te agora. Quem sabe terás um último pensamento de carinho para mim." A mão que segurava a mensagem estava firme e forte. — Lústri está morto, o tolo! — exclamou ela. Um silêncio caiu sobre a reunião. Todos se entreolharam, pouco à vontade, evitando o olhar da Imperatriz.
Gátus, parente de Lústri, ficou de pé, com o rosto branco e os olhos faiscantes. — Permita que eu me retire, Majestade! — pediu, com voz trêmula, — Lústri era irmão da minha mulher. A inquietude geral se acentuou. Somente Salustra parecia divertida. Deixou que Gátus permanecesse de pé por vários momentos antes de responder. — Ide, se quiserdes — disse indiferente. Os outros ficaram sóbrios, de repente, e se entreolhavam, aturdidos. — Permitirá que ele tenha um funeral público? — perguntou hesitante o Nobre Glárus. Ela fitou-o de testa franzida. — Por que deveria negar-lhe um funeral público? Credes que eu tema a turba de Lamora? Prefiro a inimizade declarada deles aos murmúrios dissimulados de que ordenei um funeral particular porque os temia. Ora, ora, Glárus! Já estava começando a se dissipar o mal-estar que empanara as festividades. — Ao alvorecer, tu me sussurrarás os teus poemas em segredo — Salustra murmurou para Erato. Lústri já estava esquecido, e os mexericos maliciosos continuavam. — Alguém já viu a casa que Consilíni está construindo para a amante no subúrbio de Conla? — perguntou o Senador Sicilo. — É uma casa de campo de extrema delicadeza, e ele está esbanjando nela a sua fortuna. Dizem que Galo está fazendo as estátuas e Stânti os afrescos. Os jardins são verdadeiras jóias de beleza. Perguntei-lhe hoje por que está gastando tudo isso com uma só mulher, e ele respondeu que sua esposa não quer que ele mantenha suas amantes na cidade, por isso, para agradar-lhe, ele está construindo a casa de campo como residência temporária para os seus diversos amores. Dizem que ele já está cansado de Guhliana e que está procurando uma sucessora à altura. Brittúlia, talvez. Este último comentário foi recebido com risos barulhentos e piadinhas obscenas. Brittúlia era uma virgem notória, uma linda mulher da idade de Salustra. Dizem que ela estremecia à simples aproximação de um homem. Sua casa era como uma tumba em que ela se movia entre as escravas. Não se permitia nenhum homem no local. Alguns gaiatos afirmavam que ela só comia carne de animais fêmeas. — Ouvi dizer que ela só come legumes comprovadamente do sexo feminino — disse Utânlio, o Nobre da Terceira Província. — Ouvi dizer que ela joga fora as vestes que tenham roçado nos homens nos lugares públicos — disse Glárus. — Ela não suporta nem os eunucos, e vendeu um que sua mãe lhe havia deixado.
— Ela é uma eunuca — resmungou Divona. — Como podes provar isso? — perguntou Pátios. Ele havia retirado a túnica molhada e estava deitado despido sobre o seio rosado de uma moça nua. — Ela é uma linda mulher — disse Pellânius, pensativo. — Mas fica pálida à simples presença de um homem, Eu mesmo já vi isso acontecer, Não é afetação. — Talvez ela não ouse confiar em si mesma — disse Salustra. — Já a convidei para as minhas festas e ela me implorou de joelhos que não insistisse na sua presença. Impliquei com ela um pouco, dizendo-lhe que ela nunca conheceria o prazer completo até que dormisse nos braços de um homem. Ela desmaiou. — Pobre coitada! — disse Erato, tentando obter a aprovação de Salustra. — Suprimiu seus ardores íntimos e secretos e eles a estão consumindo. Todos pareciam estar gostando de ridicularizar a pobre virgem por falta de virtude. — Mulheres como essa são cortesãs descontroladas e terríveis no íntimo — disse Pátios. — Têm medo de si mesmas. Conseguem manter sua virtude apenas pela mais severa segregação. Se puderem ser induzidas a entregar sua castidade, seus apetites as destruiriam. — Um dia desses eu a convidarei a vir ao Palácio e darei um jeito de trancá-la num quarto à prova de som com um rapaz ardoroso — brincou Salustra. — E que os homens de Lamora se cuidem depois! Todos riam às gargalhadas. O nome da casta Brittúlia continuou a servir de troça por algum tempo. — É preciso não chamar a atenção dela para o fato de que não é um resultado da concepção espontânea. Senão, ela é capaz de cometer suicídio — disse o Nobre Utânlio. — Quem sabe ela acredita que nasceu do ar, como Néhlia — disse Erato, referindo-se à casta deusa do seu país. Salustra deu de ombros. — Não há nada mais vil do que uma mulher deliberadamente casta — disse, — Sua falta de castidade espiritual é revoltante. Continuaram a beber. As moças nuas já não serviam aos convidados, mas sentavam-se ou deitavam-se ao lado deles para dar-lhes prazer. Salustra recostou-se casualmente no peito de Erato, de olhos semicerrados, com a boca vermelha recurvada num sorriso sensual. A Imperatriz ergueu a mão lânguida e a sala de banquete ficou em total escuridão. Os murmúrios suaves das moças misturavam-se ao respirar ofegante e excitado dos homens. A orgia havia começado, mas sem a Imperatriz. Salustra havia desaparecido, e Erato com ela.
7
Salustra ainda estava reclinada no seu divã, embora já fosse quase meio-dia. Tinha olheiras profundas, o rosto estava contraído e os lábios quase sem cor, à luz cruel do dia. Ela ergueu a mão numa aceitação lânguida da reverência da Alta Sacerdotisa Júpia. Júpia era uma mulher extremamente alta. Não parecia possuir um corpo de mulher, pois a sua silhueta era reta e magra demais. Usava uma touca de seda carmesim que lhe ocultava completamente os cabelos grisalhos e emoldurava um rosto esquálido de olhos azuis inexpressivos. Suas mãos se escondiam nas mangas largas e debruadas de ouro das vestes vermelhas. Estava acompanhada por duas virgens vestidas de azul. A reverência que fez à Imperatriz denotava uma deferência desdenhosa, como se o seu espírito protestasse contra aquela homenagem. Salustra deu-lhe uma permissão indiferente, e Júpia sentou-se perto do divã da Imperatriz. A escolta virgem da Sacerdotisa ficou de pé, imóvel, atrás da sua cadeira. — Concedo-vos 15 minutos, Júpia — disse a Imperatriz. — Ide direto ao assunto. Uma escrava estava por trás da Imperatriz, agitando um enorme abano; outra aia, ajoelhada ao lado do divã, escovava o cabelo da Imperatriz, até que ele adquirisse o brilho desejado. Mais uma fazia-lhe as unhas, esfregando-lhe um líquido perfumado nas pontas dos dedos. Júpia observou sua soberana com uma desaprovação que mal disfarçava, e seus olhos moviam-se devagar do lindo rosto para o corpo semidespido. Disse secamente: — O que tenho a comunicar a Vossa Majestade não tomará muito tempo. Salustra bocejou deliberadamente: — Aquele vinho! — exclamou. — Lóti deve ter soprado naquelas uvas. Sua respiração azeda era evidente nelas. Sáti, a divindade suprema, tinha uma grande quantidade de amantes terrenos e de rebentos. Suas filhas eram: Lóti, rainha dos mortos não arrependidos; a suave Mayhita, padroeira das mulheres castas e das criancinhas; Détria, deusa das colheitas; Parenália, deusa do amor terreno; a virginal Dênia, padroeira das artes e ciências; e Ibéria, deusa da guerra e da virilidade. Havia três regiões sobrenaturais na religião local. Uma delas era Drulla, o lugar da angústia e do fogo, presidido por Lóti no seu castelo de chamas, acompanhada das suas aias Ódio, Medo, Devassidão e Crime. Para aquele lugar terrível iam os maus, os que não se arrependiam, os covardes e os traidores. A segunda região era Crystu, terra dos espíritos que não haviam terminado o seu trabalho na terra, ou que, tendo provado o seu valor, preparavam-se para a felicidade eterna nos salões de Lítia, onde se aqueceriam para sempre à luz gloriosa de Sáti, cujo palácio era o sol. Ninguém que houvesse caído nas chamas e na escuridão gélida de Drulla poderia escapar. Poucos iam diretamente para Lítia. Esses poucos eram os homens corajosos e galantes que morriam na guerra, as virgens castas e sagradas, a Alta Sacerdotisa, mulheres que morriam de parto e a família imperial. Todas as divindades eram femininas, mas todas tinham amantes terrenos, exceto Dênia. A masculinidade nunca era divinizada. O pontífice era sempre uma mulher; suas servidoras sempre virgens. Ela governava um clero de homens celibatários, e a esses subordinados ela destinava as tarefas menores de atrair os fiéis.
Júpia morava num palácio escuro à sombra do reluzente Templo de Sáti. Nunca era vista nas ruas a não ser coberta de véus e na sua liteira cerimonial. Diante da liteira caminhavam os sacerdotes, nas suas túnicas pretas e carmesins, de cabeça baixa e mãos cruzadas sobre o peito. Era considerada uma ofensa mortal tentar lançar olhares curiosos para dentro da liteira, e era o pior dos azares escutar, mesmo casualmente, o cantochão dos sacerdotes nos lugares públicos. Júpia movimentava-se numa nuvem de superstição e medo. Seus atributos sacerdotais eram a sabedoria, simbolizada por um bastão em que se enrolava uma serpente verde; a castidade, simbolizada pelas pombas que voavam pelo templo, sem serem molestadas; e a imortalidade, exemplificada por uma chama eterna no altar do templo. Tudo isso era uma besteirada para Salustra, e Júpia sabia-o bem. Tentou encontrar um segundo sentido no comentário feito pela Imperatriz. — O vinho foi feito das uvas do meu próprio quintal, grande Salustra — disse a Alta Sacerdotisa num tom de voz tristemente reprovador. — Então eu sei que Lóti soprou nelas! — exclamou Salustra com uma careta. — Qual! Não fiqueis com cara tão ofendida, Júpia. Credes que estou insinuando que as envenenastes especialmente para mim? Os lábios pálidos de Júpia moveram-se como se ela estivesse fazendo uma oração muda. Salustra dirigiu-lhe um sorriso impaciente: — Estais rezando pela minha alma, Júpia? Não o façais, eu vos imploro! Lóti já tem prioridade sobre ela, e vossas orações só farão aumentar as chamas. Que quereis comigo? — O que eu tenho a dizer não demorará muito, grande Salustra — repetiu Júpia com voz áspera, — Mas o poderoso pai de Vossa Majestade estava sempre disposto a ouvir minhas profecias e meus conselhos. O que ele fez, Vossa Majestade bem podeis fazer. — Salustra inclinou a cabeça, impaciente, sem falar. — Há duas noites tive um sonho horrível — continuou a Sacerdotisa — que era mais como uma visão. O ar estava quente, abafado, úmido... — O calor estava muito forte. Não admira que tivésseis tido um sonho mau. Durante um momento, o ódio sem disfarce brilhou nos olhos de Júpia. A Imperatriz continuou: — Vossa dieta rigorosa é suficiente para dar-vos mil horrores. — Salustra bocejou. As mãos magras de Júpia se apertaram sob a túnica vermelha. — Não sou dada a horrores nem a maus sonhos, Majestade — disse com aspereza. — Minha consciência está limpa, minha vida é casta, meus
pensamentos são virtuosos, minha cama imaculada... — Então sou eu que devia ter os vossos pesadelos — sorriu Salustra. — Mas juro-vos que durmo como um bebê ao seio da mãe. As duas mulheres fitaram-se atentamente, Salustra sorrindo de leve, a Sacerdotisa rígida e silenciosa. Depois, Júpia recomeçou, em voz controlada c monótona. — A noite estava abafada. Parece que eu cochilei, e, contudo, um momento depois já estava acordada, e o meu sangue corria como gelo nas veias. — Fez uma pausa. Salustra fez-lhe sinal para que continuasse. — E então, numa nuvem de luz, vi o glorioso pai de Vossa Majestade, o poderoso Lazar. — Fez nova pausa e lançou um olhar para Salustra. A Imperatriz recostou-se numa almofada e bocejou mais uma vez. — Mandarei examinar as paredes da sua tumba — falou secamente. Os olhos de Júpia faiscaram. — Eu o vi — repetiu. — Estava usando a coroa de 12 pontas de Atlântida e havia uma estrela em cada ponta, brilhando como pontinhos de chama. O rosto dele estava majestoso, mas havia lágrimas nos seus olhos. A luz mortiça o iluminava como iluminaria um mortal. — O rosto dela estava pálido e ela tremia visivelmente. Salustra franziu o cenho e fez o sinal para que prosseguisse. — Ainda posso ouvir a sua voz. Parecia uma voz que vinha através de uma grossa parede, mas cada palavra era audível. Ele disse: "Júpia, tentei falar com a minha amada filha Salustra, mas ela não me ouve. Mas ela sente a minha presença, a insistência da minha voz, o toque da minha mão. Já falei com a alma dela, que ouve a minha voz, mas não consegue aceitar a minha presença. É por isso que ela anda distraída, cansada e triste, já há muitos dias. Salustra ergueu-se sobre um dos cotovelos. O sorriso havia desaparecido do seu rosto. Olhou para Júpia com suspeita. A Alta Sacerdotisa não se alterou. Prosseguiu: — Porque não podia fazer com que Vossa Majestade o ouvisse, ele veio a mim. E tem uma mensagem para Vossa Majestade, Enquanto ele falava, estendeu a espada... estava quebrada a poucos centímetros do cabo. Depois olhei para a coroa dele, e já não era mais uma coroa. Era uma guirlanda de rosas que pingavam sangue. Ele falou: "Diga a Salustra que assim é a Atlântida. Diga-lhe que a espada da Atlântida está quebrada e que sua coroa é uma guirlanda desbotada. Diga-lhe que se aproxima a hora, e que os salões de Lóti já se abrem para ela." Por um momento, o rosto de Salustra revelou algo parecido com o pavor. Mas nada disse. Júpia sorriu consigo mesma, — Ele disse que salvaria Vossa Majestade. Mas só pôde dizer-lhe isso: "Quando a destruição vier do norte, foge para o leste ou para o oeste."
Salustra recobrou-se depressa. Jogou a cabeça para trás e deu uma risada. — Ora! Pensais que podeis me assustar com os vossos sonhos, Júpia? Contai as vossas profecias para as multidões palermas do templo; despertai-lhes medo para que tragam maiores sacrifícios ante o altar. Aposto que depois de uma história como essa os vossos cofres retinirão outra vez. Como se tivesse sido picada, Júpia levantou-se de um salto. Seu corpo alto e magro tremia como uma árvore estéril numa tempestade. Ergueu a mão num gesto imperioso: — Eu avisei Vossa Majestade — disse friamente. — Nada mais posso fazer. Cumpri meu dever. O destino de Vossa Majestade está nas mãos dos deuses. Sem a reverência de costume, ela virou-se abruptamente e saiu do aposento, seguida de perto pelas suas virgens. Salustra lançou-lhe um olhar de desprezo. — Perfumai o ar — gritou para as suas escravas. — A velha bruxa deixou aqui um fedor de morte! É verdade que ela havia sentido a presença do pai, às vezes, mas havia atribuído isso a uma imaginação ativa, induzida pela sugestão dele no seu leito de morte. Ela desejava o amor dele, a sua força e os seus conselhos. E por isso via o seu rosto e corpo familiares. Era só isso. Drulla, Crystu. Lítia... as pessoas é que as criavam. Salustra tinha coisas mais urgentes em que pensar. Uma hora após a saída de Júpia, estava reunida secretamente com os embaixadores da corte de Althrústri. O tédio dela era evidente em cada gesto e cada olhar. Até mesmo o seu conselheiro de confiança, Máhius, parecia refletir esse cansaço com tortuosidade diplomática. Tellan, o embaixador-chefe, estava acompanhado por seu assistente, o astuto e ardiloso Zôni. Salustra, observando aquele par, sorriu de leve. Sua mão brincava com a pedra preciosa que trazia ao pescoço, e ela faiscava com um brilho vermelho-rubi. O embaixador segurava um porta-jóias dourado, que estendeu reverentemente enquanto falava. Salustra ignorou o porta-jóias. — Com certeza o grande Signar não vos ordenou que pedísseis uma entrevista particular para que viésseis dar-me presentes, Tellan. Vamos logo! Que tendes para me dizer? Tellan olhou para Zôni, que ergueu as sobrancelhas e com uma mesura estendeu o porta-jóias dourado para a Imperatriz. — O nosso Imperador suplica que Vossa Majestade se digne aceitar este humilde presente, que, embora radioso, não consegue se igualar à radiância de Vossa Majestade. — Um discurso bonito — disse Salustra, indiferente. — Aposto que não foi Signar quem o escreveu.
Ela abriu o porta-jóias e retirou uma fantástica gargantilha de pedras preciosas. Era feita de centenas de pedras magníficas, lapidadas com perfeição e combinando esplendidamente. Ela ergueu a gargantilha e sopesou-a, distraidamente, admirando o seu brilho multicor. Tellan e Zôni trocaram sorrisos secretos de satisfação, — Sou incapaz de expressar o meu prazer ante tal presente —. disse ela devagar. Ergueu os olhos, sardonicamente. — Que espera Signar em troca disso, senhores? A franqueza dela desconcertou momentaneamente os embaixadores. Tellan inclinou-se outra vez, e sua cabeça quase tocou a sandália reluzente de Salustra. — Vossa Majestade faz uma pergunta honesta, que merece uma resposta honesta. — Ele ficou ereto e olhou para a Imperatriz com admiração. — Vossa Majestade pergunta o que o nosso senhor deseja. Ele a deseja. Salustra ficou em silêncio por um segundo, lembrando-se do que Máhius havia dito, depois deu uma risada de desprezo, fria e sem humor. — Quereis dizer que ele deseja Atlântida — falou com um olhar mortífero. — Não, grande Majestade — interrompeu Zôni, ansioso. — Ele só deseja Vossa Majestade. Ele nos disse: "Quero a bela Salustra para esposa; para ser a minha Imperatriz e a mãe dos meus filhos." Salustra riu de novo, escarnecendo. — Eu sou apenas um apêndice do Império que ele cobiça. Se eu lhe oferecesse apenas Atlântida, ele a agarraria sem sequer me dispensar um olhar. Ora, vamos! Sejamos francos! Ele está disposto a ser razoável e tentar uma conquista pacífica. Mas se eu lhe enviasse esta resposta: "Salustra está lisonjeada e encantada com a honra que Signar lhe concede, mas deve decliná-la." Que aconteceria, Tellan? Tellan sorriu friamente, mas não deu resposta. Salustra brincou languidamente com o presente de Signar. — Se eu mandasse esta resposta a Signar, significaria a guerra? — E eu disse isso, Majestade? — perguntou Tellan com voz zombeteira. — Não, apenas o insinuastes, Tellan. Vamos, fizemos um trato de usar de franqueza. Já faz algum tempo que sei que Signar cobiça a Atlântida e que é inevitável que ele tente conquistá-la. Ele roubou o nosso divisor de átomos e não hesita em usá-lo, pensando que somos civilizados demais para atacar primeiro. Mas, como pode ele ter certeza de que eu não daria o sinal que destruiria milhões? Portanto ele decide utilizar um meio pacífico para atingir o mesmo fim. Casar-se-á com Salustra! Então será dele uma Atlântida intacta, e não uma ruína fumegante, perigosa por causa da
radiação. Por tal prêmio ele pode até mesmo suportar a Imperatriz Virgem! A boca de Tellan crispou-se. Ele olhou para Zôni, cujo rosto denotava constrangimento. Salustra notou a preocupação deles, e seus olhos tiveram um brilho divertido. — Deveria mandar cortar vossas cabeças — disse com um sorriso zombeteiro. Máhius lançou aos emissários um olhar reconfortante. — As ambições de Signar são dignas dele — disse Salustra, saboreando-lhes a surpresa. Brincou com a gargantilha fulgurante que tinha sobre os joelhos. — Ele possui o sangue ousado que constrói os impérios. Nada me agradaria mais do que ver um filho dele sentado no trono de Atlântida. E pretendo que assim seja. Tellan fitou-a incrédulo; Zôni ficou de boca aberta. A Imperatriz sorriu enigmaticamente. — Mas não me casarei com ele — prosseguiu. — Que é isso! Não fiqueis tão desapontados, senhores! — Inclinou-se para a frente. — Eis a mensagem que podeis levar para ele: A Imperatriz Salustra declina a sua mão, sentindo-se indigna de tal honra. Mas Salustra lhe oferece, em vez dela mesma, a linda e meiga Tyrhia em casamento. Esta sim é uma noiva digna dele, uma princesa casta e virginal, que não lhe trará nenhuma desonra. Diga-lhe que Salustra nunca se casará; que nenhum filho dela empunhará o cetro da Atlântida; e que ela cuidará do seu Império para o filho de Signar e Tyrhia. Os embaixadores se entreolhavam, estupefatos. Salustra reclinou-se na cadeira, e esperou, com um leve sorriso nos lábios. — É esta, então, a decisão de Vossa Majestade, grande Imperatriz? — acabou por exclamar o desnorteado Tellan. Salustra inclinou a cabeça. — Que Signar considere a minha oferta com muita atenção. Se ele a recusar, que haja a guerra. Eu sei que as legiões dele serão mobilizadas, e a bandeira da guerra desfraldada. Zôni ergueu a mão em protesto. — O nosso senhor — disse apaixonadamente — não deseja a guerra com a Atlântida. Vossa Majestade usou de franqueza; faremos o mesmo. Foi sempre o sonho dele, como foi o de seu pai, anexar Atlântida a Althrústri. Ele sentia que o dia chegaria em que, inevitavelmente, as duas nações se empenhariam numa luta de morte. Ele esperava por esse dia. Mas agora a Atlântida já não é seu maior desejo. Acima do seu desejo de conquista, acima da união de duas grandes nações, ele deseja Vossa Majestade e somente Vossa Majestade! Salustra ficou de pé, impaciente.
— Absurdo! — exclamou. — Como é que ele sabe que me deseja? Ele nem sequer me viu! Ora
essa!
Ela teria descido do estrado, mas Tellan ergueu a mão, conciliadoramente. — Ele ouviu muitas histórias a respeito de Vossa Majestade — disse ele. — E elas fizeram com que ele a desejasse, acima de todas as outras coisas, como uma figura régia singularmente do gosto dele. — As histórias mentem — retrucou Salustra com desprezo. — Se elas fossem verdadeiras, ele não me desejaria. Ela se teria retirado, mas o olhar de Tellan a deteve. — A decisão de Vossa Majestade é definitiva? — Salustra fez que sim com a cabeça. — Temos apenas uma coisa a acrescentar, Majestade — disse Tellan. — Um mensageiro chegou hoje a Lamora para avisar que o Imperador chegará daqui a três dias. Ele receberá a resposta pessoalmente. A calma de Salustra abandonou-a. A cor fugiu-lhe do rosto. Passou pelos emissários sem uma só palavra. Máhius seguiu-a, — Ele está a caminho da Atlântida, Máhius — ela disse com ferocidade. — É a guerra!
8
A Assembléia Nacional, composta dos Senadores e dos Plebeus e Nobres da Assembléia simples, reuniu-se no imenso Salão da Lei anexo ao Palácio Real. Diante das monumentais portas de bronze, sob enormes colunas brancas, ficavam os dois gigantescos leões de Atlântida. Essas figuras eram esculpidas com tanta arte, tanta fidelidade, os seus olhos fosforescentes eram tão ferozes que, a certa distância, dava para confundi-los com animais verdadeiros de proporções gigantescas. Por baixo da cúpula de mármore tremulavam as flâmulas escarlates de Atlântida, com o símbolo nacional, espadas cruzadas por trás de um leão em atitude ameaçadora. Uma linha rígida de soldadesca cerimonial, todos armados e de capacetes, dispunha-se ao longo das paredes circulares de mármore. Seu capitão, o belo Creto, estava diretamente atrás do trono de Salustra. Os Senadores sentavam-se em bancos acolchoados à direita da Imperatriz. À esquerda dela, ficavam os 24 Plebeus e Nobres das 12 Províncias e 24 Representantes reais. Em cadeiras de marfim, entre os dois grupos, sentavam-se três representantes da capital, Lamora. O calor e a neblina perturbavam a todos mais do que queriam admitir, mas tentavam permanecer calmos e deliberados, como condizia com tão augusta assembléia. O calor era intenso, um calor estranho, ousado, abafador, fumacento. O Nobre Gátus falou que havia sentido a terra tremer na véspera, mas debocharam dele. Depois Utânlio afirmou que, se se prestasse atenção, se notaria que o mar tinha um som esquisito, como se uma grande serpente rugisse sob as águas. Também ouvira dizer que a maré não estava normal, nos últimos dias; a cada dia retrocedia mais um pouco. O sol, que mal se delineava, estava cercado por um círculo de fogo enfumaçado, e o próprio astro era como bronze derretido por trás da névoa incomum. Enquanto esperavam a Imperatriz, os homens saíram para o pórtico e fitaram os céus. Alguns meneavam a cabeça e pareciam inquietos, relembrando vagamente uma antiga profecia. Um dia Sáti se cansaria dos crimes de Atlântida, e, nesse dia, ela ordenaria às águas do mar que a cobrissem, e os vivos não a veriam mais. O aristocrata Contálio mencionou a profecia, mas riram dele e o ridicularizaram. — É possível que a superstição ainda perdure entre nós? — exclamou o plebeu Maráti. — A religião não conseguiria sobreviver sem a superstição — disse o Senador Tílus, que também era um filósofo de renome. — Religião! — exclamou o Senador Vílio. — Que religião? Verdade que ainda temos a sua sombra, mas a substância já não existe mais. Gátus, zombeteiramente, fez a pergunta que Salustra fazia a si mesma com freqüência. — Que é a verdade? A pergunta provocou grande hilaridade, e assinalou a entrada da Imperatriz.
Ao ressoar das trompas, os conselheiros apressaram-se a voltar aos seus lugares. As portas de bronze abriram-se, e Salustra surgiu nas suas vestes cerimoniais roxo-e-brancas, com a coroa de 12 pontas de Atlântida. Caminhou altivamente para o trono, com Máhius um passo às suas costas. Antes que ela se sentasse, um imenso escravo, vestido somente de uma tanga e com elos de ouro nas orelhas, ajoelhou-se ante a Imperatriz, segurando um braseiro de carvões quentes. Máhius entregou-lhe uma bolsa de seda vermelha. Continha porções de terra peneirada de cada uma das 12 Províncias. Os presentes ajoelharam-se numa reverência convencional, enquanto a Imperatriz desamarrava a bolsa e derramava o seu conteúdo sobre o braseiro quente. Imediatamente, uma nuvem de fumaça acre elevou-se das brasas, e espalhou-se para cima como uma serpente sobressaltada. A Imperatriz ergueu a mão e começou a falar. Cada recanto do aposento ressoava com a voz dela. Era uma saudação de boas-vindas repetida duas vezes, tradicional há séculos, que dava a permissão imperial para a Assembléia se sentar. Depois, Máhius levantou-se e ressaltou, hesitante, que o tesouro nacional precisava ser reabastecido. Pediu sugestões. Ao ouvir isso, Zânius, o Nobre que representava Lamora, apresentou um plano, um imposto sobre a renda particular dos donos de moinhos, fábricas, lojas e navios. Salustra ouviu a proposta de testa franzida. — Não — disse com firmeza. — Isto seria infligir mais uma injustiça à classe média já tão sobrecarregada. Quem iria sofrer com este imposto? Não os pobres incompetentes e incapazes; não estariam na faixa dele. Não os independentemente ricos, pois não se dedicam à indústria, ou ao comércio, ou às manufaturas, mas vivem dos investimentos feitos no passado. Do jeito que as coisas vão, estamo-nos tornando uma nação de pobretões, escravos e aristocratas imensamente ricos. Tal condição não pode continuar por muito tempo sem que surja o descontentamento, o caos, a revolução e o desastre nacional. O assunto ficou encerrado. Outro Nobre ergueu-se, confiante, para submeter à Imperatriz uma petição de natureza diferente, uma lei radical para suprimir a traição por meio da proclamação de um estado de emergência. Espiões do governo haviam descoberto tramas extensas para derrubar Salustra e proclamar uma república. Os lábios de Salustra encresparam-se de desdém: — Como é grande a vossa ansiedade por minha causa! — exclamou, com os olhos faiscando de desprezo. — Estou profundamente emocionada. Considerai-me subjugada pelas provas de vosso amor e devoção. Não useis de hipocrisia untuosa comigo, nobres senhores! — acrescentou desdenhosamente. — Dizei-me, como homens, que estais temerosos por vós mesmos, pelas vossas posições, pelas vossas vidas. Vós me pedis ajuda para suprimir os revoltosos, os radicais, os que protestam contra a vossa rapinagem. Desejais que eu menospreze os direitos civis normais e atire os dissidentes na cadeia, que eu acabe com suas vidas, detenha suas línguas, torture-os, confisque suas propriedades. Ora, ora, tolos! Quando os erros nacionais começam a ferver num caldeirão de
injustiça e ódio, é loucura completa tampar o caldeirão. Que o vapor escape! Quando os homens falam, eles perdem a energia para agir. Que suas línguas se agitem; que suas penas escrevam. Caso contrário, o vapor fará estourar a tampa. Ela passou a outras propostas, vetando algumas, aprovando outras. O Senador Tolíti, um homem bem-intencionado, mas de mentalidade estreita, reclamou que as pessoas já não eram reverentes. A maioria faltava aos serviços religiosos nos templos, e ignorava os feriados públicos em honra dos deuses. Até mesmo nas estátuas tinham escrito epigramas obscenos. — Que a mão férrea da lei caia sobre este povo libertino e force-o à adoração divina — disse ele solenemente. Salustra meneou a cabeça, fatigada. — Tornaremos Atlântida virtuosa a despeito de si mesma, não é? Aposto que a sombra de Júpia está por trás de vós, Tolíti: talvez até mesmo o ouro dela esteja retinindo na vossa bolsa, neste momento. Se a Atlântida não adora seus deuses, será culpa do povo ou dos intérpretes, os sacerdotes, que dizem: "Fazei o que eu digo, não o que eu faço"? Por causa do aumento impressionante dos índices de crimes, um dos Nobres propôs castigos mais rígidos. Salustra ficou algum tempo em silêncio antes de falar. — Por que não procurar as causas antes de partir para um tratamento drástico? Não se respeitam as leis. Por quê? As nossas cortes são lentas, canhestras. O castigo é incerto. A imunidade da justiça é uma questão de dinheiro e influência. Descobri, senhores, o que está poluindo as veias de Atlântida e não será preciso preocupar-vos com o aumento dos crimes. Serão os estrangeiros indesejáveis, as leis injustas, a pobreza? Será o excesso de população, as cidades congestionadas, uma tendência ao afastamento do trabalho honesto, uma vida artificial e sofisticada demais? Será o crime o protesto apaixonado do animal humano aventureiro contra a monotonia miserável da sua existência? Ou será o desemprego, a multiplicação dos inferiores, sem aptidão para nada a não ser para o roubo e a desonestidade? Descobri, senhores, faço-vos responsáveis por uma resposta breve. Em face desse sardônico inventário, o salão ficou silencioso. Os representantes estavam bem conscientes de todos esses ingredientes da decomposição de Atlântida. Durante os momentos de silêncio, Salustra falou com Máhius, à parte, por algum tempo. Finalmente, ela se adiantou alguns passos, alta, vibrante, imperiosa. Pelo jeito dela, todos se deram conta de que tinha algo importante a comunicar. — Nobres senhores, eu vos direi o que teria salvado a Atlântida. A riqueza da nação não devia ter sido concentrada nas cidades, mas sim espalhada por todo o país. Os corpos e os espíritos dos homens não deveriam ter sido explorados para acumular fortunas para a aristocracia. Não deveríamos ter permitido que a religião poluísse os ares com a superstição. Deveríamos ter impedido a propagação dos inaptos, permitindo que apenas os superiores procriassem. Mas não fizemos isso e falhamos! A Assembléia fitava-a com um espanto inquieto. Ela ergueu a mão com eloqüência.
— Chegou para nós a hora da verdade. Sabeis, senhores, que Signar de Althrústri se está aproximando de Lamora com uma grande esquadra? Se as paredes do Salão da Lei houvessem caído sobre eles, os membros da Assembléia não teriam demonstrado maior consternação. As vozes agudas e incoerentes misturavam-se numa balbúrdia do especulação. Onde estavam as legiões e a esquadra? Por que Signar não fora detido antes de entrar nas águas da Atlântida? Salustra sorriu amargamente. Disse em voz baixa para Máhius: — Onde está o estoicismo deles, agora? Sua indulgência sorridente? — Ela se adiantou e de novo ergueu a mão: — Senhores — falou a Imperatriz com frio desprezo. — Vós estivestes à altura das minhas expectativas. Eu previa este pânico. — Ela fez uma pausa de um momento. Algo no jeito dela fez com que eles ficassem subitamente esperançosos. — Eu disse, senhores — ela repetiu com um sorriso de desdém — eu disse que havíamos falhado, que a hora havia chegado, que Signar já estava em Atlântida. Tudo isso é verdade. Mas ele vem com a paz na mão e a guerra no coração. Seus navios movidos de modo primitivo esgueiraram-se como uma sombra entre os navios da minha esquadra estacionária, imobilizada de modo misterioso, assim como as nossas aeronaves e os nossos veículos terrestres. Até mesmo o nosso sistema de alarme falhou nes,-ta maldita neblina. Novamente a Assembléia teria sido tomada pelo pânico, se Salustra, com um gesto imperioso, não houvesse acalmado o grupo, — Felizmente, ele vem numa missão ostensivamente pacífica. Senhores, ele pediu a minha mão em matrimônio. Ao fazê-lo, ele declara a sua determinação de anexar Atlântida pacificamente, se for preciso. — Novamente a esperança brotou neles. Ela percebeu isso, e mais uma vez algo semelhante ao desprezo encheu seu coração, — Prometi ao meu pai que tentaria preservar a integridade de Atlântida. Se eu pudesse manter essa integridade casando-me com Signar, de bom grado o faria. Mas se eu o desposasse, Atlântida como nação desapareceria. Ela fez uma pausa dramática. — Mas eu lhe oferecerei a minha irmã, Tyrhia, em casamento. Após a minha morte, o filho dele sentará no meu trono, e Atlântida ainda será uma nação independente. — Um silêncio constrangedor caiu sobre o salão. Agora que parecia ter passado a ameaça do perigo imediato, a vergonha tomou conta de muitos. A soberana continuou: — Se eu estivesse em posição de fazê-lo, eu tentaria deter Signar. Mas a Atlântida se desfaria diante dele como um melão podre. Ele tem uma arma que destruiria a Atlântida completamente. E fomos nós quem lha demos... traidores aqui nesta Assembléia que pensam que farão parte do novo regime de Signar. São não apenas traidores, como tolos. Aqueles que eram culpados, como Divona, começaram a esticar o pescoço como que para descobrir os traidores. Mas, para a maioria, a esperança, como um vento fresco, soprou sobre a Assembléia. Os membros sussurravam uns para os outros, em vozes excitadas, ignorando a figura calma à sombra do trono. Ela olhou para eles como se fossem pegas a palrar. — Vós vos perguntais por que não destruímos o império de Signar com o nosso divisor de
átomos. Seria um desperdício estéril, e só conseguiríamos fazer com que as geleiras desabassem sobre nós. — Ela sorriu amargamente. — Signar não tem o mesmo problema que Atlântida. O maldito nada tem a perder, por isso pode apostar tudo num lance dos dados. Pela primeira vez a Assembléia considerou a existência da pessoa de Tyrhia. Antes ela a ser sacrificada do que eles. Olharam para Salustra calidamente, até mesmo afetuosamente. Ela devolveu o olhar deles num silêncio sóbrio. — Precisamos enfeitar Lamora como que para a visita de um amigo muito querido. — acabou dizendo, secamente. — Vamos fazer de conta que pensamos que ele está aqui numa missão amistosa. Assim é a diplomacia.
9
A Imperatriz passeava sozinha pelos jardins imperiais. Sob a pesada neblina, as grandes árvores formavam um padrão singelo e ordenado de vegetação. Estátuas de mármore espalhavam-se pelos gramados e destacavam-se entre a espessa folhagem; os borrifos perfumados das fontes caíam dentro das bacias de mármore, e as águas fluíam para lagos artificiais onde deslizavam brancos cisnes reais. O sol, obscurecido pelas nuvens sem fim, mal se filtrava pelos ramos das árvores. À distância ela podia ver Tyrhia jogando bola, uma bola dourada, com as amigas Zútlia, Utânlia e Lúdia. Os movimentos delas eram graciosos, seus corpos jovens eram flexíveis, cheios de uma promessa delicada. Suas vestes brancas rodopiavam ao redor delas, sedutoramente, a cada movimento súbito. Salustra parou à sombra de uma árvore, observando as donzelas que brincavam, com um sorriso divertido. Tyrhia fazia beicinho quando perdia a bola, e acusava suas companheiras, raivosamente, de terem jogado de mau jeito propositadamente. Elas se submetiam à vontade da princesa, mas Salustra percebeu os sorrisos amargos que trocavam umas com as outras, disfarçadamente. Ela franziu o cenho. Aquela criancinha!, pensou consigo mesma. Estou começando a imaginar se estarei sendo justa com Signar. Será que ele esmagará o coraçãozinho palpitante dela, ou será que ela, como tantas mulheres comuns, dobrará o macho superior aos seus caprichos, em mais um exemplo clássico da tirania dos fracos sobre os fortes? Não ocorreu nem uma vez a Salustra que Signar não fosse agarrarse ao casamento com Tyrhia como o meio de obter o que mais almejava — a Atlântida. Ficou pensativa... Será que os filhos de Signar herdariam a ambição e a audácia do pai, ou será que herdariam, como acontece com muitos filhos, a suavidade e pequenez da mãe? Neste exato momento, as jovens se deram conta da presença da figura majestosa. Tyrhia, virando-se rapidamente, correu para ela com uma exclamação de surpresa. Salustra, sorrindo um tanto superficialmente, pôs o braço ao redor da mocinha. Olhou para o rostinho encantador. Com displicência, afastou os cachos de cabelo dourado que lhe cobriam a testa clara. — Estás quente, menina — falou. — Devias estar descansando, e não cabriolando neste calor. — É preciso fazer alguma coisa — respondeu Tyrhia, um tanto petulante. — Onde estão os teus livros, a tua música, os teus pássaros? — Livros! — exclamou Tyrhia. — Estou cansada de livros! Tu estás sempre atrás de mim para lê-los, Salustra, e apesar do que me explicas a respeito deles, fazem-me bocejar. Não os entendo, são tão enjoados. Além disso, os homens não apreciam as mulheres sabidas. Salustra riu, de repente. — E onde foi que adquiriste o teu grande conhecimento dos homens, menina?
Tyrhia olhou com malícia para a Imperatriz. — Aqui no Palácio é que não faltam. Ficam à espreita do nosso menor movimento, como cães de olho num osso. Salustra lançou-lhe um olhar indulgente. — Mas onde adquiriste esta profunda percepção dos homens? Será que eles gastam os seus galanteios com uma donzela casta como tu? — Salustra pôs a mão no ombro da moça, com expressão grave. — Hoje à noite, Tyrhia, quero a tua presença nos meus aposentos. Tenho algo importante a dizer-te. A mão caiu-lhe ao longo do corpo, e ela lançou um olhar às jovens que se haviam afastado alguns passos, respeitosamente. Ela estendeu a mão às moças, que a beijaram reverentemente. Ficou conversando um pouco com elas, ouvindo seus comentários ansiosos. Deu uma palmadinha afetuosa numa face, alisou uns cabelos com carinho, depois afastou-se devagar, sentindo-se de repente velha e gasta. Tyrhia teria ido juntar-se a ela, mas ela ergueu a mão para detê-la. Observaram a figura alta, imersa nos seus pensamentos, voltando para o Palácio. Ela estava pensando, com alguma amargura, que, ao contrário de Tyrhia e de suas amigas, nunca fora jovem.
10
A castidade de Brittúlia, filha do filosofo Záhti, não era acidental, de modo algum. Záhti, após ter abandonado por curto espaço de tempo o ascetismo, o que resultara no seu casamento com a frígida filha de Plétis, Cônsul da Quarta Província, logo voltara agradecido para o seu quarto singelo e para os seus tratados filosóficos. Dizia-se, maliciosamente, que, após seis meses de casamento, ele e a esposa haviam concordado em manter castidade absoluta. Quer os boatos fossem ou não verdadeiros, não tiveram mais filhos depois de Brittúlia, nem a Brittúlia-mãe precisou recorrer ao médico Nulah, o esperto cúmplice de todas as matronas ricas que desejavam evitar a maternidade. A Brittúlia-mãe morrera depois de quatro anos de continência conjugal, e diziam as más línguas que ela sucumbira de loucura provocada pela frustração. Deixara uma considerável fortuna à filha única, sua xará. Obviamente, Záhti tinha pouco afeto pela filha. Ele a via raramente, e parecia possuir a mesma aversão mórbida pelas mulheres que ela viria a demonstrar pelos homens. Após a morte dele, a filha ficou aos cuidados da irmã do pai, uma virago frígida. Ensinaram-lhe, desde a infância, que a castidade era a única condição desejável para uma mulher. A menina vivia isolada, e não tinha mestres nem companheiros do sexo masculino. Vivia sempre protegida dos olhares profanadores dos homens. Até mesmo a criadagem era exclusivamente de escravas. Brittúlia, atualmente com a idade de Salustra, era bela, de uma beleza seca, busto pequeno, da virgem madura demais. Apesar dos pesares, a sua beleza gélida despertava interesse em muitos homens, que teriam tido prazer em libertá-la da sua triste condição. Brittúlia, como muitas virgens já não mais na flor da idade, preocupava-se muito com a religião. Era devota da deusa das artes e ciências e prestava homenagens regulares à Alta Sacerdotisa. Júpia enriquecia os seus cofres, anualmente, com ouro da considerável fortuna de Brittúlia. Como mulher da nobreza, ela era obrigada por tradição a visitar o Palácio Real uma vez por ano, para prestar seus respeitos à soberana. Após as breves formalidades, ela partia o mais depressa possível, como se não pudesse suportar a poluição perfumada da presença de Salustra. — Essa mulher acabará por morder-se a si mesma de paixão frustrada — observou mordazmente Salustra, em certa ocasião. Em vista da sua atitude, não foi de surpreender o fato de que Brittúlia entrou em pânico quando o Prefeito da Guarda apareceu na sua casa isolada e avisou-a bruscamente que a Imperatriz iria visitá-la antes do pôr-do-sol. A simples aparição de Creto, com sua tremenda masculinidade, foi suficiente para consterná-la. Ela tinha a imaginação mórbida dos reclusos, e as mais diversas razões para a estranha visita povoaram sua mente. Será que Salustra sugeriria, casualmente, que ela cometesse suicídio; ou exigiria a sua fortuna; ou ordenaria que ela comparecesse a uma superorgia? Ela passou as horas que antecederam a visita da Imperatriz num quarto em penumbra, rezando em silêncio para as deusas a quem apoiara tão generosamente. Contudo, quando a Imperatriz finalmente apareceu, acompanhada apenas por um pequeno destacamento de guardas, o desespero de Brittúlia se havia transformado numa fria resignação que lhe dava uma aparência exterior de calma. Ela beijou formalmente a mão da Imperatriz, enquanto
seus olhos buscavam ler nos olhos dela o seu destino. Viu apenas uma Salustra pálida e com ar sério, que espiava a casa, que nunca havia visitado, com curiosidade feminina. — Tens uma casa encantadora, Brittúlia. Por que nunca fui convidada a vir aqui antes? — Sinto-me encantada que tenha descoberto o caminho, Majestade. — Ora, Brittúlia — retrucou a Imperatriz — não pensei que fosses também uma vítima dessa moléstia comum, a hipocrisia. Dize-me com franqueza se depois que eu me for não esfregarás as cadeiras em que sentei e não mandarás fumigar as salas? Dize-me que consideras o meu hálito uma abominação, as minhas palavras pratos retinindo numa tumba sagrada, os meus sorrisos degradação, a minha própria presença um anátema. Não te respeitarei menos por seres honesta. — Brittúlia estremeceu de leve, os olhos esquivos mas altivos, perguntando o motivo da visita. Mas era óbvio que Salustra não tinha pressa. — Uma verdade nua e crua — observou a Imperatriz, reclinando-se indolente na cadeira — vale mais do que mil mentiras vestidas esplendorosamente. — Ela olhou diretamente para Brittúlia, que, desta vez, não se esquivou. — Até mesmo os tolos têm o seu propósito. Eles são o pano de fundo apagado contra o qual os inteligentes destacam ainda mais o seu brilho. Salustra estudava sua anfitriã com olhares disfarçados. Contudo, mesmo na sua atitude negligente havia uma sugestão de força passiva. Brittúlia, com a sensibilidade aguda que possuía, percebeu isso, e sua apreensão aumentou. De repente, desapareceu o jeito casual com que a Imperatriz se estava comportando. Ela se inclinou para a frente, e as suas mãos agarraram os braços da cadeira. — Poderia passar horas contigo, Brittúlia, trocando banalidades polidas, mas não tenho tempo. Deixa-me que diga claramente que tenho um favor a pedir-te. Brittúlia fitou a Imperatriz, temerosa, e seu rosto ficou ainda mais pálido. Ela não errara, então, nas suas apreensões. Salustra percebeu o medo dela, e seus lábios se encresparam, mas não demonstrou emoção. — Com exceção de Máhius, não há homem ou mulher em Lamora em quem eu possa confiar neste caso, a não ser em ti. A tua virtude te manteve livre da traição. Jura-me que o que te direi agora ficará apenas entre nós. Brittúlia levou uma mão trêmula ao seio modesto. — Ilustre Senhora, nem a morte arrancaria de mim uma palavra. Salustra examinou-a com olhos apertados. — Vou direto ao assunto. Pretendo casar minha irmã, a Princesa Tyrhia, com o Imperador Signar de Althrústri, que está agora no limiar dos nossos portões. — Brittúlia emitiu uma exclamação de surpresa. — Tyrhia — continuou a Imperatriz, no seu jeito brusco e direto — é uma criança.
Mantive-a isolada porque não queria que ela fosse contaminada. Poderia entregá-la aos cuidados de uma centena de matronas da cidade. Poderia cercá-la das filhas aduladoras das famílias nobres. Não é isso que eu quero. Signar exigirá a inocência mais pura na sua noiva, digna de ser a sua consorte por todas as maneiras. Tyrhia é casta e inocente, mas é também muito ingênua. Custa os conhecimentos trilharem os caminhos daquela cabecinha bonita e sem sofisticação. Isso não me preocupa muito no momento. Mas gostaria que ela tivesse ao seu lado uma dama nobre de virtude indubitável. Quero que essa dama seja a sua companheira constante, sua guardiã, sua mestra e amiga. — Ela lançou à estupefata Brittúlia um olhar penetrante. — Tu és esta dama, Brittúlia. Um gemido involuntário escapou dos lábios de Brittúlia. — Tens até amanhã para pensar no assunto — disse Salustra. — Amanhã, comparecerás no Palácio com a tua resposta, que espero seja afirmativa. Diante do olhar da Imperatriz, Brittúlia sentiu-se implacavelmente encurralada. — E precisarei viver no Palácio, nobre Salustra? — murmurou. — E por quanto tempo? — Apenas até a hora em que minha irmã se case. Passarás cada momento com aquela criança que tem o corpo e os desejos de uma mulher. Não permitirás que ninguém, homem ou mulher, se acerque dela. Até agora, ela tem sido quase tão segregada quanto tu. Agora, quero que ela conheça o mundo, que veja Lamora, para se familiarizar com a vida. Mas não com a vida que eu conheço, e sim com a vida como tu a imaginas. — E se eu me recusar? — perguntou Brittúlia atordoada. Salustra deu de ombros e abriu as mãos. — Tu és uma mulher livre, Brittúlia. Brittúlia umedeceu os lábios, e sua alma esfaimada espiou sôfrega para dentro de um mundo proibido no qual poderia entrar em segurança, à guisa de ajudar o seu país. Salustra entendeu claramente o que passava pela cabeça da outra. Fez um gesto para Creto e este lhe estendeu um pequeno porta-jóias. Salustra retirou dele um magnífico colar de opalas. Segurou-o com a ponta de um dedo e examinou-o com um prazer crítico. Depois, descuidadamente, jogou o colar no colo da mulher. — Isto não implica nenhuma obrigação, Brittúlia — disse, observando a outra com languidez. — Aceita-o apenas como um símbolo do novo rumo que tua vida poderá tomar daqui por diante. O rosto pálido de Brittúlia enrubesceu. Colocou o colar no pescoço e olhou involuntariamente para a Imperatriz, para observar a reação dela. — Ficam-te muitíssimo bem, Brittúlia — disse Salustra, de modo amistoso. Mas seus lábios se encresparam com um sorriso secreto, e seus olhos denotavam um leve desprezo. — São castas como tu; contudo, sob sua opacidade modesta, esconde-se um fogo latente. Quem sabe também se parecem contigo neste aspecto?
— Vossa Majestade é muito generosa — disse a trêmula Brittúlia. Salustra assentiu, indiferente. — Espero que a tua decisão seja favorável, Brittúlia. Mas é preciso que decidas por ti mesma. Já não te disse que és uma mulher livre? — Olhou ao redor de si benevolente. — Com freqüência ouvi meu pai falar do teu sábio progenitor, Záhti. Falava com grande entusiasmo de Záhti como lógico e filósofo. Interesso-me tanto pela lógica como pela filosofia metafísica. Posso ver a sua afamada biblioteca? Brittúlia fez uma mesura profunda. — Minha pobre biblioteca sente-se honrada — disse. Guiou a Imperatriz até a biblioteca do pai. Ao mostrar à outra os tesouros literários de Záhti, Brittúlia recompôs-se um pouco. Ela conhecia lógica quase tanto quanto o pai. Conversava sobre universais e particulares, silogismos, dedução, indução e analogia em cadeia. Mas embora tivesse a volubilidade de um papagaio, podia apenas repetir o que ouvira tantas vezes, sem real compreensão. — Meu pai — disse Brittúlia — sonhava com a perfeição; ele achava que todo argumento verdadeiro podia ser reduzido a um silogismo válido. Se não podia ser reduzido, não era a verdade. — Não há ingenuidade mais completa do que a ingenuidade do cientista. Eu quase disse do sábio. Mas os sábios raramente são pedantes. Talvez a sua sabedoria os impeça de ficarem assim. Brittúlia sentiu-se vagamente confusa. — Meu pai dizia que nada neste mundo valia ser possuído senão a sabedoria, e que nenhuma busca era satisfatória, senão a da verdade. A Imperatriz sorriu. — Ele deu a vida em busca de uma sombra. A verdade significa algo eternamente verdadeiro, um fato imutável. Mas não há fatos eternos, fixos ou imutáveis; portanto não há verdade. O que pode ser verdadeiro hoje, pode ser falso amanhã. Contudo o fato de ser falso amanhã não significa que não seja verdadeiro hoje. Aquele, portanto, que fala da imutabilidade da verdade, não sabe do que está falando. Aquele que fala da verdade do momento, sabendo que o futuro pode torná-la uma mentira, é um homem sábio. Poucos filósofos são sábios. Sem querer, Salustra havia permitido que sua inclinação para filosofar houvesse tornado a visita mais extensa do que pretendera. Mas ela sentia uma afinidade inexplicável com essa mulher tão diferente dela mesma. Ou será que ela era assim tão diferente? Brittúlia estava perplexa. Poucos filósofos são sábios... isso era um absurdo. Seu pai não fora o mais sábio dos homens? O mundo inteiro o reconhecia. A Imperatriz disse:
— Os filósofos brincam com fantasias, suposições e teorias. Passam a vida entre sombras e hipóteses obscuras. Discutem com as "teorias de poltrona" dos outros até que se tornam ridículos. Nada contribuem para a felicidade dos homens. Aconselham a tranqüilidade. O que eles aconselham é a morte em vida, pois a vida não é tranqüila, e aquele que é tranqüilo não está vivo. Alguns aconselham o amor pela humanidade. Dizem: "Ama o teu próximo." Qual! Conhece o teu próximo e abstém-te de odiá-lo, se puderes! Os filósofos são os mais preguiçosos dos homens. Quando a pessoa não tem amor pela vida, nem coragem, nem saúde, nem virilidade, torna-se um filósofo e lida com coisas mortas! Eu creio no pensamento; não seria bom emular os animais. Mas só creio no pensamento que age diretamente sobre a vida imediata e seus problemas. Ele deveria ensinar-nos como tirar o máximo prazer da existência diária, o mínimo de dor, o maior conforto. O filósofo não lida com a vida. Ele é um espectador maçante, catando as migalhas que caem da mesa de banquete dos ativos e dos viris. Brittúlia ficou horrorizada com esse sacrilégio. — Mas alguns filósofos foram martirizados por dizerem grandes verdades. — Esses não eram filósofos — retrucou a Imperatriz, sorrindo. — Eles agiram. Brittúlia estava tão ofendida que não ousou falar para não expressar deliberadamente seu modo de pensar. — Um verdadeiro filósofo é um parasita — continuou Salustra. — Ele passa a vida tentando unir os pedaços de um quebra-cabeça sem sentido. Alguns falam do bem e do mal, especialmente os que são piedosos. Como se houvesse tais coisas! Nada é fixo e estável, nem mesmo a virtude, nem mesmo os deuses. A filosofia é um brinquedo frustrante. — Vossa Majestade perdoe-me por discordar — disse Brittúlia com um brilho fanático nos olhos — mas a virtude é imutável. Isto é fato. A virtude é vida, e o vício é morte. — E em que consiste a virtude? Certamente não numa virgindade estéril, frustrada, sem frutos. Brittúlia hesitou por um momento. — A virtude — disse pensativa — é a humildade, penitência, castidade, misericórdia, honra, caridade, honestidade. Salustra deu uma risada. — Como estás enfeitiçada com a moral de uma ordem antiquada, Brittúlia. Não sabes que a virtude, como tu a expressas, foi imposta pelos fortes sobre os fracos? Os fortes são poucos, os fracos numerosos. Os fortes, para manter sua supremacia, inventaram a virtude. Não para uso próprio, é claro. Os fortes não precisam da virtude. Mas impondo-a aos crédulos, que são numerosos, eles roubam-lhes pensamentos, coragem e ambição. Ela colocou a mão sobre o ombro da outra, com bondade. Sorriu com amargura ao sentir a reação involuntária da virgem, que recuou como se tivesse sido tocada por uma serpente.
— És forte demais, Brittúlia, para seres virtuosa, nobre demais para seres humilde, honesta demais para precisares de uma consciência, limpa demais para te chafurdares no remorso. Somente os débeis, os incompetentes, os sujeitados têm necessidade da virtude. Saíram para os jardins, que, embora menores, eram tão luxuosos quanto os do Palácio. Salustra, apaixonada por rosas, ficou encantada com as raras variedades ali reunidas. Brittúlia, envaidecida, com o prazer do colecionador, cortou uma rosa especialmente grande para Salustra. A Imperatriz aspirou o perfume, gratificada. — Obrigada — falou. — A isto eu chamo virtude. Quando a Imperatriz se foi, lágrimas de alívio encheram os olhos de Brittúlia. A moça voltou para o seu jardim, sozinha. Sobre o cascalho, numa das aléias, jazia a rosa que caíra dos dedos de Salustra. Brittúlia estremeceu, e afastou-se como se tivesse deparado com uma serpente. — Lóti esteve aqui — disse em voz alta. Começou a pensar: Vi uma ameaça nos olhos dela. Ela sorriu, mas sob aquele sorriso suas palavras eram temperadas com fel e veneno. Ela me disse que sou uma mulher livre; livre agora, mas e quanto ao futuro? Levou a mão à garganta; seus dedos se fecharam sobre o colar de opalas, e, por um momento, seus músculos se retesaram, como se tivesse vontade de arrancar da pele o presente da Imperatriz. Foi até um espelho e examinou-se atentamente. Viu uma mulher pálida, de lábios apertados, seios pequenos, talvez magra demais, mas havia um toque de beleza nos grandes olhos azuis e no espesso cabelo acobreado. O pescoço era muito branco, e as opalas multicores combinavam com o cálido marfim da pele. Ela tocou as pedras preciosas mais uma vez, mas desta vez o seu toque foi avaliador, suave, meigo. Ficou de novo imersa em pensamentos. Se acedesse ao pedido de Salustra, seria forçada a penetrar num mundo que abominava, um mundo de cinismo, irreverência, incontinência, luxúria, ganância, indecência, luxo. Ela ficou repugnada à simples idéia, embora o seu sangue adormecido fremisse com um desejo terrível e secreto. Contudo era reprimida demais para aceitar o clamor crescente dos desejos naturais. Ela se apegava apenas à sua virtude ardente. Sabia que Tyrhia ainda era inocente. Seria seu dever preservar aquela virtude, ao mesmo tempo em que guiasse a moça pela contaminação da cidade. Não era essa uma tarefa digna de uma virgem dedicada? Sáti nunca lhe perdoaria, se ela se recusasse. Quê! Entregar uma moça inocente a companhias dissolutas, quando ela, Brittúlia, poderia salvá-la? Que loucura, que crueldade, que maldade! Começou a desejar febrilmente que chegasse o amanhã. Veio-lhe à mente a figura da Imperatriz. Lembrou-se do cansaço estampado no rosto conturbado, dos belos olhos tão trágicos e amargos por detrás do sorriso zombeteiro. Brittúlia foi acometida de uma emoção rara. Uma onda de piedade varreu aquele gélido coração, e seus portões trancados moveram-se, entreabriram-se. A Imperatriz, na sua sabedoria, tinha reconhecido a virtude como a coisa mutável que realmente era.
11
Tyrhia encontrou Máhius e a Imperatriz à sua espera na penumbra dos aposentos de Salustra. Uma brisa soprava do mar, trazendo com ela o murmúrio incessante da maré e remoinhos de névoa. Salustra sorriu prazerosamente para a irmã e fez com que ficasse confortável. — Tens alguma idéia de por que eu te chamei aqui, Tyrhia? — Nenhuma, Salustra — respondeu a moça, revelando naquele momento o quão protegida estava do fluxo dos negócios de estado. Uma onda de inquietação assolou-a, e seus olhos oscilaram, incertos. Salustra segurou as mãos da irmã entre as suas. — Desde criança que te digo, Tyrhia, que não vivemos para nós mesmas, mas sim para Atlântida e que, quando fosse politicamente conveniente, eu te faria casar com alguém digno de ti. — Fez uma pausa dramática. — Encontrei este alguém. Tyrhia fitou a Imperatriz com firmeza e cerrou os maxilares. Depois, disse: — E suponhamos que eu me recuse? Salustra riu, involuntariamente. — Recusar? Tu? Oh, menina, quem és para discutir o que eu decidir para ti? E afinal ainda nem perguntaste para quem eu te destino... A expressão dela era tão bondosa, tão gentil que Tyrhia sentiu-se tomada de repente por uma esperança louca e delirante. Ela sabia que pouco escapava aos olhos vivos da irmã. Será possível que a Imperatriz houvesse adivinhado o seu segredo? — Dentro de dois dias o Imperador Signar chegará a Lamora — disse Salustra. — E tu ficarás noiva dele. Que tens, menina? É que Tyrhia se havia posto de pé num salto, com o rosto branco e convulsionado. Estendeu as mãos trêmulas na direção de Salustra. — Não, não, ele não, Salustra! — gritou, — Não posso deixar Lamora, não posso ir para aquele deserto gelado. Tu me mandarias embora sozinha, sem amigos, para ficar à mercê de um bárbaro? Ah, Salustra se tu me amas... — A voz lhe faltou e ela começou a soluçar em silêncio. Salustra fitou-a sem emoção, mas com uma espécie de curiosidade branda. Ela virou-se para o onipresente Máhius. — A pirralha ama alguém, aqui em Lamora — disse friamente.
Tyrhia pareceu transformar-se em pedra. — Quem é que tu amas, Tyrhia? — perguntou Salustra, divertida. Tyrhia continuou a chorar, a figura esguia sacudida por soluços, com as mãos cobrindo o rosto. Salustra esperava, indiferente, sem se comover. Depois de alguns momentos, Tyrhia parou de soluçar e olhou súplice para a irmã. — Quem é que tu amas? — repetiu Salustra. Tyrhia engoliu em seco. — Ele é digno de mim, Salustra. Tem sangue real, é primo do Rei de Dímtri. Não me traria nenhuma desonra. É Erato, o poeta. Máhius, até então um espectador nervoso, soltou um grito de horror abafado. Olhou para Salustra. A marca de nascença na sua face estava escarlate, mas a sua boca era uma linha fina e incolor. Tyrhia recuou, apavorada, com as mãos estendidas como se quisesse aparar um golpe. Caiu de joelhos e ficou tremendo ante Salustra. Durante alguns momentos reinou silêncio absoluto no aposento, depois Máhius falou, ansioso. — Ó Grande Majestade, tende piedade desta criança que, como tu, é filha do grande Lazar. Salustra teve um gesto de impaciência. Pôs a mão no ombro de Tyrhia e sacudiu-a. — Pára de tremer, tola — disse com aspereza. Segurou os pulsos esguios da moca. — Olha pra mim. Este homem falou uma só palavra de amor para ti? A mão da moça caiu sobre o peito, — Nem uma só palavra! — gritou. — Ele nem sequer sabe que eu o amo. Salustra afastou de si a moça com desprezo, e Tyrhia ficou largada no chão, soluçando. — Se eu achasse que ele tinha tocado nesta idiota, ele seria esquartejado. Ela começou a andar daqui para lá no aposento. Máhius, muito magro nas suas vestes carmesins, esperava em silêncio. Finalmente ela parou ao lado de Tyrhia e tocou-a com o pé, desdenhosamente. — Pára já com essas lágrimas sentimentais, Tyrhia. — disse imperiosamente. — Que podes tu saber do amor, virgenzinha? E ouve bem, Tyrhia, se tu apenas olhares para esse homem e fizeres com que perceba o teu delírio por ele, eu farei com que ele seja executado sumariamente. Tu me entendes? A moça pôs-se de joelhos. O cabelo lhe caía sobre o rosto em lágrimas como uma cascata
dourada. Fez que sim com a cabeça, fracamente. Depois de um momento, levantou-se, com as lágrimas ainda escorrendo dos olhos. Mas, ao virar a cabeça, eles começaram a brilhar com uma determinação nova.
12
Na véspera da chegada de Signar, Lamora zumbia de especulação. Poucos olhavam para o Palácio, que brilhava orgulhoso sobre a elevação, com olhos preocupados. Eles perguntavam quem era o culpado por essa calamidade que estava prestes a desabar sobre eles. O calor era intenso e o céu cor de bronze, o mar estava encapelado, os cimos das montanhas nadavam numa névoa amarela. De cada beco ou pátio escuros da cidade emanavam odores fétidos. Já irritadas pela neblina incessante e pela falta de energia, multidões se acotovelavam inquietas nas ruas principais, ignorando os gritos dos vendedores ambulantes e dos artistas de rua, assim como as lamúrias dos mendigos, na sua reação ingênua aos estranhos acontecimentos. Os escravos eram forçados a abrir caminho à força entre as massas de humanidade suarenta para os seus lânguidos senhores. Por todo canto, o rio inquieto da vida movia-se e fluía constantemente de uma via principal para a outra da cidade... os homens altos e robustos de Althrústri com o olhar firme e o andar cadenciado dos bárbaros; os homens pequenos e apressados de Antilla, Létus, Nahi e Modura, de olhos negros ariscos, cabelos escuros e crespos, e a velhacaria estampada em cada feição. Aqui o ali destacavamse os gigantes louros naturais de Gonelid, uma província ártica que pertencia a Althrústri, uma terra em que havia seis meses de noite e seis meses de sol. As lojas irradiavam luz e cores. Chegadas ao mercado em barcaças, montanhas de frutas — pêssegos, ameixas, uvas, laranjas, limões, maçãs, passas, bananas, todos os tipos de melões — brilhavam nas barracas, atraindo nuvens de moscas. Aqui, uma loja exibia pequenos tapetes tecidos a mão; ali, outra vendia bijuteria barata; outras atraíam muita gente com vinho barato e bolinhos sem açúcar, exibiam sandálias e facas e selas e cintos enfeitados com tachinhas, ou vendiam doces e pastéis e fatias de carne suculenta diretamente de fornos abertos. Outras apresentavam bonecas para crianças e outros brinquedos. A multidão maior reunira-se em volta de um ambulante que apregoava os grandes benefícios sexuais produzidos por uma determinada poção. Por toda a parte havia barulho, poeira, calor, confusão. Cães e gatos magros farejavam os calcanhares da turba. Mas esses animais de estimação eram os únicos que estavam à vista, pois todas as aves, exceto as engaioladas, e todos os demais animais, desde os lobos e os chacais nas florestas próximas até os leões monteses e os ursos, haviam desaparecido misteriosamente nos últimos dias. Embora a assistência social de Lamora fosse muito liberal nos seus auxílios monetários, bandos de mendigos, alguns cegos e aleijados, acrescentavam os seus gritos queixosos aos pregões dos mercadores. Eles empurraram com raiva uma tímida mocinha de rosto aflito que humilde oferecia ramos de flores à multidão indiferente, reprovando-a por não estar mendigando, como eles. Esse mar de vida cercava os muros impassíveis do Palácio, acompanhado de rumores de que sua ocupante real estava de mau humor. Comentava-se que ela se recusara a ver qualquer pessoa, naquele dia. Os mensageiros dos Nobres iam e vinham sem serem recebidos por ninguém, exceto os guardas; o próprio Máhius não conseguiu obter uma audiência. À hora do crepúsculo, quando as multidões inquietas começaram a voltar para casa para o jantar, abriu-se o portão ocidental do Palácio, que raramente era usado pela Imperatriz, e apareceu um destacamento de guardas robustos com uma liteira fechada por pesadas cortinas.
Moviam-se tão depressa que em pouco tempo chegaram aos portais do Templo de Sáti, à sombra de uma cúpula gigante sustentada por uma colunata de grandes pilastras, de 60 metros de altura, com símbolos elaboradamente entalhados da história de Atlântida enfeitando a sua superfície. Diante de portas de bronze com 12 metros de altura ficavam os dois enormes leões de Atlântida, tão imensos que seis homens podiam sentar-se lado a lado em cada uma das enormes cabeças. Dentro do templo, bem no centro da imensidão circular, estava o altar com o fogo eterno de Sáti, vigiado por turmas de vestais de azul, que se revezavam, silenciosas e inexpressivas. O interior era tão enorme que os homens e as mulheres pareciam bonecos sob a cúpula alta e arqueada. Do fogo do altar desprendia-se uma fumaça azulada e fina em espiral, que estimulava os sentidos. As grandes portas de bronze abriram-se sem fazer barulho, e uma mulher entrou no templo. Durante um momento ela hesitou, olhando ao redor de si. O templo estava vazio, como era de hábito ao pôr-do-sol, a não ser pelas guardiãs do templo, pois essa era a hora em que Sáti ia descansar. Depois dessa hesitação momentânea, a visitante caminhou devagar para o altar. As vestais, visivelmente sobressaltadas, fizeram reverência, depois voltaram mecanicamente para os seus afazeres. Quando Salustra se ajoelhou ante o altar, a capa caiu-lhe dos ombros e ficou no chão de mármore, como uma poça de sangue. No altar duas virgens mantinham-se imóveis, as mãos dobradas sobre o peito como pálidos lírios, de olhos baixos, a palidez prístina das suas faces da cor de pedra branca. A chama do altar erguia-se como uma serpente inquieta numa espiral de fumaça acre. Salustra ajoelhou-se e falou imóvel. Por que tinha vindo até ali? Ela não tinha fé, não tinha nenhuma oração a fazer para aquelas nas quais afirmava não acreditar. Será que era porque o seu coração doía com uma saudade sem nome, e na sua solidão ela havia retornado aos padrões reconfortantes da infância? Ou será que era porque somente ali ela podia encontrar a quietude e a paz que estavam além do entendimento? Ela soltou um suspiro, meio zombeteiro. Os piedosos poderiam dizer que os meus pecados estão me consumindo, pensou, sorrindo um pouco. Mas eu não tenho consciência de nenhum pecado. Então, por que vim? Naquele momento sentiu uma pontada súbita no peito. Apertou as mãos com tanta força que as unhas se cravaram na carne. Também sentiu um instante de doença da alma, uma espécie de nojo mortal e de desprezo por tudo, inclusive por si mesma. O ataque foi tão intenso que lhe secou os lábios e deu um gosto de cinza à sua boca; foi profundo, prostrador. O coração batia dentro do peito. Ela ergueu os olhos para a chama do altar. Ah! se eu pudesse ficar acima das paixões, desejos, mentiras e hipocrisias do mundo, pensou apaixonadamente. Mas, como os outros, estou acorrentada à carne. Sou uma prisioneira no meu próprio corpo. E enquanto eu for prisioneira, preciso agüentar o meu destino e aplacar os meus carcereiros! Ela estava cansada, desconsolada, desencorajada! Desejava a paz do esquecimento. Será que isso se encontrava na morte? Ninguém ainda voltara do outro lado da muralha em sombras, e embora Júpia falasse da presença de Lazar, Salustra considerara os seus próprios sentimentos como produtos da imaginação. Nenhuma voz havia falado do além, nenhuma mão cálida e amorosa havia feito sinal.
Nem mesmo um eco alcançava os observadores temerosos que aqui viviam. Será que o mistério da morte é grande demais para a compreensão dos mortais? Será que os deuses estavam além da compreensão deles, como o sol está além da compreensão de um besouro? Ou será que simplesmente não havia nada? Haveria apenas um vazio, um silêncio, um funil de escuridão? E todas as nossas religiões, os nossos rituais elaborados, os nossos sacerdotes e nossos templos nada nos ensinaram, pensou Salustra com amargura. Será porque, instintivamente, sabemos que é empulhação, um débil esforço para preencher confortavelmente o negro vazio? Será porque nos damos conta de que a religião é meramente um devaneio fabricado pelo homem, para sublimar o seu medo corrosivo do aniquilamento total? Se acreditarmos no que desejamos acreditar, será então a religião somente o resultado do nosso desejo de que a morte não seja o fim? De repente, sentiu-se oprimida pelos rumos que o seu pensamento tomara. Estou ficando uma sentimental, pensou com raiva. Olhou para o altar e foi assaltada por uma onda de negro desespero. Os deuses! pensou. Que deuses? Seu corpo pareceu derrear, seus dedos tocaram languidamente o chão. Durante algum tempo ficou ali, ajoelhada, depois, subitamente, pressentindo outra presença, ergueu os olhos, sobressaltada. Ao seu lado, numa atitude rígida e desagradável, estava a Alta Sacerdotisa, Júpia. As vestes longas e o penteado alto da Sacerdotisa faziam-na parecer incrivelmente alta e cadavérica na penumbra, e a luz bru-xuleante que vinha do altar enchia de sombras fantasmagóricas suas feições esquálidas. Como se estivesse reconhecendo o drama oculto dessa confrontação inesperada, Júpia fez uma mesura semizombeleira. — É estranho encontrar Vossa Majestade no templo — disse na sua voz monótona. Salustra recobrou rapidamente a compostura. — É — deu de ombros, com indiferença. — O Templo de Sáti sente-se honrado — disse Júpia, e desta vez não havia dúvida quanto ao sarcasmo. Os olhos de Salustra brilharam com um humor sardônico. Ficou em pé, pronta para ir embora. — Quem sabe Sáti demonstrará sua gratidão com um amanhã propício. Sabeis que é quando chega a Lamora o Imperador Signar? Ao passar pela Alta Sacerdotisa sem um segundo olhar, a chama do altar parecia dar uma aparência malévola ao rosto de Júpia. Ao atingir as portas de bronze, Salustra parou e olhou para trás. Júpia ainda estava de pé em frente ao altar, e seus braços e rosto estavam erguidos como que numa súplica. Ela é a morte personificada, pensou a Imperatriz, estremecendo.
Em poucos minutos, ela estava no isolamento dos seus aposentos e saía para a colunata de onde observava a cidade envolta em névoa. Suspirando, ouviu um ruído às suas costas, virou-se e viu que já não estava mais só. O poeta Erato, um companheiro privilegiado desde a primeira noite que passaram juntos, estava ao seu lado. Ela sorriu e deu-lhe a mão. Seus olhos percorreram-no de modo apreciativo, regalando-se com a largura dos seus ombros, a sua esbeltez e graça, o seu rosto bonito e sensível. Ela apoiou a cabeça nos ombros dele e o cabelo dela roçou-lhe os lábios. Ficaram assim por muito tempo, olhando em silêncio para a cidade. — A tua terra é tão bela quanto Atlântida, Erato? — perguntou a Imperatriz, por fim. — Não — respondeu ele com galanteria — pois não tem Vossa Majestade. Ela tocou de leve a face dele. — Não sejas um cortesão. Já há muitos burros na corte; não comeces a zurrar como eles. — Não consigo fazer-lhe justiça com meras palavras, linda Imperatriz. Hoje, tentei escrever um poema para Vossa Majestade; minha pena gaguejava, não se movia. Palavras! Como são inadequadas! — Que horrível pensar que te roubei o fogo, Erato! — zombou ela. — E que te dei em troca? Nada! Ele caiu de joelhos e levou a bainha do vestido dela aos lábios. — Vossa Majestade é a minha alma — exclamou, — Que os deuses te ajudem! Ele levantou-se, olhou dentro dos olhos dela, depois beijou-a apaixonadamente. Ela deixou-se ficar nos braços dele, de olhos fechados. Finalmente, mexeu-se, e ele a soltou. Ela pegou a mão dele e apertou-a de encontro à face. — Tu és tão jovem, Erato. — Tão pouco mais jovem que Vossa Majestade — ele retrucou depressa. Ela sorriu: — Sou inúmeras eras mais velha que tu. Os anos nada contam. O que conta é a alma e a minha alma nasceu velha e triste. Ele levou um cacho dos cabelos dela aos lábios. — Vossa Majestade é Sáti, então. Pois deu-me a minha alma. — Os olhos azuis dele brilhavam de ternura.
— És um idealista, Erato. Os poetas só são poetas quando são jovens e estão apaixonados, e o mundo consta só de perfeitos crepúsculos e beleza. — Erato largou a mão de Salustra, mas seus olhos não abandonaram o rosto dela. — Com toda a certeza, será melhor para ti se morreres jovem — continuou a Imperatriz. — Quando a beleza desaparece, a morte chega como uma amiga bondosa, trazendo uma taça de cristal cheia das águas abençoadas do esquecimento. Erato franziu a testa, preocupado. — Vossa Majestade está triste hoje. — Não, mas estou aprendendo sobre a vida. Com esse aprendizado vem muita dor. Um homem tem duas escolhas: ele pode ser ignorante e feliz, ou sábio e infeliz. Se for ignorante, aceita a vida complacentemente, satisfeito porque o sol o aquece, porque o seu jantar de pão e ensopado vai ser servido, porque sua mulher tem um seio macio. Ele não pensa, portanto está satisfeito, Mas o homem inteligente não pode ser feliz, senão não seria inteligente. Ele não consegue satisfazer-se apenas porque os seus órgãos digestivos e sexuais estão funcionando. Ele não compreende por que um homem tem a consciência do sofrimento, e depois simplesmente morre. Ele vê a vida como ela é, um grande embuste. Portanto, como pode ser feliz? Erato perguntou, sorrindo suavemente: — Quer dizer que a felicidade é incompatível com a sabedoria? — Nem há dúvida. Aconselho a eliminar a palavra felicidade do idioma nacional. No lugar dela deveria ser colocada a palavra ignorância. Assim não se diria: "Eis um homem feliz," Mas sim: "Eis um homem ignorante." — Preferiria que fôssemos perpetuamente tristes e melancólicos, Salustra? — perguntou Erato atentamente. — O homem que nos faz rir, embora a piada seja muito vulgar, é três vezes mais abençoado do que aquele que faz com que choremos por uma tragédia sublime. Erato ficou pensativo e melancólico, remoendo o seu amor atormentado, de olhos postos no chão. Salustra sentiu uma leve piedade, assim como sentiria uma mãe que fala pela primeira vez ao filho das maldades do mundo. Finalmente, ele ergueu a cabeça. — Tem tanta certeza, Salustra — falou devagar. — Eu morreria se tivesse tanta certeza de que nada havia aqui para nós senão fealdade e luta, que este mundo oferece apenas injustiça, tragédia e desespero. Que teria, então, para sustentá-la na escuridão do seu espírito? — Coragem! — ela replicou. — A coragem é a única virtude neste mundo vil. A coragem é o que impede os inteligentes de tagarelarem como macacos na agonia do seu conhecimento. Enfrentar a vida galantemente, sorrir com alegria às suas ameaças, não esperar nada, não temer nada, esgrimir com os seus múltiplos obstáculos, e sempre rir alegremente. Ah! Só mesmo uma grande alma pode conseguir isso!
— Então — falou Erato suavemente — sua filosofia é a coragem; a minha é a beleza. Para mim, parecem a mesma coisa. — Tomou as mãos dela e beijou-as com paixão renovada. — Como poderia não acreditar que a beleza ainda importa, num mundo que Vossa Majestade enfeita? Os olhos dela ficaram mortiços. — Beija-me — sorriu ela — se tiveres coragem.
13
Eles desembarcaram dos navios como conquistadores, embora fossem apenas poucas centenas. Pisotearam as guirlandas de flores com passadas arrogantes. Ergueram as mãos em saudação às aclamações histéricas de uma vanguarda althrustriana enlouquecida à vista do seu Imperador. O porto ressoava com as boas-vindas a eles, e a multidão parecia um verdadeiro redemoinho, com milhares de pessoas empurrando-se em todas as direções para melhor poder ver Signar e seus homens. Salustra moveu os olhos inquietos para um vislumbre do Imperador e seus acompanhantes bárbaros. Tyrhia estava ao lado dela, apertando com força o braço da irmã. Às costas de Salustra ficavam os Senadores, Lordes, Nobres, todos pouco à vontade, e as suas esposas curiosas. Finalmente, os olhos dela descobriram a figura que buscavam, uma figura que se destacava imperialmente acima das outras, alta e hercúlea, com o capacete alado de Althrústri brilhando sobre uma cabeça altiva. Em breve o grupo havia parado à frente dela. Ela sentiu uma corrente de incrível vitalidade quando sua mão foi segurada e beijada por uns ásperos lábios masculinos. O homem ergueu a cabeça e olhou diretamente para o rosto dela. Ela viu, com uma emoção inexplicável, uma fisionomia vigorosa, quase da tonalidade do cobre. Seu corpo magnífico vestia uma roupa fosforescente, brilhante, bordada com cores vivas. Seus braços gigantescos ostentavam argolas de ouro, e nos seus dedos brilhavam raras pedras preciosas. Eis o conquistador de Atlântida! — sussurrou uma voz zombeteira dentro dela. Ela lançou a Signar um olhar penetrante. Viu, por trás dos olhos escuros, um espírito tão indomável quanto o dela própria. As sobrancelhas negras, que quase se encontravam, davam àqueles olhos uma ferocidade imperiosa. Devolvendo o olhar dela com ousadia, ele falou pela primeira vez, no idioma de Atlântida. A voz dele era surpreendentemente suave. — As fotos de Vossa Majestade não mentiram, Salustra. Ela sorriu levemente. — Mas as suas não lhe fizeram justiça, Signar. — Ela deu-lhe de novo a mão. Ele a segurou, e ela sentiu uma sensação indescritível na espinha. — Atlântida lhe dá as boas-vindas, Signar. Não posso dizer mais do que isso. Os olhos de Signar percorreram o corpo dela confiantemente, demorando-se em cada curva e contorno sob a túnica carmesim, Salustra sentiu-se enrubescer, virou-se e trouxe Tyrhia à frente. A moça retesou-se quando Signar lhe beijou a mão. Signar pareceu não notar, mas a fisionomia da Imperatriz denotou o seu aborrecimento. A multidão prorrompeu em novas aclamações quando a comitiva imperial se dirigiu vagarosamente para o Palácio. Signar erguia a mão, a intervalos, enquanto caminhava entre as fileiras rígidas da soldadesca, mas Salustra parecia estranhamente absorta. Atrás do par real seguia uma fila de lordes e Nobres. E fechando a comitiva, os guardas pessoais de Signar, com os capacetes
brilhando em meio à névoa, e os rostos ferozes denotando claramente o seu desprezo por esses sulistas frouxos. Eles haviam feito a viagem em navios primitivos, movidos por combustíveis arcaicos extraídos penosamente da tundra congelada de Althrústri. A esquadra, liderada pelo navio-capitânea de Signar, o Póstia, contava com cinco outros navios de categoria inferior e movidos a fogo, usando explosivos que o povo de Atlântida há séculos havia trocado pela energia nuclear. No meio do caminho, Signar comentou sobre a atmosfera pesada que parecia um manto cinzento estendido sobre o mar. — Um céu melancólico foi nosso companheiro — disse ele, enquanto caminhavam juntos — e eu não vi o sol até olhar para a fisionomia radiosa de Vossa Majestade. Salustra, surpreendida pelo modo com que ele falara, ignorou o que considerou lisonja, mas apegou-se ao resto da frase. — E que pensa dessas nuvens, Majestade? Ele franziu o cenho por um momento. — Uma ocorrência muito estranha; o nosso ar parecia mais quente, mesmo sem o sol, e a neve que caía derretia-se quase que no ar. Nossos sábios não entendem a situação, mas para que servem os sábios senão para mistificar? Ela olhou para ele vivamente. — Sabe que os nossos sábios relacionam esta neblina cinzenta à interrupção sem precedentes da energia solar? — Eu não sabia o motivo — disse Signar com franqueza — sabia apenas que a tecnologia de Atlântida havia falhado, por fim. Ela não descobriu nenhum vestígio de triunfo ou alegria no rosto dele. — E então achou que a época era propícia para a visita? — Dá muito pouco crédito a si mesma — disse, com uma mesura. — Só Vossa Majestade já vale a viagem. Ela lançou-lhe um olhar irônico. — Nestas trevas imponderáveis o divisor de átomos pode não funcionar e Vossa Majestade perderá a sua vantagem de não fazer caso da vida humana. Ele deu de ombros. — Quem determina qual a importância da vida? Os dinossauros tinham vida e os ancestrais de Vossa Majestade os destruíram com essas armas terríveis. A vida do dinossauro, para eles, não era tão importante quanto a de qualquer governante, conselheiro de estado, médico ou negociante?
— Como pode comparar a vida humana com a dos animais? — A voz dela estava mais brusca do que de costume. Ele fitou-a, sério. — Este não é um problema de predicado, mas de sujeito. Vossa Majestade falhou porque não usou o poder para proteger-se adequadamente. Se não fosse por essa boa sensibilidade, não teríamos dado o nosso passo. E quando os deuses permitiram o colapso dos seus sistemas de comunicação, sem dúvida nos estavam enviando uma mensagem. Ela ficou assombrada com a franqueza dele. — Um governante — disse — não pode ir além do seu povo. — Exatamente. — Ele aplaudiu, concordando. — E seu povo é corrupto e covarde, e espera ser alimentado, abrigado, divertido... protegido e amparado desde o berço até a sepultura: um estado de assistência social de parasitas que pretendem aproveitar os frutos do trabalho alheio. Salustra sorriu amargamente e disse para si mesma: "Como ele nos conhece bem!"
14
— Que achaste dele, Máhius? O velho espalmou as mãos e teve uma expressão de tristeza. Ela bateu palmas, uma vez. — Ao menos, ele é um homem. O ministro replicou secamente: — Aparentemente não se pode fazer maior elogio. Salustra caiu na risada. — A esta hora os ministros dele lhe estão comunicando a minha decisão — exclamou. — Presta bem atenção, hoje à noite, Máhius. O Palácio resplandecia de encontro ao céu escuro. A lua estava oculta, como acontecia recentemente, por vapores inexplicáveis. Do mar vinha um rugido inquieto, como o som emitido por um animal esfaimado. Um vento que soprava do mar trazia uma brisa que ora era fresca, ora quente como se tivesse passado sobre brasas. Mesas com guloseimas haviam sido armadas no grande salão de banquetes. Um exército de escravos movia-se como mensageiros graciosos, antecipando os menores desejos. Um largo palco havia sido erigido no centro do grande círculo de mesas e esperava os artistas que iriam divertir os convidados nesta ocasião notável. Toda a nobreza de Atlântida parecia estar presente. O salão ressoava com músicas, risos e alegria, enquanto os convidados se acomodavam para as festividades em macios sofás ou cadeiras de marfim, segundo suas preferências. À mesa de Salustra sentava-se o Imperador Signar, o ministro principal dele e um ou dois amigos íntimos. Os outros eram a nata do espírito, da inteligência e da nobreza de Lamora. O Senador Tolíti fazia as vezes de árbitro do banquete e o Senador Divona, famoso pelo seu cinismo, mantinha a conversa sempre fluindo. Também sentados a esta mesa estavam Jesico, célebre por suas coleções de mosaicos e estatuetas exóticas; Zutlian, que tinha uma legião de amantes e um ar de suma pureza; Jupian, cujas escravas não tinham rival em matéria de beleza e de aptidões diversas; Pôltrius, cujos livros eram só para os lascivos; Ludian, o devasso mais notório de Lamora, que sempre estava disposto a contar as histórias mais provocantes quando inebriado. Aí estavam também os mais renomados cientistas e filósofos: Yônis, o idealista, Sodóti, o vitalista; o seu grande rival, Éverus, o mecanicista, que insistia em que o homem era uma máquina animada; Tálius, cuja filosofia era implacavelmente masculina (sendo ele um homem doentio, de corpo magro e rosto afeminado); Zetan, calmo e bondoso e muito sábio; Lodiso, sempre fervendo de planos para um estado ideal; e Mórti, de quem se dizia que ria de tudo, inclusive de si próprio. Aí estavam também Toríli, o músico; Galo, cujas estátuas eram um fogo vivo; e Stânti cujos afrescos eram maravilhas de licenciosidade. Signar estava sentado à direita de Salustra. À esquerda dela sentava-se Tyrhia, ostentando nos cabelos um diadema de estrelas. Por trás de Tyrhia, derreava-se a figura murcha de Máhius, muito magro nas suas vestes brancas. Salustra, vestindo túnica prateada, macia e brilhante, com a
gargantilha de Signar ao pescoço, juntamente com a sua própria corrente preciosa, parecia estranhamente distante. Para além de Signar sentava-se Erato, um tanto distraído. De vez em quando, ele lançava olhares compenetrados para a sua namorada imperial por sobre a borda da taça. Seus dedos esguios batucavam inquietos na mesa. Num dos polegares brilhava uma imponente pedra preciosa amarela, presente de Salustra. Ao lado da presença vital e madura de Signar, ele parecia um rapazola desajeitado. A situação não lhe agradava nem um pouco. Já concebera uma profunda antipatia por Signar, e este não tentava esconder o desprezo que o poeta lhe inspirava. — Temos poucos poetas em Althrústri — disse Signar, olhando para Salustra — e eles cantam apenas as grandes canções da nossa história bélica. Erato replicou, audaciosamente: — Uma guerra sangrenta é igual a outra qualquer, com pequenas variações circunstanciais. Portanto só é um poeta aquele que canta as coisas sutis, a beleza e a glória e as sutilezas das almas dos homens. Signar sorriu com desdém. — Sutilezas! É evidente que pouco conheces os homens. Os homens são apenas animais, maiores que os animais comuns porque são mais astutos. — Quer dizer que não acredita na alma, grande Imperador? — perguntou Erato, com um leve sorriso. Salustra olhou para os dois homens, e escutou. Divertia-a ver que os petiscos filosóficos de Erato estavam sendo agredidos pelo espírito de Signar, mas isso também a aborrecia. Ela via a si mesma sendo atacada sob o disfarce de um ataque a Erato. — Alma — retrucou Signar, revirando a taça de vinho entre os dedos. — Que queres dizer com alma, jovem sonhador? Confesso que nunca vi uma alma, mas quem sabe tens tido maior experiência do que eu. Tenho lidado apenas com os corpos e as mentes dos homens, que já me deixaram bastante perplexo. Mas estou sempre disposto a aprender. De que substância é feita a alma, de que textura? Qual é a sua aparência? Erato encarou-o com firmeza. — Nenhum homem ainda viu a alma, exceto talvez os muito puros, ou muito sábios. Signar desatou a rir. — Os muito puros! — Imitou a voz suave de Erato. Continuou: — Que são os puros? Criaturas mortas de fome, sem nenhum amor pela vida. Um sábio? Os sábios são tolos, poltrões demais para fazerem outra coisa senão tagarelar e rabiscar. Salustra percebeu que estava concordando com a cabeça a esse eco dos seus próprios comentários feitos anteriormente a Erato.
A mão esguia de Erato retesou-se sobre a mesa. Irromperam alguns aplausos dos outros. Signar deu de ombros, indiferente. Esparramara-se sobre o divã, e os contornos rijos do seu corpo poderoso revelavam-se sob a sua túnica. Os lábios dele roçaram o ombro nu de Salustra. Os dedos dele pegaram-lhe a mão e fecharam-se sobre ela. Durante um momento ela tentou soltar a mão, mas ele apertava mais a pressão. Ela inclinou-se deliberadamente por sobre a mesa para tentar ouvir um comentário feito por Lodiso. O filósofo tinha em mente um novo paraíso imaginário e delineava-o entusiasticamente para os seus ouvintes. Dizia ele: — O sexo deveria ser uma preocupação nacional, não individual. As crianças seriam geradas apenas pela nata, e seriam afastados da mãe após o nascimento e criadas pelo estado. Os homens não estariam presos a uma só mulher, nem as mulheres a um só homem. Relações sexuais contínuas entre o homem e a mulher individuais seriam desencorajadas para o bem do estado. Signar chegou ainda mais perto da Imperatriz. — Isso não nos agradaria, não é, Salustra? — sussurrou. Os lábios dele tocaram a face dela e seus braços rodearam-lhe a cintura, possessivamente. Erato viu o protesto irado sobre os lábios de Salustra, viu seus olhos faiscarem. Viu que a mão de Signar prendia os dedos da Imperatriz. De repente, largou da mão dela para brincar com a sua taça de vinho, como se estivesse enfadado da conversa. Erato escolheu este momento para inclinar-se por sobre a mesa. Oscilou o corpo, inexplicavelmente, e sua taça bateu na de Signar, derrubando-a da mão dele e espalhando-lhe o vinho sobre as roupas e a pessoa. Signar sentou-se, ereto, e virou-se furioso para o poeta. Erato demonstrou a máxima preocupação e ansiedade. — Mil perdões, meu senhor! Pegou uma ponta da toalha para limpar o vinho da mão de Signar. Mas o Imperador, recuando, jogou o resto do vinho friamente no rosto do poeta. Erato, calmamente, limpou o vinho da sua face pálida. — Tolo! Idiota! — A voz do Imperador podia ser ouvida acima da música, e os outros ocupantes da mesa fitavam-no, inquietos. Signar virou-se irado para a Imperatriz: — Como é que esta criança emasculada está à mesa imperial? Os ocupantes das outras mesas, como que tocados por um vento gélido, ficaram imóveis e em silêncio. Até mesmo a música parou. Centenas de rostos constrangidos estavam dirigidos para a mesa da Imperatriz. Salustra olhou para além de Signar, para Erato. Os olhos do poeta encontraram-se com os dela, e ele pôde ver neles, por trás da censura aparente, gratidão e até mesmo divertimento. — Erato — ela disse, reprovadoramente — a tua falta de cuidado é indesculpável. Tu me farás
o favor de ir esperar as minhas ordens no Grande Salão. Erato fez uma profunda reverência, e com passo tranqüilo deixou o local. Esperou pouco tempo. Logo surgiu um escravo vindo das imensas colunas. Aproximou-se dele e entregou-lhe um rolo de pergaminho, com uma reverência. Com dedos trêmulos, o poeta desenrolou a missiva. Forçou a vista à luz incerta das lâmpadas bruxuleantes. Salustra havia escrito: "Poeta impulsivo, encontrar-te-ei ao pé da grande escadaria nos jardins antes do alvorecer para repreender-te."
15
A uma determinada mesa certo constrangimento seguiu-se à saída de Erato. — Não gosto da ousadia do bárbaro — sussurrou Tolíti para o Senador Divona. — Pelos deuses! Ele age como se já tivesse conquistado Atlântida! Divona sorriu de leve, deu de ombros e espalmou as mãos. O seu olhar percorreu a mesa, rapidamente. — Conquistador! — sussurrou em resposta. — Quem sabe? Olhai para Salustra. Ela sorri para Signar como se na verdade estivesse prestes a desposá-lo. — Mas olhai para Máhius! — disse Tolíti. — Ele parece que está olhando para a própria sepultura. — Velho resmungão! — exclamou Divona com desprezo. — Ele treme até ante o cantar dos pássaros. Contâni, gordo, seboso, velho, com um rosto de querubim que escondia uma mente astuta, inclinou-se para eles. — Quanto tempo levará até sermos abatidos como bodes? Não gosto do jeito das coisas. Esses bárbaros têm um ar insolente demais. Pois eu não estou hospedando na minha casa dois dos seus grosseiros generais? Um deles quebrou um vaso de ouro e cristal que meu pai me deixou, e eu não teria aceito por ele o resgate de Mântius! Tolíti disse solenemente: — Dias nefastos nos esperam. Contâni gemeu, balançando a enorme cabeça. — Dias nefastos, em verdade. Nunca pensei que a glória de Atlântida se veria forçada a receber como iguais uns bárbaros como esses! Vede como aquele porco ali enfia punhados de cabrito assado na boca, e engole tudo com enormes quantidades de vinho! O sorriso de Divona era enigmático. — Lembrai-vos de que eles são nossos convidados — murmurou. O barulho da música e das risadas abafou qualquer outra conversa posterior desse gênero. Signar bebia à larga. Ainda estava um pouco mal-humorado. Ignorou Salustra e dedicou sua atenção a uma bela e jovem cortesã da sua comitiva, que pareceu derreter-se a este sinal de favoritismo. O resto do seu pessoal seguiu a "deixa" e ignorou insolentemente os seus anfitriões,
abafando a música com seus gritos e comentando de modo nauseante a impotência dos seus anfitriões. Salustra sorria tolerante, como sorriria uma mãe ante as travessuras de crianças rebeldes. O seu povo, observando o jeito da Imperatriz, conseguia manter uma serenidade aparente. Havia um sorriso fixo no rosto de Salustra. Era como se ela tivesse pendurado aquele sorriso nos lábios e depois se houvesse refugiado por trás dele. Ela bebeu pouco, comeu menos ainda. Às vezes, falava meigamente com Tyrhia, ou ria de um comentário de algum senador. Ignorou deliberadamente a preocupação aparente de Signar com outra mulher, que era obviamente pouco mais de uma criada de acampamento. A esta altura, tipicamente, dois filósofos de olhos sonhadores, com a ingenuidade acadêmica característica, debatiam com ardor um assunto que não tinha a menor pertinência com as realidades da situação. — Não posso concordar convosco que a verdade é puramente subjetiva — dizia Yônis, o criador de fábulas filosóficas. — Digo que a verdade é objetiva e está ao alcance do homem. Existem certos fatos fixos que até mesmo o mais cínico dos homens deve reconhecer. — Não existe a verdade — retrucou Mórti com um sorriso. — Guerras, violência, revoluções, tudo isso resulta de uma tola convicção da verdade objetiva. Se admitirmos que toda a verdade é subjetiva, teremos um mundo tolerante e compreensivo, um mundo capaz de rir de si mesmo! O homem se leva a sério demais. Ele vê a si mesmo como o centro do universo, e por causa dessa premissa falsa ele construiu uma civilização cheia de falsidades, mentiras e hipocrisias. Como parte dessa mentira, o homem considera a perspectiva da vida eterna. Ele se preocupa e se aborrece pela vida afora, numa vaga esperança de que haja algo mais do que ele vê à sua frente, em vez de concentrar-se em divertir-se antes de mergulhar nas sombras inconcebíveis de onde saiu. Fazendo uma pausa no seu próprio divertimento, Signar olhou atentamente para o filósofo e depois anunciou: — Falais demais. Devíeis seguir os vossos próprios conselhos e rir de vós mesmo. Mórti olhou para ele com um sorriso filosófico. — Se Sáti me permitisse uma única graça, era exatamente isso que lhe pediria: a graça de ser capaz de rir de mim mesmo. Signar bateu palmas, de modo aprovador. Mas Yônis era filósofo demais para permitir que o derrotassem tão facilmente. Inclinou-se para a frente, mexendo com um dedo enquanto falava, solenemente: — Falávamos da verdade. E a verdade é uma coisa sombria, não é para ser tratada com risos. A missão do homem deve ser a descoberta da verdade... — Por quê? — interrompeu calmamente Signar. Yônis perdeu a graça. Repetiu tolamente: — Por quê? O conhecimento não é a única coisa desejável no mundo?
— Não vivemos para sempre — disse Signar. — Para que adquirir conhecimentos profundos quando apenas podemos levá-los conosco para o túmulo? Por que não ser feliz simplesmente? — Mas existe a felicidade no conhecimento — insistia Yônis. — Com o aumento dos conhecimentos vem o aumento da beleza e da plenitude da vida. Os animais inferiores são mais felizes do que nós. Eles vão no encalço dos seus desejos sem a menor preocupação com o futuro. Mas, quem gostaria de ser um animal? Signar bateu palmas desdenhosamente, — Continuai debatendo os mistérios da vida, como o fazeis, enquanto nós os resolvemos para vós. Salustra resolveu participar da conversa. — Está cansado, senhor? — perguntou. Os olhos de ambos se encontraram por um longo momento. Então Signar prorrompeu numa risada barulhenta. — Quem pode ficar cansado perto de Vossa Majestade? A Imperatriz é um verdadeiro lago de pulcritude, no qual eu me afogaria de bom grado enquanto os outros continuassem a conversar. No mesmo diapasão, ela ergueu a taça aos lábios com um sorriso e bebeu com ele. — Aparentemente, conseguiu roubar de atividades mais vigorosas um pouco de tempo para aprender a útil arte da lisonja, senhor. — Não, senhora, não insulte a verdade chamando-a de lisonja. — Subestima a minha inteligência, senhor — ela respondeu com voz de veludo. Neste momento, o ar foi dilacerado pelo troar de trombetas. Como se tivesse caído do céu, Ostási, o famoso dançarino, apareceu de repente sobre o palco iluminado. Era um belo jovem, combinando a delicadeza de uma moça com a força flexível de um homem jovem e alegre. Estava despido, e seus cabelos curtos e encaracolados eram como uma coroa de luz pálida. Seu rosto delicado fremia de júbilo, sensualidade e paixão. A música tornou-se um murmúrio suave e manhoso, que agitava o sangue e acelerava a pulsação. O bailarino movia-se suavemente sobre o palco, oscilando sonhadoramente, com as mãos negligentes sobre os quadris estreitos. Uma pálida luz violeta o iluminou, e ele pareceu mover-se numa névoa de ilusão cor de ametista. Simultaneamente, diminuíram todas as luzes. A música soava ainda mais sensual e suave enquanto o bailarino se movia em meio à luz violeta como uma estátua à deriva nas águas tocadas pelo sol. Um profundo silêncio caiu sobre os convivas, e nenhum som perturbava a noite profunda, salvo a música, o murmúrio do mar e o ramalhar das árvores. A música, até então lânguida, começou a ficar mais rápida, e então, como uma chama, uma moça surgiu no palco, nua, coberta apenas pelo cabelo longo e lustroso. O corpo dela era esguio, branco, leve e delicado, e à sua entrada as luzes tornaram-se rosa-escuro. O rapaz, como que
imobilizado pela admiração com o aparecimento dela, manteve-se no centro do palco numa atitude de reverência. A moça flutuou ao redor dele, como uma pétala de rosa branca que se movia ao sabor de um vento perfumado. O cabelo envolvia-lhe os quadris, ocultando um pouco a sua beleza fascinante. No seu rosto pequeno e lindo fremiam a alegria, a inocência, o prazer, uma infantilidade provocante. Ela parecia uma criança, dançando inocentemente à luz do sol que se punha, ao compasso da sua própria harmonia interior. A música ficou mais rápida, e então, como uma estátua que houvesse ganho vida, o rapaz mexeu-se, e, com movimentos de graça extraordinária, começou a perseguir a moça que fugia. Salustra, sorridente, observava os dançarinos. Os seus lábios mal se moveram em resposta a uma pergunta de Tyrhia. A jovem princesa virou-se para Brittúlia, e a virgem mais velha segurou a mão da pupila com um gesto de desespero. A dança tornou-se mais selvagem, mais alegre, mais louca. As cores misturavam-se; os dançarinos afogavam-se numa luz azul que parecia a sombra da lua, e que depois se transformou em escarlate, em dourado, em verde como a água brilhante, e depois outra vez em escarlate. As cores eram tão profundas que mal se viam os bailarinos, que eram apenas membros brancos em movimento. Então, como se exausta e desejosa de rendição, a moça caiu nos braços do seu perseguidor. Imediatamente, o grande salão ficou às escuras e a música cessou. Houve um barulho estranho a distância, e o edifício estremeceu. Durante um momento caiu um silêncio profundo sobre os presentes estupefatos, e depois estabeleceu-se o pandemônio. Salustra estendeu a mão para Tyrhia, mas a moça se afastara dela. E então um grito abafado escapou da boca da Imperatriz. Ela foi apertada por braços de ferro. Enquanto se debatia, as vestes prateadas quase foram arrancadas do seu corpo. Ela foi esmagada de encontro a um peito masculino e seus gritos foram silenciados por lábios ásperos e sequiosos. Ela não se podia mexer; os cabelos se soltaram, os sentidos ficaram entorpecidos. Ficou ali, meio desmaiada, em estado de choque. Sentiu que os lábios sequiosos deixavam os seus e buscavam a sua garganta, seus ombros, seus seios. Névoas confusas flutuavam pelos seus olhos fechados e um ruído de grandes tambores ecoava nos seus ouvidos. E então, do mesmo modo abrupto com que a agarraram, soltaram-na. Automaticamente as suas mãos trêmulas ajeitaram as vestes rasgadas. Logo as luzes se acenderam. Salustra, ainda abalada, afastou o cabelo do rosto e virou-se raivosa para Signar. Ele estava semi-reclinado ao lado dela, sorridente e sereno. Salustra levou a mão à garganta. A gargantilha de pedras preciosas, presente de Signar, fora arrancada e estava caída entre ela e o imperador, como um amontoado de estrelas cadentes em miniatura. Signar apanhou-a, depois olhou ironicamente para Salustra. — Que pena se isso fosse perdido! — falou com suavidade. Ele tentou colocá-la de novo no pescoço da moça, mas com mãos firmes ela tirou a jóia dos dedos dele e colocou-a sobre a mesa. — É — disse ela tranqüilamente. — Teria sido uma pena! É o resgate de um império. Ele ergueu as sobrancelhas.
— Resgate? Olharam um para o outro, com intensidade. — Digamos, uma compra simbólica? Ele fez um gesto depreciativo, Salustra afastou o colar de si. Com ar indulgente, Signar ergueu o colar negligentemente com um só dedo, depois deixou que ele caísse com barulho sobre a mesa. Disse: — Eis aí o resgate... O espetáculo continuou como se nada houvesse acontecido. Agora surgiam outros no palco: Serto, o afamado levantador de pesos; Lélia, a mais famosa cantora de Atlântida; Nóti, o poderoso pugilista; Toríli, um músico divinal. Mas pouca atenção era dispensada a esses artistas. O vinho, juntamente com a dança sugestiva, havia criado um novo clima em que os espectadores estavam querendo diversões mais excitantes. Os homens e as mulheres pareciam fundir-se na penumbra. Ouviu-se um grito vindo da direção de Brittúlia. Siton, o robusto general-comandante de Signar, estava abraçando à força a filha de Záhti. Brittúlia, quase louca de medo, debatia-se desesperadamente. Salustra estendeu a mão num gesto imperioso. Então, deixou a mão cair ao lado do corpo, numa atitude de impotência. Olhou para Signar, que apoiou o queixo na mão, observando tudo com um ar de interesse divertido. — É assim que se age em Althrústri? — perguntou ela, com raiva reprimida. Signar virou-se para ela, fingindo surpresa. Exclamou com ironia: — Isso desagrada a Imperatriz? Salustra enrubesceu. — Ordene ao seu selvagem que solte aquela mulher. Ele repetiu, sorrindo: — Isso desagrada Vossa Majestade? Ela o fitou, com os músculos da face tremendo. — Como o Imperador me desagrada! — disse calmamente. Signar acenou para o seu general. — Siton! À ordem severa do Imperador, o robusto gigante largou a presa e se pôs de pé. Signar fez um gesto seco, e o homem, com o rosto ruborizado pelo consumo de vinho, afastou-se obedientemente e desapareceu nas sombras. Salustra levantou-se, e com ela os cidadãos de Atlântida. Signar continuou sentado, sorrindo como que de alguma piadinha particular. Salustra fitou-o e ele retribuiu o olhar dela com firmeza,
com os olhos brilhando de indisfarçável ironia. Ela ergueu a mão. — A recepção para os nossos distintos convidados está encerrada. Estais todos dispensados.
16
Signar estava no terraço que circundava os seus aposentos. Uma leve brisa agitava seus cabelos. Em Atlântida ele achara o que sempre havia buscado: beleza, refinamento, glória delicada. Pensou em Althrústri, com os seus desertos estéreis, e sentiu-se secretamente envergonhado. O sangue vital do seu país iria correr pelas veias decadentes de Atlântida. Os dois sairiam lucrando. Haveria um só império poderoso. Do leito nupcial da bárbara Althrústri e da Atlântida moribunda nasceria um novo mundo, cheio de vitalidade, beleza e dignidade. A cabeça dele fervilhava de idéias. Ele riu ante a visão de Salustra que lhe passou pela lembrança. A coragem e a engenhosidade dela despertavam sua admiração, e a beleza dela não lhe saía do pensamento. Pensando na Imperatriz, Signar começou a andar daqui para lá, no terraço. Embora fosse um homem de proporções avantajadas, seu passo era leve e ágil. Ele já havia enfrentado uns 40 verões althrustrianos, mas possuía a vitalidade animal do bárbaro, numa idade em que os devassos cidadãos de Atlântida já estavam ficando exaustos. Parou de caminhar, abruptamente. Na extremidade do terraço, onde havia uma grande escadaria de mármore, com degraus largos e balaustradas entalhadas, que dava para os jardins, ele havia visto uma sombra branca sair da penumbra do palácio e surgir na colunata. Dava para ver, à luz pálida e incerta, que era uma mulher. Ele percebeu que era Salustra. Ela usava um vestido branco transparente, e seus cabelos soltos cascateavam até os joelhos em ondas fulvas. Ela parecia hesitar. Aproximou-se da escadaria, depois encostou-se a uma coluna. Estava de perfil, aos olhos de Signar, e o vento fresco, que suavizava o calor opressivo do dia, brincava com os seus cabelos. Sem se dar conta da outra presença, ela estava de cabeça baixa, numa atitude de desânimo. Ergueu o olhar para o céu lívido, e seus lábios se moveram como se estivesse rezando. — Ó mui terrível Sáti, se tu existes, escuta a minha prece. Somente para ti ousaria confessar que tenho muito medo. Na noite passada, sentada no meio do meu povo, eu sorri em face à ruína. Já odiei muitos deles, mas agora sinto que o espírito deles me apóia, galantemente, porque sou a sua rainha. — Ela gemeu, de olhos postos no céu. — O grande Desconhecido, para o qual o homem sempre rezou, escuta-me! Sejas tu quem fores, estejas onde estiveres, escuta a primeira oração que te faço! Ajuda-me a salvar Atlântida! — Ela ficou em silêncio por um momento, depois riu amargamente. — Será que decaí tanto que preciso rezar pedindo ajuda a uma hipótese nebulosa? — Apertou devagar as mãos, e suas narinas se dilataram. — Não, como sempre Atlântida é a minha força e eu sou a dela. Não precisamos de mais ninguém. Tendo ouvido tudo isso, Signar sorriu. Ele se tinha inclinado para a frente para não perder nada do que Salustra dizia ou fazia, mas depois voltou para dentro das sombras. Ela começou a descer vagarosamente os degraus. Ao pé da escadaria, parou e olhou ao redor de si. Signar ficou olhando e viu que das sombras surgiu outra figura, a de um rapaz. Signar, com uma praga abafada, viu que era Erato. O poeta caiu de joelhos ante a Imperatriz e beijou-lhe as mãos repetidas vezes. Ela se inclinou e apertou os lábios de encontro à cabeça dele. Ele exclamou, apaixonadamente:
— Ah! Salustra, diga-me que não está zangada comigo! Ela deu um suspiro, e Erato, tomando coragem, ficou de pé e tomou-a nos braços. Signar se retesou e levou a mão à espada, mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, os dois, falando baixinho, caminharam de braços dados para um grupo de árvores, e desapareceram. Signar esperou um momento, depois desceu correndo as escadas, atrás deles. Esgueirou-se de árvore em árvore, forçando a vista dentro da noite. De repente, deparou com uma grande clareira. Signar, andando cautelosamente, viu que Salustra estava sentada numa pequena cadeira de mármore. Erato estava ajoelhado ao lado dela, numa atitude de súplica. — Salustra — implorava o jovem. — Voe comigo para Dímtri. Meu primo, o Rei, recebê-la-á com reverência e respeito. Salustra correu os dedos pela cabeleira revolta do rapaz. — E sabes o que aconteceria? Se o teu Rei me desse guarida, Signar esmagaria o pequeno Dímtri na palma da mão. — O rosto de Erato ensombreceu e ele deixou cair a cabeça sobre o seio dela. - Não fiques tão desanimado — disse ela mais alegremente. — Nem tudo está perdido. O mais forte dos navios fica indefeso sem o seu timoneiro. Ela ficou de pé, abruptamente, e estremeceu um pouco. O dia amanhecia, e por entre a neblina começavam a tomar forma as colunas e abóbadas brancas de Lamora; a terra acordava. Signar permanecia oculto entre as árvores quando Salustra e Erato, abraçados, passaram devagar por ele. Ela dizia: — Não te preocupes com Signar. Os dias dele estão contados. Escondido pela folhagem espessa, Signar havia escutado cada palavra.
17
A Imperatriz sentava-se no seu trono na Câmara de Reunião da Assembléia, vestindo as suas roupas oficiais. Ao seu lado sentava-se Tyrhia, ainda abalada pelas experiências da noite anterior. E por trás de Salustra, estava Máhius, mais velho e mais encurvado do que nunca. Enquanto corriam os minutos, Salustra conversava descuidadamente com a irmã e o ministro. Estavam todos à espera de Signar. Finalmente, ouviu-se a nota alta de uma trompa. As grandes portas de bronze foram abertas, e Signar entrou com o seu general, Siton, e seu ministro, Ganto. Acercou-se da Imperatriz, e sem ajoelhar-se, beijou a mão que ela lhe estendeu. Ela o fitou em silêncio durante alguns momentos. Depois, disse: — Não é preciso perder tempo com cerimônias elaboradas e sem sentido, senhor. Sejamos francos. — Ela pegou um rolo de pergaminho e examinou-o com ar de grande interesse. — Recebi de sua parte, senhor, uma oferta de casamento. Não é verdade? Signar fez nova mesura. Seus olhos brilhavam como se estivesse intimamente divertido. Salustra reenrolou o pergaminho e deu-o para Máhius. Apoiou-se no braço do trono e fitou Signar com ar franco. Disse calmamente: — Não é necessário que eu expresse a minha surpresa e gratidão. Estou realmente assoberbada de emoção. O sorriso de Signar ficou mais largo. — Em outras palavras, senhora, recusa-a. — Sou indigna de ser sua Imperatriz — disse Salustra com suavidade. — Já não sou mais jovem. Quase 30 verões já pesam sobre mim. Conheço bem os caminhos do mundo e não passei incólume por eles. Há outras mais belas e nobres do que eu. — Prometemos ser francos — interrompeu Signar brandamente. Ele acercou-se da Imperatriz, pôs o pé no degrau inferior do trono e apoiou o cotovelo no joelho. Sorriu para Salustra, e sob o olhar fixo dele ela enrubesceu. — Estou dizendo com franqueza os motivos por que recuso tamanha honra. Signar continuou a fitá-la com intensidade. — Existe algo por trás disso. Salustra deu a mão a Tyrhia, e as duas mulheres se levantaram. Os cabelos dourados de Tyrhia haviam sido trançados com pérolas e repousavam sobre o seu pescoço em cachos lustrosos. Seus louros cílios semi-ocultavam os olhos de um azul muito pálido, e suas vestes revelavam
discretamente a curva virginal do seio. — Ofereço-lhe minha irmã, a Princesa Tyrhia, em matrimônio, senhor. — disse Salustra com simplicidade. Signar virou-se e examinou Tyrhia com o mesmo interesse com que inspecionaria uma escrava num mercado público. Seu olhar foi do rosto pequeno e lindo para a garganta e o seio, demorou-se nos contornos dos quadris... depois afastou-se um pouco como que para obter uma perspectiva melhor. Tyrhia encolheu-se, visivelmente. A marca de nascença do rosto da Imperatriz ficou vermelho-vivo, mas ela não demonstrou nenhuma emoção. — E qual será o dote da Princesa? — perguntou Signar com ar zombeteiro. Salustra inclinou a cabeça. — Com ela, em custódia para os seus filhos, ela levará Atlântida. — Em custódia? — ele perguntou, com ar de dúvida. — Eu doarei Atlântida ao seu filho, senhor. Mais do que isso, nem mesmo o Imperador pode pedir. — O rubor havia desaparecido do rosto de Salustra, e ela estava pálida. Signar apertou as mãos no joelho, de leve, depois sorriu e fez uma profunda reverência. — Senhora, compreendo-a muito bem. Teme a absorção da Atlântida por Althrústri, e por isso recusa a minha oferta. Não é isso? Os lábios de Salustra se entreabriram, mas ante o olhar zombeteiro de Signar ela ficou em silêncio. Novamente os olhos dele submeteram Tyrhia a uma inspeção completa. Depois, fez nova mesura e disse: — E se eu recusar, Majestade, que acontecerá? Salustra deu de ombros. Signar subiu vagarosa e tranqüilamente os degraus do trono, e tomou a mão trêmula de Tyrhia. Salustra mexeu-se um pouco, mas não demonstrou de outra forma falta de serenidade. Signar disse calmamente: — Aceito a Princesa Tyrhia como minha noiva. O ambiente sombrio desfez-se em fragmentos dispersos de risos e alívio. Máhius apoiou-se contra o trono de Salustra. Viu Signar beijar a face pálida de Tyrhia, viu a urbanidade sorridente de Salustra, ouviu que ela murmurava qualquer coisa. A mão de Máhius foi apertada por Ganto, que aparentava estar muito satisfeito. Ele viu quando Signar se afastou com Tyrhia da sala, conduzindo-a
cortesmente, seguidos pelo seu ministro e seu general. Então, Máhius e Salustra ficaram sozinhos. A Imperatriz afundou-se no assento do trono. Apoiou a testa nas costas da mão e fechou os olhos. Máhius ajoelhou-se ao lado dela e beijou a mão que ela repousava molemente sobre o joelho. Disse: — Vossa Majestade venceu. Ela ergueu a mão. Murmurou: — Não confio nele. É ardiloso demais. Acompanhei-lhe os pensamentos por cavernas escuras de astúcia. Nunca me sentirei segura, nem mesmo se ele casar com Tyrhia. — Mas ele aceitou a Princesa. Não era isso que Vossa Majestade desejava? E ao aceitá-la, ele aceitou as condições de Vossa Majestade. É certo que venceu. Ela o fitou com firmeza, com o rosto sombrio e muito pálido. Disse com simplicidade: — Não. Eu perdi.
18
As festividades que marcaram o noivado de Signar e Tyrhia não tiveram igual na história da Atlântida. As ruas que cercavam o Palácio fervilhavam de gente ansiosa por um vislumbre dos noivos. A neblina foi esquecida. E no próprio Palácio, em meio a toda aquela alegria, por trás do barulho e da agitação, um homem e uma mulher sorriam, movimentavam-se graciosamente, e guardavam para si seus pensamentos. No terceiro dia após o noivado, Máhius foi chamado pela Imperatriz. Era um dia cinzento. O mar era como aço líquido, on-deando desassossegado sob um céu pálido. As montanhas escondiamse sob barreiras roxas, e a cidade estava envolta numa neblina sufocante que parecia mais espessa a cada dia que passava. Máhius encontrou Salustra sozinha no seu quarto. Ela mal ergueu os olhos quando o velho entrou. Fez sinal para que ele se acercasse da mesa em que se encontrava um enorme mapa. Nunca parecera tão semelhante ao pai, aos olhos do ministro. Tinha um ar decidido e confiante, sua mão estava firme. Quando ele chegou perto da mesa, ela se moveu um pouco para que ele pudesse ver melhor o mapa. — Máhius — disse abruptamente — quantas pessoas existem em Lamora de linhagem althrustriana, incluindo os nascidos em Atlântida? Ele respondeu gravemente: — A população de Lamora é de sete milhões. Desses, um milhão são naturais de Althrústri e filhos de althrustrianos nascidos em Atlântida. Ela afastou de si o mapa. — É assim que colhemos os frutos da imigração irrestrita! Um dentre sete! A mesma proporção se repete em toda a Atlântida? Ele meneou a cabeça. — Não, nas províncias ocidentais e mais meridionais, a população é quase totalmente composta de naturais de Atlântida. Somente na costa oriental e nas cidades densamente povoadas é que essa proporção perigosa existe. Ao todo, calculo uma porcentagem nacional de cerca de 10 por cento. — Dez por cento — ela repetiu sardonicamente. Levantou-se e começou a caminhar daqui para lá no recinto, febrilmente, resmungando para si mesma enquanto caminhava. — Serão leais a mim, esses lobos famintos que chegaram magros e esfomeados de Althrústri para se locupletarem com a plenitude de Atlântida, que os abrigou e alimentou, e permitiu que vivessem como homens livres?
Máhius soltou uma exclamação em tom baixo. — Mas que lhe importa se eles são ou não leais a Vossa Majestade? É somente na guerra que se precisa de lealdade. E não há guerra. Pois Signar não está noivo de Tyrhia? Salustra fixou-o incrédula, depois caiu numa risada alta e amarga. Acercou-se do velho e, ainda rindo, deu-lhe uma palmada leve no ombro. — Velho tolo e insensato! Tu não sabes que Signar ainda não abandonou sua intenção original? Mas os fados amam os engenhosos. Tenho um plano. — Ela se debruçou sobre a mesa e indicou o mapa com um dedo branco e comprido. Traçou o contorno setentrional de Atlântida. — Manda uma mensagem codificada para as estações solares setentrionais, Máhius, para que ninguém entenda a mensagem senão aqueles a quem ela se destina — disse em voz baixa. — Envia um alerta para toda a fronteira, secreta e discretamente. Faze retornar todos os navios que estão em portos estrangeiros, e distribui-os ao longo da costa. Máhius fitou-a, e deu de ombros. — Será que Vossa Majestade se esqueceu de que todos os movimentos normais da esquadra e as comunicações cessaram? — Ele olhou para o mapa, que indicava as posições de todas as forças de Atlântida. — Podemos enviar mensageiros para as estações mais próximas e quem sabe obter o mesmo resultado. — Mas essas forças são de origem mista, estrangeira, e de lealdade duvidosa. Mais uma vez ela deu de ombros — Não temos outra escolha, Majestade. Ela tomou uma decisão. — Que assim seja! E entrementes despacha agentes para a cidade de Lamora e províncias vizinhas, para verificar a disposição do povo. Descobre os focos de descontentamento. E descobre se os filhos de althrustrianos nascidos aqui me são leais. — A preocupação espalhou-se pelas feições finas de Máhius, mas ele nada disse. — E aumenta a guarda ao redor do Palácio — continuou Salustra. Estava ereta, com a fisionomia impassível e os olhos brilhando com uma sombria resolução. Máhius colocou a mão no braço dela: — E quanto ao Senado? — perguntou. — Vossa Majestade sabe que não pode agir legalmente sem o voto afirmativo dele. Salustra ergueu a cabeça orgulhosamente.
— Neste caso, eu sou o Senado. — E Signar? — sussurrou inquieto. — Agirei sozinha. Assim, se eu falhar, somente eu sofrerei. Mas não falharei. Entrementes, ele é o nosso querido irmão, será convencido a sentir-se em segurança. E quando estiver totalmente desarmado... — Vossa Majestade mataria um convidado? — disse Máhius, encolhendo-se involuntariamente. Salustra colocou a mão sobre os lábios dele. — Cala-te, tolo! Quem sabe os inimigos que nos cercam? Não faças mais perguntas. Por acaso sou menos que a filha de meu pai? Antes que o dia terminasse, os planos da Imperatriz estavam em andamento. Grandes quantidades de tropas dirigiam-se para as fronteiras setentrionais, outras deslocavam-se para o mar, em direção aos poderosos navios que estavam sendo preparados para a ação, ao longo das costas densamente povoadas. E pela noite adentro, transmitiam-se mensagens em código. Todas as pessoas que entravam no Palácio para tentar obter uma audiência com Signar eram revistadas minuciosamente. Os espiões abundavam. A guarda de cortesia que cercava Signar foi aumentada para a sua própria proteção. E foram designados dois naturais de Atlântida, muito bem armados, para vigiar cada soldado althrustriano hospedado em Lamora.
19
Era a hora do crepúsculo. Por entre uma fenda empoeirada nas nuvens, uma estrela vespertina espiava desoladamente para o Monte Atla coberto de neblina e para uma cidade ominosamente quieta. Num estado de ânimo tão cinzento quanto o crepúsculo, Salustra entrou nos aposentos de Tyrhia. Encontrou a irmã, Signar e Brittúlia juntos, num patiozinho encantador de onde se tinha uma visão perfeita dos mares turbulentos. Ouvia-se a risada trêmula e suave de Tyrhia no ambiente cálido e perfumado. Ela estava de pé em frente a uma gaiola. Enfiava um dedo pelas grades e cutucava suavemente a ave que ali se encontrava, rindo alegremente com o terror demonstrado pelo animal. Ao lado dela, encontrava-se Signar, cujos olhos percorriam avaliadoramente sua graciosa silhueta. Brittúlia consertava um colar quebrado de Tyrhia, inconsciente do conflito que se desenrolava ao redor de si. Salustra caminhou na direção da irmã e franziu de leve o cenho. Disse vivamente: — Estás amedrontando a pobre criatura, Tyrhia. Não tens mais nada para fazer, senão atormentar os indefesos? Os olhos de Tyrhia falsearam, e ela fez um beicinho de rebeldia! Brittúlia, de cabeça baixa, numa atitude de resignação, continuava a enfiar as miçangas brilhantes. A Imperatriz disse friamente: — É muito fácil aprisionar os fracos, e depois divertir-se com eles. — Ela olhou para Signar. Ele a fitava atentamente, com um leve sorriso nos lábios. Ao perceber aquele sorriso, ela sentiu um arrepio. A força dele, seus olhos magnéticos, seu rosto calmo mexeram com ela, inesperadamente. Ele, por sua vez, examinava-a de modo apreciativo. Ali, no silêncio perfumado, quebrado pelo pipilar de aves aprisionadas, um homem e uma mulher da mesma estirpe de repente se reconheceram um ao outro, deram-se conta do que eram. Aborrecida, Salustra começou a tremer. Levou a mão ao pescoço com o gesto costumeiro, e seus dedos fecharam-se ao redor da pedra preciosa do colar do seu pai. Signar olhou para a jóia que faiscava entre os dedos dela. — Que pedra magnífica! — disse suavemente. — Pertenceu a meu pai — respondeu ela com dificuldade, A sua mão apertou mais o colar, como se isso lhe pudesse renovar as forças. — Meu pai falava do teu pai, Lazar — disse Signar em voz baixa. — O grande Lazar vive outra vez na sua filha.
— Ele amava Atlântida — ela respondeu. — E eu... eu amo Althrústri — retrucou ele, e a sua voz estava mais áspera. Salustra olhou para o mar, para as ondas agitadas. Para além daquelas ondas, pensou Salustra, viajavam as esperanças de Atlântida, navios recondicionados, movendo-se com máquinas reformadas, na direção do litoral; para o norte, legiões que marchavam para a fronteira. Afastou-se um pouco da Princesa e de Brittúlia para que ela e Signar pudessem falar a sós. — Que pensa do meu império aleijado, senhor? — Não existe outro maior, nem mesmo agora. Ela tocou de leve no braço nu dele. — O quê! Não considera Althrústri maior? — Não sou um tolo, senhora, — Não será uma herança esplêndida para o seu filho? — É muito generosa, senhora — respondeu ele com ironia. — Estou encantado. Mas, e quanto ao seu filho? Deixá-lo-ia sem um império? Ela deu de ombros. — Eu não terei filhos. Nunca me casarei. — Olhou para ele, vivamente. Ele ainda sorria, com aquele sorriso superior que tanto a irritava. — O quê! Espera passar a vida sem amor? Ela retrucou de modo descuidado. — O amor é sinônimo de casamento? Eu jamais amei. — Jamais amou! — ele exclamou, incrédulo. Ela sorriu de leve: — Confunde o amor com a paixão. — E eles não são a mesma coisa? Só os poetas e os tolos, que às vezes são idênticos, acreditam no amor. Eles se rebelam contra a realidade da luxúria e vestem-na com roupagens delicadas. Caminhando ao acaso pelos jardins, pararam em frente a uma gaiola em que havia um grande pássaro negro com uma bela crista vermelha. Signar enfiou um dedo pelas grades douradas e assobiou para a ave. Ele parou, examinou-o com seus olhinhos brilhantes e selvagens, e, então, sem o menor aviso, voou para cima do dedo de Signar e bicou-o ferozmente.
O Imperador soltou um grito de dor e raiva e retirou depressa o dedo. Sangrava abundantemente. Várias gotas de sangue vermelho caíram sobre o vestido branco de Salustra. Ela encolheu-se, visivelmente. Vendo a atitude dela, Signar fitou-a com olhos subitamente brejeiros. — Vê, Salustra, meu sangue caiu sobre sua pessoa! — zombou — É um mau presságio! Ela estremeceu, involuntariamente, Tyrhia e Brittúlia, assustadas, vieram juntar-se a eles. A jovem Princesa gritou e fechou os olhos, mas Brittúlia limpou calmamente o sangue da mão de Signar com seu próprio lenço. Examinou o ferimento tranqüilamente. — Não é nada, meu senhor. Logo ficará bom. O pássaro de plumagem viva gritava excitado na sua gaiola, e o Imperador ameaçou-o com o punho fechado, de brincadeira. — O animal cativo pode atacar com selvageria, senhora — falou, virando-se mais uma vez para a Imperatriz. — É verdade — ela murmurou. Lançou um rápido olhar para Tyrhia e Signar. — Gostariam, talvez, de combinar suas núpcias em particular. — Como queira, senhora. — Ele fez uma profunda mesura. Com um breve aceno de cabeça para o grupo, Salustra virou-se e voltou para seus aposentos. Jogou a túnica sobre um divã, e as manchas pareceram saltar sobre ela. Ela pegou a túnica e fitou sombriamente o sangue seco. Um mau presságio, ele havia dito. Na verdade ele não sabia como isso era certo.
20
No apartamento que fora posto à sua disposição no Palácio pela sua anfitriã, Signar reunia-se com o General Siton, o Ministro Ganto e vários outros membros da sua comitiva para uma discussão séria. Ganto acabara de falar, e o Imperador sentava-se em silêncio, com o queixo apoiado na mão. Depois, disse, pensativamente: — Eu suspeitava que ela iria tentar alguma traição. Mas nunca de maneira tão óbvia. Aí ela revela o seu sexo. A coragem dela somente é igualada pela sua ingenuidade. Infiltramos a sua nação com traidores, e até agora ela estava inconsciente disso. Contudo, tendo apenas uma força pequena, no momento, estamos numa posição precária até que chegue a hora em que possamos atacar com segurança. Até lá, é essencial que saibamos de cada movimento dela. — Virou-se para Siton. — Ela não tem nenhuma pessoa íntima, politicamente, ninguém de confiança, a quem possamos seduzir? — Há Máhius — disse o general, com ar de dúvida. Signar abanou a cabeça, aborrecido. — O tolo é velho demais para ser comprado. Ganto manifestou-se, ansioso. — Meu senhor, há alguém assim chegado a ela, o Senador Divona, com quem já lidamos proveitosamente. Nós o procuramos pela primeira vez quando soubemos que ela lhe tinha confiscado uma fortuna que ele havia ganho de maneira duvidosa, e que ainda por cima o rejeitara. Signar sorriu, muito satisfeito. — Desde que já sabemos o que ele é, falta-nos apenas saber o seu preço. — Ele se levantou e começou a andar de um lado para outro, na sala, de testa franzida. — Portanto, neste exato momento, enquanto os mensageiros dela procuram alertar suas legiões, essas mesmas legiões se defrontarão com legiões amistosas, constituídas de gente de linhagem althrústriana, prontas para lidar com eles em termos práticos. — Ele fez uma pausa, e seu rosto se ensombreceu. — É preciso vigiá-la atentamente, para o caso de ela se desesperar e tentar tirar a própria vida quando souber que falhou. — Ele soltou uma risada sem humor. — Sinto-me ofendido que a Imperatriz tenha subestimado a minha inteligência. Mas, apesar disso, tenho outros planos para ela. Siton acercou-se dele, com os grandes dentes amarelados brilhando ferozmente: — Senhor, por que adiar a hora? Aquele que ataca primeiro já tem meia batalha ganha. Declare-se o conquistador de Atlântida e mande matar essa mulher. Enquanto ela viver, será um ponto de reagrupamento para os naturais da Atlântida leais à sua linhagem. Signar franziu o cenho e fitou o mar cinzento. — Matá-la? — disse pensativo. — Não, esperarei. E quando tiver Atlântida nas mãos, lidarei pessoalmente com ela. Precisamos esperar as notícias de como as legiões dela receberam as
propostas dos nossos generais para maiores recompensas, menos deveres e aposentadoria precoce. E saber se a minha esquadra conseguiu lograr a dela no mar. Saberemos em alguns dias. — Senhor — pediu Siton, sorrindo de expectativa — entregue-a a mim. Abrirei mão de todas as recompensas, exceto dessa boneca fogosa. Prometa-me Salustra, como minha parte. Ganto franziu o cenho. — Não, senhor, não o tenho eu servido bem? E antes do Imperador, a seu pai? Suplico-lhe que a entregue a mim. — Ele lançou um olhar de desprezo ao general. — Siton é um selvagem. Ele a perfuraria até a morte, numa única noite. Ante a carranca de Signar, o debate logo cessou. — Lembrai-vos bem — disse ele severamente — que a senhora em questão é uma rainha nata. — Colocou a mão no ombro robusto de Siton e sacudiu-o de leve. — Mas, Siton, não fica assim de cara feia. Podes ficar com Tyrhia, a meiga virgenzinha. Ela é inofensiva, e é tua. — Virou-se para o ofendido Ganto. — Quanto a ti, podes escolher entre mil mulheres. Fica até mesmo com Brittúlia, a virgem magricela, se quiseres. Dizem que a carne que fica perto do osso é a mais doce. Mas lembrate, velho amigo, que me és valioso. Sê moderado! Os dois homens logo se reanimaram, e o aposento ressoou com suas risadas grosseiras. Signar acrescentou uma palavra de cautela: — Essa corte dissoluta e luxuosa é odiada pela gente comum de Atlântida. Limitai os vossos ataques às mulheres da corte. O povo em geral precisa ser tratado com cortesia e justiça. Há gente demais para que ofendamos. Ele despachou os seus ajudantes e ficou em silêncio por algum tempo, de testa franzida. Depois, saiu para a colunata para tomar ar. Uma neblina pesada vinha da direção do mar, que agora estava invisível. Só um rugido ominoso, como o de um animal pronto a atacar, dava provas da sua proximidade. O jardim embaixo estremecia a um vento frio e úmido. Ele recuou ao ver surgirem duas mulheres nos jardins, diretamente sob ele. Uma delas era Brittúlia, a outra Salustra. Olhando para a Imperatriz, Signar lembrou-se de repente de quando a tivera nos braços, dos lábios macios dela sob os seus, de seu corpo cálido e vibrante debatendo-se loucamente contra o peito dele. Ele quase que podia ouvir-lhe de novo o bater apressado do coração. Como se tivesse ouvido os pensamentos dele, ela virou-se para a colunata e ergueu o rosto. Sorriu ao vê-lo e acenou. Ele fez uma mesura, mecanicamente. Ela continuou a caminhar, e finalmente desapareceu com Brittúlia entre as sombras das árvores. Signar voltou para os seus aposentos, profundamente abalado. Apertava e abria as mãos, como se estivesse sentindo dores violentas. Sussurrou: — Salustra! — Depois, caiu numa risada em que zombava de si mesmo. Ele não era nem um
pouco melhor do que aqueles palermas Siton e Ganto.
21
A sedução dos traidores era uma coisa relativamente fácil. Divona era um homem esperto e ardiloso, e seu rosto devasso possuía certo encanto. Ele gostava de pensar em si mesmo como uma figura de elegância delicada. Salustra o havia repudiado, e à sua moralidade. Portanto, ele a odiava. Tolíti, o austero senador, odiava Salustra porque a considerava imoral. Ele era dispéptico e não possuía apetite para banquetes ou libertinagens. Há muito tempo que ele considerava um dever sagrado para todos os homens virtuosos oporem-se a ela. Havia outros traidores, como por exemplo a sombria Júpia, a Alta Sacerdotisa, uma virgem idosa que invejava secretamente uma mulher mais moça e bela que apreciava francamente tudo aquilo que ela, Júpia, obviamente repudiara. Havia também Gátus, que se ressentia rancorosamente do suicídio de Lústri, seu cunhado, provocado pela rejeição de Salustra. E o Senador Sicilo, dogmático, pomposo, que nunca esquecia que Salustra o havia humilhado em público. Havia também os Senadores Zutlian, Ludian, Consilíni e inúmeros outros... covardes, ambiciosos, rapaces, prontos a abandonarem o navio que afundava sem pensar no comandante que os havia conduzido até ali. Salustra não se dava ao trabalho de pensar neles. Se as coisas lhe fossem favoráveis, ela faria com que pagassem por sua deslealdade. Se acontecesse o contrário, eles sentiriam o peso da mão do conquistador. Ela tinha absoluta certeza disso. Após 48 horas de inquietação, Salustra ainda não tivera notícias da sua esquadra e das suas legiões. Da capital eram emitidas ondas de ordens; só retornava o silêncio ou respostas evasivas, — Que aconteceu, Máhius? — ela perguntava ansiosa ao seu conselheiro. O velho tentava transmitir-lhe confiança, e a si mesmo. — Deve lembrar-se, Majestade, que não estamos agindo abertamente, e, sendo assim, tudo precisa ser velado e vago. Ele tinha, contudo, um pressentimento de traição. Sentindo a necessidade inquieta de fazer algo, Salustra mandou chamar Creto, o Prefeito da Guarda Real. Ele chegou rapidamente. — Tu dobraste a Guarda do Palácio, Creto — ela disse abruptamente. — Triplica-a. — Ele fez uma profunda reverência, e a rigidez do rosto dela se suavizou. — Tu me amas, Creto? — perguntou com tristeza. — Vossa Majestade o sabe — ele respondeu. — Tens 500 homens escolhidos, Creto, além da Guarda. São todos leais a mim? — De bom grado morreriam por Vossa Majestade. Salustra hesitou, lançou um olhar para Máhius.
— Confio em ti, Creto. — Em voz baixa, ela contou ao Prefeito os seus planos para Signar e seus homens. — Ninguém na corte, com exceção de tu e Máhius, sabe disso. Os olhos do rapaz encontraram os olhos preocupados de Máhius. Franziu a testa ansioso. — Ninguém sabe, Majestade, exceto Máhius? Mas, e quanto ao Senado? O Senado possui a autoridade para vetar as ordens de Vossa Majestade, para dispersar tanto as legiões quanto a esquadra. Que diz disso? — Não tive tempo — disse Salustra. — Quando tudo estiver pronto, informarei o Senado. Eles teriam argumentado, duvidado, protelado... e Signar fatalmente viria a saber. O Prefeito ficou sombrio. — Não existem segredos em Atlântida por muito tempo. E quando souberem, o que já pode ter acontecido, reagirão revogando as ordens de Vossa Majestade. Quem sabe até o veto já foi dado. Máhius concordou, solenemente: — É o que eu temo. Salustra virou-se para Creto, cheia de raiva. — Se eu der a ordem, farás com que esses poltrões sejam mortos? — Ele fez um gesto de obediência. — Se tu me traíres, Creto, a minha última ordem para ti será a espada. Farás isso por mim? — Não há nada que Vossa Majestade me peça que eu não faça! — ele exclamou. Era verdade que não havia segredos em Atlântida. Primeiro o Senado, depois os bárbaros, vieram a saber do dilema de Salustra. Signar logo soube da crise constitucional. — O Senado — contou Ganto, jubilosamente — está hostil. Até mesmo aqueles que não odiavam Salustra estão ofendidos com a quebra da constituição, Não apenas repudiaram as ordens dela como, numa sessão secreta, votaram pela sua morte, por unanimidade. — Chacais! — exclamou Signar com desprezo. — Eles estão pouco ligando para a constituição... A leoa está ferida, portanto eles lutam pelos restos. Eles me deixam com um gosto amargo na boca! Farei bem em aniquilar a cada um deles quando chegar a hora. Os assistentes dele se entreolharam, consternados. — Aquela libertina o enfeitiçou — sussurrou Siton para Ganto. — Com que então aprovaram a morte dela, hein? — disse Signar em voz alta, andando para cá
e para lá nos aposentos espaçosos que Salustra lhe reservara. — Terão feito isso para caírem nas minhas boas graças? — Em parte, senhor — disse Siton — mas esta é uma monarquia constitucional. As ordens recentes de Salustra, dadas sem a aprovação do Senado, foram consideradas atos de traição. A uma palavra sua eles ordenariam a execução dela. Signar torceu os lábios entre os dedos, pensativo. - Que o seu próprio Senado a condene, se assim o quiser. O sangue dela não será minha responsabilidade. — Sua fisionomia se desanuviou. — E quanto às legiões? Dizes, Ganto, que as legiões dela se retiraram da fronteira e que a esquadra dela se uniu à minha? — É o que diz Divona. Enquanto isso, os nossos espiões estão agindo nas legiões dela, e a deserção delas é apenas uma questão de tempo. — É, a leoa está presa na armadilha — refletiu Signar — perdida porque é a consciência viva de um povo decadente que a odeia por exigir demais das suas naturezas dissipadas. Ele esvaziou um jarro de vinho e depois, com uma mudança de disposição mercurial, caiu de novo na depressão. Os enviados Tellan e Zôni foram anunciados. Estavam ansiosos para proclamar o sucesso das suas tramas. — Temos Atlântida, senhor! — exclamou Tellan. — Pode agir com segurança quando assim o desejar. Signar tentou não deixar transparecer o seu desprezo pelos vira-casacas de Atlântida. — E quanto a esse Creto, que ouvi dizer que já foi amante dela? — Correm boatos que ele foi um dos amores dela, e lhe é leal. Mas subornamos a Guarda, e ela se virará contra ele. Zôni desenrolou um pergaminho. — Todos na corte dela bandearam-se para o nosso lado, exceto o seu ministro senil, e esse Creto, e mais um outro, o insignificante poeta Erato. Signar praguejou. — Ele tem que morrer, esse Erato. Máhius é um velho inofensivo. Podemos ser induzidos a poupá-lo. Quero derramar o menos sangue possível. Preciso da boa vontade de Atlântida para governá-la. Tellan perguntou:
— E quanto à Imperatriz, entregá-la-á ao Senado? Signar levantou-se abruptamente e ia dizer algo quando a cortina se moveu e um guarda entrou com um gesto de advertência. — A Imperatriz! — anunciou ele. Lá estava ela de encontro à cortina carmesim como uma deusa da lua, e seus olhos sorridentes percorriam brejeiros o grupo surpreendido. — Não estou atrapalhando, senhor? — perguntou com suavidade. Ele respondeu com galanteria: — A sua radiosidade, como a do sol, ainda é mais bem-vinda por ter ficado tanto tempo ausente. Ela lançou um olhar significativo aos outros. Signar despachou-os com um gesto abrupto. Durante longos momentos os dois olharam-se em silêncio. Então, ela se acercou dele, com passo gracioso. Pôs a mão de leve sobre o braço dele. — As preocupações do império não nos abandonam nunca, não é, senhor? Há momentos em que gostaria de ser a mais ínfima escrava. — É uma grande Imperatriz — disse Signar, emocionado a contragosto. — Grandeza! — ela murmurou. — E o que é isso? Uma saudação passageira nos lábios de um povo moribundo. Aqueles a quem aclamam hoje, entregarão amanhã. A fama é tão evanescente quanto a neblina. Ela chega, sem ser solicitada, e é dissipada pelos estranhos sóis dos novos acontecimentos. Ele sabia que ela não tinha vindo discutir filosofia, mas podia dar-se ao luxo de acomodar-se e filosofar com ela. — Que considera verdadeira fama, Salustra? — perguntou, interessado. Ela brincou com o seu colar, reflexivamente. — A guerra, as conquistas, que são elas? Os conquistadores escrevem o seu nome com sangue, depois o rio vermelho muda de rumo, e o nome não existe mais. Mas o poeta, o escultor e seus irmãos luzem com um brilho crescente sobre a maré sempre mutável dos acontecimentos humanos. — Como bem diz — retrucou Signar — a morte nos engole a todos, e somos de novo metal derretido, pronto para ser derramado em novas fôrmas. Hoje, eu sou eu mesmo. Que serei amanhã? Terá importância para mim se eu tiver sido poeta ou rei, camponês ou escravo? Se eu fosse um cantor de canções ou um escultor de mármore, e nascesse outra vez, será que reconheceria as minhas criações do passado? Como pode ver, até mesmo a fama duradoura é inútil.
Ela não se dera conta antes de que a mente dele havia encarado seriamente o problema da reencarnação. Ele não era o bárbaro que ela imaginara. Descobriu-se apreciando esse combate de espírito com ele, embora ainda se ressentisse do ardor excessivo à mesa do jantar, que considerava um ato de pura inebriação. — Com os seus esforços — ela disse — o artista constrói uma casa de beleza na qual nos esquecemos por algum tempo da fealdade da vida, e da sua terrível futilidade. Podemos caminhar por entre as suas colunas e aspirar o doce perfume das flores fragrantes que as mãos falecidas ali colocaram para o nosso prazer. É isso que o poeta, o compositor e o artista deixam atrás de si, em termos de fama. Ele deu de ombros, com expressão sombria. — Ah! pois é, há pouca coisa na vida, mesmo para os afortunados. Bebendo o que nos é oferecido, percebemos que não nos mata a sede. — Somos tolos, verdadeiramente — disse Salustra, rindo da própria tolice. — Devemos, contudo, confessar que seríamos senão quem somos. Não é mesmo? Signar sorriu. — A filosofia é um excelente exercício para a mente que está engordando — disse. — Mas é um estimulante passageiro e deixa o espírito insatisfeito. Eles se encararam de modo amistoso, apesar de que cada um compreendia que o outro seguia um rumo oposto. — Cometi uma injustiça com Vossa Majestade — disse a Imperatriz. — Pensava que era um bárbaro completo, sem sutileza ou sofisticação. Mas vejo que é um homem sábio, ou melhor, eu o considero sábio porque a sua filosofia coincide com a minha. — A risada dela era genuinamente alegre. Signar tomou-lhe a mão e beijou-a. — Dou mais valor à sua boa opinião que ao mais belo dos rostos. As faces pálidas de Salustra enrubesceram de leve. — Eu vim, senhor, convidá-lo para me acompanhar pelos locais de interesse de Lamora. Temos muitas maravilhas aqui que ainda não são famosas em Althrústri: o Templo de Sáti, os centros solares, o Templo Belo, o Colégio do Conhecimento Total. — Ah! o Templo Belo, o centro de rejuvenescimento! — Ele sorriu. — Por que não tenta as maravilhas dele no velho Máhius? Ela riu.
— Ele já teve uma experiência dessas e não quer mais nenhuma. Signar apertou a mão dela, e foi como se uma corrente elétrica passasse entre eles. Seus olhos se encontraram, não se deixaram, e a pulsação de Salustra acelerou-se. Ele curvou-se de novo e beijou a mão dela, e depois os lábios dele buscaram os dela e deram-lhe um beijo demorado. Salustra estremeceu de prazer. Ele precisa morrer!, disse para si mesma. Ela precisa morrer!, pensou Signar soturnamente.
22
Tyrhia acabara de sair do banho e estava toda rosada sob as mãos das escravas que a massageavam. Brittúlia segurava diversas túnicas para ela fazer a sua escolha, e Tyrhia estava tão absorvida nisso que nem levantou os olhos à chegada da Imperatriz. — Preguiçosa! — disse a Imperatriz. — O sol atingiu o zênite, e tu mal acabas de te levantar. Tyrhia deu de ombros sem responder. Deu um grito quando uma das escravas, acidentalmente, puxou uma mecha do seu cabelo, e deu uma bofetada na moça. Salustra franziu o cenho, e lançou um olhar para Brittúlia, que ergueu as sobrancelhas. A Imperatriz acercou-se de Brittúlia e colocou a mão sobre o seu ombro, bondosamente. Brittúlia retesou-se como se estivesse contaminada. Compreensiva, Salustra retirou a mão. — Que estás achando do Palácio, Brittúlia? — perguntou. — É o que eu esperava, Majestade — ela respondeu mansamente. Salustra fitou-a, pensativa. — Queres ser dispensada do teu posto? O rosto de Salustra estava pálido e crispado. Ela parecia exausta. Em geral, os puros de corpo não sentem piedade. Mas, desta vez, Brittúlia teve compaixão. Impulsivamente, pegou a mão da Imperatriz e beijou-a. Para a sua própria surpresa, exclamou: — Estou às ordens de Vossa Majestade! — Não; gostaria que tu ficasses, mas não te ordeno nada. — Virou-se para a irmã: — Tyrhia, vou mostrar a cidade ao teu noivo. É meu desejo que tu nos acompanhes. Tyrhia permaneceu em silêncio, de cara feia, e Salustra lembrou-se de repente da mãe da moça, a bela e traiçoeira Láhia... parecia que a segunda esposa de Lazar estava de novo à sua frente. Perguntou a si mesma, enquanto observava a expressão de Tyrhia, por que ainda não havia percebido a semelhança. — Prefiro ficar aqui — disse a moça, com maus modos. Salustra riu, zombeteira. — Como! Signar não te agrada, menina? — Tenho medo dele! — gritou Tyrhia. — O olhar dele é desagradável. Ele não faz diferença entre mim e uma escrava. É um animal. — Bateu com o pé no chão.
Salustra retrucou secamente: — Então terás um animal por companheiro. Ela decidiu que a irmã seria um empecilho aos seus desejos de impressionar Signar com a sólida substância que ainda era Atlântida. Disse: — Pois bem, Tyrhia, se não queres vir conosco podes ficar aqui. Sozinha com Brittúlia, Tyrhia começou a chorar de raiva. Quando Brittúlia tentou consolá-la, ela empurrou-a para o lado e recomeçou sua toalete. Após terminá-la, finalmente, saiu para os jardins, acompanhada por Brittúlia e duas escravas. O tempo todo ela manteve o seu silêncio malhumorado, caminhando sempre um pouco à frente de Brittúlia, a quem estava começando a considerar um estorvo. De repente Tyrhia parou, soltando uma exclamação baixa. A certa distância, em frente a uma fonte espumante, estava sentado Erato, num banco de mármore. Fitava as águas da fonte com ar de completa desolação. O seio moço de Tyrhia ofegou de emoção. Ela virou-se para Brittúlia, abruptamente. — Volta com as escravas, Brittúlia — ordenou numa voz tensa. Brittúlia hesitou. — Preferiria ficar com a senhora. Sua irmã poderia não gostar. Tyrhia bateu com o pé no chão. — Como?! Ousas desobedecer-me, Brittúlia? Brittúlia ergueu as mãos num gesto de rendição. Chamou as escravas e voltou relutante para o Palácio. Tyrhia esperou até que estivesse bem longe. Depois, pisando macio, acercou-se do poeta. Ele pôs-se de pé ao vê-la e fez uma reverência formal. Tyrhia, sorrindo calidamente, chegou bem perto dele e colocou a mão no seu braço. — Pareces deprimido, Erato — disse meigamente. — Já não estou mais, senhora — ele respondeu com cortesia mecânica. Tyrhia sentou-se no banco e fez sinal para que ele se sentasse ao lado dela. Viu que o rosto dele estava pálido, e os olhos pesados, como se houvesse dormido mal. — Como! Será que estás apaixonado, Erato? - ela perguntou, sem dar-se conta da verdade.
Ele sorriu com indulgência, como sorriria a uma criança meiga. — Quem sabe, senhora? — Ele examinou o rosto dela tentando descobrir traços de Salustra. É, no movimento da cabeça, na curva do pescoço havia alguma semelhança com a sua amada. Ele estava apaixonado o bastante para achar conforto nessa semelhança, e a expressão dele se suavizou. — Eu também estou apaixonada — disse Tyrhia com meiguice. — Tem um amante poderoso, senhora — ele disse gravemente. — Não há maior figura do que a de Signar. Tyrhia exclamou, atrevidamente: — Eu o abomino! Ele me faz pensar num lobo esfaimado, com seus olhos malvados e a boca ávida! Erato olhou ao redor de si, nervoso. Tyrhia continuou, agitada: — Prefiro morrer a casar com ele. Prefiro casar-me com um escravo. Fico toda arrepiada quando ele me toca. Porque amava Salustra, Erato sentiu simpatia por essa linda menina. Tomou a mão dela e beijou-a com carinho. Obcecada pela própria paixão, ela estava convencida de que Erato retribuía os seus sentimentos. Murmurou: — Por que Salustra não se casa com ele? É a ela que ele deseja. Então não o vejo? Ele a devora com os olhos. O rosto de Erato ficou sombrio, e largou a mão da moça, sem que Tyrhia suspeitasse do motivo. Ela deitou a cabeça loura sobre o ombro dele. Sussurrou: — Erato, tu me amas? — Ela era tão afetuosa e meiga que impulsivamente ele a abraçou, como teria abraçado uma criança, — Eu te amo — ela exclamou, e seus lábios macios eram convidativos. Erato soltou a moça, e enrubesceu. — Que diz, menina? — disse com voz abalada. Os olhos de Tyrhia ficaram maiores. — Eu disse que te amo, Erato. Isto te surpreende? Não sabias? Erato continuou a olhar para ela, confuso. Após um longo momento, sorriu. Disse suavemente:
— Meiga donzela, não sabe o que significa o amor. Como pode amar-me? Os olhos dela faiscaram: — Tolo! — exclamou com o jeito imperioso de Salustra. — Eu não sei por que te amo. Só sei que te amo. Erato emocionava-se com facilidade. Decidindo lidar com ela com meiguice, abraçou-a e puxou-a para perto de si. Divertiu-se ao ver como os braços dela enlaçavam o seu pescoço e como os olhos dela brilhavam. — E como poderia deixar de amá-la, Tyrhia? — murmurou, beijando sua cabeça dourada, como teria beijado uma irmã mais moça e muito querida. — É doce e pura como a luz do sol, e tão radiosa quanto ela. Ela abraçou-o apaixonadamente, soluçando um pouco de felicidade. Ele secou-lhe as lágrimas com beijos, compassivo, mas ainda considerando aquilo tudo uma inclinação passageira. — E Salustra arranjou tudo! — ela gritou furiosa. — Eu devo me casar com aquele bárbaro. Mas tu me salvaras, não é, Erato? — Mas como posso fazê-lo, cara menina? Para onde a levaria? Dímtri? Infelizmente, os leões de Atlântida engoliriam o meu país de um só bocado. Será que não consegue persuadir a Imperatriz a libertá-la dessa união odiosa? A fisionomia de Tyrhia endureceu, e naquele momento Erato percebeu uma nítida semelhança com a irmã que ele amava. — Ela é fogo e gelo — disse Tyrhia amargamente. — Ela debocharia de mim até que eu me calasse. — Virou-se para Erato, súplice: — Não existe nenhum lugar para onde possamos fugir e viver em paz? Ainda procurando ser gentil com ela, Erato balançou a cabeça. — Temo que não, doce Tyrhia. Tanto Salustra quanto Signar nos perseguiriam. Sua única esperança é pedir à Imperatriz que a liberte do compromisso. — Ela não o fará! Eu sei. Mas, eis que chega a antipática da Brittúlia. — Ela observou a mulher que se aproximava num silêncio mal-humorado. Erato pôs-se de pé para partir, percebendo que Brittúlia o fitava aborrecida. Tyrhia apertou a mão dele ardentemente e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Que criança! — pensou ele. Mas é muito bonita, e não muito mais moça do que eu.
23
— O vício é simplesmente um excesso do bem — disse Salustra a Signar, enquanto começavam sua visita ao Templo de Sáti. — O homem é imoderado; ele levou o bem aos extremos, transformando-o em mal, e depois confundiu o bem com o mal e tenta esmagar o bem original em nome da retidão. Eis aí, Signar, o templo da retidão, ou do bem distorcido. — Não temos em Althrústri nada que se compare a isso — disse Signar, examinando o enorme salão, com as paredes e teto de ouro sólido, incrustado com rubis e pérolas. — Meu pai esbanjou o resgate de um império neste templo — disse Salustra. — Ele sabia que a adoração nasce voluntariamente na alma humana, e deu ao ambiente uma materialidade magnífica que os adoradores apreciariam. Eles falavam em voz baixa, mas os ecos reverberavam acima das suas vozes. Ao se acercarem do altar, ficaram num círculo de luz amarelada que vinha da chama eterna. Salustra ergueu os olhos, e seu rosto ficou sombrio. Naquele instante ela se lembrou da distância insuperável entre os dois. — Vossa Majestade está cansada? — ele perguntou, preocupado. — Não, nunca fico cansada — ela respondeu, brincando com o seu colar. Ela tentou soltar a mão, mas ele a levou aos lábios: — A grande Sáti nunca foi bela como Salustra — murmurou suavemente. — Enganei-me quanto a Althrústri. Aparentemente, os belos discursos não são novidades por lá. — Falamos a verdade entre amigos — ele disse com repentina gravidade. — Talvez esta virtude seja desconhecida em Atlântida? — A verdade deve ser usada com discrição — ela disse. — Mas não é desconhecida em Atlântida. — A raiva tocou-lhe o rosto como uma chama. — E Atlântida não está tão por baixo quanto imaginam seus inimigos. Caiu entre eles um pesado silêncio. Eu a amo!, pensou Signar. E, portanto, ela não pode morrer! Pensou Salustra: Eu o amo! Mas ele precisa morrer, senão... Ela virou-se calmamente e indicou, com a mão bem feita: — Aqui, senhor, fica o nosso famoso Colégio do Conhecimento Total. Aqui, neste templo dedicado à especulação, os filósofos guerreiam no campo de batalha indefinido do intelecto. Aqui, Tálius, o doentio expoente da virilidade, ódio, força e coragem, prega sua doutrina de que a
igualdade é o lema dos democratas e que o homem deve cultivar sua crueldade inerente. Aqui Mórti, o alegre cínico, declara que só podemos ter certeza de uma coisa: de que não sabemos nada. Aqui Yônis declara que a felicidade fundamental do homem depende da simplicidade natural e do retorno à natureza, e que o homem é inerentemente bom e simplesmente adquire o mal; Zetan expõe a sua teoria do grande panteísmo, de que Deus, o universo e o homem são um só, se movendo juntos na direção de um objetivo ainda desconhecido. Aqui Lodiso desenvolve os seus sonhos de um estado ideal em que todos os indivíduos sejam engrenagens coordenantes, girando suavemente para o bem comum. Temos todos eles, esses tecelões parasitários de sonhos fantásticos, essas sombras que sonham com sombras nos seus aposentos ensombrados. — Vejo que Vossa Majestade tem pouco respeito pela filosofia — disse Signar sorrindo. Salustra deu de ombros. — O pensamento é o dobre fúnebre da ação. Contudo, admiro Tálius, embora discorde que o homem seja debilitado pela virtude excessiva. Posso rir com Mórti, que ri de tudo, inclusive de si mesmo e de mim. Às vezes, quando estou deprimida, aprecio Zetan. Ele quase me faz acreditar que a minha alma é imortal; ele escora o meu ego enfraquecido com pilastras de força espiritual. Gosto de discutir com Lodiso e esmagar a frágil fantasia do seu estado ideal com o martelo dos fatos. Yônis me enfurece com a sua simplicidade entusiástica. Ele tenta me convencer de que o homem nasce bom, quando eu sei que ele não nasce nem bom nem mau. — Ela lançou-lhe um olhar de indagação amistosa: — O Imperador tem poucos filósofos em Althrústri? — Temos — retrucou o Imperador. — Nós os pomos para trabalhar. Salustra riu. — Como o pensamento mata a ação, assim também a ação mata o pensamento. Entraram numa imensa câmara, onde, sobre um estrado alto, o filósofo Zetan explicava animadamente a sua doutrina de unidade infinita. Os alunos, dúzias de jovens e donzelas com vestes brancas, ficaram de pé quando a Imperatriz entrou. — Quando eu era muito moça, meu pai me trouxe a estes filósofos. Meu pai tinha uma opinião muito negativa da inteligência feminina, mas sempre dizia que eu tinha o cérebro ativo de um homem num corpo de mulher. Parece que ele considerava isso o maior dos elogios! — Prefiro a ação — disse Signar — como a melhor cura para a melancolia. — Este é Zetan, senhor — disse Salustra, sorridente. — A doutrina dele é um triunfo da esperança sobre a evidência. — Ela indicou um homem alto e moreno com um quisto no nariz. Zetan ficou levemente ofendido. — Não — retrucou depressa. — É um triunfo do conhecimento sobre o materialismo, Majestade.
Signar lançou um olhar descuidado às moças e aos rapazes. Todos tinham rostos sensíveis e expressivos, e a magia dos sonhos não realizados nos olhos. — Todos os filósofos afirmam ter a jóia preciosa da verdade nas mãos — ele disse. — Olhai com atenção. Vereis que a pedra preciosa não passa de um pedaço de vidro, afinal de contas. O sorriso de Zetan era ligeiramente discordante. — Não cabe a nós conjecturar se o objetivo vale o esforço, ou decidir a questão — retrucou. — Contudo, seja lá o que desejarmos, precisamos fluir na direção do objetivo. Deus está em nós, e nós estamos em Deus. Ele está mais perto de nós do que o nosso coração, e mais distante do que a estrela mais afastada. Nós não estamos nem cá nem lá; somos um só com Ele na Sua Criação. O tempo e o espaço são meras ilusões, meros fenômenos. Pois existe apenas um só Deus, e nada mais. Deus e a matéria são uma só entidade, que ainda não está perfeita. É o esforço de Deus buscando a perfeição suprema que causa tantos transtornos na natureza, e nos assuntos do homem. Ele tenta fazer uma experiência conosco. Somos imperfeitos, portanto ela falha; e, então, Ele a apaga, e a nós com ela. — E que acontece quando se atinge a perfeição? — perguntou Signar, sorrindo. — Que coisa tremendamente enfadonha! A imperfeição, as experiências contínuas, o fracasso. Tudo isso dá sabor à vida. A incerteza é o prazer na caçada. Quando se atinge a perfeição desapaixonada, este próprio Deus deve morrer de puro tédio. Os olhos de Zetan eram tremendos, cheios de um brilho líquido e de pensamentos enobrecedores. No seu rosto nada havia de fanático, havia apenas benignidade e uma indulgência divertida. Signar, embora discordante, acabou por oferecer a mão ao filósofo, cumprimentando-o. — Júpia, a minha Alta Sacerdotisa, abomina Zetan — disse Salustra, em particular, para Signar. — Ele lhe está roubando os devotos. Ela prega a escuridão e a superstição, a intolerância, o ódio e o medo. Ele prega a luz e o conhecimento, a tolerância, o amor e a coragem. — Ela balançou a cabeça na direção de Zetan, jocosamente. — Temo que estejais perdido, Zetan. As hostes da escuridão estão sempre em maioria. A seguir visitaram Tálius, o expoente da coragem, crueldade, implacabilidade, força e virilidade triunfantes. Também ele era um homem débil e insignificante. A voz dele era suave como a de uma mulher, mas cortava como aço. — Admiramos nos outros aquilo que nos falta — observou Signar num sussurro para a Imperatriz. — Ele confunde virilidade com crueldade — ela replicou em voz baixa. Signar encontrou em Tálius uma grande virtude, um horror quase insano à mediocridade. — Não estamos produzindo grandes homens nesta era, Majestade — disse o filósofo com ar cansado. — Submergimos o individualismo sob uma pesada mediocridade. Nivelamos as montanhas
do pensamento, e ao redor de nós se estende uma imensa planície estéril. A grandeza só floresce num reinado de individualismo; o coletivismo força os grandes a descerem ao nível das massas. Há gerações que pregamos: o maior bem para o maior número. O maior número é o dos animais, contudo forçamos os grandes a rastejar com os animais, e a mediocridade tornou-se o nosso hino nacional. Chamamos de grandes aos medíocres, e de loucos aos grandes. Matamos a beleza e a originalidade radiante, e estamos muito satisfeitos. Se nos déssemos conta do que fizemos, ainda haveria esperança. Mas em vez disso, consideramo-nos virtuosos, e achamos que concretizamos uma finalidade de muito valor. Signar riu. — Em teoria, concordo convosco. Tálius, mas não gostaria que tais doutrinas fossem ensinadas em Althrústri. Tornaria as coisas muito difíceis para nós, reis, sacerdotes e estadistas, exploradores do nosso próximo! — Ao se afastarem, ele disse a Salustra: — Um homem perigoso! Não sei como deixou que ele pregasse a sua doutrina revolucionária bem à sombra do Palácio real. Salustra deu de ombros: — As causas crescem com a perseguição. Desarmei-o e tornei-o inofensivo quando lhe dei liberdade de expressão e um lugar no meu Colégio do Conhecimento Total. — Contudo muita coisa que ele disse é verdade. Aquele filósofo está perto demais da verdade para o meu gosto. Se todos os homens fossem individualmente grandes, não haveria conformidade das massas, e isto acabaria conosco. — E somos tão necessários, nós, Imperadores autoperpetuantes? — perguntou Salustra. Na sala de aula seguinte, Mórti, o alegre cínico, enfrentava a sua turma, um grupo sorridente de rapazes amáveis e educados, de fisionomias um tanto ou quanto dissipadas. Dizia ele para a turma: — Imprimimos as tolices ditas por homens absurdos, e, olhando para a palavra impressa, chamamo-la de Deus. Achamos que com a educação compulsória livramos o homem comum da escuridão do analfabetismo e da ignorância. Achamos que vamos livrá-lo dos seus exploradores astuciosos, e que ele passará a pensar por si mesmo. Mas descobrimos o engano. Ele não sabe pensar. Demos a ele apenas a capacidade de ler os escritos de outros tolos como ele. E uma multiplicação de tolos não é nada melhor do que um tolo só. Assim como zero vezes zero nada acrescenta ao zero. Antigamente, os exploradores só podiam dirigir-se aos analfabetos diretamente, uma tarefa lenta e tediosa. Agora, graças à educação e à palavra impressa, eles conseguem seduzir milhões, quando antes só conseguiam seduzir centenas. Os rapazes, tomando notas, farta e avidamente, sorriram em aprovação às palavras do mestre. Mórti começou a falar da felicidade. — O prazer deve ser o único objetivo da vida. Não importa que um ato seja presumivelmente virtuoso, ele será um vício se infligir a dor a quem o pratica ou o recebe. Um ato só é virtuoso se causar prazer. Temos um falso deus entre os nossos falsos deuses, e o nome dele é Dever. Os nossos
mestres, especialmente os nossos mestres religiosos, ensinaram-nos que o dever, não o prazer, deve ser nosso lema. Eles parecem achar que o dever só pode ser virtuoso se foi desagradável. São um tanto vagos quanto ao que constitui o dever; falam do dever para com o Estado, do dever para com a família, do dever para com os deuses, do dever para com os negócios. Mas deixam de falar do dever para consigo mesmo. E esta é a única virtude. Parecem achar que o dever é sinônimo do autoflagelo e da privação. Confundiram o vício com a virtude. O amor é um prazer. Se alguém nega a si mesmo o amor por causa de um erro matrimonial anterior, é chamado de virtuoso pelas massas, enquanto eu o chamo de malvado. Ele privou-se de uma grande alegria, e não só a si mesmo, mas a outrem. Se ele deseja viver uma noite alegre de vinhos e canções, para aliviar a monotonia de uma existência intolerável, ele é considerado virtuoso somente se se privar deste prazer, em nome do dever. Também ele é malvado; pois, ao privar-se do prazer, torna-se irritadiço e ruim, e descarrega tudo isso sobre a sua infeliz família, e sobre os amigos. "O sacerdote priva-se da alegria e está determinado a conseguir que os outros façam o mesmo. O estadista ambicioso deseja que o dever seja ensinado às massas, para que ele possa melhor explorá-las. Ele é como o lobo que ensinou as ovelhas a serem submissas para poder devorá-las mais facilmente. O pedante passa a vida entre esqueletos e não consegue entender o calor da vida. O homem castrado tem vinagre nas veias, em vez de sangue; considera, portanto, o prazer como coisa pecaminosa. São esses os homens que controlaram a educação, e seduziram de tal forma o homem comum que afogaram a sua razão num mar de baboseiras vazias. — Falais de afogar a razão do homem comum — disse um dos alunos, respeitosamente. — Tálius diz que o homem comum não a tem. Mórti refletiu sobre a pergunta. Seus olhos começaram a agitar-se com a luz da batalha verbal. Finalmente, disse: — Quase que concordo com Tálius. Os órgãos do pensamento do homem comum são muito rudimentares. Ele não sabe pensar; é como um homem que se afoga num vasto oceano, e se agarra a qualquer palha. É preciso dar-lhe uma balsa. Até agora, a balsa que lhe demos tem sido composta de mentiras e hipocrisias e logros piedosos. Mas ele precisa ter uma balsa, e essa balsa (pois ele não consegue pensar direito) deve ser composta de regras e chavões. Quando o seu cérebro débil não consegue pensar, ele pode sempre se apoiar em um chavão. Mas, já que é preciso dar-lhe uma balsa, por que não uma balsa de verdades comparativas, em vez de mentiras? Em vez de dizer a ele: "O meu país... faça o que fizer eu acharei que está certo e é justo", digamos: "O meu país... eu o amarei e respeitarei somente enquanto for digno do meu amor e do meu respeito". Em vez de dizer: "Contentai-vos", digamos: "Sede descontentes, pois somente com o descontentamento a alma se desenvolve." Em vez de dizer: "A castidade é a continência sexual", digamos: "A verdadeira castidade é a do espírito, e os pensamentos dos auto-reprimidos são malvados e mesquinhos." Em vez de: "A caridade é divina e virtuosa", digamos: "A caridade mata a alma de quem a recebe e corrompe aquele que a pratica," Em vez de: "O trabalho é desejável", digamos: "O trabalho é desejável somente quando o seu objetivo é a beleza, ou quando o trabalhador está feliz no seu trabalho." Em vez de: "Os ricos não são felizes", digamos: "A pobreza é sempre uma fonte de completa miséria, e só os ricos podem verdadeiramente expressar-se e ser felizes." Os rostos dos estudantes inflamavam-se com a eloqüência de Mórti.
Signar sussurrou para Salustra: — Este homem é perigoso. Se as suas idéias fossem aceitas universalmente, abalariam as estruturas da sociedade que nos considera deuses. Mas Signar era autoconfiante demais para sentir-se ameaçado. — A vossa filosofia me atrai extremamente, grande Mórti — disse com um sorriso. — Mas, como a maioria dos filósofos, vós acalentais o ideal do homem verdadeiramente feliz. Dizei-me: quem, na vossa opinião, é o mais feliz dos homens? Mórti sorriu tristemente. — O homem verdadeiramente feliz? — repetiu devagar. — Somente um verdadeiro cínico pode apreciar completamente a vida. Ele não tem remorsos, expectativas, desapontamentos. Vive com facilidade, pois nada pode perturbá-lo. Ódio, amor, vento e sol, adversidade e prosperidade, saúde e doença... tudo passa com o tempo, e nada vale um desejo, um arrependimento ou uma tristeza. — Em outras palavras, ele não tem paixão, virilidade, alegria ou ambição — disse Signar, encrespando o lábio. Mórti deu de ombros. — Esta vida é tão transitória que não vale a luta contra suas múltiplas fealdades. Melhor concordar com o destino. O olhar arguto de Signar foi dos olhos inquietos até a boca em movimento. — Vós não sois o verdadeiro cínico, Mórti — decidiu, finalmente, abafando um bocejo. — Vós vos impressionais demais com vossas próprias palavras. Prosseguiram o caminho, indo até um prédio vizinho, uma estrutura baixa, redonda, semelhante a uma pérola, cercada por colunas quadradas de mármore. — E esta, senhor, é a minha escola de artes e ciências. O meu pai fundou-a durante os primeiros anos do seu reinado. Tem sido o meu orgulho e o meu prazer, ser a sua benfeitora. A escola ficava sobre uma elevação, e tinha uma vista completa da cidade num dia desanuviado. Os visitantes imperiais foram conduzidos para o interior fresco da escola, até os laboratórios onde os cientistas pesquisavam os diferentes usos da matéria variável. A Imperatriz disse: — Estes são os sacerdotes de uma verdadeira religião. Ela não estipula nenhuma fé dogmática, mas sim busca a verdade por experiência e provas. Examinando as obras, quem sabe eventualmente poderemos nos defrontar com o Criador?
Signar, atento às vantagens práticas de tais pesquisas, entrou a discutir com um dos cientistas. — Já ultrapassamos a teoria atômica — disse o cientista. — pois descobrimos que o átomo não é um começo, mas, em realidade, é, por si só, um sistema solar diminuto, mas preciso. Tudo gira em torno de um núcleo comum, e descobrimos que o próprio núcleo, sozinho, não passa de um sistema giratório. Quanto mais nos aprofundamos, mais ficamos convencidos de que não há um começo definido, mas que todas as coisas fluem e refluem uma nas outras. Com instrumentos, ele demonstrou as vibrações das moléculas para o Imperador: — Tanto quanto se saiba, não há limite para a energia dessas moléculas. É uma questão de aproveitá-la sem fazer explodir o mundo. Neste momento, a Imperatriz lançou a Signar um olhar penetrante, que ele fingiu não perceber. — Mas por trás de todo esse mecanismo impessoal e aparente deve haver uma força vital — disse Signar. O cientista pareceu refletir. — Sim, percebemos a sua influência, mas ainda não lhe apuramos a natureza. — Seu rosto magro se iluminou de entusiasmo: — Podemos ainda vir a descobrir o que é o Criador, e como Ele trabalha! Essa busca constitui a nossa religião, e o universo é a nossa Igreja. Passaram para outro laboratório, onde diversos homens examinavam gravemente lentes delicadas, sob as quais moviam transparências. — Aqui, senhor, estão os nossos verdadeiros soldados, os nossos verdadeiros generais — disse Salustra. — Um desses cavalheiros atuou de modo decisivo para a erradicação de uma determinada doença que devastou cidades inteiras. Ele descobriu o organismo causador da doença e criou um medicamento específico para combatê-lo. Centenas de milhares de vidas teriam sido destruídas se não fosse sua descoberta. E que foi que o povo agradecido lhe ofereceu? Instei junto ao meu povo para dar a esse herói uma recompensa substancial. Eles reuniram uma quantia modesta e ofertaram-lhe uma medalha de ouro. Lembro-me bem do dia! Uma multidão pequena se havia reunido para a cerimônia, e o meu herói, nervoso mas satisfeito, escutava constrangido os discursos elogiosos. Depois deles, ele se levantou e, com voz trêmula, expressou os seus agradecimentos e anunciou que devotaria a vida a outras descobertas benéficas. Bem no meio do seu modesto discurso, ouviu-se à distância o ruído de trombetas, e o povo descobriu excitado que elas anunciavam a chegada a Lamora de um famoso pugilista. Num piscar de olhos a multidão que cercava o meu herói se dispersou e, como um só todo, foi receber o boxeador. O cientista terminou apressadamente o seu discurso, pois só ficara um punhado de pessoas para ouvi-lo! É este o destino daqueles que servem à humanidade! Signar riu. — Basta ter as costas fortes, para ser coroado de flores.
A visita seguinte foi ao departamento de biologia. — A minha escola inteira é um anátema para o clero de Atlântida — disse Salustra. — Mas este departamento provoca a maior parte da ira sagrada. Aqui, os meus amados clientes ousaram afirmar que o homem não nasceu com todos os seus dons dos deuses eternos, num ato especial de criação. Ousaram declarar, no seu descaramento heróico, que o homem evoluiu gradativa, dolorosa e tortuosamente das espécies inferiores, e que ele é apenas um graveto na grande árvore da vida. Segundo os meus sacerdotes, ao afirmarem isso eles atacaram a santidade da origem humana e rebaixaram a dignidade do homem. É preciso dar crédito a esse pessoal santo... eles gostam de drama. E muito mais dramático imaginar que o homem saltou magnificamente do sexo dos deuses do que aceitar que ele se tenha arrastado dolorosa, laboriosa e cegamente ladeira acima, nos caminhos pedregosos da evolução, em direção à luz da perfeição. Assim, fica demonstrado mais uma vez, que a religião é outra expressão do ego impressionante e insolente do homem. Conversaram muito com um famoso biólogo, um homem de rosto magro e olhar ansioso. Ele disse: — Abandonamos a teoria das características adquiridas subitamente. O parecer de Vossa Majestade de que só as características intrínsecas são herdadas mostrou-se correto. Isto a ajudará no propósito de eliminar os biologicamente incapazes de se reproduzirem. Salustra olhou para Signar com um brilho malicioso nos olhos. — Que blasfêmia! — exclamou. — Meu Caro Morínus, precisamos ter cuidado. Bem sabe que o clero afirmou que não podemos impor restrição alguma aos nascimentos, não importa quão inferiores sejam os genitores em potencial. Aqueles que pagam os impostos devem continuar a sofrer pelos usufruidores dos impostos. Signar estava se divertindo à grande. Perguntou a Morínus: — Estais seguro, sem sombra de dúvida, de que o homem evoluiu do macaco? — Por mais que eu deseje não insultar o macaco, devo confessar que estou seguro. A visita continuou. Subiram um lance de largos degraus de mármore até o grande observatório no telhado. Aí havia astrônomos com instrumentos pesados, absortos em penetrar a atmosfera espessa para poderem continuar a observar os movimentos celestiais. Cercaram Salustra entusiasticamente e a levaram até um imenso mapa celeste, que estava sobre uma mesa. — Pouco antes de cair esta cortina de névoa havíamos descoberto um novo planeta, Majestade! — exclamou o astrônomo real. — Talvez se lembre de que a informei que os planetas conhecidos apresentavam certa irregularidade nas suas órbitas, até então inexplicavelmente. Quando deveriam ter aparecido em determinada posição, descobria-se que se retardavam de modo alarmante. Partimos, portanto, da hipótese de que havia um planeta ainda desconhecido, próximo ao sol, que estava exercendo influência sobre os demais planetas. E agora nós o descobrimos, o décimo planeta, a que daremos o nome de Salustra.
Salustra lançou um olhar divertido a Signar. — Isto é que é fama de verdade! — exclamou. — A minha história será escrita nos céus. — Depois, virou-se para o astrônomo com ar sério. — Que pensais desta maldita neblina? Ele apertou os lábios e fez um ar de sabedoria. — Pode bem ser causada pela ação das manchas solares. — Tudo são as manchas solares. E quando sentiremos o sol, em vez das suas manchas? — É só uma questão de tempo, Majestade. Ela fez uma careta: — Até lá todos nós seremos manchas. Ela mostrou a Signar uma estranha invenção no telhado do departamento de física. Ele ficou surpreso ao verificar que estava guardada por soldados. Numa câmara de vidro, fria e despojada, estava um imenso disco de cristal, que girava horizontalmente sobre um eixo dourado. Tinha bem uns três metros e meio de diâmetro e girava tão rapidamente, que os olhos dos presentes não conseguiam acompanhar seu movimento. Embora fosse de um cristal claro e translúcido, soltava faíscas de uma luz radiante. Signar percebeu que a superfície era enfeitada com listras carmesins e douradas, azuis e verdes. As fitas estreitas de cor apareciam e desapareciam com tanta rapidez que era impossível perceber mais que uma leve sugestão das mesmas. À medida que o disco girava, ele emitia um zumbido baixo e murmurante. Era um objeto fascinante, com seus diminutos rios de cores radiosas eternamente faiscando e desaparecendo na sua superfície brilhante. Ao lado dele, atento e alerta, sentava-se um rapaz a uma pequena mesa. Ele observava os clarões radiantes com ar resignado: — As mensagens são transmitidas — disse ele — mas não há resposta. É como se elas fossem consumidas pela atmosfera. Salustra explicou ao intrigado Imperador. — Esta, senhor, é uma invenção muito recente. Em todas as grandes cidades de Atlântida existe um dispositivo semelhante. Por meio de um método que conheço vagamente, as mensagens verbais podem deixar Lamora e ser instantaneamente transformadas em palavras impressas e imagens na outra estação receptora. — Ela meneou a cabeça. — Mas com esta neblina infernal nada funciona. Então é por isso que enviaram mensageiros às legiões e à esquadra dela, pensou Signar. — Não temos nada parecido em Althrústri, senhora. Todos os nossos meios de enviar mensagens ainda são primitivos. Enquanto prosseguiam caminho, o entusiasmo de Salustra parecia aumentar:
— Meu pai falava freqüentemente da decadência inevitável das civilizações. Eu ainda espero reverter o processo tradicional de luta, crescimento, prosperidade, luxo e declínio. Saíram para uma colunata de onde se avistava a cidade. A escola de artes e ciências proporcionava uma vista majestosa, por entre as brechas na neblina. Mas Signar não tinha olhos para a cidade. Ele estava fascinado com a penugem na nuca de Salustra, e com o modo pelo qual o seu colo fluía para o mármore branco dos ombros. Parecendo não perceber o olhar dele, a Imperatriz estendeu um braço lânguido na direção da cidade embaixo: — Olhe para eles, senhor. Na confusão das ruas, a pessoa se acha importante. Mas olhando daqui de cima, a gente acaba se perguntando o motivo de toda esta movimentação febril. Há muito tempo Signar decidira que este tipo de conversa não levava a nada, mas, indulgentemente, acompanhou Salustra. Disse, num rasgo de eloqüência: — Buscamos a Deus na vasta eclíptica dos planetas em movimento, e encontramos apenas átomos de vida torturada flutuando no espaço sem fim. Perseguimos a vida desde a mais ínfima criatura até o mais estupendo dos sóis, numa busca apaixonada do onde e porquê, e descobrimos que apenas abrimos mais uma porta no imenso corredor dos mistérios. Diante do grande enigma da vida os nossos filósofos são símios tartamudeantes, os nossos cientistas são bebês chorões, os nossos sacerdotes são resmungões senis. Como já acontecera, antes, Salustra ficou impressionada pela profundidade inesperada que ele demonstrava. — Mórti diz que a vida é uma idéia individual. Cada homem vê um universo que nenhum outro homem enxerga. É como se um grupo cercasse uma estátua sob as mais diferentes perspectivas. Que absurdo, diz Mórti, que cada um fique discutindo que somente do seu ângulo se vê a estátua verdadeira! Signar franziu o cenho, pensativo. — Se perseguirmos a filosofia de Mórti até o fim, acharemos que não existe um universo real, sólido, objetivo. Ele é apenas a idéia individual. Indo mais adiante, pode-se afirmar que o universo não existe, que é pura ilusão, e a vida simples fantasia. — Mórti diria subjetiva. Ele diria que assim como a existência do homem é subjetiva, também sua morte é subjetiva. Cada homem, olhando para um homem morto, pode ter a sua própria idéia daquilo em que consiste a morte; alguém pode até negar que o homem esteja morto. Assim, também, fica demonstrado que a morte é subjetiva. Signar riu com desprezo. — Que deixem o corpo ao sol por três dias, e verão como a morte é subjetiva. Os olhos de Salustra brilharam de prazer:
— Quanto tempo esperei por um homem com quem pudesse conversar e encontrar um reflexo dos meus próprios pensamentos! Ela falara impulsivamente, como que pensando em voz alta. Só depois que as palavras saíram da sua boca foi que se deu conta do que dissera. Ficou constrangida, e enrubesceu. Os lábios de Signar tremeram num sorriso. — Obrigado, senhora — disse, com uma mesura. — Vossa Majestade muito me honra.
24
Por entre os ciprestes, a casa de Júpia, em forma de A, brilhava como um crânio nu. As portas de vidro abriram-se à chegada deles, mostrando um interior árido. Aí não havia flores, nem estátuas de mármore ou ouro. Somente um silêncio tão profundo que parecia vivo. Foram recebidos à porta por dois eunucos, vestidos de negro. — São surdos e mudos — disse a Imperatriz. — Júpia não deseja que as suas conversas particulares cheguem aos ouvidos do mundo exterior. Aos olhos atentos de Signar pareceu que a mais leve sombra de um sorriso passou pelo rosto de pelo menos um dos eunucos às palavras da Imperatriz. Por um caminho estreito seguiram mais dois eunucos que pareciam ter surgido da penumbra. Os passos deles ecoavam no silêncio como os passos de intrusos numa tumba. Os eunucos afastaram uma pesada cortina, e Salustra ordenou aos seus cortesãos que esperassem. Entrou na câmara para além das cortinas, seguida apenas por um inquieto Signar. No centro do aposento, iluminado por pálidas luzes, ficava um grande trono negro; quase engolida pela sua imensidão via-se a figura cadavérica da Alta Sacerdotisa. Ao lado dela estava um globo de cristal de um carmesim reluzente, que brilhava com um fogo interior, como um rubi, e lançava raios multicores no aposento. Quando o par real entrou, a Alta Sacerdotisa levantou-se, tocou o peito com uma mão magérrima e inclinou a cabeça. — Estamos atrasados, Júpia — disse Salustra descuidadamente, entrando pelo aposento adentro com o seu passo vagaroso e lânguido. — E, estão — retrucou Júpia de modo desagradável. — Mas a honra desta visita compensa qualquer espera. Os olhos de Júpia demoraram-se um pouco em Signar, depois voltaram a fitar Salustra. A Imperatriz, lançando um olhar para Signar, disse com voz sardônica. — Mencionei ao Imperador a vossa capacidade inconteste em predizer o futuro, e ele expressou o desejo de que leias o futuro dele. Signar não havia expressado tal desejo, mas achou a história divertida. Júpia percebeu a surpresa dele, e ruborizou-se. Disse com voz solene. — O futuro não é nenhum mistério para quem conhece o passado e o presente. O futuro nasce do ar estéril, como coisa única, nova, informe; ele é uma continuação, um tecido feito dos diversos
fios do passado. — Contudo pode surgir uma nova ordem, um novo mundo, um novo arranjo. — A Imperatriz continuou: — E tudo isso pode não ter absolutamente nada a ver com o passado. Os deuses podem criar um novo sistema, uma nova galáxia de estrelas, que nada tenham em comum com o presente ou o passado. E daí, então? Uma expressão quase de medo estampou-se nas feições de Júpia. Ela olhou para o cristal ao seu lado. Murmurou. — Quem sabe? Ultimamente tenho visto coisas estranhas no meu cristal, tenho visto o mundo se dissolver em névoa e água, e deixar de existir. — Ela estendeu a mão muito magra e puxou o cristal para perto de si, e concentrou-se totalmente, com os olhos fixos no globo reluzente. Salustra olhou de novo para Signar, e seus olhos refletiam o seu divertimento. Júpia ergueu os olhos nesse momento, e franziu a testa com raiva. Devassa! pensou. Signar, irritado pelos modos de Júpia, pôs-se de pé abruptamente. Ao fazê-lo, a sua sombra caiu sobre o globo de cristal. Júpia soltou uma exclamação viva. Debruçou-se sobre o cristal e havia algo na expressão dela que impediu Salustra de fazer algum comentário jocoso. — Majestade! — murmurou a Alta Sacerdotisa com voz trêmula — olhe aqui dentro e veja o que se encontra! Signar inclinou-se, e Salustra levantou-se sorridente, acercou-se do Imperador e olhou juntamente com ele para dentro do globo. Durante um momento nada se viu, depois pareceu abrir-se um abismo escuro. Das suas profundezas surgiu uma mão usando um anel. Enquanto espiavam de olhos arregalados, eles viram que a mão segurava uma taça de vinho tinto, na qual se via uma serpente enroscada. A imagem nebulosa permaneceu apenas por um momento, e depois sumiu. Antes disso, porém, o anel que estava na pequena mão que segurava o cálice ficou bem visível: era o anel com o Sinete Real de Lazar, que a Imperatriz usava constantemente. — Vossa Majestade tem inimigos — disse a Sacerdotisa com voz soturna para o Imperador. — Cuidado com o veneno! Signar examinou o cristal com descrença aparente, sorrindo para Salustra, que conseguiu disfarçar a sua raiva. Bruxa! pensou. Ela adivinhou os meus pensamentos e utilizou algum truque para criar aquela imagem. Não há dúvida de que ela preparou isto tudo antecipadamente. Colocou a mão, descuidadamente, sobre o cristal. — E agora, Júpia — disse com voz áspera — dizei-me o que vedes para mim. Em silêncio Júpia apontou para o cristal, e Salustra e Signar debruçaram-se sobre ele. Durante um momento a imagem permaneceu nebulosa, depois eles viram, em miniatura, um peito nu de
mulher, trespassado por uma espada que tremia. Salustra retesou-se, soltando uma exclamação viva, e ao fazê-lo, a luz sumiu, deixando o globo pálido e benigno outra vez. Signar, ainda incrédulo, não pôde deixar de sentir um arrepio súbito. — Absurdo! — exclamou. — Quem faria mal ã Imperatriz? Júpia não disse nada, mas sorriu sombriamente. Olhou para Signar como se compartilhasse com ele um segredo. Salustra olhou para Signar para avaliar a reação dele. — Morrer pela espada é fácil, senhor - disse Salustra, esforçando-se para parecer calma. — É uma morte rápida. Ela acercou-se outra vez do globo e fitou-o atentamente. Naquele rapidíssimo momento ela reconhecera a espada de Signar. Colocou de novo a mão sobre a superfície macia do cristal e, de propósito ou por acidente, tropeçou, alijando o globo da sua base. Ele caiu com estrondo, e depois de bater no chão de mármore, estilhaçou-se em centenas de fragmentos. Com um berro agudo, Júpia pôs-se de pé num salto. Signar recuou, assustado. Ele olhou para Salustra. Seu corpo oscilava um pouco, e ele correu para o lado dela, amparando-a nos braços. A Sacerdotisa enraivecida fez um gesto como se fosse bater em Salustra. Mas, fitando os olhos de Signar, abaixou depressa a mão e forçou um sorriso. — Não é nada, Majestade — disse untuosa. — Foi uma pena que o cristal se tivesse quebrado. Era antiqüíssimo. Mas foi um acidente, tenho certeza. Salustra olhou para os fragmentos e estremeceu de leve. — Aceitai as minhas desculpas, Júpia — disse friamente. Tirou um broche reluzente do peito e jogou-o aos pés de Júpia. — Comprai outro cristal, Júpia, e tomai cuidado para que não seja tão imaginoso quanto este. Tais vôos de imaginação podem ser desastrosos, e não somente para os espectadores. Júpia estava imóvel e sem expressão, como uma estátua. Não fez menção de pegar a jóia do chão. Ao chegarem à porta, olharam para trás. A Alta Sacerdotisa estava com uma das mãos levantada, como que lançando uma maldição.
25
A visita a Júpia havia deprimido o par real. Salustra procurou alegrar o ambiente conversando. — Aquela megera velha é uma feiticeira. Ela colocou no cristal o que havia na sua cabeça. É uma forma de transferência de pensamento que será lugar-comum algum dia, quando o homem tiver ultrapassado as máquinas artificiais que hoje em dia podem fazer o mesmo, como aquele disco que lhe mostrei recentemente. Signar, que normalmente não era impressionável, achou difícil apagar da cabeça as profecias de Júpia. Disse: — Não gostei do pensamento daquela bruxa desgraçada de enfiarem uma espada no seu peito. É lindo demais para servir de depósito para o aço frio. — E o que pensa do seu próprio envenenamento? Ele deu de ombros, indiferente. — Não posso combater meu destino. — Não seria possível que se desse um empurrãozinho ao destino? — Somente se for a intenção dos deuses. — Eu não sou tão fatalista como o Imperador - disse ela com o cenho franzido. — Senão, não haveria propósito em transformar qualquer pensamento em ação decidida. — Talvez — ele disse reflexivamente — mas, senhora, quantas coisas acontecem do jeito que a gente as visualiza, quando transformamos o pensamento em ação? Ela olhou para ele, sobressaltada. Será que ele sabia quão perto Júpia poderia ter estado da realidade? O jeito dele tranqüilizou-a imediatamente. Pois ele dizia, de modo semizombeteiro: — Vossa Majestade promete-me um vislumbre do Templo Belo e da sua câmara de rejuvenescimento. Esta altercação com a velha harpia mudou sua intenção, ou esse ainda é o meu destino? Ela também melhorou de ânimo. — Normalmente, é Júpia a zeladora da câmara. Mas eu serei a única lei neste caso, como aliás, parece estar acontecendo ultimamente. — Ele lançou-lhe um olhar interrogativo. — A câmara
funciona mais ou menos como um cofre de banco. Júpia gira o indicador que abre a porta até um lugar determinado, Máhius torce e gira o botão até o segundo ponto, e depois a Imperatriz faz o terceiro movimento, o conclusivo. — Ela riu. — Mas Lazar, meu pai, não era pessoa de confiar o seu bem-estar aos subalternos, por isso os seus cientistas instalaram secretamente um sistema de entrada alternativo, que ele controlava sozinho. — Ela tocou na jóia sempre presente ao redor do seu pescoço. — E com este colar, que é por si só um estimulante, ele me transferiu este segredo, juntamente com os encargos do seu império. Foi a vez de Signar achar graça. — Isto tudo está na sua cabeça? Ela assentiu. — Com muitas outras informações. — E usaria esta câmara para si mesma? Caminhavam em direção a um prédio relativamente pequeno, na base do Monte Atla, que estava a cavaleiro tanto do Colégio do Conhecimento Total, quanto do próprio Palácio, mais adiante. — Não tenho medo de envelhecer. Não é o meu destino. A voz dele ainda era brincalhona. — Quem sabe envelheceremos juntos. Ela replicou, no mesmo tom: — Ou quem sabe morreremos juntos, como Júpia predisse. A comitiva deles ficava a alguma distância do casal, discretamente. Pararam finalmente diante de uma enorme porta de mármore sólido. Ela disse: — Esta porta tem três metros e meio de espessura e é impossível abri-la, a não ser que se conheça a combinação. Ele notou uma série de botões na rocha. Perguntou: — E estes? — Briquedinhos para Júpia e Máhius. Ela colocou o rosto a uns 15 centímetros da porta, que mais parecia uma parede, e falou vivamente numa língua que era totalmente desconhecida para Signar. De repente a parede começou a ranger, e a terra sob os pés deles a tremer. Ante os olhos
espantados de Signar, uma abertura começou a aparecer no topo da porta, aumentando gradativamente à medida que a parede de mármore continuava sua descida vagarosa até um buraco no chão. Dentro de cerca de um minuto, o topo da porta estava ao nível do chão, e eles puderam cruzar o portal. Ele a fitou, assombrado. — Embora estivesse ao seu lado, não entendi como o conseguiu. Ela levou a mão aos lábios. — Certas palavras, que agora são arcaicas, pronunciadas a certo nível de decibéis, determinam uma onda vibratória que sintoniza precisamente na freqüência capaz de abrir e fechar a porta. Não há nenhuma mágica nisso, apenas uma compreensão fundamental do poder da onda sonora, quando sincronizada de modo adequado. Felizmente a neblina não consegue influir nisso. — A Atlântida - ele murmurou — tem muito a mostrar aos seus vizinhos do norte. — E o Imperador tem muito a nos mostrar. Deixaram a comitiva a certa distância, fora da caverna, e seguiram por um grande corredor. A porta fechou-se quase instantaneamente às suas costas. Havia um olhar intrigado no rosto dele. — Não seria possível arrebentar esta porta com explosivos poderosos, que aqui existem à farta, ou com os seus raios solares? Ela gostou da pergunta dele. — O meu pai levou tudo isso em consideração. Conquanto uma onda sonora permita o acesso à câmara, qualquer vibração de natureza violenta o suficiente para perfurar o mármore faria a montanha desabar sobre a câmara. — Ela sorriu, maliciosa. — E com a câmara destruída ninguém poderia ser rejuvenescido, nem mesmo o mais poderoso conquistador, nem mesmo o poderoso Signar. Ele inclinou a cabeça devagar. — Que pena que não conheci o grande leão Lazar. Eu teria aprendido muito com ele, como agora estou aprendendo com seu filhote. Desceram um corredor comprido e escuro, por cerca de 200 metros, quando de repente ela se virou, e entraram num quarto calmamente iluminado, com um brilho rosado que parecia atingir cada canto do aposento.
Ele olhou ao redor, curioso. O quarto não tinha mais do que seis metros quadrados, e dava para uma série de quartos menores, nos quais mal se podia ver, pela porta entreaberta, instalações sanitárias e dormitórios. — O iniciado permanece nesta câmara por 24 horas — explicou Salustra — expondo-se aos raios cristalinos que penetram em cada uma das células do seu corpo, do cérebro ao dedinho do pé, regenerando o corpo por meio da sua ação revitalizadora sobre as mínimas moléculas que constituem cada célula. Ele olhou ao redor, curiosamente. Perguntou: — E de onde emana este raio vermelho, quando, no momento, nenhum dos vossos sistemas de energia fornece luz ou força? Ela sentou-se numa cadeira confortável, recostada até o pescoço em almofadas. — Meu pai sentou-se nesta cadeira duas vezes. Não teria prolongado mais a sua vida se tivesse sentado mais uma vez, pois as células só podem regenerar-se duas vezes. Quando se passa dos 200 anos não existe mais matéria fibrosa ou colagenosa nos tecidos conjuntivos para oferecer uma base para a renovação celular. Ele repetiu a pergunta. - A fonte desses raios maravilhosos, senhora? Ela olhou para ele, surpresa. — Não é óbvio? Olhe para as paredes, o teto, o próprio chão. É tudo um rubi gigantesco cristalizado de montanhas de pedras quando o primeiro divisor de átomos foi detonado, na antigüidade. Esta substância vítrea que foi formada pelo grande calor absorveu, com o tempo, todos os raios nucleares benéficos emitidos quando se desencadeou a força destrutiva. Agora, é uma fonte constante de raios fulgurantes e renovadores da vida. Ele estava encantado com todo este processo que superava qualquer coisa que já ouvira antes. — Como descobriram que esses raios tinham esse efeito? — Por pura sorte, como com quase todas as invenções importantes. — Ela fez uma pequena pausa. — Quando os meus ancestrais detonaram o primeiro divisor de átomos na sua luta contra os dinossauros, houve uma grande área de destruição em todas as direções, acabando em alguns casos até com áreas povoadas. Eventualmente, as pessoas começaram, aos poucos, a retomar aos lugares familiares e a reconstruir seus lares. Percebeu-se, após certo tempo, que essas pessoas viviam mais e com aparência mais jovem que quaisquer outras no país. — E isso se estendia por muitas áreas? — Não, aconteceu numa única área, onde uma combinação de fatores anulou a radiação
daninha restante da explosão e transformou-a numa coisa boa, como compreensão, como a natureza faz com freqüência, quando o homem a deixa em paz. Signar nunca estivera tão fascinado. — E a tal área? Onde se localiza? Ela sorriu. — Vossa Majestade está cercado por ela. Deste forno de destruição vaporizada surgiu o gigantesco cristal vermelho que vê e onde está pisando. E neste local memorável foi erigida a capital original de Atlântida. E isto... — ela indicou o aposento em que estavam — ... é o núcleo de tudo o que resta da antiga cidade. Os olhos dele seguiram os dela. — Que aconteceu à primeira capital? Ela deu de ombros. — O tempo cuida de tudo. Já viu o nosso vulcão, o esfaimado Monte Atla, que cospe furioso de vez em quando. Já arrasou a cidade de Lamora três vezes. — Então, por que continuam a construir no mesmo local? Ela riu. — Somos uma raça teimosa, Majestade. Ele ignorou o desafio que havia na voz dela, e seus olhos percorreram a câmara, curiosamente. — Presumo que estejamos sendo rejuvenescidos, senhora, enquanto estamos aqui conversando. — De certo modo, mas na verdade, leva um mínimo de 12 horas para as células reagirem, e 24 horas para o tratamento completo fazer efeito. Ao perceber os bancos, as cadeiras e espreguiçadeiras vazias do aposento, ele se deu conta, vagamente, de que havia algo faltando. — Não vejo serventes, nem escravos de qualquer tipo. Ela achou graça das observações práticas dele. — Ninguém pode absorver com segurança mais do que 30 ou 36 horas seguidas desta radiação. Mais do que isso, e as células super-reagem, para além do ponto que se deseja, e ficam sujeitas a tumores cancerígenos, os quais causam à vítima uma morte horrível.
Ele examinou francamente um reloginho que usava numa corrente ao redor do pescoço. — Já estamos aqui nesta câmara há 15 minutos. Ela deu um meio sorriso. — Sua vista já parece mais atilada, o seu passo mais leve? — Brinca, mas já me sinto revigorado. — É o poder da sugestão. Pois não se nota nenhuma mudança no tônus do corpo, nenhum fim das rugas ou da pele supérflua senão semanas após o tratamento na câmara. Os raios trabalham devagar, mas concretamente. Signar fitou a imensa parede de cristal vermelho fulgurante. Ela acompanhou o olhar dele. — Gostaria de passar as próximas 20 horas nesta câmara, Majestade? Poderia ser meu convidado. — Muito me honra, senhora. — É na verdade uma honra. Pois seria apenas a terceira pessoa nos últimos 70 anos a desfrutar dela. O meu pai e o meu ministro Máhius são os recebedores exclusivos deste grande prêmio. Júpia me odeia porque não dou o consentimento para o rejuvenescimento dela, embora ela o haja solicitado várias vezes. — Disse com desprezo: — A fealdade dela é tanta que temo que seu rosto rache o cristal. Signar, muito interessado, ignorou o comentário seco. — Por que és tão avara com isso, quando a energia flui livremente e quase todos aspiram a livrar-se das feias marcas da idade? Salustra meneou a cabeça, vagarosamente. — Meu pai dizia que nada é apreciado se não for obtido a duras penas. Nós oferecemos o rejuvenescimento apenas àqueles que os sacerdotes, representados por Júpia, a Assembléia, representada por Máhius, e a Imperatriz, representando o povo, consideram indispensáveis para o bem-estar de Atlântida. — Os lábios dela encresparam-se de leve. — Nunca consigo concordar com os outros. Ele ainda se mostrava curioso. — E por que Júpia não seria uma candidata adequada? A Imperatriz riu com desdém.
— Eu a considero tudo, menos indispensável. Na realidade, Lamora estaria muito melhor se ela não estivesse presente. Ela é a mais forte das influências que promulgam a velha superstição que rouba ao meu povo sua inteligência, sua vontade e o seu dinheiro. O rosto dele refletia a sua confusão. — Então por que oferecer-me este prêmio, a mim, a quem, na melhor das hipóteses, deve considerar um intruso? — Das suas veias, senhor, nascerá a descendência do grande Lazar. Como o pai de uma nova dinastia, na certa merece tudo aquilo que a Atlântida pode oferecer. Ele lançou-lhe um olhar penetrante. — Deve estar brincando, senhora, para recompensar um ato de reprodução com o rejuvenescimento. Isso é uma estranha ironia. Ela dirigiu-se para a porta da caverna por onde haviam entrado. — Que diz Vossa Majestade? Ele a encarou, com firmeza. — Achas que estou precisando rejuvenescer? Os olhos dela brilharam, maliciosos. — De jeito nenhum. Mas em 15, 20, 25 anos, até mesmo a sua força geratriz pode cansar-se. — Mesmo assim, eu não quereria rejuvenescer. Os meus ossos, a minha carne, os meus olhos, orelhas, nariz e paladar poderão ficar mais sensíveis, os meus órgãos reprodutores poderão ficar como os de um par de touros, mas e quanto à minha mente, quanto às lembranças de males feitos e recebidos, meus pensamentos de remorso e alegria? Até mesmo a felicidade torna-se um fardo quando a pessoa se recorda de todo o capítulo e versículos ligados a ela. — Mas pense no que poderia fazer, afinal, com o peso de 60 anos, atrás de si, e uma mão nova e poderosa para dar força ao que sua mente aprendeu. A voz dele ficou solene. — Digo isto somente a Vossa Majestade. Mas, com as decisões que preciso tomar, e os adversários que preciso enfrentar, às vezes os negócios de estado tornam-se pesados para a minha cabeça cansada. Bem sabe, senhora, como pode ser pesada uma coroa! Ela refreou um impulso de estender a mão e tocar o rosto áspero que de repente parecia vincado de preocupação.
Eles pararam em frente à porta, e ela repetiu a ordem que antes pareceu a ele simples algaravia. Como anteriormente, uma parte da parede de mármore desceu para dentro de uma abertura no chão e eles saíram para o ar livre. Quase que em uníssono eles inspiraram profundamente. Mas já na inspiração seguinte ela estremeceu, com a mente ainda voltada para as profecias de Júpia. — Gostaria de dar a Júpia mais do que ela deseja da câmara. Aqueles seus olhos de peixe morto não veriam mais tragédias naquele seu cristal maldito. E ele meneou a cabeça sorridente. — Espero que Vossa Majestade saiba amar com a mesma intensidade com que sabe odiar. Ela suspirou. — Um dos meus mais fervorosos desejos era o de poder tirar os grilhões da religião dos membros de Atlântida. Sonhei poder construir um estado baseado nos instintos naturais do homem, tornando-o feliz. E o que, diga-me, é mais digno de um governante do que tornar o seu povo feliz? Mas, a cada curva do caminho, fui obstada pelo clero, pelos piedosos, pelos astutos, pelos justos, pelos pervertidos. Antigamente, o povo era obrigado a cumprir os três grandes feriados religiosos. Uma das primeiras coisas que fiz foi rescindir essa obrigação, do povo, enquanto tornava meus inimigos os seus captores espirituais. Eles haviam parado à sombra dos pórticos do Palácio. Signar olhou para a Imperatriz com uma nova compaixão. — Está preocupada com a alma de Atlântida. Quando uma nação se preocupa com a sua alma, é porque já está decadente. Assim como um homem jovem e ardente se identifica só com o presente vital, creio eu que também uma nação jovem e ardente se identifica só com o presente vital. Somente os velhos e fracos se preocupam com a alma. Salustra sorriu. — Atlântida pode ser velha — disse — mas não é fraca, como aprenderão os seus inimigos. O rosto de Signar ficou inexpressivo e ele calmamente mudou de assunto. — Vossa Majestade não se esqueceu de que estou dando uma festinha tranqüila, em sua homenagem, esta noite, a bordo da minha nau-capitânea, o Póstia? — Não, como poderia esquecer? — replicou a Imperatriz, igualmente controlada. Eles se despediram com um sorriso e um abraço que foi dado e recebido com constrangimento. Salustra foi para os seus aposentos. Mal entrou no quarto mandou chamar Máhius.
O ministro encontrou-a caminhando agitadamente para lá e para cá, na colunata. Ela foi logo perguntando, sem preâmbulos: — Quando poderemos agir? O velho hesitou. — Está resolvida de que este homem deve morrer, Majestade? — Sim, ele deve morrer. — Não há outro meio? — perguntou com tristeza o ministro. — Não gosto de traição. — Não há outro meio! — gritou a Imperatriz. — Mesmo que houvesse, eu não o pouparia! Máhius fitou-a, totalmente surpreendido. — E por que não? Ela não respondeu. Durante longo tempo o velho olhou para o rosto dela, depois, muito devagar, a compreensão estampou-se no rosto dele, como uma sombra. Caiu de joelhos e encostou o rosto nas vestes dela. Exclamou: — Pobre Imperatriz!
26
O mar trazia um murmúrio como o suspiro de uma mulher mal-amada, um murmúrio inquieto e desesperado. A não ser por isso, um silêncio agourento enchia os ares. Salustra inspirou profundamente o ar noturno, franzindo o cenho ao sentir um cheiro novo, cortante. O vento fresco erguia e agitava-lhe os cabelos. Ela sentia-se livre e sem peias, como apenas se sentira em criança, e poucas vezes. E depois, como uma punhalada, veio-lhe à cabeça a lembrança de Signar, e a certeza de que ambos não podiam sobreviver. Num aposento próximo, as escravas cantavam melancolicamente. Ela escutava mal a letra da canção: Tu me perguntas por que choro, donzela. Escuta, que te vou contar: Choro por um cadáver há pouco sepultado, Pela luz dos olhos desaparecidos. Pelos lábios que amei e que já não podem amar: Por tudo isso eu gemo e suspiro. Poesia imbecil, pensou Salustra. Contudo, a oportunidade singular da canção fê-la arrepiar-se. Imersa nos seus pensamentos, tomou um susto ao sentir o toque de uma mão sobre seu ombro. Virou-se rapidamente e viu um rosto conhecido. Em silêncio, Erato ajoelhou-se e beijou-lhe as mãos. Ela o examinou com olhos indiferentes. Ele ficou de pé, após um momento de hesitação, beijou-lhe a boca, retesando-se ao sentir que ela não correspondia, o que era totalmente inesperado. — Que tem, Salustra? — ele sussurrou. Ela sorria de modo irônico. — Será que uma Imperatriz não pode sentir-se indisposta, de vez em quando, ou essa indulgência é privilégio apenas dos inferiores? Ele tocou a face fria dela com dedos incertos. — Nenhuma escuridão é tão grande que o alvorecer não venha iluminá-la, de novo — disse ele com muito carinho.
Ela perguntou sardonicamente: — Isto é para passar por poesia? Ele olhou para ela, confuso. — Está cansada, Salustra. Torno a dizer-lhe, o futuro lhe trará muitos anos de felicidade. — Talvez na morte. Pois na morte existe a paz, grande e desconhecida. — Os braços dela soltaram-se, ao lado do corpo, e sua cabeça derreou-se. — Estou cansada — disse em tom monótono. — Gostaria de morrer agora. Erato sorriu. — Estás deprimida, querida — disse carinhosamente. — Amanhã se sentirá melhor. — Amanhã ainda serei eu mesma. É estranho — ela acrescentou, como se falasse consigo mesma — que a armadilha que se arma para outrem, com freqüência serve para prender a própria pessoa. Que eu, que nunca era a que amava, seja finalmente a que não é amada. Erato ficou todo confuso, compreensivelmente. — Não, mas eu a amo, Salustra! - exclamou. Tomou-a nos braços e beijou-a, apaixonadamente. Ela fechou os olhos por um doce momento, fazendo de conta que ele era outro homem. De repente, com um grito de angústia, ela o afastou de si. Ele parecia que tinha levado um tiro. — Vossa Majestade não me ama! — exclamou com um soluço. Salustra fitou-o, com uma ponta de tristeza e um sorriso retorcido nos lábios. Perguntou, na sua voz costumeira: — Tu me farás um grande favor, hoje à noite? — Basta que o peças, Salustra. — Ele se havia controlado com presteza. — Não compareças às festividades no navio de Signar. — Ele ficou com ar de surpresa. — É o meu desejo, Erato. Ele fez uma mesura. — Que assim seja. Ainda abalado, ele partiu dentro de poucos momentos. Pela primeira vez, não a beijou ao despedir-se.
Erato voltou para casa, cheio dos pensamentos mais sombrios. O seu passo era vagaroso e pesado, e seu coração estava profundamente deprimido. Jogou-se sobre um divã de onde se avistava o mar. Mexendo-se, inquieto, ficou pensando, com amargura. Ele não dera importância às histórias que falavam dos caprichos da Imperatriz, achando, com o egoísmo de amante, que fora ele, aquele que finalmente conseguira tocar o coração inconstante da mulher. E agora ela já estava se cansando dele. Sentou-se, ereto, numa agonia de ciúme insano. — Salustra — gritou, angustiado. Bateu na testa com os punhos fechados, num frenesi de ódio e ressentimento. Num momento ele se convencia que a odiava; no momento seguinte era sobrepujado pela sua paixão devoradora. Seu desespero e sofrimento aumentavam. Ele estremecia às lembranças daquela paixão. Que idiota dissera que era o macho o predador da espécie? Ele, Erato, espiritualmente fora um riacho, puro e cristalino desaguando num lago escuro. As mulheres que conhecera antes da Imperatriz eram todas figuras nebulosas e indistintas, simples gratificações impessoais de um desejo físico. O seu espírito interior permanecera intocado até que Salustra lhe estendera a mão e tomara o seu amor. No frenesi da rejeição ele agora se sentia contaminado pela falta de sinceridade dela. — Nunca mais poderei escrever! — gritou em desespero. — Não sou mais limpo! Sem que ele houvesse percebido, as cortinas do quarto se haviam aberto suavemente, entrara uma escrava. Ele olhou para ela, irritado. — Há uma senhora que vos quer ver, senhor — ela murmurou, respeitosamente. Erato pôs-se de pé num salto. Tanto o seu desespero quanto o seu ódio desvaneceram-se. Ele tremia, agora, de alívio e alegria, na maior expectativa. Mas toda a sua alegria desapareceu com a mesma rapidez com que surgira. Uma figura esguia de mocinha estava hesitante no meio do aposento, com o rosto coberto por um véu. Erato fitou-a num silêncio apático, quase que culpando-a pelo seu desapontamento. Ela acercou-se dele, erguendo o véu, e revelando um rosto pálido e manchado de lágrimas. Ele continuou em silêncio, e ela caiu sobre o seu peito, afogando-o de beijos. Com um gesto quase que de repugnância, ele a empurrou para longe de si. Ela recuou, magoada, e seus lábios infantis tremiam. O véu escorregou do seu rosto, revelando o cabelo louro em cachos úmidos sobre as faces. Ela murmurou: — Erato, tu não me amas nem um pouquinho? Ele pôs a mão no ombro dela. Perguntou, de modo severo: — Que estás fazendo aqui? Tua irmã te castigará por esta loucura. Estás sozinha? — Não, as minhas escravas estão comigo. Só os deuses sabem como pude enganar aquela antipática Brittúlia.
Ela o fitou timidamente, esperando uma migalha de afeição. O coração meigo de Erato comoveu-se. Abraçou-a e beijou-lhe a testa, de leve. — Por que vieste, pequenina? A moça agarrou-se a ele, com olhos brilhantes. — Porque eu te amo, Erato, e porque descobri um jeito de sermos livres. A moça apertou a mão dele primeiro de encontro à sua face, depois aos seus lábios, e Erato sentiu-se aborrecido consigo mesmo, com a própria cegueira. Retirou a mão e, sentando-se, indicou a ela que se sentasse ao seu lado, como um irmão muito mais velho prestes a admoestar uma irmã caçula e tolinha. A moça enroscou-se ao lado dele, no sofá, com a cabeça no seu ombro e os olhos fitos com adoração no seu rosto. Sob o olhar radiante dela, faltou-lhe ânimo. Decidiu que magoá-la seria como esbofetear o rosto de uma criança. — És imprudente, Tyrhia — disse com firmeza. — Se descobrirem sobre a tua visita, a Imperatriz ficará furiosa, assim como o teu noivo. — E que me importa? — ela gritou, desafiadoramente. Sentou-se, ereta, com os olhos falseando, e as feições infantis destacando-se com a paixão do momento, — Descobri um jeito de nos livrarmos dela, Erato... para sempre. Ele fitou-a com intensidade, e sentiu um frio súbito. — Tonta! — exclamou. — Que andas fazendo? Ela olhou para ele, sobressaltada. Começou a dizer: — O Senador Divona. Ele a interrompeu, irado: — Tu te metes com aqueles que arruinariam a Imperatriz? Dize-me o que ele te contou. Ela começou a tremer, e seus dentes batiam uns nos outros. — Nada — gaguejou, começando a chorar de novo. Erato ficou imerso em negros pensamentos. Era preciso que a Imperatriz soubesse, mas como proteger esta criança ridícula? E então, do mesmo modo que um caminho sinuoso de repente se alarga, deixando ver paisagens inesperadas, Erato viu a curva do caminho que o levava até Signar, inexoravelmente.
Olhou ao redor de si, meio alucinado, depois bateu palmas. Logo surgiram os escravos. Ele mandou que lhe trouxessem a sua espada e a sua capa. Quando elas chegaram, ele teria saído do aposento às carreiras, se não fosse pela mão de Tyrhia lhe agarrando o braço. — Aonde vais? — perguntou ela com voz trêmula. Ele lutou contra o impulso de agarrá-la pela garganta e estrangulá-la. Em vez disso, forçou um sorriso. — Primeiro, vou levar-te a casa, menina — disse mais calmo. — E agora, promete-me que jamais falarás de novo com aquele traidor do Divona. A moça soluçou, aliviada. — Sim, prometo. Acharemos outro modo.
27
O Póstia, a nau-almiranle de Signar, exibia todos os sinais de uma noite de gala. Luzes refulgiam em todos os mastros. A música ecoava por sobre as águas, acima das risadas alegres dos muitos convidados. Salustra nunca estivera tão linda ou atraente. Todos os olhares viraram-se para ela, num misto de inveja e admiração, quando subiu a bordo, acompanhada do inevitável Creto. Foi recebida com muita atenção por Signar, e conduzida cerimoniosamente para o interior do navio, para sentar-se num trono ao lado do dele. Ela acomodou-se confortavelmente, fixando os olhos nos rostos conhecidos. Os convidados incluíam os Senadores Contâni, Divona, Tílus, Pátius, Vílio, Contálio, Sicilo e Tolíti, com suas mulheres e amantes, vestidas exuberantemente. Dos filósofos só compareceram Zetan, Mórti e Tálius. Entre os gigantes industriais, ela notou Ratúlio, o fabricante de aço; Hânlio, o fabricante de sedas e linho; Dúcius, o construtor; o grisalho Sêneco, com sua nova esposa, uma jovem coberta de jóias. Ício, o inventor, também estava presente. Mas a maioria dos convivas era gente da corte de Signar. Salustra concedeu ao seu anfitrião um sorriso amável. — Lamento, Majestade, que sua noiva, a Princesa Tyrhia, esteja indisposta. Ele deu de ombros, indiferente. — Se Vossa Majestade está presente, quem vai dar por falta de outras mulheres, ou mesmo crianças? Salustra de olhos desviados de tudo, mal parecia fazer parte da festa. Preocupada, quase não tocou na sua taça de vinho. Signar exclamou: — Não está bebendo, Salustra! Juro-lhe que o vinho não está envenenado. Salustra sobressaltou-se e ficou pálida. Fechou a cara. Durante um momento os olhos dos dois soberanos permaneceram fitos uns nos outros. Depois, deliberadamente, Salustra levou a taça aos lábios e esvaziou-a. Signar ficou ainda mais deleitado. Disse: — Quem é mais triste do que o sóbrio na companhia de bêbados? — Um sábio na companhia de idiotas! — retrucou calorosamente a Imperatriz. Signar riu e bateu palmas. Seu olhar percorreu os convivas reunidos. — É bem verdade que eles estão prestes a ficar embriagados, mas Vossa Majestade também
não é nenhuma Brittúlia. Salustra sorriu desdenhosamente. — Não odeio nada que contribua para o prazer. Mas o prazer reside em fazer-se aquilo que se deseja fazer. Eu não estou com vontade de beber, portanto a bebida não me traz prazer. Signar encheu-lhe de novo a taça. — É uma pena que não esteja interessada no meu entretenimento. — O rosto dele estava coroado pelo vinho. Acercou-se mais ainda de Salustra, e o hálito dele tocava o rosto dela. Sussurrou: — Tenho um inimigo. — Quem lhe faria mal, Majestade? — ela perguntou, zombeteira. Ele se inclinou para o lado dela, tomou-lhe a mão e examinou-lhe os anéis nos dedos. A mão dele fechou-se sobre o anel com o sinete. Ela olhou para o topo da cabeça debruçada dele, e fechou os olhos, como que para apagar a realidade das próprias emoções. Ele continuou, examinando de perto os anéis. — Apesar disso, tenho um inimigo. Ele é implacável, insaciável, odeia e é odiado. Esse inimigo sou eu mesmo. Posso medir forças com os outros. Mas existe alguém que não posso derrotar, que devora o meu espírito, que obscurece o meu cérebro... eu mesmo! Posso destruir impérios, e estimular mil legiões, ordenar a movimentação de grandes navios, tudo conforme os meus caprichos. Mas os meus próprios pensamentos amargos amortecem a minha mão, viram o meu vinho em fel e a minha comida em lixo. — Ele soltou-lhe a mão, de olhos fitos nela, e falou bem devagar, como que medindo o efeito das suas palavras. - Estou perdido, derrotado por um inimigo que é o meu próprio carrasco. Ela sorriu sardonicamente. — Sua digestão está perturbada, Majestade. Permita que eu mande o meu médico vir vê-lo amanhã. O homem notável mudou de repente de disposição e riu bem alto, batendo no próprio joelho. — E que irá ele receitar para o alívio das minhas exigências interiores, Salustra? Que acalmará meus desejos inquietos, as minhas esperanças e o meu desespero que se alternam? Ela recusou-se a levá-lo a sério. — Estou convencida de que se tem alimentado generosamente demais, e exercitado com parcimônia, Majestade. Ele inclinou-se de novo para ela e começou a brincar com a jóia que ela trazia ao pescoço.
— Antes, sempre conheci a alegria da aventura, a luxúria da conquista. — Ele apertou bem a mão dela. — Como, não me pergunta por quê? Tranqüilamente, quase superficialmente, ela replicou: — Estou convencida de que, sob circunstância alguma, me daria a resposta correta. Ele meneou a cabeça, com alegria indisfarçável. — Mais tarde lhe direi. Mas, agora vamos ao banquete que preparei. Ele se levantou e deu a mão à Imperatriz. Juntos, desceram mais ainda para o interior do navio, seguidos pelos convivas risonhos. Salustra comeu pouco e bebeu menos ainda. O barulho, o calor, a confusão deixavam-na cansada. Ela apoiou um cotovelo sobre a mesa e olhou ao redor de si, desejando desesperadamente um pouco de silêncio. Animais, pensou. Onde será que existe um homem que ame uma mulher por outra coisa que não a sua carne? Sentindo-se rejeitado, Signar reagiu como faria qualquer homem ciumento. Ignorou abertamente a Imperatriz, transferindo suas atenções para a mulher de Mórti, à sua esquerda. Como convinha a uma esposa de filósofo, ela era jovem, estúpida e despudoradamente lasciva. Fora um golpe amargo para a Imperatriz quando o seu filósofo favorito se casara com essa mulher ignorante e grosseira. Signar não queria ser superado na área do entretenimento. Com uma fanfarra de trombetas, um belo rapaz saltou para o palco. Usava apenas uma guirlanda de flores ao redor dos quadris. A música aumentou de volume, e várias dançarinas esculturais e nuas apareceram, em rápida sucessão. Eram as sete Virtudes, desde a Castidade e a Caridade até a Modéstia e a Verdade. Elas gritaram, encolheram-se, cobriram-se de véus e reuniramse em frente ao divã de Sáti. A deusa estava dormindo, com os lábios entreabertos e os cabelos louros soltos caindo em ondas até o chão. A música ficou mais selvagem, mais alegre, mais sensual, mais insidiosa. Todos os presentes reconheceram no rapaz que dançava a personificação de Tátio, o primeiro amante de Sáti. O rapaz bailava alegremente ao redor do divã, tentando furar o bloqueio das Virtudes, que se interpunham entre ele e o objeto dos seus desejos. — A eterna perseguição da beleza pelo amor — falou Signar, voltando-se finalmente para Salustra, que observava o bailado com indiferença. — Não, digamos que é a eterna perseguição da castidade pela luxúria. Signar fitou-a com fingida surpresa. — Será que posso crer nos meus ouvidos! — exclamou. — Não é possível que Vossa Majestade, uma autoridade reconhecida nos assuntos do amor, esteja falando assim! Quem sabe não
deva ser Vossa Majestade quem precise consultar o tal médico que me recomendou? Ela olhou para a devassidão que começava a tomar forma ao redor. Será que isso alguma vez realmente lhe dera prazer, ou será que ela apenas tentava escapar do seu isolamento intelectual? Sentia um mal-estar curioso. Tátio acercara-se mais das Virtudes, e então, ao toque de pratos, ele conseguiu furar o bloqueio e jogou-se de joelhos diante do divã de Sáti. Tomou as mãos da deusa adormecida, cobriu-as de beijos; beijou-lhe a garganta, o peito, e finalmente os lábios. Ela acordou, viu por trás dele as Virtudes atemorizadas, e então, com um sorriso infinitamente lânguido, abraçou o pescoço dele. Ao verem isso as Virtudes fugiram chorando para a obscuridade, lideradas pela Castidade. Enojada, indescritivelmente enfadada, Salustra afastou-se de Signar e levantou-se abruptamente. Antes que os demais pudessem erguer-se com ela, todas as luzes da sala apagaram-se subitamente. Encoberta pela escuridão, ela fugiu, como haviam feito as Virtudes. Subiu as escadarias, apertando de encontro ao corpo as vestes cor de ametista. O convés superior estava deserto. Havia silêncio, com exceção do mar, que rugia agourento. Até as gaivotas, estranhamente, estavam ausentes. Ela fugira do banquete numa confusão que só mesmo uma jovem virgem teria sentido. Uma risada amarga escapou-lhe dos lábios. Perguntou a si mesma: "Será que sou uma adolescente, suspirando pelo amor do homem a quem devo destruir?" Inspirou o ar noturno, um tanto fétido, depois virou-se para dar uma volta pelo convés. Deu de cara com Signar. Ele estava de pé, em silêncio, observando-a. Perguntou: — Será que o meu pobre entretenimento é tão sem valor que precisa fugir? — Ele tomou as mãos dela, e ela começou a tremer. — por que quebrou o cristal daquela bruxa velha? — sussurrou. — Quebrá-lo, eu? Foi um acidente, como bem viu. — Como queira. E antes que ela pudesse mover um dedo, ele a tomou nos braços, apertou-a de encontro a si e, de um só golpe, rasgou o seu vestido até a cintura, e começou a beijar-lhe o corpo com sofreguidão. Ela lutava furiosamente, mas Signar ria ao aparar os golpes dela, pressentindo que ela resistia apenas porque estava com raiva. — Por causa disso -— ela gritou — morrerá! — Não, foi para isso que eu nasci! - ele exclamou, apertando a boca contra o seio nu dela. Ela gritou: — Que os deuses o abatam!
Como se o grito dela fosse um sinal, o oceano de repente engrossou violentamente, e o navio foi atingido por uma onda gigantesca. Ele virou de lado, com um solavanco nauseante. Houve o rugido de uma segunda onda gigante, e a proa do navio ficou apontando para o céu quase que verticalmente. Salustra e Signar, agarrando-se um ao outro desesperadamente, foram jogados ao convés e quase caíram ao mar. O navio se endireitou com um suspiro e um gemido, e eles podiam ouvir ao longe o barulho dos móveis revirados e os gritos de pânico dos convidados que começavam a jogar-se escadas acima. Signar pôs-se de pé e arrastou Salustra com ele. O navio estava momentaneamente pousado na crista de uma montanha de água. De onde estavam podiam ver mais outros picos de água, que refulgiam com uma luz estranha e aterradora. Por estranho que pareça, nem uma brisa se movia. O céu escuro acima deles estava sereno e, em meio à neblina, as poucas luzes de Lamora reluziam tranqüilas em terra firme. Salustra e Signar fitavam assombrados as ondas imensas que jogavam o navio para lá e para cá como uma pena, ensopando-os, e a um punhado de cortesãos seminus e apavorados, com água do mar. — Mas, afinal, que é isso? — rosnou Signar, colocando um braço protetor nos ombros de Salustra. — Um maremoto — ela murmurou, enquanto o convés deslizava sob os seus pés. — Morreremos afogados — gritou Signar, por sobre o rugido do mar. Mas, no momento exato em que ele falava, as ondas imensas de repente se nivelaram, e logo a superfície do mar ficou milagrosamente calma e lisa. O navio ergueu-se por um momento, oscilou de leve e depois acomodou-se relutantemente no local em que estava ancorado. Todos olhavam estupefatos uns para os outros, e para o mar tranqüilo. — Um milagre! — exclamou Signar. Ele virou-se para Salustra, que fitava o oceano sombriamente, como se estivesse escutando uma voz secreta. Demonstrando uma capacidade de recuperação extraordinária, Signar logo pôs-se a rir e a brincar: — Quando Sáti se contorce em braços indesejados, o próprio oceano se contorce com ela. Ela olhou para ele, sem sorrir. — Não zombe de Sáti. Ela não está brincando.
28
O estranho distúrbio não havia tocado a cidade de Lamora; contudo, percebendo as ondas sem precedentes, a população tomou-se de pânico. Como sempre, os cientistas tinham uma resposta preparada. Os geólogos explicaram o fenômeno casualmente. Anunciaram: — Deslocamento de camadas no leito oceânico. Não há motivo para alarme. Mas os temores do povo não se acalmavam assim tão facilmente. As antigas profecias relativas à Atlântida eram lembradas, soturnamente. Não fora profetizado que um dia a Atlântida seria engolida pelo mar, e que seu nome seria esquecido? E, continuavam as conversas, por que outro motivo seria ela destruída, senão pelos seus pecados? Os geólogos afirmavam, em vão, que a natureza era totalmente indiferente ao pecado ou à virtude. Os sacerdotes aproveitaram a oportunidade para reaver o prestígio perdido. Eles não haviam avisado, repetidas vezes, que os deuses iriam castigar o povo pela sua corrupção e ateísmo? Isto era apenas uma amostra do que iria acontecer se o povo de Atlântida não retornasse a Sáti. O medo serviu como um incentivo imediato. Logo os cofres dos templos ressoavam com o barulho do ouro. Os altares ficavam soterrados com oferendas florais e sacrifícios de animais. Júpia regozijava-se ao ver os bancos dos templos lotados de seres amedrontados. Salustra, embora poupada por um milagre, não visitou os templos. Com seu exemplo, ela pensava convencer o povo de que nada de sobrenatural acontecera. Irritado, o povo achou que ela estava desafiando os deuses, que poderiam vingar-se ainda mais nele por causa da falta de religiosidade da Imperatriz. — Idiotas! — ela gritou para si mesma. Sem se assustar, prosseguiu com seus planos particulares contra Signar, ao mesmo tempo que afogava uma inclinação sempre crescente de abandonar o projeto. Alguns dias depois do encrespamento do oceano, a Imperatriz, acompanhada somente por Creto e seus guardas, foi à casa de Júpia, sem avisar. A Alta Sacerdotisa estava tão insolente, desde o dia do milagre acontecido no mar, que deixou Salustra ficar esperando na sua antecâmara. A bruxa velha está na crista da onda, pensou a Imperatriz com um sorriso. Bem, depois do dia de hoje, logo ajustarei contas com ela. O mar pode reivindicá-la. Ao ser finalmente recebida por Júpia, não demonstrou sinais de impaciência. — Ah! Júpia — disse educadamente — sinto muito se a minha visita vos causou alguma inconveniência. O rosto de Júpia estava inexpressivo. — A visita da própria Sáti não seria mais bem-vinda, Majestade.
Salustra deu uma risadinha, e sentou-se. — Dou-me conta de que estais muitíssimo ocupada acalmando os temores do meu povo. A Sacerdotisa replicou sombriamente: — Eles retornaram aos seus deuses, atendendo à ameaça da destruição, que é o resultado dos seus vícios. Salustra riu de novo. — Se não fosse pelos tolos que fizeram um bicho-de-sete-cabeças de uma onda, ninguém teria sabido do caso em Lamora. — Ela se inclinou para Júpia e sorriu. — Mas eu não estou preocupada. Sei que a minha boa Júpia acalmará carinhosamente os temores deles. — Júpia ficou em silêncio, enquanto Salustra continuava a sorrir. A Imperatriz prosseguiu: — Agradecei aos deuses, Júpia. Os cofres nos templos estão transbordando. Salustra estudou a Sacerdotisa com olhos desdenhosos, com os dedos brincando, como era de costume, com a jóia que trazia ao pescoço. — Estou aqui para pedir-vos algo de natureza particular. Vós me compreendeis? — A Alta Sacerdotisa concordou com a cabeça, em silêncio. Salustra baixou o tom de voz. — Sois famosa por vossos venenos fabulosos, Júpia. Na verdade, sois tão famosa que muitas mortes misteriosas vos foram atribuídas; de algumas delas, indubitavelmente, sois inocente. Júpia teve um sobressalto e seu rosto ficou branco como a cal. Salustra abafou um bocejo. Disse cordialmente: — Mas, não tenhais medo. Existem tantos tolos no mundo que alguns a menos são na verdade um benefício público. - As mãos de Júpia apertaram-se convulsivamente sob as suas vestes. — Além disso — continuou a Imperatriz — chegou-me aos ouvidos que, juntamente com o ardiloso Senador Divona, estais fomentando uma revolta contra mim, e tendes murmurado por aí que os deuses estão insatisfeitos com a minha administração. — Ela fez uma pausa, e lançou à outra um olhar irônico. — Mas eu não poderia dar crédito a falatórios que denotam tanta ingratidão. Não, eu disse, Júpia é a minha amiga mais leal, devotada aos meus interesses. Os olhos de Salustra eram como as pontas de uma espada. Júpia observava-a em silêncio, com olhar maligno. Salustra continuou amavelmente: — Venho pedir-vos auxílio. Não sofismarei convosco. Quero o mais forte, o mais rápido, o mais indetectável dos vossos venenos. Quero um veneno que não tenha gosto nem cheiro, que seja administrado facilmente, que mate sem demora e sem dor, fazendo com que a morte pareça natural. Júpia inspirou fundo. — Isto é uma ordem, Majestade?
A fisionomia de Salustra endureceu. — A menos que queirais tomar a poção vós mesma. Sem mais palavras, Júpia chamou um escravo, murmurou qualquer coisa ao seu ouvido e, cruzando os braços no peito, ficou em silêncio, de olhos postos no chão. Dentro de poucos momentos o escravo voltou com um pequeno escrínio dourado. Júpia abriu o escrínio e tirou dele um minúsculo frasco de cristal, cheio de um fluido vermelho-cintilante. Ela ergueu o frasco para que Salustra o inspecionasse. O fluido tinha a tonalidade do sangue e parecia estar vivo. Ele se movia, cintilava, espumava, lançava pequenos raios vermelhos de luz na penumbra do aposento. Salustra debruçou-se e fitou o veneno com a respiração presa. Júpia disse sombriamente: — É absolutamente sem sabor. Deve ser colocado no vinho, onde sua cor não será percebida. Horas após beber o vinho, a vítima cairá ao chão, e morrerá antes de atingi-lo. Parecerá ter sido um ataque de coração fulminante, e na realidade terá sido isso mesmo. Salustra estendeu a mão para pegar o frasco. — Os vossos deuses têm remédios poderosos. — Fez uma pausa e acrescentou de cara fechada: — Nem uma palavra sobre isso, com o risco da vossa vida! Sem olhar de novo para a Alta Sacerdotisa, Salustra deixou a casa e entrou na sua liteira. Mal Salustra havia partido, e Júpia enviou uma mensagem para o Senador Divona. Ele chegou em seguida. Sem preâmbulos, mas sem ocultar a sua raiva, Júpia contou-lhe sobre a visita da Imperatriz. Disse amargamente: — Eu teria dado a ela uma poção inofensiva, mas tenho a certeza de que ela a experimentará num animal. Sabeis ao certo a quem se destina o veneno? — Certamente. Destina-se ao Imperador. Era de se esperar. Será necessário avisá-lo para que não tome nenhum vinho sem precauções. É claro que ele sempre tem o seu provador para as ocasiões públicas, portanto a única oportunidade dela será administrar-lhe a poção em particular. Consistente na sua traição, Divona correu para o Palácio, mas encontrou Signar ostensivamente indisposto. Em vão ele protestou que trazia informações da mais grave importância. Assistentes de olhar reservado sugeriram que a mensagem lhes fosse entregue para ser encaminhada a Signar. Desejando obter crédito integral pela sua traição, Divona recuou. Então, teve uma idéia inspiradora. Ordenou que um escravo fosse até Tyrhia, solicitando uma entrevista. Aguardando perto dos aposentos dela, ele viu o poeta Erato, que esperava obter uma audiência de Salustra. Erato percebeu a presença de Divona, e seus olhos encheram-se de desprezo. Tomou o Senador pelo braço. Perguntou ferozmente:
— Que fazeis aqui? Divona sacudiu o braço do poeta de cima de si, com raiva. — Isso não te diz respeito, garoto — falou altivamente. A esta altura surgiu o escravo de Erato, para anunciar que a Imperatriz partira há cerca de uma hora para a Câmara de Direito. Erato foi embora, desapontado, enquanto surgia o escravo de Divona para levá-lo aos aposentos de Tyrhia. Ele encontrou a jovem Princesa agitadíssima. Disse bruscamente: — É uma loucura virdes até aqui, Divona. Andai logo e dizei o que quereis. A inquietação de Divona aumentou. Perguntou: — Por que, senhora? Quem mais sabe disso senão Vossa Alteza e eu? — Ela permaneceu em silêncio, e ele se acercou dela, mansamente. — É chegada a hora de sua libertação. Um pouco de coragem de sua parte lhe trará liberdade e poder. Tyrhia continuou a fitá-lo sombriamente. — Há duas horas a Imperatriz obteve veneno. Ela o destina a Signar. Ele precisa ser avisado imediatamente. Pense no que significará ser a pessoa a salvá-lo! Tyrhia emitiu um gritinho abafado. - Veneno! Que absurdo! Divona assentiu, solenemente: — Nem por isso, pois somente com tal veneno a morte parecerá ter sido natural. Não deve haver demora. Deve procurá-lo imediatamente! Tyrhia pensou na ira da irmã e estremeceu. Sussurrou: — Tenho medo. E se ele contar a Salustra de onde veio a informação? — Ele não o fará, se Vossa Àlteza lhe pedir. Ela apertou a mão fria de encontro às faces, e o ressentimento superou o medo. Disse, finalmente: — Eu o farei. Divona persuadiu-a, bajulador. — Dirá a ele quem lhe deu a informação, Alteza?
— Direi — replicou ela, impaciente. Mandou que Divona se fosse, sem cerimônia, e depois apressou-se a ir para os aposentos de Signar. Os guardas a saudaram respeitosamente. Depois do que lhe pareceu um tempo enorme, levaram-na ao quarto do Imperador. Ele realmente parecia indisposto, de olheiras e barba por fazer. Recebeu-a com ar abrupto. — Serei breve, senhor — ela disse, com os lábios secos. — Vim avisar Vossa Majestade. — Ele ergueu as sobrancelhas, em silêncio. — Recebi uma informação do Senador Divona de que hoje de manhã a Imperatriz obteve veneno destinado à sua pessoa. Signar não moveu um músculo. Apenas os olhos pareciam ter vida, no seu rosto. Fitavam os olhos da moça com tal ardor que ela começou a tremer intimamente. Finalmente, afastou-se dela e contemplou o mar por entre as colunas brancas. Depois, tomou a mão de Tyrhia e examinou-a, com curiosidade. — Por que me traz esta informação? Não é por amor, que eu sei. Tyrhia ficou quieta por um momento, depois, num acesso de raiva, gritou: — Salustra comprometeu-me com Vossa Majestade, sabendo que é a outro que eu amo! Signar parecia achar aquilo divertido. — E quem é o afortunado jovem que Vossa Alteza ama? — Erato, primo do Rei de Dímtri. — Erato! — exclamou Signar, caindo na gargalhada. Tyrhia olhava para ele, contendo a raiva. — E ele acaso ama Vossa Alteza? — Assim o creio. — Outro pensamento ocorreu à moça, — Não dirá a Salustra, senhor, que eu o avisei? Signar afastou a mão dela com brutalidade. Disse indiferente: — Providenciarei para que ela não lhe faça mal. Deu as costas para Tyrhia, e um assistente dele acompanhou-a até a porta. Ele ficou em silêncio por longo tempo, cabeça baixa, pensativo, apertando e relaxando os dedos. Finalmente, disse entre dentes: — Não existe amor nesta terra...
29
Salustra, de volta de uma sessão extensa na Câmara de Direito, encontrou à sua espera uma mensagem de Signar: "Majestade, há vários dias que me tem negado a radiosidade de sua presença. Será porque está mortalmente ofendida? Não pode perdoar um pobre cérebro entorpecido pelo vinho?". Salustra esmagou o pergaminho entre os dedos, e escreveu rapidamente uma resposta e envioua por um escravo. Depois que o escravo havia partido, ela repousou a cabeça sobre a mesa e suspirou amargamente. Abrindo a mensagem, Signar leu ansiosamente: "As atitudes de Vossa Majestade no navio eu posso facilmente perdoar. As suas desculpas não posso. Quer dar-me o prazer de vir jantar a sós comigo esta noite, após o teatro ao ar livre?" Então é isso, ele pensou. É esta noite que ela me vai envenenar. Sentiu-se estranhamente deprimido: "Que idiota que eu fui imaginando que ela se ruborizava de amor à minha presença, que a mão dela tremia na minha." Enquanto ele ponderava sombriamente as diversas atitudes que poderia tomar, seus generais, liderados pelo irreprimível Sinton, entraram no aposento. — Todas as forças de Salustra uniram-se às nossas — anunciaram triunfantes. — O império é seu, Majestade, para dele fazer o que quiser. Em vez de ficar radiante, ele sentiu que sua melancolia se tornava mais profunda. Nunca amei antes, ele pensou, no momento em que lhe entregavam um império. Que ironia que agora esteja apaixonado por uma mulher que trama a minha morte e cujo império me é praticamente dedo de bandeja. Ele tinha pouco tempo para auto-indulgência. Seus tenentes esperavam as ordens, e ele as deu. Ordens rápidas e secas para a tomada militar. Quando os seus assistentes saíram para as suas missões, ele se preparou para reunir-se a Salustra com os seus principais conselheiros. Sentia um desejo quase selvagem de conhecer a verdade por si mesmo. Ela estava à espera dele, juntamente com Tyrhia, Brittúlia e Máhius. Observou quando ele cruzou o portal de mármore com o seu general e seu ministro. Decidiu relutantemente que ele era um Imperador não somente por nascimento, mas por qualificações. A despeito das suas vestes bárbaras e do uso excessivo de jóias, havia um ar de nobreza no seu rosto e na sua conduta que o distinguia dos outros homens. Ele a observava disfarçadamente, e ela lhe parecia pálida e abalada. A despeito disso, ela o recebeu de modo muito cortês. — Ah! senhor, espero que aprecie o dia de hoje. É o primeiro dia dos Jogos Nacionais, a que a Imperatriz sempre comparece. Ele beijou-lhe a mão.
— Acompanhá-la-ei, senhora, será prazer suficiente. Ele olhou para além dela, para Tyrhia. Quando os seus olhos se encontraram, a jovem Princesa refugiou-se amedrontada por detrás da irmã. O anfiteatro de Lamora ficava um pouco fora dos limites da cidade, perto da Grande Primeira Estrada. Todas as avenidas que levavam ao anfiteatro regurgitavam de cavalos, carroças e pedestres, todos aparentemente indiferentes ao calor mortal e à neblina pesada que cobria a cidade como um cobertor cinzento. Os milhares de assentos na arena oval já estavam lotados com uma multidão inquieta e ansiosa. O teatro inteiro zumbia como uma enorme colméia. Aqui e ali um toldo protetor se destacava, nas cores verde ou escarlate. O ar parecia sair de um forno ligado, seco e abrasador. Subitamente, abriram-se as portas de bronze no topo do anfiteatro. O clangor das trombetas anunciou a chegada da Imperatriz e da sua comitiva, e um rugido quase mecânico saiu de milhares de gargantas. A Imperatriz moveu-se devagar até o camarote imperial, seguida por um bando de Senadores, senhoras, Nobres e por Júpia, a Alta Sacerdotisa, como era de hábito na abertura dos jogos. Ao lado de Salustra, nas cores reais escarlate e ouro, estavam Signar e seus ajudantes-de-ordem. A Imperatriz respondeu à ovação com a mão erguida e uma inclinação da cabeça. — É óbvio que eles a amam — disse Signar, com um sorriso. — Não, é que hoje estão de bom humor. — Ela deu de ombros, indiferente. — Estão agradecidos pelo entretenimento, que os distrairá, fazendo com que esqueçam seus temores e seu tédio. — É verdade, os favores da multidão são volúveis. — disse ele. O corpo dela inteiro pareceu desabar de repente. Ele continuou com meiguice: — Está cansada. — Ultimamente ando sempre cansada. Parece haver uma opressão no ar, uma ameaça. — Ela franziu a testa, depois sorriu, divertida. — Hoje de manhã fui chamada a julgar um caso extraordinário. Deve saber que não encorajo novas religiões em Atlântida. Os deuses bem sabem que a velha religião já é ruim o suficiente. Além disso, concordo com meu pai que uma nação velha e depravada não se pode dar ao luxo de ter novas religiões. Contudo parece que surgiu uma nova religião em Lamora, patrocinada por um grupo de homens ferozes e de olhos escuros, com modos selvagens. Eu permito liberdade de culto na Atlântida. Só o que peço é que a nova religião não provoque distúrbios nem recrute novos adeptos. Mas este bando de estrangeiros anda pregando ao povo em altos brados, anunciando uma futura tragédia imprecisa. Eles declaram que o Deus deles, a quem chamam de Jeová, está cansado dos pecados do mundo e pretende submergir tudo que existe num enorme dilúvio e apagar a humanidade da face da terra. Contudo, dizem eles que a mão de Jeová poderá ser obstada com o arrependimento adequado. Isto seria risível, se não fosse pelo fato de que as conversas deles fazem com que o povo se lembre das velhas profecias nacionais. Seus próprios deuses já não os avisaram disso? E assim eles escutam, temerosos, e convertem-se a esta religião
abominável. Signar escutou tudo de modo surpreendentemente sério. Perguntou: — E quais os dogmas da nova religião? — Reconhecem um só Deus, o que já é melhor. Além disso, declaram que este Deus é um pai amoroso, mas justo, que tudo vê, que é onipotente, sábio e misericordioso. E, o que é estranho, este Deus não tem amantes. Um Deus austero e severo, não é? Esses selvagens dizem que Ele só está preocupado em tornar justos todos os homens, para poder oferecer-lhes a paz eterna. Dizem que Ele está enraivecido com os pecados desta geração atual, por causa da sua idolatria e superstição. Com tudo isto eu concordo. Contudo, Ele também é inimigo da alegria, das festas e do prazer. Nisto não concordo. Na verdade, gostaria de discutir o assunto com Ele; é bem provável que eu o levasse a se arrepender da sua obtusidade óbvia. Signar riu de modo apreciativo. — Surpreende-me que esses homens consigam adeptos para um Deus tão desmancha-prazeres. Salustra meneou a cabeça. — Esses homens apelam para o medo, e a humanidade sempre é vulnerável ao medo. O Imperador perguntou: — Este Jeová é jovem e belo? Salustra deu um meio sorriso. — Parece que Ele é velho, barbudo e feio. Mas isso talvez seja preconceito por parte dos Seus servos. Muitos deles são velhos, barbudos e feios, e o homem tem uma tendência a criar o seu Deus à sua própria imagem. — Ela franziu o cenho e baixou a voz, para que somente ele pudesse ouvi-la. — Normalmente, eu toleraria esses homens, mas eles estão mais detestáveis do que nunca, desde os distúrbios marítimos daquela noite. Dizem que aquilo foi um aviso. E o povo os está escutando. Estou quase disposta a entregá-los a Júpia. Ela acabará com esses rivais perigosos. O interesse de Signar aumentava, e nem mesmo ele saberia dizer por quê. Perguntou: — E que foi que ocorreu na corte, hoje de manhã? — Vários deles foram presos e trazidos a mim para que os julgasse. Falei com eles. Não tiveram medo de mim, embora esperassem a morte. Responderam às minhas perguntas com clareza e dignidade. Disseram-me que haviam sido enviados de um local distante, do qual não quiseram dizer o nome, para advertir a humanidade que a ira do seu Criador está prestes a desabar sobre ela. — Ela riu ao recordar o incidente. — Puxei por eles, envolvi-os numa discussão sobre o seu Jeová. Disse ao líder deles, um homem de barba negra e olhos ferozes: "Mas nada temos nesta vida senão uns poucos grãos dispersos de prazer".
A resposta dele foi a seguinte: "Felicidade e prazer não são a mesma coisa. A felicidade é a paz profunda no coração daquele que conhece a vontade de Deus. A felicidade chega para aquele que ouve a voz de Deus na quietude da noite, e para aquele que sabe que o trabalho das suas mãos é bom e que não fez mal a homem algum. O prazer é a droga letal do homem que fugiu de Deus e daquele que sabe que a sua mão não criou nenhuma coisa boa e que a maldade e a malícia estão no seu coração". Salustra lançou ao Imperador um olhar de franqueza. — E sabe, Majestade, que embora eu sorrisse, sabia que ele falava a verdade? Nenhum homem procura o prazer com tanta assiduidade quanto o homem infeliz. Nenhum homem bebe tanto quanto aquele que procura afogar as suas mágoas. Nenhum homem ri mais alto do que aquele cujo coração se está partindo. Nenhum homem parece mais alegre do que aquele que tem um peso na consciência. Mesmo assim, apavora-me a austeridade da vida que esses homens pregam. O Imperador assentiu, numa concordância aparente. Disse: — A vida de Vossa Majestade é jovial demais para tal esterilidade. Júpia, sentada em silêncio atrás do par real, inclinou-se para a frente e fitou a Imperatriz. — É estranho ouvir Vossa Majestade falar de deuses. Salustra olhou para Signar de bom humor, ignorando a Alta Sacerdotisa. — Os deuses são muito convenientes. Eles deveriam ser ministros da arte e da beleza; do contrário, deveriam ser abolidos. Enquanto ela falava, o prelúdio musical cessou de repente. Uma sombra gigante, como um meteoro, cruzara os céus, escurecendo a arena por um momento. Milhares de olhos inquietos voltaram-se para o céu. — Está seco demais para chover — comentou a Imperatriz, tentando, com o seu exemplo, tornar insignificante o segundo fenômeno de mau agouro numa semana. Signar abaixou a cabeça, para ouvir um comentário de Ganto. O ministro de Signar sussurrara: — Como está calma a libertina! Ela se acha tão segura quanto aquela montanha lá longe. Que surpresa terá amanhã! Signar franziu a testa, enquanto Máhius se inclinava para a Imperatriz e lhe falava em voz baixa: — Majestade, não gosto do aspecto das coisas. Veja como Signar cochicha. Salustra olhou para o Imperador. Os olhos pálidos dele estavam fitos, sem ver, no palco.
Haviam começado a surgir atores na plataforma embaixo. No calor sem precedentes eles estavam suando nas suas vestes pesadas. Mas logo ficaram absortos no poder majestoso do drama que representavam. Era uma peça simples, que muitos consideraram especialmente adequada: certa vez vivera numa cidade pecaminosa um homem virtuoso. Este homem reclamava que os templos dos deuses estavam desertos, e que os homens se dedicavam a atividades libidinosas. O observador virtuoso de toda esta corrupção, um tal de Ionto, prosseguia na sua vida rigorosamente abstêmia. Rezava três vezes ao dia para os deuses, e, com freqüência, era o único devoto nos templos. Ele tinha uma filha, uma moça graciosa, que amava a vida e o prazer. Ela também, portanto, era amaldiçoada. Certo dia, quando rezava no templo, Ionto foi visitado por um dos deuses, que lhe apareceu numa nuvem sob a forma de um belo jovem. Ele contou ao surpreendido Ionto que os deuses haviam decidido destruir a cidade por causa dos seus pecados. Ionto suplicou que os deuses não o fizessem. O jovem, cedendo um pouco, ordenou a Ionto que construísse um altar no centro da cidade, onde deveria sacrificar sua própria filha. Então, os deuses poupariam a cidade. Ionto ficou transtornado de dor. Atordoado, voltou para casa e surpreendeu a filha nos braços de um amante. Ele tomou a sua decisão; mas, agora, em dúvida quanto à virgindade da filha, ele se perguntou se os deuses aceitariam um sacrifício tão impuro. Esta parte da peça nunca deixava de divertir a platéia. Ionto tentava explicar à sua filha irreverente, com gestos, no que consistia a perda da virgindade. Finalmente, em desespero, ele concluía que todas as mulheres eram umas tontas e que a virgindade das suas mentes nunca podia ser violada. Quem sabe os deuses a aceitariam, relutantes, pois ao menos mentalmente ela era intata. Ele construiu um altar de proporções magníficas, para o deleite do populacho pecaminoso. Então, depois de haver enchido o altar de flores, ele arrastou a filha até o altar, colocou sobre ele a moça que gritava e, para a estupefação geral, enfiou a sua espada no peito nu da filha. Enquanto a moça expirava, o deus vingativo apareceu de novo, radiante e satisfeito. Ionto ajoelhou-se, reverente, mas a multidão ultrajada fitava o deus num silêncio soturno. E então, com um grito de dor, o amante da moça, que só aparecera em cena no ato anterior, saltou no palco. Sacou da espada e atirou-se sobre o deus sorridente. Enfiou a espada no peito do deus. Um trovão rasgou os ares. Uma túnica brilhante, simbolizando uma nuvem, caiu sobre o deus que desabava no chão. O amante afastou a nuvem e eis que o deus havia desaparecido, e no seu lugar estava um réptil nojento. Virando-se para Ionto, o amante o matou. Por fim, enfiou a espada no próprio coração. A peça era normalmente cínica. Fazia com que Ionto parecesse ser um fanático semilouco, a filha uma libertinazinha cheia de amor pela vida, o deus hipócrita, desejando a moça ele mesmo, e o amante um vingador virtuoso. Os espectadores, que já haviam visto essa peça muitas vezes, sempre a apreciavam à grande. Sempre riam às gargalhadas quando o deus ordenava que Ionto sacrificasse a filha para salvar a cidade. Sempre gemiam quando a moça era morta. Sempre se irritavam com a aparição do deus, e gritavam a sua aprovação quando o amante matava o deus e este assumia a sua forma verdadeira, a de um réptil. Continuavam a gritar aprovadoramente quando o amante liquidava Ionto, e sempre choravam quando o amante se suicidava.
Mas, inexplicavelmente, o humor da platéia se havia modificado. Eles assistiam à peça num silêncio inquieto, lançando olhares de medo ao céu obscurecido. Quando Ionto soube que os deuses haviam decidido destruir a cidade, o povo estremeceu como que tocado por um vento frio. Quando ele jogou a filha sobre o altar, houve alguns aplausos esparsos... Depois de uma breve hesitação, o anfiteatro inteiro começou a aplaudir, até que o ar ressoou com o seu tributo. — Deuses! — resmungou Salustra, enquanto os seus dedos brincavam com a jóia que trazia ao pescoço. Júpia sorriu sombriamente e fitou a Imperatriz com olhos malévolos. Os seus sacerdotes haviam feito um bom trabalho! A peça continuava. O deus apareceu; o amante saltou em cena e matou o deus. O povo gemeu. Salustra debruçou-se para a frente, no camarote imperial, observando tudo tensamente. A nuvem, representada pelo pano, caiu em cima do deus; o amante afastou o tecido e apareceu o réptil. O povo gemeu de novo, gritando. Em meio à balbúrdia ouviam-se protestos contra essa blasfêmia. A Imperatriz parecia congelada, em total imobilidade. Então o amante matou Ionto, em meio a uma nova tempestade de gemidos e protestos; finalmente, o amante se suicidou. Neste instante, o povo ficou de pé, aplaudindo loucamente; mulheres soluçavam, homens gritavam. Os próprios atores ficaram nervosos, e deixaram o palco, apressadamente. E então, como que obedecendo a um sinal, milhares de rostos se viraram para a Imperatriz. Signar estava estupefato. Não era preciso sutileza para reconhecer que algo de grande vulto estava acontecendo. Ele olhou para Júpia. Somente ela estava serena entre os ocupantes do camarote real. — O povo está descontente — balbuciou Máhius, mas Salustra não o ouvia. Os olhos dela percorriam devagar a multidão de pé. Sorriu desdenhosamente. Signar tocou o braço dela. — Vamos embora — murmurou. — Não gosto da cara deles. — Signar ficou de pé e a multidão prorrompeu em gritos de aclamação. — Vamos embora — ele repetiu. — Quê?! — ela disse mansamente. — E provar a esses chacais que a filha de Lazar tem medo de tipos como eles? Salustra ergueu a mão, imperiosamente. Ao seu sinal, as portas de bronze que davam para a arena se abriram ao clangor de clarins e surgiu o grande lutador Nóti, bem-amado dos lamoranos, acompanhado do campeão da Quinta Província. O povo retomou os seus assentos em silêncio e os jogos tiveram início. Os corpos despidos dos atletas competidores brilhavam à luz amarelada, e os seus músculos imensos se destacavam. Rugidos entusiásticos eram ouvidos a cada hábil movimento de Nóti. As apostas começaram, febrilmente. Quando Nóti finalmente venceu o seu oponente, o anfiteatro estremeceu sob os aplausos.
Seguiram-se corredores a pé e a cavalo, depois lançadores de peso, saltadores, malabaristas, cantores, músicos, mágicos, comediantes, pugilistas, domadores de leões. O povo começou a se entediar, e a ficar irrequieto e mal-humorado. O calor parecia aumentar; o céu escurecia a olhos vistos, e começou a trovejar. Os trovões ressoavam no ar opressivo, resmungões e agourentos. Muitas pessoas começaram a lançar olhares para as saídas. Até mesmo o domador de leões não conseguia despertar-lhes a atenção, apesar das feras que saltavam raivosas ao comando do chicote. E então aconteceu outro incidente de mau agouro. A atmosfera carregada do anfiteatro deve ter-se comunicado aos animais sensíveis na sua fossa. Rosnando selvagemente, um enorme felino deu um salto inesperado, tentando agarrar o chicote do domador. Nada demais poderia ter acontecido, se o domador não tivesse tropeçado e caído ao comprido. Imediatamente, as feras o atacaram. Os gritos de agonia da vítima enervaram a multidão, que gritava incoerente de compaixão... mas também um pouco de excitação e deleite. Escravos e guardas entraram na arena, armados com lanças. Os espectadores atropelavam-se uns aos outros em tentativas mórbidas de não perder nada do que estava acontecendo. Os leões viraram-se contra eles, derrubando muitos com as suas garras tintas de sangue. Dúzias de pessoas foram esmagadas na confusão, e mulheres berravam e desmaiavam. O sangue começou a formar pequenas poças. Signar, considerando que a violência poderia tornar-se contagiosa, ficou, deliberadamente, ao lado de Salustra. Em poucos momentos, contudo, todos os leões haviam sido abatidos, os mortos haviam sido retirados, e a chuva começou a cair torrencialmente. Em meio ao temporal, a comitiva imperial partiu apressada, com Signar e seu grupo na traseira.
30
Uma calma agourenta pesava sobre Lamora. O céu se escondia por trás de uma nuvem negra e melancólica, O mar, rugindo inquieto, açoitava rudemente as praias. O ar estava carregado de uma expectativa sinistra. Signar, preparando-se para reunir-se a Salustra nos seus aposentos, espiava tristonho a cena melancólica. O ar estava quente, mas trespassado por uma corrente gelada. Da sua janela o Imperador percebeu que a guarda ao redor do Palácio havia sido multiplicada. Soldados carregando lança-chamas marchavam resolutos diante dos portões. Creto movia-se discretamente entre eles. O Imperador sorriu e depois suspirou. Ele já havia dado as suas ordens. Tudo estava pronto, à espera da sua palavra. Entrementes, Salustra havia dado as suas ordens a Creto. — Não confio em ninguém, senão em ti, Creto — disse gravemente. — Faze bem o teu trabalho. Se eu falhar, ainda me serás útil. — Majestade, a minha vida é sua — disse o jovem Prefeito da Guarda, ajoelhando-se e beijando-lhe os pés. — Estou cheia de pressentimentos — disse a Imperatriz, com voz cansada. — Percebeste o humor instável do povo hoje, no teatro. — Eles têm medo — ele disse, vagarosamente. — Há algum tempo que os sacerdotes de Júpia andam resmungando para o povo, e depois do encrespamento do oceano eles renovaram as suas advertências de catástrofe, e puseram a culpa em Vossa Majestade. Salustra assentiu, sombriamente. — Tu me trarás Júpia amanhã. Mas, Creto, os guardas imperiais, eles ainda me são fiéis? Uma sombra passou pelo rosto de Creto, mas ele respondeu mecanicamente: — Eles morreriam por vós, Majestade. Depois de despachar Creto, ela se arrumou como alguém que fosse morrer, ou fosse casar-se. Tomou banho, deixou que a massageassem com óleos perfumados, vestiu uma túnica prateada transparente. Usava pulseiras cheias de pedras preciosas; no pescoço a jóia do seu pai parecia refulgir com um ardor redobrado; nas dobras da túnica levava o frasco de veneno. Enquanto Salustra tocava o frasco, as cortinas se abriram e Signar entrou, sem fazer barulho. Durante um momento eles se fitaram, em silêncio. Salustra, com um sorriso, deu a mão ao Imperador. Falou languidamente:
— Ah, Majestade, é uma noite ruim. Percebeu como os céus e o mar parecem saltar juntos? Ele olhava para ela quando respondeu: — As coisas são ruins quando são feitas com ruindade. — Exatamente — ela sorriu. — Vamos jantar. Signar sentiu um desejo súbito de adiar o momento inevitável. Disse: — Não, ainda não, Salustra! Ela suspirou e sentou-se sobre um divã de seda, de olhos postos no chão. Depois de um momento de hesitação, Signar sentou-se ao lado dela. Ele sentiu-se tentado, por um instante, a contar-lhe que sabia dos seus planos. Depois, afastou de si esta idéia, na esperança de que ela própria abandonasse os seus propósitos. Ele observou o perfil dela, percebendo o seu abatimento; ela estava com olheiras profundas. Estava mais magra. O coração dele começou a encher-se de esperança. Com certeza esta angústia tão aparente só podia significar uma coisa. Ela virou-se e olhou para ele, com os lábios entreabertos como se fosse falar. Ante a doçura do olhar dele, ela enrubesceu, levantou-se depressa e saiu para a colunata. Ele a seguiu, após um momento. Um vento uivante levantou-lhes as vestes e tirou-lhes a respiração. Num minuto a cidade estava às escuras, no minuto seguinte, era uma terrível visão de negro e prata à luz dos relâmpagos. O mar, negro, espumante, dentado, estrondeava contra a costa; por detrás deles, a cavaleiro deles, o Monte Atla resmungava de novo. — Que violenta esta noite! — gritou Signar, acima da bulha. — E apesar disso, que magnífica! Dá vontade de a gente gritar com o vento e saltar com o mar. Salustra afastou-se dele um passo. Olhou para os céus e então, bem devagar, ergueu os braços como numa súplica. O vendaval agitava o cabelo dela como se fosse uma serpentina, e ajustava a túnica de prata brilhante ao seu corpo esbelto e sensual como se fosse uma bandagem. Signar a observava, fascinado. A que deus selvagem ela estava orando? Com que espírito terrível estava o espírito dela falando? Quando ela tornou a encará-lo, tinha o rosto impassível como o rosto dos mortos. Ela voltou para dentro da sala, como que num sonho. Ele a seguiu, e a sua depressão aumentava. Acercou-se da mesa esperando que ela se sentasse, observando-a sempre, disfarçadamente. Tyrhia o havia avisado sobre o vinho envenenado. Mas ele havia resolvido que não comeria nem beberia de nada que a Imperatriz não partilhasse. Assim, quando ela lhe estendeu um prato de frutas, ele escolheu uma laranja que estava mais próxima dela. Ela insistiu que ele comesse as pequenas andorinhas cristalizadas, mas ele pegou apenas a ave encostada àquela que ela escolhera e, mesmo assim, apenas beliscou o confeito. Ela lhe ofereceu os bolinhos dourados; ele tomou cuidado
em tirar um bolinho da camada inferior. As taças de cristal sobre a mesa já estavam cheias de vinho. Será que a dele já estava envenenada? Ela o admoestou: — Está comendo muito pouco, Majestade. Ele olhou para o prato dela. Ela não havia tocado em nada. Ele respondeu: — Vossa Majestade também. Salustra forçou-se a comer, mas a comida formava um bolo na sua garganta. Signar olhou para a sua anfitriã imperial, do outro lado da mesa. Observou as mãos brancas dela, que se moviam devagarinho. Os olhos estavam semi cerrados, como se ela estivesse sofrendo uma agonia insuportável. — Que mundo estranho este era que vivemos! — ele disse, seguindo a orientação dos seus próprios pensamentos sombrios. — Aquilo que desejamos acima de tudo, nos é negado. O que temos e que provoca a inveja dos outros nos é indiferente. Será alguma perversidade da nossa natureza que faz com que cobicemos aquilo que não temos, ou será que algum deus malévolo decretou que não nos será dado aquilo que desejamos? Salustra fitou-o nos olhos. Replicou: — Acredito que os deuses se divertem atormentando-nos. Eles nos despertam a sede, depois dão-nos água estagnada para matá-la. Eles dotam as pessoas sensíveis de desejos majestosos, de anseios por beleza, de espíritos radiosos com os quais podem apreciar coisas gloriosas, depois fazem com que esses pobres infelizes se desesperem sem conseguir satisfazer nenhuma da suas ânsias. — Ou — disse Signar em voz baixa — eles nos dão o amor, que nos consome alternadamente com alegria e angústia, e decretam que esse amor seja despertado por aqueles que não nos amam. Signar ainda não havia tocado o vinho dele, nem tampouco Salustra havia provado o dela. Ele examinava o líquido vermelho na taça de cristal. Será que era apenas impressão dele, ou o vinho dele tinha uma tonalidade diferente do da Imperatriz? Ele olhou o vinho que borbulhava continuamente, mais de perto. Contra a sua vontade, convenceu-se de que estava envenenado. Salustra lançou-lhe um olhar opaco. — Fale-me de Althrústri, senhor. Ele deu de ombros, indiferente. Disse: — Meu país não é como Atlântida. É uma terra selvagem, e suas zonas setentrionais são cobertas de gelo e de neve, e têm enormes florestas. Como deve saber, somente as fronteiras sul e
leste são povoadas. O resto é terra virgem, com vastas fontes naturais. Mas eu tenho visões de grandes cidades onde agora só impera o deserto. Meu povo é forte e aventureiro, e precisa apenas de um pouco de encorajamento para expandir a sua queda para o comércio. A franqueza dele a surpreendeu. — E onde esperas obter esse encorajamento? Signar brincava com sua taça. — Os deuses poderão ser bondosos. — Quer dizer que forçará os deuses a serem bondosos. Fitaram-se nos olhos por um longo momento. Depois, Salustra afastou o olhar, e uma sombra cobriu-lhe o rosto, novamente. Ele segurou a mão dela: — Quem pode exigir que outrem seja bondoso? — disse meigamente. Ela retirou a mão, ergueu a sua taça, bem no alto. O vinho lançava um reflexo avermelhado sobre o seu perfil pálido. — Bebamos à amizade, Majestade! Ainda de olhos fitos nela, ele ergueu o seu cálice, levou-o aos lábios, fez menção de beber, e parou. — Espere! — ela ordenou. Ele largou a taça, e olhou-a com ar de surpresa. Perguntou: — Que há, Salustra? Não vamos beber à nossa amizade? — Conversemos primeiro. Ele ergueu de novo a taça, e seus olhos brilhavam com uma alegria imprudente. Exclamou: — Bebamos à futilidade! — Fez novamente menção de beber. — Espere! — gritou Salustra de novo, começando a se levantar da cadeira. Ele a fitou com surpresa fingida, recolocando a taça sobre a mesa. Ela voltou a sentar-se, com o rosto sem cor. Disse: — Um brinde muito fraco! Não tens outro melhor? Ele deu de ombros. — Que outro melhor? Os deuses, por esporte, nos criaram, como um dramaturgo cria uma peça,
para o seu próprio divertimento. Enquanto falava, Signar conseguiu ouvir o som que estava esperando, o ruído de passos abafados por trás das cortinas carmesins. Ele ergueu mais uma vez a taça e examinou o vinho com ar crítico. Disse brandamente: — Nisto aqui temos o nosso antídoto. Afogados em vinho podemos até mesmo zombar dos deuses e amaldiçoá-los alegremente. — Mais uma vez levou a taça aos lábios, observando atentamente a Imperatriz. — Espere, senhor! — ela exclamou pela terceira vez, com a mão espalmada, ordenando. Neste instante os céus foram divididos como que por uma espada colossal, e a terra foi sacudida por relâmpagos e trovões. Os relâmpagos pareciam ter encontrado um foco em Salustra, e cada pedra preciosa no seu corpo brilhava como uma estrela. Ela parecia indiferente a este novo tremor. Falou com voz tensa: — Quero falar-lhe. Não bebamos ainda. — Ela recostou-se na cadeira e cobriu o rosto com as mãos por um momento, depois ergueu a cabeça com um sorriso amargo. — Descobri algo, Majestade! Sou covarde. Falta-me coragem e decisão. Em outras palavras, sou uma mulher. — O olhar dela agora era descontrolado, e ela ria, com o rosto ruborizado. — Senhor! — gritou. — Bebamos! Mas dai-me o seu vinho. Veja, toquei a minha taça com os lábios. Beba! É costume em Atlântida, que os amigos troquem as taças. — Ela se inclinava sobre a mesa, ainda rindo, com a taça na mão estendida. Sombriamente, ele tomou a taça dela, e estendeu-lhe a sua. Ela ergueu à luz a taça dele. Os olhos dela faiscavam, seus dentes brilhavam entre os lábios risonhos. Ela exclamou. — À Vossa Majestade! À Atlântida, que traio neste momento, e aos deuses infernais! Ela levou a taça aos lábios, jogou para trás a cabeça, e teria bebido todo o vinho de uma só vez, se o Imperador, subitamente, não se tivesse inclinado e arrancado a taça dos lábios dela. O vinho derramou-se sobre o vestido dela. Simultaneamente, a terra estremeceu sob o rugido dos trovões, e os céus opressivos transformaram-se numa bola alaranjada e incandescente. Depois do último estrondo estarrecedor eles ficaram sentados, juntos, num silêncio estupefato. A Imperatriz olhou para o seu vestido manchado, e em silêncio sacudiu os pingos de vinho das mãos. Ele perguntou suavemente: — Por que desejou que eu morresse, Salustra? E por que me poupou? — Ela fitou a taça despedaçada aos seus pés e a cabeça dela se derreou. Ele repetiu, gentilmente: — Diga-me por que me poupou, Salustra. E por que pretendia morrer no meu lugar? Os olhos dela estavam fechados, como se ela esperasse ocultar a realidade, por um momento. A voz dele era compassiva. — Quis morrer porque pensava que tinha traído a Atlântida? Não, não pense assim, Salustra. Eu já sabia que o vinho estava envenenado antes de vir até cá. Eu não o teria bebido. Não condene,
portanto, a sua covardia. Ela ergueu a cabeça: — Sabia que o vinho estava envenenado? — perguntou pesadamente. — Sabia, fui avisado. Ela afastou as mechas úmidas de cabelo que cobriam a sua testa. Perguntou: — Quem lhe disse? — A sua irmã, Tyrhia — ele respondeu em voz baixa. — Outra pessoa contou a ela. — A minha pequena e doce Tyrhia — ela disse, de modo esquisito. Ele replicou secamente: — Não tão doce... — Eu violei a grande lei da hospitalidade, Majestade. Tentei matá-lo. — Ela estendeu a mão e ele virou o rosto. — Como! Não quer aceitar a minha mão? Bem, não é nenhum hipócrita. — Ela teve uma mudança súbita de humor, e sua voz ficou quase alegre. — Mas não me perguntou se vou tentar matá-lo de novo... não se esqueça de que está em meu poder! Ele colocou a mão no ombro dela: — Não, é Vossa Majestade que está em meu poder, Salustra. Ele se levantou e caminhou rapidamente até às cortinas carmesins. Abriu-as violentamente. No corredor encontrava-se a própria Guarda Imperial dela. À sua frente, o sorridente Siton. Salustra não demonstrou nenhuma reação. Caminhou em passadas calmas até os seus soldados. Parou a alguns passos dos guardas. Os soldados começaram a mexer-se, inquietos, sob o olhar penetrante dela. — Com que então, até vocês, soldados de Lazar! Um murmúrio escapou dos homens, que evitaram o olhar dela. Sorrindo com brandura, Salustra tocou o soldado que estava mais à frente, no peito da sua armadura. Disse, suavemente: — Lutaste ao lado do meu pai, Úslio. Estavas ferido e acossado. Meu pai ficou defendendo o teu corpo, sangrando por muitas feridas, e te salvou, embora com o risco da própria vida. — Ela fez uma pausa. — Ele te amava como eu.
Os olhos do soldado demonstravam a vergonha que sentia. Salustra virou-se para outro gigante de armadura. Continuou a falar, na mesma voz suave: — E tu, Lio. Meu pai libertou-te da escravidão quando ainda eras uma criança. Lavaste os pés dele com as tuas lágrimas de gratidão. O soldado gemeu e afastou-se. Siton ficou inquieto e agarrou o cabo da espada. Signar meneou a cabeça, de cenho franzido. Os olhos sorridentes de Salustra percorreram o restante dos homens, quase com ternura. — O meu pai vos deu a mim. Todos vós jurastes servir-me até à morte. — Ela deu de ombros. — A carne é fraca! — disse, com tristeza. — Não vos culpo. Fostes comprados por alguém mais forte que eu e louvo a vossa prudência. — Ela virou-se para Signar com um gesto zombeteiro. — Tome-os, senhor. Que possam servi-lo melhor do que me serviram. O que é que Vossa Majestade dizia sobre a futilidade? — Ela voltou para perto da mesa e ali ficou, sorrindo como que de alguma piada secreta. — É verdade que a Atlântida inteira desertou para o seu lado, Signar? Ele inclinou a cabeça, em silêncio. Ela o fitou com admiração ostensiva. Disse: — A minha única vergonha é que devo ter feito um papel de idiota, cega e estúpida aos seus olhos. — Não! Conheço-a pelo que é. — E Creto? E quanto ao meu pobre Prefeito? — Faça dele o que quiser. Será libertado a um pedido seu. — E Máhius? — Também ele será poupado. Ele a ama. Isto é o suficiente. — E Erato? - ela murmurou. Signar fechou a cara. Depois, deu de ombros. Disse, em voz baixa: — Ele é teu, Salustra. — E Tyrhia? Ele sorriu, sombriamente. — Como sabe, eu estava apenas jogando o seu jogo, Salustra. Ela é livre de amar a quem bem quiser.
— Ou odiar a quem bem quiser — disse Salustra, desanimada. Suspirou. Acrescentou, a meia voz: — Não tenho outros amigos. Ele inclinou a cabeça. — Deu tudo de si ao seu povo, e ele a traiu. Aprendi uma boa lição. Ela deu de ombros. Disse, indiferentemente: — Não existe o certo e o errado; existe apenas a força e a fraqueza. Posso perguntar-lhe, Majestade, qual é sua intenção, em relação a Atlântida? — Será anexada a Althrústri. Não pretendo fazer represálias. Atlântida sairá ganhando. Ficará mais forte, mais vigorosa, imbuída de vida, esperança e força novas, com a infusão do sangue jovem de Althrústri. Ela estava em silêncio, fitando o céu. O brilho alaranjado havia desaparecido, mas ainda trovejava esporadicamente, à distância. Signar disse gentilmente: — Pediu pelos outros, Salustra. Mas não perguntou o que pretendo fazer com a Imperatriz. — Comigo? Mas é claro que me fará executar. Como ele não respondesse, uma expressão de alarma cruzou as feições dela. Colocou a mão trêmula sobre o braço dele. Disse, com voz que também tremia: — Senhor, tome tudo, mas conceda-me a morte; permita que eu morra rapidamente, sem humilhação. — Não quero que morra, Salustra. Tenho outros usos para Vossa Majestade. — O rosto dele estava severo e inflexível. — Além do mais, exijo de Vossa Majestade a promessa solene de que não tentará contra a vida. Creto, Máhius e Erato serão os reféns desta sua promessa. Se se matar, esses três a seguirão, e por caminhos bem dolorosos. Compreende, Salustra? Se morrer, os que a amam também morrerão. — Que utilidade poderei ter para Vossa Majestade? É tão mesquinho que me exporá à zombaria de um mundo que eu sempre desprezei? — Não desejo a sua humilhação, senhora. Dá muito pouco crédito à sua pessoa, com tal pensamento. Teria me tratado desse modo, se me houvesse conquistado? Não, não insistirei numa resposta. Mas insisto na sua promessa. — A minha promessa? Tome-a. É sua — ela murmurou. — Não pense que serei pouco generoso. Máhius passará o resto de seus dias em conforto e
isolamento. Tentarei convencer o tolo do Creto a unir-se a mim. Erato será devolvido ao seu primo, o Rei de Dímtri, Todos aqueles por quem tem um fraco conservarão a sua honra e dignidade. Ela ergueu para ele os olhos flamejantes. — Vossa Majestade, negou-me a única coisa que desejo. Mas, conceda-me um favor, uma graça. Dê-me o dia de amanhã com todo o meu antigo poder. É só o que lhe peço. Ele hesitou e olhou para além dela. O céu estava mais claro. Na penumbra percebia-se uma luz levemente rosada. Parecia um bom presságio. — Tome-o. É seu.
31
A abdicação da Imperatriz Salustra foi simples: "Aparentemente, é a vontade do povo que abdiquemos do trono da Atlântida e que o Imperador Signar seja coroado em nosso lugar, com as duas poderosas nações reunidas numa só. Esperamos que o povo prospere sob o novo reinado e devote ao Imperador a sua obediência, esforçando-se, juntamente com ele, para criar uma nova ordem digna de Atlântida." A mensagem ostentava o selo da Imperatriz. Agora, o povo volúvel começava a perguntar a si mesmo se deveria ter dado apoio à filha de Lazar. As mulheres choravam, os homens declaravam seus nobres sentimentos. Lazar era lembrado com emoção. Mas era tarde demais. Salustra, de maneira filosófica, pouco ligava para a mudança de sentimentos, a seu favor. Disse a Máhius: — Protestar contra a ascensão de Signar é como protestar contra o nascimento do sol. Já tive o meu auge. Agora, é a vez dele. Mas o sol dela ainda não se havia posto completamente. Ela se preparou para se utilizar do seu último dia de poder com rapidez. Pela manhã, após uma noite inquieta, ela pôs a mão sobre a cabeça inclinada de Creto. — Tu ainda me amas, Creto? Então, cumpre a minha última vontade. Eu me resigno ao inevitável. Mas a traição particular exige a vingança particular. — Ela fez uma pausa, fitando nele seus olhos penetrantes. — A pessoa que eu mais amava me atraiçoou. Signar teria conquistado de qualquer modo. Mas é o desejo que eu não posso perdoar. Tu me compreendes, Creto? O Prefeito olhou para ela, com firmeza. — Refere-se à sua irmã, a Princesa Tyrhia, Majestade? Ela meneou a cabeça de leve, reservadamente. — Há outros, também. Mas, em primeiro lugar, é preciso que saiba que Signar concedeu-me poderes integrais para o dia de hoje. — Ela tirou da túnica um frasco, cheio pela metade de um liquido vermelho efervescente. — Levará isto imediatamente a Júpia, a minha Alta Sacerdotisa, com os meus cumprimentos. E ficarás com Júpia até que ela tenha bebido o conteúdo deste frasco. Ela entregou um rolo de pergaminho a Creto: — Nele Signar decreta que todas as minhas ordens sejam obedecidas no dia de hoje. O Prefeito tomou o frasco da mão dela, ergueu-se e fez continência. — Vossa Majestade ordena e eu obedeço — disse suavemente.
Salustra lançou-lhe o seu sorriso lânguido de antes. — E voltarás imediatamente. Depois que Creto partiu, ela ficou pensativa, em silêncio. Não havia nenhum dos visitantes de costume, nenhum cortesão, nem amigos, ou clientes, ou Senadores, ou Nobres. Os grandes salões bocejavam vazios na penumbra, com exceção dos soldados que tinham ordens de Signar para vigiar atentamente a Imperatriz. Mas a solidão pouco costumeira não durou muito. As cortinas se abriram e Signar entrou, inesperadamente e sem ser anunciado. Quando ele apareceu, Salustra se levantou, oscilando um pouco de tensão e fraqueza. Já não usava mais o colar de Lazar, como se já não tivesse mais necessidade dele. Ela se apoiou no braço da cadeira, e logo se recuperou. — Não, Salustra. Ainda é a Imperatriz hoje, não se levante para mim. — Ele deu-lhe a mão e ajudou-a a sentar-se. Um sorriso divertido tocou os lábios pálidos dela: — Tenho estado pensando, Majestade, que deve pedir-me perdão por quebra de hospitalidade. — E Vossa Majestade — ele sorriu — por tentar mandar-me para os meus ancestrais. Ela riu baixinho, balançando a cabeça. Ele teve a impressão de que ela não estava rindo das palavras dele, mas dos seus próprios pensamentos. Signar falou, após um momento: — Não me perguntou quais as minhas intenções a seu respeito, senhora. — Não estou interessada — ela disse, dando de ombros. — Mas eu estou — ele retrucou com firmeza. Novamente, fez-se silêncio entre eles. Finalmente, ela perguntou: — As suas ordens estão sendo obedecidas implicitamente? — Ela inclinou a cabeça. — Creia, sinto apenas compaixão por Vossa Majestade... -— Ele tomou a mão dela. Ela arrancou a mão das dele. — Tem tudo, senhor? — Ele fez que sim com a cabeça. — Está satisfeito? — Estou, Salustra. — Então, senhor, poupe-me sua piedade. Ela deu-lhe as costas e caiu num profundo silêncio. Signar ainda ficou sentado ali, por alguns
minutos, depois, dando de ombros, retirou-se sem jeito, sem dizer mais nada. "A minha presença", pensava com amargura, "é como a sepultura para ela, e, no entanto, eu só queria vê-la viva e feliz... ao meu lado." Ela ficou sentada ali por mais uma hora, até que Creto, com o rosto ruborizado, veio à sua presença com um brilho nervoso no olhar. — Pronto, Majestade — exclamou. — Ela resistiu à sugestão, mas eu fiz com que a alternativa parecesse bem menos agradável; portanto, finalmente, ela bebeu, amaldiçoando Vossa Majestade até o último suspiro fétido. Ela colocou a mão sobre o braço do Prefeito e fixou o seu olhar hipnótico no rosto dele. — Agora, Creto, vai aos aposentos da Princesa Tyrhia. Tens o decreto de Signar. Entra lá sem demora. E então — baixou a voz para um murmúrio — tu a trarás até aqui. O Prefeito tremeu e seu rosto ficou da cor do pergaminho novo. — Majestade — ele gaguejou — eu imploro... Salustra deu um sorriso desmaiado. — Não é o que tu pensas. Anda, Creto, vai!
32
O assassinato de Júpia abalou a cidade até o âmago da sua beatice. Ganto e Siton relataram ao Imperador o estado de espírito selvagem em que se encontrava o povo. Eles aconselharam Signar, com veemência, a entregar Salustra à justiça da cidade. — Quem sabe até o povo se recuse a aceitá-lo se não reagir a esta blasfêmia — disse Ganto. — Entregue-a ao seu próprio povo, e ele o amará por isso. Signar, soturnamente, mandou que seus guardas fossem buscar Salustra. Ela entrou calmamente. O seu olhar tranqüilo percorreu desdenhosamente o grupo diante do Imperador. Ele não se levantou quando ela se pôs à sua frente. — Assassinou a sua líder religiosa — ele falou acusadoramente. — Assassinei a exploradora traiçoeira do meu povo — ela respondeu sem se alterar. — A morte dela clama por vingança. — Mate-me, então — sorriu ela. Signar mexeu-se na cadeira, impaciente. — Podia ter assassinado milhares de outros e nenhuma mão se ergueria contra Vossa Majestade. Mas o assassinato de uma Alta Sacerdotisa, de uma representante dos deuses, é indefensável. — Ela não deu resposta, e ele a fitou com severidade crescente. — O povo clama pela sua morte. Mas eu declararei que Júpia foi assassinada sem o seu conhecimento, por Creto, que queria apenas ofendê-la. Ela sorriu, de leve. — E eu o negarei, Majestade. Ele se levantou, praguejando. — E eu a declararei louca, e, pelos deuses! acredito que o seja! — Ainda sorrindo, ela inclinou a cabeça. Os olhos zangados dele fixaram-se nos dela. — Se eu a entregar ao seu povo, ele lhe infligirá a mais torpe das humilhações antes de permitir que morra, entre os maiores sofrimentos. Essa perspectiva lhe agrada? Ela se retesou. A alma que podia suportar com tranqüilidade a idéia da morte não podia suportar a vergonha. — Conceda-me uma morte breve e rápida, agora, senhor — ela sussurrou.
Ele a afastou de si com raiva; a este gesto dele, todo o orgulho dela voltou, e o seu corpo enrijeceu. — Manda buscar a mulher que tomará conta dela — Signar disse em voz alta para Siton. O general deixou a sala e logo voltou com uma Brittúlia chorosa. — Leva a tua senhora para os aposentos dela, mulher — disse o Imperador — e cuida para que ela não faça nada a si mesma. Salustra fitou-o desafiadora. — Ainda tenho a sua palavra de que os meus desejos serão ordens por 24 horas, e pelos meus cálculos ainda me restam 12 horas. Signar enrubesceu. — E que novos horrores Vossa Majestade contempla? — Deixa Creto comigo, por mais algum tempo. — Ele deve pagar pelos erros que está cometendo. — Salustra jogou a cabeça para trás. — A promessa de um rei, Majestade, vale tanto quanto o próprio rei. Ele fez uma carranca, depois a sua fisionomia se desanuviou. — Mas não se esqueça de que no minuto seguinte estará à minha disposição. Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, ela se havia virado e saído da sala. O seu passo era firme e o seu rosto sereno. Ela era uma rainha da cabeça aos pés, e os olhos de Signar seguiram-na num silêncio fascinado. — Olha para que lado sopra o vento! — sussurrou o ministro Ganto para o general Siton. — Eu me apressarei a prestar minhas homenagens mais humildes e reais a esta bela víbora. Siton franziu a testa. — Eu também. Ao retornar aos seus aposentos, Salustra encontrou uma surpresa à sua espera, A sua ante-sala estava cheia, não de Senadores, nem de cortesãos, nem de Nobres que antes a bajulavam, mas sim de filósofos e cientistas. Lá estavam, entre outros, Yônis, Tálius, Éverus, Zetan, Lodiso, Mórti. Apressaram-se a cumprimentá-la e a beijar-lhe as mãos reverentemente. — Ah! senhores — ela disse, com voz trêmula — não esperava que fôsseis lembrar-vos de mim.
— Como poderíamos esquecer a nossa amiga mais nobre, a nossa protetora mais compreensiva, a nossa benfeitora mais bondosa? — exclamou Zetan. — Dá-nos pouco crédito, Majestade, pela simples gratidão. — Gratidão? — ela repetiu com amargura. — Eu sempre disse: "Queres um inimigo? Então, ajuda o teu amigo!" — Contudo, era evidente que ela tinha ficado emocionada com a lealdade deles. — As agonias hoje são as pilhérias de amanhã — disse Mórti, — Somente pela indiferença e pelo humor podemos vencer os deuses. Ela hesitou, observando-os atentamente. — Senhores, ouvistes contar que mandei matar a Alta Sacerdotisa? — Ouvimos, Majestade — replicou brandamente Éverus. — E não ficastes horrorizados? Mórti tomou-lhe a mão: — Não, Majestade. O que nos horrorizou foi a traição que tornou aquele ato necessário. Os olhos de Salustra toldaram-se. — Tenho apenas mais uma coisa a dizer-vos, senhores. É perigoso amar-me e ser meu amigo. Não tenteis ver-me mais. A Imperatriz de Atlântida está morta. Depois de despachá-los, ela se voltou para Brittúlia, que chorava de novo. — O teu trabalho está terminado, Brittúlia. Os virtuosos sempre acham consolo para a sua virtude quando os não-virtuosos se arruinam. Brittúlia ajoelhou-se e beijou, em lágrimas, a fímbria do vestido de Salustra. — Majestade, conceda-me uma graça. — Já está concedida, Brittúlia — ela respondeu, pondo a mão sobre a cabeça da mulher. — Então, permita que eu permaneça com Vossa Majestade. Eu vim para cá para cuidar de uma mocinha, e acabei me afeiçoando a Vossa Majestade. Tem mais virtudes do que qualquer virgem. A Imperatriz fez Brittúlia levantar-se e beijou-lhe a testa pálida. — Não me envergonhes com a sua virtude. Já suportei mais do que os não-virtuosos podem agüentar. Vai buscar Tyrhia para mim. Brittúlia não se encolheu, como de costume, ao toque da Imperatriz.
— Ainda tem inimigos, Majestade, como, por exemplo, o Senador Divona. Ela riu, abafadamente. — Diz-me, que podem Divona e os da sua laia fazer contra mim, agora? De qualquer modo, ele está na lista do bom Creto, embora eu tenha certeza de que o seu novo amo logo se descartaria dele. Um traidor é como um homem que engana a mulher; pode-se ter certeza de que ele repetirá a proeza com a sua nova parceira. O hábito permanece, só os nomes mudam.
33
Signar havia proclamado oficialmente que Salustra não era responsável pela morte de Júpia. A Alta Sacerdotisa, explicava ele, fora assassinada num ataque de loucura pelo jovem Prefeito, Creto, que pagaria com a vida pelo crime inominável. Divona, o Senador, buscou a proteção de Signar. O Imperador escutou friamente enquanto o Senador se referia a antigos favores. — Salustra está indefesa, agora. Ela não pode fazer mal — replicou Signar. — Ela é uma mulher malvada, Majestade! Só me sentirei seguro quando ela estiver morta. — Então não vos sentireis seguro por ainda algum tempo. — Ele olhou para o Senador com cinismo. — Não fostes vós, Divona, que certa vez pedistes a própria Salustra como recompensa pela vossa traição? O Senador gaguejou: — Mudei de idéia. Prefiro uma tigresa esfaimada na minha cama. Signar fitou-o com desprezo. — Ide, enquanto podeis. Divona empalideceu e saiu às pressas do aposento. Não havia lugar em Lamora em que pudesse esconder-se. Creto não demorou muito a encontrá-lo. O cínico Senador, devotado a uma vida de artimanhas, descobriu que o último a respeitar um traidor é aquele que o emprega. Ele disse para Creto: — Por que me matar, quando posso tornar-te um homem rico, com tudo que jamais sonhaste, grandes propriedades, escravos, mulheres ao teu dispor? Creto não pôde furtar-se a um momento de triunfo. — Como poderás ajudar-me, traidor, se não podes nem ajudar-te a ti mesmo? E a essas palavras, enfiou a espada bem no fundo das entranhas daquele homem consumido pelo seu próprio ódio. A Imperatriz havia esperado com impaciência o retorno de Creto. Bastou um olhar, quando ele apareceu, para que ela soubesse de tudo. — Se isso tivesse sido feito há muito tempo, Creto, Atlântida não estaria na situação em que se encontra.
O Prefeito ajoelhou-se e beijou a fímbria do vestido dela. — Que mais, Majestade, antes que eu morra? Ela meneou a cabeça, com tristeza. — Eu trocaria com prazer a minha vida pela tua. — Para Vossa Majestade não há lugar para sentimentos — o homem de ação retrucou. — Ainda precisas buscar a minha irmã. Tenho mais um dever a cumprir. — Ela refletiu por um momento. — Leva um guarda até a casa de Brittúlia. A tolinha bem pode estar escondida lá, enquanto Brittúlia a procura no Palácio. — O Prefeito hesitou, com ar apreensivo. — Que é, Creto? — ela indagou. — Espero, Majestade, que o seu último ato seja um ato honroso. Um breve sorriso iluminou o rosto de Salustra. — Não temas, não pretendo fazer mal àquela tola. Estou considerando outro tipo de vingança. Mal ele se retirara surgiu Brittúlia, com uma mensagem do poeta Erato, que suplicava uma audiência. — Eu o encontrarei no jardim, dentro de uma hora — disse a Imperatriz, bem-humorada, para surpresa de Brittúlia. — Dize-me, o que fizeste da Princesa Tyrhia? O rosto de Brittúlia estava contrito. — Majestade, parece que ela desapareceu da face da terra, talvez com medo de que Signar exerça seus direitos sobre ela. — Ela é mesmo uma idiota. Faz-me lembrar a mãe, Láhia, cada vez mais a cada dia que passa. Signar não sabe nem quer saber se ela está viva ou morta, e nunca tencionou casar-se com ela. Foi tudo um ardil da parte dele. — Ela fez uma pausa. — Anda, Brittúlia, vai até a tua casa e encontra-te com Creto. — Com os olhos brilhantes, a virgem Brittúlia ajoelhou-se e beijou a mão da Imperatriz. Salustra fitou-a com piedade. — Anda, vai — disse com bondade. — Pobrezinha... A hora em que Salustra perderia a sua autoridade cedida por empréstimo aproximava-se célere. Ela sentava-se, tranqüila, repassando mentalmente os últimos acontecimentos, sem remorsos. Não dava importância aos astrólogos e às suas previsões, mas não podia olhar para o céu cinzento, sentir o cheiro nauseante na atmosfera, ou contemplar a cessação da energia elétrica sem considerálos como passos fatídicos em direção a um drama mais sinistro, ainda por se revelar. Ela disse a Máhius, que acabara de entrar:
— A vinda de Signar foi mais um acréscimo para a ruína de Atlântida, ocasionada, como advertiram aqueles fanáticos barbudos, pela sua própria falta de propósito moral. Qual o motivo para a existência de Atlântida? Ela já viu e já fez tudo o que havia de nobre, de podre e degradado, até que se tornou um poço de iniqüidades. O seu povo prefere ser alimentado por um governo paternalista a trabalhar, prefere a dissipação à contribuição. Ele não vale a pena ser salvo, e é disso que os deuses têm certeza, enquanto sacodem a terra. Máhius permitiu-se um sorriso. — Estou certo de que o uso indevido feito por Signar do divisor de átomos contribuiu para o modo pelo qual os elementos se vêm portando, recentemente. Ela ficou pensativa, por um momento. — Somos todos os instrumentos de um destino inescrutável, e interessava aos deuses que Signar fizesse o trabalho deles, com ajuda de Divona e seus amigos. — O rosto de Salustra ficou severo, e ela era de novo uma Imperatriz. — Mas Divona, como Júpia, não causará mais mal aos seus conterrâneos. O velho deu de ombros, indiferente. — Isso pouco importa, Majestade, se os pressentimentos forem corretos. Ela lançou ao seu ministro um olhar astuto. — Gostaria disso, não é, meu velho? Ele meneou a cabeça. — Só para mim mesmo, Majestade. Que os outros que ainda não se cansaram da vida se enfastiem desse passatempo sem sentido, como eu. — Deste demais de ti, Máhius. — Não, Majestade! De todos os meus anos com o seu pai e com Vossa Majestade, só tenho uma mágoa. — E qual é ela, meu velho? — Que o seu augusto pai me tenha colocado na câmara de rejuvenescimento. Ela olhou para os olhos turvos e pele enrugada, para a figura encurvada que já não conseguia ficar ereta e indagou, curiosa: — Não preferias ter a cara e o corpo de um Signar, ou de um Erato? — Não, Majestade, porque quando olho no espelho e vejo refletida esta ameixa seca, eu sei
que a morte não pode estar muito longe. — Com que então tiveste uma vida assim tão dura, meu velho? Ele balançou a cabeça. — Não, Majestade, saboreei tudo na época apropriada. Mas quando a mente já se defrontou com um problema, ela não tem mais incentivo para cobrir o mesmo terreno, sabendo qual será o resultado, por experiência. — Pela tua definição, então, eu também já estou pronta para este fim de que tu falas. — Não, Vossa Majestade está desencantada, no momento, pelas fraquezas dos outros e pelos seus próprios desapontamentos, mais ainda é jovem e superará esses obstáculos. — Quando é, então, velho, que nos tornamos velhos demais para viver? — Quando já não nos entusiasma a promessa do que pode surgir na próxima esquina. Então, Majestade, estamos prontos para Drulla. Ela suspirou: — Então eu estou velha demais. — Não, isso não. Nunca se casou, nem teve filhos, nunca conheceu o amor de um homem do seu quilate... como pode ter terminado com essa experiência? — Não há ninguém para amar que me ame — ela disse, melancólica. Ele lançou-lhe um olhar de profunda percepção, nascido de dois períodos de vida a examinar as motivações encobertas do homem. — Majestade, ao servir seu pai, eu descobri que não se pode contar com aquilo que o homem diz, ou mesmo com o que ele faz; é conhecendo o que ele deseja que conhecemos sua verdadeira natureza. E, portanto, eu me pergunto a mim mesmo o que é que Vossa Majestade realmente deseja. — E que vês tu, meu velho? — Vejo que deseja um companheiro, um igual, mas que diz a si mesma que isso é impossível. — Ele a olhou com o carinho de um tio. — E eu lhe digo, filha de Lazar, que é amada, por quem ama. Ela lançou-lhe um olhar de desprezo. — Tu te referes ao poeta Erato, velho? Ele a olhou com ar indulgente.
— Eu a conheço desde o berço, Majestade, e conheço a afeição honesta que traz trancada no coração. Liberte-a. Nada tem a perder. Ela balançou a cabeça, como que para livrar-se de algum pensamento cativo. — Quero cuidar de Tyrhia antes de partir. Depois estarei pronta para encontrar-me com o grande Lazar. Ele deu uma risadinha. — E por que está tão preocupada com esta cabeça-oca, filha de uma mulher que seu pai detestava? Ela deu de ombros. — Ela é minha irmã. Percebo isso às vezes no seu gênio e na inclinação da sua cabeça. — Seja honesta, Majestade. Não está querendo unir o coração do Imperador a uma criatura ignóbil cujas emoções provêm das suas glândulas. Ela não viu necessidade de contar a ele que o projeto de casamento havia sido abandonado. — E quem é que eu amo que também me ama, meu velho? Na hora em que Máhius ia responder, a visita de Signar foi anunciada. Ele entrou acompanhado de um escravo. Olhou ao redor de si com ar vigilante, e percebeu a expressão desgastada da Imperatriz e a resignação estampada no rosto do ministro. — Salustra, soube que não tens tocado em nenhum alimento há dias, e que a sua cabeça não tem repousado no travesseiro. Que loucura é essa? A atitude dela mudou subitamente. Disse, com um brilho malicioso nos olhos: — Majestade, quer engordar-me para o abate? Os olhos dele ficaram severos. — Não diga bobagens. Não é Tyrhia, mas sim a Imperatriz Salustra. Ela deu de ombros, frustrada. — Tem espiões até nos meus aposentos? — Espiões, não, Majestade; servidores interessados. — Dê-lhes o nome que quiser... É a mesma coisa. Ele fez um gesto de impaciência e mandou o seu escravo trazer comida para Salustra. Com as
próprias mãos ele arrumou uma mesa com frutas, queijo, carne, pão e vinho. — Não consigo comer — ela disse, com simplicidade. — Pode tentar. — Ele serviu o vinho numa taça dourada e estendeu-a para ela. — Juro-lhe que não está envenenado — disse, divertido. Ele tinha um efeito hipnótico sobre ela. Ela pegou o vinho e bebeu-o. Suas faces ficaram com um pouco de cor. Ela partiu um pedaço de pão e levou-o à boca, mas não conseguiu engolir. Signar disse vivamente: — Ora, eu lhe dava crédito por maior inteligência. Ele ficou ao lado dela até que ela houvesse comido a carne e o queijo e as frutas e tivesse bebido mais vinho. — Por que deseja que eu permaneça viva, senhor? — ela indagou. Ele a fitou, intensamente. — Por que me poupou, aquela noite, Salustra? — Quem sabe? — Ela deu de ombros. — Talvez eu tenha achado que não valia a pena matá-lo. Talvez eu desejasse que vivesse porque me divertia. Não sei... Ele tomou a mão dela, sorrindo. — Algum dia, Vossa Majestade mesma me dirá. E quando o fizer, eu lhe direi por que quero que viva. Ele virou-se abruptamente para Máhius, que permanecia em silêncio. — E vós, o que dizeis, velho? Máhius deu de ombros, de leve. — Que há para dizer, Majestade?
34
O céu ainda se estava comportando de modo estranho. Uma pálida luz amarelada, refletida pelas montanhas, coloria o mar de um amarelo esverdeado. O ar estava pesado e úmido, o que tornava o ato de respirar um esforço. Houve uma vez em que a terra tremeu e um estrondo feito um trovão saiu das profundezas do mar. Salustra, caminhando devagar para os jardins, era banhada pela luz amarelada. Na extremidade da escadaria de mármore estava Erato, agitado e de mãos estendidas. Siton e dois soldados, que haviam seguido a Imperatriz, observavam-nos com interesse. Não conseguiam escutar a conversa deles, mas viram quando o jovem poeta se ajoelhou e beijou as mãos dela, com adoração. Sem esperar por novas ocorrências, Siton dirigiu-se imediatamente a Signar e relatou o que havia visto. O rosto de Signar toldou-se. Afivelou a espada, que geralmente só usava em cerimônias, e, sem mais palavra, apressou-se a ir até o jardim. Chegou a tempo de ver as vestes brancas de Salustra desaparecerem numa clareira. Ele a seguiu de perto, como já fizera anteriormente, e viu que ela se sentava num banco de mármore. Erato, aos seus pés, alternadamente beijava-lhe as mãos e apertavaas de encontro ao rosto. As vozes deles, embora baixas, ecoavam claramente na quietude do local. — Não, é o fim — dizia Salustra tristemente. — Não sei o que ele pretende fazer comigo, nem me importa. — Venha comigo para Dímtri — implorava Erato, mais uma vez. — Peçamos a permissão dele. — Ele beijava repetidas vezes as mãos dela, num êxtase de desejo. — Beijas as mãos tintas do sangue de um sacerdote, Erato. — Se estivessem tintas de tal sangue três vezes, isto não afetaria o meu amor — respondeu ele resolutamente. Ela permaneceu em silêncio, e Erato apoiou a face contra o joelho dela e franziu o cenho. — Tentei avisá-la da traição, minha amada. Mas não me quis receber. — Um aviso não me teria ajudado — ela replicou, com ar distante. Ele hesitou, olhando para ela, constrangido. Finalmente, disse: — Salustra, diga-me se é verdade o que comentam, que Sigmar a ama? Salustra fitou-o, incrédula. — Pelos deuses! — exclamou. — Que dirão a seguir esses idiotas? Signar me odeia. Ele está me reservando para futuras humilhações.
Erato a examinou com o olhar penetrante de amante; disse com brandura: — Mas Vossa Majestade o ama. Ela apoiou o queixo nas mãos e nada disse. Erato suspirou. — Suspeitei disso da última vez que a vi. Como pode ele deixar de amá-la? Salustra abanou a cabeça, com veemência. — Não sei se o amo ou o odeio; é tudo muito confuso. — Ah! Deuses! — gemeu Erato. — Se eu pudesse fugir com Vossa Majestade para algum lugar distante. Mesmo que nos pegassem, a morte seria melhor do que esta agonia. Ela lhe lançou um olhar de piedade. — Se nos pegassem, apenas tu sofrerias. Proíbo-te de continuar a falar nisso. — Vossa Majestade me proíbe porque o ama! — exclamou o rapaz com amargura. Ele a tomou nos braços e beijou os seus ombros nus, e a sua garganta. Signar, escondido nas sombras das árvores, mordeu o lábio até tirar sangue. Salustra soltou-se suavemente do abraço de Erato. — Ainda és um poeta, com o ardor de um poeta, Erato — ela disse, com ar ligeiramente divertido. — E Vossa Majestade, que é? — Nem mesmo uma Imperatriz. — Ela deu de ombros, com ironia. Na sua impotência, Erato começou a bater na cabeça com os punhos cerrados. — A próxima conquista dele será dos pequenos reinos indefesos cuja integridade seu pai garantia. Conquista? Não! Ele simplesmente se apossará deles. Em Dímtri eu esperarei por Signar. Eu o enfrentarei cara a cara e veremos quem é o melhor! Quando acabou de falar, uma sombra caiu sobre eles. Levantaram os olhos, sobressaltados, e deram com uma enorme figura à sua frente. Signar estava sorrindo, mas havia uma ameaça levemente velada no seu rosto moreno. Disse calmamente: — Aqui estou, Erato. Que tens a dizer-me? Erato estava mortalmente pálido. Gritou, sem se conter:
— Que tenho eu a dizer-lhe? Nada, a não ser que é menos que um homem, menos que um escravo, menos que a poeira sob os pés de Salustra! Salustra virou-se para Signar, desesperada. Disse em voz baixa: — Senhor, ele não passa de um jovem tolo e louco. Pensando que ela se preocupava somente com Erato, Signar afastou bruscamente a mão dela do seu braço. Virou-se para o poeta, e antes que o moço pudesse mover-se ele o agarrara pelo ombro do modo como um leão agarraria um cachorro. — Idiota efeminado! — exclamou com desprezo. — Eu seria todas essas coisas que dizes que sou se brigasse contigo! — Ele deu uma bofetada em Erato. Erato retesou-se, atônito, e depois foi varrido por uma onda de raiva, há muito reprimida. A espada dele reluziu à luz amarelada, e Signar sacou rapidamente a sua. Um grito abafado saiu dos lábios de Salustra e ela agarrou o braço de Signar. — Senhor, prometeu-me que pouparia aqueles que eu amo. Seria um assassinato covarde, indigno de Vossa Majestade! Signar parou e olhou para Erato com desprezo. Debochou: — Diga se o ama, Salustra. — Sim, senhor. — Então, toma-o. É apropriado que a filha de Lazar tenha um cantador de canções como amante. Enquanto Signar permanecia ali, orgulhoso e desdenhoso no seu esplendor real, o poetinha, o desprezível Erato, atingiu-o no rosto com a espada. Exclamou: — Nunca fui um açougueiro como tu! Mas sou um verdadeiro homem, coisa que não és! O sangue jorrou da face de Signar e caiu num dos seus olhos, cegando-o parcialmente. Mas ele atacou ferozmente, e sua espada golpeava a torto e a direito, como um grande martelo. Diante do assalto violento, Erato foi cedendo terreno, cada vez mais. Porém, de repente, ao defender-se de um golpe dado por cima, ele conseguiu dar uma estocada de sorte, no lado em que Signar estava cego. Salustra soltou um grito, pois Signar havia sofrido um ferimento quase fatal, no peito, e o sangue já começava a manchar sua túnica branca. Signar recuou por um momento, mais espantado que aborrecido. O sorriso desapareceu do seu rosto. Sua fisionomia endureceu e o seu único olho desanuviado teve um brilho estranho. A visão do sangue do Imperador renovara as débeis forças do poeta. E então, com Signar reagindo valentemente,
o poeta recebeu uma estocada direta na garganta e começou a sangrar profusamente. Uma torrente de sangue parecia jorrar da grande veia e Salustra, sentindo-se mal, caiu sobre o banco de mármore, observando tudo com uma sensação de tragédia iminente. O ar amarelado tornara-se mais metálico, mais abafado. As espadas dos homens brilhavam com uma luz dourada, os seus pés esmagavam a grama manchada de sangue, e sua respiração era ofegante e agoniada. Houve uma vez em que a terra tremeu sob os pés deles e um poderoso rugido vindo do mar rasgou os ares. Mas eles não sentiram nem escutaram nada. Signar sangrava por diversas pequenas feridas nos braços e um fio de sangue vermelho escorria-lhe da face. Erato enfraquecia a olhos vistos. Ele tinha somente aquele ferimento na garganta, mas estava acabando com as suas forças, rapidamente. Ele tropeçou, caiu de costas; a espada de Signar voou, arrancou a arma de Erato da sua mão e fê-la sair girando pelos ares. Salustra levantou-se e, ao fazê-lo, percebeu que Signar, na fúria da luta, ia enfiar a sua espada no peito do rapaz indefeso. Mas, surgindo do nada, uma figurinha esguia de repente jogou o seu corpo entre os dois homens, e caiu de joelhos ante o Imperador. — Se tem algum amor pela casa de Lazar, poupe este homem, que amo mais que a própria vida. A espada de Signar parou, depois caiu ao longo do seu corpo. Numa voz que a perda de sangue tornara fraca Signar conseguiu dizer, com um leve sorriso: — Ainda bem que esta casa sabe amar, embora o seu amor seja desperdiçado com um poeta. Tyrhia acabara de chegar, com Creto e Brittúlia, em resposta ao chamado de Salustra, e agora, com um grito de alívio angustiado, ela abraçou-se ao poeta semidesmaiado. Ternamente, beijou-lhe os lábios ensangüentados. Erato sorriu de leve, fechou os olhos e então, muito devagar, seu corpo desabou, e ele caiu de cara na relva suja de sangue. Tyrhia ajoelhou-se ao lado dele e tomou seu corpo nos braços. Com a cabeça dele apoiada ao peito, e o sangue dele manchando suas vestes brancas, ela ergueu os olhos para Signar, que permanecia em silêncio com a espada ensangüentada ainda na mão. Neste momento surgiu a Guarda Palaciana, alarmada pelos gritos de Tyrhia. Signar apontou para a Princesa e para o homem entre os seus braços. Disse com voz fraca: — Se ele viver, poupai-o. Quanto a mim... Ele oscilou e teria caído se Siton não o houvesse amparado. Os dois homens foram carregados para o Palácio, para os próprios aposentos de Salustra. O médico imperial, Cino, examinou primeiro o Imperador e meneou a cabeça, gravemente:
— Um fiapo mais perto do coração e a morte teria sido instantânea. Mesmo assim, a recuperação é duvidosa. Dirigiu-se então para Erato, inconsciente; pôde apenas dar de ombros, impotente. — Está nas mãos dos deuses. Num frenesi de desespero e dor, a Princesa Tyrhia avançou para a irmã. — É tua culpa — gritou. — Signar matou-o por tua causa, pelo amor que tem por ti! Salustra parecia estar vivendo um sonho. Sussurrou: — Ele ainda não morreu. Tem esperança. — Ela fez um sinal para a chorosa Brittúlia: — Diz a esta tola que era meu desejo uni-la a Erato, e que por esse motivo chamei os dois ao meu jardim. Tyrhia, agarrada ao poeta como que tentando mantê-lo vivo pela sua vontade, não queria ser consolada. — Se ele morrer, minha irmã, será por tua culpa! Salustra olhou para o relógio de parede. As 24 horas de autoridade que o Imperador lhe havia dado estavam terminadas. Com o coração pesado ela se virou para Máhius, sempre presente nas horas de necessidade: — Quero que me dêem notícias de hora em hora sobre o estado dele. — Sobre o estado de quem, Majestade? — De Signar. — Ela fitava o vazio, à sua frente. Um manto de tristeza cobriu o Palácio. Para além do fosso do Palácio reuniu-se uma grande multidão, silenciosa e soturna, olhando temerosa para os céus. A bruma amarelada do dia se tinha desvanecido, mas o céu noturno era uma chama alaranjada ardente. Uma luz estranha pousava sobre o mar inquieto, e as águas se encrespavam como uma chama em movimento. Até mesmo as montanhas nebulosas pareciam como que rasgadas, a intervalos, por rios de fogo que as percorriam. Salustra não dormiu, naquela noite. Junto com a irmã, ela ficou ao lado do leito do poeta moribundo, admirando a serenidade das feições exangues. Contudo, perversamente, os seus pensamentos estavam voltados para outro homem. Entrementes a tonalidade viva do céu ficou mais escura, e o mar ficou tremendamente turbulento. Geólogos, astrônomos e oceanógrafos sussurravam uns para os outros, apavorados, observando os instrumentos que registravam os tremores do fundo do oceano. Vindo do mar surgiu um vento incontrolável, e, ao seu aparecimento, os céus pareceram se abrir. Uma massa sólida de água caiu sobre a terra, e o mar tornou-se um demônio uivante.
No auge da tempestade os olhos de Erato se abriram e pousaram em Tyrhia. No seu estupor ele a confundiu com Salustra. Tyrhia debruçou-se sobre ele e beijou-lhe a testa úmida e fria. A mão dele mexeu-se debilmente e ela a segurou nas suas. A morte viera buscá-lo e ele lutava contra ela, para poder falar mais uma vez com a mulher que amava. Ele estertorava... Sussurrou: — Eu te amo, mas não como um poeta. — Suspirou e sorriu, sonolento. — Se os deuses o quiserem, eu logo serei um filósofo. — Acabou de falar e morreu. Uma Salustra entristecida olhou para a irmã. Disse: — Era de ti que ele falava.
35
A chuva continuava com a mesma fúria; era como se o chão dos céus se tivesse aberto por 24 horas. Poucas pessoas ousavam transpor a soleira da sua porta e todo movimento de negócios ficou suspenso. As águas corriam pelas ruas largas e desertas, e pelos canais de Lamora, girando em volta das antigas estátuas e pilastras, arrastando tudo que encontravam à sua frente. A terra desabava, as fundações dos edifícios ficavam abaladas e eles oscilavam precariamente. Era meio à chuva torrencial, acima do vento uivante e do rugido das ondas encrespadas ouvia-se o barulho das pilastras e paredes que desabavam ante o dilúvio. As montanhas pareciam dissolver-se, transformando-se em rios negros que desciam sobre a cidade debilitada. A terra e o céu e o mar eram um único vórtice escumante que parecia engolir tudo que flutuava. Ocasionalmente, a terra emitia um ronco como que em protesto contra toda aquela indignidade. A tempestade continuou durante dias, e parecia intensificar-se. Os habitantes dos bairros próximos à praia começaram a recuar quando as águas principiaram a inundar as ruas mais baixas, carregando as suas casas. Na superfície efervescente flutuavam detritos de toda espécie. Os esgotos despejavam seu conteúdo nas ruas, e aqui e ali se via passar um cadáver. A cor alaranjada dos céus havia desaparecido, e um brilho arroxeado cobria a face da terra, como um manto. Mas os roncos agourentos não paravam, e pareciam vir da terra e do mar e do céu, simultaneamente. Às vezes, parecia haver bigas invisíveis correndo em cima; outras vezes, era como se um exército montado em cavalos gigantescos invadisse a terra, vindo do mar. Era como se o âmago da terra se estivesse desfazendo, e como se uma concha precariamente fina que flutuasse no topo dela fosse abrir-se e desabar num abismo sem fim, por sob o mar enfurecido. Os cientistas estavam compreensivelmente atordoados, mesmo levando em conta as recentes profecias de destruição. Disse um deles aos seus colegas: — Se vós não me considerásseis louco, senhores, eu declararia que o mar se está infiltrando sob a terra, em vastas cavernas subterrâneas, que as paredes dessas cavernas estão sendo duramente atingidas, e que esta pressão sem precedentes é a causa deste ronco constante. — Neste caso — retrucou outro — é apenas questão de tempo até que os alicerces sólidos da terra se desfaçam e a crosta desabe. Entrementes, a agitação popular aumentava, à medida que chegavam notícias atrasadas das outras províncias. Havia morte, desolação e destruição por toda parte. Milhares estavam perdendo as vidas, e multidões sem conta estavam fugindo para o leste, para terras mais altas, em face das águas indóceis. Cidades inteiras estavam em fuga. Mas, para onde? A terra inteira parecia estar se dissolvendo, virando água. De boca em boca corriam os rumores através do mundo inundado. Alguns diziam que Althrústri ainda estava a salvo, protegida pelo seu clima frio. Outros, esperançosos, dirigiam-se para o oeste. Começaram as migrações em massa dos habitantes das províncias centrais e meridionais de Atlântida, dirigindo-se para o norte e para o oeste, a despeito das chuvas torrenciais e contínuas. E, então, após sete dias, o temporal pareceu diminuir. O vento acalmou-se, o céu clareou, a
chuva cessou abruptamente. Num céu azul-claro o sol brilhou palidamente sobre um mundo semiafogado. O ar estava frio, e o mar cheio de grandes ondas que vinham bater com estrondo sobre as praias castigadas. A despeito de persistirem os roncos subterrâneos, os homens começaram a relaxar. Em toda a Atlântida milhões dirigiram-se aos templos, para agradecer a sua salvação. Em muitos lugares, as pessoas estavam com água fétida até os joelhos, tremendo de frio, mas gratas porque os deuses, aparentemente, haviam poupado o mundo. Milhões estavam desabrigados. Ninguém sabia ao certo o número de mortos. Os sacerdotes começaram a murmurar entre o povo. A calamidade não havia atingido o país de modo tão impessoal quanto afirmavam aqueles cientistas ímpios. Pois sim que eram camadas em deslocamento! Mentiras! Macaréus... besteira! Maremotos... absurdo! Os deuses estavam furiosos. Por que atacavam a terra? Porque o povo da Atlântida permitia que uma mulher má e blasfema existisse entre ele. Os sacerdotes não se esqueciam da sua arquiinimiga, agora que a terra parecia estar a salvo outra vez. Por toda a capital tiritante, os temerosos e os ressentidos começaram a resmungar, instigados por seus mentores religiosos. — Ouvi as advertências raivosas dos deuses — diziam os sacerdotes, referindo-se aos contínuos roncos subterrâneos. — Eles minoraram temporariamente a sua ira. Estão dando ao povo de Atlântida uma oportunidade final de se redimir. E só serão pacificados com a morte desta maldita assassina. Os sacerdotes deram-se conta de que uma maioria, desorganizada, fica impotente diante de uma minoria organizada. Convocaram o povo aos templos e em vozes apaixonadas exigiram que o Senado julgasse Salustra, sob a acusação de assassinato. A princípio, o povo caiu num silêncio intranqüilo, desconcertado com a idéia de atitudes responsáveis. Os sacerdotes logo perceberam a indecisão dele e, com a sua astúcia habitual, utilizaram-se de um novo fenômeno celestial, afirmando que ele era um gesto de vingança dos deuses. O sol, que agora estava claramente visível, assumira uma tonalidade avermelhada, e estava cercado por um círculo escarlate que parecia tremeluzir. O povo, temendo outro dilúvio, ou coisa pior, correu pelas ruas até o Senado, onde exigiu dos Senadores que julgassem Salustra imediatamente. Com Signar ferido e ainda em coma, a Guarda do Senado, apoiada pelos Senadores, recebeu ordens de prender e deter a Imperatriz. Conduzidos pelo exultante Gátus, que se sentia o vingador do seu infeliz cunhado Lústri, foram até o palácio imperial, seguidos pela multidão aos gritos. Eram como lobos famintos, prontos a se lançarem sobre a presa, desde que soubessem que não havia riscos de represália. E na sua soberana que havia abdicado, uma mulher indiferente à própria sorte, a turba covarde encontrou a presa perfeita.
36
Durante vários dias Signar esteve às portas da morte. Seu quarto estava sob vigilância, e os escravos moviam-se com pés de veludo. Cino, o médico, estava constantemente à cabeceira do Imperador. Siton e Ganto permaneceram com ele, sentados ao lado do seu leito durante os dias exaustivos da grande tempestade. O astuto ministro e o robusto general, fanaticamente devotados ao seu Imperador, mantiveram a sua vigília, quebrada apenas por cochilos ocasionais. Certa vez, durante um intervalo de lucidez, Signar abriu os olhos, fitou Ganto e falou, debilmente: — Protege Salustra como protegerias a mim. Signar voltou a cair na inconsciência. — É estranho, o poder que esta assassina tem sobre ele — sussurrou Siton, observando o seu amo adormecido. Ganto fitou-o severamente e tocou os lábios com um dedo. — Talvez ainda tenhamos que nos curvar ante ela. Portanto, cuida-te! Enquanto Signar recobrava as forças aos poucos, Salustra parecia ir perdendo a sua força vital. Não comia nem dormia, mas passava os dias num silêncio quase catatônico, indiferente à fúria dos elementos e às exigências de um julgamento pelo Senado. Parecia à pobre Brittúlia e Máhius que Salustra havia morrido e que o seu corpo, impulsionado por uma misteriosa força interior, mantinha uma vida independente. O olhar dela não parecia reconhecê-los, quando pousava neles, nem ela lhes escutava as vozes. Ficava sentada durante horas na sua cadeira de marfim, os olhos sem piscar fitos em algum lugar indeterminado no espaço. Certa vez, Siton entrou de mansinho e acercou-se da Imperatriz. Ela franziu o cenho, como que tentando distinguir as palavras dele. Depois, seus olhos ficaram vagos mais uma vez. — Dizem que Signar se está recuperando — sussurrou Máhius para Siton. Antes que o general pudesse responder, Salustra levantou os olhos, alerta. Murmurou: — Signar... Ele já morreu? Eles lhe asseguraram que ele ainda vivia. Mas ela parecia não escutar. Confiantes na não-recuperação de Signar, os homens da Guarda do Senado entraram no Palácio, enquanto a turba invadia os jardins. Os céus já escureciam outra vez, e olhares ansiosos dirigiam-se para cima. As árvores jaziam murchas, ainda pingando água; a vegetação desaparecera. Um desastre parecia puxar o outro, e a turba, instigada por seus líderes, parecia haver encontrado um
bode expiatório, para felicidade geral. A meio caminho dos aposentos de Salustra, a guarda de Elite de Signar, chefiada por Siton, fez parar a Guarda do Senado. Teve início uma discussão. Siton escutou a ordem de prisão do Senado. Fingiu deliberar com Ganto, mas usou isto apenas como tática de retardamento, dizendo à socapa: — Precisamos salvá-la. Senão, jamais poderíamos enfrentar de novo o Imperador. Gátus adiantou-se, ousadamente. — Senhores, o poder do Senado de Atlântida é maior do que o do soberano. Esta é uma detenção legal e sugiro que ninguém tente nos impedir. — Ele fez um gesto significativo indicando a turba feroz nos jardins. Ainda lutando para conseguir tempo, Siton e Ganto recuaram ante uma força superior, e permitiram que a Guarda do Senado continuasse a sua missão como se não tivessem nada a ver com isso. Gátus foi o primeiro a entrar no quarto de Salustra. Alarmados com o barulho, Brittúlia e Máhius se haviam posto de pé e diante da Imperatriz, protetoramente. Gátus segurava um rolo de pergaminho nas mãos. — Viemos buscar Salustra — ele disse, adiantando-se mais ainda para dentro do aposento. — Sob que acusações? — interpelou-o o ministro. — Sob as acusações de assassinato e traição. Máhius teria falado outra vez, se neste momento a Imperatriz não se houvesse posto de pé. Ela olhou primeiro para Gátus, depois para os soldados atrás dele. Seus olhos opacos brilharam. Salustra voltara a ser Salustra de novo. Ao ouvir falar em traição ela havia acordado. — Viestes prender-me? — perguntou calmamente. Gátus fez uma profunda reverência. Ela falou: — Deixai-me ver o mandado. — Quase automaticamente, ele o entregou. Ela leu, e um leve sorriso tocou-lhe os lábios. Com a maior serenidade, ela rasgou o pergaminho e deixou os fragmentos cair a seus pés. Disse calmamente. — Sob essas acusações espúrias, serei executada de bom grado. — Ajeitou as vestes. — Estou pronta. Máhius adiantou-se, intercedendo pela sua soberana. — Não tendes o selo do Imperador no mandado. Exijo que o obtenhais. Gátus sorriu desdenhosamente, considerando o Imperador um homem moribundo. — O poder do Senado anula o poder do trono. Além disso — disse, indicando os jardins — o
povo exige o julgamento e a execução imediata dela. Ele fez um gesto para os soldados. Eles se adiantaram para segurar Salustra, mas Brittúlia jogou-se na frente da sua senhora, protegendo-a com o próprio seio. A um sinal de Gátus, um soldado sacou da espada, enterrando-a no peito de Brittúlia. Ela desabou no chão numa poça de sangue, gemendo: — Morro porque pequei, com o coração. Que os deuses me perdoem. Máhius saiu da sua letargia, agarrou a espada com as mãos e tentou, debilmente, tirá-la do soldado. Outro guarda, excitado com a luta, enfiou sua espada no flanco do velho. Também ele desabou aos pés de Salustra. Tudo isso acontecera tão depressa que Salustra não tivera oportunidade de se mexer. As suas vestes brancas estavam salpicadas do sangue daqueles que a amaram, e, antes que pudesse emitir uma palavra de protesto, os soldados a agarraram. Quando Salustra apareceu na frente do Palácio, um rugido assustador partiu da multidão sedenta de sangue. Ergueram-se punhos cerrados e gritaram-se pragas e imprecações. Os soldados tiveram dificuldades em controlar a turba. Salustra permanecia em silencio. Seu corpo alto, na túnica manchada de sangue, parecia brilhar com um lustro branco como a neve; o cabelo solto lhe caía por sobre os ombros. Seu rosto estava voltado com indiferença majestosa para aqueles que há tão pouco tempo a aclamavam. Os seus olhos fitavam para além da multidão, para um mar que estava turbulento de novo. O horizonte estava obscurecido por uma sombra cinzenta que se aproximava cada vez mais. As montanhas pareciam tremer no ritmo do continuado ronco subterrâneo. Salustra viu uma coisa estranha: toda a esquadra de Signar se havia perdido na tempestade, exceto a sua nau-almirante, o Póstia, que ainda lutava contra a sua âncora e balançava nas enormes ondas. À distância os seus olhos argutos perceberam pequenas figuras humanas, cerca de cem, apressando-se na direção do navio com ar furtivo. Ela viu essas coisas como um espelho as veria, refletindo-as sem nenhuma compreensão. A terra e o céu escureciam cada vez mais, mas somente ela se dava conta disso. O povo estava testando a força dos soldados, e os seus gritos cortavam os ares. Na sua excitação, não perceberam um tremor que, embora débil, parecia vir das entranhas da terra. Os guardas formaram um círculo e, com Salustra no centro, começaram uma solene procissão até à Casa do Senado. No rosto de Salustra havia um sorriso levemente sardônico, que parecia ter-se fixado permanentemente nos seus lábios pálidos. Sua cabeça estava levemente inclinada, como se ela estivesse em comunhão consigo mesma. O Senado já estava reunido. O dia já tinha ficado tão escuro que as lâmpadas a gerador haviam sido acendidas e brilhavam vacilantes. Quando as portas de bronze se abriram, a guarda fechou-as
imediatamente na cara da multidão que investia. Além dos Senadores, só haviam sido admitidos os sacerdotes e uns poucos Nobres, Quando Salustra cruzou a soleira das portas, o Senado involuntariamente ficou de pé, com a sua saudação costumeira. Mas, vendo o sorriso satírico de Salustra, os Senadores sentaram-se de novo, completamente desconcertados. Os guardas conduziram-na a uma plataforma alta e estreita, de frente para a Assembléia, e aí ela ficou, imóvel como uma estátua. Gátus, o acusador, ficou em frente aos Senadores com um rolo de pergaminho nas mãos. Os seus olhos fitaram por alguns momentos aquela figura tranqüila, de pé com tanta dignidade diante dos seus acusadores. Depois, ele começou a ler: — Nós, o Povo, através do Senado, acusamos a deposta Imperatriz de Atlântida de crimes infames, entre eles o de traição contra nós, por meio de ordens aos militares dadas recentemente sem consulta ao Senado. Além disso, nós a acusamos do assassinato do nobre Senador Divona e da Alta Sacerdotisa Júpia, assassinatos extremamente hediondos e que clamam aos deuses por vingança. E de uma tentativa hedionda semelhante contra a vida do Imperador Signar. "Nós a acusamos, ainda mais, de insultos continuados aos deuses, os quais, embora não sejam puníveis pelas leis de Atlântida, ainda assim afrontam a piedade do povo. Gátus fitou a Imperatriz com seus olhos ardilosos. Disse: — Tendes o privilégio de poder responder a essas acusações. Sob o olhar firme dela, ele abaixou os olhos. Os hábitos de uma vida inteira estavam arraigados naquela que fora criada para governar com justiça. Salustra perguntou em voz clara e ressoante: — Onde estão os meus acusadores, Gátus? Gátus ergueu a mão, e Mento, o sacerdote vestido de negro, amigo de Júpia, levantou-se com o rosto pálido retorcido de ódio. Indicou Salustra com um dedo trêmulo: — Blasfemadora! — gritou, com os olhos negros brilhando com fanatismo. — Os seus crimes já têm escandalizado demais os deuses! Exige provas e testemunhas! Independente das provas apresentadas, já está condenada em meio ao sangue que flui ao redor de sua pessoa como um mar. Desde o primeiro momento em que subiu ao trono de Atlântida tem tentado lançar o ódio sobre os deuses! É de surpreender que essas paredes não caiam sobre sua pessoa e a esmaguem, devido à sua falta de reverência! A Imperatriz interrompeu-o, com uma risada. — Senhores, fui acusada de muitas coisas. Novamente vos pergunto: onde estão os meus acusadores? Dizeis que eu violei a lei que determina que o soberano não pode agir militarmente sem o consentimento do Senado. Agi de tal modo apenas com o propósito de salvar Atlântida de
Althrústri. Se eu tivesse consultado o Senado teria havido pânico, demora, desorganização. Signar teria tomado conhecimento imediato do assunto, o qual afinal de contas... — ela suspirou — ... acabou por acontecer. Portanto eu mesma assumi a responsabilidade, pelo bem de Atlântida. O meu único arrependimento é o de ter falhado. Ela ficou em silêncio, de cabeça baixa, como que para voltar a refugiar-se dentro de si mesma. Os Senadores murmuravam entre si, pouco à vontade, olhando o tempo todo para a sua Imperatriz. Gátus, depois dessa troca de opiniões sussurrada, ficou de pé e olhou diretamente para Salustra, mais uma vez. Indagou: — E nega essas coisas das quais é acusada? — Onde estão as testemunhas? — ela repetiu. O ar dela era de orgulho e desdém. — Eu bem sei, senhores, que este julgamento é uma simples desculpa para usar-me como calmante para este povo confuso e amedrontado. E porque vos falta coragem para expressar as vossas próprias queixas, buscais motivos virtuosos para a vossa conduta. — Ela ergueu a mão imperiosamente e falou em voz ressoante, com os olhos velados, como se estivesse descrevendo uma visão. — Há muitas eras que se profetiza a vinda de um salvador. Diz-se dele que será a verdade viva. Ele que se cuide! Seja qual for a mensagem que ele tenha que dar a uma geração malvada, ela será ensopada no seu próprio sangue. Ele será atraiçoado, a sua memória difamada e o pó será lançado sobre os seus passos. A sua própria existência será posta em dúvida pelas gerações que o sucederem. A humanidade confundirá de tal modo a beleza límpida das suas palavras que os seus inúmeros seguidores serão perseguidos até à morte. Ele iluminará com uma tocha a escuridão universal. Socorrerá os explorados, os doentes, os ignorantes e os tristes. Tentará libertar o homem das cadeias da opressão, com o seu amor. Abrirá as portas da liberdade intelectual e mostrará ao homem a alvorada brilhante do esclarecimento. Por tudo isso ele sofrerá uma morte cruel. Sempre foi, é, e será esse o destino de todos aqueles que tentarem livrar o povo dos seus opressores. Todos aqueles que furaram os véus das mentiras pretensiosas, hipocrisias piedosas, tirania sacerdotal e escravidão pelos poderosos têm sido assassinados e esquecidos. Mas a paixão que vibra nos salvadores do mundo nunca pode ser destruída; eles passam adiante a luz com as suas mãos moribundas. Ela parecia ganhar mais forças, enquanto prosseguia: — Tentei libertar o meu povo dos que o exploravam, do seu clero astucioso, dos preceptores da obediência cega. Abri para eles as portas da ciência, para que eles se pudessem livrar da superstição. Esperei poder libertá-los das cadeias da religião artificial. E por este crime, é claro, sou condenada e amaldiçoada. "Todas essas coisas de que me acusais nada significam para vós. Eu poderia ter assassinado mais mil pessoas, e tudo permaneceria num silêncio decoroso se eu tivesse sido reverente para com os deuses e subserviente para com os sacerdotes. As palavras dela haviam sido tão pungentes que o Senado havia escutado, impressionado,
mesmo a contragosto. Gátus fez uma pausa constrangida, e seu colega Tolíti olhou para Salustra, de modo judicioso. — Talvez tenha razão no que diz, Majestade. Mas se nós nos opusermos aos deuses, agora, isso significará o caos e a ruína completos. Enquanto ele falava houve um trovejar tremendo, que abalou as paredes do aposento. As imensas portas de bronze se escancararam e revelaram uma multidão de olhar esgazeado, encharcada por um novo aguaceiro que, mais uma vez, dava a impressão de que a terra e o céu se estivessem dissolvendo num turbulento oceano de água. O sacerdote Mento, que estivera espumando enquanto Salustra falava, ficou de pé de um salto e dirigiu-se à turba tomada de pânico que invadia o aposento: — Esta mulher esteve blasfemando de novo contra os deuses, ó povo da Atlântida! E na sua ira contra a vossa tolerância, eles desgraçaram a terra mais uma vez! Um rugido animal irrompeu de milhares de gargantas. E num único movimento, a maré humana deslocou-se para a plataforma onde Salustra se encontrava, com um sorriso de frio desdém. Mais um minuto e ela teria sido arrancada da plataforma e pisoteada pela turba. Mas, neste instante, abrindo caminho a espada, surgiu um destacamento da Guarda de Elite do Imperador Signar. O comandante de Signar, Siton, alcançou-a em primeiro lugar. Saltou para o lado dela, agarrou-a nos braços robustos e lançou um grito de desafio que ecoou acima do barulho e do tumulto da turba.
37
Quase desmaiada de fadiga e tensão, Salustra teve apenas uma leve consciência de estar sendo carregada através de uma multidão em rebuliço e sob uma chuva torrencial. Sentiu-se jogada para dentro de um botezinho e escutou o redemoinho das águas que a cercavam. Espiou por entre uma muralha de água e percebeu o casco lustroso de um imenso navio, cuja parte superior estava encerrada numa cúpula resplandecente. Ela se deu conta de estar sendo levada para o interior do navio, e depois foi totalmente envolta pela escuridão. É isso que é a morte, ela pensou, e antes de apagar totalmente ela pareceu ouvir uma voz que dizia, vinda de muito longe: — As fontes das grandes profundezas quebraram-se todas, e as janelas dos céus se abriram, e a chuva caiu sobre a terra por 40 dias e 40 noites. As águas cresceram sobre a terra e até as maiores colinas sob os céus foram cobertas. As águas subiram até 15 cúbicos e as montanhas ficaram cobertas. E então a voz foi sumindo e ela perdeu a consciência. A primeira impressão de Salustra foi a de uma luz cálida sobre o seu rosto. Ela estava deitada num divã macio, e uma brisa sedosa soprava no seu rosto. Ela veio chegando à superfície da consciência e ouviu vozes, débeis, distantes, murmurantes. Essas vozes pareciam acercar-se dela, pareciam estar perto do seu leito. Uma mão tocou-lhe a testa, meigamente, afastando uma mecha de cabelo. Ela suspirou, moveu um pouco a cabeça, e preparou-se para adormecer de novo. — Ela está acordando! — disse ansiosa uma voz de mulher. — É verdade — concordou a voz mais profunda de um homem. Eles se inclinaram sobre ela, enquanto ela tentava apagar a realidade de outra pessoa, fosse ela quem fosse. Ela tentou voltar para a escuridão. Mas um raio de sol forçou suas pálpebras a se abrirem, e ela se viu fitando o rosto de uma moça que jamais vira antes, e o rosto conhecido de Siton. O divã onde se encontrava oscilava suavemente. Seus olhos se abriram ainda mais e ela percebeu que a luz do sol entrava por uma janela estreita e que mais além, vista através de uma pequena abertura circular, estava a superfície lisa de um mar tranqüilo. Siton debruçou-se sobre ela, sorridente, com os dentes muito brancos contrastando com a barba negra. Disse: — Dormiu muito tempo com a sua febre, Majestade. Quarenta dias se passaram. — Quarenta dias — ecoou Salustra. A voz dela estava fraca, e a sua língua se sentia espessa e desajeitada. Ao som da própria voz o horror da sua última lembrança estampou-se no seu rosto. Siton tomou-lhe a mão, para tranqüilizá-la:
— Já passou. E muitas coisas aconteceram enquanto dormia. Mas é preciso que durma ainda um pouco. Quando acordar, recuperada, nós lhe contaremos tudo. Salustra olhou ao redor de si atordoada. — Estou num navio — disse debilmente. — Estamos no porto? Siton virou a cabeça, e a luz viva do sol revelou a sua palidez. Aos poucos, a memória de Salustra foi voltando. — A Princesa Tyrhia — gritou — onde está ela? E Signar? — gritou de novo, quase freneticamente. Siton deu de ombros, de modo expressivo, à primeira pergunta. Tyrhia estava entre os milhões de mortos ou desaparecidos. Quanto ao Imperador, tinha melhores notícias. — São e salvo, Majestade! — disse com brandura. — E quando as suas forças tiverem voltado, ele virá dizer-lhe tudo o que aconteceu. Um leve rubor tingiu o rosto da Imperatriz. Ela teria dito mais alguma coisa, mas a moça pôs a mão sobre os seus olhos e ela logo adormeceu. Salustra acordou, finalmente, com o ar frio da noite tocando o seu corpo. Pelas vigias abertas ela via a abóbada do céu e o oceano sem fim. Levantou-se, trêmula, arrastou-se até uma das vigias e olhou para fora. Enxergava tão-somente água. Uma sensação de desgraça completa a oprimiu. Que catástrofe terrível teria acontecido ao mundo? Onde estava Atlântida, onde estava Lamora? Que acontecera naqueles 40 dias em que permanecera desacordada, no mar? Olhou ao redor de si, curiosamente. As paredes do aposento eram cobertas de seda, e ele era iluminado suavemente por lâmpadas douradas, características da nau-almirante de Signar. O primeiro pensamento dela foi: "Aquele bárbaro me seqüestrou e está me levando para Althrústri." Mas tão logo este pensamento lhe ocorreu, algum instinto interno fê-la ver que isso não era verdade. Ela, que não temia a morte, foi dominada pela incerteza. Soltou um grito. Uma porta se abriu e entraram duas donzelas junto com Siton. Encontraram a Imperatriz sentada no divã, atordoada. Ela exclamou: — Em nome dos deuses, dizei-me o que aconteceu! As mulheres tentaram acalmá-la. Ela as afastou com o seu antigo jeito imperioso, de olhos fitos no soldado. Repetiu: — Que aconteceu? Siton encheu uma taça com vinho. — Beba, Majestade — ordenou — e eu lhe direi.
Ela bebeu automaticamente, com os olhos fitos nele por sobre a borda da taça. E então, em voz baixa, como se o próprio ato de narrar a história o aterrorizasse, ele começou a preencher as lacunas para ela. — Vimos quando foi presa, Majestade. Estávamos num dilema. O nosso amo estava doente, mas sabíamos que era preciso salvá-la. O povo estava revoltado, exigindo a sua morte. E nós éramos apenas um punhado de homens. Talvez até o nosso senhor fosse eliminado! Ele mal estava consciente quando o procuramos. Dissemos: "Senhor, um novo dilúvio está prestes a desabar sobre a cidade. O povo está louco, irreprimível. Fujamos todos para o seu navio antes que as águas inundem tudo. "Embora ainda estivesse fraco, ele riu de nós, ignorando o perigo que Vossa Majestade corria, pois o médico, Cino, insistia em que não o aborrecêssemos. Tinha-lhe dado drogas para aliviar-lhe as dores. Decidimos então tomar uma atitude ousada. Quando ele caiu num sono drogado, nós o conduzimos pelas ruas desertas até o porto. Convocamos todo o nosso pessoal e ordenamos que fossem para a nau-almirante, a todo o pano. Levamos grandes quantidades de provisões e vinho para o navio. Não levamos água, pois os próprios céus estavam desabando, em forma de chuva. Nosso plano era salvá-la e partir de Lamora. Quando tudo ficou pronto, levei a Guarda dos 500 para a Casa do Senado e abri caminho entre a multidão covarde até Vossa Majestade. Ele ficou em silêncio, e Salustra colocou a mão sobre o braço dele e sacudiu-o de leve para que continuasse. — Depois de havê-la conduzido até o navio em meio ao temporal, levantamos âncora debaixo de uma verdadeira muralha de água. A princípio nos desesperamos, pois a tempestade era muito grande, e a embarcação rolava de um lado para o outro, sem que pudéssemos enxergar mais que poucos metros à nossa frente. Então, depois de termos sido jogados daqui para lá durante horas, de repente tudo ficou calmo, e percebemos que somente nos havíamos afastado alguns quilômetros da costa. As ondas eram assustadoras, como montanhas a desabar. Um enorme barulho rasgou os ares, e ele não vinha nem da terra, nem do céu e nem do mar. E então, de modo impressionante, uma onda maior que qualquer outra nos levantou. Olhamos apavorados para a costa; em poucos momentos seríamos despedaçados sobre ela. Estávamos sendo impulsionados para frente a uma velocidade espantosa. As montanhas pareciam saltar na nossa direção e podíamos discernir, com toda a clareza, os pináculos da cidade. A chuva parara de cair, mas o ar estava pesado com um miasma sulfuroso que saía do Monte Atla e que ameaçava sufocar-nos. "O navio rangia, contudo a nossa embarcação parecia perpassar sobre as águas como um pássaro. A cidade acercava-se cada vez mais, podíamos até perceber as ruas alagadas. E, então, quando parecia que o navio iria despedaçar-se contra o próprio Atla, uma coisa terrível aconteceu. A terra pareceu altear-se, inspirar profundamente, e aí, sem nenhum aviso, afundou mansamente sob as águas! Onde antes ficava Lamora havia apenas um vasto redemoinho, e nós fomos impulsionados para a frente como que em perseguição ao diabo. Se tivesse havido um barulho, um grito, a fuga das multidões, teria sido menos espantoso, mas a cidade ruiu como uma canoa quebrando-se de encontro a um banco de areia. A nossa velocidade era incrível, era como se tivéssemos asas; o nosso vôo era o vôo das aves, sempre em busca da terra que afundava. Diariamente, milhões pereciam sem um som, sem um gesto, sem uma oportunidade de oferecer uma oração aos deuses. Uns poucos, à deriva no mar, conseguimos apanhar e ressuscitar. Mas então os céus se abriram de novo e, por causa da
muralha de água, nada mais conseguimos enxergar. Uma escuridão profunda cobriu a face do oceano e tivemos a sensação terrível de estarmos sozinhos. Salustra caíra para trás, sobre o divã, e fitava o teto. — Atlântida! — murmurou. — E quanto a ela? Siton não deu uma resposta direta. — Durante muitos dias, senhora, fomos jogados de lá para cá, perigosamente, na escuridão e na chuva. Mas embora a chuva continuasse, o vento e a escuridão finalmente começaram a diminuir, e uma luz acinzentada invadiu o universo. Como o nosso navio sobreviveu é um milagre dos deuses, O navio teve inúmeras rachaduras, consertadas sob a mais terrível tensão e, muitas vezes, esteve prestes a ir a pique. Um frio gélido começou a se espalhar, aumentando o nosso mal-estar. Felizmente as nossas provisões estavam intactas e as nossas câmaras subterrâneas ainda estavam secas. "Asseguraram ao nosso senhor que Vossa Majestade ficaria boa. Quando lhe foi informado que estava a salvo ele pareceu satisfazer-se, embora pensasse, como todos nós, que o mundo realmente se tinha acabado. Em meio a tudo isso, com a febre, Vossa Majestade dormiu um sono dos mortos. "Depois de 40 dias e 40 noites de chuva, o sol pôs-se a brilhar num universo de água. A terra havia desaparecido inteiramente. Onde os nossos sextantes indicavam que deveriam estar Atlântida e Althrústri, aparentemente só havia um deserto aquoso; até mesmo a tundra congelada do norte havia sido goivada por uma imensa geleira. "Temporariamente, ainda estávamos cheios de desespero: será que toda a vida e a terra haviam desaparecido? Na manhã do quadragésimo segundo dia, vimos, para nossa grande alegria, uma embarcação como a nossa chafurdando no mar como uma toninha ferida. Aproximamo-nos dela e vimos que o seu convés estava abarrotado de infelizes semi-afogados. Descobrimos que também eles tinham provisões e que tinham vindo de Lamora. Faziam parte de um bando de estranhos forasteiros que viviam em Lamora e pregavam um único Deus chamado Jeová, e falavam da sua punição. Estavam calmos e confiantes. Disseram-nos que já sabiam há muitos anos dessa destruição e que no dia determinado, que lhe fora revelado numa visão, eles haviam reunido seus poucos prosélitos, aos pares e em grupos de sete, e os haviam levado para uma embarcação que já haviam preparado com todos os animais e aves que conseguiram reunir. "Esses homens nos asseguraram que Deus não os havia esquecido. Pareciam espantados, contudo, de que o seu Deus também nos houvesse poupado. Achavam, contudo, que Ele nos conduziria a algum porto seguro. Alguns deles subiram a bordo do nosso navio para nos instruir na adoração ao seu Deus temível. Nós não gostamos Dele, achamos que era brabo demais. "Não vimos outros sinais de vida, salvo uma vez, quando a lua apareceu como uma sombra pálida nos céus arroxeados. Vimos, então, no horizonte, uma embarcação de formato estranho, que mais parecia uma nuvem movendo-se rapidamente, do que um navio. Saímos atrás dela, tentando alcançá-la, mas não o conseguimos.
"Os forasteiros que estavam conosco ficaram emocionados à vista da embarcação distante. Gritaram: 'Salve, amado de Deus', ajoelhando-se no nosso convés e estendendo as mãos para a veloz embarcação. Eles nos disseram que nós não a alcançaríamos, e falaram a verdade. Ela desapareceu tão milagrosamente quanto havia surgido. Ele parou de falar. Salustra estava de olhos fitos no chão. Havia um sorriso meio divertido nos seus lábios. — Parece — disse suavemente — que existe um Deus! — Ela fitou Siton outra vez. — Em que direção estamos velejando? — Estamos indo para o leste, como os discípulos de Deus sugeriram. A Imperatriz ficou de pé, abruptamente. Seu corpo oscilou de fraqueza, e Siton amparou-a. Ela ordenou: — Leva-me a Signar. A determinação de ferro de Lazar e a jóia energética que ela voltou a colocar no pescoço vieram em seu auxílio. Com a ajuda de Siton, ela subiu as escadas até um convés superior. O chão estava forrado de tapetes, e sobre esses tapetes e largas almofadas estavam uma centena de homens, mulheres e crianças. Se aquele fosse um navio de recreio, dirigindo-se para uma praia florida, as pessoas não estariam mais alegres e despreocupadas. Parecia quase incrível que aquele fosse um navio levando o que sobrara de um povo destruído para um porto ignorado. Durante um longo momento Salustra olhou para aquele punhado de gente, tudo o que restava do seu país, e seus olhos se encheram de lágrimas. Ela avançou com passos trêmulos. À vista dela, ouviu-se um murmúrio dos que estavam sobre o convés, e, como um todo, eles se levantaram e fizeram uma reverência profunda. Cercaram-na, as mulheres em vestes mínimas, as crianças de olhos arregalados, os homens seminus. Essa gente havia perdido tudo, e chorava mansamente a perda de muitos entes queridos. Mas seus olhos brilhavam de coragem e resolução. Já haviam dado as costas ao passado sombrio, ao ouvirem as palavras dos forasteiros barbudos, e estavam de olhos postos no futuro radiante, embora ainda incerto. Salustra encheu-se de admiração pelo poço sem fundo da esperança humana. Então, como que a um sinal, ela ergueu a cabeça e olhou para além deles. A alguma distância estava Signar, pálido, magro, ainda fraco, sentado numa grande cadeira, com os joelhos cobertos por mantas escarlates. Ele a observava com um débil sorriso. Ela olhou para ele e ele estendeu a mão na sua direção, vagarosamente. Com passos trêmulos ela se acercou dele. Ao chegar ao seu lado ficou de joelhos perto dele, com a cabeça apoiada no braço da sua cadeira. Ele colocou a mão sob o queixo dela, virou-lhe o rosto abatido para a luz e fitou os seus olhos com um misto de alegria e tristeza: — Os deuses devem amar-nos, Salustra — disse meigamente. — De toda a Atlântida e Althrústri, eles apenas nos pouparam a nós e a um punhado de fiéis amigos.
A mão dele caiu de novo sobre o seu joelho e ele olhou para além dela. O ar morno soprava ao redor deles, o sol brilhava em cada onda. O curso do grande navio era o oposto do caminho do sol. Mas os pensamentos de Salustra e Signar eram melancólicos demais para serem expressos por palavras. Ficaram por algum tempo num silêncio pensativo, agudamente cônscios um do outro, mesmo escutando o murmúrio das mulheres e crianças ali por perto. Finalmente, Signar apoiou a mão na cabeça de Salustra. — Esses poucos, Salustra, são o nosso império. — Não, senhor — respondeu ela com voz trêmula. — São o seu império. Eu almejo apenas a paz, e conhecer mais esse Deus de que falam os forasteiros. Ela estremeceu à lembrança do povo sedento de sangue. — O seu povo a tratou mal, Salustra — disse Signar gentilmente, como que lendo os seus pensamentos. — Mesmo que me houvessem esquartejado, eu ainda os lamentaria, pois amava-os como a meus filhos. — Todos os que amou estão mortos, Salustra... Tyrhia, Erato, Creto, Máhius, até mesmo a infeliz Brittúlia. — Ele tocou a face dela com um dedo, meigamente. Sussurrou: — Certa vez eu lhe fiz uma pergunta. Por que me poupou, aquela noite? Ela virou o rosto para ele, devagarinho. Já não havia motivos para fingimento. — Porque eu o amo, Majestade — respondeu suavemente. Naquela noite, Signar e Salustra dormiram nos braços um do outro, no seu primeiro sono tranqüilo desde que se viram pela primeira vez. A luz brilhava sobre eles, refulgia nos seus rostos adormecidos, refletia-se nas almofadas carmesins e douradas em que se deitavam, e dourava os mantos que os cobriam. A cabeça de Signar repousava sobre o seio de Salustra; ela o enlaçava com os braços, os lábios comprimidos contra a cabeça dele, e sua cabeleira fulva esparramada sobre os dois. Despertaram para uma nova alvorada. Salustra acordou doce e suavemente, e Signar acordou com os movimentos dela. Seus olhos se encontraram primeiro, depois os seus lábios. Não trocaram palavra, mas Salustra aninhou-se nos braços do amante como se eles fossem todo o abrigo de que necessitasse. Mais tarde, subiram para o convés. Estavam calmos. Duas andorinhas que os forasteiros haviam trazido para bordo tinham sido soltas, e ainda não haviam voltado. Os passageiros perscrutavam os céus, esperançosos. O sol estava a pino, banhando o oceano numa luz dourada, quando o marujo de guarda soltou um grito de alegria:
— Terra! Terra à vista! Imediatamente o navio virou uma confusão de gritos e orações. Todos os presentes acotovelaram-se na amurada, e viram no horizonte uma extensão comprida e cinzenta de terra. Homens, mulheres e crianças, gente de Althrústri e Atlântida, todos juntos, caíram de joelhos, soluçando de alegria. Por cima das águas veio chegando aquele cheiro de terra, indescritivelmente pungente. As montanhas, como névoa azul e branca, começaram a se delinear contra o céu brilhante; viam-se as folhagens ondulantes de grandes florestas, como uma muralha verde próxima à praia. Os odores de milhões de flores exóticas chegavam até as narinas ansiosas. Este novo mundo parecia pleno de calma, de silêncio e paz. Homens e mulheres se abraçavam. Alguns continuavam ajoelhados, dando graças ao seu único Deus. Eram os barbudos profetas da desgraça, e as suas orações eram feitas numa língua estranha, ao seu zeloso Jeová. Signar e Salustra estavam lado a lado, abraçados, e seus rostos exprimiam emoções diversas. Finalmente, Signar falou: — Um novo império, minha amada! Salustra olhou para ele. — Não, um novo mundo, senhor, onde viveremos de novo e baniremos velhas mentiras, abandonaremos tristezas e costumes antigos, e começaremos uma nova e brava geração humana. — Os olhos dela brilhavam como o sol. — Foi para isto que fomos trazidos do outro lado do dilúvio.
Pós-escrito - 1974
O meu amigo Jess Stearn escreveu vários livros excepcionais sobre assuntos mediúnicos e reencarnação, entre os quais se destacam The Sleeping Prophet, e o último, A Prophet in His Own Country. Creio que Jess foi um dos primeiros a apresentar ao público livros referentes a esses assuntos. Por isso, para diverti-lo, enviei-lhe um velho manuscrito sobre a Atlântida, o país mítico, que eu havia escrito em criança, mesmo antes de chegar à puberdade. Atualmente, tantos anos passados, não consigo lembrar-me ao certo quando me ocorreu a idéia de escrever um livro sobre a Atlântida, mas depois de muito refletir, lembro-me que fui "perseguida" por essa idéia ao longo dos curtos anos da minha vida antes que me resolvesse a pôr tudo no papel. Parece-me, agora, que eu "sabia" sobre a Atlântida desde a infância, mas não dava muita importância, embora eu só me recordasse desse fato recentemente. Eu já sabia, há meses, que Jess ia fazer algo com o romance que eu escreveria na infância sobre a Atlântida, mas esqueci o assunto completamente nas tensões da minha existência e no meu desespero constante. Portanto não tenho nenhuma explicação a oferecer por ter de repente, "experimentado" a minha vida em Atlântida, depois de todos esses anos, quando sonhei que era a Imperatriz Salustra neste livro. O sonho aconteceu há algumas semanas, e depois, nas semanas seguintes, tive duas outras "experiências" como a Imperatriz Salustra de Atlântida. Eles não eram "reprises" do que está contido neste livro, mas eram inteiramente novos e vívidos e assustadoramente frescos, como se tivessem acontecido naquela mesma semana. No primeiro sonho eu vi a colunata branca do palácio no qual eu "vivera", mas não como uma lembrança e sim como um acontecimento recém-ocorrido. Caminhei pelos jardins, vendo as aves nas suas gaiolas douradas, os pavões andando na grama, o fosso no qual se contorciam répteis cativos, de espécies desconhecidas nos dias de hoje, e animais também desconhecidos nos tempos modernos. Vi o mar dourado abaixo do palácio; vi a floresta de pedra branca da minha capital, abaixo e acima do meu palácio, subindo pelas grandes montanhas vulcânicas que cercavam aquela área. Eu até mesmo conseguia sentir o perfume de flores estranhas e enxergar árvores imensas com flores azuis e cor de ametista, do tamanho dos nossos girassóis. Tudo isto me era tão familiar quanto a casa em que moro hoje e seus jardins. Havia fontes de mármore dourado, esguichando, e caminhos de cascalho vermelho serpenteando entre arbustos que não existem hoje, todos floridos e perfumados, e um sem fim de estátuas. Eu me dava conta de uma profunda perturbação emocional enquanto saía da colunata para caminhar pelos jardins, em busca de um pouco de alívio, Eu sabia bem o que estava acontecendo comigo: eu sofria de "amor censurado", como dizia Hamlet. Eu sabia que estava secretamente apaixonada pelo Imperador de Althrústri, a fria nação ao norte de Atlântida, mas ele era meu inimigo e estava se preparando para conquistar o meu amado país. Eu não sabia o que me causava angústia maior — o amor que eu sentia por um homem que eu sabia que devia odiar e mandar matar, matar discretamente, ou o meu amor pela Atlântida, a minha nação, o meu império. Eu sabia que devia
mandar matá-lo, contudo a sua nação agora era bem mais poderosa do que a minha. Finalmente, cheguei à conclusão de que era melhor que eu morresse, em vez de Signar, pois então eu nunca saberia o destino de Atlântida. Eu sabia, no meu sonho, que ele havia aceito a minha irmã mais moça como sua noiva, e isto também me agoniava, embora houvesse sido eu a sugerir a união. Portanto, para fugir a todo este sofrimento, eu havia decidido que a morte era o meu único refúgio. Este episódio, ou sonho, não está relatado no livro, ao menos não exatamente. Acordei, sentindo tristeza turbulenta e saudade de Signar, e a emoção era tão intensa que comecei a chorar, e não consegui me orientar para o presente pelo menos durante uns 10 minutos. Eu sentia que a Atlântida ainda existia em algum lugar, assim como Signar, e tinha ímpetos de sair em busca de ambos, e de dizer a Signar que o amava... embora estivesse convencida de que ele me detestava. Quando finalmente me dei conta de que fora apenas um sonho, fiquei aliviada e desolada, a um só tempo. Eu sei agora quem "era" Signar, mas este é o meu segredo particular. Mas fora apenas um sonho... Contudo, eu não conseguia me livrar da "realidade" do sonho, da sua nitidez intensa e iminente, da sua proximidade. Eu ouvia ecos da voz de Signar em cada aposento da casa. Eu tentava trabalhar, mas era impossível. (Por falar nisso, a minha irmãzinha, no livro, parecia ser uma senhora que conheço e que hoje em dia é minha amiga.) Então, cerca de uma semana mais tarde, tive outro sonho com Atlântida, com Signar e comigo mesma, que também não aparece neste livro. Sonhei que havia oferecido um banquete para Signar e a minha irmã, numa imensa balsa dourada atracada no porto. O chão estava coberto de tapetes de tonalidades vivas, e havia tachos enfeitados com pedras preciosas contendo pequenas árvores espalhados pelo local, e mesas com toalhas prateadas, e músicos, e acima do porto estava o meu palácio refulgindo ao sol, e a floresta imensa de pedra branca que era a minha capital. A balsa estava cheia de homens que eu conhecia bem, alguns intimamente, vestidos de modo espalhafatoso com guirlandas na cabeça, e a água estava salpicada de flores e exalava um cheiro curioso que me perturbava vagamente. Era um odor sulfúrico. A montanha vulcânica que encimava diretamente a minha cidade envergava uma flâmula oscilante de fumaça escarlate, o que me causava certa ansiedade. Mas acima de tudo havia o meu tormento em relação a Signar, que estava sentado num divã com a minha irmã, e a acariciava abertamente. Eu não conseguia suportar aquilo. As minhas flâmulas imperiais oscilavam numa brisa quente demais, e eu sentia o suor a porejar-me a testa, de verdade, e tinha maus pressentimentos. Então Signar se levantou e acercou-se de mim, sorrindo do modo zombeteiro ao qual eu me havia acostumado, e saudou-me jocosamente, e eu tive vontade de matá-lo e de abraçá-lo, ao mesmo tempo. Fui logo falando com ele: — Sinto que nunca mais verei este aspecto da minha querida cidade. Ele olhou por sobre o ombro para a cidade e as montanhas e o céu e o palácio e replicou: — Que absurdo! — O rosto dele ficou ainda mais zombeteiro e ele fingiu preocupação. — Ou será que está doente?
— Estou, tenho uma doença muito antiga e acho que vou morrer dela. — Novamente, a minha angústia me dominou e acordei ofegante, e mais uma vez o sonho me perseguiu durante vários dias. O terceiro sonho ocorreu muito recentemente. Mas eu já não estava mais em Atlântida. Eu sabia que ela havia desaparecido para sempre, e com ela os meus poucos amigos e a minha irmã e os seus milhões de habitantes, os quais eu amara a despeito da sua corrupção e traição. Pois ela fora minha e eu fora a sua imperatriz. Sonhei com uma terra estranha, quente, tropical, com montanhas cor de lavanda e enormes florestas frondosas que se estendiam até o infinito, e eu sabia que era uma terra nova e que não tinha habitantes exceto os poucos de nós que havíamos sobrevivido à demolição de Atlântida. O mar era um mar estranho que eu nunca vira antes, e havia um vasto silêncio por toda parte, quebrado apenas pelos gritos de aves que eu desconhecia, grandes pássaros coloridos, com bicos enormes e curvos, e macaquinhos muito pequenos, felinos de grande porte, e gado — se é que era gado — de chifres retorcidos e pêlo felpudo. Os cheiros desta terra eram singulares ao meu olfato, alguns aromáticos, outros desagradáveis, alguns doces demais, com uma doçura cálida, e insetos enchiam o ar verde e brilhante, insetos cujo nome eu não sabia. Mas embora eu chorasse e sofresse pelo destino de Atlântida, eu também experimentava uma alegria quase insuportável, pois Signar estava comigo, e eu sabia que ele me amava como eu o amava. Os nossos acompanhantes haviam construído para nós choças de casca de árvore, e nem eu nem Signar éramos mais imperadores. Havíamos trabalhado junto com a nossa gente para nos estabelecermos nesta terra verde e quente, cujas montanhas tinham um tom tão curioso, e as nossas roupas eram primitivas, e as nossas mãos tão calosas e desgastadas quanto às do nosso povo. Mas estávamos em paz e éramos felizes. Sonhei que estava amassando um cereal desconhecido numa tigela de madeira, ajoelhada, e Signar veio para perto de mim, tocou a minha cabeça com meiguice e disse: — Este é o nosso império. Ele se inclinou para me beijar e senti tamanha alegria que fechei os olhos... e acordei. Isto também não consta deste livro. Não consigo imaginar de onde surgiram esses sonhos, ou qual seja o seu significado... se é que existe algum significado. A única coisa de que tenho certeza é que os sonhos eram mais vívidos do que a minha realidade atual, mais pungentes, mais angustiantes e mais alegres. Eles me perseguem, colorindo a minha existência, e sinto-me privada de algo e cheia de uma saudade antiga. Será isto prova de reencarnação? Não estou mais certa disso do que o leitor. Tampouco sei por que escrevi sobre a Atlântida quando tinha 12 anos, ou a conhecia tão intimamente. Talvez Hamlet estivesse certo: "Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia."

 

 

                                                                 Taylor Caldwell

 

 

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