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Desolada, ficou-se a olhar o desastre.
Mala aberta, fechadura rebentada, as saias brancas (aquelas tremendíssimas saias que a vizinha Gracinda à viva força lhe havia feito aceitar, saias com dois metros de roda onde cabiam à vontade umas seis ou sete Cecílias igualzinhas à que as olhava perplexa) espalhadas pelo chão... Não havia dúvida - a viagem começava lindamente!... Viagem para o desconhecido, para o mistério, para o turbilhão, onde rolavam muitas luzes, muita gente, muitas novidades... Viagem para a porta negra que breve deixaria passar a nova exilada, rumo a um caminho indeciso, profundo, cheio de sombras, trágico como esse túmulo que atrás dela ainda há pouco se fechara. Para além de ambos, quem sabe lá o que existiria?
Nervosa, esforçou-se por afastar do pensamento as ideias que a obcecavam há mais de uma semana, desde que a morte da madrinha a mergulhara na terrível sensação de não ter ninguém no mundo- Ninguém, nem um regaço onde chorar as lágrimas do infortúnio e da saudade - até à inesperada notícia recebida por telegrama.
Afinal... sempre havia alguém... alguém que lhe oferecia um refúgio, um lar... e talvez um coração cheio de afecto!
Nos dois dias que tinham precedido a hora da partida, entregue aos preparativos da debandada, ela comprazia-se em idealizar a velha prima. Velha, com certeza.
Devia ser branquinha, branquinha de cabelos, de cara e de alma. Viveria só, com um gato branco, felpudo, desses que são um delicioso regalo para trazer ao colo e aquecer as mãos... Naturalmente, o gato usaria laço, um grande laço, branco
também. E no meio da escuridão do porvir, tanta brancura visionada era uma claridade esplêndida enchendo de confiança o enlutado coração da órfã.
Mas agora, a oito ou nove horas de conhecer a prima branquinha, ali enregelada pelo frio cortante da manhã agreste, manhã da Beira montanhesa, manhã de neve, em frente da mala escangalhada e das terríveis saias, era tempo de abandonar as divagações.
Esfregando as mãos, soprando-lhes para lhes restituir o vigor, tratou de poisar o incómodo guarda-chuva, em pesquisa de remédio para o mal.
Joelho em cima da tampa da mala, conseguiu fechá-la de um lado. Mas ai, Deus do Céu! Pelo outro, pelo que avariara, saíam as saias - interior cheiroso a lavado em rijo contraste com o aspecto fora de moda, exactamente como o feitio moderno da mala contradizia os estragos...
Não havia maneira! E na fadiga, na pressa, aquecendo, suando, para Cecília já não existiam nem prima velha, nem gato branco, nem laço, nem comboio... apenas uma simples mala escangalhada que não era possível fechar!
Nada como o prosaísmo das necessidades e arrelias comesinhas para libertar as pessoas das preocupações sentimentais e dos problemas filosóficos...
Da portinhola da gare, boné enterrado até aos olhos, o chefe da estação observava-a, parecendo indiferente, Mas de súbito, como se percebesse que eram vãos os esforços da viajante isolada e dela se apiedasse, lançou-lhe um aviso.
- Assim nunca mais fecha!
A rapariga endireitou-se, esfalfada, apanhando os cabelos que lhe caíam para a cara, e respondeu-lhe desoladamente:
- Nem assim nem de maneira nenhuma. A fechadura rebentou!
O homenzinho dir-se-ia reflectir. Devia ser de compreensão bastante lenta... porque só de aí a um pedacinho inquiriu, serviçal, talvez simpatizando com o ar singelo da jovem:
- Quer que lhe arranje uma corda?
Os olhos da moça luziram de contentamento.
- Ai... se o senhor me fizesse esse favor!...
Agora resoluto, o bom do ferroviário desapareceu no interior da casa e voltou trazendo um baraço, verdadeiramente providencial.
- Vamos lá a ver se isto serve!
E um de cada lado, estica que estica, lá conseguiram dar a volta à mala e apertá-la, rijamente, com meia dúzia de nós.
- Agora está sólida. - declarou o homem, limpando a testa a um grande tabaqueiro vermelho. - E já não é sem tempo! Faltam dois minutos pró comboio.
- Muito obrigada, senhor. Muito obrigada! - e sorria-lhe agradecida.
De facto, o comboio não tardou em aparecer na grande curva da via, resfolegando até parar na estaçãozinha.
Cecília, ante a baça curiosidade de algumas cabeças que assomavam aos janelicos, aflita por se ver sozinha no meio da inesperada balbúrdia de alguns caixotes a serem apressadamente uns carregados outros descarregados, sem saber por qual das velhas carruagens optar, acabaria certamente por deixar o comboio partir sem ela se o chefe, notando-a perplexa, não lhe acudisse.
- Entre pràqui, criatura!...
Ela não esperou segundo conselho. Precipitou-se, trepando ágil os dois assustadores degraus onde mal cabia a ponta do pé, O chefe pôs-lhe a mala no patamar e voltando-se para o revisor, um gorducho de bigodes façanhudos, recomendou impotente:
- Tome conta nesta menina. Vai só... e pra Lisboa, creio!
- Para Lisboa, sim! - afirmou então a rapariga, um nadinha orgulhosa de poder assegurar que ia conhecer a grande cidade.
- Então, boa viagem!
- Até à volta!...
Soou a gaitinha da praxe e o comboio, num arranco, dois arrancos, devagarinho, mais depressa, mais depressa, sempre mais depressa e finalmente veloz, pôs-se a correr para a capital, para o futuro, levando Cecília dentro dele, muito encolhida, de olhos fechados e assustada como se estivera rodeada por ladrões. O coração batia-lhe tanto, tanto...
Aqueles homens gordos e magros, de caras barbudas, instalados à roda dela, metiam-lhe medo. E afinal os pobres nem davam por ela, ou se davam, vendo-a muito insignificante lá num cantinho, era mirando-a com o mesmo olhar compassivo que teriam para uma criança vencida pelo sono.
No entanto, Cecília ia bem acordada. Bem desperta!
O comboio, na sua marcha, ora mais rápida, ora mais lenta, conforme subia ou descia, embalava-a com aquela voz roufenha de eterno andarilho, apregoando "pouca terra-muita gente".
Mas para Cecília não era essa a frase do comboio. Parecia-lhe mais esforçada, menos profunda. Assim - a máquina, lá da frente, perguntava "tu vens?" e as carruagens, num sobressalto, respondiam em coro, correndo atrás da guia "eu vou!".
E era sempre "tu vens?" "eu vou!", "tu vens?" "eu vou!", igual, igual, monótono, monótono...
Acudiu-lhe um pensamento agreste. "A vida inteira naquilo ? Que tristeza!". Vagamente, a órfã desejava que a sua vida não fosse nem vulgar nem banal... Gostaria de movimento, de novidade, de ineditismo...
Ai! como seria o futuro?
E o comboio era sempre a correr e a máquina sempre a perguntar "tu vens?" e as carruagens sempre a responderem "eu vou!".
Iam todos. As carruagens, os homens gordos e magros, Cecília, a mala com as saias brancas, a corda que o chefe da estação dera...
A rapariga sentia-se fatigada, sem entender as ideias que lhe martelavam o cérebro, desencontradas e nebulosas. No seu isolamento, a cantilena do comboio afigurava-se-lhe implicante, arrepanhando-lhe os nervos, obrigando-a a manter as pálpebras descidas.
Dantes, quando ia para o Colégio, no Porto, costumava pendurar-se às janelas contemplando avidamente as paisagens. E tudo a interessava, tudo lhe oferecia aspectos que a encantavam e prendiam. Agora... para quê?
Árvores, rios, montes, vales, planícies mais vastas menos vastas, mas semelhantes, semelhantes, semelhantes... Inevitavelmente iguais!
E em Lisboa, também seria tudo igual?
Nunca, nunca Cecília sentira tão complexos os pensamentos nem jamais olhara a vida tão desalentada!...
E ia ali sozinha... sozinha... Jesus - sozinha!!!
Mas não, não era sozinha no mundo!
E outra vez se lembrava da prima. E outra vez lhe vinha à ideia o gato branco com o seu laçarote... E o gato pulava e a prima velhinha ria...
O comboio deixara de cantar.
Os homens gordos e magros entreolhavam-se risonhos, benévolos. Acolá, no cantinho do vagão, dormia tranquilamente uma criança.
- Não haja dúvida! - comentou o rapaz, empurrando o prato com muitíssimo mau humor. - Não haja dúvida! É uma perspectiva encantadora! Na verdade, Mãe, torna-se forçoso confessar que tiveste uma ideia maravilhosa!
O bondoso rosto da mulher que estava sentada em frente do colérico mancebo cobriu-se de uma sombra tão magoada que logo ele procurou atenuar o efeito, sem dúvida desastroso, das suas palavras.
- Não reprovo o teu interesse por essa prima... visto ela não ter mais ninguém de família. Mas mandá-la vir para nossa casa, para junto de nós, isso... - e exaltou-se de novo: -Isso, com mil diabos...-oh, perdão, Mamã... mas eu vejo entre as duas coisas uma distância tão grande como a que existe entre Lisboa e a estúpida aldeola onde ela tem vivido. - e, levantando-se, sacudia com o anular iluminado pelos reflexos de magnífico brilhante uma ruga da gravata listrada.
A Mãe, fitando-o, hesitava entre a zanga e a indulgência. Mas, talvez achando graça ao trejeito de amuo que lhe enrugava a boca, decidiu sorrir.
- Filho, a pobre rapariga não vem estorvar-te!... E deves compreender que é tarde para retrocedermos...
- Pois claro... pois claro! E dessa maneira a nossa casa. (a nossa casa, santo Deus!) vai tornar-se no albergue das primas da província!
- Que exagero, Francisco! - ralhou afectuosamente a senhora.- Não são primas. Só uma prima...
- Só uma prima! Que enorme consolação! Há-de ser bonito!...
- Bonito, quê?
- O que os meus amigos dirão quando souberem que vive connosco uma saloia.
- Mas não vejo qualquer necessidade de a apresentar aos teus amigos!
- Oh!... Era bom que eu não te conhecesse! com o teu feitio, festa que dês lá aparece a priminha, festa onde vás levas a priminha, não sais para lado nenhum sem a priminha.
Docemente, a Mãe observou:
- Já pouco me apresento em público, bem o sabes... Mas, de qualquer modo, para mim será uma companhia!
-E galante, não haja dúvida! Quando a virem a teu lado, os amigos perguntam-me "quem é a mastronça que anda sempre com a Sr.a Dona Maria Margarida". E eu respondo...
- Respondes que é tua prima.
- Ora. ora! Que belo título!
- Impô-la-á ao respeito dos que te estimem. Francisco levantou-se e deu alguns passos, impaciente.
- Supondo, na melhor das hipóteses, que ela não é absolutamente pavorosa? Hum?!... Sim, se alguém se interessar por ela, teço-lhe logo estes elogios "mata galos, esfola coelhos, faz renda, sabe doces..."
- Mas, Chico, eu...
- De resto, presumo que não haja perigo! A moçoila usa certamente saias com dez metros de roda e tem um patriotis...
- Cala-te! - ordenou a Mãe, obrigando-o a suspender a frase e o gesto. - Não conheces a pobre pequena, não te assiste o direito de futurar seja o que for. E depois, meu filho, não posso crer que estivesses de acordo em deixar essa infeliz ao abandono...
Francisco encolheu os ombros.
E, suavemente, a Mãe concluiu, pedindo:
- Não sejas tonto, não?
- Tonto? Obrigado! Se foi para merecer essa designação que conquistei um canudo... - e o rapaz desempoeirado, alegre, altivo, querido e desejado em toda a parte pela graça do espírito gentil e do carácter íntegro, foi deliciosamente infantil no simulado desespero, continuando a resmungar: - Tonto! ? Para merecer um tal epíteto estudei eu tanto?! Ora francamente, francamente...-e logo, numa gargalhada leal, abraçando-se à Mãe: - Perdoa!... Não te zangues, minha santa. Bem sabes que não sou mau.
- De modo algum! - retorquiu, sorrindo, Dona Maria Margarida. - Pelo contrário! És tão bondoso que te esqueces do teu curso, do teu diploma, dos teus deveres...
- Deveres?!...
- Sim! Ou não tens a mais estrita obrigação de te tornares útil?
- Útil?
- Claro! - e encarava-o com afectuosa atenção. Passou uma sombra nos olhos radiosos de Francisco.
- É uma censura, Mãe?
- É, se tu quiseres, uma expressão de sincero pesar.
Gostava de te ver aproveitar a inteligência, cuidando dos males da humanidade.
Como se não pudesse conservar-se séria por muito tempo, a fisionomia máscula iluminou-se de um grande sorriso que pôs a descoberto uma fieira de belos dentes, alvos e certos.
- Mãe... por piedade! Tem mais amor à pele do teu próximo! Sabes lá se eu cuidaria dos males de alguém sem os fazer terminar de vez?
- Valha-me Deus, Francisco! Pois não és Médico?
- Os Profes disseram que sim... mas... acredita, Mãe! Há duas classes de Médicos. Uma, a dos conscienciosos, trabalhadores, sinceros, capazes de arriscar a vida em proveito das alheias. Outra, a daqueles que tiraram o curso por ser conveniente... A esta liga-se o Dr. Francisco Salveis, o ilustre clínico que vês na tua frente e não tem a honra de pertencer à primeira! Eu, querida, só sei estudar anatomia nas garotas sem complexos matrimoniais... Oh, Mãe, acredita em mim! Desgraçado do próximo que me caísse nas mãos!
E embora Francisco tivesse falado com a expressão dos momentos de grande zombaria, a Mãe sentiu perfeitamente que ele dizia a verdade.
Sim, o seu Chico vencera o curso facilmente, cantarolando, sem trabalho, sem canseira, passando nos exames por bafejos da sorte, dessa caprichosa sorte que desde a mais tenra idade parecia protegê-lo. De facto, num desastre de automóvel, era ele tamanino, haviam morrido os dois irmãozitos e Francisco escapara ileso. Certa vez, ao sair da escola fora atropelado um garoto que o acompanhava e ele não sofrera qualquer beliscadura. E mais, muitas mais coisas! Em criança, nunca dava um trambolhão, nunca se feria. Não sabia sequer o que fosse uma doença. Ignorava por completo o amargo da menor privação.
Bonito, atraente, todos o acarinhavam, todos gostavam dele, e os próprios professores, conquistados pela vivacidade daqueles olhos espertos, tinham-no em especial apreço.
Vendo agora que a Mãe se mantinha silenciosa, meditativa, e não adivinhando qual a preocupação que a entristecia, Francisco receou ter levado longe de mais o gracejo. Aproximou-se dela, inclinou-se, poisou os lábios nos cabelos grizalhos e rogou:
- Mãe... quero viver assim mais algum tempo! Prometo que mais tarde vou exercer clínica, vou trabalhar a sério. Mas antes disso preciso de me agarrar aos livros com unhas e dentes.
Sou incapaz de uma traição... e tratar doentes com as minhas habilitações actuais era crime de morte. Vamos, Mãe...-e tremia-lhe na voz ligeira apreensão. - Ainda estás aborrecida?
A Mãe suspirou, erguendo para ele o olhar carinhoso.
- Não, não estou.
- Nesse caso... -e fez uma reverência. - ...poderei sair?
- Nunca te neguei autorização quando eras pequeno... quanto mais agora! -e inquieta: -Vens jantar?
- Oh, não Mãe! Chega hoje a Bel.
- A... a Isabel? A... a tua...?
- Sim, a minha. Bem vês que é junto dela o meu lugar...
- Fazes-me sempre falta!-confessou Dona Maria Margarida.
Ele encolheu os ombros, despreocupado.
- Ora, Mãe!... Tens novos comensais, hoje. A adorável priminha!!!...
- Francisco!!!
- Ouve, Mãe. Se chega aos ouvidos da Isabel a notícia de que está uma rapariga em minha casa... vejo-me e desejo-me! com aquele geniozinho ciumento há-de ser o bom e o bonito! Oxalá que ao menos a priminha seja feia como os trovões!...
- Continuas assim tão... tão apaixonado pela Isabel?
- Apaixonado?... Delirante!... com febre mortal!-e depois de beijar a Mãe, deu uma reviravolta e desapareceu no corredor.
Dona Maria Margarida encolheu os ombros, indulgente. Percebia agora o motivo da repulsa do filho pela vinda da prima. Havia o problema da Isabel, daquela estouvada e linda Isabel, boneca fútil e amimada por quem nunca supusera que o filho pudesse transtornar-se. Mas os homens têm caprichos!...
E o Francisco, o alegre, o rico, o inteligente Francisco, de temperamento arrebatado e vontade tenaz, gostara a valer da inconsequente Isabel...
Não surgia meio de o dissuadir e já lá ia um ano!... Se não estavam ainda casados é porque ela, a graciosa loirinha, apreciava sobremaneira a liberdade dos seus vinte anos moderníssimos.
E Dona Maria Margarida, Mãe extremosa que educara o filho com requintes de ternura, adorando-o na solidão da sua viuvez (morrera-lhe o marido há longos anos), sem o braço forte de um Pai que sustivesse as impulsivas doidices do rapaz, ficou-se a meditar, o pálido rosto entre as mãos, o coração fatigado a pulsar-lhe violento e dolorido no peito escavado.
O comboio lá corria, surdo e monótono, pelos carris adiante
- dois patins de interminável comprimento - gritando o velho estribilho de sempre e tão cansado, tão cansadinho! que a locomotiva, arquejante, mais não fazia do que atirar para o céu azul largos rolos de fumo e de vez em quando um grito prolongado, como que de fadiga tremenda.
E exausto, e desesperado, e fatalistamente subjugado ao seu destino, corria, corria, corria... Vistas a distância, as carruagens eram contas de um colar partido, rolando umas atrás das outras.
As árvores zuniam quando o monstro passava junto delas. que medo tinham, coitadas, daquele turbilhão que as ameaçava com o seu peso esmagador e nunca lhes tocava! E as guardas ?das linhas, de bandeirolas nas mãos, eram quais sentinelas de trabalho vigiando o passeio do amo...
O campo desenrolava-se em extensões imensas, verdes aqui, amareladas acolá, além castanhas, ora descendo nos vales abruptos, ora subindo rasteirinho às costas de ageitadas colinas no cimo das quais de onde em onde giravam as brancas velas de um moinho, braços alargados num gesto de oração pelo esforço que humaniza a vida.
trúúúúúúúú...
Lá ia ele a correr, o comboio, gritando, gritando, gritando...
Pouco a pouco, surgiam casas perdidas na terra próspera, fecunda de louvar a Deus! Pequeninas, rodeadas por hortas em miniaturas, sobranceiras aos pomares, rindo de longe aos olivais, na passagem veloz do comboio eram semelhanças fagueiras dessa visão que toda a alma embala - doce lar que a gente idealiza! - e como as visões desapareciam e ficavam sumidas na bruma da saudade.
Depois, já agrupamentos, surgiam as primeiras casas vizinhas da cidade. E, finalmente, os prédios tamanhões, de cores bem definidas, de linhas mais ou menos belas e harmoniosas.
Outra estação - a última - saudou o comboio, contente de o ver chegar são e salvo. Tremem sempre as estações, com receio de que os patins escorreguem demais e o monstro fique aniquilado por algum fatídico trambolhão...
Os homens gordos e magros olharam para o canto onde a rapariguinha dormia. Abrira os olhos muitas vezes, mas como o comboio inalteravelmente a embalava com a mesma cantilena "tu vens, eu vou" e ela não queria nem preparar decepções com dulcíssimos sonhos nem atormentar-se com fantasias pessimistas, esforçava-se por dormir. Dormir e esquecer.
Estava cansada, doíam-lhe a cabeça e as costas.
E agora, que a cantilena findava, despertava de vez, trémula, ansiosa. Ergueu-se, terrivelmente emocionada.
Lisboa! A aventura que principiava. A porta misteriosa que ia abrir-se!
Os homens gordos e magros, suspirando no alívio da chegada, sorriam-lhe. Era, decididamente, uma garota, de corpo miúdo escondido num casacão sem feitio, atado no pescoço como ridículo saco. Mulher conhecedora dos seus encantos não quereria vesti-lo...
E não se pintava!... De pálida, dir-se-ia lívida, Os lábios quase não ofereciam contorno, e os olhos, avolumados pelas olheiras fundíssimas, de enormes pareciam estranhos. Mas como se revelavam belos, bem observados, esses olhos desmedidos ! Negros profundos, cheios de luz cariciosa e doce como perfume de alma, semi-velados pelos cílios aloirados, eram extraordinários, sublimes! Eles, sós, valiam o encanto do cândido rosto, e maravilhavam.
Vista de relance, porém, num conjunto desgracioso, aquela rapariga mostrava-se banalmente feia.
Os homens gordos e magros quiseram no entanto ser-lhe úteis, oferecendo-se para lhe pegarem na mala que ela dificilmente arrancara da rede (pois não merece uma criança, todas as atenções?). Ela, arisca, recusou-lhes os serviços e sem lhes ligar importância, indiferente a desapontamentos, foi espreitar à janela a ansiada Lisboa. Ali à beira dela. Lisboa - a cidade-fantasia, a cidade-alvoroço, a cidade-CIDADE!
E vendo aquela multidão que se comprimia na gare, frenética, na ânsia eterna de conquistar um primeiro lugar, ela compreendeu o porquê dos comboios viverem a dizer, teimosamente "pouca terra... muita gente! Pouca terra... muita gente!"...
E olhando a muita gente - tanta gente! - Cecília experimentou de súbito um vivo pesar de não haver aceitado o auxílio dos homens gordos e magros... Tinha medo, um medo horrível, de não ter ninguém à espera dela, de não existir entre centenas uma alma desejando reconhecê-la!
Já muitos viajantes haviam descido e ela, cabeça de fora a ver abraços e sorrisos, não descobria um olhar que procurasse alguém.
Passou uma velhota. Passou mais outra. E iam encontrar outras mocidades, outras vidas. E em todos os rostos resplandecia a alegria de um encontro apetecido e realizado.
Para dominar a amargura nascente, Cecília levantou bem alto a cabecinha altiva, dirigiu-se para a porta, vencendo empurrões, e saltou da carruagem.
Ao achar-se no meio dessa gente buliçosa que se abraçava e beijava e ria - talvez que no meio dela um caso anónimo de mágoa, mas esse despercebido na confusão do júbilo! - os olhos da pequena viajante, até aí tão corajosos, marejaram-se de lágrimas e ela, baixinho, murmurou:
- Não veio!
Sim... nenhum braço carinhoso viera ofertar-lhe apoio, nenhum sorriso afectuoso viera saudar-lhe a chegada.
Principiava a descerrar-se a porta do futuro e o futuro não surgia com a divina claridade que dulcifica, apazigua e conforta. Era um túnel, um túnel asfixiante, nebuloso, medonho!...
Pôs-se a caminhar, procurando a saída. Entregou o bilhete, atravessou a porta e estacou por fim, desorientada.
A poucos passos dela, ruidoso e alegre, conversava um grupo. Compunham-no vários rapazes e, ao lado de uma senhora de impecável distinção, uma formosíssima rapariga.
Apesar da elegância dessa jovem e dos sorrisos que por todos repartia, enquanto um rapaz de silhueta dominadora a estreitava nos braços com evidente paixão, os outros deram fé do vulto da que os contemplava.
Analisando-lhe os modos acanhados, a fatiota horrenda, o penteado francamente caricato, indiferentes à candura que de toda ela se evolava, como auréola a impor respeito, decidiram, num tácito e silencioso acordo de olhares, divertir-se à custa da singela provinciana.
Formaram alas, rodearam-na, e um deles, mais atrevido, depois de reverenciá-la ironicamente, estendeu a mão para a mala como se quisesse pegar-lhe.
Atarantada, não sabendo como fugir àquela indisfarçável maldadezinha, a rapariga olhava-os com espanto e certa alucinação.
Pois se lá, na sua longínqua aldeia, jamais alguém a desconsiderara!
De perplexidade e desgosto, as mãos abriram-se-lhe e a mala tombou no chão. Então, animado com o êxito da brincadeira, outro rapaz, ousadamente, ofereceu-lhe o braço, e estralejaram as gargalhadas quando nos olhos da pobre assomou o pranto.
Precisamente nesse instante, talvez mesmo atraído pela barulheira que faziam, o mancebo que até aí apenas se preocupara com a loira recém-chegada voltou-se para eles, apercebendo-se, num relance, de quanto se passava. E embora conservasse o alegre sorriso e os modos desempoeirados, logo se lhe divisou no olhar a imediata reprovação. E falou para os companheiros, a um tempo enérgico e afável.
- Eh, rapazes!... Que vem a ser isso?
Fitaram-no os outros, E a rapariguinha, como se a repentina intervenção lhe inspirasse confiança e dela esperasse qualquer auxílio eficaz, encarou-o suplicante.
Já porém ele desandava a caminho da rua, sem mais se preocupar com o incidente.
- Vamos embora.
Os brincalhões abalaram atrás dele, numa última olhadela trocista para a desconhecida que, cheia de vergonha, agora corria sem destino levada pela ânsia de fugir ao tumulto do ambiente que assim se revelava cruel.
O episódio terminara, desaparecendo com o grupo ruidoso.
De novo isolada, Cecília saiu da estação tão despercebida como até aí.
Mas qualquer coisa se modificara nela, qualquer coisa de indefinido, de vago, de perturbador.
Seria a proximidade, cada vez mais visível, da porta misteriosa que se entreabria?
E nunca, como nesse instante, a órfã sentiu a necessidade de encontrar um coração que se dispusesse a amá-la!
Depois de muitas voltas e reviravoltas, quase perdida, demasiadamente apoucada para ter alento de pedir fosse a quem fosse uma informação, atribulando-se no susto do que lhe acontecera, olhava a rua aberta na frente dela como positivo convite à luta e à vida, sem coragem para avançar.
Via os automóveis passarem velozes, travando com chiadeira infernal a buzinarem, a buzinarem desesperados; via os eléctricos a deslizarem rápidos e indiferentes aos que entravam e aos que saíam; via a multidão apressada acotovelando-se, dando e recebendo encontrões como se a incorrecção fosse normal e necessária para se abrir caminho.
A confusão perturbava-a cada vez mais. Sentia-se indisposta. Andava-lhe a cabeça à roda, zumbiam-lhe os ouvidos e tinha saudades, agora, do ruído monótono que a embalara na quietude do seu cantinho no comboio.
Enchendo-se por fim de coragem, desceu os degraus que a separavam do passeio e foi imediatamente apanhada pelo ondular constante de toda aquela gente cujo fluxo e refluxo de súbito a atirou, violentamente, de encontro a uma senhora de aparência distinta.
Encararam-se, magoadas ambas.
- Desculpe...-balbuciou a rapariga, sentindo-se infelicíssima.
- Não teve mal... - foi a discreta resposta recebida, de envolta com um aceno lhano.
E a expressão acolhedora do rosto bonito animou Cecília a fazer uma pergunta. Pelo que, vendo a dama pronta a seguir em frente, ousou tocar-lhe no ombro, retendo-lhe a atenção.
- Precisa de alguma coisa ?
-? Desculpe, minha senhora... V. Ex.a poderia fazer-me o grande favor de me ensinar como hei-de ir para a Avenida de Berna?
A senhora olhou-a mais atenta, desta vez mirando-a dos pés à cabeça. E inquiriu depois, com leve inquietação:
- Engano-me... ou estou diante de Cecília Mendes Durão? Surpresa por se ver identificada tão inesperadamente, a
rapariga abriu um sorriso.
- Sim, sou a Cecília! - e logo dois braços lhe ofereceram o conforto ambicionado de um amplexo.
- Como Deus faz as coisas! Beije-me, minha filha. Sou a sua prima Maria Margarida!
Contente, muito contente, Cecília obedeceu acto contínuo, beijando afectuosamente a querida senhora que, sem a conhecer, apenas por afastado parentesco, generosa se ofertara para a acolher ao sabê-la só. Reconhecendo que aquele belo rosto era ainda mais ideal do que o em sonhos entrevisto.
Então, decidida, levando-a pela mão, Dona Maria Margarida conduziu-a para um soberbo automóvel onde se instalaram comodamente. Um motorista simpático guiava com inalterável perícia. E agora, enquanto pela cidade adiante os olhos maravilhados da recém-vinda iam divisando os primeiros encantos da capital, Dona Maria Margarida interrogava-a.
Queria saber tudo. A vida anterior, a maneira de ser e de pensar, os costumes de família, os conhecimentos... Tudo! Porque tudo a interessava, tudo lhe dizia respeito. E sabia perguntar tão bem, tão delicadamente, que a órfã se deliciava, pronta a abrir-lhe o coração ávido de ternura, entregando-se sem reservas àquela afeição que despontava.
Já próximas da Avenida de Berna, galgada a Avenida da República numa sucessão feliz de edifícios que arrancavam brilhos aos olhos de Cecília, Dona Maria Margarida, afagando ternamente as mãos da órfã, ia continuando a fazer investigações. Justamente aquela.
- Sentiu muito a morte da sua madrinha? Cecília entristeceu.
- Oh, sim! Muito! Nem pode calcular quanto! Desde os seis anos, desde que o meu Pai morreu, que lhe estava entregue. Cuidou sempre de mim com tanto carinho que eu nunca me julguei órfã... senão agora!
- Tranquilize-se, Cecília. Procurarei que, junto de nós, também não conheça essa dolorosa sensação.
Cecília estranhou a frase.
- Disse... nÓS?
- Decerto! Eu e o seu primo.
Cecília, bem longe de imaginar a existência desse primo, não pôde deixar de sorrir, divertida pela imprevista revelação - bom prenúncio para quem receava a monotonia que dá vontade de fechar os olhos e esquecer que se existe...
- Não sabia. - confessou. - Não sabia que tinha filhos! Mentalmente, Dona Maria Margarida evocou a bela figura
do Médico e, quase sem querer, comparou-a com a apagada
silhueta dessa provincianazita ingénua. É que, embora não quisesse confessá-lo a si própria, achava que Francisco tivera razão em temer a vulgaridade da desconhecida. Cecília afigurava-se-lhe, pelo menos quanto ao físico, atrozmente banal.
Mas, por tão bondosa, dominou a impressão pouco lisongeira, disposta a amar com toda a sinceridade a solitária.
- Sim, tenho um filho. - replicou, um pouco tardiamente. E quando o conhecer, verá que espanto de rapaz!...
Cecília, como presa de oculto cepticismo, não respondeu. Aliás o automóvel acabava de parar em frente de uma moradia e Dona Maria Margarida convidava-a a segui-la. Estavam em casa.
- Vejamos, Cecília, agora que já comeu, as suas instalações e os seus arranjos. Gostaria que o meu filho não a encontrasse vestida assim.
Cecília corou.
com o amigável remoque, Dona Maria Margarida, sem de tal se aperceber, magoara-a, fazendo-a reparar na pobreza do seu trajo antiquado, tão diferente dos poucos que entrevira poucos mas bastantes para lhe mostrarem quanto devia estar ridícula. Dona Maria Margarida, porém, desejava a todo o transe que Cecília não causassse a Francisco uma impressão desagradável e, para tal conseguir, virá-la-ia do avesso se fosse possível e desse resultado...
Já, humildemente, a pequena concordava com a prima.
- Tem razão, minha senhora, eu não estou decentemente vestida mas... mas o que tenho é como isto... ou pior...
Dona Maria Margarida, numa grande franqueza, sobressaltou-se.
- Pior?! Pode lá ser!!!...
- É sério... afirmo-lhe! A madrinha não gostava de desperdiçar dinheiro em roupa... e lá na aldeia também não fazia nenhuma falta! Eu andava sempre de saia e blusa.
No coração da Mãe de Francisco nascia um vago pesar não ter chamado a si, mais cedo, o encargo de olhar pela órfã. Poderia tê-la educado... de outra forma! Teria com certeza feito dela uma criaturinha pelo menos... airosa. A garota, falada, era tão gentil!
E, num carinho espontâneo, afagou os cabelos de Cecília, intimamente surpreendida e encantada ao notar-lhes a maciez.
- Nunca então saiu da sua aldeia, filhinha ? - inquiriu meigamente.
- Saí, sim, minha senhora.
- Não diga senhora, Cecília. Diga prima Maria. Ela sorriu e emendou:
- Saí, prima Maria! - e com que alvoroço ela pronunciou as palavras familiares, as palavras que de súbito como que a uniam àquela pessoa tão simpática e afável! - Fui educada no Porto, num grande Colégio.
Um oh! de alívio distendeu o peito de Dona Maria Margarida verificando que Cecília não era uma planta incapaz de se adaptar à atmosfera exigente da cidade. E, sem disfarçar a satisfação que lhe dera a notícia, encadeou, a tratar a rapariguinha já por tu, numa intimidade crescente.
- Estudaste então no Porto?
- Sim, prima Maria. Estive durante seis anos interna no Colégio, onde fiz o quinto ano do Liceu.
- O quinto só, porquê?
- Porque... porque nessa altura a madrinha adoeceu e foi preciso que eu voltasse para casa.
- Deixaste então de estudar?
- Ocupava as horas livres, as horas que me sobravam do trabalho doméstico, lendo, tocando órgão e pintando. Adoro pintar!
Dona Maria Margarida ia de pasmo em pasmo e - porque não? - de alegria em alegria. A prima da província - como dissera Francisco - não era afinal a temida ignorante que apenas podia servir para caricatura do que há de mais canhestro e infeliz em matéria de boa apresentação.
E manifestou o seu entusiasmo, pegando na última informação.
- Já pintaste algum quadro, filha?
- Não... Só cartões com florinhas. Mas gostava...-gostaria!-de ser capaz, de aprender a sério... Sonhos! - e sorriu, num fresco sorriso que descobria uns dentes brancos e certos.
Dona Maria Margarida mudou de assunto.
- Passeavas muito, no Porto?
- Raramente, em excursões do Colégio e sempre de farda, que não era nada bonita... - confessou, enleada.
O interrogatório prosseguia. A prima Maria estava desejosa de conhecer a sério a juvenil companheira, aprofundando-lhe o passado, claro e luminoso como o rosto puro que se elevava para ela, sem artifícios.
- Ias ao Cinema? Ao Teatro?
- Só em dias de anos, meus ou das Professoras, que eram muito minhas amigas.
- Em que te ocupavas, na aldeia ?
- Enquanto a madrinha não recolheu à cama, além de ler, tocar e pintar, como já disse, ensinava as primeiras letras e a catequese às crianças mais pobres. Depois...-à recordação, prendeu-se-lhe a voz, mal se percebia:-Depois... quando a madrinha acamou... acamou de vez... fazia o trabalho da casa e... e tratava-a... -e calou-se, num prelúdio de lágrimas. Mas, conseguindo recuperar a calma, num esforço de vontade, procurou justificar-se. - Desculpe, prima Maria. Ainda não consegui habituar-me!...
Dona Maria Margarida enterneceu-se. O seu coração maternal, que nunca pudera saciar-se inteiramente no amor do filho, independente como rapaz que era, dedicava-se de pronto àquela rapariga com certeza ávida, por verdadeiramente necessitada, de um afecto capaz de preencher todos os vazios de uma existência sombria. E, atraindo a si a cabecita submissa, beijou-a na testa. Depois disse:
- Querida Cecília, não te envergonhes de chorar a tua madrinha...-é lógico chorarmos os mortos!-mas aprende a resignar-te para que o teu futuro conheça dias de sol limpos de nuvens...
- Eu sei resignar-me, prima...-balbuciou a pequena.- Pode acreditar que sei! Mas... é sempre tão triste pensar que os entes queridos nos deixaram para não voltarem mais!...
Uma serviçal, entrando para transmitir um recado a Dona Maria Margarida, interrompeu a conversa, distraindo a órfã de penosas recordações e lembrando à senhora a necessidade de apressar a desejada transformação da rapariga. Pelo que, daí a pouco no quarto das arrecadações, pelo meio de trapos e farrapos dos mais diversos, ambas se entregavam a caprichosos ensaios. Dona Maria Margarida pretendia, à viva força, descobrir entre os abandonados vestidos de outras épocas coisas que servissem à primita!
Busca que rebusca, vieram à cena trajos dos mais diversos e mais complicados. com rendas, com lantejoulas, com bordados.
Nada, porém, nada que servisse na actualidade, nada que pudesse favorecer a rapariguita!
E a prima Maria, desiludida, chegou à conclusão de que naquelas circunstâncias não valia a pena mudar de roupa... Qualquer uma daquelas aparatosas (e envelhecidas!) toilettes seria ainda mais desastrosa do que o vestidinho preto", feio mas despretensioso.
Contudo, a boa senhora não era pessoa de fáceis desistências... E agora atravessava-lhe a mente uma ideia salvadora... Ideia que imediatamente poria em prática, com a alegria que sentira anos mais cedo ao vestir o seu primeiro boneco de carne - Francisco.
Imobilizado o carro, motorista de boné na mão em mesura atenciosa, apearam-se as duas. Primeiro a senhora de cabelos grisalhos vestida com sóbrio esmero, logo atrás uma aparição meio sumida num fofo casaco de peles e coroada por um grande carrapito sedoso.
Ao sair do automóvel, porque se não baixasse o suficiente, a aparição bateu com a cabeça na moldura da porta, o que resultou no imediato desmanchar do carrapito e na libertação dos cabelos de um castanho doirado que em manto desceram sobre a criatura visivelmente atarantada.
Contemplando o desastre, Dona Maria Margarida não pôde reter um comentário desagradado:
- Vês, Cecília, como fizeste mal em não deixar cortar o cabelo?!
Ela, embora confusa, discordou da opinião.
-Ai, prima Maria, desculpe, mas cortar o meu cabelo... isso não corto!
Resignando-se, Dona Maria Margarida encolheu os ombros, e enquanto ela ia já sorridente avançando em casa, Cecília tentava, sem resultado, prender a rebelde cabeleira.
No hal de entrada, braços no ar formando arco, o casaco aberto deixando ver o vestido de malha de lã cor de rosa, mal equilibrada nos saltos altos dos sapatos de verniz, a carteira suspensa nos dentes, estava adorável. Metamorfoseara-se... e só pela candura dos olhos admiráveis se poderia reconhecer nela a apagada mocita de horas antes.
Ninguém mais se atreveria a qualificá-la nem de desajeitada nem de banal. E muito menos de caricata. Havia no todo, graciosíssimo, um "quê" que atraía e cativava.
A criadita que solícita acorrera, avisava agora Dona Maria Margarida que o "Sr. Doutor estava em casa".
- O meu filho?... Mas ele preveniu-me que não vinha! e, embaraçadíssima, contemplando Cecília, não sabia ao certo como agir. Só se lembrava de que Francisco devia estar arreliadíssimo com a demora do jantar! Depois, decidindo-se, encaminhou-se para a sala das refeições, rebocando Cecília, ainda em luta com os magníficos cabelos e de carteira presa entre os lábios...
A certa distância da porta já Dona Maria Margarida falava para o Médico, invisível.
- Desculpa, Francisco. Fiz-te esperar, não foi ?
- Sim, Mãe! Estamos com meia hora de atraso nas horas normais do jantar. - rabujou Francisco, voltando-se.
E, perante os seus olhos primeiro estupefactos, depois divertidos, surgiu a Mãe... trazendo segura pela beira do casaco a confusa Cecília.
Encararam-se os dois. E o rapaz mordeu os beiços para não rir.
Cecília corara intensamente, recuando, as pupilas espavoridas a absorverem a silhueta esbelta que a defrontava e logo veladas pelas pálpebras que desceram, sustendo o fulgor indiscreto que as polvilhara.
A prima Maria, ansiosa por descobrir qual a impressão de Francisco -? o rosto, enigmático, nada lhe revelara -, apresentava-os um ao outro.
- O meu filho... A Cecília...
Renunciando a segurar os cabelos, a rapariga deixara pender os braços ao longo do corpo e, sem descerrar as pestanas, limitou-se a inclinar a cabeça num tímido cumprimento.
Imóvel, após o breve e intraduzível exame a que a submetera, ele sorriu irónico e voltou-se para a Mãe como que disposto a não ligar mais importância à visitante.
- Pode-se comer alguma coisa? - inquiriu, com simulada indiferença.
Dona Maria Margarida, impossibilitada de lhe ler no íntimo, resignou-se a aguardar melhor oportunidade para sondá-lo.
E tocando o gong de prata pendurado na parede, a dar o sinal de serviço para a cozinha, respondeu-lhe:
- Claro que sim.- e numa súbita inspiração: -Olha lá... e porque é que tu mudaste de opinião?
- Mudei? Mudei, como? Em que sentido?
- Disseste-me que não vinhas jantar! Ele encolheu os ombros.
- A Isabel tinha um convite irrecusável para não sei que Embaixada. Quem mudou foi ela.
Bel! Sempre Isabel a dominar os pensamentos e as acções do rapaz, aquela super-moderna Isabel dos fatos masculinos, das corridas de automóveis, dos... dos... de... de... e de... A mundaníssima Bel - estava tudo dito!
Ah! Se ela mudara!? Mudara acaso de programa... ou... ou de flirt? E deixando-se avassalar por uma vaga esperança que a satisfazia, Dona Maria Margarida tentou saber:
- Tiveste pena?
Francisco encarou a Mãe erguendo as sobrancelhas numa expressão magoada que lhe dava ao semblante certas parecenças com o de um garoto comprometido.
-Pena?... Talvez! Mas há que suportar com paciência as pequenas contrariedades. São um excelente tirocínio para o casamento ! Aliás temos logo uma recepção qualquer em comum. não perguntei o local, confio, visto que foi o Fernando de Mafra quem nos convidou. O Mafra também estava na estação à espera dela.
Como se esperasse resposta muito diferente e aquela por completo a desiludisse, Dona Maria Margarida esmoreceu e tão grande desapontamento lhe velou o olhar que Francisco, notando-o, indagou:
- Que tens, Mãe ?
- Nada.
- Nada?!... Não creio...-e malicioso:-Julgo adivinhar que te desagradaram as minhas palavras, tão sinceras...
A Mãe suspirou.
- Ora, Francisco, tu bem sabes que eu não gosto da Isabel! Acho essa rapariga extraordinariamente...
Ele percebera a censura que transparecia na voz da Mãe. E para evitar que ela se adiantasse ainda mais, gerando qualquer inútil desaguizado, impediu-a de terminar a frase, interrompendo-a e simulando nada haver percebido, enquanto colocava o guardanapo nos joelhos e se ajeitava na grande cadeira de espaldar em que já se encontrava instalado:
- Efectivamente, Mãe, a Isabel é EXTRAORDINÁRIA, com letras maiúsculas e em tudo. Na formosura, na elegância, no mundanismo...
Mas Dona Maria Margarida sentira-se atingida em excesso.
- Cala-te, Francisco. A Isabel não é para ti, digo-to eu! Lá vinha! Lá vinha pois e inevitável o assunto inquietante
que desde há várias semanas os indispunha um contra o outro, nascendo da clarividência terna da Mãe e da teimosia obcecada do filho.
Francisco sabia que não adiantaria fingir-se desentendido, agora. A Mãe também sabia ser firme nos seus desígnios. Mais valia mostrar-se desalentado, procurar convencê-la. E foi o que fez, indagando num tom de queixume:
- Mas porquê, Mãe, essa agressividade?
- Porque sei que ela nunca poderá fazer de ti um homem feliz!
- Mãe...
- E é por isso que não gosto dela.
-Andas a treinar-te para sogra, Mãe?
- Sogra? Oh, Francisco! Mas eu não acredito que tu cases com a Isabel!
- Porque não hei-de casar se a adoro? Para cúmulo ela está cada vez mais deslumbrante. Esta última estadia em Paris fez-lhe bem como nunca! Ou... ou não confias no meu gosto?...
- e agora sorria, encantador, na linha da concórdia.
Sentindo-lhe a força astuta da resistência, Dona Maria Margarida baixou o rosto, desgostosa.
Não, não anseava conservar o filho solteiro, mais ou menos na sua dependência. Pelo contrário, sorria-lhe infinitamente a esperança de conhecer ainda o suave afecto de uma rapariga que por amor dele fosse um pouco sua filha e a doçura incomparável de um tenro corpito que lhe dormisse nos braços erguendo para ela a ventura imensa de ouvir ums lábios pequeninos dizendo o suave nome de avó. O egoísmo das mães ciosas da prioridade no coração dos filhos não a flagelava. De forma alguma temia ver diminuir a afeição de Francisco, atraído por outros horizontes, preso a novos deveres. Compreendia perfeitamente que a dissemelhança entre os dois amores - o da Mãe e o da Mulher - é tão profunda que em nada esses dois amores jamais se prejudicarão.
Mas... mas Isabel, a estouvada Isabel, era tão pouco, tão nada, o tipo de companheira que lhe seria necessário para sentir o filho ditoso!
Idealizava a futura nora uma rapariga meiga, atenciosa, simpática, inteligente, capaz de saber encaminhá-lo para vencer pela brandura o génio altivo e impetuoso de Francisco, compreendendo-o e amparando-o, forte pela fraqueza que o enterneceria...
Ambição demasiada, santo Deus?
Algo impacientado, ao vê-la tão ensimesmada que nem bulia na comida, o Médico decidiu quebrar o silêncio desviando de vez o tema perigoso.
- Mãe, come! O peixe arrefece!...
Dona Maria Margarida suspirou, pegou no talher e dispôs-se a comer. Só então, erguendo o olhar preocupado, reparou que Cecília permanecia de pé, imóvel, enleada e pálida, como sob o império de qualquer forte emoção.
Imperdoável falta! Magoara, com certeza, a orfazinha, esquecendo-se de a convidar a sentar-se, dando-lhe talvez a impressão de que era ali uma intrusa! E a boa senhora, açodada, pedindo-lhe desculpa, ofereceu-lhe imediatamente a cadeira ao lado dela.
Francisco dignara-se fitar a rapariga. Agora com uma vaga impressão a acicatá-lo.
Onde vira já aquelas feições? Onde? Como? Quando?
Mas em vão procurava na retina imagem que as situasse. Não as localizava em parte alguma. Pelo que ou o contacto fora demasiado fugitivo... ou a ideia não passava de ilusão.
Contudo não pôde observá-la melhor, porque Cecília, solicitando licença para, antes de se sentar à mesa, ir arranjar os cabelos, saía da sala de jantar.
E Dona Maria Margarida, desejando conhecer a opinião do filho a respeito da rapariguinha, mal a viu transpor a grande porta de madeira negra voltou-se para Francisco.
- Então? Que te parece ela?
E ele prontamente, entre dois goles de vinho:
- Uma insignificante.
- Mas - insistiu a Mãe -, supunha-la assim ?
- Ora! com os cabelos caídos pelas costas abaixo e vestida a teu gosto - deduzo!-confesso que a tua protegida tem o aspecto que eu esperava.
- O aspecto que tu esperavas?
- com uns meses por cima, será uma idiota, vaidosa, contundente e arrebicada.
- Não era isso que temias, Francisco!
- Talvez não!... Mas sabes que mudo facilmente de ideias quando os assuntos não têm mais profundidade e interesse do que este.
Quando reentrou, cabelos entrelaçados à pressa (logo assaz mal...), muito corada, o nariz a luzir porque nem sequer se lembrara de sobre ele aplicar um toque de pó de arroz, a tímida Cecília não podia de forma alguma satisfazer o gosto exigente de Francisco.
Sem o casaco por cima, o vestido de malha de lã cor-de-rosa parecia francamente desgracioso, talvez por exigir um corpo mais alto e mais forte do que o dela.
Dona Maria Margarida, atrapalhada com o efeito daquela aparição, que adivinhava péssimo no sorriso escarninho do filho, quis fornecer explicação que diminuísse a canhestra aparência da rapariguita.
- A Cecília é muito baixinha, não há nada que lhe sirva! Tem um talhe de criança, ainda...
Sentindo naquelas palavras de evidente desculpa um desagrado absoluto pela sua pessoa e pela sua apresentação, a pobre Cecília ainda mais confundida se sentiu e, por inadvertência ou azar, mal se ajeitara na cadeira deixou cair o guardanapo e atirou com uma das facas ao chão...
É uma coisa terrível e frequente. Se, reprovativo, o olhar de alguém incide sobre uma pessoa, quanto mais esta quer melhorar a sua conduta mais desastrada se torna...
Na sua crescente aflição. Cecília inclinou-se para apanhar guardanapo e faca, mas a criada, solícita, acorreu, e ao dobrarem-se ambas as cabeças bateram-lhes violentamente uma na outra, obrigando-as a soltar um ai lastimoso.
Qualquer simpatia que porventura Francisco de início houvesse experimentado, desfez-se por completo e inevitavelmente naquele momento.
Irritado, dardejou um colérico olhar para a Mãe, mortificada e incapaz de atribuir a qualquer dos presentes a culpa da angústia que a pungia. E não se conteve, ele.
- Era isto que eu receava!... Trata-se de uma criatura sem ponta de educação, inapresentável!
Sob a frase inclemente que a rebaixava, Cecília não conseguiu suster duas lágrimas mas, disposta a tudo para captar a benevolência do rapaz, cuja brusca atitude não lograva compreender, aventurou-se a balbuciar:
- Creio que fui desastrada... do que peço perdão, meu primo...
- Primo? Disse primo? - e parecia tão escandalizado que ela receou tê-lo ofendido.
- Não deseja que o trate... assim? Ele flagelou-a com desdenhoso sorriso.
- Na verdade tanto faz. Espero que não tenha muitas oportunidades de dirigir-me a palavra. Não nos espera a mínima familiaridade.
E Cecília, agora fechada num grande silêncio, olhava fixamente o prato, como se lhe procurasse no fundo qualquer solução para um mistério erguido na sua frente qual muro que não a deixaria avançar para lado nenhum.
Bondosamente, certa de que a rapariguinha se sentia deslocada e infeliz, Dona Maria Margarida, tentando pela sua ternura suavizar quanto de doloroso aquela recepção contivesse para a recém-vinda, perguntou-lhe:
- Não comes, Cecília?
- Não.
- Porquê, filha?
E ela, num sussurro.
- Não me apetece.
- Mas precisas de comer, minha filha! Tens de engordar e de arranjar outras cores...
Decididamente, Francisco estava num dos seus - por sorte pouco vulgares - maus dias. Tudo o aborrecia e agastava. E ia continuar evidenciando o seu descontentamento.
- Por favor, Mãe! Espero que não me obrigues a assistir à ridícula cena das mamãs que obrigam os filhotes a comer... A... a menina Cecília já não é um bebé!
Desta vez, porém, a menina Cecília entendeu que era demasiado o frenesim do primo e resolveu não permitir que a ofendessem impunemente e sem justificação alguma. Ergueu as pupilas para o mancebo e, recuperando inesperadamente a vivacidade que lhe era afinal peculiar, ripostou:
- Decerto que já não sou um bebé!... A sua Mãe é muito gentil, mas não precisará de se preocupar comigo, acredite. Há muitos anos que não uso chucha, pode ficar descansado. -Posso ficar descansado? - troçou Francisco, como se lhe parecesse inconcebível que alguém imaginasse que tanta insignificância se lhe tornaria nociva. - Posso ficar descansado? Eu?... Mas quem se julga para me falar nesse tom? e defrontou o olhar sério, carregado de censuras, que não se desviava do dele.
Então, de súbito e ainda que desagradado, sentiu-se na obrigação de reconhecer que a rapariga tinha uns olhos invulgares, estranhos, soberbos... E... e apesar do tom gélido em que lhe falara, não podia impedir-se de admirar a resposta clara e positiva que ela lhe dera. Tanto mais que voltava a assediá-lo a impressão de conhecer o puro oval daquele rosto fresco e... e talvez muito menos feio do que à primeira vista se diria.
Mas onde, onde poderia tê-lo visto? Não, não conseguia recordar-se!... E para se libertar das recriminações que ante a expressão cândida mas firme da primita a sua própria consciência lhe fazia já, levantou-se impetuosamente da mesa e, com um até logo irritado, abalou porta fora.
Cecília estremeceu mas não reagiu. Limitou-se a de novo dedicar toda a sua atenção ao prato.
Dona Maria Margarida, estupefacta, não sabia interpretar as rudes maneiras de Francisco. Sempre gentil, sempre afável, porque se mostrava ele tão agressivo para a jovem isolada no mundo e mil vezes digna de simpatia?
No íntimo, atribuía à influência de Isabel (de Isabel, claro!) o mau humor do filho e, desculpando-o no seu amorável coração, desejava que também no da rapariga não ficasse qualquer má-vontade, ainda que perfeitamente justificada... Estendeu a mão para Cecília e tocou-lhe no braço.
- Não te preocupes, Cecília, peço-te... - disse caridosa. Aquilo deve ser tudo por se ter aborrecido com a noiva, que chegou hoje de França. O meu Francisco tem repentes mas é bom rapaz...-e numa confissão espontânea:-Acho que o criei com mimo demasiado, minha pequenina... o mimo que podia ter repartido contigo! Mas enfim... eu não pensava senão nele... E é preciso perdoar-me, sabes? Enviuvei bastante nova... adorava o filho que me ficou de tudo quanto perdi... Foi ele o refúgio da minha dor, a única fonte onde eu bebia coragem que me secasse as lágrimas. De três filhos que tive, só me restou este!...
Cecília respondeu-lhe com emocionadas palavras de compreensão que banhavam de encanto a alma nostálgica da boa senhora e então, docemente, as duas mulheres tão distantes nas idades e tão próximas nos sentimentos puseram-se a conversar e a conversar ficaram durante muito, muito tempo, unindo-se num laço de uma afeição que nada abalaria nunca.
O vaivém contínuo e açodado dos Cabeleireiros em acção mal conseguia distrair a sacrificada no altar da moda que, em forçada imobilidade, com olhos de mártir, oferecia o rosto afogueado e a cabeça entontecida ao vento quente e ruidoso de um maléfico aparelho.
O artista responsável pelo trabalho, depois de consultar o cronómetro, veio por fim desenrolar uma madeixa, apreciando-a com ares entendidos.
- Ainda não está ? - perguntou, lastimosa, a paciente.
- Cinco minutos mais, mademoiselle. Responderam-lhe dois suspiros. Um, de tédio e cansaço,
subiu da cadeira do suplício; o outro fugiu do peito da senhora de idade cujo olhar envolvia em compassiva ternura a figurita da que se lastimava:
- Ai, prima Maria!... Nunca mais saímos daqui!
Vendo as horas no pequenino mostrador do relógio cravejado de brillhantes, Dona Maria Margarida acabou por se inquietar.
- Sim, vai ficando tarde...
- Acho melhor pentear-me assim mesmo...-decidiu a rapariga, pondo a cabeça fora do secador e gracejando: -Não perco o noivo se não ficar uma beleza! - e foi então que, olhando à volta para requerer os imediatos serviços do Cabeleireiro, deu fé de uma adolescente vestida de azul que andava a varrer o chão. E lá ia, arrastada pela vassoura inclemente, a sua linda trança pouco antes cortada. A sua trança viva, parte integrante dela própria, condenada à destruição irremediável...
E não pôde impedir-se de soltar um gritinho lastimoso.
- Coitadinha da minha trança!
Mas logo, sentindo que fora ridícula ao ver fixos nela, espantadas, as pupilas da aprendiza de certo pouco habituada a expansões de amor pelos cabelos cortados, embaraçada se calou baixando a cara. Já porém Dona Maria Margarida, cada vez mais atraída para quem desde há quinze dias era o enlevo da sua alma, quis satisfazer-lhe o inconfessado desejo.
- Marieta, por favor, vá pedir ao Sr. Eduardo que mande entrançar os cabelos da menina.
Nesse preciso instante, o Cabeleireiro, que se aproximava e ouvira as palavras da cliente digna da maior consideração, solícito declarava, merecendo da jovem um enternecedor sorriso de agradecimento:
- Eu vinha justamente perguntar à mademoiselle se desejava conservar a sua trança. - e apanhando do chão o lindo monte de cabelos anelados principiou a tecê-los habilmente, sempre a falar. -? A mademoiselle tem uns cabelos lindos! Raramente se encontram assim, tão fartos e macios, com uma cor tão firme e tão à la page. É uma beleza, a mademoiselle pode crer. E depois, em penteado de gala, a trança adorna preciosamente uma bonita cabeça. Não concorda, mademoiselle?
A mademoiselle, num sorrizinho irónico, enfadada por tanto mademoiselle que tresandava sem remissão à triste subserviência portuguesa ao estrangeirismo, limitou-se a anuir (e a pedir):
- Sim, posso concordar. Mas olhe, por favor, penteie-me!
- Imediatamente, mademoiselle!...
- Menina... - corrigiu então, com firmeza, a juvenil patriota.
E o artista, poisando nela um piedoso olhar, com certeza a lamentá-la no íntimo por tão pouca instrução, explicou subtilmente :
-Mademoiselle signifiica o mesmo...
Cecília, resignada a ouvir a palavra peralvilha que para certos espíritos adquire proporções de nobreza invulgar, limitou-se a encolher os ombros.
O espelho reflectia-lhe agora o rosto e Dona Maria Margarida, olhando-o, apercebeu-se de que o sorriso da primita era bonito, tão bonito que lhe alagava o semblante de uma alegria contagiosa, tornando-a mais atraente, dando-lhe até um certo ar de malícia que a covinha do queixo e o brilho intenso dos olhos acentuavam deliciosamente.
Quando o Cabeleireiro, depois de ter penteado Cecília, se afastou para atender outra cliente, Dona Maria Margarida, num último retoque de maternal exigência aos caracóis, comentou baixo, divertida:
- O Eduardo julgou que não sabias francês... Logo Cecíllia, numa risada, volveu:
- E eu tenho a certeza de que ele não sabe português, o que é bem pior! - e, levantando-se, dispôs-se a acompanhar a prima até à sala contígua, azul como as batas das empregadas e onde algumas clientes esperavam a sua vez e outras estendiam as mãos para os tratamentos indispensáveis ao culto da formosura - culto aliás perfeitamente legítimo quando não exercido em declarado narcisismo.
E aí, de súbito, Dona Maria Margarida mal reteve uma exclamação e, apertando o braço de Cecília, murmurou-lhe:
- Vê... acolá!... A namorada do meu Francisco!
Cecília voltou-se precipitadamente e encarou a linda rapariga muito loira que, depois de num breve aceno cumprimentar Dona Maria Margarida, também a fitava, curiosamente ou - quem sabe? - impressionada pela graciosidade daquela rapariga tão pequenina. E, no mesmo tom segredado, limitou-se a responder:
- É maravilhosa, prima Maria!
A prima Maria ficou silenciosa. Talvez estivesse a compará-las... E comparando-as, desse todas as vantagens à que por completo se desconhecia bela. Belíssima!
Já por duas vezes Francisco, intrigado, parara o enervante passeio de um extremo ao outro da salinha para com atenção mirar o perfil correcto da jovem prima. Que mudança se operara nessa, criatura tão insignificante (expressão dele!) para assim o preocupar? Não era capaz de dizê-lo, não sabia de onde provinha o súbito interesse que por ela sentia nascer e irritava-se consigo próprio, indispunha-se pelo que julgava contra-senso.
Estar assim constantemente a olhar para a rapariga era dar-lhe motivos mais do que vastos para ela se julgar dominadora e triunfante nos sentimentos que lhe inspirava!
E continuava a andar, mal humorado.
Cecília, calmamente sentada ao lado de Dona Maria Margarida, lia qualquer coisa.
E o rapaz azedava cada vez mais. Aqueles grandes olhos puros, a candura dos lábios rosados, a juvenilidade da testa branca, buliam-lhe com os nervos. Detestava ares ingénuos e nunca vira outros assim!
Voltou a estacar. Ah! E a pretensiosa fingia-se atenta ao livro quando pela certa o examinava de esguelha... E, furioso, ia recomeçar o passeio. Foi quando as razões da mudança notada se lhe revelaram, de chofre. As tranças!... Cecília tinha cortado as tranças! Então, inesperadamente, largou um murro em cima da mesita de costura, tão violento que Dona Maria Margarida, que se entretinha a bordar, se picou num dedo e Cecília deixou cair o livro, sobressaltada.
- Que sucedeu? - inquiriram ambas, atónitas.
O primeiro impulso do Médico foi dizer, exasperado:
- Que barbaridade!... - mas logo cedendo ao sarcasmo que lhe enchia a alma, acrescentou desdenhoso: - Para que diabo lhe cortaram o cabelo?
Cecília levou rápida a mão à nuca e, como criança temente do castigo porque se sabe em falta, murmurou, em vaga desculpa:
- Parece que não se usam tranças...
- Ah, sim? Não usam? - e a voz soava-lhe pesada de ironia. - E a menina pretende modernizar-se, é ? Pois fique sabendo que lhe há-de ser custosa a transformação! Não passa de uma criatura vulgaríssima que acabará por ser ridícula.
- Ah, sim? - inquiriu ela, o brilho dos olhos desmentindo a inocente expressão ao parodiá-lo talvez até sem intenção. Gosto de conhecer a sua opinião a meu respeito... e agradeço-lhe as boas intenções.
Sentindo-a combativa, Francisco já não foi tão seguro na opinião que emitiu.
- As modas requerem uma forma de adaptação muito especial, percebe?
Ela mordeu os lábios mas não conteve a réplica.
- Julga isso?
- Não julgo, tenho a certeza! Para se ser ajustada aos moldes de uma sociedade evoluída há muito que aprender.
Cecília meneou a cabeça, num leve trejeito depreciativo.
- Bem, se é só isso!... Eu pensava que se tratasse de possuir atributos de nascença... Agora se é coisa que se aprende... eu talvez aprenda. - e, com súbita decisão, acrescentou: - De resto, olhe... eu não desejo vir a ser uma mulher moderna. Não me interessa.
- Não lhe interessa? Porquê? - indagou o Médico, involuntariamente preso ao tema.
- Porque não me sinto capaz de abdicar da minha personalidade!
- E acha que as mulheres modernas não a têm?
- Acho! O que é moda para uma é lei para todas. Mesma cor de lábios, mesma cor de cabelos, de unhas, de vestidos,... São todas iguais! - e como Francisco se calasse, um tanto surpreendido com a vivacidade dessa garota sem importância, ela prosseguiu, segura de si: - Digo-lhe mais, até. Eu não gostava nada de reflectir certas elegâncias que por aí abundam.
Uma entonação determinada perpassara naquela afirmativa - era plena de desdém.
Francisco, registando-a, fitou-a, aturdido com o que devia parecer-lhe flagrante audácia.
- Pretende insinuar alguma coisa?
- Eu? - e logo a seguir, maliciosa:-Não me considera modesta demais para cometer uma ousadia... de palavras? mas logo receou ter ido demasiadamente longe e, corando, balbuciou:- Desculpe... Não quero atingir ninguém!
Pairou o silêncio. Na sala que apesar das pequenas dimensões era de requintado gosto, apenas o tique-taque monótono do relógio dourado sobre o qual dois anjinhos pareciam, curiosos, espiar o avanço das horas.
Dona Maria Margarida poisara o bordado e olhava para fora através dos cortinados da janela. Na quase transparência das feições magras, mostrava-se sucumbida. De quando em quando respirava fundo, como se lhe faltasse o ar. O coração, o seu velho coração gasto pela vida triste de sempre, apoquentava-a cada vez mais. Andaria a dar-lhe sinal de que o além a esperava? Há quanto tempo ela o sentia a falhar, numa lenta ameaça, sem ter coragem para confessá-lo ao filho querido!
Ah, se Francisco adivinhasse quão adoentada a Mãe estava!...
Nas almas de todos dir-se-ia agora adensar-se uma névoa taciturna, de maus presságios. E o rapaz, contrariado, esforçando-se por reagir, por se libertar de uma inesperada e apunhalante melancolia, voltou a ira de novo crescente para a jovem que assim se permitia defrontá-lo. E foi duro. No olhar acerado e na frase com que a trespassou.
- Sabe uma coisa ? Dir-se-ia que a sua presença afugenta a boa harmonia.
Cecília ergueu a cabeça das páginas em que voltara a mergulhar pupilas e atenção e fitou-o calada, abatida por reconhecê-lo assim implicante e sem razão justificativa. De que a acusava ele, afinal? E a sua expressão magoada tornava-se num silencioso quesito que ainda mais alterava Francisco, obrigando-o a um virulento comentário.
- Você não sabe rir? É pavoroso, um rosto de mulher quando não sorri! - e, exasperado: - Decididamente, você resolveu dar-me cabo da paciência!...
E ela, em muda exprobação, afectava-o muito mais do que se lhe dirigisse qualquer censura directa. Preferia vê-la como há pouco, viva, arrojada, quiçá impertinente... Mas não! Dera-lhe para compor um ar de vítima, para baixar o rosto e suspirar como que martirizada...
Desesperado, agastado consigo próprio mas sem poder conter-se, Francisco sibilou então:
- A sua presença incomoda-me. Incomoda-me, ouve?
Os olhos de Cecília, rasos de água, poisaram-se nos dele, e ela pôs-se de pé devagarinho, devagarinho...
- com licença. Para não o enfadar mais... retiro-me!... E antes que Dona Maria Margarida, atónita, lograsse intervir, sumiu-se para além da porta, a estoirar em mil soluços.
Nervoso, exaltado, já arrependido do excesso a que se entregara, sem mesmo compreender a animosidade que o movia contra a rapariga, Francisco experimentou dobrados remorsos quando, ao voltar-se para a Mãe, a viu lívida, cambaleante, ambas as mãos sobre o seio em jeito de grande sofrimento.
Aflito, correu para ela, a ampará-la, a cingi-la ao peito.
- Mãe... que tens? Que tens tu, minha Mãe?
Dona Maria Margarida procurou sorrir, num grande esforço para serenar aquela espécie de garoto crescido.
- Nada, nada... não te aflijas.
Ele queria transportá-la para a janela, dar-lhe um qualquer medicamento, mas a pobre senhora, aprumando-se, escusava-se.
- Não, filho... já passou... não tem importância. - e para convencê-lo:-Isto sucede muitas vezes...
Ele censurou-a, toda uma pungente inquietação no fundo dos belos olhos:
- Nunca te queixaste, Mãe!...
- Oh! Dão-me estas coisas... desde há anos. A primeira vez foi... a seguir à morte do teu Pai!... Como vês, não tem importância... são nervos... Passa sempre...
Ele acariciou-lhe a cabeça grisalha.
- Ainda não consultaste nenhum especialista?
- Para quê... se tenho vivido?...
Francisco sentou-se na frente dela, aquecendo nas suas as mãos geladas da Mãe e olhando-a ansioso. Olhando-a para a ver como ela estava de facto. Magra e acabada! Fora tão bonita, tão alegre!... E de súbito, como se a tivesse na sua frente, recordava a rapariga morena que o fazia saltar nos joelhos, rindo às gargalhadas, tantas e tão festivas como as dele. Lembrava essas gargalhadas e a doce voz embaladora que ia contar-lhe histórias para o adormecer, histórias ainda palpitantes no âmago da sua alma orgulhosa que se fechava enternecida sobre o tesouro das crenças infantis, cheio das pastorinhas que os príncipes desposavam... Como tudo realmente ia longe! E o tumultuar das saudades, avassalando o garoto crescido, alagou-o de pranto, vencendo os caprichos modernos, dominando o voluntário esquecimento das horas felizes que não tornaria a viver.
A sua linda Mãe ali destroçada... talvez próxima da viagem fatal... E ele que tanto a amava e não sabia demonstrar-lho!
Comovidíssimo, desfeito todo o mau humor, beijou-lhe as mãos, permitindo que Dona Maria Margarida o acariciasse, trémula e suave a murmurar:
- Oh, meu filho! Para que hás-de aparentar o que não és? Faz-me tanta pena!...
Francisco franziu o nariz, procurando suster a emoção.
- Não dês importância ao meu génio azedo, Mãe. Isto passa!... Sou um irascível!... Um diabrete, como tu dizias quando eu era miúdo... -e logo, cuidadoso:-Como te sentes agora, Mãe? Diz!... Mas diz concretamente! Sinceramente, peço-te!
A senhora alteou o busto e respirou fundo.
- Já passou tudo.
- Já passou? com certeza?
- Sim, tranquiliza-te. E se tens de sair, sai. Não te preocupes. Vai, meu filho!... Vai!
Ele levantou-se.
- Mais logo, tenho tempo. - e numa confissão espontânea, irreprimível: -Mãe, acho que procedi mal há pouco...
- Procedeste.
- Como devo agir?
Ela não hesitou em serená-lo, prestando homenagem às qualidades da primita.
- Julgo que a Cecília não é de reservas!... Esquecerá depressa a tua má vontade contra ela, descansa - e aproveitando o ensejo que se lhe oferecia, inopinado, Dona Maria Margarida quis falar-lhe de um assunto que deveras a preocupava. Francisco, eu posso morrer de repente e...
- Oh, Mãe?!... Não!!!
- Todos morremos, filho! E eu receio apagar-me de um momento para o outro.
- Por favor, Mãe!!!...
- Escuta-me, filho!... É por causa da Cecília. A pobre rapariga. .. se lhe falto, ver-se-á de novo só neste mundo tão mau...
- e atalhando o gesto dele, expressivamente doloroso: - Bem sei que ainda estou para durar muito... e oxalá! Gostava de casar a Cecília, de deixá-la amparada... É tão digna de amor, de ventura! Mas Deus manda!... Posso fechar os olhos... e vocês não se entendem!... Que será dela?
Francisco procurou descontrair, não levar para o drama tão penoso assunto.
- Não volto a ser embirrento, Mãe. Ela irrita-me, é certo... mas vou remediar o caso prestando-lhe o menos possível de atenção, prometo.
- Como tu quiseres... Mas não te falo pelo presente, refiro-me ao futuro. Francisco... quando eu morrer... não deixarás a tua prima ao desamparo? Não?
Ele simulou-se indignado.
- Mãe, eu não sou nenhum selvagem!...-e inclinou-se para ela, e beijou-a, e sem demora, para não dar aso a que prosseguisse o aflitivo colóquio, saiu.
Iria baldadamente procurar distrair-se. A indisposição da Mãe e as palavras que lhe ouvira preocupavam-no, tornavam-se num véu negro que lá fora escurecia a vida. E ao meter-se no automóvel que o esperava à porta de casa - corpo de que ele era o espírito - ainda murmurou, para se libertar do peso enorme que o atormentava:
- Tudo disparates!
Seriam disparates. O véu negro não os encobria, pelo contrário. Sobre o fundo lúgubre cada vez assumiam mais realce e mais presença. Eles, os disparates.
- A tua vontade è sagrada, Mãe... mas não posso deixar de avisar-te de que vais cometer uma imprudência. Quem se lembra de ir passar meia-dúzia de dias ao pé do mar, tendo o coração desarranjado! - e Francisco meneava a cabeça, reprovativo.
Dona Maria Margarida, ocupada a pôr em ordem a extraordinária colecção de gravatas amontoadas numa gaveta da enorme cómoda, encolheu os ombros.
- Não me faz mal nenhum, garanto-te! Nesta última semana tenho-me sentido bastante melhor. E além disso é justíssimo que a Cecília se distraia...
- Claro! E para que a morgada passeie vais tu expor-te aos riscos de uma estadia na praia!...
-Francisco...-censurou a Mãe, mostrando surpresas as pupilas azuis, saudosas de passados fulgores. - Tu prometeste-me não voltar a ser... embirrento!...
E ele, envergando o casaco azul, de bom corte e óptimo tecido:
- E não falhei! Não atiro pedras à tua estatueta de vidro.
- Estatueta de vidro?
- Sim, coisa frágil, inconsistente, ténue, melindrosa,.. Se lhe bulem, parte-se.
Dona Maria Margarida, desejando mostrar-se ofendida com o gracejo e sem consegui-lo inteiramente, disfarçou um sorriso.
- Desmentes-te a ti próprio! Vê se não estás a zombar dela...
- Mas não, mas não!... - assegurava, contrito. - Isto foi uma imagem como outra qualquer! E voltemos ao assunto primordial. O facto é que não me interessa nada que a tua Cecília - e acentuou o possessivo - passeie ou deixe de passear. Simplesmente não aprovo tolices. Vais fatigar-te sem necessidade. Olha, Mãe, sugiro que deixes a digressão lá mais para o Verão. Quando as praias regurgitarem de banhistas e nudistas, a tua priminha receberá mais forte a sensação da beleza estonteante dos modernos paraísos terrestres onde pululam Adões e Evas de mistura com a fauna de cãezinhos que mal se vêem e de garrafões grandes demais... Tudo tem as suas vantagens !
Declamara um pouquito, sarcástico de leve, e a Mãe, agora rindo franca, avançou para ele, poisando as mãos nos ombros largos e levantando bem o rosto para o fitar.
- Meu querido que pertence à categoria dos nudistas...
- Pertence mas não admira!
- Sim, filho... Não sei porquê, mas mostras-te vocacionado para praticar justamente o contrário do que te agrada, do que satisfaz a tua alma tão profundamente bondosa!
A fim de não deixar perceber que a frase, plena de verdade, atingira o alvo, ele gargalhou:
- Alma bondosa? A minha? Oh, Mãe! Eu não passo de um demónio com bonita figura!
- Enganas-te, meu filho. Dei-te a vida, criei-te, registei as tuas primeiras reacções, assisti a todas as manifestações do teu carácter em formação, eduquei-te... És um livro em que leio claro e bem vejo os estragos que nele têm feito certos conceitos. Mas são danos que me não assustam - consertam-se.
As pupilas de Francisco fixaram-se nas da Mãe, em secreta ansiedade.
- Julgas... ? Acreditas que de facto a minha época não tenha inutilizado em mim as fontes dos impulsos desejáveis?
- Ouve, Chico! Primeiro... a tua época é uma época de reconstrução em que todas as energias voltam a adquirir o vigor original, portanto altamente propícia a esforços de notabilização. Segundo... só quem na velhice aguarda de minuto a minuto a chegada da grande ceifeira deve desesperar por nada ter feito de útil na vida. Os novos podem sempre recuperar o tempo perdido. - na voz de Dona Maria Margarida acentuava-se a nota de uma grande esperança, e porque as pupilas de Francisco se não desviassem, ela prosseguiu: - O trabalho é o grande remédio que prova aos desiludidos a têmpera do seu carácter. Um termómetro que marca a saúde espiritual!... - e depois, de novo a sorrir: - E sou eu, a exilada de outras eras, quem dá conselhos desta natureza ao elegante cultor da vida moderna!...
com certa violência, Francisco desprendeu-se da afectuosa pressão maternal, logo comentando:
- Eis a única vantagem que me podem reconhecer - a da elegância pessoal!...
- Acrescenta-lhe a simpatia...
-Oh! Simpatia! Uma simpatia muitas vezes anulada pelo mau génio e pelas inconsequências!
Raras, raríssimas ocasiões se haviam deparado a Francisco, na sua despreocupada existência, para ser tão austero e implacável juiz de si próprio. Poderia nesse momento sorver em haustos, na consciência das suas imperfeições, a vontade de se retemperar e abrir caminho para novos horizontes, mas...
Mas...
No corredor soava uma voz clara, harmoniosa, em chamamento inquieto:
- Prima Maria!... Prima Maria, onde está?
Dona Maria Margarida correu a abrir a porta do quarto do filho.
- Que queres tu, Cilinha?
Vibrou no ar a explicação.
Ando há que tempos a procurá-la para saber se posso dar banho ao Tigre.
Por detrás da Mãe, Francisco franziu os sobrolhos, desagradado pela intenção que a rapariga manifestava de querer lavar o rude colosso da Serra da Estrela, indelicado como quem jamais leu um manual de civilidade... Talvez não passasse de exibicionismo, ou desejo de sentir-se imprescindível. Antes que dissesse algo, porém, já Dona Maria Margarida recusava a autorização pedida.
- Não, minha filha. Isso é trabalho para o Jardineiro.
- Eu gostava tanto, minha prima!
- Fica para outra ocasião. Agora vai preparar-te num instante, acomodar as tuas coisas...
- Que coisas?
- Tudo o que precisares para uns dias. Pede à Júlia uma das minhas malas pequenas.
- Mas... vamos sair?
- Sim, vamos passar uns dias fora. E Cecília, numa irreprimível alegria:
- Pois sim, prima. vou tratar de tudo... e não me demoro nada!...-e ouviram-se os passos apressados perdendo-se na escada.
Francisco calou uma dissertação acerca da influência dos divertimentos nos ânimos versáteis das raparigas, limitando-se a inquirir, ao ver a Mãe disposta a abandoná-lo:
- Então... não desistes dessa ida para a praia?
- Nunca desisto do que resolvo!
- E se te fizer mal?
- Não faz.
- Mas não te agrada o meu alvitre...?
- Que alvitre?
- Deixares a excursão para o tempo mais quente...? Dona Maria Margarida encostou-se à porta, abanando a cabeça.
- Não e não!... Preocupam-me imenso as carências do espírito da Cecília. Por isso não pretendo mostrar-lhe as nossas praias elegantes mas sim deixá-la viver em toda a sua majestade a beleza do mar e das areias virgens de pisadelas contínuas.
- Porquê? - indagou, surpreso com a declaração.
- Porquê ? Porque descobri uma pérola rara e não quero turvar-lhe o horizonte expondo-a demasiado aos hálitos dos ambientes nocivos. A mudança brusca podia desvalorizá-la.
- Nesse caso, durante o Verão... fechas a pérola em casa? Na ostra?...
Ele falara com sinceridade e a Mãe compreendeu-o.
-Não, pelo contrário! Mas antes de a impelir para o convívio de uma juventude que exorbita, hei-de ensiná-la a apreciar o que é perfeito e a discernir onde começa a alegria e acaba a honra. E agora até logo, meu filho. - e depois de lhe beijar as faces, saiu açodada.
Ante a inesperada reacção da Mãe contra o que até aí nunca lhe merecera grandes censuras, Francisco ficou pensativo. Porque falara a Mãe assim, porquê? Porque jamais tivera nos braços, para a defender e preparar contra os embates do mundo, uma filha? E... e acaso estaria Cecília ocupando esse lugar aberto em todos os corações de mulher? Não sabia... e porque não sabia nem a si próprio seria capaz de responder. Mas ficou-Ihe no ouvido, obstinada, aquela frase "descobri uma pérola rara e não quero turvar-lhe o horizonte expondo-a demasiado aos hálitos dos ambientes nocivos..."
Os ambientes nocivos. Os ambientes nocivos...? Os ambientes de Isabel.
Alterosas de encontro às penedias abruptas, severamente erguidas sobre o revolto Oceano, as ondas vinham esmagar os seus corpos heróicos na conquista da terra inexpugnável, erguendo as entranhas líquidas num uivo de brutal dor, metamorfoseadas em milhares de gotinhas brancas unidas em fumo ténue que subia a grande altura. E depois o ténue fumo voltava a repousar sobre as águas de uma outra vaga que chegava ao assalto. E era sempre, sempre, o mesmo degladiar feroz, altissonante, que às vezes,-effl em súbita quebreira, ficava parado num ondular manso de arquejos prestes elevados a novas Batalhas.
Fervorosamente, Cecília uniu as mãos, entrecruzou os dedos e debruçou-se para o abismo.
- Oh, minha prima... que grandiosidade!... Passando-lhe o braço pela cintura num gesto de protecção,
Dona Maria Margarida confessou:
- Sabia que havias de gostar. Sempre adorei este espectáculo do mar embravecido, mar verdadeiro que nos lembra todas as audácias das caravelas partindo através do mistério em demanda de novos mundos que fossem portugueses...
Cecília aprovou, emocionada.
- Tem muita razão! Não contesto o encanto do mar sereno, suave como toalha azul que há-de servir aos banquetes do deus Neptuno, mas sinto-me melhor, compreendo-o mais intensamente, quando o vejo bravejar ameaçador, irado... Dá-me a noção exacta de quanta coragem necessitam todos os homens que dele e para ele vivem. E admirando-os, também sei apreciar-me melhor. É que chego a sentir orgulho da minha forma humana!
O entusiasmo da rapariga pôs lágrimas de enternecimento nos olhos da prima Maria.
- Queridinha, como tu vibras em face das obras da natureza!...
- Se não há outras assim tão sinceras! - e apontando a luta ciclópica dos vagalhões: - Repare... além, aquele, a trepar sobre o dorso do outro...e sobe! Olhe... olhe!... Vai bater na rocha... Vai transformar-se numa chuva irisada, com os raios de sol beijando-a... Que decepção!... As águas desceram... e a onda sumiu-se pela caverna dentro, a silvar... naturalmente de desespero!... Ih! É agora! Que espectáculo! Pois ninguém diria que uma onda tão pequena faria semelhante espalhafato! Foi um repuxo elegante, caprichoso... Parece que há um artista compondo-lhe os efeitos!... Que extraordinária fonte luminosa!
Assim assistindo à alegria esfuziante da rapariga face ao maravilhoso cenário, Dona Maria Margarida recordava uma tarde já longínqua, tarde embriagadora em que, recém-casada, ali, abraçada ao marido, assistira galvanizada pela surpresa e pela admiração ao rebentar de uma tempestade sobre o mar. Gritara, batera palmas, impregnada do fluido magnético que se evolava da natureza em cólera e nela se adensava, prendendo-a às forças cósmicas, dando-lhe o invencível desejo de rolar nesse fantástico ambiente de movimento em fundos pardos. O marido sustivera-lhe o ímpeto a rir-se da loucura e no peito dele adormentara ela a sensação violenta que lhe sacudira os nervos...
Voltara ali depois, muitas vezes. Primeiro só com ele, feliz e radiosa. Depois acompanhada pelos filhitos que segurava palpitante, receando-se da curiosa temeridade dos inocentes. E mais tarde sozinha, cheia de crepes na alma, em busca de mais saudades que embalassem tantas saudades padecidas...
Há muito que não visitava aquele promontório. Mas experimentava, desde há tempos, um inexplicável desejo de voltar a ver o panorama sublime, talvez para nele chorar as derradeiras lágrimas que sobravam do passado.
Não quisera confessá-lo ao filho, sabendo quanto ele lhe recriminava a sentimentalidade excessiva que busca o sofrimento do renovar de perdidas sensações, já receando vê-la sucumbir ao peso da emoção, já achando inútil procurar nas cinzas o calor extinto. Mas decidira rever esse cofre de espantos e quisera fazê-lo proporcionando a Cecília o conhecimento do que a ela própria exaltara.
E a reacção espontânea da rapariga face ao panorama sublime era mais um motivo para bendizer o tê-la trazido. Cecília aquecia-lhe as lembranças na chama do seu alvoroçado deslumbramento. E a imagem do seu amor de outrora voltava, mostrando-lhe nessa jovem o renascer das suas próprias impressões.
Carinhosamente, afagou-lhe os cabelos, postos em desordem pelo vento.
- Ainda bem que tu gostas, Cecília. O teu entusiasmo alegra-me !
A pequena sorriu.
- Têm sido uns dias maravilhosos. O de hoje, nunca mais o esquecerei, prima Maria. É tudo belo, tudo... Mas isto... -ai, isto!... eu nem sei de palavras para traduzir o que sinto. Que mar este! Nunca tinha visto, nunca! Na Foz, onde as Professoras do Colégio às vezes nos levavam, o Oceano também é amplo e agitado... mas não tanto. - e sorvia num gozo fremente, o ar fresco da tarde.
com pesar notou Dona Maria Margarida que estavam chegando as horas do regresso a casa.
- Vamos indo, Cilinha?
A rapariga condescendeu imediatamente.
- com certeza. ?- e numa despedida ao Oceano, declarou, rindo: -Mas vou pedir-lhe, prima Maria, para virmos até cá sempre que nos sentirmos cansadas. Pasmando para esta luta sem fim, eu, por mim,afianço-lhe que sempre reaprenderei o sentido da vida!
A prima Maria nada replicou. Mas os seus olhos tristes disseram um último adeus ao mar, ao céu, aos rochedos abruptos, às saudades que lá ficavam desconhecidas de toda a gente. E disseram adeus com a convicção de que não voltaria ali acompanhando Cecília, a vibrátil Cecília em cuja expressão animada parecia ter-se gravado, indelével, o arroubo desses minutos inolvidáveis.
Afinal, a temida estadia junto ao mar dir-se-ia, contra todas as previsões, haver contribuído para acentuar melhoras em vez de agravar os padecimentos de Dona Maria Margarida.
Ficara a comer com mais apetite e havia duas semanas que não a atormentavam nem as crises de asfixia nem as palpitações.
Francisco quase se tranquilizara e, no que dizia respeito a Cecília, principiava a humanizar-se. Não que, para compensar a primita das anteriores indelicadezas, fosse agora um galanteador professo ou um companheiro cheio de boas vontades. Limitava-se a dirigir-lhe meia dúzia de palavras acerca do tempo e dos alimentos à hora das refeições e felicitara-a duas vezes, uma pela franja que lhe ficava muito bem e outra pelo apurado gosto de um vestido castanho e branco. Fora disso, nem dava por ela. Mas esse pouco bastava para que a Mãe bendissesse o seu mal-estar do célebre dia das lágrimas, esse que arrancara a Francisco a promessa de não voltar a ser embirrento. Aliás e desde então Cecília forçava-se a responder sem timidez às perguntas ou aos comentários do primo, quando ele se lhe dirigia. Silenciosa, discreta, apenas quando o Médico saía se revelava o passarinho alegre que animava a casa sombria com os trinados das risadas sinceras, levando aos olhos da idosa senhora um luar de suave contentamento pelo meigo conforto sempre ambicionado.
Naquela tarde, ao chegar a casa, Francisco chamou a Mãe de parte.
- Quero falar contigo, Mãe.
- Diz.
- vou fazer-te um pedido.
- Dois ou três, desde que não sejam irrealizáveis.
- Õ Mãe... - e fingia-se escandalizado. - Por quem me tomas?
- Por um excelente rapaz... mas...
- Ai tenho mas?
- Não há bela sem senão.
Riram os dois, e o mancebo, encorajado pelo semblante calmo de Dona Maria Margarida, aventurou-se.
- Queria oferecer esta semana um jantar.
- Posso perguntar a quem?
- Ã... à Isabel.
- Â Isabel? - e não disfarçava a imediata contrariedade experimentada.
Ele fingiu-se alheio à reacção.
- À Isabel e não só. Viria aí uma vintena de amigos nossos. Será uma coisita discreta. Espero que não te incomodem.
Dona Maria Margarida quedou-se meditativa. Francisco sabia perfeitamente que ela evitava festas desde que o luto lhe vestira a alma, mas de forma alguma queria que a sua recusa pudesse ser levada à conta de egoísmo de velha ou de reserva contra a rapariga... E acedeu.
- Faz como te aprouver, mas...
- Outro mas!
- Sim, meu filho. Eu não apareço. Penso que me compreenderás.
- Já esperava isso mesmo, Mãe, e não discuto a tua vontade. Agradeço a tua anuência sem mais nada. No entanto, como é natural que alguém faça as honras da casa... lembrei-me da Cecília.
- Da Cecília?
- Sim!
Os olhos de Dona Maria Margarida exprimiram funda surpresa.
- Queres apresentar a tua prima aos teus amigos ?
- Porque não? A pequena está a tornar-se jeitosa... Um sorriso brincou nos lábios pálidos da senhora.
- Sim, tão jeitosa que não receias os ciúmes da Isabel ?
Francisco encarou-a como se acabasse de ouvir qualquer
coisa de muito engraçado.
A Isabel com ciúmes da Cecília?!... Oh, Mãe! Ela não teme concorrências nenhumas e muito menos dessa natureza...
- Contudo, disseste agora mesmo que a tua prima está ficando jeitosa.
- Sim, para eu a apresentar aos meus conhecimentos, não para me agradar!... Pelo contrário! De resto a Isabel sabe que a amo... e não só! Ela conhece o poder de fascinação da sua própria beleza!
Dona Maria Margarida baixou o rosto e depois, lentamente, murmurou:
- bom... a Cecília representar-me-á como dona da casa. Mas pensa bem - é a primeira vez que a tua prima frequenta o teu meio...
- Um meio óptimo! - resingou ele.
- Não contesto! Mas hás-de orientá-la para que ela não mereça reparos. Principalmente, Chico, ensinando-a a defender-se dos teus amigos!
- São todos rapazes sérios e bem-educados, bem sabes. Logo não há que temer.
- Naturalmente. Mas enfim, ela é... jeitosa! O Médico sorriu, irónico.
- Sossega, Mãe. Evitarei que a Cecília oiça declarações apaixonadas! - e beijando-a:-És um amor... tão amor que a Isabel é mais capaz de ter ciúmes teus do que da minha jeitosa prima...
A vintena que Francisco anunciara multiplicara-se. Amigas umas das outras, conhecidas todas do Médico e dos companheiros, ao terem conhecimento de uma reunião em casa do Salves haviam conspirado para que a anunciada singeleza do convívio se transformasse em animada festa.
E os vestidos de saias rojando o chão e corpos de uma nesga de tecido, ao lado dos elegantes figurinos másculos, recortavam-se no fundo dos móveis sumptuosos.
Francisco sorria algo contrafeito. Prometera à Mãe uma coisita, simples; pedira a Cecília que envergasse o encantador vestido castanho e branco e eis que aqueles estouvados lhe apareciam em trajos de gala, fazendo uma tremenda algazarra que por certo desnorteava a senhora que, no andar superior, os escutava sem remédio, e obrigando a primita a sentir-se deslocada quando surgisse.
Pretendera impor-se.
- Pelo menos nada de danças!
Mas Isabel intercedera, o gira-discos fora posto em movimento e uma dúzia de pares andava pela sala, em volteios.
Seriamente preocupado, Francisco sentara-se ao lado de Isabel, a esplendorosa loira que oferecia aos beijos dos olhos a nudez dos braços e das espáduas marmóreas.
Para cúmulo, Dona Maria Margarida, cujas melhoras se haviam acentuado ainda mais nos últimos dias, mercê de vários tratamentos impostos por um colega de Francisco a quem este recorrera, andara queixosa nessa tarde. E o Médico sentia-se agora invadido por verdadeiro temor. Estaria a Mãe muito mais doente do que ele pudera supor e os nervos, abalados, sob o efeito da contrariedade poderiam tudo agravar? Mas a Isabel, estouvada e tagarela, envolvendo-o na estonteante graça com que o subjugava, em breve conseguiu preencher-lhe o espírito, libertando-o da pungente inquietação.
O rapaz adorava-a. No fundo, compreendia perfeitamente que devia o privilégio de ser considerado por ela como noivo à sua fortuna e à sua posição na sociedade. Mas também aquela formosura luxuriosa lhe satisfazia a vaidade, arrebatando-o numa onda invencível de satisfações. E a maior era sem dúvida aquela de estar ali, de pé, junto dela, acariciando-lhe os braços harmoniosos, único a ter o direito de os tocar...
Principiava a sorrir... ria já... e a sua palavra fácil, exuberante, fulgurou na conversação fútil que Isabel encetara no centro do grupo ruidoso.
Um dos rapazes que emitia opiniões, o Pires de Azevedo - Engenheiro pretensioso e semi-amalucado - teve de súbito um protesto de longo alcance.
- Ó Francisco... a gente não molha o bico?
Os outros corroboraram o alvitre com animadas demonstrações de reprovação.
- Olha o miserável que não oferece bebidas à malta!
- Somítico! Avarento! Francisco detinha os "insultos".
- Não falem antes de tempo que já vão ser servidos! Efectivamente, a porta da sala abriu-se no mesmo instante
e surgiu no limiar um carrinho superlotado de bebidas e acepipes, Empurrando o carrinho, sorrindo para todos, uma figura gentil moldada a castanho e branco.
Olhando-a, Francisco registou mais forte a impressão que o fustigara mal a vira da primeira vez. "Conheço esta cara! Conheci-a antes de ela vir para cá!"-
E também alguns dos presentes a reconheceram, mais prontos na memória porque melhor a haviam fixado.
Cecília, um tanto constrangida pelo silêncio que pairava, avançou lançando um olhar suplicante a Francisco, como a pedir-lhe que a livrasse de inevitáveis embaraços.
Ele entendeu-a perfeitamente mas, contrariado por vê-la tão insignificante no meio daquelas raparigas luxuosas, apresentou-a com mau modo.
- A Cecília Durão... O Pires de Azevedo cortou-lhe a palavra, zombeteiro.
- É escusado teres trabalho, que já somos velhos amigos. - e estendendo a mão à rapariga: - Lembra-se de mim? Fui eu que a cumprimentei, na estação, no dia da sua chegada a Lisboa, julgo...
Para Francisco aquela frase foi um clarão elucidativo. Ali estava! Ali estava o motivo porque ela não lhe era estranha! Fora Cecília a provinciana canhestra que havia servido de bobo àqueles folgazões no dia em que Isabel viera de Ah, sim,
fora ela a caricata.
E sufocava, de raivoso.
Mas enquanto ele se debatia possesso do seu demónio autoritário, Cecília recuperava o sangue-frio.
- Efectivamente, foi você... - retrucou, subtil. - E foi o meu primo Francisco quem, não me conhecendo, fez com que alguns atrevidos me deixassem em paz.
Falara placidamente e as suas palavras caíram como um jacto de água gelada sobre o imbeciloide. Ela, sempre calma, olhou para Francisco, esperando talvez um sorriso que a compensasse da declaração, que a compensasse sobretudo da intensa gratidão que lhe ficara votando. A gratidão é sentimento raro que merece atenções...
Afinal, desde o primeiro instante que o reconhecera, a ele, mas não quisera falar-lhe no sucedido. Desorientada pelas atitudes de Francisco, não percebendo qual o motivo por que um rapaz que havia sido generoso para uma desconhecida se mostrava assim tão hostil para a primita frágil e isolada, calara-se, num instintivo receio de qualquer nova impertinência dele. E agora via-o morder os lábios, alheio à presença dela, como se estivesse mil léguas distante de quanto ali se passava. Realmente, no ânimo esquentado de Francisco só havia indignação; desejaria castigar Cecília pelo vexame que ela própria sofria, lamentando-a e detestando-a pelo ridículo em que, atolando-se, a ele o salpicava. Que desastre! Ali, na casa dele, a patareca da estação, o ser irrisório que só podia envergonhá-lo! Ah! Porque o não avisara ela, porquê?
E num assomo de cólera indomável dardejou-lhe numa ordem um olhar mortífero.
- Retire-se! Retire-se imediatamente! Não me apareça mais!
Cecília continuava a fitá-lo, agora porém angustiada, pedindo-lhe muda que não a expusesse aos risos daqueles idiotas... Muda e alagada naquela sua terrível incompreensão. Então ele da outra vez defendera-a e agora expulsava-a? Porque razão?
Os outros cochichavam e riam, levando ao máximo a ira de Francisco, que acabou de perder a cabeça.
-Retire-se, não ouve? Abandone esta sala onde não é o seu lugar. Hipócrita!
Aturdida, prestes a romper em choro, ela virou costas e saiu a correr. Ia perguntar à sua consciência qual o crime que lhe imputavam...
E magoava-a, magoava-a como ferro em brasa aquela última palavra que lhe ouvira e lhe ficara na alma gravada pelo fogo da injustiça e não poderia esquecer jamais "hipócrita!"
Hipócrita porquê, santo Deus? Só se fosse por nem a si própria ousar dizer quanto lhe queria, a ele...
Soltando uma risadhínha que fazia mal ao sistema nervoso, Isabel voltou-se para ele.
- Bravo, Francisco! Não me tinhas participado a existência desta tua parenta. Porquê? Receavas que a sua beleza pudesse confundir-me ?
Irritado, e agora contra a própria atitude que julgava cobarde, Francisco não pôde refrear o ímpeto da má disposição. - Não digas mais tolices.
-Mais? Creio que não disse nenhuma... De qualquer forma agradeço a tua gentileza... - e tornava-se agreste na ironia.
- Impacientas-me com as tuas insinuações.
- Verifico-o. - e erguendo para ele os olhos que, sem riso, eram duros e metálicos: - Notando por igual que não esclareces a minha estranheza...
Francisco afastou-se, foi encostar-se a uma das estantes, acendeu um cigarro e dominando-se com esforço, conseguiu esboçar um sorriso.
- Essa tua estranheza lisonjeia-me.
- Porquê?...
- Demonstra-me o teu interesse pelo que me diz respeito.
- E depois?
- Não te falei da Cecília porque ela está em minha casa há pouco tempo ainda.
Mas Isabel não se deixava desarmar facilmente e os repetidos gins emborcados haviam-lhe dado uma certa excitação. Mostrou-se impertinente como nunca.
- Não há tão pouco como queres fazer-me crer!... Sabemos agora que foi ela a farrapeirona que chegou no mesmo comboio em que eu vim de França e por quem te aprouve quebrar lanças quixotescas!...
Sacudindo a cinza, a procurar encher-se da calma e da paciência que lhe faltavam cada vez mais, Francisco replicou:
- Estás dando ao mais insignificante dos incidentes um aparato único! Primeiro - e, instintivamente, voltava a defender a prima-, a Cecília não tem culpa de que vocês sejam amalucados. Ela vinha apenas modesta e decente, não farrapeirona. Depois... não fiz mais do que chamá-los a todos para sairmos da estação... É tudo, julgo!
O Pires de Azevedo meteu nova colherada.
- Ó pá, se soubéssemos que ela era da tua família não atacávamos...
Quase severamente - e inesperadamente! - Francisco volveu:
- Há que respeitar as raparigas pelo que são e não pelas famílias que representam. Quem tem defensores naturais não precisa das vigilâncias alheias. Quem anda só na vida carece da protecção geral.
Nunca Francisco lhes falara sério e grave como nesse momento e ele próprio se admirava da profundidade da sua voz ao dizer essas palavras que não premeditara e lhe saíram dos lábios como irrefutáveis máximas.
O espanto que viu reflectido nos olhos dos outros fê-lo automaticamente recuperar a antiga personalidade, convencido de que o homem sisudo que por vezes nele despontava em arroubos de independência era menos simpático do que o mundano risonho que eles conheciam...
Assim, encolhendo os ombros, logo atalhou o efeito do que dissera com palavras totalmente diferentes.
- Chatos! Vocês estragam tudo! Esqueçamos o incidente e bebamos para desanuviar as ideias! Isabel, um whisky à tua beleza que eu venero como vassalo da incomparável Vénus!...
Ruidosamente, os amigos manifestaram-se, dando-lhe abraços e palmadinhas nas costas.
- Homem, caramba! Agora reconhecemos-te!... Viva a estúrdia, pá!!!...
Mas o sorriso, o bonito sorriso (estudado...) de Isabel, extinguira-se. E aquele rosto de boneca era pouco atraente quando não o animava a graça dos efeitos calculados.
Apercebendo-se da reserva dela, Francisco procurou obter a indulgência da sua diva.
- Bel, perdoa-me!... Não queria que te zangasses! E, para que me desculpes, vou oferecer-te uma coisa.
Lesto, dirigiu-se à grande secretária de mogno, abriu uma gaveta e tirou dela uma caixinha branca.
Acercaram-se todos-em curioso tumulto. Isabel, como rainha ofendida, mal se dignava prestar um pouquinho de interesse.
- De que se trata? - perguntou, franzindo a testa.
- De algo que te prenderá a mim para sempre.
-Oh! - exclamaram os outros em coro. - É um talismã!
um talismã!
- Não! - elucidou Francisco, sorrindo. - Trata-se apenas disto - o anel que o meu Pai ofereceu a minha Mãe quando a pediu em Casamento. Um sinal de amor e fidelidade que vou depor nas mãos da minha noiva e...
Os risos, os bravos, envoltos no fumo dos cigarros e nos vapores do álcool, retiniam estrepitosos quando, subitamente, da porta veio um grito desesperado que os galvanizou e prendeu num terror inexplicável mas real.
- Francisco! Francisco! Ai, Francisco!
- Que há? Que se passa? Lívida, desgrenhada, convulsa, cheia de lágrimas, alheia a
tudo e a todos, Cecília corria para o primo, numa aflição.
- Francisco, venha!... A Mãe... a Mãe... a Mãe...
Prendia-se-lhe a voz numa explosão de soluços e o Médico
adivinhando a tragédia, precipitou-se, deixando a sala numa convulsa expressão de pavor.
Então Cecília encarou os presentes e, numa voz trémula mas digna, proferiu:
- Lamento dizer-lhes que são demais aqui. A Mãe de Francisco acaba de falecer.
Duas mulheres choravam, inclinadas para o corpo de que um frio único principiava a apoderar-se, dando rigidez às feições que a morte esculpira em estranha serenidade.
De joelhos, amarfanhado, beijando arquejante a mão que apertava, Francisco gemia infantilmente.
- Mãezinha... Mãezinha... Mamã!!!...
A Mãe não o ouvia. Não o ouviria nunca mais, a Mãe que o adorara, a Mãe para quem ele fora tudo na vida- e isso parecia-lhe uma coisa inaceitável por tão monstruosa!
A Mãe!?... Finara-se, perdera a vida, ficara igual a essas dezenas de corpos inertes que lhe haviam passado pelas mãos sem o impressionarem, sem o comoverem; igual a essa matéria cujo significado tanta vez lhe havia provocado impiedosos comentários,de escárneo, matéria pronta a desfazer-se, a apodrecer, a inspirar nojo e horror.
A Mãe!!
Oh, não, não era possível! Não podia ser! A Mãe dele não era igual aos outros, nada tinha de comum com o resto da humanidade. Era a Sua Mãe!...
E o grande insensível e o homem moderno não foram mais do que um pobre rapazito chorando o grande brinquedo que lhe fora tirado...
A Sua Mãe!
Num lamento, desprendendo os lábios dos dedos gélidos do cadáver, fitou os olhos da prima como a pedir-lhe socorro, alento, luz que lhe dissipasse as trevas.
- Assim brutalmente?... Sem me dar um último beijo?... Ela inclinou a cabeça.
- Pediu-me que lho entregasse. Foi a última coisa que disse.
Francisco gemeu.
- A minha Mãe... a minha santa Mãe!
Vagarosamente, Cecília deu a volta por detrás das serviçais, parou do outro lado da cama, junto dele e, simples como simples se conservava em todas as suas atitudes, inclinou-se e beijou-o na testa. Depois murmurou:
- Disse bem... santa!... Foi uma santa que ambos perdemos. Choremos, Francisco, a falta que nos faz. Mas não a choremos, a ela. A sua alma já subiu ao céu!...
Surpreendido com a paz que essas palavras impregnadas de uma religiosidade sincera lhe derramavam na alma convulsa, Francisco parecia agora somente espantado com a realidade. Dizendo:
-Já não tenho Mãe, Cecília! E ela:
-Eu também não, meu primo.
só nesse instante no espírito de Francisco penetrou a compreensão nítida do que devia ser, do que era, a existência daquela rapariga sem ninguém.
Ele sofria agora como ela devia sofrer há muito, corajosa, resignada... Eram dois órfãos pranteando as afeições extintas!
E de rosto mergulhado nas roupas do leito da Mãe, Francisco continuava a soluçar, repetindo até a exaustão a palavra humilde:
- Perdão... perdão... perdão!... -perdão a quem e porquê?
Pelas faces de Cecília corriam lágrimas em fio.
Pela segunda vez, em tão pouco tempo, o doloroso espectáculo da morte vinha feri-la, sacudindo-a brutalmente, tirando-a da suave tranquilidade das horas afectivas para o tumulto das indecisões. Era como se o destino a perseguisse, como se o destino não quisesse vê-la feliz, empurrando-a para a inclemência do isolamento.
E cada vez no seu peito a angústia mais intensamente badalava.
Quisera tanto àquela meiga senhora - quase tão branca e linda como a da sua idealização!-que lhe abrira os braços oferecendo-lhe lar e afecto! Junto dela vivera feliz durante os últimos meses, pudera descansar e alimentar esperanças de um futuro... E eis que a morte viera roubar-lhe a última amizade, o derradeiro amor, deixando-a novamente só!
E tinha saudades, saudades imensas, da figura suave que em breve seria pertença da terra negra; tinha saudades da voz carinhosa para todo o sempre calada; tinha saudades do olhar que não voltaria a envolvê-la inefável.
Conseguiu porém dominar-se e, vergando-se à vontade do Senhor, dirigiu-Lhe uma prece sentida, feita de resignação e ansiedade, suplicando à Alma que partira que não a abandonasse. Crente, podia confiar na bondade divina, suplicar-Lhe amparo, confortar-se no supremo refúgio da misericórdia inextinguível. E da sua atitude irradiava a maravilhosa expressão de quem não sabe desesperar, por muito que padeça.
Foi quando Francisco ergueu a cabeça. Viu-a de olhos no alto, os lábios num movimento de oração, e quedou espantado, sustido o grito de revolta em que talvez estivesse prestes a explodir. E então, inesperadamente, sem mais nada, tocando-lhe muito levemente nas mãos unidas, implorou:
- Cecília... por favor... ensine-me a rezar!
E durante muito tempo ela balbuciou palavras de fé que o jovem Médico ia repetindo.
No sumptuoso escritório, tão escuro e silencioso quanto poucos dias antes fora claro e jovial, inclinado para a grande secretária, Francisco folheava papéis e escrevia.
A negrura do fato realçava-lhe a brancura da camisa e das faces lívidas e encovadas onde os olhos angustiados punham a nota de uma febre intensa.
Durante longos minutos, trabalhou. Depois repeliu nervosamente a papelada e, pousando os cotovelos em cima dela, apertou a testa nas mãos, com um surdo gemido.
Assim abatido, vontade submetida pelo tormentoso vendaval da dor humana, era um espectro desse Francisco para quem desgraça havia sido uma palavra vazia de significado.
Sofria intensamente, a amargura acrescida por não ter podido gritar à Mãe no último sopro da vida como era grande o amor que lhe votava, amor cuja intensidade ele jamais soubera medir, jamais podendo prever que lhe perderia o objectivo. Nunca se preocupara, afinal, com a ideia de um dia ficar sem ELA... E de súbito, a morte, inclemente, arrebatara-lha!
Vinha-lhe uma saudade imensa, uma saudade terrível, pela Mãe, a cuja presença de inexcedível encanto lhe parecia agora não ter sabido medir o valor. E na certeza de que não mais a veria, de que não mais a faria sorrir feliz para a compensar de toda a ventura que ela lhe dera, a angústia impunha-se-lhe crudelíssima.
A força viril abandonava-o e ele chorava, deixando que o pranto fosse manchar os papéis abandonados.
Brandamente impulsionada por mão discreta, a porta do escritório abriu-se dando passagem a uma delicada criatura na qual só rosto, mãos e cabelos não eram negros.
Francisco não deu por ela e Cecília, imóvel, comovidíssima, permanecia silenciosa, respeitando-lhe o desgosto.
Impressionava-a o abatimento de Francisco. Nunca tinha visto chorar um homem; ignorava que um ente forte, capaz de olhar firme e impassível os maiores dramas e os mais tenebrosos perigos, podia esquecer-se da soberba que lhe manda secar no peito a emoção e entregava-se à mágoa como ela, a pobre supliciada pela repetida visita da morte...
E Francisco chorava... chorava... chorava... e ela quisera chorar também!... Mas, reprimindo as lágrimas, invadida por uma ternura infinita, abeirou-se do primo, para o confortar, para lhe dizer que não estava só e pedir-lhe que tivesse coragem...
Baixinho, chamou:
- Francisco... Ele levantou a cabeça, fitando-a com o olhar alagado e um queixume dolorido.
- Ai, Cecília! Ela suspirou.
- Há-de resignar-se, Francisco. A vida é assim!... Não se entregue ao desespero. Pense antes que a sua Mãe gostaria de o ver aproveitar a vida... Honre-lhe a memória, reaja... Volte-se para o trabalho!...
Falara hesitante, baixando para as pupilas ansiosas do Médico a expressão inquieta e perscrutadora, como se nelas procurasse orientar-se para não dizer nem de mais nem de menos. E ele - longe, bem longe a ironia antiga com que a flagelava - respondeu-lhe com brandura:
- É isso, Cecília. Tem de apontar-me o caminho que devo seguir... e seguirei. Não fiz a vontade à minha Mãe enquanto a tive a meu lado. Fui tremendamente egoísta e... e nem me desculpo, porque mereço o remorso! Mas... mas a recordação dessa que perdemos - sim, que a Cecília também a perdeu! -, há-de repor-me agora no caminho do dever. Resgatarei o meu futuro. Estudarei. Estudarei, recuperarei, chegarei.
- E a alma da sua Mãe bendizê-lo-á! Ficaram ambos calados.
Depois a rapariga encaminhou-se para a janela e, através das cortinas, olhou a massa imponente da Igreja vizinha, quase fronteira à moradia dos Salves. No íntimo devia estar dirigindo ao Criador do Céu e da Terra uma súplica ardente essa em que pedia coragem para falar no que lhe alagava o coração e ia transbordar agora.
Como que atendida - sentia-se cheia de esperança! - voltou-se para o primo, que permanecia entregue aos seus pensamentos, e aventurou-se.
- Francisco, queria que me ouvisse.
- Diga.
- Desejava falar-lhe de mim. - e corou, lendo surpresa no semblante de Francisco.
- De si ? Pois fale, Cecília. Fale à vontade. Não se acanhe! Estou ao seu dispor para tudo.
Deus do Céu, como ele se modificara!... Já sabia ser delicado para com ela. Delicado e afável como o entrevira naquele
dia, na estação, quando E contudo de modo algum
lembrava o Francisco atencioso, mas fútil, que ela vira sorrir para a tal Isabel!...
Simples, bondoso, dir-se-ia pronto a oferecer-lhe o carinho de um bom irmão. Ou o de um afectuoso primo que estava principiando a revelar-se. E que mais podia ela ambicionar...?
Cecília pressentia que a estouvada personalidade do mancebo se finara, estrangulada pelo sofrimento, e que dela surgia enfim o homem com defeitos e virtudes mas cônscio das suas responsabilidades.
E aventurou-se, resolvida a ser tão breve como sincera.
- Francisco... eu queria pedir-lhe autorização para me empregar.
O rosto varonil anuviou-se mais. Mas foi sem aspereza que se manifestou surpreendido, como que duvidoso do que ouvira.
- Empregar-se ?!...
- SÍm. Numa coisa decente, adaptada às minhas habilitações. . Maquinal, o Médico pôs-se a traçar risquinhos nos papéis, com o ar de quem estava preocupado com a execução da tarefa. Depois, largando a esferográfica e acendendo um cigarro, perguntou :
- Porque tal pretende, Cecília ?
- Porque não gosto de ser pesada a ninguém, primo Francisco.
Ele tardou na resposta, lenta, de sílabas espaçadas.
- Cecília, vou falar-lhe com a máxima franqueza. A sua vinda para esta casa realizou-se contra a minha vontade. Direi mesmo que me ia opondo aos desejos da minha pobre Mãe. Mas você veio... agora já não tem remédio! Embora de facto eu veja na sua presença um grande encargo para mim.
De ruborizada tornou-se ela escarlate.
- É isso que me incomoda e me leva a procurar uma ocupação, pois na verdade eu...
Ele atalhou:
- Não me diga mais nada, por favor. Sei que me revelou as suas verdadeiras intenções - pretende trabalhar e ser independente. E isso ainda mais me apoquenta! Embora seu primo em grau afastado, pois minha Mãe era prima terceira da sua, sou a única pessoa de família que lhe resta, creio, portanto responsável por quanto lhe diz respeito... É Esse o encargo !
- Oh! - protestou Cecília. - Isso não!. Eu já fiz vinte e um anos e...
- E os meus deveres morais? Admita que estes não toleram a ideia de ver a Cecília recorrer a estranhos... uma vez que eu estou aqui!
-Mas ser empregada não é vergonha nenhuma!...
- Ser empregada é viver na dependência de alguém... e pode custar muito, Cecília!
- Desculpe... mas considero essa maneira de pensar bastante antiquada...
- E eu peço-lhe que não insista na sua pretensão. - e com entono firme: - De resto, a sua presença tornou-se necessária nesta casa. Uma vez que veio, deve ficar.
O coração da rapariga bateu apressado e de novo o silêncio pairou. Só o tique-taque monótono do fatal contador das vidas polvilhava de som a quietude. E esse mesmo tique-taque, enervante, parecia tomar grandes proporções, avolumar-se desmesuradamente, como sino a badalar em frenético dobre de finados.
Francisco sentia-o ecoar dentro da cabeça, do coração, sempre igual, sempre certo, pêndulo a bater minutos perdidos... Tique-taque... tique-taque... tique-taque...
Depois a voz do Médico, ligeiramente velada, ergueu-se no ar e a rapariga estremeceu, temendo (ou ansiando?) que
Ah, mas não!... Ele não disse as palavras que ela talvez desatinadamente esperasse. No entanto, foi quase terno.
- Não quero, porém, Cecília - proferiu -, constrangê-la a aceitar o que de qualquer forma pode afigurar-se-lhe uma esmola. Pelo contrário. É você quem vai fazer-me um favor ao qual me sentirei gratíssimo.
- Um favor? Eu?
- Sim, a Cecília. Ora escute! Tenciono montar o meu consultório dentro de muito pouco tempo. vou consagrar-me seriamente ao meu trabalho e preciso que você me ajude.
- Eu ? - repetiu, perplexa.
- Sim. A Cecília, de manhã, olhará por esta casa, como se ela lhe pertencesse, e de tarde vai para o meu consultório. Pagar-lhe-ei o ordenado que se estipular. Assim a Cecília se me tornará útil ...e eu lhe servirei de esteio. - e, calado, ficou-se a olhá-la e olhando-a decifrou-lhe nas pupilas uma triste censura. Decifrou... mas não a aceitou.
- Aceita ?
- Não posso recusar... pois não? - e estendia-lhe a mão resignada. - O primo Francisco é muito generoso...
Ele, inadvertidamente, envolveu num olhar apreciador o corpo de graciosas curvas disfarçadas pelas fundas pregas do vestido preto. E chamando a si a serenidade que ameaçava abandoná-lo, livrou-se - quis livrar-se! - da inesperada atracção que o avassalava.
- Não seja tonta... - exclamou. E na luta que se travava nele: - É muito bonita, sabe, Cecília ? Um dia há-de encontrar um marido que vai adorá-la... - e no mesmo instante mordeu os lábios, como se reprovasse o vaticínio. Mas já Cecília, numa expressão retraída, volvia:
- Se me casar... convidá-lo-ei para meu padrinho - e abandonou o escritório sem voltar a fitá-lo.
- Por favor, minha menina. O Sr. Dr. está ?
A interpelada, que se entretinha a fazer renda, levantou-se e respondeu, gentilmente:
- Sim, minha senhora, está. Mas decerto não a poderá atender sem alguma demora...
- Ocupado ?
- com um garotinho que não vai nada bem...
- Pior para a criança? Para mim, não tem mal. Espero! e sentou-se resoluta numa das cadeiras que se perfilavam na saleta onde a empregada, de impecável bata branca, atendia os clientes.
- Vossa Excelência - atalhou a rapariga notando a invulgar distinção da recém-chegada - .ficaria melhor num gabinete do Sr. Dr...
- Não, não é preciso. Estou bem aqui, agradecida.
E já instalada analisava, sorridente, o rosto que emergia delicioso de frescura sob a vistosa cabeleireira sobre a qual espelhava a touquita engomada.
Para entabolar conversa, numa espontânea simpatia, das que nascem vivas e dominadoras no coração inspiradas por um olhar franco ou uma palavra afável, a recém-chegada (mulher janota por certo a raiar os sessenta anos) mostrou-se interessada pelos trabalhos do jovem Médico.
- Muita gente para o Dr. Salves?
- Bastante, minha senhora. Há três meses e meio que o Sr. Dr. abriu o consultório e os doentes não faltam. - explicou, atenciosa. - Vossa Excelência talvez saiba que o Dr. Francisco de Salves tem numerosos amigos e muito bons conhecimentos... Consagrou-se ao trabalho, concorreu aos Hospitais... e a sorte parece bafejá-lo, graças a Deus.
- Há quanto tempo lhe morreu a Mãe ?
- Há dez meses. - e velava-se-lhe a voz. - Vossa Excelência conheceu a Sra. Dona Maria Margarida de Salves?
- Oh, sim! Éramos amigas de infância. Casámos com diferença de semanas. E quando ela teve o Francisco nascia-me a mim o meu único filho...
- Que Vossa Excelência conserva? - indagou, sincera no interesse novo.
- Felizmente! É oficial da marinha e anda embarcado, presentemente. Os dois rapazes estimam-se desde o berço. E eu considero o Francisco também um pouco meu... - e lendo muda interrogação no rosto expressivo da empregada, apressou-se em fornecer-lhe explicações: - Está intrigada... não percebe o motivo porque sendo assim eu ainda não tinha vindo visitá-lo?... A razão é simples! Ando pelo estrangeiro há mais de um ano. Sou uma vagabunda...
Cecília sentia-se conquistada pela simplicidade daquela senhora de cabelos claros tão singularmente bela e que lhe falava como se de há muito a conhecesse.
- Uma vagabunda! ? - repetiu, achando graça ao dito. Uma vagabunda, Vossa Excelência?
- Sim, não paro em casa! Resultados de uma enorme solidão...- e mudando de assunto: - Diga-me uma coisa - é muito nova, pois é?
-Menos do que aparento. Fiz vinte e dois anos.
- Oh, vinte e dois anos! Que linda idade! - e, numa saudade branda: - Foi com vinte e dois anos que me casei.
Iam lançadas num ameno diálogo sem quaisquer dificuldades de entendimento quando ao fundo se abriu uma porta dando passagem a uma jovem que trazia nos braços uma criancinha cuja cabecita entrapada lhe rolava nos ombros magros. Afastando-se, com um boa-tarde repassado de amargura, ela deixou que se divisasse enquadrada nas ombreiras que lhe haviam dado saída a figura altiva de um homem impecavelmente vestido de branco cujo olhar condoído a seguia numa evidente consternação. Francisco de Salves sabia que a morte estivera a negar-lhe um êxito... Já porém aquela que o aguardava se erguera impetuosamente, avançando para ele de braços abertos.
- Chico, tu estás magnífico! Se possível, mais bonito do que nunca! Oh, não ter eu agora vinte anos!
Francisco acolheu-a com alegria transbordante.
- Oh, Matildinha, que bom tornar a ver-te! - e apertou-a ao peito e beijou as faces que se lhe ofereciam e fê-la passar à sua frente para o interior do consultório. Depois, antes de fechar a porta, voltou-se para a empregada, numa ordem rápida.
- Como não está mais ninguém, Cecília, pode retirar-se, se o desejar.
Ela não respondeu nem deu um passo. Recomeçou a manejar a agulha. Lentamente. Porque não via o que estava a fazer. Obsecava-a uma qualquer visão íntima que a obrigaria, pouco depois, a desmanchar quanto estivera tecendo...
No gabinete de Francisco de Salves o diálogo decorria animado. Vivaz, cultíssima, de palavra fluente e graciosa, - expressões de alma eternamente moça pelo sentir perfeito - Matilde de Montesilva era um dos espíritos eleitos que na idade madura conseguem prender e conquistar as simpatias e as atenções da gente nova. Espirituosa, rica, independente, tinha caprichos adoráveis e impulsos plenos do fogo dos vinte anos.
Sabia rir e contar, sabia ser afectuosa e discreta, sabia ouvir e animar, e a sua convivência encantadora era uma relíquia que todos desejariam conservar. Gracejava com os rapazes, aconselhava as raparigas, queria a todos e gostava de todas.
Francisco admirava-a e, respeitando-a profundamente, consagrava-lhe uma afeição devotada. com a sua juvenilidade buliçosa e irrequieta, Dona Matilde lembrava-lhe uma figura de outras eras conservada em estatueta adorável e animada por um sopro divino.
Ouvindo-a agora como ouvia, quente de entusiasmo, ria, divertido.
- Oh, Matildinha!... Mas vejo-te apaixonada!
- É isso, Chico... dizes bem, isso mesmo. Estou apaixonada e ciumenta! Tu és um tipo cheio de sorte! Onde foste descobrir aquela pérola, aquela jóia, aquela adorável rapariga que deve ser um verdadeiro bálsamo de ternura para os teus doentes?
- Ui, Matildinha, o que aí vai!... Conversaste com ela dez minutos, se tanto, e assim te entregaste?
- Como verificas! Sem temores nem desconfianças! Raramente se encontra uma rapariga tão cativante. É um verdadeiro amor, a tua empregada!
- Lisonjeias-me extraordinariamente, porque a Cecília não é uma simples empregada, querida amiga! É minha prima!
- Oh! Nesse caso... a graça dela é um reflexo da tua! Riram os dois. E, de súbito, passando de extremo a extremo
- por extremista em todos os seus sentimentos - Matilde de Montesilva mostrou-se desolada.
- Oh, que pena!... Mas que pena!
- Pena? É pena a Cecília ser minha prima?
- Sim... Lamento imenso!
- Mas porquê? Receias...-e sorriu malicioso: - receias que ela padeça dos meus defeitos? Temes que seja excessivamente parecida comigo?
- Não, nada disso!-confessou. - Apenas a minha imaginação incorrigível estava já a arquitectar um sonho maravilhoso !
- Um sonho?! Não entendo, Matildinha!
- E eu explico-te!... - e, persuasiva, ladeando com arte a inesperada dificuldade que se lhe antepunha aos desejos: - Tu bem sabes que vivo na ardente saudade de uma filha, essa filha que sempre ambicionei e o Céu (ou o meu ilustre marido!) nunca me concedeu... O Rui é um estouvado, só pensa no mar, só adora o mar, troca tudo e todos pelo mar... e eu gasto-me a idealizar a figurinha adorável da filha que não tive... da filha que seria hoje a minha companheira...
- Se fosse!... - comentou Francisco, céptico. Dona Matilde sobressaltou-se.
- Era! - afirmou. - Tenho a certeza!
- Ora essa?! Podia ter-se casado!...
- Ficaria sempre junto de mim e dar-me-ia uma dúzia e meia de netos.
- Isso também o Rui te pode conceder...
- O Rui? Só se for um em cada país e sem morada certa...
- Mas afinal... - indagou o Médico, entre divertido e intrigado-, que sonhaste, querida Matilde, quando viste a Cecília?
- Cecília? - Dona Matilde atentava pela primeira vez no nome próprio da rapariga que a encantara. - Ah, é Cecília que se chama a tua primita? Os meus parabéns! Nome de santa e musical ainda por cima!... Cada vez me atrai mais!...
- e, com infinita graciosidade: - Se ela apenas fosse tua empregada, era-me fácil agir... Roubava-ta!... Como é tua prima, devo agir de outra forma. Tenho de ser persuasiva... - e numa fuga contemplativa, sisuda: - Tu já pensaste em como pode tornar-se reparado o facto de ela viver sozinha contigo?
Francisco encarou-a.
- Porquê? Pertence à minha família!
- E os outros bem se ralam com esse pormenor! Hão-de por força manchar a reputação da pobre rapariga... E depois é mau, para ela! Sempre encafuada em casa, sem uma distracção, sem conhecer o mundo...
Contrafeito, mau grado seu, Francisco levantou-se e deu uns passos vagos. Parou diante da amiga.
- Valha-me Deus, Matilde! - disse então, impaciente.- A Cecília não está prisioneira, sai quando quer e...
- E achas bem uma menina de vinte anos por aí à toa, sem um conselho, sem um apoio?...
- A minha prima é bastante sensata.
- Todas as mulheres são sensatas enquanto nelas o amor não manda.
- O amor?!...
- Não acreditas no amor ?
- Tenho de acreditar. Trata-se de uma doença como outra qualquer!
- Seja doença! Mas doença que ataca a razão, que perturba os sentidos, que faz perder o controle dos mais ínfimos deveres...
Decidido a levantar a ponta do véu que estava encobrindo as intenções da interlocutora, Francisco indagou, positivo:
- Mas, afinal e concretamente, Matilde, que pretendes ?
E assim abordada, Matilde de Montesilva resolveu-se à franqueza máxima.
- Olha, meu Francisco, quando vi a Cecília, apeteceu-me levá-la para junto de mim e fazer dela a companheira ambicionada, percebes? Agora, que a sei da tua família, quero mais. Por muito que tu faças ela não pode ser feliz, aqui. Amanhã casar-te-ás e não vejo probabilidades da tua mulher consentir na companhia dessa linda rapariga. Ora deduzo que ela não tenha mais ninguém de família, pois se tivesse com certeza não te estaria entregue...
- Oh! - protestou Francisco. - Porquê ? Não serei competente?
- Francisco... só na falta de parentes muito chegados se confia uma rapariga aos cuidados de um primo jovem e sedutor...
- Boa lógica!
- O cérebro tem-me servido para raciocinar, não duvides. E aqui tens a verdade - simpatizei com a Cecília e agrada-me tomar conta dela! - e com irresistível meiguice, implorou: - Chico, deixa-me levar a Cecília para minha casa!... Considerá-la-ei como minha filha, nada lhe faltará e, por minha morte, ficar-lhe-ão meios de fortuna. Sabes perfeitamente que o Rui não é ambicioso. E, mesmo dividida, a minha fortuna chega para dois... Garantirei o futuro de Cecília que assim se libertará da contingência de um qualquer emprego mal remunerado... e de uma velhice precoce e abandonada.
Francisco voltara a sentar-se. E agora, muito sério, fumando devagarinho, meditava.
Decorridos instantes proferiu, com invencível secura:
- Agradeço as tuas intenções, mas por mim, não.
Dona Matilde interrompeu-o, impetuosa:
- Não agradeças, aceita! É a felicidade dela que ofereço! - na verdade, nem por um só momento a generosa senhora duvidava de que a sua proposta fosse, na verdade, a melhor garantia de ventura para a rapariga.
Mas Francisco, de testa enrugada, volveu:
- Não posso responder nem sim nem não, Matilde. Isso ia explicar-te. É com Cecília que deves falar porque só a ela compete resolver um tal assunto.
Dona Matilde pôs-se de pé, animadíssima. -Eh! Por ela estou tranquila! Tenho a certeza de que hei-de conquistá-la! E ele, contrafeito:
- Não duvido do teu poderio, Matildinha. O que vais oferecer-lhe assume proporções de prodígio.
Matilde permanecera silenciosa, com um indulgente sorriso nos lábios, depois de ter visto sair o rapaz, lestamente desembaraçado da bata branca, esbelto e donairoso como um deus moderno. E agora, de olhos postos na fronte lisa da rapariga, deu por si a comentar, inesperadamente:
- Os homens são uns grandes egoístas, minha filha... Não acha?
Como a despertar de um devaneio, Cecília fitou-a.
- Não sei... Por ora, não sei!...
- E oxalá nunca o saiba! Mas eu tenho a experiência! O meu marido (e era uma jóia, creia) nunca sacrificou um minuto de prazer seu por um dia de satisfação minha. E o meu filho, sendo muito meu amigo, não quer saber se vivo triste ou contente. Para ele o mar é a grande paixão, vale mais do que a Mãe!... E eu, pobre de mim, como tenho bom feitio e graças a Deus algum dinheiro, preencho o meu vazio viajando. Conheço o mundo quase todo.
Suspensa dos lábios que lhe falavam tão singela e confiadamente, Cecília escutava com ternura e respeito.
- Deve ser belo ir assim, pela terra além... - declarou, baixinho.
-Sim... é belo. Mas, às vezes, o isolamento pesa!... Há uma grande falta de amizade à minha volta e, quando deixo de ser a dobadoira em que me tornei, fico triste, tão triste que volto logo a procurar os grandes meios onde há muita gente entre a qual me perco, entre a qual me esforço por viver dos olhos e não sentir a alma, oculta de mim mesma, confundida em milhares de existências e sendo individualmente ninguém!... Se me vejo sozinha, sofro!... Na minha idade, a falta de carinho dói... E vou cada vez para mais velha!... Começa a pungir-me esta inquietação - quando eu já não puder sair de casa, que será de mim?
Ficou por instantes calada, olhos nos olhos comovidos de Cecília, e depois continuou, suspirando:
- Sou naturalmente alegre... e talvez por isso a tristeza me assusta! Hoje convivo com muita gente, superficialmente. ninguém me hostiliza nem evita. Mas amanhã, quando eu já não souber rir... talvez de tantos conhecimentos não reste um único afecto sincero!... Sabe, Cecília? Eu queria dedicar-me a quem fosse puro e generoso, a quem tivesse na alma a mesma sede de amor que me tortura... -e adoçou-se-lhe ainda mais a voz ao declarar, fervorosa: - E não sei porquê, Cilita, gostei de si! Ao vê-la, como que reconheci o meu ideal! É linda, é gentil, é com certeza meiga... E eu leio nos seus olhos, nos seus olhos maravilhosos, cheios de cor e expressão, uma saudade intensa, a saudade de um grande amor, talvez o amor de Mãe... Deve ter perdido a sua muito pequenina, não? - e suspendeu-se.
De rosto entre as mãos, num movimento inesperado, Cecília chorava.
Matilde de Montesilva chegou-se a ela, destapou-lhe as faces e enxugou no lenço bordado as lágrimas dolorosas.
- Filha, não chore!... Vamos lá... Então? Não quis magoá-la!...
- E não magoou!...-disse, num soluço.
- Então porque chora ? - puxou-lhe a cabecita para o seio, tirou-lhe a touca branca, afagou os sedosos cabelos e falou com ternura incomparável:-Mais lágrimas, não!... Tiram o brilho aos olhos, o que é uma maldade... Ora vá... confie em mim! Diga-me o que a sensibilizou assim!...
E a rapariga, enxugando o pranto e estreitando-se ansiosa de encontro àquele peito acolhedor:
- Choro porque me emocionou muito... muito!... Há quanto tempo ninguém me falava dessa forma! Desde que a minha prima Maria morreu nunca mais ouvi uma palavra carinhosa. Foi ela a última afeição que tive. E é verdade, sim, perdi a minha Mãe em pequenina. Mal me lembro dela...
- E quem tomou conta de si?
- A minha madrinha. A minha madrinha que era muito boa mas não apreciava mimos...
- Não era sua Mãe!...
- Pois não...
- E eu também não o sou, minha filha...
- É verdade!... - e depois, repentinamente, conf iadamente:
- Não é minha Mãe... mas sabe o que é ser Mãe!
Os braços de Dona Matilde cingiram-na mais fortemente.
- Disse bem, Cecília. Sei o que é ser Mãe e no meu coração há um lugar que nunca foi preenchido! Ofereço-lho! Aceita?
Expansiva, Cecília beijou-a.
- Oh, sim, aceito e vou querer-lhe muito, muito, tenho a certeza! Ah! E eu gostava tanto de ser feliz dando felicidade!
- Então... encontrámo-nos, não é? - e anediando-lhe os cabelos, Matilde de Montesilva concluiu: - Este lugar no meu coração estava-te reservado! Tu és uma filha sem mãe... e eu uma pobre Mãe que tem vivido como se não possuísse filho nenhum. Vamos ficar ambas certas!
Francisco encarou-a fixamente.
- Quer então deixar-me ? Decidiu ?
- Não, Francisco... os termos exactos não são esses. Eu não quero deixá-lo. Mas, agora que sei quanto a Sr.a Dona Matilde espera de mim, não posso recusar. Nem devo!
- Considera nobre a missão que se lhe depara?
- Considero! - mas ao pressenti-lo zombeteiro como em todos os momentos maus, objectou: - Se não lhe agradava a ideia, porque não impediu que a Sr.a Dona Matilde me expusesse as suas intenções? Francamente, não o percebo!
- Nem é preciso. - e, cada vez mais irritado, embora procurando conter-se, quase sibilou: - Pode ir. Vá vá. E sem olhar para trás nem perder tempo. A sorte é caprichosa, dizem que não bate duas vezes à mesma porta. Portanto, siga o seu caminho!
- Não fica zangado comigo?... -inquiriu, angustiada.
- Zangado porquê?
- Podia fazer-lhe... falta!
- Falta? Ora deixe-se disso! Não há ninguém insubstituível! De resto, acho que faz muitíssimo bem em trocar...-e exaltando-se de novo: - Vai frequentar um meio social elevado, vai viver cercada de luxos e comodidades, vai levar vida de rica. Terá automóvel, irá a todos os Teatros e Cinemas, viajará... É de facto maravilhoso o romance que se abre nos seus dias. Não quer perdê-lo e tem razão!
Cecília encarava-o, silenciosa, mordiscando as unhas. E o Médico, após ligeira suspensão, porque ela não reagisse continuou :
- E depois há-de ser-lhe fácil arranjar um marido, um marido de elite, um marido que a instale num futuro inimaginável no seu passado!
Desta vez Cecília não pôde suster o fogo da revolta que de quando em quando fervilhava na sua alma sensível e redarguiu-lhe com altivez:
- Vai longe demais, Francisco!
- Porquê ? Não estarei dentro da lógica ?
- Está e de tal maneira que era escusado falar do meu futuro e do meu passado com semelhante escárnio.
- Escárnio? - de súbito caía em si e dava-lhe razão. Escárnio! Eis o que lograra traduzir de tudo quanto sentia!
Encolheu os ombros e abrandou.
- É tonta!... Falo com toda a naturalidade... Vagarosamente, Cecília aproximou-se dele e poisou-lhe a mão
no braço. Tremia-lhe a voz.
- Não entendo porque procura magoar-me assim. É bom para toda a gente e... para mim, nunca...
- Ah! Não vai dizer que eu a trato mal!...
Ela baixou os olhos, confusa perante o veemente protesto. Um protesto que emergia de uma consciência desperta, uma consciência que forçava Francisco a um severíssimo exame.
Voz adoçada, ele continuou falando, agora de maneira muito diversa.
- Não, Cecília, não pense que eu a aborreço. Pelo contrário! Sou seu amigo, aprecio-a... Sabe? Às vezes indisponho-me comigo próprio e os outros é que pagam...
Ela tentava sorrir, tentava principalmente reprimir a comoção.
- Obrigada por essas palavras...
- E ainda que eu não lhe quisesse bem, o meu desamor não devia contar na sua vida. A Cecília parte para o futuro que merece e eu só tenho de pedir-lhe desculpa por não ter sabido conhecê-la logo de começo... e agradecer-lhe quanto foi para mim!
Fitaram-se. Durante segundos as pupilas de ambos, atónitas, deslumbradas, quiseram entregar-se a uma confissão. Não o fizeram. Francisco, voluntariamente, ia arredar de si a estonteante ventura. E, desviando os olhos, esforçou-se por demonstrar a mais completa serenidade.
- Trate das suas coisas sem olhar para trás, Cecília. A Matildinha espera-a...
Cecília, sucumbida, insistiu ainda:
- Não fica ofendido comigo? com certeza?
- Não, pelo contrário! Rejubilo com a sua felicidade. Matilde de Montesilva é a melhor das pessoas que eu conheço e a Cecília não terá de que se arrepender.
- Bem...
com gesto fraternal, o rapaz estendeu a mão e prendeu o lindo rosto que se lhe esquivava, ruborizado.
- Oiça, Cecília. Digo-lho com sinceridade! Se na sua nova situação aparecer um bom casamento, um casamento que lhe ofereça garantias, não hesite... Desejo-lhe as maiores venturas!
Nunca soube porque dissera aquelas palavras que lhe haviam escaldado os lábios e feito brotar, irreprimíveis, torrentes de lágrimas pelas faces da prima. Nem como pudera, intimamente transtornado, ficar imóvel a contemplar o desgosto dela. E indagou por fim, sem calor:
- Porque chora, Cecília? Afinal porque chora?
A pobre rapariga ficou algum tempo sem responder e depois, sentindo que ele esperava a explicação, balbuciou:
- Choro... porque vou deixar a última pessoa de família que me resta!
E ele não lhe abriu os braços. E ele não a estreitou oferecendo-lhe o amparo do peito forte. E ele não se deixou vencer nem pelo enlevo que o arrastava nem pelo arrebatamento que o empolgava. Talvez por orgulho. Talvez pelo desejo indefinido e mórbido de sofrer e fazer sofrer. Talvez pelo temor de que o coração feminino ainda estivesse fechado para ele. Talvez pelo receio de complicações... Quem poderia sabê-lo?!...
Nervosamente, pôs-se a rir.
- Pessoa de família?!... Ora, Cecília, já sou um primo tão afastado!
Então ela endireitou-se num assomo de dignidade e ao despedir-se dele os seus grandes olhos luminosos haviam-se tornado enigmáticos. Exactamente - enigmáticos!
Recomeçara a trabalhar. Agitadamente rabiscando papéis, consultando notas, folheando livros. Não levantando a cabeça nem por um segundo. Tudo nele era maquinal, porquanto o espírito lhe fugia da realidade, sem aproveitar as energias dispendidas. No desgaste, o cansaço não tardou em apoderar-se-lhe dos nervos, forçando-o a largar a caneta e a erguer os olhos que, suspirando, poisou no retrato que tinha na frente. O retrato da noiva.
Muito loira, muito esbelta, era uma silhueta provocante, toda estendida num sofá, busto envolto em gaze, cigarro entre os lábios rubros...
Isabel!!!
Aquele retrato, apesar de extremamente artístico nos seus realces, agastava-o. Nunca gostara dele e chegara a censurar à rapariga aquela atitude vampesca. Ela troçara-o, ridicularizando-o sem demoras ao participar a todos os amigos de ambos que descobrira em Francisco um espírito conservadoramente medieval...
Calara-se, para não a ouvir mais, mas desde então não conseguia olhar a fotografia sem azedume. E naquele momento ainda mais a fotografia lhe desagradava. Via-a provocante, insolente. No olhar azul de Isabel lia o perfeito à-vontade que no geral o uso de representar concede.
Sim, eis o que se adivinhava ali - simulação e artifício. Não havia naturalidade nem no sorriso, nem no gesto, nem na expressão. Tudo se revelava estudado, premeditado, fingido... E, no entanto, Isabel estava bem... muito bem!... Ela era assim mesmo! E surpreendia-se a criticá-la, a recriminá-la, a procurar nela motivos de censura. Ela era aquilo sem tirar nem pôr - estudada, premeditada, fingida. E, obstinado, pôs-se a compará-la com certa imagem graciosa, singela, modesta... O confronto foi-lhe penoso mas debalde tentava achar perfeitíssima a noiva... Quanto até ali lhe parecera apanágio, revelava-se-lhe agora defeito, admirando-se por o não ter reconhecido mais cedo. E a figurinha diminuta aumentava; dois lindos olhos cândidos erguiam-se para ele numa expressão deliciosa e, ante o retrato de Isabel, ofuscando-a, dominadora, a dulcíssima visão de uma carita pesarosa.
Sem querer, moveu-se-lhe a boca a balbuciar um nome "Cecília...".
Escutando-se, espantado pelo tom, quedou-se numa estranha vibração. Porque chamara por ela? Porquê?
Violento, quis afastar de si a lembrança cariciosa e procurou libertar-se de uma nova onda de saudade... Não conseguiu. Invadia-o uma forte sensação de ternura, vinha-lhe o sentimento impetuoso de um carinho protector e o coração palpitava-lhe como nunca.
Compreendeu então a verdade inegável dos factos, a ordem que o destino impunha às vidas e desistiu de continuar mentindo a si próprio.
E com certo desespero ao silêncio confessou baixinho:
- É inútil... Amo-a!
Ficou-se, acabrunhado. Porque a soberba do carácter independente o impedia de correr para ela sem tardança a pedir-lhe que voltasse, que regressasse para junto dele, alegrando-lhe os dias como divino raio de sol, perfumando-lhe a existência isolada como botãozinho maravilhoso que pela graça do seu amor desabrocharia em rosa incomparável... Para mais, admitia como segura a convicção de que Cecília não devia querer-lhe. Se no peito dela se agitasse o magnífico anseio, nunca teria acedido em viver com Matilde de Montesilva! Não, Cecília não o amava! E era justo, era natural, só a sua negligência devia culpar. Que fizera para que o grande afecto pudesse brotar na alma da solitária ? Que fizera para a atrair, para a encantar, para se tornar nesse mágico sublime que enche de luz os sonhos de uma rapariga? Nada... nada!... Pelo contrário! Sempre lhe mostrara indiferença!... E quando podia estender-lhe as mãos e oferecer-lhe o futuro a seu lado, apontara um caminho além indicando-lhe outro rumo... Bruto!!!...
Cecília apreciava a nova existência que tão prodigiosamente se lhe deparara.
Dona Matilde, adorando-a, fazia dela, segundo os próprios ideais, uma criatura maravilhosa que vivia para sorrir, conversar, passear e, principalmente, deixar-se amimar. Talvez pouco demais, ou nocivo em excesso, se ao mesmo tempo, sábia e discretamente, a boa senhora não cuidasse de vigiar a transplantação da flor dos campos para as estufas da sociedade, velando para que se lhe desenvolvessem os encantos sem prejuízo moral. Assim, naturalmente, requintavam-se os modos e os hábitos da bela rapariga que, entre os enlevos de um grande afecto ia personificando o sonho da sua protectora. Aprimorava-se-lhe a educação e a elegância ganhava-lhe distinção nesse ambiente propício onde uma mulher cultíssima e requintadíssima sabia perder a mocidade com inexcedível boa disposição.
Cecília, sem quaisquer reservas, afeiçoara-se à excelente amiga. Vivia tão alegre, em despreocupada, que se tornara, por assim dizer, numa "menina-sorriso". A expressão nostálgica do olhar desaparecera no brilho gaiato que lhe animava o semblante. E o bom-gosto com que vestia, orientada por Dona Matilde, dava-lhe um ar moderno sem excessos, um ar de pessoa completa em seu equilíbrio.
Sobre o passado, voluntariamente, Cecília correra um véu, não queria recordar o sonho que se desfizera, esforçando-se por acreditar que a sua vida principiara verdadeiramente no dia em que deixara essa casa onde um rapaz altivo a recebera de má vontade. E nesse rapaz altivo (o grande senhor que não vira como era encantadora a gata borralheira!) ela não desejava pensar. Fugia às evocações, fugia ao silêncio. Ria e brincava para não poder lembrar-se... Tal qual como Matilde de Montesilva, repelia a solidão que em si comporta as ondas das imagens extintas.
Mas., mas de quando em vez ONTEM é livro tentador que apetece folhear...
E naquela tarde ela fora para o jardim, sentara-se num banquinho e ficara-se a meditar, esquecida das horas, esquecida da vida exterior sempre amena e aprazível.
Perdera-se através do que fora e revia aquela estação humilde onde, sozinha, pelo frio da madrugada, contemplava, espalhadas pelo chão, as roupas antigas que jamais deviam servir-lhe... E era a mala escangalhada. E era o Chefe da estação com o baraço providencial. E era o comboio. E era o "tu vens-eu vou" sempre igual. E era o seu receio da monotonia. E era a sua inquietação frente à porta misteriosa que se descerraria sem demora...-julgava ela!
E afinal reconhecia não só que a sua existência não fora nem insípida nem vulgar - pelo contrário, trouxera-lhe sensações e existências diversas! - mas também que a porta misteriosa ainda se não abrira...
O Destino? Como seria? Qual o caminho reservado ao seu coração cheio de amor?
A incógnita permanecia e ela já não tinha pressa em decifrá-la!... Para quê? Afinal, dia-a-dia, vinham mais perto os adeuses... E era tão agradável permanecer quieta, sossegada, deixando-se envolver pela ilusão de que não mais sofreria angústias nem desânimos... Confiar no HOJE, agradecer a todas as horas o afecto milagroso daquela amiga benfazeja!
De longe, chamando-a insistentemente, uma voz máscula arrancou-a do letargo em que a prostrara o devaneio.
Era Rui, o filho de Matilde de Montesilva, regressado há cerca de um mês de mais uma das longas viagens da sua carreira nómada.
O Rui! Um belo rapaz, uma alma nobre, um rosto franco, tudo na aparência robusta de um homem alto a quem ficava bem a farda azul do exército do mar e que, logo de entrada, depois de abraçar a Mãe radiante de ventura, se voltara para ela de mãos estendidas em saudação jovial.
- Vai ser a minha irmã querida! E estou disposto a perdoar-lhe que se tenha feito esperar tanto tempo!
Desde ,aí, a convivência entre os dois principiara sem constrangimentos nem equívocos. E mantinha-se.
Compreendiam-se às mil maravilhas, aspiravam a plenos haustos o encanto da mútua companhia. Às vezes pareciam dois colegiais em férias... Como naquele instante, com Cecília respondendo ao apelo.
- Ú-ú... Rui!!! Onde estás tu?
- Menina-sorriso, corra pela alameda à sua direita e encontrar-me-á de braços abertos para a acolher se tropeçar no degrau da pérgola...
XXIV
E Rui não parava de rir.
-. Olhem que esta!!! Então a menina-sorriso também sonha com aventuras?
E ela, muito séria:
- Pois claro!
- E de que maneira desejaria vivê-las, se me faz o favor?
- Como pirata!
- Como quê?
- Pirata!
- Pirata?!...
- Sim, para ir à descoberta de um tesouro! Queres saber? Metia-me num barco, arranjava um chapéu de plumas, um fato com botões doirados...
- Um vestido... - corrigiu o oficial.
Ela, imperturbável, sustentou a afirmação.
-Não senhor, um fato! Eu sei o que afirmo! Um fato! e explicava, com exuberância: - Calças tufadas, botas altas, camisa aberta no peito, o tal casaco para o frio, um alfange... Depois... depois comprava um submarino e...
Rui continuava a rir.
- Oh, Cecília! Tu és engraçadíssima... mas no teu projecto só aprovo uma coisa...
- Qual coisa?
- A camisa aberta no peito! E bem aberta...
- Oh!!!...
- Mesmo assim, acho que devias preferir um maillot... Então sim! Ficavas pirata nova-vaga... e que pirata! E se queres, podes começar a treinar-te...
- A treinar-me ? - e a expressão deliciosa do lindo rosto acelerava o ritmo das pulsações ao rapaz que, procurando dominá-las, já propunha:
- Podemos ir treinar para o meu iate...
- Tu tens um iate?
- Arrecadado na algibeira...
- Ora! Tu só brincas, Rui... e não me entendes! Eu, nos meus romances de aventuras, queria ser pirata a sério! Um pirata autêntico!
E de súbito, muito grave, inesperadamente comovido, Rui disse:
- Ouve, Cecília...
- Sim?
- com saias e em terra firme... fica sabendo que és um terrível piratazinho...
- Eu ? Coitada de mim! Nunca me afoitei a nada de bélico, nunca conquistei nada...
- Nunca ?
- Nunca!
- E se eu te provasse o contrário?
Cândida, Cecília ergueu os olhos para os do oficial.
- Não entendo!...
- É tão simples, Cecília! De há uns dias para cá que me sinto mal... E sabes porquê? É que dei por falta do meu coração.
- Oh!
- E mais! Descobri... Imaginas acaso o que eu descobri? Ela meneou a cabeça, totalmente ingénua. E ele, sem mais
conter-se:
- Descobri que tu mo roubaras!
Vermelha, confusa, ela pôs-se de pé, implorando:
- Não digas isso! Não digas isso!
- Porquê? Cecília... porquê?
Evidentemente transtornada, ela deu alguns passos no esplêndido terraço que se debruçava para as flores do grande jardim aberto nas traseiras do palacete moderno e confortável, onde gozavam o fresco da tarde.
Ele contemplava-a, achando graça à alteração que lhe divisava no rosto e naturalmente atribuia ao constrangimento provocado por uma (talvez primeira) declaração de amor. E foi poisar-lhe as mãos nos ombros.
- É isto, Cecília, e é simples. - declarou, com a singeleza da verdade. - Amo-te!...
Mas Cecília, numa aflição crescente, suplicou:
- Oh, Rui... pelo amor de Deus, cala-te!...
- Não queres que goste de ti?
- Não... assim... não!
- Mas não porquê?
E ela, prestes a chorar:
- Porque não!... Porque não!...
- Porque não, só, é pouco. Apresenta razões. - insistiu firmemente.
- Por... - e desnorteada, agarrando a primeira desculpa que se lhe afigurou aceitável, desculpa a que iria apegar-se para se persuadir a si própria:-Por causa da tua Mãe... Rui! Que havia ela de pensar?
- A minha Mãe? Mas a minha Mãe vai dizer que eu tenho muito gosto e muito juízo!
Obstinada, Cecília abanou a cabeça.
- Não, Rui, não quero!... Por favor... Não estragues a nossa amizade!... - e procurava tornar-se convincente: - É que eu sou verdadeiramente tua amiga!... Verdadeiramente!
-Sim...-proferiu o rapaz, sem ocultar a decepção que o invadia. - És verdadeiramente minha amiga, mas não me tens amor. Percebo.
- Oh, Rui!... Custa-me tanto ver-te aborrecido!... - e, desolada, fitava-o, de costas para o poente cuja luz, tinta de vermelho pelo sol agonizante, emoldurava a sua figurinha gentil.
E Rui aceitou as novas directrizes. Ela não o amava! Pois bem - ele esforçar-se-ia por conquistá-la! O coração dela ainda não pertenceria a ninguém, lutaria portanto para o alcançar! Nada justificava que desistisse após o primeiro passo.
Suavizou-se-lhe o olhar e pegou nas mãos que a emoção esfriara.
- Cecília... responde-me só a uma pergunta - achas que não podes vir a gostar de mim?...
- Não sei... Nunca pensei nisso!...
- Prometes-me que pensarás?
Ansiosa por lhe fugir, encolheu-se, procurando livrar-se dos dedos nervosos que a retinham, e exclamou:
- Não insistas, Rui!... Afliges-me!... - e voltou a lamentar, sinceramente consternada: - Éramos tão bons companheiros!
Encostada ao gradeamento, de cabeça baixa, ficou silenciosa durante longos minutos. Depois, mais serena e quase refeita, empertigou-se e, maliciosa, proferiu em tom de comando:
- Senhor marinheiro, o pirata ordena-lhe que, se está firme nas pernas, volte a bombordo e recolha ao beliche!
Rui encarou-a, ripostando no mesmo tom:
- Senhor pirata, este marinheiro é valente. Segue avante e vai à abordagem! Não desiste de conseguir encontrar o tal tesouro!!!... - e, sem dar pelo que fazia, avançava de braços estendidos.
- Pára!-bradou a rapariga, assustada. - Pára!
- Cecília?!...
Mas, presa de insensato pânico, Cecília soltara um grito abafado e, fugindo, reentrava em casa precipitadamente.
E os braços de Rui penderam-lhe ao longo do corpo. com uma inexplicável e súbita noção de derrota tornando doloroso o amor que o alagava.
A sala regurgitava.
O ambiente selecto que sempre envolvia Matilde de Montesilva mais se acentuara nessa tarde com a presença de uma assistência escolhida entre a nobreza da inteligência e a elite da dignidade. Que a beleza e a elegância como que sublinhavam e sublimavam num conjunto de rara harmonia.
Os risos, felizes mas discretos, iam cortando os ditos espirituosos, perdendo-se no ar em tinidos de uma alegria que por bailar nas almas se reflectia nos rostos.
Matilde de Montesilva, a juvenil quinquagenária de cabelos aloirados cujo semblante afável irradiava contentamento, era incomparável na organização das suas festas onde todos se sentiam bem apreciando o convívio aprimorado da dona da casa e dos convivas por ela irrepreensivelmente seleccionados.
Cecília, que a Mãe de Rui apresentara como uma sua amiguinha muito querida, conquistava gerais simpatias.
Graciosa, discreta, perfeitamente adaptada ao meio, merecia de todas as mulheres um sorriso e de todos os homens um olhar de eloquente admiração.
No grupo onde Rui estava, falava-se dela. Até porque o oficial, conquanto sem a mínima intenção exibicionista, fizera com que a sua atitude fosse notada pelos amigos - o seu olhar tristonho não se afastava da silhueta donairosa da rapariga, seguindo-a como que fascinado. E, reparando nessa expressão fixa, um dos mais afoitos pretendeu gracejar com ele... ou investigar por conta própria.
- Rui - disse -, a jovem amiga da tua Mãe é gira que se farta! Tens sorte, pá! Ser-te-á fácil tomar a dianteira a qualquer de nós...
- Cala-te!-ordenou, ríspido, Montesilva. - Cecília merece-nos, a todos os títulos, o maior respeito!
Embora surpreendido pela violência da réplica, o outro não desarmou.
- Ó pá, eu não faço insinuações! Mas insisto em que tens os trunfos na mão...
- E eu peço-te que não teimes numa alusão inconveniente e franzia a testa de tal modo que o interessado não teve coragem para mais.
Precisamente nesse instante Cecília voltara-se para eles e sorria-lhes, com a naturalidade que a situação requeria.
E o rapaz que tentara sondar Rui, um tal Urbano Teixeira (vaticinavam-lhe um belo futuro na diplomacia), não resistiu - dirigiu-lhe, com perfeita galanteria, um cumprimento em forma de convite.
- Venha até junto de nós, Cecília. A sua presença será como um raio de sol caído nas trevas...
Um moço loiro, quase imberbe, escutando-o argumentou:
- Falta de originalidade, Teixeira! A imagem é velha.
- Ah, sim? Queres outra mais nova?
- Se não te faltar o engenho...
- vou tentar! - e para a rapariga que se aproximava e os escutava risonha: - Cecília, a sua companhia será como a entrada de uma nota de mil numa algibeira habituada somente ao cotão!
Houve risos de que Cecília comparticipou, o próprio Rui não manteve a seriedade.
Lisongeado com o efeito conseguido, Urbano Teixeira emproou-se para nova façanha.
-Vês, invejoso, como não me falta o talento criador?
Cecília dera a volta por detrás deles e fora encostar-se ao piano de cauda.
O rapaz loiro, agora desejoso de também se evidenciar, seguia-a, apresentando-lhe a cigarreira aberta numa das mãos e na outra um copo cintilante de whisky.
- Fuma? Bebe? Cecília, gaiata, decidiu:
- Não fumo nem bebo... mas vou fumar e beber! Tenho o direito de pecar como outra qualquer, não?...-e engoliu o líquido doirado de um trago e ia puxar a primeira fumaça do cigarro já aceso quando rente dela soou uma voz autoritária, comentando:
- Assim e em tão pouco tempo se transformou? Confusa, a rapariga voltou-se num impulso para Francisco
de Salves. Sim, Francisco de Salves. Francisco que ela não vira entrar nem esperava. Francisco que a fitava incrédulo e pasmado. Francisco que prosseguia:
- É certo, desconheço-a! Parece outra, de tão diferente da minha prima Cecília...
Talvez houvesse emoção na frase. Talvez houvesse. Mas proferida entre-dentes não revelava senão dureza, sarcasmo. E Cecília, melindrada, reagiu. Reagiu, pronta a desafiá-lo.
- Deve concordar que seria ridículo se eu continuasse atrazada e simplória como dantes! A vida caminha e eu vou com ela.
Verdadeiramente surpreso, o Médico foi então quase insolente.
- Ah!... E para ir com a vida bebe e fuma?
- Tem algum mal?
- O mal de se encaixar num figurino que não lhe assenta!
No grupo, em torno deles, fervilharam risos e comentários que, embora discretos pela força da educação, se tornavam perfeitamente audíveis. E Cecília, sentindo-se ridicularizada e, por ridicularizada, desejosa de se desafrontar, encarou Francisco bem de frente.
- Como não é meu tutor, dispenso os seus conselhos. E para evitar que a minha figura actual lhe magoe os olhos, dispenso-o de conhecer-me - e saudando num aceno de cabeça os demais rapazes, afastou-se.
Repentinamente muito sério, com uma ruga funda a cavar-lhe a testa, Francisco seguiu-a.
- Cecília... assim a ofendi? Por favor! Responda-me! Assim a ofendi?
Ela, escudada pelo calor ardoroso (e fictício) do estimulante ingerido, nem sequer se deteve para lhe permitir explicações e, numa entonação abafada, retorquiu-lhe com desprezo:
- Descanse! Nunca me ofendem palavras indiferentes.
- Que procura, filha?
Cecília endireitou-se precipitadamente, no sobressalto da inesperada presença.
- Desculpe, S'Dona Matilde. Vim procurar um livro.
- Então continua. Não te incomodes por minha causa. Deu alguns passos na biblioteca e acabou por sentar-se na
grande poltrona de cabedal que ficava mesmo vizinha da secretária.
com a permissão, Cecília voltou a inclinar-se para a grande estante recheada de magníficos livros, passando o indicador pelos títulos doirados impressos nas lombadas com manifesto desgosto.
Matilde de Montesilva contemplava-a atenta, pensativa. Contra o costume, expressava-lhe preocupação a fisionomia calma.
Rui estivera com ela nessa manhã e haviam conversado. O filho tornara-a sabedora do seu amor por Cecília e a boa senhora rejubilara. Mas...
Sim, bem no fundo dos seus anseios desejara essa união pelo afecto que a rapariga lhe inspirava, sem a considerar viável por bem conhecer o carácter independente do filho, apaixonado pelos horizontes sem fim. E eis que pela vez primeira o coração do rapaz batera em uníssono com os seus anelos! Simplesmente... Bem, Rui amava Cecília. O marinheiro liberto de âncoras prendera-se à graça daquela mocidade enternecedora de sentimentos e gentilezas. Parecia-lhe ouvir a voz bem timbrada do oficial numa aspiração radiosa "se a Cecília me quisesse, nunca mais embarcaria. Deixava as viagens para os meus filhos de um dia..." E mais "diria adeus ao mar, aprenderia o gosto da família... viveríamos juntos...".
Nunca mais embarcaria.
Deixava as viagens para os filhos.
Aprenderia o gosto da família.
Viveriam juntos.
SE A CECÍLIA QUISESSE!!!
Mas ela nem por um instante acreditava na possibilidade de Cecília haver recusado a sério e definitivamente aquele amor!!!... Não podia ser!
Rui era tão simpático, tão bondoso... A rapariga adorá-lo-ia e formariam um par delicioso!...
Deleitada, visionando-os unidos vida fora, eternizados no crescimento dos filhos, continuava a fitar Cecília que estava agora imóvel, a murmurar desconsoladamente:
- Nada!... Não há nada do que eu procuro.
E Matilde de Montesilva, enfim abandonando a divagação: " -E que procuras tu?
- Um romance de Camilo.
- Na estante dos filósofos?!...
- Oh! - exclamou Cecília, confusa. - Pensei que os autores estivessem por ordem alfabética...
- Não... embora não brigassem!... Os romancistas acham-se na estante da outra parede, aquela! Facilmente encontrarás o que desejas. - e terminada a explicação, Dona Matilde de novo inclinava a cabeça. Notando-lhe de súbito a expressão reservada, Cecília inquietou-se.
"Que terá a minha amiga? - pensou com certo alarme.- Está com um ar que nunca lhe vi!"
Como se adivinhasse o mudo quesito, Dona Matilde fitou-a, sorrindo-lhe e, inesperadamente, decidiu falar.
- Cecília - disse, bondosamente -, precisamos de conversar.
Interrogativos, os lindos olhos abriram-se desmesurados para ela.
- De conversar?
- Vem para aqui...
A rapariga obedeceu, sentindo-se palpitante. E já sentada à beira de Dona Matilde, entregando as mãos às que a amiga estendia para ela, OUvÍU:
- Antes de mais nada, filha, quero pedir-te que me perdoes a censura que vou dirigir-te.
Cecília encarou-a, empalidecendo. De repente, invadia-a o receio, o temor de ser mal julgada! Pressentia que Dona Matilde estava ao facto das pretensões de Rui (as coisas más constam tão depressa!) e que, não a conhecendo ainda suficientemente bem, iria alcunhá-la sabia lá de quê!... Julgaria decerto que ela, a intrusa, abusando da amizade e da confiança testemunhadas, pretendia instalar-se ali dentro com plenos poderes... e tão violenta foi a dolorosa sensação que rompeu a chorar, ante o espanto da senhora.
- Oh, S'Dona Matilde, desculpe! Não foi por mal, olhe que não foi!... É tão boa para mim que eu não tenho o direito de lhe causar a mínima amargura... Eu não queria magoá-la... suplico-lhe que me acredite!...
Estupefactas, as pupilas afectuosas da Mãe de Rui procuraram as dela.
- Mas... porque choras, minha filha? - inquiriu docemente.- Porque estás nessa agitação? Ninguém te obriga... mas eu tenho muita pena! Acredita! Muita pena!
As meias frases não aclaravam o assunto e Cecília ficou indecisa, limpando as lágrimas até, ainda a tremer, balbuciar:
- Mas... não pensa mal de mim?
- Mal? Não, minha querida. Nestas coisas... quem manda é o coração.
A rapariga, timorata, assoou-se infantilmente.
- Tive tanto medo, Matildinha!... Tanto medo que viesse a exprobar-me o meu procedimento!
- Não tinha razões para isso, pois não ?
- Oh, sim, tinha e muitas! Se eu aceitasse a mão do Rui praticava uma infâmia porque abusava da sua hospitalidade...
- Oh, cala-te!-reagiu Dona Matilde, compreendendo o equívoco que a alagava de contentamento. - CalaXte, querida!... Não dissemos nada com jeito... Pior do que o jogo dos disparates! - Mas...
- Eu referia-me ao meu pesar por teres recusado o amor do Rui... e tu... tu pedias-me desculpa por ele gostar de ti! Ora não há! - e ria, o semblante afável agora banhado pelo clarão da alegria. Ria e abraçava-se a Cecília, transportada.
- Querida, querida filha! E preparava-se este anjo para sofrer em voluntária penitência... Puritana! Nunca pensaste no inverso... porquê? Pois não sabes que te adoro?... E por causas imaginárias recusavas-te ao Rui ? Porque não havia outro qualquer motivo, não?
Cecília não respondeu logo. Dentro de si própria, no mundo das recordações, erguia-se uma figura altiva, um rosto zombeteiro, um olhar frio... e ela teve muita vontade de confessar que sim, que havia outro motivo... Mas faltou-lhe a coragem para destruir a ventura dessa a quem devia quanto era e não foi capaz de cortar cerce a perigosa ilusão. Mentiu, quase piedosamente, mas mentiu.
- Não... - ciciou, inclinando o rosto.
Vibrante, Dona Matilde beijou-lhe as faces, os cabelos, as mãos, repetidamente, como se ela fosse uma garotinha.
- Minha filha, minha querida filha!... Como eu sou feliz! Agradeço-te, minha pequenina! Realizas assim o meu mais belo sonho, a minha maior ambição. - e não se apercebia da angústia que transtornava o semblante da rapariga. - Quando te vi, Cecília, tão linda, tão encantadora, pensei que, se um dia o meu Rui casasse, devia ser com uma rapariga como tu! E vê... O meu inconsciente voto realiza-se! Já pensaste bem? Vais ser minha filha de verdade... e restituis-me o filho! O meu Rui não tornará a embarcar. Fica junto de nós! Ficam comigo, tu, ele... e um dia os meus netinhos!... - e resplandecia de um júbilo tão puro, tão sincero, que Cecília imaginou ser capaz de nunca mais pensar em si mesma e numa grande aceitação do que a transcendia escondeu o rosto no seio da futura sogra que prosseguia, entusiasmada: -Os meus netinhos! Hão-de ser lindos como a Mãe e fortes como o Pai! E quero pelo menos três! Dois rapazinhos e uma menina! Três, ouves, Cecília? Porque... sabes? Sofre-se muito quando se tem um filho único! Aumentam os cuidados, as preocupações redobram, os perigos parecem-nos inevitáveis, não somos felizes nem deixamos que ele o seja! Ameaça-nos a solidão e não temos o direito de o prender a nós... E é tão maravilhoso reunir à nossa volta cabecinhas adoráveis! Oh, Cecília! Anda comigo, vamos dizer ao Rui que a felicidade vem morar para a nossa casa ? -e levou-a depressa, muito depressa. E Cecília, perplexa e aterrada, deixava que a fantasia se tornasse realidade.
Caminhava apressada. De quando em vez consultava o reloginho de pulso onde os minúsculos ponteiros giravam mais rapidamente do que ela desejaria.
Estava fatigada. Procurara em vão certa seda que Dona Matilde lhe pedira e perdera um tempo precioso. Demoravam-na, faziam-na esperar (os empregados, para não descontentarem ninguém, tentavam multiplicar o seu número insuficiente) e acabavam por lhe mostrar, alegando belezas e perfeições, artigos bem diversos do que ela pedia. Amabilidades escusadas! E agora, todos os passos desperdiçados, ia chegar atrasada à Pastelaria onde Dona Matilde e Rui haviam combinado aguardá-la.
Perfeitamente à vontade no grande meio que no início tanto a intimidara, Cecília movia-se com ligeireza e a sua figurinha discreta, pela graça e pelo frescor, chamava as atenções de quem passava.
Os homens rosnavam-lhe galanteios que não lhe faziam mossa. Simulava não ouvir atrevimentos, vencia qualquer tentativa de aproximação com uma olhadela fria, tanto mais singular quanto os seus olhos eram efectivamente ternos e carinhosos. Mas, quando andava só, ciente da responsabilidade de si própria, Cecília recolhia-se em orgulhosa reserva e era uma pessoa extremamente sisuda...
Lépida, desceu a rua Garrett, cortou pela rua do Carmo caminhando para as escadinhas de Santa Justa. Prestes a atingi-las, sentiu que lhe tocavam num ombro. Sobressaltada (não fosse longe demais alguma ousadia), voltou-se disposta a meter na ordem quem desta carecesse. Já uma voz bem sua conhecida a advertia de uma presença apenas indesejável pelo que tinha de perturbadora.
- Onde vai com tanta pressa?
Não pôde eximir-se a corar e a sorrir à expressão afável de Francisco de Salves, que lhe estendia a mão cortezmente. E, completamente esquecida de que se dispusera a "nunca mais lhe falar", cedeu ao contentamento experimentado.
- Que surpresa, Francisco! Você por aqui?...
- Porque se admira tanto?
- Sei que detesta a Baixa...
- Quem lho disse ?
-Você, um dia, durante um almoço... Não se recorda? Não, ele não se recordava. E fitava-a com uma cintilante emoção no fundo das pupilas.
- Então, Cecília - (ai, como era bom ouvi-lo falar sem ironia nem azedume!) -, assim fixou quanto me ouviu dizer ?
com singular entono, Cecília redarguiu:
- Tenho boa memória, sabe? Por isso me lembro de quase tudo!...
Houve pouca segurança na voz que lhe ripostou:
- Crítica?
- Não, não! Apenas... consequências de uma sensibilidade exagerada! Por exemplo - nunca me pude esquecer de que você me vaticinou que eu jamais seria uma rapariga desta sociedade...
Muito sério, Francisco meneou a cabeça.
- E repito-o!
- Oh!
- Não vá agora iludir-se no sentido das minhas palavras! A Cecília nunca será uma rapariga desta sociedade porque é muito mais do que isso.
- Eu?
- Exacto! Tem personalidade e carácter, tem distinção natural, eclodiu revelando-se uma participante de elites... e participantes de elites há-as em toda a parte, desde a esplendorosa capital à mais pequenina aldeia perdida nas serras... entende?
- e falava com simplicidade, recreando o olhar na contemplação do belo rosto, do corpo airoso modelado num casaco azul, reconhecendo-se cada vez mais atraído para a insinuante criaturinha e procurando certificar-se das razões dos próprios sentimentos.
Cecília percebia-se um tanto desorientada. Pretendera, maliciosamente, aproveitar o inesperado ensejo e desforrar-se de muitas humilhações sofridas, e eis que Francisco transformava o ressentimento num cumprimento do mais requintado sabor! Mas esforçou-se por continuar a ser forte.
- Parece-me que você modificou bastante a sua maneira de pensar a meu respeito...
- Naturalmente! E com a mesma franqueza de outros tempos lhe digo que a Cecília está linda.
- Que ideia! Estou como sempre fui!
- Talvez eu tivesse noções erradas sobre a formosura... Hoje compreendo a sua. Agrada-me, cativa-me!
- Obrigada... mas peço-lhe que não prossiga. Detesto ouvir falar de mim.
Sorrindo, Francisco ofereceu-lhe o braço.
- Posso convidá-la a lanchar comigo, para conversarmos ? -Não! - e recusando, Cecília deu dois passos atrás, vivamente.
- Porquê?
- Porque não posso! Ou não devo!
Ele defendeu a pretensão com uma frase que julgou indiscutível.
- Não tem razões para se esquivar a acompanhar-me, julgo! Viveu comigo...
- Uma forma desacertada de expressão... A autêntica será-vívi na sua casa.
- E ainda por cima, somos parentes!
Cecília voltou a ser a inclemente que não perdoa um desaire. - Sei-o há bastante tempo, primo Chico! Mas o mundo ignora os nossos laços de sangue...
- Ora o mundo!!!... Isso era dantes! Hoje ninguém se preocupa com a vida alheia...
- Não consigo pensar assim, acredite... Talvez porque, por dentro, continuo a ser provinciana, logo... ridícula!
Parados no meio da rua, em frente um do outro, trocando palavras inúteis, não conseguiam evitar olharem-se penetrantemente, convictos de que havia uma verdade pronta a surgir e temendo-se de a revelarem.
Cecília desviou o rosto, atenta à multidão que passava e lhes deitava uns olhos maus - com justiça, porque estorvavam a passagem dos outros...
Emocionada sem querer aparentá-lo, ela decidiu despedir-se. Mas Francisco não arredava pé, limitando-se a aprisionar a mão que ela lhe estendera alegando:
-Tenho de ir, Francisco. Estão à minha espera...-não disse quem, mas a máscula fisionomia de Salves contraiu-se sob o império brusco de uma resolução que nada poderia conter ou retardar. E ele falou num impulso.
- Não vá ainda, Cecília! Não vá antes de eu lhe afirmar que me são devidas todas as suas recriminações. Fui insensato e desastrado. Fui estúpido e cruel. Mas se soubesse como estou modificado!... Se quisesse compreendê-lo!
Reagindo contra a ternura que a empolgava, Cecília ainda tentou gracejar.
- Eu também me modifiquei, Francisco.
- Vejo! Vejo que continua a haver uma distância enorme entre nós. Uma distância que no entanto pode ser anulada se a Cecília for tão bondosa que não me considere indigno de si...
Fora quase humilde, sentindo vibrar-lhe no peito a frase soberana. E, de repente, sem mais lograr contê-la, pronunciou-a, num desabafo impetuoso.
- Cecília... amo-a!
Para quê dizer mais do que isso ? Não sabia, não seria capaz de arranjar frases mais expressivas! Para quem gosta, muito, verdadeiramente, o verbo consagrado basta. E, quando ele impera, não há cabeça para rendilhados. Repetiu:
- Amo-a, Cecília! Case comigo!
Ela, pálida, de olhar errante, não pronunciava uma palavra. Dir-se-ia fechada atrás de um repúdio sem qualquer solução. E ele, sentindo gelada a mão que não podia largar, a custo admitia que não existissem hipóteses de vencer a barreira invisível mas quase palpável.
Estavam agora desesperados os olhos da rapariga, que num evidente esforço, procurava falar. E falou, para terminar bruscamente a situação.
- Adeus, Francisco.
- Foge-me? - protestou ele, angustiadamente. - Foge-me sem me dar uma resposta?...
E ela, como se em cada sílaba o esbofeteasse:
- Francisco... com quantas mulheres pretende você casar?
Não conseguira dominar a desorientação. E ao chegar junto da mesita onde a esperavam Dona Matilde e Rui, levava nos olhos o brilho das lágrimas que tinha de reprimir.
Ao avistá-la, Matildinha logo sorriu prazenteira, mas na testa do oficial havia duas rugas que não se desfizeram com a aproximação dela.
- E és tu que te dizes pontual! - comentou ele. - Chegas com mais de meia hora de atraso!
Cecília sentou-se, procurando explicar-se, tão contrafeita que apenas articulou uma banalidade.
- Desculpem... Demorei-me...
Vendo-a tão evidentemente transtornada, Rui supôs que tal resultasse da leve reprímenda e quis disfarçar a má impressão que pudesse ter causado, voltando a ser o amigo afectuoso de sempre.
- Que te demoraste sabemos nós!...
- Foi nas lojas...
- Ai as compras das mulheres que são o diacho mesmo quando não compram coisa alguma... - e, sorrindo, apontava-lhe as mãos vazias.
Cecília sentiu o sangue subir-lhe à cara, congestionando-a. E Rui alarmou-se.
- Não te aflijas, querida! Eu estava a brincar contigo... e só para ela, delicadamente: - .. .meu amor!...
E Cecília estremeceu, revoltada consigo própria. Sentia-se desleal para com esse rapaz tão sincero e tão enamorado e, lutando entre dois afectos, não sabia onde o dever! Não queria ser vil. E não tinha o direito de se tornar infeliz!...
Enfrentando dois caminhos, o seu coração hesitava, perplexo, abatido, e ela quedava-se atemorizada. A perspectiva maravilhosa de um grande amor compartilhado era envenenada pela certeza de que só o alcançaria mercê de destruições, de ruínas... Sim, ruínas! Rui queria-lhe devotadamente e, se a perdesse, sofreria. Um desgosto ocasional? Não! A sua alma vibrátil, truncada a viçosa ilusão, deixá-lo-ia como um triste corpo mutilado. O marinheiro iria esconder longe a revolta de tão funda mágoa, deixando só, mais velha e mais dolorida, a Mãe sacrificada.
Então, logrando vencer o desnorteamento, olhou para Dona Matilde e, na contemplação do suave rosto cuja expressão traduzia toda a serena ventura que a embalava, alcançou forças para disfarçar o seu tormento moral. E iludiu a ciumenta perspicácia do noivo.
- Precipitaste as tuas deduções, Rui, não me deixando explicar tudo...
- Porquê?
- Porque houve uma causa determinante da minha demora!
- Qual?
Deitara-lhe o chá na taça e oferecia-lhe o prato com as torradas apetitosas, de que ela tirou uma.
- Adivinhem lá quem eu encontrei! - faltava-lhe a coragem de pronunciar o nome querido.
- Não tenho jeito para charadas! - confessou Rui. - Diz lá quem foi, Cilita.
- O meu primo! - e dera à voz um tom natural que a surpreendeu.
Achando perfeitamente justificado o atraso, o oficial manifestou o seu agrado.
- O Francisco! Oh, Cecília, mas devias tê-lo trazido até aqui! Não há quem veja esse figurão!
E logo Dona Matilde, com simpática benevolência:
- E não é de estranhar! Em vésperas de casamento, não deve sobrar-lhe tempo para nada!
Ah, sim, Isabel! A rapariga loira de quem Francisco gostava tanto que decidira contrariar os desejos da própria Mãe... Isabel! Na verdade, Francisco, ao confessar-lhe o seu amor, estivera a troçá-la, a troçá-la, a troçá-la... E na evidência da duplicidade do Médico, sufocando o pesar, a rapariga acto contínuo descreu do amor que ele lhe confessara e sentiu-se invadida pelo mais absoluto desprezo por esse homem que só pretendera enganá-la. E admirou Rui, admirou-o como nunca, tanto que já lhe parecia facílima a escolha, sendo um tão nobre e o outro tão vil. O seu caminho dirigia-se para Rui!
Ouvia o noivo e a futura sogra dialogarem, sem lhes prestar atenção, de momento a momento revigoradas pelo raciocínio as suas convicções. Depois, aos poucos mais senhora de si, conseguiu aperceber-se do teor da conversa. Era tempo. Rui expunha-lhe um assunto directamente.
- Vê tu, Cecília, o que são as coisas! Decidimos o nosso casamento, estamos tratando de tudo... e nem sequer nos lembrámos de participá-lo à única pessoa de família que te resta!
E tudo nela voltou a ser caos.
- Oh... mas não é preciso dizer-lhe nada! - exclamou, sem reflectir. - Não quero que ele saiba!
- Não queres que ele saiba?... Porquê, Cecília?
Ela baixou os olhos. Passara, irremediavelmente, a hora de Rui. De novo se apoderavam dela o temor, o susto, a angústia, perante os dois caminhos... E voltando a sentir-se perdida na tremenda encruzilhada, tartamudeou:
- Receio que ele nos crie embaraços...
- Embaraços porquê? Não, Cecília! Não vai haver nenhuns! Aliás a correcção impõe-me como um dever que o avise e o convide para o nosso casamento...
- Mas... se eu não o tivesse encontrado tu não te lembravas de tal!
- Viria a lembrar-me, acredita.
Cecília, silenciosamente, bebeu o último gole de chá e poisou na beira do pires o resto da torrada que já não podia trincar. Dera-se-lhe um nó na garganta.
Quando Rui falasse com Francisco ir-se-lhe-ia para sempre a derradeira esperança e isso... isso, Deus do Céu, era demais!...
Impossível adormecer.
Os pensamentos, presos da intensa excitação nervosa, chocavam-se-lhe no cérebro, incompletos, apenas esboçados e logo vencidos por outros, provocando-lhe uma forte depressão que se traduzia em convulsivo tremor. Gelaram-lhe os pés e as mãos e a cabeça parecia-lhe cheia de fogo - tão quente, tão quente que mal a encostava no almofadão de penas e logo este se tornava intolerável pelo calor de que se impregnava. E, quer abrisse quer fechasse os olhos, via continuamente, alucinadamente, Rui e Francisco, ambos acusando-a de perfídia, envolvendo-se em pavorosa luta corpo a corpo, tombando num charco de sangue perante uma Dona Matilde coberta de luto que amaldiçoava a intrusa. E o som do anátema, ecoando-lhe na alma febril, fazia-a penar de tal maneira que se pôs a gemer. E os próprios lamentos, tomando proporções na solidão do quarto confortável, mais a assustavam.
Sentou-se na cama, escutando a profunda quietude de todo o lar, e as lágrimas começaram a descer-lhe cara abaixo...
A pouca distância, separado apenas por duas fortes paredes, dormia um homem que talvez sonhasse com ela, um homem a quem dedicava um sentimento de verdadeira afeição mas não tão poderosa que bastasse para lhe sufocar no peito o amor...
Amava Francisco. Amava-o desde que a vira na estação, magnífico como um deus, como um deus capaz de velar por ela! Amava-o em silêncio perante ela própria, não sabendo avaliar a imensidade do seu afecto senão quando pôde compará-lo com outro. E agora, agora já não duvidava... já tinha a certeza! Tinha a certeza, por seu mal!...
Não parava de tremer. Mãos de ferro pesavam-lhe no, tórax, um demónio tentador lambia-lhe a alma fazendo-lhe vibrar a carne, obrigando-a a revoltar-se. Vinha um desespero surdo, veemente, sacudi-la. Afinal, o seu destino podia ter sido tão fácil, tão simples... e tudo se complicara devido à leveza, à insensatez de um coração masculino cheio de caprichos!...
Que fazer, que fazer? Por um erro alheio, devia ela sofrer durante a vida inteira?
E arrependia-se de amar Francisco, de o amar embora ele lhe tivesse dito que a amava... Ai, perdera a razão! Dedicar-se assim a quem a desdenhara, a quem só a apetecera depois que ela se tornara, graças à generosa protectora, uma rapariguinha elegante sem vislumbres de parecença com a ridícula prima da província chegada em certo dia já distante, a inocente prima da província que trazia como únicos bens roupas e coração fora de moda - um coração fora de moda por capaz de amar por Amor!...
No desagasalho da camisinha de cambraia, tremia cada vez mais. Doía-lhe o corpo de tanto frio e, impotente para se defender, sentia-se desorientada pelo tamanho da noite.
Anelando uma solução para o dilema terrível, desceu da cama e foi encostar a testa escaldante aos vidros humedecidos da janela. Aos poucos impunha-se-lhe uma certeza "tinha de sacrificar alguém...".
A Francisco? A Rui? A ela própria? Sim, a ela!... Renunciar aos dois e fugir, fugir para longe, para onde nunca mais fossem procurá-la... era uma ideia!... Mas... e que resultaria de tal facto? A incompreensão, o isolamento, a desdita irreparável.
Deveria condenar-se? Condenar-se quando lhe sorria a ventura? Ah, não, não faria tal coisa! Urgia ser corajosa e escolher entre ambos... Mas qual?
O combate ia-se alongando.
Fosse como fosse, dissesse a razão o que dissesse, Francisco era o seu amor, o sonho dos seus encantos, a visão quase irreal de uma existência radiosa... Mas, por muito que o coração egoistamente argumentasse, Rui não deixava de ser a dedicação, a garantia de um companheiro íntegro, o respeito ao dever, o rumo traçado pelas circunstâncias e a que não tinha o direito de virar costas.
A madrugada foi encontrá-la a chorar, perdida no seu infinito desgosto.
Para que falara Francisco, para quê? Ela viveria na dúvida e a dúvida ser-lhe-ia o sustentáculo da vontade. E talvez mais tarde, cheia de amizade e reconhecimento, pudesse entregar o coração a Rui, sem reservas. E depois, de novo o protesto da extrema juventude que não aceitava a renúncia! Desposar Rui afigurava-se-lhe uma traição. Ia levar-lhe em dote a sua adoração por outro e entre ela e ele erguer-se-ia a imagem dominante a cujo poderio ela talvez não soubesse furtar-se!
Vergava, dominada pela dor cruciante.
Por fim, a luz do alvorecer restituiu-lhe o ânimo e, dissipando as trevas, permitiu-lhe que se decidisse. O raciocínio voltava a trabalhar e ditava-lhe a conduta a seguir. Tudo nela foi sendo claridade. Resignou-se. E, quando se resignou, serenou, ficou aliviada, sorriu palidamente à imagem de si. O pesadelo findara. Apenas, a recordá-lo, um grande cansaço que lhe entorpecia os membros e o cérebro.
Voltou para a cama. Aninhou-se, puxou o almofadão para melhor ajeitar nele a cabeça extenuada e deixou-se envolver pela piedade do sono.
Pronta para sair!
Ficava-lhe mesmo bem o vestidinho verde que infantilizava a silhueta franzina, firme nos sapatos de meio salto.
92
Grandes, deslumbrantes, no rosto delicioso apenas os lindos olhos mais do que nunca sonhadores falavam do mundo ulterior, rico de sensibilidade e afectos que se albergava na alma daquela rapariga decidida perante a visão da encruzilhada que se lhe abrira na frente exigindo-lhe uma escolha em que ela verdadeiramente não contasse. E não contaria.
Cecília resolvera, pensando que não devia complicar a vida dos outros. E resolvendo sentira-se pacificada, capaz de apreciar o perfume das flores e o canto dos pássaros que a envolviam àquela hora do meio-dia. Na verdade tudo se afigura simples quando o sol aquece a vida e a veste de roupagens altruístas,
Estugava o passo, em direcção ao portal e ao jardim que lhe ia facultar a rua, quando uma voz alegre a deteve.
- Ó menina-sorriso, onde vai? Voltou-se, acolhedora. Do topo da escadaria, Rui vinha descendo para ela.
- Olá!...
- Bom-dia, Rui.
- Onde vais?
-Ao... Cabeleireiro.
- Não preferes dar uma volta comigo? O dia está esplêndido!
Ela esquivou-se fugindo a demoras que lhe retardassem o plano arquitectado, ansiosa por consolidar o que era, afinal, o futuro de ambos.
- Não me convém nada...
-Mau!... Não irás atraiçoar-me?...
Dissera a frase rindo, mas Cecília empalideceu de tal maneira que o noivo receou tê-la ofendido.
- Oh, Cilita, não te zangues!-implorou. - Olha que foi uma brincadeira!... Aliás eu também tenho que fazer.
De transtornada que ficara, Cecília nem se lembrou de lhe perguntar para onde se dirigia ele e pedir-lhe que a levasse. Disse-lhe um vago adeus, um adeus precipitado, e afastou-se imediatamente, desaparecendo além do portão.
E o táxi que não demorou a encontrar breve a deixou à porta da moradia de Francisco de Salves. Diante da residência com as gelosias todas descidas, ela teve uma derradeira hesitação. Porque fora ali, ali, naquela mesma casa, que um rapaz orgulhoso zombara da sua humildade. Fora ali que a dor se lhe apossara da alma uma vez mais com a morte daquela prima generosa e encantadora. E ali ele trabalhava fora das horas do hospital, de consultório... Aquela hora, normalmente, no escritório, punha ele a correspondência em ordem. Escrevendo junto à fotografia de Isabel...
À lembrança da noiva de Francisco, desvaneceu-se-lhe a última hesitação. Premiu a campainha. Transpôs a porta quase logo descerrada e cumprimentou a criadita que foi efusiva a saudá-la. E logo soube que efectivamente Francisco estava em casa. Logicamente, pela natural intimidade havida, não precisou de qualquer introdução. Foi por ali fora. Até ficar imóvel, no limiar do aposento fitando o primo com uma expressão bem contrária à das intenções com que se decidira àquela visita.
Francisco, que dera fé do abrir da porta e não ouvia coisa alguma, ergueu os olhos e, num impulso, sem reflectir, aceitou o inimaginável como realidade que ultrapassava, cumulando-os, todos os seus anelos. Levantou-se, avançando para Cecília, cingindo-a ao peito não obstante o movimento de recuo dela e até a resistência do seu corpo hirto. Francisco não dava por nada, sabia apenas que ela viera ao seu encontro e desvairava de paixão.
- Cecília... Cecília! Oh, meu amor, meu amor!
Ela vacilava nos braços dele. A bela resolução tomada, tão enérgica e sensata, corria perigo, sacudida pelo bater precipitado do coração enamorado. No entanto esforçava-se por libertar-se do amplexo violento que a desorientava com o primeiro badalar de uma alegria desconhecida:
- Francisco... deixe-me!... Deixe-me!-e implorava-o num tom desolado - penara tanto para conseguir uma ideia salvadora e ei-la a ruir! E se Francisco olhasse a expressão com que ela procurava libertar-se, notaria que o semblante da mulher a caminho da sua própria realização não costuma exprimir tristeza...
- Deixe-me, Francisco, deixe-me!
Mas ele, estonteado, sem medir os gestos, ergueu-a do chão, levou-a pelo ar e foi sentá-la em cima da secretária, aprisionando-lhe as mãos pequeninas, cobrindo-lhe o rosto de beijos, tartamudeando:
- Como estás linda, meu amor!... Como és linda!... Amo-te!... Adoro-te!...
Atordoada, desesperada, entre o desvario e a repulsa, Cecília continuava a tentar repeli-lo.
- Deixe-me, Francisco, deixe-me explicar-lhe...
Ele não queria ouvir nada.
- Explicar-me? Mas o quê, meu bem? Uma vez que vieste, tudo se torna claro, evidente... Dás-me o teu amor, dás-me a tua vida, dás-me a tua alma, a tua ternura, os teus sonhos, a tua mocidade onde palpitam a beleza e a graça. Pode haver alguma coisa mais importante do que esta afirmação incomparável? Que mais queres explicar-me? Depois do que eu te disse, ontem, aguardava a tua resposta... e ei-la, ei-la!!!...
As frases ardentes, de um sabor desconhecido, que eram pronunciadas sobre os seus lábios assustados, iam-se ampliando na alma que as recebia ávida...
Ah, Rui nunca saberia amá-la assim, nunca!... E no entanto era a ele que entregaria o tesoiro enaltecido por Francisco a sua pessoa, cheia de mocidade, de sonhos, de ternura...
Rui! Lembrando o noivo, cujo sorriso meigo a enlaçava toda num desejo infinito, despertou-lhe em sobressalto a consciência e, num movimento súbito, conseguiu afastar-se de Francisco.
- Deixe-me!... Não foi, por isso que vim!... -.Não? Então que te trouxe?...
- Nada do que pensa! Nada do que julga! - e era num grito que lho afirmava,
Francisco segurou-a de novo. Pousou-lhe a mão na testa e, inclinando-lhe a cabeça para trás, debruçou-se sobre ela, fitando as pupilas desvairadas mas irresistíveis!
- Porque vieste, então? Porque, meu amor?
E no olhar que trocaram o primeiro em que livremente se contemplavam, pleno de promessas e confissões, foi-se-lhe a ela a coragem, foi-se-lhe a ela de vez a resolução e não pôde e não quis mais fugir à ventura sem par que se lhe oferecia.
Agarrou-se a ele como se de repente tivesse medo de que algo lho levasse ainda. E o que conseguiu dizer-era tão desatinado como o que fazia.
- Vim... vim para te pedir, Francisco, que não fales do nosso amor a ninguém! Não quero que ninguém saiba!...
E Francisco não entendia as razões que impunham o segredo, mas aceitava tudo, tudo, porque recebia e se dava! E junto à boca dela, aderiu:
- Não falarei, querida, não direi nada e hei-de amar-te guardando-te, escondendo-te, para que sejas eternamente minha. - e jurou-lhe felicidade num beijo que não chegava ao fim.
Com mão nervosa, Rui travou. Fugira-lhe a boa disposição das horas matinais.
Perseguia-o uma visão constante, que o preocupava e da qual, embora a reconhecesse ilógica, não conseguia desfazer-se. Por mais que o tentasse, procurando recordações, saboreando ideais, sabia atormentar, a importuna.
Inquietavam-no as atitudes de Cecília! Sentia-a vacilante e indecisa, furtando-lhe os olhos e os lábios, esquivando-se a todas as expressões de amor, evitando-o sempre que podia. Chegava a persuadir-se de que ela não lhe queria bem, caminhando para ele por qualquer motivo alheio a todas as ordens do coração. E no entanto a Mãe garantia-lhe que a noiva o adorava... E eram, de facto, tão leais os olhos magníficos que raramente conseguia fitar!... Uma verdade imperava - ela desposá-lo-ia! E a essa certeza logo um sorriso lhe desanuviava o semblante.
Ao calor do afecto que lhe transbordava da alma, as reservas haviam de fundir-se e a meiga Cecília, agora tão esquiva, tornar-se-ia na mais adorável das companheiras na barca da vida...
Pois se ele a amava tão fervorosamente! Depois do mar, Cecília era a sua maior paixão! Depois? Antes, antes, antes, e acima, acima, acima...
Tantas mulheres conhecera, mulheres estonteantes como um charuto havano (fumo que se esvai e nem recordações deixa), misteriosas como sonhos de ópio (que se esquecem com tédio), profundas como os tenebrosos mares (que na alma deixam eterna sensação de pavor); tantas mulheres haviam desfilado na sua vida errante e aventurosa e nenhuma soubera fasciná-lo como essa rapariga ingénua que nada fizera (nem fazia) com o intento de seduzi-lo!
Na realidade em Cecília via ele a sagração da eleita a quem se entrega o lar e os filhos pequeninos...
Os filhos pequeninos!... Os filhos pequeninos, os filhos a crescerem, os filhos crescidos, a vida inteira lado a lado. E não duvidava mais do amor de Cecília, perante essa esperança-promessa-ideal chamada futuro - chamada família! E idealizava a jovem mamã toda vestida de branco, sentada numa poltrona embalando nos braços o primeiro bebé que ele iria adorar de joelhos...
Sorriu ao lirismo da própria quimera. E por ela animado, desmaiava-lhe o desassossego.
Já tranquilo, desceu do automóvel, trancou a fechadura, lançou rápida olhadela para a moradia do amigo e tocou à campainha. A criadita que logo abriu confirmou que sim, que o Sr. Dr. estava em casa, mas com visitas. Ele disse que esperava. E ficou aguardando na sala contígua ao escritório. Primeiro distraído, contemplando quadros e fotografias suas conhecidas de garoto. Depois, inesperadamente, estremecendo e enrugando a testa. Nos timbres das vozes que lhe chegavam aos ouvidos parecia-lhe reconhecer certa fala bem familiar e bem estremecida... Mas admitiu imediatamente o impossível. Não se rendia a evidências. Existem tantas semelhanças, tantas!...
No entanto, recomeçava a sentir-se enervado e, enervado, pôs-se a passear em frente da porta. Conscientemente, não procurava escutar. Apenas, de cada vez que a voz feminina soava, se lhe perlava a fronte de suor...
E, de chofre, o que era dúvida tornou-se numa certeza total! Cecília estava ali, a dois passos dele, conversando com um homem! E nem por um segundo reconsiderou que esse homem era Francisco de Salves, o único parente que restava à órfã!
Numa vaga tremenda, imperiosa, o ciúme dominou-lhe a razão, as inquietudes duplicaram e, irreflectidamente, avançou e escancarou a porta do escritório. E o seu vulto dominador apareceu aos dois namorados como lancinante exprobação ao beijo que naquele exacto momento os unia.
Os cataclismos desencadeiam-se inopinados, terríveis, e esfrangalham universos, dispersando-os em ruínas.
Rui não deu um passo. A dor, o assombro, elevados ao paroxismo, paralisavam-lhe os movimentos. E somente a fixidez do olhar, numa pressão de inconsciente ameaça, flagelava o parzinho amoroso.
Absolutamente alheio à situação real que despedaçava aqueles dois seres, Francisco permanecia sorridente, atribuindo decerto o grito que Cecília não pudera evitar à simples revolta da sensibilidade atingida. Mas a expressão de Rui surpreendeu-o de tal modo que foi com inesperado constrangimento que lhe estendeu a mão.
-Devias ter batido! Compreendes que não esperávamos ninguém...
Na fisionomia do oficial, uma terrível serenidade. Apenas os olhos, que principiavam a traduzir um sofrimento enorme, trespassavam a pobre Cecília que renunciava a explicações, fossem quais fossem, deixando-se esmagar pela situação lamentável.
Finalmente, os lábios de Rui movimentaram-se e, numa voz rouca, ele pronunciou algumas palavras que se esforçou em vão por impregnar de ironia, tanta dor revelavam.
- Fui então indiscreto?
Cecília, de rosto entre as mãos, chorava. Chorava um choro sentido de criança abandonada. Que tempestade na sua vida!
Pressentindo já que havia qualquer coisa de estranho, de anormal, em tudo aquilo, Francisco ficou sério, encarando o amigo.
- Indiscreto? Não te compreendo!
Rui encontrou os olhos dele, leais, e riu sarcasticamente.
- É fácil elucidar-te. Encontrei-te a beijar a minha noiva...
- Noiva? Como noiva? A Cecília é tua noiva? Perplexos, incrédulos, com mais angústia do que ódio, os
dois rivais encaravam-se. Sentiam-se sinceros, verdadeiros, ambos vítimas da mesma fraude - haviam sido ludibriados! Cecília, aquela Cecília de ar cândido, tecera um ardil ousado, criminoso, e o acaso desmascarara-a! A inocente, a simples, a doce criatura, não passava de uma aventureira!
Esmagados pela evidência que se lhes deparava, inegável, sem necessitar de palavras para ser entendida, baixaram ambos as cabeças.
Vagaroso, Rui foi o primeiro a estender a mão.
- Desculpa... - murmurou. - Parece que não és responsável pelo que sucede...
- Não, não sabia!... Juro-te que não sabia! - afirmou Francisco, sob o império de um surdo rancor.
- Acredito-te!
E ficaram silenciosos. Ambos amavam e sofriam. E tanto mais quanto o anjo sublime que encarnava os seus ideais se despenhara pelo turbilhão das infâmias.
Foi Rui, o audaz marinheiro habituado a erguer a voz por cima do fragor das procelas, quem, recobrando o à-vontade, interpelou a rapariga. Rispidamente.
- Cecília, quererás explicar-nos o teu procedimento inqualificável? Desejas casar com os dois?
Ela destapou as faces cheias de lágrimas e marcadas por uns semi-círculos sanguíneos, vincos das unhas flageladoras. Tremiam-lhe os ombros, os soluços abafavam-na. Era toda ela um gemido que se tornara matéria. Oh! Quisera recuperar a calma, gritar a verdade - a Verdade que era nobre!-.explicar o drama do seu coração, mas não conseguia justificar-se. A garganta recusava-se-lhe a articular sons que ultrapassassem um débil protesto "não... não... não...".
Os dois homens, ambos enamorados, vendo-a assim experimentavam no mesmo impulso o desejo de correr para ela, de a cobrir de beijos, estancando-lhe o pranto com mil promessas de perdão. Mas esse mesmo gesto espontâneo, que esboçaram, deu-lhes a confirmação da duplicidade da rapariga e quedaram-se, dominados pelo justo ressentimento.
Francisco recobrara já a personalidade altiva, esmagadora, incapaz de ver até que ponto haviam sido precipitados e pouco dignos os seus próprios actos. Mostrou-se inplLacável, sustendo a voz do amor em fria reserva.
- Lamento que seja minha prima, Cecília. Isso ímpede-me de a tratar como devia. Não compreendo o móbil dos seus actos... a não ser que veja neles o intuito de acorrentar dois cavalos ao fogoso trem de um capricho. Iludiu-me bem iludido. Reconheço agora que os meus pressentimentos não me enganavam ! Pois saiba que tenho carácter e não me presto a calculadas fantasias. vou deixá-la com o meu amigo, para que ele possa agir como entender!
Cecília cambaleou. Fora de facto Francisco quem assim falara? Francisco por causa de quem tudo aquilo sucedia?! Ah! Mas deixassem-na primeiro defender-se!... Estava inocente, viera por bem, tinha a culpa única de amar, de amar há muito... desde sempre! E tinha mais a de ser afectuosa e grata! Ai, porque não preferira deixar que sofressem Rui e Dona Matilde? Se não tivesse decidido sacrificar-se-lhes, não padeceria agora o suplício de se ver desprezada por esse que adorava...
Não!... Não podiam acusá-la assim! Estava inocente e era joguete de um crudelíssimo destino!
Viu Francisco dirigir-se para a porta, abri-la e transpô-la. Chamou por ele, desatinada.
- Francisco!
Mas Francisco desaparecera. Diante dela, só Rui. E então, numa fadiga infinita, sem alento nem esperanças, desejando tornar-se em nada, leve pó que não sentisse e não sofresse, Cecília deixou-se cair numa poltrona, chorando livremente.
Sucumbido, Rui olhava-a e, num fio de voz imensamente pesaroso, lamentou-se:
- Oh, Cecília!... Não poder confiar em ti! Porque fizeste isto? Porquê?
Ela estremeceu. Adivinhava que o oficial devia esperar uma súplica, uma frase de desculpa. Mas... pedir perdão? De quê? Se era a maior vítima de todo aquele equívoco! E ao vê-la de tal modo acabrunhada, Rui não resistiu - teve inesperadas palavras de conforto.
- Cecília, eu talvez consiga esquecer e recomeçar... Cecília, com o tempo, isto pode deixar de ter importância... se tu quiseres ajudar...
Mas ela sentiu na oferta apenas um insulto. E, na revolta de todo o seu espírito amargurado, soluçou:
- Não, não quero!... Porque não devo continuar nesta mentira que mantive por bem e só nos fez mal! Me fez mal!... A mim!!!
Matilde de Montesilva fitava-os incrédula, assombrada.
- Quê? Resolveram... não casar? - titubeou por fim, como se não tivesse a certeza de estar desperta e senhora das suas faculdades visuais e auditivas. - Foi o que disseste, Rui ?
- Foi, sim, Mãe. Resolvemos não casar. - e a voz dele martelara as sílabas com estudada frieza.
- Mas porquê? Porquê, santo Deus? Rui encolheu os ombros.
- Porque cheguei à conclusão de que me custa imenso abandonar a minha carreira. Era-me doloroso renunciar à Armada, ao mar... Há tão pouco tempo ainda em terra, já sinto a nostalgia dos horizontes! Era inevitável, tornar a partir. Não conseguiria manter as promessas feitas, por superiores às minhas forças... E Cecília, pelo contrário, temendo os perigos e o desconhecido, não aceitaria as constantes e longas separações. Daqui surgiriam os choques, os conflitos, as exprobações, as vontades opostas, logo o desentendimento. É tempo de remediarmos isto. Mais tarde, seria um autêntico desastre. Agora, uma medida de prudência. Aqui tens, Mãe, o motivo de retomarmos a nossa mútua liberdade!
À medida que falava, ele ia-se animando e, inesperadamente, sentia que estava dizendo grandes verdades! A desculpa engendrada tornáva-se uma revelação - os argumentos apresentados tinham um fundo real!... Por isso, tranquilo, não negava as pupilas à muda interrogação da Mãe. E quase ficou satisfeito de se ouvir a si próprio livrando a alma do amor que perigosamente lhe cercearia as asas.
Aniquilada perante o desabar do seu lindo castelo de ventura, Dona Matilde encarou Cecília.
- Estás efectivamente de acordo com as razões do meu filho? - e havia tanta amargura nesta pergunta, que a mesma temerosa comoção de meses antes invadiu a alma generosa da rapariga. Tão simples, desfazer aquela mágoa! Mas lembrou-se a tempo de que na base de todo aquele desgraçado mal-entendido se achava a sua própria bondade, a sua capacidade de apiedar-se, e logrou forças para encarar a amiga e responder serenamente:
- Sim, o Rui decidiu com acerto. É melhor assim. A pobre senhora suspirou.
- Seja...-murmurou. - Não recrimino ninguém. Continuarei a viver como dantes.
O filho, como se não pudesse aguentar aquele pesar sem remédio, beijou-a e saiu sem olhar para trás.
Matilde de Montesilva, meditativa, pressentia no entanto que a realidade dos factos não devia ser a que lhe fora revelada. Era impossível que Rui mais amasse ao mar do que a essa linda rapariga. Mas... mas qual o motivo autêntico que ensombrava a expressão de Rui e enchia de lágrimas o olhar de Cecília?
Abriu os braços à rapariga.
- Vem cá, Cilita. Vem cá e conta-me tudo. Tudo!... Não te esqueças da nossa combinação. Somos Mãe e filha, hoje e sempre!
E Cecília não resistiu à tentação de se refugiar naquele seio acolhedor e de lhe confiar o seu desgosto. Ajoelhou-se, poisou a cabeça no regaço da amiga e, soluçando, abriu-lhe a alma numa confissão espontânea e total.
- Perdoe-me!... Perdoe-me tê-la enganado!... Foi a gratidão que me impeliu a aceitar a mão de Rui! Eu não o amava...
- e da sua boca febril jorrava a confidência, luminosa de sinceridade. - Fui ter com o Francisco para lhe explicar que estava noiva do Rui e pedir-lhe que não levantasse problemas nem referisse o amor que há pouco ainda me havia revelado... quando... quando o Rui o procurasse para lhe falar do nosso casamento... Eu... eu estava lá... e o Rui chegou... e o Francisco não me ouvia... julgava que eu estava lá porque o aceitava... Um horror, tudo! Um horror!!!... E os dois a pensarem o pior de mim!...
Dona Matilde, de pálpebras cerradas, afagava-lhe os cabelos e, ouvindo-a, ia recordando coisas passadas. Revia Cecília naquela tarde, no consultório, muito pálida, muito hesitante... E o noivado dela com Rui, pouco expansivo, como que tímido... E ia ainda mais atrás - lembrava-se das reservas de Francisco de Salves e da tristeza da pequena... e compreendeu tudo e admirou-se de não ter sido mais clarividente!... Agiria de outra forma... e quantos dissabores evitados!
O seu coração, egoísta e inconsciente, fizera-a actuar ao sabor de uma deliciosa fantasia, julgando-se no rumo certo. E o destino contrariara-a, não aceitando o sacrifício da rapariguinha...
Cecília calara-se, restos de pranto nas faces descoloridas. Ternamente, com um lencinho de cambraia que tirara da algibeira do vestido, Dona Matilde enxugou-lhe o rosto, murmurando :
- Pobre filha!... Afinal, em tudo isto, só existe uma culpada - eu! Eu, que pretendia organizar as vidas à minha feição, quando afinal ninguém se liberta dessa misteriosa influência que rege a fantástica comédia humana, a todos distribuindo papéis a que não podemos furtar-nos, tão naturais se nos deparam e se apoderam de nós... Fui louca de todo! Aumentei o afecto do meu filho por ti, afecto que poderia ter-se limitado a forte simpatia, singela mas duradoira. Não soube ver que... que tu guardavas no peito um amor justíssimo!... Não me queiras mal, querida Cecília! Para castigo das minhas ousadas ambições creio que basta a punição do meu arrependimento...
Cecília abraçou-se à triste senhora, numa explosão de amizade. - Oh, Matildinha, não me fale assim!... Devo-lhe tanto, tanto!... E se soubesse como eu gostava de poder amar o Rui!...
- Pois até acredito. mas o maroto do coração nunca obedece às nossas vontades e razões! Quando ele QUER, emancipa-se, torna-se independente e é forçoso deixá-lo à vontade... Um grande obstinado - o coração!...
Sorria. Heroicamente, esforçava-se por recuperar o bom-humor costumado, desejosa de reparar aquela situação falsa, restituindo a Cecília o semblante desanuviado das horas certas. E logrou, com aquela declaração, ver secos os luminosos olhos, pelo que então, levantando-se resoluta, prometeu animadamente :
- Cilita, vamos remediar tanta tolice junta! A minha menina tem direito à felicidade e há-de alcançá-la!
Descrente, Cecília abanou a cabeça.
- Será difícil!... O Francisco não sentia nenhum amor por mim. Se sentisse, não me falava como falou, sem reconsiderar. ..
- Oh, meu Deus, que ingenuidade!... Os homens são todos uns exaltados! Feras bravias, indómitas, guerreiras, a mão feminina precisa de leveza e arte para as dominar... Vamos procurar esse Francisco e...
Mas Cecília protestou - embora se lhe divisasse no tom da voz o desejo imenso de que a persuadissem do inverso:
- Oh, não! Não sou capaz de humilhar-me, tanto mais que a minha consciência está serena. Nunca irei procurar o Francisco. Nada fiz que merecesse o desprezo com que me falou! Sinto-me muito magoada e...
- E tens motivos de sobra!-corroborou Dona Matilde, abraçando-a com transporte. - Por isso é que ele te há-de pedir desculpa! Ele e o Rui!... Ambos, cada um à sua maneira, claro...
Presa de funda agitação, Cecília discordou:
- Desculpa, minha querida amiga, desculpa não!... Eu fi-los sofrer tanto! Só queria que me não detestassem!...
E Matilde sorriu, enternecidamente:
-Mas, querida, ninguém detesta um anjo!...
- Asseguras-me então que a Cecília não procedeu mal?
- Já to disse, Rui!
- Levava-a ao consultório do Francisco apenas o desejo de pedir-lhe que renunciasse a ela?
Apertando o casaco, já pronta para sair, Dona Matilde poisou no filho o olhar reprovativo.
- Já te dei todas as explicações! Julgo que não duvidas de mim?...
Ele respirou fundo, contrafeito, sem responder. E a Mãe prosseguiu:
- Ainda te recordas certamente do que me confidenciaste quando Cecília recusou aceitar-te. Lealmente, ela disse-te que não te amava, creio... Fui eu que, apelando para o seu coração afectivo e para não te ver desgostoso, praticamente a forcei ao noivado. Daí provieram todas as complicações. Sabes? Essa rapariga é talvez excessivamente bondosa.
Desanuviou-se um tanto o semblante do oficial. Na verdade ele preferia a tudo a convicção de que Cecília não era culpada da duplicidade entrevista. Trocaria possíveis esperanças pela certeza de que essa que amava ficaria sempre intocável nas suas recordações.
- Compreendo, Mãe. - murmurou por fim. - E acredita que, sendo assim, sinto um verdadeiro pesar em ter melindrado a Cecília.
- Consequências de juízos precipitados!...
- Consequências de uma enorme frustração. Eu amo-a sinceramente... E vale-me a paixão do mar para poder reagir.
- Partes, de facto?
- Não pode deixar de ser! vou entregar-me de novo ao meu grande companheiro... Ele há-de embalar-me a decepção e curar-me o desgosto. Não tenho de esquecer uma perfídia, o que seria lamentável! Irei esfumar um sonho lindo, o sonho de um marinheiro em terra...
Furtivamente, Dona Matilde enxugou duas lágrimas indiscretas.
- Ouve, meu filho... a Cecília desejava que não ficasses a querer-lhe mal...
-Não fico! Quando me vier a tentação de recriminá-la lembrar-me-ei de que ela esteve a ponto de me sacrificar a sua própria felicidade.
- E daí... quem sabe? Podia vir a ser bem venturosa junto de ti...
- Não alimentes ilusões, Mãe. Ela lamentar-se-ia sempre de por mim ter renunciado ao verdadeiro amor... O amor só vale para nós quando o sentimos. Que interessa que nos amem, se o nosso coração não palpita, se a nossa alma não vibra? Que importa que nos queiram, se tudo em nós é refractário ao desejo que se esboça e não se acolhe?
Erguera os olhos numa expressão contemplativa e, nessa posição melancólica, a Mãe achou-o ainda mais belo do que habitualmente... Ah! O gosto das raparigas é muito estranho... Mas, fiel à promessa feita a Cecília, venceu as recriminações e de novo abordou o assunto difícil.
- Rui, gostava que lhe oferecesses a tua amizade sincera... Ele enrugou a testa.
- Oh, Mãe! É difícil estimar a mulher que se amou! O ciúme devora-nos a sensibilidade, a mágoa fere-nos... Mais tarde, mais tarde poderei talvez, sem rancor, apertar a mão dessa que não quis ser minha!
Dona Matilde fitou-o a direito.
- Sempre embarcas para a tal missão de estudos?...
- Sim. Capitaneá-la-ei. Durará cinco anos, por todos os mares. Quando regressar, com certeza serei de novo livre...
- No entanto, Rui - insinuou Dona Matilde -, quantas raparigas seriam felizes se as elegesses!... Podias casar com outra e ficar em terra...
- Não! - protestou ele com veemência. - Da minha parte, semelhante atitude representaria uma cobardia. Para meu conforto, desposar uma pobre rapariga sequiosa de afeição e crente em mim?... Que tormento para ela! Eu seria sempre banal, indiferente... se a não detestasse, se a não desprezasse, na comparação com outra! No futuro, quando esta dor for apenas saudade, então pensarei no meu lar. Voltarei a amar. O amor não acontece uma só vez, penso... Simplesmente é sentido de formas diversas! O amor-ilusão, amor-ternura, amor-alma, amor-adoração, esse não voltarei a conhecê-lo. Mas talvez me vença o amor-dedicação, o amor-repouso, o amor-vontade...
Calou-se, como se escutasse o som profético das próprias palavras. Depois poisou a mão no braço da Mãe, como pedindo-lhe que não o entristecesse mais com a própria tristeza...
Dona Matilde apoiou o rosto no largo peito do filho.
- Parte, vai então, meu querido! Será essa a cura, e eu quero ver-te bom! Mas não te esqueças, lá longe, de que a tua Mãe, doravante, terá apenas um pensamento - rever-te antes que a morte chegue. Parte, mas volta logo que possas.
- Voltarei, Mãe, e voltarei sem risco de cobiçar a mulher do próximo... - gracejara, e a Mãe sorriu. A Mãe sorria. E ele, Rui, era agora quem sentia vontade de chorar.
Para subir aquele primeiro andar, Dona Matilde quase recobrara a ligeireza antiga, a ligeireza que devia resignar-se a ir perdendo aos poucos e cada vez mais... Inevitavelmente.
A campainha que a porta de vidro ao ser aberta fazia soar, chamou a atenção da empregada que, vendo surgir aquela elegante senhora de meia idade, se ergueu mais curiosa do que atenciosa.
- Que deseja V. Ex.a?
- Falar com o Sr. Dr. Francisco de Salves.
- O Sr. Dr. não atende ninguém.
- Não atende ?
-Não, minha senhora. Cancelou todas as consultas e deu ordens para não ser importunado.
- Ah, bem... -e perguntava a si própria se a interdição a abrangeria. Na dúvida, resolveu insistir. - Em todo o caso, queira entregar-lhe o meu cartão de visita. - e tirava da carteira o bilhete esguio, aristocrático.
- É inútil, minha senhora. O Dr. Salves tem sido inflexível. - e voltou a sentar-se como pessoa importante que tem a obrigação de sacudir os maçadores.
Matilde de Montesilva quedou por momentos estupefacta da atitude e depois, reagindo, afastou-se, foi direita à porta do consultório e bateu nela duas pancadinhas - a assombrada zeladora dos interesses do Médico nem teve tempo de interferir. ..
Quem é? - perguntou de dentro uma voz alterada.
- Sou eu, Francisco. A Matilde.
Durante segundos - os que mediaram entre o arrastar de uma cadeira e o ruído da chave dando a volta à fechadura Matilde de Montesilva receou o acolhimento. Mas Francisco acabava de surgir no limiar e estendia-lhe a mão sem reservas que a magoassem.
- Por quem és, desculpa-me, Matildinha! Vens encontrar tudo numa enorme desordem...
A Mãe de Rui entrou, sentou-se na poltrona que Francisco, solícito, puxou para ela, e perscrutou o ambiente. Em cima do tapete, duas malas ajoujadas de livros e utensílios diversos denunciavam rápidos preparativos de viagem.
- Para onde vais, Chico ? - indagou sem a mínima hesitação.
- Para os Estados-Unidos. Há bastante tempo que pensava numa especialização e surgiu-me agora a oportunidade...
- Ah!... - e ficou silenciosa. Sentia-se observada e procurava a maneira mais airosa de abordar o melindroso tema que ali a conduzira. Decidiu-se a uma sondagem.
- Tens péssimas recordações da minha última visita, não é assim, Francisco?
O rosto dele crispou-se.
- Não. - respondeu friamente.-Absolutamente nenhumas.
- Mas... fui eu que induzi a tua primita a sair daqui...
- Por favor, Matilde! Não falemos desse assunto... É preferível. - e num gesto seco atirou para cima da secretária um lápis que havia quebrado entre os dedos.
Matilde mudou de táctica.
- E partes... casado ou solteiro?
- Como casado?...
- Acaso a Isabel não estará ainda farta de esperar por ti?... Zombeteiro, ele redarguiu:
- O nosso casamento desfez-se. Aborrecemo-nos um do outro e ela tenciona casar brevemente com o Pires de Azevedo. Não faltam pretendentes às raparigas modernas... quer natas, quer adaptadas.
Matilde de Montesilva simulou não perceber o alcance da alusão e meneou a cabeça, aprovativamente.
- Olha, dou-te os meus parabéns, porque vocês não eram um para o outro. A Isabel afigurou-se-me sempre muito desmiolada...-e em jeito de comentário: - Ora tu vais partir, Lá nos dispersamos todos outra vez!... Cada um para seu lado...
- Como?
- Então não sabes que o Rui embarca dentro de dias ?
- Embarca ? - e na voz do rapaz vibrou amarga entonação. - Viagem de núpcias ?
Matilde fez-se desentendida.
- De núpcias? Não, de carreira! Mais alguns anos no mar, Francisco!
- Ah?!...
- Eu e a Cecília, no fim do mês, iniciamos uma volta pelo mundo. Talvez acabe em Nova Iorque e, se lá estivesses, seria agradável que nos encontrássemos. Gostava que me deixasses a tua futura direcção!.
Agora já Francisco não podia dominar o sobressalto, encarando fixamente Matildinha. Escaldava-lhe os lábios uma interrogação que não ousava formular. "a Cecília vai viajar contigo?...". A todo o transe, queria evitar interessar-se por essa que tanto amava... Mas o coração triunfava sobre o raciocínio, a verdade abafava a hipocrisia e a pergunta escapou-se, mais completa.
- A Cecília vai viajar contigo? Mas... nesse caso?... Então Matildinha poisou nele os olhos afectuosos e explicou
lealmente:
- Já compreendeste, decerto, que vim com a intenção de te falar nela...
- Não... não vale a pena...-e resmungou-o com falsa negligência. - Essa rapariga foi uma preocupação de que não tínhamos necessidade...
-Mas não podemos desampará-la!
- Não entendo... Falei com o Rui, expliquei-lhe o que sucedera...
- E o Rui decidiu ceder-lhe a ela o direito de ser feliz! Ouve, Francisco! - e Dona Matilde, ansiosa por dizer o que pensava, acrescentou: - Não estejas a fingir-te céptico e não faças da tua alma anelante de amor uma cadeia de falsos preconceitos. Atende... -e a boa senhora referiu largamente quanto sucedera explanando o cruel dilema imposto a Cecília. Francisco escutava-a de cabeça baixa e, aos poucos, o sorriso agro foi amortecendo numa expressão absorta.
Percebendo enfim que Matilde de Montesilva lhe contara quanto sabia acerca dos factos ocorridos e aguardava dele uma resposta, proferiu, ainda um tanto indeciso:
- Dizes que a Cecília veio aqui na intenção de me revelar que estava noiva do Rui, que ia desposá-lo pela gratidão que lhes devia e... e disposta a pedir-me que a esquecesse?
- Sim, é isso! É isso sem tirar nem pôr. Acreditas-me, não? A Cecília não tem formação para cálculos perversos e eu não estou senil... - e examinava-o, estranhando que Francisco não manifestasse qualquer alegria pela revelação.
Ele compreendeu-lhe a perplexidade.
- Desculpa, minha querida amiga, o eu não me mostrar satisfeito perante um esclarecimento que me abre o caminho da felicidade... Mas... mas existe uma dúvida, ainda...
- Outra?
- Sim, dúvida que aliás talvez seja fácil desvanecer. Se a Cecília me tinha amor, porque motivo se foi embora daqui, do meu consultório, onde lidava comigo dia a dia, hora a hora, momento a momento?... Porquê?
- Oh, Francisco! - censurou Matilde, com involuntária severidade. - Estás a ser inutilmente cáustico! Explica-me tu a razão porque, tendo a Cecília vivido à tua beira, dia a dia, hora a hora, momento a momento, não lhe ligaste importância e só te interessaste por ela quando a viste juntp de nós? Enquanto ela aqui permaneceu, entregue à tua guarda, à tua delicadeza, permaneceste insensível, não é verdade? E então? Que mais queres? A tua incredulidade indigna-me, sabes?
-Tens toda a razão, Matildinha, e podes falar-me assim! Mas... mas a verdade é que eu amo Cecília desde o primeiro instante! Figurinha apagada, encerrava para mim um sonho tímido de que me envergonhava... porque eu não queria ser sentimental! E no entanto queria-lhe cada vez mais! Adorei-a quando a minha pobre Mãe a transformou numa pretensa rapariguinha moderna; desejei-a quando ela foi a minha empregada desvelada, envergando o modesto uniforme branco. E quando ela partiu para junto de ti... senti desabar o universo! Mas resisti... Porquê? Porque um diabo dentro de mim não cessava de afirmar-me que essa rapariga certamente romanesca, depois de haver sonhado na sua aldeia com o príncipe encantador, viria a diligenciar prender-me, cativar-me, a fim de que eu o personificasse. E de que maneira me enganava deixando-me enganar... A Cecília foi sempre a mais simples das raparigas, a mais cândida, a mais alheia a todos os manejos da vaidade feminina...
- A mais enamorada...
-Mais perfeito se me revela o carácter dessa criatura virginal! Senhora de nobre sentir, não tentava forçar vontades. Não, não calcula! Não imagina! Ao reconhecê-la admirável, exultei... Mas havia o problema da Isabel! Repugnava-me ser desleal para com essa rapariga a quem prometera casamento, ofuscado por um estonteamento em que não queria acreditar. Aliás foi ela que me libertou declarando-se apaixonada pelo Azevedo...
- Uma sorte! - gracejou Matilde, fitando-o, comovida com a sinceridade dele, adivinhando-o secretamente venturoso de poder expandir em total confidência a alma deslumbrada.
- Sim... uma sorte enorme!
- Mas... porque não foste logo ter comigo e contar-me o que se passava?
- Porque temia que a Cecília não pudesse ter por mim senão a banal estima dos parentes afastados. E desejava conquistá-la... como outro rapaz qualquer, espontaneamente!
- Vocês complicam tudo! Afinal vem o destino, em duas sacudidelas, e põe as coisas em pratos limpos! - ergueu-se e estendeu-lhe as mãos, carinhosa. - Estamos portanto entendidos! Retiro-me descansada. Cumpri o meu dever... agora espero que respeites o teu!...
- Querida Matildinha... o amor manda!...
O navio iniciava a longa viagem.
Altivo sulcando as águas, sorrindo por todos os olhos - as vigias - a bambolear-se para que Lisboa, garrida e enfeitada, muitas saudades guardasse... Cada vez mais longe, na larga oscilação que anunciava a posse feita pelo sedutor oceano do seu orgulhoso corpo indiferente aos ardores da terra, partia na missão anunciada desde o primeiro vogar de um tronco de árvore...
Lá ia ele!...
Lisboa, cheia de luz e alegria, num brado amigo dizia-lhe "até à vista, meu belo!".
Dois meses após a partida de Rui, reapaixonado do mar, Dona Matilde recomeçava o povoamento da sua solidão, viajando...
Lá em cima, do grande paquete que se afastava lentamente, entre soluços e adeuses, a voz da bondosa senhora erguia-se num voto puro:
- Sejam felizes... sejam felizes... sejam felizes...
E o desejo formulado, rolando nas ondas do rio, vinha trazer aos ouvidos dos enamorados o anseio de todas as vidas felizes... felizes... felizes.......
Cecília, no cais, dorido o braço de tanto acenar, respondia, voz estrangulada pela emoção:
- Madrinha... saudades... saudades... - e era tudo! Naquela palavra imensa dirigida à querida amiga que os acompanhara ao altar, pairava todo o reconhecimento que lhe enchia a alma, presa do ideal.
- Saudades, madrinha, saudades...
Para ela, para o noivo da brisa marítima que partia sob as ordens do tempo para o futuro, para o passado... Tudo eram saudades de quem sabe amar e adora o Sol que dá realce às cores da vida.
- Saudades... saudades...
com um braço em volta da cintura da mulher, grato àquela a quem devia a realidade da sua ventura, Francisco repetia incansavelmente:
- Boa viagem! Boa viagem, Matildinha! Boa viagem! Até à volta!!!...
E o navio ia já muito longe, muito longe, levando Matilde de Montesilva e os seus últimos sonhos que talvez nada nem ninguém pudesse nunca realizar.
Era tempo de abandonarem o cais.
Enlaçada por Francisco, Cecília voltava costas à beira-mar, confiante no porvir, confiante na própria existência.
Para a distrair da sincera e justificada mágoa que lhe sombreava os olhos radiosos, cuja beleza tão bem aprendera deixando embalar nela o fogo da sua alma arrebatada, o Médico quis gracejar.
- Minha ilustre priminha da província... acaso sabe como vai bonita com esse ar nostálgico de rainha que perdeu o trono?!...
Ela sorriu, duas lágrimas nas pestanas, garganta apertada numa angústia que lhe não consentia resposta.
- Cecília... - murmurou então Francisco com invulgar entono de carinho. - Ergue para mim esse teu sorriso que é a luz da minha vida...
Ela obedeceu, mas para lamuriar invencivelmente:
- Pobre madrinha!... Haviam chegado ao automóvel.
Ele abriu a porta para que a mulher entrasse e foi, de roda, instalar-se ao volante. Antes de pôr o carro a trabalhar, prendeu-a pelos ombros, puxou-a para o peito e beijou-lhe a testa, afagando a linda cabeça que ela apoiava no ombro dele com soluço quase infantil.
- Francisco... tenho remorsos!... A pobre madrinha?!...
- Minha querida!
- Custa-me tanto ter feito sofrer alguém! Eu não queria assim... Para eu ser feliz, chorou a Matildinha... o Rui padeceu... A vida às vezes é cruel!...
Francisco fitou-a, muito sério, muito grave.
- Minha amada, escuta... Não censures a vida! Ela é assim, feita de leis estranhas que não podemos compreender e quase sempre têm bases definidas e espectaculares... A existência compõe-se de contrastes e actua alheia às nossas vontades. Tu bem o sabes! Depois das alegrias, vem a dor... No meio dos sofrimentos, baila a esperança. O amor gera o futuro e o futuro ameaça as paixões. A noite existe para que o Sol nos deslumbre. A tempestade reboa para fazer trabalhar as montanhas das quais brota a fonte que há-de ser rio. A vida nasce da morte... e a morte é a direcção da vida. Não lamentes nada, meu bem. Vive sem cuidados o teu presente. És uma flor tão pequenina sobre a terra... -e agitado por desconhecida força poética, inebriado por poder confortá-la, prosseguiu, eloquente: - Altos desígnios, incomensuráveis e ignotos desígnios prepararam o caminho que os nossos corações deviam trilhar. Não sabemos o que trará o dia de amanhã. Mas para que a lei universal das compensações seja eternamente inabalável, se nalgum momento sofrermos restar-nos-á a recordação destas horas de maravilha em que o nosso amor é, para nós, a única verdade na natureza inteira!
Silenciosa, embevecida, escutando religiosamente essas palavras impregnadas de um torn vago de mistério que lhe adormentava todos os receios, ela ficou a contemplar no rosto amado a imagem da sua própria felicidade. Depois, a sorrir, murmurou:
- Francisco... como é que eu, a simples e ingénua provincianazinha, consegui o teu amor?
Ele, soltando-a do amplexo em que a estreitara, pôs o carro em andamento e só uns minutos decorridos, parecendo um pouco perplexo, declarou:
- com certeza foi para te compensar dos passados sofrimentos que Deus te destinou o meu amor... E tu, querida, que és para mim, não a luz dos meus olhos mas os meus próprios olhos que, sem ti, não conheceriam o encanto da verdadeira pureza, apareceste-me, sabes para quê?... Sabes para que é que Deus me concedeu o teu coração, cofre lindo onde vivem recolhidas a singeleza e a dedicação? Para me compensar das antigas quimeras onde imperavam, sei-o hoje, a baixeza e a hipocrisia que fariam de mim um ser execrável.
Odette De Saint Maurice
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