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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ROMANCE DE LINDA / Odette de Saint Maurice
O ROMANCE DE LINDA / Odette de Saint Maurice

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

- Bom-dia, condessinha!

Ao ouvir o cumprimento, aquela a quem era dirigido o título tão delicado que faz pensar num vulto frágil de boneca de outros séculos, desses em que as mulheres viviam de graciosidade e de ternura, sem outro ideal que não fosse o de cuidar o melhor possível as suas belezas nascidas para ninhos de rendas e alcatifas de salões - parou imediatamente, voltando-se com risonho semblante para quem lho dera.

- Olá, Cleto! Bom-dia! Então já na labuta?

Com ar pensativo, apertando o barrete nas mãos rugosas e calejadas que haviam largado a enxada, o velhote ergueu a cabeça até olhar o céu, falando com ar simultaneamente respeitador e familiar.

- Dá-se-lhe aqui um jeito, condessinha! Ora pois, não há outro remédio! Os dias são grandes mas as horas pequenas. Se o sol andasse mais tempo lá por riba, então sim, é que isto medrava! - e encarquilhava mais o rosto afável, procurando fitar de esguelha esse sol que não lhe fazia a vontade de apressado em ver altear e aloirar os milharais.

Riu a interlocutora.

- Mas que ambicioso está o meu Anacleto! Não querias mais nada? Talvez te agradasse um dia sem noite? ...

 

 

 

 

Anacleto não deu fé da branda ironia, fulgurante no olhar vivo da cachopa gentilíssima, ironia afectuosa que mesmo notada não podia melindrá-lo, pois por demais exprimia ternura. E suspirou:

- Um dia sem noite? Ai, condessinha! Que linda colheita se faria em pouco tempo!

Não quis a rapariga demonstrar-lhe o erro da visão na vida extinta pelo excesso do calor, abençoado quando comedido, mas apenas gracejar com ele e dirigir a conversa para rumo ameno.

- Bem se vê que és muito pouco romântico, Anacleto! Então não te se seduz a noite, com a paz da escuridão, com a benção de um céu de veludo salpicado de luzes brilhando como casinhas a seroarem na vastidão do espaço? E o luar? Tu não gostas do luar?

Anacleto bulia com a enxada de um lado para o outro, meneando a cabeça entre enlevado e discordante.

- Eu?

- Tu, sim! Pois não achas maravilhosa essa luz suave, que não queima, que torna as flores de prata e arranca centelhas brancas aos rios serenos, às águas quietas?

Anacleto comentou então:

- Será bonita, será... Mas olhe que o sol põe as flores de oiro... e o oiro vale mais que a prata... -vendo-a abanar a cabeça negativamente, insistiu: - Não vale?

A condessinha não se deixou desarmar pela contestação.

- Talvez... Mas tu enganas-te! O sol não põe as flores de oiro revela-nos a sua coloração natural, a riqueza das tonalidades reais... -falava docemente, como a evocar algo de muito bom e muito sentido. - noite, tudo fica imaterial, prateado pela suavidade pálida da rainha lua... - e vendo pregados nela, com maliciosa atenção, as pupilas do velho, mordeu os lábios, sacudiu os cabelos revoltos e arranjou outro argumento. - E depois temos a brisa que vem refrescar a nossa pele queimada pelos ardores do sol! Sabe tão bem a noite, no fim de um dia de calor!

- É, é, condessinha! Mas, com sua licença, que a opinião da menina é mais sabedora que a minha, eu sempre queria ver, sem o calor, sem o solzinho, se a menina trazia essas cores tão lindas e se os nossos frutos amaduravam...

Desta feita a jovem condessa hesitou. Estava quase a alegar que a noite dava a palidez adorável das raparigas delicadas mas, ou por achar o argumento pueril ou por encontrar outro de maior relevo, não lhe deu seguimento. Riu baixinho e limitou-se a enunciar, com simulada concordância:

- Sim, será como dizes! Mas olha que o teu filho pensa como eu.

Arregalaram-se os olhos de Anacleto, enquanto o rosto lhe expressava divertida indignação.

- Bem sei, bem sei! - resmungou, mas nada resolvido a abandonar a disputa, agora mais do que nunca, dada a evocação de uma preferência que sempre o indispusera. - Do que a menina se foi lembrar! Ora valha-a Deus, valha-a! - e secretamente lisonjeado por poder falar desse que era o seu maior orgulho, prosseguiu: - Lá o rapaz é de todo, pra passar uma noite ao relento! Mas em compensação nunca se me alevantou cedo pra cumprimentar o nascer deste grande amigo que nos cobre, raios! Habituou-se a passear até à noite alta, nos estudos, e agora é deixá-lo! Perde horas a olhar prás estrelas... Acentuou-sse o riso da condessinha.

- Não sei se ainda perderá Anacleto protestou:

- Quem? Ele? A menina não o conhece! Aquilo em tendo cisma a uma coisa não a perde mais! Foi-me de pequenino assim, todo virado pra lua... Tinha de lhe chegar a roupa ao pêlo pra não se alevantar de noite e não ir pôr-se de plantão à janela! Olhe que já era mania! Nunca pude perceber que encantos tivessem a sombra, as estrelas, a lua Sempre iguais, sempre a mesma coisa!

A pequena interrompeu-o, vagarosa e meditativa.

- Oh! Cala-te!... Falas assim porque não entendes o segredo dessas horas de infinito mistério! Não és poeta... és um materialista!

- Sou o quê? - tartamudeou o velhote, atrapalhado com o ar sisudo com que ela lhe falara. - Que disse a menina que eu sou?

- Um materialista! - e de novo sorridente ante a perplexidade adivinhada: -Quero dizer que só aprecias as coisas pelo lado prático e não pelo belo...

Ele encolheu os ombros, desdenhoso.

- Ah! lá isso... desculpe a menina mas não sei de coisa mais linda do que esses campos que o Senhor criou e o dia enche de cor e vida!... - e estendia o indicador apontando a vastidão florida e verdejante dos horizontes. - Sabe a menina de maior formosura? Eu não!... Mas sempre lhe digo que, no meu fraco parcer, a noite ainda foi mais feita pra se descansar do que pra outra coisa!

Era cada vez mais doce o sorriso luminoso que entreabria os lábios da jovem.

- Sim, é possível que tenhas razão... - concordou, mas sem se dar por vencida. -No entanto cada qual pode ter as suas preferências, não é verdade, Cleto?

Cleto aquiesceu com mudo sinal de assentimento e ela prosseguiu

- Olha, no fim de contas o melhor será confessarmos que tudo isto está maravilhosamente bem feito! O dia serve para realçar a formosura da noite e a noite para sobressair os primores do dia!

- Pois é isso, menina! A menina tem muita razão!

Mão em pala sobre os olhos, ficou-se a olhar numa direcção longínqua, onde se divisava movimento de gente.

- E agora, se a condessinha me dá licença, vou-me até lá baixo. Tenho de ir verificar a andadura do telheiro! Bem me sabia ficar aqui a conversar com a menina, mas lá por causa dessa história do dia e da noite não me perdoava o seu Papá se não olhasse pela Quinta como é meu dever! E que pensa a menina? Aqueles foliões têm o sangue na guelra e se não lhes assiste um home de juízo, lá se ia toda a obra! Julgam que se leva o trabalho na brincadeira...

- Pudera! É tão agradável rir e conversar! - proferiu a pequena, em tom convencido, pondo-se a andar ao lado do Caseiro, que a mirava de esguelha, com admiração e enternecimento.

- Pois será, condessinha, será! Mas a rir e a brincar não se ganha tempo nem se lavra a terra. - e era sentencioso, discordando sempre das opiniões da rapariguinha que estremecia de fundo da sua alma simples e boa. - Essas fidalguias são prá menina que, graças a Deus, não precisa de sujar essas lindas mãozinhas que nasceram pra serem o encanto dos meus pobres olhos e dos de toda a gente de coração que anda por esse mundo de Cristo!

Repentinamente, ela ficou séria, séria como o excelente velho ainda a não vira nessa deliciosa manhã de um Verão em começos.

- Julgas isso, Anacleto? Parece-te que só vivo para me divertir?

- Oh! condessinha! - protestou ele, agastado pela má interpretação. - Valha-me Nossa Senhora! Eu só queria dizer que... que... Bem está! Que a menina felizmente pode divertir-se porque não precisa de trabalhar pra ganhar a vida como nós, os pobres! Não precisa de trabalhar e não tem cuidados!

- Cuidados? - e suspirou. - Quem te disse que os não tenho, Cleto ? Olha que talvez não me faltem!...

Abriram-se de pasmo os olhos leais do Caseiro, que exclamou, limpando a testa por onde, apesar do ar ainda suave da manhã, já perlavam gotinhas de suor:

- Cuidados? Quem, a menina? Ora, ora! Quais cuidados?

Ela fitou-o, atenta. Sim, de facto, Anacleto não compreenderia que coubessem cuidados na sua cabeça jovial e despreocupada, não podia entender as preocupações que se agitavam por detrás da sua fronte calma de menina...

Tergiversou, fugindo aos pensamentos súbitos que a assaltavam e não diria.

- Pois podes crer que não me faltam, Cleto! Preciso de vigiar o pessoal...

- Oh! oh! Pra isso lá está a Senhora sua Mãezinha!

- Pois sim! Mas a minha Mãe vai estando cansada e devo auxiliá-la! Depois... tenho livros para ler, bordados para fazer, a capelinha para arranjar, pobres para visitar... Acresce que é necessário ir ao Porto de quando em quando fazer uma visita ao Cabeleireiro e à Modista... E os exercícios ao volante do meu automóvel e no selim do meu cavalo...

Falara volubilmente, num ar de cômica sisudez que fazia sorrir, mas através das longas pestanas de um loiro acastanhado, que punham sombras nas faces aveludadas, filtrava-se um clarão estranho, de reservada ansiedade que talvez desse que cismar, a um espírito observador, sobre esses pretensos cuidados tão animadamente descritos. Seriam os únicos a absorvê-la? E contudo era fácil acreditá-la, ao defrontar com semelhante criaturinha, tão delicada e tão alegre que a sua própria figurita parecia toda ela um sorriso da Natureza.

Os cabelos anelados, esvoaçando com os seus movimentos prenhes de vivacidade, pareciam entoar cânticos de louvor ao condão de se agitarem. A boca perfeita; o talhe da cabeça elegante a mover-se num pescoço delgado, remate de um colo maravilhoso; o nariz de asas palpitantes; as pálpebras cetinosas; tudo possuía particular movimento onde dominava o sentido risonho da vida. Pés e mãos, buliçosos; corpo esbelto e ágil; uma frescura e uma juvenilidade onde acima de tudo pairava a expressão radiante da alma verdadeiramente juvenil, juvenil nos sentimentos e nas concepções da existência, juvenil nos afectos e nas crenças, juvenil dessa juventude que não envelhece porque não pode criar cabelos brancos

Naquele conjunto amorável e sedutor havia, porém, uma feição menos alegre do que as outras, uma feição que exprimia toda a gama das percepções desde a esperança ao desalento, uma feição bastas vezes toldada por nuvem dolorida que as outras se esforçavam por encobrir e tão bem o conseguiam que ninguém dava por ela. Essa feição eram os olhos. Esses olhos, castanhos doirados, nem sempre falavam de satisfação, nem sempre faziam coro com a veemente frase composta por todo o seu ser. Antes de quando em quando ora se velavam de espessa amargura, ora deixavam escapar um clarão, o clarão estranho da reservada ansiedade que nesse mesmo momento os animava, coando-se através das longas pestanas. Mas só um observador sagaz e atento poderia surpreendê-lo. O bom do Anacleto era simples em demasia para o sonhar, sequer. Para ele havia apenas aquilo que via. Portanto, na condessinha existia somente a menina que sempre considerara livre de aborrecimentos e tristezas porque sempre a conhecera a brincar e a rir.

Assim, escutando-lhe a declaração, soltou uma gargalhada prazenteira.

- Santo nome de Jesus, o que aí vai! Mas isso não são cuidados!

- Ah, não ? Então que nome têm ?

- Lá isso... não sei bem... Nem descubro o que hei-de chamar-lhes! -Pois se não descobres deixa-os tais quais os baptizei!

Por um milagre, bem natural nessa personalidade exuberante, o clarão de reservada ansiedade foi substituído por um cintilar de vivo prazer ao verificar que o velhote não encontrara réplica e, desfechando-lhe uma sonora risada, largou a correr, agitando em sinal de adeus o chapelão de largas abas que levava pendurado no braço e deixando imobilizado pelo pasmo da súbita deserção o Anacleto, que se quedou abanando a cabeça indulgentemente.

- Ora valha-me Deus, que menina! Parece umjraio de sol, a bular, a bulir... Ê que ninguém a vê quieta um segundo! Anda de um lado para o outro, mexe que mexe... - recomeçara a andar, embalado pelo ritmo do seu monólogo, enquanto ao longe, numa volta do atalho, se sumia a silhueta clara da rapariga cuja voz cantara, já distante, um folgazão "até-logo".

Embevecido, como sempre que a figura da filha do patrão lhe ocupava a retina ou a mente, deleitava-se a recordá-la e a enaltecê-la, em todas as qualidades que lhe pareciam incomparáveis.

- Não, é que não pode haver segunda! - confessava, satisfeitíssimo com a descoberta que mais evidenciava o valor da rapariga. - Um amor, um perfeito amor! Boa, generosa, trabalhadeira! Nem parece uma menina rica Rica e fidalga que benza-a Deus! Aquilo é uma jóia! De noite ou de dia... tanto faz! Brilha sempre! - e como a comparação o fizesse sorrir lembrando a anterior disputa, fungou um risinho divertido: E demonico a ter as suas opiniões? Olha aquela descoberta da lua... Sempre se sai com cada uma! A verdade é que a gente gosta de ouvi-la e até apetece contrariá-la só prà ver a falar muito depressa, muito corada Rica menina!

Nessa solitária confissão de ternura, Anacleto parara, ficara de olhos no chão, contemplativo.

Veio despertá-lo a voz rude de um latagão que se perfilava poucos passos adiante.

- Ó Sor Anacleto, o Matos da Zefa manda prèguntar a Vossoria onde há-de bondar o madeirame que chegou pró teLheiro.

A intervenção chamou Anacleto ao urgente cumprimento dos deveres que citara havia pouco e quase esquecidos na doçura das divagações. Sofreu um sobressalto, rabujou consigo próprio, alcunhando-se mudamente de preguiçoso e mau zelador dos interesses do Pai dessa que fora afinal a causadora da sua distracção, e partiu apressadamente atrás do Manel Abegão, discutindo com ele a má compostura dos bois comprados recentemente.

Passara o momento do sonho e o materialismo voltava a apossar-se de Anacleto, esse materialismo de moirejar de sol a sol na conquista de um pão honesto que a terra não nega a quem a trata bem.

 

Rosalinda, essa a quem o bom do Anacleto chamava condessinha, abandonava agora as alamedas que serpenteavam através dos canteiros floridos, estugando o passo como se procurasse recuperar tempo. Atravessou o grande terreiro aberto ao sol, esperando as maçarocas que o encheriam do oiro do milho, mais tarde transformado como o centeio gostoso nas esplêndidas boroas que tinham muitos encantos para o paladar exigente da rapariga, que adorava ajudar nas descamisadas. Quantas felizes recordações, desde tamanina, quando as suas mãozitas inexperientes a custo agarravam a espiga que atrás dela Anacleto lhe ia ensinando a desfazer!...

Passou avante e, como se o passado tivesse acordado em reminiscências, ela sorriu. Pressurosa, sentindo talvez que o sol por demais lhe aquecia a cabeça fulva, lançou sobre os cabelos o chapéu até aí pendurado no braço. E sem se deter cortou a direito escalando um outeirinho enfeitado por pinheiros de copas melancolicamente inclinadas até chegar junto do muro de pedras que o limitava, abrindo a cancelita de madeira carunchosa que daquele lado marcava o limite da propriedade, vasta de alguns quilômetros para a rectaguarda.

No ar puro e sereno da manhã ressoaram lentas e melodiosas as badaladas do sino da ermidinha. E a rapariga, ao escutá-las, parou contando:

- Uma, duas, três... Ah! Nove horas! Já é tempo! O António não deve estar nada satisfeito.

E de novo largou a correr, com grave risco de se despenhar pelo carreiro em declive que seguindo a curvatura do terreno ia ladeando extenso pinheiral até à estrada que serpenteava em baixo, longa e azulada fita que se ia perder a distância, na barreira de um gradeamento. Foi precisamente ao vencê-la, ofegante da carreira, que avistou, de costas para ela e encostada aos ferros da vedação, a silhueta elegante de um homem trajando fato castanho de desporto e que balançava nas mãos uns enormes óculos escuros. Repousava-lhe ao lado uma motocicleta que ele parecia contemplar distraidamente, enquanto fumava o cigarro de que o fumo subia em espirais.

- Bom-dia, Sr. Engenheiro! - bradou Rosalinda ao vê-lo, tirando o chapéu da cabeça e agitando-o em saudação, a aproximar-se dele.

O mancebo voltou-se precipitadamente, como se a esperasse há muito tempo e já duvidasse do seu aparecimento. Mostrando os dentes brancos e sãos, sorria.

- Bom-dia, Rosalinda. Até que enfim chegaste! Estreitou com evidente simpatia a mão que se lhe ofertava,

envolvendo a dona da mão num olhar de encantamento.

- Rosalinda, pareces uma moderna princesinha de lenda! Tudo cor de rosa como num conto de fadas! As faces, os lábios, o vestido...

- Mau, mau... - ralhou ela, estendendo o dedito com expressão amuada. - Continuam as tolices?

O sorriso do jovem não se modificou. Limitou-se a concordar:

- Tens razão, eu disse uma tolice! Como posso surpreender-me de te ver toda cor de rosa se tu própria és uma rosa, como o teu nome indica? Rosa-Linda! É fantástico! Eis o vocativo que melhor te serve! Define-te, pertence-te, forma-se contigo, adapta-se à tua gentileza

Ela cruzara os braços talvez mais enfadada do que tomada de enleio.

- Já acabaste?

- Isso sim! - replicou o Engenheiro, com entusiasmo. O assunto é inesgotável.

- Como a tua teimosia!

Desta vez falara com certa aspereza e o rapaz devia tê-lo notado, porquanto se o sorriso não se alterou o olhar foi menos terno, iluminado por fugitivo relâmpago.

- Não há teimosia onde reside apenas a virtude de dizer verdades! Tu és uma completa rosa. Até tens espinhos, como as tuas irmãs!

- Diz-me quais são e tentarei arrancá-los. Não gosto de ferir ninguém!

- E constantemente o fazes, graças a essas descrenças na minha inalterável sinceridade.

Rosalinda descruzou os braços, suspirando com ar de cômica contestação.

- Antoninho! Se pudesses calar-te por um momento, agradecia-te tanto!

Compreendendo que ela procurava escapar-se à torrente de recriminações que se propunha fazer-lhe, esboçou uma careta, murmurando:

- Sempre a mesma coisa, Rosalinda. Tu és de gelo?

- Não. - retorquiu gravemente a rapariga. - Sou de carne e osso como toda a gente. Mas preciso de coordenar as idéias que tu dispersaste! E entre elas havia uma pergunta a fazer, e da qual me esqueci!

Dissera-o com tamanha convicção que, mau grado seu, o rapaz se sentiu interessado e abandonou o fio dos galanteios.

- Tornas a lembrar-te. Ora vá de que se trata ? Rosalinda abanava a cabeça com um grande ar contristado. - Na agora não sei o que era. Vês o que fizeste? Através das enormes pestanas coava-se um olhar malicioso, que ele não notou.

- Sinto-me desolado, Rosalinda. Mas tenta recordar-te... Seria coisa importante?

Viu-a espetar o indicador, levando-o à testa em movimento de infantil reflexão.

- Importante? Acho que sim... Ora deixa pensar... - e depois, abrindo muito os grandes olhos, começou a rir, batendo as palmas, satisfeita no íntimo por ter afastado o perigoso assunto que o Engenheiro parecia ter tanto empenho em abordar. - Já sei... já sei! Queria perguntar-te se trouxeste a motocicleta!...

Franziram-se as sobrancelhas masculinas. Dera pela artimanha, pois bem via que as pupilas da rapariga se poisavam na resposta do próprio objecto ali encostado ao gradeamento, junto de ambos

- Ora, ora! - respondeu, com evidente despeito. - Estás ceguinha, não? E eu tão parvo que ainda me senti penalizado com a tua falta de memória!

A carita dela exprimia agora tanta doçura, como a pedir que não lhe guardassem rancor, que António acabou por achar graça ao inocente ardil.

- Está bem, Rosalinda, não se fala mais nisso. - mas, com súbita desconfiança, prosseguiu, indagando: - Mas olha lá, sé franca. Para que diacho queres tu que eu te leve na moto ?

Ela simulou-se escandalizada.

- Para diacho nenhum, ora essa! Fica sabendo que não conheço as mesmas pessoas que tu!

Ele sorriu, contrafeito, insistindo:

- Bom, deixo passar em claro a alusão para não questionarmos outra vez, mas não posso deixar de insistir - onde queres que te transporte na minha moto a esta hora da manhã?

- A esta hora? São quase nove e meia, António! Parece-te alguma madrugada?

O Engenheiro não se deu por vencido e recalcitrou:

- Não se trata desse factor mas de outro muito importante. Não consigo perceber a razão porque pretendes utilizar-te de uma moto quando tens um cavalo e um automóvel.

- Lá por isso - comentou a pequena, enfadada, - até podes contar com uma bicicleta e um gerico

Ele encolheu os ombros, contemplando-a como se olhasse uma criança caprichosa.

- Pois exactamente! Tendo tanto por onde escolher não percebo a razão porque preferiste um meio de locomoção que demais a mais afirmas detestar!

Rosalinda esboçou uma careta que tornou ainda mais adorável o rosto cor de rosa onde três covinhas enternecedoras, duas nas faces e uma no queixito redondo, punham a graciosidade característica de uma boneca de biscuit.

- E depois? Que tem essa opinião com o assunto presente? Posso responder-te que não tens nada a ver com as minhas razões!

- Então reclamas os meus serviços e eu não tenho o direito de saber para que os requeres?

Rosalinda não se desconcertou, antes assumiu um ar grave.

- A seu tempo serás devidamente informado

Então, encostando-se molemente ao muro da propriedade, mãos segurando nos varões, António indagou, como se estivesse disposto a não tomar outra atitude enquanto não visse a sua curiosidade satisfeita:

- Diz cá, Rosalinda. A tua Mãe está ao facto deste passeio?

A condessinha pôs-se muito direita, prestes a bater os pés de impaciência, no rosto de traços pueris uma sombra tão capaz de exprimir toda a gama dos sentimentos ternos como a das impressões violentas, em fantásticas mutações que transformariam a rapariga habitualmente risonha numa mulher ardente e impetuosa. Dominou-se porém, na irritação que bem se via latente, e limitou-se a retorquir, com um olhar franco:

- Não. E poderás compreender que por essa razão me resignei a depender da tua boa vontade!

António sentiu a censura e aparou-a.

- Que não te faltará, Rosalinda! Penso que não duvidaste de tal... Temo porém tornar-me responsável por qualquer facto desagradável que possa acontecer.

Respondeu-lhe irônica risadinha.

- Ah, sim? Pensas que vou entrevistar algum bando de gangsters, não?

- Deixemo-nos de gracejos, Linda!

- Mas foste tu quem principiou, mal aqui cheguei! E deixa-me dizer-te, a propósito, que te considero no extremo oposto da tua amabilidade do princípio... Devo acrescentar que a tua gentileza neste momento e neste assunto seria por mim muito mais apreciada do que outra qualquer! E não... não respondas que ainda não acabei! Sou suficientemente senhora dos meus actos para assumir a minha responsabilidade seja no que for. Não careço de tutores! Peço-te um favor. Se acedes, dispensando-me dos teus inúteis comentários, agradeço-te. De contrário, prescindo de ti porque também tenho pernas!

A fogosa alocução deixara António um tanto embaraçado, sentindo-se por culpa própria, por culpa do seu temperamento de quezílias, em precária situação diante dessa a quem tanto procurava agradar e atingindo muitas vezes (quase sempre) o extremo inverso. Mas a tirada final sugeriu-lhe uma saída que o equilibrasse no lugar primitivo repondo-o na amabilidade evocada, conquanto bem compreendesse que não era nesse sentido que a rapariga desejava vê-la dirigida. Tratava-se no entanto de amenizar a aspereza da reprimenda, que mais valia fingir não haver notado. Assim, olhou atentamente para essas pernas com tamanho relevo citadas e comentou, frivolamente:

- É verdade! E por sinal bem bonitas!

Rosalinda fitou-o entre colérica e perplexa, surpresa de semelhante resposta a quanto de desagradável lhe dissera.

- Mau... Tu não me entendes!

- Entendo, sim! Mas também entendo que devo ser firme nas minhas opiniões...

Falara ainda num tom de galanteio, mas desta vez com uma acentuação diferente, penetrante, que possivelmente mais indispunha Rosalinda, trazendo-lhe ao espírito quaisquer reminiscências.

As opiniões de António! Nem sempre eram agradáveis de ouvir...

Muito séria, extraordinariamente séria, agora, no brilho do olhar secreta e fugitiva emoção, volvia as pupilas numa direcção longínqua, por cima dos pinheiros fronteiriços, para além dos montes, como se lhe fosse dado contemplar horizontes que se reflectissem na sua própria alma.

Depois, lentamente, tal qual como se lhe doesse fugir dessa rápida abstracção, tornou a voltar-se para ele e numa voz fria, diversa da que até aí modulara, inquiriu:

- Bem... estás disposto a ir ou não?

António achou preferível aceder sem mais considerações, pondo de parte o seu orgulho castigado e a sua curiosidade insatisfeita.

- Pois decerto que vou! Pudeste duvidar? - e solícito, pondo direita a máquina e sorrindo-lhe: -Vá, Linda, nada de reservas entre nós! Dá cá a tua mão, como quando éramos garotos Assim Pazes feitas?

Ela aquiesceu. mas sem entusiasmo.

- Pronto.

- Vês, Rosalinda? Até parece que voltámos aos tempos antigos, quando corríamos as estradas de lês a lês, em grandes brincadeiras! Lembras-te? Olha! Tens aí as mesmas árvores, a mesma luz Tudo é igual...

A moto principiou roncando. Já instalada, Rosalinda deixou que o sorriso viesse pouco a pouco florir-lhe a boca até estrepitar numa gargalhada. E ripostou ao rapaz, como para nunca lhe dar razão:

- Tudo é igual, disseste? Enganas-te! Tudo é diferente! As árvores têm ramos novos, a luz outra tonalidade... E os petizes de outrora são hoje donos do seu nariz. António Nogueira do Souto é um Engenheiro ilustre, e Rosalinda Teixeira de Melo, a condessinha de Olivosa, uma rapariga casadoira! e como se a citação a divertisse, continuou a rir, arrebatada pela moto que abalava em correria louca.

- Ora, ora, Rosalinda! Tanto segredo por causa disso! e com um trejeito desdenhoso António apontava o cesto que a rapariga amorosamente cingia ao peito.

Linda mantinha uma seriedade perfeita, conquanto se lhe visse o riso dificilmente contido nas covinhas das faces.

 

- Era preciso, António, absolutamente preciso, afianço-te! A Mãe só deve saber quando o vir a brincar no jardim! Nessa altura acabará por se resignar à implantação em que de outra forma não consentiria.

- Pois sim, mas tens de concordar que seria muito mais simples vir buscá-lo de automóvel.

- Na tua opinião! Na minha ia complicar tudo, porque não me seria possível sair no carro sem que a Mãe desse fé.

- Concordo mas continuo na minha. Vinhas no carro e se a tua Mãe perguntasse alguma coisa inventavas um passeio qualquer!

- Um passeio de automóvel, assim matinal, fora de todos os usos e costumes? Um passeio de automóvel quando normalmente de manhã só saio a cavalo? Não tinha senso comum.

- Quisesses tu urdir a justificação

Na testa de Rosalinda desenhou-se uma leve ruga de contrariedade.

- Mas olha lá, custou-te muito fazer-me um favor?

António estava impertinente de todo.

- Não e aliás nada tem que ver uma coisa com a outra! Podias perfeitamente encontrar uma explicação que te dispensasse da minha companhia que parece não te ser muito agradável

Rosalinda esteve prestes a responder-lhe que tal facto se dava apenas por culpa dele, mas limitou-se a encolher os ombros para retorquir:

- Pois podia, mas que queres? Detesto a mentira e, entre o desagrado da tua presença e o desagrado de inventar alguma trapalhice, preferi o primeiro.

O Engenheiro mordeu os lábios, furioso. Depois soltou um risinho sardónico que ainda mais irritou os nervos da rapariga. Na verdade Rosalinda, no seu íntimo, já achava que era bem melhor ter preferido o segundo meio... Ia recalcitrar, fazê-lo encolher-se... mas perdera tempo demais. António entrava a atacar.

- Ora, ora, Linda! Detestas a mentira? Tu? ...

Os belos olhos relampejaram e, tão categórica como impulsiva, ela afirmou:

- Detesto, sim!

- Não duvido. Mas olha que até os maiores puritanos perjuram! - e agora o risinho era risada.

- Que insinuas? Ou que pretendes insinuar, António? Digladiavam-se, muito direitos, ela um pouco pálida cerrando

nos braços o misterioso cestinho, ele abrindo e fechando maquinalmente a tampa do isqueiro que tirara do bolso das calças enquanto a contemplava com mal disfarçada cólera - fruto do intenso despeito experimentado momentos antes e que bradava por desforra.

- Tu entendes-me bem

A condessinha abanou a cabeça, energicamente.

- Não tenho habilidade para charadas. Explica-te se queres.

Aquele se queres era o pior insulto que podia ser inflingido à soberba do Engenheiro. Porque traduzia o desprezo que ela freqüentemente deixava transparacer em relação ao mancebo empertigado que saltava de extremo a extremo, ora impondo vaidosa petulância, ora descendo ao servilismo dócil que mais enfastiava do que lisonjeava. Para cúmulo, a bazófia de António, mais rente de vãs pretensões do que de real altivez, possuía um estranho condão de se acomodar... Sentira-se flagelado por aquele ar de piedosa indiferença que ela testemunhara mas, em lugar de lho fazer notar obrigando-a a maior consideração pela sua pessoa, preferiu tergiversar, tornejar e pagar-se encobertamente da afronta, sem perder o modo afável e galanteador.

Assim, endireitando mais a alta estatura e assumindo uma atitude profética, declarou:

- É fácil dizer-te o que penso. com esse teu horror à mentira, à mentira vulgar, insignificante, ainda um dia és capaz de urdir uma tamanha que nela acabes por ficar presa como a mosca na teia da aranha!

Fulguravam centelhas de indignação nos olhos de Linda.

- És muito gentil comparando-me à mosca!... Mas já que assim falas dir-te-ei que sou uma mosca competentíssima para rebentar qualquer teia nem que a aranha tecelã seja enorme e perigosa como tu!

Caiu entre ambos um silêncio cheio de reticências. António sentia-se desconcertado e não sabia ao certo que atitude assumir. Olhava de soslaio a rapariga e via-a com expressão pouco tranquilizadora... Foi quando decidiu lançar um véu sobre a disputa, volvendo ao tom de gracejo.

- Bem, não vale amuar... Concordemos antes que somos adversários dignos um do outro. Deixemos as questões e abracemo-nos como bons amigos! - e embora não executassem o gesto, devido à reserva em que Rosalinda parecia ter-se confinado, prosseguiu, animadamente: -Agora, menina, diz cá. Passamos aqui o dia todo, de veraneio, ou voltamos pelo mesmo caminho?

Ela deu dois passos para a moto arrumada na berma.

- Vamos embora. - depois, como se não pudesse efectivamente estar séria durante muito tempo nem subesse guardar rancores, proferiu, sorrindo encantada para um bichito cor de leite creme que emergia dos fofos revestimentos do cestinho: Oh, António! Confessa! Não é lindo? Não achas impossível que a Mãe o aceite com desagrado?

Satisfeito por ver dispersa a nuvem da altercação, o Engenheiro, bem acomodado nas tréguas do momento que seduzia o seu espírito pouco dado a vôos largos, replicou:

- Olha, Linda. Por muito que te doa, devo responder-te que o teu preferido não me parece demasiado sedutor.

Sempre afagando o engraçado cachorrinho, a pequena volveu:

- Sim, sim... vai falando! -e gracejava, sem vestígios de malquerenças. - Farejaste neste passeio um pitoresco e saboroso romance com o acre perfume do escândalo... e afinal as tuas previsões esbarraram com a mais singela das entrevistas entre Rosalinda e a prima Henriqueta!... E não te conformas

Mas sob o tom ameno, António encrespava as sobrancelhas, bufando de furor. Parecia-lhe que Rosalinda, no fundo, troçava dele...

- Pensa o que quiseres, Rosalinda. Ela rompeu em gargalhadas.

- Ah, sim? Posso pensar o que quiser? -e maliciosamente: - Nesse caso penso que a decepção te amarga na boca! No entanto bom será que não te amofines antes de tempo... O galã ainda acaba por surgir.

Estavam já instalados na moto que António, num gesto raivoso, fez arrancar com tão inesperada violência que Rosalinda se lhe agarrou aos ombros protestando:

- Hop, lá! - gritava, os cabelos em desalinho, as faces mais rosadas na emoção da corrida. - Não vás tão depressa Olha que o rival não é perigoso Ou queres findar o romance à maneira antiga, com a morte de todas as personagens?

O vento e o estrépito do motor truncavam-lhe as frases, mas não tanto que António não as percebesse e não se sentisse chamado a mais comedimento. No entanto, de novo chicoteado pelos reparos da rapariga, bradou-lhe em resposta:

- Tu hoje juraste fazer de mim o alvo das tuas chacotas?

- Não! Mas estou muito contente! Há tanto tempo que desejava um cãozinho destes! Julguei que a Boby da prima Henriqueta nunca mais se resolvia a ter meninos! Agora já avalias a minha satisfação?

E mais uma vez António sentiu que lhe era impossível ficar melindrado com tanta singeleza. Abrandou o andamento e resolveu inquirir, mostrando-se enfim interessado pelo destino desse objecto tão querido de Rosalinda.

- E como vai ser com a tua Mãe?... com o seu horror pelos cães e o seu amor pelos gatos de todas as cores e feitios...

- Não tem mal. Acabará por resignar-se quando o inevitável lhe entrar pela casa dentro!

- O Inevitável? Vais chamar Inevitável ao cão?

- Não não sei ainda - e ria. - Não pensei no nome... mas olha que a idéia não é má! Inevitável! Sim senhor, bem achado! vou instalá-lo em casa... e depois dos factos consumados... Paciência! A Mãe aceitará o Inevitável!

Baixinho, ia repetindo a denominação a que tanta graça achara. Aquilo dispusera-a bem e fizera-a achar mais simpático o primo António, esse primo com o qual já tantas vezes se encabritara nessa manhã. Era, aliás, hábito e costume, velhos como o seu conhecimento da vida inteira. Volta meia volta caturravam os dois, isto sem dúvida conseqüente do feitio atrabiliário do Engenheiro, a quem um nome respeitável de tradições, uma fortuna assás vasta para esbanjar e uma figura pessoal bastante atraente, impondo-se a gerais considerações, haviam por demais tornado pedante -logo idiota...

Primos segundos - a Mãe dele era tia da Mãe de Rosalinda - e quase vizinhos, fora comum a sua infância, e a presença de António tornara-se familiar naquela casa nobre onde, aliás, com muito agrado se via sempre recebido. A própria Rosalinda reconhecia que a companhia do Engenheiro, atento e submisso à execução das suas fantasias a despeito de possíveis maus humores que findavam sempre em maiores galanterias para se fazer perdoar, tinha seu quê de agradável, desde que se mantivesse no limite de franca e leal camaradagem... António, porém, tentava com visível empenho modificar esse ambiente simpático para um outro de corte insistente e avassaladora que Rosalinda não se sentia absolutamente nada disposta a aceitar, embora reconhecesse que essa atitude vinha ao encontro dos desejos dos Pais, especialmente da Mãe, cujas alusões bastamente revelavam o secreto voto. Previsão que muito desagradava à condessinha... Rosalinda estimava o primo, gostava de o ter ao lado para com ele discutir e tagarelar nessa região isolada onde não havia quaisquer divertimentos, mas o seu coração de forma alguma se inclinava para ele com maior intensidade afectiva. António percebia-o, mas confiava. Tinha a impressão de que a sua constância paciente conseguiria modificar os sentimentos de Rosalinda a seu respeito. E decidira agir como a água mole batendo na pedra dura... Enquanto não houvesse que temer rivais - e nas cercanias não pairava sombra deles! - o seu lugar era de primeiro plano. Para que desesperar?

O ronco da moto, contínuo e assoberbante, tirara a ambos a vontade de conversar. António ia atento às curvas da estrada e Rosalinda, perdida em qualquer devaneio íntimo, pormenorizava com olhar distraído a bela nuca do hábil condutor.

Mas o silêncio de palavras parecia aborrecer o Engenheiro que por fim perguntou, chamando a companheira:

- Rosalinda, decretaste a greve da língua ?

Ela suspirou, como se penosamente se arrancasse da abstracção em que mergulhara.

- Não. - disse. - Ia a pensar.

- Em quê? Pode saber-se?

- Pode. Meditava nos contrastes da sorte! Surpreendido pelo inesperado de semelhante preocupação,

António voltou-se para trás.

- Quais contrastes?

Com o movimento, a máquina desviou-se bruscamente para o meio da estrada, obrigando Rosalinda a gritar:

- Eh lá! Eu digo Mas endireita a direcção que já vi os pinheiros muito perto de nós.

Ele obedeceu passivamente, resignado a não a olhar senão quando chegassem ao final do percurso. Intimamente pasmava daquela inteligência exuberante, daquela azougada ironia sempre encontrando a frase que devia ser dita... Nessa característica Linda parecia-se com o Pai, cujo bom humor raras vezes se toldava, contrariamente à esposa, dona de trato agradabilíssimo mas de fácil irritabilidade quando as coisas ou as opiniões se permitiam discordar das suas vontades.

Rosalinda dir-se-ia nunca se cansar de rir e folgar, sempre disposta a arreliá-lo com travessuras e palavras agudas como punhaizinhos dirigidos às convicções dele...

Agora mesmo, se António pudesse ver-lhe a expressão gaiata do rosto, notaria quão divergente era das sérias palavras que ouvira Mas, dada a impossibilidade de o notar, insistiu

- Então, Linda? Não queres confidenciar-me os cuidados do teu espírito?

- Quero! Olha... Tenho vindo a lembrar-me das transformações que o progresso opera! - e fez uma pausa propositada, dando tempo a que o Engenheiro se mostrasse ainda mais interessado.

- Quais transformações ? - Ora, são bem simples de notar! Dantes eram as bestas que levavam os homens, agora são os homens que levam as bestas! Por exemplo... este cão!...

António mordeu os lábios. Outra vez apanhado outra vez servindo de alvo às zomtoarias da menina,

- Muito engraçadinha! - vociferou. - Mas faço-te notar que erraste nessa afirmativa. Não conduzo a bestinha que trazes ao colo. Guio um motor que precisa da minha inteligência para ser movido.

- Mas que não foi inventado por ti, enquanto que os animais de todos os tempos só contam com a própria força!

Agora António não retorquiu. Via nitidamente que Rosalinda o metia a ridículo e sentia-se vexado.

Na alma rugia-lhe surda cólera. Ah! Aquela convencida brincava com ele? Talvez ainda viesse a arrepender-se! E, na esperança de qualquer vingança obscura, dessas em que se comprazia, ia-se acalmando. Julgava usar a melhor táctica...

No entanto, vendo-o calado, virado para a frente como se ela não existisse, Rosalinda, num rebate do seu coração generoso, temeu haver-se excedido e procurou desculpar-se.

- António, olha que foi tudo a brincar

O Engenheiro encolheu os ombros, sem uma palavra.

E Rosalinda pensou "agora foi certo Ofendi-o". Mas não disse mais nada, prometendo contudo a si própria mostrar-se gentil daí em diante. Aliás, verdade seja dita, arreliara-o, e isso já bem contentava o seu espírito irrequieto...

Alguns metros mais à frente bateu-lhe nas costas, a chamá-lo

- Pára aqui, António. Não quero que me leves mais longe. Estavam praticamente no local de onde tinham partido.

O Engenheiro obedeceu.

- Não seria melhor deixar-te na entrada principal ? Ela desceu lesta do assento, sorrindo-lhe, agradecida.

- Não, não! Não quero que te saibam, por ora, implicado no aparecimento deste monstro lá em casa. Estás inocente de quaisquer culpas que te imputem, pois ignoravas o flagelo que ias buscar. - e muito docemente: - O teu nome só será invocado se for preciso arranjar padrinho para o meu Inevitável!

A fisionomia de António, crispada, desanuviou-se ao escutar essa declaração. De cotovelos no guiador da moto, poisava um olhar carinhoso no rosto resplandecente de mocidade.

- Fica-lhe então o nome?

- É possível! -e estendendo-lhe a mão, em despedida: E agora até logo, sim?

- Até logo!

Esbelta e ágil, Rosalinda deu dois passos a afastar-se, mas logo parou, rodando nos calcanhares até ficar de frente para ele e, com ar de arrependimento, murmurou gentilmente:

- Desculpa as minhas irreverências... Desculpas?

Como não desculpar tudo, tudo, a essa fascinadora que fazia diabruras a sorrir e a sorrir pedia perdão?

- Tu acabas por vencer sempre... Declaro-me teu escravo! - e contemplava-a extasiado. Mas a rapariga largou a correr e sumiu-se entre os pinheiros que ascendiam até ao muro, lá no cimo.

Então, vagarosamente, com a moto pela mão, o Engenheiro principiou a descer a estrada que ia em lento declive até ao vale frondoso e extenso no meio do qual se elevava o velho Solar da família dele.

 

Já António de novo se escarranchava na moto para abalar quando uma voz cheia e bem modulada, vinda de trás, o chamou, obrigando-o a voltar-se, de mão em pala sobre a testa para se defender do sol que o ofuscava, a ver de quem se tratava. E viva surpresa se lhe espraiou na fisionomia ao avistar um rapagão moreno cujo rosto de traços viris, firmes e definidos como devia sê-lo também o caracter (a depreendê-lo das extraordinárias franqueza e lealdade que pareciam fulgir-lhe nos olhos esverdeados), revelava clara satisfação ao encaminhar-se para ele desenvoltamente.

Mas não foi com idêntico prazer que António aceitou aquela aproximação. Pelo contrário! A irradiante simpatia do recém-aparecido, simpatia que logo à primeira vista podia conquistar porque era daquelas que inspiram confiança, garantindo logo de início, sob a luz de umas pupilas francas, a sua duração, parecia não só deixá-lo indiferente como provocar-lhe, mais do que simples espanto pelo inesperado encontro, um vivo descontentamento.

E foi num gesto mole de contrariedade mal disfarçada que correspondeu ao aperto da mão que se lhe estendera jovial, mão forte e larga, de dedos compridos, onde havia qualquer coisa, nos movimentos rápidos e harmoniosos, de simultaneamente espiritual e enérgico. Junto dessa mão elegante era desajeitada e quase feia a do Engenheiro, ossuda, angulosa e em parte coberta por excessiva pelagem. Na verdade, comparadas, essas duas mãos divergiam em tudo, traduzindo na sua muda eloqüência a dissemelhança existente entre as índoles- dos seus possuidores. E ao estreitarem-se, essas duas mãos não tinham o estremecimento agradável de uma amizade, mas antes a sacudidela brusca, nervosa, ditada por reacção imparável do subconsciente, do choque que precede o combate.

Inimigos? Pode não se ser amigo sem descer a extremos...

António, como se enfim se desprendesse de repentina paralisia, falou retorquindo ao outro, que o saudava com singela cordialidade, num tom pastoso onde dissonantes agudos resultariam possivemente da íntima contensão do desagrado.

- Não te sabia de regresso, Carlos.

Carlos ria num alvoroço de profundo contentamento de alma.

- Ninguém me esperava! - confessou. - Cheguei de improviso. Desembarquei ontem em Lisboa, meti-me no comboio da noite e cá estou!

De soslaio, numa olhadela turva, o Engenheiro pôde notar a requintada elegância do fato cinzento, de boa fazenda, impecavelmente talhado para quem o vestia com distinção.

- Nesse caso, formado?

- Especializado.

- Doutor em... ?

- Otorinolaringologia por Oxford.

A citação deixara o Engenheiro de sobrolhos franzidos perante a declaração que na sua brevidade não deixava dúvidas acerca do valor intelectual do jovem Médico.

- És portanto especialista em doenças da garganta, do nariz e dos ouvidos... -comentou, em tom depreciativo.

Carlos simulou não entender o sarcasmo que não lhe soara bem.

- Exactamente. Obtive o Diploma e findou a Bolsa de Estudo. Foi pena, pois gostava de ter podido concluir umas pesquisas no ramo da Parapsicologia e...

Mais outro ? - resmungou António, interrompendo-o.

Carlos fitou-o sem azedume, como se bem lhe conhecesse os defeitos e achasse que mais valia ser indulgente do que ligar-Lhe importância.

- Não creias que abuso da minha ciência para espanto dos profanos. De resto tu conheces muitos palavrões deste gênero, do tempo em que ambos éramos estudantes...

António quis mostrar-se superior.

- E eu te atordoava com a Electricidade e a Matemática!

- Coisas altas da Engenharia! - e Carlos sorria, sem reservas.

Mas ao Engenheiro não agradava o rumo ameno que o diálogo parecia de súbito querer levar e cortou-o com uma interrogação seca, atirada como um pedregulho para o caminho.

- E agora que tencionas fazer ?

Desta vez Carlos ficou muito sério. Não seria propriamente a pergunta que o admirava mas o tom em que fora formulada, de uma visível hostilidade. E como não era homem para rodeios, volveu, a voz ligeiramente velada por uma entonação de censura:

- Que significa essa atitude? Não entendo a animosidade com que pareces fitar-me - António, inconscientemente, baixou os olhos para o chão, e Carlos prosseguiu, agora com certa amargura: - E depois... e o pior... é que não és só tu que me recebes dessa maneira estranha! A tua conduta, talvez possa vir a interpretá-la. Mas algumas pessoas que sempre me falaram bem e que encontrei no trajecto, olharam-me de lado, como se vissem em mim um estranho e não um filho da terra que volta...

Falara mais como se estivesse sozinho e expandisse para si próprio a desolada constatação do que para o interlocutor que ao escutar-lhe a frase ergueu num rompante a cabeça, nas pupilas um brilho mau.

- Talvez seja por isso mesmo... Por não passares de um filho da terra...

O Médico estremeceu e cavaram-se-lhe rugas na testa espaçosa.

- Que pretendes insinuar?

Tal como outrora, como sempre, desde tempos que ambos quase haviam esquecido, tão distantes ficavam no passado, os seus olhares cruzaram-se em mudo desafio, lançando-os um contra o outro numa luta de verdadeiros adversários, adversários por raça, por instinto, por sentimento. António compreendeu que não podia evitar o embate de palavras - recapitulação, possivelmente, dos muitos que entre os dois já se tinham dado. E desdenhosamente, do alto da sua soberbia desencadeada, torcendo nas mãos um galho seco que apanhara de uma arvorezita rasteira, o Engenheiro deu a primeira estocada - como se lhe fizesse um favor aceitando cruzar ferros com ele...

- Mas, meu velho, as coisas são como são e nada têm de excepcional. Bem sabes que todos te consideram um ambicioso...

O golpe foi aparado com verdadeira maestria e fulgurante soou a réplica.

- E sou-o, de facto! É uma denominação que mereço e não uma razão para que me queiram mal! Renegarem-me só porque aspirei a uma vida diferente? Seria uma injustiça, pois sinto que procurei aquilo a que tenho direito.

Postara-se em frente da moto, de braços cruzados, feições crispadas ao ouvir o risinho cáustico de António que já disparava novo ataque.

- Direito, tu?

A robusta aparência de Carlos parecia estalar, dobrando-se sobre si própria, esforçando-se por manter a calma, limitando-se a manter a defensiva.

- Lamento que logo de entrada principiemos a discutir, António. - mas o contínuo ar de riso do Engenheiro espicaçava-o e então lançou-se a golpear também o antagonista. Será preciso repetir-te que, quer queiras quer não, a inteligência não nasce com os pergaminhos?

Foi quando as pupilas de ambos se chocaram, terríveis. Sim, dantes não eram amigos, mas agora, de súbito, percebiam que mais fundo se tornara o mal entre os dois. Detestavam-se, odiavam-se! Tudo neles, aliás, os justificava. As suas próprias naturezas rivalizavam, como os seus nascimentos.

António, frágil representante da velha fidalguia, haste quebradiça da árvore secular e carunchosa na sua vetutez, herdeiro de idéias retrógradas, de privilégios devidos ao nome e não ao valor individual da criatura, filiava-se nessas mesmas bases para desautorizar e meter a ridículo, numa falta de segurança que se disfarçava atrás da cortesia palaciana, o filho do povo, guindado a uma alta posição social apenas pelos dotes da inteligência, do trabalho e da vontade e cuja superioridade era uma superioridade de caracter, tão capaz de nascer em berços de ricos como em berços de pobres.

Não era Carlos rapaz para menosprezar o nascimento do Engenheiro. Mas dominando-lhe a personalidade frouxa e a caquexia das idéias, reconhecia-se em relação a ele num nível em que de forma alguma ficava rebaixado - antes dele tinha todo o direito a exigir-lhe o respeito e a admiração devidos ao seu valor pessoal e que em nenhuma parte lhe haviam sido regateados. Os homens em qualquer sítio são dignos segundo o quilate do seu espírito e não segundo os ouropéis que ostentem, verdadeiros ou fingidos. E António dir-se-ia julgar-se talvez recuado aos tempos bárbaros em que o homem por ser rico se acreditava dono do pobre...

A atitude contundente do Engenheiro aguilhoava Carlos, sacudindo-o numa revolta contra as utópicas cores do sangue que ele, o Cientista que aprendera a compreender a humanidade e a conhecia profundamente, não podia acatar, nem na sua razão nem na sua alma. As realidades da vida conquistavam-lhe o cérebro. Não que fosse um revolucionário por haver brotado da humildade! Rico de dinheiro e nobre de pergaminhos, rir-se-ia como ria das idéias bafientas. Admirava, estava pronto a aplaudir todas as acções que guindassem os homens às esferas superiores. A esses consideraria e seguiria, no entusiasmo das qualidades que brotam da existência como as fontes das montanhas. Mas calcaria aos pés as virtudes degeneradas, ainda que usassem coroa.

Sim, podiam ser nobres os filhos dos nobres! Mas não eram só Nobres os que nasciam fidalgos. Também houve, a par do brasão merecido no trabalho rude das batalhas, o comprado a preço de ouro e o alcançado a custo de torvas bajulações que nada honram os que souberam tecê-las na ganância viciosa de se alcandorarem.

Agora a luta mostra-se mais digna. Não são os papéis assinados por poderosos que concedem privilégios mas sim o valor pessoal, a luta consciente e tenaz, as virtudes comprovadas na renhida labuta do dia-a-dia pela ascensão das possibilidades naturais.

 

1 Nota da Autora - Assim fosse-assim seja!

 

António agüentara sem vacilar a cutilada que o jovem Médico desassombradamente lhe brandira. E atirando fora a varita que apertava nas mãos, procurava tornar evasiva a réplica.

- Será possível que não entendas que te colocastes numa situação embaraçosa?

- Porquê?

- Ora, porquê Devo explicar-te ?

- Sim, deves!

Fora tão positiva a resposta que a natural arrogância de António o aconselhou a enfrentar a situação dizendo o que pensava sem rebuços.

- Então ouve. Aqueles cuja origem é igual à tua são hoje rapazes do campo que trabalham de sol a sol, que falam sem regras de gramática e cujas ciências e doutrinas não vão além de beber vinho e jogar o pau... E estes, naturalmente, sentem-se mal ao teu lado. Se lhes falas, não sabem como responder-te, põem-se a esgravatar o nariz... Para eles, subiste alto demais e o respeito transmudou-se-lhes em temor.

Ouvia-o Carlos silencioso, de olhar perdido ao longe, sem o interromper. Apenas eram mais fundas as rugas cavadas na testa. E compreendendo, com íntimo júbilo, que atingira a fibra sensível daquela natureza privilegiada, o Engenheiro prosseguiu, ansioso por satisfazer o despeito que lhe ia na alma:

- Escusas de pensar em acamaradares com os teus antigos companheiros. Ignoro se realmente esse convívio te interessa mas, seja como for, duvido que possuas ainda o condão de os atraíres para a tua beira com narrativas alegres e divertidas como era teu hábito no tempo de férias, talvez para te tornares popular... Falhaste no cálculo! Nesse tempo cercavam-te porque ainda não havias atingido um um realce definitivo. Agora és um senhor doutor que vem do estrangeiro e que os assarapanta das alturas a que subiu, tendo partido da beira deles. Tudo os separa e tens de ser o primeiro a reconhecê-lo! Colocaste-te numa situação falsíssima, porque também a minha roda não pode tornar-se favorável para ti, pelo menos nestes sítios. Algures onde não saibam quem és nem te tivessem conhecido de pé descalço, talvez não sintas a diferença. Aqui notá-la-ás sempre! Os meus primos, que já em petizes se insurgiam quando, ombro a ombro, entravas nas nossas brincadeiras, tolerar-te-ão, mas em qualquer ocasião te farão lembrar que não esqueceram a tua origem.

Com um trejeito irônico, Carlos interrompeu-o, saindo da mudez em que se conservara durante a longa tirada:

- Como tu, neste momento

- Não, não, enganas-te! Eu apenas revelei, e por tua instância, o que me parece originar essa espécia de animosidade de que te queixaste.

Acentuava-se a expressão zombeteira, embora um tanto crispada, da bela fisionomia do Médico. Rugia-lhe no peito grande tormenta, mas sufocava-a sentindo que o rancor levava António a exagerar essa mesma animosidade que, no entanto e até certo ponto, era o primeiro a compreender, contando porém extingui-la, pois saberia vencê-la com a irradiante simpatia da sua alma generosa. Assim, seguro das intenções do Engenheiro, decidira que estas resvalariam sobre ele sem o atingirem e sem proporcionarem ao espírito mesquinho do outro a satisfação procurada por um desdém feito de baixas intenções.

E mirando-o com um olhar tão firme que António desviou o dele, perguntou:

- E já acabaste? Explicaste-me tudo bem? António hesitou. Depois abanou a cabeça.

- Não. Devo ainda prevenir-te contra outras possíveis decepções.

- Quais?

- Não esperes que o primo Teixeira de Melo, o teu protector, esqueça, só pela tua formusura, que és o filho do Anacleto.

Carlos não se moveu, não articulou um som. Então, supondo a vítima prestes a cair, vencida pelos golpes que lhe vibrara, António acrescentou, com evidente perversidade:

- O teu próprio Pai, Carlos, sentirá receio de exteriorizar o seu afecto. Tu és grande de mais para a sua modéstia... Verá em ti o senhor... e tu acabarás por não ter a mínima consideração por ele.

O moço Doutor parecia agora agigantado na expressão magnífica do semblante irado. E saiu-lhe a voz cava, profunda, quase ofegante.

- Olha, António, se não te desprezasse tanto como o faço agora, odiar-te-ia! Odiar-te-ia de morte.

O Engenheiro recuou, como se pretendesse fugir ao perigo na ânsia do cobarde que se desnorteia quando o adversário se mostra mais forte.

- Tu ? - bradou, saltando nos dois pés como um boneco articulado. - Tu desprezas-me? A mim?

Carlos aproximou-se mais dele e António recuou de novo, largando a moto, que caiu no chão.

- Sim, eu desprezo-te. Como desprezo as tuas insinuações. Conheço o sentimento que as dita... - e acalmando-se subitamente, com uma entonação fria que arripiava: -Agradeço-te o favor que me prestaste. Disseste-me coisas preciosas, que me elucidam muito. Já sei a quem atribuir quantas más-vontades encontrar. Já sei quem tem interesse em fazer propaganda contra mim.

António estava lívido.

- Tu... tu não julgarás que eu me ocupo a falar mal de ti... eu tenho mais que fazer e e

- E não me consideras o bastante para temer a minha concorrência ao teu prestígio! Sei-o. Mas advirto-te que não julgo, apenas constato! Percebes-me? - e esmagando-o absolutamente pelo aprumo da voz e do olhar: -Cabe-te agora ouvir-me. Enganaste-te se pensavas deixar-me muito mal-tratado com os teus golpes. Não receio a hostilidade dos meus conterrâneos. Não esqueci a festa que me fizeram quando regressei do Porto. Três anos em Inglaterra não me transformaram, nem a eles. Quanto à familiaridade dos teus primos, não a ambiciono. E no que respeita ao Sr. conde de Olivosa, se me estimar como sempre estimou e tiver por mim o apreço que o forçou a custear a minha instrução até que a Bolsa de Estudo me levasse daqui, mais não poderei desejar.

Perante a enérgica declaração, António encolhia-se, vergava-se, diminuía...

E Carlos prosseguiu:

- 'Trabalhei muito e mereci todas as recompensas que obtive. Não precisei de padrinhos para vencer o curso

O outro gaguejou:

- Atreves-te ?

O Médico dardejou-lhe um olhar imperioso que o fez calar.

- Citei algum nome ? Creio que não e deves portanto manter a calma. Eu nasci pobre; deram-me os meios de me erguer pelos meus esforços individuais, facultando-me o dinheiro preciso para vencer os anos dispendiosos. Mas não gastei um centavo mal gasto, não explorei, muitas vezes não pedi o que me era estritamente necessário. Suportei faltas de toda a espécie para não solicitar mais do que a mesada, generosa sim mas insuficiente, porque nada há nesta vida que não custe dinheiro. Solas nos sapatos, uma camisola de agasalho e um xarope quando se tosse, são caros. E aquela quantia certa de que eu dispunha mensalmente não contava com tais acréscimos... Devo os meios de lutar ao teu primo conde, mas tive de lutar só e lutar muito para conseguir aproveitar-me desses meios! Posso por isso dizer-te que se for alguém o serei graças aos sacrifícios que suportei. E tudo o mais - simpatias, classificações, conhecimentos, tudo isso fui eu, sozinho, que o adquiri. A própria protecção do Ministro, obtive-a eu! não levei sequer uma carta de recomendação! E de ninguém ocultei a minha origem modesta. Porque para as criaturas inteligentes bastam como credenciais o valor pessoal, moral e intelectual de cada um.

Carlos parecia cansado, ou da extrema fogosidade com que falara ou do combate interior para vencer a cólera sentida contra o Engenheiro cheio de pretensões e vazio de sentimentos. António dir-se-ia atordoado como quem apanha uma tremenda pancada na cabeça.

Ao cabo de um momento, o Médico prosseguiu, mais brandamente

- Detesto as complicações, sejam de que espécie forem. Aspiro a simplicidade das coisas e dos homens. Aborreço os grandes meios pela sua vida fictícia, mentirosa, complexa. Sinto-me bem na terra em que nasci e gostaria de poder ficar nela, servindo-a com o que aprendi e quero pôr em prática.

António, verificando que deixava de ser alvo daquela tremenda ira, ousou erguer as pupilas, lançar uma interrogação, tanto mais que o assunto focado lhe interessava.

- Gostarias? Isso significa que não ficas aqui?

O Médico não queria prolongar a lição ministrada a António, iam-se-lhe dissipando as fundas rugas da testa, no distendimento da sua natureza sadia.

- Não poderei. Chamam-me para longe.

No torvo olhar de António brilhava porém uma intenção oculta. O cobarde esquecia a prudência e voltava a pretender ferir...

- O primo Teixeira de Melo ficará com certeza satisfeito quando te souber bem colocado

Mais uma vez soando no diálogo, aquele nome impôs-se repentinamente e de forma estranha a Carlos. Excitado pela enervante discussão mantida, viu-o tomar proporções disformes. Era o seu espírito agitado que o avolumava, vendo-o escrito em formas gigantescas, ouvindo-o em badaladas que se lhe repercutiam nas têmporas... E, numa associação íntima de idéias, via-o agora ligado a outro nome, um nome querido, um nome onde cada letra era uma luz a encher de claridade o caminho árido e escalvado por onde corajosamente avançara através de riscos e traições, sem um desfalecimento, amparado pelo seu brilho esplendoroso, na ânsia infinita de o atingir, de chegar junto dele para lhe depor a alma aos pés e ficar-se a existência inteira a rezar-lhe orações de amor depois de lhe oferecer, como suprema homenagem, a coroa da vitória alcançada graças à sua longínqua e cintilante protecção...

Lembrara-a constantemente, levara-lhe a imagem para onde quer que fosse, jamais deixara de a evocar com saudade, jamais deixara de lhe querer, estivesse onde estivesse.

Rosalinda! A sua Linda! A garotinha loira e meiga que um dia lhe afirmara, sentada à beira do poço comendo os morangos que ele lhe fora colher, tão vermelhos como o seu sentir de rapazote "o Papá é vaidoso e a Mamã também. Quero lá bem saber! Quando tu fores grande, caso contigo e acabou-se!".

Rosalinda! A amorosa rapariguinha que ao dizer-lhe adeus, na distante manhã em que partira para terras de além do mar, lhe murmurara fervorosamente "se ainda houvesse reis que fizessem nobres os que sabem honrá-los com os seus serviços, tu serias nobre também... Trazes os pergaminhos na alma e na cabeça!".

Oh, Deus do Céu! Fora animado por essa figura radiosa que conseguira não desfalecer nunca! E agora, que regressava, volvidos três anos, ela seria ainda a mesma, dona de idêntico pensar, dona de idêntico sentir?

Recordaria a moça no fulgor da juventude as palavras ditas outrora, à beira do poço junto do qual ele lhe dava morangos? Desejava tanto sabê-lo! E desejando-o temia tanto o minuto da reaproximação...

De soslaio, António analisava aquela súbita expressão meditativa. E no torvelinho do seu pensar, conquanto bem longe possivelmente de medir qual a preocupação do Médico - talvez guiado por directriz provinda de qualquer reminiscência! -urdira a pergunta que repentinamente soou:

- A propósito, Carlos. Já viste a Rosalinda?

Carlos estremeceu como tocado por uma descarga eléctrica. Aquele a propósito sem a propósito nenhum, vindo ao encontro das suas reflexões íntimas, causara-lhe um abalo nervoso difícil de explicar. Era quase a percepção de uma angústia física que o magoava sem lhe causar dor. Uma -espécie de moinho, tênue, que irritava como o zumbido do mosquito que incomoda sem picar.

Volveu-lhe, com forçada naturalidade e humedecendo os lábios que haviam secado:

- Não, ainda não. Fui primeiro abraçar os meus Pais e tenciono ir ao Solar mais logo.

O primo da condessinha ria agora com um largo sorriso de aparência bonacheirona.

- Andaste com acerto! Se tivesses ido ao Solar não a encontrarias. Estivemos juntos até há pouco. Fomos dar um passeio na minha moto.

Agora, o zumbido do mosquito que incomoda mas não pica volvia-se em ataque impertinente de vespa... A angústia de Carlos acentuava-se e a dor tomava proporções. Felizmente compreenderia a tempo a nova frechada que o Engenheiro desferira e, recalcando a indignação por tanta perfídia, aprestou-se para não deixar perceber se fora ou não atingido.

E ignorando a petulância da revelação que podia prestar-se a conjecturas bem desagradáveis, indagou:

- Rosalinda é então ainda a mesma garota que adora os passeios matinais? Não se modificou?

António esteve prestes a declarar"não se modificou", tanto mais que recordava nitidamente as diabruras que ela não se cansava de lhe fazer, hoje como em petiza. Mas deu fé do perigo dessa afirmativa, que poderia satisfazer quaisquer secretos desejos de Carlos, atraiçoados na ansiedade que mau grado seu vibrara no quesito. Era preciso, a todo o transe, que ele supusesse Rosalinda transformada nos seus gostos... E retorquiu-lhe, precipitadamente:

- Modificou, modificou! Nada tem da pequenita estouvada que conheceste! Compreendeu as responsabilidades da idade e da posição e podes ficar certo de que, embora te fale com o seu galante sorriso de sempre, não te permitirá a antiga familiaridade. Perdeste a companheira de folguedos!

Apesar do domínio da vontade, Carlos não pôde evitar empalidecer, sob o fulgor sarcástico das pupilas resplendentes de íntimo consolo.

- Ah, sim! - murmurou, como que respondendo a si próPri? - Isso é natural numa rapariga portuguesa. Não existe nelas o espírito de convívio que reina nas estrangeiras, e nas inglesas em especial...

Calou-se.

António sentiu que dessa maneira ele fugia ao objectivo da insinuação lançada. E no seu furor concentrado tentou outro rumo.

- Ah, ah! As inglesas! Belas conquistas, heim? -e como se não visse o olhar carregado de ameaças que o fustigava, escarranchou-se na moto, decidido. - Anda daí almoçar comigo e contar-me essa bela vida!

Mas o Médico nem se moveu.

- A minha bela vida foi feita de trabalho e estudo, não tem interesse para ti. Quanto ao teu almoço, não aceito, primeiro porque apesar de nada valer sei o que devo ao meu amor filial; segundo porque a minha presença te deslustraria os brasões.

- e, sem lhe estender a mão, voltou-lhe as costas com um seco adeus e afastou-se na estrada em sentido contrário ao que percorrera meia-hora antes, transbordante de alegria e paz, no encanto da chegada que lhe fizera esquecer que os inimigos espreitam continuamente a oportunidade de se lançarem sobre a presa cobiçada.

Ante a deserção, o Engenheiro ficou por segundos boquiaberto. Depois, endireitando-se no selim, antes de dar com o pé o arranco da moto, gritou, num desafio que já não teria resposta, atacando de costas como todos os miseráveis que ferem até com basófias:

- Seja! Irei então almoçar com o primo conde e lá direi à Rosalinda que chegaste!...

Mas, apesar de tudo, não fora talvez Carlos quem da luta saíra mais mal tratado

 

As risadas argentinas vibravam sob a abóbada do tunelzinho que dava acesso ao pátio interior da moradia bem construída, um tanto atarracada na sua vastidão, debaixo da amálgama de estilos que lhe coroavam a frontaria.

Nesse recinto largo, no centro do qual se abria um formoso tanque de mármore para onde jorrava água uma figura de bronze no jeito de quem entorna o cantil, desembocava a escadaria que o ligava com o terraço, aberto entre pilares que sustentavam o andar superior, de largas janelas ovaladas. Para esse amplo terraço, de paredes revestidas por azulejos valiosos, davam as portas dos salões do rés-do-chão veladas por reposteiros de damasco elegantemente armados.

Era junto do pequeno tanque que Rosalinda estava ajoelhada brincando com o cãozito, rindo das pretensões dessa coisa minúscula que não parava quieta esforçando-se por mordiscar as mãos da dona e tentando explicar algo.

Na frente dela, empertigada e carrancuda, Dona Palmira Teixeira de Melo, a condessa de Olivosa, assistia à cena sem nenhuma espécie de indulgência. Assistia e impunha-se.

- Cale-se, Rosalinda! Cale-se... ou diga-me onde foi apanhar essa porcaria.

- Porcaria? Porcaria, o meu Inevitável?

- O seu quê? Como lhe chamou?

- Inevitável!

- Inevitável? Mas isso é nome?

- Foi o António que o baptizou! - e com ar consternado: Não gosta?

A condessa ia de pasmo em pasmo.

- O António? Mas foi o António quem lho deu?

- Não, mas fomos ambos buscá-lo há pouco à Quinta da prima Henriqueta. É filho da Boby e ainda só tem quinze dias! Veja que amor, Mãezinha! Não é mesmo lindo ? - e erguia no ar o animal graciosíssimo.

Dona Palmira hesitava, perplexa.

- Ah, muito bem o António ajudou-a Já ele se mete nestas coisas!

De soslaio, Rosalinda olhou-a. Naquela exclamação havia menos zanga e ela tinha agora a certeza de que o cachorrito seria finalmente recebido o melhor possível. Aliás o Inevitável pouco se importava com o tom ríspido daquela voz autoritária, visto que uns dedos condescendentes continuavam a deixar-se apertar pelas suas gengivas tenrinhas.

Dona Palmira principiava a sorrir. Era um sinal infalível de boa disposição, com a qual a filha contara plenamente, tanto mais que dessa vez a zanga da condessa não tivera origem em quaisquer acontecimentos que lhe afectassem o orgulho senhoril. Quando tal se dava, quando os factos ameaçavam a integridade, por ela prevista " arquitectada, dos seus pergaminhos, então a sua ira tornava-se insustentável, impiedosa, e Rosalinda bem sabia até que ponto troava e até que ponto ela própria a sofrera.

Sim, no seu horror por tudo quanto viesse da plebe, Dona Palmira Teixeira de Melo chegava a tornar-se intratável!

Devido às suas intransigências aristocráticas, Rosalinda sofrera os erros de uma educação falsa, atenuada felizmente pelas reacções de um espírito dotado pelo sentido da coerência.

Entregue de pequenita à severidade cáustica de três Mestras, uma portuguesa e duas estrangeiras, a alma da criança não conhecera a alegria do convívio infantil e dos folgares da primeira juventude. Estudos áridos, sem grande sabor prático, precocemente propostos à inteligência lúcida, haviam no entanto, forçando-o, contribuído para um rápido desenvolvimento do raciocínio. E assim, aos treze anos, sem um exame mas falando primorosamente quatro línguas e revelando notáveis conhecimentos sobre artes e ciências, o temperamento da rapariga, eclodindo por seu natural, revelara-se senhor de si e combativo por direitos de espírito.

O gênero de instrução não escravizara a personalidade, como seria de temer noutra com menos domínio de vontade e menos força de alma, pelo contrário! Revigorara-a, permitira-lhe mais larga expansão, dando-lhe raízes e limitando-a nos âmbitos da consciência por inteireza de caracter.

A disciplina férrea a que fora sujeita nos tempos da meninice servira para lhe ensinar a importância dos deveres sem conseguir estiolar-lhe a alegria que, albergada no coração, dele fazendo parte, se lhe revelava nos gestos e nos olhos até nos momentos de maior contensão.

Por sorte, também, o poder do Pai, mais humano e acessível, modelar em todos os seus sentimentos, contrabalançara eficazmente a linha de educação imposta pela Mãe. Conquanto cedendo facilmente à vontade da esposa, pelo grande amor que lhe votava, Olivosa condoía-se da vida austera levada por essa garota que tão cedo conhecia o amargo das preocupações, queimando as pestanas durante horas seguidas sobre os livros que só deixava pelos bordados, os bordados apenas trocados pelo piano... E, graças a "essa influência, Rosalinda pudera usufruir diariamente de uma hora de liberdade durante a qual a contrariedade da Mãe, perdendo-a da tutela, subia ao rubro, sem contudo de forma alguma conseguir modificar a situação e embora durante anos, diariamente, o marido tivesse de escutar os mesmos queixumes e exprobações. Mas, ou exactamente por serem sempre os mesmos ou por reconhecer o bem que desse descanço advinha à filha, o conde nunca transigira. E assim primeiro a criança, depois a adolescente, todos os dias possuía sessenta minutos -nem mais um, que a corneta soprada por miss Joan era implacável no sinal do "volte imediatamente" que eram dela e que podia viver como lhe aprouvesse.

Desses recreios sempre regressava com os olhos mais brilhantes e as faces mais rosadas, o que demonstrava ao Pai que a sua decisão era certíssima, nela o radicando inabalavelmente.

Nas férias, o tempo de liberdade triplicava, enquanto as restantes horas se destinavam a ler livros escolhidos pela Mãe (quase sempre enfadonhos) e a receber lições de etiqueta esta para Rosalinda a aprendizagem mais árdua, flagelada pelas explicações pouco interessantes da condessa, ainda por cima quase sempre a ralhar porque a via abrir a boca constantemente.

Esse aborrecimento colhia a recompensa nas folgas obtidas, durante as quais corria alegre como uma cabritinha, saltando e pulando sem restrições nem conselhos... Por companhia dilecta, desde os tempos de bebê, por assim dizer, em todos os momentos longe de casa, um catraio galhardo e divertido que a tratava com carinho e lhe ensinava mil tropelias - o filho do Caseiro, um rapazito esperto e simpático que o conde protegia e a expensas dele andava a estudar na cidade.

Um capricho -capricho lhe chamava Dona Palmira, maldizendo aquele interesse que considerava pessimamente empregado em semelhante plebeu - de Teixeira de Melo, feliz e proficiente revendo-se nos incessantes progressos desse garoto de olhos vivos que sobejamente merecia a confiança nele depositada.

Para Rosalinda, o estudantinho sagaz e atencioso por temperamento era bem melhor companheiro do que o António do Souto, filho de uma tia da Mãe, visita assídua da casa e única convivência infantil que a condessa tolerava para a filha. Bebendo os mesmos ensinamentos que ela pretendia ministrar à garota, dado por instinto às vaidades que mais lhe acirravam a fatuidade, o futuro Engenheiro, ao chegar para férias vindo do Colégio de nomeada onde embaraçava os Mestres com a sua indolência esparvoada, maçava a petiza ensinando-lhe aos serões enfadonhos jogos de cartas que mais a faziam bocejar do que distraíam. E as suas prosápias, crescentes com a idade e apenas compatíveis com as convicções da prima Palmira, discordavam cada vez mais da forma de sentir e de pensar da airosa rapariga que em nada partilhava as suas toleimas.

Para ela, a alegria de existir em contacto com os dias de sol e a ridente simplicidade da existência que se lhe afigurava sem complicações através do ritmo admirável dos campos fecundos nada tinham de comum com os empolados conceitos que entre os seus olhos e a natureza pareciam levantar um espesso véu de inúteis prevenções.

E depois o seu amigo predilecto, ansiosamente esperado durante semanas e semanas, falava-lhe como ninguém da vida movimentada, útil, laboriosa, de outras raparigas, de outros meios, animados, livres de preconceitos bolorentos e doentios. Fora ele que, em grande parte e longe da vigilância da condessa, influíra na sadia orientação do espírito de Rosalinda, ensinando-a a conhecer a beleza intensa dos romances que lhe tiravam das mãos, em casa, e revelando-lhe, numa voz quente e entusiasta, novos horizontes, novos conhecimentos, novas distracções. Graças às suas vibrantes e comunicativas descrições, outros anseios começaram a agitar a alma da rapariguinha que um dia se surpreendeu a desejar ver e analisar esses Colégios barulhentos e proveitosos onde podia conviver com outras meninas da sua idade, auscultando-lhes os ideais, procurando comparar-se a elas sem deixar de ser ela própria!

No dia em que diante dos Pais ousara revelar a sua aspiração, precisara de toda a coragem para agüentar a irritação da Mãe, o espanto do Pai e até os ásperos comentários da Mãe de António, ao tempo ainda viva e que se acalorara a incitar os sobrinhos a resistirem a tão disparatada vontade. Mas foi precisamente o desejo de lutar contra essa influência irritante que a ajudou a não fraquejar!

Lançando os braços em volta do pescoço do conde de Olivosa, com meiguices e promessas risonhas, Rosalinda obtivera licença para se internar até aos dezassete anos num Colégio do Porto. Ia então nos treze.

Protestara a condessa energicamente, insurgindo-se contra a terrível convivência entre a sua filha, herdeira de brasões, e as filhas dos burgueses (e menos ainda!...), convivência que até aí tão cuidadosamente evitara.

O conde, porém, anuíra aos rogos da filha, convencendo a esposa de que os seus receios não tinham razão de ser - Rosalinda nunca se esqueceria do que devia ao seu nome, afirmava e Linda partira.

Um triunfo do filho do Caseiro, triunfo do qual ninguém suspeitava...

E até à idade estipulada, a condessinha apenas quisera visitar a casa paterna durante as férias.

No Colégio, adorada pela conduta e aplicação exemplares, boa discípula e boa colega, a todos pagava ternura com ternura, professando por Mestras e condiscípulas uma amizade ilimitada.

Foi com lágrimas que se despediu dessa temporada tão feliz na sua vida, forçada a trocar as Professoras e as suas adoráveis amiguinhas pelo Solar de Olivosa onde os Pais curtiam lógicas saudades dela, tantas que de forma alguma toleraram, nem por uma hora mais, o acréscimo da ausência. E Rosalinda conformara-se.

Agora, porém, a sua modificação era grande e notória.

Mais bela, mais desenvolta, burilada pelo convívio de mulheres cultas e raparigas inteligentes, assimilara todos os bons ensinamentos do Colégio sem desprezar sequer a parte física, sumamente importante. A ginástica, a dança rítmica, o desporto, haviam contribuído para a agilidade do seu corpo esbelto, dando-lhe robustez dentro de uma aparência delicada.

Espiritualmente muito se desenvolvera colhendo proveitosos ensinamentos que revigoravam as naturais tendências. Na verdade o contacto, nos primeiros bailes, com os galanteies usados e estafados pelos rapazes que se entusiasmavam junto dela; as primícias de uma sensata experiência, nascida de sã visão moral, através das ruas da cidade, analisando o desfilar da multidão; as tagarelices com as próprias criadas do Colégio, rudes e simplórias na sua estrutura típica -tudo contribuira para ajudar a definir o caracter íntegro e desempoeirado dessa rapariga moderna no sentido digno da palavra, ou melhor, tão certa que seria moderna em qualquer época, equilibrando-se num meio-termo merecedor de todo o respeito.

A Mãe logo de início dera pela formação bem definida do espírito da filha, sentindo que esta seguia por caminhos diversos dos que ela sempre trilhara. Lamentara-se ao marido, mas evitava querelar com a rapariga que, risonha e submissa, encontrava sempre argumentos irrefutáveis para lhe retorquir e ainda por cima proferidos num tom de voz tão persuasivo que não era possível querer-lhe mal...

Pouco a pouco, Rosalinda evidenciava a sua forma de ver, não poupando sequer os Pais à declaração de que atribuía maior valor às fortunas da inteligência do que às do dinheiro.

E não ousavam contradizê-la, talvez no fundo reconhecendo que lhe assistia inteira razão ao afirmá-lo... Mas ela, que regressara combativa e decidida a vencer, encontrara nesse silêncio a muralha mais difícil de franquear. Pelo que aceitara a paz sem conflitos, renunciando as partes opostas, delicadamente, a contristarem-se. Havia portanto assuntos banidos das suas conversas diárias.

Um deles abordava as diferenças por ela estabelecidas entre o primo e o protegido do Pai, cuja ascensão na vida a Mãe não via com bons olhos, considerando-a quase como uma usurpação de direitos. Duas vezes chamado o tema a debate, tamanhos choques provocara que Rosalinda, prudentemente, resolvera não mais pugnar pelo futuro Médico. Mas na sua alma coisa alguma podia diminuir a infinita admiração consagrada ao rapaz talentoso que da humildade, à custa do labor do seu braço forte e do seu cérebro privilegiado, subia mais alto, sempre mais alto, sem parar na ambição justíssima, ao passo que António vinha, numa desvergonha constante, alardear as suas permanentes cabulices e as tangentes apanhadas nos exames graças à influência de amigos poderosos que movia descaradamente em favor da sua incapacidade. Rosalinda compreendia que nem só os cursados são gente, estava disposta a admirar, fosse em que situação fosse, o trabalho, o esforço de alma, a preserverança. Qualquer pessoa, por mais modesta, desde que se mostrasse digna e activa, merecia a sua consideração. Mas não tolerava a desfaçatez da inutilidade que pretende guindar-se sem merecimentos a lugares que apenas deviam pertencer a quem revelasse aptidões para bem os desempenhar.

Também, por sorte, o Engenheiro não quisera utilizar o diploma, preferindo usufruir os rendimentos das propriedades e o ócio que lhe permitia gozar os dias como melhor lhe parecesse. E então, lá isso, no desgaste à herança era um às... Desperdiçava-a com sobrançaria de milionário, de senhor de inesgotáveis minas de oiro, enquanto lá longe, aplicado e tenaz, um rapaz pobre procurava saber e merecer ganhar a vida, trabalhando com honra própria e proveito para os que dele se abeirassem.

Por isso Rosalinda os distinguia na sua alma, professando por um ardente afecto cheio de compreensão e devotamento e nutrindo pelo outro uma amizade indulgentemente irônica...

Mas, no lar, achava que ainda não eram horas de alardear uma preferência decisiva.

Encantadora, meiga, simples, dir-se-ia uma boneca nascida para encanto dos olhos e enlevo dos sentidos. Debaixo daqueles caracóis louros havia porém um raciocínio justo, tal como dentro do peito um coração pleno de generosidade. E tornara-se num autêntico raio de sol para os Pais. Porque não os contrariava, cedendo aos seus desejos- até quando não cedia na realidade -, procurando não os desgostar e obtendo assim todas as concessões pretendidas. Aliás, entre esses três entes tão estreitamente unidos reinava uma afeição das que não vacilam, das que não podem ser destruídas, das que perduram em ondas de saudade incurável para além de todos os fins. E essa afeição era, já por si, obstáculo contra possíveis quesílias.

Para a boa gente da terra, a condessinha surgia como a Primavera, florindo em bênçãos de toda a espécie. Espalhava caridade às mãos cheias, caridade rica de ofertas monetárias todo o dinheiro que o Pai lhe dava para uns alfinetes de que nunca precisava porque tinha quanto desejava -, de assistência moral, de ternura e até dos conhecimentos, utilíssimos, adquiridos num curso de Enfermagem que, embora rudimentar, a ensinara a cuidar de males de urgência. Dir-se-ia uma santa no exercício da sua nobre missão, uma santa que não descia do céu à terra, parava à porta dos aflitos num bonito automóvel branco...

Nessa maravilhosa obra cristã orientava-a o bom Prior, que não cessava de dar graças a Deus por essa jóia humana, pedindo para ela a incessante protecção divina.

A condessa Palmira era respeitada nas cercanias com um respeito feito pelo temor que inspiram séculos de um passado histórico aos pés do qual os pobres, na sua pequenês, não se sentem à vontade. A condessinha Rosalinda essa era respeitada com um respeito composto de adoração e reconhecimento que a envolvia numa auréola de amizades fortes como o aço, formando cadeias de inestimável valia. A um gesto seu, se acaso em perigo, centenas de vidas se ofertariam para salvar a dela. E, devido a isso, talvez se decidissem a arriscar-se pela fidalga...

Rosalinda tinha pena do feitio da Mãe, demasiadamente orgulhoso e ríspido, mas ao mesmo tempo congratulava-se de haver herdado dela a absoluta confiança que depositava em si própria e que a fazia esperar a modificação daquela arrogância vã.

Terna, persuasiva, sem constrangimentos, apenas porque possuía esses tesouros na alma, sabia convencê-la e levá-la a actuar, sem sacrifício, de acordo com a sua vontade razoável e ao invés das opiniões perfilhadas. Pelo menos nas coisas pequenas da vida diária sempre assim sucedia...

E naquele momento exacto estava-se dando o costumado.

Dona Palmira, habilmente conduzida pelas tagarelices de Rosalinda, cedia sem dar por tal... Vergando justamente ao peso do último argumento empregado pela condessinha -a interferência do primo cuja aproximação os Pais viam com bons olhos, ou antes, a Mãe via com bons olhos...

E agora já risonha, Dona Palmira dispunha-se à condescendência.

- . A menina é terrível! Consegue sempre o que quer e o pior é que todos a estragam com mimos.

Fulgiram as pupilas da jovem.

- Então deixa-me ficar com esta maravilha?

- Guarde lá esse Inevitável, já que lhe dá tanto gosto! e riu: - Inevitável! Que nome o demônio do rapaz havia de arranjar-lhe!

Rosalinda pontuou o comentário abraçando-a e beijando-a.

- Sempre encantadora, Mãezinha! Obrigadíssima. E saiba que nem por um instante duvidei de que me fazia este jeitinho... A Mãe é tão bondosa

Quem poderia resistir ?

E a condessa estreitou-a ao peito.

- Serei. E a menina, para rimar, é manhosa...

Do terraço, encostado ao varandim, o conde, que atraído pelas vozes amadas minutos antes ali se perfilara, observava sorridente a mulher e a filha.

O conde de Olivosa, na sua meia-idade, era um homem encantador, alto, simpático, da boca espirituosa encimada por um bigode grisalho como o cabelo. E os belos olhos pareciam-se com os de Linda.

Mas o casal era modelar, até nas suas antíteses, que mais se completavam do que contradiziam. O espírito caprichoso da condessa transigia perante a tolerância afável do marido; a sua sisudez austera aquecia-se no espírito docemente trocista do companheiro querido. E quando os dois se criticavam mutuamente, Rosalinda já sabia que o final da disputa seria, como sempre, um longo beijo devotado.

Ria-se agora o excelente homem, diante do quadro que à sua alma se afigurava enternecedor.

- Que doces transportes afectivos! - exclamava alegremente. - Isso é fingimento... ou verdade?

Rosalinda voltou-se para o conde, entusiasmada.

- Pai, dê-me os parabéns! A Mãe concede hospitalidade ao meu novo amigo.

- Qual amigo? -indagou Teixeira de Melo, pondo a mão em pala sobre os olhos e fingindo procurar em torno. - Eu não vejo ninguém!

Dona Palmira informou:

- Ê um cão horrendo que está aí atrás de Rosalinda. O conde soltou uma gargalhada.

- Um cão? Diz antes uma amostra da espécie...

- Chama-lhe amostra! Mas olha que incomoda como os outros!

- Pois sim, pois sim, Palmirinha, mas dá graças aos Céus que ainda tiveste muita sorte. - e piscando um olho à filha, cumplicemente, acrescentou: - Seria muito pior se em vez dessa amostra ela te trouxesse a peça inteira!

A condessa acabou rindo também.

- Estou vendo que no fim de tudo devo ficar muito obrigada à Rosalinda!

Já esta se encaminhava para o tunelzinho que dava acesso à parte baixa da Quinta.

- Onde vai a menina?

Ela voltou-se, fazendo uma reverência à Mãe e mostrando nas mãos o Inevitável.

- vou apresentar esta Excelência aos gatos velhos cá da casa. -e cheia de gentileza: - Já que foi acolhedora para o meu cãozinho, Mãe, estou disposta a achar os seus protegidos encantadores! - e deixando os Pais num sorriso de enlevo, sumiu-se para lá do portal.

 

Agora Rosalinda não ria. Contornando apressadamente o muro da propriedade, levava no rosto uma expressão reflectida e anelante.

Nesse semblante muito sério de que desaparecera o reflexo dos momentos pueris, pairava uma inquietação íntima e profunda, geralmente bem sufocada mas que nem sempre podia guardar-se recôndita na alma que se sentia atabafar à força de a conter.

De repente, numa volta da vedação, tão lesta ia que não teve tempo de ver o Anacleto caminhando em sentido contrário e com ele esbarrou.

Recuaram ambos, o velhote desbarretando-se e pedindo desculpa, ela afagando o cachorrito que no embate se devia ter magoado, pois gania lamentosamente.

Oh, Cleto! - exclamou a rapariga. - Ia agora à tua

procura. Tiveste notícias ?

E de súbito, olhando-o atenta, tão radiosa alegria lhe descobriu na expressão que foi atingida por uma idéia súbita que lhe acelerou o ritmo do coração. Anelante, deitou a mão ao braço do Caseiro.

- Cleto, diz! - insistiu então, arrebatadamente. -Diz depressa! Tu tiveste notícias... Ele vem aí... é?...

E esperou, fremente de impaciência.

A grossa mão calejada afagou os dedos afectuosos que lhe apertavam o braço.

- Não, menina, não vem aí. - e sem permitir que alastrasse o desapontamento no rosto lindo: -Já cá está!

- Já cá está! ? Oh, meu Deus! - e cambaleou, como se fosse desfalecer.

De facto, naquela exclamação perpassara a emoção de um sentir imenso, onde havia surpresa, contentamento e enleio. Há quanto tempo aguardava ela semelhante notícia? Desde pelo menos há um mês que a todas as horas espiava a chegada do seu amigo de infância... Acordava dia após dia com a impressão de que o ambicionado regresso se efectuaria sem demora e noite após noite se deitava com a esperança de que o amanhã daria razão à sua fé.

Nesse esperar contínuo, a que se afizera e que possuía certos encantos, quase achava agora que a espectativa terminara depressa... Apesar de contar com ele e de tantos sonhos à sua volta haver tecido, aquele instante parecia-lhe tão surpreendente como se o não tivesse visionado. E no entanto, desde que fora anunciada a volta de Carlos, concluído o estágio da especialização em Londres, ela não meditava noutra coisa. Aliás era exactamente o que sempre sucedia depois de ele partir... E, em todos os momentos, desde que o visse afastar-se da Quinta, ela mais não sabia fazer do que esperar a volta do amigo, embora tivesse de calar e sufocar as impaciências e os desânimos. Em casa devia mesmo simular indiferença pelos triunfes desse cuja convivência a Mãe, em especial, não acolhia de modo afável, considerando-a talvez demasiadamente morganática

Longe da condessa, apesar disso, o poder medir a profundidade da afeição que unia os dois companheiros de infância!

E Rosalinda não tivera nunca outro cuidado, outro ideal, outra ilusão...

Três longos anos haviam decorrido desde o embarque de Carlos para Inglaterra. E durante esse período, conquanto até mostrasse folgar com as insignificâncias que lhe preenchiam a existência, ela nem por um segundo o esquecera; e era lá longe, seguindo-o, preocupando-se com tudo o que lhe dizia respeito, que andava a sua alma e o seu íntimo divagar. Tudo fazia, no segredo do seu Eu, por ele e para ele, e em sua intenção cuidava de si e procurava aperfeiçoar todas as manifestações da sua personalidade.

E agora... agora ei-lo que vinha perto, que estava próximo...

Tremia, vacilava. Romanceara talvez demasiado esse primeiro encontro para não temer, no fundo do coração, um desapontamento qualquer, desapontamento para o qual não estava de forma alguma preparada.

Em sonhos deliciosos, tudo corria maravilhosamente; em face da realidade, apoderava-se dela um receio jamais experimentado.

Dentro em breve estariam na presença um do outro. Reconhecer-se-iam? Três anos podem mudar tanto uma pessoa!

E apenas sentia medo, medo de que ele não regressasse tal qual fora! Não pensava que ela pudesse parecer-lhe modificada, porque se sentia a mesma de sempre. Mas ele ele ? Seria ainda como outrora, santo Deus -como outrora?... Delicado, amável, tão bom que nunca suportara ver-lhe lágrimas nos olhos, tão sensato que não a deixava praticar qualquer tolice, tão cheio de ambições razoáveis que a fizera almejar sempre mais e melhor em todos os campos de acção?

Continuaria Carlos a ser aquele entusiasta que a empolgava com as suas fantasias de paz e de bem, transbordando intenções generosas, anseios espiritualistas? Voltaria o moço galhardo que sempre fora, simples e afectuoso, mas dominador e imparcial ?

Vinha-lhe um receio inexplicável, quase absurdo, ao reconhecer-se prestes a verificar quanto lhe interessava.

Admitia repentinas e inesperadas hipóteses, fulgurantes e breves como relâmpagos. Talvez ele viesse envaidecido pelos êxitos contínuos, metamorfoseado pela fama de sábio que lá fora o alcandorara a lugares proeminentes... Talvez se erguesse em pedestal, não de orgulho de alma, perfeito e justo, mas de jactância que lhe empanasse o brilho irradiante da simpatia...

No mundo diferente que habitara, adiantado e civilizado, cheio de magnificências e novidades, poder-se-ia estranhar se o espírito do rapaz se houvesse deixado contaminar pela sedução de uma vida mais intensa, mais dinâmica? Em estudos profícuos, em meios apurados de Cientistas, o jovem doutor bebera fama de ilustre. Adaptar-se-ia à atmosfera humilde daquela aldeia pachorrenta?

E depois, acima desses temores um outro se levantava obrigando-a a permanecer, sob a sua pressão esmagadora, imóvel e de olhos baixos, em frente do Anacleto que a fitava pasmado com tão insólito silêncio, ansioso por falar mas sem ousar despertá-la do invulgar marasmo.

Linda sentia-se transida de medo!...

Na convivência da cidade faustosa e arrebatadora onde forçosamente conhecera e lidara com raparigas belas, cultas, actualizadas, independentes, ocupando posições de relevo na sociedade, ele adquirira possivelmente exigências que ela não satisfaria. Não receara o confronto com as meninas de Lisboa, do Porto, de Coimbra. Melhores umas, piores outras, os valores equiparavam-se, porque as influências do temperamento meridional eram idênticas, as educações mais ou menos semelhantes, e ela bem sabia que no grupo homogêneo não seria vencida facilmente ante quem aprendera a conhecê-la e sempre mostrara apreciá-la. Mas que redundaria da comparação entre a sua pessoa recatada, moldada segundo as normas da terra, e as estrangeirinhas capitosas que o próprio António celebrava sem cessar, enaltecendo-lhes graças e graciosidades tanto quanto denegria as suas compatriotas, menos provocantes, é certo, embora talvez mais ricas de um coração devotado no amor e no sacrifício ?

Sim, temia essa competição, temia-a muito

Sofrera os assaltos daquele receio quando Carlos andava perto e sempre o repudiara. com ele longe, com a mesma tenacidade combatera a desconfiança que a torturava, acreditando que ele não a esqueceria nem trocaria por nenhuma. E agora, agora precisamente quando melhor podia afastá-la de si porque Carlos estava a poucos metros de distância, é que o desatinado ciúme vinha obsidiá-la com incrível violência, impondo-se-lhe, estrangulando-a como se fosse um terrível pronuncio de amarga desilusão!

Nesse pavor, que a endoidava, estragando a alegria exuberante que devia experimentar, que sempre imaginara dever experimentar naquele ensejo, dava-lhe para se julgar de tal forma diminuída que se acreditava a mais insignificante, a mais tola e até a mais feia de quantas raparigas ele pudesse ter encontrado! Sim, decerto não lhe reconheceria o mínimo valor, dado que ela era a primeira a sentir-se inferior em todos os pormenores... Talvez nem soubesse conversar com ele sobre quanto lhe prendesse a atenção! Parecia-lhe que para o Médico ilustre e viajado só possuiria encantos quem falasse da ciência dele, dos países visitados e dos ensinamentos colhidos. E acerca de uma e outra coisa que percebia ela? Nada! E só agora dava fé dessa incapacidade; só agora, santo Deus, que se tornava impossível remediá-la! Mais cedo notada, procuraria aprender, adquirir conhecimentos que lhe permitissem mostrar que a rapariga portuguesa pode atingir o nível da perfeição intelectual das que freqüentam Universidades cosmopolitas!...

E desesperava.

Porque não estudara para Médica, porquê? Lembrava-se de um dia, petiza ainda, haver falado em tal... E todos se tinham rido da sua pretensão. Porquê? Não a supunham capaz de vencer a íngreme ladeira? Ah! Porque não insistira?

Pobre tontinha que na verdade estava a ser essa deliciosa Rosalinda que à força de tanto elevar no seu conceito o objecto amado tanto se deprimia e apagava a si própria... Que maior homenagem podia ela prestar do que a da sua humildade perante o imenso que admirava?

Ao ansear merecê-lo, via-se mesquinha e indecisa. E sofria.

Talvez que a razão lhe gritasse que os seus temores não eram justificados, mas o coração, toc-toc-toc, badalava-lhe a sua insignificância... Coraçãozinho louco, adorava demais a imagem que nele resplandecia!

Intrigadíssimo, vendo que Rosalinda se eternizava em mudez, como se o tivesse esquecido, Anacleto resolveu-se a indagar:

- Condessinha, que tem ? Ela estremeceu, fitando-o um pouco alucinada.

- Não quero que me trates mais por condessinha! - proferiu, sem dar conta do ilogismo da ordem nem do tom áspero em que a proferira.

Mais atônito ficou o velho.

Homessa! Porquê, menina? Sempre assim a tratei eu e o meu Carlos e...

Ele tentava atraí-la para o assunto que o inundava e lhe interessava mais do que tudo na vida, mas a rapariga interrompeu-o.

- Carlos!

Pronunciara tão gritantemente o nome sonoro, que Anacleto a fitou num repentino cuidado.

Que acentuação invulgar dera ela ao nome mil vezes repetido em segredo para ele assim a contemplar, como se defrontasse qualquer mistério?

Até então, decerto, ao bom do Caseiro, como à mulher - únicas pessoas com quem Rosalinda podia livremente falar do rapaz - se afigurara natural a estima curiosa e inquieta que a levava a sempre se lhe referir e a sempre querer saber dele. Mas agora, diante dessa atitude estranha, o espírito singelo do velhote seria mordido por qualquer suspeita, tão inverosímil que aceitá-la lhe devia parecer um ultraje à fidalguinha?

Entretanto, Rosalinda apercebera-se do movimento desconfiado do velho amigo. Gorou intensamente mas logo procurou desvanecer a mal definida preocupação que lhe lia nas pupilas, vendo-o a ele por seu turno mudo e quedo. E procurou ser o mais jovial possível, a despeito da amargura que a asfixiava.

- O Carlos! O Carlos! - repetiu, mas com menos intensidade de voz e de expressão, querendo justificar o primeiro grito. -Que surpresa ter chegado assim!... Até parece mentira! E sinto-me muito contente, Anacleto, por ti e por mim que vou tornar a ver o meu amigo de infância... E onde está ele, para eu ir abraçá-lo?

Conseguira aparentar tamanha naturalidade que imediatamente a má impressão experimentada por Anacleto - impossível seria mesmo ao velhote explicar qual tivesse sido! - se dissipou. Apaziguou-se-lhe a tênue opressão e não mais se lhe afigurou estranha a atitude da rapariga. Fora de espanto, apenas de espanto, o silêncio e depois o brado... Ela ficara como ele próprio, quando o filho lhe aparecera diante. Nem forças tivera para lhe estender os braços!

Distendido, feliz, pôs-se a rir.

- Chegou a casa um senhor despois da menina ter saído. Fui encontrá-lo perto da casa, agarrado Li à patroa, que chorava ai, o que ela chorava! De alegria, santinha, tá visto! E olhe que me prèguntou logo pela menina. Eu disse que a condessinha (- e olhou-a de esguelha, talvez para ver o efeito da teimosia, mas ela nem pestanejou, por não saber que explicação dar ao irreflectido protesto-) tinha ido dar uma volta, e ele ficou com muita pena.

Como num eco, ela repetiu, extasiada: - com muita pena!...

- E não é de admirar! Há tanto tempo lá por longe! Rosalinda interrompeu-o:

- E onde está ele, Cleto?

- Ai, lá isso não sei eu! Há bocado foi a casa abrir uma data de malões...

Rosalinda fremia de impaciência, contendo o ímpeto de se lançar em procura do desejado... E fazendo muita força com os pés no chão, para que eles não a arrastassem numa corrida, largou a pergunta que lhe escaldava os lábios:

- Cleto... e como vem ele? Mudado?

O bom homem desprendeu uma risadinha, ufano.

- Eh, eh Eu sei lá, menina! Olhe que talvez! Vem mais home! Acho que enlarguesceu... e a modos que está bem bonito rapaz...

- E vaidoso?

- Vaidoso ? Ah, boa! Parece que não, mas também os filhos nunca o podem ser prós que lhes deram o ser, então não?

Rosalinda sentiu que o Anacleto raciocinava melhor do que ela... Na verdade, como exigir a esse Pai, mergulhado em ventura, que discernisse se o filho se tornara ou não orgulhoso dos seus triunfos? Por muito emproado que estivesse, não seriam os seus velhotes quem o notaria...

De repente, Anacleto exclamou:

- Olhe, condessinha veja agora a menina Daquela banda, diga cá se conhece quem ali vem!

Não, a pobre Rosalinda não estava nada preparada para aquele encontro, apesar de imensamente o haver visionado, ou talvez por isso mesmo. O coração sucumbia ao peso da felicidade.

Carlos! Carlos!

O seu olhar, radioso, pormenorizava a silhueta há tanto contemplada apenas em saudade.

Que belo, que belo! Mais belo do que lhe surgia em todos os sonhos, figura esbatida pela ausência, talvez enfeitada pela poesia dos esfumados mas menos concreta do que essa realidade de contornos palpáveis.

Alto, forte, moreno, músculos de aço sobressaindo sob o corte elegante do fato, vinha avançando de cabeça altivamente erguida, os traços varonis iluminados pelo fulgor insustentável dos olhos

E sob esse fulgor demasiado, na alegria de o rever, ao seu Carlos, ela, estonteada, baixou as pupilas deslumbradas, baixou-as porque se sentia desfalecer...

E não se realizaram as idealizadas efusões do primeiro encontro

Rosalinda achava-se do tamanho de uma mosca em face do gigante bronzeado. A cabeça estava-lhe vazia de pensamentos e os lábios não tinham forças para articular a mais débil frase de boas-vindas. Toda ela era sentimento sem lógica. E a azougada condessinha estava privada da fala, da inteligência, em singular homenagem ao recém-chegado

E contudo o fulgor dos olhos de Carlos, que se acendera mal avistara a linda rapariga de pupilas erguidas para ele, extinguira-se por completo mal que as vira desviadas e confuso o rosto da dona, confuso e tão branco quanto pouco antes cor-de-rosa.

E deu-se-lhe no semblante completa mudança.

É que, naquela atitude de enleio, que lhe parecera malquerente porque venenosas palavras lhe haviam magoado o espírito, ele via a razão das advertências momentos antes ouvidas a António do Souto e recentes demais, vividas demais na sua alma chagada pelas insinuações maléficas.

E ficaram assim, de pé, na frente um do outro, sem um cumprimento, sem uma saudação.

A fisionomia do Médico parecia agora esculpida em mármore, gelada, confinada em mordente reserva. E já desviava o olhar dessa criaturinha orgulhosa que nem sequer tivera para ele um gesto de acolhimento. E já recalcava no peito o louco desejo de apertar nas suas aquelas mãozinhas lindas, guardando, como ela, o mais completo silêncio.

Assim, por culpa de uma excessiva paixão, sob a qual vergava a fragilidade de uma alma romântica - a despeito de todas as energias do caracter vencido pelo coração - o enorme equívoco nasceu. Pairando acima dele, a perfídia do Engenheiro que a tempo soubera indispor a outra alma masculina.

Constrangida, invencivelmente paralisada, a doer-lhe o não escutar qualquer palavra, Rosalinda ainda teve porém, e decorridos alguns segundos, forças para ousar fitar Carlos de soslaio. E é possível que, se encontrasse postos nela os olhos do rapaz, sentisse fundir-se o seu absurdo enleio. Mas, defrontando com as feições crispadas, maior estrangulamento lhe apertou a garganta onde os soluços principiavam a acumular-se sob o império da decepção. da tremenda decepção que nem na pior das hipóteses imaginara viável!

E assim estupidamente se quedaram ambos debaixo da estupefacção de Anacleto que não podia compreender aquelas expressões trágicas em pessoas minutos antes tão exuberantes, tão alegres e tão ansiosas de se verem.

Foi Carlos, como mais forte, o primeiro a sacudir o torpor que lhe ligava membros e idéias em profundo sofrer. E, numa exagerada mesura, disse apressadamente, ansioso de terminar o cumprimento que nada tinha a ver com eles:

- Senhora Dona Rosalinda, apresento a V. Ex. a as minhas homenagens. - e ficou hirto como um soldado em frente do chefe.

Anacleto, incapaz de avaliar o amargo sarcasmo contido na frase, aceitou-a como prova da muito educação que o filho andara colhendo nesses meios extraordinários de fortuna e saber, tão altos na esfera das suas admirações que ao velho entontecia lembrá-los, enchendo-o de terna consideração pelo engrandecimento desse pedaço de si próprio, tão excepcionalmente favorecido pela Sorte e elevado a lugares que ele, nas suas ambições de Pai, jamais sonharia porque jamais se atreveria a pensar que o seu miúdo viesse a ser príncipe. Que príncipe ou Doutor, para Anacleto, era quase a mesma coisa. Tinha laivos de acontecimento de história de embalar meninos.

Para Linda, a fria saudação foi o último toque para um abismo de desesperos. Rolou por ele, desamparada.

Não havia que duvidar! Carlos esquecera-a, Carlos já não gostava dela. Carlos trocara-a, com certeza. Carlos repudiava a antiga amizade e todas as recordações que os uniam. E para logo de início evitar enganos difíceis de reparar decidira apresentar-se-lhe com aquela atitude indiferente, desprendida. Assim, ela não criaria ilusões! E. Ah, não! Não iria agora mostrar-se sucumbida, desolada. Não! Não permitiria que ele se vangloriasse da sua ingenuidade. Entraria sem hesitar no caminho indicado. Pagar-lhe-ia indiferença com indiferença, esquecimento com esquecimento, etiqueta com etiqueta

Precisava de ser forte, sê-lo-ia. Tinha de aceitar. o seu pai aceitá-lo-ia. Devia significar claramente ao recém-chegado que também o esquecera e também o olhava com o maior alheamento - fá-lo-ia. Estivesse ele descansado que Rosalinda Teixeira de Melo não pretenderia reatar os laços extintos. Estivesse ele descansado que a condessinha era briosa e não precisava de esmolar atenções. Doravante, entre ambos existiriam apenas as banais palavras de quem se cruza em caminhos diferentes

E então, abrindo muito os olhos para bem reter o pranto prestes a saltar, endireitando a cabeça para que o nó da garganta não a sufocasse de vez, proferiu:

- Obrigada, Carlos. Estimei ver-te. Passa bem!

As frases cortantes, de secas nas inflexões, deixaram o Médico paralizado.

Como se transformara aquela Rosalinda que estremecera e quisera adorar eternamente!

Como ela recebia a oferenda da vida que vinha para lhe depor aos pés! Sem um sorriso, desviando os olhos, afastando-se, gritando-lhe na expressão reservada do semblante lívido que nunca mais deviam falar da estima e do mútuo apreço que os unira num outrora que não ia longe e parecia decorrido há milênios!.

Fora tudo inútil, então! Lutas, trabalhos, esforços desmedidos, ambições e triunfos. Desmoronava-se o castelo de ventura que loucamente ousara julgar levantado sobre esteios firmes, sepultando com esperanças e anseios a força motriz da sua existência!

O amor que trazia na alma, o amor que trazia para lhe dar sem limites, devia sossobrar, morrer, arrastando para o túmulo a sua própria alma, visto que ela, sem um olhar de pena, sem um gesto de afeição, seguia em frente deixando-o ali especado, imóvel, a vê-la abrir entre os dois uma distância cada vez maior, até desaparecer do alcance da sua vista como também desaparecia da sua existência.

 

Apertava convulsivamente as mãos; dobrava-se um pouco na ânsia baldada de contemplar por mais um segundo o vulto encantador que se sumira numa volta do caminho. E, num êxtase e num delírio, balbuciou:

- Como está diferente! Como está diferente! Aturdido, boquiaberto, Anacleto volvia agora as pupilas

para o filho. Que queria aquilo dizer? Não conseguira perceber nadinha daquele encontro! Não entendia a mudez de Carlos nem a transformação da condessinha.

Que bicho lhes teria mordido?

E ao comentário surdo do Médico respondeu com um grunhido indistinto.

que, além de espantado, estava um tanto ofendido no seu orgulho paterno. Era certo que julgava estranha a atitude de Carlos. Mas ele vinha lá de fora e sabia com certeza como é que se devia proceder em situações daquelas. Mas a menina, a menina sempre tão interessada em indagar o que se passava e que nem sequer felicitara o recém-chegado? Nunca esperara tal, pelo contrário! Aguardava ouvir meia-dúzia de elogios que ditos por aquela boca teriam para o velho duplicado valor. E ludibriado na sua esperança também longamente acarinhada, sentia-se magoado. A condessinha não mostrara qualquer satisfação nem tivera uma frase bonita. Porque motivo, se pouco antes se mostrara tão expansiva? E ela não era pessoa para enganar fosse quem fosse! Lá isso, por muito melindrado que estivesse, jamais deixaria de reconhecê-lo!

Demônios o levassem se compreendia alguma coisa do que se passara!

Carlos continuava a resmonear, entre-dentes, coisas que o Pai mal percebia. Era aqui um linda, além um metamorfose, depois um mais bela- e pronto! Então afoitou-se a indagar:

- Olha lá, filho, que te parceu a menina?

Carlos olhou-o como se acordasse de um pesado letargo.

- Eu?. Ah, sim. mais mulher. muito bonita. Anacleto encolheu os ombros. Ora os rapazes que só vêem

as aparências!.

- Não era isso que eu queria saber. Cuidei que que.

- Que o quê, Pai? - e tornando-se um pouco mais senhor de si, Carlos franzia os sobrolhos, inquieto.

- Ora. que tivesses notado aqueles modos

Carlos estremeceu. Sendo assim, o Pai apercebera-se da singular conduta de Rosalinda ?

Ah mas desse por onde desse, tinha de livrar de tormentos o seu velhote, escondendo o melhor possível a dor que o ulcerava, não o deixando sequer suspeitar da importância que aqueles modos haviam tido para ele. Era preciso que Anacleto não sonhasse nunca o amor que o filho votara à herdeira dos patrões, amor desgraçado, sem remédio, sem lenitivo. Amor que o juiígia a uma atitude de servo, como fatalismo inexorável.

Inteligente, compreensivo, não teria dificuldade em encontrar as explicações que mais naturais parecessem a Anacleto. O sorriso forçado, porém, era uma dolorosa careta.

- Aqueles modos? Mas não achei nada de extraordinário neles. São normais numa fidalga.

- Ah, bom se é isso está certo. - No entanto, aferrava-se à sua idéia. - Mas nunca a vi assim. Pode ser que lá na sociedade eles se entendam uns com os outros sem quase falarem, mas aqui a menina não regateia palavras a ninguém . Eu nunca a vi assim empertigada!. Salvo o devido respeito, até me fez lembrar a sr.a condessa.

Carlos encolheu os ombros, mortificado pela comparação que lhe sugeria outra.

- É natural que se pareçam, Pai! São Mãe e filha. e a filha é a futura condessa de Olivosa, como a Mãe! Ao passo que eu.

- Tu, o quê?

- Não passo de um plebeu.

- Cais carapuças! -bradou Anacleto, exaltando-se com o que lhe parecia um sacrilégio. - Tomaram uma dúzia de fidalgos e - suspendeu-se e concluiu depois: - Aqui ninguém te faltará ao respeito, an? Todos te admiram e lá os senhores.

O rapaz interrompeu-o, amargamente.

- Os senhores verão sempre em mim o filho de um pobre homem, honesto mas insignificante.

Anacleto, impulsionado a defender e a confortar esse filho tão estremecido, reagiu com uma violência inesperada.

- E então? - tartamudeou. - Isso é algum mal? Pobre? Honesto? Sim, rapaz, pobre e honesto! Honesto como já o foi o meu Pai, que antes queria roer talos de couve do que tocar num ceitil que não fosse ganho por ele! E os homens pobres mas honestos nunca são insignificantes, ora não há? .

Perpassara-lhe na voz o frêmito de um orgulho tão grande que Carlos foi contagiado por ele. Aproximou-se do Pai, dominando-o pela estatura mais elevada, e poisou-lhe as mãos nos ombros.

Ia tentar fazê-lo compreender, sem lhe ferir a sensibilidade, sem magoar esse espírito encantador na sua tocante singeleza, as razões de uma distância que ele próprio, com toda a sua forte e lúcida perspicácia, não podia admitir.

- Sim, Pai, eu sei isso e honro-me de ser descendente de criaturas acima de tudo trabalhadoras e sérias. Mas há pessoas que ligam mais importância aos enfeites, nem que sejam estafados e bolorentos como os dos Teatros, do que à modesta aparência da honestidade sadia. Na sociedade é tudo uma questão de figura. É mais bem recebido o intrujão com dúzias de contos nas algibeiras do que o pobre diabo rico apenas de probidade. Ê mais estimada a mulher que ostente peles e jóias, não importa adquiridas como, do que a rapariguita alindada somente com os ornatos da sua recatada vida de trabalho, que lhe não permite luxos.

O rasgo oratório deixava Anacleto aturdido. Percebia nitidamente a evolução do espírito do filho para as esferas do saber e da compreensão que lhe ficariam sempre estranhas, no milagre dessa instrução admirável. Poderia mesmo afirmar-se que ele mais considerara a sonoridade das palavras escutadas do que o seu sentido onde perpassava a lâmina fria de um juízo formado sobre análises desapaixonadas, coerentes e justificáveis agora pela transformação ocorrida nos modos de Rosalinda.

Atentando no olhar perplexo de Anacleto, Carlos interrompeu-se, apertando mais os ombros dele nas suas mãos esguias.

- Procure entender, Pai! Eu ainda não uso, e nunca usarei porque os abomino, os ouropéis da falsidade e da impostura. Gosto do autêntico, embora simples. Creio que se vale pelo que se É e não pelo que se aparenta. E portanto, para a família do conde de Olivosa, ficarei sendo sempre o rapazote que eles conheceram de calções rotos e que não merece qualquer consideração.

Tamanha angústia lhe vibrara nas derradeiras palavras que Anacleto se sentiu vivamente impressionado. O filho sabia bem o que dizia. Seria de verdade assim? E a ser assim. ele sofria, via-se perfeitamente que sofria!

Ao velho doía o coração. Afigurava-se-lhe que toda a gente devia amar como ele esse rapaz tornado ilustre à força de talentoso.

Desde que tal não sucedesse, vinham-lhe tentações de se revoltar como perante a maior das iniquidades.

Aquilo não podia ser, não podia! Talvez acontecessem coisas dessas noutras terras, mas ali, na sua aldeia de gente boa oh, não!

Após um curto instante de íntima reflexão, o Médico prosseguiu

- O Pai reparou na atitude da condessinha, claro. Pois é significativa do que pensam os condes. É espelho do que pensa a sociedade. Pode até dizer-se que me querem mal por ter saído da esfera em que, na sua opinião, sempre deveria manter-me, estabelecendo com a deles um traço de união que me exclui de convívios com a minha fazendo com que eu não seja nem de uma nem de outra, tornando-me um ser híbrido, complicado. O Pai bem viu que a Linda mal me falou.

Então Anacleto sentiu-se repentinamente aliviado, certo de que o filho laborava num erro, interpretando mal o pensamento dos conterrâneos e, consequentemente, o da condessinha.

Os doutores são atreitos a enganos como quaisquer mortais Não há homens infalíveis!

E, vivamente, abanou a cabeça.

- Ah, lá isso. que a menina mal te falou vi eu! E vi porque ela não é assim, nunca foi nem nunca será! E digo-te que sempre se mostrou bem tua amiga.

- E foi-o, noutros tempos!

- E é-o, cos diachos! Sou eu que to digo!

Carlos não podia concretizar a diferença agora existente. Não podia revelar ao Pai a extensão do golpe recebido, pelo significado que forçosamente tivera de atribuir-lhe. Anacleto jamais deveria suspeitar desse amor que existira sem confissões e ela riscara para sempre da sua vida mostrando-lho mal o vira aportar à terra onde ingenuamente acreditaria encontrá-la e que não morreria na sua alma calcinada pelas cinzas ardentes.

Começaram os dois a andar e, sem prévia combinação, retrocedendo, arripiando o caminho feito.

A meia voz, Carlos comentou:

- O Pai enganou-se.

Anacleto redarguiu imediatamente:

- Não enganei tal! Pois não a vi tão alegre antes de tu chegares?.

Respondeu-lhe uma ironia cáustica.

- Foi o resultado da minha aparição que a modificou.

- Da tua aparição ?

- Sim. Ela quis lembrar-me que entre nós havia barrancos e couraçou-se na vaidade adequada à posição.

Apesar do tom amargo em que falara, Carlos não pôde evitar que o Pai soltasse uma risada.

- Vaidade, a condessinha? Pobre menina! Estás a vê-la com muito maus olhos!

- Eu?

- Sim, tu. Vaidosa, aquele amor? Desculpa, filho, mas isso. isso é que não! Uma menina que fala com todos, que gosta de toda a gente Coitadinha! Não há outra como ela, que mereça a nossa estima e o nosso respeito!

Anacleto era agora solicitado por dois afectos, ambos fortes porque ambos tinham raízes antigas. E se não tolerava as maneiras estranhas da condessinha para com o filho, pasmando delas, de igual forma não admitia a injustiça que o filho cometia para com essa criança que ele trouxera ao colo.

O espírito alterado de Carlos, porém, não lhe permitiu medir esse sentimento, e mais se enfronhou no melindre. Parecia-lhe que o próprio Pai o chamava, mesmo sem querer, a venerar a rapariga como ama.

Inclinou-se, zombeteiro como nunca o fora em momento algum, em parte alguma.

- Não se amofine, Pai. Rosalinda terá em mim o respeito e a estima que nos escravizam. Embora no desnível em que estou colocado seja difícil o equilíbrio, não vacilarei. Perante ela não possarei de um criado atento e solícito aos caprichos da senhora. Esquecer-me-ei de que longe me habituei a valer pelos meus méritos pessoais.

Estavam perto da casinha branca de Anacleto, que surgia muito lavada entre os amarelos e os castanhos dos vinhedos.

O Caseiro suspirou. Já não sabia que dizer! Pois como havia ele, pobre velho ignorante, de argumentar para destruir essa convicção errada, mesmo estando seguro, como estava, de que a condessinha não merecia tais censuras? E quando, por outro lado e verdade seja dita, também não queria que o filho prezasse menos Rosalinda porque. porque, enfim, ela sempre era a filha dos SENHORES!

No entanto, notando a angústia que ensombrava a bela fisionomia do rapaz, encheu-se de coragem:

- Oh, Carlos. ora tu. tu hás-de ver que não é como pensas. A menina há-de falar-te e há-de...

- Talvez. com a condescendência com que se fala aos subalternos, não com a familiaridade usada para para um António do Souto.

Saíra-lhe áspero o comentário, tão áspero que, a dois passos do limiar da casa, Anacleto parou e, dando uma volta, ficou na frente dele, a mirá-lo.

- Como fala ao ao Sr. Engenheiro ? Boa! Mas se cuidas que.

Suspendeu-se. Que ia afirmar? Que podia afirmar? Que a condessinha não era ao primo que mostrava melhor cara, nem a sua companhia a que parecia desejar e procurar mais? Não, não tinha nada a dizer! Nem sequer aceitaria no seu espírito a idéia súbita. Rosalinda e António do Souto eram parentes, conviviam bastante e nem sempre ele os via quando estavam juntos. Portanto mais valia que se calasse. E esquivou-se ao quesito mudo das pupilas de Carlos, inquietas da interrupção.

- Não faças caso, não faças caso. Eu só ia a dizer que são família!

Carlos assentiu:

- Tem razão, Pai! São família. e isso explica muita coisa. -recordava as palavras azedas de António, estadeando a sua intimidade com a rapariga, tanto mais petulante quanto tinha a certeza de feri-lo.

Ah, o maroto conhecia-lhe o ponto vulnerável, o calcanhar de Aquiles por onde podia ser-lhe dada a morte com a inoculação do veneno.

Anacleto viu brilharem mais os olhos do filho, e não interpretou esse fulgor como brotando do desespero. Antes julgou que a explicação o chamava a melhor raciocínio, a não se sentir tão humilhado. Ao velho Anacleto afligia cada vez mais a impressão de que o filho se envergonhava da sua origem humilde e sentia-se infeliz, infeliz!.

Mas, a reagir, disse, tentando consolá-lo do que não tinha remédio e tanto lhe doía, a ele - Pai:

- Olha que a menina preguntava sempre por ti.

- Curiosidade feminina.

Curiosidade feminina. Desejo de saber, para estar ao facto do que se lhe referia e poder atingi-lo depois, desdenhando-o. Oh, como ela se modificara! Até que ponto influências nocivas haviam alterado esse caracter tão recto, tão incapaz de desvios!

Fervilhavam-lhe no cérebro as mais atrozes suposições, enchendo-o de vertigens.

E foi silenciosos que ambos entraram no lar calmo e aceado, pequeno como um ninho onde o amor vive sem alardes nem ostentações, rico do tesoiro que ele próprio constitui.

Meditabundo, Anacleto afastou-se de Carlos, dirigindo-se à cozinha para a qual abria aquela saleta cuja porta era a da rua, aquela saleta, centro da modesta construção, dando acesso aos dois quartos que com ela formavam o pavimento térreo, amplamente arejado pelas janelas que o rasgavam todo, deixando o sol entrar livremente em ondas de luz e calor.

Sozinho, Carlos quedou imóvel um instante. Depois, bruscamente, encaminhando-se para a direita, abriu a porta em frente, entrou e fechou-a, dando imediata volta à chave.

Aí, isolado no singelo aposento, poderia enfim e sem peias entregar-se à dor que o apunhalava. Agora sentado na estreita cama de ferro, cheirosa a roupas de linho conservadas entre murta e alfazema que era um regalo, todo ele exprimia uma infinita desolação.

Lá longe, aquele quartinho aparecia nas suas saudades como um paraíso. E finalmente nele, não vivia nem sombras da alegria imaginada.

Decerto que não por lamentar a falta do conforto a que se habituara. Não! Que lhe importava a ele a pobreza se ali se enquadrava o ambiente familiar tantas vezes recordado e sempre com tamanha ânsia de a ele volver; se ali guardava o passado repleto de ilusões, as esperanças da primeira juventude, o desabrochar da sua alma de crente e de bom?

Ergueu o rosto que escondera entre as mãos e passeou o olhar pelas paredes despidas, caiadas, muito frescas. Procurava nelas imagens extintas cujo perfume revivia, envolvendo-o, penetrando-o, obrigando-o a fugir aos problemas complexos que lhe escaldavam a mente para o restituir todo inteiro à personalidade amorável que ali se definira. Mas era ela precisamente que mais o sucumbia, fazendo-o compreender a situação falsa em que se encontrava e só podia amarfanhá-lo, humilhá-lo, porque...

Porque essa por quem lutara o abandonava, o repelia, o condenava!

Numa amargura sem limites passou a mão nervosa pelos cabelos e o seu olhar triste de exilado de um sonho lindo foi perder-se nas copas frondosas das árvores fronteiras à janela, árvores que sabia quão fundas amarras possuía aquele sentimento que era preciso vencer e arrancar da alma a todo o transe.

Levantou-se depois, deu algumas passadas no quarto, parou junto da porta, encostando-se-lhe.

Lembrava-se de quando Rosalinda, fugindo às ordens da Mãe e à severa vigilância da nurse, corria até ali à procura dele. Freqüentemente vinha queixar-se-lhe de António, do primo, sempre pronto a fazer-lhes partidinhas e a denunciá-los se acaso havia tropelia cometida em conjunto e descoberta. Como daquela vez em que a condessinha fora castigada porque António contara à condessa que ela (haviam estado todos três em conjunto) merendara na cozinha do Caseiro.

Ruminara desforras para aquela injustiça. e agora? Agora era a própria Rosalinda quem se fechava numa reserva hostil contra a qual ele nada podia. Lutaria contra os outros, mas contra ela?

E, contudo, não se conformava. Sim, era necessário que ela lhe explicasse os motivos de um tal procedimento. Exigir-lho-ia!

Exigir-lho-ia? . Estava doido, certamente! Como poderia o filho do Caseiro exigir satisfações à descendente dos condes de Olivosa?

Para que voltara? Para que voltara, afinal?

Ai, devia, ir-se embora, ir-se embora quanto antes. Era a única solução, para que ninguém risse da sua derrota.

Mas... e os Pais? Os Pais que tanto o amavam e a quem o seu regresso tornara tão ditosos? Fugir-lhes? Renegá-los? Não! Não daria razão às insídias de António, ave de mau agoiro profetizando-lhe tudo aquilo em que não sabia acreditar.

Mas ficar ali, tornar a ver Rosalinda, calado diante dela tendo na alma um mundo de recordações a que não podia impor silêncio?

Como impedir-se de dizer-lhe que voltara loucamente esperançado em que a vida continuaria tal qual outrora, deliciosa

- talvez ela voltasse ainda ali, ao seu quarto de adolescente, a queixar-se das maldades de António. ?.

António! Rival preferido, triunfando pela ascendência e porque sempre ali estivera presente a gozar dos rendimentos, enquanto longe, sem ninguém, ele batalhava degrau a degrau, subindo uma ladeira que nem a todos é dado franquear.

E sentia que odiava o Engenheiro, que o odiava com toda a veemência da sua alma exuberante. Aquela era a maior das maroteiras sofridas. O outro roubara-lhe a felicidade! Esse cabeça de vento, esse odre de prosápia.

E vergado para o chão, dir-se-ia um velho esmagado pelo peso dos anos, Carlos.

De certa maneira, reflectindo melhor, parecia-lhe que estaria espiando a ousadia de haver erguido os olhos para tão alto.

E assim o pessimismo se apoderava dele, aumentando com negras pinceladas o quadro derrotista da sua existência futura.

Ah, condessinha! Condessinha que sem títulos e sem fortuna seria a sua noiva ideal - como cedê-la sem protestos e sem lutas ao que não merecia alcançá-la?.

Recomeçou o passeio pelo quarto, obsidiado pela visão torturante - Rosalinda a fugir-lhe para os braços do primo.

Então, inesperadamente, teve um gesto resoluto. Dirigiu-se para um malão colocado num canto, ainda por abrir e, brutalmente, rebentou os fechos, rasgou etiquetas de hotéis, pôs-se a desarrumar tudo aos arrancos, até do meio de uma camisa, que atirou para o chão juntamente com outras peças de roupa, qualquer coisa tombar num tilintante ruído de vidros quebrados.

Deteve-se surpreendido, olhando os pedaços azuis de uma jarra de cristal que se espatifara. Depois, numa quebreira de nervos, murmurou:

- Pobre jarrinha com tanto gosto comprada para ela. partiste-te como o amor impossível a que te destinavas. És o símbolo da afeição que ela nem entenderia, jarrinha da cor dos miosótis, da cor da florzinha que pede ao amor "não me esqueças".

Maquinal, embrulhou os míseros cacos na camisa e tornou a arrumá-los.

Não continuou a mexer no malão. Para quê?

Só recordações lhe traria, recordações que devia pôr de parte quanto antes, para não fraquejar ou não enlouquecer.

Sim, no fundo daquele pequeno armazém jaziam, para sempre inúteis, uma caixa de bombons, um relógio de mármore branco, um colar de pérolas sintéticas. - pequenos múltiplos nadas comprados para um passado feliz e extinto, feliz porque o ajudara a vencer com a chama de uma grande paixão e extinto porque tudo acabara em desalento, partindo-lhe o coração como se partira a jarrinha da cor dos miosótis.

 

Correu pelas escadas acima, meteu-se no quarto, fechou-se à chave e foi cair aos pés da cama, mordendo com ânsia a preciosa colcha de damasco azul que as suas lágrimas manchavam.

Era uma explosão convulsa, revoltada, sem raciocínio de espécie alguma, de artista que assiste ao auto de fé das telas dos seus encantos, de arquitecto cujo lindíssimo castelo se desmorona precisamente quando chega para o mobilar com o oiro da sua ternura só então reconhecendo que estava erguido em frágil terreno de areia, ao sabor dos caprichos oceânicos.

E nessa dor vibrante, impondo-se, tomavam vulto como fantasmas sensíveis os receios a que não quisera prestar atenção por sempre os haver considerado inconsistentes.

E agora a realidade trazia-lhos definidos e concretos, para a aterrarem!

E chorava, chorava, sem lograr que o pranto levasse consigo, da retina entontecida, o semblante há tanto adorado, há tanto esperado e que voltara a ver, sim, mas frio, indiferente, como a dizer-lhe clara e insofismavelmente que devia renunciar de vez!

Carlos! Carlos! Como acontecera aquilo?

E ela, sempre tão confiante, aguardando-o de alma a palpitar de devoção!. Certamente ele deixara lá fora alguém que lhe prendera o coração, alguém que para ele resumia a vida! E por esse motivo lembrado da antiga recíproca simpatia existente entre ambos, quisera logo de entrada significar-lhe, com desapego elucidativo, que o passado morrera e nenhum devia tocar-lhes nas cinzas.

E não podia querer-lhe mal! Carlos escolhera outra ? Era livre de fazê-lo.

Quando partira não lhe deixara nenhuma promessa formal. As promessas datavam de um tempo recuado, quando ambos eram garotos e não mediam acto e palavras. Depois, a corrente irresistível de um afecto límpido manifestara-se sem expansões. Carlos parecia tomado de um acanhamento que se lhe comunicava e nunca, ao encontrarem-se nas férias, aludia aos antigos projectos de matrimônio. Nem mesmo na véspera de embarcar para Inglaterra Carlos pronunciara as palavras que Rosalinda talvez desejasse, conquanto (ou porque ele as não dissera) também as considerasse dispensáveis.

Nesse dia tinham-se contemplado avidamente, mãos apertando-se em feérico querer. mas nenhum deles dissera ao outro "fico à espera de te pertencer para sempre!". Nenhum o dissera. E Rosalinda pensava agora que imediatamente devia ter cortado cerce o devaneio.

Sim, que os olhos dizem mas não falam. Os sonhos idealizam mas não constroiem. E ela fiara-se em olhos que pareciam adorar mas não confirmavam, em sonhos que a incensavam mas não imploravam.

Considerava-se responsável pelo seu próprio sofrimento era a reflexão despertando entre o tumulto da decepção que lho segredava. Não devera ter-se entregue a quimeras erguidas por crianças!

Só. só não era justo o que estava a acontecer-lhe!. Se ele a esquecera, ela devia tê-lo esquecido também.

Se ele a esquecera"?. Mas podia ainda encarar qualquer dúvida? Não lera a certeza mais completa no primeiro olhar que lhe vira?

Ah, ainda bem, ao menos, que o notara acto contínuo e não fora expansiva! Sentira-se gelar ao verificar essa mudança da qual apenas a suspeita já a endoidava e em que não acreditaria se a não tivessse verificado.

Sim, necessitava absolutamente de não se tornar em motivo de riso ou de compaixão. Carlos não teria nem de escarnecê-la nem de lamentá-la.

Ambas as idéias a justificavam, sacudindo-lhe o orgulho e alteando-lhe a mágoa. Dele, dele só aceitaria o amor e esse. esse acabara para sempre, ficara nos dias que não mais seriam vividos. Esse amor inocente, esse amor que supusera eterno e ficara morto nos anos mortos!

Carlos não viera para ela como durante meses e meses o imaginara, de voz alvoroçada no nome estremecido - Rosalinda! Ela não se lhe lançara nos braços a reapossar-se do tesouro sempre ambicionado. Não! Nenhuma das ilusões longamente acariciadas vira a luz da verdade. Acabara o seu amor talvez belo demais e que certamente ela não mereceria, pois nada fizera para que Deus lhe concedesse tamanha bênção. O amor que não encontraria na vida, sabia-o agora, agora que Carlos, friamente, serenamente, lhe mostrara a extinção total das suas esperanças.

Pouco a pouco, os soluços iam decrescendo. O peito cansava-se de os soltar e, extenuado, ficava a expelir débeis gemidos que mal chegavam aos lábios exangues. Ergueu-se por fim e, cambaleando, foi sentar-se junto da mesinha com embutidos dourados ao lado de uma das janelas do quarto, aberta sobre jardim que limitava a frontaria do Solar.

Tentava acalmar, ponderar a situação, estudá-la e definir a regra de conduta que doravante lhe competia seguir. Afastava as névoas; queria discernir razoavelmente.

Visto que Carlos amava outra (e nem por instantes a condessinha estava em condições de admitir que apenas a sua conduta, ditada por absurdos receios, tinha a culpa de todos os acontecimentos - tão falsos e tão autênticos), não lhe assistia o direito de o fazer atraiçoá-la, nem sequer por um olhar.

Tornava-se altruísta, a sua alma desiludida. Aliás ela também não se reconhecia encantos capazes de prenderem as atenções do mancebo, cujas exigências se deviam ter requintado com os ampliados conhecimentos da vida e do mundo -ponto assente nos seus medos confirmados.

Mas. igualmente precisava de ter cuidado em não se lhe esquivar demasiado, não fosse ele deduzir de semelhante atitude que ela lhe queria mal pela preterição. A sua dignidade feminina não lho permitia!

Indiferença por indiferença - eis o que se tornava necessário aparentar!

Competia-lhe portanto apresentar-se com uma discreta exuberância que chamasse fraternal à antiga amizade e que o forçasse a persuadir-se de que outra mais intensa ela nunca imaginara sequer. E dessa maneira, se acaso Carlos experimentasse perante o seu à-vontade um certo constrangimento, auxiliado pela inteligência depressa compreenderia as directrizes que lhe apontava e para elas se encaminharia, retomando um porte que lhes facilitasse a convivência, traçando entre o passado e o presente um laço que não despertasse as atenções dos circunstantes e os convencesse de que a mútua estima fora e continuava pura camaradagem!

Pela parte que lhe tocava, pensava que agüentaria o papel a desempenhar, pelo menos até Carlos se ir embora, pois acreditava que ele não ficaria na aldeia e oxalá assim fosse, porque do maior sofrimento nasceria por fim a maior resignação.

Enquanto o visse, sentia-se ameaçada pelo grande perigo de ser vencida pela força do seu afecto, sossobrando nos declínios da indiferença. E não, não queria que, atentando na sua dor, ele pudesse ainda vangloriar-se!. Isso não!

Afectaria completo alheamento e, para melhor o demonstrar. - porque não? - simularia até namorar o António!

Sim, eis o que devia fazer, eis o que de sobra provaria a Carlos que não só não recordava o passado como nunca lhe havia ligado importância!

E no espírito de Rosalinda o despeito ia surgindo como unguento, ditando uma vingançazinha que, adormentando a mágoa, criava directrizes capazes de a obrigarem a tomar um interesse novo pela vida. A própria desforra arquitectada (ingenuamente) tornava-se no sustentáculo de uma derradeira esperança que os lábios não confessavam, que o cérebro não pormenorizava, mas que a alma sentia.

Talvez que. que ante a evidência de que fora esquecido, Carlos ainda sofresse. Sofreria pelo menos no seu orgulho. E para um coração masculino esse não é dos pesares mais fáceis de olvidar. Os homens não se importam de causar decepções nem de sacrificar uma alma - nenhum gosta de verificar que o desprezo substituiu a antiga devoção merecida e que outro ocupa o lugar que enquanto lhe pertencera havia sido desdenhado. Podem não se preocupar se determinados olhos chorarem por eles a vida inteira. Mas sentem-se prejudicados se os coitaditos, cansados das lágrimas, se erguerem para outros onde consigam beber confiança.

Um tanto confusamente, Rosalinda experimentava o bálsamo desta idéia, cuja lógica tão simples se evidenciava naquele ensejo. Carlos trocara-a sem olhar para trás, mas talvez não aceitasse de bom grado o facto de a ver presa a outro afecto. Talvez lhe vibrasse o amor-próprio. e se arrependesse. e voltasse para ela. e. e nessa altura dar-se-ia por satisfeita. Não, não o acolheria para lhe perdoar! Mostrar-se-ia forte, superior. -e o castigo consumar-se-ia! Aliás, o repúdio pode matar o amor. e ela acreditava que em breve, sob o império da afronta, estaria curada de quantas ilusões alimentara. Não havia pois que hesitar. Daria atenção a António, a António que de há tanto a rodeava com solicitudes sempre rebatidas porque. porque ela não sabia medir-lhes o valor, só agora compreendido.

António não a deixara por nada nem por ninguém; António não a abandonara pelos êxitos da cidade; António preferira ficar junto dela provando-lhe a sua ternura. António parecia-lhe agora repleto das maiores qualidades - e ela tivera a coragem de desprezá-lo!

Tornava-se-lhe completamente aceitável a idéia de desposar o primo. Até aí resistira a todas as pressões que, embora suaves, se faziam sentir pela parte dos Pais, ou melhor, da Mãe, que não disfarçava o seu agrado por semelhante enlace. E não temera responder-lhes, nem que viessem a tornar-se imperiosas, porque se Cabia auxiliada pelo amparo moral de um amor compartilhado. Agora o caso mudava de figura. Deixar-se-ia persuadir.

E era tudo tão fácil! E tudo tão a contento de todos!

Satisfaria aos condes a reunião das duas fortunas numa só. António ficaria ditoso com a anuência dela aos seus desejos. Ela. ela também seria feliz. E Carlos não se riria pela humilhação que certamente julgava ter-lhe infungido!

Apoderou-se-lhe dos nervos uma febril ansiedade -pressa de dar realização imediata a quanto pensava.

Animada pela lembrança - que lhe atiçava na alma o sopro inenarrável da inconsciente fé-, sacudiu a cabeça num movimento enérgico que lhe desordenou os cabelos e distendeu-se num longo estiraçar de membros que era talvez a preparação dos músculos que se dispõem à luta.

Foi encher de água o lavatório ancestral colocado a um canto do quarto. Lavou as pálpebras inflamadas, para disfarçar a vermelhidão; penteou-se, ajeitou o vestido, algo desalinhado; pôs baton nos lábios; empoou-se. Alindou-se o mais que pôde.

Mas no lindo rosto não se desfaziam os sinais evidentes da profunda alteração de que lhe ficara nas pupilas um reflexo alucinado e no semblante engelhas escangalhando a lisura da pele acetinada.

Diante do espelho emoldurado em talha doirada, pôs-se a fitar, atenta, os próprios olhos e, num esforço de auto-sugestão, aprendido e executado sempre que sentia necessidade de se vencer a si própria, pôs-se a repetir, primeiro muito depressa, depois lentamente, lentamente:

- Sossega, sossega, sossega, sossega.

Não obstante, porém, o violento domínio exercido sobre a consciência, quando daí por meia hora ouviu tocar a sineta para o almoço, não se achava segura de si nem exprimia paz a sua fisionomia.

Nunca a terna rapariga, para quem a tristeza não durava largo tempo - por incompatível com a sua personalidade - se reconhecera tão sucumbida.

Ah, aquela manhã, aquela manhã tão fértil em acontecimentos que lhe parecera enorme - maior do que muitos dias!

nas suas horas plenas de impressões contraditórias, ficaria indelevelmente marcada no temperamento da condessinha.

Antes de sair do quarto pensou que devia apresentar aos Pais, para justificação dessa aparência mortificada em que era mais do que certo repararem, uma causa. Depressa a encontrou - teria dores de estômago e de cabeça. Não, não mentia completamente. Ela detestava a mentira - e parecia que António a augurara de manhãzinha, ao vaticinar-lhe que, de tão inimiga da falsidade, ainda talvez acabasse por enredar-se na mais complicada das invenções.

Não era supersticiosa, mas caira-lhe mal aquela insinuação.

Recuou, para tornar a ver-se ao espelho. Que olhos pisados, que boca dolorosa!. Onde estaria a jovial Rosalinda que horas antes utilizara todo o seu entusiasmo para obter da Mãe a permissão de guardar o cachorrinho tão travessamente adquirido? Agora, aquela que se contemplava tinha na fisionomia a expressão da mulher que sofre. Nada restava da rapariga audaz e combativa que ela julgava ser. As próprias resoluções tomadas faziam-na sentir-se fraca e davam-lhe a noção de que o Destino a castigava pela sua pretensão de se julgar dominadora e enérgica como qualquer heroína quando não passava de uma criatura frágil e apaixonada.

Dentro dela, as ânsias e as sensações fundiam-se agora numa infinita saudade pelo sonho que findara. por culpa de outra. de uma outra que desconhecia mas começava a odiar.

 

Esperava-a na sala de jantar uma surpresa que, longe de lhe serenar o espírito atribulado, mais o inquietou.

No vão de uma das janelas abertas para o terraço, conversando familiarmente com o conde de Olivosa, encontrava-se António, com o à-vontade de conviva habitual.

Ajeitando as flores - rosas vermelhas - no grande centro de cristal e vermeil, aparatoso demais para o gosto requintadamente simples de Rosalinda, e dando os últimos retoques na mesa, Dona Palmira ia intervindo no diálogo.

Notando a presença do primo, a rapariga ficou imóvel no limiar da porta. Diante dessa presença vulgar, o seu desgosto recrudescia. António era como um desafio, naquele ambiente capitoso do dia pleno que entrava a jorros pelas vidraças e ia cintilar nas pratas finas, nas porcelanas ricas, ao secreto ideal acarinhado no recôndito da alma. Sempre esperara contemplar ali, na sala íntima, quando regressasse formado e consagrado pelas opiniões gerais dos que haviam aprendido a admirá-lo, o vulto esbelto de Carlos, convidado pelos Pais em demonstração de parabéns. Acreditara-o sempre, deleitara-se visionando longamente a emoção futura, que a teria agora transportada de júbilo. E afinal, em vez de Carlos, distante e alheado dela, era António quem ali estava, pretensioso nos seus irrevogáveis direitos de parente.

Todos, todos os seus sonhos destruídos! Sonhos! São tão lindos e enganosos e deixam um tão grande vácuo nas pessoas quando a realidade fria e inóspita se apressa em substituí-los.

E, contudo, a realidade também pode ser bela! Sê-lo-ia se, em lugar de ter almejado a presença de Carlos, ambicionasse a de António.

António, António!. Não, não podia enlevar-se nele, não conseguia admirá-lo nem querer-lhe. Não obstante as anteriores resoluções, percebia que jamais conseguiria gostar desse petulante rapaz que representava um verdadeiro ultraje às suas ilusões mortas.

E, no fim de contas, porque existia no seu peito uma preferência por Carlos? Porquê? Reconhecia que, fisicamente -distinto, agradável, simpático, bom conversador- o Engenheiro não seria inferior ao Médico. As suas posições equivaliam-se.

E, no fundo de si mesma, até nem poderia negar que estimava o primo. Quando ele partia para a capital, sentia normalmente a falta do companheiro do quotidiano. Quando regressava, ficava satisfeita. E não lhe fora desagradável que ele houvesse decidido instalar-se definitivamente no Solar da família, entregue à vigilância e à gerência das propriedades recebidas em herança do Pai e da Mãe, porque dispunha assim de um amigo sempre disposto a contentar-lhe os caprichos. Não a aborrecia tê-lo como parceiro no tênis ou passear a cavalo ao lado dele. Havia ali tão poucas distracções! E a convivência do primo possuía certos encantos, era forçoso confessá-lo.

Mas nos seus devaneios, nesses em que a felicidade suprema, a que inebria alma e sentidos e torna a vida em perpétuo roseira! sempre florindo alegrias, se encerra no entontecedor mistério de duas bocas juntas pela primeira vez, jamais ele entrara. Jamais o imaginara senhor da sua vida, do seu destino, dispondo dela como de coisa própria, integrando-a nas horas más como nas boas, no riso como na dor.

O futuro, entrevisto em azul e cor-de-rosa, esse pertencia a Carlos. E era sempre Carlos o rei absoluto de todas as quimeras tecidas! Carlos que a levava nos braços; Carlos que a libertava dos perigos; Carlos que a salvaria de tentações; Carlos que a cobrira de bênçãos; Carlos a quem se confiaria inteiramente entre véus imaculados.

E, afinal, Carlos fugia-lhe e António estava à sua beira, permanecendo fiel.

Num amálgama confuso de porquês, Rosalinda interrogava-se mudamente, porque já nem sabia medir o abismo que separa a amizade do amor. Confundia-os por não poder defini-los e não entendia a superioridade de um sobre o outro.

Quando a experiência cáustica e a vida se desdobra em lições de fel, a amizade ocupa uni lugar eleito. Mas aos vinte anos, em plena mocidade, ao clarão bendito do sol nascente, só o amor comanda.

E no limiar da porta, cabisbaixa, a meditar, permanecia a pobre condessinha a quem abandonava a necessidade de se movimentar, de se mostrar natural como nos demais dias.

Do meio da conversa que ia continuando entre os Pais e o primo, alheios à presença dela, soltou-se de súbito uma frase que a despertou do marasmo em que se afundara. A Mãe estranhava-lhe a demora.

- Onde estará Rosalinda que não aparece? Não teria ouvido a sineta? vou tocar novamente.

Mas quando se encaminhava para o aparador sobre o qual estava poisada a campainha de prata, deu com os olhos na filha e protestou imediatamente:

- Que está a menina a fazer? Porque não entra? Nós a notarmos a sua falta e a menina aí sem nada dizer. ?

Sob os seis olhos agora nela poisados, Rosalinda deu um passo, esboçou uma justificação:

- Cheguei neste instante.

E sorria, mas um sorriso tão pálido e transtornado que Dona Palmira ao observá-lo se afligiu.

- A menina não está bem, Rosalinda! Dói-lhe alguma coisa? Tem febre? Anda sempre de cabeça ao sol!

Aproximou-se dela, palpou-lhe as mãos para lhes sentir o calor, tomou-lhe o pulso.

Rosalinda tentava esquivar-se, reagindo num grande esforço de vontade.

- Não, não, não é nada de importância. Estive um pouco agoniada. e sinto a cabeça um bocadinho esquisita. - e para não exagerar, atraindo sobre ela excessivos cuidados: -Isto não vale nada, Mãezinha. Não se inquiete. E desculpem-me ter-me demorado. Podemos ir para a mesa quando quiserem.

A voz sem calor, de tonalidades cansadas, obrigou a fronte do Engenheiro, que a observava insistente, a contrair-se. Não disse porém uma palavra e foi praticamente em silêncio que se sentaram em volta da mesa oval, lucilante de cristais e flores.

Só então Rosalinda, chamando em seu auxílio a energia periclitante, entendeu que devia falar, quebrar a mudez pesada em que a serviçal, impecavelmente fardada, ia servindo a sopa, que ela afastou desdenhosamente.

Para começar, uma frase dirigida a António:

- Não sabia que vinhas almoçar connosco. Respondeu-lhe um comentário cuja ironia não lhe passou

despercebida e lhe abalou o coração num sobressalto de inquietude.

- Há dias especiais para surpresas.

Não podendo entender a reservada intenção do mancebo, Dona Palmira apressou-se em concordar:

- Eu que o diga! Apareceu-me esse bicharoco da simpatia da Linda sem eu esperar.

A rapariga, valorosamente, tentou um protesto alegre.

- A Mãe prometeu aceitar o meu protegido.

- Mas não a gostar dele nem a calar as minhas queixas!. Demais a mais, fique sabendo que o seu primo veio pedir-me desculpa de, embora indirectamente, ter concorrido para a entrada em "casa desse objecto.

Rosalinda sentiu a lisonja servil do manejo e lançou ao Engenheiro um olhar tão cheio de desprezo que António desviou as pupilas, embora sem se desconcertar. ou não tivesse ele um objectivo a atingir!.

- Sou o responsável, em parte, dessa admissão, que serei um dos primeiros a espiar pois vou ver-me privado da tua companhia. O cachorrinho absorverá as atenções da minha prima Linda.

Malicioso, o conde interveio:

- Não me parece. Já vi o desditoso abandonado no terraço. Rosalinda corou. De facto, no seu precipitado regresso a

casa, deixara o Inevitável-ao Deus dará.

- Não me esqueci dele, Pai. Em acabando de almoçar vou dar-lhe de comer.

- Isso, isso, minha filha! Como ê um recém-nascido, deverás alimentá-lo a biberão.

E morreu o assunto.

Dona Palmira, em geral, falava pouco. Mas António e Rosalinda costumavam despicar sempre, com basto agrado de Teixeira de Melo que apreciava ouvir-lhes as tiradas vivazes e cintilantes. Agora, ambos mudos, como que concentrados em íntimas meditações, intrigavam o conde a quem já ia principiando a doer a intensa palidez da filha.

E não pôde conter-se.

- Oh, Céus! - proferiu. - Mas que caras de enterro! Tu hoje não ris, Linda?

Rosalinda engasgou-se com um pedaço de peixe que lhe andava ás voltas na boca e ficou muito agradecida à Mãe que entendeu dever responder por ela.

- Tu julgas que havemos de andar sempre alegres! Mas se a pequena não se sente bem, que queres tu que ela faça?

O conde engoliu a réplica e então, de súbito, dispensando qualquer preparação, António deixou cair uma frase de imediato efeito.

- Então e que me dizem ao novo doutor

Rosalinda estremeceu percebendo que necessitava em absoluto de se precaver contra as insídias que o primo não deixaria de proferir, talvez para avaliar da emoção que ela experimentava. Não esquecera António a antiga preferência dela e não esquecera ela o espírito tortuoso do primo. E, no entanto, não contara com essa interferência, agora, não se lembrara dela. Só ao ouvi-la compreendera que ia ser alvo de um ataque, para o qual não se preparara. Reunindo todas as energias, logrou parecer inalterável, demasiadamente inalterável, até, pois conteve uma exteriorização que lhe desse naturalidade à atitude.

A condessa, essa parou de comer, erguendo as sobrancelhas numa atitude contrafeita e suspensa.

Calmo e interessado, a sorrir-se, apenas Teixeira de Melo, indagando:

- Referes-te ao filho do Anacleto?

- Exactamente, o seu protegido!

- Então já cá está?

- Chegou hoje.

E contra a espectativa de António, que a olhava à sorrelfa, Linda continuava a não se mover. Permanecia insensível, como se nada ouvisse.

já a condessa emitia um reparo que pedia atenção.

Ah, sim? Chegou hoje? E esse rapaz esqueceu-se de que a etiqueta que lhe ensinámos o aconselhava a vir imediatamente saudar-nos ?

Tá, tá, tá. -interrompeu o marido. -Desculpa que te contradiga, Palmirinha, mas o primeiro dever dele era ir ver os Pais. Foi, naturalmente, o que fez. - e após essa manifestação de peremptória indulgência, revelou todo o seu cuidado amigo. E que tal vem ele, António ?

O Engenheiro pigarreou, sem saber ao certo como responder, dado que as reacções de Linda, não sendo exactamente as que previra, o desnorteavam um pouco. com efeito as feições paradas da rapariga não o deixaram orientar-se quanto ao caminho a seguir, na intenção de desclassificar o melhor possível o novo Médico. Mas aventurou-se.

- Falámos pouco, primo. Escassos momentos de conversa não orientam bem para uma definição. Contudo. pareceu-me um tanto presumido.

Dona Palmira esboçou um trejeito desdenhoso.

- Coitado!. Pretenderá fazer-se valer, naturalmente! Para mim, será sempre o mesmo.

Acentuara a frase e, sob o peso dela, Rosalinda não pôde agüentar a impassibilidade demonstrada. Baixou a cabeça, mordendo os lábios.

E o Engenheiro, mais senhor de si, prosseguiu num meio sorriso:

- Não duvido, ilustre prima Palmira. Mas advirto-a de que ele sabe falar e vem imbuído de idéias revolucionárias.

Rosalinda pensou que, para fugazes momentos de conversa, muito António pudera observar. Continuava porém calada e de rosto inclinado.

A condessa, agitada pela natural soberba, teve imediato relâmpago no olhar que foi defrontar-se com o de António.

- Que queres dizer com isso? Que espécie de idéias revolucionárias?

- Ah. talvez as que geraram a Revolução Francesa.

- Quê ? Não me digas ?

- Afirmo-lhe, prima, porque ele as manifestou. Significou-me claramente que, no seu entender, tanto vale um fidalgo como um operário.

- Desde que sejam ambos honestos e ambos de caracter recto ?

A indagação partira do conde e fora tão incisiva que António

- cuja segurança aumentava à medida que ia podendo contar com a irritação, habilmente incubada, da condessa Palmira se embaraçou.

- Ah. decerto, primo. sem dúvida!.

Fuzilavam as pupilas da condessa, ao voltar-se para o marido.

- Mas, - exclamou, com ênfase, - com certeza que o senhor não vai dar razão a esse garoto que se atreve a ter semelhantes opiniões depois de tudo o que lhe tem feito.

O sorriso do conde alargava-se, irônico e espiritual.

- Porque não, minha querida? Sou, pelo contrário, inteiramente da opinião dele. E digo-te mais. Se o operário for sadio de alma e de corpo, vale três vezes mais do que o fidalgo se este aparecer degenerado e perdulário. Se estiverem em igualdade de circunstâncias, é claro que se eqüivalem.

Agora a condessa contemplava o conde com semblante hierático, expressivo de profundo e agastado desdém, enquanto Rosalinda erguia os olhos da toalha e os poisava no Pai como que iluminados pelo clarão de uma nova chama.

Apesar de toda a mágoa sofrida, sabia-lhe bem notar o apreço em que o Pai tinha o jovem Médico, perfilhando as suas opiniões liberais de verdadeiro homem do século.

António engasgara-se com semelhante declaração, que lhe mostrava nitidamente o terreno falso que pisava ante o Pai de Rosalinda, a quem tanto desejava cativar. Era assás difícil aguentar-se entre duas pessoas de opiniões tão discordantes.

Após um breve silêncio, Dona Palmira encadeou:

- Pasmo, conde, - e o tom cerimonioso provava a que ponto se sentia ofendida. - dessa sua teoria.

- Mas é velhíssima em mim, minha querida! Não sei porque te admiras agora! Porque a manifesto em relação ao filho do nosso Caseiro? Ora, ora, Palmirinha! Sejamos da nossa época e não armemos em castelões feudais. Eu, por mim, declaro-me muito satisfeito pela ascensão que o rapaz teve, e bem merecida foi! Prova-me que eu também talvez fosse doutor, se não tivesse nascido filho do meu Pai e, portanto, cercado de comodidades pelas quais nunca tive de lutar! -e depois, atentando na fisionomia de Rosalinda, animada por uma expressão de fervor singularmente contrastante com a anterior palidez, acrescentou, satisfeito pelo reparo que o tranqüilizava acerca da saúde da filha adorada, e embora não atribuísse o facto à discussão: E tu, gaiata ? Que dizes a isto ? Vocês eram dois grandes amigos, heim?

Colhida de improviso, as mãozinhas dela apertaram convulsas o guardanapo, no regaço. Se na verdade o vivo diálogo a interessara e distraíra do secreto pesar, agora, de súbito, volvia a ele pela interpelação. Mas, casualmente, encontrou o olhar do primo que, talvez por lhe avaliar a perturbação, falava de tanto sarcasmo que logrou serenar. E foi com uma estranha calma que respondeu:

- E creio que o somos ainda, Pai!

Agitou-se Dona Palmira, colérica, batendo uma palmada na mesa.

- Rosalinda, não continuarás a antiga familiaridade com esse rapaz. Proíbo-to! E espero que saibas pôr-te no teu lugar. Dantes eras uma petiza, podia tolerar-te a inconsciência Hoje, é diferente.

O conde fitou a esposa com ar de censura. António ria-se interiormente. Ambos deviam esperar viva reacção de Rosalinda. Contra as expectativas, porém, Linda limitou-se a murmurar resignadamente:

- Pois sim, minha Mãe. Evitarei a companhia do Carlos. Tão pronta submissão à própria condessa deveria intrigar, a despeito da imperiosa ordem emitida, mas não pôde disfarçar um sorriso de contentamento, endereçado ao marido.

António franziu a testa. Suspeitava de que naquela docilidade se encobria mistério que necessitava esclarecer para colher orientação. Por isso atacou a fundo, disfarçando a íntima ansiedade

- Tu já o viste, Rosalinda?

- Já. - e sem poder impedir-se de corar: - Já nos encontrámos.

A Mãe carregou a expressão. Teixeira de Melo limitou-se a indagar, como fizera ao Engenheiro:

- E que tal vem ele, Linda?

Rosalinda hesitou. Corroboraria a afirmativa de António, declarando que o jovem Médico lhe parecera. presumido na sua reservada indiferença? Preferiu calar o reparo tão doloroso.

E proferiu apenas, talvez cedendo a um irrepremível desejo de contradizer o primo:

- Tal qual o mesmo de sempre, Pai.

António sentia-se arder em fúria. O mesmo, o mesmo? Afinal, que deduzir de tudo aquilo? Ela achara-o o mesmo O mesmo Carlos que valia para ela o Universo?

Perante a impossibilidade de o adivinhar, trincava desesperadamente um pedação de pão, como trincaria o rival destestado, se possível.

Dona Palmira e o conde deram outro sentido à declaração. A condessa recostou-se na cadeira, com aspecto consolado e triunfante.

- Muito bem minha filha. O mesmo! Como para mim! Teixeira de Melo encolheu os ombros, contrariado.

- Acho tolice, Palmira. Pobre rapaz! Vem encontrar más vontades nos que mais deviam felicitá-lo pela inteligência que Deus lhe deu? É mal feito! Em minha opinião, entendo que ele só merece louvores e consideração!

Então, mordaz, teve Dona Palmira um comentário inesperado.

- Exagera tanto, meu amigo, que acaba por nos sugerir a idéia de vermos nesse rapaz um óptimo pretendente para Rosalinda.

A condessa mal reparara no que dissera, obedecendo à íntima ira. Mas António, precipitadamente, olhou a prima que empalidecera até à lividez. E o conde pela primeira vez enrugou a testa. Endureceu-lhe a voz e foi com severidade que observou:

- . Palmira, quererás raciocinar? O teu orgulho leva-te ao contrasenso! Do facto de admirar esse que sob os meus olhos se fez gente até dar-lhe a minha única filha há um passo de gigante, percebes? - e mais sereno, indulgente: - Tornas-te ridícula, minha querida!

Sucumbida pela áspera censura que reconhecia ter provocado, contrafeita e melindrada, a condessa recolheu-se a um mutismo completo.

O conde ficara mal-humurado, tamborilando com os dedos no tampo da mesa.

António mirava uns e outros.

Rosalinda, essa repelira a sobremesa e em vez de olhar para o chão olhava obstinadamente para o tecto.

 

Ombro com ombro, vagarosamente, dirigiam-se para a formosa alameda aberta entre os velhos robles cuja folhagem sobre ela formava comprido e espesso docel através do qual muito dificilmente se coavam os raios do sol. Apenas um ou outro, esgueirando-se por uma abertura fortuita, lograva atingir o chão, esmaltando-o com uma mancha de luz. Aqui e além, disseminadas, as manchas de luz reverberavam claridade nesse majestoso túnel tão ameno, tão fresco e aprazível que se tornava num paraíso para repouso, leitura ou meditação.

Ao longo dele, alinhadas, cômodas poltronas de vime junto de mesas minúsculas que dir-se-iam esperar a hora do chá nessa sala de visitas que parecia a de alguma ninfa dos bosques.

Rosalinda professava verdadeiro culto por aquela avenida sombria, afastada de qualquer bulício, onde lhe era dado gozar a maravilhosa percepção de estar muito longe do mundo real, das convivências extenuantes do trabalho, das lutas, como se habitasse um outro país, só dela, só por ela povoado com sonhos e sorrisos.

Há muito que se habituara àquele recanto inefável. Sozinha, tendo no regaço um bordado ou um livro, ali passava tardes inteiras, devaneando sem que os ruídos exteriores lhe abalassem os nervos com o trepidar da labuta quotidiana, sem que o azul esplendoroso do céu lhe gritasse que viver é entregar a alma à sensação das cores, das imagens e dos sentimentos, e não mergulhar nessa abstracção em que tudo nela paralisava, excepto o poder imaginativo. Recolhida em si própria, isolada na sua alma, imóvel e silenciosa, tinha a impressão de que o tempo parava e, nessa quietude, nesses momentos de pacifismo, sem anseios nem desejos, conhecia uma ventura singular, repouso da morte em intensa vibração. Era bom aquele descanso!

Ao sair dele, a existência entrava no seu ritmo precipitado e ela recomeçava a desejar ainda mais rapidamente a passagem dos dias, que gastava laboriosa, num desperdício de horas, útil sim mas desvairado em demasia.

Naquele ambiente calmo, a condessinha entendia o valor dos minutos que passam, não voltam e arrastam consigo a própria ventura que se almeja ver chegada.

Agora, avançando sob a abóbada de sombra, pensava que fora bem louca desejando o raiar de um dia que nascera sem lhe trazer a felicidade idealizada. Mais valera esperar ainda, saboreando a estranha alegria que apenas as ilusões concedem, do que tombar na crua realidade que nada podia mais debelar nem adoçar!

Quisera estar isolada e gozar, tanto quanto possível, da fuga ao que fremia para além dessa avenida majestosa. Esquecer, sentir o tempo parar. E não se lembrar de nada. Nem na decepção sofrida, nem do pesar ainda há pouco experimentado escutando a leve disputa entre os Pais, que lhe revelara a extensão de uma oposição que não devia já preocupá-la mas que a atingia profundamente.

O coração não obedece a razões. e sabia apenas que as palavras ouvidas ao conde lhe haviam dado a noção de que era efectivamente impossível o enlace sempre ambicionado.

Mas porquê ? Porquê ?

Ao lado dela, a presença do primo impunha-lhe que guardasse uma atitude razoável e não cedesse ao convite da sombra amiga. Previa que em breve António iniciaria um ataque mais directo, sem respeitar o silêncio que para ele não tinha significado, pois apenas veria naquele refúgio um acolhedor local onde o calor apertava menos e onde mais pacatamente podia fazer a digestão.

Olhou para o Engenheiro de esguelha. E divisou-o tão satisfeito da sua pessoa e da hora que passava que principiou a querer-lhe mal. Sentia-se ultrajada na sua dor por aquele semblante impávido e eivado de pretensiosa altivez.

Afinal, porque quisera ele acompanhá-la, quando após a refeição dissera que ia dar um passeio? Porque insistira em segui-la? Impacientava-se, irritava-se ao observar que ele lhe impusera a sua presença, e desejava ver-se livre dele. Como, porém?

Mais do que difícil seria ilógico. Pois não era António o companheiro habitual ? Se ainda nessa manhã - que ia tão próxima e parecia tão longínqua! - lhe procurara a presença, com que direito a repudiaria agora? Ele não tinha culpa da modificação experimentada pela alma dela

Pararam. Prazenteiro, António acendera um cigarro e, com um suspiro de bem-estar, instalou-se numa das cômodas poltronas, cruzando as pernas e ajeitando-se o melhor possível.

Rosalinda ardia na vontade de o deixar ali refastelado e de fugir. Mas dominou-se e sentou-se ao lado dele. Pressentia que António buscava ensejo para qualquer conversa de caracter definitivo, talvez, e reconsiderava que fugir ao perigo é coisa de cobardes. E se ela não se apavorara no dia em que no Colégio, no laboratório, se havia incendiado um produto experimental, pondo em grave risco de explosão as alunas, e antes avançara a atabafar as chamas, erro imperdoável seria, tremer diante de uma simples labareda sentimental!

Limitou-se a permanecer muda e queda, não fosse provocar algum desastre com uma atitude precipitada.

No rosto de António desenhava-se uma expressão reflectida. Devia estar a decidir-se

E foi ao cabo de alguns (poucos) minutos de expectativa, quando facilmente poderiam ser julgados adormecidos, que António rompeu o silêncio.

Cavara-se-lhe uma ruga na testa e tinha crispados os músculos das faces. Rosalinda raciocinara com justeza. Ele resolvera-se ao ataque directo, mas a despeito da meditação a que previamente se entregara não se sentia totalmente senhor de si, porque a mudez da condessinha não lhe permitia orientar-se quanto aos melhores meios a utilizar para vencer a resistência pressentida.

E o pior é que, na realidade, ele estava sinceramente enamorado

Foi essa a razão que o dispôs à frase incisiva, direita ao assunto capital.

Soltou uma exclamação:

- Ora com que então já falaste com Carlos, Rosalinda! Tens de me contar isso.

Premeditara bem, afinal, porque Rosalinda, não esperando ser alvejada de semelhante forma, estremeceu e tão visivelmente que o Engenheiro o notou e adquiriu maior segurança.

Ah, ah! Eis um sinal que lhe mostrava ter entrado no caminho mais rendoso para ele! E preparando-se para atribiuir ao rival tudo o que de pérfido lhe subisse à cabeça, a fim de desnortear Rosalinda, decidiu-se a enterrar o jovem Médico, armando-se ele em homem perfeito, capaz de sujeitar aos seus atractivos aquela rebelde criaturinha tão apetecida.

Rosalinda, no entanto, era mais segura do que ele podia supô-la. E após a viva perturbação experimentada, logrou ripostar com a máxima naturalidade:

- Contar-te quê? Não se passou nada de extraordinário! Falámos pouco.

- O que não impede que hajas podido formar uma opinião acerca da sua actual forma de ser, julgo.

Rosalinda calcou no coração o amargor das verificações feitas. Na sua ternura pelo grande amor da sua adolescência não desejava ouvir quaisquer perfídias assacadas a quem de sobejo considerava digno do respeito de António do Souto. Sentia-se até disposta a defendê-lo.

E argumentou apenas:

- Mas eu já disse, lá em casa, que não lhe reconheci diferenças assinaláveis.

António dirigiu-lhe uma olhadela desconfiada. Mau. a prima estava renitente, não cederia facilmente. Mas recordando as palavras que tivera ensejo de dirigir ao Médico, convencia-se de que, depois delas, ele não ousaria abordar Rosalinda com franqueza que permitisse à rapariga achá-lo tal qual era quando partira. Custava-lhe a crer que os golpes despedidos não houvessem atingido o alvo.

O acaso servira-o, facultando aquele encontro. Não seria portanto lícito acreditar que lhe fossem gorados os planos logo urdidos.

E convicto de uma singular protecção, encolheu os ombros e insistiu, resoluto:

- Pois sim, mas não te alargaste em pormenores. Eu gostava de saber como te acolheu ele, o teu amiguinho de outrora.

Linda, com o leme de uma inesperada prudência, desviou-se do recife.

- Perdão, o Carlos não me acolheu. Tivemos o mais casual dos encontros.

António pretendeu sondá-la melhor.

- Ah, ah! Óptimo! Estou visionando o grande júbilo, a grande manifestação!.

- Cada qual tem as miragens que lhe apetece.

A resposta seca desconcertou um tanto o Engenheiro, que se voltou para ela, modificando a posição na cadeira e exclamando num frêmito de mal contido furor:

- Rosalinda, não admito que continuis a sacrificar-me ao Carlos! Dir-se-ia que é ele o teu primo e não eu. Acho demais.

Rosalinda pestanejou. Agora, agora vinha António de armas descobertas! Agora podia enfrentá-lo e responder-lhe! E retorquiu, serena:

- Confesso que não percebo a razão porque te preocupas assim com o pobre rapaz. Queres explicar-me os motivos que te assistem?

Antónios pôs-se a exalar pelas narinas o fumo do cigarro que ia enovelar-se em espirais brancas antes de se dissipar mais acima. E redarguiu:

- Achas estranho que me preocupe tanto com uma pessoa que nunca me inspirou simpatia?. Olha. receio que não saibas colocar-te no teu lugar de filha dos condes de Olivosa e te deixes ofuscar pela glória do novo doutor.

Vivazmente lhe retrucou a rapariga, com a força de quem dardeja valente estocada:

- És muito cuidadoso, António, mas não deves temer que eu fuja aos meus deveres.

- Eu não pretendi insinuar que algum dias os tenhas esquecido, Rosalinda! Mas, se falo, é porque sérios motivos me inquietam.

Nova réplica lhe truncou o ímpeto.

- Sim. despeita-te o sentires-te ofuscado pela ascensão desse que seguiu longe nos caminhos da vitória e que vindo de mais baixo subiu mais alto do que tu e que de modesto e apagado logrou ultrapassar-te em méritos. A mesquinhez da alma humana tem dessas aberrações. Não nos deixa ver com bons olhos o triunfo alheio, especialmente se o contemplamos nos que supomos. inferiores!

E, impulsiva, pôs-se de pé. Maquinalmente, António imitou-a, empalidecido sob o olhar que o fitava de cima, sacudido pela cólera desperta pelas palavras merecidas. A custo se dominava, meneando a cabeça a compasso em frente da que o deprimia para defender o outro. O outro! Então todos os seus cálculos haviam caido por terra?

Titubeou:

- Rosalinda. excedes-te! Eu não preciso de invejar ninguém e.

Deu-se um facto extraordinário, como se a antagonista tivesse perdido a lança de combate. Rosalinda, momentos antes tão firme, limitou-se a comentar, num suspiro que parecia de resignação:

- Pois não, António. É por isso que pasmo!

Que singular pensamento lhe escaldava alma e cérebro, para tão de repente se mostrar de uma passividade que não passou despercebida à perspicácia masculina? Seria algo favorável para ele? Respondeu-lhe no entanto com um assomo de estúpida prosápia. Vendo-a submissa, abusou da superioridade, foi arrogante.

- Muito obrigado pelo cumprimento, mas sempre supus que admirasses mais o filho do Caseiro do que o teu primo, percebes?

Rosalinda, por seu mal, lembrava-se da atitude de Carlos na chegada. E tão grande depressão lhe provocou a imagem que ainda mais fraca se tornou.

- Enganaste-te. - murmurou. - Isso não podia acontecer,

pois não?

Foi então que António teve a nítida percepção de que a serenidade até aí mantida por Rosalinda resultara de um grande esforço mental.

Nunca a rapariga mostrara preferi-lo, desde os tempos das brincadeiras infantis, senão quando se zangava com o Carlos. Só com os arrufos de ambos ele beneficiava. E agora agora devia ter-se dado o mesmo. Talvez ela houvesse sofrido qualquer decepção e pretendesse, como dantes, vingar-se do outro, aparentando melhor entendimento com o primo.

A fatuidade sacudiu-o. O despeito não aceitava semelhante idéia, antes lhe sugeria ardil que a torturasse antes de lhe dar proventos. Foi tolo e não abriu os braços para o ensejo raro, que possivelmente lhe sancionaria os desejos mais ardentes. Empertigando-se, limitou-se a comentar, com bazófia:

- Singular, essa opinião, priminha! Qual de nós mudou a posição? Subi eu, ou desceste tu do pedestal?

Ela corou, volvendo-lhe um olhar de estranheza.

- Não entendo.

A soberba, porque a via humilhar-se, acabou de cegá-lo. Atirou fora o cigarro, num gesto senhoril, e estendeu uma das mãos para a rapariga.

- Não te ocultarei, Rosalinda, que não ignoro o especial afecto que dedicas ao Carlos. E se o regresso dele não te alegra é porque naturalmente não veio como o esperavas, pronto a cair-te aos pés em adoração

Precipitara-se, desprezando o momento, talvez único, em que poderia haver adquirido vantagens. Mas só o compreendeu ao vê-la como se tivesse um incêndio no rosto, a crescer para ele, trêmula de cólera e desprezo, tanto mais quanto o lenho fora demasiadamente profundo e revolvera a ferida recente. Um só desejo a agitava - castigar o insolente, repudiar a afronta, colocar no seu lugar o atrevido.

- Levas as tuas graças longe demais, António. Estás a tornar-te insuportável! -e abalada também pelo seu orgulho de mulher, que não lhe permitia ver suspeitado, agravado e chasqueado um amor perdido, que não a deixava suportar a idéia de que alguém pudesse avaliar da mágoa de se julgar desdenhada, acrescentou, mais alto, num timbre agudo de altivez sob a qual a dor agonizava: -A tua insensatez atinge o máximo, peço-te que te lembres sempre de que Rosalinda Teixeira de Melo não se permitiria jamais baixar os olhos para o filho do Caseiro do Pai, só por ele se ter formado.

Respondeu-lhe uma espécie de soluço, vindo da entrada da avenida, do lado da Quinta. Sobressaltada, Linda voltou-se e António, irresistivelmente atraído, olhou também.

A poucos passos de ambos, lívido, de feições crispadas e lábios contraídos - Carlos!

 

Não esboçou um movimento. Não teve uma palavra. Imóvel, passeava o olhar severo de um para o outro, e pouco a pouco a palidez do rosto era substituída por uma vermelhidão que indicava a intensidade do abalo experimentado.

Sob as radiações daquelas pupilas fuzilantes, Rosalinda e António recuaram um pouco, como dois culpados apanhados em flagrante delito.

Decorreram instantes sem que nenhum ousasse repelir o mal-estar que se espraiava, face ao silencioso desespero desse a quem a condessinha, embora involuntariamente, acabava de atingir tão gravemente.

Ela tremia, sentindo quanto melindrara o amigo de infância, repêsa das palavras pronunciadas sem qualquer intenção que lhe fosse dirigida, anelando gritar-lhe que mentira mas impotente para vencer o enleio e a reserva que o considerar-se esquecida por ele a obrigava a guardar. Não desejaria falar assim, mas agora que tal sucedera, era como se se tivesse vingado. Tinha pena, mas entendia dever resistir a essa mesma pena!

Carlos fitava-a já mais do que a António, elucidado por completo acerca de quanto lhe parecera estranho, olhando amargamente essa boca linda, fechada sobre afirmações de que não a julgara capaz, fechada sobre outras de que não lhe era dado suspeitar. Rosalinda! Rosalinda desprezava-o por ele ser filho de humildes!. Não podia mais duvidá-lo e a certeza esfarrapava-lhe o coração.

E no entanto foi ele, apesar da violenta dor que lhe arrepanhava os nervos, o primeiro a recuperar a presença de espírito, no firme propósito de aclarar a situação e, especialmente, de restituir a serenidade àquela vaidosa que se diria confusa das verdades pronunciadas, talvez sem poder suportar as recriminações que ele se limitava a dirigir-lhe com as pupilas magoadas.

E também o orgulho lhe mordia agora a inteligência. Ela não se vangloriaria da extensão do mal causado. Não a deixaria perceber até que ponto lhe arruinara as ambições, a felicidade do amanhã!

No respeito maior que lhe podia tributar, o respeito a si próprio, quis ser forte e enérgico, debelar o desânimo, para não se tornar objecto de riso ou de piedade. Mostraria a Rosalinda que o filho do seu Caseiro não a considerava tão pouco que ousasse erguer para ela olhos e esperanças. Tranqüilizá-la-ia dessa forma, e poupar-se-ia a ele, também. Rosalinda não precisava de temer da sua parte efusões que a obrigassem a mostrar-lhe o lugar de que não devia sair.

Cada vez iam assim ficando mais longe um do outro. Cada vez os seus espíritos, aproximados por idêntico querer, se distanciavam mais, levados por um destino contrário que os arredava de juízos claros e os prendia a hipóteses erguidas sobre bases falsas mas plenas de verosimilhanças, o que entre ambos cavava abismos de preconceitos, de ufanias e de ofensas recíprocas.

E Carlos deu finalmente duas passadas, para numa breve exposição dizer a Rosalinda que não se esquecera de quem era.

- Peço desculpa, condessa Rosalinda. - e com que desespero concentrado pronunciou o nome querido! - Vinha cumprimentar os senhores condes. Rogo me perdoe ter surgido inesperadamente. Não pretendi ser indiscreto.

António quedava boquiaberto, desconhecendo naquele rapaz de aspecto constrangido, modesto, o altivo e imperioso Carlos dessa manhã, o Carlos de caracter independente, soberano da força dos seus diplomas.

Tratar-se-ia de um ardil? Pretenderia, pelo caminho da lisonja servil, insinuar-se no espírito de Linda?

O Engenheiro tateava o segredo dos dois corações, sem lograr perceber-lhe a gravidade, sem poder medir a extensão dos seus efeitos, porque não lhe era dado adivinhar as íntimas reflexões de cada um. No entanto compreendia perfeitamente que havia ali qualquer coisa de anormal, diverso até do que imaginara, talvez porém não menos propício para ele. E nessa percepção nítida reconhecia que complicar sempre mais a situação daqueles dois entes, enredar-lhes o entendimento, era preparar-se o melhor trilho para a conquista do tesoiro ambicionado. E decidiu manter-se em silêncio, examinando a conduta do parzinho antes de emitir pareceres que fossem aclarar e não escurecer, por qualquer inadvertência dele, o assunto de pé. Nessa resolução esperava a resposta que Rosalinda deveria dirigir ao mancebo.

Esta, contudo, nem se lembrava do quanto seria lógico dizer algo. Mais do que lógico, necessário! É que, acima do desnorteio da sua infeliz tirada, pairava um infinito alvoroço, misto de desalento e inconsciente fé. No olhar franco, incapaz de logros e traições, que a fitava sem qualquer embusteiro disfarce, reconhecia o Carlos de outrora, leal e afectuoso, e não o homem hostil e reservado do primeiro encontro. Qual deles mentia afinal? E nesse momento, numa brusca reacção, pensou que não devia duvidar da verdade de agora. Mas. mas a mudez conservada prejudicou a instantânea visão que a deixara notar um Carlos atento ao menor sinal que quebrasse as insensatas distâncias que os separavam, um Carlos esmagado pela terrível afirmação que ela soltara. E o olhar franco, incapaz de logros ou traições, velou-se na sombra das pálpebras e foi perder-se depois na folhagem que os cobria, para que ninguém visse a dor que os enevoava. O Médico acreditava reconhecer que ela nem sequer se dignava responder-lhe e, no desgosto de ver feito de barro o ídolo considerado de oiro, recuou disposto a afastar-se sem mais.

E assim, sentindo-se como que desemparada, Rosalinda teve um novo gesto infeliz - voltou-se para António! Fê-lo inconscientemente, sem dúvida. Mas o Engenheiro, que estivera observando atento as sucessivas expressões dos dois semblantes e nelas bebendo mais e mais profunda a convicção de um grande mal-entendido, julgou-se elucidado por essa atitude, interpretando-a como sinal de que Rosalinda acabava por preferi-lo, ou pelo menos solicitava a sua interferência. E, satisfeito com a própria intuição, aproximou-se de Rosalinda para, como se marcasse indiscutíveis direitos sobre ela, se arrogar o privilégio de responder pela que o não fazia.

- Não meu velho, não foste indiscreto! Nem eu nem Rosalinda necessitamos de esconder as nossas conversas.

Carlos, muito embora chocado, ripostou com vivacidade, para que ele não tivesse ensejo de se regozijar com o alcance do golpe, cuja intenção não lhe passara despercebida.

- Evidentemente! Em todo o caso, fui incorrecto, pois decerto causei a impressão de estar procurando ouvir o que não era comigo.

Rosalinda, na recordação da miragem tida, ansiosa por colher certeza se sim ou não se enganara, encontrou alento para enfim dizer algo que desfizesse a má idéia que Carlos pudera tecer acerca dos seus verdadeiros pensamentos e simultaneamente atenuasse a perversidade do primo. E, no íntimo aliviada pela primeira expressão sincera que nesse dia lhe era dado soltar, proferiu delicadamente:

- Não digas isso, Carlos! Ninguém pensaria de ti semelhante coisa e pela minha parte acredita que até gostei que aparecesses.

A afirmativa, rivalizando com a conduta anterior, chegava demasiado tarde. Carlos ascendera, por defesa, aos píncaros da desconfiança, e interpretou-lhe a declaração como suprema ironia. E nada ripostou.

Pairou novo silêncio. O próprio António, a despeito de todo o seu desejo de intervir como demônio complicador, sentia-se reduzido a esperar que uma vontade invisível, alavanca misteriosa que paira sobre os destinos humanos e os acciona em desígnios tão obscuros que a inteligência raramente os compreende e nunca os adivinha -a Providência! - viesse decidir a situação, insignificante para olhos estranhos e desmedida nas repercussões que podia ter no futuro dos circunstantes.

Em vão qualquer deles procurava um tema para encetar conversa e fugir daquela acalmia que talvez fosse prenuncio de temporal. Nenhum lhes ocorria! E no entanto pungia-os a certeza de que tê-lo seria poder orientar a barca das conveniências e progredir no caminho dos desenlaces.

António (porque não sofria) foi o primeiro a vislumbrar uma directriz que se lhe afigurava. aceitável. E pronunciou a mais ridícula banalidade.

- O tempo está bonito, heim?

Mas deteve-se imediatamente. A frase soara mal, mostrando-lhe quatro olhos muito admirados. Acaso, em Agosto, seria tão excepcional uma linda tarde que pudesse oferecer interesse susceptível de desanuviar a sombria atmosfera do tunelzinho?

Verificando o desaire, seria prático e simples desistir de actuar. Mas. mas a Providência queria as coisas de outra forma e empurrá-las-ia à custa dele, que prosseguiria nos seus caricatos reparos.

- E depois, além de bonito, o tempo vai excelente para a fruta. O pomar regala os olhos e o Anacleto anda satisfeito!

Pronto! Um novo caminho surgia e a estupidez de António era a seta indicadora e obstinada.

- O Anacleto é um excelente Caseiro. Tomara eu apanhar quem me servisse assim, com zelo e dedicação! Mas agora já não há criados daquela tempera! -e nisto, notando que os lábios de Carlos tremiam, tomou consciência dos efeitos das suas palavras e, num crescendo de arrogância, acrescentou: - Tomara eu que ele quisesse servir-me, mas não troca o conde de Olivosa por ninguém, sabe-se!

Agora Carlos parecia agigantar-se, aproximando-se dele para exclamar numa voz rouca:

- O meu Pai, felizmente, não precisa de ser teu lacaio. António não se sentia em grande segurança perante a ira

que via fuzilar nos olhos verdes do Médico, mas decidiu arrostar-Lhe com a fúria.

- Decerto, decerto!. Acresce que o primo Teixeira de Melo até pensa dar-lhe uma recompensa e

- A quem? A quem é que eu penso dar uma recompensa? Inesperadamente, surgia à beira deles a figura insinuante do

próprio conde de Olivosa que, sem esperar resposta à pergunta com que anunciara a sua chegada, avançava de braços abertos para o jovem clínico.

- Viva! Viva o meu rapaz! Seja benvindo! Mas que famoso ele vem!

Carlos primeiro recuara, como se o surpreendesse tão lhana recepção, mas logo em seguida, sem restrições, correspondeu ao abraço de Teixeira de Melo, expansivo na intensa vibração de que se achava possuído ante quem assim mostrava congratular-se com o seu regresso.

Na verdade aquele acolhimento fora bálsamo para a alma magoada do mancebo, cuja satisfação era sincera ao retribuir as saudações do Pai de Rosalinda, sempre franco e bondoso para ele, é certo, mas que bem poderia ter-se modificado, como se modificara a filha, outrora tão gentil.

Sr. conde. a minha infinita gratidão.

Espera, espera, rapaz! -interrompeu Olivosa imediatamente, repelindo as tentativas do agradecimento que lhe era devido, sim, mas que não estimaria escutar traduzido em palavras, porquanto sabia o quilate da alma onde ele se albergava.

- Deixa-te disso, deixa-te disso, que eu quero olhar para ti. Ah. mas c'os demônios. que devem ter ficado muitas paixões atrás de ti! Heim, Rosalinda? Que me dizes a este figurão de homem?

Perante uma tal exuberância, António afastara-se, prudente, e Carlos sorria, melancólico. A última frase, porém, obrigara-o a erguer os olhos a tempo de ver Linda mudar de cor.

Sim, o gracejo do Pai atingia-a no ponto nevrálgico da sua dor, desencadeando o ciúme latente, exasperando-lho ao mais alto grau. É certo. muitas paixões atrás dele. Mas. porque lhe perguntava o Pai a opinião? Que tinha ela com isso?

Ardia num ímpeto violento. Só lhe apetecia dizer a esse idiota - idiota, cem vezes idiota! - tudo o que de desagradável lhe subisse à cabeça, para o ofender, para o ultrajar, para o ver ir-se embora dali- corrido de vergonha, sofrendo tortura igual à que a pungia!

E não se conteve, não mediu a loucura da sua atitude. com inexplicável dureza, de feições rígidas, silabou:

- Nada, Pai! Mas decerto se engana se pensa que não há raparigas capazes de fugirem ao prestígio de um diploma ou de uns olhos bonitos.

O conde não parecia ter notado o sarcasmo do remoque e, por completo alheio à singularidade dos factos, pusera-se a rir, prazenteiro.

- Ah, ah! Pois claro, pois claro! Mas quando se juntam as duas coisas, torna-se muito difícil a resistência! Um bonito rapaz com um bom diploma debaixo do braço tem peso. olá se tem! Bom, adiante. regozijo-me por tudo e até porque. quando adoecer já tenho quem me trate.

Sufocando a ânsia de sair dali imediatamente, para não ouvir novas impertinências dessa que o mirava depreciativa, Carlos inclinou-se diante de Teixeira de Melo.

- Penhora-me, Sr. conde, e só lamento não poder ser-lhe útil. Mas sou esperado em Lisboa, no Hospital que me convidou mal teve conhecimento da minha especialização.

O mesmo implacável diabrete que continuava a dedilhar as cordas da sensibilidade de Rosalinda, arrancou-lhes uma áspera melodia onde era leit-motiv a certeza de que ele partia naturalmente por causa da outra, dessa outra que devia esperá-lo decerto para casar com ele. Havia harpejos de cólera e de desvairada angústia ao pensar que talvez nunca mais tornasse a vê-lo.

Teixeira de Melo, sem dar pelos olhos fuzilantes de Rosalinda, continuava a falar, manifestando o seu contentamento por mais esse êxito e exprimindo o seu desejo de ser examinado antes dele se ir embora. Como todos os que têm a jeito um Médico, expandia as suas queixas acerca de quantas moléstias julgava estar achacado. Depois, apercebendo-se em dado momento de que António permanecia um tanto isolado, quis generalizar a conversa e chamou-o, sempre bondoso, sempre disposto a abraçar o mundo inteiro se o mundo lhe coubesse nos braços.

- Eh, eh, Engenheiro! Aproxime-se, aproxime-se e diga-me a quem é que eu tenho de recompensar. Olhe que não me esqueci da minha pergunta de há pouco. Venha de lá a resposta!

António olhou de esguelha para Carlos e Rosalinda e serenamente, confiante na tempestade que desde o princípio se anunciava, declarou:

- Ao Anacleto, primo! O conde pôs-se a rir.

- Ao Anacleto? Boa! Isso tinha que conversar! Só com o meu domínio todo inteiro poderia pagar tanta dedicação. mas ele não o aceitava! Aliás, o nosso velhote tem a maior recompensa que podia ambicionar, creio eu! Os mimos da nossa Rosalinda! Aquilo é uma desgraça. Todo ele se desdobra em ternuras! Se fossem da mesma idade. palavra que os declarava apaixonados!

A Providência continuava a encadear as situações e a arrancar delas as mais variadas conseqüências.

Rosalinda perdeu completamente a cabeça, tanto mais que um indefinível sorriso surgira nos lábios de Carlos, um sorriso em que ela julgou ler desdém, compaixão, troça, como vendo naquela revelação indirecta qualquer prova do seu interesse. E, num impulso febril, erguendo bem a cabeça, prestes a gritar, avançou até parar mesmo na frente do Médico, que aos poucos ia ficando como que paralizado.

- A afirmação de meu Pai é falsa. absurda. não vais acreditá-la!. Ainda que fôssemos da mesma idade, tal coisa não podia dar-se. porque eu sei o que devo à minha posição e nunca. nunca me enamoraria de um criado. Foi a brincar que o meu Pai disse o que disse, ouves? Foi a brincar!

Excedera-se. Descomedida, brutal, obrigando o próprio António a enrugar as sobrancelhas. O Engenheiro, à tremenda bofetada sem mão que a prima vibrara em Carlos, temeu durante instantes vê-lo responder de acordo com a provocação. Mas não! Carlos jazia impassível, pelo menos aparentemente.

Quem se indignara de facto fora o bondoso conde, pasmado ante essa demonstração de orgulho parvo, orgulho de que, até aí, Rosalinda jamais mostrara possuir qualquer parcela. Não era para semelhante reacção o que dissera, reacção que bem via ter ofendido o rapaz a quem todos pareciam querer mal pela ascensão conseguida. E compadeceu-se dele, Teixeira de Melo. Desejando reparar a insensatez da filha, mitigar a humilhação que o Médico devia estar sofrendo. Mas não pôde dizer nada. Não teve tempo de dizer nada. Como se estivesse absolutamente refeito do abalo sentido, ou como se por ele não houvesse sido atingido sequer, Carlos inclinava-se já na direcção de Rosalinda, proferindo palavras em que sobressaía a severidade que parecia esculpir-lhe em mármore as feições.

- sr.a condessa, ouso crer que V. Ex. a não levará a mal que me retire. -e voltando-se para Teixeira de Melo, menos duro o tom de voz: - Sr. conde, os meus protestos de infinita gratidão. E sempre às ordens de Vossas Ex. as, como um modesto criado que sou. e disto não me esqueço!

Depois perfilou-se e logo em seguida, sem mesmo olhar António, cuja expressão de escárneo podia arriscar-lhe a forçada calma, voltou as costas e afastou-se.

Então, porque bem medira a ofensa inflingida ao rapaz, o conde encarou Linda, agastado.

- Menina, quererás explicar-me a tua conduta? Porque insultaste o Carlos? Tens alguma necessidade de lhe lembrar que não nasceu tão afortunado como tu? Porque revelaste esse intuito de o humilhar, tu, que eras amiga dele?

Mas viu-a tão pálida, tão diferente da arrogante que se mostrara momentos antes, viu-a tão fraca e tão desorientada, viu-Lhe nos olhos tantas lágrimas, que nada mais disse. Repentinamente, o coração, qual sino tocando a rebate, advertiu-o de que algo de anormal se passava, algo em que seria perigoso bulir. Cavou-se-lhe na testa uma funda ruga, apertou os maxilares e como se repelisse, instintivamente ou por reflexão, a idéia que o assaltava, retirou-se deixando outra vez sós os dois primos.

Rosalinda dir-se-ia uma estátua vacilante sob grande pancada. E António não mediu o nervosismo da rapariga, não fez o que o mais elementar bom senso lhe aconselhava - afastar-se, para que ela, sem testemunhas, reencontrasse o próprio equilíbrio.

Julgava o rival esmagado por completo, supôs-se com todos os trunfos nas mãos e não quis esperar por melhor oportunidade. Aquela parecia-lhe de sobejo favorável. E encaminhou-se para Linda, poisando-lhe as mãos nos ombros sem reparar no olhar alucinado com que defrontava e deveria preveni-lo da má altura escolhida para se decidir ao que há tanto andava premeditando. Aliciante, murmurou:

- Meu amor. não te preocupes com o que se passou. Não teve a mínima importância. Só conta a paixão que te consagro e o pedido que te faço - casa comigo!

Foi pronto o efeito. Bruscamente, Rosalinda repeliu-o, tentando desprender-se das mãos que a agarravam, batendo-lhe, esbofeteando-o até lograr afastar-se dele, num grito irreprimível.

- Nunca! Nunca! Detesto-te! Vê se percebes que te detesto! E lançou-se, correndo, a caminho do Solar.

 

Entrou em casa como louco. De olhos brilhantes, secos, esgazeados, e movimentos sacudidos, atravessou a salita da mesa e dirigiu-se para o quarto. As três portas que franqueou atirou atrás de si, batendo-as com estrondo. E ficou depois a abrir gavetas a fechar gavetas, a dar voltas ao minúsculo aposento, experimentando intensa necessidade de se movimentar, talvez como meio de extravazar a cólera que lhe inundava o peito.

Com tanto reboliço, não tardaram ao pé dele primeiro a Mãe, depois o Pai, olhando-o ambos com espanto e sobressalto.

A Ana, passiva criatura de modos comedidos e falas brandas, mais capaz de agir do que de pensar, ao deparar com a fisionomia alterada do filho, cruzou os dedos que elevou no ar.

- Maria Santíssima! Que tens tu ?

Foi quando o rapaz deu pela presença dos Pais. E como se neles apenas visse duas testemunhas da sua alma destroçada, avançou dois passos, de cabeça perdida bradando

- Que tenho? Que tenho? Eu? Nada, nada! E vão-se, vão-se embora daqui. Deixem-me! Deixem-me, não ouvem?

Perante a atitude incompreensível, agitou-se em Anacleto o coração de Pai que sofre de ver sofrer mas não perdoa faltas de respeito. Cresceu para ele.

- Que vem a ser isso, Carlos? Que modos são esses? - e a sua voz rude ecoava censura.

Cruzaram-se os olhares de ambos e, chamado assim ao dever filial, Carlos conseguiu dominar-se.

E com inexprimível entoação, limitou-se a regougar:

- Há que... há que... há que me vou, pronto! E ainda hoje! Agora mesmo!

- Vais prá onde ?

- Para Lisboa, para lá, onde não me conhecem, onde não me atiram à cara o que - e num gesto de infinito desalento, quedou de cabeça baixa, numa atitude culposa, ou vencida.

Aproximou-se dele a Mãe, olhos rasos de lágrimas.

- Oh, filho! Pois tu já nos deixas? Ainda há pouco vieste e já nos queres deixar?

Um último arranco, mais pensado que murmurado.

- Nem devia ter cá vindo! - e então brotou-lhe da alma essa explosão que um homem só tem quando esquece toda a força e todo o orgulho porque sofre demasiadamente. Escondeu o rosto entre os dedos e rompeu em pranto.

Fitavam-no agora os Pais aterrados com semelhante espectáculo, que jamais esperariam.

Carlos a chorar como um garoto, Carlos que em garoto nunca chorava? Porquê?

Anacleto tentava reflectir, perceber o que poderia originar semelhante fraqueza.

A última e incompleta frase escutada ao filho obrigava-o a aceitar uma suspeita cruel demais. Acaso. acaso o rapaz sofreria realmente devido. devido ao seu modesto nascimento? Carlos sofreria por ser seu filho ? Sim, se ele queria ir para longe, para onde não o conheciam. é porque tinha vergonha deles. Vergonha deles! ?. Mas, quando chegara, vinha tão contente, tão alegre. Qualquer coisa houvera, depois. Mas quê? Alguém o teria ofendido? Quem? Aonde fora o filho? Ao Solar cumprimentar os condes. Ah, mas nesse caso.

Alterado, aproximou-se mais do rapaz, segurou-o pelos ombros robustos.

- Filho. receberam-te mal. lá. Foi?

E naquele lá significativo, - rancoroso pela primeira vez na vida - o velho designava o Solar dos Senhores a quem servia com tamanha dedicação e talvez lhe pagassem causando tão grande mágoa ao rapaz que não era culpado de haver nascido num lar de Caseiros. E, contudo, sempre tinham sido bons para ele!. Quisera, portanto, duvidar de qualquer diferença, agora. Mas como Carlos não respondesse, limitando-se a erguer a cara por onde escorriam dois fios de água, Anacleto sentiu-se pumgido pela certeza de ter descoberto a causa daquela dor, perfeitamente aceite porque tanto ele próprio estimava aqueles para quem trabalhava desde moço que muito sofreria se porventura deles viesse a receber melindre, quer apenas o amesquinhasse, quer o obrigasse a considerá-los menos daí em diante.

E desejando saber tudo o que sucedera, para o incentivar a falar apertou-lhe os braços com dedos férreos.

- Vamos, conta!. Receberam-te mal ? Não estás habituado a ser tratado como filho de um criado, pois é?

Mas já no peito de Carlos badalavam haustos de energia, secando-lhe as últimas gotas de um pranto que ele próprio não tardaria em condenar. E, impulsivo, agarrou as mãos do Pai, estreitou-as carinhosamente, contemplando a fisionomia amada onde transparecia uma idéia torturante que era preciso desfazer sem hesitar e de forma a que se sumisse sem deixar vestígios.

Que direitos lhe assistiam, a ele, de deixar sucumbidos e vexados, nessa humildade de que só deveriam orgulhar-se, os Pais queridos?

E então exclamou, a olhar nos olhos o Pai:

- Não Pai, não pense tal coisa. Asseguro-lhe que não é nada disso!

Não se atenuava, porém, a desconfiança de Anacleto.

- Alguma coisa foi, meu filho, para assim quereres afastar-te de nós. Talvez alguma saída do Sr. Engenheiro? Ele nunca gostou de ti.

Apesar da nova hipótese, verosímil, lhe doer menos, porque o não forçava a tomar zanga aos patrões sempre respeitados, o seu rosto apergaminhado revelava tanta desolação que Carlos sentiu remorsos por, em troca das alegrias que ele merecia, assim o encher de preocupações.

Via nas pupilas de ambos os seus velhotes uma expressão amargurada, como se lhe pedissem perdão de serem aqueles rústicos que não lhe davam nem honra nem lustre pelo fulgor do nome ou da fortuna. Honestos e trabalhadores, sim e como poucos Mas bastaria isso ?

Aquela verificação tornou-se intolerável para Carlos, e mais ainda quando notou que a Mãe chorava, abafando os soluços no avental.

Não, não podia consentir no suplício que os Pais estavam sofrendo.

Os seus Pais! Amava-os; nunca, nem em sonhos sequer, renegaria deles e da sua posição modesta. E eles adoravam-no como a um deus! Caprichos de apaixonado não o autorizavam a causar-lhes dor equivalente à que o pungia e devia sofrer sozinho. Precisava de ser forte, para os amparar, para os prender a si na recompensa máxima que ambicionariam. Vidas singelas, transbordando bondade e honra, coroá-las-ia erguendo-as na luz da legítima altivez que delas podia usufruir. Dar-lhes-ia a suprema alegria na certeza de possuírem um filho grato e dedicado, como todos os filhos normais costumam ser. E saberia mostrar-lhe, a ELA, que o amor de um filho é o maior dos amores.

Arrependido do insensato desespero porque se deixara vencer, almejou destruir qualquer má impressão que perdurasse. Mas, porque ainda não serenara verdadeiramente da excitação padecida, o gesto não foi revestido de total naturalidade quando abriu os braços para cingir ao peito, um de cada lado, a Mãe e o Pai. Deu-se tão brusca e violenta a efusão, que mais logrou inquietá-los do que tranqüilizá-los. E Anacleto, libertando-se do amplexo que o sufocava, olhou-o bem de frente, insistindo:

- Filho, filho. isso não é resposta ao que te preguntei. Foi o Antoninho do Souto que te disse alguma que te ofendeu? Alguém te fez mal. não me escondas nada! Eu prefiro saber, e a tua Mãe também! - e como a apontasse, a velhota acenou precipitadamente com a cabeça, em sinal afirmativo.

Carlos achou então preferível revelar parte da causa que o sepultara em amargor. Falaria de Rosalinda; queixar-se-ia do desdém da condessinha cuja amizade perdera sem saber porquê. Arranjaria uma explicação que os satisfizesse, sob o fundo da verdade que não diria. À simplicidade dos Pais passaria despercebido o exagero do seu ressentimento por tal causa.

E confiado em que nenhum reparo surgiria, declarou:

- Sim, Pai. Houve alguém que me ofendeu troçando de mim e até da minha posição actual. Rosalinda!

Anacleto, transformada a expressão pela incredulidade, mirava o filho como se temesse verificar que os catrimpázios da ciência lhe haviam prejudicado o juízo. E tartamudeou:

- A condessinha. a condessinha troçou de ti ? A condessinha! ? Tu ouves isto, Ana? - e subitamente, voltado para a mulher, cuja fisionomia igualmente se desanuviava, rompeu a rir, com desafogo, com alívio, parecendo achar imensa graça à revelação.

Atônito pela forma como o Pai recebia a sua confidencia mas vendo a tempo nessa hilaridade a confirmação da pouca importância que ele podia ligar ao caso - tal como previra! -, Carlos apenas observou:

- Não percebo porque ri, meu Pai.

Anacleto recuperou a sisudez e, encarando-o, redarguiu com firmeza:

- Não percebes ? Achas estranho ? Sim, de facto eu nunca me riria do mal que te causassem. Mas a condessinha a condessinha Oh, meu filho, que isto não é duvidar de ti. Mas a menina? Ela era lá capaz de te ofender!

- Porque afirma uma coisa dessas, Pai ?

- É boa! Porque sei! Porque tenho a certeza disso! Ou julgas que não a vejo aqui todos os dias e não a conheço como a estes dedos que tenho na mão?

A voz de Carlos vibrava de impaciência (e de desatinada esperança).

- Mas não é razão, Pai! Ela pode ser sua amiga e não minha Afianço-lhe que me troçou!

- E eu respondo-te que só se fosse de brincadeira! Minha amiga! Ai isso é! Mas pregunta à tua Mãe por quem é que ela vinha cá preguntar! Por ti, sempre por ti! Queria saber se havia carta, e quando vinhas, e andava sempre atrás de mim, fala que fala, sem nunca se esquecer de ti! Homessa! Se eu te digo que é assim é porque é assim! Se ela é minha amiga, também te estima a ti. Olha que! E eu a pensar outras coisas! Boa!

O jovem Médico sentia a alma arroubar-se-lhe no frêmito de uma ansiedade que crescia, que se avolumava, que não se lhe afigurava nem ilógica nem despropositada.

As suas pupilas fulguravam, ao indagar:

- Pai. mas isso é assim, de certeza?

- Ó Ana, diz-lhe tu a ver se ele te acredita! A nossa condessinha a fazer troça do Carlos! E não queres tu que eu ria!

Ana, gravemente, corroborou a afirmativa do marido.

- É, sim senhor, é! Até era ela quem nos lia sempre as tuas cartas! -e porque Carlos a estreitava mais ao peito, com mais força, a bondosa Criatura, como que advertida pelo instinto maternaí de que estava curando a alma do filho, prosseguiu, afastando todos os maus juízos tecidos à volta da condessinha: O teu Pai tem razão, Carlos. A menina troçar de ti, só se fosse a brincar! Ela, que se queixava porque nem sempre falavas nela! É que às vezes nem lhe mandavas cumprimentos! Eu também pasmava disso. mas lá terias as tuas razões! E eu muita graça lhe achava quando ela dizia "se calhar é hoje que ele vai falar na futura nora da Mãe-Ana". Credo! Deus me livre que me trouxesses mulheres daquelas terras! Temos cá muitas raparigas dignas de ti, graças a Deus!

Carlos aprumava-se, de narinas dilatadas como se quisesse respirar todo o perfume dessas palavras que eram autênticas e desfaziam quaisquer reservas. Não, não podia acreditar que Rosalinda tivesse agido de brincadeira, como os Pais afirmavam. Havia qualquer razão, qualquer razão que descobriria, agora que sabia que ela não o esquecera e não o menosprezava. Rosalinda! Oh, Linda!

Cantava-lhe aleluias no peito o coração, frente a essa certeza que lhe restituía intacta a imagem que adorava, puro o anjo a quem mentalmente já pedia perdão das odiosas suposições construídas. Mas quem, como ele, não se enganaria sob aparências tão concretas? E, afinal, a verdade de três anos falava mais do que a verdade de uns minutos.

Nem já ouvia os Pais, que dialogavam na mesma convicção.

O rosto iluminara-se-lhe de uma infinita alegria que contagiava os velhotes, satisfeitos por terem podido elucidá-lo.

- Está bem, está muito bem, rendo-me ao que sabem. - e para tornar razoável a sua aquiescência: -Teria então sido a brincar, teria!.

Anacleto aprovava.

- Foi, claro, foi!. Eu pensei logo que ela te preparava alguma partida, quando te falou da primeira vez. E é que a estranhei deveras, ao dianho da cachopa! Aquilo não eram nada os modos dela!

Aquilo não eram nada os modos dela.

E um véu rasgava-se diante dos olhos de Carlos, como pano de cena abrindo repentinamente e deixando, em lugar do cenário triste, um outro repleto de esplendores.

 

Pensativa, Rosalínda ia avançando.

O silêncio da capela parecia especialmente destinado a receber na sua paz a confidencia do juvenil coração atribulado, impregnando-o do bálsamo da fé e da resignação que povoavam a deliciosa penumbra do recinto.

A condessinha levava nos braços um enorme ramo de flores, que depôs em frente do altar-mor, ajoelhando. Traçou o sinal da cruz e ergueu as pupilas, confiante, para a imagem da Senhora da Conceição cujas mãos unidas se diriam abençoar a que até Ela chegava em oração.

Agora, a Senhora e a rapariga como que se contemplavam num colóquio divino de alma para alma. A Mãe-Poderosa não exigia palavras para conhecer a súplica que enchia a alma dessa que habitualmente lhe enfeitava o altar. A Mãe de Bondade não ignorava que a alma juvenil repetia sem cessar uma prece que expressava todo o seu sentir.

- Mãe do Céu, valei-me, porque eu amo o Carlos. Vós sabeis que isto é verdade!.

A Senhora sabia-o perfeitamente, lia-lho no íntimo. E sorria dessa ternura sem segredo, sorria piedosa e consoladora, iluminando de compreensão a Sua resplandecente fisionomia. E os olhos que A fitavam iam ficando secos do pranto que os inundava e a mágoa que o ditava tornava-se mais serena, como que nimbada de um novo alento.

A Senhora não ignorava nada do que Rosalinda pensava. Não ignorava o quanto ela se arrependera da atitude que assumira e a fazia prever que para sempre houvesse arredado Carlos de si, essa atitude ditada por um ciúme que tinha talvez o direito de a torturar mas não o de a fazer torturar esse que era livre de edificar a sua felicidade onde a visse luzir. A Senhora não ignorava nada disto, nem o quanto a consciência havia acusado Linda pelas insensatas palavras proferidas em espírito de vingança. E a Senhora também não ignorava que ela já compreendera que desde o primeiro momento se mostrara uma Rosalinda diferente, uma Rosalinda que ele não podia reconhecer, uma Rosalinda que não era a verdadeira Rosalinda e que, portanto, não podia exigir a Carlos que se mostrasse tal qual o mesmo diante de quem tanto se modificara. A Senhora não ignorava até que ela se recriminava por ter duvidado sem motivos, por ter sido imprevidente e, acima de tudo, incorrecta. A Senhora não ignorava ainda mais - não ignorava que ela se censurava de, embora só por um instante, ter admitido a idéia de aceitar a corte de António, de António a quem ela queria perdoar as insinuações que escutara e tanto mal lhe haviam causado; e não ignorava também que ela desejava ardentemente justificar-se em tudo o que fosse possível para desfazer a dolorosa impressão provocada, para destruir a ofensa causada e conseguir que ao menos ele não lhe votasse rancor. A Senhora não ignorava coisa alguma e de sobejo conhecia o desmedido anseio que a animava.

A Senhora estava a par de tudo e sorria, sorria enternecidamente. Era como se respondesse aos apelos que lhe chegavam ao coração, aconselhando:

- Tem confiança, minha filha, que eu olharei por ti.

E a alma ajoelhada respondia à linda Senhora afirmando que tinha inteira fé num milagre

Levantou-se Rosalinda por fim, subindo os degraus para o altar, a fim de arranjá-lo de novo.

Iam decorridos cinco dias sobre a lamentável cena desenrolada, cinco dias de verdadeira atribulação para Rosalinda, a quem a acalmia restituia a sensatez. Encarando a realidade de frente e sem as perigosas lentes das quimeras, que por vezes à força de tanto embelezar tanto deformam, a rapariga ganhava em raciocínio e em compreensão. Reconhecera a inconsequência das suas atitudes e decidira penitenciar-se, castigando o seu orgulho que em tão má hora soubera dar sinal de si. Queria pedir desculpa a Carlos, alegando uma grande excitação nervosa e. Ela não sabia muito bem o que havia de alegar mais. mas isso era secundário, porque acima de tudo urgia fazer-se perdoar!

Ainda não lograra porém encontrar-se com o Médico. Este dir-se-ia que a evitava, fugindo e desaparecendo mal avistava ao longe a esbelta figura da condessinha que se desolava, pois cada hora que passava ia avolumando o perigo da separação anunciada e talvez definitiva se ela não conseguisse falar-lhe.

Junto dela, Rosalinda ia agora cumprindo a sua agradável tarefa. Tirou a toalha, sacudiu-a, tornou a colocá-la e sobre ela o missal. Depois principiou a escolher e a separar as flores em pequenos ramos, ajustados às preciosas jarras de porcelana. Foi quando lhe pareceu ouvir uma tosse que se tornava nítida no silêncio da capela. Voltou-se imediatamente.

Encostado à porta, perfilado, imóvel, rosto grave erguido para ela, de forma a abarcá-la no conjunto santificado, estava Carlos.

Rosalinda estremeceu. Gelaram-lhe os dedos, que haviam nervosamente agarrado em algumas flores, sob o império da intensa comoção que lhe golpeou a vontade, fazendo perigar todas as suas resoluções, furtando-lhe estupidamente palavras e gestos.

Mas a Senhora vigiava e sorria, sempre enternecida com essa que às flores que lhe trazia juntava a mais bela de todas, a que Ela mais podia apreciar - a fé sincera do seu coração puro.

Mal ousando respirar, tomado de infinito respeito pelo lugar em que ela lhe aparecia, tão branca, tão pálida, enquadrada na protecção do altar, como noiva que se oferta à ternura e à amizade de um esposo, ele contemplava-a num misto de amor e receio, receio de quebrar o enlevo do momento maravilhoso.

Entrara na capela disposto à breve prece que trazia no peito desde que regressara do estrangeiro e queria entregar à Senhora que na infância se habituara a venerar. A singela crença que de meninos se nos apodera da alma é ainda o maior arrimo em horas de incerteza e de angústia, porque como todos os sentimentos espontâneos volta a agitar-se e a sustentar fraquezas.

Desde que chegara estava Carlos ansiando por ali entrar, mas só naquela tarde se decidira a abandonar a Quinta, através da qual errava mergulhado em cogitações que haviam perdido a agrura e se nimbavam da secreta intenção que lhe refulgia no olhar.

E agora, agora vinha encontrá-la, a Essa que andava evitando, não porque ainda lhe quisesse mal, mas porque o amor-próprio lhe aconselhava uma atitude de experiência que, a resultar, coroaria enfim os seus desejos.

E ei-lo ali como se a própria Senhora o tivesse chamado para com a ventura ambicionada por duas almas festejar o regresso dele!

Tão doce foi este pensamento que de súbito o salteou, tão clara e vivida luz se lhe derramou no espírito, que um sorriso lhe bailou no rosto. E, ainda como que agitado por secreta inspiração, onde havia a certeza de que era necessário quebrar o silêncio antes que em constrangimento se tornasse, avançou até junto dos degraus, até fitar os olhos que não se despegavam dos dele, até numa voz quente murmurar:

- Será possível que me queiras mal, Linda, tanto mal que nem te dignes falar-me?

Então, repentinamente, os lindos olhos dela perderam a expressão inquieta, fundiram-se em doçura. Sob o calor envolvente da voz amada, o mal-estar desaparecia, o gelo desfazia-se, as desconfianças evolavam-se. O diabinho que estivera dentro dela, o diabinho do ciúme, fugia a sete pés, escorraçado pela protecção da Senhora que atrás deles, de mãos unidas em benção, continuava a protegê-los.

A alma da condessinha era toda enlevo e arrependimento e esperança. E ela pensava, pensava. Uma multidão de idéias endoidecia-a de inesperada felicidade.

Carlos falava-lhe como dantes. Carlos mostrava-lhe o antigo sorriso sempre lembrado. Não a esquecera portanto, não. não. e não.

Ah, era o milagre esperado!

E o seu rosto banhava-se na fervorosa alegria que as suas feições ultimamente não sabiam exprimir. E recebendo a maravilhosa radiação dessa luz que o inundava, vibrando como vibra a terra beijada pelos raios do sol que a cobre de oiro e de vida, Carlos prosseguiu:

- Linda. é verdade que ainda me estimas, minha amiguinha de quem tive tantas saudades?

Então a última hesitação bateu asas e. e fugiu pelo buraco que a falta de um vitral deixara numa janela. Caíram flores no chão e duas mãozínhas impulsivas estenderam-se para o rapaz que as apertou nervosamente.

- Oh Carlos! - disse a voz frágil, trêmula e deslumbrada. Oh, Carlos! Oh, meu Carlos!

E foi tudo! Mas havia tamanha intensidade afectiva naquela repetida exclamação que de sobejo ela foi resposta para ele.

Arroubado, o Médico inclinou-se para os dedos que estreitava nos seus, depondo neles um beijo ardente.

- Rosalinda! - proferiu comovido: - Minha Linda!

Ela desceu dois degraus e, com os olhos rasos de lágrimas, tartamudeou uma frase que jorrava espontânea do coração para os lábios:

- Carlos. perdoas-me?

Sincera brotou a réplica, mas não demasiado indulgente, a conceder o perdão solicitado e que ele bem sabia ao que fazia referência.

- Perdôo. porque já foste sobejamente castigada. - e rápido, acrescentou: - Castigada das más palavras que me dirigiste, mazona.

- Eu. - tentou cortar a rapariga. Ele não a deixou continuar.

- Bem sei o que vais dizer. Julgavas-me modificado! E essas desconfianças também mereciam castigo. Por as haveres alimentado e porque incoerentemente agiste antes de saberes se terias ou não razão. - e via-a baixar o rosto, confusa. - Sabes? Já podia ter-te procurado mas não quis fazê-lo. Entendi que devia deixar-te curtir o amargor das tuas suspeitas injustas. - e desmentindo a aspereza das afirmativas com a ternura do olhar;

- A menina precisava de expiar o mal que me fizera.

Ela sorriu-lhe.

- Não eram necessárias as represálias. Eu arrependi-me logo e tenho procurado falar-te. para te pedir desculpa, mas tu fugias-me.

- Fugia-te, sim!. -e malicioso: -Não te parece que de sobejo tinha razões para te evitar?

Leu imediato protesto nas pupilas que acarinhavam as suas.

- Oh, Carlos. não! Tu não acreditaste que eu pensava o que disse. naquele dia que sonhara tão ditoso e foi tão desgraçado? Não?

Carlos tornou-se grave.

- Sim, eu também o sonhara ditoso. e sofri um rude golpe!. Já passou, graças a Deus! Mas a princípio acreditei no que te ouvira. e sofri muito, Linda.

- Oh, Carlos! - era uma censura, que ele compreendeu e a que deu resposta vibrante.

- Tens razão em te admirares, pois eu conhecia-te bem demais para poder admitir dúvidas a teu respeito. Mas. mas alguém insinuara no meu espírito uma transformação que a tua reserva havia de justificar depois.

- O António ? - interrompeu a rapariga.

Carlos sentia-se porém demasiadamente feliz para condenar fosse quem fosse. E a sua expressão radiante não se deixou ensombrar pela nuvem de um rancor até desculpável.

- Que importa um nome? Não condenemos ninguém, agora que nos encontrámos para sempre. Linda. diz. é para sempre?

Os olhos de cintilações doiradas afagavam os verdes com a sua contemplação extasiada.

- Sim, é para sempre, Carlos! -e a resposta soava como voto que a majestade do lugar tornava jura indestrutível. E depois: - E afinal, Carlos. como é que percebeste que aquela minha conduta não era sincera?

- Por certas coisas que o velho Anacleto me contou e me mostravam uma Rosalinda cheia de ciúmes.

- Oh! Pudera!.

- Pudera, não! Tu sabias perfeitamente que podias contar comigo. como eu sabia que tu me esperavas.

- E no entanto ajuizaste-me mal!

- Sim, como tu a mim. E também compreendi, mais tarde, após as explicações do meu Pai, que de me ver tão amargurado queria saber o que havia e.

- E tu disseste-lhe ? - indagou, receosa.

- Em parte, porque não podia deixá-lo suspeitar de inocentes! Mas tranquiliza-te! Ele não mede a profundidade dos nossos sentimentos. conquanto soubesse afirmar que só a brincar podias ser desdenhosa como te havias manifestado!

- A brincar? Tu acreditaste que eu me tinha permitido brincar com uma coisa tão importante?

- Não, Rosalinda! Pensei que a minha atitude suspeitosa, desconfiada, servira no primeiro relance para justificar as reservas que o teu ciúme ditava. Vi-te muda e imóvel, viste-me gelado e impassível. e afinal apenas estávamos sofrendo por nos julgarmos esquecidos um do outro. Por felicidade (-e ergueu os olhos para a imagem sorridente da Senhora que os contemplava plena de indulgência-) o Céu conhecia a verdade e ia mostrá-la. deixando que o erro servisse apenas para nos dar a certeza de que o nosso amor é indestrutível.

Então, devagarinho, Rosalinda voltou-se e as suas pupilas levantaram-se para as da Senhora que assim recebeu a acção de graças que até ela subia.

E quando os dois transpuseram, a caminho do terreiro, a porta da capela, a Senhora ficou a sorrir-se contente de mais uma boa acção praticada.

No adro, sob a luz magnificente da tarde em plena maturação que ia reverberar no horizonte limitado, mas formoso, de hortas e vinhedos, quedaram ambos, emocionados da sua ventura já santificada por aquela a quem haviam orado.

Lentamente, Carlos pegou nas mãos de Rosalinda, que se abandonavam.

- Linda. posso beijar a minha noiva?

E a resposta soou numa pergunta desconcertante:

- Carlos. as estrangeiras. também têm mãos pequeninas? Ele pôs-se a rir.

- Não sei, Linda! Como podia verificá-lo se entre as delas e os meus olhos se interpunha, a cegar-me, a saudade destas que haviam ficado aqui à minha espera! ?

- Oh, Carlos!

E a exclamação morreu num beijo.

 

Pelo meio dos canteiros, Rosalinda corria. Saltava vedações, metia-se pela horta, galgava couves repolhudas, pisando irreverente os viveiros, para cortar caminho e mais depressa chegar onde tencionava.

Acordara cedíssimo. Tomara um duche de água fria, vestira-se cantando, vira-se ao espelho achando-se mais bonita do que na véspera, com os olhos mais brilhantes e as faces mais rosadas. E, oito horas mal soadas na torre da vila, descia a tomar o pequeno almoço, enchendo a casa com os trinados da voz pura.

No corredor encontrara a Mãe, hierática no sumptuoso roupão de damasco azul, exprobando ao Inevitável, que se humilhava tornando-se numa bolita quase invisível, uma poçazinha de água suja que manchava a esplêndida passadeira de veludo. Mal a viu, jovial, fresca, estendendo a face ao beijo maternal, Dona Palmira voltou-se para ela a fim de declamar o sermão preparado contra a dona do atrevido cachorrinho. Mas não teve coragem de toldar o semblante radioso da rapariga, que a convidava à indulgência com o seu olhar terno.

- Bom-dia, Mãezinha!

- Bom-dia, minha filha! Onde vai, já? E ela, graciosíssima:

- Passear o Inevitável! Ralhar-lhe para que não faça mais asneiras destas.

Andara tão acabrunhada nos últimos dias, pretextando terríveis dores de cabeça de sobejo confirmadas pelas contínuas olheiras, que Dona Palmira sentia já alvoroçado de inquietação o espírito maternal. E aparecia agora com tão bom parecer que cessaram imediatamente as últimas apreensões da condessa. Aliás, não se surpreenderia se a filha adoecesse repetia. Lidava de manhã à noite, bule que bule, ora nisto, ora naquilo, entremeando as mais variadas ocupações das quais só descansava para ir correr pelos campos. Trocando canseira por canseira, afinal! E a condessa não percebia como ela resistia ao sol que lhe escaldava a cabeça e fazia voltar para casa escarlate, após uma hora de ar livre.

Com mão carinhosa, afagou-a.

- Sente-se melhor, hoje ?

- Estou óptima!

- Não lhe dói a cabeça? - insistiu, ainda.

Linda riu, afirmando que dormira maravilhosamente e, sobraçando o Inevitável, que lhe lambia os dedos, garantia a sua robustez com duas lestas reviravoltas.

- Em todo o caso leve o chapéu para a abrigar do sol.

- Eu levo sempre o chapéu, Mãe!

- No braço, a servir de cabaz!

A rapariga fingiu tapar os ouvidos para não continuar a ouvir a reprimenda e, atirando-lhe depois um beijo na ponta dos dedos, abalou, transpondo a porta do corredor que abria para o terraço e deixando Dona Palmira embevecida e esquecida da poçazinha de água em que inadvertidamente acabou por colocar a chinelinha de seda, indo depois a molhar a passadeira aqui e além. No fundo, a condessa admirava o intenso amor que a filha votava à sadia vida do campo. Jamais lamentava a cidade, com as suas distracções e festas mundanas, cinemas e visitas. Vivia ali como que incrustrada no seu próprio elemento. De manhã ou de tarde, no Verão ou no Inverno, sob a chuva ou debaixo do calor, parecia não haver para ela coisa melhor do que enfronhar-se na natureza, admirando o eclodir e o murchar das vidas que dia após dia iam seguindo a trajectória do nascimento, da maturidade e da morte. Dir-se-ia que Rosalinda tinha raízes na terra. como as demais rosas, essas rosas que de passagem ela ia admirando sem no entanto abrandar a carreira apressada que a levaria para onde o coração dela a esperava.

Surgiu por fim a casinha branca do Anacleto. Junto da porta da cozinha foi parar Rosalinda e, porque estava entreaberta, empurrou-a e espreitou. Avistou Ana, que andava a cirandar da mesa para a chaminé onde em cima do fogareiro principiava o leite a ferver.

Então, gaiatamente, fez:

- Pst, pst!.

Ana voltou-se para quem a chamava e ao avistar Rosalinda logo demonstrou viva satisfação:

- Ai a minha rica menina!

A condessinha irrompeu até ela, abraçando-a efusivamente.

- Minha boa Ana! Como eu gosto de ti!

A velhota, embora deleitada, não pôde deixar de resmungar:

- Sim, sim, deve ser. Por isso esteve um ror de tempo sem cá vir!

Rosalinda, procurando pôr-se séria sem o conseguir - porque até os olhos se lhe riam da alegria experimentada - gracejou:

- Schiu. Não ralhes, que fazes barulho e acordas o teu Carlinhos.

- Qual! Está ferrado no sono!

- Deixa-o descansar, que lhe faz bem.

- Ainda lhe fazia melhor apanhar o arzinho da manhã! Linda mostrava-se indulgente.

- Deixa-o descansar enquanto pode!.

Ferida por idéia repentina, Ana inquiria agora:

- E então a menina já fez as pazes com ele ? Rosalinda não esperava a alusão e um tanto se atrapalhou.

Tornou-se prudente.

- Ele não te contou?. A Caseira sorriu.

- Contou, contou que tinha falado com a menina e já estavam de bem. Mas olhe que o vi mais sentido que eu sei lá! E não adiantava o Anacleto ateimar que a condessinha só podia. enfim, ser daquela maneira, a reinar.

Rosalinda, fornecendo a Ana uma explicação que devia satisfazê-la, respondeu:

- Não era a brincar, eu estava zangada com o Carlos porque ele nunca me escreveu enquanto esteve fora! - e não disse que o caso fora devido a uma prévia combinação, aliás suscitada por uma aceitável forma de ver que os fizera achar desnecessária a correspondência que não explicaria mais do que pudessem saber por intermédio dos Pais dele, dado que a condessa vigiava todo o correio da filha e esta não o queria escondido, porque algum dia descoberto só mal provocaria.

Sim, Rosalinda detestava realmente a mentira e os disfarces

e no entanto

Já Ana se manifestava, comicamente despeitada.

- Ah! Foi por isso! ? E aquele maroto não me quis dizer a razão. Só me contou que estavam amigos como dantes e mais nada.

Rosalinda não teve tempo de comentar que "chegava".

Porque Ana mirava com grande pasmo o chapéu de palha que ela trazia pendurado num braço.

- Que trás a menina aí dentro? Que é isso?

- Isto? - e Rosalinda, esboçando uma carinha de ofendida, erguia no ar o simpático Inevitável. - Isto é o meu cão, que eu venho apresentar ao Carlos.

Ana começou a brincar com o cachorrito, estendendo o indicador que ele mordicava.

- Olhem que engraçadinho! O Carlos há-de gostar! Ouviu-se nisto abrir uma porta e, do aposento contíguo, soar

a voz ainda pastosa do dorminhoco.

- Mãe! Bom-dia! Pode dizer-me que horas são? Parou-me o relógio e não sei a quantas ando!

A velhota e a rapariga entreolharam-se, risonhas, e foi esta que respondeu, alegremente:

- Bom-dia, preguiçoso! São oito e meia da manhã e verifico com desgosto que não tens emenda - vives para dormir!

Houve surpresa na resposta.

- Linda! Tu, já?

- Parece que sim!

- Se soubesse que vinhas tão cedo, ter-me-ia levantado de madrugada para te receber condignamente.

- Tu? Levantares-te de madrugada? Eras lá capaz disso!

- Enganas-te! Lá fora punha-me a pé todos os dias às seis da manhã! Agora preciso de recuperar forças.

- E maus hábitos!

Ele riu-se com gosto e depois, porque lhe tardava contemplar a amada, inquiriu:

- Linda, se não te desagrada ver-me de pijama, que é de seda boa, seja dito de passagem. podes aparecer-me para me dar os bons-dias, ou vou eu aí?

- Eu já estou a ver-te!

O Médico afirmou-se então e deu fé de um lindo olhar luminoso através da frincha da porta da cozinha.

Duas harmoniosas gargalhadas soaram e sob a admiração ingênua e afectuosa da Ana, que seguia atrás da rapariga, ambos caminharam ao encontro um do outro, juntando-se precisamente à entrada da salita, perto da mesa. Olharam-se com ternura e Rosalinda pôde contemplar, enternecida, um Carlos diferente, um Carlos que parecia um petiz que saltou da cama e vem a esfregar as faces onde restam marcados os vincos dos travesseiros e a enrolar nos dedos os cabelos revoltos. Nunca ela o vira, desde a infância, assim com os caracóis aureolando-lhe a fronte lisa, esses caracóis que a mão implacável do homem destruía com água e fixador. Que lindos cabelos! E fitava-os maravilhada, a eles e ao dono, cujos olhos fulgurantes, expressivos de juvenilidade, tão pouco falavam do grave mancebo que se dedicara ao sofrimento dos corpos e das almas, tão pouco lembravam os desse Carlos austero que estava representado na grande fotografia colocada por cima do aparador, imponente na bata branca que era uma espécie de símbolo da grave missão a que se consagrara.

Esse Carlos que ela agora via - o seu Carlos! - não era o Médico, nem o Homem, mas um garoto de cabelo anelado e lábios ansiosos que parecia pedir-lhe mimos, sorrisos e doçura, e tão frágil, tão frágil, que às suas mãos pequenas entregava o cuidado da própria felicidade!

Dando fé do enlevo com que era observado, ele voltou a rir.

- Não devia aparecer-te neste desalinho. Corro o perigo de te cair em desagrado.

Logo ela protestou, vivamente:

- Não é nada disso! Estava a admirar os teus cabelos!. Carlos encolheu os ombros, irônico:

- São lindos, não? Uns rebeldes que custam a alisar. Linda fez beicinho.

- Oh, Carlos, preocupa-te com outras coisas e deixa os teus cabelos ao meu gosto. - e voltando-se para a velhota, que os mirava encantada: - Ana, não é verdade que são uns lindos caracóis ? - e sem esperar resposta: - Estás com cara de bebê. e eu gosto de te ver assim!

Ele esboçou um gesto de resignação.

- Seja! Tentarei fazer-te a vontade. se não me desagradar muito o diadema. Mas agora espera-me aqui. Vou-me vestir para poder competir contigo em elegância. - e afagava-a numa admiração eloqüente. - Vens bonita, sabes ? O azul fica-te bem. Mas. olha lá. isso que tens aí dentro do chapéu. é um cão?

Rosalinda tirou o cachorrinho da copa que servia de cesto e passou-lho para as mãos.

- É, é! Chama-se Inevitável!

- Inevitável! Que nome! Foste tu que o baptizaste? Rosalinda meneou a cabeça e depois, contrafeita pela evocação, mas sincera, ripostou:

- Não, foi o António. Foi com ele que o fui buscar, no dia em que chegaste.

Carlos enrugou as sobrancelhas. De súbito, sob os caracóis aparecia a fronte do homem que tem preocupações. Lembrara-se do encontro com António do Souto e do passeio que lhe fora tão petulantemente anunciado.

- Ah. já sei!. Ele disse-me que tinha saído contigo.

- e como se não pudesse reter agora a chamazinha do aborrecimento que o outro fizera brotar, acrescentou, depreciativamente e restituindo o cachorro à dona: - O nome é simpático como quem lho arranjou.

- Carlos! -ralhou imediatamente Ana, que não gostara da insinuação. Mas o filho voltara as costas e dirigia-se para o quarto, enquanto Rosalinda baixava os olhos, penalizada por haver feito surgir a sombra desse que pretendera separá-los. Carlos teria ficado zangado ? Não gostaria só do nome, mas também do facto de ser António o padrinho do béu-béu? Ia dizer-lhe qualquer coisa, para que não perdurasse a desagradável impressão, mas antes de fechar a porta, o Médico, por certo compreendendo que fora descabido o seu movimento de mau-humor (nada justificado uma vez que o passado passara mesmo!), voltou-se, rosto desanuviado e já risonho.

- Linda, sabes que te trouxe vários presentes?

- Que é? Diz depressa!

- Espera. sé paciente!. Dentro de momentos sabê-lo-às.

- e, sem mais cerimônias, fechou-lhe a porta na cara. Ana protestava, escandalizada:

- Que rapaz aquele! Olhem como ele recebe a menina!

A condessinha limitou-se a beijar-lhe repetidamente as faces.

- Deixa lá, Ana. A gente não lhe liga. É assim que se faz aos miúdos. - e ao ouvido, segredou-lhe: - E agora vamos tratar do cafezinho, sim ? Ele deve estar a morrer de fome!

E apesar de todos os protestos de Ana, vinte minutos depois, aproximadamente, ela perfilava-se junto à porta do quarto de Carlos, batendo-lhe com o pé (porque tinha as mãos ocupadas) e exclamando, sob a complacente atenção de Ana que do limiar da cozinha a contemplava:

- Abre depressa, Carlos! Não posso responsabilizar-me pelo equilíbrio da xícara dentro da qual fumega leite puro da vaca.

A porta descerrou-se acto contínuo e surgiu o mancebo esbeltíssimo no seu trajo branco de desporto. Contente, maliciosa, Rosalinda comentou:

- Ena! Mas que luxo! -e passando rente a ele foi poisar em cima da mesa de cabeceira, ao lado dos fósforos e dos cigarros, a preciosa carga.

Atrás dela entrava o Inevitável, saltitando, rebolando com o primeiro papel amachucado que se lhe deparou.

Arroubadamente, Carlos contemplava a linda rapariga dirigindo-lhe nas pupilas ardorosas frases veementes de paixão. Cingiu-a depois pelos ombros, beijando os cabelos doirados que lhe roçavam as faces.

- Linda!. Que outro nome te podia ser melhor adequado? Nenhum! Tu és linda!

Vibrante na perfeita comunhão dos sentimentos, ela entregava-se feliz ao amor compartilhado, suprema dádiva que a estonteava, suprema ventura que a perturbava e dominava, pincelando de novas cores a vida, criando a total beleza da existência. A ambos deleitava, na sua singeleza edificante, o momento que ia passando. Estavam juntos, confiavam um no outro, eram um para o outro. que mais poderiam exigir ao Destino ?

Devagarinho, ele murmurou-lhe ao ouvido:

- Rosalinda. serás a minha mulher.

Doce mas firmemente, ela desprendeu-se por fim das mãos que a retinham e quebrou decidida o enleio de ambos.

- E os meus presentes ?

- Ah. não te esqueceste? Pois vais recebê-los. Diz-me uma coisa antes, porém. Gostavas de possuir a certeza de que nunca te esqueci enquanto andei lá por fora, a certeza de que foste a dominante do meu espírito ?

- Gostava. Mas como ?.

- Como?

Foi direito à grande mala, abriu-a, tirou a roupa primeiro e em seguida mostrou-lhe o recheio -embrulhos de diversos tamanhos.

- Que é isso? - indagou Linda, suspensa.

- Recordações que te trouxe das minhas viagens. Coisas pequeninas que terão valor para ti se nos lembrarmos daquela quadra que cantámos aí numa festa da Escola, quando éramos crianças. Dizia assim, recordo-me ainda:

As coisas mais pequeninas, que podem não ter valor, são sublimes, peregrinas, se as embeleza o amor.

Antes dele acabar a evocação, já Rosalinda estava metade dentro do malão, desembrulhando tudo afanosamente, com grandes ahs! e ohs! de espanto e alegria.

- Oh, Carlos, que Bom! Ah! E que lindo! E isto? Oh!

Um colar de lindíssimas pérolas, grandes, rosadas, magníficas, a que só faltava ser verdadeiro para se tornar sumptuoso; um estojo com perfumes; uma caixa com meias finíssimas. Ah! Oh!. E o seu entusiasmo de criança encantava Carlos, que a via tudo remexer num alvoroço.

Mas, de súbito, ao sacudir uma camisa dentro da qual ouvira chocalhar algo, depararam-se a Rosalinda os fragmentos azuis da jarra que Carlos partira, da jarrinha cor dos miosótis, cor da florinha simbólica "não me esqueças". Volveram-se para ele, desolados e perquiridores, os olhos dela.

- Carlos! Como aconteceu isto? Que pena!

Este sorria, tanto mais satisfeito quanto a actualidade desmentia o que lhe afirmara a superstição. E confessou:

- Fui eu, num ataque de mau-génio. no dia em que cheguei. Parecia-me o retrato do nosso amor. Mas, afinal, ele não estava quebrado!.

- Pobre jarrita! -suspirou a rapariga. -Vítima inocente de um mal-entendido.

Erguera-se, sustentando nas mãos os seus tesoiros. Depois tratou de colocar ao pescoço o colar que assentava esplendidamente na brancura da pele. Foi ver-se ao espelho pendurado por cima do lavatório, admirando-se com ingênua garridice.

- Fica-me bem, não fica?

- Maravilhosamente. Então, declarou:

- Nunca mais deixarei de usá-lo.

Mas de súbito, suspendeu-se, inclinando o rosto com tanto desalento que a metamorfose inquietou o namorado.

- Que foi? Que tens, Linda? Respondeu-lhe um olhar sombrio.

- Ê que. não posso usar isto. nem levar nada para casa!. E ele compreendeu e mediu o alcance da frase. Ficou muito

sério, cabisbaixo.

- Ê isso! - disse por fim. - Há os teus Pais! Esquecemo-nos dos teus Pais. Esquecemo-nos de que eles não consentirão.

A grande ameaça, a verdadeira, a única susceptível de toldar a sua deslumbrante ventura, acabava de surgir.

Até aí quase haviam esquecido que o mundo não se resumia às suas almas cheias de sonho nem era comandado pelas suas vontades conjugadas. E eis que surgia a oposição, a dificuldade máxima, essa que era preciso vencer, custasse o que custasse, mas que talvez não pudesse ser vencida! Nem sempre se realiza o que para alguém "tem de ser"!

E Carlos sentiu-o tão bem, tão fortemente foi flagelado por essa realidade, que os braços lhe descairam inertes ao longo do corpo e no seu rosto pairou uma expressão de intenso desânimo.

Como poderia ele lutar contra o passado ? Como poderia debelar as reservas dos condes contra. contra o filho do seu criado?

Também Rosalinda estava pálida, de fisionomia amargurada.

Nada justificava a sua separação e, no entanto, talvez ela fosse ordenada por preconceitos impossíveis de quebrar. Mas porquê? Não era ele digno dela? Oh, sim! Merecia-a, completamente, inteiramente! Então?

Mas os Pais. os Pais dela. compreenderiam que as estradas, vindas de pontos opostos, se cruzam e se completam e se tornam numa só, para direcção nova, para rumo diferente?

Num tom contrafeito, a hesitar entre o grande amor e o receio de atrair represálias sobre a rapariga que não tinha o direito de sacrificar, ele disse por fim:

- É verdade, sim, Rosalinda; os teus Pais não me aceitarão como genro. e condenarão sem piedade os nossos desejos.

- Oh, não! - balbuciou a condessinha, erguendo para ele o olhar dolorido: - Isso não! Nada nem ninguém será capaz de separar-nos.

Carlos fitou-a, comovido e grato.

- Mas se eles não permitirem, Linda ?

- E que importa que não permitam?

Foi tão impetuosa e firme, que o Médico estacou, admirado, deslumbrado perante a hipótese que em face desse protesto podia aceitar.

- Mas tu. tu. tu passarias sem o seu consentimento?

- Passarei, se for necessário. Primeiro estás tu! E eu não cedo a nossa felicidade a ninguém!

Carlos aproximou-se mais dela, tentado a aceitar-lhe o impulso sem mais considerações mas forçado pela consciência a exigir-lhe que raciocinasse.

- Mas, Rosalinda, tu deves-lhes obediência.

- Bem sei! Mas não têm o direito de pretenderem forçar a minha vontade, por respeito a vãs concepções. Se o fizerem, responder-lhes-ei com a minha independência! Erro por erro! Sou minha, tenho alma, coração e corpo que me pertencem só a mim e de que ninguém pode dispor sem o meu consentimento! E dá-los-ei apenas a quem eu quiser e a quem melhor me faça agradecer a Deus o dom de me ter concedido a vida!

- Linda! Mas. entre os teus Pais e eu. tu escolhias-me a mim?

- Sim! Mas. talvez não seja preciso. Eles hão-de perceber. porque me querem muito. e não desejarão toldar a minha ventura com a mágoa de obscurecer a deles. não achas?

A voz feminina velava-se agora de comoção, fraquejava. Empolgado, Carlos estreitou-a num grande amplexo.

- Linda. disseste palavras belíssimas. Penso, como tu, que os teus Pais hão-de compreender que a sua oposição só poderá anuviar a nossa ventura, não impedi-la. Convencê-los-emos.

- E se for necessário dir-lhes-ei exactamente o que acabo de te afirmar!

- Oh, meu amor!

Soaram passos na sala contígua. Desprenderam-se a tempo. Ana surgia à porta, indagadora.

- Já almoçaste, Carlos?

Não, Carlos ainda não almoçara. e em vez de tomar o leite fumegante que tanto o reconfortaria bebeu de um trago o líquido frio, frio como o medo do futuro que lhes gelava as esperanças.

 

O sol bailava o último arabesco do dia em incomparável conjunto sinfônico de luzes e matizes entre as árvores do parque, para o qual abriam as janelas do escritório do conde.

Ao longe, no azul feito por tênues anilinas onde se diluira fogo, esbatia-se a montanha cujo dorso parecia disforme, fantástico, envolto pela sombra que de tentáculos alongados amarinhava, a apoderar-se dela com longos frêmitos de nocturna frescura. À sua beira, descendo até ao vale, os casais solitários, formando mundos restritos onde em volta da lareira acesa para a ceia o amor é mais significativo, todo ele justificado na família e no futuro limitado e pacífico.

Sentado à secretária de pau santo (como a restante mobília artisticamente trabalhada), o conde perdia o olhar na contemplação nostálgica dos copados cimos dos arvoredos e no horizonte impregnado de poesia de que se evolava um misterioso fluido de paz que mais dulcificava a serenidade da hora em que a noite cumprimenta o dia.

Na frente de Teixeira de Melo, instalada na vasta poltrona de coiro, a condessa tricotava afanosamente, contando as malhas da lã que as agulhas iam entrelaçando, esboçando algo com certeza destinado a Rosalinda. Mas, de soslaio e alternadamente, ia fitando o marido, em cujo rosto, ainda belo, divisava profunda abstracção. Menos sensível do que ele, menos dotada pelos requintes de alma que se enlevam nas formosuras que a natureza constantemente oferta em todas as suas tonalidades e mutações, não entendia a solenidade do ocaso nem a influência que ele podia exercer sobre o espírito contemplativo do companheiro. E sentia-se intrigada futurando quais as possíveis causas daquela visível melancolia. Por duas ou três vezes abriu a boca para quebrar o silêncio, para o interrogar, mas a quietude perfeita que a cercava sustinha-lhe o ímpeto e, mau grado seu, obrigava-a a respeitar aquela meditação.

A luz ia gradualmente faltando e Dona Palmira não tardou em poisar no regaço lã e agulhas. Recostou-se no cadeirão, suspirou e ia agora certamente dizer algo, chamar à noção da escuridão esse que não desfitava o panorama fronteiriço. Mas não teve tempo. Veio da porta, arrancando-os ao seu remanso, uma estrepitosa exclamação que alertou Olivosa quase em sobressalto e obrigou a condessa a voltar-se surpreendida.

- Santas tardes convosco sejam, senhores condes e meus honrados primos!

E eis António avançando sob a atenção acordada de Teixeira de Melo e o acolhedor sorriso da fidalga, cuja benevolência o Engenheiro soubera captar por bem lhe haver estudado a índole e a tempo dispor sempre das palavras que mais poderiam satisfazê-la.

Dupla saudação o acolheu.

- Boa-tarde, Antoninho.

E logo Dona Palmira, apontando as botas de canos altos:

- Andaste a passear a cavalo ? .

Ele inclinou-se, esbelto no blusão castanho, do tom das calças tufadas, apertando nas mãos o frágil pingalim.

- A senhora condessa, com a sua peregrina bondade, desculpar-me-á de me apresentar neste trajo efectivamente pouco cerimonioso, mas regresso de um passeio a Vale dos Arcos.

Perante a ênfase da resposta, as pupilas da condessa brilharam de satisfação, mas o conde não lhe deu tempo a qualquer prova de maior agrado, porquanto ele próprio se mostrou interessado.

- Foste à propriedade que tencionas vender? António esboçou um trejeito de preocupação.

- Se encontrar comprador! Aquilo está um pedaço em mau estado.

O conde pôs-se a cofiar o bigode. Aquele demônio, sob o pretexto de olhar pela fazenda, não fazia nada de útil e espatifava a herança. Mas cabia-lhe alguma culpa da alheia maluqueira?

E comentou, poucos segundos após:

- É possível que não tenhas grande dificuldade. Sabes que olho para Vale dos Arcos com bons olhos. Gostava de a comprar para Rosalinda. Devidamente arranjada, reconstruída, ficava uma bela Quinta!

Ele inclinou-se, obsequioso:

- Está às suas ordens, meu primo!

- Falaremos nisso com vagar. Tenho de ir por lá.

A condessa, que se erguera para acender a luz, tornando a sentar-se com aquele ar antigo de dama do Paço, dir-se-ia esperar que António do Souto voltasse de novo para ela as suas mesuras, que de facto não tardaram. António dobrava-se na sua frente, indagando submisso:

- A Sr.a condessa ainda não disse se me perdoa esta intromissão

A réplica soou de envolta com um sorriso lisongeado.

- Bem está, António, entraste na tua casa! - e apontando-Lhe uma cadeira: - Não queres sentar-te?

A flexível espinha dobrou-se outra vez.

- Agradeço muito. - e instalou-se com um suspiro regalado mas cavo. No fundo das órbitas, os olhos rolavam-lhe de um cônjuge para o outro

O conde atentou apenas no suspiro, pois o olhar era suficientemente disfarçado.

- Estás cansado ? - inquiriu.

- Não, não! Até me fez bem o exercício! Dizem que é o melhor meio para excitar o pensamento, o raciocínio. E eu necessitava de estímulo, de forças.

O conde nunca verdadeiramente simpatizara com aquele caracter servil, mole como cera, pouco franco e sempre aferrado às louvaminhas fáceis. No entanto, conhecia-o de pequeno, vira-o fazer-se homem, e calava as suas impressões numa indulgência um tanto irônica. E talvez porque adivinhasse a oculta má vontade de Teixeira de Melo, era perante ele que António evidenciava menos presença de espírito. O próprio feitio mansamente trocista do conde um tanto o confundia.

E desviou as pupilas quando o Pai de Rosalinda indagou no tom zombeteiro que lhe era familiar:

- Precisas acaso de tomar alguma decisão heróica ?

Ele, esforçando-se por não se deixar desnortear e agir segundo o trilho previamente meditado, encolheu os ombros, simulando cuidado.

- Heróica?. Possivelmente, primo! Há horas tão graves na nossa vida!

O conde sorriu.

- Na nossa é uma forma de dizer. Na tua, não sei.

- Perdão, primo, eu disse efectivamente na nossa. A todos interessa.

Teixeira de Melo pareceu admirado.

- Quê? Que história é essa? Do que te incomoda nós devemos participar? Deste fé do que afirmaste?

Mas, desta vez, António não se deixou intimidar. E calmamente repücou:

- Sim, primo, foi o que eu afirmei e tanto assim que por essa razão eu hoje, isolado, longe de tudo e de todos, quis pensar bem a fundo no assunto que há muito me preocupa e me trouxe aqui. - e de semblante circunspecto: - A ida a Vale dos Arcos serviu-me de pretexto para poder livremente entregar-me a meditações das quais só poderiam resultar ou o desânimo total ou a coragem de me apresentar nesta casa com o coração nas mãos.

Agora, enquanto Dona Palmira parecia aguardar serena o evoluir do diálogo, Teixeira de Melo recostara-se no grande cadeirão de espaldar e fazia ouvir o seu riso tilintante, embora menos firme e claro do que habitualmente. Insistia em levar para a brincadeira o tom melodramático do rapaz.

- Ah, ah! Assustas-me! Temos tragédia?

Então, com entono patético, estendendo o braço em atitude pungente e pondo-se lentamente de pé, António proferiu:

- Está a minha existência em jogo, primo! Na solidão de Vale dos Arcos senti como nunca que a minha vida, o meu porvir, a continuação do meu nome e do meu sangue, toda a minha felicidade dependiam, contra as aposições da minha razão, de um grande amor!.

Em parte verdadeiro, em parte fictício, desempenhara como um Actor o papel estudado, tocando com êxito a melodia que a seu favor devia dispor a melhor aliada - a condessa.

De facto, ouvindo falar em nome, porvir e continuação de sangue, Dona Palmira empertigara-se, presa de repentina suspeita.

- António! ? Gostarás tu de alguém que te não mereça? O comentário permitia que António se aventurasse, serenando-lhe a inquietação.

- Oh, não, não! Não, minha prima! Eu é que talvez não seja digno dela. É-me tão superior! E, no entanto, os nossos nomes, reunidos, fortificariam a nossa velha nobreza.

O conde voltara a perder o olhar no horizonte, onde o vermelho de há pouco se nimbava de oiro a toldar lilases que iam morrendo num azul de safira reconstituída. O sal descera para além da montanha. Dele apenas a saudade.

E o espírito de Teixeira de Melo, mordido por súbita idéia, escurecia como o ar.

Em contraste, Dona Palmira, cujos gostos estavam a ser incensados, punha-se incondicionalmente ao lado do Engenheiro, como este previra. E volvia-lhe convicta:

- Mas, meu filho, nenhuma rapariga te desdenhará! - e enunciando os atributos pela ordem em que lhe pareciam importantes - És fidalgo, rico, jovem, belo

E ele, com um ar de amargo desespero que devia comover a condessa por tamanha desgraça num ser tão ideal:

- E ela não me ama!

Dona Palmira dir-se-ia sufocada pela inverosímil confissão.

E Teixeira de Melo, trazendo para o ambiente já iluminado pela luz artificial as pupilas que deixavam o maravilhoso espectáculo do céu com visível pesar, numa voz inesperadamente severa, inquiriu:

- E por esse motivo vieste procurar-nos? Esperas de nós algum auxílio?

Em face do quesito nada indulgente, por pouco António não perdeu a segurança. Valeu-lhe Dona Palmira, cuja sobreba não hesitaria em tentar exercer pressão no caracter bondoso do marido, a quem o grande afecto que lhe consagrava podia enfraquecer.

- Decerto que espera! - disse, resoluta. - E faz muito bem. Ajudá-lo-emos em tudo, porque este rapaz tem o direito de exigir amor àquela que escolheu.

A absurda declaração indignou Olivosa, que obtemperou imediatamente:

- Mas, Palmira, o amor é uma coisa que não se exige a ninguém! Se o soubemos inspirar, porque o sentimos, ajoelhamos para recebê-lo como dádiva bendita. Se o experimentamos sem remédio por alguém que nos não quer, procuraremos nem de longe sacrificar o objecto precioso

A condessa interrompeu-o, agastada:

- Meu amigo. por favor! Que ridículo sentimentalismo! Teixeira de Melo começou a tamborilar com os dedos no

tampo da secretária, sem responder à esposa que prosseguia, voltada para António. como se quisesse animá-lo dando-lhe de antemão a certeza de que o adivinhava e podia contar com ela:

- Meu filho, o coração avisa-me de que nada deves recear.

- Prima Palmira! - e António precipitou-se a pegar-lhe nas mãos. - Como eu lhe agradeço! Vai permitir-me que lhe revele o nome dessa que estremeço?

Qual soberana perante a nobreza reunida, em gesto magnânimo Dona Palmira estendeu solenemente a mão direita. Rendida ao manhoso.

- Diz!

Ele quase ajoelhava como antigo donzel, murmurando num sopro:

- É minha prima Rosalinda!

Ao som do rufar dos dedos, o conde contemplava a cena que considerava mais ridícula do que o seu sentimentalismo e que lhe inspirava agora, ao ouvir citar a filha querida, uma autêntica repulsa por António do Souto, ao mesmo tempo que se apiedava do único defeito que conhecia na mulher. Mas não articulou uma palavra. Esperava. E António, após a confidencia, endireitou-se, recuou como se temesse receber nas faces o castigo da sua ousadia e exclamou ardentemente:

- sr.a condessa. já o tinha percebido, não é verdade? E perdoa-me a audácia? Não vai condenar-me, não? Bem sei que ela vale demasiado para mim, por si própria, pelo sangue que lhe corre nas veias, por...

A condessa suspendeu-o, sempre com a mesma inalterável majestade.

- Cala-te. O sangue de Rosalinda é parente do teu. Sois da mesma estirpe e dignos um do outro. Dou-te a minha filha!

Já o Engenheiro lhe beijava os dedos, babado em gratidão, quando a voz grave de Teixeira de Melo, que se levantara e viera colocar-se entre os dois, sustentando um duplo olhar contrariado se fez ouvir:

- . Palmira, não quero censurar-te mas não podes dar Rosalinda sem o meu consentimento. nem tu, António, a devias solicitar apenas a sua Mãe. Esqueceste-te de que eu existo e não sou um boneco dentro desta casa ? E ainda mais - esqueceste-te de que a nossa filha não é bem que se negoceie a nosso contento ?

Perante as frases duras, ele desviou-se, atarantado:

- Mas, meu primo eu não

A condessa não deixou o marido continuar. Irritada, como sempre que a sua vontade encontrava obstáculos, erguera-se também e fitava Olivosa, fuzilante. Só nesses momentos, aliás, ela esquecia e perdia a noção da ternura que lhe consagrava, e era nesses momentos também que o conde, bom psicólogo, evitava dissenções que podiam tornar-se complicadas se um deles não cedesse.

- Meu amigo. não vai opor-se a este casamento que me agrada e me torna feliz ? .

Teixeira de Melo encolheu os ombros, decidido a ser paciente como sempre mas não a calar-se, porque deveras sentia a questão e queria pugnar pelos direitos reconhecidos à filha adorada.

- Atende, Palmira! Olha que não se trata da tua felicidade, mas da de Rosalinda!

- Rosalinda há-de querer o que nós lhe indicarmos.

- Não, Palmira. Porque se Rosalinda herdou em parte o meu caracter pacifico e romântico, também recebeu alguma porção da forte vontade da Mãe

Dona Palmira mordeu os lábios, atingida em cheio pelo reparo que se lhe apresentava justo. Mas não tardou em argumentar, sem retorquir à alusão que a magoava porque várias vezes vira a rapariga cheia de persistência e vigor:

- Não creio que Rosalinda recuse o António! É o melhor partido que se lhe pode deparar e.

- A isso só ela é capaz de responder. e uma vez que o não ama, como o próprio interessado confessa, a sua anuência deve ser difícil de obter.

Sentindo vacilar o edifício dos seus ardis, António reconheceu a urgência de insuflar na condessa o desejo de se impor definitivamente e a melhor forma de consegui-lo seria, sem dúvida, simular uma retirada que a chocaria e obrigaria a desejar mostrar que mandava.

- Prima Palmira meu primo como vêem, eu tinha razão de temer. Não convenho, e de forma alguma pretendo forçar nem sacrificar.

Deu o resultado previsto.

Dona Palmira deteve-o na desistência.

- Espera!. O conde há-de verificar que dar-te a sua filha é confiá-la à ventura que ela merece. Falaremos com Rosalinda. e havemos de convencê-la! Convencê-la-emos, prometo-to eu!

Mas o conde continuava obstinado.

- Tenho pena, rapaz. mas não partilho as opiniões de Palmira. E sempre te digo que mais te valia conquistar as boas graças da filha do que as da Mãe

António sorria um sorriso muito amarelo, ao inclinar-se:

- Devo perder as esperanças, meu primo?

A condessa, exasperada pela oposição assim definida, excedia-se. O seu desejo, porque lhe agradava aquele enlace, tornava-se capricho.

E, um tanto violenta, inquiriu:

- Que responde a isto, o senhor ?

- Apenas que não decido por Rosalinda. Se ela aceitar o António, não levantarei dificuldades.

A condessa soltou uma risadinha áspera.

- Espero que o meu amigo saiba persuadir a sua filha de que este é o homem que lhe convém. Quanto a mim, que sei mais da vida do que ela, farei tudo para que este casamento se realize, certa de que mais tarde a minha filha mo agradecerá.

Teixeira de Melo contemplava-a com visível descontentamento.

- Não discutamos, Palmira. Deixemos a resolução à principal interessada.

E a esposa:

- Seja, não discutamos. Mas Rosalinda há-de obedecer-nos!

- Nesse caso, falarás tu com ela. Se a queres obrigar, encarregas-te disso. Ponho-me à parte. Dona Palmira protestou:

- De maneira alguma!

- Porquê?

Houve no olhar da condessa uma furtiva hesitação durante a qual o conde alimentou ilusões e António, que rejubilava diante dessa força que a jeito era tão fácil de manobrar, tremeu.

Mas a resposta soou, mantendo a situação anterior.

- Não quero fazê-lo, pois posso irritar-me e ir longe demais. O conde é a pessoa indicada para resolver, a bem. Confio-lhe portanto o futuro da nossa herdeira! - e com uma autêntica reverência, abandonou o aposento.

Por momentos quedou silencioso o conde e António não ousava interrompê-lo, pressentindo que se lhe devia travar no íntimo uma qualquer batalha. Era verdade. Teixeira de Melo sentia-se perplexo e não sabia que decidir.

Mas, de súbito, dirigiu-se a António, olhou-o nos olhos como se quisesse neles colher a orientação em certeza que o tranqüilizasse e desfechou-lhe uma pergunta, sem rodeios:

- Gostas efectivamente de Rosalinda?

O olhar cinzento não desceu e a resposta saiu clara e definida, de molde a serenar dúvidas e sem mostrar que o magoasse a suspeição:

- Sim, meu primo, gosto! De verdade.

- Muito bem, falarei a Rosalinda. Mas repito-te o que me ouviste há bocado - o amor não se obriga!

Sim, o amor não se obriga. Ele o dissera - se o situemos inspirar, porque o sentimos, ajoelhamos para recebê-lo como dádiva bendita. Se o experimentamos sem remédio por alguém que nos não quer, procuraremos nem de longe sacrificar o objecto precioso.

 

- Rosalinda! Rosalinda! Rosalinda! .

Por três vezes, juntando as mãos em guisa de bocal para ampliar os sons, ele repetiu o nome adorado, lançando-o aos ecos, primeiro em frente, depois à esquerda e à direita. E enquanto os ecos, submissos, lhe davam em réplica o qualificativo sobejamente merecido pela rapariga - linda, linda, linda - um gritinho soou, gaiato e prazenteiro.

- Ou! Ou! Ou!

Como outrora, nos tempos dos jogos infantis, ela escondia-se para que ele se afadigasse a procurá-la, resplandecendo em seguida na alegria de a descobrir, muitas vezes encarrapitada no tronco de qualquer árvore, os loiros cabelos desalinhados emaranhando-se na folhagem através da qual espreitava um rostinho miúdo, adorável. E foi por se recordar das antigas traquinices, que ergueu os olhos, pesquisador, para as ramadas próximas. Mas não a descobriu. Não era mesmo viável que ela houvesse trepado àqueles enormes pinheiros de troncos lisos e grossos.

Indeciso, caminhou mais adiante, parou, circunvagou uma olhadela pelos arredores e repetiu o apelo às quebradas:

- Rosalinda! Ó Linda! Onde estás?

- Úú! Oú! Úú!

Vibrava mais próxima a sonoridade da resposta colhida e ele pôde orientar-se. Cortou à esquerda, saltou um valado, desceu uma penedia que lhe embargava os passos e tornejou aquela espécie de gruta natural, formada por imponentes fraguedos - que a gente do sítio dizia serem vestígios de uma cidadela romana mas a opinião dos Arqueólogos não confirmava -, que desfrutava o soberbo panorama dos vales frondosos.

Foi à sombra das rochas que avistou a condessinha, sentada no chão, rindo e estendendo-lhe as mãos, em delicioso acolhimento para que avançou, transportado.

- Tardei a encontrar-te, querida! A tua voz guiava-me, mas os ecos desorientavam-me, não me deixavam perceber de onde provinha.

Ela ria alegremente.

- Não adivinhavas onde eu estaria? Não te lembras das vezes que vínhamos para aqui merendar, deixando atrás de nós a Quinta e a minha Perceptora, que debalde gritava por mim?

- Lembro-me, sim! Tão bem como dessa manhã em que te trouxe amoras e ficaste com o vestido todo sujo, com grande desespero da nurse que já contava com uma descompostura.

- E sabes ainda qual era a cor desse infeliz vestido ?

- Perfeitamente! Branco, como o que vestes hoje e te dá a aparência de uma pomba!

Prendera-lhe as mãos nas suas e ia-a puxando devagarinho, forçando-a a levantar-se até poder cingi-la nos braços e sentir encostada ao seu peito másculo a cabecita loira plena de confiança e dedicação. Contemplava-a avidamente, e os seus olhos, no mesmo êxtase, reflectiam-se, vendo os próprios rostos nas pupilas que fitavam, como se neles se gravassem para sempre, indeléveis, na suprema força da ternura que lhes fazia o mútuo dom das imagens trocadas.

E os dois corações juvenis batiam céleres no mesmo ritmo apaixonado, irradiando felicidade, uma felicidade tão grande que outra maior não saberiam desejar!

Baixinho, ele dizia-lhe palavras inolvidáveis.

- Rosalinda, desde ontem sem te ver e já tinha saudades tuas. E não posso hoje compreender como consegui viver tantos anos e tão longos meses sem ti. Será porque o amor, quando enfim sai do casulo dos sonhos tímidos em que se encerrou ao nascer e se revela em toda a sua pujança, bebe na expansão a necessidade de receber tanto como dá ? Dantes, pensar em ti, recordar o menor dos teus sorrisos, cumulava-me de satisfação, bastava-me!. Hoje, uns instantes sem te ver, conquanto certo de que sentirás o mesmo, supliciam-me.

Ela afagou-lhe os cabelos, ternamente.

- Ficaste ambicioso e exigente. sou a culpada!

- Oh, não! Não vais dizer-me que devias ter-me deixado na incerteza.

- Não tenho essa coragem. E, contudo, há quem afirme que o sofrimento solidifica o amor.

- E não sofremos nós? Não nos chegaram as horas de desolação e fé perdida? Essas que terminaram. e não hão-de voltar mais?

A voz de Linda encheu-se de fervor.

- Não. não hão-de voltar mais! E eu compreendo-te bem. porque estar longe de ti é também para mim uma amargura. E se o não fosse. parece-me que não merecia ler nesses olhos o que estou lendo.

- E que é, Linda ? Ela ciciou:

- Que me queres muito e que nunca me quererás menos. Que me guardarás como um tesoiro e que dependerás de mim como de uma deusa que tem nas mãos o teu destino.

Ele estreitou-a com mais força e durante momentos nenhum ousou falar. Era tão belo o instante divino da perfeita comunhão das suas almas!

Depois, Carlos murmurou:

- Convencida!

Riram e sentaram-se os dois, de mãos dadas, longe do mundo, transformados numa espécie de egoísmo santificado e santificado porque se desdobra em bênçãos de duas generosidades, dois entes que deixam de ser um só para não existirem senão por aquele a quem ofertam o dom eterno da sua individualidade.

Raros são os que logram amar-se com o espírito, no conjugar perfeito dos seus ideais. Rosalinda e Carlos comungavam totalmente de um sentir idêntico e coisa alguma podia afectar o arroubamento do seu perfeito amor.

Sossegados, tranqüilos, na sua consciência e nos seus direitos, nem conversavam. Eram ditosos assim, ao lado um do outro, contemplando os mesmos objectos, vivendo o mesmo enlevo.

Na frente deles estendia-se o declive do outeiro, até o vale ridente.

E ante, sob e sobre a majestade das coisas e do universo, que se estendia para lá dos horizontes, dir-se-ia pairar, forte e dominadora, a essência do amor, sussurrando a toda a natureza no seu próprio frêmito de vida:

Se não fosse eu, que seria de ti? Fria e sem valor, faltar-te-ia o sopro divino ao sentimento que a morte nunca pôde levar nos braços, porque é imutável nas suas constantes repetições. Vês este parzinho? Banhei-os com a minha graça e neles tudo é pureza, tudo é claridade, tudo é segurança. São felizes porque são novos e belos, porque o sol banha a terra em seu redor e porque sorriem um para o outro.

Tudo era pureza. Tudo era claridade. Tudo era segurança.

E uma sombra pérfida avançava. Sombra pérfida de que o parzinho feliz apenas se apercebeu quando, exaustos de se namorarem, as duas bocas se aproximavam. Porque a sombra tinha voz.

- Adões modernos e modernas Evas num moderno paraíso. ou os pastores da Arcádia seduzindo as princesas.

Feridos pelo comentário sardónico e insultante, ambos se puseram de pé numa dupla exclamação de surpresa e de revolta:

- António!

O Engenheiro ria sarcástico, afrontando-os com a presença e com a palavra.

- António, sim! António do Souto que aparece muito a tempo para advertir Rosalinda de que uma rapariga que se preza deve ter limites nas suas inclinações bucólicas.

Entre os dentes cerrados, Carlos sibilou:

- Toma tento. Não te admito que insultes Rosalinda!.

O outro desfechou uma gargalhadinha que arripiava os nervos.

- Ah, ah, ah! Não te apoquentes. Eu não esqueço que devo respeito ao sangue azul de Rosalinda, aliás irmão do meu.

- Então. é a mim que diriges o ultraje?.

- Talvez antes aos afectos que se escondem atrás das rochas.

Carlos, num movimento impossível de conter, deitou-lhe as mãos às bandas do casaco.

- António, acautela-te!. A paciência tem limites!. Embora sentindo-se pouco à vontade, António não quis dar

parte de fraco e pela primeira vez mostrou a inaudita coragem de desafiar o Médico em vez de desertar, como era seu costume, face às condições em que o físico perigasse.

- Julgas acaso que vou bater-me contigo ? - e acentuara a frase desdenhosamente.

Rosalinda, que fechara os olhos à aproximação de ambos, temendo-lhes o embate, abriu-os precipitando-se para Carlos que, de cabeça perdida, levantava o fidalgote no ar.

- Canalha!. Bateres-te comigo? Não! E não porque se dizes mais uma palavra te faço rolar até lá abaixo e só paras junto dos canaviais!.

- Carlos! -bradou a rapariga, aflita. -Larga-o, deixa-o ir embora.

E, esforçadamente, prendia as mãos do namorado, obrigando-o a largar o primo cujas calças estavam agora molhadas de alto abaixo. E não obstante a desgraçada aparência, António não deu às de Vila Diogo. Conquanto balançando em desiquilíbrio, livre dos punhos de Carlos teve a fatuidade de pensar que a prima, apesar de tudo, o defendera. E depois de ter posto entre ele e o Médico, prudentemente, alguns metros de distância, declamou, no mesmo tom ofensivo:

- Bem, deixá-los-ei sós. Aproveitem bem o tempo, já agora tanto faz.

Carlos esforçava-se por se libertar dos dedos de Rosalinda, a quem o terror de os ver engalfinhados parecia triplicar as energias.

- Rosalinda, deixa-me esbofetear aquele miserável. Eu não o atiro pela ribanceira. só lhe parto a cara!

- Não! - e agora era ela quem, numa singular metamorfose da rapariguinha jovial e terna a quem a ofensa ao amor e à dignidade dava soberania de gestos e vontade, se impunha ao primo, sempre agarrada a Carlos. -Vai-te embora!. Vai-te embora!

Se dízes mais alguma coisa não continuarei a segurar as mãos do Carlos e quando chegares ao pé dos canaviais, lá no fundo da ribanceira, até bato palmas!

O seu tom era por demais significativo e não tolerava delongas. E António interpretou tão claramente a verdade daquela ameaça, que achou preferível desaparecer.

E no tornejar dos penedos, sob o enxovalho de todos os seus desaires, foi ainda acompanhado pela voz de Carlos que bradava:

- Fica-te cá guardado um soco para a próxima.

Só muito longe do castigo prometido o Engenheiro se afoitou a uma nova ameaça.

- Veremos! Veremos qual de nós vence. Talvez fizesses mal, Carlinhos, em me teres poupado agora.

 

- Preciso de falar-te, Linda!

Dois dias haviam decorrido desde o encontro com António, esse encontro que, logo o temera, havia de precipitar os acontecimentos e impedi-la de preparar o terreno de forma a torná-lo propício para a revelação que decidira fazer, com plena aprovação de Carlos, afim de conseguir a almejada licença para o seu casamento. Agora, de certeza, tudo ia ser mais difícil de resolver, sem tempo de suave infiltração que fizesse ruir pela base o edifício dos preconceitos, pois nem por um instante ela duvidava que o primo perdesse o ensejo de principalmente denunciar o rival, colhendo vingança da tempestade de oposição que sobre eles faria descer, plena de sanções e obstáculos intransponíveis. No entanto, aqueles dois dias de interregno quase lhe davam a esperança de encontrar benignidade da parte de António. Mas perante a repentina chamada do conde, ela perdia as ilusões e aprestava-se para agir de acordo com o que nessa emergência julgava melhor e mais favorável - confiar absolutamente no Pai, não lhe ocultar coisa alguma desse amor que não a envergonhava e solicitar, apelando para o coração extremoso, licença para viver a felicidade.

Ela sabia que Teixeira de Melo acabaria por ceder, vencida a resistência pela doçura dos rogos filiais. Pior, muito pior, seria a Mãe, barreira imensa cuja resistência quebrantaria a vontade do Pai, se antes não lograsse pô-lo incondicionalmente do seu lado.

E a caminhar submissa atrás do conde de Oliviosa, ia ordenando no cérebro explicações, argumentos, raciocínios, na firme disposição de sempre com lógica ripostar ao Pai vencendo o próprio e compreensível nervosismo que a despeito das mais sensatas razões lhe afectava o moral.

No escritório, cuja porta o conde deixou entreaberta indo em seguida sentar-se no seu lugar predilecto, em frente da secretária, com duas imensas rugas na testa, Rosalinda perdeu mais um tanto de serenidade.

Quais seriam, logo de entrada, a atitude contra a qual teria de reagir?

Agora, Teixeira de Melo fitava-a e pela certa notando a angústia que a fisionomia móbil não sabia disfarçar, teve um gesto com que ela não podia contar mas que possuía o condão a que, naturalmente, o conde já o destinara - tranquilizava-a.

Acima de tudo, o Pai desejava garantir-lhe o afecto que coisa alguma seria capaz de afectar. E dizia-lhe:

- Não te assuste, filha! Não é nada de grave. conquanto seja importante!. -parecia estudar as palavras, como se quisesse escolher as que menos magoassem a rapariga cujos olhos se fitavam nos seus, atentos. - Eu te digo. A tua Mãe e eu temos reparado, desde há uns tempos, numa certa assiduidade de... e de repente suspendeu-se, ante o alvoroço de uma Rosalinda que julgava saber com que contar e intimamente se sentia agradecida ao Pai por evitar todas as asperezas.

- Diga, Paizinho, diga. Pode dizer tudo!

Mas o conde dir-se-ia resolvido a dar outras directrizes ao diálogo, principiado numa atmosfera de austeridade que não agradava ao seu feitio extremamente afectuoso. Ver Rosalinda de pé diante dele, em atitude compungida, não era coisa para suportar. E numa reviravolta bem expressiva do seu temperamento afável, quis tornar mais íntima a conversa encetada.

Estendeu-lhe dois dedos carinhosos.

- Pois sim, já digo, mas vem cá, senta-te aqui ao meu lado e dá-me a tua mãozinha. Isso, assim! Não gosto de te ver especada na minha frente. Nada! E agora vamos falar como dois velhos amigos que somos. vamos, filha?

Um tal preâmbulo, nascido da bela plasticidade do espírito do conde, incapaz de ferir ou melindrar alguém, comoveu Rosalinda, que imediatamente se dispôs a retribuir a delicadeza do Pai.

E sorria-lhe, agradecida, sem responder apenas porque a voz se lhe embargara.

- Rosalinda, - prosseguiu Teixeira de Melo, tendo posto completamente de parte a máscara sorumbática que a princípio se lhe afigurara a mais adequada às circunstâncias. - ora diz cá, filhinha. tu sabes que a tua ventura é para mim uma coisa sem preço?

- Sim, Paizinho. sei. -e para agradecer tanta indulgência e não a desmerecer, quis mostrar-se obediente dentro da sua firmeza. - Nunca de tal duvidei e só tenho a pedir-lhe desculpa se contrario os seus desejos.

O conde fitava-a atento, talvez estranhando a voz mal segura que lhe respondia. Diacho! A pequena saberia já do que se tratava?

Interrompeu-a, brandamente, para não dar azo a que os lamentos inevitáveis - contava com eles! - o impedissem de cumprir isso a que Dona Palmira chamava o seu dever de Pai.

- Espera aí, espera aí. Tu sabes perfeitamente que eu não quero desgostar-te. Mas entendo que deves ouvir os nossos conselhos. A tua Mãe, vais compreendê-lo, sofreria deveras se não nos escutasses. Ela preocupa-se muito contigo.

Rosalinda interrompeu-o, precipitadamente. Eis a oposição forte com que já contava - a oposição da Mãe! E fogosa, endireitando-se para provar que assumia a responsabilidade do que afirmava e defendia, exclamou:

- Eu sei, mas a ventura de cada um só existe desde que o próprio coração a construa!

- Pois sim, pois sim, mas. mas atende, Rosalinda, parece-me que deves ouvir a tua mãe. e a mim também! - e concluíu-o com esforço, querendo satisfazer os desejos da esposa mas dorido por magoar a fillha cujos olhos via cheios de lágrimas.

Ela já não duvidava de que tinha de entrar em luta aberta com a vontade especialmente da condessa e a idéia torturava-a a dobrar -porque contrastava com o respeitoso afecto consagrado aos Pais e porque o seu amor não passaria sem a amargura que para sempre ficaria a estigmatizá-lo se desobedecesse aos seus.

- Oh, Pai! - balbuciou, implorando. - Não queira obrigar-me a...

O conde, desviando o olhar para não ver o semblante crispado da rapariga, sentiu-se na obrigação de insistir:

- Hás-de pensar maduramente, Linda! Não precisas de resolver já. - E em tom conciliatório: - O casamento não é brincadeira nenhuma, não pode fazer-se de ânimo leve. Deus me livre de te ver um dia apontar-nos como responsáveis da tua desdita!.

Rosalinda começou a respirar melhor, mais aliviada. Afinal, a oposição não seria tão forte quanto a receara! Vencê-la-ia, provando ao Pai que nada temia da sua inclinação e agradecendo-lhe os conselhos bem longe de se parecerem com ordens.

E, mais confiante, sorriu de forma a animar o Pai.

- Quando o amor existe, tudo é belo!

Teixeira de Melo contemplou-a, desanuviado vendo-a assim. Não compreendendo porém ao que pudesse referir-se aquela insinuação, atribuía-a a fuga às directrizes claramente expressas. E agradou-se do ardil, especialmente porque Rosalinda lhe parecia mais animosa após a sua última objecção. Então aceitou o cruzamento, sem contudo se decidir a abandonar por completo o primeiro trilho. Ladeá-lo-ia.

- Sim, minha filha. Tens razão! Quando o amor existe, a felicidade sorri a despeito de tudo.

O coração de Rosalinda palpitou radioso ante semelhante concordância.

- Oh, sim, sim!

Mas o conde, fiel ao programa esboçado nesse contorno, deslizou ao longo dele.

- Entretanto, creio que não é este o caso. Ê possível que haja amizade entre vós. mas amor? Não acredito. e bastantes vezes vos tenho observado!.

Desta feita Rosalinda não entendeu absolutamente nada das alusões do Pai. Iria ele, numa forma de resistência com que não contara e contra as esperanças que sentira, tentar demonstrar-Lhe que se enganava acerca dos próprios sentimentos? Mas. onde e como os analizara? Não, não percebia!

E Teixeira de Melo, satisfeito de ver que ela não o interrompia, prosseguiu dando largas à sua solicitude paternal, que falava mais alto do que tudo.

- Entendo que deves pensar bem, Linda. Aprende a ler em ti e obedece-nos se puderes. Na tua idade ainda não se sabe ao certo o que seja o amor.

Agora, para Rosalinda, tornava a não haver dúvidas. Era verdade o que lhe palpitara! O Pai queria, no intuito de a persuadir a deixar-se vencer, mostrar que lhe arrancava do peito uma banal amizade e não um grande amor. Então ergueu um vibrante protesto, hindo em defesa do sentimento acerca do qual tinha a firme certeza de não estar enganada.

- Isso não é assim, meu Pai, pelo contrário! Na minha idade sabe-se perfeitamente o que é o amor, o amor pleno de fervor, de alegria, de pureza, de entusiasmo, porque a juventude obriga-nos a ter fé em tudo o que nos sorri, fé, sobretudo, em que as horas mais belas ainda não chegaram e para elas caminhamos de alma desanuviada, para elas e para o sonho que há-de ser verdade!

Um tanto surpreso daquela veemência que se lhe afigurava pouco apropositada naquele momento - salvo se dessa maneira exacta ela procurasse justificar a sua recusa! - o conde não pôde deixar de sorrir.

- Oh, paladina do amor, não discutirei as tuas convicções, que são lindas e me apraz respeitar. E que feliz será o que possuir uma afeição do valor dessa que tens para ofertar!.

Rosalinda semi-cerrara os olhos, como perdida em íntima contemplação. E murmurou:

- O amor só pode ser grande, porque cumpre a sua missão, quando compartilhado. O que se estiola dentro de nós é como uma árvore que não frutifica. Deixa extravazar a seiva inutilmente.

O conde, cada vez mais admirado com aquelas expressões melancólicas e ardorosas, que pareciam profundamente sinceras, tinha vontade de não dizer mais nada, de deixar perdurar a lembrança da bela e romântica declaração de Rosalinda. Mas notou que se haviam afastado do assunto capital, alheados da resposta sem a qual não desejava aparecer diante da esposa, que não cessara de o incitar a apressar o pedido feito e por ela aceite. Urgia acabar com aquilo e quanto mais depressa melhor.

Voltou-se então para a rapariga, decidido a arrumar o problema. E combatendo o desejo pessoal de ficar meditando, na paz que se diria envolvê-los, quebrou o silêncio.

- Ouve, Linda. Não devemos deixar-nos levar por quimeras.

- e porque entendia que ele próprio momentos antes fora um pouco sonhador demais, acrescentou: -A vida real, que nos acompanha dia-a-dia, não permite tantas ideadizações. A felicidade é fácil de alcançar quando a medimos pelas possibilidades e não pelos devaneios. Temos de ser razoáveis.

Profundo desalento invadiu Rosalinda. Não, a luta não era fácil. Pelo contrário, caprichava em mostrar-se mais forte justamente quando ela julgava vê-la extinguir-se, como se pretendesse apanhá-la desprevenida.

- Mas, Paizinho.

O Pai não a deixou falar.

- Vais pensar maduramente, como te aconselhei. Reflectes nos nossos desejos, meus e da tua Mãe, que são sinceros. E logo à tarde vens comunicar-me o resultado do teu exame de consciência. - e após ligeira hesitação: - Que espero nos seja favorável.

Rosalinda, abstracta, fitava o valioso lustre do tecto.

Pensar? Reflectir? Para quê? Não valia a pena! Devia dizer imediatamente que não precisava de pensar, que estava decidida e que pedia encarecidamente que não a entristecessem com vãs oposições.

- Estamos então combinados, Rosalinda? Logo à tarde vens dar-me a tua resposta, para eu a entregar ao António, que espera ansiosamente a cedência desta linda mãozinha.

Mas a linda mãozinha, que o conde segurara, crispou-se e soltou-se, bruscamente. Ela pusera-se de pé, recuava, de olhos dilatados, como que chicoteada pela imprevista revelação que a desnorteava lançando-a num mar de incompreensões. Como? Quê? Ouvira bem? António? Mas era então a António que o Pai estivera a referir-se durante todo esse tempo? A António e não a Carlos? Mas então. António não a denunciara? Depois do que vira? Mas a que móbil, a que estratagema obedecia?

Perdia-se no labirinto das idéias que se chocavam, que se amalgamavam. Levou as mãos à cabeça, verdadeiramente transtornada.

António! António pedira-a em casamento! Talvez julgasse que podia rendê-la assim, dando-lhe a escolher entre o silêncio e a calúnia. Sim, era isso! Se ela recusasse, como vingança contaria o que descobrira! Ah, mas ver-se-ia qual levaria a melhor. Ele calara-se até aí. o jogo ainda não estava perdido. Mas ceder, ela? Nunca! Nunca! E a julgar, pateta, que o Pai aludia ao Carlos! Ceguinha que fora! Por isso houvera tanta brandura! A resistência seria a que primitivamente calculara. estivera gastando forças em vão!

Sob o olhar perplexo do Pai, que não percebia coisa alguma da repentina modificação dela, deixou pender os braços ao longo do corpo, infinitamente cansada mas resolvida a lutar até final.

- Não, Pai. -disse devagar mas com segurança. -Não virei logo à tarde dar-lhe qualquer resposta.

- Porquê ? - indagou Teixeira de Melo, franzindo os sobrolhos.

Porque respondo já. não!

- Não?

O conde contemplou-a por um segundo, depois levantou-se também. Dirigiu-se-lhe, pousou-lhe as mãos nos ombros, sentindo-os tremer sob os seus dedos. Ela recusara! Enquanto ele a sondara, fora evasiva também. Mas à sua decisão respondera com outra! Valente rapariga! Quis porém fazer uma derradeira tentativa afim de isentar-se de todas as recriminações.

Não, Linda. Só logo te aceito a resposta. Tens de pensar!

- É escusado, Pai.

- Não, não é escusado. Porque a tua felicidade é tudo para mim!

Rosalinda lançou-se-lhe ao pescoço, apoiando o rosto no peito amigo. Sim. a felicidade dela era tudo para o Pai. devia portanto dizer-lhe, contar-lhe. Fosse como fosse, seria sempre o mais certo. Se a sua felicidade era tudo para o Pai. talvez ele compreendesse!

O conde, beijando-a carinhosamente, continuava a falar.

- Tu vais reflectir agora, Linda. Estou falando como manda a experiência dos velhos. O António representa a tua segurança.

Interrompeu-o um cicio.

- Paizinho, não teime.

- Não teimo. Espero a tua decisão.

Mas ela desprendeu-se do abraço afectuoso e proferiu, com firmeza inabalável:

- Não, Paizinho. A minha resposta será sempre a mesma. Nunca!

E no jeito altivo de erguer a cabeça havia a confirmação de que o sangue da Mãe, efectivamente, lhe corria nas veias. O conde insistiu, conquanto já disposto a acatar-lhe a decisão:

- Não queres então pensar?

- Não, porque seria inútil! - e ao ritmo do tumulto que lhe agitava a alma, acentuou: -A minha resolução é inabalável e o Pai pode comunicá-la a António. NUNCA! Que me deteste, que me odeie, que se vingue como lhe aprouver. Tudo me é indiferente, vindo dele. Pode dizer-lhe mais, Pai, que eu não negoceio, não transijo e não tenho duas almas, mas só uma, fiel e digna do respeito de todos.

Teixeira de Melo quedou aturdido com semelhante avalanche, catadupas ardorosas que deviam jorrar de uma fonte que ele desconhecia.

- Linda. porque falas assim?

Ela recuou mais um passo. Desnorteara-se por completo e procurava agora, com ânimo, uma justificação plausível. Encontrou-a na própria verdade.

- Porque não o amo, Paizinho. Não o amo!

E da porta veio então uma pergunta que sobressaltou o conde e obrigou Rosalinda a estremecer, como na visão de um imenso pedregulho que ameaçava esmagá-la:

- E porquê, Rosalinda, pode saber-se ?

 

No limiar da porta, imóvel, altaneira, pálida como sempre que se encolerizava, recortava-se a silhueta autoritária de Dona Palmira. E atrás dela surgia o rosto escarninho de António, contemplando Rosalinda com ares triunf antes.

- Porquê, Rosalinda ? - repetiu a condessa, dando dois passos para a frente, entre o silêncio do marido e da filha.

Para Teixeira de Melo a cena prevista nada tinha de agradável e, divisando o embate que a rapariga ia sofrer, embate sem nenhuma espécie de resguardo e que seria tanto mais violento quanto ele pressentia que era fundada a resistência da filha, sentia-se verdadeiramente contristado.

Linda, diante da inesperada e dupla aparição, notando o sorriso mau do primo e já fatigada do anterior combate, percebia que a presença de espírito a abandonava no instante em que mais precisava dela. E abandonava-a cedendo o seu espaço a um receio avassalador - o receio de ser obrigada fosse de que maneira fosse a renunciar a Carlos.

E nessa aflição que a sufocava, trêmula, nervosa, alvo de uma tríplice análise, de uma tríplice atenção concentrada nela, tornava-se absolutamente incapaz de atinar com as palavras necessárias para responder à Mãe.

E quanto mais crescia e mais evidente se tornava a sua confusão, mais se entreabriam risonhos os lábios de António.

- Rosalinda! - insistiu a condessa. - Perdeu a língua? Fale! Porque não ama o marido que lhe destinamos? Porquê?

Rosalinda queria pronunciar-se, dizer qualquer coisa, mas apenas soube articular infantilmente, numa voz rouca e entrecortada:

- O Papá. sabe!

- O seu Pai sabe? - e voltando-se para o marido, inquisitorial, incapaz de ter mão em si: - Que sabe o meu amigo? ForamLhe fornecidos motivos que o satisfizessem?

O conde estava sobre brasas. Que havia ele de explicar? Tudo o que se passara mereceria da mulher o apôdo de ridículo sentimentalismo, tanto mais que ele esquecera absolutamente que deveria ter convencido a filha com evocações ao nome, à fortuna, à honra ancestral. E depois não sabia que atitude tomar. Defender a filha contra a Mãe, que lhe queria tanto como ele próprio, era ilógico. Mas pôr-se ao lado da condessa e ver sofrer Rosalinda tornar-se-ia intolerável.

Mostrou-se contemporizados

- Bem vês. ela nunca pensou em semelhante hipótese. e torna-se-lhe difícil assim de repente.

- Porquê ?

Aquele porquê, repetido, soava como um martelo caindo na bigorna.

Rosalinda percebeu que não era ao Pai que competia responder por ela, mas sem forças para revelar a verdade à Mãe, essa verdade que estivera prestes a balbuciar aos ouvidos do Pai, apenas soube implorar, estendendo as mãos:

- Oh, não insista, por favor!

A condessa jazia inacessível na torre de marfim do seu orgulho e a nada atendia.

- Apresente razões, menina! Apresente razões para a sua ofensiva recusa.

- Eu. eu não o amo!

A condessa dardejou ao marido um sorriso irônico.

- Foi isto o que ela lhe disse a si, também ?

Teixeira de Melo baixou a cabeça, abrindo os braços com ar desolado em sinal único de confirmação que lhe poupava as palavras que não desejava dizer. E Dona Palmira de novo encarou a filha.

- Basta de pieguices. - sentenciou. - Não me deixo convencer com facilidade. Há-de casar com o seu primo, porque eu quero. Não sou o seu Pai, Rosalinda!

E Rosalinda não soube senão soltar um queixume:

- O Papá é Bom.

Foi uma frase desastrosa, que elevou ao rubro a zanga da condessa, aguilhoada por aquele reparo que o subconsciente muito mais tarde reconheceria quão justo fora naquele momento. Num gesto largo, comentou:

- O seu Pai é bom e eu sou má, não é? Vamos, seja ingrata, menina a quem dei a vida, seja ingrata como qualquer filha do povo!

O povo. o povo. Carlos.

Rosalinda abria uns grandes olhos, desmesurados. Não quisera magoar a Mãe, nunca de tal seria capaz. Mas o povo. o povo. Carlos.

Sentia o coração abrir, alargar, doer e partir-se em dois bocados. Um ia a pular para a Mãe, o outro para o Pai e o sangue que da ferida escorria ia todo para Carlos, levado pela natureza, pelo destino, pelas leis da vida.

Levou a mão à testa. Assaltavam-na vertigens.

- Rosalinda! -dizia a condessa. -Fique sabendo que é uma ordem. Casará com o seu primo!

- Não caso! - gritou ela.

Então António abandonou a neutralidade, pelo menos aparente, que até aí mantivera.

- Prima. talvez seja preferível não insistir. Rosalinda repele-me porque me não ama. aceito a explicação. Possivelmente ela compreende o mundo de outra forma, agradar-lhe-ão mais as situações sob aspectos romanescos. Desdenhará por isso a minha lealdade.

Os olhos de Rosalinda brilhavam de indignação, mas não abria a boca.

A condessa enrugava a testa, fitando-o de semblante cada vez mais carregado.

- Que dizes? Rosalinda compreende o mundo de outra forma? Mas Rosalinda tem de pensar como eu!

Ele esboçou um trejeito de discordância.

- Peço que me desculpe, prima. mas acredito que não se manda no coração. - e com um olhar ameaçador que desmentia o tom melífluo, terminou: - Não é verdade, Rosalinda?

Rosalinda sentia-se na iminência de explodir. A cólera que a agitava tornava-se mais forte do que os receios justificados.

E então o conde, até aí observando o desenrolar da cena, avançou para o Engenheiro, pôs-se ao lado da filha, numa atitude grave e austera, de súbito percebendo que havia algo de estranho em tudo aquilo, algo que erguia aqueles dois seres como inimigos frente a frente. E recordando que António como antagonista sempre preferia as armas que ferem pelas costas, impôs-se.

- É tempo de seres explícito, António. Que insinuações são as que fazes a Rosalinda?

A rapariga ainda ergueu a mão num gesto que talvez aconselhasse prudência, mas o Engenheiro não recuou. Ardia no desejo da desforra. E voltando-se para o conde, articulou ambiguamente:

- Peço perdão, primo. Apenas lamento que Rosalinda não saiba fugir aos ardis de um caçador de dotes.

Como uma leoazinha enraivecida, Rosalinda precipitou-se para o primo e, totalmente incapaz de medir as conseqüências da sua atitude, esbofeteou-o com ambas as mãos até que a Mãe a agarrou pelos pulsos.

- Rosalinda? Endoideceu?

Mas ela vibrava demasiado no ímpeto irreprimível. E gritava a António:

- Cala-te, cala-te, fidalgo arrumado! Não dês a outro o epíteto que deves reservar para ti!.

António esfregava o rosto, em cuja brancura se destacavam as manchas rosadas dos justiceiros deditos, tentando abafar a decisão de se vingar torpemente, brutalmente, dessa que apenas se defendera e o punira. O espírito torvo ajudou-o a conter a fúria num sorriso hediondo.

O conde sentia-se perplexo diante das proporções que o incidente assumira.

- Rosalinda! ?. António! Mas que se passa ?

Dona Palmira abanava a rapariga pelos ombros, roxa de indignação.

- Pede perdão, Rosalinda!. Pede perdão! O conde susteve-a na exigência.

- Palmira. saibamos primeiro o que originou este conflito. O Engenheiro dobrou-se numa mesura.

- Não vale a pena incomodarem-se, primos. Isto não tem qualquer importância. Rosalinda não é culpada do que se passa.

Ela, medindo-o com infinito desprezo, já que nada mais podia fazer-lhe, nem sequer corrê-lo ao pontapé pela porta fora como a mais malcriada de todas as garotas malcriadas, silabou:

- Metes-me nojo!

- Serias razoável não o confessando.

E ela percebeu tão bem o aviso e teve tão nítida a noção do que ele ia dizer, que se desviou. Já António proferia:

- Rosalinda ama outro homem, primos. É só isto!

Teixeira de Melo deu dois passos atrás, talvez menos surpreendido do que desejava aparentá-lo. A condessa, pelo contrário, avançou, olhando alternadamente para a filha e para António.

- Como ? Rosalinda ama outro homem ? Menina, é verdade o que o seu primo diz ?

E Rosalinda, cedendo à pressão, murmurou:

- Sim, minha Mãe, e só com ele eu posso ser feliz.

- Mas a quem se refere, menina ? Soou alto o riso odiento de António.

- A sr.a condessa ainda não o entendeu?

A sr.a condessa voltou-se com olhos de alucinada e compreendendo tudo de repente, rouquejou um grito e ergueu os braços em gesto dramático.

- Ah, meu Deus! Eis o que eu temia, o que eu estava a adivinhar, o que eu pressentia quando houve a triste idéia de o mandar estudar. Ah, o patife, o vilão que soube insinuar-se no espírito desta inocente! Um homem capaz de todas as baixezas! Mas. mas como foi isto? Apesar de todas as minhas proibições, falavam-se? Ah, se eu imaginasse. teria sabido separá-los, ainda que me privasse da companhia da minha filha. Preferia-o mil vezes à vergonha porque estou passando! - e virada para a rapariga, acentuando as palavras: -Mas nunca, nunca consentirei em tal! Ouve, Rosalinda? Prefiro-a morta!

Rosalinda precipitou-se para o Pai, numa angústia louca.

- Pai, pai. seja por mim! Ajude-me!

Mas o conde tornara-se frio e impassível como ela jamais o observara. E Linda viu que estava ali mais um adversário, não pelo coração, mas pela razão; um adversário com que não contava porque acreditara no seu apoio.

Então. seria um crime o seu amor? Mas porquê?

- Pai. pai. - e abraçava-se a Teixeira de Melo, soluçando.

Mas o Pai, firme e resoluto, afastou-a de si e, num tom de profunda tristeza que a própria esposa nunca lhe escutara, proferiu palavras que não eram iguais às da condessa mas se afiguravam definitivas no seu ressentimento nascido de reflexões gravíssimas.

- Não, Rosalinda, não contes com a minha tolerância. Depois do que ouvi, só posso censurar-te e condenar a falta de caracter desse que ajudei lealmente.

- A serpente aquecida no nosso seio! -gemeu Dona Palmira.

Rosalinda chorava. Depois do que ouvi - dissera o Pai. Então, se houvesse sido antes do António vir, antes do António haver aparecido naquele dia, tudo seria possível e as suas intenções, num plano de sinceridade, teriam encontrado bom acolhimento pela parte do conde! E agora. agora.

Mas ouvindo o comentário da Mãe, ganhou coragem para defender o homem amado, a quem acusavam tão injustamente. E protestou:

- Oh, não! O Carlos é digno de todo o respeito! A condessa apostrofou-a asperamente.

- Cale-se, menina! Não profira aqui esse nome! - e olhando o Engenheiro, com certa reserva: -Devias ter-me avisado mais cedo daquilo que sabias.

António não quis dizer que apenas dois dias antes colhera a certeza do que sempre desconfiara, aliás. E estendeu a grande malha da sua ardilosa generosidade.

- Para quê, minha prima ? Para quê afligi-los inutilmente ? Ofereci a minha mão a Rosalinda e, se ela a aceitasse, eu tudo esqueceria. Estava pronto a salvá-la da vergonha com o meu nome.

Semelhante declaração abalou a condessa, emocionada perante aquela grandeza de alma. E para a filha emitiu, menos fria, vibrando da atitude que lhe parecia admiravelmente cavalheiresca:

- Veja, Rosalinda! Admire a nobreza deste gesto!

A revoltada acercou-se do primo e, no auge da amargura, lágrimas caindo-lhe em fio pelo rosto, soltou uma gargalhada rouca, impressionante.

- Nobreza ? Isto ? - e fremente, pertinho do rosto dele, revelou a verdade daquela alma vil. - És um comediante!. Querias um negócio. supunhas que eu me vendia! Não, mil vezes não! E não tenho de que me envergonhar! Não sou da tua raça!

Teixeira de Melo tentou interrompê-la, chamá-la à cordura, porque lhe desagradava e lhe doía vê-la entregue a uma exaltação que falava claramente da mágoa que a desatinava.

- Linda! Modera-te!

Mas a filha encarou-o, suplicante na sua veemência.

- Ó meu Pai, escute-me!. Vilão não é esse que eu amo. vilão é este que pretendia abusar de um amor puro para alcançar os seus fins! E quanto a casar com ele, repito-lhe que nunca, nunca e nunca! - e numa reviravolta que os deixou a todos assombrados, correu para a porta, sumiu-se nos corredores. E lá de longe vinha ainda o grito firme e indomável:

- Nunca!

 

Cresceu o enleio do velho sob o olhar atônito do filho, atônito e depois atento, atento e perspicaz como olhar de homem habituado a estudar homens cuja vida a morte ronda.

Encostada à porta, Ana escondia o rosto inundado pelas lágrimas no grande avental de riscado.

Anacleto perdia todo o à-vontade diante do filho que se fizera tão senhor como esses a quem desde sempre fora habituado a respeitar. Mas evocava os condes, a cena passada, a sua palavra empenhada, e compreendia que devia falar, que devia cumprir a promessa feita "Carlos partirá!".

De facto, essa fora a exigência dos fidalgos. Haviam-no chamado ao Solar e, no ambiente pesado, tinham-lhe dirigido ásperas censuras que ele não merecia mas era incapaz de rebater. A condessa fora implacável e o próprio conde não mostrara aquela indulgência que sempre lhe conhecera. Nenhum acreditava que ele não soubesse do que se passava, conquanto lho afirmasse com a dignidade da sua alma clara como a luz do sol onde não cabem subterfúgios.

E bem profundo sentira o espanto quando lhe disseram que o filho namorava (desinquietava!) a condessinha. Ele? Podia lá ser? O filho erguer os olhos para a menina dos patrões? Esquecia-se, o pobre Caseiro, de que para o rapaz os condes de Olivosa não eram os patrões.

Mas não lhe davam ouvidos. E Dona Palmira, essa então por demais o melindrara. Duvidara da sua honradez, julgara-o capaz de ambicionar aquela aliança para se desforrar da sua existência humilde tornando-se sogro da herdeira dos Teixeira de Melo; acusara-o de interesseiro, de calculista, visionando honrarias partilhadas. Coisas que o velho jamais imaginara sequer!

E, relembrando a penosa cena, Anacleto vergava mais a estatura que outrora se erguia desempenada, passando a mão pelas barbas alvas de linho sobre as faces onde mais fundas se cavavam as rugas, como se em algumas horas ele tivesse vivido os últimos anos de vida.

Ah, sim! Por demais lhe custara tudo, mas em especial as injuriosas suposições tecidas pela condessa. Baldadamente protestara que, sendo certo querer à menina como aos seus olhos

- e se era verdade! - nunca tivera outra ambição que não servi-la até à morte. Sim, não pudera negar que a condessinha ia todos os dias a sua casa, que sempre lhe perguntava notícias do rapaz. Mas que divisasse interesse maior nessa curiosidade, isso não! Pois não seria natural que a menina Rosalinda quisesse informar-se do que dizia respeito a um amigo de infância?

O conde mostrara acreditá-lo, agora a sr.a Dona Palmira. Essa não quebrara os ímpetos e tanto e tão ofensivamente se lhe referira ao filho que ele ganhara coragem para a interromper, para jurar que o Médico decerto não merecia aquelas censuras. Por Carlos ficava ele; pela tempera daquela alma ele próprio respondia!

O pior sucedera quando o amo, nessa altura, erguera a voz a fazer-lhe notar que não levava a bem que Carlos houvesse actuado na sombra, escondendo de todos as suas pretensões naturalmente porque ele próprio por demais devia reconhecê-las ousadas e insensatas. Vira-se obrigado a concordar e a ouvir sem pestanejar os impiedosos comentários da condessa. Verdade, verdade. o rapaz seguiria melhor caminho se tivesse falado ao conde!. Exprimira este pensar, mas então ouvira a afirmativa esmagadora do próprio senhor que num tom severo, nunca até aí escutado, lhe garantia que jamais poderia ceder ao filho dele a mão da filha deles.

Anacleto lembrava-se bem, tão bem como se um disco num gramofone lhe repetisse sempre o mesmo ao ouvido, das palavras de Olivosa.

- Lastimo o que se passa. A minha filha está como louca, mas eu nunca cederei! Esse casamento é impossível!

Impossível, impossível! Mas impossível. afinal. porquê? Sim, com certeza por ele ser pobre, sem outro lustro que a honradez herdada de Pais e avós. E era então por sua culpa

- mísero velho! - que o filho e a condessinha, tão novos, tão belos e tão dignos de serem felizes, se viam separados e ameaçados na sua ventura!

A bem dizer, ele já nem se espantava de que a menina e o moço gostassem um do outro. Por demais os vira sempre juntos e sempre preocupados com o que mutuamente se lhes referia, para que pudesse admirar-se agora, agora que sabia a verdade, essa verdade que lhe explicava a atitude do filho no dia da sua chegada. Coisas de apaixonados!

Mas como havia ele de adivinhar? Como? Nunca lhe passaria pela cabeça a idéia de que o seu filho ousasse pensar na herdeira dos patrões! Na herdeira e na herança! Ah dessa miragem o suspeitavam capaz os condes. e o coração de Anacleto estalava de dor e de vergonha!

Recordava as frases duras da condessa, menos tratável do que Teixeira de Melo, que parecia mais sucumbido do que irado.

era assim! O conde perdera-se em recriminações a si próprio. Também ele, como na sua humildade o Caseiro, não ficara excessivamente pasmado com a revelação. Notara a amizade que ligava as duas crianças, o entusiasmo que Linda sempre mostrara professar pelo rapazito, galante deveras e revelando-se digno dessa preferência. Mas de outro afecto maior não suspeitara. É certo que, no dia do regresso de Carlos, estranhara a atitude da filha. Mas na altura não sabia, não podia interpretá-la como na situação actual, em que nitidamente se via o arrufo da namorada. por qualquer bagatela, talvez! E o conde sofria. Tinha de recalcar o sorriso que, apesar de tudo, lhe nascia nos lábios, com refutações da razão, sugerindo-Lhe absoluta resistência. E ele lamentava. Sim, lamentava, porque no fundo, bem lá no fundo, Carlos agradava-lhe. Sempre gostara do aspecto decidido, do caracter exuberante e da viva inteligência do gaiato que se lhe afigurava leal e generoso, estruturalmente bem formado. Apreciava-o, e não era por inclinação que entrava em luta de posições. Homem da sua época, sensível, culto, não rebatia com sinceridade semelhante enlace, até justificado pela actual posição do rapaz. O facto de ele ser filho de um seu antigo criado embargava, porém, qualquer intuito solucionador, revigorando-o na negativa. Tornava-se realmente inaceitável semelhante enlace.

Ainda se o mancebo proviesse de longe, de desconhecidos! Não existiriam tantas dificuldades. Mas o filho do seu Caseiro .

Laborava num erro de visão, o conde, pois bem conhecia Anacleto e podia estar certo de que nascera de boa árvore, o jovem. A condessa. essa não cessava de exprobar-lhe o que sucedera, afirmava, por culpa dele!

Culpa de não ter pressentido que Rosalinda se enamorara do filho do Caseiro, quando recebera como que secreto aviso no peito? Não, porque nem mesmo contara à mulher o que nesse dia lhe fora dado observar. Mas culpa da educação que lhe dera, fornecendo-lhe meios de se alcandorar e equiparar à rapariga, com certeza demasiado inteligente e sensitiva para amar um rústico, um primitivo, um ignorante de quem tudo a separasse.

Nesse ponto, a condessa tinha razão. Mas... mas o conde não conseguia arrepender-se de haver ajudado a elevar-se quem tanto provara merecê-lo e tão sobejas provas dava do seu valor! O mal. o mal todo residia em o rapaz ser... o filho do seu Caseiro!

Dona Palmira, essa sob nenhum aspecto encararia a viabilidade ou impossibilidade de realizar tal consórcio, porque as repelia e por princípio se negava a encará-las com prós e contras.

E sem cessar gritara ao velho Anacleto o seu ódio, o seu desespero.

"Que esse ente desapareça daqui, que eu nunca mais o veja, a ele, que ele veio roubar-nos a paz de espírito, pagando-nos com a traição o bem que lhe fizemos!".

Que desaparecesse, que desaparecesse. Tinha sido essa a intimação final, a intimação que o próprio conde erguera, como única solução aceitável.

Carlos devia afastar-se, sumir-se na bruma dos tempos, para que Rosalinda o esquecesse Eis o único remédio, o único que seria talvez eficaz, não num dia nem numa semana, mas com o decorrer dos meses Anacleto saíra esmagado daquela discussão. Suores frios lhe inundavam a fronte, as coisas dançavam-lhe na frente dos olhos, obrigavam-no a trocar as pernas como se tivesse bebido demais, ele, que nunca ficara de juízo toldado! Era excessivo para o pobre do velho! Tinha sido atingido em quanto existia de mais caro no seu coração - o filho idolatrado! Achara-se suspeitado de infame, ele, que se mostrara sempre dedicado, fiel, amigo. Escutara a acusação mais dolorosa - a de estar pagando com o mal o bem recebido! Mas que mal? E que bem? Servira os condes anos e anos. e eles pareciam esquecê-lo. Eles, não! O senhor ainda lhe prestara justiça, quando lhe pedira que "em nome dos serviços que o Pai de um já prestara ao do outro (o Pai do Anacleto ao do conde) e ele próprio à sua pessoa", conseguisse o afastamento de Carlos!

O afastamento de Carlos! O cutelo que decepava as alegrias, as esperanças e os encantos do desventurado! Carlos devia ir-se embora. Carlos, tão Bom, tão digno

As suas pupilas gritavam dor, imploravam tolerância.

Inutilmente! Carlos teria de partir! Carlos ir-se-ia!

Oh, ele não acreditava que aquela decisão fosse dar a felicidade à condessinha, como lho afirmavam, mas não lhe competia discuti-lo. Obedecia, apenas e com sombria dignidade, para não escutar mais insinuações e manifestar assim que era pobre mas brioso. Cedera à intimação, jurara que o filho havia de abalar. E jurara com as lágrimas correndo-lhe em fio pelo rosto amargurado.

Jurara e cumpriria!

E depois de jurar, bebera até final o cálice cheio de fel.

Viera aos baldões para o lar pequenino, ruminando o que diria, o que lhe haviam ordenado que dissesse, a ele, caracter simples onde não existia lugar para a compreensão das vaidades, caracter bondoso que não podia entender que dois seres fossem separados, a despeito dos seus desejos e aspirações, em respeito a... a quê, santo Deus ? A exigências sem critério!

Ah, sim, a vontade dos Pais é coisa respeitável, mas a ventura de cada qual é sagrada. E quando os outros não sabem venerá-la, ela terá de impor-se e bastar-se a si própria!

Anacleto sofria. Mágoa surda, pungente, como nunca experimentara igual!

E entrara em casa vergado ao peso trágico do atavismo e do subconsciente, este dando guarida a ideais novos na ânsia de se revoltar contra tão cruéis direitos, o outro curvando o dorso escravizado aos poderosos e rebatendo o que ousava falar de equivalência.

Sim, o filho devia ir-se embora, a condessinha ficaria a chorar, e ele e a Ana - a pobre Ana! - guardariam em si a infinita mágoa da separação. E tudo por ele ser pobre e não usar senhoria.

Mas o filho seria disso culpado? O filho podia ser vítima da toleima ancestral? Ah! Então, só porque uma nascera na opulência e a outra na humildade, não podiam reunir-se, essas duas vidas que se queriam e para quem a ventura apenas existiria mútua?

Como se tornava afinal complicada a vida que sempre lhe parecera tão natural no meio das suas árvores, dos campos loiros, sob o céu azul sem mácula ou sob a chuva que dessedentava a terra!.

E como era difícil falar, agora, sob esse olhar surpreendido e alarmado que não se humilharia nem renderia à toa. Como era difícil contemplar aquela indignação prestes a eclodir, escutando ao lado o soluçar da companheira!

E no entanto Carlos tinha de partir! Empenhara a sua palavra de homem honesto e não a quebraria! Isso nunca!

Mas como persuadir o rebelde, o rebelde que não queria dar-Lhe ouvidos?

- És um filho sem coração, Carlos!

Eis a maior censura que poderia dirigir-lhe o velho, nela amalgamando a dor que o seu procedimento lhe causara e a dor de não poder ajudá-lo e a dor de não encontrar auxílio que simplificasse a sua espinhosa missão.

Na frente dele a alta silhueta de Carlos, mais belo e altivo do que nunca -lembrando tão pouco o bebê que apertara nos braços e que era mais dele do que o moço que lhe ripostava, um pouco cego pelo desespero que o invadia em face da insistência do Pai, agora que sabia os condes ao facto do que se passava:

- Porquê, meu Pai? Porque diz que eu não tenho coração? Porque o entreguei a Rosalinda?

Anacleto vibrava no horror do sacrilégio imposto à sua alma pura.

- Cala-te, desgraçado! Não pronuncies mais o nome da menina!

Mas Carlos trilhava outros rumos e não se deixava amesquinhar.

- Meu Pai, Rosalinda não é sagrada! É uma mulher como qualquer outra.

- Tens de respeitá-la!

- Nunca procedi de outro modo.

- Mas não devia ter alevantado os olhos pra ela!

Ele contemplou demoradamente a fisionomia alterada do Pai e, apiedado da visível aflição, tentou gracejar, para atenuar essa impressão de fatalidade que o velho certamente sentia esmagar-lhe o coração. Poisou a mão no ombro de Anacleto, diligenciou sorrir.

- Mas não levantei realmente, Pai! Baixei-os! Rosalinda é mais pequena do que eu.

As mãos do Caseiro ergueram-se, a pedir-lhe que se calasse e ao mesmo tempo a impor-lhe a dignidade de um nome que por ser humilde não era menos recto.

- Cala-te! Tu sabes muito bem que não nasceste para ela!

Relampejaram os olhos verdes.

- Porquê, meu Pai? Sou de carne e osso!

- E és meu filho!

- Ê algum crime ser seu filho, Pai? O Pai é menos do que os que lhe incutiram no espírito tão abominável subalternidade?

Anacleto fitava-o de pupilas dilatadas, sem saber que retorquir. E o filho continuou:

- O Pai é pobre, mas não se julgue inferior aos outros, e muito menos a esses que em nome de falsos conceitos querem destruir a felicidade dos nossos corações.

Anacleto tentou protestar, negar.

- Mas ninguém me disse nada... a não ser o que... o que te contei à pouco!

- Essa perfídia que lhe ensinaram para me atingir, julgando vencer-me?

- Mas é a verdade, quanto me ouviste! É a verdade, filho!

- acrescentou, no jeito rápido e esquivo de quem profana um ídolo: - Tu deves pensar que aquilo são outros sangues outros hábitos. A condessinha quis divertir-se contigo. mas de quem ela gosta é do primo. Foi o conde que mo disse.

- E eu não acredito!

A todo o transe, Anacleto pretendia convencê-lo dessa verdade que lhe queimava os lábios.

- Mas deves acreditar! Aquilo divertiu-se à tua custa. Não te alembras de quando chegaste, da maneira como ela te recebeu ? Tu até querias ir-te logo embora Pois mais valia que fosses! Ela desprezava-te e se te falou depois foi pra te enganar, pra se rir de ti. tudo de combinação com o primo.

Carlos disse apenas:

- Rosalinda! ?

Naquela exclamação Anacleto supôs divisar um começo de credulidade. E embora com a alma a doer-lhe -pobre menina tão inocente e tão vilipendiada naquele instante! - insistiu, frisando a ordem que brotara do espírito de Dona Palmira, decidida a recorrer a tudo quanto pudesse afastar os dois jovens (e aquela idéia de ferir em cheio a fé de Carlos não seria desacertada, se a fé de Carlos não fosse intangível e inexpugnável):

- Ouve, rapaz. O melhor que tens a fazer é não pensares mais nela, esquecê-la, como se ela não existisse. Não queiras saber de fidalguias. Vai pra cidade, filho, vai. Não fiques aqui junto da gente.

Mas, brandamente, o Médico interrompeu-lhe a peroração feita com tanto esforço e ânsia.

- Pobre Rosalinda! Ao que desceram para a afastarem de mim! Caluniaram um anjo, queriam que eu a amaldiçoasse! Mas enganaram-se!

Anacleto ficou-se a mirá-lo, aturdido. Então. o seu rapaz não acreditava, precisamente quando julgava tê-lo convencido? E sentia-se ao mesmo tempo alegre e desalentado. Alegre porque lhe parecia cruel incriminar a condessinha. Desalentado porque mais espinhosa se tornava a missão que devia levar a cabo, custasse o que custasse.

Já Carlos se lhe dirigia de novo.

- Pobre Pai! Pobre Pai e pobre Rosalinda! - e num tom firme, mas adoçado: - Diga-me uma coisa - quem lhe impôs esse discurso? Quem lhe ordenou que me atingisse sem piedade? Oiça, Pai. Fosse quem fosse (e eu sei de quem partiu o golpe), enganou-se. Não contou com a inabalável confiança que deposito na minha noiva.

Ana, que pouco antes deixara de chorar, estendeu as mãos para ele, entre angustiada e surpresa.

- Deus meu! A tua noiva, Carlos ? A tua noiva ?

- A minha noiva, sim, Mãe. A noiva fiel que encontrei à minha espera, a noiva que nada nem ninguém me arrancará! e com tremenda segurança: - Nós já contávamos com a resistência. Só não nos lembrámos da peçonha desse bicho nojento que é o senhor engenheiro António do Souto, cuja língua precipitou os acontecimentos de molde a não nos deixar preparar o terreno para a nossa construção. Sem ele, tudo se processaria de outra forma. E agora, Pai, seja franco - disseram-lhe que Rosalinda ia casar com o primo ?

Anacleto baixou os olhos, terrivelmente constrangido.

- Disse-mo o conde, filho! Pois não me ouviste há pouco ?

- Ouvi, Pai. Ouvi. E posso responder-lhe que lhe mentiram, que o conde lhe mentiu. Rosalinda não casa com o primo, porque é a mim que ela ama.

- Oh, Carlos!

Vibrou tanto susto no olhar e na voz do velho, que Carlos se calou surpreendido. A extensão do mal ainda seria maior do que julgava?

Durante momentos as pupilas de ambos reflectiram-se.

E o mancebo inquiriu finalmente:

- Ê assim tão grave o que se passa, meu Pai?

Anacleto inclinou o rosto e depois ergueu-o, decidido a ser franco, a expor o caso com clareza - talvez afinal a melhor resolução por melhor meio de obrigar Carlos a respeitar a palavra empenhada. E disse:

- Ouve, filho. vou contar-te a verdade. Mas promete escutar-me!

- Escutá-lo-ei, Pai.

- Pois bem, Rosalinda não quer casar com o primo, é certo. Mas os Pais obrigam-na!

- Não casará com ele!

- E se casar contigo, contra as ordens deles, deserdam-na! Pelo menos. não querem saber dela pra nada!

- E depois?

Através de toda a sua indizível amargura, as pupilas de Anacleto brilharam.

- Eu bem sei que os dinheiros não te importam, bem sei, apesar dos senhores julgarem que lhes cobiças a fortuna. Mas. mas não te assiste o direito de privar a menina do que lhe pertence. Tem tudo quanto é Bom, nada lhe falta.

- E nada lhe faltará junto de mim! Possuo braços e cérebro para trabalhar e tudo fazer por ela. E um coração para amar, que é o maior tesoiro que ela ambiciona! - e num gesto afectuoso, apertando nas suas as mãos do velho: - Oiça, Pai, e não se aflija mais - nada, a não ser a vontade de Rosalinda, pode afastar-me dela.

Os olhos de Anacleto estavam alagados de água.

- Mas escuta, filho, escuta. Ê que. eu dei a minha palavra de honra

O rapaz recuou, crispado.

- Ah... exigiram-lha? Foram de uma inaudita crueldade. Chamaram-no, magoaram-no, feriram-no com o tumulto do seu desprezo, obrigaram-no até a renunciar à companhia do seu filho. E chamam a isso... nobreza! Onde está a nobreza? Nos papéis ou nas almas? - e com crescente violência: - Olhe, Pai, escute. A vingança será tecida por eles próprios. Pensam que dessa forma Rosalinda abdica dos seus direitos, mas enganam-se! Queriam que eu a imolasse, nos seus sonhos, nos seus anseios, nos seus desejos a que só eu posso dar realidade? Não lhe poupavam o coração, para satisfazerem as suas ridículas pretensões? Queriam condená-la ao desgosto sem par? Queriam que eu a fizesse sofrer? A resposta será dada por ela própria, meu Pai! Ouviu? Só ela pode decidir da sua sorte.

- E se ela se arrepender um dia mais tarde. ?

- Pelo menos não terá de que me acusar! Não fujo, não a abandono.

- E a minha palavra ? .

- A sua palavra será salva, meu Pai! Não parte só o filho, partirão os Pais!

No mesmo impulso, Anacleto e Ana avançaram para ele, que os cingiu nos braços fortes de encontro ao peito, beijando-lhes as fontes encanecidas.

- A gente?.

- Sim! Ou pensavam que os deixava aqui, entregues ao ódio? Não! São inocentes e terão a recompensa da bondade que lhes povoa o coração. Não mais serei o filho do caseiro dos senhores condes - porque nunca mais os meus Pais os servirão!

Anacleto fitou-o, preso da comoção que lhe abafava a voz com inesperada alegria.

- Mas. mas a gente também não ficávamos nesta casa que te renegou! A gente saía.

- Sim, e sairão. Sairão de cabeça erguida. e irão descansar para junto de mim.

Ana renascia de toda a desolação para protestar:

- Oh! Prá cidade não quero ir!

- Pois não irá para a cidade! Arranjar-lhes-ei uma casinha nos arredores, com horta e com pomar para se entreterem, e onde eu irei passar os fins de semana com a minha mulher. Humildes, mas ditosos! - e tentava rir-se, animá-los. - Valeu?

Ambos disseram que sim com a cabeça, sufocados pela emoção.

Então, encostando as faces aos cabelos da Mãe, Carlos murmurou:

- Ouve, Mãe querida. Rosalinda só de mim espera a ventura. Aguardou o meu regresso, devotadamente. Eu não podia roubar-lhe esse bem, não é verdade ? Queriam enganar-me. Mas nós conhecemo-la bem demais

Anacleto tentou uma derradeira objecção:

- Mas que tencionas fazer? Tu não podes levar assim a menina.

- Isso é comigo, Pai! - e rindo: - Napoleão disse que preferia os grandes homens aos fillhos dos grandes homens e a glória conquistada à glória herdada. Pois eu conquistarei a glória e os senhores condes reconhecerão que os meus filhos serão os filhos de um grande homem!. - e batendo uma palmada no ombro de Anacleto: - Grande, mais do que não seja na estatura! - e para a Mãe: - E quanto a ti, querida, não te amofines. O futuro é nosso!

 

A lua, num véu de claridade e sombra, tudo banhava e esbatia.

Alongava-se o perfil da moradia ancestral, fantasmagoricamente recortado. E nas escuridões perfumadas dir-se-ia perpassarem serenas, numa invisível dança, as almas dos pares que através dos séculos se foram amando.

Tudo era belo, silencioso, quimérico.

Simplesmente, pelo meio das ruas ajardinadas para onde abriam as traseiras do Solar, um vulto se movia deveras, realidade palpável que avançava ágil mas cautelosa na direcção de uma florida janela do primeiro andar, sob a qual dois enormes dragões, esculpidos, abriam docel em cima de pequeno fontenário. Na paz admirável da noite de Verão, em que a brisa agitava as trepadeiras que lhes vestiam as cabeçorras de goelas escancaradas, eram como guardas espiando o aproximar da sombra, para lhe darem feroz combate. Mas o embuçado, de audácia invulgar, parecia disposto a desafiar-lhes a cólera.

Eis se aproximava já dos monstros e a eles se agarrava para a ascensão.

Deus do Céu! Algum ladrão? E ninguém vinha, ninguém acudia? Nem o grande S. Bernardo assinalava o estranho, em ladrar de perigo?

Nada!

Extática, a lua contemplava-lhe a escalada, sem se lembrar sequer de que a reserva e a prudência a aconselhavam a esconder-se atrás de qualquer nuvem providencial, afim de não se tornar cúmplice de algum roubo (ou algum crime)

Ai! Mas a lua é curiosa como todos os que pressentem histórias de amor. Gosta de vê-las, de ouvi-las e de sabê-las, para depois as segredar ao rouxinol que por sua vez as conta às flores. Por sorte estas apenas as traduzem no seu perfume e raros são os que entendem essa linguagem muda.

A lua não pôde contudo ver quanto queria. A sua indiscrição findava dois passos além da janela pela qual o embuçado acabava de sumir-se, e já o perdera de vista.

Pé ante pé, sustendo a respiração, o audacioso caminhava agora na obscuridade ao penetrar nessa alcova cujo limiar uma só vez transpuzera, há já longos anos.

Há já longos anos!

Fora quando uma pequerrucha, ardendo em febre, no seu delírio lhe solicitara a presença. Fora há muito, há muito, mas não esquecera nunca a disposição do compartimento que lhe ficara gravado na mente infantil e com ela se diria haver-se desenvolvido. Prevenção milagrosa do Destino, graças à qual podia agora orientar-se.

Bateu-lhe enfim o joelho numa coisa dura e parou, dobrando-se um pouco; chegava-lhe aos ouvidos uma respiração precipitada; adivinhou dois olhos abertos para a sua negrura, uma boca que talvez não gritasse por terror. ou por...

Ciciou imediatamente:

- Não tenhas medo, querida. Sou eu. Dois braços emergiram da roupa.

- Carlos!

Atraídos, os seus lábios foram beijar os sedosos cabelos revoltos.

- Meu amor!

- Meu Carlos!

Finalmente, Rosalinda afrouxou o amplexo. Ele ficou inclinado, procurando a luz dos olhos dela, ameigando nas suas a mão que se confiava à sua ternura.

- Rosalinda perdoa-me esta ousadia No mesmo segredo, a voz de Linda soou.

- Oh, Carlos! Mas foi uma temeridade, uma loucura

- Uma loucura adorar-te e não mais suportar o que se está passando?

- Mas. como pudeste vir até aqui? Se te surpreendiam?

- Talvez me abatessem como a um animal feroz.

- Oh, Carlos! - e percebia-se nela o horror só de imaginá-lo.

- Mas não pensei nos riscos, Linda, só pensei em ti. Queria falar-te, a todo o transe. De dia era impossível. Nunca supus que te enclausurassem, como nos tempos de outrora, como no século XIX às heroínas de Camilo. Resta-me a consolação de saber que és livre e independente na tua vontade. Quando vi que não aparecias, e compreendi, tomei a imediata decisão de vir cá; mas falar com os condes seria uma tentativa inútil, talvez ainda prejudicial,

- Se avaliasses o meu desespero

- Pois não o avalio pelo meu ?

- Tens razão! Perdoa-me, que nem sei o que digo. Mas estes três dias, estes três dias!. Proibida de sair, proibida de ter com o exterior qualquer comunicação. julguei endoidecer! Não conseguia ver-te, nem para te explicar o que sucedera, e tinha medo do que pudessem fazer para te afastarem de mim, tinha medo do que a perfídia do António fosse capaz de engendrar. Tinha medo do mal-entendido que fosse criado entre nós e de não te encontrar quando a liberdade voltasse a ser-me concedida! Tanto medo, meu amor!

- Não depositas suficiente confiança em mim? Não sabes que tudo seria inútil para nos afastarem. e a prová-lo. eis-me! Vês como estamos reunidos a despeito de todos os obstáculos?

Sentia-se-lhe o sorriso.

- Quem iria supor-te capaz de semelhante escalada ?

- Nem tu?

- Ah, eu! ? Eu ignorava como iria. ver-te, mas não que farias tudo por mim!

- Obrigado, querida. Acreditei isso mesmo! Pensei que aguardadas que eu, de qualquer maneira, te fizesse sabedora das minhas intenções e decisões; pensei que não esquecerias, nem por um instante, que és a minha futura mulher, que eu adoro! Pensei, pensei, estudei o plano de acção e este foi o meio que me apareceu como viável. Recordava-me perfeitamente de que o teu quarto não era ligado ao dos teus Pais, sabia que no Verão dormes sempre com a janela aberta. e aqui estou!

- Graças a Deus que a esta hora não há vigilância!

- Assustaste-te, ao pressentir a minha entrada ?

- Não. O meu coração dizia-me "aí vem o teu Carlos!".

- Acordaste?

- Eu não estava a dormir!

Os dedos de Carlos afagaram-lhe o rosto. Percebendo-lhes as faces húmidas, ele imobilizou-se, suspenso.

- Tu choraste, Linda?

- Sim. Chorei por ti. Não mereces que te façam sofrer. Calaram-se ambos, perturbados, receando quebrar o enlevo

da hora que lhes dava a ilusão inefável de não haver coisa alguma a separá-los. Mas a idéia de que tinha algo de grave a tratar e a resolver despertou Carlos daquele suave torpor. Inclinou-se mais, até lhe falar sobre os lábios, num sussurro.

- Linda, o tempo foge, não quero que ninguém suspeite desta visita. Por muito que nos custe, abreviemos estes minutos.

Respondeu-lhe um débil protesto, anseio de o não ver fugir de novo, deixando-a só.

- A porta está fechada à chave

- Não importa. De forma alguma quero que os teus Pais me considerem um patife, comprometendo a tua reputação para os obrigar a aceitarem-me. De forma alguma quero que me suponham de garras estendidas para a herança. Prefiro-te pobre como eu.

A objecção vergava-a à coerência.

- Sim, Carlos, pois sim.

- Responde-me - sabes que pela tua felicidade eu sacrificaria a minha?

- Sei.

- Os teus Pais, se casares comigo contra a vontade deles, põem-te à margem, cortam contigo e.

- Junto de ti, nada me faltará.

- Nesse caso. não queres realmente casar com o António ?

- Eu só quero casar contigo!

- Então... fiz bem em não ceder à intimação de partir imediatamente?

- Fizeste.

- Parto agora se assim o quiseres. Antes de te falar, de forma alguma!

- Se amanhã me dissessem que ha vias fugido, pensava que o terias feito julgando ser por meu bem. E eu, fosse quando fosse, iria atrás de ti, até ao fim do mundo, para construir a nossa ventura!

- Agradeço-te, Rosalinda! - e sem se deixar vencer pela comoção que o empolgava, obediente às ordens da consciência: Mas pensa bem! O futuro a meu lado terá dificuldades.

- Quero-o tal qual for! Estarei sempre disposta a auxiliar-te, em obras e palavras; seguirei passo a passo o teu destino, esforçando-me por te ser útil e imprescindível.

No seu arrebatamento, falara um pouco alto. Para a chamar à realidade do momento em que urgia ter tantas cautelas, ele tapou-lhe a boca. com um beijo.

- Schiu, querida!.

Ficaram atentos, escutando, contendo a respiração. O silêncio continuava profundo, dando-lhes ânimo. Carlos riu baixinho.

- Pronto, meu amor. Seja feita a tua vontade.

- De que maneira ? - e num movimento impulsivo: - Queres que fuja contigo? Irei aos extremos, visto que foram aos extremos também.

Mas ele interrompeu-a.

- Não, Linda, não! Custa-me imenso o que se passa e que seja eu a causa da desarmonia entre ti e os teus Pais.

- A culpa não é tua! Eles não querem reconhecer que a minha felicidade é só minha e não podem dispor dela. Deram-me a vida, sim, mas se Deus não os autoriza a tirar-ma também não pode consentir que ma despedacem!

- Tens razão embora eu tudo desejasse de outra forma. Aqui, porém, não é possível vencer a resistência. E saires frontalmente seria uma coisa extremamente lancinante. e irremediável! Conheço a tua Mãe. Quero poupar-te a esse golpe.

- Queres que parta já contigo ? - insistiu, pronta a saltar da cama.

- Não, de forma alguma. Não quero que me chamem miserável. porque, apesar de tudo, sem eles eu não teria a minha Rosalinda.

Ela sorriu, convencida e dócil.

- Que devo fazer ?

- Não tens nenhuma idéia?

- Nenhuma!

- Então cumprirás o que vou indicar-te. Os teus Pais sofrerão muito menos. e responderemos com justo castigo a esse que só nos fez sofrer.

- Diz depressa o que devo fazer.

- É simples, conquanto audaz, e precisa de bom senso e de prudência.

- Diz, diz!

Para a orelha macia onde apoiava os lábios, Carlos murmurou:

- Vais esperar por mim.

- Muito tempo?

- O necessário. - e demoradamente foi falando, até ouvir que um risinho lhe respondia.

- Oh, Carlos! Que maravilha!. E que grande escândalo!

- Portanto. dentro de um mês.

- Isso

- E depois.

- Sim

Estavam perfeitamente entendidos.

- É a melhor maneira. Simplificaremos o problema e será um descanso para a nossa consciência.

- E consegui-lo-ás?

- . Hei-de conseguir. E trabalharei melhor, de forças tensas num único rumo.

- Eu podia ajudar-te

- Por enquanto, não. Preciso de concentrar-me. Aliás, querida, nada tens a temer. Se fosse inadiável agirias.

- Está bem.

- E não falharás?

- Só se morrer!

A lua continuava a esperar que o embuçado reaparecesse. Não demorou tanto quanto ela previra, mas isso pouco lhe adiantou para a curiosidade. A sombra que descia cautelosa da janela uma hora antes trepada não era mais do que uma sombra perdendo-se entre as demais sombras do jardim.

 

A condessa mirou-a, dirigindo depois ao marido um olhar vitorioso. "Então, meu amigo, eu não lhe dizia que a nossa filha acabaria por concordar? Mais uma vez tem a prova de que falo sempre com razão!"

Teixeira de Melo meneava a cabeça sem demonstrar nem entusiasmo nem admiração. Dir-se-ia que o seu contentamento não igualava o da condessa que, perante o silêncio do marido, voltada para a rapariga proferiu num grande tom de protecção:

- Muito bem, minha filha. A sua obediência faz esquecer tudo o mais e pode crer que me dá um grande gosto desposando o António. vou imediatamente comunicar-lhe que está aceite como seu futuro marido.

Rosalinda, animosa, assentiu:

- Faça como entender, Mãe.

O conde, em vez de se congratular como Dona Palmira desejaria, limitou-se a comentar, numa espécie de desprezo:

- És tão catavento como as outras, Rosalinda. Não sabes o que queres!

Para Teixeira de Melo, a submissão de Rosalinda, após as violentas declarações feitas, não dignificava nada o espírito feminino. Sem dúvida, agradar-lhe-ei a cedência, mas não tão rápida, porquanto se lhe facilitava a missão também o obrigava a perder a idéia formada acerca daquele caracter galhardo pelo qual o seu nutria simpatia profunda, a despeito de todas as considerações. E depois também era verdade que não gostava de António para genro! Tivera ensejo de lhe auscultar a índole velhaca, sempre ali a rondar e a instigar a soberba de Dona Palmira, e lamentava a cegueira da mulher querendo dar a filha a quem tão pouco mostrava merecê-la.

Agora, porém, esta vinha por sua livre vontade aceder ao casamento sugerido e, se ele antes não soubera contrariar a esposa, muito menos o faria no momento em que Rosalinda estava concordante com a Mãe.

Doíam-lhe os extremos e se na conversa mantida com Anacleto fora severíssimo devera-o mais à razão do que à alma. Essa fraquejava e sorria perante o romance dessas duas almas que se amavam Que se amavam! Coitado do rapaz! Talvez ele a amasse a ela, talvez, mas Rosalinda!. Rosalinda era tão catavento como as outrasl Diante das dificuldades, retrocedia e enveredava sem excessiva repulsa pelo caminho das satisfações propícias

Agastada pelo comentário que lhe ouvira, a condessa fulminava-o com o seu desagrado.

- Que diz, meu amigo? Acha que a sua filha procede mal aceitando a proposta feita? Preferia talvez que

Olivosa interrompeu-a, temendo saída que, apesar de tudo, magoasse a rapariga.

- Não prefiro nada, Palmirinha. Ou antes, preferia que ela ficasse solteira, aí tens.

- Oh, oh!

Num deleite de esperança, assim escutando o Pai, os olhos de Rosalinda começaram a brilhar, maliciosamente. Mas logo desceu as pálpebras em atitude adequada à situação, não obstante a íntima vontade que tinha de rir e de cantar perante a aleluia próxima.

E disse então, com modos de colegial bem-educada:

- Custava-me trazer a guerra ao seio da família, Pai. Percebe ? Eu não devia contrariar a Mãezinha. e o António é bom rapaz, sou amiga dele.

- Nesse caso. tudo o que afirmaste. ?

A obstar que transbordasse de novo a cólera da Mãe, ela atalhou:

- Meditei, Paizinho, e compreendi melhor as coisas. - e assim falando, não assumia nenhuma espécie de compromisso. Não estava garantindo nada. pois não?

Duramente a condessa fez-se ouvir.

- Escute, conde. Vamos desde já organizar as coisas para apresentar António como noivo de Rosalinda.

Teixeira de Melo parecia mais interrogar do que afirmar, ao retorquir:

- Vamos! ?.

Tremeram imperceptivelmente os lábios de Rosalinda. Tão sem receio de decepções entrevia porém o futuro, que sem esforço visível declarou:

- Façam como quiserem - mas, sob as atentas pupilas dos Pais, sentia o coração pulsar-lhe violentamente.

Se pudessem adivinhar o que ela pensava! Mas não, ninguém possuía semelhante condão. E só a consciência da mentira a perseguia ainda. com que facilidade entrara num ludibrio, ela, que dantes tinha tanto horror às complicações suscitadas pela falta à verdade! E, no entanto, sentia-se perdoada. Mentia para defender a sua ventura. - e os Pais haviam mentido para conseguirem o que desejavam.

Essa idéia alentava-a permanentemente, era o seu resguardo e a sua força, enquanto a Mãe não cessava de falar:

- Asseguro-lhe, Linda, que nunca se arrependerá de me atender. Será muito feliz, que lho digo eu. Tendes a mesma educação, os mesmos princípios; sois ambos nobres. e ele é um belo rapaz. cheio de qualidades, além de rico.

Cheio de qualidades, belo rapaz. Cheio de qualidades e belo rapaz era Carlos e haviam-no escorraçado, ao seu amor!

E Rosalinda ia pensando sempre, ao ritmo das alegações de Dona Palmira, que em todos os tons enaltecia esse que tão bem soubera granjear-lhe a simpatia -António do Souto. Recordava-se de uma frase do primo, escutada semanas antes quando ainda não previa, nem sequer sonhava, toda aquela complicação - e que parecia vaticinar-lhe, pelo seu horror à mentira, a tecedura de uma tão grande que nela se enredasse qual mosca em teia de aranha. Mosca em teia de aranha. Grave seria se, na teia em que estava a prender-se, a aranha fosse o próprio António

Lutava por se libertar da apreensão, enquanto continuava a ouvir as palavras da condessa elogiando o Engenheiro. E, repentinamente, no intuito único de evitar esses exagerados conceitos que lhe desagradavam, exclamou:

- O António não é nenhum ser excepcional, Mãe! - logo porém se suspendeu, temendo prejudicar com essa imprevidência o que dissera antes.

Por felicidade Dona Palmira não fez quaisquer observações, limitando-se a retorquir, autoritária:

- Não o será para os outros. Mas para si, desde que seu marido, deve sê-lo!

E Rosalinda, para evitar novas suspeitas, calou a réplica mordente.

Mas tornava-se-lhe impossível continuar ali sentada junto dos Pais, na sala onde o almoço decorrera desconsolado como sempre durante os últimos dias. O papel desempenhado estava acima das suas forças; parecia-lhe que sufocava.

Pediu licença, levantou-se e encaminhou-se vagarosamente para a janela, numa funda inspiração do ar sadio que vinha da Quinta.

Prisioneira em casa, ela que sempre amara os campos e a liberdade, sentia-se estrangulada pela proibição estabelecida e que forçosamente tinha de terminar, desse por onde desse e por muitas razões. Sim, precisava de sair, porque ansiava encontrar-se no seu ambiente favorito e porque... porque precisava! No entanto receava ainda não ter serenado completamente a Mãe, a despeito dos modos humildes com que desde há três dias vinha preparando o terreno para a diligência inadiável.

E, por necessário, arriscou-se ao pedido.

- Posso dar um passeio? Está um dia tão lindo! - e fitava os Pais com um olhar ansioso que felizmente não notaram.

O conde não teve qualquer gesto, de assentimento ou recusa. Dona Palmira fitou-a e, embora sem nenhuma desconfiança (porque também convicta do império da própria soberania) não acedeu sem restrições.

- Pode. Desde que vá acompanhada pelo seu noivo. Rosalinda tentou esquivar-se.

- Mas, Mãe

A condessa não a atendeu.

- vou telefonar ao António para que ele venha buscá-la.

- e com toda a imponência, abandonou a sala de jantar.

Rosalinda ficara transtornada e, poisando no Pai as pupilas onde se divisavam pesar e censura, perguntou amargamente:

- Então. é verdade que estou prisioneira, meu Pai?

Teixeira de Melo, ferido por aquela expressão dolorosa, apressou-se em contestar:

- Mas não, não, de forma alguma, filha!

- Contudo, a Mãe, chamando o António, dá a entender que pretende trazer-me vigiada

O conde, que não concordava com a imposição da esposa, pelo que ela encerrava de contrário à índole da filha, tentou justificar Dona Palmira e diminuir o justo melindre da rapariga.

- A tua Mãe não pretende vigiar-te, procede como lhe parece melhor para ti. Julga conveniente a presença do António e nada mais. Bem sabes que ela te adora e não gosta de te ver triste

Rosalinda baixou o rosto, torcendo nas mãos a ponta do cinto que lhe apertava o vestido azul, de saia caindo em pregas soltas.

- Eu sei, Paizinho. - e acrescentou, voz toldada por uma funda emoção cuja origem Teixeira de Melo não podia imaginar - E o Pai não precisa de desculpar a Mãe, pois está desculpada pelo princípio de que eu nunca saberia acusá-la ou querer-lhe mal, nem sequer nos momentos de maior zanga. Mas. mas eu sempre gostei de andar só, o Pai não o ignora. Sempre gostei de correr pela Quinta à vontade, sem peias nem obstáculos. Uma companhia, por muito agradável, às vezes embaraça. Vão negar-me o que constituía o meu maior prazer? Não cessará a reclusão que me foi imposta? - e como se não reparasse no gesto que o Pai esboçara, na intenção de a interromper, continuou: -Daqui para o futuro ver-me-ei constrangida a não dar um passo segundo o meu gosto? Agora, então, agora que vejo para breve a minha existência ligada a outra, a minha vontade pendente de outra, todos os meus desejos servos de outros, agora é que vão impedir-me de gozar os últimos tempos de liberdade? Vão proibir-me de vaguear sozinha por esses campos onde desde pequena me perco sem danos nem grilhetas?

Aproximara-se de Teixeira de Melo e, de rosto erguido, rosado pela veemência com que falara, tão sincera quão bem sentia a verdade do que afirmava, ia lendo nos olhos do Pai a adesão à sua causa. Essa causa de que dependia a realização dos projectos urdidos.

E insistiu, com expressão súplice, onde se reflectia a doçura de toda a sua alma:

- Pai. responda-me!. Diga-me se me autoriza a passear como de costume!

Mas antes que Olivosa pudesse responder, decerto para anuir ao pedido da filha, ecoou uma frase onde havia petulância esforçando-se por se tornar gracejo:

- Porque não há-de o Sr. conde autorizar esses tão ambicionados passeios, Rosalinda? Que mal aras gozando os teus campos ? Nenhum! Passeia como te aprouver. Mas, depois do nosso casamento, espero que preferirás a minha presença ao teu lado

Ela voltou-se, deparando com a Mãe e com o primo, em cujo sorriso leu a ebriedade do triunfo.

Ah, pois claro!. O rival partido, Rosalinda cedendo. Tinha razões de sobra para cantar de poleiro!.

E ela sorriu também, extremamente calma de súbito, num jeito onde pairava uma intenção que não podia ser descoberta.

- . Evidentemente, António, que depois preferirei a companhia do meu marido. Os casais felizes nunca se separam e as mulheres, acima de tudo, adoram a presença do eleito. Para os homens, às vezes, este nosso gosto é nocivo, porque chega a enfadá-los. Por exemplo, passear nos campos nem sempre é alegria para todos. Cada qual reage à sua maneira. Por mim, sei que não participas das minhas emoções. Fico silenciosa, meditativa. e tu és loquaz, falador. Aborrecer-te-às a meu lado!

Foi outra vez até à janela e, de costas voltadas para o jardim e cotovelos apoiados no parapeito, continuou, como se divagasse:

- Quando o dia escurece e a tarde morre, o poente, divisado através das ramarias, tem laivos roxos do sangue perdido pelos guerreiros dos séculos. Nunca o percebeste, António? É lindo! E de manhãzinha, ouvir o despertar dos ninhos? Que delicioso! A natureza convida-nos aos sonhos, a meditação e à melancolia também.

António encolhia os ombros, agastado. Sempre que ela falava assim, nesse tom indefinível onde havia sinceridade e desejo de lhe medir a incapacidade de vibrar como ela, sentia uma vontade doida de lhe bater ou de a fazer calar à força de beijos. Percebia que estava sendo troçado. e ao mesmo tempo não conseguia deixar de respeitar a alma que assim exteriorizava a sua riqueza afectiva. Agora, enquanto Rosalinda dissertava sob a atenção dos condes, indispunha-se, na percepção de que ela estava querendo mostrar aos Pais como ambos se encontravam espiritualmente distanciados um do outro.

Para a condessa, o abismo não se revestiria de qualquer importância, mas Teixeira de Melo, cuja secreta antipatia não lhe passava despercebida, podia deixar-se influenciar.

António conhecia por demais Rosalinda para não temer ainda qualquer fracasso em que ele próprio se arrojasse, sem dar por tal, orientado por enganosa miragem.

A fatuidade e a soberba restituíram-lhe, porém, a segurança e, num movimento rápido, interrompeu a rapariga, para certificar os primos de que sabia usar de autoridade e ela de que não se deixaria iludir.

- Pois sim, Rosalinda, será como dizes. Mas um de nós se modificará. Ou eu sofrerei a influência das tuas visões ou tu te tornar ás menos romântica. porque quando se tem a felicidade ao alcance das mãos não se anda a suspirar por ela.

A condessa Palmira aplaudiu, inteiramente de acordo.

- Dizes muito bem, António!

Rosalinda baixou os olhos, como se contemplasse os bicos dos sapatinhos brancos. E acedeu, sem espanto nem sobressalto:

- Talvez tenhas razão, sim

Aquela docilidade um tanto fez pasmar o Engenheiro. Mas mais alto do que tudo falou a natural arrogância, que o forçava a ver na atitude de Rosalinda a completa rendição.

- Felicito-me! Não és tão rebelde como pareces. Rosalinda sentia-se invadida por um desprezo cada vez maior

por esse homem que, sabendo do seu amor por outro, não se importava de a sacrificar. Mas tinha de sufocá-lo, ao desprezo, de o não deixar extravasar, abafando por igual a irritação nascida do contentamento que ele manifestava. Sim, compreendia que António rejubilasse, considerando-se o mais forte, o dominador, o que a faria esquecer a sua paixão de menina, o que soubera vingar-se e saboreava, portanto e plenamente, o sabor dos seus êxitos. E conseguiu sorrir, levantando as pupilas para ele. Melhor seria entrar no jogo! E entrou.

- Es gentil, António. Também não te supunha tão contemporizador.

Dominada a tristeza que se apoderara dela, alimentava-se de recordações que a animavam e a incitavam a não vacilar. E permanecia no rumo aceite.

- A propósito, quero agradecer-te a intervenção a meu favor. Creio, porém, que não me seria necessária. pois decerto o Pai e a Mãe me autorizariam a passear sozinha na nossa Quinta.

Porque o Engenheiro anuira e o conde meneava a cabeça afirmativamente, Dona Palmira mostrou-se magnânima na sua reserva.

- Claro! Se o teu noivo não se importa, és livre de saires. e volvia a António um olhar possivelmente suspeitoso dessa permissão benévola, um olhar onde havia ainda obscura discordância.

Mas o Engenheiro talvez pensasse que seria perigoso contrariar a rapariga. Ou aguardaria o futuro para exercer o seu império.

Rosalinda, como que sem preocupações, mostrava-se encantada.

- São umas jóias! Obrigada! -correu à Mãe, beijou-a e depois disse, dirigindo ao primo um leve cumprimento: -Por teres sido bom rapaz, colhes a recompensa. Convido-te a passear comigo! Hoje! Que nos outros dias levo o Inevitável. Acho que para tomar conta de mim, chega.

Do sacrifício tão corajosamente imposto a si própria, logrou o prêmio ao ver radiante e liberto de todos os cuidados o semblante da condessa, cheia de completa fé ante essa graça espontânea que revelava a ausência de quaisquer desígnios alheios ao noivado, e completamente satisfeito o Engenheiro, logo menos perigoso. Um lobo com a barriga cheia não é tanto de temer.

Rosalinda foi heróica durante o dia inteiro. Não fugiu nem um milímetro do caminho traçado. Mas à noite, no seu quarto solitário, não reteve as lágrimas, limpando desesperadamente os lábios que não pudera esquivar ao primeiro beijo do noivo.

 

Meu amor

Dois meses, dois longos, dois enormes meses, se completaram hoje sobre o dia maravilhoso em que me tornei tua mulher.

Recordo neste momento exacto os pormenores da fuga, a minha ansiedade, o meu terror de ver tudo descoberto no último instante. Bem sei que, sucedesse o que sucedesse, ninguém conseguiria separar-nos, mas as dificuldades multiplicar-se-iam e não evitaríamos as lágrimas que quiseste poupar-me.

Nunca me supus tão corajosa, tão hábil, a despeito do receio imenso que me abalava e cujo sopro ainda hoje vem agitar-me.

A tua partida e a de teus Pais, logo a seguir à noite em que me procuraste, havia serenado o ambiente, tornando-o favorável à minha declaração, feita dias depois, e proporcionando-me maior liberdade de movimentos.

A tua deliberação foi perfeitamente ajustada às circunstâncias. Por um lado respondias como devias à ofensa que era feita aos teus queridos, libertando-os da posição subalterna que lhes censuravam, levando-os contigo para o bem-estar. A vossa partida - soube-o mais tarde - causara à minha Mãe uma incalculável satisfação e ao meu Pai um intradusível pesar. Quem, doravante, havia de superintender nas orientações e no governo da Quinta, se faltava o Anacleto, o incansável, o devotado, o velho amigo dos interesses da casa

Tenho pena do meu Pai. mas acho justo o sucedido e alegra-me enormemente saber que realisaste o sonho mais querido do meu grande Cleto, a única ambição que ele e a Ana alimentavam - viverem em casa própria, livres de mandatos e felizes na sua modéstia.

Que ditosos devem ser agora nessa moradia que lhes alugaste nos arredores de Lisboa, com terreno para couves e batatas e lugar para a capoeira das galinhas. Quem me dera já vê-la!

Sim! Respondeste como devias à ofensa que lhes foi dirigida levando contigo os teus Pais. E os meus ficaram convencidos de que desistias de mim, acobardado pelos avisos, e desaparecias- para nunca mais. Também a minha conseqüente submissão os persuadira de que eu, julgando que havias realmente desertado, te esquecia e abraçava nova inclinação.

Tornava-se favorável a ausência do Anacleto e da Ana, e foi bom teres decidido levá-los contigo imediatamente, em lugar de os fazeres seguir depois. com eles aqui, os meus Pais certamente temeriam deixar-me à vontade, no receio de qualquer possível entendimento. Assim, de nada iriam desconfiar, e fui senhora de sair e entrar como antigamente.

certo que a princípio me seguia discreta vigilância que eu fingia não perceber, certa de que findaria, como findou, por falta de pegadas comprometedoras.

Foi um sacrifício grande, o de não saber de ti durante quinze dias, mas sacrifício abençoado!

E por isso mesmo, apesar de toda a falta da presença dos teus Pais, de me doer muito não encontrar pelos caminhos o Anacleto para lhe perguntar: - Então o Carlos? Que noticias me dás? - abençoei a tua resolução.

Notícias só as tive ao cabo desse tempo que me parecia interminável, nessa carta para a posta restante que fui de manhãzinha buscar à vila, sob o pretexto de passear o Inevitável.

Aliás, o meu procedimento era de molde a serenar quaisquer desconfianças. Nunca me julguei tão boa actriss! Acho que atingi a perfeição, naturalmente porque tu representavas a recompensa destinada a coroar os meus esforços. Que não faria eu para a obter?

Só Deus sabe que as noites eram passadas quase em claro, a remoer no que faria se surgisse qualquer obstáculo. E tentava visionar qual pudesse vir a ser esse obstáculo. Mas, apesar das inquietações que então me pungiam, conseguia não chorar, afim de que os olhos inchados não me atraiçoassem.

Também a esperança me animava, e de dia, à luz do sol, era mais forte que tudo o mais, ajudando-me a levar a bom termo a representação. E se acaso ela me doía na frente dos meus Pais, que agradável se me tornava quando sabia estar castigando esse que se tornara indigno de contemplação!. Só assim podia suportar-lhe a presença, só essa certeza me ajudava a mostrar-lhe os bons modos requeridos pela situação!

Colhidas naquela carta as últimas indicações, vi aproximar-se o momento desejado, mais desejado do que temido, embora não pudesse por completo debelar o nervosismo.

Faz hoje dois meses!

Levantei-me às sete e meia e fui bater à porta do quarto dos meus Pais, que se mostraram surpreendidos e queriam saber o que deles pretendia a hora tão matutina.

Entrei. O meu fato de amazona, (por baixo da saia castanha levava a saia branca de seda), respondeu-lhes imediatamente que eu pedia licença para um passeio a cavalo. A Mãe acedeu, tão satisfeita da minha humildade - eu, que era a independência personificada! - que me arranjou a gola da camisola branca (por dentro da qual ia a blusa de renda) e não fez comentários.

Parti.

Corri à cavalariça, afaguei o Don Juan, que relinchava alegremente, e montei. Apesar do coração me bater aos saltos no peito, sentia-me leve como nunca.

Só tinha agora um receio. O de que António aparecesse ali (ele de vez em quando causa-me a impressão de me andar espreitando) e pretendesse acompanhar-me. Estava absolutamente decidida a recusar, custasse o que custasse. Decidida a tudo, até a fustigá-lo com o chicote! Naquele momento, se tivesse aparecido, eu perdia a cabeça.

E era nessa certeza que lhe receava a presença! Haveria tumulto, a minha fogosidade não suportaria a sua insistência, e talvez não pudesse chegar a tempo. se não me visse totalmente impedida de partir.

Olhei em volta, desconfiada e ansiosa. Larguei a trote.

Olhei para trás, não fosse o manhoso ver-me e seguir-me. E abalei a galope!

Não havia tempo a perder, tanto mais que devia estar em casa à hora do almoço. No automóvel seria mais rápido, mas perderia o aspecto do exercício desportivo a que me sabem afeiçoada. Teria menos justificação.

Mas não posso esquecer a tua surpresa quando me viste aparecer de uma forma tão pouco adequada ao ócio que íamos realizar

Havia percorrido em duas escassas horas os vinte e cinco quilômetros que me separavam dessa aldeola perdida entre as serras, onde o velho cura que te baptizou nos uniu em frente do altar de Deus.

Tinhas podido vencer todas as dificuldades referentes aos nossos papéis. Os meus, subtraíra-os eu da gaveta da secretária onde o meu Pai os guardava muito bem dobrados dentro de uma caixa de prata, visto que só seriam precisos nas vizinhanças do enlace. Graças à influência de alguns amigos que te admiram, e de sobra conhecem o teu caracter e o respeitam, obtiveste a dispensa da leitura dos banhos na minha freguesia. A minha maioridade dispensava a autorização paterna. E tudo o mais foi simplificado pela bondade do velho pároco que nos cobriu com a sua bênção, certo de contribuir para um lar que nunca se dissolverá, um lar que orgulho e preconceitos errados não podem destruir.

Ali ninguém nos conhecia. Os nossos nomes não despertavam o interesse das gentes simples e bondosas, cuja curiosidade apenas se manifestou ao soarem nas pedras das ruas as ferraduras do meu cavalo, cansado da veloz carreira a que o obrigara.

Revejo também o olhar admirado do sacerdote, perante aquela noiva tão moderna, uma noiva em trajo de montar.

Tu estavas de pé junto dos teus Pais e de um teu colega que com a esposa iam servir-me de padrinhos.

O teu olhar alegrara-se ao ver-me, e sei bem que a nuvem nele inscrita era a da ansiedade, a do receio que também vivi.

Mas naquele momento não havia já obstáculos a vencer.

O teu, o nosso Anacleto, enquanto a Ana chorava de alegria, protestava que lhe desonrávamos os cabelos brancos de servo fiel. Mas lá por dentro ria de satisfação e acabou por expandir a sua felicidade.

Apressei-me depois em serenar o Prior, dizendo-lhe que ia despir o fato de montar, pois trazia outra roupa por baixo. Então seguraste-me e indicaste-me a mala que estava dentro do automóvel em que tinhas vindo.

E, na mala, um vestido branco. O meu vestido branco de noiva!

Chorei e ri, apertando nos braços esse tesoiro.

Vesti-me ao lado da igreja, na casinha do prior que nos assegurava que Deus nos perdoaria por assim lutarmos pelos direitos do coração. Sem dúvida que os filhos não devem desobedecer aos Pais. Mas eu também não podia ser obrigada a aceitar o marido que me impunham, que repugnava à minha consciência.

A família não pode ser edificada sobre falsos sentimentos.

Esta certeza aliviava as minhas últimas dúvidas no que dizia respeito ao meu procedimento.

Os sinos repicaram. E entrei na igreja, feliz e confiante. Nada de fausto, da riqueza que uns condes idealizavam. Na capelinha humilde, entre crianças e mulheres que acorriam admiradas e respeitosas a contemplarem a inesperada noiva, dando o braço ao teu pai que tremia de emoção, e seguida pelos dois pares formados por ti e pela esposa do teu amigo, por este e pela tua Mãe, fui ajoelhar-me na frente do altar.

Então chorei, chorei com pena dos meus Pais que não comparticipavam da infinita ventura que me inundava, chorei pedindo a Deus que nos abençoasse com a condescendência dos dois entes que são, depois de ti, aqueles de quem mais gosto. Depois de ti - sim. Tu primeiro que eles! Será justo Mas se te dei a minha vida, é porque te adoro acima de todas as coisas!. E o Céu quer que seja porque assim nasce a família!

Eu sentia tudo isto confusamente" chorando e rezando. Mas não tremi quando as nossas mãos se uniram, aspergidas pela água benta. Ergui os olos para a imagem do Redentor e parecia-me que Ele sorria e perdoava à minha humildade.

Era tua mulher! Era a mulher que Deus te dava e tu o companheiro da vida inteira a quem sempre hei-de amar e respeitar.

Mas essa hora divina passou rapidamente. Tinha de apressar-me, para não chegar tarde a casa e não despertar quaisquer desconfianças.

Eu não queria deixar-te. Como tua esposa, entendia que o meu lugar era ao teu lado. Desejava acompanhar-te, e porque saíra de casa, já não precisava de viver o momento, apesar de tudo talvez doloroso na sua emoção, em que a abandonaria de vez. Opuseste-te e convenceste-me. Querias levar-me apenas quando tivesses tudo em ordem, uma casa condigna para me receber. Tratava-se apenas de me prevenir contra qualquer intimativa, e de não ter medo que me roubassem a ti. Convenceste-me, obedeci-te, mas agora estou arrependida de não ter teimado mais. Talvez cedesses e eu escusava de passar tantos momentos aborrecidos - que aborrecidos são todos os momentos que passo longe de ti! Não o fiz, verguei-me às tuas razões, e mal saí da igreja corri a substituir o meu lindo vestido (que guardaste religiosamente) pelo fato de montar. Despedi-me dos teus Pais e dos Padrinhos, dei-te o meu primeiro beijo de casada e arranquei-me dos teus braços para cima do cavalo.

Os meus olhos brilhavam de felicidade, uma felicidade que se interrompia mas que nem por isso era menos feliz. Na corrida para casa dominei-me. Os caminhos, os arvoredos sabiam agora do meu segredo. A todos o contei, na ânsia de ser cumprimentada pela dita que me coubera em sorte.

Assim:

- Casei com o Carlos! Sou mulher do Carlos!

E repetia-o às orelhas do Dom Juan, rudemente experimentado pelo galope a que o forçava e que suportou como um valente. Lindo cavalinho!

Ao chegar a casa, fatigada do passeio, extenuada de vibrar, estava quase serena. Restos de fulgor na expressão falavam apenas da animação da cavalgada, que a Mãe censurou por tão demorada. E nada mais.

Depois, dando-lhe razão e confirmando a fadiga, deitei-me, e pude durante toda a tarde rememorar essa inesquecível manhã, que lembro ainda, que lembrarei eternamente, em todos os seus pormenores!

Certamente que nunca houve rapariga cujo casamento tocasse as raias do inverosímel, como o meu, pelo menos em Portugal! Na América tudo o que é fantástico pode acontecer Mas no nosso modesto cantinho um tanto variam os hábitos, e se me viessem contar que alguém se consorciara desta forma, eu duvidava. No entanto vivi-o eu, é absolutamente verídico!

Há dois meses que nos casámos. Completam-se hoje sob esse dia maravilhoso. E desde então não penso em mais nada.

Obrigam-me a falar e a agir em sentidos muito diversos, mas faço tudo como uma máquina bem organizada. A minha alma não está aqui. A minha alma abandonou-me, vive em teu derredor, e só a sinto para desejar a tua vinda, para desejar que apareças e me leves contigo!

Tenho medo, às vezes, de que isto se me torne intolerável! Sou dócil, submissa, atenta, e chego a surpreender-me da minha sisudez, quando tremo de impaciência e saudade.

Passo dias sem poder ir ao correio buscar as tuas cartas e levar as minhas. Pressinto que António, especialmente, me vigia como se a minha própria concordância em tudo lhe cause apreensões. Ê natural que estranhe, pois me conheceu constantemente revoltada contra ele. Por isso mais me esforço por não dar razões às suas desconfianças, se é que realmente as tem ou apenas eu as imagino. De qualquer das formas, tento ser impecável. Sei que ele é capaz de tudo e embora não haja nada que destrua a nosso casamento, receio e quero evitar quanto seja violento e desencadeie uma tempestade que bom será evitar até final.

E é por isto que suporto uma presença odiosa e chamo a mim toda a sensatez de que me julgo dotada. Este papel de noiva, às vezes custa tanto a representar! Como posso eu, sem transgredir os mais restritos deveres de esposa? E contudo, também não posso fugir-lhe demais. "e não quero ouvir reprimendas da minha Mãe que, apesar de tudo, alega que no seu tempo as raparigas eram mais ardentes. Di-lo porque nunca me viu junto de ti! De ti, meu marido de uma hora, que eu adoro, que é toda a minha vida!

Beijo as tuas cartas e depois queimo-as. E quando as queimo sinto que me rodeia o coração um halo de fogo, que o faz arder e me tortura. Queria conservar essas folhas de papel que me animam, que me dão coragem, mas tenho medo que as descubram

Meu marido, meu amor, vem buscar-me depressa!. Lembro-me de ti constantemente. Às vezes rio porque sou tua mulher. Outras dá-me vontade de chorar, porque estás longe de mim. Todas as noites a minha janela fica aberta, esperando que apareças, que venhas, e adormeço altas horas, pensando que era bom cerrar os olhos junto do teu peito, contemplando o teu rosto querido até perder a consciência.

E depois, saber-te privado do meu carinho, saber que sofres por não me teres a teu lado, saber que suspiras pela ternura que guardo para ti

Dizes que é tudo para meu bem. e estou a achar-te orgulhoso! Queres a tua consciência tranqüila, queres responder a possíveis recriminações com o meu inteiro bem-estar.

Olha que a altivez atende por vezes a questões secundárias!

Mas não te recrimino, não! Estás com a certeza de cumprir um dever e eu tenho a obrigação de me confortar na idéia de que com a minha coragem te ajudo a libertar de um peso de alma.

Mas às vezes não consigo refrear o meu desejo de te ver. Ê que a tua presença é a minha suprema ambição!

Não, não devia haver forças que pudessem obrigar-nos à separação! Deus, Deus é que nos concedeu o nosso amor, porque o amor é o sentimento mais belo que pode abrigar-se em peito humano, é sentimento de origem divina na sua generosidade, na sua grandeza. E se Deus no-lo concedeu, ninguém no-lo pode tirar!

Creio que apenas estamos passando uma provação, finda a qual o universo contemplará a nossa completa felicidade. E para tamanha ventura nunca será demasiado grande o preço.

Mas dia - quando vens buscar-me Marcam-me o "casamento" para daqui a dois meses e eu

Bruscamente, as folhas de papel escorregaram-lhe das mãos, que apertou febril.

- Rosalínda - balbuciou. - Revelas-me, mesmo sem querer, as tuas inquietações, as aflições que te pungem Esta carta é o reflexo do que tu sentes, é um cântico desse amor que me arrouba mas também é um grito de fadiga. Não, minha Linda, não tenhas medo. Eu não serei mais orgulhoso. -lançou um olhar em derredor, ao escritório moderno mas ainda em desalinho. -Para que havemos de sacrificar-nos inutilmente? Somos a maior ambição um do outro. tenho nas mãos a felicidade de ambos. Que digam o que quiserem! Seremos superiores! Podes vir, meu amor querido. Tu própria acabarás de alindar o cofre para o tesouro que o Céu nos deu a ambos neste afecto que une as nossas almas!

 

E a aventura continuava, qual página arrancada a florido poema dos séculos em que o amor era um perfume subtil, imaterializado em sonhos, realizado em fantasias, espiritualizado em dores. E aquela página era a mais bela do poema, era aquela que diz - e os dois amantes encontraram-se por fim!

Cauteloso, extinguiu os faróis e, bendizendo os motores silenciosos, foi parar o carro junto dos pinheiros, obrigando-o a descair para a valeta, com aspecto de automóvel que sofreu qualquer dano.

Felizmente àquela hora não havia que temer a nociva curiosidade da gente da aldeia, que na sua inconsciência poderia levar o alarme onde não devia.

Mesmo assim embrulhou-se bem na gabardine, enterrando o chapéu até aos olhos, e seguiu pelo carreiro adiante.

Tremia um pouco, tentando vencer as inquietações que lhe pareciam agora descabidas, a dois passos de realizar o projecto tão hábil e cuidadosamente elaborado, o projecto que estava prestes a ser concluído.

Compreendia melhor os temores da que devia aguardá-lo nessa obscura e desconcertante impressão que lhe vinha, como que desejo de galgar com asas a distância a percorrer antes que aparecesse gente, que alguém surgisse.

Ceder Rosalinda? Só ao preço da própria vida! E a ansiedade aljofrava-lhe de suor a testa, gelada pela aragem fria que cortava a baça claridade derramada por uma lua que o espreitava melancólica entre nuvens esfarrapadas, talvez reconhecendo no vulto sombrio o fantasma de meses antes.

Seria o mesmo?

Iluminando o chão com a lanterna de furta-fogo, contornou o muro, saltou o gradeamento, seguiu cozido com as árvores do parque, ágil rodeou a casa até parar debaixo da janela sustentada pelos dragões.

A lua sumira-se no céu.

força de pulso, ele subiu. A mão tateou e encontrou o vácuo. Graças! Ela continuava a esperá-lo, como o esperara durante tanto tempo!. Mais um esforço e ei-lo dentro do quarto. O clarão da lanterna dirigiu-se para a alcova onde na alvura das roupas emergia o lindo rosto da rapariga.

Ciciou:

- Linda.

Ela sentou-se de pronto no leito, abrindo-lhe os braços.

- Carlos!

Esguia e lesta, a forma branca saltou para o chão, foi cingir-se a ele.

- Carlos, meu Carlos!. Obrigada! Estou pronta. Vamos! Ele mal pôde beijá-la, porque a pressa dela meigamente,

firmemente, o repelia.

- Depois. depois!. Agora vamos! Vamos! Quero sentir-me em segurança.

- Vamos, sim.

Com o desembaraço que revelava os preparativos feitos, Linda abriu o guarda-vestidos e tirou de dentro uma maleta. Num gesto rápido desabotoou a camisinha, que lhe caiu aos pés. Estava vestida. Envergou um amplo casacão, cerrou de novo a porta do guarda-vestidos e voltou-se para o marido que mudo e quedo admirava tanta precisão.

- Partamos!

Não iam decorridos mais de seis ou sete minutos. Carlos suspendeu-lhe a impaciência.

- Rosalinda. não lamentas o que fica? com certeza ?

No silêncio da noite ouviu-se o ruído de uma tosse, vinda do interior da casa.

- Os meus Pais ? - balbuciou. - Querem-me demais para renunciarem a mim e conto com a nossa ventura para que sejam também felizes. A Mãe sofrerá no seu orgulho mas curar-se-á. Vamos!

Ele insistiu ainda, num gesto explícito:

- E o resto?

- Qual resto, se te tenho a ti? -e rapidamente, beijou-o na face. - Vamos, meu amor, vamos embora!

Carlos parecia ter adquirido uma alma nova e só a prudência susteve o ímpeto apaixonado de a cingir ao peito.

- Vamos então.

Estava agora inteiramente calmo. E desde que a via junto de si sentia as energias duplicadas. Uma indómita confiança o animava.

Escarrachado na janela, avisou:

- Segura-te bem a mim e não largues a malita. vou saltar. Pegou no corpo franzido, que parecia mais delgado, mais

leve, como se ela tivesse emagrecido.

Calculou bem o salto e caiu de pé.

Volveu um derradeiro olhar à janela, radioso, triunfante. O pior estava feito! Já vinha perto a total ventura. Raptava a própria esposa!

E não a poisou no chão. Conservava-a muito apertada, sentindo-lhe o hálito acariciar-lhe o rosto, beijado também pelos cabelos que o vento agitava. Era o ladrão do seu tesouro.

Quem poderia condená-lo, agora ? Quem o acusaria de infame e de patife?

Não ameaçara a reputação da rapariga, não a levara senão ligada a si pelos vínculos da união sagrada, não pretendera forçar resistências com a chamada reparação, que teria de tornar-se inevitável. E porque sabia que, casada contra a vontade dos Pais, Rosalinda não disporia de quaisquer ajudas materiais, de sobejo mostrava o nada que lhe importava o dinheiro.

Respondia bem às acusações que lhe haviam sido dirigidas e às suspeitas que o apontavam.

Ouviram ladrar, cada vez mais forte, mais próximo deles.

Apareceu o grande S. Bernardo.

Carlos sorriu, tranqüilo.

- Não há perigo, ele conhece-me.

E Rosalinda, do abrigo estremecido segredou ao animal que se calava, cheirando-os, reconhecendo-os e saltando alegremente em seu redor.

- Schiu, Maior! Não faças barulho.

E Maior seguiu-os, discreto e satisfeito do encontro que matava as suas saudades de cão que passava tardes inteiras lembrando o amigo preferido que partira e nunca mais viera visitá-lo!

Chegaram junto do muro. Aí Carlos largou Rosalinda, trepou, desenvolto como um gato, e só depois a ajudou a subir, com ambas as mãos. Ficaram a par um do outro, respirando um instante. Para trás eram os domínios dos Olivosa. Para a frente, a vida nova!

Carlos não demorou o repouso. Tinha pressa de se ver longe daquelas paragens.

O muro fazia ali um ângulo contornando a propriedade para os lados do vale. Graças a ele mais facilmente realizara a escalada.

Lépido, saltou para o solo. Mas nesse instante exacto outro vulto surgiu da sombra protectora da vedação, precipitando-se para ele, ameaçador.

- Gatuno!

Rosalinda abafou um grito. Acabava de reconhecer a voz. E a lua, que voltara a afastar as nuvens, mostrava-lhe o rosto convulso de António.

O Engenheiro não devia ainda ter notado a presença dela, decerto apenas vira Carlos e para ele dirigia toda a atenção.

- Se dás um passo, morres.

O Médico não deu esse passo. Imóvel, esperava com um sorriso nos lábios o embate de António do Souto.

Em cima do muro, de mãos apertando os lábios, Rosalinda desvairava, temendo o que iria desencadear-se. Surgiriam complicações quando tudo, tudo parecia resolvido? E que fazia António ali? Porque rondava a casa a semelhante hora? Que negras premeditações o moveriam?

Ah! Fora talvez providencial a vinda de Carlos naquela noite.

Ela quereria mexer-se, dizer algo, influenciar para bem os acontecimentos. Mas tinha medo, medo da diabólica maldade do primo, medo de que, para a defender, Carlos sofresse a cobardia do outro.

- Tu! -bradava o Engenheiro, rangendo os dentes. -Tu! Que fazes aqui? De onde vens?

Sereno, Carlos mantinha-se de braços cruzados. António não o assustava, por demais sabia que um soco bem aplicado o obrigaria a fugir a sete pés. No entanto, naquele momento teve a

impressão de que o furor do fidalgote era tamanho que, dominado por ele, talvez aceitasse a luta corpo a corpo.

E entumescia os músculos, ao responder altivamente:

- E tu? com que direito te atravessas no meu caminho? Porque vigias esta propriedade ?

António escumava, de cabeça perdida, adivinhando a justeza das quase inconscientes desconfianças alimentadas até então.

- Ah. mas pelo demônio que não avanças!. Eis o que eu previa!. A obediência dela, a tua resignação, o teu afastamento. tudo estava explicado nestes encontros nocturnos. Se eu soubesse! Mas não gozareis a vossa infâmia, nem tu nem ela, porque vais morrer aqui, como um cão.

Ao ver brilhar a arma na mão traiçoeira, Rosalínda soltou um grito desgarrador. E o espanto, a surpresa forçaram António a suspender o gesto, a procurar, levantando a cabeça, quem gritara. Já Carlos, descruzando os braços, estendia o punho cerrado. E antes que António pudesse reconhecer a fisionomia transtornada de Rosalinda, um formidável directo nos queixos estendeu-o ao comprido, sem um ai, completamente K. O.

- Rosalinda, salta! -ordenou Carlos imperiosamente. -Salta sem perda de um segundo!

Recebeu nos braços o corpo fremente de angústia e na orelha uma súplica:

- Fujamos depressa! - Não era necessário pedir-lho, tinha de ser.

De mãos dadas, largaram a correr. O marido rebocava-a, impiedoso, não obstante saber que a emoção, naturalmente mais do que a fadiga, a sufocava.

Urgia andar depressa, depressa antes que António, despertando, pudesse utilizar o revólver, mais certeiro e menos arriscado para ele do que um combate directo.

E essa idéia e esse temor obrigavam Carlos a não se compadecer nem da respiração ofegante nem do peso que atrás de si sentia mais forte a cada momento.

Estreitava-lhe apenas os dedos, carinhosamente, num estímulo:

- Linda. falta pouco. Falta pouco, meu amor!

Seguiam por entre os esguios troncos dos pinheiros, iluminados pela lua que abertamente contemplava agora aquela audaciosa fuga, remate do poemeto florido de ternura. E o aspecto sereno da deusa da noite parecia anunciar-lhes que tudo acabaria em bem, como compete aos romances brancos que felizmente na vida se desenrolam autênticos ao lado desses que são negros e só provocam o desgosto de existir.

Surgiu enfim o automóvel, tal qual Carlos o deixara, servo dócil aguardando o amo para como novo tapete de magia antiga fazer o milagre de os levar para longe.

Estavam chegados. Entraram ambos; ele instalou-se ao volante, ela ficou ao lado dele de rosto escondido nas mãos, a serenar o ritmo do coração.

Carlos inquietou-se daquele silêncio, pensou que ela chorava.

Poisou a mão direita sobre a cabeça de seda.

- Linda, que tens?

Mas Linda acalmara. Todos os receios findavam; restava-lhe apenas a inebriante sensação de ser feliz!

E, como réplica, o seu riso soou desfeito em pérolas, cantante como nos tempos em que era a condessinha dos sorrisos através da natureza em festa.

- Oh, Carlos! Que belo soco!

Então, completamente ditosa também, a voz masculina juntou-se à dela, num coro triunfante:

- Se te parece! Foi dado com gana, tanto mais que saldava contas velhas!. Estava-lhe prometido há muito.

O motor do carro soltou um arranco. Abalou-os a trepidação da vida, os faróis rasgaram a estrada, em ânsia de evasão. Pouco depois, Carlos murmurou:

- Sabes, Linda? Nisto tudo só há uma coisa que ainda me contrista.

- Qual é?

- Mas. os teus Pais!

Linda, vibrante de convicção e de fé, limitou-se a replicar:

- Os meus Pais ? Mas eles acabarão por ser felicíssimos! O Pai não te combatia pelo coração. sempre o compreendi, e não gostava do António. A Mãe será mais renitente. mas acabará por resignar-se, tanto mais que tu já não és o filho do seu Caseiro. E como, enfim, gosta da sua filha única - sempre sou a sua menina! - acabará por se deixar persuadir pelo Pai de que deve chamar-nos a si.

- Pensas isso?

- Tenho a certeza! A participação do nosso casamento, que ficou em cima da mesinha de cabeceira, fá-la-á cair das nuvens. Primeiro protestará indignada, depois mostrará a sua admiração pela nossa esperteza, a seguir declarará que afinal procedeste como um cavalheiro, e acabará limpando os olhos, comovida por me saber casada. O Pai, esse reconhecerá que eu não sou cata vento, como me chamou. e de aqui a dias mandar-nos-ão um telegrama para virmos pessoalmente receber o seu perdão.

Carlos sorria.

- Sinto-me encantado por ti! Não quero sombras no nosso caminho.

Ao longe, a nascente, uma faixa de luz rosada ia iluminando o azul límpido do céu.

Ambos se calaram, Carlos atento às curvas da estrada, Linda encostada a ele, aninhada, entregando-se ao delicioso momento de paz, de confiança absoluta, que a empolgava junto desse que tanto amava.

Avançavam os dois, velozmente, a caminho do Destino que os acolhia, tornando-os doravante num só para dores e alegrias, esperanças e desanimes, canseiras e triunfes, ligados para todo o sempre pela bênção de Deus que sobre as suas cabeças jovens fizera pairar o sentimento que junta as almas aos pares.

E foi este o romance de Linda que levou o sorriso a muitos lábios e o enternecimento a muitos corações, o romance graças ao qual se encheu de lindas crianças o velho Solar de Olivosa onde, após as tais primeiras impressões previstas por Rosalinda, nunca mais houve protestos pelo casamento morganático mas antes graças pela imensa felicidade concedida à velhice tranqüila dos condes, que se reviam na constante alegria da filha, na fama sempre crescente do Médico que lutava em prol da vida humana, e na graça dos pequeninos que perpetuavam as suas próprias almas.

Deus faz tudo pelo melhor e quando Ele manda ao Amor que seja rei absoluto, todas as reformas são possíveis e todos os milagres naturais.

 

 

                                                                  Odette De Saint Maurice

 

 

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