Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O ROMANO
Segunda Parte
Clemente de Roma — Epístola aos Coríntios I: 5, 6.
Voltemos a atenção para os paladinos de épocas recentes e escolhamos os nobres exemplos proporcionados por nossa geração. Foi por causa da inveja e da maldade, que os pilares mais sólidos e imponentes da Igreja sofreram perseguições e tiveram de lutar até o último alento. Evoquemos mentalmente aqueles bons Apóstolos: Pedro que, em razão de iníqua inveja, teve de suportar não um, nem dois, mas muitos padecimentos e, havendo assim dado testemunho de nossa fé, foi para o glorioso lugar que lhe estava reservado; e foi em virtude de ciúme e contenda que Paulo veio a ser um exemplo da recompensa a ganhar com paciente resignação; pois que foi êle encarcerado sete vezes, degredado, apedrejado, tornou-se pregador no Oriente e no Ocidente, e por esse meio alcançou o nobre renome que foi o galardão de sua fé após ensinar bondade ao mundo inteiro e atingir o mais longínquo Ocidente. E assim, tendo testemunhado a nossa fé perante as autoridades, deixou o mundo e foi para o santo lugar, tendo-se revelado um exemplo notável de paciente resignação.
A estes pios varões veio juntar-se um grande número de eleitos que, sendo vítimas do ciúme, através de humilhações e torturas incontáveis se constituíram em magnífico exemplo para todos nós. E mulheres a quem a maldade moveu perseguições e submeteu a suplícios cruéis e ímpios, como as Danaides e Dirce, chegaram a salvo ao termo da corrida da fé e, embora frágeis de corpo, obtiveram um prémio sublime.
Popéia
A hipótese de minha mulher revelou se afinal correta, pois que se passaram dois anos antes que Nero ousasse pensar seriamente em se divorciar de Otávia. Ao regressar a Roma depois da morte de sua mãe, êle achou politicamente mais prudente mandar Popéia embora do Palatino e passar as noites com ela, em segredo.
Perdoou a muitos exilados, reintegrou no cargo senadores demitidos e distribuiu, numa tentativa de suborno geral, a fortuna imensa que herdara de Agripina. Os bens móveis e imóveis e os escravos de Agripina, porém, não foram grandemente procurados pela aristocracia romana. Nero deu a maior parte ao povo durante um espetáculo no grande circo, quando mandou que se procedesse a sorteios entre os espectadores.
Para aliviar a consciência e obter a simpatia popular, Nero chegou ao ponto de propor ao Senado a abolição de todos os impostos diretos. Naturalmente sabia que isto era impossível, mas o Senado ficou numa posição incômoda aos olhos do povo, porquanto foi obrigado a rejeitar sumariamente a proposta.
Efetuaram-se reformas consideráveis na tributação, certos impostos que incidiam sobre as vendas foram reduzidos e, o que foi da máxima importância, no futuro cada qual teria o direito de saber como, por quê e em que quantia ia ser onerado. Os arrecadadores de impostos resmungavam amargamente, visto que perdiam a antiga prerrogativa de extorquir suas gratificações na cobrança dos tributos, mas os comerciantes só tinham a lucrar, uma vez que podiam manter os preços inalterados e pagar menos imposto sobre vendas.
Nero também se apresentou diante da multidão como auriga, porque, de acordo com sua própria declaração, guiar uma parelha de cavalos fora nos tempos idos um passatempo dos reis e dos deuses. A fim de dar bom exemplo à aristocracia, apareceu nos grandes jogos, realizados conforme o modelo grego, como cantor dramático, acompanhando-se à cítara. Sua voz se fortalecera desde a morte de sua mãe, mas, por questões de segurança e para prevenir manifestações, Burro levara ao teatro um grupo de Pretorianos com a incumbência de manter a ordem e aplaudir Nero. Ele mesmo deu o exemplo, batendo palmas, ainda que, como guerreiro, estivesse profundamente envergonhado da conduta do Imperador. Presumivelmente também achava que Nero poderia entregar-se a ocupações ainda mais vergonhosas.
Por conseqüência, as modas gregas conquistaram Roma definitivamente. A maioria dos senadores e os membros da Nobre Ordem dos Cavaleiros tomavam parte nos jogos de Nero. Moças da nobreza executavam danças gregas e até mesmo idosas matronas demonstravam no circo a flexibilidade de seus membros. Pessoalmente, eu nada tinha contra esses divertimentos, que me poupavam muitos aborrecimentos e despesas, mas, excetuando as corridas, o povo não os apreciava muito. Na opinião dos espectadores, os cantores, músicos, dançarinos e atores profissionais trabalhavam incomparavelmente melhor do que os amadores. A decepção era imensa quando não se exibiam animais selvagens nos intervalos, para não mencionar os gladiadores. A velha geração da nobreza estava de fato estarrecida, porque julgava que os exercícios de ginástica, os banhos quentes e a música efeminada debilitavam a juventude romana e a sua capacidade de lutar num momento em que Roma necessitava de tribunos experimentados.
Como um mau agouro, rebentou a guerra na Armênia, e uma mulher terrível chamada Boadicéia uniu as tribos bretãs numa rebelião devastadora na Bretanha. Uma legião inteira foi destroçada, duas cidades romanas foram arrasadas, e o Procurador perdeu a tal ponto o domínio da situação que teve de fugir para a Gália.
Creio que a Rainha Boa Dicéia nunca teria conseguido tantos partidários na Bretanha se as legiões não tivessem sido forçadas a viver fora dos pais e se não tivessem sido pagos os juros dos empréstimos concedidos por Séneca aos príncipes britânicos, de vez que os bárbaros ainda não entendiam o presente sistema monetário.
Os cavaleiros mais jovens não se mostravam dispostos a alistar-se como voluntários com receio de serem empalados e queimados por Boadicéia, mas preferiam tocar citara em Roma, trajando túnicas gregas e usando cabelos compridos. Antes que a situação se definisse, Nero chegou mesmo a sugerir ao Senado a retirada das legiões da Bretanha, onde não havia outra coisa que aborrecimento. O país consumia mais do que produzia. Se abandonássemos a Bretanha, três legiões poderiam ser empregadas em aliviar a pressão dos partos no Oriente. A quarta já fora destruída.
Durante os debates violentos que se travaram no Senado, Séneca, o porta-voz da paz e do amor à humanidade, pronunciou brilhante discurso em que aludiu aos triunfos do divino Cláudio na Bretanha. Um Imperador não podia desmentir os triunfos de seu pai adotivo sem arruinar a própria reputação. Na realidade, Séneca estava naturalmente pensando nas somas enormes que in-yertera na Bretanha.
Um senador perguntou se fora absolutamente necessário assassinar setenta mil cidadãos e aliados e saquear e incendiar duas cidades prósperas só para proteger os lucros de Séneca.
Séneca ruborizou-se e afiançou ao Senado que o dinheiro romano aplicado na Bretanha destinava-se a civilizar o país e fomentar o comércio e o poder aquisitivo. Isto podia ser confirmado por outros senadores que lá haviam empregado seu capital.
— Os augúrios são alarmantes — gritou alguém.
Mas Séneca defendeu-se, dizendo-lhes que não podia ser responsabilizado por terem alguns reis bretões utilizado o dinheiro dos empréstimos em finalidades que só a eles interessavam e na compra sigilosa de armamentos. A conduta das legiões era a causa principal da guerra. Portanto, cumpria punir os comandantes e enviar reforços para a Bretanha.
Abandonar definitivamente a Bretanha era um pílula amarga demais para que o Senado a engolisse. Restava pelo menos essa dose do antigo orgulho de Roma. Assim, deliberou-se não evacuar o país, mas, ao contrário, enviar mais soldados para lá. Alguns senadores exaltados forçaram os filhos adultos a cortarem o cabelo e assumir as funções de tribunos na Bretanha. Os rapazes levaram consigo suas cítaras, mas as cidades devastadas, as crueldades e os estridentes gritos de guerra dos bretões logo os fizeram pô-las de lado e pelejar corajosamente.
Tenho motivos especiais para estender-me sobre os acontecimentos da Bretanha, posto não os tenha presenciado. Boadicéia era a rainha dos icenos. Após a morte do marido dela, as legiões haviam-lhe interpretado o testamento de. maneira a converter o seu território em propriedade hereditária dos romanos. Boadicéia era mulher e não dava nenhum valor às leis. Nós mesmos precisamos de juristas eruditos que interpretem corretamente os nossos testamentos. Ao contestar a decisão e invocar a lei bretã de sucessão pelo ramo feminino da família, Boadicéia foi açoitada pelos legionários que ainda lhe estupraram as filhas e lhe saquearam os bens. Além disso, os legionários expulsaram muitos nobres icenos de suas propriedades e cometeram homicídios e outras atrocidades.
Do ponto de vista jurídico, o direito estava do lado dos legionários porque o Rei, que não sabia ler nem escrever, havia de fato mandado redigir um testamento no qual legava sua terra ao Imperador, julgando que desse modo iria garantir a posição da viúva e das filhas contra a inveja dos nobres icenos. Desde o principio os icenos se tinham aliado aos romanos, muito embora não tivessem particular estima por eles.
Depois da chegada dos reforços, travou-se uma batalha decisiva e os bretões, chefiados por essa vingativa mulher, amargaram a derrota. Os legionários vingaram as brutalidades praticadas por Boadicéia contra as mulheres romanas, vítimas do abominável tratamento que lhes dera o povo com o beneplácito da rainha ultrajada. Em conseqüência desses sucessos, Roma não tardou a receber uma torrente de escravos bretões — predominantemente mulheres e meninos taludos, já que, segundo a opinião geral, os adultos bretões são imprestáveis como escravos — e com grande descontentamento popular, pois Nero havia proibido o aproveitamento de prisioneiros de guerra nas batalhas do anfiteatro.
Um belo dia fui procurado por um traficante de escravos que chegou a minha casa puxando por uma corda um menino de dez anos. O homem comportou-se misteriosamente, piscando o olho para mim várias vezes, na esperança de que eu mandasse embora da sala todas as testemunhas. Depois queixou-se demoradamente dos tempos difíceis, das suas incontáveis despesas e da falta de compradores. O menino examinava tudo com um olhar furioso.
—Este jovem guerreiro — explicou o traficante de escravos — puxou da espada em defesa de sua mãe, no momento em que ela foi violentada e morta por nossos exasperados legionários. Foi por respeito à coragem do garoto que os soldados não o mataram, mas o venderam a mim. Como revelam seus membros perfeitos, sua pele boa e seus olhos verdes, êle é de nobre ascendência icena. Sabe montar, nadar e usar arco e flecha. Por incrível que pareça, conhece até um pouco de escrita e fala algumas palavras de latim. Ouvi dizer que poderíeis comprá-lo e pagar-me mais do que se eu o pusesse à venda no mercado de escravos.
Quem te disse isto? — perguntei, surpreso. — Já tenho escravos demais. Eles me tornam a vida insuportável e me privam de minha própria liberdade, para não mencionar a verdadeira riqueza, que é a solidão.
Um certo Petro, médico iceno a serviço de Roma, reconheceu o menino em Londres — disse o homem. — Deu-me o vosso nome e assegurou-me que pagaríeis o mais alto preço pelo rapazinho. Mas quem pode confiar num bretão? Mostra o teu livro, meu rapaz.
Deu um bofetão na cabeça do menino, e este, remexendo no cinto, sacou os restos de um rasgado e sujo livro caldaico-egípcio dos sonhos. Reconheci o livro logo que o tomei nas mãos, e meus braços e pernas se dissolveram em água.
— É Lugunda o nome de tua mãe? — perguntei ao menino, embora soubesse a resposta.
Bastava o nome de Petro para confirmar que o garoto era meu filho, que eu nunca vira. Inclinei-me para tomá-lo nos braços e admiti-lo como meu filho, se bem que não houvesse testemunhas disponíveis, mas o pequeno bateu-me no rosto com o punho e mordeu-me a bochecha. A cara do traficante de escravos ficou preta de raiva e êle fez menção de pegar do chicote.
— Não o castigues — disse eu. — Comprarei o menino. Quanto queres por êle?
O homem atirou-me um olhar avaliador e tornou a falar de suas despesas e prejuízos.
— Para ver-me livre dele — disse, por fim — vendo-o pelo preço mais baixo. Cem moedas de ouro. O menino ainda está indomado.
Dez mil sestércios era um preço exorbitante por um garotinho crescido, quando moças concupiscíveis eram vendidas no mercado por algumas moedas de ouro. Não era só o preço, pois naturalmente eu teria pago um ainda mais alto se fosse necessário, mas precisei de sentar-me e pensar demoradamente enquanto fitava o menino. O homem interpretou mal o meu silêncio e entrou a elogiar-lhe as qualidades, explicando que havia muitos ricaços em Roma que tinham adquirido hábitos orientais e para quem o pequeno estava numa idade excelente. Mas reduziu o preço, primeiro para noventa e depois para oitenta moedas de ouro.
Na verdade eu estava só imaginando um meio de realizar a compra sem que meu filho se tornasse escravo. Uma aquisição formal teria de efetuar-se no cartório, onde o contrato seria registrado e o menino marcado com meu símbolo de propriedade, MM, depois do que não poderia obter a cidadania romana, ainda que fosse alforriado.
— Talvez eu pudesse fazer dele um auriga — disse eu, afinal. — O Petro de que falas era de fato um amigo meu, do tempo em que prestei serviço na Bretanha. Confio na recomendação dele. Não poderíamos arranjar a coisa de tal modo que me desses um atestado dizendo que Petro, na qualidade de tutor do menino, te confiou a tarefa de trazê-lo aqui para que *o educasse?
O traficante de escravos olhou-me, irônico:
— Sou eu quem tem de pagar o imposto sobre a venda do pequeno, e não vós — disse êle. — Na verdade não posso fazer mais nenhum abatimento no preço.
Cocei a cabeça. A questão era muito complexa e facilmente podia parecer que eu estava procurando evitar o elevado imposto que incidia sobre os escravos. Mas eu também podia tirar algum proveito da condição de genro do Prefeito da Cidade.
Vesti a toga e saímos os três para o templo de Mercúrio. Entre as pessoas que lá estavam logo encontrei um cidadão que havia perdido o posto de cavaleiro e que, mediante uma quantia razoável, concordou em figurar como a outra testemunha imprescindível ao juramento. Assim, foi redigido um documento validado por duas testemunhas.
De acordo com essa declaração, o menino era um bretão nascido livre, cujos pais, Itura e Lugunda, tinham sido mortos na guerra, em virtude de suas simpatias por Roma. Por intermédio do médico Petro, eles tinham, antes de morrer, enviado o filho para Roma a fim de ser criado em segurança por seu hóspede e amigo, o cavaleiro Minuto Lauso Maniliano.
Numa cláusula especial estipulou-se que eu, como curador, deveria defender a herança do garoto no território iceno, quando se afirmasse definitivamente a paz na Bretanha. Isso me era até certo ponto favorável, visto que os sacerdotes de Mercúrio julgaram que eu tinha algum lucro a tirar do menino, por ocasião da distribuição dos despojos de guerra.
Que nome lhe daremos? — perguntou o notário.
Jucundo — disse eu. Foi o primeiro nome que me acudiu à mente.
Explodiram todos numa gostosa gargalhada, pois o taciturno rapazinho era tudo menos uma imagem da jovialidade. O sacerdote comentou que eu iria ter muito trabalho para fazer do meu amiguinho um bom romano.
A redação e selagem dos papéis e a costumeira gratificação aos sacerdotes de Mercúrio redundaram numa quantia muito maior do que o imposto sobre a venda. O traficante de escravos pôs-se a lamentar a transação e tomou-me por um comprador mais ladino do que eu era de fato. Contudo, já tinha prestado seu juramento. No fim, paguei-lhe as cem moedas de ouro que êle pedira a princípio, só para livrar-me dele sem maiores aborrecimentos.
Quando por fim saímos do templo de Mercúrio, o menino enfiou inesperadamente sua mão na minha como se se sentisse solitário no meio do ruído e do alvoroço diários da rua. Apoderou-se de mim uma sensação estranha quando lhe segurei a mãozinha e o conduzi para casa no meio do acotovelamento da cidade de Roma. Pensei na possibilidade de adquirir para êle a cidadania romana quando ficasse mais velho e depois adotá-lo, caso pudesse persuadir Sabina a Concordar. Mas esses problemas seriam encarados mais tarde.
Todavia, meu filho Jucundo me deu mais preocupação do que alegria. A princípio, nem sequer falava, e pensei que os horrores da guerra o tivessem emudecido. Destruía ilícitos objetos da casa e recusava-se a vestir as roupas de um menino romano. Cláudia nada conseguia dele. A primeira vez que Jucundo viu um garoto romano de sua idade fora de casa, precipitou-se sobre êle e bateu-lhe na cabeça com uma pedra até que Barbo interveio. Barbo sugeriu uma sova bem dada, mas achei que se devia tentar, de início, métodos mais brandos e resolvi ter eu me smo uma con versa com o pequeno.
Estou certo de que você sente a morte de sua mãe — disse eu. — Chegou aqui feito um cachorro, com uma corda no pescoço. Mas não é um cachorro. Vai crescer e ser homem. Nós todos só desejamos o seu bem. Diga-nos o que mais gostaria de fazer.
Matar romanos! — gritou Jucundo.
Suspirei aliviado, já que pelo- menos o menino falava.
— Você não pode fazer isso aqui em Roma — continuei. — Mas pode aprender os costumes e hábitos de nosso povo e um dia talvez eu possa fazer de você um cavaleiro romano. Se se apegar a seus planos, poderá regressar à Bretanha, quando fôr mais velho e matar romanos, à moda romana. A arte romana da guerra é melhor do que a bretã, como você menino já viu.
Jucundo emburrou, mas é possível que minhas palavras tenham tido algum efeito sobre êle.
— Barbo é um veterano experiente — prossegui, ardiloso — ainda que a cabeça lhe trema um pouco. Converse com êle. Êle poderá falar de batalhas e campanhas melhor do que eu.
Assim, uma vez mais Barbo teve oportunidade de relembrar o tempo em que atravessou o Danúbio a nado, totalmente equipado, por entre blocos de gelo e com um centurião ferido às costas. Mostrou suas cicatrizes e explicou por que a obediência incondicional e um corpo rijo eram os fundamentos inevitáveis da eficiência de um guerreiro. Recobrou a predileção pelo vinho e passou a vagar por Roma com o menino, levando-o a banhar-se no Tibre e ensinando-o a exprimir-se incisivamente na língua do povo.
Mas Barbo também teve dores de cabeça com o gênio terrível do rapazinho e um dia me chamou a um canto:
Jucundo é um garoto esperto, mas até mesmo eu, que já sou velho e calejado, estou alarmado com o que êle diz que vai fazer um dia com os homens e mulheres romanos. Receio que êle tenha presenciado coisas terríveis quando a rebelião dos bretões foi esmagada. O pior de tudo é que êle sobe correndo as encostas para vociferar maldições sobre os romanos em sua língua bárbara. Em segredo venera deuses das regiões infernais e lhes sacrifica ratos. É evidente que está sob a ação de potências maléficas. Nada advirá de sua educação enquanto êle não se libertar de seus demônios.
Como poderemos fazer isso? — perguntei, em dúvida.
Cefas dos cristãos é inigualável nisso de enxotar demônios disse Barbo, evitando o meu olhar. — É o homem mais hábil
que já conheci nessas coisas. A uma ordem sua, um indivíduo frenético se torna manso como um cordeirinho.
Barbo estava com medo de que eu me zangasse, mas, pelo contrario, acreditei que pelo menos por uma vez talvez fosse útil tolerar reuniões e refeições cristãs em minha casa e permitir que meus servos acreditassem no que quisessem. Quando viu que eu apoiava a idéia, Barbo pôs-se pressurosamente a contar-me que Cefas, com o auxílio dos discípulos que sabiam latim, ensinava as criança- humildade e obediência aos pais. Muitos cidadãos que estavam aflitos com a crescente falta de disciplina dos jovens mandavam os filhos para a escola dos dias santos dos cristãos, na qual, além disso, a instrução era inteiramente gratuita.
Ao cabo de várias semanas, Jucundo veio ver-me correndo, por sua própria iniciativa, tomou-me a mão e levou-me para meu quarto:
— É verdade? É verdade que há um reino invisível e que os romanos crucificaram o Rei? E que êle voltará qualquer dia desses e atirará todos os romanos ao fogo?
Achei que o pequeno revelava bom entendimento em não crer instantaneamente no que lhe diziam e vir a mim em busca de confirmação. Mas ao mesmo tempo vi-me numa situação incômoda.
É verdade, sim, que os romanos o crucificaram — respondi Cauteloso. — Numa tabuleta pregada na cruz dizia-se que êle era o rei dos judeus. Meu pai foi testemunha do acontecimento e ainda sustenta que o céu escureceu e as montanhas se racharam quando o crucificado morreu. Os principais cristãos acreditam que êle em breve retornará. E já é tempo, pois se passaram mais de trinta anos desde a sua morte.
Cefas é um arquidruida — disse Jucundo. — É mais poderoso do que os druidas da Bretanha, apesar de judeu. Exige coisas a valer tal qual os druidas. A gente deve lavar-se, usar roupas limpas, orar, tolerar insultos, dar a outra face quando alguém bate numa... Cefas emprega ainda outros exercícios de autodomínio, exatamente como Petro. E temos sinais secretos, também, pelos quais os iniciados reconhecem uns aos outros.
Estou certo de que Cefas não lhe ensina nenhum mal — disse eu — e os exercícios que exige de você reclamam grande força de vontade. Mas você deve compreender que tudo isso é segredo. Não fale dessas coisas a ninguém.
Fingindo a maior reserva, tirei o cálice de madeira da arca e mostrei-o a Jucundo.
— Este cálice é mágico. O próprio rei dos judeus bebeu nele certa vez. Agora vamos beber nele nós dois. Mas isso é segredo. Não conte a ninguém, nem mesmo a Cefas.
Misturei vinho e água no cálice e bebemos juntos, meu filho e eu, no quarto mal iluminado. Tive a impressão de que o líquido não diminuía no cálice mas era apenas uma ilusão causada pela iluminação fraca. Fui tomado de grande ternura e de repente percebi, como que numa visão, que devia dizer a verdade sobre Ju cundo a meu pai, para o caso de me acontecer alguma coisa.
Sem mais delongas fomos para a bela casa de Túlia, no Vimi-nal. Jucundo teve um comportamento irrepreensível e ficou de olhos arregalados, pois jamais vira uma residência particular tão suntuosa. O Senador Pudeus, que era protetor de Cefas, vivia numa casa antiquada e eu não fizera nenhuma alteração na minha no Aventino, apesar de combalida pela ação do tempo. Reformá-la seria transtornar tia Lélia.
Deixei o menino com Túlia e tranquei-me com meu pai, em seu quarto, para lhe contar tudo a respeito de Jucundo. A verdade é que fazia muito tempo que eu não via meu pai. Tive pena dele ao notar-lhe a calvície e o derreamento dos ombros, mas o fato é que êle já passava dos sessenta. Escutou-me sem um comentário e sem me encarar diretamente. Afinal falou.
_ O destino dos pais aparece de forma desfigurada nos filhos — disse êle. — Tua mãe era uma grega das ilhas e a mãe do teu filho era uma bretã da tribo icena. Em minha juventude fui arrastado a um vergonhoso escândalo relacionado com envenenamento e falsificação de testamento. Ouvi falar de coisas tão terríveis a teu respeito que não posso realmente acreditar nelas. Não fiquei particularmente satisfeito com teu casamento com Sabina, embora o pai dela seja o Prefeito da Cidade, e não tenho desejo de ir ver o filho que ela te deu, o teu Lauso, por motivos que dispensam explicação. Que centelha de sabedoria te levou a confiar a educação de Jucundo a Cefas? Cefas e eu nos conhecemos desde os tempos da Galileia. Ele é menos rude e excitável agora do que era então. Que planos tens tu para o futuro do menino?
_ Seria ótimo — respondi — se eu pudesse matriculá-lo na escola do Palatino onde célebres oradores e discípulos de Séneca educam os filhos dos reis nossos aliados e dos nobres das províncias. Seu latim estropiado não chamaria muita atenção lá. Faria amigos úteis entre seus contemporâneos, desde que Cefas possa domá-lo um pouco, antes. Quando estiver reorganizada a administração da Bretanha, haverá necessidade de uma nova aristocracia romanizada. O menino é de nobre linhagem icena pelo lado materno. Mas, por certas razões, Nero não quer me ver no momento, apesar de sermos amigos.
_ Sou membro do Senado — disse meu pai após refletir um instante — e nunca, até agora, pedi um favor a Nero. Também aprendi a ficar de boca fechada no Senado, o que é devido mais a Túlia do que a mim, já que temos vivido juntos todos estes anos e ela sempre é quem dá a última palavra. A situação está bastante confusa e os arquivos da Bretanha foram destruídos, de modo que um hábil advogado poderia facilmente encontrar prova de que os Pais do menino receberam a cidadania romana em troca de seus serviços. Deve ser ainda mais fácil, uma vez que não se lhe conhece o pai. E não seria deformar a verdade se consumasses uma vez uma modalidade bretã de casamento com a mãe dele. Tua própria mãe tem uma estátua à entrada da Casa do Conselho em Mirina. Poderias custear uma estátua da tua Lugunda, no templo de Cláudio, quando Colchester fôr reconstruída. Creio que deves isso à mãe do teu filho.
O mais estranho de tudo foi que neste intervalo Túlia se tinha tomado de amores por Jucundo e não se cansava de agradá-lo. Apesar dos seus imensos esforços, sua beleza rechonchuda começava a decair e sua papada se transformara numa bolsa enge lhada. Ao tomar conhecimento do triste destino da mãe de Jucundo, Túlia se desmanchou em lágrimas e o tomou nos braços.
— Vejo pela boca, nariz e sobrancelhas, e também pelos olhos, que o menino é de origem nobre — exclamou. — Seus pais deviam possuir todas as qualidades louváveis, exceto discernimento, uma vez que lhe deram como tutor um homem como Minuto. Acredi-tai-me: sei distinguir de relance o ouro do latão.
Jucundo suportava pacientemente as carícias e beijos de Túlia como um cordeiro sacrificatório. A instrução de Cefas já estava dando frutos.
— Os deuses nunca me permitiram ter filhos — prosseguiu Túlia com melancolia — mas somente abortos que me dei o trabalho de arrumar em minha juventude e durante meus dois casamentos. Meu terceiro marido era estéril, em razão de sua idade avançada, embora fosse rico. E Marco gastou sua semente Com uma grega leviana. Mas chega dessa história. Não quero ofender a memória de tua mãe, meu querido Minuto. Vejo este menino bretão como um bom augúrio em nossa casa. Marco, tens de salvar o simpático Jucundo da medíocre tutela do teu filho. De outro modo, quem sabe se Sabina não terminará por fazer dele um domador de animais? Não poderíamos adotá-lo e criá-lo como filho?
A surpresa me paralisou e, a princípio, meu pai também não soube o que dizer. Agora que penso nisso, não posso deixar de imaginar que devia haver algum poder sobrenatural no copo de madeira de minha mãe.
Deste modo fui aliviado de um pesado dever, pois àquela época eu não estava realmente apto a educar ninguém, como não estou agora. Isto eu aprendi contigo, Júlio. Por muitos motivos, minha reputação não era boa, ao passo que meu pai era considerado um idiota de bom coração. Êle não tinha ambições e ninguém o julgaria capaz de se envolver em intrigas políticas.
Como perito em questões orientais, desempenhara a função de Pretor durante dois meses, por mera formalidade. Certa vez, a boa vontade de alguns o indicara para o posto de Cônsul. Se se tornasse seu filho adotivo, Jucundo teria um futuro incomparável mente melhor do que sob a minha proteção. E, como filho de Senador, poderia inscrever-se nos registros dos cavaleiros, tão logo perdesse sua indumentária infantil.
Pouco depois de solucionado este problema, soube que o Prefeito Pretoriano Burro andava com um tumor na garganta e estava moribundo. Nero imediatamente determinou que seu médico particular fosse tratá-lo. Quando soube disso, Burro redigiu seu testamento e o enviou para a custódia do templo das Vestais.
Só após essa providência, consentiu que o médico lhe pincelasse a garganta com um remédio infalível. Na noite seguinte estava morto e bem morto. É de presumir que tivesse morrido de qualquer forma, pois já se manifestara o envenenamento do sangue e começara o delírio febril.
Burro foi sepultado com grande pompa. Antes que se acendesse a pira no campo de Marte, Nero nomeou Tigelino, Prefeito Pretoriano. Este ex-negociante de cavalos não possuía suficiente experiência judicial, de modo que Fênio Rufo, indivíduo de ascendência judaica que outrora viajara amplamente, na qualidade de Inspetor Estatal do comércio de cereais, recebeu o encargo de cuidar dos processos estrangeiros.
Percorri toda a rua dos ourives até encontrar um regalo bastante valioso. Por fim escolhi um longo colar de pérolas magníficas e com êle enderecei esta carta a Popéia Sabina:
Minuto Lauso Maniliano saúda Popéia Sabina: Vénus nasceu da espuma das ondas. Pérolas são dádiva digna de Vénus, mas o fulgor sem jaça destas humildes pérolas não se compara com o de tua cútis. Nunca o esquecerei. Espero que estas pérolas te façam recordar a nossa amizade. Certos sinais e augúrios mostram que a profecia que te aprouve certa vez revelar-me está prestes a cumprir-se.
Sem dúvida fui eu o primeiro a interpretar tão habilidosamente os presságios, porque Popéia mandou me chamar imediatamente, agradeceu-me a linda prenda e procurou descobrir como é que eu chegara a saber que ela estava grávida, quando ela mesma só o soubera dias antes. Tive de salientar minha herança etrusca, que às vezes me valia com sonhos inusitados.
— Depois da morte de sua mãe — disse Popéia — Nero ficou transtornado e tentou pôr-me de lado. Mas agora tudo vai bem outra vez. Ele precisa de seus verdadeiros amigos, daqueles que o defendam e dêem apoio a suas diretrizes.
Isto era verdade, porque depois que Nero exprobrou publicamente a Otávia a sua esterilidade e informou ao Senado que estava pensando em separar-se dela, violentos distúrbios irromperam na cidade, A fim de avaliar os sentimentos do povo, Nero havia mandado erigir uma estátua de Popéia, no fórum, perto do poço das Virgens Vestais. A turba derrubou-a, engrinaldou as estátuas de Otávia e em seguida rumou para o Palatino, de sorte que os Pretorianos tiveram de recorrer às armas para persuadir os manifestantes a se dispersarem.
Suspeitei que os dedos hábeis de Séneca estavam neste jogo, uma vez que o levante e a manifestação tinham sido tão espontâneos e evidentemente bem planejados. Nero, porém, levou um susto tremendo e logo chamou de volta Otávia, que por ordem dele estava a caminho da Campânia. Bandos jubilosos acompanharam a cadeirinha de Otávia e renderam ações de graça nos templos do Capitólio, quando ela chegou ao Palatino.
No dia seguinte, pela primeira vez em dois anos, recebi um chamado urgente de Nero. Uma das servas de Otávia a acusara de adultério com um flautista de Alexandria, chamado Eucero. O julgamento realizou-se em segredo e fora arrumado por Tigelino. A própria Otávia não estava presente.
Depus como testemunha, de vez que conhecia Eucero. Tudo quanto pude dizer foi que por si mesma a música de flauta tende a gerar pensamentos frívolos nas pessoas. Vira com meus olhos Otávia suspirar, o olhar melancólico pousado em Eucero, enquanto êle tocava ao jantar. Mas, aduzi por amor à justiça, Otávia suspirava em outras ocasiões também, e era de temperamento melancólico, Como todos sabiam.
Os escravos de Otávia tiveram de suportar interrogatórios tão penosos que me senti levemente nauseado ao presenciá-los. Alguns estavam dispostos a confessar mas não sabiam dizer quando, onde e como se consumara o adultério. Tigelino interveio na inquirição, que não se processava de acordo com seus desejos, e perguntou impaciente a uma linda jovem:
Não era este adultério um tópico de conversação entre os servos?
_ Se fôssemos acreditar em tudo o que os outros dizem — retrucou a moça — então as partes pudendas de Otávia seriam incomparavelmente mais castas do que a vossa boca, Tigelino.
A gargalhada foi tão grande que o interrogatório teve de ser suspenso. Os vícios de Tigelino eram bem conhecidos. E êle acabava de revelar sua ignorância jurídica ao valer-se de perguntas capciosas para fazer que os escravos admitissem algo que evidentemente não era verídico. Os juízes simpatizavam com os escravos e não permitiam que Tigelino os prejudicasse ao arrepio dos preceitos legais.
O tribunal reiniciou os trabalhos no outro dia. A única testemunha então argüida foi o Comandante da Armada, meu velho amigo Aniceto. Com simulado constrangimento contou êle, cuidadosamente indicando local e data, como Otávia, encontrando-se em Baías para os banhos de mar, revelara surpreendente interesse pela frota e desejara conhecer pessoalmente os capitães e centuriões.
Aniceto interpretara mal essas intenções e fizera então algumas investidas que Otávia rechaçara categóricamente. Enceguecido por criminosa lascívia, Aniceto dera-lhe a beber um narcótico e abusara dela, mas depois arrependera-se amargamente de seu ato. Agora só lhe restava implorar a misericórdia do Imperador, pois a consciência o obrigara a confessar seu crime.
Que Aniceto tivesse qualquer vestígio de consciência era uma novidade para toda a gente, inclusive para ele mesmo, imagino. Mas o divórcio foi validado pelo tribunal, Otávia foi desterrada para a ilha de Pandataria e o fiel Aniceto enviado para a base naval da Sardenha. E Nero logrou sem o auxílio de Séneca compor um eloqüente relato dos acontecimentos para o Senado de Roma e o povo. Neste pronunciamento deixou implícito que Otávia, confiando em Burro, julgara que tinha a Guarda Pretoriana do seu lado. Para conseguir o apoio da marinha, ela seduzira o comandante naval, Aniceto, mas engravidara e, consciente da própria depravação, provocara um aborto criminoso.
Essa declaração soou autêntica aos ouvidos daqueles que não conheciam Otávia pessoalmente. Eu mesmo li-a com espanto, já que estivera presente ao julgamento secreto. Mas compreendi que certo exagero era necessário por causa da popularidade de Otávia no meio da plebe.
A fim de evitar manifestações, Nero mandou imediatamente destruir todas as estátuas de Otávia. Mas o povo recolheu-se a suas casas como se estivesse de luto, e no Senado nem houve quorum, tantos eram os faltosos. Não se travou debate em torno da declaração de Nero, já que não se tratava de projeto de lei mas de simples diretiva do Imperador.
Doze dias depois, Nero casou-se com Popéia Sabina, mas a boda não foi particularmente alegre. Não obstante, os presentes de núpcias encheram uma sala inteira do Palatino.
Como de costume, Nero determinou que se fizesse uma lista cuidadosa dos presentes recebidos e se enfiasse a cada doador uma carta oficial de agradecimento. Correu também o boato de que ele fizera preparar também uma lista especial dos senadores e cavaleiros que não tinham mandado um regalo ou que, pretextando doença, não tinham comparecido às cerimônias. Assim, simultaneamente com as dádivas das províncias, foram chegando os presentes tardios juntamente com muitas explicações e desculpas. O Conselho Judaico de Roma brindou Popéia com cálices feitos de ouro e ornados de uva, no valor de meio milhão de sestércios.
Erigiram-se estátuas de Popéia Sabina, em toda a Roma, em substituição às de Otávia. Tigelino ordenou que os Pretorianos as vigiassem noite e dia, de tal forma que algumas pessoas, desejando inocentemente engrinaldá-las com Coroas de flores, receberam na cara um golpe de escudo ou uma pranchada.
Uma noite alguém cobriu com um saco a cabeça da gigantesca estátua de Nero no Capitólio. A notícia logo se espalhou por toda a cidade e toda a gente compreendeu o que havia por trás disso. De acordo com as leis de nossos antepassados, devem os parricidas ou matricidas ser afogados dentro de um saco ao lado de uma cobra, um gato e um galo novo. Que me conste, foi a primeira vez que alguém deu a entender publicamente que Nero assassinara a própria mãe.
Meu sogro, Flávio Sabino, ficou deveras angustiado com a atmosfera opressiva que pairava sobre Roma. Ao ter conhecimento de que uma cobra viva fora encontrada nos pisos de mármore do Palatino, ordenou que a polícia se mantivesse atenta a todas as manifestações possíveis. Assim é que a esposa de um rico senador foi detida por levar seu gato consigo em seu passeio noturno. Um escravo que carregava um galo para sacrificar no templo de Esculápio a bem da saúde de seu senhor foi açoitado. Isso provocou geral hilaridade, se bem que meu sogro agisse de boa-fé, sem más intenções. Nero, porém, ficou tão contrariado que o destituiu do cargo por algum tempo.
Para todos nós que podíamos raciocinar com frieza era meridianamente clara que a rejeição de Otávia vinha sendo utilizada como pretexto para denegrir de todos os modos o nome de Nero. Popéia Sabina era mais bonita e muito mais inteligente do que a fastidiosa Otávia, embora éste fosse seu terceiro casamento. Mas a velha geração lançava mão de todos os recursos para insuflar o povo.
Na verdade passei muitas vezes a mão pela garganta naqueles dias e imaginei qual seria a sensação de quem é decapitado. Um golpe militar era iminente, porque os Pretorianos não gostavam de Tigelino, o qual juntava à sua baixa extração a circunstância de ter sido negociante de cavalos e mantinha a disciplina impiedosamente. Êle em pouco tempo havia brigado com seu colega de função, Fênio Rufo, e os dois já não podiam permanecer juntos no mesmo recinto. Um, geralmente Rufo, ia embora.
Nós que éramos amigos de Nero, e sinceramente lhe desejávamos bom êxito, reunimo-nos no Palatino em solene conselho.
Tigelino era o mais idoso e o de vontade mais forte. Assim, por mais que o detestássemos, tínhamos de ouvi-lo, e ele falou séria mente com Nero.
— Aqui na cidade — explicou — posso garantir a ordem e a vossa segurança. Mas em Massília encontra-se o exilado Sila, que conta com o apoio de Antônio. É um homem pobre e as humilhações o encaneceram antes do tempo. Sei de fonte segura que ele mantém contactos com os círculos nobres da Gália, formados de pessoas que admiram Antônia, por ter ela um nome eminente e ser filha de Cláudio. As legiões da Germânia estão tão perto que a simples presença de Sila, em Massília, é um perigo para o Estado e o bem comum.
Nero reconheceu a veracidade da informação e disse desalentado:
Não posso imaginar por que ninguém ama Popéia Sabina como eu. No momento ela está numa situação delicada e não devemos expô-la à menor excitação.
Pláucio é um perigo ainda maior para vós — prosseguiu Tigelino. — Foi um grande erro degredá-lo para a Ásia, onde havia bastante encrenca sem ele. Seu avô era um Druso. Quem pode garantir que Córbulo e suas legiões permanecerão leais a vós? Seu sogro, o Senador Lúcio Antístic, mandou para lá um de seus libertos, a fim de intimar Pláucio a tirar o melhor proveito da oportunidade. As minhas fontes são merecedoras de confiança. De mais a mais, é muito rico, e, num homem ambicioso, isto é tão perigoso quando a pobreza.
_ Conheço muito bem a situação na Ásia — intervim. — Soube que Pláucio preza apenas a companhia dos filósofos. O etrusco Musônio, que é grande amigo do célebre Apolônio de Tiana, exilou-se voluntariamente com ele.
Tigelino bateu as mãos em triunfo:
Aí está, meu senhor! Os filósofos são os piores conselheiros quando sussurram suas extravagantes concepções de liberdade e tirania nos ouvidos dos moços.
Quem tem o desplante de sugerir que sou um tirano? — perguntou Nero, indignado. — Dei ao povo mais liberdade do que qualquer outro governante antes de mim. E docilmente submeto todas as minhas propostas à aprovação do Senado.
Trata "nos logo de assegurar-lhe que, no que se referia ao bem estai da nação, ele era o governante mais moderado e mais liberal que se podia imaginar. Mas naquele instante a questão consistia em saber o que era melhor para o Estado, e não havia nada mais terrível do que a guerra civil.
Foi então que Popéia Sabina irrompeu na sala, parcamente vestida, o cabelo solto e as lágrimas banhando-lhe as faces.
Atirou-se aos pés de Nero, esfregou os seios nos joelhos dele e derramou suas lágrimas.
— Não me preocupo comigo mesma — disse ela — nem com minha posição, nem mesmo com o nosso filho que vai nascer. Mas isto diz respeito à tua vida, caríssimo Nero. Confia em Tigelino. Ele sabe o que está dizendo.
O médico de Popéia entrou agitado atrás dela:
_ Há o risco de aborto, caso ela não tenha paz de espírito — disse, procurando brandamente afastá-la de Nero.
_ Como posso ter paz de espírito enquanto aquela mulher asquerosa conspira em Pandataria? — gemeu Popéia. — Ela afrontou o teu leito conjugal, pratica a pior espécie de feitiçaria e tentou várias vezes envenenar-me. Passei hoje a maior parte do dia nauseada, só porque estou assustada demais.
Quem escolhe uma vez o seu caminho não pode mais voltar atrás — disse Tigelino com convicção.—Apelo para a vossa magnanimidade, como amigo vosso, se não pensais em vossa própria vida, Nero. Colocais a nossa vida em perigo com a vossa indecisão. Os primeiros a serem varridos no golpe serão aqueles que fazem votos pelo vosso bom êxito e não procuram apenas a vantagem pessoal, como é o caso de Séneca por exemplo. Diante do inevitável até os deuses se curvam.
Os olhos de Nero encheram-se de lágrimas de tristeza.
— Sede testemunhas — declarou — vós que podeis confirmar que este é o momento mais opressivo da minha vida, quando meus sentimentos pessoais devem ceder o passo ao Estado e ao bem comum. Eu me conformo com o que é politicamente inelutável.
As faces duras de Tigelino se iluminaram e ele ergueu o braço em saudação.
—Agora sois um verdadeiro governante, Nero. Pretorianos de confiança já estão a caminho de Massília. Enviei à Ásia um manipulo completo tendo em mente a possibilidade de resistência armada. Não me era possível suportar a idéia de que os que vos invejam viessem a aproveitar este ensejo de derrubar-vos e prejudicar a pátria.
Em lugar de se enfurecer com essa arbitrariedade, Nero soltou um suspiro de alívio e enalteceu Tigelino, reputando-o por verdadeiro amigo. Depois, distraidamente, perguntou quanto tempo levava um correio para Chegar a Pandataria.
Poucos dias depois Popéia Sabina me disse com ar misterioso:
— Gostarias de ver o melhor presente de núpcias que recebi de Nero?
Conduziu-me a seu quarto, levantou um pano cheio de manchas escuras de cima de uma cesta de salgueiro e mostrou-me a cabeça exangue de Otávia. Apertando seu narizinho encantador, exclamou:
_ Uf! Está começando a cheirar mal e atrair as moscas.
Meu médico mandou que eu jogasse isso fora, mas olhar para este presente de núpcias, de vez em quando, me convence mais do que outra coisa qualquer que eu sou realmente a imperial consorte. Imagina! Quando os Pretorianos foram colocá-la numa banheira quente, para que não sentisse dor na abertura das veias, ela, feito uma menina que acaba de quebrar a boneca, gritou: "Não fiz nada". Afinal, era uma moça de vinte anos. Mas era um pouco retardada. Quem sabe com quem Messalina a concebeu? Talvez simplesmente com o doido do Cláudio.
Nero exigiu que o Senado aprovasse a oferta de ação de graças nos templos do Capitólio por ter sido afastado o perigo que ameaçava o Estado. Doze dias depois, a cabeça precocemente encanecida de Fausto Sila chegou de Massília e o Senado voluntariamente deliberou continuar com a oferta de àção de graças.
Na cidade circulavam insistentes boatos de que Pláucio dera começo a uma rebelião na Ásia. A guerra civil e uma derrota no Oriente eram consideradas tão prováveis que o preço do ouro e da prata principiou a subir e muita gente tratou de vender barato terras e apartamentos urbanos. Aproveitei a ocasião para fazer alguns negócios altamente lucrativos.
Quando por fim chegou da Ásia a cabeça de Pláucio após certa demora causada pelas tempestades, o alívio público foi tão grande que não somente o Senado mas também os particulares fizeram ofertas de ação de graças. Nero tirou o maior proveito da situação e reintegrou Rufo em sua antiga função de Inspetor do Comércio de Cereais e ao mesmo tempo promoveu-o a Procurador dos Silos do Estado. Tigelino joeirou os Pretorianos e reformou diversos antecipadamente, enviando-os para a colônia de veteranos em Puteoli. De minha parte, lucrei pelo menos cinco milhões de sestércios depois desses acontecimentos.
Séneca tomou parte nas procissões festivas e ofertas de ação de graças mas muita gente notou-lhe a falta de firmeza das pernas e o violento tremor das mãos. Já passava dos sessenta e cinco anos e estava bem mais gordo, a cara inchada e as maçãs do rosto azuis. Nero fugia-lhe sempre que era possível e evitava ficar a sós com êle para não ter de ouvir-lhes as censuras.
Mas um dia Séneca solicitou uma audiência especial. Por motivo de segurança, Nero reuniu os amigos à sua volta, esperando que apesar de tudo Séneca não o acusasse em público. Mas Séneca pronunciou um elegante discurso em honra de Nero, elogian-do-lhe a previsão e a decisão com que preservara a pátria dos perigos que a ameaçavam, perigos que os olhos cansados do próprio Séneca não tinham sido capazes de decidir. Após essa reunião, Séneca deixou de receber os que o procuravam, dispensou sua guarda de honra e mudou-se para sua bela quinta à margem da estrada de Preneste. Apresentou como motivo sua saúde precária e explicou que estava ocupado com um tratado filosófico sobre as alegrias da renúncia. Dizia-se que seguia um severo regime alimentar e evitava as pessoas, de modo que não colhia grande prazer de sua imensa riqueza.
A mim concederam a honra inesperada de ser nomeado Pretor Extraordinário na metade de um mandato. Por essa nomeação eu tinha presumivelmente de ser grato à amizade de Popéia, assim como à opinião de Tigelino, segundo a qual eu era um homem de vontade fraca. Inquieto com a atmosfera que os crimes políticos haviam criado e a tensão gerada pela gravidez de Popéia, Nero sentiu a necessidade de aparecer como bom governante, liquidando todos os processos estrangeiros que se tinham acumulado imperdoàvelmente no Pretório.
Creio que a autoconfiança de Nero encontrou reforço num augúrio inopinado. Durante um súbito temporal, um raio derrubou-lhe da mão um cálice de ouro. Não me parece que o raio tenha de fato atingido o cálice, mas provavelmente caiu tão perto de Nero que o cálice lhe escapou da mão. A ocorrência foi abafada, mas logo se difundiu pela cidade e foi naturalmente interpretada como um mau presságio.
No entanto, de acordo com a antiga tradição etrusca, uma pessoa que é atingida pelo raio e não perece é santa e consagrada aos deuses. Nero, que acreditava piamente em augúrios, passou seriamente a se julgar um homem virtuoso e tentou por algum tempo comportar-se como tal, enquanto os assassínios políticos ainda lhe oprimiam a consciência demasiado sensível.
Quando assumi meu posto no Pretório, Tigelino pôs à minha disposição uma sala atulhada de documentos empoeirados. Todos eram processos em que cidadãos romanos residentes no exterior apelavam para o Imperador. Tigelino separou alguns.
— Recebi dádivas consideráveis para apressar estes aqui — disse êle. — Prepare-os em primeiro lugar. Escolhi-o para ajudar porque você mostrou certa flexibilidade em questões complicadas e urgentes e também porque é tão rico que ninguém duvida de sua integridade. As outras opiniões manifestadas sobre você no Senado quando da sua nomeação não foram lisonjeiras. Cuide então para que a fama da nossa integridade se espalhe por todas as províncias. Se lhe oferecerem dádivas, recuse-as, embora sugira que eu, como Prefeito, talvez possa dar andamento mais rápido ao caso. Mas lembre-se de que não se pode comprar, em nenhuma hipótese, o veredicto final do Pretório. Só Nero pronuncia a sentença, guiado por nosso parecer.
Voltou-se para sair, mas acrescentou:
— Há dois anos mantemos preso um mágico judeu. Ele deve ser solto, porque, durante a gravidez, Popéia não pode ficar exposta a feitiçarias. Popéia protege demais os judeus. Eu mesmo não quero encontrar esse homem. Ele já enfeitiçou vários Pretorianos encarregados de vigiá-lo, de tal maneira que eles agora são inúteis como guardas.
Minha tarefa não era tão difícil como eu a princípio pensara Os processos, em sua maioria, vinham do tempo de Burro e já estavam instruídos com pareceres de um jurista mais culto do que eu. Depois da morte de Agripina, Nero passara a evitar Burro e empurrava os autos para um lado, a fim de o tornar alvo da insatisfação geral motivada pela lentidão da demanda.
Tangido pela curiosidade, examinei imediatamente os papéis relacionados com o mágico judeu. Vi com surpresa que diziam respeito a meu velho conhecido Saulo de Tarso. Era acusado de ultrajar o templo de Jerusalém, e, a julgar pelos documentos, fora preso lá quando Félix perdera o cargo por ser irmão de Palas. O novo Procurador Festo mandara Paulo para a prisão de Roma e vi que realmente já haviam decorrido dois anos.
Apesar disso, obtivera permissão para viver livremente na cidade, conquanto pagasse a sua guarda, e no meio dos papéis havia uma declaração de Séneca recomendando que o soltassem. Não sabia que Paulo era bastante rico para dirigir um apelo ao Imperador.
Ao cabo de dois dias eu havia classificado certo número de casos em que Nero podia fazer praça de sua moderação e generosidade, mas com meu conhecimento de Saulo-Paulo, achei mais prudente visitá-lo antecipadamente em sua residência, a fim de que no tribunal imperial não cometesse êle o erro de desperdiçar o tempo de Nero com falatório desnecessário. Sua libertação já estava decidida.
Paulo vivia confortavelmente em dois cômodos que alugara na casa de um comerciante judeu de artigos de fantasia. Envelhecera consideravelmente. Tinha o rosto cheio de rugas e estava ainda mais calvo do que antes. Segundo os regulamentos, estava, naturalmente, a ferros, mas sua dupla guarda de Pretorianos permitia-lhe cuidar de si mesmo, receber convidados e expedir cartas para onde quisesse.
Partilhava a morada com dois discípulos e também tinha seu próprio médico, um judeu chamado Lucas, de Alexandria. Pelo que pude entender, Paulo estava bem de vida, uma vez que podia fazer face à despesa com alojamentos tão cômodos e guardas benevolentes, em lugar das malcheirosas celas comuns da prisão pública. O pior cárcere, o de Mamertino, estava fora de cogitação, visto que Paulo não era um criminoso político.
Nos autos êle era naturalmente chamado Saulo, que era seu nome legal, mas para colocá-lo num estado de espírito amistoso, tratei-o de Paulo, quando o saudei. Ele me reconheceu, de imediato, e respondeu a meu cumprimento com tanta familiaridade que achei melhor mandar para fora da sala o escrivão e os dois lictores que me acompanhavam, a fim de não me tornar suspeito aos olhos do tribunal.
— Seu caso está sendo examinado — disse-lhe eu. — Será julgado dentro de alguns dias. O Imperador está de bom humor nestes dias que antecedem o nascimento de seu herdeiro. Mas domine-se quando aparecer diante dele.
Paulo sorriu com aquele sorriso de quem resistiu a todas as provações.
— Tenho de pregar a boa mensagem — disse êle — quer o momento seja propício, quer não.
Por curiosidade perguntei por que os Pretorianos o consideravam um mágico. Contou-me a longa história do naufrágio que êle e seus companheiros sofreram a caminho de Roma. O médico Lucas concluiu a narrativa quando Paulo se cansou. Paulo afiançou-me que a acusação de ultrajar o templo de Jerusalém era falsa e infundada, ou pelo menos resultante de um equívoco. O Procurador Félix tê-lo-ia soltado sem vacilar se Paulo tivesse concordado em pagar o suficiente.
Dos romanos só podia falar bem, pois, ao removerem-no de Jerusalém para Cesaréia, eles lhe tinham salvo a vida. Quarenta judeus fanáticos haviam jurado não comer nem beber enquanto não o tivessem liquidado. Mas era improvável que tivessem morrido de fome, disse Paulo com um sorriso e sem rancor. Na verdade, era grato a seus guardas, pois receava que de outro modo os judeus ortodoxos de Roma o assassinassem.
Assegurei-lhe que os seus temores eram insubsistentes, pois durante o reinado de Cláudio os judeus tinham recebido uma advertência bastante severa e agora evitavam a violência contra os cristãos dentro dos muros da cidade. Cefas também exercera influência apaziguadora em Roma e persuadira os cristãos a que se afastassem dos judeus. Também acrescentei que isso fora facilitado pelos partidários de Jesus de Nazaré, que se tinham agora, graças a Cefas, multiplicado consideravelmente e contavam com pouquíssimos judeus circuncisos.
Tanto o médico Lucas quanto Paulo não pareceram gostar da referência a Cefas. Este revelara extraordinária boa-vontade para com o prisioneiro e oferecera os serviços de seu melhor discípulo e intérprete grego, Marcos. Era evidente que Paulo abusara dessa confiança e despachara Marcos com cartas para as longínquas assembléias que havia fundado e para as quais olhava como o leão olha para a sua presa. Por isso provavelmente é que Cefas não via com bons olhos a ida dos cristãos do seu rebanho às reuniões em que Paulo transmitia sua complicada doutrina.
Lucas contou-me que passara dois anos inteiros viajando pela Galileia e Judeia, colhendo informações sobre a vida de Jesus de Nazaré, seus milagres e ensinamentos, das pessoas que o tinham ouvido. Tomara minuciosos apontamentos de tudo em aramaico e estava pensando seriamente em redigir em grego seu relato da vida de Jesus para provar que Paulo conhecia tudo tão bem quanto Cefas. Um grego rico chamado Teófilo, que Paulo convertera ao cristianismo, já prometera publicar o livro.
Pelo que pude perceber, eles recebiam valiosas dádivas das assembléias cristãs de Corinto e Ásia, as quais eram ciosamente defendidas por Paulo dos judeus ortodoxos e de outras seitas surgidas entre os cristãos. Vi que êle dedicava seu tempo a endereçar-lhes cartas admoestadoras, já que não tinha muitos adeptos em Roma.
Também tive a impressão de que êle gostaria de permanecer em Roma depois de sair da prisão, mas eu estava bem a par dos intermináveis distúrbios que ocorriam onde quer que êle aparecesse. Dando-lhe a liberdade, que decerto lhe seria concedida, eu também estaria atraindo sobre minha cabeça a ira dos judeus, e os desunidos cristãos brigariam entre si se êle ficasse na cidade. Por isso fiz uma cautelosa sugestão:
— Não há lugar para dois galos no mesmo terreiro. Para o seu próprio bem e também para o meu, o melhor seria que saísse de Roma tão logo fosse solto.
O rosto de Paulo se anuviou, mas êle admitiu que Cristo o transformara num eterno andarilho, sem direito a permanecer muito tempo num só lugar. Assim, para êle, sua prisão fora uma fase de provação. Cabia-lhe converter todos em discípulos de Cristo e pensava agora em ir para a província de Bética na Ibéria, como antes planejara. Havia ali várias cidades portuárias de origem grega, nas quais o grego era a língua principal. Instei-o a viajar ate a Bretanha, se fosse necessário.
Mas naturalmente, a despeito de meu bem-intencionado pedido, Paulo foi incapaz de ficar calado quando foi posteriormente conduzido à presença de Nero no Pretório. Nero estava de bom humor e, logo que avistou Paulo, exclamou:
_ O prisioneiro é judeu, não é verdade? Então devo liberta-lo. Senão, Popéia ficará com raiva. Ela está em seu último mes e respeita o deus dos judeus mais do que nunca.
Nero permitiu benignamente que se usasse a clepsidra para medir a extensão do discurso de defesa e depois deixou-se absorver completamente nos autos dos processos que iam seguir-se. Paulo julgou-se feliz por ter esta oportunidade de refutar todas as acusações e pediu a Nero que o escutasse com paciência, desde que os costumes e as disputas religiosas dos judeus talvez não lhe fossem familiares. Começou por Moisés e também narrou a história de sua própria vida, descrevendo como Jesus de Nazaré lhe aparecera sob a forma de Cristo depois que êle, Paulo, estivera perseguindo o santo Jesus.
Passei discretamente às mãos de Nero um parecer que o Procurador Festo anexara aos autos, no qual explicava que pessoalmente considerava Paulo um louco inofensivo a quem o estudo demasiado deixara de juízo fraco. O Rei Herodes Agripa, que entendia melhor as crenças dos judeus, também dera a entender que Paulo devia ser solto. Nero fêz um sinal afirmativo com a cabeça, fingindo escutar, embora me parecesse que êle não compreendia uma palavra do que Paulo dizia.
— Assim, eu não podia deixar de obedecer à visão celestial — Paulo repetiu. — Ah, se pelo menos vossos olhos pudessem abrir-se e vós pudésseis sair da treva para a luz e do reino de Satã para o reino de Deus Se acreditásseis em Jesus de Nazaré, os vossos pecados vos seriam perdoados e compartilharíeis da herança dos Santos.
Naquele momento a clepsidra tilintou e Paulo teve de parar.
— Meu bom homem — disse Nero, com firmeza — não desejo de modo algum que me incluas em teu testamento. Não pretendo adquirir a herança de outros. O que dizem por aí não passa de calúnia. Podes contar isso aos outros judeus também. Pres-tar-me-ias um serviço se te desses o trabalho de orar ao teu deus por minha mulher Popéia Sabina. A pobre parece depositar grande confiança no mesmo deus de que acabas de me falar de modo tão persuasivo.
Ordenou que removessem as algemas de Paulo e disse que as enviassem como oferenda votiva ao templo de Jerusalém, evidenciando assim a boa-vontade do Imperador para com a fé judaica. Imagino que os judeus devem ter ficado irritados. Pelos custos do processo, foi responsável o próprio Paulo, na qualidade de recorrente.
Em poucos dias despachamos uma pilha enorme de processos atrasados. Quase todos os veredictos foram de absolvição. Os únicos casos maus foram aqueles em que Tigelino achou financeiramente vantajoso que o réu morresse de velhice antes de se proferir a sentença. Dois meses depois fui liberado do encargo de Pretor, minha diligência e incorruptibilidade foram elogiadas em público e já não era tão insultado pelas costas como antes.
O processo de Paulo não teve maior importância, mas o julgamento tornou-se historicamente significativo, em virtude do assassínio de Pedano Secundo, que repercutiu enormemente em toda a Roma.
Apenas dois meses depois fora êle abatido brutalmente, com uma adaga, por um dos seus escravos, quando estava deitado na cama. Nunca se descobriu o motivo real do homicídio, mas posso dizer honestamente que não acredito que meu sogro estivesse envolvido.
Nossas antigas leis preceituam que quando um escravo mata seu senhor, todos os escravos que vivem sob o mesmo teto hão de perecer. Esta é uma lei necessária, ditada pela experiência de séculos e pelas exigências de segurança pública. Mas Pedano tinha mais de quinhentos escravos em sua casa, e o povo começou a protestar e impedir a passagem deles para o local da execução. Foi preciso convocar o Senado para tratar do assunto. A coisa mais assombrosa, e também a prova mais clara da decadência dos nossos costumes, foi a atitude de vários senadores que quiseram decididamente obstruir a lei neste caso. Diversos amigos de Séneca declararam alto e bom som que, em sua opinião, um escravo era também um ser humano e que não seria justo punir os inocentes ao lado dos culpados. O Senador Pudeus e meu pai ergueram se e opuseram-se a tal crueldade. O escravo chegou mesmo a ser desculpado, a pretexto de que não fizera senão vingar velhas injustiças.
Foi dito então, e com certo fundamento, que, a prevalecer esse ponto de vista, quem haveria de se sentir seguro dentro de casa se os escravos de Pedano fossem perdoados? Nossos antepassados tinham estatuído as leis e tinham, com boa razão, duvidado até dos escravos nascidos na casa e afeiçoados a seus amos desde a infância. À época havia também escravos oriundos de povos totalmente distintos, com hábitos exóticos e deuses estranhos.
Então, pela primeira vez, divulgou-se abertamente a existência, no próprio Senado, de homens que, em segredo, se tinham bandeado para uma religião alienígena e tratavam de, naquele instante, defender seus colegas de crença. Na votação, para felicidade de Roma, os partidários da lei saíram vitoriosos.
A multidão que se formara em torno da Casa de Pedano muniu-se de pedras e ameaçou atear fogo ao prédio. Foi necessário chamar os Pretorianos em auxílio da polícia urbana, e Nero lançou uma proclamação severa. Uma dupla fileira de soldados flanqueou as ruas por onde os quinhentos foram levados para o local da execução.
Atiraram-se pedras e gritaram-se insultos, mas não se registrou verdadeiro motim. Parece que numerosos escravos de Pedano eram cristãos, pois outros cristãos misturaram-se à turba, prevenindo o povo contra a violência e explicando que sua doutrina não permitia responder ao mal com o mal.
Um bom efeito de tudo isso foi que meu sogro Flávio Sabino recuperou seu posto de Prefeito. O Senado e o povo ganharam outro tópico de conversação: a gravidez de Popéia começou a suscitar certa compaixão entre as pessoas sentimentais.
Nero queria que seu filho nascesse no Âncio, onde êle mesmo nascera. Talvez imaginasse que tão venturoso acontecimento limparia a propriedade que herdara de Agripina de suas tristes recordações. Sem dúvida considerava Roma no calor do verão e com aqueles inúmeros odores um lugar insalubre para o parto.
Antes -que Popéia fosse para o Âncio, tive o prazer de vê-la outra vez. A gravidez não lhe estragara a beleza, e os olhos tinham um brilho suave que lhe conferia uma expressão doce e feminina.
É verdade — disse eu, cauteloso — que começaste a adorar o deus judaico? É o que dizem em Roma. Conta-se que levaste Nero a proteger os judeus à custa de outros.
Deves admitir — respondeu Popéia — que a profecia judaica se cumpriu. Quando as coisas me eram mais desfavoráveis, prometi, a fim de assegurar minha posição, respeitar sempre o deus deles, que é tão poderoso que não possui sequer uma imagem. E Moisés também. Eu nem me atreveria a ir para o Âncio dar à luz o nosso filho, se não levasse comigo um médico judeu. Levarei também várias sábias anciãs judaicas e, naturalmente, um médico formado na Grécia e em Roma, por questão de segurança.
Ouviste falar de Jesus de Nazaré também? O Rei dos judeus?
Sei que há diversos tipos de homens santos entre os judeus — disse Popéia. — Eles têm leis rigorosas, mas uma mulher devota, na minha situação, não tem de se preocupar tanto com as leis, desde que reconheça Moisés e não beba sangue.
Compreendi que suas idéias acerca da fé judaica eram tão vagas como as da maioria dos romanos, que simplesmente não podiam conceber um deus sem uma imagem. Tirei um peso do coração. Se Popéia tivesse sabido que os judeus odiavam Paulo como se odeia a peste, dificilmente teria agradecido a Nero e a mim por termos libertado Paulo, dando assim a este a ocasião de continuar a semear amargas dissensões entre os judeus.
Popéia foi então para o Âncio e fiz votos para que lhe nascesse logo o filho, pois Nero era um companheiro exigente naquele período de espera. Quando cantava, fazia questão de receber congratulações. Quando guiava seu carro, queria que lhe elogiássemos a habilidade. Reiniciou, em segredo, os encontros com Acte e manteve relações temporárias com senhoras nobres que não eram muito escrupulosas quanto à santidade do matrimônio. Tigelino apresentou-o a seus meninos favoritos. Quando discutimos este ponto, Nero salientou o exemplo dos gregos e justificou as ações que praticava.
— No momento em que o cálice tombou da minha mão — argumentou — eu me tornei um homem santo. Foi um anúncio de que serei proclamado deus após a minha morte. Os deuses são bissexuados. Não me sentiria totalmente divino se não pudesse amar bonitos rapazes por divertimento. De qualquer modo, Popéia prefere ver-me às voltas com rapazes, se não há outro jeito, a ver-me ligado a mulheres ambiciosas. Acha que assim não precisa ter ciúmes, nem receio de que eu emprenhe alguma outra, por engano.
Eu raramente via meu filho Jucundo. Barbo mudara-se da minha casa para a de Túlia, uma vez que se considerava o mentor do menino. Isto era necessário, porque Túlia mimava Jucundo e consentia que êle fizesse tudo quanto lhe vinha à cabeça. O garoto foi ficando cada vez mais estranho para mim.
Sabina só me tolerava em casa quando precisava de dinheiro. O pequeno Lauso era um desconhecido. Surpreendentemente, tinha a pele escura e o cabelo crespo. Eu não sentia desejo algum de o tomar nos braços e brincar com êle. Sabina acusava-me de ser um pai desnaturado.
Comentei que o menino parecia ter um número mais do que suficiente de pais com quem brincar entre os domadores. E não estava mentindo. Se, por acaso, eu exprimia o desejo de ver o pequeno, logo aparecia Epafrodito, para demonstrar até onde ia a preferência de Lauso por êle. Sabina empalideceu de raiva e exigiu que, pelo menos na presença de outras pessoas, eu não fizesse gracejos tão inconvenientes.
Ela tinha seu círculo de amigas entre as senhoras nobres que levavam os filhos para ver os bichos e as ousadas proezas dos domadores. Era moda nas casas nobres criar gazelas e leopardos, e eu tinha muitas dores de cabeça com trapaceiros desavergonhados que infringiam meus direitos de exclusividade e importavam esses animais, para vendê-los na cidade a preços mais baixos. Selvagens sabujos bretões eram também trazidos para Roma e eu obtinha bom dinheiro por seus filhotes.
Afinal Popéia deu à luz uma linda menina e Nero ficou tão contente como se tivesse sido um varão. Êle cumulava Popéia de presentes e comportava-se sob todos os aspectos como um jovem pai estonteado de felicidade.
O Senado deslocou-se em peso para o Âncio, a fim de apresentar suas congratulações, como fizeram todos os que se julgavam importantes em Roma. Os barcos fluviais e os navios de Ostia estavam apinhados. A péssima estrada que liga Arícia ao Âncio estava tao atravancada de veículos e cadeirinhas que o trânsito se tornava intoleravelmente vagaroso. Um dos meus libertos ganhou uma fortuna, com o estabelecimento de pousadas e casas de pasto ao longo do trajeto.
A recém-nascida recebeu o nome de Cláudia e também o nome honorífico de Augusta. Na cerimônia do cálice de vinho, algum ingênuo achou de sugerir que se conferisse idêntica honraria a Popéia Sabina e ninguém ousou protestar, uma vez que Nero estava presente. Popéia Sabina enviou alguns objetos sacros de ouro, como oferenda de ação de graças, ao templo de Jerusalém, e a seu médico judeu foi concedida a cidadania romana.
De minha parte, eu me tinha preparado com bastante antecedência. Nos dias de ação de graças, organizamos uma exibição tão espetacular de combates de animais no teatro de madeira que aos olhos do povo excedeu em brilho, pelo menos por aquela vez, as corridas do grande circo, malgrado seja eu quem o diga aqui. As Virgens Vestais abrilhantaram meus espetáculos, com sua presença, e ouvi muita gente dizer que eu havia feito do adestramento de animais selvagens uma verdadeira arte.
Sabina, em traje de amazona, deu voltas na arena, conduzindo um carro dourado, puxado por quatro leões, e recebeu, em meu nome, o aplauso irresistível dos espectadores. Com tremenda dificuldade, eu conseguira alguns gigantescos macacos peludos para substituir os que tinham morrido. Adquiri-os quando eram bem pequenos e arranjei,, para criá-los e exercitá-los, uns anões de pele amarelada que, na misteriosíssima África, convivem com tais monos.
Esses macacos sabiam usar pedras e porretes quando lutavam entre si. Os mais dóceis estavam vestidos como gladiadores, e alguns espectadores os tomaram por homens e não animais. Houve por isso nas arquibancadas discussões sérias, que redundaram em briga na qual um cidadão perdeu a vida e uns dez ou mais ficaram feridos. Assim, no conjunto, o espetáculo alcançou o maior êxito que se pudesse desejar.
Desta vez me foi, afinal, ressarcido o dinheiro que eu havia empregado. Séneca já não voltava seu olho sovina para o tesouro do Estado e Nero não só não entendia de finanças como também não estava inteiramente seguro da diferença entre o erário e a bolsa do Imperador. Assim, onerei os dois e, com o auxílio dos meus libertos, inverti o dinheiro em apartamentos em Roma e terras em Cere.
Mas a felicidade de Nero como pai não durou muito. O outono era úmido e o Tibre cresceu assustadoramente; seus vapores venenosos espalharam pela cidade inteira uma infecção de garganta que não era fatal para os adultos, mas matava crianças em massa.
Até o próprio Nero adoeceu. Pegou uma rouquidão tal que não podia dizer uma palavra e receou não voltar nunca mais a cantar. Em todos os exemplos, por iniciativa do Estado e dos particulares, fizeram-se sacrifícios expiatórios em intenção de sua voz. Mas, quando êle mal começava a melhorar, sua filha caiu doente e morreu ao fim de alguns dias, apesar dos esforços dos médicos e das orações dos judeus. Popéia, acometida de insónia e atordoada pelo desgosto, acusou Nero de passar o tempo todo abraçando e beijando a criança, embora estivesse com a garganta inflamada.
Nero deixou-se dominar pela impressão supersticiosa de que os sacrifícios públicos e privados não tinham sido suficientes para aplacar os deuses e poupar-lhe a voz. Os deuses exigiram-lhe também a filha. Isto lhe reforçou a convicção de que estava fadado a tornar-se o maior artista do seu tempo, o que bastou para lhe mitigar a aflição.
O Senado, pesaroso, conferiu de imediato a dignidade de deusa a Cláudia Augusta, com o concomitante coxim em suas exéquias. Deliberou também erigir um templo em homenagem a ela e criou um colégio pontifício encarregado do culto. Nero convenceu-se intimamente de que era, na realidade, sua voz que devia ser adorada no novo templo e que os sacrifícios haveriam de torná-la ainda mais notável.
Assim, os novos pontífices foram incumbidos de um rito especial e secreto, além dos sacrifícios oficiais, que não podia ser revelado aos não-iniciados. Na verdade, a voz de Nero tornou-se muito mais forte, exatamente como se tornara após a morte de Agripina, e agora soava simultaneamente vibrante e doce como mel, comovendo profundamente os ouvintes. Eu mesmo não me comovia profundamente quando o ouvia, mas limito-me a repetir aqui o que lhe asseguravam juízes mais Competentes do que eu.
Nero engordou e deixou que se lhe dilatassem as bochechas e o queixo, quando lhe disseram que as mais possantes vozes de tenor necessitavam de carne abundante em cima dos ossos para suportar o violento esforço exigido pelo canto. Popéia não ocultava sua alegria por vê-lo gastar o tempo exercitando a voz, o que era preferível a atividades mais dissolutas.
Depois da morte da filha, Nero consagrou todo o inverno à educação das cordas vocais, a tal ponto que os assuntos do Estado passaram a representar para êle uma preocupação inútil. Faltava as sessões do Senado porque temia resfriar-se no piso gelado da Cúria. Quando comparecia a uma sessão, vinha geralmente a pe e com os pés embrulhados em lã, e erguíase sempre humildemente de seu lugar, quando o Cônsul lhe dirigia a palavra. Após o primeiro espirro, ia embora apressado, deixando às comissões do Senado a solução de importantes problemas.
Um dia, no inverno, pouco depois da comemoração das Saturnais, Cláudia disse que precisava ver-me, pois tinha um assunto importante a discutir a sós comigo. Ao concluir os negócios diários com meus clientes e libertos, convidei-a a entrar em minha sala, temendo que mais uma vez ela começasse a tagarelar sobre arrependimento e batismo cristão.
Mas Cláudia torcia as mãos:
— Ah, Minuto, sou presa de sentimentos contraditórios. Sou arremessada de um lado para outro e sinto-me como um pedaço de barbante machucado. Fiz uma coisa que não tenho coragem de lhe contar. Mas olhe primeiro para mim. Acha que mudei em alguma coisa?
Para ser sincero, ela me era às vezes tão repugnante, por causa de sua garrulice intolerável e de sua erudição cristã, que eu não tinha vontade de encará-la. Mas encorajado por sua submissão, fitei-a um pouco mais detidamente e vi com surpresa que a crestadura dos seus dias de cativeiro tinha desaparecido da pele macia do seu rosto. Estava bem vestida e tinha o cabelo penteado pela última moda grega.
Espantado, bati palmas e gritei num tom de autêntica lisonja:
— Com essa aparência e esse magnífico porte, você está igual às mais nobres damas romanas. Desconfio de que lava o rosto com leite de jumenta às escondidas.
Cláudia corou profundamente:
Não é por vaidade que cuido da aparência — apressou-se a dizer — mas porque você me confiou a administração de sua casa. A modéstia e a simplicidade são os melhores adornos de uma mulher mas os seus clientes e os vendedores da Basílica não querem acreditar nisso. Mas me responda: você vê qualquer semelhança com o Imperador Cláudio no meu rosto?
Não, claro que não — disse eu, imediatamente, para sossegá-la. — Nem se preocupe com isso. O aspecto do velho Cláudio não tinha nada de que um homem pudesse vangloriar-se. Mas você se tornou uma linda mulher, especialmente agora que desbastou as sobrancelhas.
Era evidente que as minhas palavras a tinham desenganado:
—Você está errado, garanto. Tia Paulina e eu fomos às ocultas ver minha meia-irmã mais moça, Antônia, por compaixão para com sua solitária existência. Cláudio mandou matar-lhe o primeiro marido e Nero o segundo, e agora que ela voltou de Massília, ninguém se atreve a ser visto a seu lado. Os sofrimentos ensinaram-na a ver as coisas agora sob outro prisma. Ela nos ofereceu hidromel e torta de frutas e me deu uma rede de ouro para o cabelo. Nas circunstâncias atuais, talvez ela esteja disposta a reconhecer-me legalmente como sua irmã. Ela e eu somos os únicos remanescentes da família Cláudio.
Fiquei apavorado ao ver que, em razão de suas ambições femininas, ela continuava apegada a honrarias imaginárias. Cravou em mim seus olhos estranhamente brilhantes, suspirando tão intensamente que o seio redondo se empinava, e segurou minha mão nas suas. Recuei alarmado:
Que é que você quer realmente, desventurada Cláudia?
Minuto, você mesmo deve saber que sua vida não pode continuar como tem sido até aqui. Seu casamento com Sabina não é um verdadeiro casamento. Você é idiota, se ainda não percebeu isso. Roma inteira ri dessa situação. Em sua juventude, você me fêz certa promessa. Agora que é um homem feito, a diferença dc idade entre nós não é mais tão grande como então parecia. Na verdade, quase não se nota. Minuto, é preciso que você se separe de Sabina, em benefício de sua própria posição.
Senti-me como um animal bravio encurralado num canto da jaula e ameaçado por ferros em brasa:
— Você não está falando sério. A superstição cristã está lhe alvoroçando o juízo. Há muito tempo que venho receando isso.
Cláudia encarou-me:
— O cristão tem de evitar toda vida superficial. Mas dizem que o próprio Jesus de Nazaré afirmou que o homem que olha para uma mulher com desejo comete adultério com ela, em seu coração. Soube disso recentemente. Esse conhecimento é como uma ferida supurando em meu coração, pois entendo que também se aplica a uma mulher. Por isso, a minha vida está se tornando intolerável. Vejo você todos os dias e não posso vê-lo sem sentir desejo em meu coração. À noite, eu me viro para um lado e outro da cama, sem parar, e mordo o travesseiro, consumida de desejo ardente.
Não pude deixar de me envaidecer com suas palavras. Mirei-a com outros olhos:
— Por que não disse isso antes? Por compaixão, eu teria ido dormir com você uma noite. Mas tal pensamento nunca me ocorreu, por causa de sua atitude desagradável.
Cláudia meneou a cabeça violentamente:
—Não preciso de sua compaixão. Eu estaria cometendo um pecado se fosse para a cama com você, sem os laços matrimoniais. Sugerir tal coisa mostra até que ponto seu coração está empedernido e o pouco valor que dá a mim.
O pudor não me permitia fazê-la recordar quão baixo ela tinha descido, no momento em que eu a descobrira, e suas idéias eram tão tresloucadas que emudeci pelo espanto.
Antônia — continuou — faria o juramento mais sagrado, diante das Vestais, de que eu sou filha legítima de Cláudio e do mesmo sangue dela. É quase certo que está com vontade de fazê-lo. nem que seja só para irritar Nero. Então, um casamento comigo não representaria uma indignidade para você. Se tivéssemos um filho, as Vestais atestariam que era de ascendência nobre. E, se a situação mudar, um filho nosso poderia ocupar o mais alto cargo de Roma. Antônia está muito triste, por não ter tido filhos dos
seus dois casamentos.
— Como pode uma árvore morta dar novos rebentos?
gritei. — Lembre-se do que sofreu.
— Não há nada de errado em minha condição de mulher — disse Cláudia indignada. — Meu corpo me diz isso todos os meses. Você sabe que estou purificada do meu passado. Não se convence disso porque não quer.
Quando tentei fugir da sala, Cláudia me agarrou e não sei como chegamos a tocar-nos enquanto lutávamos, mas as velhas mágoas estimulam e fazia muito tempo que eu não dormia com uma mulher. Em poucos segundos, estávamos nos beijando, e logo que me teve em seus braços, Cláudia perdeu completamente o domínio de si mesma. Depois, caiu em pranto, é verdade, mas não me largou.
— Minha falta de virtude mostra que sou do sangue depravado de Cláudio — disse ela — mas agora que você mais uma vez me fez pecar, me deve uma satisfação. Se é homem mesmo, vá procurar Sabina, imediatamente, e lhe proponha divórcio.
Mas tenho um filho com ela — redargui. — Os Flávios nunca me perdoariam. O pai de Sabina é o Prefeito da Cidade. Minha posição seria insustentável, em todos os sentidos.
Não quero difamar Sabina — disse Cláudia, tranqüilamente — mas há cristãos, entre os empregados da casa dos bichos, e o comportamento licencioso de Sabina é objeto de comentário geral.
Tive de rir:
Sabina é uma mulher fria e assexuada. Ninguém sabe disso melhor do que eu. Não, eu jamais encontraria uma razão defensável para divórcio, já que ela não quer nem saber se eu me satisfaço com outras mulheres. E, acima de tudo, sei que ela nunca se separaria dos leões. Gosta mais deles do que de mim.
Mas nada impede que ela continue lá — disse Cláudia. — Tem a casa dela, que é lá mesmo, e onde você raramente vai. Podem ser amigos, ainda que separados. Diga a ela que você sabe de tudo, mas quer um divórcio sem escândalo público. O menino pode conservar o seu nome, já que você o legitimou, num momento de fraqueza, e agora não pode voltar atrás.
Está querendo insinuar que Lauso não é meu filho? Nunca pensei que você fosse tão mesquinha. Onde está a sua boa vontade cristã?
Cláudia perdeu a calma completamente:
— Todo mundo em Roma sabe que éle não é seu filho. Sabina dorme com domadores e escravos e provavelmente com os macacos também, e ainda envolve outras damas nobres em sua depravação. Nero ri de você, às escondidas, para não falar dos outros belos amigos seus.
Apanhei minha toga do chão, embrulhei-me nela e arrumei as dobras tão cuidadosamente quanto me permitiam as mãos trêmulas de raiva:
— Só para mostrar a você o quanto vale a sua maldade, vou falar com Sabina. Depois voltarei e mandarei dar uma surra em você, por ser péssima dona de casa e uma bisbilhoteira peçonhenta. Poderá ir para junto dos seus cristãos nos mesmos trapos de escrava com que entrou aqui.
Saí correndo para a casa dos bichos com a toga adeiando no ar, como se me perseguissem as fúrias. Não vi as multidões nas ruas, nem respondi aos cumprimentos. Não me fiz sequer anunciar à minha mulher, mas embarafustei por seu quarto a dentro, sem nem prestar atenção aos esforços que faziam os escravos para me deter.
Sabina livrou-se dos braços de Epafrodito e investiu para mim, rugindo feito uma leoa, os olhos faiscando:
Isso são modos, Minuto! Perdeu o que ainda lhe restava de juízo? Bem viu que eu estava apenas tirando um cisco do olho de Epafrodito, com a língua. Êle está meio cego e não pode começar a domar o leão que acabamos de receber da Numídia.
Vi com meus próprios olhos, que era mais provável que êle estivesse olhando para um certo lugar em você. Vá buscar minha espada que quero matar este escravo descarado que cuspiu em meu leito conjugal.
Escondendo a nudez, Sabina correu a fechar a porta e mandar embora os escravos:
— Você sabe que sempre vestimos o mínimo possível, quando estamos praticando. Vestes soltas só fazem exasperar os leões. Você viu mal. Deve pedir perdão a Epafrodito, imediatamente, por tê-lo chamado de escravo. Há muito tempo que êle recebeu o bastão de liberto, e a cidadania romana também, da mão do próprio Imperador, por suas proezas no anfiteatro.
Apenas meio convencido, continuei a pedir com gritos estridentes a minha espada.
— Exijo aqui e agora uma explicação para os boatos que circulam em Roma a seu respeito. Amanhã apelarei ao Imperador, para obter um divórcio.
Sabina enrijeceu-se e olhou significativamente para Epafrodito:
— Estrangule-o — disse ela, com frieza. — Depois o enrolaremos num cobertor e o levaremos para as jaulas dos leões. Não é êle o primeiro a sofrer acidente ao brincar com os leões.
Epafrodito aproximou-se, com os punhos enormes estendidos. Era de compleição vigorosa e uma cabeça mais alto do que eu. No meio de minha virtuosa raiva, comecei a temer seriamente por minha vida.
Ora vamos, Sabina, não me interprete mal — apressei-me a dizer. — Por que iria eu insultar o pai de meu filho? Epafrodito é um cidadão, um indivíduo da minha categoria. Resolvamos isto entre nós. Estou certo de que nenhum de nós deseja um escândalo público.
Sou um homem rude — disse Epafrodito, apaziguador — mas não quero realmente matar seu marido, Sabina. Ele sempre fez vista grossa para as nossas relações e é provável que tenha motivos para querer o divórcio. Você mesma suspirou muitas vezes pela liberdade. Portanto, seja sensata agora, Sabina.
Mas Sabina escarneceu dele:
— Seus joelhos estão tremendos, diante de um inválido escalavrado como este? Um homenzarrão como você! — disse ela com desprezo. — Valha-nos Hércules! Não vê que seria melhor estrangulá-lo simplesmente e herdar tudo o que êle possui, do que viver na miséria por causa dele?
Epafrodito evitou o meu olhar e cuidadosamente agarrou-me o pescoço, num aperto tão forte que era inútil lutar. Minha voz sumiu e tudo começou a flutuar ante a minha vista, mas procurei dar a entender que desejava negociar com eles, por qualquer preço, a minha vida. Epafrodito afrouxou os dedos.
— Naturalmente, você pode ficar com seus bens e com seu posto na casa dos bichos — consegui resmungar — se nos separarmos como pessoas sensatas. Minha querida Sabina, perdoe este meu temperamento arrebatado. Seu filho conservará meu nome e receberá, no devido tempo, seu quinhão da herança. Em nome do amor que outrora nos ligou, não desejo vê-la culpada de um crime, pois de uma forma ou de outra você seria denunciada. Mandemos buscar vinho e celebremos a reconciliação com uma refeição juntos, você, eu e meu cunhado adotivo, por cuja força física tenho o maior respeito.
Epafrodito rompeu a chorar e abraçou-me.
— Não, não —- gritou. — Eu não podia estrangulá-lo. Sejamos amigos, os três. Será uma grande honra para mim, se quiser realmente comer à mesma mesa comigo.
Também eu tinha nos olhos lágrimas de dor e alívio:
— É o mínimo que posso fazer. Já dividi minha mulher com você. Portanto a honra é minha também.
Quando nos viu abraçados tão intimamente, Sabina caiu em si. Servimo-nos do que havia de melhor em casa, tomamos vinho juntos e até chamamos o menino para que Epafrodito pudesse falar com êle e tê-lo nos braços. A espaços, um arrepio corria-me pela espinha abaixo, quando eu pensava no que podia ter acontecido, em virtude de minha estupidez, mas em seguida o vinho me acalmava.
Depois de termos bebido bastante, fui tomado de melancolia:
Como pôde tudo terminar deste jeito? — perguntei a Sabina. — Éramos tão felizes, juntos, no começo e eu estava tão apaixonado por você!
Você nunca compreendeu o que se passava em meu íntimo, Minuto — disse Sabina. — Mas não o censuro por isso e lamento as palavras desagradáveis que usei, quando insultei a sua virilidade. Se, pelo menos, você me tivesse uma vez ou outra machucado um olho, como fiz com você, em nosso primeiro encontro, se me tivesse chicoteado de quando em quando, talvez tudo tivesse sido diferente. Lembra-se de que lhe pedi que me possuísse à força em nossa noite de núpcias? Mas nada há em você da maravilhosa e esmagadora masculinidade do violador, que faz o que bem entende por mais que a gente lute, esperneie, morda ou ameace gritar.
Sempre pensei — disse eu, confuso — que o que uma mulher mais quer do amor é ternura e segurança.
Sabina balançou a cabeça, penalizada:
— Essa ilusão apenas mostra como você é infantil, quando se trata de entender as mulheres.
Depois de termos chegado a acordo quanto às indispensáveis medidas financeiras e depois que eu reiteradamente gabei Epafrodito, por ser um homem honrado e o maior artista em sua especialidade, encaminhei-me para a casa de Flávio Sabino, fortalecido pelo vinho, a fim de informá-lo do divórcio. Para ser sincero, devo dizer que tinha mais medo de sua cólera do que da de Sabina.
— Há muito que vinha notando que nada ia bem no seu casamento — disse êle — fugindo ao meu olhar. Mas espero que nao permitirá que o divórcio altere a amizade e o respeito recíprocos surgidos entre nós dois. Eu ficaria em situação difícil, por exemplo, se você cobrasse executivamente o empréstimo que me fêz. Nós, Flávios, não somos tão ricos quanto seria de desejar. Correm rumores de que meu irmão Vespasiano negocia em mulas para ter de que viver. Como Procônsul na África, tornou-se mais pobre do que era. Parece que a população de lá o bombardeou com nabos. Temo que seja forçado a deixar o Senado, se o Censor
souber que êle não está preenchendo os requisitos de riqueza.
Nero partira repentinamente para Nápoles, depois de ter metido na cabeça que Nápoles era o lugar apropriado para sua grandiosa estréia como cantor. Isto porque o auditório de lá é de ascendência grega e, portanto, mais afeiçoado à arte do que os romanos. A despeito da confiança que depositava em seus dotes artísticos, Nero era tomado de pânico, antes de cada desempenho, e tremia e suava, a um ponto tal que precisava contar com aplaudidores pagos que dirigissem o auditório nas primeiras salvas de palmas.
Tive de partir às pressas atrás dele, o que era, de qualquer modo, imperioso no meu cargo. O belo teatro de Nápoles estava lotado e a esplêndida voz de Nero punha os ouvintes em êxtase. Diversos visitantes vindos de Alexandria faziam-se notar especialmente, já que exprimiam seu contentamento batendo palmas ritmicamente, ao modo dos seus compatriotas.
No meio de um número, o teatro foi sacudido por um súbito tremor de terra. O terror logo se espalhou pela sala, mas Nero continuou a cantar como se nada tivesse acontecido. Foi muito elogiado por essa demonstração de autodomínio, pois o seu destemor deu coragem aos ouvintes. Êle próprio me contou, depois, que estivera tão concentrado no que cantava que nem dera pelo abalo.
Ficou tão deliciado com seu sucesso, que apareceu no teatro vários dias seguidos, até que por fim o conselho municipal teve de lhe subornar o professor de canto, para que este o admoestasse de estar submetendo sua voz incomparável a um esforço desmedido, visto que a vida diária da cidade, os negócios e o comércio marítimo vinham sendo interrompidos por seus espetáculos. Nero recompensou os alexandrinos por terem revelado bom discernimento, dando-lhes presentes e conferindo-lhes a cidadania romana, e resolveu ir o mais cedo possível a Alexandria e apresentar-se diante de um público que era digno dele.
Quando, num momento oportuno, elogiei-lhe o brilhante êxito artístico, Nero perguntou-me:
— Achas que, se eu não fosse Imperador, poderia ganhar a vida, como artista, em qualquer parte do mundo?
Afiancei-lhe que, como artista, êle seguramente seria ao mesmo tempo mais livre e de certo modo mais rico do que como Imperador, pois como Imperador tinha de lutar por cada subvenção estatal com seus avarentos Procuradores. Declarei que me cumpria, findo meu período de Pretor, oferecer um espetáculo teatral gratuito ao povo, mas que, em minha opinião, não havia cantor suficientemente bom em Roma. Assim, com fingido acanhamento, fiz uma sugestão:
— Se te apresentasses num espetáculo — disse eu — cujas despesas corressem por minha conta, então a minha popularidade estaria assegurada. Eu te pagaria um milhão de sestércios de remuneração e tu mesmo escolherias a peça.
Pelo que sei, esta era a mais alta remuneração jamais oferecida a qualquer cantor por uma única apresentação. Até mesmo Nero se surpreendeu:
— Queres realmente dizer que achas que minha voz vale um milhão de sestércios? E que obterás a simpatia do povo com a ajuda dela?
Disse-lhe eu que, se êle aquiescesse, esta seria a maior prova de apreço em que eu poderia pensar. Nero franziu o cenho e simulou meditar em seus múltiplos deveres:
— Deverei aparecer vestido como um ator — disse êle, finalmente — com coturnos nos pés e uma máscara no rosto. Mas, para te ser agradável, posso naturalmente mandar que se faça a máscara parecida comigo mesmo. Submetamos à prova os gostos artísticos de Roma. Não anunciarei meu nome senão depois do espetáculo. Aceitarei o teu convite nestas condições. Penso que escolherei o papel de Orestes. Há muito que venho querendo cantá-lo. Creio que a força reprimida dos meus sentimentos abalaria até mesmo os endurecidos ouvintes de Roma.
Sua vaidade de artista impelia-o expressamente a interpretar esse papel de matricida, a dar plena expansão a seus próprios sentimentos. Em certo sentido, eu o compreendia. Tendo escrito um livro engraçado, eu me libertara de minhas experiências de prisioneiro, experiências que me tinham conduzido às bordas da loucura. Para Nero, o assassínio de Agripina tinha sido uma experiência perturbadora, da qual tentava libertar-se através do canto. Mas receei que me tivesse exposto a grandes riscos por tê-lo convidado a fazer tal coisa. Podia ocorrer que o auditório não reconhecesse Nero e não desse provas convincentes de apreciar a representação.
Também podia ser pior. Uma máscara que se parecesse com Nero, no papel de matricida, poderia redundar em que o público se equivocasse quanto à intenção. O espetáculo poderia ser tomado por uma manifestação contra Nero e arrastar consigo o auditorio. Aí, então, eu estaria perdido. Outras pessoas iriam começar a crer no que se propalava a respeito de Nero, e o resultado seria o tumulto, com o saldo de muitos mortos.
Portanto, não houve outro recurso senão espalhar cautelosamente a notícia de que o próprio Nero estava pensando em aparecer, como Orestes, em meu espetáculo teatral. Muitos senadores e cavaleiros antiquados recusaram-se a acreditar que um Imperador se degradasse ao ponto de igualar-se a um bufão profissional e assim fizesse pouco de si mesmo. A escolha do programa também tez com que encarassem o rumor Como uma pilhéria inadequada.
Felizmente, Tigelino e eu tínhamos vantagens mútuas a tirar dessa questão. Tigelino destacou uma coorte de Pretorianos, para manter a ordem no teatro e aplaudir em determinados momentos da representação, seguindo cuidadosamente o exemplo dos aplaudidores profissionais de Nero. Vários cavaleiros jovens, que entendiam de música e canto e não cometeriam o erro de aplaudir nos momentos errados, foram nomeados chefes dos grupos. Todos os aplaudidores tiveram de aprender a vibrar de entusiasmo, bater palmas com as mãos em concha de modo a provocar eco, produzir aplausos estrepitosos e suspirar anelantemente, nas ocasiões apropriadas.
Boatos de manifestação política trouxeram uma multidão colossal que, de outra maneira, dificilmente se daria ao trabalho de honrar meu mandato de Pretor com sua presença. A casa estava tão cheia que várias pessoas foram pisoteadas nos portões de acesso e alguns robustos escravos dos senadores mais velhos tiveram de abrir caminho a muque, para que seus senhores alcançassem os lugares de honra do Senado. Foi exatamente como nos melhores dias nas corridas.
O próprio Nero estava tão nervoso e tenso, que vomitou violentamente, antes da representação, e não parou de medicar a garganta com bebidas recomendadas por seu professor, para fortalecer as cordas vocais. Devo confessar que teve um desempenho brilhante, logo que se viu no palco. Sua voz poderosa ressoou pelo teatro e penetrou nuns bons vinte mil pares de ouvidos. Tão absorto estava em seu papel que algumas das mulheres mais sensíveis desmaiaram de emoção, no meio daquele ajuntamento.
A vibração, os suspiros e as palmas apareceram nos momentos certos. Os freqüentadores habituais aderiram de boa-vontade aos aplausos. Mas quando Nero avançou para o proscênio no final, com as mãos ensangüentadas, os ruídos estridentes de miados, co-corocós e silvos partiram dos assentos dos cavaleiros e senadores, e nem mesmo os aplausos mais vibrantes puderam sufocá-los. Pensei que chegara meu último instante quando, com um tremor nos joelhos, fui cambaleando para os bastidores, a fim de trazer Nero, já sem máscara, para a frente do palco e informar ao público que fora o próprio Imperador que aparecera diante deles. Mas para meu grande espanto, Nero chorava de alegria, enquanto estava ali de pé, banhado de suor, o rosto desfigurado pela fadiga.
— Reparaste como empolguei a multidão? — disse êle. — Miaram e cocoricaram, ao verem Orestes atrair sobre sua cabeça o castigo do matricida. Acho que nunca aconteceu antes o público penetrar tão completamente no espírito de uma peça.
Enxugando o suor e sorrindo triunfantemente, Nero avançou para receber os aplausos, que tomaram proporções atroadoras, quando anunciei que o Imperador em pessoa fora o intérprete da peça. A uma voz, a multidão pediu aos gritos que êle cantasse outra
vez.
Tive a honra de levar a Nero a sua cítara. Ele cantou com vivo prazer, acompanhando-se a si mesmo para mostrar sua habilidade na cítara, até ficar tão escuro que ninguém já lhe divisava o rosto. Só então, e a contragosto, resolveu parar, não sem declarar que apareceria diante do povo no futuro, se este assim o desejasse.
Quando lhe entreguei a ordem de pagamento de um milhão de sestércios, disse-lhe que havia tomado providências para que se fizessem ofertas de ação de graças a seu nome tutelar, à filha morta e também, por segurança, a Apolo.
— Embora me pareça que já superaste Apolo e não necessites mais de seu amparo — acrescentei.
Enquanto êle ainda estava transbordando de alegria, fiz-lhe o pedido apressado de que anulasse sem alarde meu casamento, baseado na irreconciliável incompatibilidade entre mim e Sabina. Ambos queríamos o divórcio e tínhamos a aprovação de nossos pais.
Nero disse, com uma risada, que havia muito compreendera que era unicamente por depravação que eu perseverava no meu estranho casamento. Perguntou, curioso, se era verdade que Sabina tinha relações sexuais com os gigantescos macacos africanos, como diziam na cidade, e deu a entender que êle próprio não teria objeção a assistir às ocultas a tal espetáculo. Respondi que consultasse Sabina diretamente sobre o assunto, de vez que ela e eu éramos tão hostis, que nem sequer desejávamos falar um com o outro. Nero pediu que, apesar do divórcio, eu permitisse a Sabina continuar a atuar no anfiteatro, para o divertimento do povo. Recebi os papéis do divórcio na manhã seguinte e nem precisei pagar os emolumentos de praxe.
Ganhei a reputação de atrevido e inescrupuloso, porquanto a apresentação de Nero no papel de Orestes suscitou assombro e discussão interminável. Por essa época, os inimigos de Nero começaram a inventar feias histórias a respeito dele, fundados na mesma base que êle usara, quando anunciara o adultério de Otávia. "Quanto maior a mentira, mais facilmente nela se acredita", havia êle dito.
Esta foi uma verdade que se voltou contra êle próprio. Quanto mais ignominioso era o boato acerca de Nero, mais o povo se empenhava em acreditar. As histórias verídicas de suas inúmeras boas ações despertavam pouco interesse.
Nao que os governantes de Roma não tivessem mentido antes ao povo. O divino Júlio viu-se na contingência de apelar para uma proclamação diária e por escrito, a fim de neutralizar sua falta de
estima; isto para não mencionar o divino Augusto, cujas lindas inscrições fúnebres deixam de referir crimes incontáveis.
Mesmo pondo em jogo a minha vida para obter o divórcio, não consegui esquivar-me a uma situação embaraçosa. O divórcio trouxe-me alívio por libertar-me do domínio de Sabina. Mas naturalmente eu não podia nem cogitar num casamento com Cláudia. A meu ver, ela exagerava incrivelmente a significação da bagatela que era o fato de termos dormido juntos, por atração fortuita, nos dias de nossa juventude.
Fiz ver a ela, sem rodeios, que não me parecia que um homem tivesse de casar com toda mulher que espontaneamente se lhe atirasse nos braços. Se assim fosse, nenhuma relação normal entre os seres humanos seria possível. Em minha opinião, o que acontecera não era nem pecaminoso nem degradante para ela.
Nem mesmo o próprio Cristo durante a sua vida na terra desejara julgar uma adúltera, pois dizia que aqueles que a acusavam eram tão culpados quanto ela, segundo me haviam contado. Mas Cláudia, enfurecida, disse que conhecia as histórias acerca de Cristo melhor do que eu, tendo-as ouvido da boca do próprio Cefas. Ela sucumbira uma vez e pecara comigo, de modo que era pecadora e se sentia ainda mais pecadora todas as vezes que me via.
Tratei então de evitá-la o mais possível, para que ela não fosse obrigada a ver-me demais. Dediquei meu tempo a novos negócios com o intuito de reforçar minha posição e acalmar meus temores. Um dos meus libertos fêz-me compreender que as fortunas realmente grandes repousavam no comércio de cereais e importação de azeite de cozinha. Comparados com estes gêneros de primeira necessidade, a seda da China, as especiarias da Índia e outros artigos suntuários para a nobreza opulenta eram meras insignificâncias. Graças às minhas transações no ramo de animais bravios, eu já estabelecera bons vínculos comerciais com a África e Ibéria. Por intermédio de minha amizade com Fênio Rufo, recebi uma cota do comércio de cereais, e meu liberto viajou para a Ibéria com o fito de estabelecer escritório de compras de azeite de oliveira.
O trato desses assuntos levava-me a visitar Óstia assiduamente. Pude, então, ver que toda uma nova e bela cidade surgira ali. Havia muito tempo que me irritavam as acusações de Cláudia de que eu obtinha lucros criminosos dos meus apartamentos de Subura e das imediações do circo do Aventino.
Achava ela que os inquilinos viviam em condições desumanas, onde imperavam o amontoamento, a sujeira e a insalubridade. Imaginei que os pobres cristãos se tivessem queixado a ela para ver se conseguiam redução dos aluguéis.
Se eu baixasse os aluguéis, a corrida para as minhas casas seria ainda maior e todos os outros senhorios iriam acusar-me raivosamente de fazer-lhes uma concorrência desleal. Sabia também que o estado dos edifícios era precário, mas reformá-los implicaria grandes despesas num momento em que eu precisava de todo o meu dinheiro de contado e tinha de recorrer a empréstimos para financiar meus negócios de cereais e azeite. Assim, tomei uma decisão rápida. Vendi imediatamente muitos blocos de apartamentos e comprei diversos lotes baratos de terreno vazio nas cercanias de Óstia.
Cláudia repreendeu-me severamente porque, segundo ela, eu pusera os inquilinos numa situação ainda mais difícil do que a anterior. Seus novos senhorios não fizeram nenhum conserto, mas simplesmente elevaram os aluguéis para recuperar desse modo as vultosas somas que me tinham pago pelos edifícios.
Respondi a Cláudia que ela não tinha a menor idéia de finanças, mas desperdiçava meu dinheiro em caridade que não rendia nada, nem mesmo popularidade. Os cristãos acham que é natural ajudar os pobres e eles mesmos agradecem só a Cristo o auxílio que recebem.
Por sua vez, Cláudia exprobrou-me o emprego de quantias imensas em ímpios espetáculos teatrais. Não fazia sequer distinção entre drama e exibições de feras no anfiteatro e não quis ouvir-me, quando tentei explicar que esse era o meu dever, em razão do meu cargo de Pretor e da posição de Senador de meu pai. A simpatia do público era necessária para um homem que ocupasse o meu posto. Os cristãos não passam de escravos e ralé sem cidadania.
Só silenciei Cláudia quando lhe disse que ela, obviamente, não era uma Cláudia autêntica. Seu pai fora tão apaixonado pelas exibições no anfiteatro, que nem ia almoçar, enquanto as feras estraçalhavam os condenados, muito embora as pessoas respeitáveis geralmente saíssem para fazer uma refeição naquela hora e passassem algum tempo fora do anfiteatro. Nero, que era mais humano, logo no princípio de seu reinado proibira o lançamento dos condenados as feras e não mais permitia que os gladiadores combatessem até à úitima gota de sangue.
Admito ter, uma vez ou outra, usado a fraqueza feminina de Cláudia para pôr fim à sua eterna tagarelice. Fechava-lhe a boca com beijos e acariciava-a até que ela não pudesse mais resistir à tentação e, rindo, se lançasse nos meus braços. Depois ela se tornava mais melancólica do que de costume e ia ao ponto de me ameaçar com a ira de sua meia-irmã Antônia, se eu não expiasse meus pecados, casando com ela. Como se a ira de Antônia, tivesse ainda alguma significação política...
Quando estávamos juntos dessa maneira, eu não pensava em tomar precauções. Sabia das experiências de Cláudia, em Miseno, se bem que não desejasse pensar nelas, já que eu fora de certo modo responsável. Mas, quando pensava nisso, fazia-o em função do provérbio que diz que a grama não cresce na via pública.
Assim, minha surpresa e horror foram inenarráveis quando um dia, no meu regresso de Óstia, Cláudia levou-me discretamente para um canto e, com os olhos brilhando de orgulho, sussurrou-me ao ouvido que estava grávida de um filho meu. Não acreditei e disse que ela era vítima de fantasias ou de alguma enfermidade de mulher. Dei-me pressa em mandar chamar um médico grego que havia estudado em Alexandria, mas tampouco acreditei quando êle me assegurou que Cláudia não se enganara. Ao contrário, disse êle, a urina de Cláudia fizera rapidamente germinar um grão de aveia, sinal indiscutível de gravidez.
Certa noite, ao voltar para minha casa no Aventino, num estado de espírito moderado e sem suspeitar de nada, encontrei em minha sala de recepção a filha de Cláudio, Antônia, e a velha Paulina, que eu não via desde minha partida para a Acaia. Ela emagrecera muito, à força de jejuns continuados, e ainda se vestia de preto, como antes. Seus olhos senis brilhavam com um fulgor sobrenatural.
Antônia provavelmente sentiu-se pouco à vontade ao encontrar-se comigo, mas conservou o ar arrogante e a cabeça erguida. Enquanto eu estava pensando se devia apresentar pêsames atrasados, pelo desaparecimento de seu marido, tia Paulina tomou a palavra:
Você esquece seus deveres para com Cláudia. Em nome de Cristo, exijo que a despose legalmente sem demora. Se não teme a Deus, temerá então os Pláucios. A reputação da família está em jogo.
Não posso admirar seu procedimento com minha meia-irmã — acrescentou Antônia. — Tampouco escolheria para ela um marido tão indesejável. Mas não há outro jeito, já que você a seduziu e agora ela está grávida.
Você também acredita naquela história louca da ascendência dela? — perguntei surpreso. — Você, que é uma mulher sensata? Cláudio nunca a legitimou.
Por motivos políticos — replicou Antônia. — Meu pai Cláudio separou-se de Pláucia Urgulanila para casar com minha mãe, Élia, que era filha adotiva de Sejano, como você sabe. Cláudia nasceu cinco meses depois do divórcio e, em consideração a minha mãe, Sejano julgou inconveniente dar a Cláudia a posição de filha do Imperador. Você sabe como Sejano era influente naquela época. Foi para conquistar as simpatias dele que Cláudio casou com minha mãe. Lembro-me de que ela freqüentemente deplorava o procedimento de meu pai. Mas falava-se muito da mãe de Cláudia
Eu era orgulhosa demais, até mesmo para reconhecer Cláudia como minha meia-irmã em segredo. Mas quase nada resta do meu orgulho e assim sinto a necessidade de reparar a injustiça que fiz a Cláudia,
Também se tornou cristã? — perguntei sarcástico. Minha pergunta fez Antônia corar:
Ainda não fui iniciada, mas permito que os escravos em minha casa adorem a Cristo. Ouvi dizer que você faz a mesma coisa. E eu não gostaria que a linhagem antiga dos Cláudios se extinguisse comigo. Estou pronta a adotar seu filho, se fôr necessário, caso você não se contente com menos. Isso talvez desse o que pensar a Nero e Popéia.
Percebi que ela estava fazendo isso mais por ódio a Nero, do que por amor a Cláudia.
— Em seu leito de moribunda — atalhou tia Paulina — Urgulanila prestou o mais solene juramento de que Cláudia era verdadeiramente filha de Cláudio. Não fui grande amiga de Urgulanila, por causa de sua vida depravada nos últimos anos. Mas creio que nenhuma mulher, em seu leito de morte, ousaria perjurar numa questão de tamanha gravidade. O problema desde o princípio foi que você, que pertence à Nobre Ordem dos cavaleiros, não podia resolver-se a desposar uma bastarda. Pelos mesmos motivos e por medo de Cláudio, meu marido recusou-se a adotar Cláudia. Mas a verdade é que Cláudia é, do ponto de vista legal, uma cidadã romana e uma filha legítima. Isso seria irrefutável, se ela não fosse filha do Imperador.
Nesse momento Cláudia desmanchou-se em lágrimas:
— Eu acho até que meu pobre pai nem me odiava — choramingou. — Fraco como era, foi provavelmente tão influenciado pela infeliz Messalina, e depois pela pérfida Agripina, que não se atrevia a reconhecer-me como sua filha, mesmo que quisesse. Em meu coração, já o perdoei.
Quando, com toda a seriedade, estudei as complicações jurídicas da matéria, lembrei-me da maneira engenhosa como havia feito de Jucundo um cidadão romano de nascimento.
— Cláudia foi obrigada a viver muitos anos escondida no campo — disse eu, pensativo. — Não seria totalmente impossível incluir o nome dela no rol dos cidadãos de alguma vila distante, como filha dos falecidos A e B, pai e mãe, desde que se escolhesse uma cidadezinha em que, por exemplo, o incêndio tivesse destruído os arquivos. Há milhões de cidadãos em muitos países diferentes, e todos sabemos que diversos inescrupulosos imigrados romanos sustentam possuir cidadania e ninguém os acusa de coisa alguma, porque esses assuntos são hoje em dia difíceis de provar de outra maneira. Dessa fôrma, eu poderia casar-me com Cláudia.
— Não experimente em mim as letras do alfabeto — disse Cláudia, com raiva. — Meu pai era Tibério Cláudio Druso e minha mãe era Pláucia Urgulanila. Mas sou grata a você por concordar em casar comigo. Aceito sua palavra como uma proposta. E tenho duas respeitáveis testemunhas da sua sugestão.
Sorridentes, Paulina e Antônia apressaram-se a congratular-se comigo. Compreendi que caíra numa armadilha, muito embora, na realidade, estivesse apenas falando teoricamente de um problema de ordem legal. Depois de breve discussão, concordamos em redigir um documento referente à ascendência de Cláudia. Antônia e Paulina o depositariam, como papel incondicionalmente secreto, nos arquivos das Vestais.
Deliberamos que o casamento se realizaria modestamente, sem sacrifícios nem festas, e que no registro dos cidadãos Cláudia figuraria com o nome de Pláucia Cláudia Urgulanila. Coube a mim tomar todas as medidas para que as autoridades do registro não fizessem perguntas desnecessárias. A posição de Cláudia não mudaria, pois havia muito tempo já que ela tomava conta da minha Casa.
Anuí a tudo com o coração pesado, porquanto não podia agir de outro modo. Receei que me tivesse, então, envolvido numa intriga política contra Nero. Tia Paulina, é bem verdade, decerto não teria tal idéia, mas com Antônia era diferente.
— Sou vários anos mais moça do que Cláudia — disse ela, por fim — mas Nero não permitirá que eu me case outra vez. Nenhum homem suficientemente nobre ousaria casar comigo, ao lembrar-se do que aconteceu a Cornélio Sila. Talvez tudo tivesse sido diferente, se Sila não se tivesse revelado um idiota tão perfeito. Mas êle não podia dar jeito. Portanto, alegra-me que Cláudia, como filha legítima de um Imperador, possa casar-se, ainda que às escondidas. Sua esperteza, meu caro Minuto, sua falta de escrúpulos e sua riqueza talvez compensem a ausência de outras qualidades que eu gostaria de ver no marido de Cláudia. Não esqueça que você está se ligando aos Cláudios e aos Pláucios, por este casamento.
Paulina e Cláudia convidaram-nos a orar junto com elas, em nome de Cristo, para que nossa união fosse abençoada. Antônia sorriu com desprezo:
— Um nome é um nome, quando se acredita no poder dele. Eu mesma o apoio, porque sei com que violência os judeus o odeiam. Os judeus gozam neste momento, na corte, de um prestígio tal que é simplesmente intolerável. Popéia favorece a entrada deles na função pública e Nero cumula de dádivas absurdas um pantomimeiro judeu, embora êle se recuse a apresentar-se nos sábados.
Era evidente que, em sua altiva amargura, Antônia não pensava em outra coisa senão em opor-se a Nero por todos os meios. Ainda que não tivesse influência alguma, podia ser uma mulher perigosa. Dei graças aos meus fados por ter ela tido o bom senso de vir à minha casa, ao anoitecer, numa cadeirinha com as cortinas cerradas.
Mas estava tão opresso que me humilhei ao ponto de participar das orações cristãs e implorar o perdão dos meus pecados. Achei que precisava de toda a ajuda celestial que pudesse obter neste caso. Cefas, Paulo e vários outros santos homens cristãos tinham sido capazes de fazer milagres, fiados no nome de Jesus de Nazaré. Cheguei até, ao lado de Cláudia e depois que nossas hóspedas tinham ido embora, a beber no cálice de meu pai, antes de irmos para a cama, por essa vez reconciliados um com o outro.
A partir daí dormíamos juntos como se já fôssemos casados, e ninguém dentro de casa dava muita atenção a isto. Não posso negar que minha vaidade estava incensada por partilhar meu leito com a filha de um Imperador. Assim, cerquei Cláudia de todas as finezas e submeti-me a seus caprichos durante a gravidez. O resultado foi que os cristãos se firmaram definitivamente em minha casa. Seus gritos de exaltação ressoavam tão alto, de manhã à noite, que perturbavam os nossos vizinhos mais próximos.
Tigelino
Salvo uma trovoada ou outra, fazia muito tempo que não chovia, e o calor, a imundície, o mau cheiro e a poeira atormentavam Roma. Em meu jardim no Aventino as folhas das árvores cobriam-se de pó e a relva mirrava. Tia Lélia era a única pessoa a deleitar-se com o calor. Ela, que em virtude da idade passava a maior parte do tempo a queixar-se do frio, se fizera transportar para o jardim e lá se pusera a farejar com um ar experiente.
— Está com jeito de incêndio em Roma — disse ela.
Era como se por um momento tivesse recuperado o juízo. Começou a contar pela centésima vez a história do incêndio que devastara as encostas do Aventino, muitos anos antes. O banqueiro de meu pai comprara por uma ninharia os terrenos assolados pelo fogo e neles mandara construir apartamentos que me propiciaram toda a renda exigida pela Ordem dos Cavaleiros até o inverno anterior, quando eu os vendera.
Quando farisquei o ar, senti o cheiro da fumaça, mas não me preocupei, pois sabia que, com aquele calor, as divisões do corpo de bombeiros estariam de prontidão, em todas as zonas da cidade, e que era proibido acender fogo desnecessariamente. E além disso não ventava. A atmosfera estava parada e sufocante desde as primeiras horas do dia.
De algum ponto bem distante vinha o som de toques de corneta e um estranho murmúrio, mas só quando me pus a caminho para a cidade foi que notei que o flanco da grande pista de corridas defronte do Palatino estava em chamas. Grossas nuvens de fumaça brotavam das tendas que vendiam cera, incenso e panos. Essas barraquinhas altamente inflamáveis não tinham guarda-fogos, de sorte que o incêndio se alastrava com a rapidez do raio.
As pessoas agitavam-se como formigas, em volta das labaredas. Suponho ter visto bombeiros de pelo menos três distritos da cidade abrindo largos aceiros para impedir que o furioso mar de chamas se espraiasse. Nunca vira antes um incêndio de tais proporções. Era um espetáculo opressivo mas, apesar de tudo, não me deixou excessivamente preocupado. Na realidade, imaginei que os bombeiros de nossa zona da cidade estivessem em seus postos, guardando os declives do Aventino.
Mandei que um dos meus homens fosse prevenir Cláudia, em nossa casa e, de passagem para o pátio dos bichos, entrei na Prefeitura da Cidade, para indagar como o incêndio tinha começado. Tinham enviado um mensageiro em busca de meu ex-sogro, que se encontrava em sua quinta, fora da cidade, mas o seu imediato parecia ter o controle da situação.
Êle atribuía a culpa à negligência dos pequenos comerciantes judeus e do pessoal do circo que ocupava as lojas do portão de Cápua, mas acreditava que seus artigos sumamente inflamáveis se consumiriam num instante. Na verdade julgava que a manutenção da ordem era uma tarefa muito mais árdua do que restringir a área do incêndio, uma vez que os escravos e outra gentalha já tinham acorrido ao local e se valiam da oportunidade para saquear as lojas do circo.
Depois de inspecionar o pátio dos bichos, que se ressentiam tremendamente da atmosfera abafante, e consultar o médico veterinário acerca da preservação de nossas provisões de carne deterio-rável, ordenei o fornecimento de rações extras de água a todos os animais e providenciei para que despejassem bastante água por entre as grades das jaulas. Conversei com toda a afabilidade com Sabina, pois desde o nosso divórcio mantínhamos relações muito mais amistosas do que antes.
Sabina pediu-me que procurasse imediatamente o superintendente dos reservatórios, a fim de garantir que o suprimento de água à casa dos bichos não se interrompesse em razão do incêndio.
Assegurei-lhe que nãohavia motivo para inquietações,-porque provavelmente todos os chefes das famílias nobres já teriam ido ao superintendente com idêntica finalidade, pois sem dúvida não queriam que seus jardins ficassem sem água na quadra quente.
Na superintendência informaram-me que o bloqueio dos aquedutos só podia ser revogado por decisão do Senado ou ordem imperial. Dessa maneira, o habitual racionamento de água continuaria inalterado, já que não se podia convocar o Senado por vários dias, pois os senadores não se reúnem durante o verão, a menos que o Estado esteja ameaçado. Nero estava no Âncio naquele momento.
Sentindo-me mais bem disposto, subi o monte Palatino, passei pelos edifícios vazios do palácio e juntei-me à multidão de espectadores aglomerados na encosta fronteira à pista de corridas. Eram na maioria escravos, servos e jardineiros do paço imperial. Ninguém parecia preocupado, muito embora toda a concavidade a nossos pés fosse uma gigantesca fornalha ardente e fumarenta.
O fogo era tão violento que formava remoinhos no ar, e as rajadas escaldantes fustigavam-nos constantemente as faces. Alguns escravos apagavam indiferentes com os pés um ou outro torrão de va fumegante e alguém praguejou quando uma centelha abriu-lhe um buraco na túnica. Mas o mecanismo de aguar funcionava nos jardins e ninguém parecia incomodar-se.
Nada se observava nas fisionomias dos circunstantes, a não ser a excitação provocada pelo espetáculo que tinham diante dos olhos. Quando tentei divisar o Aventino por entre os rolos de fumaça, vi que o fogo atingira a encosta e ia lenta mas inexoravelmente devorando a distância que o separava do meu setor da cidade. Sem esperar mais, parti a toda a pressa. Recomendei ao meu séquito que fosse para casa e depois tomei um cavalo emprestado aos estábulos de Nero, quando vi um mensageiro galopando pela via Sacra, ao lado do fórum.
Ali, os mais cautelosos já estavam aferrolhando e trancando suas lojas e somente nos vastos saguões do mercado viam-se ainda donas de casa fazendo as compras costumeiras. Foi-me possível chegar a casa, seguindo um itinerário sinuoso, ao longo das ribanceiras do Tibre e, no caminho, avistei muitos homens esgueirando-se na fumarada, carregando ou o produto da pilhagem ou os objetos que haviam salvo das proximidades da pista de corridas.
As ruas estreitas estavam apinhadas de grupos de pessoas aflitas. Mães em lágrimas gritavam pelos filhos, enquanto chefes de famílias parados às portas de suas casas perguntavam inseguros uns aos outros o que deviam fazer. Ninguém quer deixar sua casa vazia durante um grande incêndio, pois a polícia da cidade ficaria então impossibilitada de manter a ordem.
Muita gente achava que o Imperador deveria retornar do Âncio. Também eu comecei a sentir que as medidas de emergência se tornavam imprescindíveis. Só me restava agradecer à minha boa fortuna por estar a casa dos bichos situada nos arredores da cidade, do outro lado do campo de Marte.
Logo que entrei em casa determinei que se preparassem as cadeirinhas e os carregadores e disse a Cláudia e tia Lélia que fossem para o décimo quarto distrito da cidade, da outra banda do Tibre, com toda a famulagem, e levassem também aqueles dos nossos objetos mais valiosos que pudessem ser transportados, já que não havia veículos disponíveis durante o dia.
Só o porteiro e os escravos mais robustos receberam ordem de ficar para protegerem a casa contra os saqueadores. Dei-lhes armas, em virtude das circunstâncias inusitadas. Era necessário que todos se apressassem, porque eu imaginava que outros logo fariam a mesma coisa e as ruas estreitas do Aventino iriam regurgitar de refugiados.
Cláudia protestou com veemência; primeiro tinha de mandar um aviso a seus amigos cristãos e ajudar os fracos e velhos dentre eles a fugir. Eram redimidos por Cristo e portanto valiam mais do que nossos vasos de ouro e prata, disse ela. Apontei para tia Lélia.
— Está aí uma pessoa idosa que precisa de sua proteção — gritei. — E você devia pelo menos pensar um pouco em nosso filho que está para nascer.
Naquele momento, Áquila, o judeu, e Prisca entraram arquejantes e empapados de suor em nosso pátio, já que carregavam suas trouxas de pano de pêlo de cabra. Suplicaram que eu lhes permitisse deixar suas coisas na segurança de minha casa, pois o fogo já se aproximava de suas tendas de tecelagem. A imprevidente ingenuidade deles pôs-me furioso, uma vez que Cláudia, confiando no que diziam, achou que seguramente ainda não corríamos perigo. Áquila e Prisca não podiam ir para o setor judaico da cidade, na outra margem do Tibre, porque os judeus os conheciam de vista e os odiavam como à peste.
Nessa conversa e na tagarelice das mulheres escoara-se um tempo precioso. Afinal, vi-me obrigado a dar uma palmada em tia Lélia e enfiar Cláudia à força numa cadeirinha. Assim, puseram-se todos a caminho e em boa hora, porque daí a instantes embarafustaram pelo pátio alguns cristãos com as caras tisnadas de fumaça e queimaduras nos braços, à procura de Áquila.
Com os braços levantados e os olhos arregalados, vociferavam que com seus próprios ouvidos tinham escutado abalos no céu e na terra e sabiam que Cristo, de acordo com sua promessa, estava prestes a descer sobre Roma. Por isso, todos os cristãos deviam deixar tudo e reunir-se nas colinas da cidade para acolher seu Senhor e o novo reino que êle ia fundar. Chegara o dia do julgamento.
Mas Prisca era uma mulher experiente, sensata e moderada, e não acreditava em tal notícia. Com efeito, mandou que os recém-vindos se calassem, pois ela mesma não tivera essa visão e, de qualquer forma, as únicas nuvens visíveis no céu eram nuvens de fumo.
Também eu lhes assegurei que embora Roma parecesse estar ameaçada por enorme desgraça, um incêndio em dois ou três setores da cidade não queria dizer a ruína da cidade inteira. Os que estavam assustados eram na maioria pobres e estavam habituados a crer nas pessoas de posição mais elevada. A estreita barra vermelha do meu traje convenceu-os de que eu estava mais bem informado da situação que eles.
Achei que era chegado o momento de convocar os Pretorianos e adotar medidas de emergência. Eu não era muito versado na matéria, mas o bom senso me dizia que seria necessário abrir o aceiro mais largo possível em todo o Aventino, sem poupar as casas, e depois atear fogo em sentido contrário, queimando os edifícios que de qualquer modo estavam condenados. Leve-se à conta da natureza humana o ter eu incluído minha casa na área que podia ser salva.
Montei a cavalo e fui consultar o triunvirato daquele setor da cidade. Declarei que assumiria a responsabilidade das providências que fossem tomadas, mas em sua ansiedade e obstinação redarguiram aos gritos os triúnviros que eu me metesse nos meus negócios, pois ainda não havia verdadeira situação de emergência.
Cavalguei até ao fórum, de onde podiam avistar-se apenas os rolos de fumaça acima dos telhados, e tive vergonha de minha exagerada inquietação, pois toda a gente parecia comportar-se normalmente. Sossegaram-me as garantias de que os livros sibilinos tinham sido levados para fora e o colégio dos Sumos Sacerdotes aviava-se para descobrir a que deus se deviam dirigir os primeiros sacrifícios, a fim de impelir o alastramento do fogo.
Um engrinaldado touro prêto-azeviche fora conduzido para o templo de Vulcano. Vários anciãos diziam que, a julgar pelas experiências anteriores, seria melhor fazer oferendas também a Prosérpina. Diziam confiantes que os numes tutelares e os antigos penates de Roma não permitiriam que o fogo fosse muito longe, uma vez que se encontrara prova infalível nos livros sibilinos do como o do porquê da cólera dos deuses.
Creio que se teria logrado restringir o fogo se se tivessem tomado medidas definitivas e implacáveis naquele primeiro dia. Mas não havia ninguém que ousasse assumir a responsabilidade, embora o lugar-tenente de Tigelino houvesse, de fato, sob sua inteira responsabilidade, mandado duas coortes de Pretorianos desobstruir as ruas mais ameaçadas e zelar pela manutenção da ordem.
O Prefeito Flávio Sabino chegou naquela noite e ordenou imediatamente que todas as divisões do corpo de bombeiros protegessem o Palatino, onde chamas crepitantes já dançavam nas copas dos pinheiros, dentro do jardim. Exigiu aríetes e máquinas de assédio, mas estes não entraram em ação senão no outro dia, quando Tigelino voltou do Âncio e, com autorização do Imperador, assumiu firmemente o comando. O próprio Nero não quis interromper suas férias por causa do incêndio e não considerou necessária sua presença na cidade, embora as multidões atemorizadas gritassem por êle.
Quando percebeu que ia ser impossível salvar os edifícios do Palatino, Tigelino reconheceu que era chegado o instante de Nero regressar e acalmar o povo. Nero estava tão preocupado com suas obras de arte gregas, que galopou do Âncio para Roma sem parar. Numerosos senadores e cavaleiros também vieram de suas herdades. Mas a autoridade de Tigelino foi impotente para fazê-los recobrar a razão, e cada um só pensava em sua própria casa e nos seus bens de valor. Contrariando todos os regulamentos, trouxeram consigo juntas de bois e carros, e as ruas ficaram mais atravancadas do que nunca.
Nero estabeleceu seu quartel general nos jardins de Mecenas, no monte Esquilino, e mostrou inspirada decisão no momento do perigo. Flávio Sabino pouco mais pôde fazer do que chorar daí por diante. Como eu mesmo estivesse guiando refugiados, fui uma vez rodeado pelo fogo e recebi diversas queimaduras.
Da torre de Mecenas, Nero podia ver a terrível extensão do incêndio e ia assinalando num mapa as áreas ameaçadas que, de acordo com o parecer de Tigelino, tinham de ser evacuadas, sem demora, logo que os corta-fogos estivessem prontos. As providências eram então mais coordenadas. Os patrícios eram levados para fora de suas casas, os aríetes demoliam os perigosos silos e não se poupavam os templos nem os imponentes edifícios por onde tinham de passar os corta-fogos.
Nero achava mais importante salvar vidas humanas do que tesouros e enviava centenas de arautos para conduzir os milhares de refugiados para aquelas zonas que era de esperar fossem poupadas. Os que tentavam permanecer em suas casas condenadas eram expulsos por homens armados, e proibia-se o transporte de mobiliário e outros artigos volumosos nas ruelas estreitas.
Nero, êle próprio sujo de fumo e pintalgado de fuligem, aza-famava-se com sua guarda pessoal de um lado para o outro, acalmando e dando instruções ao povo angustiado. Recolhia nos braços uma Criança chorosa e a entregava à mãe, ao mesmo tempo que dizia ao povo que fosse procurar refúgio nos jardins imperiais da outra banda do rio. Todos os edifícios públicos das imediações do campo de Marte estavam abertos para alojar os refugiados.
Mas os senadores que tratavam de salvar pelo menos as máscaras da família e os deuses dos lares não compreendiam por que os soldados os escorraçavam das casas a pranchadas e depois ateavam fogo ao edifício com tochas.
Por infelicidade, este incêndio colossal deu origem a uma ventania violenta que arremessou chamas e centelhas, sobre a área protetora, já evacuada, da largura de um estádio inteiro. Os bombeiros, exaustos, ao cabo de vários dias de esforços ingentes, não puderam evitar que o fogo se espalhasse e muitos, vencidos pela fadiga, adormeceram em seus postos e foram consumidos pelas labaredas.
Outro e ainda mais largo corta-fogo foi providenciado para proteger Subura, mas Tigelino, que era apenas humano, sentiu-se tentado a poupar as árvores seculares de seu jardim, de maneira que o fogo, que no sexto dia já estava quase extinto, tornou a inflamar se nelas e alcançou Subura, onde se atirou aos edifícios, altos e em parte de madeira, com tal ímpeto que os moradores dos pavimentos superiores nem tiveram tempo de descer para a rua. Centenas, talvez milhares, morreram queimados.
Foi aí que entrou a circular o boato de que Nero havia intencionalmente mandado atear fogo à cidade. O boato era tão fantástico que logo surgiram pessoas para lhe dar crédito. Havia, de resto, incontáveis testemunhas que tinham visto soldados munidos de tochas pondo fogo nos edifícios. A confusão generalizada, decorrente da falta de sono e da fadiga da população, era tão grande, que algumas pessoas também acreditaram no rumor que os cristãos haviam espalhado acerca do dia do julgamento.
Naturalmente ninguém ousava falar a Nero dessa alegação. Como era excelente ator, Nero não perdeu a calma e, enquanto o fogo continuava a lavrar, chamou todos os melhores arquitetos de Roma e pediu-lhes um plano de reconstrução da cidade. Também tomou providências para que não faltasse comida aos necessitados de Roma. Mas em seu giro de inspeção diária da zona atingida pelo fogo, quando fazia estimulantes promessas aos que haviam perdido tudo, ouviam-se gritos cada vez mais ameaçadores, o povo atirava pedras nos Pretorianos e alguns desesperados culpavam Nero pela destruição da cidade.
Nero sentia-se profundamente ofendido, mas enfrentava a situação com coragem.
— Os pobres devem ter perdido o juízo — dizia, penalizado.
Voltou aos jardins de Mecenas e finalmente deu ordem de abrir os aquedutos, se bem que isso representasse a seca nas partes restantes da cidade. Corri à casa dos bichos e recomendei que enchessem todos os tanques imediatamente. Ao mesmo tempo, ordenei que matassem todos os animais, se o fogo se alastrasse ao anfiteatro de madeira. Tal acontecimento parecia impossível, então, mas com os olhos doendo e as queimaduras coçando, eu estava pronto a esperar a total destruição da cidade. Não podia suportar a idéia de que os animais se soltassem e fossem vagar por entre os fugitivos sem lar.
Naquela noite fui despertado do sono mais profundo que eu tivera nos últimos tempos por um mensageiro com um recado para que fosse ver Nero. Assim que saí, Sabina deu uma contra-ordem, no sentido de que matassem incontinenti quem quer que tentasse fazer mal aos animais.
Enquanto me dirigia aos jardins através da cidade iluminada pelas chamas, com a cabeça embrulhada num manto úmido para proteger-me, a impressão de que chegara o fim do mundo predominou em meu cérebro cansado. Pensei nas terríveis profecias dos cristãos e também nos antigos filósofos da Grécia, que haviam sustentado que todas as coisas provieram do fogo e pereceriam por ação do fogo.
Encontrei alguns bêbados barulhentos e palradores que, à falta de água, tinham matado a sede numa taverna abandonada, e traziam mulheres consigo. Os judeus, reunidos em grupos compactos, entoavam hinos a seu deus. Numa esquina topei com um indivíduo atordoado que, com sua barba fedorenta, me deu um abraço, fez os sinais secretos dos cristãos e exigiu que fizesse penitência e me arrependesse, pois o dia do julgamento havia chegado.
Na torre de Mecenas, Nero esperava impaciente por seus amigos. Vi com surpresa que êle trajava o comprido manto amarelo de cantor e trazia uma coroa de flores na cabeça. Tigelino estava respeitosamente de pé a seu lado, segurando-lhe a cítara.
Nero precisava de um auditório e mandara mensagens a todas as pessoas de prol que sabia estarem em Roma. Ordenara também a vinda de mil Pretorianos, e eles estavam comendo e bebendo, sentados na relva sob as árvores bem aguadas dos jardins. Abaixo de nós, as zonas ardentes da cidade refulgiam como ilhas rubras na escuridão, e os gigantescos redemoinhos de fumo e fogo pareciam atingir o céu.
Não podia mais esperar.
— Diante de nós desenrola-se um espetáculo que nenhum mortal contemplou desde a destruição de Tróia — disse êle, num tom vibrante. — O próprio Apolo apareceu-me em sonho. Quando despertei desse sonho, jorraram estâncias do meu coração como que em divina loucura. Cantarei para vós um poema que compus sobre o incêndio de Tróia. Creio que essas estâncias ressoarão pelos anos porvindouros e imortalizarão Nero como poeta.
Um arauto repetiu-lhe as palavras enquanto Nero subia ao alto da torre. Não havia espaço para muita gente, mas naturalmente fizemos o máximo esforço para ficar tão perto dele quanto possível. Nero começou a cantar, acompanhando-se à cítara. Sua voz poderosa reboava acima do ruído do fogo e alcançava os ouvintes nos jardins circundantes. Cantava como se estivesse enfeitiçado, e seu secretário em assuntos de poesia soprava-lhe, uma após outra, as estrofes que tinham sido ditadas durante o dia. Mas, no decurso da canção, Nero compunha novas estâncias que outro escriba ia cuidadosamente anotando.
Eu ouvira o drama clássico bastantes vezes no teatro, para saber que Nero parafraseava livremente e alterava estrofes bem conhecidas, quer inconscientemente, no calor da inspiração, quer valendo-se da licença a que o artista tem direito em tais coisas. Cantou durante várias horas a fio. Os centuriões a muito custo e usando seus bastões conseguiam manter acordados os Pretorianos.
Os entendidos não paravam de afirmar que nunca tinham ouvido um recital tão sublime num cenário de tal esplendor. Aplaudiam estrepitosamente nos intervalos e diziam que o que tinham acabado de sentir era algo que teriam de contar a seus filhos e netos no futuro.
No recesso de meu espírito eu perguntava a mim mesmo se Nero não estaria mentalmente desarranjado para escolher uma noite como aquela para cantar. Mas confortava-me com o pensamento de que êle provavelmente ficara profundamente magoado com as acusações feitas pelo povo e assim transferira seu pesado fardo para a inspiração artística, a fim de atenuar seus sentimentos.
Parou quando a fumaça o forçou a isso. Começou a tossir e assoar o nariz. Então aproveitamos o ensejo para unanimemente pedir-lhe que preservasse sua divina voz. Mas depois, com o rosto ainda escarlate e brilhante de suor e triunfo, prometeu continuar na noite seguinte. Aqui e ali, nas orlas do fogo, densas nuvens de vapor elevaram-se no céu quando se abriram os aquedutos e a água caiu torrencialmente nas ruínas fumegantes da cidade.
A casa de Túlia, no Viminal, pouco distava da torre. Resolvi então ir para lá e dormir um pouco durante a manhã. Até aquele instante eu não me preocupara com meu pai, uma vez que a casa dele estava salva por enquanto. Não sabia nem se êle voltara do campo ou não, mas não o tinha visto entre os senadores que tinham vindo ouvir Nero.
Encontrei-o só, guardando a casa quase abandonada, os olhos inflamados pela fumaça. Contou-me êle que Túlia, com o auxílio de mil escravos, transferira no primeiro dia do incêndio todos os objetos de valor da casa para uma herdade no campo.
Jucundo, que cortara o cabelo de menino na primavera e usava agora uma estreita faixa vermelha na túnica, tinha ido ver o incêndio com seus amigos da escola do Palatino. Sofrera graves queimaduras nos pés, quando uma torrente de metal derretido se precipitara, de repente, pela encosta abaixo, vinda dos templos em chamas. Fora trazido para casa e Túlia o levara para o campo. Meu pai achava que Jucundo estava aleijado para o resto da vida.
— Neste caso, teu filho pelo menos não terá de prestar serviço militar — disse êle, gaguejando ligeiramente — e derramar seu sangue nos desertos do Oriente, um pouco além do Eufrates.
Fiquei surpreso de ver que meu pai bebera vinho em excesso, mas compreendi que êle estava muito abalado com o acidente de Jucundo. Notou que eu o observava.
— Não importa que por essa vez eu Volte a tomar vinho — disse êle com raiva. — Acho que o dia de minha morte está próximo. Não estou lamentando o que aconteceu a Jucundo. Seus pés eram velozes demais e já o tinham levado por caminhos perigosos. É melhor encontrar o reino de Deus, como aleijado, do que deixar que o coração seja destruído. Eu mesmo sou um aleijado espiritual desde a morte de tua mãe, Minuto.
Meu pai já estava com mais de sessenta anos e gostava de voltar ao passado em suas lembranças. Pensa-se na morte muito mais na idade dele do que na minha, de modo que não dei muita importância a isto na ocasião.
— Que estavas murmurando acerca dos desertos do Oriente e do Eufrates? — perguntei.
Meu pai tomou um bom trago do vinho escuro em seu cálice de ouro e depois virou-se para mim:
Entre os colegas de Jucundo, há filhos de reis do Oriente. Os pais, que são amigos de Roma, consideram o esmagamento da Partia absolutamente vital para o Oriente. Esses jovens são mais romanos do que os próprios romanos e em breve Jucundo será como eles. Na comissão de assuntos orientais do Senado a questão tem sido ventilada inúmeras vezes. Logo que Córbulo estabelecer a paz na Armênia, Roma terá ali um ponto de apoio e a Partia será apanhada entre as duas.
Como podes pensar em guerra num momento em que Roma é vítima de uma catástrofe? — gritei. — Três setores inteiros da cidade estão reduzidos a cinzas e seis outros ainda estão ardendo. Velhos marcos desapareceram nas -chamas. O templo de Vesta foi devorado pelo fogo, o tabelionato também, com todas as tábuas da lei. Só a reconstrução de Roma levará muitos anos e custará uma soma tão colossal que não posso sequer imaginá-la. Como podes pensar que uma guerra é possível?
Exatamente por causa disso — disse meu pai, pensativo. — Não tenho visões nem revelações, apesar de ter tido sonhos tão premonitórios que sou obrigado a pensar no conteúdo deles. Mas sonhos são sonhos. Do ponto de vista lógico, acho que a reconstrução de Roma implicará pesada tributação nas províncias. Isto provocará descontentamento, pois os ricos e os comerciantes habitualmente fazem com que o povo pague os impostos. Quando este descontentamento se generalizar, o governo será incriminado. Segundo a melhor estratégia política, a guerra é o melhor meio de dar vazão ao descontentamento interno. E uma vez iniciada a guerra, há sempre dinheiro pafa sustentá-la. Você mesmo sabe que, em muitos setores, são freqüentes as queixas de que Roma se debilitou e suas virtudes guerreiras se esvaíram. É verdade que os moços mofam das virtudes de seus antepassados e representam paródias das narrativas históricas de Lívio. Mas ainda têm sangue de lobo nas veias.
Nero não quer guerra — repliquei. — Êle estava até disposto a ceder a Bretanha. Os lucros artísticos são tudo quanto ele busca.
Um governante é sempre forçado a fazer a vontade do Povo quando necessário; de outro modo não dura muito no trono disse meu pai. — É óbvio que o povo não quer guerra, mas
pão e jogos circenses. Mas debaixo de tudo isso, jazem ocultas forças poderosas que acreditam que tirarão proveito da guerra. Nunca antes na história acumularam-se fortunas tão vastas como as que hoje em dia acumulam os indivíduos. Escravos alforriados vivem mais suntuosamente do que os nobres em Roma, pois nenhuma tradição os obriga a zelar pelo Estado mais do que por eles mesmos. Tu não sabes ainda, Minuto, que poder imenso tem o dinheiro quando se alia a mais dinheiro para alcançar seus objetivos próprios. Por falar em dinheiro, há felizmente coisas que são muito mais valiosas. Suponho que ainda guardas o cálice de madeira de tua mãe.. .
Fui tomado de violenta agitação, porque durante minha discussão com Cláudia eu esquecera completamente o cálice mágico. Que me constasse, minha casa havia muito que estava perdida, e com ela o cálice. Levantei-me instantaneamente.
— Meu querido pai, estás mais bêbado do que imaginas. Seria melhor que esquecesses as tuas fantasias. Vai dormir. Tenho de voltar a meus deveres. Não és o único atacado pelas fúrias esta noite.
À maneira lamurienta dos bêbados, meu pai me fez um apelo para que eu não esquecesse seus pressentimentos quando êle morresse, o que não poderia tardar a acontecer. Saí de sua casa e tomei o rumo do Aventino, contornando as orlas do incêndio. O calor obrigou-me a transpor a ponte para o setor judaico da cidade e depois fazer-me transportar de barco para a banda de cá mais a montante do rio. Todos os que possuíam botes ganhavam bom dinheiro conduzindo refugiados de um lado para o outro do Tibre.
Para minha surpresa, a encosta do Aventido à margem do rio parecia ainda inteiramente intacta. Diversas vezes errei o caminho no meio dos rolos de fumaça, e entre outras coisas vi que o templo da Lua e suas cercanias não eram senão ruínas fumegantes. Mas logo ao lado da área incendiada erguia-se incólume a minha casa. Não havia outra explicação exceto que o vento, que em outros lugares tivera um efeito devastador, parecia ter mantido o fogo longe do cume do Aventino, posto que não houvesse nem mesmo um verdadeiro corta-fogo. Apenas umas poucas casas tinham sido demolidas e de propósito.
A oitava manhã do incêndio raiava sobre a desolação. Centenas de pessoas comprimiam-se em meu jardim: honens, mulheres e crianças. Até mesmo os tanques vazios estavam cheios de gente adormecida. Dando largas passadas por cima deles, cheguei a casa, na qual ninguém ousara entrar malgrado as portas estivessem escancaradas.
Corri a meu quarto, localizei a arca trancada e no fundo dela o cálice de madeira envolto em seu pano de seda. Quando o segurei nas mãos, fui tomado, em minha exaustão, de um temor supersticioso, como se realmente estivesse empunhando um objeto miraculoso. Invadiu-me o terrível pensamento de que o secreto cálice da Deusa da Fortuna, pelo qual os libertos de meu pai em Antioquia haviam também mostrado tamanho respeito, resguardara minha casa do fogo. Mas depois não pensei mais nada, e, com o cálice na mão, afundei na dama e peguei no sono.
Dormi até ao aparecimento das estréias vespertinas e despertaram-me os cânticos e gritos de júbilo dos cristãos. Estava tão embotado pelo sono que, irritado, chamei por Cláudia para lhe dizer que fizessem menos barulho. Pensava que era de manhã e que meus clientes e libertos estavam à minha espera como de costume. Só quando cheguei apressado ao pátio me lembrei da devastação e de tudo o que acontecera.
Os clarões no céu revelavam que o fogo continuava lavrando na cidade, mas, apesar de tudo, o pior parecia ter passado. Reuni os meus escravos que andavam espalhados na multidão e elogiei-lhes a coragem de arriscar a vida guardando a minha casa. Instei com os outros escravos para que fossem procurar seus senhores sem perda de tempo. Agindo assim, não seriam punidos por deserção.
Por este meio logrei reduzir um pouco a aglomeração em meu jardim, mas vários pequenos comerciantes e artesãos que tinham perdido tudo o que possuíam, suplicaram que eu lhes permitisse ficar por mais algum tempo, desde que não tinham para onde ir. Estavam acompanhados de suas famílias, velhos e crianças. Achei que seria crueldade mandá-los para os escombros fumarentos da cidade.
Ainda se podia ver parte do templo do Capitólio, cuja colunata até então ilesa se destacava na chamejante claridade do céu. Nos pontos em que as ruínas tinham tido tempo de esfriar aventuravam-se alguns indivíduos à cata de metais derretidos. Nesse mesmo dia Tigelino expediu uma ordem determinando que, para evitar desordens na cidade, os soldados levantassem barricadas nas áreas assoladas pelo incêndio e não permitissem sequer a volta dos proprietários para o que restava de suas casas.
No pátio dos bichos, meus empregados tiveram de usar lanças, arcos e flechas para conter a turba longe dos nossos reservatórios de água e depósitos de provisões. Vários antílopes e cervos que viviam soltos nos cercados foram roubados e abatidos, mas ninguém se atreveu a tocar nos bisões.
Como todas as termas tivessem sido destruídas pelo fogo, Nero coroou seu segundo recital de poesia banhando-se numa das cenas sagradas. Era uma aventura perigosa, mas êle confiava em "a capacidade natatoria e sua resistência física, pois a água poluída do Tibre não lhe serviria. O povo não gostou disso e a boca pequena acusou-o de sujar o que restava da água potável, depois de ter incendiado Roma. Êle se encontrava, sem dúvida, no Âncio, quando o fogo começou, mas quem, entre os que desejavam instigar o povo, se dava o trabalho de lembrar-se disso?
Nunca tive maior admiração pela força e habilidade organizadora de Roma do que quando vi com que rapidez seus habitantes receberam auxílio e com que seriedade se empreenderam os trabalhos de limpeza e reconstrução. Cidades distantes e próximas tiveram ordem de enviar utensílios domésticos e roupas. Levantaram-se edifícios provisórios para os sem teto. Os navios de cereais que estavam vazios foram mobilizados para carregar o entulho e depositá-lo nos pântanos de Óstia.
O preço dos cereais baixou para dois sestércios, coisa de que nunca se ouvira falar até então. Isto não me afetou, de vez que o Estado assegurara aos Comerciantes do ramo um preço mais alto. Antigas depressões do solo foram aterradas e as encostas aplanadas. O próprio Nero apossou-se de toda a área entre o Palatino, Célio e Esquilino, onde pretendia construir um novo palácio, mas também demarcaram-se terrenos para construção de ruas amplas nas zonas devastadas, independentemente de planos mais antigos da cidade.
O erário concedeu empréstimos aos que podiam e queriam edificar suas casas de acordo com os novos regulamentos de construção, enquanto os que não se consideravam capazes de construir dentro de um prazo determinado perdiam o direito de fazê-lo mais tarde.
Todas as casas tinham de ser de pedra e a altura máxima era três pavimentos. Exigia-se que as casas tivessem uma arcada sombreada dando para a rua e que todo pátio tivesse cisterna própria. Organizou-se o abastecimento de água de modo a impedir que os ricos utilizassem quanto quisessem em seus jardins e banheiros.
Naturalmente essas imprescindíveis medidas compulsórias suscitaram insatisfação geral, e não só no seio da nobreza. O povo queixava-se também das novas ruas amplas e ensolaradas, que embora mais saudáveis do que as ruelas tortuosas de outrora não proporcionavam sombra ou refrigério no calor do estio, nem esconderijos para os namorados à noite. Receava-se que quando os namorados fossem levados para dentro de casa, os casamentos prematuros e forçados se tornassem muito comuns.
As cidades e os homens ricos das províncias naturalmente apressaram-se a mandar donativos voluntários de dinheiro para a reconstrução de Roma. Sem embargo, esses donativos não foram muito longe, e a conseqüência foi o aumento dos impostos que quase levou cidades e particulares à beira da falência.
A reedificação dos majestosos circos, templos e teatros de acordo com os brilhantes planos de Nero parecia destinada a empobrecer o mundo inteiro. E logo em seguida divulgou-se seu projeto de um edifício colossal em escala nunca antes imaginada, e quando se tornou possível ver as imensas áreas que êle pretendia conservar para seu próprio uso no centro da cidade, o descontentamento do povo manifestou-se afinal. Ia êle tomar posse de toda a zona onde se localizavam os armazéns de cereais que os aríetes haviam derrubado. Tornava-se assim ainda mais fácil acreditar que êle mesmo ateara fogo à cidade, a fim de apoderar-se do espaço onde ia erguer seu Palácio Dourado.
Ao aproximar-se o outono, vários violentos temporais lavaram o grosso da fuligem dos escombros, e dia e noite juntas de bois arrastavam pedras para Roma. A gritaria e o martelar contínuos das construções tornaram a vida insuportável. Para acelerar o trabalho, não se comemoravam nem mesmo os dias de festas tradicionais. O povo, habituado a divertimentos e procissões, refeições e espetáculos circenses gratuitos, passou a achar a vida monótona e brutalmente estafante.
A destruição generalizada, o medo e o perigo provocados pelo fogo continuavam como um espinho na ilharga de todos os cidadãos. Até mesmo personagens consulares contavam publicamente como tinham sido enxotados de suas casas e como soldados embriagados, cumprindo instruções do Imperador, lhes haviam incendiado os bens antes que o fogo os ameaçasse de perto.
Outros narravam como a seita cristã havia demonstrado abertamente sua alegria e cantado hinos de ação de graças durante o incêndio, e a população em geral não via nenhuma diferença entre cristãos e judeus. Faziam-se alusões indignadas ao fato de que o setor judaico da cidade, na outra margem do Tibre, tivesse escapado ao fogo, como tinham certas outras cidades habitadas pelos judeus no perímetro urbano.
O isolamento dos judeus em relação às outras pessoas, suas dez sinagogas independentes e a autoridade de seu Conselho sobre suas próprias tribos eram coisas que sempre tinham irritado o povo. Os judeus não tinham sequer uma imagem do Imperador em suas casas de orações, e tornaram-se comuns as histórias em torno de suas mágicas.
Embora Nero fosse apontado, publicamente e às escondidas, em toda a cidade, como o causador do incêndio, o povo sabia muito bem que, como Imperador, êle não podia ser punido.
culpá-lo dava a todos uma satisfação maldosa, mas a calamidade por que Roma passara era tão grande que se exigia também alguma outra expiação de culpa.
Membros das famílias nobres e antigas, que haviam perdido suas relíquias do passado e também suas máscaras mortuárias, eram os principais acusadores de Nero. Recebiam apoio dos novos-ricos, que temiam viessem a perder suas fortunas em impostos. Por outro lado, o povo reconhecia a rapidez e o cuidado com que seus sofrimentos tinham sido minorados. Nem tinha de pagar essa ajuda.
Tradicionalmente o povo considerava o Imperador, que era também o tribuno vitalício do povo, como o protetor de seus direitos contra a nobreza e reputavam inviolável a sua pessoa. Assim, sentia-se apenas maligno prazer, quando os ricos tinham de ceder seus terrenos urbanos ao Imperador e restringir seus privilégios. Mas o rancor contra os judeus e sua posição especial vinha de longa data.
Dizia-se que os judeus haviam profetizado o incêndio. Muita gente lembrava-se da maneira pela qual Cláudio expulsara de Roma os judeus. Não tardou que se passasse primeiro a insinuar e depois a afirmar, abertamente, que os judeus é que tinham iniciado o incêndio, para que se cumprisse sua profecia e pudessem eles beneficiar-se da angústia do povo.
Esse diz-que-diz era deveras perigoso. Por isso, vários judeus eminentes resolveram explicar a Popéia, e através dela a Nero, a enorme divergência entre judeus e cristãos. Essa era uma tarefa difícil, pois Jesus de Nazaré era de qualquer modo um judeu, e a doutrina de que êle era Cristo se disseminara por intermédio dos judeus. O núcleo dos cristãos de Roma ainda era formado de judeus que se tinham separado das sinagogas, posto que em sua maioria os cristãos já não fossem circuncisos.
Popéia tinha a si mesma na conta de devota, respeitava o templo de Jerusalém e conhecia as lendas sagradas de Abraão, Moisés e outros santos judeus. Mas, por segurança, pouco lhe tinham falado os judeus do Messias anunciado nas escrituras. As explanações deles deixaram-na então confusa, e ela mandou-me chamar a seus aposentos no Esquilino para que eu lhe desse uma explicação completa do que os judeus efetivamente queriam.
— Querem que tu lhes concilies as desavenças — disse eu, de brincadeira.
Mas os judeus ficaram indignados.
Estamos tratando de assunto sério — disseram eles. — O Cristo dos cristãos não é o Messias dos judeus. Malditos sejam os que o reconhecem como Cristo. Não temos nada que ver com eles, sejam circuncisos ou não. Foram esses cristãos que profetizaram o dia do julgamento e entoaram hinos de ação de graças durante o incêndio. Seus crimes não são nossos.
Os cristãos não são criminosos — atalhei. — São humildes e talvez um tanto ingênuos. Presumivelmente mais estúpidos que vós. Não crêem os judeus no juízo final e no reino do milênio?
Os judeus fitaram-me com tristeza e, após deliberarem entre ri, voltaram a falar.
_ Não discutimos esses assuntos com cães — disseram eles.
_ Tudo o que desejamos é dar garantias de que a culpa dos cris- tãos nada tem que ver com os judeus. Deles só podemos esperar perversidades.
Vi que a conversa ia tomando um rumo desagradável.
— Noto nos teus olhos inquietos, Popéia, os sinais de uma dor de cabeça que se aproxima — dei-me pressa em dizer. — Resumamos a questão. Os judeus negam ter qualquer relação com os cristãos. Consideram-se religiosos. Pensam mal dos cristãos e bem deles mesmos. Só isso.
Ao ver o semblante contrafeito dos judeus, prossegui:
— É possível que haja entre os cristãos alguns criminosos e trapaceiros que se regeneraram e cujos pecados foram perdoados. Dizem que seu rei veio especialmente em busca dos pecadores e não dos orgulhosos. Mas em geral os cristãos são mansos e pacíficos, dão comida aos pobres, ajudam as viúvas e consolam os prisioneiros. Não sei de maldade nenhuma cometida por eles.
Popéia estava curiosa.
Que culpa é essa de que eles estão falando? — perguntou. — Há em tudo isso alguma coisa duvidosa que não entendo.
Deves ter ouvido falar dos boatos que Circulam no meio do povo acerca da causa de nossa catástrofe nacional — disse eu, sarcástico. — Creio que os judeus estão agora tentando explicar por circunlóquios e um tanto tardiamente que não foram eles que incendiaram Roma. Acham que uma suspeita dessas seria tão irracional como acusar o Imperador da mesma coisa.
Mas meu sarcasmo foi inútil. Popéia tinha sobejos receios das mágicas dos judeus. Seu rosto iluminou-se imediatamente.
— Já sei! — exclamou. — Ide em paz, santos homens. Não permitirei que ninguém vos suspeite de maldade alguma. Fizestes bem em informar-me que não reconheceis os cristãos como judeus.
Os judeus abençoaram-na, em nome de seu deus Aleluia, e foram embora.
— Percebes que eles odeiam os cristãos só de inveja — disse eu, depois que ficamos a sós. — Os cristãos atraíram muitos dos seus partidários e tanto Jerusalém como as sinagogas perderam assim seus inúmeros donativos.
Se os judeus têm razão de odiar os cristãos — disse Pópeia então os cristãos devem ser perigosos e prejudiciais. Tu mesmo disseste que eles são criminosos e trapaceiros.
E não quis ouvir mais explicações, pois não havia lugar para elas em sua linda cabecinha. Creio que deve ter ido sem perda de tempo a Nero e contado a êle que foi a perigosa seita cristã que incendiara Roma e que tal seita só se compunha de criminosos.
Nero deliciou-se com a notícia e incontinenti ordenou a Tigelino que tratasse de fundamentar a acusação. Mas não envolvesse os judeus na investigação, de vez que a religião deles guardava apenas semelhanças aparentes com os perigosos ensinamentos dos cristãos.
Uma investigação desse tipo caberia normalmente ao Prefeito da Cidade, mas Nero tinha mais confiança em Tigelino. Além disso, a fé cristã provinha do Oriente e seus adeptos eram quase todos imigrados do Leste. Tigelino não se interessava por questões religiosas. Limitando-se a cumprir ordens, voltou-se para as camadas mais baixas de Roma em suas buscas.
Esta missão não oferecia dificuldade alguma. Numa única tarde seus esbirros recolheram uns trinta suspeitos que de bom grado confessaram ser cristãos e se surpreenderam ao verem-se imediatamente detidos e conduzidos aos calabouços do Pretório. Interrogados duramente se tinham posto fogo a Roma no verão passado, responderam veementemente que não. Então perguntou-se-lhes se conheciam outros cristãos. Com toda a inocência, deram tantos nomes quantos puderam lembrar. Tudo o que os soldados tiveram de fazer foi ir buscar os homens nas suas casas, os quais vieram sem protestar.
Ao anoitecer, cerca de mil cristãos tinham sido arrebanhados. A maioria, pessoas das classes mais baixas. Contavam os soldados que só tinham tido o trabalho de aproximar-se de qualquer ajuntamento e perguntar se havia cristãos presentes. Logo os loucos se apresentavam e eram presos.
Tigelino estava preocupado com o grande número de pessoas que ia ter de interrogar. Como não houvesse espaço para tanta gente, achou de bom alvitre reduzir um pouco a quantidade. Em primeiro lugar, soltou todos os judeus que podiam provar que eram circuncisos. Repreendeu severamente dois membros da Nobre Ordem dos Cavaleiros que tinham vindo com a multidão, e libertou-os depois pelo que lhe pareceu ser um motivo sensato: o de que dificilmente seria possível acusar um cavaleiro romano de atear fogo à cidade.
Diversos cidadãos mais abastados, inquietos com a casta de indivíduos de que se viam cercados, diziam-se certos de ter havido algum equívoco e ofereceram donativos ao Prefeito para que este desfizesse o mal-entendido. Soltou-os Tigelino de boa-vontade, pois acreditava que os criminosos estigmatizados e os escravos fugidos eram os mais culpados. Queria levar a cabo uma limpeza completa no mundo dos marginais de Roma que agora, após o incêndio, punham em sobressalto a cidade à noite. Tal era a. idéia que tinha dos cristãos.
A princípio os presos mantiveram-se calmos, fazendo apelos em nome de Cristo enquanto conversavam entre si, sem entender a acusação que se lhes fazia. Mas ao verem que se sorteavam e libertavam pessoas ao acaso e ouvirem dizer que a investigação tinha por fim descobrir se tinham tomado parte na premeditação do incêndio de Roma ou se sabiam alguma Coisa sobre isso, começaram a assustar-se e até mesmo a desconfiar uns dos outros.
A separação entre os circuncisos e os demais fez nascer a suspeita de que os seguidores de Jacó, os partidários de Jerusalém, tivessem alguma coisa que ver com a questão. Estes se tinham sempre conservado afastado dos cristãos, adstritos a seus próprios costumes judaicos e considerando-se mais devotos do que os outros. Rixas violentas também surgiram entre os discípulos de Cefas e os de Paulo. Em conseqüência disso, os presos restantes foram encorajados o mais possível a denunciar os cristãos de outras facções. Até mesmo os que permaneciam calmos foram levados a esses atos de inveja e vingança e também denunciaram outros. Havia ainda alguns que raciocinavam friamente e julgavam de bom aviso denunciar o maior número possível, inclusive pessoas de alta categoria social.
Quanto mais numerosos formos, pensavam, tanto mais impossível será realizar um julgamento. Paulo foi solto. Tigelino logo cairá em si, quando vir que somos muitos e influentes.
Durante a noite prenderam-se famílias inteiras em toda a Roma, de modo que em pouco tempo os Pretorianos mal podiam dar conta do recado.
Tigelino teve um sombrio despertar ao amanhecer, após sua noitada de vinho e rapazes. A seus olhos deparou-se o espetáculo do enorme campo de parada dos Pretorianos repleto de pessoas bem vestidas, humildemente sentadas no chão Mostraram-lhe intermináveis listas de pessoas que tinham sido denunciadas e perguntaram-lhe se as buscas domiciliares e detenções também se estendiam a senadores e cônsules.
A princípio não acreditou em todas essas informações, mas afirmou que os criminosos cristãos tinham acusado cidadãos honrados. Assim, percorreu ameaçadoramente o campo de parada com o chicote na mão, perguntando aqui e ali:
— Sois realmente cristãos?
E todos confessavam, alegre e confiantemente, que acreditavam em Cristo.
Eram pessoas tão respeitáveis e inocentes que êle não teve a petulância de estalar o chicote, mas decidiu que se tratava de algum equívoco grosseiro. Êle e seus colegas calcularam, com o auxilio de suas listas, que teriam de prender ainda umas vinte mil pessoas de todas as classes sociais. Punir esse número parecia demência.
Como era de esperar, a notícia das prisões em massa de cristãos tinha-se espalhado por toda a cidade. Em pouco tempo, Tigelino viu-se assediado por hordas de indivíduos invejosos e malignos que desejavam dizer-lhe que tinham visto os cristãos reunidos nas encostas durante o incêndio, entoando hinos de louvor e anunciando o fogo que estava prestes a cair do céu sobre a cidade.
No Pretório reinava o caos. As pessoas que se tinham alojado provisoriamente no campo de Marte aproveitaram a oportunidade para arrombar as casas que sabiam que eram de cristãos, maltratar outros e saquear-lhes as lojas, sem distinguir entre cristãos e judeus.
Com a conivência da polícia, multidões excitadas chegavam ao Pretório, arrastando cristãos e judeus ensangüentados e malferidos, a fim de acusá-los, agora que tinham ouvido dizer que se tinham descoberto os incendiários. A Tigelino ainda restava um pouco de juízo, de modo que advertiu com firmeza a esses indivíduos que não fizessem justiça com as próprias mãos, por mais compreensível que fosse a sua cólera e assegurou-lhes que o Imperador castigaria os culpados da maneira que mereciam os crimes terríveis por eles cometidos.
Em seguida ordenou que os Pretorianos fossem restaurar a ordem na cidade. Durante essas horas violentas da manhã os cristãos estiveram mais seguros dentro dos muros do Pretório do que estariam dentro de suas casas.
Desde o alvorecer, refugiados amedrontados tinham vindo reunir-se em minha casa e em meu jardim no Aventino, na esperança de que minha posição social lhes desse alguma segurança. Os vizinhos comportavam-se ameaçadoramente, gritando insultos e atirando pedras por cima dos muros do jardim. Não me atrevi a armar meus escravo, ou então os cristãos seriam acusados também de resistência armada. Por isso, mandei vigiar cuidadosamente a entrada. Encontrava-me numa situação embaraçosa. A única coisa favorável era que Cláudia tinha afinal concordado em ir com os criados para minha quinta em Cere a fim de lá dar à luz o nosso filho.
Minha preocupação com ela punha-me sentimental e pouco inclinado a ser inflexível com seus caros cristãos. Temia que ocorresse algum contratempo em seu parto. Após examinar as várias possibilidades, falei seriamente com eles e aconselhei-os a deixarem imediatamente a cidade, pois era evidente que os cristãos iriam ser alvos de uma denúncia grave.
Os cristãos protestaram que ninguém podia provar que eles houvessem praticado algum delito; pelo contrário, procuravam evitar todos os vícios e pecados e levavam uma vida humilde. Tinham em suas fraquezas humanas pecado talvez contra Cristo, mas não tinham feito mal algum ao Imperador ou ao Estado.
Assim, desejavam nomear advogado para defender seus irmãos e irmãs presos e pretendiam levar-lhes comida e bebida para minorar-lhes a aflição. Àquela hora ainda não se sabia ao certo o número de pessoas que haviam sido detidas durante a noite.
Para me ver livre deles, acabei por prometer-lhes dinheiro e refúgio em minhas propriedades em Preneste e Cere. Mas não anuíram enquanto não me comprometi a procurar pessoalmente Tigelino e defender os cristãos da melhor maneira possível. Como eu exercera o cargo de Pretor, os cristãos achavam que eu lhes seria muito mais útil do que o duvidoso advogado dos pobres. Por fim, hesitantes, saíram de minha casa, ainda conversando em voz alta. Meu jardim ficou deserto.
Enquanto isso, os cristãos detidos no campo de parada tinham tido tempo de se organizarem e reunirem-se em volta de seus chefes, que após conferenciarem uns com os outros deliberaram esquecer suas divergências internas e confiar exclusivamente em Cristo. Êle haveria de mandar seu espírito para defendê-los. Estavam todos assustados com os gritos de dor que ouviam vindos dos calabouços e encontravam consolação para sua angústia nas orações e cânticos de esperança.
Havia no meio deles diversos indivíduos que entendiam de leis e iam levando conforto a cada homem e cada mulher, falando-Ihes do precedente imperial no caso de Paulo. O mais importante agora era que ninguém, mesmo sob a ameaça das piores formas de tortura, se confessasse culpado de ter provocado o incêndio. Uma falsa confissão dessas seria fatal a todos os cristãos. Perseguição e sofrimento por causa do nome de Cristo tinham sido vaticinados. Podiam reconhecer Cristo, nada mais.
Ao chegar ao Pretório, fiquei espantado com o número de pessoas que tinham sido detidas. Tranqüilizei-me de início, pois nem mesmo um louco podia acreditar que toda essa gente fosse responsável por um incêndio premeditado. Encontrei Tigelino num momento apropriado, já que êle estava numa fase de completo atordoamento e não tinha idéia do que fazer. Com efeito, correu para mim e bradou que eu havia fornecido a Nero uma informação errónea a respeito dos cristãos, porque quase nenhum deles parecia ser criminoso.
Neguei categoricamente e disse-lhe que nunca tinha dito uma só palavra a Nero acerca dos cristãos.
— Deles só posso dar boas referências — afirmei. — São perfeitamente inofensivos e, em seus piores momentos, altercam entre si sobre questões de fé, mas não se intrometem nos assuntos do Estado ou mesmo nos divertimentos populares. Nem vão ao teatro. É loucura acusá-los de terem incendiado Roma.
Tigelino arreganhou os dentes para mim num sorriso assustador, desenrolou uma de suas listas e leu nela o meu nome.
— Deves saber tudo a respeito desse assunto —disse êle, desdenhoso — já que te denunciaram como cristão. Tua mulher também e toda a tua casa, mas não mencionemos nomes.
Senti-me como se um pesado manto de chumbo houvesse caído sobre mim e não pude falar. Mas Tigelino rompeu a rir e me deu uma pancada com o pergaminho:
Não vás imaginar que levo a sério essas informações. Eu te conheço, a ti e a tua reputação. E ainda que suspeitasse de ti, jamais suspeitaria de Sabina. Quem te denunciou não sabia nem que te tinhas divorciado dela. Não, eles são criminosos calejados que só por maldade desejam mostrar que os círculos nobres de Roma também se deixaram envolver nessa superstição. Mas a conspiração parece ser surpreendentemente ampla, no fim de contas. O que mais me intriga é o fato de todos eles, voluntária e alegremente, confessarem que adoram Cristo como seu deus. Só posso imaginar que foram enfeitiçados. Mas hei de pôr fim a esse sortilégio. Quando virem que os culpados são punidos, estou certo que se assustarão e logo renunciarão a essa loucura.
Talvez fosse melhor — disse eu, cauteloso — destruíres as tuas listas. Que queres dizer com "os culpados"?
É provável que tenhas razão — disse Tigelino. — Por incrível que pareça, até cônsules e senadores foram denunciados como cristãos. Seria melhor não tornar públicos esses insultos, de outro modo nossos homens de prol passariam por vergonha aos olhos do povo. Acho que não vou nem falar a Nero dessas acusações desvairadas.
Encarou-me de maneira penetrante, com um lampejo de satisfação nos olhos impiedosos. Conjeturei que êle queria guardar as listas e usá-las para extorquir dinheiro às pessoas, uma vez que era óbvio que todos os homens importantes de Roma estariam dispostos a pagar qualquer quantia para escapar a essa mácula. Tornei a perguntar-lhe o que queria dizer com os culpados.
— Conto com confissões mais do que suficientes — vangloriou-se êle.
Como eu me recusasse a crer, levou-me aos porões e mostrou- me, uma após outra, suas lamurientas e semimortas vítimas.
— É claro que só mandei torturar criminosos marcados e escravos fugidos, e mais um ou dois outros, que me pareceram estar escondendo alguma coisa — explicou. — Uma boa sova foi suficiente para a maioria, mas como vês tivemos de usar ferros aquecidos ao rubro e garras de ferro em alguns casos. São teimosos, esses cristãos. Alguns morreram sem confessar nada, apenas gritavam pela ajuda de Cristo. Outros confessaram, logo que viram os instrumentos.
_ Que foi que confessaram?
Que tinham incendiado Roma por ordem de Cristo, é lógico — disse Tigelino com insolência. Mas ao notar minha reprovação, acrescentou: — Ou o que quiseres. Um ou dois admitiram vagamente haver posto fogo às casas, juntamente com os soldados. Na verdade, isso foi tudo que descobri em matéria de conspiração ou crime. Mas vários indivíduos que, sob outros aspectos, parecem inteiramente dignos, reconheceram espontaneamente ter pensado que seu deus punira Roma com o fogo por causa dos pecados da cidade. Isso não basta? E outros me disseram que tinham esperado ver seu deus descer do céu enquanto o fogo lavrava, para julgar todos aqueles que não reconhecem Cristo. Coisas como essas afiguram-se como uma conspiração secreta contra o Estado. Assim, os cristãos têm de ser punidos por sua superstição, não importa se atearam o fogo com suas mãos ou se concordaram conscientemente com todo esse plano cruel.
Apontei para uma mocinha amarrada com correias de couro num ensangüentado banco de pedra. A boca sangrava e os peitos e membros estavam tão dilacerados pelas garras de ferro, que era evidente que ela estava morrendo, em virtude da perda de sangue.
— Que confessou esta menina inocente?
Tigelino esfregou as palmas das mãos e evitou meu olhar.
— Procura entender-me um pouco — disse êle. — A manhã inteira eu tive de me ocupar com caldeireiros. Preciso tirar pelo menos um pouco de prazer de tudo isso. Mas eu estava realmente curioso de saber o que ela tinha para confessar. Pois bem, tudo quanto ela me disse foi que logo algum grande homem viria julgar-me e atirar-me ao fogo para castigo das minhas más ações. Menina vingativa. Aliás, todos gostam de falar de fogo, como se sentissem especial atração por êle. Há pessoas que têm prazer em observar incêndios. Se não fosse assim, Nero não teria escolhido aquela noite para cantar do alto da torre de Mecenas.
Fingi examinar de perto a moça, apesar de que isso me deixasse nauseado.
— Tigelino — disse eu, de propósito — acho que esta menina é judia.
Apavorado, Tigelino segurou-me o braço:
— Não contes a Popéia, por nada neste mundo. Como poderia eu distinguir uma moça judia das que não o são? Elas não têm sinais de identificação no corpo como os homens. Mas era cristã, sem nenhuma dúvida. Ela não quis denunciar sua loucura, embora eu prometesse deixá-la ir embora viva, caso abandonasse essas superstições. Devia estar enfeitiçada.
Felizmente, após este pavoroso incidente, Tigelino resolveu parar de torturar suas vítimas e tratou de reanimá-las, para que pudessem submeter-se ao castigo que o Imperador impusesse aos incendiários. Voltamos a seu gabinete particular de inquirições, onde o informaram de que o velho Senador Pudeus Publícola, da família Valeriana, chegara com um ancião judeu e exigia em altos brados uma audiência com Tigelino.
Tigelino, desagradàvelmente surpreendido, coçou a cabeça e olhou-me atarantado:
— Pudeus é um velho pacato e ingênuo. Por que terá ficado com raiva de mim? Talvez eu tenha prendido um dos seus clientes, por engano. Fica aqui e ajuda-me, já que conheces os judeus.
O Senador Pudeus entrou com sua velha cabeça branca tremendo de raiva. Para minha surpresa, era Cefas que o acompanhava, o gasto bordão de pastor na mão e o rosto barbado vermelho de agitação. O terceiro era um rapazinho chamado Cleto, pálido de medo, que eu vira antes atuando como intérprete de Cefas.
Tigelino ergueu-se e saudou Pudeus respeitosamente, mas o velho precipitou-se na direção dele, armou um pontapé com sua bota púrpura e pôs-se a injuriá-lo:
— Você, Tigelino, seu maldito tratador de cavalos, fornicador e pederasta! — vociferou. — Que pensa você que vai fazer? Que falsas acusações são essas contra os cristãos? Até onde acha que vai chegar com sua insolência?
Tigelino procurou humildemente explicar que não confundia sua vida particular com seu cargo de Prefeito Pretoriano. Não era o único pederasta de Roma e não tinha por que se envergonhar de ter sido criador de cavalos durante o período em que estivera exilado.
— Portanto, pare de insultar-me, meu caro Pudeus — disse êle. — Lembre-se da sua posição e de que aqui devo ser tratado como funcionário público e não como um particular. Se tem alguma reclamação a fazer, escutarei com paciência o que tem a dizer.
Cefas levantou os braços e começou a falar alto, em aramaico, sem sequer olhar na minha direção, como se se dirigisse a um estranho na mesma sala. Tigelino acompanhou o rumo do olhar de Cefas.
— Quem é esse judeu? — perguntou. — E o que é que está dizendo? Com quem está falando? Espero que não seja bruxaria e que alguém tenha tomado providência para que êle não viesse para cá com seus mágicos feitiços e perigosos amuletos.
Puxando Tigelino pelo braço, consegui que êle me desse atenção.
— É o cabeça dos cristãos — expliquei — o célebre Cefas. Atribuem-lhe o poder de ressuscitar os mortos e fazer milagres tais que, junto dele, Simão, o mago, quando era vivo, parecia um principiante. Encontra-se sob a proteção do Senador Pudeus desde que curou a enfermidade do Senador.
Tigelino estendeu dois dedos para a frente, ao modo de chifres, para precaver-se contra os espíritos maléficos.
— É um judeu — disse, com firmeza. — Não tenho nada que ver com êle. Diga-lhe que pare com suas feitiçarias e vá embora. E leve seu bordão mágico, antes que eu me zangue.
A essa altura o Senador Pudeus estava mais calmo:
— O venerabilíssimo Cefas — disse êle — está aqui para responder por todas as acusações que você inventou contra os cristãos. Pede que você solte os outros e o prenda. É o pastor deles. Todos os outros, dos mais humildes aos mais ilustres, são apenas suas ovelhas.
Tigelino recuou até a parede, pálida a cara morena e trêmulos os lábios.
— Tirem-no daqui — disse, inseguro — antes que eu mande açoitá-lo. Digam-lhe que seria melhor ir-se embora da cidade de uma vez por todas. Por ordem do Imperador, estou investigando a conspiração dos cristãos para destruir Roma. Os incendiários já confessaram, mas devo dizer que muitos cristãos respeitáveis talvez não soubessem desse plano terrível. É possível que até esse ancião do bordão desagradável não soubesse de nada.
Pudeus escutou de boca aberta, com a pele flácida em volta do queixo a agitar-se. Depois meneou a cabeça:
— Toda a gente sabe que foi o próprio Imperador quem pôs fogo a Roma, a fim de dispor dos terrenos entre Célio e Esquilino, para seus mirabolantes planos arquitetônicos. Mas Nero está completamente enganado se imagina que pode pôr a culpa em pessoas inocentes. Acautele-se êle contra a cólera do povo, se isto se tornar conhecido.
Tigelino olhou em roda temendo que as paredes estivessem escutando.
— Você é um ancião, Pudeus — admoestou-o depois. — Sua cabeça está confusa. Não deve deixar que esses boatos saiam de seus lábios nem por brincadeira. Ou é você mesmo um cristão que, em seu desnorteamento, se envolveu nesse negócio? Tenha cuidado. Seu nome figura nas listas, embora naturalmente eu não de muito valor a tais acusações. Um membro do Senado não pode ser cristão.
Tentou rir, mas fitou os olhos em Cefas, estremecendo a cada gesto que este fazia. Pudeus lembrou-se de sua dignidade e posição e compreendeu que tinha ido longe demais:
Muito bem. Talvez haja fanáticos e indivíduos facciosos entre os cristãos, e até mesmo falsos profetas também. Talvez algum lobo tenha penetrado no meio deles com pele de cordeiro. Mas Cefas responderá por todos eles no julgamento público. Espero apenas que êle, por mandado do espírito, não empregue palavras que assustem o próprio Nero.
Tigelino também serenou um pouco:
— Não guardo rancor a você. Estou sempre disposto a fazer concessões às pessoas. Mas o seu mágico judeu não pode responder por outros neste processo. Goza dos mesmos direitos e da situação especial de que gozam todos os outros malditos judeus. Nero proibiu-me expressamente de meter os judeus nisto, pois nem mesmo o próprio Hércules seria capaz de distinguir os judeus fiéis, dos heréticos, nessas cavalariças de Augias. Acho que Roma seria uma cidade muito melhor sem os judeus. Mas esta é apenas minha opinião pessoa! e não vem ao caso. Obedeço ao Imperador.
Expliquei, resumidamente, o ponto de vista jurídico de Tigelino a Cleto, e este traduziu-o para Cefas, cujo semblante tornou a avermelhar-se. De início, Cefas tentou falar com modos moderados, mas logo se exaltou tanto que passou a trovejar suas palavras.
Cleto procurou interpretar, eu também intervim com minhas idéias e Pudeus expressou seus pontos de vista próprios de forma que em pouco estávamos todos falando ao mesmo tempo e nenhum entendia o que o outro queria dizer.
Por fim, Tigelino ergueu ambas as mãos, como para separar-nos, e exigiu silêncio:
— Basta! — bradou. — Por respeito aos seus cabelos brancos, Pudeus, e para obter as boas graças desse poderoso mágico, estou disposto a soltar dez ou vinte, ou, digamos, cem cristãos, que êle mesmo pode escolher. Êle pode ir ao campo de parada e escolher. De qualquer modo, tenho cristãos em demasia e estou pronto a ver-me livre de alguns por qualquer meio razoável.
Mas Cefas não aprovou esta sensata sugestão, embora tenha dado um pouco de atenção a ela. Obstinadamente, insistiu em que o prendessem e soltassem todos os outros. Era uma exigência descabida mas, examinando-a melhor, compreendi que era prudente do ponto de vista dele. Se selecionasse cem ou duzentas pessoas, a sua vontade, dentre aquela imensa multidão, causaria tremenda suspeita no meio dos cristãos, e num momento em que os porta-vozes das diversas correntes tinham chegado a uma espécie de acordo.
Nossas negociações não podiam prosseguir. Finalmente, a despeito do temor da magia, Tigelino perdeu a paciência, quando viu que sua autoridade ia sendo solapada. Precipitou-se para fora da sala e ouvimo-lo ordenar aos guardas de serviço que escorraçassem da área do quartel o presunçoso judeu a vergastadas.
— Mas não empreguem mais violência do que a necessária — recomendou — e por nada no mundo não levantem nem o dedo mínimopara o Senador Pudeus. Êle é um Publícola.
Mas Tigelino encontrou dificuldade em fazer-se obedecer pelos Pretorianos. Alguns destes tinham ouvido as pregações de Paulo, quando o vigiavam, e desde então começaram a ter respeito aos cristãos. Advertiam então aos colegas, e Tigelino não podia convencê-los a aceitarem a responsabilidade, pois êle mesmo estava terrivelmente amedrontado com a fama de mágico de Cefas. Até o centurião do Pretório aconselhou-o seriamente a não tocar num homem tão santo.
Afinal, Tigelino viu-se na contingência de prometer o soldo extra de um mês a quem levasse Cefas para fora do quartel e o mantivesse fora dos muros. Só assim logrou encontrar cinco indivíduos truculentos que se encorajavam mutuamente, dizendo que não temiam as forças infernais. Após beber cada qual um gole de vinho, penetraram no gabinete de inquirições e começaram a expulsar Cefas com possantes chicotadas.
Pudeus não podia interferir, pois nem mesmo a um Senador é dado revogar uma ordem militar. Não lhe restava outra alternativa senão insultar e ameaçar Tigelino, que por segurança, mantinha-se a distância e instigava os Pretorianos com gritos veementes.
As chibatadas das correias de pontas chumbadas estalavam na cabeça e nos ombros de Cefas, mas o altaneiro ancião apenas aprumava os ombros largos, sorria mansamente, abençoava os soldados e pedia-lhes que batessem com mais força, já que para êle era uma alegria padecer em nome de Cristo.
Para facilitar a tarefa dos Pretorianos, tirou o manto grosseiro e, para não salpicá-lo de sangue, entregou-o ao Senador- Pudeus para que o segurasse. Pudeus teria a maior satisfação em segurá-lo, mas naturalmente eu não podia deixá-lo fazer isso, por causa de sua dignidade. Assim, pus o manto no meu braço.
Loucos de medo, os soldados zurziam Cefas, com todo o ímpeto, e casualmente atingiam uns aos outros com seus golpes. O sangue vertia do rosto de Cefas e descia-lhe pela barba encanecida, empapava-lhe a túnica desfeita em trapos e respingava no piso e nas paredes, de modo que Pudeus e eu tivemos de recuar. Quanto mais os soldados o açoitavam, mais feliz Cefas sorria de quando em quando gritando de prazer e pedindo que Cristo os abençoasse por estarem proporcionando a êle, Cefas, tamanha alegria.
Contemplando a cena cruel, Tigelino convencia-se cada vez mais de que Cefas era um feiticeiro terrificante, pior ainda do que Apolônio de Tiana, já que nem mesmo sentia dor física. Aos gritos, mandou que os soldados jogassem fora o açoite e levassem Cefas.
Os homens estavam com receio de tocá-lo, mas aquela história começava a ferir-lhes os brios de soldados. Estimulados pelas
gargalhadas e pilhérias dos colegas, praguejaram e puseram as mãos em Cefas, levando-o a perder o equilíbrio, embora êle lutasse como um touro, ao mesmo tempo evitando atingir ou machucar os soldados.
Conseguiram conduzi-lo pela arcada até aos degraus de mármore. Lá, êle se desvencilhou dos soldados e prometeu caminhar por sua livre vontade para o portão, desde que eles o chicoteassem durante todo o trajeto. Os soldados de bom grado deixaram-no ir, dizendo que a força dele lhes tinha paralisado os braços e destruído o vigor dos açoites.
Os cristãos detidos correram para Cefas, sem que ninguém os impedisse, gritando jubilosos o seu nome e ajoelhando-se, em longas filas, de cada lado do caminho, em sinal de respeito por êle.
Cefas disse-lhes que suportassem com paciência as aflições, sorriu contente, ao levantar os braços para abençoá-los e gritou o nome de Cristo. Os presos foram tomados de piedosa confiança e coragem, ao verem o lanhado Cefas ser expulso do quartel a chicote e esqueceram a mútua desconfiança.
Cefas estava decidido a ficar do lado de fora do portão e esperar lá, sem comer nem beber, mas Pudeus afinal persuadiu-o a desistir desse intento. Entregou-o a seu séquito, recomendando que o transportassem rapidamente e em segredo para casa. Com este fim, cedeu a Cefas a cadeirinha. Cefas teria preferido ir a pé, mas a emoção e a perda de sangue faziam-no cambalear. Pudeus tratou, então, de negociar outra vez com Tigelino, segundo a boa maneira romana.
Quando viu os cristãos murmurando e invadindo alegremente o pátio do Pretório, Tigelino recobrou o juízo e ordenou que os guardas os fizessem recuar para o cercado do campo de parada e determinou que os presos mais próximos limpassem as manchas de sangue do piso e das paredes do gabinete de inquirições.
Os cristãos olharam espantados uns para os outros, pois não tinham escovas nem jarros de água. Tigelino estourou na gargalhada:
— Podem lamber o piso, se quiserem. Pouco se me dá. O importante é que façam a limpeza.
Então os cristãos ajoelharam-se e cuidadosamente limparam todas as gotas de sangue com suas vestes, já que isso lhes recordava os sofrimentos de Cristo.
Como homem sensato que era, Pudeus procurou salvar o que pudesse e, com audácia, perguntou a Tigelino se estava de pé a promessa de consentir na escolha de cem cristãos dentre os presos. Tigelino desejava estar nas boas graças do Senador e prontamente aquiesceu:
— Por mim, pode levar até duzentos, se quiser. Daqueles que negam ter tido qualquer participação no incêndio da cidade.
Pudeus dirigiu-se imediatamente para o campo de parada, antes que Tigelino tivesse tempo de arrepender-se da promessa, que fizera apenas por desafogo. Mas Tigelino pensou um pouco e gritou atrás dele:
— Isso representará cem sestércios na minha bolsa particular, por cabeça.
Sabia que Pudeus não era rico e mal conseguia manter-se acima do limite mínimo de renda exigido dos senadores. Quando era vivo, o Imperador Cláudio tivera certa vez de completar do próprio bolso a diferença, para que Pudeus não tivesse de deixar o Senado por falta de dinheiro. Por isso, Tigelino achou que não devia exigir maior quantia.
Dentre a multidão de cristãos, Pudeus escolheu aqueles que êle sabia que tinham maior aproximação com Cefas e as mulheres que tinham crianças em casa e estavam com pressa de voltar a seus lares. Achou desnecessário selecionar moças, presumindo que não seriam acusadas de incêndio premeditado e que nenhuma das mulheres estava sob a ameaça de perigo ou punição, de vez que não havia possibilidade de denúncia formal, em vista da escassez de provas.
Por isso contentou-se de consolar e encorajar seus próprios amigos entre os cristãos e afiançar-lhes que, como homens respeitados, certamente seriam soltos. Não se formou grande aglomeração à sua volta, e na realidade alguns dos que êle escolheu recusaram-se a deixar seus companheiros de crença, preferindo partilhar da sorte deles.
De qualquer modo, Pudeus selecionou duzentas pessoas para serem soltas e pechinchou com Tigelino de modo que, no fim de contas, êle se satisfez com a soma simbólica de apenas dez mil sestércios por tudo.
Fiquei tão impressionado com sua complacência que perguntei se não podia também resgatar algumas pessoas que eu sabia serem partidárias de Paulo, em Roma. Achava que era importante que alguns dos seguidores de Paulo também fossem soltos, a bem da união entre os cristãos. Poderia haver murmurações maldosas, caso os partidários de Cefas recebessem tratamento preferencial.
Eles consideravam os ensinamentos de Paulo inutilmente complicados, ao passo que os adeptos de Paulo se jactavam de entender os mistérios divinos melhor do que os outros. Sentia-me feliz ao pensar em vangloriar-me, diante de Cláudia, por ter ajudado os cristãos em sua aflição, sem tirar disso nenhuma vantagem.
Tigelino nem exigiu remuneração pela liberdade deles, pois precisava do meu auxílio para encaminhar ao tribunal um relatório imparcial sobre a superstição cristã. Também me tinha certo respeito, porque eu não dera sinais de medo diante de Cefas e não arredara pé. Exprimiu sua gratidão a esse respeito com algumas palavras relutantes.
Êle próprio ainda conservava um salutar receio de Cefas, porquanto os soldados que haviam segurado Cefas tinham perdido completamente o uso dos braços. Queixavam-se lastimosamente de paralisia, decorrente das ordens do Prefeito de que pusessem as mãos num mágico. Creio que exageravam intencionalmente seus males, a fim de obter mais dinheiro. Pelo menos não ouvi dizer posteriormente que tivessem sofrido quaisquer conseqüências duradouras.
Tigelino julgava-se agora pronto a levar o problema a Nero. Pediu-me que o. acompanhasse, já que eu me mostrara versado na questão e conhecia pessoalmente os cristãos. Achava que era seguramente meu dever, pois eu havia orientado mal a Nero, ao dar a Popéia informações incorretas sobre eles. Achava também não haver mal algum em que eu pessoalmente tivesse compaixão dos cristãos e não quisesse acreditar em todas as perversidades que êle acreditava ter descoberto em conseqüência de seus interrogatórios. Dessa maneira a exposição dos fatos seria mais imparcial.
Montamos a cavalo e fomos para o Esquilino. A fim de acelerar o trabalho de construção após o alargamento e retificação das ruas, permitia-se agora a presença de veículos e cavalos dentro dos muros da cidade durante o dia. Nero estava na melhor das disposições de espírito. Êle e seus comensais tinham acabado de saborear uma lauta refeição regada a vinho e refrescar-se com um banho frio para que pudessem continuar a comer e beber até a noite — hábito não muito freqüente do Imperador.
Nero não cabia em si de contente por ter descoberto um método politicamente excelente de desviar, de sua pessoa para os criminosos cristãos, a atenção do povo e assim calar os boatos malévolos. Não se perturbou com o relatório de Tigelino acerca do número colossal de cristãos detidos, pois aferrava-se à idéia de que não passavam de indivíduos desregrados, desclassificados e criminosos.
— Trata-se apenas de encontrar um castigo adequado à monstruosidade do seu crime —-disse êle. — Quanto mais severa fôr a punição, maior será o número de, pessoas que se convencerão da culpa deles. Podemos, ao mesmo tempo, dar ao povo peças e espetáculos de um gênero que ninguém jamais ofereceu. Não podemos usar o anfiteatro de madeira, cujos porões ainda estão cheios de gente sem lar, e o grande circo está reduzido a cinzas. Terá de ser o meu circo no Vaticano. Ê um tanto exíguo, sem dúvida, mas podemos organizar festas para o povo e um banquete gratuito, à noite, nos meus jardins, simultaneamente, no sopé do Janículo.
Eu não estava certo do que êle tinha em mira, mas tive o atrevimento de ponderar que primeiro seria necessário realizar um 374 julgamento público e que provavelmente não seriam muitas as pessoas que poderiam ser acusadas de incêndio premeditado, com base nas provas então disponíveis.
_ Por que público? — perguntou Nero. — Os cristãos são criminosos e escravos fugitivos sem cidadania. Não há necessidade de reunir um colégio de cem cidadãos para julgar essa gente. Basta um decreto do Prefeito.
Tigelino explicou que uma quantidade surpreendente de presos se compunha de cidadãos contra os quais nada se podia alegar, exceto que haviam confessado ser cristãos, e lembrou as dificuldades implícitas na manutenção de cinco mil pessoas no pátio de exercícios do Pretório, durante vários dias.
Além disso, os cidadãos presos pareciam dispor de recursos que os capacitavam a prolongar o julgamento mediante apelos ao Imperador, mesmo que fossem condenados no tribunal ordinário. Assim, cabia ao Imperador decidir desde logo se a confissão de ser cristão constituía fundamento suficiente para a sentença do tribunal.
— Disseste cinco mil? — perguntou Nero. — Ninguém jamais utilizou tanta gente, de uma só vez, num espetáculo ou mesmo nos triunfos mais suntuosos. Acho que um só espetáculo bastaria. Não podemos realizar um festim popular que dure dias a fio. Isso retardaria ainda mais os trabalhos de construção. Serias capaz de fazê-los desfilar imediatamente pela cidade até o outro lado e alojá-los em meu circo? Assim, terá o povo uma pré-estréia do espetáculo e também poderá dar expansão à Cólera que sente ante esse crime terrível. Por mim, pode até estraçalhar um ou outro pelo caminho, contanto que tomes providências para que não haja excessivo tumulto.
Vi que Nero ainda não tinha noção precisa de toda a questão ou de suas proporções:
— Não percebes? — perguntei. — A maioria são pessoas respeitáveis e honradas, moças e rapazes também, que ninguém suspeitaria de maldade nenhuma. Vários usam togas. Não pensas seriamente em permitir que o povo insulte a toga romana, não é mesmo?
Nero fechou a cara e fitou-me com atenção, por um instante, enquanto se lhe endurecia o pescoço grosso e o queixo gordo.
— Evidentemente duvidas dos meus dotes de inteligência, Manilano — disse êle, usando meu sobrenome para mostrar seu desagrado. Mas depois rebentou a rir, já que outra idéia lhe acu-
dira à cabeça. — Tigelino pode fazer com que desfilem nus. O povo achará mais divertido ainda e ninguém saberá quem é respeitável e quem não é.
Em seguida, balançou a cabeça.
— Sua aparente inocência — prosseguiu — está só na superfície. Minha própria experiência ensinou-me a duvidar daqueles que mascaram seus malefícios com piedade exterior e hábitos virtuosos. Estou bem a par da superstição cristã. O castigo mais severo é brando demais para suas torpezas. Quereis ouvir-me?
Olhou em roda com ar indagador. Eu sabia que era melhor ficar calado quando êle queria falar. Assim, todos lhe pedimos que continuasse.
— A superstição cristã — disse Nero — é tão ignóbil e aterradora que só podia mesmo ter nascido no Oriente. Eles praticam bruxarias tenebrosas e ameaçam incendiar um dia o mundo inteiro. Identificam-se uns aos outros por meio de sinais secretos, e se reúnem à noite, a portas fechadas, para comer carne humana e beber sangue. Com tal finalidade, pegam as crianças que estão sob seus cuidados e as imolam em suas reuniões secretas. Depois de comerem e beberem, fornicam juntos, de todas as maneiras, normais e anormais. Têm até relações sexuais com bichos, pelo menos com ovelhas, segundo ouvi dizer.
Circunvagou os olhos em triunfo. Creio que Tigelino estava irritado por ter Nero, desse modo, impedido que êle próprio apresentasse o sumário dos resultados de seus interrogatórios. Sentia, talvez, a necessidade de falar em sua própria defesa. Seja como for, suas palavras vieram carregadas de desdém.
— Não podes julgá-los simplesmente por fornicação. Sei de muitas pessoas, aqui mesmo, perto de nós, que também se reúnem a portas fechadas para fornicar.
Nero estourou na risada:
— É bem diferente — disse êle — quando as pessoas se reúnem, de pleno acordo, para seu próprio prazer e para estudar tais passatempos. Mas não conteis tudo a Popéia, porque ela não é tão tolerante quanto seria de desejar. Os cristãos, porém, fazem tais coisas como uma espécie de conjuração, em honra de seu deus, esperando alcançar vantagens de todos os tipos sobre as outras pessoas. Acham que tudo lhes é permitido e no dia que tomarem o poder julgarão o resto da humanidade. Essa é uma idéia que seria politicamente perigosa, se não fosse tão ridícula.
Não nos juntamos à sua gargalhada um tanto forçada.
Os porões sob o circo do Vaticano são demasiadamente pequenos para cinco mil pessoas — interrompeu Tigelino. — Continuo achando que é desnecessário arrastar os cidadãos para esse negócio. Sugiro que me seja dada permissão para libertar todos aqueles que honestamente dêem garantias de que renegam a superstição cristã e que, de mais a mais, sejam cidadãos probos.
Mas neste caso poucos sobrarão para o castigo — protestou Nero. — É óbvio que todos renegarão, se lhes dermos oportunidade Todos participaram da conjuração, da mesma forma, ainda não tenham tomado parte, diretamente, no incêndio. Se me parecer que o número é grande demais, o que parece de todo improvável, quando pensamos no monstruoso crime que cometeram, permitirei então que deitem sortes lá entre eles. É o que se faz na guerra, quando uma legião sofre derrota vergonhosa. A Córbulo foi concedida permissão de mandar matar um homem, em cada grupo de dez, com a ajuda dos dados, que apontavam heróis e covardes alternadamente. Sugiro que deites sortes para libertar um, em cada grupo de dez indivíduos. É de presumir que a punição dos outros há de deixá-los suficientemente assustados para que a superstição cristã desapareça de Roma para sempre.
Tigelino lembrou que ninguém, até então o acusara de exagerada brandura no desempenho. do cargo.
— Meus pontos de vista são puramente práticos. Executar cinco mil pessoas de maneira artística, como desejas, não é possível, num só dia, naquele teu minúsculo circo, ainda que enchamos todos os jardins de crucifixos. Lavo minhas mãos de todo esse negócio. Se não queres um espetáculo artístico, então, naturalmente, pode-se providenciar um morticínio em massa, embora eu desconfie que não dará muito prazer ao povo. Terminam enfastiados. Não há nada mais monótono do que execuções contínuas o dia inteiro.
Estávamos todos tão apavorados com seus comentários, que ninguém disse uma palavra. Havíamos imaginado a execução, por algum meio cruel, de uns vinte cristãos, enquanto o restante tomaria parte num espetáculo qualquer.
Petrônio meneou a cabeça e apressou-se a dizer:
Não, meu senhor, isso não seria de bom tom.
Não quero que tu, e talvez eu mesmo também, sejamos acusados de não fazermos caso dos direitos de cidadania — prosseguiu Tigelino. — Temos de malhar enquanto o ferro está quente. Este é um problema de certa urgência. Disponho de umas dez confissões autênticas, mas não bastarão para um julgamento público, e todos os que confessaram já não prestam para aparecer em público.
Apoquentado por nossos olhares, acrescentou irritado:
Alguns morreram quando tentavam fugir. Isso acontece com freqüência.
Novamente tive a sensação de que um manto pesado caía sobre mim, mas não pude deixar de falar sem rebuços.
Imperador — disse eu — conheço os cristãos, seus costumes e hábitos. São indivíduos pacíficos que vivem recatadamente, sem intrometer-se nas questões do Estado, e evitam todos os delitos. Deles só posso falar bem. São tolos, talvez, em sua crença de que um certo Jesus de Nazaré, a quem chamam de Cristo, e que foi crucificado na época em que Pôncio Pilatos era Procurador na Judéia, virá libertá-los de todos os pecados e conceder-lhes a vida eterna. Mas ingenuidade, por si só, não é crime.
— É isso mesmo, acreditam que seus crimes mais atrozes lhes serão perdoados porque tudo é lícito para eles — disse Nero, com impaciência. — Se esta doutrina não é perigosa, então gostaria que me dissessem o que representa perigo para o Estado.
Alguns, hesitantes, afirmaram que o perigo decorrente da superstição dos cristãos talvez fosse exagerado pelos boatos. Se alguns fossem punidos, os demais se assustariam e repudiariam a superstição.
— A verdade é que odeiam a humanidade inteira — atalhou Tigelino, exultante — e acreditam que seu Cristo aparecerá para condenar-te, a ti, meu senhor, e a mim também e à minha imoralidade. Seremos queimados vivos, para castigo de nossas más ações.
Nero riu e deu de ombros. Diga-se, a seu favor, que êle não se incomodava com insultos dirigidos a suas fraquezas pessoais e tratava com bonomia os que o mimoseavam com versos maliciosos.
Mas ergueu os olhos, rapidamente, quando Tigelino se voltou para mim e falou em tom reprovador:
Não foste tu, Minuto, que disseste que os cristãos não gostam dos espetáculos teatrais?
Odeiam o teatro? — disse Nero, erguendo-se vagarosamente, já que não tolerava desconsideração à sua arte lírica. — Neste caso, são verdadeiros inimigos da humanidade. Não acredito que alguém venha em sua defesa.
Ergui-me, os joelhos tremendo violentamente.
— Senhor — protestei, obstinado — eu mesmo tenho tomado parte, uma vez ou outra, nos ágapes dos cristãos. Posso jurar que não acontece nada de indecente nessas ocasiões. Servem-se de vinho, e pão e outros alimentos comuns. Dizem que esses alimentos representam a carne e o sangue de Cristo. Após a refeição, trocam beijos, mas não há nada de mal nisso.
Nero rejeitou minhas palavras, com um gesto de mão, como se afugentasse uma mosca:
Não me irrites, Maniliano. Todos sabemos que não és nenhum gênio, embora tenhas algumas boas qualidades. Os cristãos jogaram areia nos teus olhos.
Isso mesmo — disse Tigelino. — Nosso Minuto é crédulo demais. Os mágicos cristãos o iludiram. Eu mesmo passei por essas dificuldades durante os interrogatórios. Por fora, mostram uma cara bondosa, parecem respeitáveis e enganam os pobres, oferecendo-lhes refeições gratuitas. Mas quem quer que se dedique a seus mistérios expõe-se a seus feitiços.
A única coisa que Conseguimos foi que Nero compreendesse que dois ou três mil presos bastariam para o espetáculo e que autorizasse Tigelino a soltar os que renegassem a superstição, contanto que sobrasse número suficiente para um julgamento:
_ Planejemos algo agradável para divertir o povo — sugeriu.
_ Tigelino, incumbo- te também de escolher algumas moças e rapazes saudáveis para a representação teatral, para que não apareçam somente escravos ferrados.
Quando voltava ao acampamento Pretoriano com Tigelino, eu ia pensando que Nero tinha em mente alguma representação teatral, engraçada e vergonhosa, para castigar a maioria dos cristãos, libertando-os depois que alguns tivessem sido executados para satisfazer o povo.
Tigelino nada dizia. Tinha seus próprios planos, embora eu não os conhecesse na ocasião.
Saímos para o campo de parada. Os presos estavam exaustos pelo sol, pois era um dia quente de outono. Haviam recebido comida e água da cidade, mas em quantidade insuficiente. Muitos, famintos e sedentos, pediam permissão para se suprirem de alimentos, de acordo com as leis e o costume.
Ao avistar um homem respeitável de toga, Tigelino parou e
dirigiu-lhe a palavra com modos amistosos.
— Teve alguma participação na conjura para incendiar Roma? — perguntou, e ao receber resposta negativa, disse: — Já foi punido alguma vez por algum crime grave? — Ouvindo uma resposta satisfatória, exclamou: — Ótimo! Você parece um homem honrado. Pode ir em paz, se prometer renegar as perniciosas crenças dos cristãos. Suponho que tem cem sestércios para pagar as despesas da prisão.
Mas ficou desagradavelmente surpreso, e para dizer a verdade, também fiquei, ao ouvir, um após outro, responder que não podia negar Cristo, que os tinha salvo dos pecados e chamado para o seu reino. De outra maneira, diziam todos, teriam prazer em ir para Casa e pagar cinqüenta, cem ou até mesmo quinhentos sestércios, para cobrir as despesas que haviam causado ao Estado.
Por fim, Tigelino estava com tanta pressa de fazer alguma coisa que fingia que não ouvia e murmurava a pergunta:
Renega Cristo, então, não é verdade? — E a cada negativa respondia com uma frase lacônica: — Ótimo, pode ir.
Chegou até a não exigir mais propinas, contanto que os presos-mais respeitáveis concordassem em ir embora. Mas muitos eram tão teimosos que voltavam às ocultas para o campo de parada e se escondiam entre os outros cristãos.
Enquanto isso, Tigelino fizera com que os Pretorianos de serviço na cidade espalhassem a notícia de que êle estava pensando em obrigar os responsáveis pelo incêndio de Roma a marchar através das ruínas, ao longo da via Sacra até a outra margem do rio, onde ficariam detidos no circo de Nero. Comunicou aos guardas que não fazia objeção a que um ou outro preso escapasse, misturando-se à multidão, no trajeto. Alguns dentre os mais idosos e as mulheres mais debilitadas queixaram-se de que era um itinerário comprido, mas Tigelino jurou, de brincadeira, que não podia fornecer cadeirinhas a todos.
Uma multidão estrepitosa, aglomerada à beira do caminho, atirava barro e pedras nos cristãos, mas o cortejo veio a ser tão inimaginavelmente extenso que até mesmo os piores arruaceiros se cansaram, antes que o fim estivesse à vista. Eu mesmo fui a cavalo de um extremo a outro do desfile, e tomei todas as medidas para que os Pretorianos cumprissem o dever e protegessem os presos contra a multidão.
Alguns surraram com tanta violência os presos que estes ficaram deitados no chão esvaindo-se em sangue, mas quando alcançamos a via Sacra e o céu tingiu-se de vermelho e as sombras se encompridaram, um estranho silêncio desceu sobre as multidões reunidas à margem da estrada. Era como se toda a cidade tivesse caído num silêncio fantasmal. Os pretorianos volviam em torno o olhar apreensivo, pois no meio deles corria o rumor de que o céu ia abrir-se e Cristo baixaria, em toda a sua glória, para proteger seu povo.
Exausto de fome, sede e falta de sono, muitos cristãos sentaram-se à beira da estrada quando as pernas se recusaram a levá-los adiante, mas não foram mais importunados. Gritavam pelos outros, pedindo que não os deixassem para trás e os privassem de seu quinhão da alegria de Cristo. Os mais empreendedores alugaram alguns carroções utilizados para transportar entulho e pedra e neles colocaram aqueles que haviam caído à margem da estrada. Breve o cortejo era seguido por umas cem dessas carroças, para que ninguém fosse deixado para trás.
Tigelino nada fez para impedir isto, e disse que os cristãos eram mais obstinados em sua superstição do que êle jamais teria imaginado. Mas cometeu um erro ao fazer o cortejo atravessar a ilha de Esculápio e a parte judaica do Vaticano.
O crepúsculo já tinha caído, e quando a turba que acompanhava o desfile viu os judeus, tornou-se outra vez indisciplinada, começou a maltratá-los e a invadir-lhes as casas para saqueá-las. Tigelino teve de mandar quase toda a escolta do cortejo restaurar a ordem, de sorte que os cristãos tiveram de avançar sozinhos para o circo do Vaticano.
Ouvi homens e mulheres, que iam na vanguarda do cortejo, perguntar uns aos outros se estavam indo no rumo certo. Alguns
extraviaram, na escuridão dos jardins de Agripina, mas ao romper do dia, todos tinham, de uma forma ou outra, encontrado caminho que levava ao circo. Houve quem dissesse que nem um só cristão fugira, mas isso me pareceu inacreditável. Quando noite caiu e as arruaças irromperam no décimo quarto distrito da cidade, qualquer pessoa teria facilmente escapulido para casa.
Como era de esperar, não havia espaço para aquele número de pessoas nos porões e estábulos, e muitos tiveram de deitar-se na arena. Tigelino consentiu que fizessem camas aproveitando o feno dos depósitos e mandou abrir os canos de água dos estábulos. Não agiu assim por deferência, mas porque, como romano, era responsável pelos cristãos.
Às crianças que se tinham perdido dos pais e a algumas moças que os Pretorianos tinham escolhido para violar, assim satisfazendo os requisitos da lei romana, segundo os quais não se pode condenar uma virgem a castigos corporais, ordenei categoricamente que fossem para casa, em nome de Cristo, pois a não ser assim não me teriam obedecido.
Não fui o único que na confusão foi obrigado a apelar para Cristo. Surpreendi os Pretorianos encarregados das filas para a distribuição de água dando desajeitadamente as suas ordens em nome de Cristo. De outra maneira, jamais teriam feito valer suas determinações.
Deprimido, voltei a Tigelino e ambos fomos apresentar-nos outra vez a Nero, no Esquilino.
— Onde andavas? — disse Nero, impaciente, ao ver-me. — Justamente agora preciso de ti. Dize-me o que podes arranjar em matéria de feras.
Respondi que a possibilidade de escolha era muito restrita, de vez que tínhamos sido forçados a reduzir o número de animais, em virtude da escassez de água e comida, provocada pelo incêndio. Para jogos venatórios, expliquei sem suspeitar de nada, contava somente com bisão hircânio e lebréus. Sabina tinha os leões dela, é claro.
Mas — disse eu, sombrio — com as novas e escorchantes taxas de água, não creio que sejamos capazes de ampliar nossa coleção de animais.
Durante meu reinado — disse Nero — tenho sido acusado de ser brando em demasia e de alargar ainda mais a lacuna entre o povo e as antigas grandes virtudes de Roma. Assim, por essa vez, terão o que querem, por mais que isso me desagrade pessoalmente. Mas justifica-o o crime inominável dos cristãos e seu permanente ódio à humanidade. Portanto, serão lançados às eras. Já rebusquei os mitos, à cata de idéias para bons quadros vivos. Cinqüenta virgens podem representar as Danaides e cinqüenta mancebos os seus pares. Dirce foi aquela que foi atada aos chifres de um touro.
— Mas — protestei — durante o seu reinado, nem mesmo os piores criminosos foram atirados às feras. Pensei que tínhamos posto fim a costumes bárbaros como este. Não estou preparado para esse gênero de coisas. Não tenho os animais necessários. Não, recuso-me a tomar isso em consideração.
O pescoço de Nero inchou de raiva.
Roma está enganada se pensa que tenho medo de ver sangue na areia. Hás de fazer o que eu digo. Quem quer que represente Dirce será amarrada aos chifres do bisão. Os cães podem estraçalhar uma centena.
_ Mas, meu senhor — disse eu — eles só sabem caçar animais bravios. Não tocarão em seres humanos. — Depois de pensar um momento, acrescentei cauteloso: — Ê claro que podíamos armar os presos e deixá-los caçar o bisão com os cães. Até mesmo caçadores experientes perdem a vida nessas caçadas. Tu mesmo já o viste.
Nero fitou-me e, em seguida, sua voz se tornou perigosamente tranqüila:
Tu te opões aos meus desejos, Maniliano? Acho que já deixei bem claro qual o tipo de espetáculo que espero de ti amanhã.
_ Amanhã! — exclamei. — Estás louco. O tempo não dá. Nero ergueu a cabeça imponente e encarou-me:
Nada é impossível para Nero. Amanhã é dia dos Idos. O Senado reúne-se ao amanhecer, e eu o informarei do desmascaramento dos incendiários. Logo que o Senado em peso chegar ao circo, terão início os espetáculos. Minha decisão num caso como este é um veredicto legalmente válido, que dispensará o pronunciamento do tribunal. Meus doutos amigos aqui presentes estão de acordo neste ponto. Só por respeito ao Senado e para pôr termo de uma vez por todas a certas maledicências, farei esta declaração na Cúria. Convidarei os senadores para o circo, e lá eles verão com seus próprios olhos que Nero não tem medo de sangue.
Não tenho feras para este fim — declarei com brusquidão, preparado ao mesmo tempo para receber um cálice atirado contra mim ou um pontapé na barriga. Tais atos não tinham importância, pois, contanto que pudesse extravasar sua cólera na violência física, Nero sossegaria e logo estaria apaziguado.
Desta vez êle foi se tornando cada vez mais quieto e, pálido de ira, fitou-me atentamente:
Não fui eu que te nomeei superintendente da casa dos bichos? Os animais são teus ou meus?
O recinto sem dúvida é teu, embora eu tenha gasto um bocado de dinheiro meu nos edifícios que lá estão — respondi. — Disso posso dar provas. Mas os animais são de minha propriedade. Nas contas do Estado e nas tuas próprias contas podes ver que vendi os animais necessários aos jogos venatorios e que, para as exibições de animais amestrados, debitei uma quantia de acordo com o valor do espetáculo. Não venderei nem alugarei minhas feras para o que agora tens em mente. Nem tu, nem mesmo o Senado, podeis forçar-me, contra a minha vontade, a ceder minha propriedade particular para satisfazer a teu impiedoso capricho. O Direito romano me assegura essa prerrogativa. Estou certo?
Os advogados e os senadores confirmaram, intranquilos, com um gesto de cabeça. De repente, Nero sorriu para mim, de maneira inteiramente amável:
Há pouco falávamos de ti também, meu caro Minuto. Eu te defendi da melhor forma possível, mas vejo que estás muito envolvido na superstição cristã. Sabes demais sobre ela. Além disso, no verão passado, durante o incêndio, furtaste um cavalo valioso e insubstituível dos meus estábulos no Palatino e não o devolveste. Não te falei disso, pois Nero não é mesquinho, apesar de tudo quanto se possa dizer dele. Mas não é estranho que só tua casa tenha sido poupada no Aventino? Dizem também que te casaste de novo sem me dizeres nada. Não temas. Há muitos motivos para manter um casamento em segredo. Mas eu me preocupo, quando dizem que a mulher de um amigo meu é cristã. E tu mesmo disseste que tomavas parte em suas refeições secretas. Espero que aqui entre amigos destruas essas maçantes acusações.
Boato é boato — repliquei, em desespero. — Seria de esperar que tu pelo menos, sim tu mais do que qualquer outro, desprezasses a calúnia gratuita. Acredito que nunca deste ouvidos a essas coisas.
Mas tu me forças a isto, Minuto — disse Nero, com brandura. — Tu me pões, como teu amigo, numa situação embaraçosa. É politicamente necessário punir rápida e cabalmente os cristãos. Ou preferes acusar-me de ter posto fogo a Roma, como certos senadores, movidos por uma inveja herdada, andam dizendo na minha ausencia? Tu te opões ao castigo que eu escolhi para os cristãos. Deves saber que tua resistência é de natureza política. Não posso encará-la senão como atitude hostil a mim mesmo, na qualidade de governante. Presumo que não desejas forçar-me, a mim que sou teu amigo, a condenar-te como cristão, naturalmente não às feras, mas a decapitação, por seres inimigo da humanidade e, portanto, meu inimigo. Esse, creio eu, seria o único meio de transferir legalmente a tua propriedade para o Estado. Amas realmente os cristãos e as tuas feras mais do que
Sorriu, satisfeito de si, sabendo que me tinha apanhado na armadilha. Por mera formalidade, hesitei ainda, mas tratando de achar rapidamente uma saída nesse intervalo. Devo alegar, em minha defesa, que pensava mais em Cláudia e em meu filho que ia nascer, isto é, em ti, Júlio, do que em mim mesmo. Pelo menos, dediquei algum pensamento a ambos.
Afinal cedi:
— Poderíamos, naturalmente — disse eu — vestir alguns presos com peles de urso e lobo. Talvez os cães os ataquem, quando sentirem o cheiro de animais selvagens. Mas não me concedes muito tempo para organizar um bom espetáculo.
Explodiram todos, numa gargalhada de alívio, e não houve mais nenhuma alusão às minhas ligações com os cristãos. Talvez Nero desejasse apenas amedrontar-me e não propositadamente ameaçar-me. Mas, ainda assim, requisitara todos os meus animais, de vez que as contas da casa dos bichos não resistiriam a uma inspeção rigorosa, já que eu debitara os gastos tanto ao erário como à própria bolsa de Nero, até onde os recursos de ambos podiam suportar.
Acho que Nero teria, de qualquer modo, se apoderado dos meus animais, independentemente do que me acontecesse. Portanto, ainda acredito que fiz a única coisa cabível. Não sei que proveito tirariam os cristãos ou eu mesmo se, por teimosia, me deixasse decapitar. Quando tomei a decisão, não tinha evidentemente nenhuma idéia das intenções de meu pai com respeito a este deplorável episódio.
Teria sido inútil resistir. No momento em que apareceram no céu as estrelas vespertinas, Nero já mandara que seus arautos anunciassem o dia de festa nas partes restantes da cidade e convidassem o povo para um espetáculo no circo do Vaticano. O cortejo dos cristãos ainda não chegara lá.
Eu estava com tanta pressa de ir para a casa dos bichos que só tivemos tempo de esboçar os principais pontos do programa. Naquela mesma noite eu ainda teria de selecionar os animais e transportá-los para o outro lado do rio, tarefa que nada tinha de fácil, embora seja eu mesmo quem o diga. Mandei soar o alarma no pátio e acender tochas e grandes vasos de azeite, de modo que toda a área ficou clara como o dia.
Como era natural, os animais se mostraram ainda mais desassossegados do que as pessoas, ao serem despertados pelo bruxuleio dos archotes e o clamor geral. Mas o estrondo dos carros e zorras puxadas por bois, misturado com o bramir dos bisões, o barrir dos elefantes e o monótono rugir dos leões redundavam num alarido tal que podia ser ouvido até no campo de Marte. Os desabrigados precipitavam-se para fora de seus alojamentos provisórios pensando que o fogo tivesse recomeçado.
Além dos nossos veículos, requisitei os possantes Carros de arrasto tirados por bois que, dia e noite, traziam blocos de cantaria das pedreiras localizadas fora da cidade. Determinei que depositassem as cargas ali mesmo. Tigelino colocou à minha disposição uma coorte, que à custa de propina e vinho fiz trabalhar com toda a pressa, apesar de estarem todos esfalfados após vinte e quatro horas de serviço contínuo.
Meu pior obstáculo foi, naturalmente, Sabina, que, saindo a correr do leito de Epafrodito, investiu para mim:
— Está louco? Que está fazendo? Que significa isso?
Não queria de modo algum deixar que seus leões amestrados participassem do espetáculo de Nero, pois todo o seu longo e paciente trabalho estaria perdido, se esses animais estraçalhassem uma pessoa, pelo menos uma vez.
Felizmente, Epafrodito era mais sensato e capacitou-se da urgência da situação. Êle próprio ajudou a enjaular três leões selvagens que haviam chegado da África dois meses antes. O pior de tudo era que os bichos já tinham tido sua refeição noturna e estavam replenos. Vários escravos que ainda se lembravam dos grandes combates de feras, realizados quinze anos antes, no tempo do Imperador Cláudio, balançaram a cabeça, preocupados, e disseram que os animais seriam de pouca utilidade.
Não dispúnhamos de jaulas apropriadas para o transporte dos bisões hircânios, pois habitualmente eles eram tangidos, ao longo de um cercado reforçado e de uma passagem subterrânea, para os estábulos do anfiteatro de madeira. Tivemos de os apanhar e amarrar no local onde pastavam. Levando em conta que eram mais ou menos trinta e que a captura ocorreu em parte na treva, com os animais arremessando-se em todas as direções e dando marradas uns nos outros, no alvoroço em que os deixava o ruído e o clarão das tochas, acho que mereço algum respeito por ter cumprido a missão antes do alvorecer.
Para dar o exemplo, tive de auxiliar também, depois que dois inexperientes Pretorianos morreram escornados e outros ficaram inutilizados para o resto da vida. Eu mesmo fui pisado uma vez e recebi várias esfoladuras, mas não sofri fratura nem senti dor, em meio àquela barafunda. Um dos ursos paralisou-me o braço com um golpe, mas apenas tive o prazer de notar a força tremenda dessas feras.
Mandei que tirassem da cama alfaiates e sapateiros em toda a cidade. Acontece que tínhamos grande quantidade de couro de animais selvagens, pois tinha passado da moda o uso de peles, como cobertas de cama e adornos de parede, desde que os refinamentos gregos invadiram as residências nobres. Isso me causara substanciais prejuízos financeiros, mas naquele momento dei graças a fortuna por ter os depósitos abarrotados.
Quando o dia amanheceu, reinava completo caos no circo de Nero. O pessoal do teatro chegava com suas indumentárias, os soldados fincavam postes e os escravos levantavam abrigos e cabanas de folhas. Casas inteiras surgiam de um momento para outro na areia, e eu tive de mandar arrastar um bloco de pedra para o meio da arena.
Era impossível evitarviolentas rixas que surgiam, pois cada um considerava sua tarefa como parte dos preparativos e como a mais importante. Os piores eram os cristãos, que se deitavam por toda a parte ou andavam de um lado para outro, fazendo perguntas e atrapalhando tudo.
O circo era extremamente exíguo. Fui obrigado a utilizar todos os porões e estábulos e a reforçar as paredes, por causa dos meus animais, de vez que o circo só se destinava às corridas. Pusemos os cristãos mais obustos a trabalhar e colocamos os outros nas arquibancadas dos espectadores. Não havia latrinas em número suficiente para tantos prisioneiros, e, no fim, eles tiveram de limpar todos os lugares que haviam emporcalhado. Apesar disso, ainda tivemos de queimar incenso em todos os cantos e empregar enormes quantidades de perfumes, para tornar apresentáveis o camarote imperial e os assentos dos senadores. Reconheço que meus animais eram, em parte, responsáveis pelo cheiro desagradável, mas eu mesmo estava tão habituado à fedentina dos bichos que já não a sentia.
Os cristãos, excitados com a balbúrdia geral, formavam grupos e punham-se a orar e louvar Cristo. Alguns pulavam e dançavam em êxtase, revolvendo os olhos. Outros falavam línguas que ninguém entendia. Ao verem este espetáculo, muitos Pretorianos declararam que a primeira medida sensata de Nero como Imperador foi erradicar de Roma essa feitiçaria.
Mas nem mesmo os cristãos mais Conscientes sabiam do destino que os aguardava e acompanhavam com surpresa todos os preparativos. Alguns que me conheciam de vista acercavam-se inocentemente de mim, no meio de toda aquela azáfama, para perguntar quanto tempo ainda continuariam detidos e quando iria começar o julgamento. Diziam que tinham muitos assuntos importantes a resolver nos lugares onde trabalhavam. Debalde tentei explicar-lhes que a sentença já tinha sido pronunciada e que seria melhor que se preparassem para morrer corajosamente, em honra de Cristo, oferecendo assim um espetáculo memorável ao Senado e ao povo de Roma. Eles meneavam a cabeça e não acreditavam:
— Você está nos assustando para se divertir. Essas coisas não podem acontecer em Roma.
Não acreditaram em mim, nem mesmo quando tiveram de despir-se e os alfaiates e sapateiros puseram-se apressadamente a costurar sobre eles as peles de animais. Alguns riam e davam conselhos aos costureiros. Meninos e meninas rosnavam e fingiam agadanhar uns aos outros, vestidos numa pele de pantera ou de lobo. Tamanha é a vaidade humana que chegavam até a disputar as peles mais bonitas, quando percebiam que iam ser obrigados a vesti-las. Não compreendiam por quê, malgrado ouvissem os uivos dos meus lebréus nos porões.
Quando o pessoal do teatro começou egoisticamente a selecionar os indivíduos mais bonitos e atraentes achei que era melhor que eu cuidasse dos meus interesses e escolhesse as trinta mulheres mais lindas, para o número de Dirce. Enquanto as Danaides e seus noivos egípcios vestiam seus trajes, reuni o que me parecia ser um conjunto satisfatório de moças que iam dos dezesseis aos vinte e cinco anos de idade, e isolei-as num canto.
Creio que os cristãos somente se deram Conta da verdade quando os primeiros raios de sol banharam a areia e os soldados começaram a crucificar os criminosos mais empedernidos. Vi-me na contingência de lançar mão das vigas e pranchas trazidas com o fim de reforçar os muros dos estábulos. Mesmo assim, era inútil erguer cruzes muito próximas umas das outras, porque só serviriam de estorvo à visão e à realização do espetáculo.
Tigelino teve de sair às pressas para o Senado. Com presteza, resolvi que se levantassem na arena apenas quatorze cruzes, uma para cada setor da cidade. De cada lado dos portões havia espaço para mais cruzes, mas fora daí teriam de contentar-se de pregar tantos quantos coubessem nas cercas que rodeavam a pista de corrida.
Para desafogar um pouco mais, Tigelino mandara mil homens e mil mulheres, sob vigilância, para os jardins de Agripina, onde Nero ia oferecer uma refeição ao povo à noite. Mas o povo também receberia alguma coisa durante o espetáculo, pois o circo do Vaticano fica tão longe da cidade que não se podia esperar que os espectadores fossem almoçar em casa.
Graças à excelente organização da cozinha imperial, começaram a chegar, com a rapidez com que os empregados podiam transportá-las, inúmeras cestas de comida, uma para cada grupo de dez espectadores, cestas especiais cheias de vinho e galinha assada para os senadores, e duas mil para a Nobre Ordem dos Cavaleiros.
Achei que era desnecessário pregar tantos cristãos nas cercas, em volta da arena, utilizando tantos pregos caros. Além disso, receei que os gritos dos crucificados perturbassem o espetáculo,embora a princípio. talvez por causaapenas da surpresa, estivessem inacreditavelmente quietos. Torna-se monótono contemplar os cru-
cificados estorcendo se, quando são numerosos demais. Assim, eu não estava com medo de que a inovação de Tigelino roubasse para si a atenção que a multidão devia dar aos meus animais.
A verdade, porém, é que quando mil pessoas gritam de dor. o som que produzem abafa os melhores rosnados dos ursos e até mesmo o rugido dos leões, sem falar das explicações que os arautos dão sobre as pantomimas. Acho que agi corretamente quando reuni alguns dos principais cristãos e determinei que pedissem aos crucificados que fizessem mais silêncio durante a função ou, no máximo, gritassem em nome de Cristo, de modo que o povo soubesse por que estavam sendo punidos.
Os mentores cristãos, em vários dos quais já tinham sido costuradas as peles dos bichos, estavam perfeitamente côncios de sua tarefa. Falavam com os que gemiam e asseguravam-lhes que a sua era a maior honra, pois lhes tinha permitido morrer na cruz como Jesus de Nazaré. Seus sofrimentos seriam breves comparados com a salvação eterna que os esperava no reino de Cristo. Naquela mesma noite estariam no paraíso.
Os mentores falavam com tanta convicção, que eu não podia deixar de sorri . Mas quando com fervor ainda maior puseram-se a dizer aos crucificados que aquele era o dia da máxima alegria, no qual era dado ao inocente sofrer, para a glória de Cristo, e como testemunha dele ascender aos céus, tive de morder os lábios.
Era como se esses mentores invejassem de verdade o destino daqueles que tinham sido crucificados. Para mim, tudo aquilo nada mais era do que um espetáculo. Por isso comentei com rudeza que, de minha parte, podiam, se quisessem, trocar a própria curta agonia pela agonia mais longa da crucificação.
Tão incurável era a cegueira dessa gente, que um deles rasgou sua pele de urso e pediu me a honra de ser crucificado. Não tive outro jeito senão anuir e ordenar aos Pretorianos que o crucificassem num dos intervalos.
Os Pretorianos, aborrecidos com esse trabalho extra, golpearam-no várias vezes, pois estavam com os braços entorpecidos e doídos de tanto baterem com pesados martelos em pregos grosseiros. Não me opunha a que o espancassem, pois a lei preceitua, por compaixão, que aqueles que vão ser crucificados sejam primeiro açoitados, para que não demorem muito a expirar na cruz. Infelizmente não tínhamos tempo para açoitar os cristãos. Os Pretorianos mais indulgentes satisfaziam-se com aguilhoá-los, aqui e ali, com as pontas das lanças, para dar ao sangue uma saída.
E, todavia, tenho de proclamar a capacidade de organização dos romanos, graças à qual a ordem de Nero, que parecera totalmente absurda, pôde cumprir-se à risca. Quando, ao alvorecer, o povo começou a transpor os portões do circo e as estradas lá fora formigaram de gente, todas as arquibancadas estavam limpas, as construções terminadas, na arena, os participantes vestidos, a ordem dos números decidida, os papéis distribuídos e os crucificados em seus lugares, contraindo-se e gemendo discretamente.
Os ladridos dos cães e os bramidos dos bisões soavam promissores aos ouvidos da multidão. Enquanto os mais sôfregos disputavam as melhores localidades, todos os que atravessavam calmamente os portões recebiam pão recém-saído do forno e um pouco de sal, e quem quisesse podia obter um caneco de vinho diluído.
Sentia-me muito orgulhoso de Roma, enquanto apressadamente me lavava e punha meu traje festivo de borda vermelha, ao lado de um monte de feno, nos estábulos. O crescente murmúrio de satisfação vindo de um público que espera, num estado de tensa expectativa, causa profunda impressão. Depois de beber dois canecos de vinho, compreendi que uma das razões de meu orgulho jovial era o júbilo dos cristãos. Eles exortavam uns aos outros a não chorar e asseguravam que era melhor rir, num arroubo de alegria, enquanto esperavam o momento de dar seu testemunho às portas do reino de Cristo.
Quando o vinho subiu agradavelmente à minha cabeça fatigada, convenci-me ainda mais de que este espetáculo, pelo menos no que me dizia respeito, não podia deixar de alcançar êxito. Dificilmente eu me teria sentido tão calmo e orgulhoso do que fizera, se tivesse sabido do que estava acontecendo naquele mesmo instante na Cúria. Quando penso nisto agora, invade-me tal tristeza e opressão, que me vejo forçado a começar novo livro, a fim de poder narrar-te tudo, sem alvoroço.
As Testemunhas
Como era habitual nos Idos, exceto nos meses de verão, o Senado reunia-se ao raiar do dia na Cúria, que, contrariando a expectativa de muita gente, escapara quase incólume ao grande incêndio.
Nero foi dormir tão tarde que não pôde estar presente às cerimônias de abertura. Mas ao chegar, rebentando de energia, cumprimentou os Cônsules com um beijo e desculpou-se prolixamente do atraso, que era devido a questões vitais do Estado.
— Mas — acrescentou gracejando — estou pronto a submeter- me a qualquer pena que o Senado decida aplicar à minha desídia, embora creia que os venerandos pais me tratarão benevolamente, quando ouvirem o que tenho a dizer-lhes.
Os senadores reprimiram os bocejos e instalaram-se comodamente em seus tamboretes de marfim, preparados para a exibição de uma hora de eloqüência, segundo os melhores moldes de Séneca. Nero contentou-se com algumas palavras necessárias sobre o gênero de vida moral ordenado pelos deuses e o legado de nossos antepassados, daí passando ao ponto decisivo.
O incêndio devastador ocorrido no verão, a maior catástrofe acontecida a Roma desde os estragos produzidos pelos gauleses, não foi um castigo imposto pelos deuses em razão de certos eventos politicamente inevitáveis, como algumas pessoas malévolas obstinadamente asseveravam, mas uma afronta premeditada, o mais terrível crime perpetrado contra a humanidade e o Estado. Os autores deste crime eram os chamados cristãos, cuja infame superstição se alastrara insidiosamente, até um ponto inconcebível, entre os elementos deletérios de Roma e as camadas mais baixas e mais ignorantes do povo. Em sua maioria, os cristãos eram de origem estrangeira e nem mesmo sabiam falar latim: ralé de imigrados que afluíam constantemente à cidade, desenraizados e afeitos a costumes vergonhosos, de que os venerandos pais sem dúvida tinham conhecimento.
A conjuração era tanto mais perigosa uma vez que, exteriormente, esses desprezíveis cristãos procuravam comportar-se irrepreensivelmente, atraindo os pobres com refeições gratuitas e esmolas a fim de revelarem toda a hediondez do seu ódio à humanidade durante seus mistérios, que eram cuidadosamente mantidos em segredo. Em tais ocasiões comiam carne humana e bebiam sangue humano. Também praticavam a feitiçaria, aparentemente curando os doentes e assim iludindoos com suas mágicas. Alguns enfeitiçados haviam dado tudo quanto possuíam para ajudar os criminosos desígnios dos cristãos.
Nero fez uma pausa para permitir que os senadores mais arrebatados emitissem suas exclamações de horror e asco, como exigia deles a retórica imperial, e prosseguiu.
Por motivos morais, não desejava, nem podia, revelar publicamente todas as crueldades que se verificavam nos mistérios cristãos. Mas a essência era que esses cristãos, valendo-se de sua própria eloqüência, haviam ateado fogo a Roma e, cumprindo ordens de seus chefes, se tinham reunido nas colinas, em regozijo, para esperar a vinda de um rei que esmagaria Roma, fundaria um novo reino e condenaria às penas mais bárbaras todos que pensavam de modo diferente.
Em função desse plano, tinham os cristãos deixado de cumprir seus deveres de cidadão em benefício do Estado, pois, por mais vergonhoso ou inacreditável que isto pudesse parecer, numerosos cidadãos, em sua ingenuidade e na esperança de futura recompensa, tinham aderido à Conspiração. Sinal manifesto do ódio dos cristãos a tudo o que os outros consideravam sagrado era o fato de não fazerem oferendas aos deuses romanos, de reputarem nocivas as belas artes e de se recusarem a freqüentar o teatro.
Contudo, a conjura fora facilmente dominada, de vez que esses covardes cristãos entusiasticamente denunciaram-se uns aos outros, logo que foram descobertos. Assim que a notícia lhe chegara aos ouvidos, êle, Nero, tomara providências imediatas para proteger o Estado e castigar os incendiários de Roma. Contara com a excelente cooperação do Prefeito Pretoriano, Tigelino, que assim fazia jus ao pleno reconhecimento do Senado.
A fim de dar aos próceres da cidade tempo para cogitarem no assunto, Nero passou então a dar uma breve explicação das origens da superstição cristã. Surgira esta na Galileia, por inspiração de um agitador judeu chamado Cristo. Fora êle condenado à morte, como criminoso político, pelo Procurador Pôncio Pilatos, durante o reinado do Imperador Tibério, e os tumultos resultantes tinham sido temporariamente eliminados. Mas, espalhando o boato de que esse criminoso ressurgira dos mortos, seus discípulos fizeram reviver a superstição na Judéia, de onde ela se disseminara para regiões cada vez mais distantes como um insidioso flagelo.
Os judeus condenavam a superstição cristã, disse Nero, e não podiam ser acusados dessa conspiração, como tinham feito certas pessoas em seu tendencioso ódio aos judeus. Pelo contrário, os judeus viviam sob a proteção de seus direitos especiais, em larga margem governados por seu sábio conselho, como úteis habitantes de Roma.
Essa afirmação não encontrou muita ressonância no Senado. O Senado nunca vira com bons olhos as especiais prerrogativas que muitos imperadores haviam outorgado aos judeus em Roma e que eram, com freqüência, revalidadas. Por que iria tolerar um Estado dentro do Estado?
— Diz-se amiúde que Nero é demasiado compassivo no castigo dos criminosos — continuou Nero enfaticamente. — Diz-se que êle está permitindo que os costumes austeros de nossos antepassados caiam no esquecimento e que êle induz a juventude a uma vida efeminada, em vez do cultivo das virtudes militares. Chegou o momento de mostrar que Nero não tem medo de ver sangue, como sussurram alguns estóicos azedos. Um crime nefando exige um castigo sem precedentes. Nero recorreu à sua imaginação artística para oferecer ao Senado e ao povo de Roma um espetáculo que espera nunca será esquecido nos anais de Roma. Venerandos pais, com vossos olhos vereis em meu circo como Nero pune os cristãos, os inimigos da humanidade.
Depois de ter formalmente falado de si mesmo na terceira pessoa, voltou à primeira pessoa e chistosamente sugeriu, com humilde respeito, que se adiassem todas as outras questões para a sessão seguinte do Senado e que os venerandos pais se dirigissem ao circo, desde que, naturalmente, os Cônsules não tivessem objeções.
Os Cônsules, em nome dos cargos que ocupavam, agradeceram a Nero a prudência e a presteza com que êle agira, visando a preservar a pátria da ameaça de perigo, e expressaram o contentamento que sentiam, por ter êle descoberto os vedadeiros fomentadores do incêndio de Roma. Isso era proveitoso ao Estado porque, de uma vez por todas, punha termo aos inúmeros boatos ridículos que estavam circulando.
Sugeriram, por sua vez, os Cônsules, que se publicasse uma súmula do discurso de Nero nos avisos do Estado e aprovaram a sugestão de encerrar a sessão. Como mandavam os deveres do cargo, perguntaram se algum dos venerandos pais desejava dizer alguma coisa, embora achassem que tudo estava perfeitamente esclarecido.
O Senador Peto Traséia, cuja vaidade se ressentira da estocada de Nero nos estóicos, pediu a palavra e mordazmente propôs que o Senado deliberasse ao mesmo tempo a respeito das necessárias oferendas de ação de graças aos deuses, por terem afastado esse tremendo perigo.
Ofertas de ação de graças já tinham sido efetuadas em razão de inúmeras outras ações infames. Por que os cristãos constituiriam um motivo menos importante? Nero parecia temer tanto a feitiçaria como o antagonismo aos espetáculos e fingiu não ouvir, limitando-se a bater os pés no chão, para apressar o andamento da proposta O Senado, açodadamente, votou a favor dessa costumeira ação de graças a Júpiter Custos e aos outros deuses. Impacientes, os Cônsules perguntaram se alguém mais queria fazer uso da palavra.
Então, contrariando totalmente seus hábitos, meu pai, Marco Mezêncio Maniliano, ergueu-se para que sua voz fosse melhor ouvida e, gaguejando, pediu a palavra. Vários senadores, sentados ao lado dele, puxaram-lhe a toga e sussurraram-lhe que ficasse calado, pois pensavam que estivesse bêbado. Mas meu pai arrepanhou a toga nos braços e começou a falar, a cabeça calva trêmula de ira: Cônsules, pais, tu, Nero, chefe dos teus iguais — disse êle. — Todos vós sabeis que raramente abro a boca nas sessões do Senado. Não posso vangloriar-me de grande sapiência, embora durante dezessete anos tenha dado o máximo pelo bem comum, na comissão encarregada dos assuntos orientais. Já vi e ouvi muita coisa infame e ímpia nesta memorável Cúria, mas meus olhos jamais presenciaram algo tão vergonhoso como o que acabo de ver esta manhã. Descemos tão baixo que o Senado de Roma ouve em silêncio e concorda com a execução, pelo que sei, de milhares de homens e mulheres, entre eles centenas de cidadãos, e até mesmo alguns cavaleiros, pelo método mais cruel possível, sem provas fundamentadas, sem julgamento legal, como se tratasse de uma simples questão de rotina?
Ouviram-se gritos de reprovação, e permitiu-se a Tigelino dar uma explicação:
Não há um só cavaleiro no meio deles. Se há algum, então ocultou sua posição, com vergonha do crime cometido.
É-me dado entender do que dizeis — indagou Nero, com indisfarçada impaciência — que duvidais de minha honra e de meu senso de justiça, Marco Maniliano?
_ Já estou farto — continuou meu pai — de engolir as aguas dos esgotos romanos e elas me asfixiam. Mas agora testemunharei que eu mesmo me encontrava em Jerusalém e Galileia, na época de Pôncio Pilatos, e vi com estes olhos Jesus de Nazaré ser crucificado, êle que não é somente chamado Cristo, mas que realmente e Cristo e o Filho de Deus, pois também vi com estes olhos que seu túmulo estava vazio e que êle ressurgira dos mortos, no terceiro dia a despeito de todas as mentiras dos judeus.
Muitos gritaram que meu pai enlouquecera; os mais curiosos exigiram que êle prosseguisse. Na verdade, a maioria dos senadores guardava rancor a Nero e aos poderes imperiais em geral. Lembra-te sempre disso, Júlio, meu filho.
Assim, meu pai obteve permissão de continuar.
— Em silêncio — disse êle — e em toda a minha humana fraqueza, reconheci-o como Cristo há muito tempo, apesar de, em minha vida, não ter podido manter-me fiel à sua mensagem. Mas creio que êle há de me perdoar os meus pecados e talvez reserve um lugar para mim em seu reino, qualquer que seja o aspecto to desse reino. Sobre isto ainda não estou bastante certo. Acho que é um reino de misericórdia, de paz e de luz, aqui ou ali, ou em qualquer outra parte. Mas este reino não tem significação política. Por isso, os cristãos também não têm objetivos políticos. Apenas acreditam que a única liberdade verdadeira para um ser humano reside em Cristo e em seguir o caminho indicado por êle. São muitos e não discorrerei sobre suas diferenças, mas creio que, no fim, todos conduzem a seu reino. Jesus Cristo, Filho de Deus, tende piedade de minha alma pecadora.
Os Cônsules o interromperam então, já que êle se afastava do assunto e começava a divagar.
— Não desejo fatigar a vossa paciência com disparates — disse, por sua vez, Nero. — Marco Maniliano já disse o que tem a dizer. De minha parte, sempre achei que meu pai, o divino Cláudio, estava louco quando mandou executar Messalina e tantos nobres, que se viu na contingência de encher o Senado de tantos membros inúteis. As próprias palavras de Marco Maniliano provam que êle não é digno de seu laticlavo, nem de suas botas vermelhas. É óbvio que sua mente está embaralhada, mas não posso adivinhar o motivo. Sugiro que, em consideração à sua calva, limitemo-nos a separá-lo do nosso círculo e a enviá-lo a alguma distante estação de águas, onde possa recuperar sua saúde mental. A esse respeito, é de presumir que a concordância é unânime e não há necessidade de votação.
Vários senadores desejavam aborrecer Nero, contanto que outro assumisse as responsabilidades. Assim, pediram que Marco continuasse, caso tivesse ainda alguma coisa a dizer. Mas Peto Traséia tomou a palavra.
_ É claro — disse êle, com simulada candura — que todos concordamos que Marco Mezêncio não está em seu juízo perfeito. Mas a divina loucura às vezes transforma os indivíduos em videntes. Talvez êle deva agradecer esse dom a seus antepassados etruscos. Se não crê que os cristãos incendiaram Roma, por mais provável que isso pareça, depois do que ouvimos dizer, então é possível que nos diga quais foram os verdadeiros incendiários.
Podeis zombar à vontade, Peto Traséia — redarguiu meu pai, com raiva — mas o teu fim também está próximo. Ninguém
precisa dos dotes de vidente para perceber que não acuso ninguém elo incêndio de Roma, nem mesmo Nero, embora muitos dentre vós queirais ouvir tal acusação feita em público e não apenas em cochichos. Eu não conheço Nero. Simplesmente acredito e asseguro-vos que todos os cristãos são inocentes do incêndio de Roma. Eu os conheço.
Nero meneou tristemente a cabeça e ergueu uma das mãos:
_Deixei bem claro que não acuso todos os cristãos de Roma pelo incêndio — disse êle. — Condenei-os como inimigos públicos com fundamentos suficientes. Se Marco Maniliano pretende afirmar que êle mesmo é um inimigo público, então o negócio se agrava e já não pode ser defendido com base em desarranjo mental.
Nero enganava-se profundamente, se pensava que podia silenciar meu pai pelo medo. Meu pai era um sujeito cabeçudo, apesar de sua boa índole e serenidade:
— Uma noite — prosseguiu — à margem do lago da Galileia, encontrei um pescador que tinha sido açoitado. Tenho razão de crer que êle era o ressuscitado Jesus de Nazaré. Prometeu-me que eu morreria para glorificação de seu nome. Não o entendi então, mas pensei que êle estivesse profetizando alguma coisa ruim. Agora compreendo e agradeço a êle sua boa profecia. Para a glória de Jesus Cristo, o Filho de Deus, quero declarar que sou cristão e compartilho do batismo, do espírito e dos ágapes dos cristãos. Submeto-me ao mesmo castigo imposto a eles. E, demais, desejo di-zer-vos, venerandos pais, se ainda não o sabeis, que o próprio Nero é o pior inimigo da humanidade. Vós também sois inimigos da humanidade, desde que aturais sua louca tirania.
Nero cochichou com os Cônsules, que imediatamente declararam secreta a sessão, para que Roma não se expusesse à vergonha de saber que um membro do Senado fora denunciado, em razão de seu ódio à humanidade, como porta-voz de uma superstição aterradora.
Meu pai conseguira o que queria. Considerando supérflua a votação, o Cônsul declarou que o Senado deliberara despojar Marco Mezêncio Maniliano de sua larga faixa púrpura e de suas rendilhadas botas vermelhas.
Diante do Senado reunido, dois senadores designados pelos Cônsules tiraram a toga e a túnica de meu pai, descalçaram-lhe as botas vermelhas e destruíram-lhe o tamborete de marfim. Depois de feito isto, em absoluto silêncio, o Senador Pudeus Publícola ergueu-se e, com a voz trêmula, anunciou que também era cristão.
Mas seus idosos colegas agarraram-no e fizeram-no sentar-se de novo, cobrindo-lhe a boca com as mãos, enquanto gritavam e riam juntos, para abafar-lhes as palavras. Nero disse que o Senado já fora cenário de suficiente ignomínia, que a sessão estava encerrada e que não havia necessidade de levar em consideração a tagarelice de um velho. Pudeus era Valeriano e Publicóla. Meu pai era um insignificante Maniliano adotivo.
Tigelino chamou, então, o centurião que montava guarda na arcada da Cúria, recomendou-lhe que trouxesse dez Pretorianos e conduzisse meu pai para o local de execução mais próximo, fora dos muros da cidade, evitando a todo o custo atrair a atenção.
Por um princípio de justiça, ele deveria ser levado para o circo e ser executado da mesma forma que os cristãos, mas, para não provocar escândalo, era melhor conduzi-lo para fora da cidade em segredo. Lá seria decapitado com uma espada.
Naturalmente o centurião e seus homens estavam furiosos, pois temiam chegar tarde demais ao circo. Como meu pai estivesse completamente nu, arrancaram a capa de um escravo que estava por ali, a olhar os senadores que saíam da Cúria, e a atiraram sobre ele. O escravo pôs-se a correr atrás de meu pai, choramingando e tentando reaver sua única vestimenta.
As esposas dos senadores aguardavam sentadas nas cadeirinhas dos maridos. Em virtude da longa distância que tinham de percorrer, fora decidido que o cortejo, com senadores e matronas separados, se formaria à entrada do circo, para onde já se tinham transportado, em suas almofadas, as imagens dos deuses de Roma. Impaciente com a demora de meu pai, Túlia desceu da cadeirinha e foi procurá-lo. Achava que ele procedera estranhamente, sob outros aspectos, na noite anterior.
Quando Túlia perguntou pelo marido, nenhum dos senadores ousou responder, pois aquela parte da sessão fora declarada secreta e todos haviam jurado não divulgá-la. A confusão aumentou quando Pudeus exigiu em voz alta que o levassem para casa, uma vez que não queria assistir ao infame espetáculo do circo.
Diversos senadores que simpatizavam secretamente com os cristãos, odiavam Nero e respeitavam a atitude viril de meu pai, e embora o considerassem um tanto desvairado, sentiram se com coragem de seguir o exemplo de Pudeus e desligaram se do cortejo.
Enquanto ia precipitadamente de um canto a outro, do lado de fora da Cúria, como uma galinha alvoroçada, queixando-se espalhafatosamente da distração e demora de meu pai, Túlia avistou um escravo Choroso e um velho com uma capa de escravo nos ombros que estava sendo conduzido por alguns Pretorianos. Aproximando-se mais um pouco, reconheceu meu pai e, estarrecida, parou com os braços estendidos, barrando-lhes o caminho.
_ Que estás fazendo, Marco? — perguntou. — Que significa isso? Não estou te forçando a ir ao circo, se o achas tão desagradável. Há outros aqui que não vão. Ora, vamos para casa calmamente, se é isso que tu queres. Não discutirei contigo.
O centurião, que estava com pressa, empurrou-a com o bastão e mandou-a afastar-se. De início, Túlia não acreditou no que ouvira mas depois ficou tão enraivecida que se lançou ao centurião, como se quisesse arrancar os olhos daquela estúpida cabeça, ao mesmo tempo ameaçando aos gritos metê-lo a ferros imediatamente, por ter ousado tocar na mulher de um senador.
E, assim, o escândalo tornou-se público. Várias mulheres apearam-se das cadeirinhas, sem fazer caso dos protestos dos maridos e correram em socorro de Túlia. Quando essas damas bem vestidas cercaram os Pretorianos, todas indagando em voz alta o que tinha acontecido e o que significava tudo aquilo, meu pai inquietou-se com a atenção que estavam atraindo e virou-se para falar com Túlia:
Não sou mais senador — disse ele. — Estou acompanhando o centurião por minha livre e espontânea vontade. Lembra-te da tua posição social e não grites feito uma peixeira. Por mim, podes ir sozinha para o circo. Creio que não há nada que te impeça.
Proteja-me Hércules — disse Túlia, desmanchando-se em lágrimas — ninguém nunca me chamou de peixeira até hoje. Se ficaste tão ofendido com o que eu disse dos teus cristãos, ontem à noite, devias ter falado imediatamente, em vez de passares o resto do tempo amuado. Não há nada pior do que um homem que não diz o que pensa, mas passa dias inteiros emburrado.
Várias esposas de senadores concordaram, sorridentes, numa tentativa de serenar os ânimos.
— É isso mesmo, Maniliano — disseram. — Não precisavas jogar fora teu tamborete de marfim, só por causa de uma discussão boba. Pára agora com essa tolice e perdoa Túlia, se é que ela te magoou. Sois marido e mulher, afinal, e envelhecestes juntos através dos anos.
Túlia ficou profundamente melindrada e tirou da cabeça o véu festivo.
— Olhai vós mesmas, velhas mexeriqueiras — gritou — e vede se eu tenho um só fio branco na cabeça. E não é tingido, tampouco, embora eu use preparados árabes, naturalmente, que preservam a cor natural do meu cabelo. Todas essas histórias de que eu pinto os cabelos não passam de inveja e calúnia.
Este é um momento solene de minha vida — disse meu pai ao centurião — talvez o mais solene. Não posso tolerar, nem mais um instante, essa tagarelice feminina. Cumpre a ordem que recebeste e leva-me para longe desse alarido pavoroso.
Mas as mulheres ainda os rodeavam e o centurião não se atreveu a ordenar que seus homens forçassem a passagem pois já fora severamente admoestado por ter apenas tocado em Túlia. Além disso, não sabia exatamente do que se passava.
Ao ver o ajuntamento que se formava e a gritaria aumentando, Tigelino dirigiu-se, encolerizado, para o lugar onde meu pai se encontrava e atingiu o peito de Túlia com os punhos.
— Vá embora cadela infernal — disse ele. — Você não é mais mulher de senador, nem está protegida por nenhum privilégio. Se não calar a boca agora mesmo, mandarei prendê-la, por perturbação da ordem e insulto ao Senado.
Túlia ficou mortalmente pálida, ao ver que Tigelino estava sério, mas o medo repentino não lhe abateu o orgulho.
— Servo do diabo — praguejou ela —- lembrando-se, em seu açodamento, apenas das maneiras de falar dos amigos de meu pai. Volta para o teu comércio de cavalos e a fornicação com rapazinhos. Estás exorbitando de suas funções, ao bateres numa mulher romana diante da Cúria. Só o Prefeito da Cidade tem o direito de prender-me. Teu comportamento grosseiro provocará mais ira do que o meu pedido cortês de informação. Quero saber o que está acontecendo aqui e para onde vai meu marido, com sua guarda de honra. Vou apelar para o Imperador.
Nero já repreendera Tigelino, por conduzir mal o caso da prisão dos cristãos, e Tigelino se aborrecera com isto. Então apontou para a Cúria:
Nero ainda está lá — replicou, em tom de escárnio. — Vá apelar para ele. Ele sabe do que se trata.
_ Não desperdices a tua vida por minha causa, minha querida Túlia — preveniu meu pai. — E não estragues os últimos momentos de minha vida. Perdoa-me se te ofendi e perdoa-me não ter sido o marido que desejavas. Sempre foste uma boa mulher para mim, embora discordássemos a respeito de muitas coisas.
Túlia sentiu-se tão feliz que esqueceu Tigelino, por completo, e atirou os braços em volta de meu pai.
—Disseste realmente "minha querida Túlia"? — perguntou. — Espera só um instante. Logo estarei de volta.
Sorrindo em meio a suas lágrimas, foi até onde estava Nero, que parecia desconcertado, e saudou-o respeitosamente:
_ Tende a bondade de explicar-me que desastroso mal-entendido é este. Tudo pode ser remediado com boavontade de ambas as partes.
Teu marido ofendeu-me profundamente — disse Nero — mas isso, naturalmente, eu posso perdoar-lhe. Infelizmente, ele também declarou em público, diante do Senado, que é cristão. O que despojou-o do cargo e da distinção e condenou-o a ser passado a fio de espada, como inimigo público. Peço-te que guardes segredo pois desejamos evitar escândalo. Nada tenho contra ti. podes ficar com os teus bens, mas os bens de teu marido serão confiscados pelo Estado, em virtude do seu crime.Túlia recusou-se a crer nos seus ouvidos:
_ Ora, belos tempos estes! Não há outra acusação contra meu marido, exceto essa de que, em sua ingenuidade, ele se tornou cristão?
_ O castigo é um só para todos os cristãos, por causa de seus delitos — disse Nero, impaciente. — Vá embora, e não me importunes mais. Bem vês que estou com pressa. Meu dever para com o Estado exige que eu vá à frente do cortejo para o circo, na minha condição de primeiro cidadão.
Então Túlia atirou altivamente a cabeça para cima, sem pensar na pele flácida que lhe envolvia o queixo:
—Tenho levado até agora uma vida irregular — gritou — e nem sempre me comportei tão bem como se poderia esperar de uma mulher de minha posição social. Mas sou uma romana e seguirei meu marido para onde quer que ele vá. Onde Gaio está, aí também está Gaia. Eu também sou cristã e agora proclamo-o publicamente.
Isto não era verdade. Pelo contrário, ela envenenava constantemente a vida de meu pai com ralhos intermináveis e desprezo pelos cristãos, amigos dele. Mas, naquele momento, volveu o rosto para a multidão indiscreta.
— Ouvi-me — bradou — vós, o Senado e o povo de Roma! Eu, Túlia Manília, outrora Valéria, outrora Súlia, sou cristã. Viva Cristo de Nazaré e seu reino.
E como se isso não bastasse, ainda gritou "Aleluia!", pois ouvira os judeus repetir essa palavra, nas reuniões em casa de meu pai, durante as discussões com outros cristãos, acerca dos diversos caminhos.
Felizmente, sua voz não foi muito longe e Tigelino tapou-lhe a boca com a mão. Quando perceberam como Nero se enraivecera, as mulheres dos senadores voltaram depressa às suas cadeirinhas, fervendo de curiosidade, para extrair dos maridos, na primeira ocasião, a verdade sobre o que acontecera no Senado. Nero mal conseguiu manter a dignidade.
Terás então o que queres, mulher desvairada — disse ele — contanto que cales o bico. Procederia com justiça se te manasse para o circo, a fim de seres punida com os outros, mas estas muito feia e engelhada para o papel de Dirce. Assim como o eu mando, serás passada a fio de espada. Dá graças ao prestígio os teus antepassados por isso, não a mim.
Túlia tornara tão público o escândalo que, por mais que quisesse, Nero não ousaria condenar às feras, diante do povo, a esposa de um senador destituído. Enquanto os Pretorianos abriam passagem no meio da multidão, para levar Túlia até onde se achava meu pai, Nero descarregava sua fúria em cima de Tigelino.
Ordenou-lhe que prendesse todo o pessoal da casa de meu pai e levasse para o circo todos os que confessassem que eram cristãos. Ao mesmo tempo, determinou que os lictores lacrassem a casa e confiscassem todos os documentos relacionados com as fortunas de meu pai e de Túlia.
— E não toques em nada — preveniu Nero. — Considero-me herdeiro deles, já que me obrigas, com a tua negligência, a ocupar-me dos deveres de polícia.
A única coisa que o consolava, em sua ira, era a idéia da imensa riqueza de meu pai e de Túlia.
Alguns angustiados cristãos ainda aguardavam fora da Cúria, esperando até o último instante que a autoridade do Senado salvasse os condenados dos horrores do circo. Entre eles, havia um jovem, que usava uma estreita faixa vermelha, e que não correra ao circo, para garantir um lugar no meio das cadeiras, sempre superlotadas, dos cavaleiros.
No momento em que os Pretorianos, com o centurião à frente, saíram escoltando meu pai e Túlia para o local de execução mais próximo, êle os acompanhou, juntamente com vários outros cristãos. Os Pretorianos discorriam sobre a maneira de cumprir a missão, com a maior rapidez possível, para não perderem o espetáculo e resolveram tomar o caminho do portão de Óstia e levar a cabo a execução perto do monumento funerário. Este não era realmente um local oficial de execução, mas estava pelo menos situado fora dos muros.
— Se não é um local de execução, passará a ser de agora por diante — gracejavam. — Só assim a dama não terá de andar muito com suas sandálias de ouro.
Túlia retrucou que podia ir sem dificuldade para onde seu marido fosse e que ninguém a impediria. Para mostrar sua força, amparava meu pai, que, combalido pelos anos, não acostumado a esforços físicos e extenuado pela bebida consumida durante a noite inteira, logo entrou a cambalear. Todavia, não estava nem bêbado nem desorientado, quando pediu a palavra no Senado, já que se preparara cuidadosamente para tal eventualidade.
Isto foi o que revelou a busca efetuada em sua casa. Evidenciou-se que durante várias semanas êle estivera pondo em ordem todos os assuntos financeiros e que passara sua última noite queimando todos os livros contábeis e a lista dos libertos, assim como
correspondência que mantinha com eles. Meu pai sempre observara a maior discrição acerca de seus negócios e, de modo geral, não considerava como seus os bens dos libertos, embora naturalmente, para que não se ofendessem, aceitasse as dádivas que eles lhe mandavam.
Só muito tempo depois vim a saber que enviara a seus fiéis libertos vultosas somas em dinheiro, para que as ordens de pagamento não denunciassem o montante de suas posses. Os magistrados tiveram grande difculdade para regularizar o espólio, e, no fim de tudo, Nero nada recebeu de valor, exceto a grande propriedade rural de Túlia, na Itália, que ambos tinham comprado em consideração ao cargo de meu pai, e naturalmente a casa no Viminal, com seus objetos de arte, ouro, prata e cristal.
O que mais prejudicou o trabalho dos magistrados foi terem os Pretorianos, em cumprimento à ordem precipitada de Nero, prendido todos os dependentes, que se confessaram cristãos, para não desacreditarem meu pai. Entre eles estavam o procurador e ambos os escribas, cuja morte Nero lamentou amargamente depois. Ao todo, trinta pessoas foram levadas da casa de meu pai para o circo.
Do meu ponto de vista, o pior foi que meu filho Jucundo e o idoso Barbo figuravam entre os capturados. Depois das queimaduras sofridas por ocasião do incêndio, Jucundo ficou tão estropiado que só podia andar, com grande esforço, de muletas, de modo que teve de ser transportado para o circo numa cadeirinha, com a velha aia de Túlia. Esta mulher não era de modo algum boa pessoa e tinha uma língua terrível, mas admitiu de bom grado ser cristã, quando soube que Túlia fizera a mesma coisa.
Ninguém entendeu por que fora mandado para o circo, até o momento em que todos se viram presos nos estábulos. No caminho, ainda acreditavam que Nero desejava que os cristãos assistissem ao castigo dos responsáveis pelo incêndio de Roma. Os Pretorianos estavam com tanta pressa que acharam desnecessário informá-los.
No portão de Óstia, onde havia muitas lojas de artigos de lembrança da cidade, estalagens e cadeirinhas de aluguel, todas escapadas ao incêndio, meu pai estacou de repente, dizendo que estava com sede e queria reparar as forças com um pouco de vinho antes da execução.
Prontificou-se a pagar um trago também para os Pretorianos, em compensação do incômodo que êle e sua mulher lhes davam num dia de festa. Túlia levava consigo muitas moedas de prata, quais, como era de esperar da esposa de um senador, deveriam ter sido atiradas ao povo durante o cortejo.
O estalajadeiro tratou de ir buscar imediatamente na adega os jarros do seu melhor vinho, e todos beberam, já que os Pretorianos também estavam sedentos naquela quadra quente do outono.
Como estivesse, então, privado de todas as honrarias, meu pai pôde, sem remorso, convidar os cristãos que o tinham seguido até ali e também alguns homens do campo que, não sabendo do feriado, tinham vindo vender frutas na cidade.
Após alguns cálices de vinho, Túlia ficou mal-humorada e, com seus modos habituais, perguntou se era realmente necessário que meu pai se embriagasse de novo, e ainda por cima em má companhia.
— Túlia querida — ponderou meu pai, com brandura — procure lembrar-te de que eu fui destituído de todas as honrarias. Na verdade, como fomos ambos sentenciados à morte, somos mais miseráveis do que essa gente amável que tem a bondade de partilhar do nosso vinho. Meu corpo é fraco. Nunca quis passar por valente. O vinho dissipa a sensação desagradável que experimento na nuca. Gratíssimo para mim é o pensamento de que, desta vez, não tenho de me preocupar com meu estômago, nem com a acre ressaca da manhã, que procuraste sempre tornar muito pior com tuas palavras mordazes. Mas esqueçamos essas coisas agora, minha querida Túlia. Pensa nestes honrados soldados também, que por nossa causa estão perdendo os inúmeros espetáculos empolgantes do circo de Nero, onde os cristãos ingressam no reino, passando pelas bocas de animais selvagens, pelas chamas, pelas cruzes e por todos os outros caminhos que Nero, com seu talento artístico, pôde conceber. Por favor, não deixeis que eu vos impeça de cantar, meus bravos, se isso vos apraz. Todavia, suspendei vossas histórias fesceninas até à noite, já que minha virtuosa mulher está presente. Para mim, este é um dia de inigualável júbilo, pois hoje afinal cumpre-se uma profecia que há quase trinta e cinco anos me tortura o cérebro. Bebamos então, caros irmãos, e tu, minha querida mulher, à glória do nome de Cristo. Não creio que êle desaprove, considerando-se o momento e a situação. Pelo que me diz respeito, êle tem muitas coisas piores para julgar, de modo que esta inofensiva bebedeira não aumentará muito a minha culpa. Sempre fui um indivíduo fraco e egoísta. Não tenho outra defesa senão que êle nasceu como homem para procurar as ovelhas indóceis e também as de pouca lã. Tenho vaga lembrança de uma história
que diz que êle, certa vez, saiu em plena noite à procura de uma ovelha desgarrada que lhe parecia mais valiosa do que todo o resto do rebanho.
Os Pretorianos escutavam atentos.
— Há muita verdade no que dizeis, nobre Maniliano — comentaram. — Na legião, também, são os mais fracos e lerdos que são os mediadores, e eles é que decidem as batalhas. E ninguém deixa ao desamparo um camarada ferido ou cercado, mesmo que isso signifique arriscar um manipulo inteiro. É claro que as emboscadas são outra coisa.
Puseram-se a comparar as cicatrizes e a falar de suas proezas na Bretanha, na Germânia, nos países do Danúbio e na Armênia, em conseqüência das quais tinham ganho o posto de Pretorianos na capital. Meu pai aproveitou a oportunidade para falar com sua mulher:
_ Por que disseste que eras cristã? Não acreditas que Jesus de Nazaré seja o Filho de Deus e o salvador do mundo. Não era necessário. Não foste sequer batizada. Da santa comunhão participavas com relutância, só para cumprires o dever de anfitrioa. Nunca provaste do pão e do vinho, abençoados em nome de Cristo. _ Dói-me ter-te arrastado a isto sem motivo. Pensei seriamente que, como viúva, poderias levar a vida que quisesses. Em breve encontrarias outro marido e melhor, pois ainda és bonita a meus olhos, bem conservada para a tua idade, e rica. Acho que haveria certamente um afluxo de pretendentes à tua casa quando terminasse o período de luto. Esse pensamento não me encheu de ciúmes, porque a tua felicidade é mais importante para mim do que a minha. Nunca concordamos a respeito de Cristo e de seu reino.
_ Serei tão boa cristã como tu, meu querido Marco — disse Túlia, agastada — quando morrer contigo para maior glória do nome de Cristo. Dei meus bens aos pobres para te satisfazer, quando não me era mais possível suportar o teu eterno amuo. Não reparaste que não te fiz a menor censura, embora tenhas envergonhado nosso nome no Senado, com a tua terrível obstinação? Tenho pontos de vista próprios sobre o teu absurdo comportamento, mas, num instante como este me calarei para não tornar a magoar-te.
Abrandou-se e, lançando os braços em volta do pescoço de meu pai, beijou-o e umedeceu-lhe as faces com suas lágrimas:
_ Não tenho medo de morrer, contanto que morra contigo, Marco. Não posso suportar a idéia de ficar viúva de ti. És o único homem que realmente amei, embora tivesse de me divorciar de dois e levar um ao túmulo, antes de te reencontrar. Abandonaste-me cruelmente uma vez, sem a menor consideração aos meus sentimentos. Fui até ao Egito atrás de ti. Sei que tive também outros motivos para fazer essa viagem, mas tu tinhas uma moça judia contigo na Galileia e depois aquela horrível Mirina, de cuja boa reputação ainda não me convenci, mesmo que erijas cem estátuas dela, em todos os pátios de feira da Ásia. Mas também tenho minhas fraquezas. O principal é que tu me amas e me dizes que sou bonita, embora eu pinte o cabelo, esteja de queixo bambo e com a boca cheia de dentes de marfim.
Enquanto os dois conversavam, o jovem cristão de faixa estreita na túnica, encorajado pelo vinho, perguntou ao centurião se tinha ordem de capturar outros cristãos que encontrasse. O centurião negou categoricamente e disse que apenas lhe tinham ordenado que executasse meu pai e Túlia, e sob o maior segredo possível.
Então, o jovem cavaleiro declarou que era cristão e sugeriu a meu pai que tomassem juntos a santa refeição cristã e fortalecessem o espírito de meu pai, embora não pudessem fazê-lo a portas fechadas e não fosse noite ainda. Mas talvez isso fosse possível, disse êle, em face das circunstâncias.
O centurião afirmou que não se opunha, nem tinha medo de feitiçaria; na verdade, estava curioso, depois de ouvir tantas histórias acerca dos cristãos. Meu pai concordou prontamente, mas pediu ao jovem que abençoasse o pão e o vinho.
— Não posso fazê-lo eu mesmo — disse êle — talvez por causa de minha própria vaidade e teimosia, mas o espírito desceu sobre os discípulos de Jesus de Nazaré naquele tempo em Jerusalém e eles batizaram grande número de pessoas, de modo que todas elas receberam o mesmo espírito. De todo o coração desejei ser batizado com os outros, mas repeliram-me porque eu não era circunciso e também me pediram que não dissesse nada a respeito de coisas que não entendia. Obedeci a suas recomendações a vida inteira e nunca instruí ninguém, exceto uma vez ou outra quando falei, talvez erroneamente, de coisas que eu mesmo vi ou de coisas que sei que são verídicas, ou para corrigir certos mal-entendidos. Batizei-me aqui em Roma, quando Cefas me pediu perdão de sua
rispidez de outrora. Êle sempre esteve em débito comigo porque uma vez na montanha da Galileia, quando eu passava para Jerusalém, emprestei-lhe meu burro para que sua sogra, que ferira o pé, voltasse para a casa dela em Cafarnaum. Desculpai-me a loquacidade. Vejo que os soldados estão olhando para o céu. Tagarelar a respeito do passado é fraqueza de velho. Acho que o vinho me solta demasiadamente a língua.
Ajoelharam-se, Túlia também, e com algumas palavras o cavaleiro consagrou o pão e o vinho para convertê-los no corpo e no sangue de Cristo. Receberam a graça com lágrimas nos olhos e depois beijaram-se ternamente. Túlia declarou que sentia um tremor dentro de si como se fosse uma antecipação do paraíso. Ia para lá, de mãos dadas com meu pai, ou para onde quer que êle fosse.
Os Pretorianos admitiram que não viam mal algum nessa feitiçaria. Então, o centurião tossiu significativamente, após olhar mais uma vez para o alto. Meu pai deu-se pressa em pagar a conta, deixou uma generosa gorjeta e deu p resto do dinheiro para ser dividido entre o centurião e os Pretorianos, pedindo novamente desculpas por ter-lhes causado tanto incômodo e abençoando-os em nome de Cristo. O centurião sugeriu delicadamente que talvez fosse melhor dirigirem-se para trás do monumento funerário, pois tinha ordens de executar sua tarefa com a maior discrição possível.
Nesse momento o cavaleiro cristão caiu em pranto e afirmou que, ao abençoar o pão e o vinho, sentira repentinamente tal certeza e entendimento, que já não desejava esperar o resto dos seus anos. Estava atormentado pelo pensamento de que a tantos cristãos humildes fora dado sofrer no circo, para o bem do nome de Cristo, e talvez êle próprio não fosse capaz de agüentar a opressão que se aproximava. Assim, pediu ao centurião que lhe permitisse, decepando-lhe a cabeça também, empreender a viagem mais maravilhosa de um homem. Era tão culpado como os outros, devendo caber a êle o mesmo castigo que coubera àqueles.
O centurião espantou-se, mas, após um momento de reflexão, , reconheceu que não estaria cometendo o menor deslize no cumprimento do dever, se permitisse ao mancebo morrer juntamente com meu pai e Túlia. Daí resultou que alguns ouvintes que se tinham reunido em volta do grupo suplicassem ardentemente que se lhes concedesse a mesma alegria. Cumpre frisar que, segundo me contaram, meu pai oferecera a todos eles quantidades liberais de vinho.
Mas o centurião recusou com firmeza, declarando que sua boa-vontade tinha limites. Podia executar e incluir em seu relatório uma pessoa a mais. Contudo, passar vários a fio de espada despertaria atenção, acarretando desnecessário preenchimento de tabuinhas de cera, e sua redação não era tão boa como poderia ser.
Reconhecia, porém, que tudo quanto vira e ouvira o impressionara a tal ponto que teria o maior prazer em informar-se mais acerca dessas coisas, no futuro. Cristo era sem dúvida um deus poderoso, já que fazia da morte uma alegria para aqueles que o seguiam. Pelo menos, nunca ouvira falar de ninguém que desejasse morrer, por exemplo, por Júpiter, ou mesmo Baco, muito embora talvez fosse diferente em relação a Vénus.
Os pretorianos conduziram meu pai, Túlia e o cavaleiro, cujo nome o centurião embriagado riscou de sua tabuinha de cera, no ultimo minuto, para trás do monumento e escolheram o melhor esgrimista, capaz de decepar-lhes a cabeça com um único golpe. Meu pai e Túlia morreram ajoelhados, de mãos dadas. Um dos cristãos, que presenciou tudo e depois me fez um relato completo do episódio, sustentou que a terra tremeu e o céu abriu em chamas, aterrorizando os camponeses. Mas imagino que êle disse isso para me agradar, ou então sonhou com essa história.
Os Pretorianos tiraram a sorte para ver quem ficaria vigiando os cadáveres até que os parentes os reclamassem. Ao verem isto, os que se achavam presentes se ofereceram para cuidar dos corpos, uma vez que todos os cristãos eram irmãos e, portanto, parentes uns dos outros. O centurião considerou legalmente duvidosa essa afirmação, mas acolheu com gratidão a oferta, pois não queria privar a guarda do prazer do espetáculo circense. Era quase meio-dia quando os Pretorianos regressaram em passo acelerado à cidade e depois ao circo na outra margem do rio, na esperança de ainda encontrarem lugar no meio dos colegas.
Os cristãos tomaram conta dos cadáveres de meu pai, Túlia e do jovem cavaleiro. Por consideração à respeitável família a que êle pertencia, omito o nome do cavaleiro, que era filho único de pais idosos e lhes causou grande pesar com seu ato tresloucado. Eles o criaram com muito mimo e relevaram-lhe as relações com os cristãos, esperando que no futuro êle esquecesse tais ridicularias, do mesmo modo que os rapazes em geral, logo que casam, esquecem suas estéreis especulações filosóficas.
Os cadáveres foram velados com todo o respeito e sepultados na terra sem terem sido cremados. Assim, meu pai não usou a tumba que havia comprado perto dos túmulos reais de Cere, mas não creio que tivesse feito caso disso. Àquela época os cristãos tinham começado a abrir galerias e câmaras subterrâneas e a enterrar nelas os seus mortos. Dizem que as utilizam também como locais de reuniões secretas. Isto é tido como prova evidente de que sua fé é corrupta, desde que não respeitam os restos mortais de seus companheiros. Mas, por que és, Júlio, meu filho, respeita as catacumbas e deixa-as em paz quando cresceres, pois numa delas repousa o pai de teu pai, aguardando o dia da ressurreição.
Ao meio-dia teve início a distribuição de cestas de comida no circo. Nero, vestido de auriga, deu duas vezes a volta à arena em seu carro de ouro, puxado por uma parelha de cavalos brancos, saudando a multidão exultante e desejando-lhe bom apetite. Sortearam-se prêmios também entre os espectadores, mas não com tanta prodigalidade como antes, de vez que as colossais obras arquitetônicas de Nero traziam-lhe embaraços financeiros. Esperava êle que este espetáculo inaudito recompensasse o povo de suas aflições, e nisto tinha razão, naturalmente.
Àquela altura eu já me acalmara e me sentia plenamente satisfeito embora a parte principal da função após o intervalo do almoço fosse de minha responsabilidade. Na verdade, as exibições teatrais concebidas por Nero foram de certo modo um fiasco, do ponto de vista do público. Creio que a culpa era do pessoal do teatro, que não tinha nenhuma idéia da maneira de pensar dos cristãos.
Sob vários aspectos, falta-me competência para criticar, mas acho que a turba teria ficado insatisfeita com o espetáculo matinal, se os meus cães de caça não tivessem superado a expectativa, logo no princípio, imediatamente após a procissão dos deuses e do Senado e a leitura do discurso de Nero numa forma abreviada. Cerca de trinta cristãos, metidos em peles de animais, entraram na arena e, em seguida, açularam-se contra eles uns vinte animais.
Os cães desincumbiram-se maravilhosamente de sua tarefa, uma vez que tinham sentido o gosto de sangue e não se esquivavam de atacar gente. Perseguiam os fugitivos cristãos pela arena, derrubavam nos habilmente com uma traiçoeira dentada na perna e depois, sem nenhuma hesitação, lançavam-se à garganta da vítima, não perdendo tempo com mordidas e ladridos supérfluos. Apesar de famintos, pois lhes tinha sido negada comida de manhã, não paravam para devorar suas presas, contentando-se com lamber um pouco de sangue para saciar a sede, logo retomando a caçada. Não regateei elogios ao tratador.
A boda das Danaides não teve o êxito esperado. Os jovens cristãos de ambos os sexos não quiseram executar as danças nupciais e formaram um grupo apático na arena. Os atores profissionais tiveram de entrar em cena, para compensar aquela falta de entusiasmo. Esperava-se que, após o casamento, as noivas matassem os noivos de diversas maneiras, como haviam feito as filhas de Dânao. Mas as donzelas cristãs recusaram-se a matar quem quer que fosse, embora desse jeito os rapazes tivessem tido uma morte menos dolorosa.
Os Caronianos tiveram de matar alguns a cacetadas e amarrar firmemente os demais entre feixes de varas, juntamente com os outros criminosos que aguardavam o momento de acender a fogueira. Devo confessar que a multidão riu a bom rir quando as Danaides se puseram a correr com suas peneiras para a frente e para trás, entre o fogo e os baldes de água da arena, tentando apaga-lo. Os gritos de dor dos cristãos que estavam sendo queimados eram tão penetrantes que abafavam os sons do órgão de agua e dos outros instrumentos. Isso incitava as moças à atividade.
Por fim, ateou-se fogo a uma casa de madeira esplendidamente ornamentada, com velhos e velhas agrilhoados a todas as portas e janelas. Quando as chamas começaram a lamber-lhes os membros, tivemos um quadro fiel do grande incêndio. Muitos dos que procuravam apagar o fogo perderam a vida, ao jogarem fora as peneiras e atirarem-se às labaredas, na vã tentativa de salvar os pais ou irmãos e irmãs.
O circo inteiro, em particular as localidades mais altas onde se sentavam as pessoas mais simples, explodiu na gargalhada. Mas diversos senadores voltaram acintosamente o rosto para o outro lado. Dos cavaleiros partiram críticas à crueldade desnecessária, embora, naturalmente, o melhor castigo para os que haviam incendiado Roma fosse queimá-los vivos.
Enquanto se desenrolavam estas cenas, chegaram as pessoas que tinham sido presas na casa de meu pai no Viminal e foram levadas para junto dos condenados restantes. Quando Barbo e Jucundo compreenderam o que ia acontecer, tentaram debalde ter um encontro comigo. Os guardas fingiram que não os ouviam, pois muitos prisioneiros passaram a invocar toda sorte de pretextos no momento em que os gritos ressoaram nos porões e estábulos.
Já se tinha procedido à divisão dos condenados de acordo com os números em que iam tomar parte e já se tinham separado os grupos, de modo que eu não tinha motivo algum para ir lá embaixo. Cabia-me confiar nos traquejados capatazes da casa dos bichos e permanecer em meu lugar de honra, para receber os aplausos tributados ao organizador das exibições das feras. Não teria tido tempo de descer, ainda que me viessem dizer que alguém desejava falar comigo.
Além disso, Jucundo, atarantado e inseguro em suas muletas, estava mais ou menos convencido de que certa confraria, na verdade insignificante, que formara com alguns rapazes orientais na escola do Palatino tinha sido descoberta e agora êle ia receber o merecido castigo. Esses rapazes, com a imprevidência mesma da juventude, eram a favor do esmagamento da Partia e do estabelecimento da capital no Oriente. Em certo sentido, isto era o que Nero também projetava, quando se aborrecia com o Senado. A diferença era que os romanos iam ser desprezados após uma guerra vitoriosa na Partia e o poder dirigente seria transferido para as antigas famílias reais do Oriente.
É claro que ninguém levaria a sério essas idéias infantis, caso elas viessem à luz, pois meninos serão sempre meninos. Mas Jucundo, que contava apenas quinze anos e acabara de receber a toga viril, era tão presunçoso que imaginava estar sendo punido por conspiração política.
Quando se deu conta de que ia morrer, Jucundo fiou-se em Barbo, e como não pudessem entrar em contacto comigo, resolveram morrer honradamente juntos. E não sei se poderia tê-los ajudado, mesmo que tivesse sabido do destino deles, pois Nero se exasperara com o insulto público de meu pai diante do Senado.
Por motivos práticos, eu arranjara as coisas de modo a assear a presença de feras na arena, em toda a segunda metade do programa. Para dar ao espetáculo variedade e interesse, decidira armar os cristãos que desejassem lutar com os animais. Mas só pude distribuir espadas, adagas e chuços.
Jucundo e Barbo comunicaram que haviam escolhido leões e espadas, e viram seu desejo satisfeito de imediato, porque infelizmente a maioria dos cristãos não queria representar e somente alguns manifestavam suas preferências. Quase todos recusavam-se a oferecer resistência, pensando em ir para o paraíso da maneira mais fácil possível. Após o intervalo, para animar a multidão, enviei para a arena um grupo de Cristãos metidos em peles de animais e outra matilha. Mas, desta vez, os cães não obedeceram aos apitos. Tendo realizado a tarefa, continuaram onde estavam, correndo na areia. Eu não tinha objeções a fazer; só que esses cães eram caros e não deviam morrer sem necessidade.
Chegou, então, a vez de nossos três leões bravios* Eram belos animais e eu tinha bons motivos para orgulhar-me deles. Aconselhado por meus experimentados subalternos, eu reservara para os leões um grupo de debilitados anciões e anciãs, aleijados e meninos, uma vez que, segundo as informações que me deram, nada diverte mais o populacho ou suscita gargalhadas das mais estrepitosas do que a visão de anões e coxos fugindo das feras. Por essa razão, Jucundo era bem adequado aos leões.
Primeiro foi preciso reunir o grupo, claudicando e pulando, no centro da arena, sob a proteção dos domadores. Felizmente, os cães não mostraram interesse, pois aquela gente não estava vestida com peles de animais. Em seguida, entraram Jucundo e Barbo com suas espadas, à frente de uns dez outros cristãos armados.
A turba prorrompeu numa gargalhada colossal, ao ver o rapazinho avançar, aos trancos, em suas muletas, e o velho desdentado apresentar armas com a espada, perante o camarote imperial. Fiquei perturbado com essa manifestação dos espectadores e relanceei os olhos para Nero. Desconfio que êle se ofendeu com o riso e a minha falta de discernimento, embora isso não estivesse nas minhas previsões. Mas Nero manteve a calma e riu também.
Devo confessar que eu mesmo achei irresistivelmente cômica a atuação presunçosa de Jucundo e Barbo, até o instante em que os reconheci. Enquanto eles se afanavam, no meio da arena, e dispunham os outros cristãos armados num círculo, em volta dos anciãos e das crianças, eu não tinha a menor idéia de quem eram.
Jamais me teria passado pela cabeça a idéia de que meu próprio filho e meu servo mais fiel viessem a ser lançados às feras.
Na verdade, por um instante, perguntei a mim mesmo quem concebera o plano fantástico de colocar essas duas figuras risíveis à frente daqueles que iam dar combate aos leões.
Creio que Jucundo e Barbo se ofenderam profundamente com a gargalhada dos espectadores. Escolheram os leões porque Barbo contara a Jucundo que, em minha juventude, eu capturara, desarmado, um leão perto de Antioquia. Na mesma ocasião, êle próprio dera prova de grande coragem e assim julgava que os leões eram as. feras que melhor conhecia.
Por segurança, recomendou a Jucundo que pusesse no chão as muletas e se ajoelhasse atrás dele, de modo que não fosse derrubado logo que os leões atacassem, pois desejava proteger com o corpo a Jucundo, para dar a este a oportunidade de mostrar seu destemor. Suponho que Barbo, em troca da confiança de Jucundo, contara-lhe que eu era seu verdadeiro pai. Ninguém mais, fora meu pai e Barbo, sabiam disso. Nem mesmo a Cláudia eu falara das conseqüências de meu deslize juvenil, posto que a ela eu me tivesse vangloriado de Lugunda, ao voltar da Bretanha.
Quando se abriu o portão dos leões, Jucundo tratou de atrair minha atenção chamando por mim e brandindo despreocupadamente a espada, para me provar que não tinha medo. Então caiu-me a venda dos olhos e reconheci os dois. Tive a impressão de que meu estômago descera para os joelhos. Em meu desespero, dei um grito mandando suspender o espetáculo.
Felizmente ninguém ouviu minha ordem no alarido geral, pois quando os majestosos leões investiram para a arena, a multidão bradou deliciada e muitos espectadores levantaram-se para ver melhor. Se eu tivesse interrompido o espetáculo no momento mais empolgante, para salvar Jucundo, Nero provavelmente ficaria tão enfurecido que me mandaria para a arena também, e não vejo em que isso beneficiaria a quem quer que fosse. Logo que recobrei o juízo, tratei de me dominar, feliz por notar que ninguém ouvira meu grito, naquele momento de desespero.
Sabina, que tinha os leões como propriedade sua, empregara todos os meios que ela e Epafrodito puderam conceber para excitá-los e aguçar-lhes a sede de sangue. Assim, os três belos animais precipitaram-se para a arena com tanto ímpeto selvagem que, em virtude da súbita passagem da escuridão para a luz do sol, o leão maior tropeçou em alguns tições fumarentos, rolou pelo chão e chamuscou a juba. Naturalmente enraiveceu-se mais ainda, apesar de não ter sofrido dano algum. Ofuscados pela claridade, os leões fizeram crescer a tensão geral, enquanto andavam compassadamente de um lado para outro e rugiam, sem a princípio notar o grupo de cristãos no meio da arena, mas de vez em quando atacando alguns que tinham sido crucificados na cerca protetora.
Nesse ínterim Barbo teve a idéia de dar uma carreira e pegai uma acha de lenha fumegante e encorajar os outros cristãos armados a fazerem a mesma coisa. Balançando a acha de lenha no ar e soprando sobre ela, Barbo fê-la incendiar-se. Assim, dispunha de uma tocha na mão esquerda e uma espada na direita, para enfrentar o leão. Dois outros presos conseguiram realizar a mesma façanha, antes que o leão reparasse em seus vultos em disparada e atingisse um deles por trás, derrubando-o no chão, sem sequer lhe dar tempo de usar a espada. Apuparam-no os espectadores, pensando que o homem, com medo, tivesse dado as costas ao leão, embora êle apenas estivesse correndo, com todo o ímpeto, a fim de alcançar de novo os cristãos desarmados e protegê-los com sua tocha.
Então, os cães que andavam em redor da arena envolveram-se, inesperadamente, no jogo. Agindo como tinham sido ensinados, formaram um bando e, partindo de trás, arremeteram afoitos contra os leões. Assim, puderam os cristãos defender-se com relativa facilidade a princípio, já que os leões tinham de mover-se de um lado para outro, rosnando furiosamente, para se desembaraçarem dos cães. Com um pouco de sorte, Barbo arrancou um olho de um leão, antes de tombar, e Jucundo enfiou a espada na barriga do animal, ferindo-o gravemente.
Enquanto o leão rolava no chão e rasgava as próprias tripas, Jucundo, arrastando-se de quatro pés, aproximou-se mais e atingiu-o com um golpe mortal, mas o leão, nas convulsões da agonia, arrancou-lhe o couro cabeludo, e o sangue cobriu-lhe os olhos. A multidão aplaudiu-o vigorosamente.
Depois de remexer às tontas no corpo de Barbo e verificar que êle estava morto, Jucundo apanhou a tocha e vibrou-a às cegas, enquanto tentava limpar o sangue dos olhos com a mão que segurava a espada. Um dos outros leões chamuscou o focinho na tocha, assustou-se, pensando que estava diante do ferro em brasa de um domador, e saiu em busca de uma presa mais fácil. Invadiu me o receio de que o espetáculo redundasse em fracasso e de que eu tivesse depositado demasiada esperança na falta de destreza dos cristãos no lidar com armas.
Mas sobravam poucos cães. Logo se cansaram, de sorte que os dois leões restantes puderam liquidá-los, antes de se lançarem sobre os cristãos. Os cães eram tão destemidos que nenhum deles fugiu com o rabo entre as pernas. Um leão arrebentou a espinha do último cão com uma patada certeira, deixando-o estendido no chão, a uivar. Alguns espectadores, que tinham particular estima pelos cães, levantaram-se e gritaram que esse jogo era excessivamente cruel e que não se devia atormentar os pobres animais. Um dos cristãos aplicou golpe de misericórdia ao cão, matando-o com a espada.
Jucundo continuava lutando. Um cristão munido de chuço, vendo que Jucundo era o mais hábil esgrimista dentre eles todos, adiantou-se para proteger-lhe a retaguarda. Juntos, feriram gravemente um dos leões. A turba ficou tão empolgada que um ou dois polegares apareceram erguidos, mas isto era sem nenhuma dúvida inútil e prematuro. Jucundo sucumbiu.
O resto do espetáculo transformou-se numa carnificina desinteressante, quando os dois leões passaram a atacar o magote de cristãos desprotegidos, que nem sequer fugiam, o que teria divertido a multidão. Permaneciam unidos, formando um bloco, de modo que os leões tinham de arrebatá-los um por um. Fui obrigado a dar ordem para que fizessem entrar dois ursos para ajudar os leões. No final, quando todos os cristãos tinham morrido estraçalhados, os leões e os ursos travaram uma batalha formidável; e especialmente o leão ferido recebeu estrondosa ovação por sua cega coragem.
A morte de Jucundo deixou-me transtornado, embora àquela altura já tivessem chegado ao meu conhecimento certas ocorrências verificadas no jardim de Tigelino, durante o incêndio de Roma, que indicavam que Jucundo mereceu o castigo. Mas voltarei a esse ponto mais adiante. No momento, a responsabilidade do espetáculo era minha, e não era possível interrompê-lo. Precisamente naquele instante, um dos escravos de minha quinta em Cere veio ter comigo, radiante de alegria, e contou-me que Cláudia dera à luz um lindo menino, naquela mesma manhã. Mãe e filho estavam passando bem e Cláudia pedia o meu consentimento para dar ao menino o nome de Clemente.
Não pude deixar de ver nisso um augúrio venturoso. Exatamente quando meu filho Jucundo acabava de perder a vida, numa corajosa luta com o leão, eu recebia a notícia de que me nascera outro filho. O nome Clemente é que não me parecia apropriado, considerando as circunstâncias em que eu soubera de seu nascimento, mas achei melhor que Cláudia tivesse sua vontade satisfeita nessa questão, pois eu sabia muito bem que havia muita coisa a explicar a ela mais tarde. E no íntimo, há dez anos que te chamo de Júlio, meu filho.
O programa continuou, muito variado, a tarde inteira. Naturalmente ocorreram inúmeras surpresas, inevitáveis quando há feras na arena. Tais surpresas foram das mais felizes, e toda a gente as atribuiu à minha capacidade de organização. Muitas apostas foram feitas pelos espectadores e várias lutas irromperam na multidão, como sempre acontece nesses espetáculos.
O sol já ia desaparecendo quando o espetáculo atingiu o ponto culminante com as Dirces e os touros hircânios. O contentamento da turba não conheceu limites quando se escancararam os portões da arena a um só tempo e cerca de trinta touros entraram de tropel cada um com uma moça seminua atada aos chifres. Só por inveja, o pessoal do teatro desejara receber a homenagem devida a esse número, e ao fim de prolongada discussão eu deixara para eles a tarefa de amarrar as moças. Como era de esperar, eles e seus ajudantes fizeram um péssimo serviço, de modo que no fim de contas eu tive de pedir aos meus boieiros que colaborassem.
O bloco de pedra, que dera tanto trabalho para ser transportado para dentro da arena, veio a ser inútil. Enquanto o pessoal do teatro berrava nos megafones para a multidão a história de Dirce, os touros, sem o menor esforço, desprendiam as moças dos chifres, atiravam-nas para o ar e matavam-nas a marradas. Apenas dois acabaram esmagando suas Dirces de encontro à pedra como todos deviam ter feito e como o mito exige, mas esta falha não era culpa minha.
Atiraram-se então os cristãos restantes aos touros. Vi com alegria que eles abandonavam sua geral indiferença e se portavam com incrível coragem, como que possuídos por ardente desejo de morrer, correndo desenfreadamente para os touros e arrojando-se aos chifres. A multidão aplaudia os e chegava mesmo a sentir alguma simpatia por eles.
Mas quando se encerrou esse número, os touros puseram-se a escornar os crucificados, derrubando as cruzes e marrando com tanta força a cerca protetora, que aqueles que estavam sentados ali perto temeram que ela não resistisse. Mas o espetáculo chegara ao fim.
Após uma olhadela para o céu, pude dar um fundo suspiro de alívio e ordenar aos arqueiros que matassem os touros. Os homens cumpriram essa tarefa com tanta perícia e coragem, muitas vezes em combate aproximado, que os espectadores lhes prodigalizaram aplausos agradecidos, embora eu tivesse receado que esse necessário número final enfadasse a multidão.
Tigelino pensara em pôr fogo à cerca protetora, com os cristãos que nelas mandara pregar, mas Nero não concordou, com medo de que o fogo se espalhasse e lhe destruísse o circo. No momento em que a multidão começou a sair pelos portões, diversos Pretorianos deram a volta à arena matando os cristãos com suas lanças, pois Nero achava que não seria razoável que eles sofressem mais do que os cristãos que tinham sido queimados na fogueira ou mortos pelas feras.
Se causar espécie a alguém o fato de eu não ter poupado meus valiosos touros selvagens, direi que teria sido uma estupidez e baixaria todo o valor do espetáculo se alguns espectadores fossem incentivados a permanecer em seus lugares durante a noite para assistir ao prolongado e cansativo trabalho de captura dos animais. Os touros eram tão bravios que vários empregados da casa dos bichos poderiam perder a vida. Mas, de qualquer maneira, a conta que eu ia enviar a Nero por causa dos meus animais era tão colossal que não me cabia lamentar a perda dos meus touros hircânios.
Tigelino, que tinha de estar sempre em evidência, pensou que reservara para o povo a melhor das surpresas do dia quando a multidão se encaminhasse para o banquete festivo que Nero prometera a toda a gente nos jardins de Agripina. Valera-se de sua jurisdição fora dos muros da cidade e determinara que o parque fosse iluminado pelos três mil cristãos que tinham sido separados dos demais de manhã e postos sob vigilância nos jardins. Simplesmente não havia meio de organizar um espetáculo circense com cinco mil pessoas na arena.
Enquanto se desenrolava o espetáculo, ergueram-se mastros c postes ao longo dos caminhos e em redor dos tanques do parque, e depois acorrentaram-se neles os cristãos. Quando se acabaram as correntes de ferro, os restantes foram pregados pelas mãos.
Em seguida, besuntaram os cristãos de piche e cera, dos quais o procurador de Tigelino, após muito trabalho, tinha conseguido algumas cargas. Esses materiais não seriam suficientes para iluminar durante muito tempo, de modo que também se tornou necessário empregar azeite e outras substâncias. Além disso, os Pretorianos encarregados da tarefa ficaram desgostosos por terem perdido o espetáculo do circo, obrigados como tinham sido a cavar buracos e levantar postes, no calor do sol de outono.
Assim, quando a multidão deixou apressadamente o circo c se dirigiu para o banquete, ao cair da noite, os Pretorianos tomaram a dianteira e puseram fogo às tochas vivas espalhadas ao longo do trajeto. Elas ardiam com gritos de dor, exalando um mau cheiro sufocante, e o povo na verdade não gostou dessa visão inacreditável. Com efeito, os mais refinados perderam o apetite por causa do fedor desagradável de carne humana queimada e foram para casa. Outros temiam que o fogo se alastrasse pelos jardins quando as gotas de piche e cera ardentes caíam na grama seca com as contorções dos cristãos. Muita gente queimou os pés ao tentar apagar as brasas que fumegavam à roda dos postes.
Assim, quando Nero, ainda em traje de auriga, passou em seu carro pelas estradas flanqueadas por essas tochas humanas, não recebeu a aclamação que esperava. Havia um silêncio soturno, e êle viu diversos senadores caminhando para casa.
Desceu do carro para apertar as mãos do povo, mas ninguém riu com suas pilhérias. Ao tentar convencer Petrônio a ficar, este afirmou que agüentara por amizade um espetáculo insípido, mas havia limites à capacidade de tolerância de seu estômago. Não se sentia com vontade de comer nem mesmo o melhor assado do mundo se éste fosse condimentado com as repugnantes emanações de carne humana.
Mero mordeu os beiços, a boca inchada, e naquele traje de auriga assemelhava-se mais a um lutador musculoso e suarento. Compreendeu que tinha de encontrar outro divertimento para o ovo a fim de compensar os arranjos deselegantes de Tigelino. Paraculminar, indivíduos semiqueimados começaram a despencar dos postes quando as cordas se partiram sob a ação do fogo, e outros, no auge da dor, desprenderam, lacerando-as, as mãos pregadas na madeira e correram em chamas para o meio da multidão.
Seus vultos esmagados pelo sofrimento, uivantes, rastejantes, derreados, que quase nada mais tinham de humano, provocavam apenas terror e asco. Furioso, Nero determinou que os matassem sem demora, juntamente com aqueles que gritavam desvairadamente nos postes, perturbando-lhe a orquestra e os jogos artísticos.
Deu ordens para que queimassem todo o incenso que fosse encontrado e borrifassem o parque com o perfume inicialmente destinado aos convidados. Todos sabem quanto deve ter custado essa extravagância, sem falar em todas as cadeias de ferro arruinadas .
Quanto a mim estava ainda ocupado no circo, tendo recebido •rápidas congratulações dos espectadores mais notáveis pelo êxito do espetáculo. Depois disso, desci apressado à arena para superintender o trabalho dos Caronianos, mas acima de tudo para recolher o que ainda restava de Jucundo e Barbo.
Encontrei-os facilmente. Tive a surpresa de achar um jovem cristão no meio de todos os corpos dilacerados, a cabeça nas mãos e completamente ileso. Depois de limpar o sangue que o cobria, viu que não sofrera dentada, arranhão nem esfoladura. Fitou estupidamente as estrelas vespertinas e perguntou se estava no paraíso. Em seguida contou-me que se lançara à areia, recusando-se a exasperar os animais selvagens com demonstrações de resistência. Era compreensível que tivesse escapado, pois nem os leões nem os touros bravios, normalmente, tocam numa pessoa que se faz de morta. Muitos homens que tentam capturá-los salvam a vida desse modo.
Considerei seu salvamento como uma espécie de presságio e pus minha capa em seus ombros para resguardá-lo das clavas dos Caronianos. recompensado por isto, uma vez que êle me contou minuciosamente tudo o que Jucundo e Barbo tinham feito e o que haviam discutido entre os outros prisioneiros.
O local estava tão apinhado de cristãos que eles nem podiam sentar-se, e por casualidade o rapazinho se vira imprensado junto de Jucundo. Depois também, Barbo, que ficara ligeiramente surdo na velhice, foi obrigado a pedir a Jucundo que falasse alto, quando meu filho no sussurrava a história da ridícula conspiração dos garotos.
O rapazinho cristão tomou seu salvamento por um milagre e disse que Cristo devia precisar dele para outros fins, muito embora tivesse esperado encontrar-se no paraíso com os outros cristãos ao anoitecer. Dei-lhe algumas roupas, já que havia grande quantidade delas, e tomei providências para que ele saísse sem ser incomodado por um portão lateral do circo.
Ele fez votos para que Cristo abençoasse minha generosidade e minha boa ação e assegurou-me que acreditava que até mesmo eu encontraria um dia o verdadeiro caminho. Contou-me candidamente que fora discípulo de Paulo e no batismo recebera o nome de Clemente. Esta coincidência extraordinária contribuiu para que eu transigisse com o capricho de Cláudia de chamar Clemente a meu filho.
O jovem cristão interpretou mal minha surpresa e explicou à guisa de desculpa que não se distinguia de modo algum pelo bom gênio, mas na verdade tinha de praticar a humildade para penitenciar-se de sua impulsividade. Por isso se atirara ao chão e se negara a responder ao mal com o mal. Assim, abençoou uma vez mais a minha bondade e foi para Roma seguindo o caminho iluminado pelas tochas humanas. Mas estava tão certo de que Cristo precisava dele para alguma missão futura que provavelmente não lamentou por muito tempo o não ter sido chamado a acompanhar os outros ao paraíso.
Tornei a encontrá-lo três anos depois quando, no desempenho de minhas funções, fui obrigado a ser o mediador das disputas internas dos cristãos, ocasião em que achei que devia tomar o par tido de Cleto. A questão consistia em saber quem devia herdar o cajado de pastor na sucessão de Lino. Pareceu-me que Clemente era ainda muito moço e creio que ele mesmo se deu conta disso mais tarde, em seus exercícios de humildade.
Sua vez chegará um dia sem dúvida, mas não é necessário que te preocupes com isso, Júlio. Os cristãos não têm importância política. A religião deles não pode resistir às outras religiões orientais. Apesar de tudo, nunca os persigas; deixa-os em paz, por amor à tua avó, Mirina, mesmo que eles às vezes te provoquem.
Mandei embrulhar num pano os restos de Jucundo e Barbo. Também dei a várias pessoas amedrontadas permissão de ver os cadáveres de seus parentes caso pudessem localizá-los. Não aceitei os inúmeros donativos que me ofereceram em troca. Em sua maioria os corpos tiveram de ser levados para uma vala comum perto do local de execução das classes mais baixas, felizmente bem pertinho.
Assim, de consciência limpa, pude sair correndo para o banquete de Nero, e lá, ao ver os horrores praticados por Tigelino, expressar minha censura às suas arbitrariedades. Já calculara que não havia comida suficiente para o imenso número de espectadores
de modo que me dera pressa em mandar esfolar e retalhar meus touros selvagens para que pudesse, por minha conta, convidar o povo a comer carne boa.
Mas perdi o apetite logo que vários senadores me olharam singularmente e até mesmo voltaram as costas a mim, sem responder ao meu cumprimento. Depois, Nero agradeceu minha colaboração no espetáculo com surpreendente falta de entusiasmo e ar um tanto compungido. Só então, ouvi de seus lábios a sentença contra meu pai e Túlia, porquanto o aparecimento inesperado de Jucundo e Barbo na arena continuava um enigma para mim, apesar da história do jovem cristão. Eu tinha pretendido perguntar a Nero em termos mordazes, quando ele estivesse em estado de espírito favorável, como era possível que um rapazinho que era filho adotivo de um senador fosse atirado às feras entre os cristãos.
Nero descreveu o desarranjo mental de meu pai na sessão matinal do Senado.
— Ele me insultou perante todo o Senado — disse Nero — mas eu não o condenei. Seus próprios pares é que pronunciaram unanimemente a sentença, de tal modo que não houve necessidade de submeter o caso à votação. Um senador não pode ser condenado, nem mesmo pelo Imperador, sem que primeiro sejam ouvidos os outros senadores. Tua madrasta, com seu comportamento desarrazoado, transformou tudo num escândalo público, embora, levando em consideração o teu bom nome, eu tivesse preferido manter o assunto em segredo. O jovem bretão que teu pai adotara tomou muito a sério suas obrigações e declarou-se cristão. De outra maneira nunca teria sido levado para o circo, posto que fosse aleijado e portanto de pouquíssima valia como cavaleiro. É inútil chorares a morte dele, pois teu pai ia te deserdar, presumivelmente em conseqüência do estado de sua mente. Na verdade nada perderas, se bem que eu esteja inclinado a confiscar a fortuna de teu pai. Sabes das dificuldades que atravesso para arranjar dinheiro, a fim de poder viver com decência.
Julguei mais seguro explicar que meu pai tinha-me transmitido parte de minha herança dezessete anos antes, para que eu pudesse satisfazer os requisitos de rendimento exigidos pela Nobre Ordem dos Cavaleiros. Mas eu vendera os terrenos do Aventino antes que as casas neles situadas fossem destruídas pelo fogo, e recebera grandes somas de meu pai para aplicar na casa dos bichos.
De resto, o próprio Nero já se beneficiara disso nos espetáculos do anfiteatro.
Nero replicou, magnânimo, que não pensara em reclamar a herança que eu recebera havia tanto tempo, uma vez que em sua opinião o espólio de meu pai era mais do que suficiente e tanto o erário suficiente, e tanto como seus empreendimentos arquitetônicos seriam aquinhoados. De fato, deu-me permissão para escolher algumas lembranças da casa de meu pai, contanto que eu deixasse que primeiro os magistrados as arrolassem.
Para evitar todas as possíveis suspeitas posteriores, senti-me no dever de confessar que meu pai, entre outras coisas, me dera um cálice que era de grande valor para mim pessoalmente. Nero ficou curioso de início, mas perdeu todo o interesse quando eu lhe disse que se tratava apenas de um caneco de madeira.
Dei-me conta, então, dos perigos que correra, em virtude do comportamento insultuoso de meu pai, e acrescentei de imediato que desta vez não iria cobrar a Nero um único sestércio por meus animais selvagens e outras despesas, pois sabia perfeitamente que ele precisava de todas as moedas que pudesse arranjar para adquirir uma residência digna dele.
Na verdade, dei-lhe também o resto da carne dos touros bravios para que a ofertasse ao povo e sugeri que vendesse a imensa quantidade de roupas que ainda estavam guardadas no circo, assim como as jóias e fivelas que tínhamos tirado dos prisioneiros. Talvez desse modo ele pudesse custear algumas colunas da nova arcada que ia ligar os edifícios do Palatino e Célio com o Palácio Dourado do Esquilino.
Nero mostrou-se encantado e prometeu lembrar-se de minha generosidade. Aliviado do receio de que eu lhe reprochasse o ter condenado à morte meu pai e o rapazinho que julgava ser meu meio-irmão, mostrou-se grato pelo papel que eu desempenhara no espetáculo, admitindo que o pessoal do teatro falhara miseravelmente e que Tigelino apenas causara aborrecimentos. No seu entender, a única coisa que fora bem sucedida, além dos animais selvagens, fora a esplêndida música do órgão hidráulico e da orquestra, para a qual ele próprio preparara cuidadosos arranjos.
Achava eu que o estrépito da música apenas perturbara os animais e desviara a atenção dos espectadores para longe de alguns pontos culminantes do espetáculo, mas esta era somente minha opinião pessoal e não a enunciei. Considerava-me incompetente para julgar os insignificantes resultados de seus esforços quando os meus tinham alcançado tanto êxito.
A despeito de tudo isto, sentia-me deprimido e não tinha apetite. Tão logo me vi a salvo de olhares invejosos, fiz uma oferenda a meu pai e bebi dois cálices de vinho. Mandei meu agente descobrir onde meu pai tinha sido executado e o paradeiro dos cadáveres dele e de Túlia. Mas não foram encontrados, conforme já relatei.
Tive de contentar-me com cremar os restos de Jucundo e Barbo ao amanhecer numa pira apressadamente levantada. Pareceu-me que Barbo conquistara o direito a uma pira idêntica à do meu filho, em razão de sua lealdade e dos longos anos de serviço. Depois de apagar com vinho as últimas labaredas, recolhi eu mesmo as cinzas e coloquei-as numa urna.
Mais tarde pus a urna num mausoléu em Cere que eu mandara construir no sepulcro outrora comprado por meu pai. Jucundo era de velho sangue etrusco pelo lado de meu pai, e sua mãe, Lugunda, era de nobre estirpe bretã. Barbo, por seu turno, mostrara lealdade até à morte, sinal de certa nobreza de espírito. Na tampa da urna está um galispo etrusco de bronze que canta para eles a vida eterna, como verás um dia, Júlio, quando fores a Cere com os restos mortais de teu mísero, perplexo e indigno pai.
Para não ofendê-lo, saindo cedo, fui compelido a participar do banquete de Nero. Reconheço com prazer que ele foi bem sucedido nos pequenos espetáculos organizados nos pontos iluminados do parque: belas coreografias, sátiros perseguindo ninfas por entre os arbustos, uma representação de Apolo e Dafne e outras coisas que podiam distrair o povo e despertar pensamentos frívolos num público mais enfastiado. A comida era abundante, graças à contribuição da carne dos touros, e as fontes enchiam os tanques de vinho puro, sem mistura de água.
Como os provocadores do incêndio tinham recebido a merecida punição e o crime fora convenientemente expiado, as principais damas de Roma, juntamente com todos os colégios de sacerdotes, haviam preparado uma soberba ceia conciliatória, que se converteu no ponto alto do festim realizado nos jardins. Para esse fim tinham trazido dos templos os dois mais sagrados cones de pedra branca.
Engrinaldados pelas mulheres, jaziam eles agora em seus sacrossantos coxins no interior de uma tenda iluminada, onde lhes ofereciam a tradicional refeição sagrada. Contemplei curioso, lembrando-me de que os romanos haviam herdado esse mistério dos etruscos, e fervorosamente associei-me ao riso santo ao lado dos senadores e cavaleiros. O povo não tinha permissão de rir. Em seguida, fecharam a abertura da tenda, e um pouco depois as luzes que brilhavam através da lona extinguiram se sem que ninguém as tocasse. Todos soltaram um suspiro de alívio ante o sucesso da cerimônia, realizada de acordo com a tradição.
Enquanto os cones de pedra, ou deuses que representavam, continuavam na tenda escura, depois da refeição sagrada, para que abraçados em seus sacrossantos coxins fadassem o progresso dc Roma, Nero providenciou uma peça satírica para contrabalançar toda essa santidade. A única falta que se lhe pode assacar é a de ter ele mesmo participado da representação, convencido de que desse modo conquistaria as boas graças do povo.
Assim, num palco aberto, acompanhado por hinos nupciais profanos, êle se vestiu de noiva e escondeu o rosto atrás de um véu escarlate. Imitando habilmente voz de mulher, cantou depois o lamento costumeiro e deixou-se conduzir para o leito matrimonial por Pitágoras, um belo escravo em traje de noivo. Apareceu uma deusa para consolar e aconselhar a noiva assustada. Choramingando de medo, Nero permitiu que o noivo desatasse os dois nós da cinta, e, praticamente nus, afundaram finalmente na cama, nos braços um do outro.
Nero imitou com tanta perfeição os soluços e gritinhos agudos de uma donzela apavorada, que o público riu a valer. Depois disso passou a dar gemidos de simulado prazer, o que fêz que muitas senhoras nobres corassem e cobrissem os olhos com as mãos. Tanto êle como Pitágoras representaram seus papéis com tamanha desenvoltura, que davam a impressão de que tinham ensaiado a cena de antemão.
Não obstante, Popéia teve tanta raiva dessa encenação que logo depois se retirou do banquete. Outra razão para a sua saída era, naturalmente, o fato de estar ela, novamente, no terceiro mês de gravidez. Precisava ter cuidado com a saúde, e o excitante e prolongado espetáculo circense a tinha fatigado.
Nero não fêz caso da saída de Popéia. Na verdade, aproveitou o ensejo, uma vez que os convivas iam ficando cada vez mais embriagados, para dar Início a vários passatempos lascivos nos pontos escuros do parque. Convidara todas as mulheres dos bordéis não destruídos pelo incêndio e pagara-lhes generosamente do próprio bolso. Mas houve muitas damas nobres e muitos homens e mulheres casadas que tomaram parte nessas brincadeiras, sob a proteção da treva. No fim, as moitas estavam cheias de sussurros, e os grunhidos libidinosos dos bêbados e os gritos das mulheres ressoavam por toda a parte.
Saí para ir acender a pira funerária de Jucundo e Barbo. En quanto borrifava-lhes as cinzas com vinho, pensei em Lugunda e em minha juventude na Bretanha, quando eu era ainda sensível, tão receptivo à bondade e tão inocente que vomitara depois de matar meu primeiro bretão. Ao mesmo tempo naquela madrugada, muito embora eu não o soubesse então, Nero regressou ao Esquilmo para dormir, sujo, empoeirado e com a coroa de flores à banda e empapada de vinho.
Popéia, irritadiça como costumam ser as mulheres grávidas, estava acordada, à espera dele, e dirigiu-lhe algumas palavras ásperas, bem ao jeito das esposas. Em sua embriaguez, Nero tomou-se de uma fúria tal, que deu um pontapé na barriga de Popéia e depois caiu na cama, no sono profundo dos bêbados. No dia seguinte, só se lembrou do que acontecera quando lhe foram dizer
que Popéia abortara. Ela estava muito doente, e logo se evidenciou que nem mesmo os melhores médicos de Roma poderiam salvá-la, sem falar nas velhas judias que a cercavam com suas fórmulas mágicas e bruxarias.
Diga-se, em honra de Popéia, que ela nem uma vez censurou Nero ao compreender que sua situação era desesperadora. Na realidade, já agonizante, tentava consolá-lo, aplacando-lhe o sentimento de culpa e lembrando-lhe que sempre desejara morrer antes que sua beleza murchasse. Queria que Nero guardasse até morrer a lembrança da aparência que ela tinha naquele instante, sua beleza intacta, amada por Nero, a despeito da ação dele, o que podia ter acontecido a qualquer casal fiel. Naturalmente, Nero teria de casar outra vez, por motivos políticos, mas tudo quanto Popéia pedia era que Nero não agisse com precipitação nesse assunto e que não lhe mandasse cremar o corpo. Popéia queria ser enterrada à maneira judaica.
Razões políticas impediam que Nero a enterrasse com os ritos da religião judaica. Mas ele permitiu que as mulheres judias se reunissem em volta do cadáver para os lamentos costumeiros. Mandou embalsamar Popéia, ao modo oriental, e sem hesitação cumpriu a vontade dela, enviando donativos ao templo de Jerusalém e às sinagogas de Roma.
No fórum, pronunciou o elogio fúnebre de Popéia, perante os senadores e o povo, chorando de emoção ao enumerar minuciosamente os pontos capitais de sua beleza, desde os anéis de cabelo dourado às róseas dos pés.
Um cortejo funerário conduziu o corpo embalsamado de Popéia, num ataúde de vidro, para o mausoléu de Augusto. Muita gente viu nisso um desrespeito, pois Nero não dera nem mesmo à sua mãe um lugar no mausoléu, sem falar em sua esposa, Otávia. Salvo os judeus, o povo não pranteou Popéia. Não contente com ferraduras de prata, ela mandara ferrar de ouro os cascos de suas mulas, depois de ter provocado rancor com seus eternos banhos no leite desses animais.
Eu mesmo lamentei que a encantadora Popéia tivesse morrido em plena juventude. Ela sempre se mostrara afetuosa comigo e provavelmente teria confirmado esse afeto nos meus braços, se eu tivesse tido o bom senso de pedir-lhe ousadamente que o fizesse. Não era tão virtuosa como acreditei a princípio, ao apaixonar-me tão perdidamente, mas por infelicidade só me dei conta disso quando ela já tinha casado com Oto.
Agora que já te contei tudo isto, devo falar-te de tua mãe, Cláudia, e da atitude dela para comigo. Ao mesmo tempo, cumpre-me descrever minha participação na conjura de Pisão e seu desmascaramento. Esta é talvez uma tarefa ainda mais espinhosa.
Mas farei o possível, como venho fazendo até aqui, para narrar tudo com razoável honestidade, sem desculpar-me demasiadamente. Talvez aprendas alguma coisa acerca das fraquezas do homem, quando leres isto algum dia, Júlio, meu filho. Despreza-me, se quiseres. ,'Nada perderei com isso. Jamais esquecerei aquele olhar frio e límpido, de um menino de quatorze anos, que tu me atiraste, quando tua mãe te forçou a vir ver teu pai, indignamente rico e abjetamente insensato, nesta estação de águas onde estou tentando curar-me. Foi um olhar gélido, mais cruel do que os piores ventos do inverno. Mas, ai de mim! és um Juliano, de sangue divino, e eu não passo de um Minuto Maniliano.
Antônia
EUbem que queria reconhecer-te, oficialmente, como meu filho e dar-te o nome que Cláudia sugerira, mas achei mais prudente esperar um pouco, até que tua mãe tivesse tempo de se acalmar.
Não pude impedir que Cláudia, em Cere, descobrisse o que acontecera em Roma e soubesse como eu, a contragosto, cumprindo ordens de Nero, fora compelido a organizar a execução dos cristãos de maneira apropriada. É claro que eu havia dado guarida a alguns cristãos em minha quinta e avisara outros. É até possível que tenha salvo a vida de Cefas, ao assustar Tigelino com a reputação de feiticeiro de que gozava aquele.
Eu conhecia o temperamento violento de Cláudia e sabia também como as mulheres geralmente interpretam mal as ações dos maridos, sem levar em conta as necessárias exigências da política e outras coisas desse gênero, que só os homens entendem. Portanto, achei melhor deixar que Cláudia recobrasse a serenidade e examinasse o que ouvira dizer.
Além disso, tinha tantos assuntos a resolver em Roma, que não podia viajar imediatamente para Cere. A reposição dos animais e a obtenção de indenização pelas outras perdas reclamavam todas as minhas energias. Mas devo confessar que já começara a sentir certa repugnância pela casa dos bichos em geral, especialmente quando pensava em Cláudia.
O inesperado suicídio de tia Lélia foi outro inarredável obstáculo à minha viagem. Fiz o possível para mantê-lo em segredo, mas, apesar de todos os seus esforços, este fato deu origem a uma nova onda de boatos a meu respeito. Ainda não posso entender por que Lélia tirou a própria vida, se é que houve alguma outra causa, além do desconcerto de sua mente. Presumo que a perda da dignidade de senador e a execução de meu pai representaram um golpe tremendo para tia Lélia e que ela, impelida por uma espécie de desorientado senso de honra, se julgou no dever de suicidar-se. Talvez, em seu desarranjo mental, tenha imaginado que eu devia fazer a mesma coisa, por respeito ao Imperador e ao Senado, e tenha querido dar-me um bom exemplo romano.
Convenceu sua serva, que também não tinha o juízo muito perfeito, a abrir-lhe as veias, e como seu envelhecido sangue se recusasse a jorrar até mesmo num banho quente, asfixiou-se, afinal, com os vapores do braseiro de carvão de lenha, que tinha sempre aceso em seu quarto, pois como todas as pessoas idosas vivia continuamente com frio. Ordenou que a serva vedasse cuidadosamente pelo lado de fora todas as fendas existentes nas portas e janelas. Ainda estava bastante lúcida para isso.
Só dei pela falta dela no dia seguinte, quando a serva me perguntou se podia arejar o quarto. Não tive coragem de censurar aquela pobre anciã simplória e desdentada, que não parava de dizer que fora obrigada a obedecer às ordens de sua patroa. Fiquei terrivelmente abalado com esse novo infortúnio que viera abater minha reputação e meu nome.
Naturalmente mandei cremar o cadáver de tia Lélia com todas as honras da família e pronunciei um discurso em sua memória num banquete funerário particular, se bem que fosse difícil levá-lo a cabo, já que me achava bastante enraivecido. Também era difícil encontrar o que dizer acerca da vida de tia Lélia e de seus pontos positivos. Não convidei Cláudia para essas comemorações, de vez que ela acabara de sair do parto, mas escrevi para ela, comunicando-lhe esse triste acontecimento e explicando os motivos pelos quais ainda não podia ausentar-me da cidade.
Para dizer a verdade, passei maus momentos naquela fase. A conduta corajosa dos cristãos no circo e sua punição desumana, que suscitaram asco no meio de nossa amimalhada juventude, já influenciada pela cultura grega, geraram simpatia pelos cristãos nos meios insuspeitados, nos quais não se dava crédito às acusações de Nero. Perdi muitos amigos que tinha na conta de fiéis.
Para provar as deturpações e a má-vontade dessa gente, basta contar que se espalhou a notícia de que eu havia denunciado meu meio-irmão Jucundo, como cristão, porque receava ter de partilhar com êle a herança de meu pai. Diziam também que meu pai, que já me repudirra em virtude de minha má reputação, tomara a deliberação de fazer com que o Estado se apoderasse de sua fortuna, somente para evitar que parte dela caísse em minhas mãos. Que teriam inventado se tivessem sabido que Jucundo era meu filho? Se na sociedade falavam de mim dessa maneira aleivosa e hostil, imagino o que não diriam os cristãos! Naturalmente eu os evitava tanto quanto possível, para .não incorrer na suspeita de os proteger.
O sentimento geral era de tal ordem que eu não podia aparecer na rua sem suficiente escolta. Até mesmo Nero julgou conveniente propalar que, muito embora tivesse deixado bem claro que sabia ser severo quando necessário, estava agora pensando em abolir a pena capital em todo o país.
Depois disso, ninguém, inclusive nas províncias, podia ser condenado à morte, nem mesmo pelos piores crimes. Em vez disso, os culpados seriam mandados ao trabalho forçado na reconstrução de Roma, principalmente na edificação do novo palácio de Nero, que ele agora começava a chamar de Palácio Dourado, e do Grande Circo.
Essa proclamação não era fruto de brandura e amor à humanidade. Nero enfrentava séria crise financeira e precisava de mão-de-obra gratuita para o trabalho mais árduo. O Senado validou a ordem, embora durante os debates muitos senadores fizessem graves advertências sobre os efeitos da supressão da pena de morte e considerassem que tanto o crime quanto outras impiedades iriam proliferar.
A generalizada atmosfera de irritabilidade e descontentamento não resultava exclusivamente do castigo imposto aos cristãos, pois este fora apenas um pretexto para que muita gente extravasasse o ódio ao poder dirigente. Só então os impostos imprescindíveis à reconstrução de Roma e aos projetos arquitetônicos de Nero se faziam sentir plenamente em todas as camadas da sociedade. Como era de esperar, o preço dos cereais subira após as primeiras medidas de emergência, e até mesmo os escravos se ressentiam do paulatino decréscimo na distribuição de pão, alho e azeite.
Naturalmente um império inteiro podia arcar com a edificação de um Palácio Dourado, em especial depois que Nero ajuizadamente espaçara as obras por um período de vários anos, se bem que procurasse acelerar o mais possível o ritmo da construção. Disse ele que se contentaria de início com um razoável salão de banquetes, alguns dormitórios e a indispensável galeria destinada às representações. Mas Nero não tinha cabeça para números e, ao modo dos artistas, carecia de paciência para ouvir as explicações das pessoas bem informadas. Arranjava dinheiro onde quer que o encontrasse, sem pensar nas conseqüências.
Em troca, aparecia como cantor e ator nos mais diversos espetáculos teatrais, para os quais convidava o povo. Vaidoso como era, imaginava que sua esplêndida voz e o prazer de vê-lo no palco em diferentes papéis fariam com que a população esquecesse os imensos sacrifícios materiais dela exigidos, os quais perderiam qualquer significação ao lado da arte maravilhosa do Imperador. E nisto enganava-se redondamente.
Muitas personalidades destacadas e pouco afeiçoadas à música começaram a ver nessas intermináveis representações um contratempo insuportável a que era difícil escapar, pois Nero, ante o menor sinal, punha-se a bisar os números até ao cair da noite.
Alegando diversas razões, e evidentemente com o pensamento voltado para ti, logrei convencer Cláudia a permanecer quase três meses nos ares saudáveis de Cere. Não lia com a devida atenção as cartas amargas que ela me mandava e limitava-me a responder que a traria contigo para Roma, assim que as minhas obrigações permitissem e o momento me parecesse favorável, do ponto de vista de sua segurança.
Em verdade, após o espetáculo no circo, os cristãos pouco foram perseguidos, se é que o foram, contanto que se comportassem. Mas, de modo geral, e como era compreensível, estavam amedrontados Com a eventualidade de uma punição em massa e mantinham-se quietos e escondidos.
Quando se encontravam em suas reuniões secretas e subterrâneas, logo entravam a discutir asperamente e a perguntar por que as denúncias tinham sido tão numerosas e por que os seguidores de Paulo tinham denunciado os seguidores de Cefas e vice-versa. Inevitavelmente, começaram a dividir-se em sociedades secretas fechadas. Os mais fracos deixavam-se dominar pelo desespero, já não sabendo qual era o meio melhor de seguir a Cristo. Evitavam os fanáticos e iam viver na solidão.
Afinal, Cláudia, por sua livre vontade, voltou a Roma, acompanhada de seus servos cristãos e de todos os refugiados a quem eu dera asilo em minha herdade em troca de um pouco de trabalho da parte deles. Corri a recebê-la com uma exclamação de alegria. A princípio, porém, ela não quis nem que eu te visse e ordenou à ama que te pusesse dentro de casa, longe dos meus olhos malignos.
Mandou que os do seu séquito cercassem a casa para que eu não saísse. Devo confessar que, após consultar os deuses lares e meu nome tutelar, também temi momentaneamente pela minha vida, ao lembrar-me que tua mãe é filha de Cláudio e herdou a índole implacável e caprichosa do pai.
Mas depois de examinar todos os recantos da casa, Cláudia mostrou-se relativamente afável e declarou que desejava ter uma conversa séria comigo. Assegurei-lhe que nada me agradaria mais, desde que primeiro tirassem da sala todos os vasos e todas as armas que ornavam as paredes.
É claro que Cláudia chamou-me de assassino, reles assassino cujas mãos estavam manchadas de sangue, e afirmou que o sangue de meu irmão adotivo clamava aos céus, acusando-me perante Cristo. Com minha volúpia de matar, eu atraíra sobre minha cabeça a ira de Jesus de Nazaré.
Senti-me aliviado ao notar que ela não sabia que Jucundo era meu filho, já que as mulheres são com freqüência assustadoramente perceptivas em tais assuntos. Pareceu-me mais afrontosa a afirmação desvairada de que tia Lélia se suicidara por minha causa. Mas respondi que estava pronto a perdoar-lhe essas palavras injus-
tas e disse-lhe também que perguntasse a Cefas, por exemplo, oque eu tinha feito pelos cristãos e para salvá-lo das garras de Ti-
gelino.
_ Não acredite somente em Prisca e Áquila e alguns outros, cujos nomes não quero ter o trabalho de mencionar — disse eu.
_ Sei que são partidários de Paulo. E note também que, em certa ocasião, ajudei Paulo a livrar-se de várias acusações. Êle não foi sequer procurado na Ibéria porque, em parte graças a mim, Nero não quer mais ouvir falar nos cristãos.
—Acredito em quem quero — redarguiu Cláudia, com raiva.
_ Você sempre acha jeito de safar-se de tudo. É inconcebível que eu continue vivendo com um homem como você, de cujas mãos goteja o sangue dos fiéis. Não há nada que eu lamente mais do que ser você o pai do meu filho.
Achei que talvez fosse melhor não fazê-la recordar quem fora que viera primeiro para a minha cama e que fora eu quem, cedendo aos seus rogos insistentes, fizera dela uma mulher honesta, desposando-a em segredo.
Felizmente, o fogo destruíra os documentos secretos que se encontravam sob a guarda das Vestais, da mesma forma que incinerara os arquivos do Estado. Assim, eu não precisava recear que o meu casamento viesse a ser descoberto. Por isso tive a sensatez de calar-me, pois era manifesto nas palavras de tua mãe o desejo de parlamentar.
Cláudia estipulou suas condições. A mim cabia melhorar meu modo de vida tanto quanto fosse possível a um indivíduo ímpio como eu. Também devia pedir perdão a Cristo pelos meus delitos, e, acima de tudo, deixar a casa dos bichos e o cargo de superintendente sem demora.
— Se não pensa em mim e no meu bom nome, então pense pelo menos em seu filho e no futuro dele — disse Cláudia. — Seu filho é uma das últimas pessoas em Roma a ter nas veias o sangue dos Julios e Claudios. Para o bem dele, trate de conquistar uma posição digna, de modo que, quando crescer, êle não precise saber do vergonhoso passado do pai.
Cláudia imaginava que eu iria oferecer resistência com todas as minhas forças, porque investira muito dinheiro na casa dos bichos e nas feras, além de ter sido muito aclamado no anfiteatro, por causa dos meus espetáculos. Assim, vi-me numa situação vantajosa para negociar com ela no futuro. Eu mesmo já resolvera deixar a casa dos bichos, embora não, é claro, em razão da chacina dos cristãos no circo. Embora contra ela, desde o princípio, eu fora compelido a organizar o espetáculo da maneira mais adequada possível, apesar do grande esforço exigido e da escassez de tempo. Não vejo razão para envergonhar-me disso.
O motivo mais ponderável era que eu tinha de chegar a algum acordo financeiro com minha primeira mulher, Flávia Sabina. Fora fácil para mim prometer a ela metade da minha fortuna, no momento em que Epafrodito me estrangulava, mas, com o passar do tempo, foi aumentando minha aversão a essa idéia.
Como eu tinha, então, um filho que tinha certeza de que era meu mesmo, achei que não era justo que meu pequenino e ilegítimo Lauso, de cinco anos, um dia herdasse todos aqueles bens. Nada tinha contra Lauso mas, com o passar dos anos, sua pele ia ficando cada vez mais escura e seu cabelo cada vez mais crespo, de maneira que às vezes eu tinha acanhamento de permitir que ele usasse meu nome.
Por outro lado, eu sabia muito bem que o possante Epafrodito era completamente dominado por Sabina e que ela era bastante impiedosa para mandar-me trucidar, caso eu regateasse excessivamente. Mas concebi um plano excelente para me ver livre do problema e cheguei mesmo a falar dele a Sabina.
Epafrodito recebera do próprio Nero seu bastão de liberto e a cidadania, muito antes que eu tivesse qualquer desconfiança das relações entre ele e Sabina. Não que Sabina não fosse para a cama com outros domadores de quando em quando, mas, após o nosso divórcio, Epafrodito, sem que se esperasse, cortara-lhe as asas e surrava-a de tempos em tempos, o que vinha ao encontro dos desejos dela.
Eu resolvera dar a Sabina a casa dos bichos com os escravos, animais, contratos e tudo, e sugerir a Nero que designasse Epafrodito para superintendente, no meu lugar. Epafrodito era cidadão, mas a bem de meu próprio nome, era importante que meu sucessor também fosse membro da Nobre Ordem dos Cavaleiros.
Se me fosse possível persuadir Nero a incluir um africano na lista dos cavaleiros, pela primeira vez na história de Roma, então Sabina poderia casar-se legalmente com ele. Isto seria bem mais fácil agora, que seu pai a repudiara e não haveria oposição da família Flávia à realização do casamento. Em troca disto, Sabina prometera adotar Lauso e retirar-lhe o direito de herdar meu patrimônio. Mas ela não acreditava que Nero fizesse cavaleiro romano um homem que era, pelo menos, meio negro.
Contudo, eu conhecia Nero e ouvira-o muitas vezes gabar-se de que nada era impossível para ele. Como artista e amigo da humanidade, ele não considerava o negro da pele ou mesmo o judaísmo como obstáculo à função pública. Nas províncias africanas muitos negros haviam desde muito alcançado a dignidade de cavaleiro em suas cidades natais, em conseqüência da riqueza ou dos méritos militares.
Quando concordei com as sugestões conciliatórias de Cláudia, aparentemente hesitando e deplorando meus prejuízos, não somente nada tinha a perder como ainda estava escapando a consideráveis sacrifícios financeiros: as exigências de Sabina e as do meu filho Lauso. Valia a pena envidar todos os esforços nesse sentido, embora eu vaticinasse sombriamente a Cláudia que Nero iria ofender-se com meu pedido de demissão de um cargo para o qual êle me nomeara. Cairia em desgraça e talvez até arriscasse a vida.
Cláudia replicou, com um sorriso, que eu não precisava mais preocupar-me com as boas graças de Nero, já que pusera em perigo a minha vida no momento em que trouxera ao mundo um filho em cujas veias corria o sangue dos Cláudios. Seu comentário fêz correr um calafrio pela minha nuca, mas então ela gentilmente consentiu em que eu te visse, já que nos tínhamos reconciliado.
Assim, tomei coragem, pedi a Sabina, Epafrodito e Lauso que me acompanhassem e solicitei uma audiência com Nero, na parte concluída do Palácio Dourado, numa daquelas tardes em que eu esperava que o Imperador, após a refeição e o banho refrescante, prosseguisse em suas libações e prazeres até alta noite. Os artistas estavam completando os murais dos corredores, e o salão circular dos banquetes, cintilante de ouro e marfim, estava ainda em fase de acabamento.
Eras um bebê lindo e sem defeito. Fitavas a distância com teus olhos azul-escuro e teus dedinhos agarraram com força o meu polegar, como se quisesses ali mesmo despojar-me de meu anel de ouro. Seja como fôr, conquistaste meu coração, e nada que se assemelhasse a isto jamais me acontecera antes. És meu filho e não podes fazer nada a esse respeito.
Nero estava planejando naquele momento uma gigantesca estátua de si mesmo que ia ser erigida diante da galeria de ligação. Mostrou-me os desenhos e chamou atenção para o escultor com modos tão lisonjeiros que chegou até a apresentar-me o artífice, como se fôssemos da mesma posição social. Não me ofendi, pois o principal era que Nero estivesse de bom humor.
Mandou de bom grado o artesão embora quando lhe pedi para falarmos a sós. Depois, assumiu um ar compungido, coçou o queixo e admitiu que também tinha alguns assuntos a discutir comigo. Pusera-os de lado com receio de que eu me aborrecesse.
Expliquei-lhe demoradamente quanto eu me sacrificara, por lealdade, na superintendência da casa dos bichos em Roma e que agura sentia que essa missão estava acima das minhas forças, mormente em vista da nova casa que estava sendo construída em conexão com o Palácio Dourado. Acreditava não estar em condições e levar a cabo essa tarefa que exigia gosto artístico. Assim sendo, ficaria extremamente grato se êle me exonerasse do cargo.
Quando notou o rumo que meu longo discurso ia tomando, Nero desanuviou a cara e estourou numa gargalhada de alívio, dando-me uma palmadinha nas costas da maneira mais amistosa, como indício de sua benevolência.
— Não te preocupes, Minuto — disse ele. — Defiro o teu pedido. Tanto mais que eu andava à cata de um pretexto para te demitir da superintendência da casa dos bichos. Desde o outono pessoas influentes vêm me atacando, por causa do espetáculo excessivamente cruel que organizaste e exigindo que sejas demitido, em castigo do mau gosto que revelaste. Devo reconhecer que certos pormenores do espetáculo foram um tanto insossos, embora, sem dúvida, os incendiários merecessem a punição. Alegra-me ver que tu mesmo percebes que tua posição se tornou insustentável. Nunca me passou pela cabeça que abusarias de minha confiança e arranjarias as coisas de tal modo que teu meio-irmão fosse lançado às feras, por causa de alguma rixa em torno de herança.
Abri a boca para repelir essa acusação descabida, mas Nero não se interrompeu:
— O espólio de teu pai é tão complicado e os seus negócios tão obscuros que até agora não recebi nenhuma compensação pelos meus gastos. Murmura-se por aí que, em total conivência com teu pai, contrabandeaste para fora do país a maior parte da fortuna dele, enganando assim o Estado e a mim. Mas não acredito nisso, porque sei que tu e teu pai não vos dáveis bem. De outro modo, eu seria obrigado a expulsar-te de Roma. Suspeito seriamente da irmã de teu pai, que se suicidou para fugir ao castigo. Espero que não te oponhas a que os magistrados examinem os teus livros. Nunca faria uma coisa dessas, se não estivesse tão necessitado de dinheiro, sempre por causa da opinião de certas pessoas. Elas se sentam abraçadas aos sacos de dinheiro e se negam a ajudar o Imperador a adquirir uma residência decente. Parece incrível que até mesmo Séneca só se tenha dado o trabalho de enviar dez milhões de sestércios, ele que outrora fingia querer dar-me tudo quanto possuía, sabendo perfeitamente que, por motivos políticos, eu não podia aceitar. Palas, esse se senta sobre o dinheiro feito uma cadela gorda. Contaram-me que, poucos meses antes do incêndio, vendeste todos os teus edifícios de apartamentos e terrenos situados nas zonas da cidade que foram mais atingidas pelo fogo e compraste em Óstia terreno barato, que desde então se tornou inesperadamente valorizado. Essa previsão me parece suspeita. Se não te conhecesse, poderia acusar-te de participação na conjura dos cristãos.
Desatou a rir. Aproveitei a oportunidade para declarar, em tom formal, que naturalmente minha fortuna estava sempre à sua disposição, mas que eu não era tão rico como se dizia. A esse respeito, não caberia mencionar meu nome ao lado de homens como Séneca e Palas. Mas Nero deu-me uma palmadinha no ombro:
_ Não te irrites com minha brincadeira, Minuto. É melhor, para o teu próprio bem, que saibas o que circula por aí a teu respeito. Um Imperador está numa situação difícil. Tem de ouvir a todos e nunca sabe quais são aqueles cujas intenções são sinceras. Mas meu próprio julgamento me diz que és mais obtuso do que perspicaz. Portanto, não posso me comportar tão mal, a ponto de confiscar os teus bens, só por causa dos boatos e dos crimes de teu pai. Para castigar-te bastará que eu te demita do cargo por incompetência. Mas não sei quem nomear em teu lugar. Não há candidatos para uma função que não tem nenhuma importância política.
Eu poderia ter dito alguma coisa sobre a importância do cargo, mas preferi sugerir que entregasse a casa dos bichos a Sabina e Epafrodito. Nesse caso, eu não pediria nenhuma indenização e os magistrados não precisavam ocupar-se de minhas contas. Tal medida não me atraía, como homem honesto. Mas, em primeiro lugar, seria necessário promover Epafrodito a cavaleiro.
— Não há uma só palavra em nenhuma das nossas leis acerca da côr da pele de um cavaleiro romano — disse eu. — A única condição é uma determinada riqueza e renda anual, se bem que evidentemente a nomeação dependa de ti. E para Nero nada é impossível, sei disso. Mas se achas que podes estudar a minha sugestão, deixa-me chamar Sabina e Epafrodito. Eles falarão contigo.
Nero conhecia Epafrodito, de vista e de reputação. Provavelmente, junto com meus outros amigos, rira de minha credulidade antes do meu divórcio. Agora achava divertido que eu intercedesse por Epafrodito. Pareceu divertir-se; ainda mais quando Sabina entrou, trazendo Lauso pela mão, e pôde comparar a côr da pele e o cabelo do menino com a de Epafrodito.
Creio que tudo isso simplesmente reforçou a crença de Nero na minha estupidez e credulidade. Mas essa imagem só me trazia benefícios. Eu não podia, em nenhuma hipótese, deixar que os magistrados pusessem os olhos na minha contabilidade. E se Nero acreditava que Epafrodito fizera seu ninho às minhas custas, isso era lá com êle.
Na realidade, Nero foi atraído pela idéia de mostrar seu poder à Nobre Ordem dos Cavaleiros, mandando inscrever o nome de Epafrodito nos registros do templo de Castor e Pólux. Era bastante inteligente para saber o que tal medida renderia nas províncias africanas. Demonstraria, por esse meio, que os cidadãos romanos eram iguais sob seu governo, independentemente da côr da Pele e da ascendência, e que êle mesmo não tinha preconceitos.
Assim, tudo saiu bem. Ao mesmo tempo, Nero deu seu consentimento para que Sabina e Epafrodito se casassem e adotassem o menino, que até aqui fora registrado como meu filho.
— Mas permitirei que o menino continue a usar o nome Lauso em tua honra, nobre Maniliano — disse Nero, trocista. — É muita delicadeza da tua parte entregar o garoto aos cuidados da mãe e do padrasto. Isso prova que respeitas o amor materno e não fazes caso dos teus próprios sentimentos, embora o menino seja uma cópia fiel da tua pessoa.
Enganei-me ao imaginar que havia pregado uma peça a Sabina quando descarreguei sobre seus ombros a responsabilidade da casa dos bichos. Nero tomou-se de simpatia por Epafrodito e mandou pagar-lhe até mesmo as contas mais exorbitantes. Epafrodito tratou de assegurar bebedouros de mármore para as feras, na nova casa dos bichos, no Palácio Dourado, e barras de prata para as jaulas das panteras. Nero pagou sem um murmúrio, muito embora, quando se restabelecera o fornecimento de água após o incêndio, eu tivesse tido de pagar uma conta imensa do meu bolso.
Epafrodito sabia arranjar, para divertir Nero, certos espetáculos de animais que a decência me impede de descrever. Em pouco tempo, Epafrodito enriqueceu e tornou-se um dos validos ,de Nero, tudo graças à casa dos bichos.
Minha demissão pôs fim ao apedrejamento de que eu era alvo nas ruas. Ao invés disso, cobriram-me de chacotas e eu tornei a contar com velhos amigos, cuja magnanimidade os levava a ter piedade de mim, agora que eu caíra em desgraça e era objeto de troça. Não me queixava, pois é melhor ser ridicularizado do que odiado por todos. Cláudia, naturalmente, como mulher, não entendia minha atitude sensata, mas suplicava-me que tratasse de melhorar minha reputação, a bem de meu filho. Tentei ser tolerante com ela.
Minha paciência afinal chegou ao limite extremo. Em seu orgulho materno, Cláudia desejava convidar Antônia e Rúbria, a mais velha das Vestais, para o dia em que íamos te dar nome, para que eu te legitimasse diante delas, uma vez que a velha Paulina morrera no incêndio e não podia ser nossa testemunha. Cláudia compreendera o que significava a destruição dos arquivos das Vestais.
Ela dizia que tudo ficaria em segredo, evidentemente, mas de qualquer modo queria que estivessem presentes dois cristãos dignos de confiança. Repetidas vezes ela afirmou que, mais do que qualquer outra pessoa, o cristão aprendera a calar a boca em virtude de suas reuniões secretas. Para mim os cristãos eram os piores delatores e tagarelas. E Antônia e Rúbria eram mulheres. Na minha opinião, colocar essa gente a par de tudo era o mesmo que trepar no telhado e gritar aos quatro ventos a ascendência de meu filho.
Mas Cláudia não cedeu, apesar de minhas advertências. Naturalmente era uma grande honra que Antônia, filha legítima de Cláudio, reconhecesse Cláudia como sua meia-irmã e também te tomasse e desse o nome Antoniano, em memória dela mesma e de teu insigne antepassado Marco Antônio. Assustador foi ter ela prometido lembrar-se de ti em seu testamento.
_ Não me fales de testamento — bradei, para afastá-la do assunto. — És muitos anos mais moça do que Cláudia e estás na flor da idade. Na realidade somos contemporâneos, mas Cláudia tem mais de quarenta, já que é uns cinco anos mais velha do que eu. Eu mesmo tão cedo não pensarei em fazer testamento.
Cláudia não gostou do meu comentário, mas Antônia estirou o corpo esbelto e me atirou um olhar velado com seus olhos arrogantes.
— Acho que estou bem conservada para a minha idade — disse ela — embora a tua Cláudia esteja começando a parecer um tanto gasta, se podemos exprimir-nos desse modo. Às vezes sinto falta da companhia de um homem vigoroso. Estou só, após os meus casamentos, que acabaram em assassínio, pois todo mundo tem medo de Nero e me evita. Ah, se soubessem!
Vi que ela estava louca de vontade de falar de alguma coisa. Cláudia também se mostrou curiosa. Somente Rúbria sorriu seu velho e sábio sorriso de Vestal. Não precisamos encorajar muito Antônia, para que ela nos contasse, com fingida modéstia, que com enorme obstinação Nero lhe pedira diversas vezes que fosse sua consorte.
— É óbvio que não podia concordar com isso — disse Antônia. — Respondi a ele que meu meio-irmão Britânico e minha meia-irmã Otávia continuavam bem vivos em minha memória. Por uma questão de sensibilidade, não aludi à mãe dele, Agripina, embora, sendo sobrinha de meu pai, ela fosse minha prima e portanto tua também, caríssima Cláudia.
Ao lembrar-me de Agripina, tive um repentino acesso de tosse e Cláudia teve de bater-me nas costas e recomendar-me que não esvaziasse o cálice de vinho com tanta pressa. Fui bastante sensato para recordar o infeliz destino de meu pai, que em seu desarranjo mental no Senado provocara sua própria ruína.
Ainda tossindo, perguntei a Antônia o que Nero alegara, como razão para sua proposta. Ela pestanejou e olhou para o chão:
— Nero me disse que há muito tempo me ama em segredo. Contou que esse foi o único motivo de ter nutrido tanto rancor contra meu finado marido Cornélio Sila, que lhe parecia indigno de mim. Talvez isso justifique a maneira como agiu contra Sila, se bem que, oficialmente, invocasse apenas razões políticas, para mandar matar Sila, em nossa modesta casa em Massília. Cá entre nós, reconheço que meu marido tinha mesmo relações secretas com os comandantes das legiões da Germânia.
Depois que demonstrara confiar completamente em nós como seus parentes, prosseguiu:
— Sou bastante feminina para ficar um pouco impressionada com a confissão franca de Nero. É pena que ele seja tão indigno de confiança e que eu o odeie tão amargamente, pois sabe ser simpático quando quer. Mas agüentei firme e referi-me à nossa diferença de idade, se bem que não seja maior do que a vossa. Acostumei-me, desde a infância, a considerar Nero um menino insolente. E, evidentemente, a lembrança de Britânico é um obstáculo intransponível, mesmo que eu pudesse perdoar o que ele fez a Otávia. Verdade é que a própria Otávia tinha culpa, já que seduziu Aniceto.
Não fiz ver a ela o ator habilidoso que Nero sabia ser, quando se tratava de tirar vantagem para si mesmo. Levando em conta sua posição, seria naturalmente de grande valia, com relação ao Senado e ao povo, que ele aliasse aos Cláudios, por um terceiro caminho, através de Antônia.
Só de pensar nisso senti-me deprimido e no fundo do coração não queria que te envergonhasses em público da ascendência de teu pai. Agindo em segredo, eu me apoderara das cartas, juntamente com outros documentos, que meu pai, antes do meu nascimento, escrevera de Jerusalém e Galileia para Túlia, mas nunca enviara. Por elas, verifiquei que meu pai, seriamente perturbado por seu amor infeliz, mediante um testamento forjado e a traição de Túlia, chegara ao ponto de acreditar em tudo o que os judeus lhe tinham contado, até mesmo alucinações. O mais triste, do meu ponto de vista, era que as cartas revelavam o passado de minha mãe. Ela não era mais do que uma dançarina acrobática que meu pai alforriara. De sua origem só se sabia que ela tinha vindo das ilhas gregas.
Assim, a estátua dela em Mirina, na Ásia, e todos os papéis que meu pai adquirira em Antioquia, a respeito da ascendência de minha mãe, eram simplesmente poeira atirada aos olhos do povo, para assegurar o meu futuro. As cartas induziam-me a perguntar a mim mesmo se eu nascera no leito conjugal ou se meu pai, após a morte de minha mãe, conseguira tais provas subornando as autoridades de Damasco. Graças a Jucundo, eu mesmo descobrira como era fácil arranjar essas coisas, desde que se dispusesse de dinheiro e influência.
Não falara a Cláudia das cartas e documentos de meu pai. No meio dos papéis, que sob o aspecto financeiro eram muito valiosos, havia também muitas notas em aramaico sobre a vida de Jesus de Nazaré, escritas por um funcionário aduaneiro judeu, que era amigo de meu pai. Achei que não devia destruí-las. Por isso ocultei-as ao lado das cartas, em meu esconderijo mais secreto, onde á estavam certos papéis que não tolerariam a luz do dia.
Procurei vencer meu abatimento e ergui o cálice em honra de Antônia, que tão sabiamente repelira os galanteios de Nero. Ela por fim admitiu que lhe dera um ou dois beijos, de caráter puramente fraterno, para que ele não ficasse demasiadamente indignado com sua recusa.
Antônia olvidou suas molestadoras sugestões no sentido de lembrar-se de ti em seu testamento. Cada um de nós te tomou um pouco nos braços, apesar dos teus gritos e violentos pontapés. Assim recebeste os nomes Clemente Cláudio Antoniano Maniliano, e essa era uma herança suficientemente opressiva para um bebê. Abandonei a idéia de chamar-te Marco também, em memória de meu pai, o que me tinha ocorrido antes que Antônia viesse com sua sugestão.
Ao tomar a cadeirinha naquela noite pára ir embora, Antônia despediu-se de mim com um beijo de irmã, já que éramos legitimamente, embora em segredo, aparentados um do outro, e pediu-me que a chamasse de cunhada, no futuro, quando nos encontrássemos a sós. Animado por seu carinho, retribuí o beijo com certa veemência. E fi-lo com prazer. Estava um pouco bêbado.
Novamente ela se queixou da solidão e expressou a esperança de que eu, agora que éramos parentes, fosse vê-la de quando em quando. Não era necessário levar Cláudia comigo, uma vez que ela tinha muito trabalho com o garoto, e, além disso, começava provavelmente a sentir o peso da idade e das obrigações de dona de casa. Contudo, era pela ascendência a mais nobre dama viva de Roma.
Mas antes de te contar como nossa amizade evoluiu, devo retornar aos assuntos de Roma.
Em sua necessidade de dinheiro, Nero cansou se das queixas das províncias e da crítica áspera dos homens de negócios ao imposto sobre vendas. Resolveu desvencilhar-se ilegalmente dos problemas cortando o nó górdio. Não sei quem lhe sugeriu o plano, já que eu não estava a par dos segredos do templo de Juno Moneta. Seja como for, o autor da idéia, quem quer que tenha sido, muito mais do que os cristãos, merecia ser atirado às feras como inimigo público.
À sorrelfa, Nero tomou emprestado as oferendas votivas de ouro e prata que ornavam os altares dos deuses de Roma; isto é, instituiu Júpiter Capitolino como devedor hipotecário e pediu um empréstimo a Júpiter. Ê claro que a lei lhe assegurava essa prerrogativa, embora os deuses não aprovassem.
Depois do incêndio, ele mandara derreter todo o metal arrecadado, o qual não era constituído só de ouro e prata mas continha um pouco de bronze. Agora mandava fundir tudo junto e cunhar dia e noite novas moedas de ouro e prata no templo de Juno Moneta, moedas que continham menos um quinto de ouro e prata do que antes. Eram mais leves e, em virtude de todo o cobre que havia nelas, mais foscas do que as brilhantes moedas anteriores.
A cunhagem se realizava em segredo e sob severa vigilância, a pretexto de que os assuntos relacionados com Juno Moneta nunca eram públicos, mas, como era natural, os rumores chegaram aos ouvidos dos banqueiros. Eu mesmo fiquei de sobreaviso quando as moedas começaram a desaparecer e todo mundo passou a impingir ordens de pagamento ou a solicitar o prazo de um mês para pagar compras mais volumosas.
Não acreditei nos boatos, pois me considerava amigo de Nero, e não podia conceber que ele, um artista e não um homem de negócios, incorresse num crime tão monstruoso como a falsificação intencional de moedas, mormente quando se tinham crucificado alguns indivíduos por terem fabricado umas poucas moedas para seu uso. Mas segui o exemplo geral e passei a guardar o maior número possível de moedas. Deixei até de realizar os costumeiros contratos relacionados com trigo e azeite, embora isso desse margem a animosidade entre os meus fregueses.
A confusão financeira agravou-se e os preços subiram. Então Nero pôs em circulação suas moedas falsas e anunciou que as moedas antigas deviam ser trocadas pelas novas dentro de um prazo determinado, após o qual quem fosse encontrado com as moedas antigas seria considerado inimigo do Estado. Somente impostos e taxas podiam ser pagos com as moedas antigas.
Para vergonha de Roma, devo confessar que o Senado ratificou essa ordem por uma substancial maioria. Assim, não se pode culpar exclusivamente Nero por esse crime contra toda a decência e todas as praxes comerciais.
Os senadores que votaram favoravelmente a Nero justificaram seu ato com a afirmação de que a reconstrução de Roma reclamava uma operação fundamental. Sustentaram que os ricos sofreriam mais dom essa troca de moedas, porque as possuíam em maior número do que os pobres, e Nero julgava que não valia a pena cunhar moedas de cobre. Isso era puro disparate. Os bens dos senadores consistem principalmente em terras, isso quando não fazem negócios através dos seus libertos, e todos os senadores votantes tinham tido tempo de pôr em lugar seguro as boas moedas de ouro e prata que possuíam,
Até mesmo os camponeses mais simplórios foram bastante sagazes para esconder suas economias em potes de barro e enterrá-los. Ao todo, cerca de um quarto das moedas que estavam em circulação foram trocadas pelas novas. Cumpre notar, naturalmente, que boa quantidade de moeda romana se alastrava pelos países bárbaros e alcançava a Índia e a China.
Esse crime inconcebível de Nero fez com que muita gente refletisse de novo, gente que havia entendido e, por motivos políticos, perdoado o ter ele assassinado a própria mãe. Os membros da Ordem dos Cavaleiros que viviam de negócios e os libertos ricos que controlavam toda a atividade comercial encontraram uma razão para reconsiderar seus pontos de vista políticos, uma vez que a nova cunhagem levara ao caos toda a economia pública. A mudança acarretou prejuízos dolorosos até para negociantes traquejados.
Somente os que levavam uma vida fútil, os preguiçosos que estavam sempre endividados, gostaram dessa alteração e admiraram Nero mais do que nunca, pois agora podiam saldar suas dívidas com dinheiro que valia um quinto menos do que antes. O tilintar de cítaras dedilhadas por desocupados de cabelos compridos, que entoavam cantigas difamatórias à porta das casas dos ricos e defronte das Bolsas, irritou-me também. Depois disso, todos os estetas convenceram-se definitivamente de que nada era impossível para Nero. Acreditavam que ele estava favorecendo os pobres às custas dos ricos e que tinha a coragem de tratar o Senado como bem queria. Havia muitos filhos de senadores entre esses vagabundos.
O entesouramento das velhas moedas era tão generalizado que nenhuma pessoa honesta podia considerá-lo como crime. De nada adiantava prender os pobres ferreiros e labregos ou condená-los a trabalhos forçados. Nero teve de abandonar temporariamente seus habituais métodos moderados e ameaçar os amealhadores com a pena de morte. Apesar disso, ninguém foi executado, pois nas profundezas de sua alma Nero sabia que o criminoso era ele mesmo e não o pobre que tentava esconder as poucas moedas de prata verdadeira que representavam as economias de sua vida.
Afinal caí em mim e ordenei que um dos meus libertos formasse rapidamente um banco e alugasse um local no fórum, desde que se alastrara de tal modo a atividade de troca de dinheiro que o Estado se vira compelido a solicitar a colaboração dos banqueiros particulares. Estes chegaram até a receber compensação pelo seu trabalho quando as velhas moedas foram entregues ao tesouro do Estado.
Assim, ninguém se surpreendeu quando meu liberto, a fim de competir com os velhos banqueiros estabelecidos que, no princípio da confusão, não estavam inteiramente a par do que ocorria, prometeu até cinco por cento em pagamentos adicionais, por ocasião da troca de moedas velhas por novas. Explicou aos fregueses que agia dessa maneira para dar nomeada a seu empreendimento e ajudar aqueles que não dispunham de recursos próprios.
Sapateiros, caldeireiros e canteiros faziam fila diante de sua mesa enquanto os velhos banqueiros contemplavam sombrios de suas mesas vazias. Graças a meu liberto, ao cabo de algumas semanas recebi total compensação dos meus prejuízos de troca, sem embargo do fato de ter êle próprio sido forçado pessoalmente a doar certas somas ao colégio de sacerdotes de Juno Moneta, em virtude da suspeita de não ter prestado contas de todas as boas moedas que recebera.
Nesta época, muitas vezes entrava às escondidas em meu quarto, trancava a porta e bebia em meu cálice da Fortuna, pois me parecia que precisava de um pouco de boa sorte. Intimamente perdoei à minha mãe as suas origens humildes, já que eu também era meio grego através dela e isto me trazia felicidade nos negócios. Dizem que os gregos enganam até os judeus nos negócios, mas não creio nisso.
Mas pelo lado dè meu pai sou romano legítimo, descendente dos reis etruscos, e isto pode ser confirmado em Cere. Assim man-tenho-me honestamente muito alto nos negócios. As atividades de troca de meu liberto e minha dupla contabilidade anterior com respeito à casa dos bichos referiam-se apenas ao tesouro do Estado e eram atos de defesa pessoal da parte um homem honesto, em luta contra tributações tirânicas. De outra forma, nenhuma sólida atividade comercial seria possível.
Por exemplo, nunca permiti que meus libertos misturassem giz à farinha ou azeites da montanha ao azeite de cozinha, como fazem certos insolentes arrivistas. De mais a mais, pode-se ser facilmente crucificado por isso. Certa vez, mencionei a questão a Fênio Rufo, quando êle era superintendente geral dos silos e moinhos, evidentemente sem citar nomes. Êle me advertiu então e declarou que ninguém em seu cargo podia dar-se o luxo de não tomar conhecimento da adulteração dos produtos, quem quer que fosse o falsificador. Talvez algumas cargas danificadas nas viagens marítimas pudessem receber aprovação do Estado, se fosse o caso de ajudar um amigo numa situação embaraçosa. Mas era o máximo que podia fazer. Suspirando, confessou que, apesar de ocupar um posto elevado, tinha de continuar pobre.
De Fênio Rufo, meus pensamentos me levam a Tigelino. Naquela época falava-se mal dele diante de Nero. Cochichava-se, em tom de admoestação, que Nero punha em perigo seu bom nome ao proteger Tigelino e associar-se a êle, e frisava-se que Tigelino enriquecera muito depressa desde que fora nomeado Prefeito da Cidade. As inúmeras dádivas de Nero não bastavam para explicar esse enriquecimento, mesmo que Nero tivesse adquirido o hábito de tornar seus amigos tão abastados que os livrasse da tentação de receberem propinas no exercício dos cargos para que fossem designados O que é a amizade, ninguém realmente sabe, mas devo dizer que na minha opinião, nenhum Imperador tem verdadeiros amigos.
Para Nero, a pior acusação lançada contra Tigelino era que êle fora outrora, às escondidas, amante de Agripina e por isso fora, na juventude, expulso de Roma. Ao tornar-se consorte de Cláudio, Agripina conseguira o retorno de Tigelino, como fizera em relação a Séneca, que mantivera relações duvidosas com a irmã de Agripina. Não creio realmente que as ligações entre Tigelino e Agripina tenham continuado depois, pelo menos enquanto Cláudio vivia, mas êle sempre tivera um fraco por ela, se bem que por motivos políticos não lhe tivesse sido possível impedir o assassínio.
Por muitas razões, Nero resolveu que seria prudente reintegrar Fênio Rufo no cargo de Vice-Prefeito dos Pretorianos, ao lado de Tigelino. Ao primeiro ficariam afetos os processos ultramarinos, enquanto ao segundo caberia cuidar do aspecto militar. É compreensível que isso tenha deixado Tigelino amargurado, pois assim secava sua melhor fonte de renda. Sei por experiência própria que não há ninguém tão rico que não deseje ver sua riqueza multiplicada. Isso não é nenhum despropósito, mas uma das coisas que a fortuna inevitavelmente traz consigo e algo contra o qual somos impotentes.
Em virtude do desassossego dos assuntos financeiros, os preços continuaram a subir e muito mais do que o quinto em que Nero reduzira o valor do dinheiro. Nero baixou decretos visando controlar os preços e punir os usurários, mas o resultado foi o desaparecimento das mercadorias das lojas. Nas feiras e mercados o povo não encontrava mais verdura, carne, lentilhas e tubérculos, mas tinha de ir buscá-los no campo ou recorrer aos mercadores que ao anoitecer andavam furtivamente de casa em casa com suas cestas, vendendo a preços altos e desafiando os magistrados.
Não havia escassez real de produtos. O que acontecia era que ninguém queria vender suas mercadorias a preços artificialmente baixos, preferindo estar ocioso ou fechar suas casas comerciais. Quem, por exemplo, precisasse de sandálias novas para ocasiões solenes, ou de uma boa túnica, ou mesmo de uma fivela, tinha de implorar ao vendedor que tirasse o artigo de debaixo do balcão, e então violar a lei pagando o justo preço.
Por todos esse motivos, a conspiração pisoniana espalhou-se rapidamente quando se soube que alguns homens resolutos dentro da Ordem dos Cavaleiros estavam dispostos a tomar o poder e derrubar Nero, tão logo se chegasse a acordo sobre a partilha do poder e a pessoa que devia substituir o Imperador. A crise económica fêz com que a conspiração se afigurasse a única salvação de Roma, e todo mundo tratou de associar-se a ela. Até mesmo os amigos mais íntimos de Nero julgaram de bom aviso aliar-se aos conjurados, desde que parecia evidente que a conspiração teria êxito, uma vez que o descontentamento grassava em Roma e nas províncias e havia dinheiro mais do que suficiente para pagar as gratificações aos Pretorianos.
Fênio Rufo, que ainda continuava encarregado dos armazéns de cereais, além de ocupar as funções de Prefeito, já que não se podia encontrar outro homem honesto, aderiu à conspiração sem hesitar. Em conseqüência da redução artificial do preço do trigo, êle sofrera graves prejuízos e estava assoberbado de dívidas. Nero recusava-se a determinar que o Estado pagasse a diferença entre o verdadeiro preço do cereal e seu preço forçado. Por outro lado, os produtores do Egito e da África não vendiam o cereal por este preço, mas preferiam armazená-lo ou deixar mesmo de semear os campos.
Afora Rufo, os tribunos pretorianos e os centuriões estavam abertamente envolvidos na conspiração. Por seu turno, os Pretorianos estavam insatisfeitos com o soldo recebido na nova moeda e sem aumento. Os conspiradores estavam tão certos da vitória que procuraram limitar o tentame ao âmbito de Roma, estendendo-o apenas a algumas cidades italianas estrategicamente importantes. Por isso recusaram a ajuda de pessoas poderosas das províncias, melindrando com essa atitude muita gente importante.
A meu ver, o maior erro deles foi terem julgado que não precisavam do apoio das legiões, apoio que teriam obtido facilmente na Germânia e Bretanha. Córbulo, no Oriente, dificilmente se envolveria na conjura, de vez que estava completamente absorvido na guerra dos partos e também porque não tinha ambições políticas. Acho que foi um dos poucos que nunca ouviram falar do plano.
Como eu tinha posto meus negócios em ordem, talvez não desse suficiente atenção às necessidades do povo. Assaltara-me uma espécie de sortilégio primaveril. Estava com trinta e cinco anos, livre das preocupações com moças imaturas a não ser talvez por momentâneo prazer. Achava-me numa idade em que um homem está preparado para verdadeira paixão e deseja ter como companheira uma mulher de sua posição social.
Ainda me é embaraçoso escrever abertamente sobre essas coisas. Talvez baste dizer que, evitando qualquer publicidade desnecessária, comecei a visitar assiduamente a casa de Antônia. Tínhamos tanto que conversar que às vezes não me era possível sair de sua encantadora residência no Palatino antes do amanhecer. Ela era filha de Cláudio e assim corria-lhe nas veias um pouco do sangue corrupto de Marco Antônio. E pelo lado materno era também uma Élia. Sua mãe era irmã adotiva de Sejano: isso deve ser explicação suficiente para os que estão a par desses assuntos.
Tua mãe também era filha de Cláudio, e devo reconhecer que, depois de te dar à luz e dos padecimentos por que passara anteriormente se acalmara bastante. Não partilhava mais de minha cama. Na realidade, parece-me que sofri de uma espécie de deficiência doentia a esse respeito, até que minha amizade com Antônia me
curou.
Foi na aurora de um dia de primavera, quando os passarinhos se punham a cantar e as flores perfumavam o belo jardim de Antônia, de onde os novos arbustos e árvores crescidas haviam apagado todos os vestígios do incêndio, que ouvi falar pela primeira vez da conjura de Pisão. Extenuado de prazer e afeição, encontrava-me de mãos dadas com Antônia, encostados a um dos esguios pilares de sua casa de veraneio, incapaz de desprender-me dela, embora tivéssemos começado as despedidas pelo menos duas horas antes.
_ Minuto, caríssimo — disse ela. — Oh, meu caríssimo. Jamais homem algum foi tão terno e bom comigo e soube tomar-me nos braços tão maravilhosamente como tu. Por isso, sei que te amo agora e hei de amar-te sempre e eternamente. Gostaria que nos encontrássemos depois da morte, como sombras, nos Campos Elísios.
Por que falas do Eliseu? — perguntei, empinando o peito.
— Somos felizes agora. Na verdade nunca me senti tão feliz. Não pensemos em Caronte, embora eu deseje, quando morrer, que me ponham uma moeda de ouro na boca para pagar a ele, de um modo que seja digno de ti.
Ela me apertou a mão em seus dedos finos.
— Minuto, não posso mais esconder nada de ti, nem quero. E não sei qual de nós está mais perto da morte, tu ou eu. Nero está com os dias contados. Não quero que caias com ele.
Emudeci. Então Antônia contou, em rápidos sussurros, tudo o que sabia da conspiração e dos cabeças. Confessou que prometera, quando chegasse o momento e Nero estivesse morto, acompanhar, como filha de Cláudio, o novo Imperador ao acampamento dos Pretorianos e interceder por ele junto aos veteranos. É claro que uma dádiva em dinheiro seria mais convincente para eles do que algumas modestas palavras ditas pela mais nobre dama de Roma.
— Na verdade, não receio tanto pela minha vida como pela tua, meu querido — disse Antônia. — És conhecido como um dos amigos de Nero e pouco fizeste visando estabelecer ligações úteis para o futuro. Por motivos compreensíveis, o povo exigirá sangue, quando Nero morrer. E a segurança pública reclamará certa quantidade de sangue derramado para fortalecer a lei e a ordem. Não quero que venhas a perder tua querida cabeça ou que a multidão te esmague sob os pés, no fórum, de acordo com as instruções secretas que deverão ser dadas ao povo, quando nos dirigirmos ao acampamento pretoriano.
Como eu continuasse calado, a cabeça rodando e os joelhos trêmulos, Antônia impacientou-se e bateu no chão o pezinho mimoso:
Não vês? A conspiração alastrou-se tanto e o descontentamento é tão generalizado, que o plano pode concretizar-se a qualquer momento. Todo homem sensato esta tratando de aderir para assegurar suas vantagens. É só para despistar que ainda discutem como, onde e quando Nero pode ser assassinado. Isso pode acontecer de uma hora para outra. Vários dos maiores amigos de Nero estão conosco e prestaram juramento. Dos teus amigos citarei apenas Senécio, Petrônio e Lucano. A frota em Miseno está do nosso lado. Epícaris, que deves conhecer de nome, seduziu Volúcio Próculo, como outrora Otávia tentou seduzir Aniceto.
Conheço Próculo — disse eu, lacônico.
Claro que conheces — continuou Antônia com súbita certeza. — Ele andou envolvido no assassínio de minha madrasta. Não te preocupes, querido. Eu não tinha simpatias por Agripina. Pelo contrário. Ela me tratava pior ainda, se isso é possível, do que tratava Britânico e Otávia. Foi somente por obediência às convenções sociais que não participei das ofertas de ação de graças depois de sua morte. Não precisas ter medo daquela velha história. Sugiro que te associes à conspiração, enquanto é tempo, e salves a tua vida. Se demorares muito, não te poderei ajudar.
Para falar verdade, meu primeiro pensamento foi naturalmente correr até Nero e falar-lhe do perigo que o ameaçava. Teria, então, certeza de seu reconhecimento pelo resto de minha vida. Todavia, Antônia era bastante experiente para ler a hesitação em meu rosto. Afagou-me os lábios com as pontas dos dedos, e, com a cabeça inclinada para um lado e o vestido resvalando-Ihe do seio firme, tornou a falar:
Mas não podes trair-me, Minuto, podes? Não, isso seria impossível, já que nos amamos tão completamente. Nascemos um para o outro, como disseste tantas vezes na embriaguez do momento.
É claro que não — apressei-me a tranqüilizá-la. — Isso nunca me ocorreria. — Ela foi obrigada a rir, e depois deu de ombros quando continuei irritado:
— Que foi mesmo que disseste a respeito de despistamento?
Não penses que pensei muito nesse negócio — disse Antônia. — O que é mais importante para mim, como para os outros conspiradores, não é o assassínio de Nero, mas saber quem será guindado ao poder após a sua morte. Isso é o que os conspiradores estão tratando de resolver, noite após noite. Cada um tem suas idéias sobre o assunto.
_ Caio Pisão — disse eu, em tom de crítica. — Realmente não entendo por que, dentre tantas pessoas, deve ser ele o cabeça. Não há dúvida que é senador, é um Calpurniano, e é um tipo simpático. Mas não atino com o que tu vês nele, Antônia querida, a ponto de arriscares a tua vida por um homem como ele, acom-panhando-o ao acampamento dos Pretorianos.
Para ser rigorosamente exato, senti no íntimo uma punhalada de ciúme. Conhecia Antônia e também sabia que ela não era tão comedida, como se poderia julgar por sua postura e aparência majestosa. Era bem mais experiente do que eu em todas as coisas, se bem que eu me considerasse um sujeito traquejado. Assim, examinei-lhe cuidadosamente a expressão. Ela deleitou-se com o meu ciúme, estourou na gargalhada e me deu uma palmadinha na face.
— Oh, Minuto, que é que pensas de mim? Nunca me arrastei até a cama de um homem como Pisão, só em busca do meu benefício. Tu me conheces bastante bem para saberes disso. Escolho eu mesma a quem devo amar e sempre agi assim. E não é a Pisão exatamente que me liguei. Ele é uma espécie de biombo, por enquanto. É tão estúpido que não suspeita que os outros já estão cabalando às suas costas. Na verdade, já se indaga se vale a pena substituir um citarista por um comediante. Pisão apareceu em público no teatro e com isso, tanto quanto Nero, arruinou sua reputação. Há outros que querem restabelecer a república e conferir todo o poder ao Senado. Essa idéia louca não tardaria a lançar o país na guerra civil. Estou te dizendo isto só para que entendas os interesses antagônicos que estão em jogo e o motivo por que o assassínio de Nero tem de ser adiado. Eu já disse que nada me persuadirá a ir aos Pretorianos em favor do Senado. Isso não assenta bem à filha de um Imperador.
Encarou-me pensativa e leu o que se passava em minha mente.
— Sei o que estás pensando. Mas posso afiançar-te que por motivos políticos é muito cedo ainda para pensar em teu filho Cláudio Antoniano. Ele é um bebê e a reputação de Cláudia é tão duvidosa que não creio que teu filho venha a ser cogitado, antes de envergar a toga viril e antes da morte de Cláudia. Então me seria bem mais fácil reconhecê-lo como meu sobrinho. Mas se tu mesmo encontrasses um lugar na conspiração de Pisão, poderias melhorar tua posição e criar uma carreira política para ti mesmo, favorecendo Cláudio Antoniano, enquanto ele não atingisse a maioridade. O mais prudente seria deixarmos Cláudia viver e cuidar da educação do menino, por enquanto, não achas, meu querido? Seria óbvio demais, se eu o adotasse logo que Nero morresse, ou se o menino se tornasse meu filho, por algum outro meio.
Pela primeira vez Antônia dava a entender que, apesar de minha má reputação e de minha origem humilde, estaria disposta a casar comigo, algum dia. Eu não ousara sequer pensar em tamanha honra, nem mesmo em nossos momentos mais íntimos. Senti que enrubescia e estava ainda menos capaz de falar, do que quando ela começara a referir-se à conspiração. Antônia fitou-me sorridente, ergueu-se na ponta dos pés e beijou-me nos lábios, enquanto deixava que seu suave cabelo sedoso me roçasse o pescoço.
— Já te disse que te amo, Minuto — murmurou em meu ouvido. — Amo-te mais do que tudo por tua timidez e por subestimares o teu próprio valor. És um homem, um homem maravilhoso e o tipo do homem de quem uma mulher sensata espera o máximo.
Isto me pareceu ambíguo e não tão lisonjeiro como Antônia talvez imaginasse. Mas era correto. Sabina e Cláudia tinham-me tratado de tal modo que eu sempre cedia ante a vontade delas, a bem da paz. Achei que Antônia se comportava de maneira mais digna. Não sei como aconteceu que tornamos a entrar em casa para nos despedirmos.
Era dia e os escravos que tomavam conta do jardim já estavam trabalhando quando afinal avancei cambaleante para minha cadeirinha, a Cabeça rodopiando e os joelhos tremendo, perguntando, de mim para mim, se poderia suportar tanto amor durante quinze anos, até que recebesses tua toga viril.
De qualquer modo, estava agora profundamente envolvido na conspiração pisoniana e jurara com mil beijos fazer o que estivesse a meu alcance para chegar a uma posição em que pudesse ajudar Antônia ao máximo. Acho que até prometi matar Nero, se fosse necessário. Mas Antônia não queria que eu arriscasse minha valiosa cabeça. Explicou pedantescamente que não ficava bem para o pai de um futuro Imperador participar pessoalmente do assassínio de um Imperador. Era um mau precedente e podia ser funesto para ti algum dia, meu filho.
Provavelmente eu me sentia mais feliz naquela cálida primavera do que jamais me sentira antes. Estava bem, forte e, pelos padrões romanos, relativamente incorrupto. Podia entregar-me plenamente à minha paixão. Era como se tudo quanto eu empreendesse lograsse êxito e produzisse ótimos resultados, como só acontece uma vez na vida de um homem. Vivia num sonho e a única coisa que me perturbava era a insistente curiosidade de Cláudia por saber para onde eu ia e de onde eu vinha. Não gostava de mentir-lhe sempre, em especial porque as mulheres são, com freqüência, instintivamente perspicazes nesses assuntos.
Comecei por estabelecer contacto com Fênio Rufo, pois já fizera amizade com êle, nas minhas compras e vendas de cereais. Podia-se dizer que nossa amizade era uma excelente sociedade de auxílio mútuo. Com certa hesitação, revelou que estava comprometido com a conspiração pisoniana e deu os nomes dos Pretorianos tribunos e centuriões que tinham jurado solenemente obedecer-lhe e só a êle depois que se tivesse liquidado Nero.
Rufo sentia-se aliviado, ao ver que eu me informara a respeito da conspiração por minha conta. Pediu muitas desculpas e asseverou que se obrigara, por juramento, a não me contar antes. Prometeu interceder por mim, junto a Pisão e aos outros chefes da conspiração. Não era por culpa de Rufo que o arrogante Pisão e outros Calpurnianos me tratavam com superioridade. Eu me teria melindrado, se fosse mais suscetível.
Não se impressionaram com o dinheiro que me prontifiquei a colocar à disposição da conjura e disseram que já tinham bastante. Tampouco recearam que eu os denunciasse, tão convictos estavam da vitória. Na realidade, o próprio Pisão declarou, com seus modos insolentes, que conhecia muito bem a mim e a minha reputação, para presumir que eu ficaria calado a fim de salvar a pele. Minha amizade com Petrônio e o jovem Lucano ajudou um pouco. Afinal permitiram-me fazer o juramento e encontrar-me com Epícaris, aquela misteriosa romana, cuja influência e papel na conspiração não avaliei cabalmente naquele instante.
Quando eu já fora tão longe, um dia, para minha surpresa, Cláudia trouxe o assunto à baila. Usando de longos rodeios, interrogou-me até compreender, pelo menos, que eu não ia dali direto a Nero, contar o que ela tinha a dizer. Mostrou-se aliviada e surpreendida quando sorri, compassivo, e contei-lhe que havia muito fizera o juramento de derrubar o tirano por amor à liberdade da pátria.
Não posso imaginar por que aceitam um homem como você — disse Cláudia. — É melhor que ajam depressa ou seus planos serão divulgados por toda a parte. É a pior coisa de que já ouvi falar. Nunca acreditaria, mesmo contada por você. Está realmente disposto a atraiçoar Nero desse jeito, quando êle fêz tanto por você e o tem na conta de amigo?
Conservando minha dignidade, ponderei brandamente que fora o comportamento mesmo de Nero que me fizera pensar antes no bem comum, do que numa amizade que me prejudicara sob vários aspectos. Pessoalmente, eu não sofrera muito com as refor mas monetárias, graças à minha vigilância. Mas o choro das viúvas e dos órfãos ressoava em meus ouvidos, e quando pensei na miséria dos camponeses e dos pequenos artesãos vi que estava pronto a sacrificar minha honra, se preciso, no altar da pátria, pelo bem de todo o povo romano.
Não revelara minhas opiniões a Cláudia porque receara que ela tentasse impedir-me de arriscar com destemor a vida pela liherdade. Agora eu esperava que ela enfim compreendesse que eu tinha guardado silêncio a respeito de minhas atividades para evitar arrastá-la a essa perigosa conspiração.
Cláudia continuava desconfiada, pois me conhecia bem. Mas tinha de admitir que eu fizera o que tinha de fazer. Após hesitar durante longo tempo, ela mesma pensara em persuadir-me, se necessário até forçar-me, a aderir à conjuração, para o meu próprio
bem e tendo em vista o teu futuro.
Deve ter notado que há muito tempo não lhe aborreço com histórias a respeito dos cristãos — disse Cláudia. — Não há mais razão para permitir que eles se reúnam em segredo em nossa casa. Eles têm seus lugares seguros. Portanto, não é necessário expor meu filho Clemente a tal perigo, ainda que eu mesma não tenha medo de confessar que sou cristã. E os cristãos se mostram fracos e indecisos. Derrubar Nero seria vantajoso para eles e, ao mesmo tempo, seria uma espécie de vingança cristã contra os delitos que ele cometeu. Mas imagine que eles não querem ter nada que ver com a conspiração, embora tudo indique que ela não pode falhar. Já não os entendo. Dizem apenas que não se deve matar e que a vingança não lhes compete.
Bom deus de Hércules! — exclamei, com espanto. — Está louca? Só uma mulher encasquetaria essa idéia de envolver os cristãos numa coisa para a qual eles já Contribuíram demais. Ninguém os quer, posso garantir-lhe. Isso obrigaria o novo Imperador a prometer-lhes privilégios de antemão. Basta a autonomia dos judeus.
Sempre se pode perguntar — retrucou Cláudia. — Não faria mal. Mas eles dizem que nunca se meteram em política antes e estão pensando em obedecer ao governante legal no futuro, seja quem for. Têm seu próprio reino que há de vir, mas começo a cansar-me de esperar. Como filha de Cláudio e mãe de meu filho, tenho de pensar um pouco nos poderes terrenos também. Acho que Cefas é covarde, sempre pregando obediência e afastando-se das questões do Estado. O reino invisível é magnífico. Mas desde que me tornei mãe, sinto-me distante dele e tenho a impressão de que sou mais romana do que cristã. Essas circunstâncias embaraçosas oferecem-nos a melhor oportunidade possível de mudarmos o mundo, agora que todo mundo não quer outra coisa senão paz c ordem.
Que quer dizer com isso de mudar o mundo? — perguntei desconfiado. — Está você efetivamente disposta a arrastar milhares, talvez milhões, de pessoas para a fome, a miséria e a morte violenta, só para criar um clima político favorável a seu filho até que ele envergue a toga?
A república e a liberdade são valores pelos quais muitos homens corajosos estão prontos a sacrificar suas vidas — disse Cláudia _ Meupai Cláudio muitas vezes se referiu com grande
respeito à república e a teria restaurado, se lhe tivesse sido possível Foi o que declarou em muitas ocasiões, em seus longos discursos na Curia, quando se queixava do pesado fardo de governante absoluto.
_ Você mesma disse mais de uma vez que seu pai era um velho maluco, injusto e cruel — observei, com raiva. — Lembra-se da primeira vez que nos encontramos, quando você cuspiu na estátua dele na biblioteca? Restaurar a república é uma idéia irrealizável. Não conta com bastante apoio. A questão consiste só em saber quem será Imperador. Pisão acha que sou insignificante demais e sem dúvida você também acha. Em quem você tinha pensado?
Cláudia fitou-me pensativa.
_ Que diz de Séneca? — disse ela, com simulada inocência. A princípio a idéia me deixou estarrecido.
_ Que utilidade terá a troca de um citarista por um filósofo? — perguntei.
Mas, depois de refletir um pouco mais, dei-me conta de que era uma sugestão inteligente. O povo e as províncias concordavam em que os primeiros cinco anos de Nero, quando Séneca estivera à frente do governo, foram os mais felizes que Roma conhecera. Ainda se destaca como uma época áurea, principalmente agora que temos de pagar impostos até mesmo para nos sentarmos em latrinas públicas.
Séneca era imensamente ricO: trezentos milhões de sestércios era a estimativa da maioria das pessoas. Mas não me parecia correta. E, acima de tudo, Séneca já passava dos sessenta. Graças a seu estoicismo, poderia viver mais outros cinqüenta anos. Embora morasse no campo, estivesse fora do Senado por questões de saúde e só raramente visitasse a cidade, tudo isso era apenas um pretexto para acalmar Nero.
Na realidade, o regime a que se submetia por causa de sua enfermidade gástrica fizera-lhe bem. Emagrecera e tornara-se mais enérgico, não arquejava mais quando andava, nem ostentava mais aquelas bochechas balofas e penduradas, tão inadequadas a um filósofo. Poderia fazer um bom governo, sem perseguir ninguém, e, sendo um experimentado homem de negócios, poderia restaurar a vida econômica de Roma e encher o tesouro do Estado ao invés de o esvaziar. Quando a morte se aproximasse, poderia até mesmo voluntariamente transmitir o poder a algum jovem formado em conformidade com seu espírito.
O temperamento pacífico de Séneca e seu amor à humanidade não diferiam muito da doutrina cristã. Numa Obra sobre história natural que vinha de concluir, ele subentendia a existência de forças secretas escondidas na natureza e no universo, que estão acima da compreensão humana, de modo que o durável e o visível assemelham-se realmente a um tênue véu ocultando algo invisível.
Tendo chegado a esse ponto com as minhas reflexões, bati palmas surpreso.
— Cláudia! — exclamei. — Você é um gênio político. Peço-lhe desculpas pelas palavras impensadas que proferi.
Naturalmente não contei a ela que, ao sugerir Séneca e apoiá-lo, eu poderia ocupar a posição-chave de que precisava na conspiração. Mais tarde contaria sem dúvida com a gratidão de Séneca. Além disso, eu era de certa maneira um de seus antigos discípulos e em Corinto exercera o tribunato no governo de seu irmão, gozando de sua absoluta confiança nos assuntos secretos do Estado. O primo de Séneca, o jovem Lucano, era um dos meus melhores amigos desde que eu lhe elogiara os poemas. Não sou poeta.
Conversamos sobre isso na maior harmonia, Cláudia e eu. Encontramos bons argumentos para reforçar os nossos pontos de vista e tornamo-nos cada vez mais contentes com eles ao bebermos juntos um pouco de vinho. Cláudia tomou a iniciativa de ir buscar o vinho e não me repreendeu por eu me ter excedido nas libações, levado pela agitação. Finalmente fomos para a cama e pela primeira vez em muito tempo cumpri minhas obrigações conjugais para com ela, visando dissipar quaisquer suspeitas que se lhe tivessem aninhado no espírito.
Quando despertei mais tarde a seu lado, a cabeça fervendo de entusiasmo e vinho, pensei quase com tristeza que um dia teria de livrar-me de tua mãe por tua causa. Um divórcio comum não conviria a Antônia. Cláudia teria de morrer. Mas ainda tínhamos dez ou quinze anos pela frente, e muita coisa podia acontecer. Muitas inundações primaveris correriam debaixo das pontes do Tibre, disse eu para mim mesmo à guisa de consolação. Havia epidemias, pestes, acidentes inesperados e acima de tudo as Parcas que presidiam aos destinos da humanidade. Não precisava que eu me afligisse de antemão com o inevitável nem com a maneira pela qual ele iria acontecer.
O plano de Cláudia era tão incontestável e excelente que não julguei necessário falar dele a Antônia. Éramos obrigados a ver-nos de raro em raro e às ocultas para que não surgissem comentários maliciosos que pudessem provocar as suspeitas de Nero, o qual, naturalmente, tinha de ficar de olho em Antônia.
Fui ver Séneca imediatamente, com o pretexto de que tinha negócios a tratar em Preneste e estava simplesmente fazendo uma visita de cortesia, ao passar por sua casa. Por segurança, arranjei um motivo para ir a Preneste.
Séneca recebeu-me do modo mais afetuoso. Vi que levava uma vida faustosa e despreocupada no campo, com sua mulher, que tinha metade da sua idade. Logo resmungou sobre os achaques da velhice e coisas assim, mas quando compreendeu que eu tinha realmente uma missão a cumprir, a velha raposa levou-me para uma distante casa de veraneio, onde Se refugiava do mundo, para ditar seus livros a um escriba e levar a vida de um asceta.
Como prova disto e de outras coisas também, mostrou-me um riacho, do qual apanhava água corrente e potável com as mãos em concha, e algumas árvores frutíferas nas quais escolhia o que comer. Também contou-me que sua mulher Paulina aprendera a moer o trigo num moinho' manual e a preparar-lhe o pão. Reconheci esses sinais e percebi que êle vivia em constante receio de ser envenenado. Em sua necessidade de dinheiro, Nero podia sentir-se tentado pelos bens de seu antigo preceptor e até mesmo achar politicamente necessário livrar-se dele. Séneca ainda tinha muitos amigos que o respeitavam como filósofo e estadista, mas. por via das dúvidas, quase nunca recebia hóspedes.
Fui direto à questão e perguntei se Séneca estaria disposto a aceitar o encargo imperial, depois de Nero, e trazer de novo a paz e a ordem ao país. Não precisava envolver-se na morte de Nero. Tudo o que lhe cumpria fazer era estar presente na cidade num dia determinado, pronto para ir aos Pretorianos, com suas bolsas de dinheiro à mão. Eu calculara que trinta milhões de ses-tércios bastariam, se cada soldado, por exemplo, recebesse dois mil e os tribunos e centuriões, em graduações equivalentes, mais, de acordo com o posto e a posição social.
Fênio Rufo não queria pagamento algum. Tudo quanto pedia era que o Estado o indenizasse, posteriormente, pelos prejuízos sofridos no comércio de cereais, em virtude dos caprichos de Nero. Nesse caso, bastaria que suas dívidas fôssem pagas num prazo razoável. Apressei-me a acrescentar que eu estava disposto a levantar um pouco do dinheiro se Séneca não quisesse por motivos financeiros proporcionar a quantia total.
Séneca aprumou o corpo e fitou-me com olhos assustadoramente frios, nos quais não havia o menor vestígio de amor pela humanidade:
— Eu te conheço de dentro para fora, Minuto. Assim, meu primeiro pensamento foi que Nero te mandara aqui para testares, a custa de algum ardil, a minha lealdade, já que dentre todos os seus amigos és o que mais convém a essa finalidade. Mas é evidente que sabes demais a respeito da conspiração, uma vez que podes citar tantos nomes. Se fosses um delator, certamente várias cabeças já teriam rolado. Não pergunto quais são os teus motivos, mas somente quem foi que te autorizou a me procurares.
Respondi que ninguém. Na realidade, a iniciativa era minha mesma, pois eu o considerava como o homem mais nobre e melhor para governar Roma e pensava que poderia assegurar-lhe o apoio de todos os conspiradores, caso êle aprovasse a idéia. Séneca acalmou-se um pouco.
— Não penses que és o primeiro a me consultar sobre esse assunto — disse êle. — O lugar-tenente de Pisão, Antônio Natalis, tu o conheces, esteve aqui há bem pouco tempo, para informar-se de minha saúde e dos motivos pelos quais recusei tão categoricamente receber Pisão e tratar com êle abertamente. Mas não tenho razões para apoiar um homem como Pisão. Portanto, respondi que os intermediários são perniciosos e o contacto pessoal menos apropriado, mas que depois disso minha vida estaria dependendo da segurança de Pisão. E assim é. Se a conspiração fôr descoberta, do que nos proteja a todos o Deus inexplicável, uma inconsiderada visita a mim é suficiente para condenar-me à destruição. O assassinato de Nero é mais do que esperado. Pisão encontraria a melhor oportunidade em sua vila, em Baías. Nero vai lá com freqüência, sem guarda nenhuma, para banhar-se e distrair-se. Mas Pisão diz hipocritamente que não pode violar a santidade de uma refeição e as normas da hospitalidade, assassinando um convidado, como se um homem como Pisão reverenciasse os deuses. Realmente, a morte de Nero desgostaria muitos setores. Lúcio Silano, por exemplo, recusou-se sensatamente a aprovar um crime tão monstruoso como o assassínio do Imperador. O próprio Pisão postergou o Cônsul Ático Vestino porque Vestino é um homem diligente que bem poderia de fato tentar restaurar a república. Como Cônsul, teria boas oportunidades de tomar o poder após um homicídio.
Verifiquei que Séneca sabia mais acerca da conspiração do que eu, e que como estadista traquejado pesara cuidadosamente a situação. Assim, pedi desculpas por havê-lo incomodado, ainda que com boas intenções, e afiancei-lhe que, de qualquer modo, não precisava preocupar-se comigo. Eu tinha negócios a tratar em Preneste, e era natural que um antigo discípulo fizesse uma parada no itinerário, para indagar da saúde de seu mestre.
Tive a impressão de que Séneca não gostou quando me incluí entre os seus discípulos. Mas encarou-me compassivo, quando tornou a falar:
— Dir-te-ei a mesma coisa que procurei incutir no espírito de Nero. Pode uma pessoa esconder por algum tempo, com dissimulação e subserviência, as suas características reais. Mas, no fim, o ato é sempre descoberto e a pele de ovelha se desprende do lobo. Nero tem sangue de lobo nas veias, por mais ator que seja. Tu também tens, Minuto, mas de um lobo mais covarde.
Não sabia se me sentisse orgulhoso ou ofendido com suas palavras. Perguntei, de passagem, se acreditava que Antônia estava metida na conspiração e apoiava Pisão. Séneca meneou a cabeça encarquilhada, à guisa de advertência.
_ Se eu estivesse em teu lugar — disse ele — não deposita- ria confiança nenhuma em Élia Antônia. Só o nome é aterrador. No dela está unido o sangue corrupto de duas antigas e perigosas famílias. Sei de coisas relacionadas com a sua juventude que não quero falar. Apenas previno-te. Em nome de todos os deuses, não permitas que ela participe da conspiração. Estarás louco se con- sentires. Ela é mais ambiciosa de poder do que Agripina, que tinha seu lado positivo, apesar de tudo o que fêz.
O aviso de Séneca abalou-me, mas eu estava ofuscado pelo amor e pensei que ele falava movido pela inveja. Um estadista que é prematuramente posto de lado é geralmente rancoroso com todos. Como filósofo também, Séneca podia ser tido como um frustrado. Em seu apogeu, ele não fora tão preeminente como levara a gente a acreditar. Achei que ele era o homem adequado para falar de dissimulação, pois era mestre nisso.
Quando nos separamos, Séneca confessou não acreditar que suas possibilidades fossem grandes, se ocorresse um golpe de Estado, mas estava pronto a entrar em Roma num dia determinado para estar presente e, se necessário, dar seu apoio a Pisão, pois estava certo de que Pisão, com sua vaidade e falta de comedimento, logo poria tudo a perder. Talvez então o tempo fosse favorável a Séneca.
— De qualquer modo, minha vida corre perigo diariamente — disse ele, com um sorriso amargo — de sorte que nada tenho a perder, mostrando-me em público. Se Pisão alcançar o poder, terei demonstrado que o apoiava. Se a conjuração for descoberta, morrerei do mesmo jeito. Mas o sábio não teme a morte. É a dívida que a humanidade tem de pagar um dia. Não importa se ocorre cedo ou tarde.
Para mim isto é que era importante. Por isso, fui para Preneste um tanto descorçoado, remoendo suas agourentas palavras. Convenci-me de que era melhor tomar certas precauções para o caso de vir a ser descoberta a conspiração. Seguro morreu de velho.
Ainda sou de opinião que a rebelião devia ter-se iniciado nas províncias com o auxílio das legiões, e não em Roma. Teria, é claro, redundado em efusão de sangue, mas é para isso que os soldados são pagos, e em Roma ninguém estaria exposto ao perigo. Mas a vaidade, o egoísmo e a ambição são sempre mais fortes do que o bom senso.
O desmoronamento começou em Miseno. Parece que Próculo não fora suficientemente recompensado pelos serviços que prestara com relação ao assassínio de Agripina. Na verdade, ele era incompetente, também como comandante naval, por pouco que tal cargo exija de um homem. Aniceto nada mais era do que um ex-cabeleireiro, mas ainda conservava a frota em condições de navegabilidade, com a ajuda de seus experimentados capitães.
Próculo confiava no próprio discernimento, e, contra todos os bons conselhos, enviou os navios ao mar. Cerca de vinte navios foram de encontro aos rochedos, perto de Miseno, e foram a pique com todos os tripulantes. É sempre possível substituir tripulações, mas vasos de guerra são brinquedos extremamente caros.
Nero, como era de esperar, enfureceu-se, embora Próculo alegasse ter recebido ordens do Imperador. Nero perguntou se Próculo estava disposto a cair no mar a uma ordem sua, e Próculo admitiu que seria obrigado a pesar bem uma ordem dessas, uma vez que não sabia nadar. Nero comentou, cáustico, que seria melhor pesar bem outras ordens, pois as ordens da natureza no oceano eram até mesmo melhores do que as de Nero. Seria fácil para Nero encontrar outro comandante, mas a construção de vinte novas belonaves sairia excessivamente dispendiosa. Teria portanto de adiar o assunto até a conclusão do Palácio Dourado.
É óbvio que Próculo ficou profundamente ofendido e rendeu-se aos encantos de Epícaris. Epícaris era uma formosíssima criatura bem adestrada na arte amatória. Que me conste, ela nunca praticara outra arte, antes de se meter na conjuração. Muita gente se surpreendia ante o seu repentino entusiasmo político, ao vê-la exortar, em termos candentes, os conspiradores a se lançarem a uma ação fulminante.
Mas creio que Nero melindrara Epícaris outrora, quando desejara pôr à prova a habilidade dela e depois, com seus modos estouvados, desmerecera-lhe os encantos. Epicaris não podia perdoá-lo e, desde então, não pensara senão em vingar-se.
Epicaris cansou-se de todas as escusas para adiar a deflagração do movimento em Roma e exigiu que Próculo mobilizasse seus navios e se dirigisse a Óstia. Próculo teve uma idéia melhor. Epicaris, mulher precavida, não lhe dera os nomes de todos os conspiradores, para que êle não soubesse até que ponto a conspiração se alastrara. Assim, Próculo escolheu entre o certo e o incerto, quando julgou que o primeiro delator obteria a melhor recompensa.
Correu para Nero em Roma e contou-lhe o que sabia. Nero, vaidoso e convicto de sua popularidade, não deu muita importância a princípio, em especial porque a informação era imprecisa.
Como era de esperar, mandou prender Epícaris e entregou-a a Tielino para que a inquirisse sob tortura. Esta era uma arte em que Tigelino era mestre incontestável, sempre que se tratasse de uma bela mulher. Desde que se tornara homossexual, criara animosidade contra as mulheres e deleitava-se em vê-las torturadas.
Mas Epícaris manteve-se firme, negando tudo e sustentando que Próculo só dissera disparates. E falou tanto aos Pretorianos, acerca das inclinações anormais de Tigelino, que ele perdeu o interesse pelo interrogatório e não tocou mais no assunto. Mas Epi caris fora tão maltratada que já não podia andar.
Os conjurados agiram com rapidez, quando souberam que Epícaris fora presa. Toda a cidade aterrorizou-se, já que muitas pessoas estavam envolvidas e temiam por suas vidas. Um centurião, que fora subornado por Pisão, tentou matar Epícaris no cárcere, pois os conspiradores não acreditavam que uma mulher fosse capaz de guardar segredo. Os guardas impediram-no, pois Epícaris conquistara a simpatia dos Pretorianos com suas histórias extraordinárias sobre a vida privada de Tigelino.
A festa de abril de Ceres ia celebrar-se no dia seguinte, e iam realizar-se corridas no circo semiconcluído em honra da Deusa Terra. Os conspiradores imaginaram que esse era o melhor local para a execução do plano. Nero dispunha de tanto espaço para andar no Palácio Dourado, com seus imensos jardins, que já não circulava pela cidade.
Deliberou-se, apressadamente, que os conspiradores iriam localizar-se tão perto de Nero, quanto possível, no grande circo. Laterano, um sujeito agigantado e destemido, num momento oportuno se jogaria aos pés de Nero, como para solicitar uma graça, e o derrubaria. Quando Nero estivesse no chão, os tribunos e centuriões conjurados e outros que tivessem coragem para tanto, fingiriam ir socorrê-lo e o matariam a punhaladas.
Flávio Sevino pediu que lhe permitissem dar a primeira punhalada em Nero. Para ele, aparentado como era ao Prefeito da Cidade, meu ex-sogro, era fácil aproximar-se de Nero. Era considerado tão efeminado e dissoluto, que nem mesmo Nero suspeitaria dele. Na realidade era o seu tanto louco e padecia de freqüentes alucinações. Não quero falar mal dos Flávios aqui, mas Flávio Sevino julgava que havia encontrado uma das adagas da Fortuna num templo antigo e levava-a consigo para toda parte. Suas visões lhe diziam que a adaga era um sinal de que ele fora escolhido para grandes feitos. Não alimentava a menor dúvida acerca de sua boa sorte, quando se apresentou como voluntário para dar a primeira punhalada.
Pisão ficaria à espera, perto do templo de Ceres. Fênio Rufo e outros conspiradores iriam buscá-lo lá e o acompanhariam aos Pretorianos, com Antônia. Esperava-se que nem mesmo Tigelino oferecesse resistência, caso Nero morresse, pois era um homem astuto e previdente. Os conspiradores haviam realmente resolvido executá-lo, assim que tomassem o poder, para agradar ao povo, mas Tigelino não podia saber disso com antecedência.
O plano fora habilmente concebido e era bom, em todos os sentidos. Seu único defeito foi ter falhado.
O Delator
Na noite da véspera da festa de Ceres, depois da reunião com Antônio Nat alis e quando já havíamos saído da casa de Pisão, Flávio Sevino foi para casa e começou melancolicamente a ditar seu testamento. Enquanto ditava, desembainhou sua célebre adaga da sorte e notou que a velha arma estava completamente cega por falta de uso. Entregou-a a seu liberto Milico, para que a afiasse e recomendou-lhe, com palavras assustadoramente confusas e gestos largos, que guardasse segredo disso, provocando assim as suspeitas de Milico.
Contrariando seus hábitos, Sevino ordenou em seguida que fosse servida uma ceia festiva a todo o pessoal da casa, durante a qual alforriou vários escravos, Chorando discretamente com forçada alegria, e distribuiu dádivas em dinheiro aos outros. Finda a refeição, não pôde mais conter-se e, em pranto, pediu a Milico que preparasse ataduras e medicamentos para estancar a efusão de sangue. Isto convenceu Milico de que alguma coisa sinistra estava para acontecer. Talvez já tivesse ouvido falar da conspiração. Quem não tinha?
Por segurança, pediu conselho à esposa. Esta, sendo uma mulher sensata, convenceu-o de que o primeiro a chegar ao moinho é o primeiro a ter seu trigo moído. Esta era uma questão em que a vida dele estava em jogo. Vários outros libertos e escravos tinham ouvido e visto a mesma coisa que ele vira e ouvira, de modo que era inútil calar. Na realidade, Milico tinha razões de sobra para apressar-se a ser o primeiro delator. Naquele momento não era necessário pensar na própria consciência, na vida de seu senhor e na dívida de gratidão por sua liberdade. A gorda recompensa a receber pouco a pouco eliminaria todos esses escrúpulos.
Milico teve dificuldade em sair da casa, pois Sevino não ia dormir, por mais que bebesse. A mulher de Sevino, Átria Gália, famosa pela beleza, pelos divórcios e pela vida fútil, e excitada pela ceia festiva, também fez exigências a Milico que a mulher deste foi obrigada a tolerar, e nas quais Sevino, por motivos particulares, achou que não devia interferir. Imagino que isto contribuiu decisivamente para o conselho que a mulher de Milico deu ao marido. Frisei este ponto para desculpá-la.
Só de madrugada Milico teve tempo de ir aos jardins de Ser-vílio, com a adaga da Fortuna escondida sob o manto, como prova material. Mas, como era naturais, os guardas não deixaram entrar este escravo liberto e muito menos iam permitir que ele se avistasse com Nero, na aurora do dia da festa de Ceres. Aconteceu que naquela ocasião chegava ao Palácio Epafrodito, com um casal de filhotes de leopardo, e com ordem de entregá-los a Nero o mais cedo possível. Nero ia presenteá-los à mulher do Cônsul Vestino, Estatília Messalina, a quem estava cortejando, para que ela os exibisse no camarote do Cônsul, durante as corridas.
Epafrodito notou a contenda no portão e tratou de acalmar os guardas, que batiam em Milico com os fustes das lanças para o obrigar a calar-se, pois, ao ser-lhe negada licença para entrar Milico pusera-se a gritar desatinadamente por Nero, com toda a força dos pulmões.
Duvido que a Fortuna, antes ou depois disso, me tenha revelado sua face mais claramente. Mais do que nunca foi-me dado ver que a magnanimidade e a generosidade podem ser recompensadas nesta vida. Epafrodito reconheceu em Milico o liberto de Flávio Sevino, que era parente de sua mulher Sabina, e socorreu-o.
Ouvindo o relato de Milico, Epafrodito compreendeu logo a gravidade da situação. Lembrando-se da gratidão que me devia, mandou o escravo que trazia os leopardos contar-me o que se passava. Depois disso, fez com que acordassem Nero e levou os bichos e Milico até ao enorme leito de Nero.
O escravo de Epafrodito arrancou-me de um sono profundo e seu recado me pôs imediatamente de pé. Atirei um manto aos ombros e, barbado e sem comer, corri com ele aos jardins de Ser-vílio.
A corrida me deixou tão esbaforido que resolvi reiniciar os exercícios físicos no estádio e começar a montar com regularidade, se conseguisse escapar com vida. No trajeto, fui também obrigado a avaliar a situação rapidamente e a pensar nas pessoas que me seria mais vantajoso denunciar.
Quando cheguei ao Palácio, Nero estava ainda de mau humor, por ter sido despertado tão bruscamente, se bem que já devesse estar de pé, por causa da festa de Ceres. Bocejando, brincava com os leopardos em sua suntuosa cama de seda e, vaidoso como era, negava-se a crer na mensagem aflita do gaguejante liberto.
Apesar disso, mandara um recado a Tigelino, pedindo-lhe que tornasse a falar com Epícaris, e os Pretorianos já tinham saído para prender Flávio Sevino e Conduzi-lo à presença de Nero, a fim de que explicasse seu comportamento suspeito.
Depois de tagarelar sobre o testamento e as ataduras, Milico recordou que sua mulher o exortara a falar da longa conversa de seu senhor com o confidente de Pisão, Nat alis. Mas Nero fez um aceno de impaciência:
_ Natalis poderá vir explicar esse assunto pessoalmente — disse ele. _Mas eu preciso começar a vestir-me cedo, para a festa de Ceres.
Malgrado a aparente indiferença, Nero passou o polegar pela ponta da azinhavrada adaga de bronze e provavelmente experimentou, em sua vívida imaginação, o que sentiria, se essa arma afundasse subitamente em seu peito musculoso. Assim, mostrou-se mais benevolente comigo quando cheguei, ofegando e limpando o suor da testa, para explicar que tinha uma coisa importantíssima a contar-lhe sem tardança.
Rapidamente falei-lhe da conspiração para assassiná-lo e, sem vacilar, citei Pisão e seu colaborador Laterano, como os cabeças. De qualquer modo, nada mais podia salvá-los. Durante todo o tempo, tive a sensação de estar pisando em brasas, ao pensar no que diria Epícaris para escapar de nova tortura, agora que a conjuração fora descoberta.
Os filhotes de leopardo deram-me a feliz idéia de denunciar o Cônsul Vestino, lembrando-me do interesse de Nero na mulher de Vestino. Na realidade, não nos tínhamos dado o trabalho de atrair Vestino para a conspiração, em virtude de suas convicções republicanas. Neste ponto, Nero ficou sério. A participação de um Cônsul em exercício numa conspiração e numa trama homicida era bastante grave. Pôs-se a morder os beiços, e o queixo começou a tremer como o de um menino aflito, tão certo estivera de sua popularidade no seio do povo.
Em conjunto, denunciei de preferência os membros do Senado, pois era meu dever filial vingar a sorte de meu pai, desde que o Senado por unanimidade, sem mesmo submeter o assunto à votação, o condenara à morte, e, em conseqüência disso, meu filho Jucundo também perdera a vida, devorado pelas feras. É claro que nada devia aos senadores. E para os meus objetivos seria melhor que vagassem alguns lugares no Senado.
Após especificar alguns nomes, tomei uma decisão rápida e denunciei Séneca também. Ele próprio admitira francamente que sua vida dependia da segurança de Pisão, de sorte que nada o teria salvo. Leve-se a meu crédito que eu fui o primeiro a acusar um homem tão poderoso. Naturalmente, não mencionei a visita que fiz à casa de Séneca.
A princípio, Nero não pareceu inclinado a crer nas minhas informações. Não obstante, exprimiu habilmente horror e perplexidade ante a cruel traição de seu velho preceptor, que só a Nero devia agradecer sua imensa riqueza e seu êxito na função pública.
Séneca deixara seu cargo no governo, voluntariamente, e assim não tinha razão para ter rancor contra Nero. Nero até verteu algumas lágrimas e atirou os leopardos ao chão, enquanto perguntava, em desespero, por que era tão odiado, apesar de fazer tudo quanto podia pelo povo e o Senado, sacrificando a própria comodidade para carregar o fardo dos deveres imperiais.
— Por que eles não me disseram nada? — queixou-se. — Afirmei inúmeras vezes que preferiria ver-me aliviado do poder, já que posso ganhar a vida como artista, em qualquer parte do mundo. Por que me odeiam tanto?
Teria sido inútil e perigoso começar a explicar. Felizmente, Tigelino e Flávio Sevino chegaram naquele momento e alguém anunciou que Epicaris estava esperando em sua cadeirinha no jardim.
Nero julgou mais prudente fingir, de início, que não estava a par do verdadeiro objetivo da conspiração. Quis interrogar Flávio Sevino e Milico, na presença um do outro. Pediu-me que me retirasse e isso me alegrou, pois desse modo surgia-me a oportunidade de prevenir Epicaris e Chegarmos a um acordo sobre quem mais devíamos denunciar. Ao sair, vi que Nero mandava entrar seus guardas germanos, com um olhar malicioso para Tigelino.
A lembrança da conjuração de Sejano contra Tibério ainda está bem viva e desde então nenhum Imperador confia cegamente no Prefeito Pretoriano. Assim há geralmente dois Prefeitos, que se vigiam mutuamente.
Nero restaurara essa medida de segurança pouco antes, ao designar Fênio Rufo para colega de Tigelino, mas escolhera a pessoa errada. Todavia, eu não tinha intenção alguma de denunciar Fênio Rufo, que era meu amigo. Na verdade, resolvera fazer tudo quanto pudesse para impedir que seu nome viesse à baila por engano. Queria falar com Epicaris sobre isso também.
A cadeirinha dela estava estacionada no jardim, com as cortinas cuidadosamente cerradas e os escravos descansando na relva, mas os dois guardas negaram-se a deixar-me ver a detida. Contudo, as novas moedas de Nero 'foram úteis. Os guardas afastaram-se e eu abri as cortinas.
— Epicaris — murmurei. — Sou teu amigo. Tenho algo importante a dizer-te.
Mas Epicaris não respondeu. Então notei que, durante o trajeto, ela afrouxara sua atadura ensangüentada, que algum guarda bondoso lhe dera, armara um nó corredio em volta do pescoço e amarrara a outra ponta numa barra transversal da cadeirinha. Assim, com a ajuda do próprio peso, e debilitada pela tortura, ela se estrangulara, sem dúvida porque temia ser incapaz de suportar interrogatório. Quando me certifiquei de que estava morta, gritei para os guardas e mostrei-lhes o que acontecera. No íntimo, louvei a nobreza desta respeitável mulher. Suicidando-se, ela evitava delatar seus companheiros criminosos e deixava-me com liberdade para agir.
Os guardas naturalmente ficaram com medo de serem punidos por sua negligência. Mas não havia tempo para tais coisas. Nero começava a tomar providências e não queria preocupar-se com minúcias insignificantes. O suicídio de Epícaris convenceu-o, afinal, da conjuração e do papel desempenhado pela armada. De minha parte, devo confessar que a visão dos seios e membros lacerados de Epícaris deixou-me tão nauseado que vomitei na relva, perto da cadeirinha, embora nada tivesse comido naquela manhã.
É claro que isso teve como causa o medo súbito e também o alívio igualmente repentino, ante a coragem dessa nobre mulher. Com sua morte, ela me dava uma posição-chave no desmascaramento da conjuração. Movido pela gratidão, mandei enterrá-la a minhas expensas, já que seus amigos, por motivos compreensíveis, não podiam fazê-lo. Na verdade, em breve eles mesmos iam precisar de enterro.
Enquanto Nero habilmente interrogava Sevino, este recuperou o sangue frio e, corajosamente encarando Nero nos olhos, protestou inocência. Por um momento Nero vacilou em suas suspeitas.
— Essa adaga — disse Sevino, com desdém — foi sempre uma herança sagrada em minha família e normalmente é guardada em meu quarto de dormir. Esse maldito escravo, que cuspiu em meu leito e agora teme o castigo, tirou-a às escondidas. Reescrevo meu testamento muitas vezes, como faz todo homem sensato, quando as circunstâncias mudam. Nem é a primeira vez que liberto escravos, como o próprio Milico pode testemunhar. Também distribuí dinheiro antes. Ontem à noite fui mais generoso do que de costume porque estava um tanto embriagado, e, por causa das minhas dívidas, pensei que meus credores não aprovariam todas as cláusulas do testamento anterior. Assim, achei que devia alterá-lo. A história das ataduras é alguma invenção maluca de Milico. Eu é que devia acusá-lo aqui, não ele a mim. Se interrogares minha mulher durante alguns instantes, logo descobrirás por que esse escravo miserável está com medo de mim. A bem de meu nome, não quis revelar o ultraje de ambos a meu leito matrimonial. Se a coisa chegou a um ponto em que eu, um homem inocente, sou acusado de tramar um assassínio, então é tempo de dizer tudo.
Cometeu o erro de aludir a suas dívidas. Nero tirou a conclusão correta de que Sevino nada tinha a perder e só tinha a ganhar com a conspiração, se estava à beira da falência. Assim, interrogou Sevino e Natalis, separadamente, sobre o que haviam discutido, durante tanto tempo, na noite anterior. Naturalmente, eles tinham histórias bem diferentes para contar, pois nenhum tinha pensado em preparar-se para o interrogatório.
Tigelino mandou que mostrassem a ambos a golinha de ferro, as garras de metal e outros instrumentos de tortura, e não precisou nem tocá-los. Natalis foi o primeiro a esmorecer. Conhecendo quase tudo o que havia para contar, a respeito da conjuração, esperou ganhar alguma coisa mediante a confissão voluntária. Denunciou seu querido Pisão e diversos outros, mencionando também as relações com Séneca. Agradeci à minha boa estréia o ter-me dado ensejo de denunciar Séneca antes dele.
Ao saber que Natalis havia confessado, Sevino abandonou suas vãs esperanças, revelou sua participação pessoal e, entre outros, denunciou Senécio, Lucano, Petrônio e, infelizmente, a mim também. Nesse caso, nada me custou dizer que comparecera à reunião do dia anterior só para adquirir informações precisas acerca da conspiração, a fim de estar em condições de salvar a vida do Imperador, enquanto simulava apoiar Pisão.
Por precaução, eu não insistira em contribuir para o fundo destinado aos Pretorianos, de sorte que pude livremente denunciar aqueles que haviam colaborado para formar os trinta milhões. Nero deliciou-se com esse acréscimo inesperado a seu magro tesouro, se bem que mais tarde tenha arrecadado cem vezes essa soma, ao confiscar os bens dos culpados. Acredito que somente Séneca e Palas contribuíram com pelo menos um bilhão de sestércios.
Por causa de sua reputação, Nero não queria que o povo soubesse como a conspiração realmente se alastrara, nem como era violentamente odiado pela aristocracia, pois o povo podia pensar que havia razão para tanto ódio. E a vida particular de Nero não podia resistir a um exame mais rigoroso.
Para acabar com os boatos, pensou mais tarde em desposar Estatília Messalina, que era, no fim de contas, uma Juliana, e assim muito mais aristocrática do que Popéia. Tanto ela quanto Nero mostraram-se muito gratos a mim, por teu eu casualmente dado a Nero a oportunidade de livrar-se do marido dela, o Cônsul Vestino. O interesse de Nero por ela vinha de muito tempo, mas Estatília Messalina achava que não tinha possibilidade nenhuma contra Antônia. Toda a cidade sabia que Nero propusera Casamento a Antônia, por motivos políticos, e as pessoas mais judiciosas achavam que Antônia terminaria cedendo, embora por uma questão de decência tivesse de repeli-lo de início.
Ao dar-se conta do vulto da conspiração, Nero pensou imediatamente em cancelar a festa de Ceres, mas Tigelino e eu o persuadimos de que isso seria pouco prudente. Seria melhor ocupar a cidade, e Óstia também, por causa da festa, enquanto o povo estivesse assistindo às corridas. Seria fácil prender no circo, sem chamar a atenção, todos os senadores e cavaleiros envolvidos, antes que tivessem tempo de fugir da cidade e procurar refúgio junto às legiões.
Urgia prender Pisão. Ofuscado pelas próprias ambições, ele já fora esperar do lado de fora do templo de Ceres com sua escolta. Lá tomou conhecimento da denúncia de Milico e da prisão de Sevino e Natalis. Logo tratou de sumir, embora os mais bravos de seu séquito exigissem que ele se dirigisse ao acampamento dos Pretorianos, sem perda de tempo e levando o dinheiro, ou pelo menos discursasse no fórum e conclamasse o povo a cerrar fileiras a seu lado.
A ação pronta poderia mesmo ter inclinado a balança da Fortuna em seu benefício. Fênio Rufo ainda estava no acampamento, com Tigelino temporariamente afastado, e diversos tribunos e centuriões participando da trama. Mesmo que os soldados o atraiçoassem e o povo o abandonasse, ele pelo menos morreria honrosamente numa tentativa ousada, mostrando-se digno dos seus antepassados e conquistando renome por lutar pela liberdade e por seus descendentes.
Mas Pisão não era o homem indicado para a missão que lhe tinham cometido, como já expliquei. Após um momento de hesitação, voltou para casa. Vendo isto, seus amigos espalharam-se em diversas direções, tratando de salvar o que ainda podia ser salvo.
A casa de Laterano foi a única em que alguém opôs qualquer resistência real. Em conseqüência disso, Laterano foi arrastado para o local de execução dos escravos, a despeito de sua dignidade de Cônsul. O tribuno Estácio decepou-lhe a cabeça com tanto açodamento que feriu a própria mão. Mas Laterano foi o único conspirador a manter-se calado, não revelando sequer que o próprio Estácio fazia parte da conjura, o que explicava a sua pressa.
Todos confessavam e denunciavam outros antes de morrer. O poeta Lucano denunciou até mesmo a própria mãe, e Júnio Gálio, meu velho amigo de Corinto, denunciou seu irmão Séneca. Na reunião seguinte do Senado, Gálio foi abertamente acusado de fratricídio e chegou-se a dizer que estava ainda mais implicado que Séneca, mas Nero fingiu não ouvir. A mãe de Lucano também foi deixada em paz, embora ela sempre falasse mal de Nero e o qualificasse de descarado citarista, a fim de realçar a fama de poeta do filho.
Tomaria muito tempo enumerar todas as pessoas importantes que foram executadas ou se suicidaram, embora Nero mostrasse clemência ao limitar o número de acusações. Mas ele não era mais do que humano, e seria demasiado pedir que na escolha dos que iam ser processados ele não desse atenção a afrontas anteriores e à sua constante falta de dinheiro.
A cidade ficou cheia de cadáveres. Dentre esses homens bravos mencionarei apenas Súbrio Flavo. Quando Nero lhe perguntou como pudera esquecer o juramento militar, ele respondeu com franqueza: — Não teríeis soldado mais leal do que eu se fôsseis digno da minha estima. Comecei a odiar-vos quando assassinastes vossa mãe e vossa mulher e aparecestes como auriga, bufão e incendiário.
Compreensivelmente encolerizado com tal prova de sinceridade, Nero ordenou a um negro, que havia promovido a centurião, que levasse Súbrio para o campo mais próximo e fizesse o que tinha de ser feito. O negro obedeceu à ordem e cavou uma sepultura. Flávio viu que a sepultura era muito rasa e comentou com escárnio para os soldados que riam à sua volta: — Esse negro não sabe nem cavar um túmulo regulamentar. — Tão alarmado estava o centurião negro com as origens nobres de Súbrio Flavo que ficou de mãos trêmulas quando Flavo espichou corajosamente o pescoço, e só conseguiu separar a cabeça do corpo com dois golpes.
Fênio Rufo manteve-se vivo até uma etapa ulterior, mas no fim de contas começou a causar espécie aos que eram interrogados o fato de que êle lhes aparecesse como juiz. Foi denunciado por tanta gente que Nero teve de acreditar, se bem que como julgador Fênio Rufo tratasse de ostentar severidade a fim de não ser alvo de suspeitas. Por ordem de Nero, foi derrubado ao chão no meio de um interrogatório e amarrado por um robusto soldado. Perdeu a vida como os outros, para minha grande tristeza, uma vez que éramos bons amigos. E um indivíduo muito egoísta tornou-se superintendente dos armazéns de cereais do Estado depois dele. Mas Rufo só tinha de se queixar mesmo de sua fraqueza, porquanto tivera excelente oportunidade de intervir no desenrolar dos acontecimentos.
Séneca tinha acabado de chegar para a festa de Ceres quando tomou conhecimento do que acontecera. Recolheu-se então a uma casa que possuía dentro da cidade, perto do quarto marco miliá-rio. Nero mandou o tribuno Gávio Silvano, de sua própria guarda pessoal, perguntar a Séneca o que tinha a dizer em sua defesa, com referência à confissão de Natalis. Silvano determinou que os soldados cercassem a casa e entrou no momento em que Séneca, a mulher e alguns amigos, numa atmosfera mais ou menos tensa, iam iniciando um repasto.
Séneca continuou tranqüilamente sua refeição, respondendo, como que de passagem, que Natalis o visitara na qualidade de emissário de Pisão, para queixar-se de que os convites feitos pelo último tinham ficado sem resposta. Séneca aludira então cortesmente a seu estado de saúde; não tinha motivo para patrocinar a causa de ninguém a suas expensas. Silvano teve de contentar-se com essa explicação.
Quando Nero perguntou se Séneca fizera quaisquer preparativos, para pôr fim à vida voluntariamente, Silvano teve de confessar que não pudera notar nenhum sinal de medo nele. Nero viu-se forçado a enviar Silvano de volta a Séneca, para dizer-lhe que devia morrer. Era uma ordem desagradável para Nero. No interesse de seu próprio renome, teria preferido que seu velho preceptor tivesse tomado tal decisão.
Para mostrar como a vida de Nero ainda estava em perigo, basta dizer que Silvano foi direto a Fênio Rufo no acampamento dos Pretorianos, depois de receber aquela ordem, falou-lhe dela c indagou se devia ser cumprida. O próprio Silvano era um dos conjurados. Rufo ainda podia ter proclamado Séneca Imperador, subornado os Pretorianos e recorrido ao levante armado, caso considerasse que ele mesmo, em virtude de sua posição, não podia matar Nero.
Posteriormente refleti nas diversas maneiras de agir que se ofereciam a Rufo. Dificilmente os Pretorianos veriam com bons olhos a colocação de um filósofo no trono em lugar de um citarista, mas não apreciavam Tigelino e provavelmente colaborariam para derrubá-lo por causa de sua disciplina impiedosa. Todos sabiam da imensa riqueza de Séneca e poderiam reclamar altíssimas propinas.
Rufo ainda tinha outra razão para apoiar Séneca. Era originalmente de ascendência judaica, procedente de Jerusalém, mas procurara conservar suas origens em segredo por causa de seu alto cargo. Seu pai era um liberto que durante muito tempo negociara em cereais em Cirene e que, quando o filho se transferiu para Roma, utilizara seu dinheiro para persuadir os Fijianos a perfilharem-no. Rufo recebera excelente educação judaica e triunfara na vida, graças ao talento e ao tino comercial.
Não sei por que seu pai, Simão, quis que o filho fosse romano, mas estou certo de que Fênio Rufo tinha simpatia pelos cristãos. Meu pai me contara certa vez que o pai de Rufo tivera de carregar a cruz de Jesus de Nazaré para o local da execução em Jerusalém, mas não me lembrei disso então. Nas confusas cartas que meu pai escreveu de Jerusalém, também vi mencionado o nome de Simão de Cirene e imaginei que meu pai tivesse ajudado Rufo a encontrar quem o adotasse e a esconder suas origens. Talvez por esse motivo me tivesse sido tão fácil fazer amizade com Rufo exatamente quando precisava dela, isto é, quando me iniciava nos negócios de cereais.
Séneca no trono imperial teria sido de tamanha vantagem política para os cristãos que valeria a pena abrir mão de alguns princípios só para obtê-la. Para Fênio Rufo era provavelmente uma opção bem estranha; mas êle era um eminente advogado e negociante de cereais, não um soldado. Assim, não podia tomar tão importante decisão. Ao invés disso, confiava em que não seria denunciado. Daí ter dito a Silvano que obedecesse a Nero.
Para honra de Silvano, diga-se que êle teve vergonha de enfrentar Séneca e enviou um centurião com a ordem. Tantas coisas edificantes escreveram-se sobre a tranqüilidade de Séneca diante da morte, que não vale a pena insistir nisto. De qualquer modo, acho que não foi muito gentil da parte dele tentar induzir sua jovem esposa, que ainda tinha uma vida pela frente, a morrer com êle.
Naturalmente consolou-a primeiro, segundo o testemunho dos seus amigos, e fê-la prometer que não se entregaria a um lamento permanente por êle, mas atenuaria o sentimento da perda refletindo na busca da virtude que caracterizara a vida de Séneca. Após acalma la, passou a descrever os temores que sentia quanto ao que pudesse acontecer quando ela caísse nas mãos do sanguinário Nero. Paulina disse, então, que preferia morrer com o marido.
— Eu te mostrei um meio de tornares a vida mais amena — disse Séneca — mas tu mesma preferes uma morte honrosa. Acho que não fizeste má escolha. Revelemos ambos grande fortaleza de ânimo no momento da separação.
E prontamente ordenou ao centurião que lhes abrisse as veias com uma rápida incisão, para que Paulina não tivesse tempo de mudar de idéia.
Mas Nero não tinha nada contra Paulina. Recomendara expressamente que a poupassem, pois via de regra tentava evitar, nas suas sentenças, a crueldade desnecessária, a fim de preservar seu bom nome. O centurião foi obrigado a obedecer a Séneca, por causa da posição deste, mas teve o cuidado de não atingir os tendões ou artérias de Paulina ao cortar-lhe o braço.
O corpo de Séneca estava tão enfraquecido pela idade e a dieta, queseu sangue escorria preguiçosamente. Não tomou um banho quente como devia ter feito, mas ditou a um escriba algumas correções a suas obras. Perturbado pelo pranto de Paulina, pediu impaciente que ela fosse para outro quarto e, como justificativa, disse que não queria abalar a firmeza de Paulina, permitindo que ela visse quanto êle sofria.
No quarto contíguo, por ordem dos soldados, os escravos de Séneca imediatamente aplicaram ataduras aos punhos de Paulina e contiveram o sangue. Paulina não se opôs. Assim, a vaidade ilimitada de um escritor salvou a vida de Paulina.
Como muitos estóicos, Séneca tinha medo da dor física. Por isso, solicitou a seu médico algum veneno estupefaciente, semelhante ao que os atenienses deram a Sócrates. Talvez Séneca desejasse que a posteridade o tomasse por emulo de Sócrates. Quando acabou de ditar, e ante a impaciência do centurião, dirigiu-se afinal a seu banho quente e depois ao banho a vapor, no qual morreu sufocado. Cremaram-lhe o corpo sem pompa alguma, conforme ele havia prescrito, fazendo da necessidade uma virtude. Nero não teria consentido num funeral público, pelo temor das manifestações.
Graças ao centurião, Paulina viveu ainda muitos anos, pálida como um fantasma. Diziam que ela se convertera, em segredo, ao cristianismo. Estou te dizendo o que ouvi contar. Eu mesmo não tive vontade de aproximar me dessa viúva pesarosa, e qualquer pessoa sensata compreenderá os meus motivos. Só depois de sua
morte foi que determinei que a casa editora de meu liberto assumisse o encargo de publicar as obras completas de Séneca.
Meu amigo, o escritor Petrônio Árbitro, morreu, como seu renome exigia, após lauto banquete na campanha de amigos, durante o qual despedaçou todos os objetos de arte que havia colecionado, para que Nero não se apoderasse deles. Nero sentiu particularmente a destruição de dois incomparáveis cálices de cristal que sempre cobiçara.
Petrônio satisfez sua vaidade de autor pondo no testamento um minucioso catálogo dos vícios de Nero e das pessoas com quem os praticava, indo ao ponto de citar todos os momentos, lugares e nomes para que ninguém desconfiasse de que recorrera demasiado à imaginação. Como escritor, talvez tenha exagerado, a fim de causar mais regozijo, ao ler depois em voz alta o testamento para os amigos enquanto se esvaía em sangue. Mandou que lhe aplicassem ataduras uma ou duas vezes para que pudesse, como explicou, tirar o maior proveito da morte também.
O testamento, enviou-o a Nero. Pena é que não tenha permitido que o copiassem, mas deve ter pensado que devia isso a Nero em razão de uma velha amizade. Petrônio era um homem refinado, creio que o mais refinado que conheci, apesar da rudeza de suas histórias.
Não pôde convidar-me para seu banquete de despedida, mas não me ofendi. Enviara-me um recado, dizendo que entendia perfeitamente minha conduta e que provavelmente teria agido como eu se tivesse tido oportunidade.
De sua parte, gostaria de convidar-me também, mas achava que eu não iria sentir-me à vontade ao lado de certos amigos seus. Ainda tenho comigo sua amável cartinha e sempre me lembrarei dele como amigo.
Mas por que hei de falar da ruína ou do degredo de tantos conhecidos, amigos nobres e homens respeitáveis durante aquele ano e o seguinte? É mais agradável referir as recompensas que
Nero distribuiu àqueles que se distinguiram na supressão da conjura.
Êle deu aos Pretorianos a mesma soma de dois mil sestércios por homem, que os conspiradores lhes haviam prometido. Também elevou-lhes o soldo, decidindo que a partir de então os soldados iriam receber cereais gratuitamente, ao passo que até ali tinham tido de comprá-los a preços normais no mercado.
Tigelino e dois outros adquiriram direito a um triunfo e tiveram suas estátuas triunfais erigidas no Palatino.
Quanto a mim, insinuei a Nero que o Senado se tornara um tanto rarefeito e que a vaga de meu pai ainda não fora preenchida. Havia grande necessidade na comissão de assuntos orientais de um homem que, como meu pai, pudesse assessorar nas questões judaicas e servir de mediador entre o Estado e os interesses dos judeus no que dizia respeito à posição especial destes.
Do ponto de vista de Nero, seria prova de perspicácia politica designar para senadores aqueles que com suas ações haviam demonstrado lealdade para com o Imperador, pois o Senado, sob muitos aspectos, se mostrara indigno de confiança e ainda simpatizante do republicanismo.
Nero não conteve o espanto e disse que não podia indicar para o Senado um indivíduo com uma reputação tão má como a minha. Os Censores iriam interferir. Além disso, depois dessa conspiração, perdera a fé na humanidade e já não confiava em ninguém, nem mesmo em mim.
Defendi energicamente a minha causa, dizendo que, em Cere, e alhures, na Itália, eu possuía o patrimônio exigido de um senador. Ao mesmo tempo, era também sorte minha que a ação judicial intentada na Bretanha por meu pai, em nome de Jucundo, e relacionada com a herança da mãe deste último, tivesse chegado a termo, após longas dilações e ajustes naquele país. Os bretões podem herdar pelo lado feminino da família, e Lugunda fora de origem nobre e também uma sacerdotisa da lebre.
Lugunda, seus pais e irmãos, tinham todos perecido na rebelião. Jucundo fora o único herdeiro e também, como filho adotivo de senador, um honrado romano. O novo Rei dos icenos atendera essa reivindicação legal. Como indenização das perdas causadas pela guerra, Jucundo recebera, além de grande quantidade de terras, algumas pastagens no território vizinho dos catavelaunias, pois eles também se tinham envolvido na rebelião, e essa indenização nada custava ao Rei iceno.
Numa carta endereçada a mim, o rei pedia que, em troca, eu procurasse convencer Séneca a reduzir, pelo menos ligeiramente, as exorbitantes taxas de juros que estavam ameaçando frustrar o reflorescimento da vida econômica da Bretanha. Eu era o herdeiro legítimo de Jucundo, já que meu pai o adotara.
Assim, vali-me do ensejo para fazer com que Nero aprovasse esta herança. Na verdade, ele tinha o direito de confiscá-la, em virtude das ofensas de meu pai. Mas agora, em conseqüência da conspiração, Nero recebera dinheiro em quantidade tal, que não tinha motivo para reclamá-la.
Em compensação, denunciei os avultados investimentos de Séneca, na Bretanha, e aconselhei Nero a reduzir as taxas de juros a um nível razoável, com o que seu bom conceito só teria a lucrar. Nero achou que a usura não ficava bem num Imperador e aboliu completamente o pagamento de juros, a fim de ajudar o soerguimento da Bretanha.
Esta providência por si só elevou o valor de minha herança bretã, já que os impostos também sofreram redução. Felizmente fui o primeiro a dar essa informação ao Rei dos icenos, o que me valeu excelente reputação na Bretanha. Por causa disso, fui mais tarde eleito para a comissão do Senado encarregada dos assuntos bretões. Na comissão lutei pelo que era útil aos bretões e a mim.
Para cuidar de minhas propriedades naquele país, tive de deslocar de Cere para a Bretanha meus libertos mais empreendedores, aos quais entreguei o cultivo, à maneira romana, da terra ah aproveitável e a engorda de gado bom que pudesse ser vendido às legiões. Mais tarde, eles se casaram com respeitáveis moças bretãs, alcançaram extraordinário êxito e acabaram como governadores de Lugundanum, a cidade que fundei em memória de - minha mulher bretã.
A agricultura e a criação de gado que eles promoveram produziram lucros polpudos até o momento em que vizinhos invejosos resolveram imitá-los. Esta parte de minha fortuna sempre dera, apesar de tudo, ótimos resultados, mesmo deduzindo-se o quinhão dos lucros de meus libertos. Não creio que eles me enganassem demais, muito embora ambos tenham ficado imensamente ricos em muito pouco tempo. Eu os havia ensinado a seguir nos negócios o meu exemplo. A honestidade, dentro de limites sensatos e razoáveis, é sempre a melhor política em comparação com os métodos imprevidentes que podem dar lucros imediatos.
Assim, pude declarar propriedades na Bretanha e na Itália, quando fui nomeado para o Senado. Desse modo, tornei-me senador, conforme o desejo de Cláudia. E nada foi alegado contra mim, exceto que eu não tinha a idade requerida. A esse comentário o Senado respondeu com uma boa gargalhada, pois houvera tantas exceções à norma do limite de idade, no passado, que a questão perdera toda a importância. Além disso, todo mundo sabia o que o orador pretendia imputar-me e não tinha coragem de fazê-lo.
Por sugestão de Nero, quase que fui aceito por unanimidade. Não me preocupei em saber quem tinha votado contra mim, pois um dos votantes veio ver-me sorridente após a sessão e explicou que é sempre melhor para a autoridade do Senado que as sugestões menos importantes do Imperador não recebam apoio unânime. Lembro-me disto com gratidão.
Contei-te tantos pormenores do que aconteceu com referência à conjura de Pisão, não para defender-me — pois não tenho motivos para isso — mas para adiar tanto quanto possível o que é por demais doloroso. Sem dúvida adivinharás que estou falando de Antônia. As lágrimas ainda me vêm aos olhos, ao cabo de todos esses anos, quando penso em seu destino.
Logo depois do suicídio de Pisão, Nero mandou colocar sob vigilância a casa de Antônia no Palatino. Fora informado por inúmeras fontes que Antônia concordara em acompanhar o usurpador, ao acampamento dos Pretorianos.
Circulava até mesmo o boato de que Pisão prometera divorciar-se da esposa e casar com Antônia, quando se tornasse Imperador, mas julguei que não devia acreditar no que diziam, porquanto Antônia, que me amava e se interessava pelo teu futuro, não considerava esse casamento necessário por motivos políticos.
Só me foi possível passar mais uma noite com Antônia. Essa noite custou-me um milhão de sestércios, o preço do temor dos guardas a Nero e Tigelino. Mas eu me senti mais do que feliz em pagar essa quantia. Que vale o dinheiro diante do amor e da paixão? Teria dado alegremente todos os meus haveres para poder salvar a vida de Antônia. Ou pelo menos boa parte dos meus haveres. Mas era inútil.
Durante aquela noite de melancolia, planejamos seriamente abandonar tudo e tentar a fuga para a índia, onde eu tinha vínculos comerciais. Mas era demasiadamente longe. Compreendemos que não tardariam a capturar-nos, pois as feições de Antônia eram conhecidas de todos os romanos, até mesmo nas províncias, por causa das muitas estátuas suas, e nenhum disfarce iria esconder-lhe por muito tempo a nobre figura.
Chorando nos braços um do outro, abandonamos todas as falsas esperanças. Antônia assegurou-me ternamente que morreria com bravura e alegria porque, pelo menos uma vez na vida, sentira verdadeiro amor. Admitiu sem rodeios que pensara em receber-me como esposo, se o destino assim o tivesse querido, depois que Cláudia tivesse morrido, de uma forma ou de outra. Esta declaração sua é a maior honra de que fui alvo em minha vida. Não creio que cometa um erro ao contar-te. Não quero gabar- me; desejo simplesmente mostrar-te que ela de fato me amou.
Durante nossa última noite ela falou longa e febrilmente, nar-rando-me sua infância e relembrando seu tio, Sejano, o qual, disse ela teria feito Cláudio Imperador se tivesse conseguido matar Tibério e obter o apoio do Senado. Então Roma teria escapado ao terrível reinado de Caio Calígula. Mas o destino dispôs de outra forma, e Antônia reconhecia que Cláudio não estava então bastante amadurecido para governar. Não fazia senão jogar dados, beber e levar a mãe de Antônia para a beira da falência.
Passamos a noite sentados, de mãos dadas, conversando, enquanto a morte aguardava na soleira. A compreensão disto deu aos nossos beijos um sabor de sangue e trouxe-me lágrimas pungentes aos olhos. Uma noite como aquela a gente só tem uma vez na vida e nunca a esquece. Depois, todos os outros prazeres e todas as outras alegrias não passam de reflexos. Depois de Antônia nunca amei realmente nenhuma outra mulher.
Quando se escoaram aqueles instantes irrecuperáveis e a aurora surgiu, Antônia fêz-me afinal uma estranha sugestão, que a princípio me tirou a fala, embora eu tivesse de reconhecer que era sensata, após minhas primeiras objeções. Ambos sabíamos que não teríamos outra oportunidade de nos vermos. Sua morte era tão inevitável que nem mesmo a Fortuna poderia salvá-la.
Assim, ela não queria prolongar aquela penosa espera, mas desejava que eu, unindo-mé aos outros que já o tinham feito, fosse também denunciá-la a Nero. Isto lhe apressaria a morte, e me livraria de quaisquer suspeitas que Nero pudesse abrigar, e asseguraria o teu futuro.
O simples pensamento de tal denúncia era-me odioso, mas Antônia persuadiu-me e afinal concordei.
À porta de seu quarto de dormir, ela me deu alguns conselhos judiciosos acerca de algumas famílias antigas com as quais eu devia estabelecer laços de amizade para o teu bem, e outras que. pela mesma razão, eu devia fazer todo o possível para manter longe do poder e da função pública, caso não lograsse por outros meios arruiná-las completamente.
Com lágrimas cintilando nos olhos, disse que. só lamentava a morte porque esta lhe roubaria a felicidade de participar, quando chegasse o momento, da escolha de uma noiva que te conviesse. Não restam muitas em Roma. Antônia instou-me a cuidar do teu noivado com antecedência e a usar de discernimento quando a moça apropriada tivesse doze anos. Mas não fazes caso de minhas justas sugestões.
Os guardas, intranquilos, vieram apressar-me. Tínhamos de nos separar. Recordarei sempre o lacrimoso, sorridente, belo e nobre rosto de Antônia, conturbado após aquela noite. Mas eu tinha a um plano ainda melhor. Êle tornava a separação mais fácil
para mim, se bem que os passos que dei tenham sido os mais dificultosos da minha vida.
Não tinha vontade de ir para casa, nem de ver Cláudia, nem mesmo a ti, meu filho. Passei o tempo andando em volta dos jardins do Palatino. Encostei-me por um momento a um velho e maltratado pinheiro, que 'inacreditavelmente ainda estava vivo. Olhei para o leste e o oeste, o norte e o sul. Mesmo que isso tudo fosse meu um dia, pensei, eu trocaria a terra inteira por um único beijo de Antonia e todas as pérolas da índia pela alvura de seu corpo, pois o amor cego maravilhosamente um homem até esse ponto.
Na realidade, Antonia era mais velha do que eu e já vivera seus melhores anos. Seu rosto magro carregava rugas de experiência e sofrimento e ela podia ter sido um pouquinho mais cheia aqui e ali. Mas para mim essa delgadeza apenas lhe ressaltava o fascínio. O tremor de suas narinas e de sua pele era a coisa mais bela que eu já vira.
Em êxtase, alonguei o olhar pelo fórum a meus pés, por seus velhos edifícios, pela nova Roma que surgia das cinzas e dos escombros, pelas dependências do Palácio Dourado de Nero que fulgurava sob os raios do sol nascente para além do Esquilino. Eu não estava pensando em terrenos e negócios, mas ocorreu-me que minha velha casa no Aventino se tornara acanhada demais e que, para o teu bem, cumpria-me adquirir uma nova e mais digna, o mais perto possível do Palácio Dourado.
Voltei-me e desci do Palatino, rumando em direção ao Palácio Dourado a fim de pedir para ser recebido por Nero. Se tinha de denunciar Antônia, então devia correr para que outro não o fizesse antes de mim. Ao pensar na insânia da vida, desatei a rir, de modo que caminhava meio risonho e meio choroso, como um homem em êxtase.
Mundus absurdus, o mundo é absurdo, repeti para mim mesmo em voz alta, como se. viesse de descobrir uma verdade nova e surpreendente. Mas em minha situação parecia a maior sabedoria embora mais calmo depois eu pensasse melhor nisso.
Minha mente acalmou-se um pouco, quando cumprimentei as pessoas que esperavam no salão de recepções, pois me pareceu ver cabeças de animais em todas elas. Era uma visão tão extraordinária que tive de esfregar os olhos com a mão.
No coruscante salão de prata e marfim, cujo piso era ornamentado com um imenso mosaico representando um banquete dos deuses, havia muita gente pacientemente esperando até meio-dia para ver Nero. Todo o mundo animal estava presente, desde um camelo e um ouriço-cacheiro até touros e porcos. Tigelino assemelhava-se tão obviamente a um tigre esguio que bati com a mão na boca quando o saudei para não estourar na gargalhada.
Essa estranha ilusão, provavelmente causada pela falta de sono, pelo amor e por minha tensão interior, passou quando Nero me permitiu entrar em seu quarto de dormir antes dos outros, depois que eu lhe mandara dizer que minha informação era importantíssima. Nero tinha Acte como companheira de cama. Isso mostrava que ele se cansara dos seus vícios e desejava tornar aos hábitos naturais, o que acontecia de vez em quando.
Não vi Nero como um animal. Na realidade, ele me deu a impressão de estar sofrendo, um homem a quem a suspeita levara ao desespero, ou talvez um menino mimado e supernutrido que não podia entender por que os outros o tinham na conta de mau, quando ele próprio não desejava mal a ninguém, e era também um grande cantor, talvez o maior de sua época, como acreditava.
De qualquer modo, quando cheguei, Nero estava fazendo os exercícios de canto que lhe tomavam parte da manhã. Sua voz ressoava por todo o Palácio Dourado. Nos intervalos, ele gargarejava. Nero não se atrevia sequer a comer frutas porque um médico havia dito que isso não era bom para sua voz. Acho que uma maçã ou algumas uvas são boas com o costumeiro pão de mel matinal e também ajudam a digestão, o que é importante para quem vive à larga depois de certa idade.
Quando toquei no nome de Antônia, de voz trêmula e gaguejando, Nero engasgou-se com seu gargarejo de sal e tossiu como se estivesse prestes a asfixiar-se. Acte teve de bater-lhe nas costas com o que ele se enfureceu e correu-a do quarto.
— Que tens a dizer de Antônia, delator infame? — perguntou Nero, depois que Acte saiu e ele pôde falar de novo.
Confessei que até então eu lhe ocultara que Antônia estivera envolvida nas maquinações de Pisão. Silenciara por respeito ao pai dela, o Imperador Cláudio, que outrora tivera a bondade de me dar o nome Lauso, quando recebi a toga viril. Mas minha consciência não me deixava em paz, quando se tratava da segurança de Nero.
Pus-me de joelhos e contei-lhe que Antônia me mandara chamar muitas vezes à noite e, com promessas de recompensas e altos cargos, tentara persuadir-me a aderir à conjuração. Acreditava ela que, como amigo íntimo de Nero, eu tinha ótimas oportunidades de assassiná-lo com veneno ou uma adaga.
Para acrescentar sal a suas feridas, disse-lhe também que Antônia prometera casar com Pisão, depois do golpe de Estado. Este boato absurdo fustigava-lhe a vaidade mais do que qualquer outra .coisa, pois Antônia repelira Nero da maneira mais resoluta.
Mas Nero ainda duvidou, não acreditando em mim. Parecia-lhe incompreensível que uma mulher como Antônia pudesse ter depositado confiança num indivíduo como eu, inteiramente insignificante a seus olhos.
Determinou, então, que me prendessem e pusessem sob a guarda do centurião de serviço no Palácio, num dos salões inacabados, onde um célebre artesão estava pintando um quadro magnífico do duelo entre Aquiles e Heitor nos muros de Tróia.
Nero era um Juliano e desejava lembrar a seus convidados que descendia de um parentesco incorreto entre o troiano Enéias e Vénus. Assim nunca cumpria seus deveres religiosos no templo de Vulcano, por exemplo, mas sempre se referia a êle desdenhosamente. O influente grêmio dos ferreiros não gostava nada disto.
O cheiro da tinta irritava-me, tanto quanto o convencimento do artista. Êle não me permitia falar com meu guarda, nem mesmo em voz baixa, com receio de ser perturbado em seu importante trabalho.
Senti-me ofendido porque Nero não me pusera sob a vigilância de um tribuno, de modo que tive de arranjar-me com a companhia de um centurião, embora êle fosse um cavaleiro romano.
Para matar o tempo e atenuar minha tensão interior, podíamos ter conversado de cavalos, não fosse a proibição do presunçoso artífice.
Não ousei insultá-lo, já que êle era muito prestigiado por Nero. Nero tratava-o com respeito e concedera-lhe a cidadania. Assim, o nosso homem pintava envergando uma toga, por mais absurdo que isso pareça. Nero chegara até a dizer que gostaria de promovê-lo a cavaleiro, mas não dera ainda esse passo. Um negro domador de feras era uma coisa, mas um artesão que pintava quadros profissionalmente — não, é demais. Até mesmo Nero sabia disso.
Tive de esperar até à tarde, mas Nero mandou-me comida de sua mesa, de modo que não me sentia assim tão angustiado. O centurião e eu jogamos dados em silêncio e tomamos vinho, embora não o suficiente para embriagá-lo, uma vez que êle estava de serviço. Aproveitei a oportunidade para mandar dizer a Cláudia que fora preso como suspeito.
Embora tua mãe soubesse muito bem que eu tinha de assegurar o teu futuro, em sua visão feminina das coisas, não gostava do papel politicamente necessário de delator. Resolvi então deixá-la um pouco preocupada com minha segurança, se bem que eu não estivesse tão apreensivo, como dei a entender no recado que lhe mandei. Mas eu conhecia os caprichos de Nero e não confiava em seus conselheiros, nem mesmo em Tigelino, embora por várias razões eu fosse credor de sua gratidão.
Eu era tentadoramente rico, ainda que tivesse feito o possível ara ocultar o verdadeiro vulto da minha fortuna. Lembrei-me, em desassossego, da morte do Cônsul Vestino, que nem sequer entrara na conspiração. Felizmente, eu sabia que Estatília Messalina estava do meu lado, por esse motivo mesmo.
É claro que ainda não se realizara o casamento dela com Nero, pois as leis estabelecem um período de espera de nove meses, mas Estatília preparava assim mesmo uma boda esplêndida e Nero já provara dos seus encantos enquanto Vestino vivia. Presumivelmente Nero voltara-sc para Acte enquanto Estatília fazia sacrifícios à Deusa Lua para tornar-se uma mulher melhor. Eu sabia que Acte tinha simpatias pela doutrina cristã e tentava revigorar as boas qualidades de Nero, que ele as possuía indubitavelmente, embora a tarefa estivesse provavelmente acima das forças de qualquer mulher.
Estatília fazia o contrário. Foi a primeira mulher em Roma a adotar a moda originalmente germana de usar o peito esquerdo nu. Podia andar assim, já que se orgulhava de seus seios bem mo delados. As mulheres que tinham sido menos bem aquinhoadas pela natureza sentiam-se ofendidas por esta nova moda e consideravam-na indecente, como se houvesse algum mal em mostrar um lindo peito. Até mesmo as sacerdotisas nos sacrifícios públicos e as próprias Vestais aparecem em certas ocasiões com o busto à mostra, de sorte que o hábito, longe de ser indecente, é consagrado por mil anos de tradição.
À noite, Tigelino reunira provas suficientes do papel de Antônia na conspiração, após ouvir os que ainda estavam vivos no Tullianum. Dois covardes delatores haviam se apressado também, visando obter uma parte da recompensa. Sem pestanejar, juraram que Antônia prometera realmente casar com Pisão, logo que ele se livrasse de sua mulher e que haviam até trocado presentes de noivado. Na busca efetuada na casa de Antônia, foi encontrado um colar de rubis hindus, comprado secretamente por Pisão a um ourives sírio. Como foi parar na casa de Antônia não sei, nem quero saber.
Todas essas provas convenceram Nero, que simulou ter ficado em desespero, se bem que, como era natural, se sentisse intimamente feliz em ter uma razão legal para matar Antônia. Como prova de boa vontade, convidou me para visitar a casa dos bichos em seu novo jardim, onde Epafrodito preparara um espetáculo especial para diverti lo. Fiquei surpreendido ao ver moças e rapazes nus atados a postes nas proximidades das jaulas dos leões. Epafrodito estava aparelhado com um ferro em brasa de domador e trazia uma espada à ilharga, mas fez sinal para indicar que eu não precisava preocupar-me.
Para falar verdade, assustei-me ao ouvir um rugido inesperado e ver um leão investir para os postes, agitando a cauda. A fera ergueu-se nas patas traseiras, estendeu as garras para as vítimas nuas e farejou-lhes os órgãos sexuais de maneira repugnante. Para meu espanto, os jovens nada sofreram, embora se contorcessem aterrorizados. Quando o leão acalmou se um pouco, Epafrodito deu alguns passos para a frente e enfiou-lhe a espada na barriga, de modo que o sangue jorrou e o animal tombou, batendo as patas no ar e morrendo tão crivelmente quanto se podia desejar.
Depois que os rapazes e moças foram soltos e retiraram-se, ainda trêmulos de susto, Nero saiu de dentro do leão e perguntou orgulhoso se lograra convencer-me com sua encenação, a despeito de minha experiência com animais selvagens. Evidentemente afiancei-lhe que havia acreditado no leão.
Nero mostrou-me as molas de aço e o equipamento técnico do traje de leão, bem como a bolsa de sangue que Epafrodito perfurara com a espada. Desde então não me canso de pensar nessa brincadeira absurda, que parecia dar a Nero imensa satisfação, mas da qual ele estava, de certo modo, envergonhado e à qual só alguns amigos podiam assistir.
Depois de me dar essa prova de confiança, encarou-me astuto, com fingida placidez.
— Há prova da culpa de Antônia — disse ele — e sou forçado a acreditar, por mais que deplore a sua sorte. Afinal, ela é minha meia-irmã. Foste tu que me abriste os olhos. Assim, terás a honra de ir abrir-lhe as veias. Se permitisse que ela mesma o fizesse voluntariamente, então eu não estaria transformando isso num assunto público. Minha própria reputação está em jogo também. Darei a ela um funeral com todas as honras imperiais e colocarei sua urna no mausoléu do divino Augusto. Direi ao Senado e ao povo que ela se suicidou, em meio a uma grande perturbação mental, a fim de escapar a uma enfermidade fatídica. Sempre se pode encontrar um motivo, contanto que ela se comporte e não dê escândalos.
Quedei-me tão aturdido que não pude falar, pois Nero se antecipara a mim. Tinha pensado em pedir-lhe o favor de deixar que eu mesmo levasse a mensagem a Antônia, a fim de poder passar os últimos momentos com ela e segurar-lhe a mão enquanto o sangue fosse saindo de seu lindo corpo. Isto me ajudara a suportar a tensão daquele longo dia.
Nero interpretou mal o meu silêncio. Riu, deu-me uma palmadinha nas costas e disse desdenhoso:
_ Compreendo que relutes em aparecer como delator, aos olhos de Antônia. Alguma coisa deve ter havido entre vós nesses encontros secretos. Conheço Antônia.
Mas não acreditei seriamente que êle imaginasse que Antônia se tinha rebaixado a gostar de um homem como eu, quando tinha repelido o próprio Nero.
Enviando-me a Antônia, Nero pensou que me humilhava, pois no íntimo desprezava todos os delatores. Mas há diferenças entre delatores, como creio ter mostrado em minha história. Meus motivos eram mais nobres do que egoístas. Pensava em ti, meu filho, e através de ti no futuro da família Juliana. Preservar minha vida era menos importante para mim. Nero, porém, proporcionava-me a maior alegria que eu podia desejar no momento em que julgava estar me humilhando.
Isto eu li no rosto radiante de Antônia, quando uma vez mais ela me viu, depois de acreditar que nos tínhamos separado para sempre. Creio que ninguém jamais recebeu uma sentença de morte de braços tão abertos, olhos tão brilhantes e rosto sorridente. Ela revelou sua alegria de modo tão expansivo, que eu imediatamente disse ao tribuno e seus soldados que fossem embora. Bastaria que vigiassem a casa do lado de fora.
Eu sabia que Nero aguardava impaciente a notícia da morte de Antônia. Não era fácil para êle também. Mas presumi que êle compreendia que custaria um pouco persuadir Antônia a suicidar-se sem espalhafato. Naturalmente não precisamos dizer uma só palavra, mas Nero não podia saber disso.
Não quis gastar tempo precioso com perguntas sobre o colai de Pisão, embora ardesse em ciúmes. Mergulhamos uma vez mais em nosso último abraço, embora talvez, exausto pela tensão e falta de sono, eu não me tenha mostrado o mais fogoso dos amantes. Contudo, desfalecemos ao mesmo tempo nos braços um do outro, tão juntos como podem estar duas pessoas.
Enquanto isso, sua escrava preparou um banho quente no tanque porfírico. Nua, ela entrou no banheiro antes de mim, e pediu-me com lágrimas nos olhos que fizesse tudo com a maior rapidez possível. Com uma faca afiada, abri a veia na dobra do cotovelo, tomando todo o cuidado para não causar muita dor. Imersa na água quente, ela tentou não fazer caso do sofrimento, para não me inquietar, mas não pôde reprimir um ligeiro gemido.
Quando o sangue começou a afluir à superfície e a avermelhar a água balsaminada, Antônia pediu que lhe perdoasse a fraqueza, explicando que, em virtude de sua vida opulenta e resguardada, nunca se habituara ao menor desprazer. Costumava dar alfinetadas no seio da escrava que lhe penteava os cabelos louros quando a mulher os repuxava.
Enquanto segurava Antônia, debruçado sobre a banheira, um braço em volta de seu pescoço, nossas bocas coladas, sua mão na minha, a vida me pareceu tão desprezível que pedi que me deixasse morrer também.
— Esse é o maior galanteio que já recebi de um homem — murmurou ela, numa voz sumida, beijando-me o ouvido. — Mas tens de viver por causa de teu filho. Não te esqueças de todos os conselhos que te dei sobre o futuro dele. E lembra-te também de pôr uma de tuas velhas moedas etruscas de ouro na minha boca, antes que me amarrem o queixo e me ponham na pira. Este será o último e o mais querido presente que me darás, embora eu tenha de entregá-lo a Caronte, como pagamento. Êle saberá, então, tratar-me de acordo com a minha posição. Não quero ir num barco apinhado de gente.
Um momento depois seus lábios se separaram dos meus e sua mão se soltou da minha. Mas continuei a agarrar-lhe os dedos magros e a beijar seu rosto amado até o último instante.
Quando vi que estava morta, levei-a de volta para o leito e rapidamente lavei as manchas de sangue do meu corpo. Notei, com satisfação, que Antônia usava o mais novo sabão egípcio fabricado pelo meu liberto gaulês. É claro que não era exatamente egípcio, mas manufaturado em Roma, como todos os seus outros sabões e os populares pós dentifrícios. Mas o povo pagava mais pelos sabões que ostentavam nomes atraentes.
Depois de vestir-me, mandei entrar o centurião e os soldados para que testemunhassem que Antônia se suicidara voluntariamente e, em seguida, entreguei o cadáver à escrava, tendo antes posto na boca da morta uma das antigas moedas de ouro que meu liberto encontrara em alguns velhos túmulos de Cere. Recomendei ao mordomo que tivesse cuidado para que não roubassem a moeda, pois eu tinha de apresentar-me sem perda de tempo a Nero.
Na tensão da espera, Nero bebera grande quantidade de vinho, após a brincadeira do leão, e, surpreso, agradeceu-me a presteza com que eu cumprira minha desagradável missão. Mais uma vez assegurou-me que eu podia ficar com a terra que herdara na Bretanha. Êle próprio ia interceder por mim, na Cúria, a fim de que eu recebesse um tamborete de senador. Mas já te falei nisso.
Estou aliviado por ter relatado a parte mais triste de minha história.
Em comparação com tudo isso, pareceu uma ninharia o risco que corri de perder a vida, duas semanas depois, por causa de Antônia. Felizmente fui informado por amigos das investigações que Nero iniciara, com relação ao testamento de Antônia. Graça;
a isso, tive tempo de preparar Cláudia, se bem que meu plano lhe fosse totalmente desagradável.
Ainda não entendi por que Anfônia, uma mulher vivida e possuidora de tino político, achou que devia lembrar-se de ti em seu testamento, apesar de todas as advertências que lhe fiz exatamente sobre essa questão. Antes de sua morte não tornei a falar no testamento. Tínhamos outros assuntos e, para ser franco, eu esquecera completamente a promessa impensada que ela fizera, quando quis que tomasses o nome de Antoniano.
Agora eu tinha de livrar-me de Rúbria imediatamente, pois sendo ela a mais velha das Vestais, era a única testemunha legal de tuas verdadeiras origens. Não pretendo falar-te mais de meu encontro com ela. Tudo que direi é que, antes disso, tive de ir ver a velha Locusta na aprazível casinha de campo que Nero lhe dera. No jardim, ela e suas discípulas cultivavam muitas ervas medicinais. Com supersticioso cuidado, ela observava a posição das estrelas e as fases da lua, no plantio e colheita de suas sementes e raízes.
Para minha felicidade, a morte inesperada de Rúbria não causou nenhuma surpresa aos médicos. Seu rosto nem mesmo escureceu, a tal ponto Locusta aprimorou sua arte na velhice. Mas foi com prazer que Nero permitiu que ela experimentasse alguns medicamentos em certos criminosos que não mereciam melhor sorte.
Minha visita a Rúbria não suscitou nenhuma indagação, pois ela em geral recebia muita gente no átrio das Vestais. Pude, assim, guardar em meu esconderijo secreto o documento selado em que ela certificara a ascendência de Cláudia, registrara a confissão da finada Paulina e confirmara que Antônia havia reconhecido Cláudia, como sua verdadeira meia-irmã, dando-te o nome de Antoniano.
Vários sinais exteriores indicaram, desde cedo, que eu havia caído em desgraça, de modo que não me surpreendi quando Nero me mandou chamar. Na realidade, julgava-me bem preparado.
— Fala-me de teu casamento, Maniliano — disse Nero, mordendo os lábios, o queixo um pouco trêmulo — já que nada sei a respeito dele. Trata de dar-me uma explicação plausível do motivo pelo qual Antônia lembrou-se de teu filho em seu testamento e lhe deu seu próprio nome. Eu nem sequer sabia que tinhas um filho além do bastardo de Epafrodito.
Evitando encará-lo, empreguei toda a minha habilidade para tremer de medo, e devo dizer que não precisei esforçar-me muito para chegar a tal resultado. Nero imaginou que eu estivesse escondendo alguma coisa.
— Eu teria compreendido, se Antônia se tivesse contentado em deixar para o menino o anel de sinete de seu tio Sejano — continuou Nero. — Mas é incrível que lhe tenha legado algumas jóias da família juliana que ela herdara da mãe de Cláudio, a velha Antônia. No meio delas, entre outras coisas, figura uma insígnia para ser usada no ombro, que o divino Augusto ostentava em campanha e nas cerimônias sacrificatórias do Estado. Ainda mais extraordinário é que o teu casamento não consta em nenhum dos livros, eo teu filho não está no novo recenseamento, sem falar dos registros da Nobre Ordem dos Cavaleiros, embora o prazo regulamentar já se tenha esgotado há muito tempo. Há coisas bastante suspeitas nesse negócio.
Atirei-me a seus pés e bradei com simulado arrependimento.
—Minha consciência me atormenta, mas ando tão envergonhado que não me atrevo a confessar a nenhum dos meus amigos. Minha mulher Cláudia é judia.
Nero rompeu numa tão violenta gargalhada de alívio, que seu corpanzil se sacudiu todo e vieram-lhe lágrimas aos olhos. Ele não gostava de condenar gente à morte por mera suspeita, muito menos os seus verdadeiros amigos.
— Mas Minuto — disse êle recriminadoramente, quando pôde voltar a falar — ser judeu não é nenhuma vergonha. Sabes muito bem que muito sangue judeu se misturou nas melhores famílias, ao longo de centenas de anos. Por amor à minha caríssima Popéia, não posso considerar os judeus piores do que as outras pessoas. Chego mesmo a tolerá-los no serviço do Estado, dentro de limites razoáveis, é claro. Em meu governo, todos são iguais como seres humanos, sejam romanos, gregos, pretos ou brancos. Portanto, tolero os judeus também.
Ergui-me e assumi um ar convenientemente triste e embaraçado :
— Se isso fosse tudo, eu não hesitaria em apresentar minha mulher a ti e aos meus amigos, mas ela descende de escravos também. Seus pais eram pobres libertos da mãe de Cláudio, Antônia, tua avó em certo sentido. É por isso que ela se chama Cláudia. Vês então por que eu me envergonho dela. Talvez por isso, Antônia quis dar ao menino algumas jóias baratas, em memória da avó dela. O nome Antoniano foi idéia de minha mulher. Mas — continuei, trêmulo de excitação e raiva — aquele testamento, que me surpreendeu inteiramente, não passa de uma investida da ilimitada maldade de Antônia, para colocar-me sob suspeição. Ela sabia que eu havia denunciado Sevino, Pisão e outros, embora não imaginasse que, em razão da tua segurança e levado por minha consciência, eu teria de denunciá-la também. Na verdade, não sinto o mais leve remorso de ter agido assim.
Nero franziu a testa, pensativo, e vi que lhe renascera a desconfiança.
_ Acho melhor confessar, desde já, que tenho certo interesse pela fé judaica. Isso não é crime, ainda que não seja adequado a um homem de minha, posição. Essas coisas assentam mais nas mulheres. Mas minha mulher é insuportavelmente obstinada. Ela me força a freqüentar a sinagoga de Júlio. Outros romanos fazem a mesma coisa. Seus membros barbeiam-se, vestem-se como as outras pessoas e vão ao teatro.
Nero continuava a fitar-me sombrio:
— Tua explicação pode ser verídica, mas é lamentável que Antônia tenha preparado esse codicilo há mais de seis meses. Naquele instante ela não poderia ter nenhuma idéia de que tu irias ser um simples delator da conspiração de Pisão.
Percebi que tinha de confessar ainda mais. Estava preparado para isso, embora, naturalmente, tivesse tentado evitá-lo, a princípio, para não provocar as suspeitas de Nero com minha súbita franqueza. Ele sempre julgava que todo mundo estava escondendo dele alguma coisa.
Baixei a vista para o piso e rocei com os pés o mosaico que representava Marte e Vénus abraçados e enredados na rede de cobre de Vulcano, o que me pareceu apropriadíssimo à ocasião. Esfreguei as mãos e debati-me à procura de palavras.
Conta-me tudo — disse Nero, ríspido. — Senão, farei com que te despojem dessas botas novinhas em folha. O Senado gostaria disso, como sabes.
Não! — exclamei. — Confio na tua magnanimidade e sensibilidade! Guarda meu segredo só para ti, e por favor não o menciones à minha mulher, em nenhuma hipótese. Ela tem um ciúme doentio. É uma pessoa de certa idade e eu realmente não entendo como é que fui me meter com ela.
Nero logo pressentiu a aproximação de um assunto picante e lambeu os beiços:
Dizem que as judias têm qualidades especiais na cama — observou. — Naturalmente, também te pareceram úteis as relações judaicas de tua mulher. Não podes enganar-me. Nada prometo. Conta-me.
Ambiciosa como é — balbuciei — minha mulher meteu na cabeça que devíamos convidar Antônia quando fomos dar nome a nosso filho, e na presença de testemunhas eu o coloquei nos meus joelhos e o reconheci.
Como antes reconheceste Lauso — gracejou Nero. — Mas continua.
Não imaginei que Antônia viesse, já que se tratava do sobrinho de um dos libertos de sua avó. Mas naquela época ela não tinha muitos amigos se precisava distrair-se. Por uma questão de decência, trouxe consigo Rúbria, a Vestal, que, diga-se de passagem, embriagou-se durante a noite. Só posso crer que Antônia ouvira alguma referência favorável a meu respeito e por curiosidade queria conhecer-me, embora talvez já estivesse procurando amigos e partidários para seus futuros objetivos. Depois de tomar um pouco de vinho, deu-me a entender que eu seria bem-vindo em sua casa, no Palatino, mas de preferência sem minha mulher.
Nero enrubesceu e inclinou-se para a frente a fim de ouvir melhor:
Sou bastante vaidoso para ter-me sentido honrado com esse convite, se bem que ache que foi devido ao vinho ou a alguma outra causa. Mas fui lá uma noite e ela me recebeu com inesperada afabilidade. Não, acho melhor parar aqui.
Não sejas tímido — disse Nero. — Estou a par das tuas visitas a ela. Dizem que se prolongavam até o amanhecer. Na realidade, cheguei a pensar que o menino era filho de Antônia. Mas consta que ele já está com sete meses. E toda gente sabe que Antônia era descarnada como uma vaca velha.
Corando de fúria, confessei que Antônia me dispensara considerável hospitalidade na cama, também, e se apegara a mim, de tal modo, que desejava ver-me sempre mais, embora, por causa de minha mulher, eu temesse que tal ligação viesse a ser descoberta. Mas possivelmente eu satisfizera tão bem as necessidades de Antônia, que ela se sentiu obrigada a contemplar meu filho em seu testamento, já que a decência a impedia de deixar alguma coisa para mim.
Nero riu e deu uma palmada nos joelhos:
— A velha meretriz! Quer dizer, então, que ela se rebaixou a ir para a cama contigo, não é fato? Mas não foste o único. Podes crer que ela tentou uma vez comigo, quando me deu na telha fazer-lhe umas carícias. Eu estava bêbado, é claro, mas me recordo de seu nariz pontudo e de seus lábios finos enquanto ela se pendurava no meu pescoço e procurava beijar-me. Depois disso, espalhou por aí a história absurda de que eu lhe tinha feito uma proposta. O colar de Pisão mostra como era depravada. Provavelmente dormia com os escravos também, quando não arranjava coisa melhor. Portanto, tu também podias servir.
Não pude deixar de fechar os punhos, mas consegui manter-me em silêncio.
— Estatília Messalina está muito contente com o colar de Pisão — disse Nero. — Mandou até pintar o bico do peito da mesma cor daqueles rubis sangüíneos.
Nero mostrou-se tão satisfeito com sua própria sagacidade, que tive a impressão de que o pior perigo já tinha passado. Tornou se jovial e despreocupado, mas era de esperar que pretendesse punir os meus segredos por algum meio que me fizesse parecer ridículo aos olhos de toda a cidade. Pensou um instante:
_ Naturalmente, eu gostaria de conhecer tua mulher e cer- tificar-me de que é judia. Também gostaria de interrogar as tes- temunhas que estiveram presentes, quando puseste nome em teu filho. São judias também, suponho. Colherei informações na sina- goga de Júlio César, para saber da tua assiduidade. Enquanto isso, tu me farás o obséquio de te submeteres à circuncisão, só para simplificar as Coisas. Isso agradará à tua mulher. Acho que é justo e razoável que sejas punido na parte do corpo com que violaste minha meia-irmã. Agradece ao meu bom humor por te mandar embora com uma pena tão leve.
Aterrado, degradei-me ao ponto de suplicar que não me insultasse tão terrivelmente. Mas eu mesmo enfiara a cabeça no laço. Nero ficou ainda mais encantado quando notou o meu horror e pôs a mão no meu ombro, à guisa de consolação.
— Será uma boa coisa ter no Senado alguém que seja circunciso, para zelar pelos interesses dos judeus, pois doravante eles não precisarão mandar outros atrás de mim. Vai e faze o que te digo. Depois, manda tua mulher aqui, com as testemunhas, e vem tu mesmo, se puderes andar. Quero ver se obedeceste à minha ordem.
Tive de ir para casa e dizer a Cláudia e às duas testemunhas, que esperavam receosas e temendo pelo meu regresso, que devíamos encontrar-nos no salão de recepção do Palácio Dourado, dentro de pouco tempo. Em seguida, fui ao acampamento dos Pretorianos e falei com o cirurgião de campanha, que me informou prolixamente que podia realizar a pequena operação sem a menor dificuldade. Durante sua estada na África, operara muitos legionários e centuriões, que se tinham cansado das eternas inflamações causadas pela areia. Ainda tinha o tubo que usava lá.
A bem de minha reputação, não quis que os judeus me tratassem. Nisto cometi um grande equívoco, pois eles teriam sido incomparavelmente mais habilidosos. Corajosamente suportei o tubo imundo e a faca cega do cirurgião de campanha, mas a ferida não sarou direito e logo inflamou-se, de modo que, por muito tempo, perdi até o desejo de olhar para uma mulher.
Realmente não sou mais o mesmo desde então, muito embora algumas mulheres se mostrem bastante curiosas a respeito de meu membro marcado com cicatriz. Sou apenas humano, mas creio que o prazer delas é maior do que o meu. Isto tem a vantagem de ajudar-me a levar uma vida razoavelmente virtuosa.
Não me envergonho de falar disso, porquanto todos sabem da pilhéria cruel de Nero à minha custa e, por causa da tal operação, ganhei uma alcunha que não ponho aqui por decoro.
Mas tua mãe não fazia idéia do que se podia esperar de Nero. por mais que eu tivesse tentado prepará-la para o papel que ia desempenhar. Quando voltei do acampamento dos Pretorianos, claudicando e mortalmente branco, Cláudia nem me perguntou o que havia comigo, mas simplesmente pensou que eu estivesse com medo da ira de Nero. Os dois judeus cristãos também estavam apavorados, evidentemente, por mais que eu procurasse encorajá-los, lembrando-lhes os presentes que lhes tinha prometido.
Assim que viu Cláudia, Nero foi logo gritando:
— Uma megera judia! Reconheço pelas sobrancelhas e pelos lábios grossos, sem falar no nariz. Também tem cabelos brancos. Os judeus criam cães cedo, por causa de uma maldição egípcia, segundo me informaram. É espantoso que ela tenha tido um filho nessa idade. Mas os judeus procriam muito.
Cláudia tremeu de raiva, mas continuou calada para o teu bem. Então, os dois judeus disseram, prestando os sagrados juramentos do templo de Jerusalém, que conheciam as origens de Cláudia e que ela era judia, nascida de pais judeus, mas descendentes de uma família judaica especialmente respeitada, cujos antepassados tinham vindo para Roma como escravos no tempo de Pompeu. Antônia honrara com sua presença a cerimônia em que demos um nome a meu filho e permitira que êle se chamasse Antoniano, em memória de sua avó.
Este interrogatório dissipou as suspeitas de Nero. Os dois judeus cristãos haviam de fato cometido perjúrio, mas eu os escolhera porque pertenciam a certa seita cristã que, por alguma razão, acreditava que Jesus de Nazaré proibira todos os tipos de juramentos. Mantinham-se fiéis à sua crença e diziam que pecavam quando juravam, de forma que pouco importava que o juramento fosse verdadeiro ou falso. Sacrificavam-se, ao prestarem esse juramento, em consideração a meu filho, na esperança de que Jesus de Nazaré os perdoaria, já que agiam com boas intenções.
Mas Nero não seria Nero se não me fitasse rapidamente com um lampejo de chiste no olhar e não dissesse:
— Minha querida Domina Cláudia, ou Sereníssima, diria eu, já que o teu marido, apesar de todas as abominações, adquiriu suas botas púrpura. Muito bem, Domina Cláudia, suponho que sabes que o teu marido aproveitou aquela oportunidade para estabelecer relações secretas com minha desafortunada meia-irmã, Antônia. Tenho testemunhas do fato de que, noite após noite, os dois fornicavam num quiosque do jardim dela. Fui obrigado a vigiá-la, para que não provocasse escândalo com sua depravação.
Cláudia empalideceu. Deve ter notado, pela minha expressão, que Nero dizia a verdade. Ela mesma me perseguira com sua tagarelice, até o dia em que pude despistá-la com a explicação de que andava metido na trama de Pisão, cujas reuniões se realizavam à noite.
Cláudia ergueu a mão e esbofeteou-me com tanta força que o som ecoou. Humildemente apresentei a outra face, como Jesus de Nazaré diz que se deve fazer, e Cláudia ergueu a outra mão e rebentou-me o tímpano daquele lado. Desde então fiquei um pouco surdo. Depois ela rompeu numa torrente de insultos, que mal pude acreditar que viessem de sua boca. Eu diria que, mantendo-me calado, estive mais perto da doutrina de Cristo do que ela.
Cláudia proferiu tal chuvarada de imprecações contra mim e a finada Antônia, que Nero teve de intervir, lembrando lhe que dos mortos só se devia falar bem. Em atenção à sua própria salvação, Cláudia não devia esquecer que Antônia era meia-irmã de Nero e que, portanto, êle não podia permitir que outros falassem mal dela.
Para acalmar Cláudia e atrair a sua compaixão, puxei o manto para cima, levantei a túnica e mostrei-lhe a atadura ensangüentada em volta de meu membro, dizendo-lhe que já fora bastante castigado por minhas faltas. Nero forçou-me a tirar a atadura, apesar da dor que isso causava, para certificar-se de que eu não tentara ludibriá-lo, enrolando um pano ensangüentado em volta de um membro ileso.
— Pois não é que, em tua estupidez — disse êle, depois de olhar a ferida — mandaste mesmo fazer a circuncisão! Eu só estava brincando e logo que saíste me arrependi que te tinha dito. Mas tenho de reconhecer que cumpres fielmente as minhas ordens, Minuto.
Cláudia não teve pena de mim. Na verdade, bateu palmas e elogiou Nero por ter encontrado um castigo com que ela nunca tinha sonhado. Para mim era castigo bastante estar casado com Cláudia. Acho que ela nunca me perdoou o tê-la traído com Antônia. Apoquentou-me anos e anos, por causa disso, quando uma mulher razoável teria esquecido um deslize tão insignificante do marido.
Nero considerou o assunto encerrado e depois de mandar embora Cláudia e os dois judeus, passou a falar de outras coisas, sem a menor comiseração por mim.
— Como sabes, o Senado deliberou autorizar ofertas de ação de graças pelo desmascaramento da conspiração — começou êle.
Eu mesmo resolvi erigir a Ceres um templo que seja digno dela. O outro foi destruído pelos malditos incendiários cristãos e não tenho tido tempo de planejar um novo, já que ando assoberbado com a reconstrução de Roma. Mas desde tempos imemoriais o centro do culto de Ceres tem sido no Aventino. Não pude encontrar lá um local bastante amplo, de modo que para restaurar nossa mútua confiança e selar nossa amizade, estou certo de que não te negarás a presentear tua casa e teu jardim, no Aventino, a Ceres. É o local melhor possível. Não te surpreendas se quando lá chegares os escravos já tiverem começado a derrubar a casa. O assunto é urgente e eu estava certo da tua aquiescência.
Assim Nero obrigou-me a dar-lhe a velha casa da família de Maniliano, sem a menor compensação. Não pude externar nenhuma alegria especial por essa mercê, já que sabia que êle tomaria a honra toda sobre si e nem sequer mencionaria meu nome, quando chegasse o instante de consagrar o templo. Amargurado, perguntei-lhe onde achava que eu ia colocar minha cama e o resto da minha mobília num momento em que havia escassez de moradias.
— Evidentemente — disse Nero — não tinha pensado nisso. Mas a casa de teu pai, ou melhor, de Túlia, ainda está vazia. Não pude vendê-la porque é mal-assombrada.
Respondi que não ia despender somas imensas numa casa mal-assombrada que não me agradava. Também expliquei que estava muito estragada e que, em primeiro lugar, fora mal planejada. Agora então, fechada durante tanto tempo, tinha um jardim silvestre, cuja manutenção sairia muito dispendiosa, em vista das novas taxas de água.
Nero escutou, deliciado com minha descrição:
— Como prova de minha amizade, eu tinha pensado em vender a casa a ti por um preço módico. Mas desagrada-me ver que insolente e indignamente começas a pechinchar, antes mesmo que eu te proponha um preço. Já não me arrependo de ter mandado que te submetesses à circuncisão. Para mostrar-te que Nero é Nero, eu, por estas palavras, te presenteio a casa de teu pai. Recuso rebaixar-me a regatear contigo.
é claro que agradeci a Nero de todo o coração, embora êle não me estivesse dando a casa por nada, mas em troca da minha no Aventino. Basta que eu tenha ganho na troca.
Pensei, satisfeito, que a casa de Túlia quase que valia a circuncisão, e este pensamento ainda foi um lenitivo para mim, quando fui para a cama, com febre. Eu mesmo tinha feito o possível para impedir que a casa fosse vendida. Espalhara boatos a respeito de fantasmas e mandara dois escravos chocalhar as tampas das panelas e bater nos móveis, à noite, na casa abandonada. Nós, romanos, somos supersticiosos, quando se trata dos espectros e dos mortos.
Assim, posso agora, de Consciência tranqüila, contar te a vitoriosa viagem de Nero pela Grécia, a morte lamet;tável de Cefas e Paulo e a minha participação no cerco de Jerusalém.
Nero
Asupressão da conspirata de Pisão durou quase dois anos e estendeu-se aos ricaços das províncias e Estados aliados, que evidentemente tinham sabido do que estava acontecendo e nada tinham dito. Posto revelasse tolerância, ao substituir, sempre que possível, a pena capital pelo degredo, foi graças à conjuração que Nero conseguiu levar um pouco de ordem às finanças públicas, malgrado suas enormes despesas.
De fato, os preparativos da guerra contra a Partia representaram a maior parcela da renda do Estado. Nero era bem moderado em seu estilo de vida, em comparação com alguns dos abastados e novos-ricos de Roma. Mercê da influência do falecido Pe-trônio, Nero procurou substituir a vulgaridade dos arrivistas de Roma pelo bom gosto, embora, como era natural, cometesse erros freqüentes, agora que já não podia consultar Petrônio.
Diga-se em louvor de Nero que êle, por exemplo, não onerou o tesouro do Estado de mais do que os custos do transporte quando, no lugar das obras de arte que o incêndio havia destruído, colocou as novas estátuas e objetos artísticos. Enviou à Acaia e Ásia uma comissão encarregada de vasculhar todas as cidades de todos os tamanhos e mandar para o Palácio Dourado as melhores esculturas que encontrasse.
Isto gerou considerável descontentamento entre os gregos, e em Pérgamo houve mesmo uma insurreição armada. Mas a comissão cumpriu tão bem a sua incumbência que até mesmo em Atenas descobriu inestimáveis estátuas e quadros, que datavam da época em que a Grécia fora uma grande potência, apesar de Atenas ter sido, sem dúvida, totalmente saqueada, por ocasião da conquista romana.
Também em Corinto, cuja prosperidade era recente e onde possivelmente nem uma pedra fora deixada intacta, os homens da comissão encontraram tesouros, pois os ricos negociantes e armadores de navios haviam feito um bom trabalho formando suas coleções através dos anos. E nas ilhas, aonde até até então Roma nao estendera as buscas de obras de arte, acharam-se velhas estátuas merecedoras do lugar de honra que passaram a ocupar nos suntuosos salões e galerias do Palácio Dourado.
O palácio era tão imenso que continuou espaçoso mesmo com a comissão enviando um navio após outro carregado de objetos. As esculturas que julgava menos valiosas, Nero dava aos amigos, pois só o melhor da arte antiga conservava para si. Por esse meio adquiri minha Afrodite de mármore, que é obra de Fídias e cujas cores estão maravilhosamente conservadas. Ainda dou enorme valor a ela, apesar das tuas caretas. Tenta calcular uma vez o preço que ela alcançaria se eu tivesse de vendê-la num leilão público para custear a tua coudelaria.
Em virtude da aproximação da guerra com a Partia e para apaziguar sua consciência, Nero revogou as reformas monetárias e mandou cunhar moedas de peso integral no templo de Juno Moneta enquanto o ouro e a prata afluíam para o tesouro do Estado.
As legiões que, em segredo, começavam a deslocar-se para o Oriente, a fim de reforçar as tropas de Córbulo, estavam descontentes com o soldo reduzido, e conquanto Nero pudesse ter elevado a paga dos soldados em um quinto, toda gente sabia que isso acarretaria gastos imensos.
Assim, tornava-se mais barato, ao fim de tudo, restaurar o valor do dinheiro.
Nero concedeu às legiões certas ajudas adicionais, como concedera anteriormente cereal gratuito aos Pretorianos.
Na realidade era uma questão de malabarismo, uma arte que muito homem prudente tentou em vão. Nada direi contra os libertos do tesouro do Estado, Cuja tarefa é enfadonha e que conceberam o plano. Mas pessoalmente achei escandaloso que as moedas de prata de Nero, contendo cobre, tivessem de ser permutadas à razão de dez por oito, de modo que uma pessoa recebia apenas quatro moedas novas por cinco velhas.
Eu não tinha do que me queixar, mas entre os pobres este novo édito provocou tanta amargura como as reformas iniciais de Nero. Portanto, não lhe melhorou a popularidade, embora êle mesmo achasse que sim.
Nero nunca entendeu de questões monetárias, mas seguia simplesmente o alvitre de seus sagazes conselheiros. As legiões, porém, acalmaram-se quando o soldo voltou a ser-lhes pago em prata sólida.
Nero só sabia abanar a cabeça, com respeito à situação dos negócios no tesouro do Estado, se bem que julgasse que tinha feito tudo para melhorá-la, sacrificando o tempo que podia dedicar a seus interesses artísticos ao empregá-lo no exame das listas dos impostos provinciais e na seleção dos indivíduos abastados, cujos bens podiam ser confiscados em castigo de terem participado da conspirata de Pisão.
Em geral havia prova. Havia sempre alguma expressão imprópria de prazer, alguém que esquecera o aniversário de Nero, ou, o pior dos crimes, alguém que falara depreciativamente dos seus dotes de cantor. Nenhum rico tem a consciência totalmente limpa. Era até mesmo prudente manter-se acordado e reprimir os bocejos quando Nero representava no teatro. Ele não tolerava que ninguém saísse ruidosamente no meio de uma representação, mesmo que a pessoa estivesse doente.
Para financiar a guerra com a Partia, Nero teve de elevar extraordinariamente os impostos sobre os artigos de luxo, e por conseqüência, esses artigos passaram a ser vendidos clandestinamente.
Assim, era necessário promover inspeções de surpresa nas lojas da cidade, e os comerciantes aborreciam-se com o confisco das mercadorias e as multas.
Flávio Sabino, meu ex-sogro, tinha vergonha dessas medidas, que êle como Prefeito da Cidade tinha de fazer cumprir, e receava perder completamente seu bom conceito. Às vezes mandava prevenir os comerciantes, pelo menos os mais ricos, antes que os inspetores os surpreendessem. Tenho certeza disso. E êle não tinha motivos para queixar-se de ser honesto, pois não tardou a melhorar sua situação financeira.
Nero foi auxiliado pela vaidade de Estatília Messalina. Ela acreditava que a cor violeta era a que melhor lhe assentava e nisto tinha razão. A fim de reter esta cor só para si e ninguém mais, fez com que Nero proibisse a venda de todos os corantes violetas.
Naturalmente, isto levou cada romana dotada de amor-próprio a vestir-se de violeta, ou pelo menos possuir alguma roupa dessa cor, embora, é claro, só no lar e na companhia de amigos de confiança.
Este comércio clandestino de violeta alcançou proporções inimagináveis e os negociantes lucravam tanto com êle, que não se incomodavam de ter suas mercadorias confiscadas de vez em quando, já que podiam pagar as multas.
Nero não tinha pessoalmente muito entusiasmo pela guerra com a Partia, por mais necessária que parecesse ser para o futuro de Roma a abertura de rotas comerciais terrestres e diretas para o Oriente.
Pensando em ti, acabei por aprovar o plano, embora as guerras me repugnem.
Os libertos de meu pai em Antioquia ganharam muito dinheiro com fornecimentos feitos em épocas de guerra e convenceram-me a apoiar os projetos de beligerância em meus discursos na comissão encarregada dos assuntos orientais.
A supressão dos partos será necessária um dia, de qualquer modo, se quiser preservar a segurança de Roma. Mas eu desejava somente que não ocorresse enquanto eu estivesse vivo, e realmente não ocorreu. O inevitável jazia ainda diante de nós.
Nero concordou quando lhe disseram que podia tranqüilamente entregar a campanha a Córbulo, mas celebrar o triunfo na qualidade de comandante supremo. Creio, porém, que o seduzia mais a idéia de dar um concerto em Ecbátana — de modo que com sua esplêndida voz obtivesse a devoção de seus novos súditos após os sofrimentos da guerra — do que a idéia de um triunfo.
Nenhum de seus conselheiros julgou necessário dizer-lhe que os partos não têm especial apreço pela música nem consideram o canto como passatempo digno de um Imperador. Apreciam mais a equitação e a arte de manejar o arco, o que descobriu amargamente Crasso em sua época.
Para se ver livre dele, teu antepassado Júlio César enviou-o a combater os partos e os partos mataram-no despejando ouro derretido por sua garganta abaixo, para que êle por uma vez ao menos se contentasse. Talvez valha a pena recordares esta história, meu filho. Se é preciso que alguém vá à Partia, não vás tu mesmo, mas manda outro.
Não pretendo enveredar pela história da Partia e dos Arsáci-das. É uma sucessão de fratricídios, golpes de Estado, esperteza oriental e, por via de regra, todas as espécies de coisas que nunca aconteceriam aqui em Roma. Nenhum Imperador romano jamais foi publicamente assassinado, salvo o teu antepassado Júlio César. E este foi responsável pela própria morte por não ter dado ouvidos aos bons conselhos, enquanto seus assassinos honestamente acreditavam que agiam para o bem da pátria. Caio Calígula foi um caso à parte. Também nunca se soube exatamente se Lívia envenenou Augusto ou se Calígula estrangulou Tibério. Até mesmo Agripina envenenou Cláudio sem provocar desnecessária publicidade. Qualquer que seja a nossa opinião acerca desses eventos, o fato é que foram conduzidos decorosamente, em família, por assim dizer.
Os Arsácidas, por outro lado, consideram-se os herdeiros legítimos do antigo reino persa e alardeiam os seus crimes, gabando-se da habilidade com que os cometeram, e sua dinastia governa há mais de trezentos anos. Não desejo arrolar suas complicadas intrigas territoriais. Sem dúvida têm bastante experiência. É suficiente mencionar que Vologeso logrou firmar seu poder e tornou-se um adversário politicamente astuto de Roma.
Para colocar seu irmão Tiridate numa situação embaraçosa, Vologeso deu-lhe o trono da Armênia, que durante as campanhas de Córbulo fora devastada três vezes e outras tantas reconquistada.
Foi naquela mesma guerra armênica que duas legiões sofreram uma derrota tão ignominiosa que, para manter a disciplina, Córbulo teve de executar depois, tirando a sorte, um homem em cada grupo de dez.
A restauração da disciplina e da vontade de combater nas débeis legiões sírias exigiu anos de trabalho, mas começava então a dar frutos.
Vologeso teve de tirar o maior proveito de uma trapalhada e reconhecer a Armênia como Estado aliado de Roma na esperança de manter seu irmão longe de Ecbátana. Na presença das legiões e da Cavalaria, Tiridate pôs seu diadema aos pés de Nero. Com esta finalidade colocara-se uma estátua de Nero num tamborete de senador. Tiridate prometeu, por juramento, que viria pessoalmente a Roma, ratificar a aliança e receber o diadema de volta das mãos de Nero.
Mas nunca o vimos em Roma. Em resposta às perguntas, êle se valia de numerosas evasivas e, entre outras coisas, afirmava que, por motivos religiosos, não podia expor-se aos riscos de uma viagem marítima. Quando lhe pediram que viesse por terra, alegou pobreza. A reconstrução da Armênia estava, sem dúvida, consumindo lhe todos os recursos.
Num gesto principesco, Nero prometeu custear a viagem por terra para êle e sua comitiva, em território romano. Assim, Tiridate não veio. Segundo fontes autorizadas, êle estava estabelecendo relações desnecessariamente íntimas com os restantes nobres armênios, depois que os romanos e os partos haviam executado aqueles que caíram em suas mãos.
Na comissão do Senado para questões orientais, considerávamos suspeitas as evasivas de Tiridate. Sabíamos perfeitamente que os agentes secretos da Partia tinham feito o possível para propagar o descontentamento nos Estados orientais aliados a Roma e também nas províncias, visando pôr fim à guerra.
Mediante suborno, faziam com que as tribos germanas se deslocassem e assim impedissem os' movimentos das legiões para o Oriente, e até na Bretanha procuravam usar promessas generosas para arrastar à rebelião tribos hostis, de sorte que ainda tínhamos de conservar quatro legiões na Bretanha para manter a paz. Como emissários, Vologeso empregava mercadores judeus itinerantes, que conheciam muitas línguas e estavam habituados a se adaptar as novas circunstâncias.
Felizmente, recebi em boa hora a notícia dessas intrigas, enviada pelo velho Petro de Lugundanum. Eu me tinha convencido
de que devia dar o nome de Lugunda a uma cidade, em virtude da minha herança.
A Cidade foi bem escolhida e ocupa uma posição-chave no território iceno. Petro vive lá e goza na velhice de uma pensão merecidamente ganha com sua lealdade.
Assim, eu podia conservar minhas boas relações com os druidas e manter-me a par do que se passava nas tribos. Por sorte, os druidas não deram apoio à rebelião porque certos presságios os tinham convencido de que a ocupação romana de sua ilha não duraria. Não sou supersticioso quando se trata de meu patrimônio. Portanto deixei que êle se fosse valorizando tranqüilamente na Bretanha e continuei a fazer novos investimentos lá.
De qualquer modo, através de minhas ligações com os druidas ouvi falar das viagens suspeitas dos mercadores judeus na Bretanha.
Aconselhado por mim, o Procurador crucificou dois deles, e os próprios druidas imolaram dois outros, em cestas de vime, a seus deuses, porque os judeus, a despeito de sua missão secreta, pareciam demasiadamente presunçosos em questões de fé.
Tornou-se possível, então, transferir uma legião para o Oriente. Não encontrei motivo para deslocamentos mais amplos do que este.
Pouco a pouco, com muitas medidas de segurança, tinham-se reunido dez legiões no Oriente. Não vou enumerá-las, pois as tropas em marcha tiveram de trocar seus números e águias, para despistar os espiões partos. Apesar de tudo, estava desnecessariamente bem informado dos movimentos e posições de nossas tropas e estava até ao corrente da luta pelos pastios à margem do Eufrates, que havíamos pensado em apresentar ao Senado e ao povo de Roma, como razão formal para a guerra.
Numa sessão secreta da comissão tínhamos concedido a Córbulo, que retinha sua força física, a honra de atirar uma lança à outra banda do Eufrates, em território parto, como declaração de guerra. Córbulo afirmou, numa carta, que podia fazê-lo, e prometeu exercitar se diariamente para que a lança não caísse na água mas alcançasse a pastagem disputada.
Do ponto de vista militar, a viagem de Nero à Grécia, planejada havia muito tempo, proporcionava excelente anteparo a nossos projetos. Nem mesmo os partos poderiam duvidar do genuíno desejo de Nero de Conquistar coroas de flores apresentando-se como cantor nos antigos jogos gregos. Nessa expedição, êle tinha boas razões para levar como escolta uma das legiões pretorianas e deixar a outra guardando-lhe o trono.
Tigelino prometeu vigiar os inimigos de Nero na ausência deste, embora se queixassem amargamente de não ter a honra de acompanhar o Imperador. Naturalmente todos os que se julgavam importantes queriam ir com o Imperador para estarem presentes às suas vitórias nas competições e manterem-se ao alcance do seu olhar, mesmo aqueles que ainda não sabiam da aproximação da guerra e das possibilidades de distinção que ela oferecia. Se soubessem, talvez descobrissem alguma doença ou outro motivo verdadeiro para não irem.
Chegou a Roma a notícia das lutas entre os judeus em Jerusalém e na Galileia, naturalmente insuflados pela Partia. Mas ninguém levou as a sério. Sempre havia agitação naquela parte do mundo, quer o procurador fosse Félix ou Festo. Mas o Rei Herodes Agripa dava a impressão de estar gravemente preocupado.
Assim, na comissão para o Oriente deliberamos que se enviasse uma legião inteira à Síria para pôr termo a esses distúrbios. A legião adquirira pelo menos alguma experiência de campanha ainda que não muita glória, desde que os judeus, armados de varapaus e catapultas, não poderiam oferecer muita resistência a uma legião traquejada.
Afinal iniciamos a viagem com que Nero sonhara tanto tempo e que ia coroar sua carreira artística. Para alcançar seus objetivos, êle ordenara, com antecedência, que todas as competições gregas se realizassem uma depois da outra para que, logo que chegasse, pudesse participar dos jogos.
Que eu saiba, foi esta a única vez que os Jogos Olímpicos tiveram de ser antecipados. Todos compreenderão os transtornos que isto causou, até mesmo à cronologia grega. Orgulhosos de seu passado, os gregos ainda contam seus anos em olimpíadas, começando dos primeiros jogos efetuados em Olímpia, embora devessem contentar-se em contar a partir da fundação da cidade, à maneira romana. Então a cronologia seria padronizada. Mas os gregos querem sempre fazer as coisas de modo complicado.
No último instante, quando já ia partir, Nero negou-se a permitir que Estatília Messalina o acompanhasse. A razão era que êle talvez não pudesse garantir a segurança dela, caso rebentasse a guerra.
A verdadeira razão veio à luz durante a viagem. Nero encontrara, enfim, a pessoa que por tanto tempo procurara, uma pessoa que em todos os traços se assemelhava a Popéia. Chamava-se Esporo e infelizmente não era uma mulher, mas um rapaz indecentemente belo.
No entanto, dizia o jovem que, no íntimo, se sentia mais como uma mocinha do que como um rapaz. Assim, a seu pedido, Nero determinou que se efetuasse certa operação nele e lhe ministrassem o remédio que um médico alexandrino receitara para impedir o Crescimento de pêlo no queixo, avolumar os peitos e em geral desenvolver-lhe as características afrodisíacas.
Para que não tenha de voltar a falar desse assunto, que suscitou muita animosidade, direi apenas que, em Corinto, Nero casou-se com Esporo, com todas as cerimônias usuais e depois tratou o como sua esposa legítima.
O próprio Nero dizia que o casamento, com o dote, os véus e o cortejo esponsalicio, era uma formalidade que certos mistérios exigiam, mas que não era legitimamente obrigatória. Considerava-se bissexual, como são todos os deuses masculinos. Alexandre Magno firmou esse ponto de vista, quando foi aclamado deus no Egito. Assim, Nero considerava seus pendores como uma espécie de prova adicional de sua divindade.
Estava tão convencido de que tinha razão, que suportava as chacotas mais grosseiras acerca de Esporo. Certa vez perguntou, de brincadeira, a um senador que passava por estóico o que pensava desse casamento. O velho respondeu:
— Tudo estaria melhor no mundo se teu pai Domício tivesse tido uma semelhante esposa.
Nero não se enraiveceu, e riu bastante.
Muito já se falou das vitórias de Nero nas competições musicais gregas. Ele trouxe para casa mais de mil coroas de louros. Só nas corridas olímpicas as coisas não lhe saíram a contento. Num páreo de dez cavalos foi atirado fora do carro, numa curva, e mal teve tempo de cortar as rédeas que lhe tinham envolvido a cintura. Naturalmente, ficou bastante contundido, mas em recompensa à sua intrepidez, os juízes conferiram-lhe uma coroa. Nero declarou que não podia aceitar a coroa da vitória, uma vez que não terminara a corrida, e contentou-se com as grinaldas de oliveira, que conquistou cantando e lutando em Olímpia. Conto-te isto só para dar um exemplo da coragem física de Nero no perigo real e nos jogos violentos.
Nero fez o possível para revelar verdadeiro espírito esportivo grego e não insultou os rivais, nas competições de canto, tão inescrupulosamente como em Roma. Suas vitórias foram tanto mais merecidas quanto foi êle perseguido pela má sorte. Durante uma semana inteira sofreu os tormentos de uma dor de dente, até que por fim teve de se submeter a uma extração. O dente partiu-se, apesar da perícia do médico, e as raízes tiveram de ser desencavadas da maxila. Mas Nero suportou bravamente a dor.
Felizmente, pôde o médico mitigar um pouco a dor e Nero embriagou se o mais possível antes da operação, como faria o mais corajoso dos homens antes de confiar-se ao dentista. Pessoas mais categorizadas do que eu poderão dizer quanto a dor de dente e a inchação afetaram a voz e o desempenho do Imperador.
Pareceu-me uma prova do espírito esportivo de Nero o ter ele, quando lhe ofereceram a oportunidade de iniciar-se nos mistérios de Elêusis, declinado humildemente da honra, em virtude da reputação de matricida. É claro que as más línguas divulgaram que ele temia o castigo dos deuses, caso participasse dos mais sagrados mistérios de todos os tempos.
Mas isto não tinha fundamento. Nero sabia que ele próprio era um deus, como o resto dos deuses do país, embora declinasse dessa honra pública, por modéstia. A grande maioria do Senado estava pronta a declará-lo deus em vida, no momento que ele assim o desejasse.
Depois de pensar bem no assunto, também julguei mais prudente não tomar parte nas Eleusínias. Expliquei, confidencialmente, aos sacerdotes, que me vira dolorosamente compelido a permitir a execução de meu filho, embora não o soubesse na ocasião, de forma que minha consciência não me deixava insultar os mistérios com minha presença. Assim evitei ofendi o sacerdócio sagrado e pude dizer a Nero que por amizade a ele me abstivera dos mistérios. Desse modo reforçou-se ainda mais a confiança de Nero em mim e na minha amizade, e disso eu ia em breve precisar.
De fato, muito teria que explicar a Cláudia se me tivesse iniciado. Declinei a bem da paz, ainda que meu coração tenha sofrido depois, quando os outros senadores, muito tempo após a iniciação, se mostravam evidentemente felizes de terem partilhado dos divinos segredos, que ninguém jamais ousou revelar aos estranhos.
Foi, então, que chegou a notícia inacreditável e infame de que os judeus haviam dispersado e derrotado a legião síria, que fugira de Jerusalém. Como oferenda votiva, os judeus haviam posto a Águia legionária capturada em seu templo.
Não mencionarei o número nem a divisa da legião, pois ela foi riscada dos registros militares, e os Censores ainda não permitem que essa derrota figure nos anais de Roma. Em geral os historiadores não gostam de se referir à rebelião dos judeus, embora Vespasiano e Tito não se envergonhassem da vitória que alcançaram e, na verdade, tenham celebrado um triunfo depois dela. O desbaratamento da legião foi em parte devido à economia, quando a guerra com os partos deu em nada.
Reconheço que precisei de todas as minhas energias para enfrentar o olhar de Nero, quando ele exigiu da comissão de assuntos orientais uma explicação do que tinha acontecido. Segundo ele, era incompreensível que não tivéssemos sabido que os judeus rebelados tinham reforçado as muralhas de Jerusalém, além de terem adquirido armas e preparado tropas em segredo. A derrota de uma legião inteira não podia ser explicada de nenhuma outra maneira.
Sendo o mais moço, tive de ser o primeiro a falar, como era de hábito nos conselhos de guerra. Presumivelmente, meus colegas depositaram confiança na minha amizade com Nero e não tinham a intenção de me prejudicar. E eu não tive dificuldade em dar o meu parecer.
Aludi à astúcia dos partos e às quantias colossais que Vologeso utilizara para minar o poderio militar de Roma, onde fosse possível. Era óbvio que ele podia ter vendido ou simplesmente presenteado armas aos judeus, e essas armas podiam ter sido transportadas para a Judéia, através do deserto, sem serem vistas por nossos destacamentos de fronteira. A fé dos judeus rebeldes em sua causa era tão notória, que o fato de que a rebelião tivesse ficado em segredo não surpreendia ninguém.
As infindáveis perturbações ocorridas enquanto Félix e Festo estiveram à frente do governo, em Cesaréia, incutira até mesmo nas pessoas mais sensatas uma falsa impressão de segurança. Na Judéia, como alhures, pressupunha-se que a norma romana era dividir para reinar.
— O maior milagre — disse eu, para concluir — é que os setores violentamente desunidos entre os judeus tenham sido capazes de unir-se numa insurreição.
Também fiz cautelosa referência ao grande poder do deus de Israel, de que se encontram inúmeros exemplos decisivos nas escrituras sagradas dos judeus, se bem que ele não tenha estátua nem nome.
— Mas — disse eu — mesmo que boa parte dessa questão seja compreensível, é impossível entender como Córbulo, em cujas mãos estava a sorte da guerra, e a despeito de seu conceito militar e de suas vitórias na Armênia, pôde deixar que isto acontecesse. A ele, e não aos procônsules sírios, toca a responsabilidade de restaurar a paz na Judéia e na Galileia, para que essa área venha a ser um sustentáculo de campanhas ulteriores. É evidente que Córbulo dirigiu toda a sua atenção para o norte e preparou os hircânios para ali conterem, à beira do mar, os exércitos partos. Mas ao concentrar toda a sua atenção num pequeno pormenor do plano mais amplo, perdeu ele uma visão geral da situação, não soube avaliá-la corretamente e dessa forma demonstrou que não é bom estrategista.
Isto, no meu entender, era verdadeiro, e de resto nenhuma amizade me ligava a Córbulo, que eu nem mesmo conhecia. E afinal, põe-se a amizade de lado quando o Estado corre perigo. Esse princípio está impresso em cada senador, e naturalmente é preciso considerar também a própria pele. Não podíamos dar-nos o luxo de poupar Córbulo, por maiores que fossem as glórias por ele conquistadas para Roma.
Tive a ousadia de ponderar que, em minha opinião, a guerra com os partos devia ser adiada até que se suprimisse a rebelião de Jerusalém, pois isto reclamaria três legiões. Mas felizmente as legiões já estavam reunidas em suas áreas de desenvolvimento e havia suficientes máquinas de guerra para romper até mesmo as mais fortes muralhas. A rebelião judaica em Jerusalém podia ser abafada com bastante rapidez. Parecia-me muito mais perigosa a existência de colônias judaicas em quase todas as cidades do país, sem falar nos trinta mil judeus de Roma.
Nero deixou que eu Concluísse e pareceu mais calmo. Dei-me pressa em acrescentar que pelo menos os judeus da sinagoga de Júlio César não estavam envolvidos na insurreição. Isto eu podia garantir pessoalmente, ainda que as dádivas do seu templo tivessem sido indevidamente usadas para financiar a rebelião.
— Mas — rematei — Popéia, em sua ingenuidade, enviou donativos para o templo de Jerusalém.
Quando me calei, ninguém mais se atreveu a pedir a palavra. Nero refletiu no assunto longamente, franzindo a testa e dando puxões nos beiços, depois despediu-nos com um gesto de impaciência. Tinha outras coisas em que pensar, e nós precisávamos mesmo de uma pausa, para tratarmos de adivinhar qual seria a punição de nosso fracasso.
Na sua qualidade de Imperador, sua intenção era nomear um comandante capaz de tomar Jerusalém e fornecer-lhe as tropas de que necessitasse. Córbulo já fora chamado para prestar contas de seus atos e omissões. Adiar indefinidamente a campanha da Partia era uma decisão de tal modo grave, que Nero teria primeiro de consultar os augúrios e fazer um sacrifício.
Saímos um pouco aliviados, e convidei meus colegas para uma boa refeição em meus alojamentos. No entanto, tivemos certa dificuldade em ingerir a comida, embora meus excelentes cozinheiros se tivessem esmerado. Falávamos todos ao mesmo tempo, num grande alvoroço, e bebíamos vinho sem mistura. Meus convidados externaram opiniões tão exacerbadas e eivadas de preconceitos sobre os judeus que me vi obrigado a defendê-los.
Os judeus tinham, sem dúvida, aspectos positivos e meritórios, e na verdade só estavam de fato defendendo a liberdade de seu próprio povo nesta rebelião. Além do mais, a Judéia era província do Imperador e não do Senado. O próprio Nero era responsável pela insurreição, por ter nomeado um patife cruel como Festo, para Procurador, depois de Félix.
Talvez eu tenha sido veemente demais na minha defesa, pois meus colegas começaram a relancear os olhos na minha direção, tomados de surpresa, enquanto o vinho lhes subia à cabeça.
— Bem que têm razão quando te chamam de bilôla-roída — disse um deles, com desprezo.
Eu queria manter em segredo minha desagradável alcunha, mas graças a teu barbudo amigo Juvenal e seus versos, ela já é de domínio público. Não, não estou te culpando, meu filho, por teres intencionalmente deixado os versos da última vez que estiveste aqui, para agradar a teu pai. Devo realmente saber o que pensam de mim e o que tu pensas de teu pai. E hoje em dia os poetas usam palavras muito piores no que escrevem para apoquentar os mais velhos. Pelo que me é dado compreender, pensam que estão defendendo a verdade e a naturalidade da expressão para contrabalançar a eloqüência artificial que herdamos de Séneca. Talvez tenham razão. Mas a barba herdaram de Tito, que trouxe a moda para Roma quando voltou de Jerusalém.
Evidentemente, ninguém podia salvar Córbulo. Nero não queria nem vê-lo mais. Logo que pôs os pés fora da belonave em Cencréia, Córbulo recebeu ordem para suicidar-se.
— Se tivesse tido a felicidade de viver na época de outros Imperadores — disse ele — eu teria conquistado o mundo inteiro para Roma.
E em seguida lançou-se sobre a ponta de sua própria espada no cais, depois de pedir que a quebrassem e atirassem os pedaços ao mar, para que ela não caísse em mãos indignas. Não obstante, não creio que fosse um bom chefe militar, conforme demonstrou, com seu julgamento errôneo, quando teve a seu alcance a maior oportunidade de sua carreira.
Nero tinha bastante juízo para resistir ao desejo de dar um concerto em Ecbátana. Ator de recursos como era, logrou tropeçar convincentemente quando fazia uma oferenda aos augúrios. Assim, vimos com nossos próprios olhos que os deuses imortais ainda não queriam a Partia subjugada, e que seria mais prudente protelar a campanha contra os partos a fim de evitar infortúnios devastadores. Era impossível de qualquer modo, pois Vespasiano, desde que aparecera e cuidadosamente obtivera informações sobre os preparativos dos judeus para a guerra, exigia pelo menos quatro legiões para tomar Jerusalém.
Assim, foi Flávio Vespasiano que Nero caprichosamente pôs à testa do cerco de Jerusalém. Vespasiano protestou, explicando que estava saturado de guerra, conquistara honrarias suficientes na Bretanha e tinha a si mesmo na conta de velho. Contentava-se perfeitamente, disse ele, em ser membro de dois colégios de sacerdotes.
Mas, avelhantado e ainda menos musical do que eu, ele se pusera certa vez a cabecear quando Nero participava de uma competição de canto. Como castigo, Nero confiou-lhe a tarefa de suportar as provações de uma embaraçosa e humilhante campanha punitiva. Nero fraquejou no fim quando, deparando com as lágrimas de Vespasiano, consolou-o, dizendo que iria ter uma oportunidade sem igual na vida, a de enriquecer à custa dos judeus. Poderia então abandonar o comércio de mulas, que era indigno de um senador, e já não precisaria queixar-se de pobreza.
Todos achavam que a nomeação de Vespasiano era um sinal da loucura de Nero, uma vez que Vespasiano era a tal ponto menosprezado que até mesmo os escravos favoritos de Nero o ofendiam, sempre que êle aparecia no Palácio Dourado. Só era convidado uma vez por ano, no aniversário de Nero, e esse privilégio custava-lhe a oferta de mulas a Popéia e mais tarde a Estatília.
Vespasiano não estava de modo algum enfronhado nos assuntos orientais, e nunca teria ocorrido a ninguém indicá-lo para integrar qualquer comissão ou incumbi-lo de alguma tarefa confidencial no Senado.
Por outro lado, Ostório, que Cláudio por equívoco despachara para a Bretanha e que lá se saíra bem, teria alegremente conduzido as legiões para abafar a insurreição judaica, como tantas vezes se oferecia.
Em conseqüência disso, Nero passou a desconfiar, com certa razão, e mandou liquidá-lo. E a confiança de Nero em Vespasiano cresceu, com a oposição de Vespasiano a aceitar o encargo, vendo neste uma punição de sua sonolência, da qual não parava de maldizer.
O próprio Nero tinha tantas dúvidas e respeito de sua escolha, que exigiu que Vespasiano levasse consigo seu filho Tito. Tito também se distinguira na Bretanha e na juventude salvara a vida do pai. Nero esperava que o ardor juvenil de Tito estimulasse Vespasiano e o ajudasse a levar a cabo a incumbência de tomar Jerusalém num prazo razoável.
Não obstante, exortou Vespasiano a evitar perdas supérfluas, pois ouvira falar do reforço das muralhas de Jerusalém. Em virtude da posição estrategicamente vantajosa da cidade, até mesmo Pompeu tivera dificuldade em capturá-la.
Em Corinto, tive oportunidade de novamente entrar em contacto com meu velho comandante e avivar nossa amizade propor-cionandolhe o uso gratuito, como meu convidado, da esplêndida casa nova de Hierex. Vespasiano mostrou-se muito grato a mim por isso. Em toda a comitiva eu era o único nobre que tratava com alguma consideração o guerreiro fatigado e despretensioso que era Vespasiano.
Não sou extraordinariamente parcial ou piegas no que se refere aos meus amigos, como a minha vida mostra muito bem.
Considerava minha feliz juventude sob seu comando na Bretanha como razão suficiente para pagar a sua rude cordialidade com uma hospitalidade que não me custava nada.
Devo também dizer que tinha feito tudo para poupar os Flávios durante a conspiração pisoniana, por mais difícil que isso tivesse sido em vista da trama assassina de Flávio Sevino. Felizmente êle pertencia ao pior ramo da família Flávia. Como eu o tinha denunciado, tinha algum direito de interceder pelos outros Flávios.
Vespasiano nunca esteve sob suspeita. Era tão pobre que mal podia manter-se no Senado. Eu transferira uma de minhas propriedades rurais para seu nome quando os Censores declararam que êle já não preenchia os requisitos de riqueza. De qualquer modo, todos sabiam que êle era um homem honesto, e nem o mais infame dos delatores julgava que valesse a pena incluir-lhe o nome numa lista.
Digo tudo isto para mostrar os laços antigos e duradouros que me uniam aos Flávios e quanto Vespasiano prezava a minha amizade, numa época em que um dos escravos de Nero podia cuspir-lhe aos pés sem ser punido, apesar de Vespasiano ocupar o posto de senador e cônsul. Não havia egoísmo ou interesse pessoal em minha amizade. Eu esquecera havia muito o sonho que tivera quando os druidas me puseram a dormir profundamente, embora, como é natural, ninguém acredite no que digo. Sou tido como um sujeito que sempre visa vantagens para si, como se pode ver também nos versos do teu amigo.
Na casa de Hierex, tive bom ensejo de reafirmar que "algumas pessoas são como jóias sem polimento, pelo fato de que podem ocultar brilhantes qualidades debaixo de um exterior tosco", como o teu barbudo e jovem amigo Décimo Juvenal escreveu há pouco, para lisonjear o Imperador Vespasiano.
Conheço muito bem essa espécie de indivíduos. Êle tem bons motivos para esforçar-se por obter as boas graças do Imperador, já que sua linguagem injustificada e seus versos insolentes causaram desagrado. Não a mim, pois êle é teu amigo. Como todos os jovens, tu admiras os indivíduos que têm o dom da língua pronta. Mas lembra-te de que és quatro anos mais moço do que esse biltre imundo.
Se de alguma coisa tenho certeza, é de que os versos indecentes de Juvenal não sobreviverão. Já vi coruscar e apagar-se muita estrela mais brilhante. De mais a mais, sua imprudente beberronia, sua língua insolente, seu jeito de transformar a noite em dia e sua mania pelas modinhas egípcias acabarão por extinguir a última centelha de verdadeira poesia que talvez possua.
Não escrevo estas coisas porque me deixaste ver uns versos que um rapazinho impertinente dirigiu contra mim, mas porque não posso em sã consciência pensar em apoiar os seus esforços, publicando-os. Não sou tão simplório assim. Apenas estou seriamente preocupado contigo, meu filho.
Em Corinto conquistei de tal modo a amizade de Vespasiano que, antes de viajar para o Egito a fim de assumir o comando das duas legiões de lá naquela ocasião, ele me pediu que pusesse meu conhecimento das questões orientais e minhas relações com os judeus à sua disposição e o acompanhasse ao campo de batalha. Declinei polidamente, de vez que não se tratava realmente de uma guerra, mas de uma expedição punitiva contra súditos rebeldes.
Após a partida de Vespasiano, a fim de conservar em segredo seus objetivos, Nero determinou que as legiões pretorianas começassem a cavar o canal de Corinto. Esse empreendimento já fora encetado algum tempo antes por ordem sua, mas os maus presságios tinham-no compelido a mandar suspender o trabalho. Os buracos haviam-se enchido de sangue durante a noite e na treva soaram gritos terríveis, que penetraram na cidade e assustaram os coríntios. Esta é a verdade absoluta e não simples boato, pois eu a ouvi de fontes dignas de toda a confiança.
Hierex lograra adquirir cotas lucrativas nos carris, ao longo dos quais eram os navios arrastados por terra. Evidentemente, os proprietários desses carris, que tinham invertido vultosas somas nos robustos escravos indispensáveis, não viam o plano de abertura do canal com muita simpatia. Hierex tinha acesso a abundantes suprimentos de sangue fresco, porque em seus açougues refrigerados a água também vendia carne aos judeus, e assim tinha de sangrar os animais, ao modo judaico, antes de retalhar a carne.
Dispunha constantemente de barris de sangue. Em geral empregava-o para fazer panquecas de sangue, para os escravos de sua fundição de cobre. Mas aconselhado por seus colegas de negócios, empregou a renda de vários dias numa boa causa e mandou que levassem à noite todo o sangue e o derramassem nos buracos cavados para o canal. Seus amigos providenciaram os suspiros e gemidos, o que não foi difícil de conseguir, como certa vez te contei, quando tomei minhas medidas para que a casa de Túlia, após consideráveis embaraços, se tornasse -minha propriedade legítima.
É claro que não falei a Nero do que tinha sabido na casa de Hierex, e além do mais eu não tinha motivos para favorecer a construção do canal. Como os Pretorianos se negassem a executar o trabalho, por causa dos maus presságios e porque o esforço físico não lhes apetecia, Nero curvou-se cerimoniosamente e cavou o primeiro buraco com suas próprias mãos, sob as vistas dos Pretorianos e da população de Corinto.
Colocou o primeiro cesto de terra sobre seus ombros imperiais e transportou-o bravamente, para o ponto em *que se localizaria depois a margem do canal. Não se encontrou sangue nesse buraco e os lamentos noturnos cessaram, de modo que os Pretorianos criaram coragem e passaram a cavar.
Os centuriões estimulavam-nos com chibatadas, e dessa maneira abstinham-se de pegar numa pá. Isso também teve como resultado infundir nos Pretorianos um surdo rancor contra Nero, mais do que contra Tigelino, que costumava puni-lo com os habituais exercícios de marcha. Preferiam gastar as energias na estrada do que com uma pá.
Depois de matutar demoradamente no caso, encontrei razões válidas para dizer a Hierex que parasse de levar sangue às obras do canal. Não lhe dei meu verdadeiro motivo; limitei-me a dizer-lhe que, a bem de sua saúde, e devido a Nero, seria mais prudente que arcasse com o prejuízo como um homem. Hierex seguiu meu conselho não só porque este lhe pareceu sensato, mas também porque Nero começara a colocar guardas ali, à noite, para impedir as invasões da área do canal.
Hierex e suas ligações com os judeus de Corinto me foram imensamente úteis quando, logo depois da notícia da derrota da legião na Judeia, expedi avisos a todos os judeus cristãos para que se mantivessem arredios e de preferência se encondessem. Nero enviou ordens à Itália e a todas as províncias no sentido de que fossem presos e processados por traição todos os agitadores judeus ao menor sinal de perturbação da ordem.
Seria demasiado esperar que um funcionário romano soubesse distinguir entre reinos celestiais e terrenos, entre Cristos e outros Messias, quando se tratava de agitação. Para a mentalidade romana, as atividades dos judeus cristãos não passavam de agitação política sob o manto da religião.
A situação piorou muito após os julgamentos sumários dos cristãos que chamaram Nero de Anticristo, cuja aparição Jesus de Nazaré havia profetizado. Na verdade, Nero não se incomodou com este apelido, mas disse apenas que os cristãos obviamente o reputavam um deus igual a Cristo, já que o honravam com tão esplêndido nome.
Na realidade, a fraqueza dos cristãos reside exatamente no fato de desprezarem a política e absterem-se das atividades políticas, dirigindo todas as suas esperanças para um reino invisível, o qual, pelo que posso entender, não pode levar nenhum perigo ao Estado. Assim, quando lhes morrerem os chefes, não terão futuro algum neste mundo. Sua fé não tardará a desaparecer em virtude de suas disputas internas, nas quais cada qual imagina que suas crenças são as verdadeiras. Estou convencido disto, diga tua mãe o que disser. As mulheres não têm senso político.
De minha parte, muitas vezes fiquei rouco de falar pelos cristãos para demonstrar sua falta de significação política, sejam circuncisos ou não. Mas é impossível explicar isso a um romano que tenha formação e experiência jurídicas. Ele meneia a cabeça e continua, apesar de tudo, a considerar os cristãos politicamente suspeitos.
Para minha tristeza, não consegui salvar Paulo, cujo temperamento inquieto o levava a viajar continuamente de um país para outro. A última notícia que eu tinha tido dele me fora enviada pelo meu comprador de azeite em Emporium, próspera cidade portuária que começa a assorear-se na costa setentrional da Ibéria. Fora expulso de lá pelos judeus ortodoxos da cidade, mas de acordo com meu informante, não sofrera danos graves.
Na Ibéria, como em outros lugares, ele tivera de contentar-se com pregar nas cidades litorâneas fundadas pelos gregos muito tempo antes e que ainda usavam o grego como língua principal, embora as leis e os regulamentos fossem naturalmente em latim e gravados em tabuinhas de cobre. Como são muitas e populosas as cidades da costa ibérica, ele tinha inúmeras oportunidades de viajar. Segundo o mercador de azeite, embarcara para Mainace ao sul, em demanda da Ibéria ocidental, pois a sua inquietação não diminuíra.
Assim, foi só por culpa dele mesmo que o meu aviso não o alcançou. Foi preso em Tróia, na Bitínia Asiática, tão inesperadamente que seus documentos, livros e manto de viagem ficaram na hospedaria. Suponho que fora forçado a visitar a Ásia para encorajar seus conversos, os quais, na sua opinião, estavam sendo desencaminhados por pregadores ambulantes. Pelo menos a muitos deles chamou amargamente de profetas de mentira — mesmo àqueles que como ele falavam em nome de Cristo — embora evidentemente não fossem tão bem versados quanto ele nos mistérios divinos.
Quando chegou a Roma a notícia de que Paulo fora localizado, imediatamente se tornou conhecido o esconderijo de Cefas. Os adeptos de Paulo acharam que tinham essa dívida com seu mestre. Cefas recebera minha advertência em tempo e saíra de Roma para Puteoli, mas voltara do quarto marco milionário da Via Ápia. Como razão para o regresso, disse que Jesus de Nazaré lhe aparecera em toda a sua glória, o que ele bem recordava e reconhecia.
— Para onde vais? — perguntara-lhe Jesus.
Cefas respondeu que fugira de Roma. Ao que, Jesus dissera:
— Então, eu mesmo devo ir a Roma, para ser crucificado pela segunda vez.
Cefas, envergonhado, voltou humildemente para Roma, se bem que feliz por ter mais uma vez visto o mestre. Em sua simplicidade, durante as viagens com Jesus de Nazaré, Cefas fora o primeiro de todos os discípulos a identificá-lo e reconhecê-lo como o Filho de Deus. Por isso, seu mestre ficara tão apegado a êle que lhe chamava seu principal discípulo, não precisamente por causa de sua grande força física e espiritual como muitos ainda acreditam.
Estou te contando o que ouvi dizer, mas há também outras versões. O essencial, porém, foi que Cefas tivera uma visão na Via Ápia e isto o induziu a uma reconciliação final com Paulo antes da morte de ambos. O próprio Paulo, naturalmente, nunca pusera os olhos em Jesus de Nazaré. Na realidade, espicaçado por um pouco de inveja, Cefas dissera certa vez, acerca da visão de Paulo, que êle não precisava inventar histórias, já que conhecera Jesus de Nazaré enquanto este vivera na terra. Mas estas palavras foram proferidas quando a disputa entre eles estava no auge. Mais tarde, depois de ter êle mesmo tido uma visão, Cefas teve vergonha da acusação que fizera ao outro e pediu a Paulo que lhe perdoasse.
Tive pena desse pescador humilde que depois de dez anos em Roma ainda não aprendera bastante latim ou grego que lhe permitisse dispensar um intérprete. Isto causou muito mal-entendido. Diz-se até que êle citava incorretamente, ou pelo menos negligentemente, as sagradas escrituras dos judeus, quando, com o auxílio delas, tentava provar que Jesus de Nazaré era o verdadeiro Messias ou Cristo, como se isso fosse importante para os que acreditavam que êle era.
Mas os judeus cristãos têm profundo desejo de mostrar sua erudição, discutindo sobre palavras e a significação delas e sempre referindo-se aos seus livros sagrados.
Boa coisa seria traduzi-los pouco a pouco para o latim, a fim de que adquirissem então uma forma inquestionavelmente válida. Nossa língua se presta bem a tais coisas. Poria fim a todas essas insuportáveis discussões em torno do sentido correto de palavras que consigo só trazem dores de cabeça.
Devo voltar à minha história. Do círculo mais íntimo dos seguidores de Jesus de Nazaré, consegui salvar um certo Johannes, que fugira para Éfeso, a fim de escapar à perseguição dos judeus Eu mesmo nunca o vi, mas dizem que é um homem moderado e amável que passa o tempo escrevendo suas memórias e pronunciando discursos de reconciliação para mitigar a desunião dos judeus. Meu pai gostava muito dele. Johannes foi denunciado durante esse período de traição e inveja, mas aconteceu que o Procônsul da Ásia era um amigo meu e contentou-se em degredá-lo temporariamente para uma ilha.
Surpreendi-me ao saber que, lá, ele redigira relatos de várias visões tempestuosas que tivera, muito embora conste ter sossegado depois que lhe permitiram regressar a Eixo.
A punição imposta por Nero aos membros da comissão para assuntos orientais foi enviar-nos de volta a Roma, incumbindo-nos de tomar providências para que os judeus não deflagrassem um levante armado. Escarnecendo, disse que talvez o conseguíssemos, se bem que quanto ao mais fôssemos incapazes. Não podia demitir-nos da comissão, uma vez que isso era da alçada do Senado, mas, para lhe ser agradável, o Senado promoveu certas modificações, ainda que tenha sido difícil encontrar novos homens que estivessem dispostos a sacrificar seu tempo nesse trabalho ingrato.
Assim, eu já não fazia parte da comissão quando Nero proclamou a Acaba um reino livre e devolveu a independência à Grécia. Isto não alterou as circunstâncias políticas, como eu já aprendera na minha juventude quando tinha sido tribuno em Corinto. Por outro lado, os gregos teriam agora de escolher seu governador, custear as próprias campanhas e cavar seus canais. Apesar disso, a medida suscitou imensa alegria entre os imprevidentes gregos.
Reparei que Nero nem uma vez se referiu ao Senado Romano, mas deixou claro que Nero, e só Nero, fora capaz de levar a cabo tal declaração de independência. Ouvíramos nós mesmos, ao iniciar-se a abertura do canal coríntio, que Nero esperava que esse magnífico empreendimento trouxesse felicidade à Acaia e ao povo romano, sem menção alguma ao Senado, embora isso seja sempre obrigatório, nos discursos oficiais. A expressão correta é "o Senado e o povo de Roma" e há de ser sempre, por mais que os tempos mudem.
Assim, não era surpreendente que começasse a sentir que o Orco me guiava os passos e Caronte soprava um bafo gelado em meu pescoço quando eu seguia os judeus até à sua morte. Muitos outros senadores previdentes sentiam a mesma coisa, embora nada dissessem, pois quem ainda confiava nos outros? Por segurança, um de nós sempre levava uma reserva de um milhão de sestércio em ouro numa carroça quando viajávamos para qualquer parte.
Nero não permitiu sequer que fôssemos a seu encontro, em Nápoles. Desejava começar ali sua marcha triunfal para Roma, visto que fora no teatro de Nápoles que se apresentara em público, pela primeira vez.
Em vez de um triunfo, no sentido usual, queria transformar seu retorno a Roma numa artística passeata de triunfo, para dar alegria e uns dias feriados ao povo.
Isso era politicamente acertado, pois as campanhas no Oriente tinham malogrado, mas não nos agradava termos de derrubar parte da muralha da cidade para seu cortejo. Nenhum vencedor jamais reclamara tal honra antes, nem mesmo o próprio Augusto em seus triunfos. Achamos que Nero começava a exibir alguns desagradáveis sinais de um autocrata oriental. Isso jamais convirá a Roma, por mais que um peralvilho impertinente escreva sobre a decadência dos nossos costumes.
Não somente nós, mas o povo também, e refiro-me naturalmente a todos os cidadãos equilibrados, abanou a cabeça ao ver Nero no sagrado carro triunfal de Augusto atravessar a fenda aberta na muralha e desfilar pela cidade, seguido por carroças apinhadas de coroas triunfais e, em lugar de soldados, uma guarda de honra composta de atores, músicos, cantores e dançarinos do mundo inteiro. Ao invés de batalhas, ele mandara pintar suntuosas telas e esculpir grupos de figuras que representavam suas vitórias em diversas competições de canto. Vestia um manto púrpura coberto de estrelas de ouro e trazia na cabeça uma dupla coroa olímpica de ramos de oliveira.
Diga-se também em honra de Nero que ele observou o velhíssimo costume de subir humildemente os íngremes degraus do Capitólio de joelhos para dedicar suas melhores coroas triunfais não só a Júpiter Custos, mas também aos outros deuses importantes de Roma, Juno e Vénus. Ainda assim, sobraram coroas em quantidade suficiente para cobrir todas as paredes dos salões de recepção e da sala circular de banquetes do Palácio Dourado.
O regresso de Nero, porém, não foi tão agradável como poderia ter julgado um estranho. Estatília Messalina era uma mulher amimalhada e fraca, mas uma mulher, apesar de tudo, e não iria tolerar que Nero conferisse a Esporo exatamente os mesmos direitos conjugais de que ela gozava, nem que mudasse de leito matrimonial, segundo seu capricho do momento.
Discutiram tão acaloradamente que o vozerio ressoou pelo Palácio mas, tendo ainda na memória o destino de Popéia, Nero não ousou dar um pontapé na esposa, e Estatília tirou disso o maior proveito. Depois de algum tempo, em sua fúria, Nero exigiu a retirada de suas coroas do templo de Juno e outras coisas que não podia fazer. Afinal desterrou Estatília para o Âncio, mas isso veio a ser vantajoso para ela.
Estatília Messalina recorda hoje aquele dia e pranteia Nero, lembrando-se de suas boas qualidades, como é próprio de uma viúva. Com freqüência, ornamenta ostensivamente o modesto mausoléu dos Domícios, que do monte Píncio se avista facilmente perto do campo de Marte, nas cercanias dos jardins de Lúculo, onde em minha juventude vi florescer as cerejeiras, com Nero e Agripina.
Os ossos de Nero repousam no túmulo dos Domícios, dizem. Sua memória tem dado causa a muita agitação nas províncias orientais O povo não acredita que Nero tenha morrido, mas imagina que ele voltará um dia, para lembrar-nos que seu governo foi um período de felicidade, em comparação com a cupidez do Estado nos dias atuais.
De quando em quando, um escravo fugido aparece no Oriente, proclamando-se Nero, e naturalmente os partos estão sempre dispostos a apoiar essas tentativas de rebelião. Crucificamos dois falsos Neros. Exigimos que provassem sua identidade cantando, mas nenhum se revelou um cantor da qualidade de Nero. Em todo caso, Estatília lembra-se dele com flores e ornamenta-lhe o túmulo, se é que é mesmo o túmulo de Nero.
Mais uma vez pus-me a falar de outra coisa e adiei o assunto que me parece árduo abordar. Graças ao triunfo de Nero e a seus deveres políticos, logrei protelar as execuções durante muito tempo. Enfim, veio o dia em que tivemos de apresentar a Nero as sentenças de morte desde muito proferidas. Se tivesse encontrado outro pretexto para procrastiná-las, eu me tornaria suspeito de pró-judaísmo, até mesmo aos olhos dos meus colegas.
Para preservarmos o nosso bom nome, nós, da comissão para assuntos orientais, havíamos realizado uma investigação minuciosa da verdadeira situação da colônia judaica de Roma e do perigo que representaria para a segurança do Estado após a insurreição dos judeus de Jerusalém.
Muitos de nós ficaram mais ricos, no curso dessas proveitosas atividades. Com a consciência limpa, pudemos apresentar um relatório tranqüilizador, diante de Nero e do Senado.
Por escassa maioria, conseguimos convencer o Senado de que não deveria haver real perseguição contra os judeus, mas apenas a eliminação de elementos suspeitos e agitadores loquazes.
Nossa sugestão baseava-se em razões sólidas e foi aceita, apesar do ódio aos judeus que a rebelião de Jerusalém provocara.
Para falar a verdade, vali-me dos meus próprios recursos para instruir o processo, porque Cláudia tinha muitos amigos judeus cristãos. Por exemplo, Áquila, com seu nariz torto, e a valorosa Prisca seguramente teriam sido levados com o resto. Mas eu sou um sujeito empedernido, um avarento, um patife que sempre consegue safar se das aperturas e para quem o teu melhor amigo Juvenal não tem uma palavra de simpatia.
Espero que os meus amigos lhe paguem bem pelos exemplares de seus poemas. Não há alegria entre os seres humanos que se compare à alegria maldosa. Rejubilemo-nos então, tu e eu, com a idéia de que o teu barbudo amigo pode afinal pagar as dívidas graças a mim, e sem que isto me custe um sestércio.
Se eu fosse tão sovina como ele apregoa, então naturalmente compraria a ele aqueles malditos versos e permitiria que meu próprio editor colhesse os lucros. Não sou como Vespasiano, que chegou até mesmo a tributar a água que a gente verte. Certa vez, como estivéssemos falando de funerais, ele nos perguntou quanto imaginávamos que seus funerais custariam ao erário. Calculamos que as cerimônias alcançariam pelo menos uns dez milhões de sestércios, estimativa que não era apenas uma lisonja, mas podia ser comprovada em algarismos.
Vespasiano soltou um suspiro fundo e disse:
— Dai-me cem mil agora e podereis lançar minhas cinzas ao Tibre.
Evidentemente tivemos de juntar cem mil sestércios, em seu antiquado chapéu de palha, de sorte que a refeição saiu cara e a Comida não tinha nada de que uma pessoa se pudesse vangloriar. Vespasiano aprecia os hábitos simples e o vinho fresco de sua quinta. Devido à minha posição, muitas vezes tive de contribuir para a construção do seu anfiteatro. Será a maravilha do mundo, e comparado com ele o Palácio Dourado de Nero não será mais do que a baboseira alambicada de um menino mimado.
Por que continuo adiando a minha história? É como extrair um dente. Num abrir e fechar de olhos está tudo terminado, Minuto. E não tenho culpa. Fiz tudo quanto pude por eles. Ninguém pode fazer mais do que isso. Nenhum poder terreno poderia ter salvo a vida de Paulo e Cefas. Cefas voltou a Roma espontaneamente, ainda que pudesse perfeitamente ter se escondido, na fase mais aguda.
Sei que hoje em dia todo mundo usa o nome latino de Cefas, Pedro, mas prefiro usar seu velho nome, que me é caro. Pedro é uma tradução de Cefas, que quer dizer rocha, nome este que lhe foi dado por Jesus de Nazaré. Não sei por quê. Cefas não era nenhuma rocha quanto ao espírito; na verdade, era um indivíduo rude e suscetível que em algumas ocasiões se comportava de maneira covarde. Chegou mesmo a negar naquela última noite que conhecia Jesus de Nazaré, e em Antioquia teve uma atitude que podia ser tudo menos corajosa diante do representante de Jacó, que considerava um crime contra as leis judaicas o fato de Cefas comer com os incircuncisos. Mas ainda assim, Cefas era um tipo inesquecível, ou talvez mesmo por isso. Como se pode saber.
Diz-se agora que Paulo adotara o nome de Sérgio Paulo porque Sérgio, que era governador de Chipre, foi o homem mais importante que ele converteu. Isso é totalmente infundado. Mudou o nome de Saulo para Paulo, muito antes de conhecer Sérgio, e só porque, em grego, Paulo quer dizer o insignificante, o indigno, como o meu próprio nome Minuto, em latim.
Quando me deu esse nome desprezível, meu pai não podia imaginar que estivesse fazendo de mim um xará de Paulo. Talvez tenha sido em parte meu nome que me compeliu a escrever estas memórias, para mostrar que não sou um sujeito tão insignificante como pareço.
A principal razão, porém, é que me acho aqui nesta estação de cura, tomando água mineral, os médicos acompanhando minha enfermidade gástrica, e a princípio não pude encontrar outro modo de sair da inatividade. Também pensei que talvez julgasses útil saber alguma coisa a respeito de teu pai quando um dia fores colócalas minhas cinzas no túmulo em Cere.
Durante o prolongado encarceramento de Cefas e Paulo, tomei providências para que fossem bem tratados e pudessem encontrar-se e conversar, ainda que vigiados. Como perigosos inimigos públicos, tiveram de ser recolhidos à prisão de Tullianum, longe da ira popular. Esse não é um local dos mais saudáveis,, muito embora Tullianum ostente gloriosas tradições de muitas centenas de anos de prestígio. Ali Jugurta foi estrangulado, ali também foi esmagada a cabeça de Vercingetorige, ali perderam a vida os amigos de Catilina e ali a filhinha de Sejano foi violada antes da execução, como determinam as leis, desde que os romanos nunca executam uma virgem.
Paulo parecia recear uma morte dolorosa, mas em casos tais Nero não era mesquinho, se bem que estivesse furioso com a rebelião judaica e considerasse todos os agitadores judeus responsáveis por ela. Paulo era cidadão romano e tinha legítimo direito a ser passado à espada, direito que os juízes não lhe contestaram em seu último julgamento. Cefas foi condenado à crucificação de acordo com a lei, embora eu não tivesse desejo de infligir tal morte a um ancião e amigo de meu pai.
Certifiquei-me de que podia acompanhá-los em sua última jornada naquela fresca manhã estival em que foram levados para o local da execução. Providenciei para que não se crucificassem outros judeus à mesma hora. Não faltavam ajuntamentos nos locais de execução por causa dos judeus, mas eu queria que Paulo e Cefas tivessem permissão de morrer a sós com dignidade.
No ponto em que o caminho se bifurca e começa a estrada que leva a Óstia, tive de escolher com quem devia continuar, pois fora assentado que Paulo seria conduzido para o mesmo portão em que meu pai e Túlia tinham sido executados.
Os juízes haviam estabelecido que fizessem Cefas desfilar pelo setor judaico da cidade, como advertência, e em seguida o crucificassem no local de execução dos escravos, perto do anfiteatro de Nero.
Paulo estava acompanhado de seu amigo, o médico Lucas, e eu sabia que Paulo não sofreria afrontas, pois era cidadão. Cefas precisava muito mais de minha proteção, e eu também temia por seus companheiros, Marco e Lino. Assim, escolhi Cefas.
Não precisei preocupar-me com manifestações da parte dos judeus. Afora uns torrões de barro, Cefas passou incólume.
Os judeus eram judeus de verdade, e apesar de seu ódio encarniçado, contentaram-se em contemplar, silenciosos, a passagem de um agitador judeu que ia ser crucificado por causa da insurreição de Jerusalém. Cefas levava em volta do pescoço a costumeira placa na qual se lia esta inscrição em grego e latim: Simão Pedro de Cafarnaum, Galileu, inimigo do povo e da humanidade.
Quando saímos da cidade e atingimos os jardins, o calor começava a ser opressivo. Vi bagas de suor descendo pela testa franzida de Cefas e ordenei que lhe tirassem a barra transversal da cruz e a entregassem para transportar a um judeu que se aproximava.
Os soldados tinham direito a fazer isso. Depois, disse a Cefas que partilhasse da minha cadeirinha, no último trecho do percurso, sem pensar no falatório a que isso daria margem posteriormente .
Mas Cefas não teria sido Cefas se não tivesse prontamente respondido que podia carregar a cruz, em seus largos ombros, até o fim, sem ajuda de ninguém. Não queria sentar-se a meu lado mas preferia, disse êle, sentir o pó da estrada, sob os pés, pela última vez, e o calor do sol na cabeça, da mesma forma que os sentira muito tempo antes quando percorrera com Jesus de Nazaré os caminhos da Galileia.
Não queria nem mesmo que lhe afrouxassem a corda pela qual ia sendo levado, mas disse que Jesus de Nazaré havia predito isto e não desejava comprometer a profecia. Não obstante, apoiava-se fatigado em seu gasto bordão de pastor.
Quando chegamos ao local de execução, que fedia no calor do sol, perguntei a Cefas se queria ser açoitado antes. Esta era uma medida misericordiosa para apressar a morte, embora muitos bárbaros a interpretassem mal.
Cefas respondeu que não seria necessário o açoite, pois tinha seus próprios planos, mas depois mudou de idéia e declarou humildemente que gostaria de passar até o fim por tudo quanto tinham passado numerosas testemunhas antes dele. Jesus de Nazaré também tinha sido açoitado.
Mas não estava com pressa. Notei um breve sorriso em seus olhos quando êle se voltou para seus companheiros, Marcos e Lino.
— Escutai-me, os dois — disse êle. — Escuta, Marcos, embora eu tenha dito a mesma coisa a ti muitas vezes antes. Escuta também, Minuto, se quiseres. Jesus disse: "O reino de Deus é assim como se um homem lançasse a semente à terra, depois dormisse e se levantasse, de noite e de dia, e a semente germinasse e crescesse, não sabendo ele como. A terra por si mesma frutifica, primeiro a erva, depois a espiga e, por fim, o grão cheio na espiga. E quando o fruto já está maduro, logo se lhe mete a foice, porque é chegada a ceifa".
Meneou a cabeça incrédulo, com lágrimas de alegria nos olhos, e riu venturoso.
— E eu, louca criatura que sou — exclamou — não entendi, embora repetisse constantemente as suas palavras. Agora entendo, afinal. O fruto está maduro e a foice está aqui.
Olhou-me de relance, abençoou Lino e entregou-lhe o bordão:
—Cuida do meu rebanho.
Era como se desejasse que eu visse isso e servisse de testemunha. Depois virou se humildemente para os soldados, que o amarraram a um poste e puseram-se a vergastá-lo.
Apesar de sua força, não pôde deixar de gemer. Com as chicotadas e o som de sua voz, um dos judeus que tinham sido crucificados na véspera despertou das vascas de sua agonia, abriu os olhos febris, espantando as moscas, reconheceu Cefas e nem mesmo naquele instante pôde abster-se de zombar da afirmação de Jesus de Nazaré de que era o Cristo. Mas Cefas não estava com disposição para discutir.
Ao invés disso, pediu aos soldados, após a flagelação, que o crucificassem de cabeça para baixo. Não se julgava digno da honra de ser crucificado com a cabeça para o alto, como seu Senhor Jesus, o Filho de Deus, o fora. Tive de ocultar um sorriso.
Até o último minuto, Cefas continuava sendo o verdadeiro Cefas, cujo bom senso de pescador era necessário para fundar o reino. Compreendi por que Jesus de Nazaré o amara. Naquele momento, amei-o também. É incomparavelmente mais fácil para um ancião morrer, se é crucificado de pernas para o ar, de modo que o sangue corre para a cabeça e rebenta as veias. Uma misericordiosa inconsciência poupar-lhe-á então, muitas horas de sofrimento.
Os soldados desataram a rir e alegremente aquiesceram a essa solicitação, pois compreendiam que desse modo evitariam a obrigação de vigilância no calor. Quando pendia na cruz, Cefas abriu a boca e pareceu que tentava cantar não sei que toada, embora a meu ver não tivesse boas razões para isso.
Perguntei a Marcos o que era que Cefas estava procurando dizer. Marcos me respondeu que Cefas estava cantando um salmo, no qual Deus conduzia seus fiéis para verdes pradarias e fontes refrescantes.
Para minha alegria, Cefas não precisou esperar muito por suas verdes pradarias. Depois de ter perdido a consciência, aguardamos um pouco enquanto seu corpo se contorcia e se sacudia, e depois, impaciente com o mau cheiro e as moscas, mandei que o centurião fizesse o que devia fazer.
Ele mandou que um soldado quebrasse a tíbia de Cefas, com uma prancha de quina afiada, e em seguida enfiou a espada no pescoço de Cefas, enquanto dizia, de brincadeira, que essa era a maneira judaica de matar, em que o sangue deve escoar-se antes que a vida se extinga. Grande quantidade de sangue jorrou do ancião.
Marcos e Lino prometeram cuidar para que o cadáver fosse sepultado no que é atualmente um cemitério abandonado por trás do anfiteatro, não muito distante.
Lino chorou, mas Marcos já havia derramado suas lágrimas e era um homem equilibrado e digno de confiança. Mantinha-se tranqüilo, mas seus olhos contemplavam outro mundo que eu não podia ver.
Deves estranhar por que resolvi acompanhar Cefas e não Paulo. Paulo era pelo menos um cidadão romano e Cefas não passava de um velho pescador judeu. Talvez meu procedimento demonstre que nem sempre ajo por egoísmo. Pessoalmente gostava mais de Cefas porque ele era um homem sincero e simples, e, de mais a mais, Cláudia nunca me teria permitido abandoná-los em sua última viagem. E tudo faço pela paz doméstica.
Mais tarde alterquei com Lucas quando ele exigiu que lhe mostrasse a história aramaica que eu herdara de meu pai e que foi escrita por um funcionário aduaneiro. Não concordei. Lucas levara dois anos a conversar com testemunhas oculares enquanto Paulo estava na prisão de Cesaréia na época do Procônsul Félix. Achei que não devia nada a ele.
Lucas também não era um bom médico, se bem que tivesse estudado em Alexandria. Nunca devia ter deixado que ele tratasse meu estômago. Desconfio que seguia Paulo com tanto fervor por causa das curas milagrosas de Paulo, quer para aprender esta arte, quer com humilde compreensão de suas limitações como médico. Mas sabia escrever, ainda que somente no dialeto do mercado, e não em grego culto.
Sempre gostei muito de Marcos, mas Lino, que é mais jovem, tornou-se ainda mais caro a mim com o correr dos anos. A despeito de tudo, tenho sido forçado a levar um pouco de ordem às questões internas dos cristãos, para o próprio bem deles e para evitar embaraços oficiais. Cefas introduzira outrora certas divisões de acordo com as tribos e tentara pacificar-lhes as dissensões internas, mas um homem ignorante como ele não pode possuir verdadeira habilidade política.
Custeei o aprendizado jurídico de Cleto, em memória de sua corajosa conduta no acampamento pretoriano. Talvez um dia êle consiga estabelecer ordem satisfatória entre os cristãos. Então poderás obter apoio político deles. Mas não tenho muitas esperanças disso. Eles são o que são.
Estou mais forte agora e os médicos estão confiantes. Breve voltarei para Roma e deixarei esta sulfurosa estância, da qual estou sinceramente enfarado.
É óbvio que acompanho de longe os meus negócios mais importantes, embora os médicos não saibam disso. Mas será maravilhoso provar novamente bons vinhos, e depois de todo este jejum e de toda a água que tenho bebido, apreciarei mais do que nunca as habilidades dos meus dois cozinheiros.
Quando ouvi falar das secretas aventuras de Júlio Vindex como propretor, interpretei os sinais dos tempos sem hesitar. Já compreendera muito antes que Pisão poderia ter alcançado êxito se a vaidade não o tivesse levado a desprezar o apoio das legiões. Depois da morte súbita de Córbulo e Ostório, o comandantes de legiões começaram afinal a despertar da sonolência e perceberam que nem as honras militares nem a lealdade incondicional salvariam alguém dos caprichos de Nero. Eu tinha visto isso quando saí de Corinto.
Apressei-me a vender minhas propriedades através dos meus banqueiros e libertos e a juntar dinheiro em moedas de ouro. Naturalmente essas transações, cujos motivos muitos homens sensatos ainda não tinham entendido, chamaram a atenção dos mais bem informados. Eu nada tinha contra isso, pois confiava inteiramente na ignorância de Nero em questões monetárias.
Meus atos causaram certa apreensão em Roma, pois os preços dos apartamentos e também das propriedades rurais caíram vertiginosamente. Vendi mais propriedades com grande açodamento, embora o dinheiro esteja seguro no solo e até mesmo dê lucros, contanto que o cultivo esteja nas mãos de libertos que mereçam confiança. Não me preocupei com a queda dos preços, mas continuei vendendo e juntando numerário. Sabia que um dia, se meu plano tivesse êxito, recuperaria tudo outra Vez. A angústia causada por minhas atividades fêz com que os financistas reexaminassem a situação política, e desse modo também concorri para uma coisa boa.
Enviei Cláudia contigo, para minha quinta perto de Cere, e fiz com que Cláudia me ouvisse e ficasse lá em segurança até que a mandasse buscar de volta. Como o teu terceiro aniversário se aproximava, tua mãe estava atarefadíssima. Não eras um bom menino, e para falar com franqueza eu estava farto das tuas correrias e traquinadas. Mal eu dava as costas, tu caías no tanque ou te cortavas. Assim, isso também queria dizer que me sentia feliz de iniciar minha viagem para garantir o teu futuro. Por causa de Cláudia, eu não podia modelar o teu caráter e tinha de confiar na herança que trazias no sangue. A verdadeira autodisciplina sempre vem de dentro e não pode ser incutida do exterior.
Não foi difícil obter permissão do Senado e de Nero, para deixar a cidade e ir juntar-me a Vespasiano, como seu conselheiro em assuntos judaicos. Pelo contrário, fui elogiado por demonstrar boa-vontade em fazer o que podia pelo Estado. O próprio Nero achava que uma pessoa de confiança devia estar de olho em Vespasiano e mantê-lo em ação, pois desconfiava que Vespasiano estivesse perdendo tempo desnecessariamente fora dos muros de Jerusalém.
Como eu era senador, tive um navio de guerra à minha disposição. Muitos colegas meus provavelmente indagaram por que um indivíduo comodista, como eu, se dispunha a dormir numa rede à noite, sem falar na alimentação péssima, na falta de espaço e nos eternos piolhos das embarcações.
Mas eu tinha minhas razões. Tão aliviado me senti depois de ter trazido para bordo minhas vinte pesadas arcas de ferro que dormi feito uma pedra na primeira noite, até que o ruído de pés descalços na coberta me despertou. Levava comigo três fiéis libertos, que se revezavam vigiando as minhas arcas, assim como a costumeira guarda militar.
Em Cere, armara também os meus escravos, confiando na lealdade deles. E não me enganei. Os soldados de Oto pilharam minha quinta e destruíram minha coleção de jarros gregos, cujo valor não compreendiam, mas não causaram dano a ti nem a Cláudia, e isso foi devido a meus escravos. Há ainda inúmeros túmulos fechados no solo. Portanto, é provável que eu possa substituir minha coleção de jarros.
Felizmente, contamos com tempo favorável, pois as tempestades de outono ainda não haviam começado. Apressei o mais possível a travessia, distribuindo rações extraordinárias de comida e vinho aos galés por minha conta, por mais absurdo que isso parecesse ao centurião naval, que confiava mais no açoite e sabia que podia facilmente substituir os escravos que viesse a perder na viagem pelos prisioneiros judeus. Eu tinha outras razões.
Creio que podemos conseguir que as pessoas façam o que nós queremos desde que usemos de bons modos. Mas sempre fui desnecessariamente compassivo, como foi meu pai. Lembra-te de que nunca te dei uma palmada, meu filho insubordinado. Como podia eu bater num futuro Imperador?
Para matar o tempo fiz muitas perguntas acerca da marinha durante a viagem. Entre outras coisas, vim a saber por que os marujos, a bordo e em terra, têm de andar descalços. O motivo eu não sabia, mas pensava na questão algumas vezes. Imaginava que isso tivesse algo que ver com a náutica.
Soube então que certa vez, no anfiteatro, o Imperador Cláudio se enfureceu quando alguns marujos procedentes de Óstia, estendendo um toldo acima das cadeiras dos espectadores no meio de um espetáculo, puseram-se a exigir indenização pelos sapatos de marcha que tinham gasto no trajeto. Então Cláudio proibiu o uso de sapatos em toda a frota e, desde então suas ordens vêm sendo fielmente cumpridas. Nós, romanos, respeitamos as nossas tradições.
Mais tarde toquei casualmente na questão a Vespasiano, mas ele acha melhor que os marujos continuem descalços, desde que estão habituados a isso. Até então a ausência dos sapatos não lhes causara mal algum.
— Por que criar mais despesas no já sobrecarregado orçamento naval?
Assim, os centuriões navais ainda consideram uma honra andar descalços em serviço, se bem que gostem de calçar macias botas de parada, durante as licenças, em terra.
Tirei uma grande preocupação da cabeça quando afinal coloquei minhas valiosas arcas sob a guarda de um renomado banqueiro de Cesaréia, a salvo dos perigos do mar. Os banqueiros têm de confiar uns nos outros, ou então a atividade comercial não seria possível. Assim, confiei neste homem embora só o conhecesse através de correspondência. Mas seu pai fora banqueiro do meu em Alexandria ou pelo menos lhe vendera documentos de viagem. Assim, estávamos de certa maneira ligados pelos negócios.
Cesaréia estava em paz, uma vez que os habitantes gregos tinham aproveitado a oportunidade para matar os judeus da cidade, inclusive as mulheres e crianças. Portanto, não se notavam vestígios da revolta, a não ser a azáfama no porto e as caravanas de muares que, escoltadas, transportavam equipamentos para as legiões que aguardavam do lado de fora de Jerusalém. José e Cesaréia eram os dois principais portos com que contava Vespasiano.
A caminho do acampamento de Vespasiano, vi quão desesperadora era a situação para os civis judeus que ainda restavam. Os samaritanos também se tinham associado e estavam prontos para entrar em ação. Os próprios legionários não distinguiam entre galileus, samaritanos e judeus em geral.
A fértil Galileia, com seu milhão de habitantes, estava devastada, com prejuízo duradouro para o reino romano.
É claro que oficialmente não era nossa, mas fora confiada ao governo de Herodes Agripa, em virtude de velhos laços de amizade.
Toquei nesse assunto logo que encontrei Vespasiano e Tito. Ambos me receberam cordialmente, pois estavam curiosos de saber o que se passava na Gália e em Roma.
Contou-me Vespasiano que os legionários estavam irritados com a violenta resistência dos judeus e que tinham sofrido baixas pesadas em conseqüência dos ataques às estradas, promovidos pelos fanáticos escondidos nas montanhas.
Fora ele obrigado a autorizar os comandantes dos legionários a estabelecerem a paz no campo, e uma expedição punitiva fora encarregada de destruir um dos baluartes judaicos, nas imediações do Mar Morto. Das torres tinham sido atiradas flechas, e, de acordo com fontes fidedignas, os fanáticos feridos ali se tinham refugiado.
Aproveitei o ensejo para fazer-lhes uma breve preleção sobre a fé e os costumes judaicos e explicar-lhes que se tratava evidentemente de uma das casas de retiro dos essênios, nas quais os partidários dessa seita se recolhiam, para exercícios religiosos, porque não. Desejavam pagar impostos ao templo.
Os essênios procuravam resguardar-se do mundo e eram antes inimigos que amigos de Jerusalém. Não havia razão para persegui-los.
Contavam com o apoio de certas pessoas pacíficas do território, que não podiam nem queriam pertencer formalmente à seita, mas preferiam levar uma modesta vida familiar sem fazer mal a ninguém. Se uma dessas pessoas recebera em casa algum fanático ferido que procurava proteção e lhe dera alimento e água, assim agira por motivos religiosos e não porque apoiasse a sublevação. A julgar pelo que me tinham dito meus companheiros de viagem, essas pessoas também tinham abrigado e alimentado legionários romanos feridos, fazendo-lhes ainda os curativos. Assim, não deviam ser liquidadas sem motivo.
Vespasiano resmungou que na Bretanha eu não me distinguira pelos conhecimentos sobre operações militares, de sorte que preferira enviar-me em excursões de recreio pelo país e conferir-me o posto de tribuno quando meu pai se tornou senador, mais por motivos políticos do que por qualquer outra coisa. Todavia, logrei convencê-lo de que não valia a pena matar os camponeses judeus ou incendiar lhes os lares humildes só porque haviam tratado dos feridos.
Tito concordou comigo. Enamorado da irmã de Herodes Agripa, Berenice, estava interessado nos judeus. Berenice vivia incestuosamente com o irmão, segundo o costume hereditário dos erodíamos, mas Tito dizia que nesse caso precisava aprender a entender os hábitos dos judeus.
Parecia ter esperanças de que o grande amor de Berenice pelo irmão arrefecesse e ela passasse a visitá-lo em sua confortável barraca de campanha, pelo menos à noite quando ninguém poderia vê-lo. Esta era uma questão em que achei que não devia envolver-me.
Fiquei profundamente magoado com as palavras desdenhosas de Vespasiano, a respeito de minhas viagens pela Bretanha. Por isso declarei que, se ele não se opusesse, gostaria de empreender uma idêntica viagem de recreio a Jerusalém, a fim de ver com meus próprios olhos as defesas da cidade sitiada e descobrir as brechas que talvez existissem na fortaleza dos judeus.
Era importante saber quantos mercenários partos disfarçados lá se achavam dirigindo a obra de reforço das muralhas. Os partos tinham adquirido muita experiência de assédios e defesas na Armênia.
De qualquer maneira, havia arqueiros partos em Jerusalém, já que não era aconselhável perambular nas imediações das muralhas.
Eu não era ignorante das questões relacionadas com operações militares a ponto de acreditar que, de uma hora para outra, os inexperientes tivessem aprendido a manejar com assustadora perícia o arco e a flecha.
Minha sugestão impressionou Vespasiano. Ele me olhou com atenção, passou a mão pela boca e explicou, rindo, que não podia arcar com a responsabilidade de permitir que um senador romano se expusesse a tamanho perigo, se é que eu falava a sério. Se eu Caísse prisioneiro, então os judeus exigiriam concessões da parte dele. Se perdesse minha vida ignominiosamente, isto acarretaria opróbrio para Roma e para ele também. Nero poderia meter na cabeça que ele, Vespasiano, procurara intencionalmente descartar-se de um dos amigos pessoais do Imperador.
Encarou-me com um ar astuto, mas eu conhecia suas manhas Portanto, respondi que, para o bem do Estado, põe-se de lado a amizade. Não tinha motivo para insultar-me, chamando-me amigo de Nero.
A esse respeito não precisávamos esconder nada um do outro Roma e o futuro da pátria eram as luzes que nos guiavam no campo de batalha, onde os cadáveres fediam, os abutres empan-turravam-se e os legionários pendiam, como sacos ressequidos pelo sol, nas muralhas de Jerusalém.
Alteei a voz retóricamente, como estava habituado a fazer no Senado. Vespasiano deu-me uma palmada amistosa nas costas.
com sua mão larga de camponês, e afiançou-me que de modo nenhum duvidava dos meus motivos e confiava no meu patriotismo.
Naturalmente, nunca lhe passara pela cabeça que eu fosse introduzir-me furtivamente em Jerusalém para divulgar os seus segredos militares; só um louco faria uma coisa dessas. Mas sob tortura nem mesmo um homem forte conserva a boca fechada, e os judeus provaram que são hábeis interrogadores, quando se trata de obter informações. Julgava seu dever garantir minha vida e segurança, de vez que voluntariamente eu me colocara sob sua proteção.
Apresentou-me a seu conselheiro José, um chefe rebelde judeu que traíra os amigos, depois que. todos decidiram suicidar-se, para não cair nas mãos dos romanos. José deixara morrer os amigos e depois se rendera, salvando a vida, ao profetizar que um dia Vespasiano seria Imperador.
Por pilhéria, Vespasiano mandara manietá-lo com algemas de ouro e prometera libertá-lo, se a profecia se cumprisse. Mais tarde, ao ver-se livre, adotou insolentemente o nome de Flávio José.
Desde o primeiro instante, tomei-me de antipatia por esse vil traidor, e o renome literário que ele desde então adquiriu não alterou em nada a minha opinião; na verdade, reforçou-a. Em sua absurda e volumosa obra sobre a rebelião judaica, ele superestima, no meu entender, a importância de muitos acontecimentos, e é demasiado palavroso ao narrar pormenores.
Minha crítica não é de modo algum influenciada pelo fato de não ter ele encontrado motivos para citar meu nome em seu livro, muito embora a mim somente se deva a continuação do cerco, uma vez que eu mesmo vira a situação dentro dos muros.
Teria sido loucura de Vespasiano, em tal conjuntura política, empregar suas bem disciplinadas legiões em inúteis ataques contra as muralhas inacreditavelmente fortificadas, quando o cerco e a fome produziriam o mesmo efeito. Baixas supérfluas iriam impopularizá-lo perante os legionários, o que não se ajustaria aos meus desígnios.
Mas nunca aspirei ao reconhecimento da história, e assim o silêncio desse desprezível judeu com referência à minha contribuição não tem a menor importância. Não costumo guardar rancor contra gente inferior e normalmente não vingo afrontas, a menos que a isso seja tentado por uma oportunidade extremamente favorável. Sou apenas humano.
Por intermédio de um dos meus libertos, cheguei até mesmo a propor a publicação dos livros de Flávio José, não só A Guerra dos Judeus, mas também as narrativas da história e dos costumes judaicos, mas José declarou preferir um editor judeu, apesar das vantajosas condições por mim oferecidas.
Mais tarde mandei editar a versão resumida, desautorizada, de A Guerra dos Judeus, pois o livro parecia ter boa saída. Meu liberto tinha família e mãe velha para sustentar, de modo que não me opus à sua sugestão, pois outra pessoa teria feito a mesma coisa.
Realmente só menciono José porque ele concordou servilmente com Vespasiano e foi contrários os meus pontos de vista. Riu escarninho e disse que era evidente que eu não sabia em que ninho de vespa estava querendo enfiar a cabeça.
Se acaso eu encontrasse um meio de passar para dentro dos muros de Jerusalém, não sairia vivo de lá. Depois de muitas objeções e subterfúgios, apresentou-me afinal um mapa da cidade. Tratei de decorá-lo, enquanto deixava crescer a barba.
Em si mesma uma barba não é disfarce seguro, pois os legionários tinham seguido o exemplo de seus ferozes adversários e deixado crescer a barba, sem por isso serem punidos por Vespasiano.
Este chegava mesmo a permitir que os legionários permutassem uma sova de vara por uma multa. Esta era uma das razões pelas quais ele era tão popular, mas também era difícil para ele manter os regulamentos militares romanos no centro de operações, uma vez que seu próprio filho Tito cultivava uma barba sedosa, para agradar à encantadora Berenice.
Dizendo que tinha de descobrir o local mais seguro para penetrar na cidade, iniciei uma longa excursão em derredor de Jerusalém e tive o cuidado de permanecer mais ou menos ao alcance dos arcos e máquinas de guerra do inimigo, se bem que naturalmente não arriscasse minha vida sem necessidade. Tinha meus motivos para isso, por tua causa. Assim, pus uma armadura forte c um elmo, embora esse equipamento me fizesse arquejar e suar em bicas. Durante aqueles dias perdi algumas libras de gordura, de modo que as correias logo deixaram de me apertar. Isso me fez bem.
Em minhas caminhadas, encontrei o local de execução dos judeus, onde Jesus de Nazaré fora crucificado. A minúscula colina tinha realmente a forma de uma Caveira, como me tinham dito, e disso derivava a sua denominação. Procurei o túmulo de pedra do qual Jesus de Nazaré ressurgira dos mortos no terceiro dia, e não foi difícil localizar porque os sitiantes haviam limpado o terreno e arrancado todas as moitas para que os espiões não pudessem fugir sorrateiramente da cidade. Encontrei muitos túmulos de pedra mas não podia saber ao certo qual deles era o que eu procurava, pois quanto a esses pormenores as informações de meu pai eram imprecisas.
Enquanto me movia com lentidão, os pulmões arfando e a armadura chocalhando, os legionários mangavam de mim e garantiam-me que eu não encontraria um ponto vulnerável que me permitisse alcançar em segurança a muralha, porquanto os partos tinham ajudado os judeus a fortificar Jerusalém com indiscutível mestria.
Os legionários não estavam muito inclinados a me resguardar com um teto protetor, porque ordinariamente sobre essas tartarugas chovia chumbo derretido do alto da muralha.
Perguntavam zombeteiros por que eu não levava um penacho de crina no elmo ou a minha faixa de púrpura. Mas a minha loucura não ia até esse ponto, e desde que eu respeitava os arqueiros partos, deixava minhas botas vermelhas na barraca, para não fazer alarde de minha posição social.
Nunca esquecerei a visão do templo de Jerusalém que esplendia no pico de sua montanha, muito acima das muralhas, ir realmente azul na luz da manhã, rubro como sangue quando o sol já se tinha escondido no vale.
O templo de Herodes era, na verdade, uma das maravilhas do mundo. Ao cabo de anos e anos de trabalho, fora enfim concluído pouco antes de sua destruição. Nenhum olho humano jamais o verá outra vez. Foi por culpa dos próprios judeus que ele desapareceu. Eu não quis tomar parte em sua destruição.
Certas especulações religiosas a que eu me vinha dedicando naquela época eram naturalmente resultantes do fato de que eu sabia que estava arriscando a vida pelo teu futuro, e assim me tornei sentimental de um modo incompatível com um homem da minha idade.
Ao pensar em Jesus de Nazaré e nos cristãos, resolvi que devia ajudá-los, no que me fosse possível, a se desvencilhar do peso morto dos judeus, que eles ainda, apesar de Paulo e Cefas, arrastam atrás de si como se fossem grilhões.
Não que eu realmente acreditasse que os cristãos tinham algum futuro político, mesmo sob o melhor Imperador possível, uma vez que eram excessivamente hostis e desunidos. Devido a meu pai, tenho certa fraqueza por Jesus de Nazaré e pelos seus ensinamentos. Quando minha inflamação do estômago se agravou, há coisa de um ano, estive mesmo disposto a reconhecer nele o Filho de Deus e o Salvador da humanidade, se tivesse piedade de mim.
Durante as noites bebia muitas vezes no velho e gasto cálice de minha mãe, porque sentia que precisava de toda boa sorte possível em minha arriscada aventura. Vespasiano ainda conservava o velho e amolgado copinho de prata de sua avó e lembrava-se do meu caneco de madeira, do tempo em que servimos juntos na Bretanha. Confessou que começara então a sentir ceita afeição paternal por mim, porque eu respeitava a lembrança de minha mãe e não levara comigo baixelas de prata e copos de ouro, como faziam muitos jovens cavaleiros ricos quando se iniciavam na carreira das armas. Tal comportamento só faz tentar o inimigo e espicaçar os saqueadores. Em sinal de nossa duradoura amizade, revezamo-nos bebendo em nossos sagrados cálices de família, pois eu tinha boas razões para deixar que Vespasiano sorvesse o vinho do copo da Fortuna. Ele iria precisar de toda a sorte que pudesse encontrar.
Imaginei que talvez conviesse envergar um traje judaico para entrar na cidade, mas depois achei que isso seria um tanto exagerado, porquanto numerosos mercadores judeus tinham sido crucificados no acampamento, como advertência aos que desejassem aproximar-se dos muros, durante a noite, e dar informações sobre nossos planos e novas máquinas de guerra.
Pus elmo, couraça, armadura e grevas, no dia em que finalmente, marchei para o ponto da muralha por mim escolhido. Pensei que esse equipamento me protegeria contra os primeiros golpes, se conseguisse entrar na cidade. Nossas sentinelas tinham ordem de disparar uma chuva de flechas no meu encalço e, fazendo grande alarido, atrair a atenção dos judeus para a minha tentativa.
Cumpriram tão bem as ordens recebidas, que me deram uma flechada no calcanhar, de modo que desde então passei a manquejar das duas pernas. Decidi que, se voltasse vivo, iria procurar saber quem fora esse arqueiro ultra zeloso e empenhar-me para que recebesse o mais duro castigo por ter infringido ordens precisas, que mandavam apontar para além de mim, se bem que o mais perto possível. Mas quando regressei, estava tão feliz que não me dei o trabalho de procurar o homem. Além disso, o ferimento concorreu para que os judeus acreditassem na minha história.
Após algumas descomposturas lançadas contra mim, os judeus atiraram pedras e flechas numa patrulha romana que me perseguia. Durante essa sortida, para minha imensa tristeza, dois honestos legionários foram mortos, e posteriormente assumi o compromisso de sustentar-lhes as famílias. Pertenciam à 15.a legião, que tinha vindo da Panônia, e nunca mais tornaram a ver as lamacentas ribanceiras do seu amado Danúbio, perecendo por minha causa na terra dos judeus.
Atendendo às minhas súplicas, os judeus afinal baixaram da muralha uma cesta e içaram-me nela. Senti-me tão amedrontado, no interior da cesta balouçante, que consegui arrancar a flecha do calcanhar sem experimentar dor alguma. As farpas, porém, cravaram-se na ferida, que logo começou a supurar, e na minha volta ao acampamento tive de socorrer-me do cirurgião de campanha. Provavelmente é daí que vem a minha manqueira. Minha experiência anterior com cirurgiões de campo fora bastante desagradável e devia ter-me servido de advertência.
Mas o ferimento era minha única esperança. Depois de darem vazão à raiva que lhes causava a minha indumentária romana, deixaram-me, por fim, explicar que eu era circunciso e convertido ao judaísmo. Uma vez certificados disto, dispensaram-me um tratamento um pouco melhor. Mas não gosto de recordar o centurião parto, em traje judaico, e seu feroz interrogatório para determinar minha identidade e a veracidade da minha história, antes de achar que podia entregar-me aos autênticos judeus.
Direi apenas que as unhas dos polegares arrancadas nascem de novo com bastante rapidez. Sei disso por experiência própria. As unhas dos meus polegares, contudo, não foram tidas na conta de mérito militar. Em casos tais, os regulamentos militares são absurdos, pois as unhas dos meus polegares me trouxeram mais dissabores do que as minhas excursões em volta das muralhas ao alcance das catapultas. No entanto, essas coisas são tidas na conta de mérito militar.
Ao Conselho dos fanáticos pude exibir um atestado e uma autorização secreta da sinagoga de Júlio César para celebrar ajustes. Esses valiosos papéis eu os escondera em minhas roupas e na- turalmente não os mostrara a Vespasiano, uma vez que os recebera em caráter confidencial. Os partos também não os podiam ler, pois estavam redigidos na língua sagrada dos judeus e selados com a Estrela de Davi.
O Conselho da sinagoga, que é ainda o mais influente em Roma, falou na carta do grande serviço que eu havia prestado aos judeus de Roma, durante a perseguição iniciada após a revolta de Jerusalém. Como um dos meus serviços, os conselheiros mencionaram a execução de Paulo e Cefas, porquanto sabiam que os judeus de Jerusalém, tanto quanto eles próprios, odiavam esses dois corruptores.
O Conselho dos hierosolimitas estava ávido de informações sobre o que acontecera em Roma, pois havia vários meses que não chegava nenhuma notícia precisa, a não ser um ou outro boato, recebido por intermédio de alguns pombos egípcios.
Tito procurara liquidá-los também, com gaviões amestrados, e o populacho faminto de Jerusalém torcera o pescoço dos restantes, antes que alcançassem o pombal do templo com suas mensagens.
Por segurança, não revelei que era senador romano e apresentei-me como um cavaleiro prestigioso, para não tentar demais os judeus. Evidentemente asseverei que, sendo um recém-convertido, o que podiam constatar pelas minhas cicatrizes, desejava fazer tudo quanto pudesse por Jerusalém e pelo Santo Templo. Assim, unira-me a Vespasiano e suas tropas, na qualidade de tribuno, e o induzira a crer que poderia vir colher informações para ele em Jerusalém. A flecha em meu calcanhar era pura má sorte, e a tentativa da patrulha de capturar-me era um ardiloso ataque simulado para enganar os judeus.
Minha franqueza impressionou-os de tal maneira que eles acreditaram em mim, tanto quanto é possível em condições de guerra. Deram-me permissão para andar livremente pela cidade, sob a proteção de barbudos guardas de olhos ardentes, dos quais, na verdade, eu tinha mais medo que dos habitantes esfaimados. Deixaram-me entrar no templo, também, já que eu era circunciso. Assim, sou uma das poucas pessoas que viram o interior do templo de Jerusalém em todo o seu inacreditável esplendor.
Com meus próprios olhos, pude certificar-me de que os candelabros de ouro com sete ramificações, os vasos de ouro e o pão da proposição, de ouro, continuavam em seus lugares. Somente eles valiam uma fortuna imensa, mas ninguém parecia pensar em surripiá-los. A tal ponto confiavam aqueles desvairados fanáticos na santidade do templo e em seu Deus Todo-Poderoso.
Todavia, por mais incrível que se afigure a uma pessoa sensata, eles não tinham ousado utilizar mais do que uma fração dos incomensuráveis tesouros do templo na compra de armas e fortificações .
Os judeus preferiam trabalhar até o último alento sem remuneração, a tocar nos tesouros do templo, ocultos no meio da montanha por trás das portas blindadas.
Toda a montanha do templo se assemelha a um escavado cortiço de abelhas com suas miríades de alojamentos para peregrinos e numerosas passagens subterrâneas. Mas ninguém esconde nada tão bem que não se possa descobrir, desde que mais de uma pessoa tome parte no ato de esconder e o esconderijo seja conhecido de muitos.
Convenci-me disso mais tarde, quando desentoquei os arquivos secretos de Tigelino. Pareceu-me importante que fossem destruídos, a bem do prestígio do Senado, de vez que neles os pontos de vista políticos e os hábitos pessoais de muitos membros de nossas mais antigas famílias apareciam sob uma luz estranha, homens insensatos que eram capazes de levar o povo a exigir que Tigelino fosse lançado às feras. Ele teria sido incomparavelmente mais perigoso morto do que vivo, caso seus arquivos caíssem nas mãos de um indivíduo sem escrúpulos.
É claro que entreguei o tesouro de Tigelino a Vespasiano, conservando comigo apenas algumas lembranças, mas não disse nada acerca dos documentos secretos, nem Vespasiano perguntou por eles, pois é mais atilado e esperto do que seu rude exterior indica.
Devo confessar que fiz a entrega do tesouro com o coração oprimido, uma vez que lá se achavam os dois milhões de sestércios em moedas de ouro de peso integral, que eu havia dado a Tigelino, antes de sair de Roma, já que ele era a única pessoa que podia duvidar de minhas boas intenções e impedir o meu embarque. Lembro-me bem de suas desconfiadas observações.
Por que — perguntou — está me dando tão grande quantia não solicitada?
Para fortalecer a nossa amizade — respondi com franqueza. — Mas também porque sei que você poderá usar esse dinheiro da maneira correta, se os tempos piorarem. Que os deuses de Roma nos resguardem de tais acontecimentos.
O dinheiro ainda estava lá, porque Tigelino era um sujeito avarento. Mas ele soube como proceder quando chegou sua vez. Foi ele que fez com que os Pretorianos abandonassem Nero, quando se deu conta de que sua própria pele corria perigo.
Por isso, a princípio ninguém lhe quis mal, e Galba lhe deu boa acolhida. Foi Oto que mandou assassiná-lo, ao sentir-se demasiado inseguro na maré da popularidade temporária. Lamentei sempre sua desnecessária morte, pois ele merecia uma velhice amena após sua conturbada mocidade. Nos últimos anos de Nero, viveu sob constante opressão, a ponto de não dormir e tornar-se ainda mais implacável do que antes.
Mas por que penso nele? Minha tarefa mais importante na sitiada Jerusalém, eu a cumpri quando descobri que o tesouro ainda estava lá e intacto. Mercê da perfeição do nosso cerco, eu sabia que nem mesmo um rato com uma moeda de ouro na boca poderia fugir de Jerusalém.
Deves compreender que, devido a ti e ao teu futuro, eu não podia oferecer a Vespasiano um empréstimo do conteúdo das minhas vinte arcas de ferro, que estavam em Cesaréia, para ajudá-lo a subir ao trono imperial.
Eu confiava na honestidade dele, mas as finanças de Roma andam confusas e a guerra civil é iminente. Tinha de garantir minhas esperanças, que eram a única razão pela qual arrisquei minha vida e fui para Jerusalém.
Como era natural, também colhi informações sobre as defesas da cidade, as muralhas, catapultas, mantimentos e água, pois me
convinha falar disso a Vespasiano. As cisternas subterrâneas tinham água mais do que suficiente para abastecer a cidade. Logo no princípio do cerco, Vespasiano cortara, confiando nos resultados que isso produziria, o aqueduto que o Procurador Pôncio Pilatos mandara construir quarenta anos antes, e a que os judeus se tinham oposto com todas as suas forças, porquanto não queriam depender de água vinda de fora. Isso também provava que a revolta vinha sendo preparada desde muito e que os judeus passaram muito tempo aguardando uma ocasião propícia.
A cidade não tinha reservas de víveres. Vi mulheres magras como sombras, com crianças ossudas nos braços, tentando em vão espremer uma última gota de leite dos seios. Tive pena dos velhos também, que não recebiam rações. Os fanáticos que portavam armas e fortificavam as muralhas precisavam de toda a comida.
No mercado de carne observei que um pombo e um rato eram tesouros que custavam seu peso em prata. Havia rebanhos inteiros de ovelhas no templo para os holocaustos diários ao sanguinário Jeová dos judeus, mas a multidão faminta nem sequer ousava tocá-las. Quase não precisavam ser vigiadas, pois eram animais sagrados. Os sacerdotes e membros do Conselho ainda estavam, naturalmente, bem alimentados.
Os padecimentos do povo judeu acabrunharam-me, pois na balança do deus inexplicável as lágrimas de um judeu presumivelmente pesam tanto quanto as de um romano, e as lágrimas das crianças mais do que as dos adultos, sem distinção de língua e cor da pele. Mas era necessário prolongar o cerco por motivos políticos, e os judeus deviam sua sorte à própria obstinação.
Todo judeu que se atrevesse a falar em capitulação ou entendimento com os romanos era imediatamente executado e acho que terminava no mercado de carne, se me permitem dar minha opinião pessoal. José, no seu relato, e só para suscitar compaixão, se refere apenas a umas poucas mães que comeram os próprios filhos. Essas coisas eram tão comuns em Jerusalém que até mesmo ele foi obrigado a registrá-las, para garantir pelo menos algum viso de probidade quanto à exatidão histórica.
Posteriormente ofereci a José uma quantia razoável pela edição de A Guerra dos Judeus que a minha casa editora vendeu, se bem que tivéssemos o direito de publicar a obra.
José recusou o dinheiro e, como fazem todos os autores, apenas queixou-se dos cortes que eu fizera, com o fim de ampliar a venda do livro. Inutilmente procurei convencê-lo de que tais cortes lhe tornaram o livro bem menos enfadonho. Os escritores são sempre vaidosos.
Quando chegamos a um acordo sobre o tipo de informação enganosa, concernente às defesas da cidade, que eu devia dar a Vespasiano e os meios pelos quais a sinagoga de Júlio César em Roma podia apoiar secretamente a revolta judaica sem nenhum risco para seus membros, o Conselho Judeu deixou que eu saísse da cidade. De olhos vendados, fui levado por uma passagem subterrânea e jogado numa pedreira no meio de cadáveres putrefatos. Arranhei os joelhos e cotovelos engatinhando na pedreira, e não foi muito agradável tropeçar e enfiar a mão num cadáver intumescido, pois os judeus me tinham proibido tirar a venda dos olhos antes de decorrido certo tempo. Em caso de desobediência, mandariam transpassar-me o corpo com uma flecha, sem piedade.
Entrementes, ocultaram com tanta perfeição a abertura da passagem secreta que tivemos enorme dificuldade em achá-la de novo. Afinal foi encontrada, uma vez que eu tinha de tapar todos os buracos. A maneira como se deu a minha volta abriu-nos os olhos e ensinou-nos a procurar saídas da cidade nos lugares mais improváveis. Com promessas de recompensas, fiz com que os legionários cavassem o terreno. Apesar de tudo, num ano inteiro descobrimos apenas três. Mas, durante algum tempo depois do meu regresso de Jerusalém, receei que as garantias para o teu futuro estivessem diminuindo. Contudo, não precisava preocupar-me. O tesouro ainda estava lá quando Tito capturou a cidade, e Vespasiano pagou as dívidas.
Dessa forma passei um ano completo no Oriente, circulando desassossegado em volta de Vespasiano, à espera de que chegasse a hora.
Vespasiano
Aproveitei o período de espera para trabalhar pela minha causa junto a Vespasiano, valendo-me de meios indiretos, e êle percebeu a insinuação, mas era um homem precavido.
Nero morreu na primavera seguinte, isto é, se é que está morto mesmo. Em um ano Roma foi governada por três Imperadores: Galba, Oto e Vitélio. De certa maneira, por quatro, se contarmos o insolente golpe de Estado que Domiciano, então com dezoito anos, desfechou em Roma, por conta do pai. Mas esse logo se tornou desnecessário.
Achei divertido que Oto tenha sido Imperador, depois de Galba. Popéia teria sido a imperial consorte no fim de contas, ainda que não se divorciasse de Oto. Assim, a profecia estava duplamente confirmada. Não sou supersticioso, mas toda pessoa sensata deve, de vez em quando, atentar para os sinais e augúrios.
Vitélio tomou o poder, com o apoio das legiões germanas, assim que soube do assassínio de Galba. Creio que o motivo da queda súbita de Oto foi ter êle tido a ousadia de furtar a espada sagrada de teu avoengo, Júlio César, do templo de Marte, ato que nem a moral nem o direito o autorizava a praticar. Essa prerrogativa é tua, Júlio Antoniano Cláudio, uma vez que descendes diretamente das linhagens dos Julios e Claudios, como descendiam todos os Imperadores Julianos. Felizmente a espada foi devolvida e mais uma vez consagrada no templo de Marte.
Com a derrota das suas legiões em Bedríaco, Oto suicidou-se, já que não desejava prolongar a guerra civil, embora contasse com novas tropas. Sua última carta foi dirigida à viúva de Nero, Esta-tília Messalina, e nela Oto lamentava não ter podido cumprir a promessa de desposá-la. Seu corpo e seu testemunho, declarou nesta carta, que para um comandante e Imperador era sumamente e inadequadamente emocional, êle os deixava aos cuidados de Estatuía. Desse modo, num brevíssimo espaço de tempo, Estatília recebeu o encargo de zelar por dois túmulos imperiais.
De Aulo Vitélio é suficiente dizer que passou seus verdes anos em Cápreas como Companheiro do Imperador Tibério. Reconheço de bom grado os serviços de seu célebre pai ao Estado, mas Aulo era tão depravado que nem o próprio pai quis conferir-lhe a função de Procônsul. Logrou as benesses de três Imperadores mais com seus vícios do que com suas virtudes. Nero contava-o no número dos seus amigos, mas eu nunca tive maior aproximação com êle. Na verdade, evitava a sua companhia até onde era possível.
Sua única ação honrosa foi quando desafiou o Senado, atre-vendo-se a celebrar um sacrifício a Nero, no campo de Marte, na presença de todos os colégios de sacerdotes, findo o qual, no banquete que ofereceu, pediu ao mais famoso citaredo de Roma que interpretasse exclusivamente as canções que Nero tinha escrito e composto, e em seguida aplaudiu-as entusiasticamente como fizera quando Nero era vivo. Desse modo contrabalançou a carta insultuosa que o Propretor Júlio Víndex escrevera a Nero e que se tornou a causa da guerra civil. Nessa carta Víndex chamou Nero de medíocre citarista, pois sabia que isto o ofenderia mais do que qualquer outra acusação.
No meu modo de ver, o grande erro político de Vitélio foi ter licenciado as coortes pretorianas e mandado executar cento e vinte homens, entre eles tribunos e centuriões, que foram responsáveis pelo assassínio de Galba. Desse ponto de vista, mereciam antes recompensa que castigo. Não admira que um tal capricho tenha levado os comandantes de legiões a duvidarem justificadamente de sua fidedignidade como Imperador.
Não quero falar mais do assassínio impiedoso de tantos nobres. Referirei apenas que êle nem sequer poupou certos banqueiros que lhe poderiam ter sido úteis, mas, esperando proveito fácil, mandou executá-los e confiscar-lhes os bens, sem se dar conta de que é mais prudente ordenhar uma vaca do que matá-la.
Quando o reinado de Vitélio atingiu o oitavo mês, recebi certas informações que me fizeram crer que era chegado o momento de persuadir Vespasiano. Prometi emprestar-lhe toda a minha fortuna, com parte do tesouro do templo de Jerusalém e outros despojos de guerra, como garantia, para financiar sua elevação ao trono. Aludi às minhas vinte arcas de ferro, cheias de ouro. Evidentemente, elas não continham toda a minha fortuna, mas eu queria que êle percebesse como eu confiava em suas probabilidades.
O cauteloso Vespasiano resistiu por tanto tempo que afinal Tito, aquiescendo a um alvitre meu, teve de forjar uma carta em que Galba indicava Vespasiano como .herdeiro. Tito foi o mais hábil falsificador que jamais conheci e podia copiar fielmente qualquer caligrafia. O que isso prova acerca do seu caráter é melhor não dizer.
Se Vespasiano acreditou na autenticidade da carta de Galba, não sei. Êle conhece seu filho. De qualquer modo, lastimou-se a noite inteira, na tenda, até que não pude suportar mais e mandei distribuir alguns sestércios, por homem, entre os legionários, de modo que, ao alvorecer, o aclamassem Imperador.
Eles o fizeram de boa-vontade e provavelmente o fariam de graça, mas eu esperava ganhar tempo. Por sugestão minha, fizeram chegar ao conhecimento das outras legiões que comandante bom, compreensivo e talentoso era Vespasiano, do ponto de vista do soldado.
Depois de aclamado Imperador do lado de fora dos muros de Jerusalém, Vespasiano surpreendeu-se alguns dias depois ao receber uma mensagem das legiões da Mésia e Panônia que haviam jurado lealdade a ele sem o seu conhecimento. Apressou-se a enviar o soldo atrasado às legiões do Danúbio, como elas reclamavam na carta. Minhas arcas de dinheiro guardadas em Cesaréia revelaram-se utilíssimas, muito embora a princípio Vespasiano resmungasse que estava certo de que seu bom conceito lhe propiciaria crédito entre os ricos mercadores da Síria e do Egito. De início não partilhamos da mesma opinião acerca do que por justiça me caberia na divisão do tesouro do templo.
Lembrei-lhe que Júlio César conseguira contrair dívidas colossais firmado unicamente em seu nome e no que esperava do futuro, e que os credores se viram compelidos a apoiá-lo politicamente desde que, em última análise, foram necessários todos os despojos das ricas e férteis Gálias para pagar esses débitos. Mas César era jovem então e, política e militarmente, se sobressaíra infinitamente mais do que Vespasiano, que além de estar envelhecendo era bem conhecido por sua simplicidade. Depois de muito regateio, porém, chegamos a um acordo razoável.
Mas enquanto Nero vivesse, Vespasiano jamais trairia seu juramento militar ou a confiança de Nero. A lealdade é estimável, mas as circunstâncias políticas não tomam em consideração a honra de um homem quando se modificam.
Apesar disso, Vespasiano concordou em assumir o pesado encargo dos deveres imperiais, quando viu que os negócios do Estado andavam à matroca e que a guerra civil prosseguiria indefinidamente, caso ele não agisse. Interveio em consideração à gente simples do campo, que almejava somente paz, tranqüilidade e uma vida familiar modesta e feliz. A maioria das pessoas é desse feitio e, por isso, não tem voz muito ativa na gestão dos negócios do mundo.
Sinto que devo contar-te tudo o que sei a respeito da morte de Nero, embora não a tenha presenciado. Como amigo de Nero, e movido pela humana curiosidade, julguei de meu dever investigar esse obscuro episódio tão cuidadosamente quanto possível.
Estatília Messalina acredita piamente que Nero morreu da maneira que se diz e que os historiadores confirmam. Mas Nero a tinha desterrado para o Âncio, e ela não foi uma testemunha ocular. Quanto a Acte, não estou certo, pois ela visita com tanta fidelidade o tumulo de Nero, que estou inclinado a crer que tinha algo a ocultar. Foi uma das poucas pessoas presentes quando Nero consumou seu hoje famoso suicídio.
Ao perceber que a revolta gaulesa chefiada por Víndex começava a tornar-se perigosa, Nero voltou de Nápoles para Roma. A princípio não levara a questão a sério, se bem que, como era de esperar, estivesse magoado com a despudorada carta de Víndex.
Em Roma, Nero convocou o Senado e os membros mais prestigiosos da Ordem dos Cavaleiros, para um conselho secreto, no Palácio Dourado, mas, sensível como era, logo notou a frieza e a má-vontade com que o tratavam.
Depois dessa reunião, ficou realmente assustado. Quando soube que Galba aderira aos rebeldes na Ibéria, desmaiou, pois compreendeu que seu enviado não chegara a tempo de dizer a Galba que, para o bem do Estado, se suicidasse.
Quando a notícia da traição de Galba se espalhou em Roma, houve uma onda de ódio insensato contra Nero, tal como nunca ocorrera desde o tempo de Otaviano Augusto e a queda de Marco Antônio.
Não desejo repetir tudo quanto se disse dele e as infâmias rabiscadas nas suas estátuas. A insolência atingiu o auge quando o Senado escondeu as chaves do Capitólio, depois que Nero pediu a ambas as Ordens que renovassem seus juramentos de lealdade e suas sagradas promessas.
As chaves logo foram encontradas, naturalmente, quando após uma longa espera e enfurecido, Nero ameaçou executar ali mesmo todos os principais senadores, sem se incomodar com a santidade do Capitólio. O desaparecimento das chaves foi interpretado pelos espectadores que ali aguardavam impacientes, como o pior presságio para Nero.
A Nero ainda restavam muitas possibilidades. Tigelino organizara uma longa lista, que mais tarde encontrei em seu esconderijo secreto, e que também continha o meu nome bem visível. Mas perdoei-lhe isso, de boa vontade, em nome de nossa amizade. O que mais me surpreendeu foi a clarividência com que êle reconhecera a necessidade de passar à espada certos elementos-chaves da função pública, logo que a rebelião estourou na Gália e Ibéria.
Na lista figuravam ambos os Cônsules e tantos senadores, que me senti horrorizado ao lê-la. Aborrecia-me o ter de destruí-la por motivos políticos. Teria sido divertido ler algum tempo depois uns nomes que dela constavam para certos hóspedes que eu era forçado a convidar por força de minha posição, se bem que não tivesse particular apreço pela companhia deles.
Nero contentou-se com destituir os dois Cônsules e assumir êle próprio as funções, desde que sua sensibilidade e amor à humanidade o impediam de pôr em prática o rigoroso programa que poderia salvá-lo.
Ele ainda tinha o apoio dos Pretorianos, graças a Tigelino. Mas isso implicaria em desbastar a árvore até o último galho e ele achava que nem mesmo a mais forte das árvores resistiria a tal tratamento.
Depois do seu triunfo artístico na Grécia, Nero se tornara ainda mais enfarado dos deveres imperiais. Se o Senado merece-se mais confiança na época, creio que Nero teria transferido para ele grande parte dos seus poderes. Ma- sabes da desunião existente no Senado, das suas malquerenças internas e intrigas constantes. Nem mesmo o governante mais esclarecido pode confiar totalmente no Senado, nem sequer Vespasiano. Espero que te lembres sempre disso, embora eu mesmo seja senador e faça o possível para defender suas tradições e autoridade.
Ainda assim, o Senado é um instrumento melhor de governo do país do que os indivíduos irresponsáveis. Para ser membro do Senado são necessários certos requisitos, ao passo que o povo segue irracionalmente o homem que promete azeite gratuito e arranja os melhores espetáculos teatrais e a maioria dos feriados sob o disfarce. O povo é um elemento perigoso e precário no desenvolvimento equilibrado do Estado e pode inutilizar os melhores cálculos. Portanto, é preciso mantê-lo em paz e satisfeito.
Nero não queria guerra, menos ainda a guerra civil, que para todos os Julia nos, com suas amargas reminiscências, é a pior coisa que pode acontecer a um Imperador.
Entretanto, nada fez para abafar a rebelião, pois desejava evitar desnecessário derramamento de sangue.
Respondia aos críticos dizendo ironicamente que talvez fosse melhor ir ele mesmo, sozinho, ao encontro das legiões que se aproximavam de Roma, em marcha triunfal e, cantando, trazê-las para o seu partido. Para mim, isso revelava que ele podia ter concebido planos inteiramente seus. Não era inutilmente que na juventude teria preferido estudar em Rodes a dedicar-se a política. Sempre suspirara pelo Oriente e nunca conseguira ir além da Acaba.
Os conhecimentos de Nero acerca da Partia ultrapassavam as habituais informações militares concernentes a pastagens, estradas, mananciais, vaus, desfiladeiros e fortificações.
Também gostava de falar da civilização característica dos partos, se bem que nos ríssemos dele, uma vez que, para os romanos, os partos são e serão sempre bárbaros até o dia em que Roma os civilizar.
Depois da morte de Nero, achei que talvez sua idéia de dar um concerto em Ecbátana não fosse só uma pilhéria. Descobri que tocar cítara e cantar são agora o ponto alto da moda nos círculos aristocráticos da Partia. Nesse caso, estão atrasados. Aqui em Roma, como péssima conseqüência da conquista de Jerusalém, temos um constante retinir e zangarrear de instrumentos musicais do Oriente. Sistros e pandeiros, ou que outro nome tenham.
A música desses jovens novidadeiros arrasa a saúde de um sujeito avelhantado como eu. Às vezes recordo a mania da cítara da época de Nero como uma desaparecida idade de ouro, embora eu não seja musical, como tu e tua mãe fazeis questão de me lembrar.
Não posso compreender como é que precisas ter, quando estudas, um escravo atrás de ti, vibrando um sistro ou batendo uma na outra duas tampas de caçarolas de cobre, enquanto um cantor rouquenho geme baladas egípcias. Eu enlouqueceria se tivesse de ouvir essas coisas continuamente. E, no entanto, dizes a sério que de outro modo não te podes Concentrar nos estudos. Como sempre, tua mãe fica do teu lado e acha que não entendo de coisa alguma. Sem dúvida cultivarias uma barba também, se pudesses tê-la aos quinze anos.
Nero permaneceu inativo, magoado pelas calúnias e afrontas públicas que tivera de suportar. As tropas de Galba marchavam vitoriosas e, graças a Nero, não provadas na batalha, em direção a Roma.
Então, chegou a véspera do dia de Minerva. Tigelino, para salvar a pele, colocou os Pretorianos à disposição do Senado.
Em primeiro lugar, o Senado foi convocado em segredo para uma reunião ao amanhecer. Nem todos os senadores que estavam em Roma receberam a notificação, mas só os dignos de confiança, e, naturalmente, Nero foi excluído, muito embora tivesse direito a comparecer, uma vez que era um senador como os demais e de grau mais elevado que eles. Tigelino tomou providências para que os guardas pretorianos e os germanos da guarda pessoal do Imperador se retirassem do Palácio Dourado, na mudança da guarda, durante a noite.
Os Cônsules que Nero havia ilegalmente destituído assumiram a presidência e o Senado deliberou, por unanimidade, nomear Galba, um velho calvo e depravado que dispensava seus favores a amantes atléticos, para Imperador. Igualmente por unanimidade, o Senado declarou Nero inimigo do Estado e condenou-o, como tinham feito seus antepassados, a morrer açoitado. Quanto a isso, o Senado reconhecia que Nero era um senador com plenos direitos, pois um senador só pode ser julgado por seus pares. Todos tinham como certo que Nero se suicidaria para fugir a um castigo tão desumano. Tigelino, evidentemente, foi um dos votantes mais insofridos.
Nero acordou à meia-noite, no quarto de dormir do seu deserto Palácio Dourado, com sua fiel "esposa" Esporo na outra cama.
Restavam a seu serviço apenas alguns escravos e libertos, e embora tenha enviado mensagens aos seus amigos, nenhum lhe deu resposta e muito menos apoio.
Para experimentar totalmente a ingratidão do mundo, Nero saiu a pé pela cidade, com alguns fiéis serviçais, e debalde bateu à porta das casas que outrora presenteara generosamente a seus amigos. Mas as portas continuaram fechadas e do interior não veio uma palavra em resposta. Por segurança, os moradores tinham até açaimado o focinho dos cachorros.
Quando voltou ao^ Palácio Dourado e entrou no quarto de dormir, viu Nero que já lhe tinham roubado as cobertas de seda e outros artigos valiosos. Montou a cavalo e^partiu, descalço, encapuzada a cabeça e vestindo apenas uma túnica e um manto de escravo, para a quinta de um dos seus libertos, que, segundo conta este mesmo homem, fora oferecida a Nero como esconderijo. Essa vila está localizada à margem da Via Salária, ao lado da estrada que passa perto do quarto marco miliário. Deves estar lembrado de que Séneca passou o último dia de vida em sua casa, nas proximidades do quarto marco miliário, e que Cefas voltou para Roma quando já havia alcançado o quarto marco miliário, na Via Ápia.
Nero estava acompanhado de quatro homens: Esporo, o liberto, surpreendentemente Epafrodito e um indivíduo que, por ter-se mostrado tagarela no fórum, o Senado mandou eliminar. Acte já estava na vila, aguardando Nero. Achei que a cena fora cuidadosamente arranjada e foi muito bem representada. Nero foi um dos melhores atôres de sua época e dava grande valor à encenação, de sorte que no teatro estava sempre fazendo observações sobre um pilar mal colocado ou a iluminação defeituosa, que fazia sobressair um personagem secundário, enquanto êle cantava.
Quando cavalgava, houve um tremor de terra e o raio caiu na estrada à sua frente. O cavalo espantou-se, ao sentir o cheiro de um cadáver, e ergueu-se nas patas traseiras. Nero trazia a cabeça coberta, mas quando o cavalo se empinou, o capuz escorregou e revelou-lhe o rosto. Por acaso, um velho Pretoriano reformado reconheceu-o e saudou-o como Imperador.
Isso aumentou a pressa de Nero, pois êle temia que seu plano fosse descoberto cedo demais. Isto é o que dizem os depoimentos do liberto e de Epafrodito. Esporo sumiu posteriormente, sem deixar vestígio, e Oto nunca o encontrou, embora tivesse gostado imensamente de pôr à prova, na cama, os talentos da "esposa" de Nero. Oto também propôs casamento a Estatília, confiante no comprovado gosto de Nero nessas matérias.
Não desejo repetir tudo o que aqueles dois homens contaram a respeito da angústia mental de Nero, seu pavor e sofrimento; como Nero bebeu água de um charco, apanhando-a com as mãos em concha, e arrancou os espinhos de seu manto de escravo, depois de avançar de rastos por entre as moitas até à vila. Relataram tudo tintim por tintim, para o imenso gáudio do Senado e dos historiadores.
Nero planejara tudo tão cuidadosamente, de antemão, que chegou até a deixar o rascunho de um discurso em que pedia perdão para os crimes que cometera, por motivos políticos, e implorava ao Senado que lhe poupasse a vida e o nomeasse procurador, em alguma modesta província oriental, pois, no seu entender, prestara bons serviços ao Senado e ao povo de Roma.
Desse modo, Nero produziu a impressão de agir sob a ameaça de morte e estar sob o domínio do terror cego. Mas aquelas duas testemunhas não teriam logrado convencer nenhum ouvinte lúcido. Os únicos a se deixarem convencer foram aqueles que tudo haviam feito para levar Nero ao suicídio e que, portanto, achavam que suas esperanças se tinham concretizado.
Nero lembrou-se de legar à posteridade, como suas últimas palavras, uma esplêndida réplica: "Que artista o mundo vai perder comigo!" Friso de boa-vontade essas palavras porque, pouco depois, compreendi que mestre da arte de viver e das artes, sim, que verdadeiro amigo da humanidade Roma perdeu com Nero, por mais espinhoso que fosse, às vezes, estar a seu lado, em conseqüência de sua extravagância e presunção. Mas ninguém deve ter ilimitados poderes nas mãos durante dezessete anos; lembra-te disto, meu filho, se alguma vez te impacientares com a lentidão de teu pai.
Quando acabaram de cavar o túmulo, empilhar à roda dele blocos de mármore, reunir bastante lenha e trazer água para derramar no mármore calcinado, chegou um mensageiro de Roma com uma carta para o liberto. Por ela, Nero soube que Galba fora proclamado Imperador, e que ele próprio devia ser açoitado até expirar. A representação tinha de continuar, para dar a Esporo a oportunidade de carpir-se como viúva, ao lado do cadáver, mas um acontecimento inesperado forçou os Conspiradores a se apressarem.
O leal veterano que reconhecera Nero na estrada não correu a relatar a fuga do Imperador, como qualquer pessoa sensata teria feito, mas, ao invés disso, rumou com suas pernas trôpegas para o acampamento dos Pretorianos. Ali todos lhe conheciam as cicatrizes e o bom nome, e, como membro da confraria de Mitras, o velho gozava da confiança do centurião. O momento era o mais propício possível, com Tigelino ainda no Senado,' onde indivíduos loquazes continuavam a expressar sua ira e seu zelo patriótico, agora que podiam por uma vez ao menos falar sem serem interrompidos.
O velho fez um discurso a seus camaradas, dizendo-lhes que se lembrassem de seu juramento militar e de sua dívida de gratidão a Nero, assim como dos vergões que a vara de Tigelino lhes deixara nas costas. Ambas as legiões pretorianas praticamente decidiram por unanimidade dar apoio a Nero. Estavam certos da generosidade dele, ao passo que Galba era conhecido pela sovinice.
Resolveram enfrentar a força com a força e não duvidavam do resultado da batalha, pois imaginavam que muitos legionários abandonariam Galba, se vissem as tropas de escol de Roma dispostas ao combate. Imediatamente mandaram um troço de cavalarianos, sob o comando de um centurião, procurar Nero e trazê- lo para a segurança do acampamento. Mas os soldados perderam muito tempo, procurando o esconderijo de Nero, pois de início não pensaram na distante vila do liberto.
Mas Nero já se fartara do poder. Assim que tomou conhecimento da missão dos cavalarianos, mandou dizer-lhes pelo liberto que fossem embora. Então Epafrodito apunhalou-o na garganta, perito como era em certos jogos a que Nero costumava dedicar-se
Nero evidentemente escolheu o suicídio mediante uma punhalada na garganta, para mostrar ao Senado que sacrificava até mesmo suas cordas vocais, de modo que não surgissem dúvidas acerca de sua morte. Se mais tarde outro grande cantor fosse conquistar nomeada no Oriente, ninguém sequer pensaria em Nero pois todos saberiam que ele cortara a própria garganta.
Quando o sangue jorrou artisticamente da ferida, Nero, reunindo as últimas reservas de força, recebeu o centurião, numa voz entrecortada agradeceu-lhe a fidelidade, depois voltou os olhos para o alto e expirou com tão críveis estertores e convulsões, que o calejado guerreiro, de lágrimas nos olhos, cobriu-lhe o rosto, com seu manto escarlate de centurião, para que Nero morresse ao modo dos Imperadores, com o rosto velado.
Júlio César, também, cobriu a cabeça, para honrar os deuses, quando os punhais dos assassinos crivaram-lhe o corpo. O liberto de Nero e Epafrodito disseram em seguida ao centurião que, para o bem dele mesmo e de todos os pretorianos leais, seria mais prudente voltar ao acampamento, levando a notícia da morte de Nero, para que ninguém cometesse alguma tolice. Depois, corresse ao Senado e dissesse que, na esperança de recompensa, seguira Nero, para capturá-lo vivo e entregá-lo aos senadores, mas que Nero se suicidara.
As manchas de sangue no manto que pusera em cima do corpo constituíam prova suficiente, mas sem dúvida podia também cortar a cabeça de Nero e levá-la consigo para o Senado, caso julgasse tal feito compatível com sua honra de soldado. Mesmo sem isso, podia estar certo de ser recompensado pela boa nova. Nero desejava que seu corpo fosse cremado discretamente e sem estar mutilado.
O centurião deixou o manto para servir de prova, uma vez que o Senado enviaria imediatamente uma comissão à vila, para investigar as circunstâncias em que se dera a morte de Nero. Logo que êle e os cavalarianos foram embora, os fiéis conspiradores agiram com rapidez.
Era fácil achar um cadáver, do mesmo tamanho e compleição do de Nero, naqueles dias conturbados em que muitos jaziam nas valas, ao longo das estradas, após os motins que precederam à chegada de Galba.
Assim, sem perda de tempo, colocaram o corpo na pira, acenderam o fogo e despejaram azeite por cima. Onde, como e com que disfarce Nero prosseguiu em sua fuga, não sei dizer. Mas estou plenamente convencido de que foi levado para o Oriente, provavelmente em busca da proteção dos partos.
A corte dos Arsácidas guarda tantos segredos, há mais de trezentos anos, que suponho que nisto esse povo supera os romanos. Somos tagarelas até no Senado. Os partos conhecem a arte de ficar calado.
Reconheço que o inesperado incremento do gosto pela cítara na Partia é a única prova concreta que posso apresentar em abono das minhas conclusões. Sei que Nero jamais voltará a procurar poder em Roma. Todos os que o tentam ou venham a tentar no futuro, mesmo que tragam cicatrizes na garganta, são falsos Neros e nós os crucificados sem hesitação.
Os companheiros de Nero já tinham ido tão longe na cremação que, quando chegaram, os investigadores os encontraram derramando água nos fumarentos blocos de mármore, que se desmanchavam feito cal e cobriam os restos do cadáver, formando uma concha que escondia todas as feições. Nero não tinha deformidades pelas quais se lhe pudesse identificar o corpo. O dente que extraíra na Grécia fora arrancado ao cadáver também, por segurança.
O que sobrara da pira fora embrulhado num manto branco bordado a ouro, que Nero usara naquele inverno na festa das Sa-turnálias. Com permissão de Galba, duzentos mil sestércios foram empregados nas cerimônias fúnebres. Num sarcófago de pórfiro, no mausoléu dos Domicianos, jaz um cadáver semi-incinerado numa concha de cal. Qualquer pessoa pode ir lá para certificar-se de que Nero está realmente morto. Estatília e Acte nada têm contra as honras prestadas pelo povo à memória de Nero.
Eu te falei da morte de Nero para que estejas preparado, caso aconteça algo inesperado. Nero tinha apenas trinta e quatro anos quando escolheu, em lugar da guerra civil, fingir-se de morto
a expiar seus crimes e começar vida nova. Onde, ninguém sabe. No momento em que escrevo, ele teria quase quarenta e três.
Minhas suspeitas nasceram quando reparei que tudo acontecera no dia do assassínio de Agripina e que Nero saiu da cidade a cavalo, com a cabeça coberta e de pés descalços, dedicado aos deuses. O misterioso desaparecimento de Esporo é, a meu ver, outra prova. Nero não podia viver sem ele, que era a imagem de Popéia, como já disse. Muitos senadores perspicazes têm a mesma opinião que eu tenho, acerca da morte de Nero, ainda que, como é natural, nós nunca a externemos em público.
Galba mostrou-se indulgente, no que respeita aos restos mortais de Nero, em atenção às pessoas que genuína e justificadamente prantearam a sua morte. Galba desejava convencer o mundo de que Nero tinha realmente morrido.
Assim, não fez caso do labéu de inimigo do Estado com que o brindou o Senado.
Desconfiando- do Senado, Galba pensava em limitar a dois anos o período de exercício de um senador. Idéia absurda, desde que nosso cargo sempre, foi vitalício, embora isso significasse que temos de tolerar entre nós alguns anciãos que, às vezes, desperdiçam tempo falando com enlevo da passada idade de ouro. É uma doença de que todos nós podemos padecer. Assim, respeitamos pacientemente a velhice e os longos serviços prestados, em contraste com os jovens, que não apreciam tais coisas, até o momento em que calçam as botas de senador.
Portanto, não causou surpresa que a cabeça de Galba fosse em breve carregada de um lado para outro, no fórum. Como a cabeça não tinha um só fio de cabelo, o soldado que a levava tinha de pegá-la pela boca. Depois de ter recebido a recompensa das mãos de Oto, o soldado deu a cabeça aos outros Pretorianos, que a conduziram em algazarra pelo acampamento.
À parte sua sovinice, pois ele nem mesmo lhes pagara uma razoável bonificação quando subiu ao trono, os Pretorianos se exacerbaram por ter ele, depois de apaixonar-se por um gigante germano da guarda imperial, passado a noite inteira com o homem, exaurindo-o de todas as maneiras, e de manhã não lhe ter dado sequer dois sestércios para um caneco de vinho, limitando-se a dizer que o homem devia mostrar-se grato por ter desfrutado da amizade de um velho tão fogoso. Esta foi uma das causas de sua ruína. Os Pretorianos já se tinham saturado de coisas desse tipo, durante a época de Tigelino.
Devo voltar a Vespasiano. Foi uma alegria ver como ele ficou surpreso quando os legionários o aclamaram Imperador, como protestou, esfregou as mãos e diversas vezes pulou do escudo em que o carregavam em volta das muralhas de Jerusalém. Como assento, um escudo é incômodo de qualquer modo, especialmente porque os soldados, no auge do entusiasmo, também sacudiam Vespasiano para o alto. Eles estavam assim bêbados por causa dos sestércios que eu distribuíra.
Claro que recebi de volta parte do meu dinheiro, graças a meu novo liberto sírio, uma vez que eu conseguira o monopólio da venda de vinho no acampamento. Ele também ganhou bom dinheiro concedendo licenças aos vendedores ambulantes judeus para que entrassem no acampamento.
Depois de enviar o soldo às legiões da Panônia e Mésia, juntamente com algumas leves censuras às coortes da Gália, por terem indisciplinadamente saqueado e ultrajado populações indefesas, Vespasiano viajou imediatamente para o Egito.
Não precisou destacar tropas comandadas por Tito para está fim, pois podia confiar na lealdade da guarnição egípcia. Tinha, porém, de tranqüilizar-se pessoalmente acerca do Egito, não porque o Egito seja o celeiro de Roma, mas porque o Egito nos proporciona papel suficiente para a administração do mundo, sem falar da arrecadação de impostos.
Vespasiano levou a arte da tributação a um ponto anteriormente desconhecido, de sorte que às vezes nós, os ricos, nos sentimos como se estivéssemos vertendo sangue pelo nariz e pelos ouvidos, enquanto ele nos espreme, sem falar no reto, que é a causa de minha estada aqui neste sanatório. Tão impressionados ficaram os médicos com a minha situação e as hemorragias que me debilitavam que, em lugar de me darem remédios, aconselharam-me a fazer o testamento.
Quando os médicos me desenganaram, as dores no estômago fizeram com que eu me voltasse para Jesus de Nazaré. As pessoas depauperadas tornam-se humildes, no limiar da morte. Mas nada lhe prometi. Junto a meus crimes e minha dureza, minhas boas ações não valerão grande coisa, no dia em que ele apartar as ovelhas das cabras. Por isso achei desnecessário fazer qualquer promessa.
Meus médicos não acreditaram no que viram quando as hemorragias cessaram de chofre, espontaneamente. Concluíram, por fim, que minha vida não estivera em perigo, mas que a enfermidade resultara do meu ressentimento ante a recusa de Vespasiano a concordar com certas medidas técnicas de tributação que me capacitavam a manter meus rendimentos e meu patrimônio.
Devo reconhecer que ele não nos onera, visando algum proveito pessoal e, sim, o bem do Estado, mas há limite para tudo. Até o próprio Tito odeia os miúdos que a gente tem de pagar para usar as latrinas públicas, ainda que isso redunde em cestas cheias de moedas de cobre todos os dias.
Sei que há água corrente nas novas latrinas, assim como assentos de mármore e esculturas decorativas, mas nossa antiga liberdade de cidadãos desapareceu.
Por isso o povo mais pobre ainda se contenta em verter água ostensivamente nas paredes dos templos e nos portões das casas dos ricos.
Quando chegamos a Alexandria, Vespasiano resolvem não entrar no porto, porque todas as docas estavam cheias dos cadáveres de judeus e gregos. Quis dar aos habitantes da cidade tempo para pacificarem suas dissensões internas e se entrincheirarem em seus respectivos setores, pois não gostava de supérfluas efusões de sangue.
Alexandria é grande demais para que as rixas entre judeus e gregos se apazigúem tão facilmente como, por exemplo, em Cesaréia.
Desembarcamos fora da cidade e, pela primeira vez em minha vida, pus os pés no solo sagrado do Egito, de modo que a lama esparrinhou e sujou minhas elegantes botas de senador.
Na manhã seguinte, recebemos a visita de uma delegação da cidade, em todo o seu esplendor egípcio, judeus e gregos em harmonia, todos desculpando-se com eloqüência do tumulto provocado por arruaceiros insensatos e afiançando-nos que a polícia da cidade dominava a situação. Do grupo faziam parte filósofos, eruditos e o bibliotecário-mor e seus subordinados. Vespasiano, que não era nenhum erudito, dava grande valor a isso.
Quando soube que Apolônio de Tiana estava na cidade para estudar a sabedoria egípcia e ensinar aos egípcios a contemplação do umbigo, praticada pelos ginossofistas hindus, Vespasiano disse lamentar profundamente que o maior filósofo do mundo não julgasse compatível com sua dignidade vir com os outros dar as boas-vindas ao Imperador.
O comportamento de Apolônio era puro cálculo. Sabia-se que ele era presumido e tão orgulhoso de sua sabedoria, como da barba branca que, de tão longa, lhe tocava a cintura. Queria a todo custo obter as boas graças do Imperador, mas considerava mais prudente causar certa apreensão a Vespasiano, levando-o a imaginar de início que não aprovava o seu golpe de Estado.
Outrora, em Roma, Apolônio tudo fizera para conseguir a estima de Nero, mas Nero não o recebera, uma vez que preferia as artes à filosofia. Apolônio conseguira amedrontar Tigelino, com seus poderes sobrenaturais a fim de obter permissão para ficar em Roma, apesar de Nero ter banido da cidade todos os filósofos.
Pouco antes da aurora do outro dia, Apolônio de Tiana apareceu diante do palácio imperial de Alexandria e pediu para entrar. Os guardas impediram-no, explicando que Vespasiano acordara cedo para ditar cartas importantes.
— Esse homem será um governante —declarou Apolônio com ares de santarrão, esperando que a profecia chegasse aos ouvidos de Vespasiano, o que de fato aconteceu.
Mais tarde, tornou a aparecer no portão, contando ganhar de graça um bocado de comida e um caneco de vinho. Desta vez foi imediatamente conduzido à presença de Vespasiano, com todas as honras devidas ao maior erudito do mundo. Muita gente ainda vê em Apolônio um emulo dos deuses.
Apolônio pareceu um tanto surpreso com o cinzento pão legionário e o vinho azedo que Vespasiano lhe ofereceu, pois se habituara a uma alimentação melhor e nunca condenara a arte de cozinhar, se bem que, de quando em quando, jejuasse para purificar o corpo. Mas perseverou no papel que escolhera e elogiou os hábitos simples de Vespasiano, dizendo que eram prova de que tudo era justo e benéfico ao Estado, na vitória de Vespasiano sobre Nero.
— Eu nunca me rebelaria contra o Imperador legal — replicou Vespasiano, lacônico.
Apolônio, que imaginara causar boa impressão gabando-se do papel que desempenhara na revolta gaulesa de Víndex, afundou num mutismo desconcertado e depois perguntou se podia convidar a entrar dois de seus célebres companheiros que ainda aguardavam lá fora.
A própria comitiva de Vespasiano partilhava de sua refeição. Vespasiano estava um pouco impaciente, pois passara acordado metade da noite, ditando suas ordens e mensagens mais urgentes. Mas controlou-se.
— Minhas portas estarão abertas aos sábios — disse êle — mas a ti, incomparáveis Apolônio, também o meu coração está aberto.
Na presença dos seus discípulos, Apolônio proferiu então uma convincente preleção sobre a democracia e a necessidade de restaurar o Estado democrático em lugar da autocracia que se revelara tão desastrosa. Fiquei preocupado, mas Vespasiano não tomou conhecimento das minhas cutucadas e piscadelas, e pacientemente escutou até o fim.
— Temo sinceramente — disse êle, então — que o poder despótico que o Senado tentou de todos os modos limitar, arruinou o povo de Roma. Portanto, é difícil executar presentemente o que sugeres. Em primeiro lugar, é preciso preparar o povo para aceitar a responsabilidade que a liberdade traz consigo. De outra maneira, as conseqüências serão desavenças intermináveis, motins e constante ameaça de guerra civil.
Apolônio respondeu com tanta presteza que não pude deixar de lhe admirar a flexibilidade.
— Que me importa a edificação do Estado? — disse ele. — Vivo unicamente para os deuses. Mas não gostaria que a maioria do gênero humano fosse humilhada por falta de um bom sábio pastor. Na realidade, quando medito nessas questões, concluo que um despotismo esclarecido, cuidadosamente vigiado por um Senado bem escolhido cujo objetivo mais alto é o bem comum, é a forma mais altamente desenvolvida de democracia.
Prosseguindo, entrou a explicar, com grande rodeio de palavras, que pretendia familiarizar-se com a antiga sabedoria do Egito, investigar as pirâmides e possivelmente beber da fonte do Nilo. Mas não estava em condições de alugar o barco e os remadores de que carecia, apesar de ser um ancião cujos pés estavam cansados de tantas viagens. Vespasiano aproveitou o ensejo para apontar-me com o dedo.
— Não tenho dinheiro — declarou — exceto para as necessidades mais prementes do Estado. Estou certo de que sabes disso, caro Apolônio. Mas meu amigo aqui, Minuto Maniliano, é na qualidade de senador, um amigo tão fervoroso da democracia como tu. É rico e provavelmente te dará um navio provido de remadores, se lhe pedires, assim como custeará a tua viagem às nascentes do Nilo. Nem precisas temer qualquer risco durante a viagem, pois uma expedição de cientistas está a caminho de lá atualmente, enviada por Nero há dois anos e protegida por Pretorianos. Junta-te a eles, se puderes.
Apolônio ficou encantado com essa promessa, que não custava a Vespasiano uma só moeda.
— Ó Júpiter Capitolino! — exclamou, em êxtase — saneador do caos do Estado, preserva este homem para ti mesmo. Teu templo, que mãos impiedosas estão agora destruindo à luz das labaredas, ele o reedificará.
Emudecemos todos ante o vaticínio e a visão de Apolônio. Para ser franco, achei que tudo não passava de cavilação. Só duas semanas depois ouvimos falar da deposição de Vitélio e de como Flávio Sabino e Domiciano tinham sido forçados a se entricheirar no Capitólio.
Domiciano fugiu ao cerco feito um covarde, depois de raspar o cabelo e disfarçar-se de sacerdote de Isis. Reuniu-se a um grupo de sacerdotes encarregados dos sacrifícios, quando os soldados de Vitélio, após atearem fogo ao templo e destruírem-lhe as paredes com suas máquinas, libertaram os sacerdotes presos antes da chacina final. Apesar de velho, meu ex-sogro Flávio Sabino morreu ali bravamente.
Domiciano escapou para a outra banda do Tibre e escondeu-se com a mãe judia de um de seus antigos colegas de escola. Todos os membros das famílias dos príncipes regentes judeus freqüentavam a escola do Palatino. Um deles era filho do Rei de Caleis, cujo destino arrastou meu filho Jucundo a aderir à conspiração juvenil para destruir Roma e transferir a capital para o Oriente. Refiro-me a isto também, muito embora tivesse pensado em não fazer qualquer alusão a esse respeito.
Tigelino embebedara o Príncipe de Caleis e em seguida usara-o para satisfazer os seus desejos. Depois, na presença dos colegas, o rapaz suicidou-se, pois seus preconceitos religiosos vedavam-lhe ter relações sexuais com homens, e depois disto ele jamais poderia suceder a seu pai e tornar-se Rei de Caleis. Foi por vingança contra isso que o fogo voltou a alastrar-se em Roma, começando nos jardins de Tigelino, depois que o grande incêndio já estava quase extinto. Jucundo andou envolvido nisso e, portanto, não morreu como uma inocente vítima. Mas a velha Subura desaparecera no incêndio e com ela uma nódoa vergonhosa de Roma.
Em sua covardia, Domiciano imaginou que ninguém iria procurá-lo no setor judaico da cidade, pois os judeus odiavam Vespasiano e toda a sua família, por causa do cerco de Jerusalém e das baixas que o seu movimento de pinças causara aos judeus, quando os rebeldes tentaram combater em campo aberto.
Ao ouvir falar das baixas, Apolônio de Tiana novamente procurou intervir, em favor dos gregos, na luta interna pelo poder, em Alexandria. Quando se despediu de Vespasiano antes de iniciar a excursão pelo Nilo, no barco que eu lhe tinha presenteado, ele disse:
— Fiquei atento quando soube que tinhas destruído trinta mil judeus numa batalha e cinqüenta mil em outra. Então pensei: Quem é este homem? Ele podia fazer coisas melhores. Há muito os judeus vêm traindo não somente Roma como também a humanidade inteira. Um povo que procura isolar-se de todos os outros povos, que não come nem bebe na companhia dos outros e se nega até a fazer as costumeiras orações tradicionais e as oferendas de incenso aos deuses, tal povo está mais distante de nós do que Susa e Bactriana. Seria melhor que não sobrasse um só judeu no mundo.
O homem mais sábio do nosso tempo falou em termos tão intolerantes que me senti satisfeito de lhe financiar a viagem e desejei ardentemente que seu barco afundasse ou que os selvagens núbios o empalassem num espeto de assar carne. Evidentemente sua eterna conversa acerca de democracia me aborrecia deveras.
Vespasiano tendia demasiadamente para a meditação virtuosa e pensava mais no bem do povo do que na vantagem de ser Imperador.
Não há dúvida que Apolônio de Tiana possuía poderes sobrenaturais. Mais tarde chegamos à conclusão de que ele, de fato, vira com os olhos do espírito o incêndio do Capitólio no momento em que estava realmente ocorrendo. Dias depois Domiciano saiu do porão da judia e insolentemente proclamou-se Imperador. É claro que o Senado é em parte responsável por isso, pois os senadores acreditavam que lhes seria mais proveitoso ter no trono um rapaz de dezoito anos em lugar de Vespasiano, que estava habituado a dar ordens quando as circunstâncias assim o exigiam.
Domiciano vingou o terror e a humilhação fazendo com que o povo pendurasse Vitélio pelos pés, num poste, em pleno fórum, e depois o matasse lentamente a punhaladas. Em seguida, o corpo de Vitélio foi arrastado para o Tibre, num gancho de ferro. Por esse motivo, também, nunca confies no capricho do povo. Ama o povo tanto quanto quiseres, meu filho, mas disciplina o teu amor.
Ainda não sabíamos de todas essas coisas em Alexandria. Vespasiano ainda hesitava quanto à forma de governo, apesar de ter sido proclamado Imperador. O republicanismo lhe era caro. como a todos os senadores mais velhos. Debatemos essa questão muitas vezes e com prazer, mas não vás agir precipitadamente por causa disso. O arroubo de Apolônio não o convenceu, porque a lentidão do correio não lhe dava ocasião de investigar a veracidade da visão do filósofo. Depois, o sacerdócio de Alexandria confirmou a divindade dele, de modo que todas as profecias que, no decorrer de um século, tinham anunciado um Imperador saído do Oriente iam enfim concretizar-se.
Numa tórrida manhã, quando Vespasiano estava distribuindo justiça do lado de fora do templo de Serápide, onde mandara instalar a sua curul de juiz, em honra dos deuses do Egito, dois enfermos apresentaram-se diante dele e lhe pediram que os curasse. Um era cego e o outro coxo. Vespasiano não queria tentar, pois uma enorme multidão se comprimia defronte do templo, para ver o Imperador, e ele não desejava fazer papel ridículo diante do povo.
Mas invadiu-me a sensação de já ter passado por tudo isso antes: as Colunas do templo, a curul magistrática, a multidão. Tive ate mesmo a impressão de reconhecer os dois homens. Subitamente lembrei-me do sonho que tivera na terra dos brigantes. Avivei a memória de Vespasiano e instei com ele para que tratasse e fazer o que eu o vira fazer em sonho. Com relutância, Vespasiano ergueu-se e deu uma cusparada nos olhos do cego e em segui a um pontapé na perna do coxo. O cego recuperou a vista e o pé ressequido do coxo ficou bom com tanta rapidez, que mal podíamos crer no que os nossos olhos viam. Então Vespasiano afinal acreditou que nascera para ser Imperador, se bem que depois deste episódio não se tenha sentido mais santo nem mais divino do que antes, ou, se sentiu, não o revelou a ninguém.
Estou certo de que nunca mais tornou a pôr à prova os seus poderes por esse meio, se bem que eu lhe tenha pedido, certa vez, que pusesse sua divina mão em meu reto sangrento, quando ele veio visitar-me, em meu leito de moribundo. Vespasiano recusou explicando que sua estranha experiência em Alexandria o afetara a tal ponto que receou viesse a ficar louco.
— Roma já está farta de Imperadores dementes — disse ele.
Muita gente que só acredita no que vê, ouve e percebe pelo olfato, por mais enganosos que sejam os sentidos humanos, está propensa a descrer da minha história, pois é célebre a feitiçaria dos sacerdotes egípcios.
Mas posso testemunhar que os sacerdotes de Serápide examinam com todo o Cuidado o paciente e verificam se está realmente enfermo, antes de praticarem nele a cura sobrenatural.
Do seu ponto de vista, a simulação e a cura de uma doença imaginária constituiriam um insulto aos deuses.
Sei que Paulo também era muito rigoroso quanto a permitir que alguém lhe usasse as roupas suadas para curar-se de uma doença grave. Expulsava inexoravelmente da comunidade cristã todos os que fingissem estar doentes.
A julgar por minha própria experiência, creio que Vespasiano efetivamente curou os dois enfermos, muito embora eu não deseje explicar como tais coisas são possíveis. Também reconheço que Vespasiano é prudente em não querer voltar a pôr à prova a sua habilidade. A perda de força sofrida nesse gênero de cura é, provavelmente, enorme.
Dizem que Jesus de Nazaré não podia suportar que ninguém tocasse às escondidas nem mesmo nas borlas do seu manto, pois sentia sua força se esvaindo. Curava os doentes e ressuscitava os mortos, mas somente a pedido ou por compaixão pelos parentes da vítima.
De modo geral, parece ter feito pouco caso dos seus milagres. Costumava criticar os que viam mas não acreditavam e louvava os bem-aventurados que acreditavam embora nunca tivessem visto. Ou assim me contaram. Não que a minha crença pese mais do que um grão de areia. Receio muitíssimo que isso não lhe pareça suficiente, mas tentarei pelo menos ser sincero com ele.
Por falar nos milagres egípcios, lembro-me de um grego de lá que empregara sua herança e o dote de sua mulher em invenções quiméricas. Esse louco insistiu tanto em ter uma audiência com Vespasiano que, afinal, tivemos de recebê-lo. Com os olhos brilhantes, êle nos falou de suas invenções e louvou especialmente o poder do vapor de água, que considera capaz de mover as mais pesadas pedras de moinho.
_ Que faríamos dos escravos que vivem de fazer girar as
mós? — perguntou Vespasiano. — Procura calcular quantos empregados o Estado teria então de sustentar.
O homem fêz um cálculo rápido na cabeça e admitiu francamente que não tinha pensado no prejuízo que sua invenção poderia acarretar para a economia nacional. Esperançoso, passou a explicar que o vapor da água fervente podia ser utilizado para impelir remos, o que demonstraria, se tivesse bastante dinheiro para realizar certas experiências. Neste caso, as embarcações já não dependeriam dos ventos, como dependem os navios mercantes e os vasos de guerra.
Neste ponto, resolvi intervir para mostrar quão aterradora-mente inflamáveis seriam os dispendiosos navios que transportam cereais, sem falar nos navios de passageiro, se fosse necessário manter o fogo ardendo constantemente, a bordo, para aquecer a água. A própria cozedura de alimentos a bordo já se Tevelava tão perigosa que, ao menor indício de tempestade, era preciso apagar o fogo imediatamente em sua cama de areia. Todos os marujos preferiam comida seca a ficarem expostos a incêncios no mar.
Vespasiano ponderou que a trirreme grega foi, é e será sempre a mais brilhante arma das batalhas navais, conquanto, por outro lado, admitiu êle, os navios mercantes cartagineses fossem os melhores do mundo e não houvesse razão para alterá-los.
O inventor pareceu descorçoado, mas Vespasiano mandou pagar-lhe uma soma elevada, contanto que o homem se abstivesse de novas invenções absurdas. Recomendou que, por segurança, se entregasse o dinheiro à mulher do inventor, para que o marido não o aplicasse em suas supérfluas invenções.
De minha parte, muitas vezes tenho olhado para as maravilhosas máquinas de guerra e pensando como seria fácil para um hábil mecânico construir máquinas para a agricultura, por exemplo, que poupariam aos escravos o trabalho pesado e muito suor.
Tais máquinas seriam extremamente úteis à arte de abrir fossos e drenar, que aprendemos dos etruscos. Podiam usar-se até mesmo canos de tijolos cozidos, em lugar de feixes de paus e pedras no fundo dos fossos de drenagem, exatamente como fazemos os nossos esgotos, embora sejam bem maiores. Mas vejo os efeitos tremendos que tais invenções teriam.
Onde conseguiriam então os escravos azeite e pão? O Estado tem enormes despesas com a distribuição de cereais gratuitos a seus cidadãos. É preciso dar trabalho aos escravos e, de preferência, trabalho pesado, pois, de outro modo, não tardariam a encher
a cabeça de idéias absurdas. A amarga experiência de muitas gerações transmitiu-nos essa lição.
Os sacerdotes egípcios já fizeram todas as invenções de que necessitamos. Por exemplo, têm um borrifador automático que esguicha água benta em quem introduzir nele o tipo correto de moeda. A máquina chega até a separar as moedas de peso integral daquelas que foram limadas, por mais inacreditável que isso pareça. O costume abominável de tirar com a lima o pó das moedas de ouro e prata começou em Alexandria. Quando se faz isso com centenas e milhares de moedas, é altamente lucrativo. Não faço idéia de quem primeiro pensou nisso. Os gregos culpam os judeus e os judeus, os gregos.
Conto-te isto para convencer-te de que a cura miraculosa realizada por Vespasiano não por prestidigitação. Por força de suas invenções técnicas, os sacerdotes egípcios são extremamente desconfiados.
Quando, após uma noite passada em claro, Vespasiano se persuadiu de que os deuses haviam realmente decretado que ele devia ser Imperador, soltei um suspiro de alívio.
Teria sido desastroso se, inflamado por já antiquadas idéias democráticas, tivesse começado a alterar a estrutura do Estado.
Quando tive certeza disso, atrevi-me afinal a contar-lhe meu segredo num momento de confidência.
Falei-lhe de Cláudia e de ti, como o último descendente masculino da linhagem juliana.
A partir daquele instante dei a ti o nome de Júlio, em meu coração, ainda que, oficialmente, tu o tenhas recebido pela primeira vez quando envergaste a toga viril e Vespasiano prendeu o broche augustano em teu ombro, com suas próprias mãos.
Vespesiano acreditou imediatamente e não se mostrou surpreso, como se poderia pensar. Conhecia tua mãe, desde o tempo em que o Imperador Calígula tratava-a de prima, para apoquentar seu tio Cláudio. Vespasiano pôs-se a contar nos dedos para elucidar o parentesco.
— Então teu filho — disse ele — é neto de Cláudio. Cláudio era também sobrinho de Tibério. E a mulher do irmão de Tibério era Antônia, a filha mais moça de Otávia, irmã do divino Augusto, gerada por Marco Antônio. Otávia e o divino Augusto eram filhos da sobrinha de Júlio César. Na verdade, o trono imperial transmitiu-se constantemente pela linha feminina. O pai de Nero era filho da filha mais velha de Marco Antônio. Seu direito hereditário era tão válido como o do próprio Cláudio, embora, por formalidade, Cláudio tenha adotado Nero quando casou com a sobrinha. Incontestavelmente o direito hereditário de teu filho é do ponto de vista legal tão respeitável quanto o desses outros. Que queres, então?
_ Quero que meu filho se transforme no melhor e mais nobre Imperador que Roma já viu — disse eu. — Não duvido nem por um momento, Vespasiano, que tu, com a honestidade que te é peculiar, reconhecerás nele o herdeiro legítimo do trono imperial, quando chegar o momento.
Vespasiano pensou demoradamente, franzindo bastante a testa, com os olhos semicerrados.
Qual é a idade do teu filho?
Vai fazer cinco anos no outono vindouro.
Nesse caso não há pressa. Esperemos que os deuses me concedam uns dez anos para carregar o fardo do governo e pôr um pouco de ordem nos negócios do Estado. Então o teu filho receberá a toga viril. Tito tem suas fraquezas e, em virtude de suas ligações com Berenice, estou preocupado, mas em geral a responsabilidade chega com a idade. Dentro de dez anos Tito terá mais de quarenta e será um homem amadurecido. A meu ver, tem ele todo o direito ao trono imperial, se não desposar Berenice. Isso seria calamitoso. Não poderíamos ter uma judia como imperial consorte, ainda que fosse da família de Herodes. Se Tito proceder de maneira sensata, presumivelmente permitirás que ele vá até ao fim do seu governo, para que, da mesma forma, teu filho tenha tempo de adquirir experiência na função pública. Meu outro filho Domiciano jamais serviria para Imperador e a simples idéia de que isso pode acontecer me apavora. Na verdade, sempre lamentei tê-lo gerado por equívoco, num momento de embriaguez, quando me achava em visita a Roma. Dez anos tinham transcorrido desde o nascimento de Tito e eu não imaginava que meu leito conjugal viesse a dar frutos outra vez. Sinto-me mal só de pensar em Domiciano. Não posso sequer imaginar-me celebrando um triunfo, pois seria forçado a levá-lo comigo.
É óbvio que hás de celebrar um triunfo pela tomada de Jerusalém — disse eu, intranqüilo. — Ofenderias cruelmente as legiões, se o não fizesses, e elas sofreram grandes baixas na guerra com os judeus.
Vespasiano suspirou fundo:
Ainda não pensei nisso. Estou velho demais para subir de gatinhas os degraus do Capitólio. O reumatismo que contraí na Bretanha cada vez mais me entreva os joelhos.
Mas eu poderia amparar-te de um lado e Tito do outro. Não é tão difícil como parece.
Vespasiano fitou-me e sorriu:
— Que pensaria disso o povo? Mas, por Hércules, melhor tu, do que Domiciano, de um lado, aquele mentiroso imoral e perverso.
Êle disse isto, muito antes de sabermos qualquer coisa a respeito da vitória em Cremona, do cerco do Capitólio e do comportamento covarde de Domiciano.
Vespasiano teve de permitir que Domiciano cavalgasse atrás de Tito, no cortejo triunfal, em consideração à memória de sua avó, mas Domiciano foi obrigado a montar numa mula e o povo compreendeu o que isso significava.
Depois de termos examinado a sucessão do trono, sob todos os aspectos, como homens razoáveis que são amigos, concordei de bom grado com a sugestão de Vespasiano, no sentido de que Tito governasse depois dele e antes de ti, se bem que eu não tivesse Tito em tão alta conta, como o tinha seu pai. Sua habilidade para imitar qualquer talhe de letra levava-me a duvidar de suas qualidades morais. Mas os pais são cegos.
Uma vez ratificados em Roma os poderes de Vespasiano, Tito conquistou Jerusalém, por ordem dele. A destruição da cidade foi tão terrível como Flávio José descreve em sua obra. Os despojos vieram e não fui defraudado em minha garantia. Tito não pretendera destruir o templo. Isto mesmo jurara êle a Berenice, no leito. Durante o combate foi impossível impedir que o fogo se alastrasse. Os judeus famintos lutaram, de casa em casa, e de porão em porão, de modo que as legiões sofreram severas baixas.
Em breve, qualquer pessoa poderá ver meu retrato nos relevos do arco triunfal que resolvemos erigir no fórum. Mas, para ser franco, a princípio Vespasiano não concordou inteiramente que eu também merecia a insígnia de triunfo, pela qual eu pugnara, com tanto ardor, por tua causa. Tive de lembrar a êle, várias vezes, que por ocasião do cerco fora eu o personagem mais eminente sob o seu comando e que me expusera intrepidamente às flechas e pedras dos judeus, a ponto de ter sido ferido no pé, quando me precipitava para as muralhas.
Só depois que Tito intercedeu por mim, Vespasiano conferiu-me uma insígnia de triunfo. Êle nunca chegou a considerar-me um guerreiro, no verdadeiro sentido, de maneira a merecer tal honraria por minha participação no cerco e tomada de Jerusalém. Atualmente no Senado, os que temos insígnias de triunfo somos tão poucos que podemos ser contados nos dedos de uma só mão, e entre nós há alguns que receberam insígnias sem as merecerem, essa é que é a verdade.
Depois de subir os degraus do Capitólio, Vespasiano encheu um cesto com as pedras das ruínas do templo e transportou-o, nos ombros, para o vale que ia ser tapado, a fim de mostrar ao povo sua bondade, sua humildade e, acima de tudo, dar bom exemplo. Exprimiu o desejo de que todos partilhássemos das despesas de reconstrução do templo de Júpiter.
Vespasiano também reuniu cópias, vindas de todas as partes do mundo, de velhas leis e regulamentos, decretos e prerrogativas especiais que remontam à fundação da cidade. Até o presente juntou cerca de três mil dessas placas de bronze, que estão guardadas nos recém-construídos arquivos do Estado, no lugar daquelas que se derreteram durante o grande incêndio.
Que me conste, êle não ganhou nada com elas, embora tenha tido excelente oportunidade de reconstituir sua ascendência até Vulcano, se quisesse. Mas ainda se contenta com o velho e amol-gado cálice de prata de sua avó.
No momento em que escrevo, completou dez anos de Imperador, e estamo-nos preparando para comemorar seu setuagésimo aniversário.
Eu mesmo completarei cinqüenta, dentro de dois anos, e me sinto surpreendentemente jovem, graças aos remédios que venho tomando e a uma outra circunstância, razão pela qual não me dei pressa em sair daqui, mas prefiro ficar e escrever minhas memórias, como talvez tenhas notado.
Há um mês os médicos me deram permissão de voltar a Roma. Mas devo agradecer à Fortuna o ter-me concedido gozar esta primavera, o que não me parecera possível. Sinto-me tão remoçado, que ainda há pouco pedi que trouxessem meu cavalo favorito, para que voltasse a montar, embora durante muitos anos eu me tivesse contentado em puxar meu cavalo nos desfiles. Graças ao decreto de Cláudio, isto ainda é permitido, e nós, que já atingimos certa idade, precisamos desse benefício, à medida que nos tornamos mais pesados.
Por falar na Fortuna, tua mãe sempre teve estranho ciúme do cálice de madeira que herdei de minha mãe. Talvez êle a faça recordar que tens um quarto de sangue grego nas veias, embora felizmente ela não saiba como ó humilde esse sangue.
Esse cálice da Fortuna, por causa de tua mãe, eu o enviei a Lino há vários anos, quando num momento de saciedade julguei que já alcançara mais do que suficiente êxito mundano.
Acho que os cristãos precisam de toda a boa sorte que puderem conseguir, e o próprio Jesus de Nazaré bebeu nesse cálice, após a sua ressurreição. Para que o cálice de madeira não se gastasse demais, mandei fazer um cálice de ouro e prata, habilmente trabalhado, para envolvê-lo. Num lado, ostenta um retrato em relevo de Cefas, e no outro, um de Paulo.
Foi facílimo executar esses dois retratos, pois o artesão que os fez viu muitas vezes os dois homens e também contou com auxílio dos desenhos de outras pessoas e de um mosaico. É verdade que ambos eram judeus e não toleravam imagens humanas, mas Paulo reverenciava as leis judaicas, sob muitos outros aspectos, de sorte que acho que ele não se oporá a que, Com o auxílio de Lino, eu lhe preserve a fisionomia para a posteridade, mesmo que não haja futuro para a doutrina cristã, em comparação com outras religiões mais promissoras, dos ginossofistas à confraria de Mitras.
Ambos eram boas pessoas e agora, depois de mortos, eu os entendo melhor do que antes, como tantas vezes acontece, quando certas circunstâncias agravantes não mais impedem que a gente forme uma imagem nítida de um indivíduo, tal como ele realmente era.
Seja como fôr, os cristãos possuem um retrato de Jesus de Nazaré. Fixou-se num pedaço de pano quando ele caiu ao chão em Jerusalém, com a cruz às costas, e uma mulher entregou-lhe seu lenço de cabeça para que limpasse o sangue do rosto.
Esse retrato não se teria fixado no pano, se o próprio Jesus assim não desejasse. Portanto, pelo que posso entender, ele permitiu imagens humanas, ao contrário dos judeus ortodoxos.
O cálice de minha mãe é muito usado, mas tenho a impressão de que seu poder diminuiu em virtude do ouro e da prata que o envolvem. De qualquer maneira, as desavenças internas dos cristãos continuam com o mesmo ímpeto e intensidade de antes. Lino tem grande dificuldade em reconciliá-los para que não se entreguem à violência física em seus sagrados ágapes noturnos.
O que acontece nas ruas escuras, quando se abrem as portas e saem os participantes do ágape, não me darei o trabalho de contar-te. A mesma inveja intolerante que arruinou Paulo e Cefas ainda prepondera no meio deles. Por esse motivo, também, não têm futuro algum. Estou só esperando o momento em que um cristão mate outro, em nome de Cristo. O médico Lucas está tão envergonhado com tudo isso, que não pode concentrar-se na redação do terceiro livro para completar o trabalho que planejou, e parou de escrever.
Inutilmente muitos homens cultos vêm-se associando a eles e confessando-se adeptos de Cristo. Na realidade, isso parece que só faz agravar a situação. Quando, pouco antes de adoecer, convidei dois sofistas para uma refeição, esperando que a educação deles fosse de alguma valia para Lino, ambos iniciaram uma discussão tão violenta que quase me arrebentaram os valiosos vasos alexandrinos de vidro.
A razão da visita dos sofistas foi puramente prática. Pensei que homens cultos como eles entenderiam quão vantajoso seria,
para os cristãos, se seus chefes começassem a usar uma espécie de insígnia de eminência, por exemplo um barrete do tipo usado pelos sacerdotes de Mitras, e acrescentassem uma espiral, como a dos adivinhos, a seu modesto cajado de pastor. Tais sinais exteriores, pensei, encorajariam os cidadãos comuns a se associarem aos cristãos.
Em lugar de um debate racional, os dois homens puseram-se a altercar.
_ Creio num reino invisível — disse um — nos anjos e em
que Cristo é o Filho de Deus, pois esta é a única explicação possível do sentido incompreensível e absurdo do mundo. Creio para que possa entender.
— Não vês, pobre coitado — disse o outro — que a razão humana nunca poderá entender a divindade de Cristo? Eu só acredito porque os ensinamentos a respeito dele são absurdos e insensatos. Portanto, creio porque é irracional.
Antes que se atracassem, intervim:
— Não sou um homem de muito saber, embora tenha lido os filósofos e numerosos poetas, e escrito um livro sobre a Bretanha, que ainda pode ser encontrado nas estantes das bibliotecas públicas. Não posso competir convosco, na arte da erudição e do debate. Não tenho muita fé e, em geral, não me valho de orações para pedir coisas de que um deus inexplicável tem perfeito conhecimento. Sem dúvida, ele proverá às minhas necessidades, se achar que tem motivos para isso. Estou farto das vossas prolixas orações. Se tivesse de rezar, gostaria de poder murmurar no momento da minha morte: Jesus Cristo, Filho de Deus, tende piedade de mim. Não creio que minhas maldades e crimes sejam mitigados a seus olhos por algumas boas ações. Um homem rico nunca está isento de culpa; as lágrimas dos seus escravos atestam-lhe os crimes. Mas não importa. Entendo as pessoas que dão seus bens aos pobres e seguem Cristo. Prefiro conservar o que possuo, para meu filho e o bem comum, pois de outro modo meu patrimônio poderia passar para as mãos de um indivíduo mais cruel do que eu, para desvantagem dos muitos que de mim recebem o pão. Portanto, poupai meus vasos de vidro nas vossas contendas, pois além de valiosos são caros a meu coração.
Eles se dominaram, em respeito à minha dignidade e posição social, mas é possível que se tenham engalfinhado, logo que deixaram a minha casa e o meu bom vinho. Mas não penses, Júlio, meu filho, que só porque te contei isto eu me tenha comprometido com o cristianismo. Conheço bastante Jesus de Nazaré e seu reino, para não ousar dar a mim mesmo o nome pretensioso de cristão. Assim, não pude resolver-me a receber o batismo dos cristãos, apesar da insistência de tua mãe.
Contento-me em continuar sendo o que sou, com minhas fraquezas e falhas humanas, e nem mesmo defendo minhas ações, o que podes ver nestas memórias, ou as razões que me levaram a fazer algumas coisas que mais tarde vim a deplorar. Mas essas também te serão úteis.
Sobre minhas deficiências morais desejo dizer que quase ninguém está isento de culpa, nem mesmo os santos homens que se consagram a Deus. Posso afiançar-te, apenas, que nunca utilizei intencionalmente outra pessoa simplesmente para meu próprio prazer. Sempre reconheci o valor humano de minha companheira de cama, quer fosse escrava ou mulher livre.
Contudo, acho que as maiores falhas morais não ocorrem no leito, como muita gente imagina; acho que a pior de todas é a dureza de coração. Tem cuidado para que não se te endureça o coração, meu filho, por mais alto que chegues e por maiores que sejam as dificuldades que tenhas de enfrentar na vida. Certa vaidade humana é talvez permissível, dentro de limites sensatos e moderados, contanto que não atribuas desmedido valor aos teus resultados eruditos e poéticos. Não penses que não sei que estás competindo com Juvenal, na arte de escrever versos.
Neste momento, sinto que amo o mundo inteiro por me permitir fruir outra primavera. Portanto, quando voltar a Roma, creio que pagarei as dívidas de teu amigo Juvenal, para que ele possa alegremente continuar a cultivar sua barba. Por que iria eu aborrecer-te e pôr uma distância entre nós, desprezando um amigo que te é caro, embora os motivos dessa amizade sejam para mim incompreensíveis?
Meu coração está cheio do desejo de contar-te coisas. Assim, vou falar-te da primavera que acabo de gozar, pois não tenho ninguém mais a quem dizer, e só lerás estas memórias depois da minha morte, quando talvez entenderás melhor teu velho pai. Como é muito mais fácil conhecer e entender uma criança desconhecida do que o próprio filho! Mas esta é, presumivelmente, a maldição de todo pai, agora e sempre, embora as nossas intenções sejam as melhores.
Não sei como comece. Mas sabes que nunca pretendi voltar à Bretanha, apesar dos interesses que tenho lá e do meu desejo de ver Lugundanum tornar-se uma verdadeira cidade. Receio que não mais veria a Bretanha como o país encantador que conheci na juventude, durante as minhas viagens com Lugunda. Talvez os druidas me tenham enfeitiçado naquela época, e é até mesmo possível que a Bretanha me parecesse bela desta vez, mas não quero anular esta lembrança, retornando para lá com os sentidos, embotados e embrutecidos de um homem de cinqüenta anos, agora que já não creio na bondade dos seres humanos.
Nesta primavera pude viver como se ainda fosse moço. É claro que tudo não passou de um frágil sortilégio, do tipo que embacia a vista com risos e lágrimas num indivíduo como eu. É improvável que chegues a conhecê-la, meu filho, pois eu mesmo acho que é melhor não vê-la novamente depois disso, tanto para o bem dela como para o meu.
Ela é de ascendência relativamente humilde, mas os pais mantiveram tradições antigas e os costumes modestos do campo, em razão de sua pobreza. Chegou até a espantar-se, ao ver que a minha túnica é de seda. Tive prazer em falar a ela de episódios passados da minha vida, a começar pelos filhotes de leão, que minha mulher Sabina levava para nossa cama e me forçava a alimentar. Ela me ouviu com paciência e, ao mesmo tempo, pude observar as mudanças de expressão em seus olhos invulgares.
Também me foi necessário vasculhar a memória à noite, quando eu, em parte, escrevia e, em parte, ditava estas reminiscências, que espero te sejam úteis um dia, para que não dês excessivo crédito à bondade dos seres humanos e te decepciones. Nenhum governante pode confiar, de todo o coração, numa pessoa. É o fardo mais pesado do poder absoluto. Lembra-te também, meu filho, de que a dependência excessiva traz, em si, a própria desforra.
Eu te amo de todo o coração e tu és o único significado verdadeiro da minha vida, ainda que não te dês conta disso. É como se, encontrando nessa menina um amor tardio, demasiadamente maravilhoso e terno, eu tivesse aprendido a amar-te mais do que antes, e também a entender melhor tua mãe. Perdôo a Cláudia as palavras impensadas que me dirigia de vez em quando. Por outro lado, espero sinceramente que ela me perdoe o não ter podido ser diferente do que sou. Ninguém pode ensinar novas artimanhas a cachorro velho.
Nada de mal aconteceu entre nós, durante todo o tempo em que me encontro aqui neste sanatório, que se localiza nas proximidades da quinta de seus pais. Uma ou duas vezes eu a beijei e talvez tenha roçado a pele de seu braço, com meu punho forte. Não aspirei a mais do que isso, porque não desejo causar-lhe dano, nem despertar-lhe, cedo demais, os sentidos para a desolação e os cálidos desperdícios das paixões humanas. Para mim é suficiente que minhas histórias levem o rubor a suas faces e o brilho a seus olhos.
Não quero dizer-te o nome dela. Não irás encontrá-lo em meu testamento, porque, por outros meios, tomei providências para que nada lhe falte e seu dote seja bastante grande, quando chegar o dia em que ela encontrar um jovem à altura. Talvez eu exagere a sua inteligência, só porque ela escuta, com paciência e boa-vontade, o que um velho tem para contar, mas creio que seu futuro marido há de achar úteis o entendimento e os poderes de compreensão que nela são inatos, caso pretenda fazer carreira no serviço do Estado.
Ela escolherá provavelmente um membro da Nobre Ordem dos Cavaleiros, já que gosta muito de cavalos. Por causa dela, mandei buscar minha égua favorita e voltei a montar. Creio que a simples presença e sensibilidade dessa menina concorreu para a melhora do meu estado de saúde, pois nossa amizade está isenta de qualquer vestígio de paixão absorvente.
Espero que tenhas ficado irritado e até mesmo com ódio de teu pai, por ter inesperadamente desaparecido do teu estábulo o garanhão branco da raça do Incitatus, do Imperador Caio.
Achei divertido fazer isto, para lembrar-me do que realmente significa ser um senador romano. Caio resolvera fazer de Incitatus, senador, razão pela qual foi tão cruelmente assassinado. Nisto o Senado se superestimou um pouco, de acordo com o meu conhecimento de muitos dos seus membros. Devia ter encontrado um motivo mais válido.
Ouvi dizer que, depois que recebeste a toga viril, montaste um garanhão branco, côr de neve, no cortejo festivo da Nobre Ordem dos Cavaleiros. Um rapaz da tua idade não deve fazer isso, Júlio, acredita no que te digo. Assim, achei que era melhor tirar o cavalo de ti. Prefiro dá-lo a uma rapariga ajuizada, de quinze anos, que vive na quietude do campo. No fim de contas, sou eu quem custeia o estábulo, embora digam que é teu.
Não posso sustar o diz-que-diz romano que me chega aos ouvidos, por diversos meios. Trata de entender-me quando leres isto. Não julguei necessário dar nenhuma explicação. Podes continuar a odiar-me por ter repentinamente desaparecido o teu belo cavalo. E talvez prefiras odiar-me, se não tiveres bastante intuição para compreender por que era necessário.
Estou pensando em dar esse cavalo a ela, como presente de despedida, pois ela acha que não poderá aceitar uma corrente de ouro como lembrança. Creio que poderá aceitar o cavalo. Seus pais terão algum rendimento, usando-o como reprodutor, e ao mesmo tempo os cavalos do município melhorarão. Não são grande coisa no momento. Até mesmo a minha velha égua mansa despertou' inveja aqui.
Quando penso na minha vida, gosto de recordar uma parábola que ouvirás nas palestras de Lino sobre a vida de Jesus de Nazaré. Era um homem que confiara a seus servos várias libras de prata para que as administrassem enquanto estivesse ausente. Um servo enterrou a sua libra, ao passo que o outro multiplicou as suas. Ninguém poderá dizer que enterrei a minha libra. Acho que centupliquei a minha herança, embora corra o risco de parecer jactancioso. Verás no meu testamento. Não me refiro só às libras terrenas, mas também a outros valores. De qualquer modo, empreguei quase duas vezes, na redação das minhas memórias, a quantidade do melhor papel do Nilo que meu pai usou nas cartas dirigidas a Túlia. Tu as lerás também, no momento oportuno.
O homem disse a seus servos: "Servos bons e fiéis, entrai no gozo de vosso Senhor". Acho que estas são belas palavras, mesmo que não me caiba esperar tal coisa, uma vez que não fui bom nem fiel.
Jesus de Nazaré tem um modo esquisito de esmurrar-nos o ouvido, quando julgamos que sabemos alguma coisa. Mal se passara uma semana que eu me tinha vangloriado, diante dos meus dois belicosos convivas, de que nunca me valia da oração para pedir coisas, estava eu suplicando a ele que parasse minha hemorragia, antes que me esvaísse em sangue. Nem mesmo o melhor médico de Roma pôde dar jeito. Minha enfermidade curou-se sozinha
Aqui neste sanatório, com suas águas minerais, sinto-me mais forte e feliz, do que nos últimos dez anos. Também estou insólitamente convencido de que ainda serei necessário a alguma finalidade, embora nada tenha prometido.
Dedicarei mais algumas palavras a essa menina de olhar radiante, que foi minha companheira e me proporcionou tal contentamento que, só de vê-la, me enterneço.
A princípio não atinei com a razão pela qual tinha a impressão de tê-la visto antes, pois tudo nela me parecia conhecido, até mesmo seus menores gestos. Ridiculamente dei-lhe um pedaço do sabão de Antônia e um frasco do perfume que Antônia usava. Pensei que, de modo um tanto vago, ela me lembrava Antônia, e imaginei que o aroma do sabão e do perfume tornasse essa semelhança ainda mais real.
Aconteceu o contrário. Reparei que esses odores irresistíveis não quadravam com seu jeitinho juvenil. Apenas me perturbavam. Mas quando a beijei e notei que seus olhos escureceram, vi o rosto de Antônia em seu rosto, e também o rosto de Lugunda, e, por mais estranho que pareça, o rosto de tua mãe, quando jovem.
Ao tomar nos braços, por um instante, seu corpinho infantil, sem nenhuma intenção má, reconheci nela todas as mulheres que mais amei na vida. Meu quinhão de amor foi mais do que suficiente. Um homem não deve exigir mais.
Quando acabei de escrever do meu próprio punho estas últimas linhas, o destino pôs um ponto final em minhas memórias. Um mensageiro, montado num cavalo suado, chegou com a notícia de que o Imperador de Roma, Vespasiano, morreu perto de Reate, a cidade natal de sua família. Vespasiano não logrou comemorar seu setuagésimo aniversário, mas conta-se que tentou erguer-se e morrer de pé, nos braços daqueles que o amparavam.
Sua morte será mantida em segredo durante dois dias, até que Tito tenha tempo de chegar a Reate. Nossa primeira tarefa, no Senado, será proclamar Vespasiano deus. Êle o mereceu, pois foi o mais benévolo, altruísta, diligente e probo de todos os Imperadores de Roma.
Não tinha culpa de ser de origem plebéia. Isso será compensado pela elevação à categoria de deus.
Como velho amigo, farei jus a integrar o seu colégio de sacerdotes, pois até aqui nunca desempenhei funções sacerdotais. Será um necessário acréscimo à minha lista de méritos, tendo em vista o futuro, filho querido. Apressadamente, do meu próprio punho, teu pai, MINUTO LAUSO MANILIANO.
Três meses depois, antes de finalmente guardar estes apontamentos:
É cómo se a Fortuna começasse a evitar-me. A terrível erupção do Vesúvio, nos últimos dias, arruinou minha nova mansão em Herculano, onde pretendia passar a velhice, num clima ameno e em boa companhia. A minha boa estrela perdurou até o ponto de me ter impedido de ir lá discutir as contas do construtor. Se tivesse ido, estaria soterrado no dilúvio de cinzas.
Receio que esse pavoroso presságio prenuncie dificuldades para Tito como governante, bom amigo meu, como é, e que só nos deseja os melhores êxitos, a ti e a mim. Felizmente é ainda bastante moço, é chamado de "o amor e a delícia do gênero humano". Por que, realmente não sei. Nero também foi assim chamado, na juventude .
Sem embargo, creio que Tito fará bom governo e viverá enquanto evitar as intrigas de Domiciano. No momento oportuno, confirmará que serás o seu sucessor no trono. Nunca confies em Domiciano. Que se pode esperar de um homem que passa o tempo empalando moscas vivas, com a pena, como um menino traquinas?
MINUTO LAUSO MANILIANO, detentor de uma insígnia de triunfo e do posto de Cônsul, presidente do colégio de sacerdotes de Vespasiano e membro do Senado de Roma, sofreu durante o governo do Imperador Domiciano a morte dolorosa, mas admirável, de uma testemunha cristã, no anfiteatro dos Flávios, o qual, devido a suas colunas, é chamado o Coliseu.
Com êle, morreram sua esposa judia, Cláudia, seu filho, Clemente, e também o Cônsul Flávio Tito, primo de Domiciano, e filho do ex-Prefeito da Cidade de Roma.
Em virtude de sua estirpe e alta posição social, foi-lhes conferida a honra de serem atirados aos leões.
O Senador Minuto Maniliano concordou em receber o batismo cristão, na última noite passada na cela da prisão, debaixo da arena do Coliseu, da parte de um escravo, que obtivera o dom da graça e que ia perecer no mesmo espetáculo. Fêz algumas objeções e declarou que preferia morrer por motivos políticos do que pela transfiguração de Cristo.
No último instante, rebentou uma violenta disputa entre os cristãos, sobre a maneira de ministrar o batismo. Havia no meio deles alguns que achavam que o corpo todo devia ficar submerso e outros que pensavam que uma aspersão na cabaça seria suficiente.
O anfiteatro dos Flávios tem, como sabemos, excelentes canos de água, cujo uso é reservado principalmente para as feras e os gladiadores. Para os condenados, só há água para beber e, desta vez, estava racionada pois os condenados eram muitos.
Maniliano pôs termo à altercação, dizendo que bastaria que o escravo lhe cuspisse na calva.
Esta blasfêmia fêz com que todos se calassem, até que sua mulher Cláudia o convenceu de que êle, mais do que qualquer outro, precisaria da misericórdia de Cristo, quando fosse enfrentar os leões, em razão de sua vida dissoluta, de sua avareza e da dureza de seu coração.
Maniliano resmungou que, no decurso de sua vida, também praticara certo número de boas ações, mas ninguém que o conhecesse acreditaria nisso.
No momento em que entrou na arena, para enfrentar os leões, ocorreu um dos milagres de Deus. O mais velho dos leões escolheu-o para vítima, fosse por causa de sua corpulência, fosse por causa de seu alto cargo, embora Maniliano não estivesse usando mais o laticlavo e vestisse uma túnica simples como todos os outros presos.
Depois de farejá-lo, o leão pôs-se respeitosamente a lamber-lhe as mãos e os pés, e a defendê-lo da fúria dos outros leões, de modo que o povo ergueu-se nas arquibancadas e soltou gritos de espanto, passando a exigir que Maniliano fosse perdoado.
Na realidade, não usaram o nome Maniliano, mas uma alcunha que não pode ser aqui reproduzida, para não ferir o decoro.
Quando viu a mulher e o filho dilacerados pelos leões, sem que pudesse socorrê-los, o Senador Minuto Maniliano caminhou para o camarote do Imperador, seguido pelo velho leão, levantou a mão, para impor silêncio ao povo, e proferiu acusações tão terríveis ao Imperador Domiciano, que este determinou imediatamente que os arqueiros o matassem, bem como ao leão que não cumprira sua tarefa.
Entre outras coisas, sustentou o senador que Domiciano envenenara seu irmão Tito, e que o Imperador Vespasiano jamais teria permitido que Domiciano fosse Imperador de Roma.
O milagre que aconteceu a Maniliano concorreu para que os outros cristãos condenados morressem com bravura e, na morte louvassem a Deus, pois esse milagre era prova da graça inexplicável de Cristo.
Ninguém teria sequer imaginado que o Senador Maniliano tivesse sido, em vida, um homem de Deus; sua pia mulher menos ainda que qualquer outra pessoa. Mas sua memória está preservada na multidão de testemunhas cristãs.
O melhor amigo de seu filho, o poeta Décimo Júnio Juvenal, conseguiu fugir para a Bretanha, aconselhado por Maniliano, que lhe custeara o ingresso na nobre Ordem dos Cavaleiros e abrira-lhe o caminho para a função pública.
Juvenal ocupou o cargo de Censor, em sua cidade natal, durante algum tempo, pois Maniliano achava que um homem que é conhecido por seus hábitos licenciosos seria, por experiência própria, o melhor juiz dos vícios e fraquezas das outras pessoas. Maniliano também pagou a viagem de estudos de Juvenal ao Egito, na companhia de seu filho, embora ninguém compreendesse o motivo.
Mika Waltari
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