Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ROSTO DA TREVA / Erik L’Homme
O ROSTO DA TREVA / Erik L’Homme

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Guillemot de Troïl é um menino nascido no País de Ys, terra isolada, entre o Mundo Certo e o Mundo Incerto, onde se encontram, lado a lado, computadores e salas de cinema, cavaleiros de armadura e feiticeiros com poderes surpreendentes.

No dia em que Mestre Qadehar, o mais famoso Feiticeiro da Guilda, descobre em Guillemot predisposi­ção para a magia, o destino do jovem muda de rumo.

Transformado em Aprendiz de Feiticeiro, Guillemot descobre a magia dos Grafemas, que foi revelada à Guil­da pelo Livro das estrelas, antes de ser essa obra rouba­da por Yorwan, um jovem feiticeiro. Mas Guillemot se dá conta de que a Treva, potência demoníaca e maligna que vive no Mundo Incerto, está tentando raptá-lo, por uma razão que ele ignora...

Quando levam Ágata em seu lugar, Guillemot não vacila e se introduz nesse mundo terrível. Para socorrê-la, é obrigado a lançar mão de toda a magia que mal começou a aprender.

Leva, nessa aventura perigosa, os seus amigos de sempre: Âmbar, Gontrand, Romaric e Corália. Mas, um erro na formulação de um sortilégio separa os cinco amigos e faz com que cada um deles viva aventuras extraordinárias, cheias de armadilhas, através de um mundo povoado de personagens admiráveis.

É no calabouço do comandante Thunku, chefe dos bandidos de Yâdigâr, que Guillemot reencontra seus amigos e Ágata. Graças à intervenção de Mestre Qadehar, os sete jovens conseguem fugir e voltam sãos e salvos ao País de Ys.

Para tentar entender com mais clareza o que se pas­sou, a Guilda, alerta, decide levar a cabo uma ação no Mundo Incerto. Mas, os Feiticeiros encabeçados por Qadehar caem numa emboscada. Enquanto isso, um homem misterioso, o Senhor Sha, penetra no monastério da Guilda atrás de Guillemot. Trata-se de Yorwan, o ladrão do Livro das estrelas, à procura de um filho desa­parecido! Mas Guillemot não é aquele que ele busca...

Mestre Qadehar é condenado por um tribunal de Feiticeiros, que o acusa de responsável pelo fracasso da expedição. Graças à ajuda de seu amigo Geraldo, foge, convencido de que a Guilda abriga um traidor a serviço da Treva. Mas, antes de ir fazer a sua própria investiga­ção no Mundo Incerto, consegue que Bertram, um jovem Feiticeiro, fique cuidando de Guillemot.

Na ocasião de um baile em Dashtikazar, Âmbar, a fogosa, briga com Ágata, e seguida pelos amigos, preocu­pados, a persegue até o mato. Aí são todos atacados e cap­turados pelos Korrigãs, que estão determinados a entregá-los à Treva. Finalmente, graças à astúcia de Guillemot e ao sangue-frio de Bertram, conseguem se libertar!

Logo depois, por ocasião de um encontro no mundo real, o Senhor Sha revela a Guillemot que O livro das estrelas, que ele, na verdade, estava encarregado de pro­teger, acabava de ser roubado. Guillemot decide confiar a história a Qadehar, e para isso se dirige ao Mundo Incerto, acompanhado apenas de Bertram... O Senhor Sha confirma também a Guillemot que não é seu pai, mesmo tendo amado Alicia.

Guillemot volta para Ys, mais desamparado que nunca...

 

 

 

 

A cidade de Yénibohor, com suas muralhas impo­nentes por sobre o Mar das Queimaduras, estava como sempre, tomada de grande agitação.

Um pequeno grupo de sacerdotes, reconhecidos em função das cabeças raspadas e túnicas brancas, cercava jovens que andavam, de cabeça baixa, em direção aos edifícios onde se ensinava o culto a Bohor, a divindade maléfica que reina na Escuridão.

Um pouco mais adiante, Orks com o brasão de Yâdigâr, cidade dos bandidos e mercenários, recebiam das mãos de um sacerdote uma bolsa de pedras precio­sas como pagamento por uma emboscada que tinham armado a pedido da cidade.

Gritos e gemidos de inumeráveis prisioneiros tran­cados no subsolo subiam dos respiradouros que davam na rua. Eram, na maior parte, uns coitados, que tinham cometido o erro de se opor aos padres... Yénibohor fazia reinar o terror no Mundo Incerto.

Aqueles homens de túnica branca, aqueles estudan­tes, aqueles Orks, aqueles prisioneiros, tinham todos uma coisa em comum: o mesmo medo os atravessava toda vez que conduziam o olhar para a torre que domi­nava a cidade! A torre que abrigava o Grande Sacerdote do culto de Bohor, o Senhor das trevas...

No topo de um torreão imponente que lhe servia de abrigo, a silhueta familiar da Treva andava a passos lar­gos sobre a lajes do chão de um laboratório tomado de livros e instrumentos. Estava furiosa.

O escriba Lomgo, que ainda tinha nas mãos a missi­va anunciando a má notícia, mantinha-se quieto. Encos­tado junto à parede, tinha vontade de sumir. Observava, assustado, o seu senhor a agitar-se e as faíscas de treva que este soltava se consumirem ao contato com a pedra, num cheiro terrível de queimado.

De repente, a Treva virou-se e lançou um olhar em brasa ao escriba, que encolheu-se ainda mais.

— Escapou... Aqueles malditos Korrigãs o deixaram escapar... Gnomos estúpidos... Incapazes... Traidores... Minha vingança será terrível...

A Treva soltou um gemido e elevou os braços aos céus.

— Tão perto, tão perto do objetivo... Tenho o ma­nual... só me falta a criança... Não posso esperar mais... É preciso trazê-la... Lomgo...

— Sim, Senhor! — respondeu o homem, jogando-se no chão, como se quisesse implorar a clemência do demônio.

— Quero que os meus servidores mais fiéis... saiam das trevas... Quero a criança... não importa a que preço... Escreva-lhes... Quero a criança aqui... em dois dias... nem um só dia a mais... Sob pena de verem minha cóle­ra desencadear-se contra eles...

O escriba tornou a levantar-se, tremendo, e correu nuns passinhos precipitados para o escritório.

Atrás dele, a silhueta de manto de treva esforçou-se para acalmar-se. Dirigindo-se à mesa, sobre a qual des­cansava um livro grande, de capa de couro preto pontilhada de estrelas, virou uma página amarelada pelo tempo e mergulhou no estudo de um sortilégio complicado.

 

Guillemot dormia profundamente quando a mãe abriu a porta do quarto. As primeiras luzes do dia come­çavam a espalhar uma doce claridade pelo cômodo. Alicia olhou com ternura o filho adormecido. Parecia tão pequeno, tão frágil, encolhido daquele jeito na cama! Muitas vezes, mal acreditava nas façanhas que lhe atribuíam. Estremeceu, imaginando os monstros e brutos sanguinários que o menino teve que enfrentar no Mundo Incerto.

De repente, sentiu todo o peso de sua solidão. Sim, no fim das contas, aquilo era o mais difícil: não ter nin­guém em quem se apoiar, ninguém que viesse lhe dar segurança, conforto. E, depois, tinha de ser forte, sem­pre. Ou, pelo menos, parecer...

Avançou alguns passos e soltou um suspiro. Por mais que se esforçasse para ser a melhor mãe do mundo, dizia a si mesma, jamais seria capaz de substituir o homem que faltava naquela casa, do qual os dois tinham necessidade! Yorwan... Mas o que lhe teria passado pela cabeça? Por que desapareceu sem razão, apenas alguns dias antes do casamento? Eram tão felizes juntos, tão apaixonados um pelo outro! Yorwan não parava de repe­tir que a amava, e ela bem via nos seus olhos que não estava mentindo. Alguma coisa devia ter acontecido. Alguma coisa tinha acontecido que obrigou Yorwan a fugir e abandoná-la. No íntimo, estava convencida disso — ao contrário de Uriano, seu irmão, que tinha interpre­tado aquele desaparecimento repentino como reação de um frouxo no momento de se comprometer com o casa­mento. E o roubo do livro sagrado da Guilda não melho­rava as coisas em nada...

Sentando-se na beira da cama de Guillemot ainda adormecido, acariciou seu rosto. Era ele, sem dúvida, quem pagava mais caro por todas as confusões do passa­do. Ela brincou um instante com as mechas de cabelo castanho do menino. Depois beijou-o. Guillemot res­mungou, mas não acordou. Devagar, ela sacudiu seu ombro.

— Guillemot, meu querido... está na hora de levantar.

— Hum — grunhiu ele, fazendo força para abrir os olhos. — É você, mamãe?

— Quem mais podia ser? — perguntou Alicia, arre­piando seu cabelo.

— Pare! — disse ele, refugiando-se sob a coberta. — Deixe-me dormir mais um pouco!

— Não é possível, Guillemot. O dia está nascendo e seu amigo Bertram já está esperando lá embaixo.

— Bertram? — espantou-se ele, espichando a cabeça cacheada para fora do cobertor. — Já chegou? Mas tínha­mos encontro ao meio-dia!

— Parece que está com pressa de ver você. O que estarão tramando? Ande, agora se apresse!

Alicia levantou-se e abriu a janela, fazendo entrar no quarto o ar revigorante.

Guillemot reclamou. Tinha mesmo marcado encon­tro com Bertram ao meio-dia, durante a conversa mental da véspera, perto do dólmen! Bertram, com certeza, teve que andar boa parte da noite para chegar tão cedo. A perspectiva de ir ao Mundo Incerto, sem dúvida, o tinha excitado demais! Enfim, estava lá, e Guillemot não tinha tempo a perder. De um salto se pôs de pé e entrou no banheiro.

Alguns minutos depois, vestido da cabeça aos pés e munido da preciosa sacola de Aprendiz de Feiticeiro, encontrou Bertram na cozinha.

— Oi, Bertram! Você é madrugador, hein? É a hora do galo!

— Bom dia, Guillemot — respondeu o jovem Feiti­ceiro, apertando-lhe a mão. — Os dias estão ficando cada vez mais curtos, de modo que achei melhor vir logo...

Bertram, do alto de seus dezesseis anos, parecia ver todo mundo com condescendência. Era um gênero que fazia, com certeza, mas, em certas circunstâncias, ficava um tanto desagradável... Seu cabelo cor de mel, meio comprido, estava penteado para trás. Tinha os olhos cas­tanhos, no queixo e em cima do lábio superior, alguns pêlos mal e porcamente formavam uma barbicha e um bigode.

— Vocês vão tirar uns minutos do seu precioso tempo e tomar um bom café da manhã! — declarou Alicia, num tom que não admitia réplica.

Os dois amigos não se fizeram de rogados e devora­ram os pães com manteiga. Uma vez terminadas as canecas de chocolate, levantaram-se da mesa.

— Vamos dar uma volta em Dashtikazar — anunciou Guillemot à mãe. — Até à noite!

— Não vem almoçar em casa?

— Não, vamos comer um sanduíche no padre Anselmo.

Alicia não insistiu. Tinha pensado em ir andar a ca­valo aquela manhã e assim poderia, sem remorsos, pro­longar seu passeio até à tarde. Respondeu com um gesto afetuoso aos dois meninos, que lhe disseram até logo, com um aceno de mão.

— Conte-me tudo agora — começou Bertram, assim que ficaram sozinhos.

— Já contei tudo — respondeu Guillemot. — Preciso urgentemente me comunicar com Mestre Qadehar para dar uma informação capital. Quanto mais cedo melhor.

— E o que é essa informação capital? Não pode me dizer?

— Não me queira mal, mas reservo-a a meu Mestre em primeiro lugar.

Bertram não insistiu e se pôs a assobiar. Guillemot achou sua atitude estranha. De hábito, Bertram o teria aborrecido até ele ceder umas migalhas do segredo! Naquela manhã, não só não insistiu, como até fez cara de quem não se importava...

— Como vamos chegar ao Mundo Incerto — pergun­tou Bertram.

— Pelo Galdr do deserto. Isso evitará que a gente tenha que ir à colina das Portas.

— Muito bem, muito bem — aprovou Bertram. — Mas, depois, como vamos encontrar Qadehar? Desculpe... Mestre Qadehar?

— Vou construir um sortilégio de investigação quan­do chegarmos lá — explicou o Aprendiz.

A falta de entusiasmo do amigo começou a in­quietá-lo.

— Mas, sabe, nada impede que você mude de idéia! — prosseguiu. — Você não é obrigado a me acompanhar.

— Mudar de idéia? Ora, ora! — respondeu Bertram, com cara de espanto.

Guillemot o observou pelo canto do olho. A viagem noturna do monastério de Gifdu devia ter deixado o amigo um bocado cansado para que lhe faltasse àquele ponto uma resposta pronta!

Andaram um tempo pelo mato em direção ao mar. Depois, certos de que ninguém podia vê-los, elaboraram um sortilégio complexo, que iria conduzi-los até o Mundo Incerto. Enquanto rememorava a fórmula do Galdr e a seqüência das posturas, Guillemot pensou nos amigos, Âmbar, Gontrand, Corália e Romaric, que até então tinham participado de todas as suas aventuras. Pela primeira vez não os levava consigo. Pelo sim pelo não, não se achava no direito de metê-los de novo em perigo... De súbito experimentou um terrível sentimento de solidão, que nem mesmo a presença de Bertram era capaz de apagar...

Quando ficou pronto, fez sinal ao companheiro, que sacudiu a cabeça. Deram-se as mãos. Guillemot adotou sucessivamente os Stadha dos oito Grafemas que com­punham o sortilégio da viagem, ao mesmo tempo em que cantarolava o encantamento correspondente.

Bertram o imitou escrupulosamente. Era a primeira vez que ia ao Mundo Incerto! De repente, houve um cla­rão, acompanhado do barulho de uma porta que se abria. E o jovem Feiticeiro sentiu-se conduzido por um forte turbilhão, caindo, em seguida, num buraco negro.

Os dois meninos tinham deixado Ys.

Alicia saiu de casa vestida com traje de equitação. Dirigia-se ao castelo de Uriano de Troïl e suas estreba­rias, onde uma amiga a esperava, quando percebeu uma silhueta que se aproximava a passo acelerado. Reconhe­ceu o jovem sem dificuldade.

— Madame de Troïl, apresento-lhe meu respeito e admiração! Guillemot marcou encontro comigo aqui ao meio-dia. Admito que estou um pouco adiantado, mas meu desejo de revê-lo era tanto que... Alguma coisa errada com a senhora?

Alicia parecia completamente desorientada.

— Mas, afinal, Bertram — ela terminou dizendo — você não acabou de partir com Guillemot para dar uma volta por Dashtikazar não tem nem meia hora? O que significa isso?

— Eu? Há meia hora? A senhora está brincando!

No entanto, ele bem via que estava sendo sincera e demonstrava total incredulidade.

De repente, o rosto de Alicia mudou de expressão. Dando uma risadinha, como se estivesse rindo de si mesma, ameaçou Bertram com o dedo.

— Estou entendendo! Não é nada gentil me enganar assim! Onde está Guillemot? Quero dizer a ele o que penso dessas brincadeiras.

— Ele... Hã... está... — gaguejou ele.

— Muito bem, tudo certo — disse Alicia, educadamen­te. — O que foi que ele esqueceu desta vez? O casaco, aposto?

— É, o casaco.

— Está no quarto, vá buscar. Vou me atrasar. E diga àquele preguiçoso, por mim, que cumpra ele mesmo as próprias tarefas, em vez de mandar os amigos!

Alicia tomou a direção do castelo do irmão, sempre a se perguntar o que Guillemot iria inventar da próxima vez para fazê-la de boba.

Bertram a viu afastar-se, completamente aturdido.

— O que é que isto quer dizer? — espantou-se o jovem Feiticeiro. — Meu Deus! Então, eu já teria vindo antes... E até mesmo parti com Guillemot... Ou a senhora de Troïl enlouqueceu ou está acontecendo uma coisa com­pletamente anormal!

Inicialmente, fez que ia rumo à casa; depois, já fora do campo de visão de Alicia, saiu correndo em direção a Dashtikazar.

 

Bertram caiu de joelhos na estrada de terra. Diante dele, Dashtikazar, a Soberba, capital do País de Ys, exi­bia as altas casas brancas. Não tinha conseguido alcan­çar Guillemot. No entanto, pela lógica, este deveria vir a seu encontro. Tinha corrido sem parar desde o vilarejo de Troïl, distante apenas algumas léguas. Seus pulmões ardiam e o coração parecia a ponto de sair do peito de tão depressa que batia. Esperou o fôlego voltar para re­fletir sobre a situação.

Em seguida deixou a estrada e localizou um pouco mais adiante um menir partido por um raio. Sentou-se ao lado.

— Vejamos — disse o jovem Feiticeiro a si mesmo — tentemos analisar friamente a situação: cheguei depois da partida de Guillemot, e a senhora de Troïl me afirmou que já tinha me visto com ele um pouco antes, de manhã. O que quer dizer que um indivíduo parecido comigo veio esta manhã a Troïl! Fez-se passar por mim e levou Guillemot consigo! Guillemot disse que iam a Dashtikazar, mas, evidentemente, foram para outro lugar. Está parecendo muito um rapto. Um rapto mági­co, até mesmo porque Guillemot e sua mãe se deixaram enganar pela aparência do impostor!

Seu raciocínio estava no rumo certo, mas ele hesita­va em relação a que caminho seguir. Sozinho, nada podia fazer. Quem ia poder ajudá-lo? Mestre Qadehar tinha viajado para o Mundo Incerto com Uriano de Troïl e seu mordomo, Valentim, para esclarecer o massacre dos Feiticeiros pelos Orks em Djaghataël, e trazer à tona a verdade.

Quem, então, além de Qadehar, acreditaria em sua história de sósia e de rapto?

A resposta se impôs por si mesma: os amigos de Guillemot! Amigos que passaram a ser também seus, depois que escaparam das garras dos Korrigãs!

Sentado de pernas cruzadas, ali mesmo no chão, construiu um Lokk — um conjunto mágico — em torno do Grafema da comunicação, Berkana. Em seguida, man­dou imediatamente o Lokk em busca de Guillemot. A ausência de resposta confirmou seus temores: o Aprendiz não estava mais em Ys! Depois, entrou em contato com o primeiro de seus amigos...

— Corália? Oi! Oi! Está me ouvindo? Corália?

— Hein? Quem fala?

— Ei, Corália, alguma coisa errada? — inquiriu com um tom afetado a professora de francês.

Aquela mulher severa não gostava que atrapalhas­sem o silêncio da aula quando tinha dado um exercício para fazer.

— Perdoe-a, professora — respondeu um aluno, ironi­camente —, ela estava dormindo!

— Ou então ouve vozes! — falou outra aluna, prenden­do o riso.

— Calem-se! Silêncio!

A mestra teve que bater diversas vezes com a régua metálica na mesa para conseguir calma.

Corália não tinha muitas amigas no colégio de Krakal. Terrivelmente bonita, com o cabelo negro comprido em cachos, grandes olhos azuis, monopolizava a aten­ção dos meninos — o que não necessariamente agradava às outras meninas... Pediu desculpas à professora e pro­meteu que aquilo não iria acontecer de novo. Tornou a mergulhar no exercício de gramática. Bem lhe parecia ter escutado uma voz, porém. Uma voz de menino. Afi­nal, não era louca!

— Corália, sou eu, Bertram!

— Ber... — começou ela a dizer em voz alta, tapando, então, com a mão, a boca, os olhos arregalados.

— Psiu! Não diga nada! Responda somente dentro da cabeça, pensando com toda força.

— Bertram! Mas como é possível, isso?

— É mágica. Escute bem, Corália: Guillemot foi rap­tado! É absolutamente necessário que você me encontre em Dashtikazar. Eu vou entrar em contato com os outros. Encontramo-nos na Taverna do Velho que Manca. Você conhece?

— Conheço. Fazem sucos de frutas ótimos lá...

— Transmita a informação a Âmbar, por favor — interrompeu-a Bertram.

— Você não quer falar diretamente com ela? — per­guntou Corália. — Já está na hora de você a perdoar, não?

Corália fazia alusão ao primeiro encontro de Bertram com o bando... Um primeiro encontro que tinha come­çado mal para o Feiticeiro.

— Não se trata disso — defendeu-se ele, apesar de guardar uma lembrança aguda da joelhada que Âmbar lhe tinha dado... Você sabe como Âmbar reage quando Guillemot está em perigo...

— Sim, tem razão. Bem, é o tempo de eu encontrar uma desculpa para sair da aula e procurar minha irmã. Estaremos às cinco horas na Taverna, está bom para você?

— Ótimo. Até daqui a pouco.

— Um beijo, Bertram, e...

Bertram interrompeu repentinamente a comunicação mental. Não ficava indiferente diante de Corália e aque­le não era o momento para se deixar envolver!

Em seguida, irrompeu no espírito de Romaric que, de surpresa, quase caiu do cavalo, na hora dos exercí­cios eqüestres no pátio de Bromotul, escola dos Escu­deiros da Confraria dos Cavaleiros do Vento. Apesar de ignorar completamente como iria escapar de Bromotul, Romaric prometeu a Bertram que estaria na Taverna do Velho que Manca no final do dia.

Depois, Bertram entrou em contato com Gontrand, durante um intervalo no meio de um ensaio, na Aca­demia de Música de Tantreval, onde o menino tinha sido admitido dois meses antes. Fleumático, como de hábito, Gontrand não ficou espantado de ouvir a voz de Bertram dentro da cabeça. Também garantiu que estaria presente ao encontro.

Esgotado pela longa corrida e pelos esforços que lhe tinha exigido a comunicação mental, Bertram dirigiu-se ao menir. Aproveitou-se da força telúrica que o megalito gerava. Para reforçar a ação benéfica da corrente, chamou a si Uruz, o Grafema das energias terrestres e se abandonou aos seus cuidados.

Quando sentiu-se melhor, tentou estabelecer novo contato mental. Construiu seu Lokk berkaniano e for­mou no espírito a imagem de seu antigo Mestre, o peri­to em informática, no monastério de Gifdu.

— Geraldo? Você está aí?

— Onde queria que eu estivesse, Bertram? — logo res­pondeu o Feiticeiro, com a voz quente e tranqüila, que reconfortou o jovem.

— Não sei! Talvez viajando pelo Mundo Incerto como Mestre Qadehar! Ou desaparecido, como Guillemot...

— Como assim desaparecido como Guillemot? Acon­teceu alguma coisa?

Bertram explicou a situação a Geraldo e expôs suas teorias sobre um eventual rapto do Aprendiz de Fei­ticeiro.

— Se você estiver certo, isto é muito grave. Daqui a pouco vai me contar tudo em detalhes... Por outro lado, não sei se foi uma boa idéia confiar nos jovens amigos de Guillemot. São muito imprevisíveis! Mas, já que não se pode voltar atrás... Eu me equipo e saio em campo. Está dizendo que essa taverna se situa perto do porto?

— Sim. Todos devemos nos encontrar no final do dia.

— Eu também estarei lá. Procure fazer as coisas de modo que todo mundo permaneça tranqüilo. Já basta um Aprendiz desaparecido!

— Fico feliz de ver você, Geraldo!

— Eu também, Bertram, eu também.

A comunicação interrompeu-se. Bertram deixou a cabeça pender para trás, de encontro ao granito do menir. Tinha feito tudo o que podia. E apesar das ironias de Ágata a respeito de seu poder, no dia em que ele, Guillemot e seu bando de amigos se encontravam pri­sioneiros, nas garras dos Korrigãs, sabia que, desta vez, tinha se saído bem melhor!

 

Bertram e Guillemot apareceram no Mundo Incerto bem no meio das Colinas Móveis. O Aprendiz de Fei­ticeiro tinha escolhido aquele local porque era discreto, mas sobretudo porque tinha cuidadosamente destacado num mapa as coordenadas telúricas em direção às quais estava orientado seu Galdr de viagem.

Deu alguns passos sobre o capim pardo que o vento deitava com suas rajadas, assim como fazia correr a es­puma do mar. Parecia-lhe não ter desembarcado ali mais tarde que na primeira vez, completamente sozinho, de­pois que os amigos, no curso da passagem através da Porta, foram dispersos pelo Mundo Incerto!

— Estamos em algum ponto entre a cidade dos mer­cadores — Ferghânâ — a oeste; a cidade dos horríveis padres de Yénibohor, a leste; o Mar das Queimaduras, ao norte e o Deserto Voraz, ao sul — explicou ao compa­nheiro, que nada conhecia daquele mundo estranho e cruel.

Não ouviu resposta. Atrás, Bertram cambaleava, feito bêbado. Guillemot voltou-se.

— Bertram, o que houve? Meu Deus, deve ser um efei­to secundário da passagem entre os Mundos, como acon­teceu com Âmbar. Você tem que deitar e esperar que passe.

Correu para ajudar o amigo.

Mas mal o tocou, Bertram recuperou todo o seu vigor e o agarrou. Apertando seu pescoço, o fez sufocar.

— Bertram, o que você... Está louco... Pare... Bertram só fez escarnecer e apertar ainda mais.

Quando sentiu a vítima à beira do desmaio, relaxou a pegada, só o suficiente para mantê-la viva. Guillemot teve, então, o espanto de ver os traços de Bertram em­baralharem-se, cedendo lugar aos de um velho. Tombou no chão. Sentia a cabeça zumbir. Não era possível! Era muito idiota! Tentou lutar contra a sensação desagradá­vel que cada vez mais o invadia, mas em vão. Num últi­mo reflexo, porém, conseguiu fazer os Grafemas apare­cerem no meio das brumas de seu cérebro. No instante em que perdeu a consciência, Gebu e Wunjo, em sua forma incerta, puseram-se a brilhar.

— Qadehar... Está tudo bem? — inquietou-se Uriano de Troïl, ao ver o Feiticeiro parar de caminhar de repente.

Uriano de Troïl era tio de Guillemot e Romaric. Era uma espécie de gigante cabeçudo com a barba grisalha. Carregava, negligentemente, um impressionante macha­do de guerra por cima dos ombros, ao lado de um saco volumoso.

— Está tudo bem, sim... Por um instante, achei que... Não, bobagem — acrescentou Qadehar, sacudindo a cabeça, como se estivesse espantando um mau pressen­timento.

Qadehar era o Mestre Feiticeiro de Guillemot. Tinha porte de atleta, olhos azuis metálicos e aspecto duro, que se suavizava quando sorria. Parecia ter trinta e cinco ou quarenta anos. Uma sacola cheia de livros e utensílios mágicos lhe pendia sobre o quadril, junto à mochila de lona, contendo coisas de viagem.

— O que está acontecendo? — perguntou Valentim, mordomo e amigo de Uriano, homem seco e musculoso, de cabelo branco, que, como seu senhor, vestia a arma­dura turquesa dos Cavaleiros do Vento.

— Por um segundo achei que estava captando o apelo de alguém passando por problemas. Um sortilégio alea­tório, daqueles que a gente joga como uma garrafa ao mar antes de um naufrágio.

— Conseguiu ver quem o enviou?

— Não, Valentim, não deu tempo. Foi fugaz demais.

— Quem sabe não era um apelo de... Guillemot?

— Acho que não: vinha do Mundo Incerto... Vamos, esqueçamos isso. A caminho!

Os três homens retomaram a marcha em direção à cidade dos Homenzinhos de Virdu, onde esperavam obter preciosas informações sobre o dramático episódio de Djaghataël, razão pela qual tinham vindo para aque­las terras pouco hospitaleiras.

O velho que tinha enganado Alicia e Guillemot tomando a aparência de Bertram amordaçou e amarrou solidamente seu prisioneiro, que jazia, inconsciente, por sobre o capim, nas Colinas Móveis. Sabia do que o menino era capaz! Em seguida, fechou os olhos e concentrou-se.

— Senhor? Sou eu, seu mais zeloso servidor! Estou com o tal de Guillemot, o menino que o senhor desejava...

— Está com o menino... Eusébio de Gri... Bravo... Sim, bravo... Você não será esquecido na hora do meu triunfo... Onde está ele? Onde está o menino?...

— Comigo, Senhor. Num ponto qualquer das Colinas Móveis.

— Não diga mais nada... Já localizei você... Vou man­dar homens... para o escoltarem até aqui... Vamos beber uma corma... ao seu sucesso...

Eusébio de Gri, Mago de um monastério da Guilda na Terra Amarga e inimigo declarado de Qadehar no seio da ordem dos Feiticeiros, ficou aguardando o térmi­no da conversa mental para se permitir estremecer. Mesmo distante, a voz do demônio com o manto de tre­vas conseguia lhe gelar o sangue! Verificou uma última vez a solidez dos laços que aprisionavam Guillemot, depois se pôs a esperar com impaciência a chegada dos homens do Senhor.

 

Bertram chegou mais cedo ao porto de Dashtikazar. Para matar o tempo, perambulou um pouco por entre os veleiros que pertenciam às famílias ricas da cidade e os barcos robustos dos pescadores.

Os gritos estridentes dos pássaros lutando com a brisa misturavam-se às batidas das velas meio soltas e aos estalos das cordas de encontro aos mastros.

Bertram sentiu a tristeza despontar. Aquele porto lembrava outro, em algum lugar do mundo real, onde ia com os pais de férias, quando era bem novo. Lembrou-se da praia e do pai, brincando de bola com ele, enquan­to a mãe curtia o sol, deitada numa toalha de praia bran­ca... Tudo tão distante! Pensava naquilo como se fosse uma outra vida que tivesse vivido, antes do acidente que provocara a morte dos pais e sua transferência para o País de Ys, com o padrinho, Geraldo.

Uma bola formou-se na garganta, as pálpebras tre­meram. Condenando a própria fraqueza, tirou um lenço do bolso e assoou o nariz. Depois, dirigiu-se a passos largos ao local do encontro.

A Taverna do Velho que Manca, ao contrário do que o nome poderia indicar, não tinha nada de refúgio de piratas. Pela manhã, pescadores e peixeiros discutiam seu ofício diante de um copo de vinho frutado das Montanhas Douradas. Ao meio-dia, os comerciantes do bairro se encontravam ali para tomar uma corma, comer um prato de frutos do mar ou asa de arraia escaldada com alcaparras, e falar dos negócios. De tarde, os estu­dantes de Dashtikazar gostavam de ocupar os compartimentos em que se dividia o salão para trabalhar ou bater papo, tomando suco de fruta e café. À noite, ali se reu­nia uma multidão diversificada de freqüentadores, que filosofavam sobre o mundo, para depois entoar canções celebrando a bebida.

Portanto, na hora em que Bertram empurrou a porta do estabelecimento, foi acolhido por olhares curiosos de um punhado de estudantes. Estes não viam com grande freqüência um homem da Guilda, vestido com o presti­gioso manto escuro e munido da misteriosa sacola.

Dois pares de olhos, em particular, o fixaram com espanto, dissimulando-se depois num dos compartimentos, de onde logo vieram exclamações abafadas.

Bertram, a quem tinha escapado essa curiosa artima­nha, demonstrando a mais perfeita indiferença, instalou-se a uma mesa redonda que escolheu, próxima à entrada...

O pêndulo em cima do balcão indicava justamente cinco horas quando duas moças entraram na taverna. Tinham cerca de treze anos e se pareciam como duas gotas d’água, a não ser por um detalhe: uma usava cabe­lo curto e a outra, cabelo comprido.

— Âmbar! Corália! — Bertram chamou-as, acenando com a mão.

— Boa tarde, Bertram! É um prazer revê-lo — excla­mou a bela Corália, dando dois beijos sonoros nas bo­chechas do Feiticeiro, que enrubesceu ligeiramente.

— Saudações! — disse Âmbar, mais sobriamente, estendendo-lhe a mão. — Você parece que está com a cara mais saudável!

Âmbar era irmã gêmea de Corália, à qual tinha cedi­do de boa vontade o monopólio da vaidade. De sua parte, esportiva, e dotada de um caráter íntegro, era o terror dos meninos na mesma medida em que Corália era sua inspiração. Mas sua carapaça não deixava de ter umas falhas: acontecia, quando não se dava conta, de seus sentimentos por Guillemot transformarem-na numa menina bonita como as outras...

— Muito bem, vocês são pontuais — disfarçou Bertram. — Entrei em contato com Romaric e Gontrand; não ti­nham certeza de conseguir chegar na hora ao encontro. Mas prometeram vir.

— Bem — começou Âmbar, sentando-se — conte-nos o que está acontecendo.

— Vamos fazer o pedido primeiro — propôs Corália, levantando o braço para chamar a atenção do garçom. — O que vão querer? Âmbar? Bertram?

— Um chocolate quente.

— Uma corma.

— E um néctar de pêra para mim — anunciou Corália.

— Uma outra corma, por favor.

Bertram, Âmbar e Corália voltaram-se para o ho­mem, esbaforido e suado, que se dirigia ao garçom.

— Geraldo! — exclamou Bertram, visivelmente con­tente.

Geraldo era um homem de pequena estatura, com o barrigão dos prazeres da mesa. Sua cabeça careca abri­gava uma grande inteligência e por trás dos óculos, olhos vivos anunciavam um espírito livre e alerta. Podia ter quarenta ou quarenta e cinco anos e usava o manto escuro e a sacola dos Feiticeiros da Guilda. Era grande amigo do Mestre Qadehar.

Bertram logo fez as apresentações.

— Geraldo, apresento-lhe Âmbar e Corália, amigas de Guillemot. Elas são de Krakal. Meninas, apresento a vocês Geraldo, meu Mestre Feiticeiro e padrinho. Diante da gravidade da situação, me permiti convidá-lo para a nossa reunião...

Âmbar e Corália levantaram-se, educadamente.

— É um prazer conhecê-lo, senhor.

— O mesmo digo eu, jovens — respondeu Geraldo, enxugando a testa. — Vamos nos sentar. Minha viagem me esgotou. E acho que já chamei atenção que chegue!

As conversas em torno — que tinham parado um ins­tante — foram retomadas com mais vigor. Dois Feiticei­ros no mesmo dia na Taverna do Velho que Manca não era nada habitual!

O garçom trouxe as bebidas. Eles brindaram.

Tendo bebido vários goles da excelente cerveja com mel de Ys, Geraldo deixou escapar um suspiro de satis­fação.

— Agora sinto-me melhor! — exclamou. — A viagem de Gifdu para cá acabou comigo... A propósito, Bertram, você não disse que viriam todos os seus amigos?

— Sim, mas Romaric primeiro terá que escapar da fortaleza-escola de Bromotul e Gontrand, da Academia de Música de Tantreval! Não é tão fácil assim...

Eles decidiram aguardar os dois retardatários antes de abordar as questões sérias. E Âmbar foi obrigada a encontrar paciência... Falaram, então, de tudo e de nada, e Corália mostrou-se perita nesse jogo. Afinal, no mo­mento em que já não esperavam mais vê-los, Romaric e Gontrand entraram taverna adentro.

Romaric, que estava se formando Escudeiro na Con­fraria dos Cavaleiros do Vento, era primo de Guillemot. Tinha treze anos e meio, mas parecia ter mais. Era um menino robusto e musculoso, corajoso e disposto. O cabelo louro como o azul intenso dos olhos faziam dele, sem qualquer possibilidade de dúvida, um verdadeiro Troïl...

Gontrand tinha a idade de Romaric, com diferença de dias, e era seu melhor amigo. Alto, mais para o magro, tinha os olhos cor de amêndoa e o cabelo preto, sempre cuidadosamente penteado. Dotado de um humor corrosivo e de uma calma a toda prova, dedicava-se à música.

Os dois meninos se desculparam junto aos amigos: tinha sido necessário usar de astúcia para dobrar os pro­fessores e inspetores! Ficaram felizes de conhecer Geraldo, aquele famoso padrinho, que tinha trazido Bertram para Ys. Pediram, por sua vez, dois copos de suco de arando bem gelado e tomaram lugar à mesa.

— Muito bem — começou Bertram — já que está todo mundo aqui...

— Até que enfim! — gemeu Âmbar, no auge da inqui­etação, sabendo que alguma coisa tinha acontecido com Guillemot.

— Calma, Âmbar — Romaric ralhou.

Ele e os amigos presentes não tinham esquecido a cena dela no mato, quando os Korrigãs pegaram Guillemot.

— Bem. Posso falar? — disse Bertram, inquieto. — Repito: Guillemot desapareceu e provavelmente foi raptado!

A calma voltou. Todos prestaram uma atenção tensa. Bertram recapitulou os acontecimentos conforme se tinham passado e expôs as conclusões a que tinha che­gado. O pequeno grupo ficou aterrorizado. A tal ponto que ninguém se deu conta de que sua conversa parecia interessar vivamente a dois indivíduos escondidos numa saleta vizinha — dois indivíduos que já tinham assistido à chegada de Bertram com os olhos arregalados...

— Uma coisa eu posso confirmar — declarou Geraldo. — Guillemot já não se encontra em Ys. Também tentei entrar em contato mental com ele, mas não consegui.

— A Treva! — exclamou Corália. — Só pode ser!

— É possível. Aliás, é até mesmo provável — reconhe­ceu Geraldo.

Não pôde deixar de pensar no traidor que se oculta­va — ou pelo menos ele e Qadehar assim supunham — no seio da Guilda.

— Seja como for, trata-se de alguém que domina sufi­cientemente as artes dos feiticeiros para poder tomar uma outra aparência — acrescentou.

— Isso é possível? — espantou-se Romaric.

— Claro! — respondeu Bertram, num tom superior. — Basta...

— A questão não está em se saber como — cortou-o Gontrand — mas onde! Para onde ele foi levado?

— Ao que tudo indica, para o Mundo Incerto — res­pondeu Geraldo —, uma vez que Bertram não conseguiu alcançá-los na estrada que conduz a Dashtikazar e, além, na direção da colina das Portas. Ora, o Galdr do Deserto, que vocês conhecem, por terem-no utilizado com Mestre Qadehar, só permite ir, a partir de Ys, ao Mundo Incerto.

— Nesse caso — declarou Romaric — o que estamos esperando para ir para lá?

— Opa! Opa! — exclamou Geraldo, num tom autoritá­rio, acompanhando suas palavras com um gesto, que significava que não deviam se deixar entusiasmar. — Vocês não vão a parte alguma! A situação já está bastan­te confusa do jeito que está. Não vão querer piorar! Todos voltarão para casa, comportados. De minha parte, vou imediatamente ao encontro do Prefeito. Ele vai decidir o que convém fazer.

Geraldo levantou-se. Âmbar ia se insurgir contra o discurso do Feiticeiro, quando Romaric lhe fez um sinal e piscou o olho.

Geraldo pagou a conta e cumprimentou os jovens.

— Bertram — disse, por fim —, conto com você para que esse pessoalzinho não faça bobagens. Certo? Bem, até logo!

— Até logo! — responderam em coro.

Assim que o Feiticeiro deixou a taverna, entreolharam-se.

— Sabem em que estou pensando? — perguntou Romaric, fingindo que examinava as unhas da mão.

Um sorriso logo iluminou o rosto de cada um dos amigos reunidos, com exceção de Bertram.

 

— O que dizem? — perguntou Romaric, depois de ex­por seu plano.

— Para mim, está bem — disse Âmbar, sacudindo a ca­beça. — Para mim, está ótimo.

— Guillemot está em perigo, não podemos ficar para­dos, sem fazer nada! — confirmou Gontrand.

— Ai... eu, já que estou com vocês... — Corália con­tentou-se em dizer, olhando Romaric de viés.

Voltaram-se todos para Bertram, que não dizia palavra.

— E você, Bertram? — perguntou Romaric.

— Desculpe, mas o seu plano tem uma falha — respon­deu o jovem.

— Ah, é? Qual?

— Para ir ao Mundo Incerto, é preciso abrir a Porta do Mundo Incerto. Portanto, precisam de um Feiticeiro...

— E por acaso você não é Feiticeiro? — Âmbar falou.

— Sou — respondeu ele — sou Feiticeiro. Mas quem disse que aceitarei ajudar vocês? Meu padrinho me pe­diu para cuidar que não fizessem besteira. E essa idéia de ir procurar Guillemot no Mundo Incerto parece ser uma grande besteira!

— Covarde — disse Gontrand.

— Covarde? Traidor, isso sim! — gritou Âmbar, fuzilan­do Bertram com o olhar.

— Calem-se! — interveio Romaric. — Bertram tem razão: sem sua ajuda, vamos ficar aqui pregados.

— O que é preciso fazer para que você mude de idéia? — perguntou Âmbar, impertinente, voltando-se para o jovem Feiticeiro. — Suplicar, quem sabe?

— Confesso que isso não me desagradaria — respon­deu ele, com um sorriso oblíquo. — Mas é inútil: o plano de Romaric é perigoso demais, ponto final.

— E se eu beijar você? As gentis damas sempre bei­jam os heróis para lhes dar coragem.

— Isso também não me desagradaria, absolutamente! — disse Bertram, com um olhar meio malicioso. — Mas...

— Puxa vida! Deixa para lá — suspirou Romaric, dan­do um chute discreto em Gontrand. — De todo modo, esse plano é completamente imprestável...

— Imprestável? Como assim, imprestável? — protestou Âmbar. — Acho o contrário.

— Eu disse imprestável mesmo — repetiu Romaric, interrompendo-a rudemente, porque é evidente que, mesmo se o quisesse, Bertram, sem dúvida, não teria ca­pacidade para abrir a Porta do Mundo Incerto!

Bertram soltou um soluço de surpresa.

— O negócio é o seguinte — insistiu Gontrand, depois de lançar um olhar cúmplice em direção a Romaric — ele não tem capacidade: não é dado a todo mundo abrir as Portas da colina.

— Mas... mas eu...

— É verdade — continuou Romaric — sempre ouvi dizer que somente os Feiticeiros de primeira categoria têm capacidade mágica para realizar essa façanha.

— Bertram é um Feiticeiro de primeira categoria! — defendeu-o Corália.

— Exatamente! — exclamou Bertram. — Sou totalmen­te capaz de abrir a Porta do Mundo Incerto. Meu Deus! Vou provar isso a vocês hoje mesmo!

— Bravo! — concedeu Gontrand, antes que diminuís­se a exaltação do Feiticeiro. — Estou, afinal, reconhecen­do você. Levantemos os copos ao nosso herói!

— A Bertram! E a Guillemot, que vamos libertar, no Mundo Incerto!

Bateram os copos e taças. Bertram inflou o peito como um pavão.

— Bem — disse Âmbar — não há tempo a perder. Va­mos sem demora. Guillemot talvez esteja correndo peri­go sério.

— É verdade — concordou Romaric, levantando-se da mesa. — Vamos embora!

No mesmo instante, ouviram uma voz atrás.

— Desculpe, pessoal, mas...

— ...não vão a lugar algum sem nós!

Viraram-se. Do compartimento onde se encontra­vam escondidos, surgiram Ágata de Balangru e Tomás de Kandarisar, que se postaram diante deles com aspecto decidido.

Ágata era uma menina alta, um pouco magra, com olhos e cabelo pretos e a boca grande demais. Como seu comparsa, Tomás, estava se preparando para festejar o décimo quarto aniversário. Tinha sido, no passado, grande inimiga de Guillemot no colégio, até que foi levada pelos Gommons para o Mundo Incerto... Depois, tomou-se de uma espécie de paixão pelo Aprendiz de Feiticeiro, o que não era nada do gosto de Âmbar.

Tomás, um menino atarracado e roliço, ruivo, mais para o carrancudo, era o melhor amigo de Ágata. Guillemot o tinha salvo das garras de um monstro e após esse episódio ele lhe devotava um reconhecimento sem limites.

— Tomás? Ágata? O que estão fazendo aqui? — es­pantou-se Romaric.

— Às vezes, o acaso faz bem as coisas! — respondeu Ágata. — Tínhamos um teste de história hoje à tarde. Não estávamos bem preparados, ele e eu, então, sabiamente, resolvemos faltar... E, para não sermos notados, nos refugiamos na Taverna do Velho que Manca.

— E Ágata reconheceu Bertram, quando entrou — acrescentou Tomás.

— Vimos que estava acontecendo alguma coisa, en­tão, decidimos esperar — continuou ela.

— E não estávamos enganados! — prosseguiu Tomás. — Ouvimos toda a história de vocês!

— Pois é isso! — disse Ágata, cruzando os braços, numa atitude de desafio. — Ou vocês nos põem na joga­da, ou contamos o que sabemos aos guardas do Prefeito.

Fez-se um silêncio, todos medindo-se com o olhar. Depois, vendo que Ágata e Tomás não pareciam brincar, Romaric sentou-se e convidou todos a fazer o mesmo.

— Tenho que prevenir vocês — começou Romaric — que vamos correr riscos, que vai ser perigoso.

— Guillemot nunca hesitou em vir em nosso socorro, mesmo quando era perigoso — respondeu Ágata. — Não é verdade, Tomás?

— É verdade — respondeu o ruivo. — Ele poderia ter se salvado no dia em que fomos perseguidos pelos Gommons na praia: mas fez meia-volta para vir nos aju­dar... Nada o obrigava a isso.

— Bem, de acordo — Romaric teve que convir. — To­dos temos uma dívida em relação a Guillemot.

Âmbar fez cara de amuada.

— As motivações de Ágata não me parecem muito claras... — anunciou.

— Escute, Âmbar — respondeu a menina alta, enrubescendo ligeiramente. — Admito que me comportei mal na ocasião da festa de Samain, em Dashtikazar. Mas jurei, e todos os seus amigos são testemunhas disso, que eu... enfim, que Guillemot... não me interessava mais.

— É verdade — confirmou Corália —, ela jurou.

— Vamos encarar as coisas de frente: — interveio Gontrand, que até então tinha se mantido à parte da dis­cussão — nós sete não seremos demais para salvar Guillemot das garras do raptor!

— Gontrand tem razão — disse Tomás. — Vamos parar de discutir. O que conta, agora, é a vida de Guillemot.

— E tenho a impressão de que não estamos realmen­te preparados para passar a noite no Mundo Incerto — declarou Ágata. — Seria bom passarmos na minha casa para nos equiparmos!

Bertram nada dizia. Estava branco como um lençol.

— Tudo bem, Bertram? — perguntou Corália.

— Sim... — murmurou ele. — Digamos que... hum... abrir a Porta já é difícil e... eu não sei se serei capaz de levar seis pessoas...

— Confiamos plenamente em você, Bertram, o Feiti­ceiro — disse Âmbar, dando-lhe um tapinha amistoso nas costas.

— Você é o mais forte! — acrescentou Corália, batendo os cílios.

— Com a sua proteção estou certa de que poderemos combater a própria Treva — insistiu Ágata, com um sor­riso sedutor.

— Meu Deus! — exclamou Bertram, levantando-se bruscamente, de repente revigorado. — O que estamos esperando para partir?

 

Guillemot recobrou a consciência no chão frio de um cômodo escuro. Ficou um momento a recuperar as idéias. Parecia que vinha de muito longe e o simples fato de retomar o pensamento era doloroso. O que tinha aconte­cido? Bertram o tinha vindo buscar em casa, em Troïl, e eles partiram para o mato. Mas era mesmo Bertram... Se não era, de quem se tratava, ao certo? E o que queriam fazer? Ah, sim, queriam ir ao Mundo Incerto, à procura de Mestre Qadehar. Mas, aconteceu alguma coisa... De repente, toda a cena lhe voltou à memória: Bertram o es­trangulava, Bertram se transformava num velho que escarnecia dele!

Ao custo de um esforço colossal, conseguiu sentar-se. Deixou que os olhos se acostumassem à penumbra. Encontrava-se num amplo aposento, redondo e nu, com exceção de um colchão de palha, um cobertor e uma jarra de água. Uma lucarna, protegida por grades, deixa­va passar a luz fraca do dia, e dava uma idéia da espes­sura das muralhas, constituídas, como o chão, de enor­mes blocos de pedra cinzenta. Enfim, uma sólida porta de madeira, aferrolhada, era a única saída da masmorra. Pois se tratava, de fato, de uma masmorra!

De repente, ouviu-se uma voz no silêncio.

— E aí, o chão da sua prisão não é duro demais?

Sobressaltado, Guillemot voltou-se em direção à porta. Estava entreaberta. Um homem, que não viu logo de cara, encontrava-se no limiar. Reconheceu o velho que tinha tomado a aparência de Bertram.

O Mago de Gri cuspiu no chão e deu uma gargalhada.

— Lamento não tratar como se deve o grande Guille­mot, o ídolo dos Feiticeiros da Guilda, o aluno querido daquele imbecil do Qadehar!

Guillemot fez esforço para erguer-se. A cabeça doía um pouco menos e a sensação de vertigem tinha desapa­recido.

— Quem é o senhor?

— Sou antes de tudo o fiel servidor do senhor que reina neste mundo. E, no País de Ys — continuou ele, com sarcasmo — faço o papel de Mago, no monastério de Gri...

— O senhor é um Feiticeiro! — exclamou Guillemot. — Apelou para a magia para tomar a aparência de Bertram! Mas como...

O Mago de Gri o interrompeu, com um gesto de ironia.

— Pequeno ingênuo! Imaginava conhecer tudo da feitiçaria com seis meses de Aprendizado? Raidhu não é somente a Carruagem da viagem, é também a Via rumo às transformações! Dagaz permite mascarar sua identi­dade, Féhu, criar uma outra imagem de si, e Uruz, fixá-la. O resto é apenas questão de maneira de tecer...

— Já sei disso tudo — respondeu Guillemot, dando de ombros. — Apenas me perguntava como o senhor fez para saber que Bertram devia vir se encontrar comigo.

O Mago de Gri fez uma pausa, visivelmente estupe­fato. As palavras do Aprendiz e a calma com que as tinha proferido o abalaram um pouco. Que orgulho, que confiança demonstrava aquele jovem! O Mestre teria razão? Teria, então, Guillemot de Troïl a seu alcance os mais difíceis sortilégios do Grande Livro?

— Interceptei a conversa mental de vocês uma noite dessas — explicou laconicamente o Mago. — Eu nem estava particularmente à escuta, mas você projetou seu Lokk para Bertram com tanta força, que não tive alterna­tiva senão escutar! Já chega — disse, de repente, demons­trando intenção de ir-se. — O Mestre não tardará a vir vê-lo. Quanto a mim, tenho que retornar ao País de Ys e retomar, comportado, o meu papel de Mago, em Gri; não seria bom levantar suspeitas na Guilda!

E soltou uma risada seca, parecendo um soluço.

Depois, a porta fechou-se atrás do velho Feiticeiro, e Guillemot tornou a ver-se sozinho. Sentia-se profunda­mente abatido. Muito exigiu de si mesmo para permane­cer bravo diante do Mago de Gri. Agora que o Feiticeiro tinha ido embora, podia relaxar a tensão. De repente, o desespero o invadiu. Desta vez, as cartas estavam joga­das. Era prisioneiro daquele que o Mago tinha chamado de seu senhor, e que não era senão a própria Treva! Ninguém sabia onde ele se encontrava: portanto, nin­guém viria em seu auxílio jamais! Estava perdido. En­tão, as palavras de Kor Mehtar, o rei dos Korrigãs, voltaram-lhe à lembrança — “não invejo a sua sorte, que será pior que a morte” — ditas quando, na mata, o rei de­cidiu entregá-lo à Treva... O que queria com ele aquela criatura diabólica? E, sobretudo, o que ia fazer com ele? Contendo as lágrimas, Guillemot dirigiu-se ao colchão, ali deixando-se cair. Depois fechou os olhos e desejou com todas as forças que se tratasse somente de um terrí­vel pesadelo.

Quando os reabriu, um longo tempo havia passado. Tinha caído num sono comatoso, do qual emergia com dificuldade. Um olhar em volta infelizmente confirmou que não se tratava de um sonho mau...

Obrigou-se a ficar de pé. Meu Deus! Não tinha esca­pado dos Gommons, nem enfrentado os Orks, nem fugi­do de Thunku para aterrissar feito um idiota naquela masmorra, nas garras da Treva! Devia fazer alguma coi­sa. Não importa o quê, desde que agisse. Mesmo que fosse sem esperança...

Pensou em seu Mestre, e isso lhe deu coragem. Re­fletindo um pouco mais, reconheceu ele próprio que não estava completamente destituído de recursos. Desde que praticava a magia, venceu situações incríveis. Bertram e Geraldo tinham chamado sua atenção para isso. Guille­mot conseguiu até mesmo encarar o Senhor Sha, graças a um Lokk por ele inventado! A Treva ia ver só! Mas... Por onde começar?

Guillemot decidiu proceder numa ordem, mas sem perder tempo. Elaborou um Lokk de comunicação e o projetou em direção a Qadehar, cujo rosto formou na mente. O Lokk foi devolvido com certa brutalidade, batendo-lhe no meio da cara e indo, com um pequeno bang, de encontro a seu espírito.

Surpreso, Guillemot recomeçou diversas vezes até que entendeu: as muralhas da masmorra tinham sido impregnadas com um sortilégio destinado a bloquear as comunicações. O que queria dizer que, mesmo que o Mestre soubesse que ele se encontrava no Mundo In­certo e tentasse localizá-lo, não conseguiria.

— Bem, pelo menos isto está claro — disse o Aprendiz a si mesmo. — Sei que só posso contar comigo!

Em seguida, naturalmente, lhe veio a idéia de se co­locar sob a proteção de uma Armadura de Elhaz, uma proteção estilo Guillemot, ou seja, combinada com um Elmo do Terror. Sabia, intuitivamente, que aquilo não se­ria suficiente: a Treva dispunha, sem dúvida, de poderes aterrorizantes! Mas, enfim, não deixava de ser alguma coisa. Deslocou-se, então, para o centro da cela, tomando o cuidado de levar o cobertor e a jarra.

— Se minha proteção funcionar, terei necessidade de água para suportar o cerco — disse em voz alta.

Assim como no dia em que teve que fugir do Senhor Sha pelo subsolo do monastério de Gifdu, o fato de falar e ouvir o som da própria voz o reconfortou.

Em seguida, refletiu sobre o meio de traçar no chão de pedra os Grafemas do sortilégio; é claro, tinham lhe tirado a sacola de Aprendiz e, portanto, o Ristir, o punhal gravador que estava lá dentro. Felizmente, o velho Mago de Gri não pensou em lhe tirar o cinto. Abrindo-o, pegou a fivela de metal. Depois, gravou em sua volta e dos objetos que tinha reunido, aplicando-se ao máximo, seis vezes o Lokk do Elmo do Terror. Quando terminou, pro­nunciou o encantamento que o poria ao abrigo de uma parede de energia invisível:

— Pelo poder de Elhaz, Erda e Kari, Rind, Hir e Loge, Aegishjamur à frente, Aegishjamur atrás, Aegishjamur à esquerda, Aegishjamur à direita, Aegishjamur em cima, Aegishjamur em baixo, Aegishjamur, me proteja! Alu!

O ar tremeu em torno de Guillemot, para sua sa­tisfação.

— Perfeito! Parece estar funcionando! Portanto, na casa da Treva, não há traços de magia bloqueadora, como na caverna dos Korrigãs.

Começava a sentir-se um pouco melhor. Já não esta­va completamente vulnerável! Mas ia ter que encontrar uma proteção ainda mais poderosa que a Armadura e o Elmo para enfrentar a Treva...

— Bem, devo dizer que meu Galdr é apenas uma pri­meira trincheira de defesa. Minhas muralhas foram erguidas. Agora preciso de uma torre. É isso, uma torre! O que poderia constituir uma torre?

Por mais que desse tratos à bola, nada lhe vinha ao espírito. Estava a ponto de desistir, contentando-se apenas com a proteção da Armadura, quando, entre os vinte e quatro Grafemas que tinha evocado, e que se puseram em fila em seu espírito, três passaram a cintilar timidamente. Do mesmo modo que Thursaz se tinha imposto contra o Gommon da praia, em Ys, e que Isaz tinha agido quase que à sua revelia na carroça do falso mágico Gordogh, em Ferghânâ, os Grafemas Odala, Hagal e Mannaz se mani­festaram de maneira totalmente independente.

— Odala, o Grafema da possessão, protetora da resi­dência... Por que não pensei antes nele para reforçar minha Armadura?

Apressou-se a gravar entre cada Aegishjamur, ao mesmo tempo em que respeitava o aspecto incerto dos Grafemas, a forma de Odala. Aí, murmurou uma fórmu­la destinada a amansá-lo:

— Tu, a Herança, o dom da Noite, tu que governas os locais sagrados, porque em tua morada a águia está em segurança, ajude-me a reforçar minhas muralhas! Oalu!

Ao terminar o sexto desenho, com o círculo comple­to, as representações de Odala iluminaram-se com uma luz escura, projetando focos de azul translúcido sobre a parede de energia até ali invisível. Pareceu a Guillemot que a proteção tinha agora espessura tripla. Essa impres­são o deixou contente.

— Bem, agora que tenho muralhas dignas desse no­me, vamos nos ocupar de minha torre!

O Aprendiz evocou o segundo Grafema que se tinha modestamente manifestado e que era, talvez, o mais poderoso: Hagal. Mestre Qadehar tinha lhe dito, um dia, que talvez todos os mistérios do universo se encontras­sem encerrados entre suas oito ramificações! Os Feiti­ceiros o chamavam afetuosamente de Grande Mãe, e até de Estrela. Hagal seria, no caso, uma torre perfeita...

Traçou um só Hagal, mas enorme, sobre toda a su­perfície livre no interior da Armadura. Depois, sentou-se no meio do Grafema e invocou sua proteção:

— Tu, a Esguia, tu, a Vermelha, filha de Ymir, porque Hropt amou o Mundo Antigo, me entrego em tuas mãos! Halu!

O solo tremeu ligeiramente em baixo dos pés de Guillemot. Depois, as oito ramificações do Grafema ficaram em brasa e logo chamas vermelhas e frias crepitaram.

— Perfeito! — alegrou-se Guillemot consigo mesmo. — Agora, a Treva pode chegar!

Despachou os Grafemas do espírito. Todos se esfumaram, salvo o último a se iluminar fracamente alguns instantes antes: Mannaz. Essa esquisitice deixou Guille­mot perplexo. Isso significava, com certeza, alguma coi­sa que deveria levar em conta. Vejamos, tinha construído muralhas e uma torre; o que mais podia fazer?

A resposta resplandeceu então como uma evidência: faltava-lhe um abrigo, um cômodo secreto no coração da torre! Um último recurso, um último esconderijo! Ajoelhando-se, gravou no centro de Hagal, Mannaz, o vigé­simo Grafema, o ovo cósmico, o laço entre o Homem e os Poderes. Depois, sussurrando, ativou esse Grafema, como era preciso fazer quando diversos signos mágicos eram convidados a trabalhar juntos, lado a lado:

— Tu, o Elo, irmão de Mani, Ovo estelar, Ancestral dos cem médicos, sonho e inconsciente, unidade do tem­po, porque poderosa é a garra do falcão, confio-me a ti! Malu!

Nada de extraordinário aconteceu, mas Mannaz afun­dou-se vários centímetros na pedra sobre a qual tinha si­do gravado.

Guillemot teve, então, a sensação de ter feito tudo aquilo que podia fazer. Sentiu-se tomado por uma sede terrível. Bebeu avidamente alguns goles de água na pró­pria jarra, depois obrigou-se a repousar: agora que tinha elaborado uma verdadeira declaração de guerra à Treva, precisava economizar seus parcos recursos.

 

O palácio do Prefeito erguia-se sobre uma das sete colinas que conferiam à cidade de Dashtikazar, encrava­da na baía, um relevo singular. Geraldo atravessou a grande praça, local de cerimônias e festas, e subiu a esca­daria monumental até o edifício em que residia e traba­lhava a figura principal de Ys.

Geraldo estava realmente preocupado. Fez um sinal distraído ao Cavaleiro de sentinela diante da porta de entrada, que o saudou respeitosamente, em retribuição, depois enfiou-se pelos corredores que levavam ao escri­tório daquele que, ao mesmo tempo, governava Dashti­kazar e todo o país.

O Prefeito era um homem de certa idade, mais para o alto. Usava os cabelos brancos penteados para trás. Seu olhar permaneceu vivo. Mais jovem, tinha sido Qamdar, um chefe de clã, sábio e respeitado, o que lhe valeu ser eleito por uma grande maioria de habitantes. O Prefeito era, em conjunto com o Comandante da Confraria, o Delegado dos Negociantes e Artesãos e o Grande Mago da Guilda, o personagem mais poderoso de Ys. O mais legítimo também, porque, ao contrário dos outros, era eleito pelo povo! Mas também o mais frágil, posto que só a ele as pessoas em Ys haviam confiado o poder. Po­diam, portanto, destituí-lo e substituí-lo no caso de uma nova maioria assim o desejar e justificar...

O Prefeito, avisado por um assistente da chegada de Geraldo, veio ele próprio abrir a porta. O Feiticeiro in­formático não saía de Gifdu com freqüência e, quando o fazia, era sempre por uma razão importante...

— Entre, Geraldo. O senhor vem muito raramente à ci­dade! Sente-se, por favor.

Geraldo jogou-se na poltrona de couro que o Prefei­to indicava, enquanto o anfitrião voltava a sentar-se atrás da escrivaninha.

— Estou ouvindo, Geraldo, o que está acontecendo?

— O que está acontecendo, Vossa Excelência, é que aquilo que temíamos, com efeito se produziu: Guillemot foi raptado hoje de manhã e neste instante encontra-se no Mundo Incerto.

Um vinco de profunda contrariedade atravessou a testa do Prefeito.

— Como é possível isso? Qadehar não estava com ele?

— Creio que é meu dever explicar algumas coisas a Vossa Excelência... — anunciou Geraldo, com a voz alte­rada.

E contou ao Prefeito, admirado, o projeto da Guilda de atacar a Treva em seu refúgio, o massacre que se seguiu, diante da torre de Djaghataël, o processo que condenou Qadehar, a fuga do Mestre Feiticeiro para Troïl e sua partida com Uriano e Valentim para o Mundo Incerto.

Quando terminou, o Prefeito deu livre curso à cólera.

— Mas, afinal, que palhaçada é esta? Como aconteci­mentos importantes assim ocorrem sem que eu seja advertido? Está se dando conta, Geraldo? É muito grave!

— Sei de tudo isso, Vossa Excelência — disse Geraldo, tentando acalmar o Prefeito. — Tenho perfeita consciên­cia de que a Guilda foi longe demais. Mas hoje é inútil arrepender-se. É preciso agir, e rapidamente!

— Não me esconda nada, Geraldo. Qual o risco que Guillemot estará correndo se cair nas mãos da Treva?

— Para falar francamente, não sei de nada — reconhe­ceu o Feiticeiro.

— Como assim, o senhor não sabe de nada? — surpre­endeu-se o Prefeito.

— É a verdade, Vossa Excelência — prosseguiu Geral­do, olhando-o diretamente nos olhos. — Mas hoje estou certo de uma coisa: a magia dessa criança é excepcional­mente poderosa. Não há dúvida alguma de que se a Treva deseja tanto assim Guillemot é para utilizar seus poderes e, certamente, com fins malévolos. Portanto, é da maior importância encontrá-lo antes que isso aconteça!

O Prefeito refletiu durante um instante. Depois le­vantou-se e se dirigiu à porta.

— É muita responsabilidade para mim — anunciou. — Vou convocar o Grande Conselho...

— Não faça nada, eu imploro! — gritou o Feiticeiro. O Prefeito ficou imobilizado e lançou a Geraldo um olhar estupefato.

— É imperativo que este caso fique entre mim e o senhor — continuou este, mordendo os lábios. — Peço que tenha confiança em mim.

— Explique-se, Geraldo — ordenou secamente o Pre­feito.

Qadehar e eu achamos que dentro da Guilda se ocul­tam um ou mais traidores...

O Prefeito continuava olhando fixamente para ele, de boca aberta.

— De mal a pior! — conseguiu articular. — Então, o que propõe?

— Vossa Excelência — falou Geraldo, depois de um tempo de reflexão —, só vejo uma solução. O senhor con­fia no Comandante da Confraria?

— Acredito que seja um homem experiente e íntegro, pouco dotado para as sutilezas da política, mas direito e inteiramente dedicado à sua missão de Cavaleiro. Sim, tenho confiança nele.

— A Guilda e a Confraria sempre se estimaram, mas raramente se compreenderam e menos ainda se amaram — disse Geraldo. — Hoje, aos meus olhos, está claro: acre­dito efetivamente que a Confraria, ao contrário da Guilda, permaneceu sempre ao largo das manobras da Treva.

— Perfeito — concluiu o Prefeito, abrindo a porta e fazendo sinal para o Cavaleiro de guarda no corredor se aproximar. — Vou imediatamente mandar chamar o Co­mandante, pedindo-lhe a maior discrição.

— Que o faça depressa! — suplicou Geraldo. — Repito: é urgente! Este caso envolve a própria sobrevivência do País de Ys.

— Temo, porém — disse o Prefeito, virando-se —, que nada seja possível antes de amanhã de manhã. Já está tarde e organizar uma operação de envergadura não é assim de repente.

O Feiticeiro soltou um suspiro. O tempo jogava con­tra eles.

Enrolado no manto, Geraldo dava pulinhos no mes­mo lugar para se aquecer. A aurora mal nascia, era a hora mais fria da noite.

O Prefeito soube mostrar eficiência: cerca de duzen­tos Cavaleiros estavam reunidos com armas e bagagens na colina das Portas e a luz do dia nascente revelava um verdadeiro campo de armaduras turquesa. O Prefeito e o Comandante aproximaram-se do Feiticeiro.

— Eis aqui os homens que nos acompanharão ao Mundo Incerto — anunciou com voz rouca aquele que comandava os homens da Confraria. — É o que posso fazer. Seria um erro deixar o País de Ys sem nenhum dos seus Cavaleiros. A Treva poderia se aproveitar disso...

O Comandante era um colosso que tinha o mesmo tamanho de Uriano de Troïl. Como Geraldo, tinha pas­sado dos quarenta anos. Seu rosto, talhado a foice, exibia diversas cicatrizes. Era um Cavaleiro de valor, tendo dado provas disso no campo de batalha. O Prefeito con­tinuou:

— O comandante dirigirá a operação. Mas o senhor continua sendo o guia e ele nada empreenderá sem consultá-lo.

— Isso me convém — respondeu Geraldo, lançando um olhar franco ao colosso. — Sei que posso confiar no senhor, Comandante. O senhor diversas vezes provou sua lealdade por ocasião das incursões da Treva a Ys. Os seus homens o respeitam: eu farei o mesmo.

O Cavaleiro pareceu sensibilizado com as palavras amistosas de Geraldo e, de maneira natural, estendeu-lhe a mão. O Feiticeiro a apertou e agradeceu por tomar parte diretamente da operação.

— É meu papel, e uma honra para mim, estar na linha de frente com os meus homens — quase desculpou-se o Comandante.

— Bem — interveio o Prefeito, interrompendo as gen­tilezas — o que estamos esperando, Geraldo?

— Fazer duzentos Cavaleiros passarem pela Porta não será coisa fácil — explicou este, com um sorriso divertido. — Pedi ao único Feiticeiro disponível e em quem tenho total confiança para vir me ajudar. Não deve demorar...

Alguns instantes mais tarde, uma silhueta destacou-se ao longe, no alto da colina. Logo distinguiram, empoleirado no lombo de uma mula resfolegante, um ancião vestido com o manto escuro da Guilda. Avançava em direção a eles, aos estertores, na montaria.

— É a última vez que faço esse trajeto de Gifdu para cá com um animal teimoso como este! — disse, ao se aproximar.

— Qadwan! Que prazer revê-lo! — exclamou Geraldo, dando-lhe um tapinha nas costas.

Qadwan era o Mestre do ginásio de Gifdu. Era um homem velho, mas, para a idade, estava bastante em forma.

— Então, decidiu-se? — perguntou Geraldo.

— Acha que hesitei muito tempo? Saber que Guille­mot está em perigo me deixou de cabelo em pé desde ontem à noite! E, depois, quando um amigo precisa de ajuda...

— Pois vai ter ocasião de me prestar ajuda, acredite. Fazer funcionar a danada desta Porta não será nada pra­zeroso!

Os dois Feiticeiros, seguidos do Prefeito e do Co­mandante, aproximaram-se da Porta do Mundo Incerto, diante dos olhares, ao mesmo tempo curiosos e inquie­tos, dos Cavaleiros.

Geraldo e Qadwan posicionaram-se cada um perto de um batente da Porta monumental. Em seguida, Geral­do dirigiu-se aos Cavaleiros:

— Nós vamos abrir a Porta, e não apenas entreabri-la, como fazemos de hábito. Não se pode perder tempo: vocês passarão por ela um atrás do outro, sem hesitar, e em passo de corrida! Como os pára-quedistas do Mundo Certo quando saltam de um avião.

Os homens riram e relaxaram um pouco.

— Bem, quem quer ser o primeiro a passar? — pergun­tou Qadwan.

— Eu, Mestre Feiticeiro — disse um Cavaleiro louro e esbelto, dando um passo à frente.

— Eu também — disse outro, moreno e rechonchudo, aproximando-se do primeiro.

— Ambor e Bertolen! — comentou o Comandante, com um leve sorriso. — Isso não me surpreende.

— Vamos? — perguntou Geraldo, interrogando o Pre­feito com o olhar.

— Sim — respondeu este, com a voz embargada de emoção. — Que os Grafemas lhes valham, Mestres Fei­ticeiros! Que o vento da mata os acompanhe, Coman­dante! E, acima de tudo, boa sorte!

— Vamos precisar — suspirou Geraldo, invocando os Grafemas.

 

— Estou com fome!

— Devia ter almoçado melhor!

— Naquela hora não estava com fome. Romaric, não seja chato! De todo modo, é hora da merenda, me dê um sanduíche.

— Mas, Corália, dissemos que só íamos comer uma vez no Mundo Incerto. Ande, seja um pouco mais forte...

— Vamos andar mais depressa, vocês dois — interveio Âmbar, com o ar exasperado, voltando-se para a irmã e Romaric, na rabeira do grupo.

— Está bem, estamos indo — ralhou Corália. — Não é minha culpa se o saco que estou carregando pesa uma tonelada! Se pelo menos eu estivesse levando o dos san­duíches... E depois, por que você também não briga com o Bertram? Está ainda mais atrás que nós!

Bertram, com efeito, arrastava um pouco de uma per­na e lançava aos companheiros olhares de cão que apa­nhou. Não parecia ter pressa de alcançá-los.

— Dá para acelerar um pouco a marcha, Bertram? Obrigada! — berrou Âmbar, exagerada.

— Sim, sim, estou indo — vociferou o Feiticeiro, sem se apressar, na verdade.

O pequeno time tinha deixado Dashtikazar à tarde. Na véspera, Ágata os tinha levado à suntuosa casa que seus pais possuíam num bairro residencial da capital. Remexeu o guarda-roupa do pai, encontrando roupas quentes para os meninos e abriu o seu às gêmeas. De­pois, assaltou a geladeira e o guarda-comida, além do local onde se guardava material de escalar montanha e de acampar.

Uma vez equipados, constataram que a noite tinha caído. Dormiram, então, sobre o tapete grosso do vasto quarto de Ágata, enrolados nos sacos de dormir e cober­tores apanhados no armário.

Com exceção de Bertram, que ficou num canto, evo­caram durante longo tempo suas aventuras em Ys e no Mundo Incerto, todas compartilhadas com Guillemot.

Acordaram tarde, é claro, e depois de um bom café da manhã, que somente Corália perdeu, tomaram o ca­minho da colina das Portas...

— Logo estaremos vendo as Portas — preveniu Gon­trand, baixando um pouco a voz. Seria prudente fazer menos barulho.

— Entendeu? — perguntou Âmbar à irmã, fuzilando-a com o olhar.

Esta fez que costurava os lábios, querendo dizer que ficaria muda como um peixe dali para a frente.

Avançaram em silêncio até a pedra grande atrás da qual alguns deles já se tinham abrigado no verão passa­do, esperando Guillemot neutralizar os guardas. Depois, observaram em volta. Somente um Cavaleiro vigiava as duas Portas.

— Jóia! — rejubilou-se Âmbar. — Bertram vai invocar o Grafema que pára o tempo e o efeito será tal que pas­saremos diante do guardião como se fôssemos invisí­veis! Não é verdade, Bertram?

— Hum...

— Hum o quê?

O jovem Feiticeiro engoliu em seco.

— Bem... eu nunca fiz isso antes, e não sei se...

— Confirme, Âmbar — disse Romaric. — Espera-se mesmo de Bertram que abra a Porta para o Mundo In­certo?

— Sim, e juro a você que ele vai abrir!

— Calma, calma — defendeu-se ele. — A Porta é... é mais fácil!

— Está zombando de nós? — perguntou Ágata.

— Não — suspirou ele. — Não posso explicar a vocês, mas usar um Grafema no vazio é mais complicado que ativar um Grafema gravado numa Porta.

— Tenho a impressão de que não está nos contando a história toda... — continuou Gontrand, em tom de suspeita.

— Sim, enfim, não! — balbuciou o Feiticeiro. — Tenho certeza de que sou capaz de despertar os Grafemas na Porta... Mas, depois, não sei se meu Önd — minha ener­gia interior — será suficiente para abri-la.

— Quando vai saber? — inquiriu Âmbar, tentando do­minar a cólera.

— Quando tiver tocado a Porta...

— E o lance com o Cavaleiro? — perguntou Corália. — Sabe, o lance para ele ficar parado como uma estátua? É sério que não é possível? Eu achava aquele negócio excelente!

— Acredito que seja melhor deixar para lá — murmu­rou Bertram, baixando os olhos.

— Fora de questão! — insurgiu-se Romaric. — Não va­mos desistir antes mesmo de começar!

— Você tem outra coisa a nos propor? — retorquiu Ágata, num tom ácido. — Nossa única esperança era este Feiticeiro, que decididamente só é bom naquelas situa­ções que se resolvem com arma. E nem tem mais arma, jogou-a ao mar!

— Está sendo dura e injusta! — gritou Corália. — Ele nos salvou a vida, contra os Korrigãs...

— Cale a boca e deixe Romaric falar — intimou a irmã. Romaric, incomodado, levantou as mãos em sinal de impotência. No momento, não tinha solução alguma a propor.

Tomás, então, interveio.

— É preciso cair em cima dele e atá-lo como um salsichão.

— Perdão? — falou Gontrand, atônito.

— Não concordo — disse Corália, rubra de indigna­ção. — Bertram não merece que...

— Eu estava falando do Cavaleiro — especificou Tomás.

— Você está sugerindo que... Não, não seria correto! — reagiu Romaric, horrorizado.

— Já discutimos demais — replicou Tomás, voltando a tomar a palavra. — Guillemot talvez esteja correndo peri­go de vida e vocês estão vacilando, não se movem!

— Ele tem razão — aquiesceu Âmbar. — Tomás, estou com você.

— Ei, Âmbar, acalme-se! — Romaric tentou racioci­nar. — É só alguém pronunciar o nome de Guillemot que você perde completamente a cabeça!

— O que estamos esperando para ir até lá? — pergun­tou Ágata, tomando a palavra, por sua vez.

— Sim! Por Deus! Para cima do Cavaleiro! — acres­centou Bertram, concordando, contente da coisa não se tratar mais de uma questão de magia.

Os quatro temerários, saindo de trás da pedra, lança­ram-se aos gritos para cima do desgraçado Cavaleiro, que não acreditou no que via. Observou-os precipitando-se em sua direção, de boca aberta. Perguntava-se que tipo de brincadeira era a daquelas crianças.

— Vamos — Romaric soltou um suspiro — não temos mais escolha. — Temos que ir ajudar esses imbecis.

Seguido por Gontrand e Corália, alcançou os amigos.

— Por que não gritamos? — perguntou Corália.

— Porque... enfim... Escute, se quiser gritar, grite — respondeu Romaric, desolado.

— Iahaaaaa!

O Cavaleiro, estupefato, não desconfiou de nada no momento em que os sete jovens se jogaram diretamente em cima dele. E quando agarraram suas pernas, caiu no chão. Não teve reflexo para se defender.

— Estou segurando a perna direita dele! — berrou Bertram, quando a vítima se encontrava de costas.

— Eu, a esquerda! — gritou Gontrand.

— Estou segurando o braço! — disse Romaric.

— Eu também! — disse Corália.

Tomás sentou-se com todo o peso em cima das cos­tas do homem.

— Mas, afinal... O que é... Enfim! — repetia apenas o Cavaleiro, que tinha idade de sobra para ser o pai deles.

Finalmente, Âmbar tirou da sacola uma corda e um pé de meia. Ajudada por Âmbar, amarrou o Cavaleiro e o amordaçou com a meia.

— Não precisa fazer essa cara! Está limpa! — assegu­rou Âmbar.

Em seguida, abandonando o pobre Cavaleiro amar­rado, aproximaram-se da Porta do Mundo Incerto.

— Se Bertram fracassar, estamos perdidos, nada mais poderemos fazer — resmungou Ágata.

— Sempre poderemos apresentar nossas desculpas a esse pobre Cavaleiro... — replicou Romaric.

— Ai, já chega disso! — interrompeu-o Âmbar. — Você sabe muito bem que não tínhamos outra alternativa!

— Calem-se! — interveio, então, Corália. — Bertram precisa de silêncio para se concentrar! Se conseguir, afi­nal, abrir a Porta, eu gostaria muito que, desta vez, fizés­semos a viagem todos juntos!

Bertram aproximou-se da Porta monumental que conduzia ao Mundo Incerto. Era, como a que levava ao Mundo Real, muito alta e larga. Sobre a madeira de car­valho estavam gravados centenas de Grafemas. O Fei­ticeiro tocou com uma das mãos, trêmula, os signos que ativavam o sortilégio de passagem. Para sua grande sur­presa, estavam quentes e acenderam-se sem problemas! Como poderia saber que algumas horas mais cedo du­zentos Cavaleiros passaram pela Porta, deixando ainda vibrante a passagem para o outro Mundo? Bertram sen­tiu um tremendo alívio. Voltou-se para os companheiros e anunciou, com orgulho renovado:

— Acredito que não haverá problema...

 

A viagem dos homens da Confraria entre os dois Mundos desenrolou-se sem atropelos. Os Cavaleiros, pouco habituados às coisas da magia, comportaram-se corajosamente, mas foi com alívio evidente que se vi­ram de novo em terra firme, na Ilha do Meio. Quanto aos Mestres Feiticeiros, ficaram esgotados; abrir, depois manter aberta a Porta para o Mundo Incerto exigiu deles uma energia considerável. Então, tiveram que fazer uma pausa para descansar, e o Comandante aproveitou para explicar a seus homens os lances da operação de que participavam...

Preocupados, na verdade, em evitar qualquer demora que pudesse alertar os espiões da Treva em Ys, o Pre­feito tinha recomendado ao Comandante a maior discri­ção e os Cavaleiros ignoravam, portanto, o rapto de Guillemot. Quando ouviram a notícia da boca do chefe, reagiram com vivacidade...

— Pegar uma criança! — resmungou um deles.

— E logo qual! — insistiu Bertolen.

Ele tivera a oportunidade de dar a Guillemot, na sua garupa, uma carona para Bromotul, onde este tinha ido visitar o primo.

— Se me cair nas mãos, a Treva passará um mau pe­daço — rosnou Ambor, que trabalhava em dupla com Bertolen.

— O que estamos esperando para tirar Guillemot das garras desse demônio? — vociferou outro que, visivel­mente, fervia de impaciência.

— Cavaleiros — respondeu o Comandante, com gestos de pacificação —, compreendo a emoção e a cólera dos senhores. Mas temos que manter a cabeça fria; encon­tramo-nos neste momento num mundo perigoso, onde a Treva é muito poderosa. Não nos deixemos levar! So­mente assim seremos eficientes e poderemos, de fato, ajudar Guillemot.

— O Comandante tem razão — confirmou, num tom de voz preocupado, Geraldo, aproximando-se. — Tanto que sequer sabemos onde procurar Guillemot!

— Como vamos fazer, então? — perguntou Bertolen ao Feiticeiro.

— Para começar, temos que sair desta ilha onde, evi­dentemente, Guillemot não se encontra, e onde nossa margem de manobra fica mais reduzida — respondeu Geraldo.

— Eu me encarrego disso — disse o Comandante. — Ambor, Bertolen, comigo! Os demais, preparem-se para partir.

A Ilha do Meio tinha a forma parecida com a de um nenúfar. Plana e rochosa, batida pelas ondas e fustigada pelo vento, devia ter permanecido deserta. No entanto, era ocupada por uma comunidade de pescadores, reuni­dos, na maioria, num vilarejo sem fortificações. Graças à presença ao largo das Queimantes, as medusas das quais Romaric tinha uma vez escapado por pouco, a ilha esta­va, de fato, ao abrigo de Gommons e outros monstros marinhos! Na ausência de qualquer vegetação terrestre, os pescadores viviam daquilo que lhes dava o mar: algas e peixes em abundância.

O Comandante deixou os homens reunirem-se e par­tiu em direção do vilarejo para negociar a passagem pa­ra a costa.

Geraldo voltou para junto de Qadwan, que estava tendo dificuldade para levantar-se.

— Ufa! — fez careta o velho Feiticeiro. — Isto não é mais para a minha idade!

— Sem você, eu jamais conseguiria fazer aqueles Cavaleiros todos passarem — agradeceu Geraldo, abraçando-o afetuosamente.

— Em troca, exijo férias à sua custa nas Montanhas Púrpura! — brincou Qadwan.

— E você abandonaria o ginásio à turbulência dos seus Aprendizes?

— Pelos espíritos de Gifdu, é claro que não! — res­mungou ele. — Bom, permita-me mais alguns minutos para voltar à tona completamente.

— Pedido consentido. De todo modo, preciso de tem­po para entrar em contato com Qadehar... Que boa idéia ele teve de vir para cá com Valentim e Uriano... Nesta aventura, precisamos de todo mundo. E dele mais que de ninguém.

Geraldo fechou os olhos e construiu em torno de Berkana um sortilégio de comunicação mental, toman­do o cuidado de invocar Grafemas em sua forma incer­ta. Ainda cansado dos esforços dispendidos para abrir a Porta, teve dificuldade de ir ao encontro de Mestre Qadehar... que não acreditou no que ouvia quando reco­nheceu a voz de Geraldo. Seu amigo Feiticeiro lhe fez um breve relato da situação, informando-o do desapare­cimento de Guillemot.

Qadehar nada deixou transparecer da cólera e da in­quietude que o invadiram. Propôs, com sua calma habi­tual, unir-se ao exército de Cavaleiros em companhia de Uriano e Valentim, somando forças.

Geraldo ficou aliviado em saber que logo, logo estaria ao lado deles o mais poderoso Feiticeiro da Guilda; o Mundo Incerto não era de se levar na flauta! Estando já Qadehar e seus dois companheiros no Pântano Vermelho, decidiram encontrar-se na altura da Costa Berrante.

Pouco depois, o Comandante voltou com uma boa notícia: mediante algumas pedras preciosas — em abun­dância nos cofres do Prefeito de Ys e das quais os Ca­valeiros estavam feliz e amplamente munidos — os pes­cadores aceitavam pôr à disposição do exército vindo do nada todos os barcos que lhe fossem necessários.

Passado o tempo de carregar uns vinte barcos gran­des com homens e material, a armada turquesa deixou a ilha.

A travessia se deu sem problemas, exceto pelo apa­recimento de Queimantes, o que provocou uma viva emoção nos Cavaleiros, estrangeiros no mundo do mar e seus perigos. Geraldo pela primeira vez perguntou-se com espanto por que Ys nunca teve Marinha. A respos­ta veio-lhe rapidamente, luminosa: simplesmente por­que nenhum inimigo jamais tinha vindo do oceano, no meio do qual ficava, isolado, o País de Ys.

Ao cabo de uma travessia que, para os Cavaleiros, pareceu interminável, enfim desembarcaram na extre­midade noroeste da Costa Berrante. Em formação de marcha, conduzidos pelos dois Feiticeiros, decididos, os duzentos Cavaleiros deixaram a praia e tomaram a dire­ção do leste. A brisa violenta e gelada que os surpreen­deu no estranho Pântano Vermelho conseguiu trazer-lhes bom humor. Sentiram-se de novo em terreno conhecido, meio que em casa, nos ventos revigorantes da mata.

Para recuperar as forças, pararam ao abrigo de uma ondulação do terreno. Enquanto comiam as rações de pão, Geraldo falou-lhes do Mundo Incerto. Tornaram a partir, marchando em bom passo uma parte da tarde e entoando canções do País de Ys para trazer coragem.

Qadwan percebeu a primeira fumaça de um fogo ao longe.

— Deve ser Qadehar — disse Geraldo ao Comandante. Para não se arriscarem, decidiram esperar e enviar homens como batedores. Estes não tardaram a retornar.

— Três homens, dois deles usando a armadura da Confraria e um vestindo o manto da Guilda — anunciou o chefe do comando. — Sentados em volta de uma fo­gueira. Zona de rochedos, deserta.

— Qadehar, Uriano e Valentim! — exclamou alegre­mente Geraldo. — Tudo vai bem, Comandante!

Alguns instantes mais tarde o exército vindo de Ys encontrava os três homens. O reencontro foi alegre. Uriano de Troïl distribuía grandes pancadas nas costas dos veteranos e beliscava a bochecha dos mais jovens, rindo sua gargalhada tonitruante. Valentim apertou lon­gamente a mão do Comandante, que tinha sido seu aluno na sala de armas de Bromotul e Qadehar abraçou, emo­cionado, seus dois condiscípulos de Gifdu.

— Obrigado, obrigado, meus amigos, por terem rea­gido assim tão prontamente! Com a ajuda dos Cavalei­ros, temos boas chances de salvar Guillemot...

Geraldo sorriu, reconfortando-o. Mas, conhecendo bem Qadehar, via a que ponto o Feiticeiro estava preo­cupado com o Aprendiz.

— Acamparemos aqui esta noite — declarou o Coman­dante. — Ambor, organize o rodízio da guarda. Bertolen, veja que se monte o acampamento! Eu me instalarei junto ao fogo, com nossos amigos.

O acampamento dos Cavaleiros, protegido por uma guarda vigilante, logo foi armado. Cada um possuía em seu equipamento um pedaço de lona que, junto com a de um ou diversos companheiros, constituía um trecho de tenda.

O Comandante, Uriano e Valentim, Arbor e Bertolen, Qadehar, Geraldo e Qadwan reuniram-se junto ao fogo, no centro do acampamento. Bertolen passou uma caba­ça cheia de vinho doce, da qual cada um bebeu um gole, a seu turno.

— Apresento aos senhores Ambor e Bertolen, os meus mais valorosos Cavaleiros — disse o Comandante, apontando para eles. — Serão meus capitães durante esta campanha. Não preciso apresentar Uriano e Valentim: todo mundo na Confraria conhece a lenda destes famo­sos Dom Quixotes!

Todos caíram na risada. Uriano e Valentim deram gar­galhadas ao ouvir o apelido do tempo em que ainda eram Cavaleiros em atividade.

— Agora — prosseguiu o Comandante — passemos logo ao essencial. Mestre Qadehar, Mestre Geraldo, Mes­tre Qadwan, estamos escutando os senhores.

Qadehar, com o rosto sombrio, estava perdido nos pensamentos. Geraldo limpou a garganta e tomou a pa­lavra:

— Guillemot foi raptado não longe de Troïl por um indivíduo que domina as práticas mágicas e tomou a aparência do meu aluno Bertram. Tudo leva a crer que se trata, se não da Treva ela mesma, pelo menos de algu­ma de suas criaturas. Se insisti junto ao Prefeito para deslanchar esta operação da qual os senhores participam hoje, uma operação sem precedentes na história de Ys, foi porque pressinto um grande perigo. Um grande peri­go para Guillemot e um grande perigo para todos nós...

Um silêncio acolheu as palavras do Feiticeiro. Que Guillemot pudesse estar em perigo, ninguém duvidava: a Treva não tinha tentado se apossar do menino diversas vezes? E se um ser tão maléfico quanto a Treva o dese­jasse a esse ponto, não seria para lhe oferecer chocolate quente! Cada um deles, até mesmo Uriano, sem que ti­vesse necessidade de o exprimir, tinha consciência de que seu destino e o do jovem Aprendiz estavam irremedia­velmente ligados...

— Pelo menos, é bom que os amigos de Guillemot não estejam metidos na aventura! — resmungou Valentim.

— Cuidei pessoalmente para que permanecessem comportados em suas casas — confirmou Geraldo, com ar satisfeito. — Aquelas crianças são capazes de se enfiar nas mais incríveis situações!

— E agora? — inquiriu Ágata, lançando olhares curio­sos em torno da Porta pela qual tinham entrado no Mun­do Incerto.

— Agora é preciso encontrar um lugar onde passar a noite — respondeu Romaric, sustentando Bertram.

O jovem Feiticeiro estava esgotado devido ao esfor­ço feito para abrir a passagem mágica.

— Há casas ali em baixo, perto da água — propôs Gontrand.

— Certamente casas de pescadores — aquiesceu Romaric. — Vamos lá! Bertram precisa descansar de qualquer maneira.

— De fato, não está com o aspecto muito sadio! — confirmou Corália.

— Vocês são engraçados — murmurou baixinho o jovem Feiticeiro. — Bem queria ver vocês no meu lugar... Da próxima vez, vão se virar sozinhos...

O pequeno bando tomou a direção do vilarejo que Gontrand tinha mostrado.

Foram acolhidos por uns pescadores meio descon­fiados. Quando se deram conta de que se tratava somen­te de crianças, relaxaram. As mulheres, de seu lado, não puderam deixar de proferir palavras duras a respeito das mães que deixavam os filhos a vagabundear por qual­quer lugar. Mesmo assim, prepararam-lhes uma refeição copiosa à base de peixe e marisco.

— Jamais vi tanta gente assim na Porta — disse um pescador, cuspindo no chão.

Era baixo e seco, e parecia ser o chefe da aldeia.

— E também jamais ganhou tanta pedra preciosa! — falou jovialmente outro homem.

O pescador riu.

— Quer dizer que outras pessoas vieram de Ys antes de nós? — espantou-se Romaric.

— Não sei de onde vieram, mas era um número enor­me! Em torno de duzentas. E não eram leves! Basta di­zer que a armadura duplica o peso da pessoa!

Os outros pescadores riram.

— Genial — entusiasmou-se Corália. — Isto quer dizer que Geraldo conseguiu convencer o Prefeito! Os Cava­leiros do Vento estão aqui, no Mundo Incerto, e vão li­bertar Guillemot!

— Sem dúvida, tem razão — disse Âmbar, que apesar de tudo parecia um pouco decepcionada. — Pode-se dizer que é genial...

Não parecia convencida.

Eles tinham respondido com entusiasmo à proposta de Romaric, pensando que mais ninguém iria em socor­ro de Guillemot. Tinham, por isso, sentido de certa for­ma o dever de agir assim. Ora, duzentos Cavaleiros, conduzidos por um Mestre Feiticeiro, os tinham prece­dido, ao mesmo tempo tornando inútil sua epopéia...

— O que fazemos? — perguntou Tomás.

— Temos duas soluções: ou voltamos imediatamente para Ys e deixamos aos Cavaleiros o trabalho de acertar este caso, ou tentamos ajudá-los...

— Já que estamos aqui, prefiro a segunda — propôs Romaric.

— Concordo — disse Gontrand, enquanto os outros aprovavam, aos resmungos. — Mas que ajuda podemos dar aos Cavaleiros?

Âmbar demorou-se a fazer perguntas ao chefe da aldeia, depois voltou-se para os companheiros.

— Estão com quase um dia de antecedência em rela­ção a nós. Vamos esperar até amanhã para entrar em con­tato com Geraldo através da magia de Bertram. Vamos ver direitinho como ele vai reagir.

— Seja para o que for — abrir de novo a Porta ou falar dentro da cabeça de uma pessoa — Bertram está meio incapaz hoje! — disse Ágata, mostrando, com um sinal de cabeça, o jovem Feiticeiro, que tinha adormecido num canto do quartinho que lhes tinha sido cedido para pas­sarem a noite.

— E se Geraldo ficar furioso? — inquietou-se Corália.

— Vamos fingir que há interferência na linha mágica e que não o estamos ouvindo bem e desligamos — disse Âmbar, afetada. — Em seguida, conduzimos as coisas do nosso jeito. Como Corália e todos vocês, acho que a pre­sença dos Cavaleiros no Mundo Incerto é uma excelente notícia! Mas algo me diz que o embate não vai ser fácil...

— Tem razão — Tomás entusiasmou-se. — Romaric, Gontrand, Corália e você — vocês conhecem melhor o Mundo Incerto que Geraldo e qualquer um dos Cava­leiros. Guillemot pode precisar da experiência de vocês tanto quanto da força da Confraria!

— Sabe que você não é burro? — disse Âmbar ao me­nino ruivo, dando-lhe um soco amigável. — Desde que o pescador com quem eu falei concorde em nos levar em seu barco, mediante algumas pedras preciosas, até o lugar onde desembarcou os homens da Confraria...

A proposta de Âmbar foi submetida a voto. Recebeu unanimidade, com exceção de uma voz: a de Bertram, que seus amigos não conseguiram acordar.

 

Guillemot tentou medir o tempo que passava, mas acabou desistindo. A luz filtrada pela lucarna era fraca demais para permitir que se adivinhasse se era do sol ou iluminação artificial. O Aprendiz de Feiticeiro não se en­contrava, porém, mergulhado na escuridão: as paredes azuladas de sua Armadura de Aegishjamur devidamente modificada e as chamas avermelhadas que irradiavam as ramificações de Hagal inundavam a cela com uma luz doce e estranha. Por algum tempo, Guillemot quase se sentiu reconfortado: luz significava sortilégio em estado de funcionamento!

Mas, aos poucos, viu-se tomado pela apreensão e pôs-se a imaginar todos os cenários possíveis. A Treva ia certamente deslanchar contra ele os recursos infinitos de sua potência mágica. Ou, então, o faria esperar uma eter­nidade... Admitindo-se que não viesse a abrir suas defe­sas, o que a impediria de o deixar à míngua, como faziam os exércitos ao sitiarem cidades?

Alguma coisa, no entanto, lhe dizia que a Treva seria incapaz de esperar. Tentou imaginar a figura do inimigo, mas só conseguia vislumbrar uma mancha fluida, sem forma precisa. Sem que soubesse por que, adivinhava que a Treva era impaciente. Tinha certeza! Foi essa a ra­zão pela qual não ficou senão meio surpreso quando esta penetrou no cômodo...

De início, Guillemot nada distinguiu. Simplesmente ouviu a porta se abrir e tornar a se fechar. As paredes tur­vas de seu refúgio mágico o impediam de ver direito. Depois, percebeu uma coisa qualquer, bem próxima, do outro lado da Armadura de Aegishjamur. Uma sombra. Um véu de trevas que se destacava na semi-obscuridade do aposento e que a luz parecia evitar.

Um murmúrio aterrorizante o fez tremer dos pés à cabeça.

— Seja bem-vindo... meu menino... meu querido me­nino...

A voz era cavernosa, poderosa. Guillemot, inicial­mente, permaneceu paralisado. Teve que apelar para toda a sua coragem para articular uma resposta:

— O senhor é... O senhor é a Treva?

O vulto de trevas riu de Guillemot, que o percebeu em movimento; se poderia dizer que flutuava. A Treva girava em torno da proteção mágica. Procurava uma falha no sortilégio!

— É o nome... que me dão... lá, de onde você vem... Guillemot viu a Treva tateando ao longo da parede translúcida. Nos lugares em que tocava, a luz baixava de intensidade. Sentiu-se afogado numa onda de pânico.

— O que quer?

Ele tinha gritado. A Treva ficou imóvel, durante um segundo. Tinha o ar satisfeito.

— Bem... bem... Você está com medo... e quer saber... Talvez eu não devesse... perder meu tempo... com os seus sortilégios...

A Treva recuou. A visão de Guillemot embaralhou-se, de maneira curiosa, e ele não a viu mais. Mas ela continuava ali. Ele a sentia. Captava sua presença malé­fica, do mesmo modo como se percebe a umidade ou o mofo num aposento. Não pôde deixar de sobressaltar-se quando ouviu outra vez sua voz.

— Meu menino... meu querido menino... Por que nos afrontarmos?... Confie, pois, em mim...

— O senhor atacou meu país! Matou gente! Rap­tou-me!

De novo, Guillemot tinha gritado. Sentia que se ten­tasse falar normalmente, as palavras ficariam estrangu­ladas na garganta.

— Ora, ora... — sussurrou a Treva, com uma ponta de zombaria. — Você está falando... de detalhes... É por­que... não sabe... o que tenho a lhe oferecer...

— Não quero nada do senhor! Tenho repulsa pelo senhor!

— Ora vamos... meu menino querido... trago-lhe os Três Mundos... numa bandeja...

— Cale-se! Cale-se!

Guillemot acocorou-se e tapou os dois ouvidos com as mãos para não ouvir mais aquela voz que se insinua­va por dentro dele, gelando-lhe as entranhas.

— Por que tem medo de mim?... Eu, que lhe ofereço o poder... que lhe proponho uma aliança...

Numa última tentativa de defesa, Guillemot berrou.

— Jamais! Jamais! Eu o detesto! O senhor é pior que um Ork!

A Treva pareceu picada na carne. Avançou e, num gesto de cólera, lançou contra a Armadura uma bola de trevas saída do nada. Cheia de uma magia sombria, a bo­la espatifou-se de encontro à parede de energia e encarquilhou-se. Curiosamente, esse ataque imprevisível da Treva assustou Guillemot menos que o som cavernoso de sua voz.

— Jovem imbecil... Não me provoque... E nunca mais me insulte... Seja como for... você será meu... Como alia­do... ou como escravo... Reflita sobre a minha proposta... Reflita bem... Logo voltarei...

A porta da cela tornou a se abrir e a fechar. A Treva foi-se embora.

Guillemot fechou os olhos e tentou acalmar as batidas do coração. Seus pés e mãos tremiam. Nunca antes tinha sentido tanto medo. A Treva exalava tamanho poder! Deu-se conta de que a sua própria vontade era capital para fazer oposição ao plano maléfico da Treva: se não tivesse resistido, ela teria varrido suas defesas com um roçar da manga e o teria obrigado a fazer tudo o que ela desejava. Mas Guillemot adivinhava que jamais teria força sufi­ciente para manter-se indefinidamente... Enrodilhando-se, explodiu em soluços diante da própria impotência.

Dar livre curso às lágrimas o aliviou; pouco a pouco, o pânico e o medo cessaram. Logo, sentindo-se pacifica­do, Guillemot pôde recuperar a calma. Reergueu-se, be­beu um gole de água. Depois, aproximou-se do local onde a bola de trevas tinha batido na Armadura de Aegishjamur.

Franzindo as sobrancelhas, observou atentamente os últimos lampejos de escuridão. Ao contato com a prote­ção mágica, estes desapareciam lentamente, encarquilhados.

Então, a esperança voltou-lhe com força, e o que viu o fez cambalear: seu abrigo estava intacto! Nada, sequer um arranhão! O que significava que... a Treva tinha dado a volta na Armadura e testado sua solidez. Em seguida, tinha-lhe proposto uma aliança. Não era por gentileza que lhe havia feito essa proposta: era porque não estava certa de conseguir vencer as suas proteções. A Treva tinha fracassado na tentativa de convencê-lo a se render... Mas, ao irritar-se e lançar contra ele aquele sortilégio inútil, forneceu-lhe a prova de que não era todo-poderosa, e que nada ainda tinha sido jogado.

Tornou a sentar-se sobre Mannaz, de novo sereno, e desta vez quase contente consigo mesmo.

 

De manhã cedo, foi um tanto difícil o despertar dos jovens amigos de Guillemot. Precisaram de uns momen­tos para lembrarem-se de que se encontravam no Mundo Incerto, na Ilha do Meio, no coração de um vilarejo de pescadores, e outros momentos, ainda mais longos, para saírem de dentro dos sacos de dormir. Tomaram o desjejum sentados sobre as pedras, à beira da água. Bertram sentia-se descansado; exibia uma cara melhor que a da véspera. Mas, quando tentou entrar em contato com Geraldo, por intermédio de um sortilégio de comunica­ção, foi tomado por dores de cabeça que o impediram de praticar a magia.

— Não tem problema — disse Âmbar. — De todo modo, o plano B prevê que tomemos a iniciativa.

Uma barca os tinha conduzido até à Costa Berrante, ao mesmo local onde os Cavaleiros desembarcaram na véspera.

A Costa Berrante devia seu nome à presença de nu­merosos Gommons — criaturas cruéis, de aparência hu­mana, com cabelos de alga e pele escamosa, que gosta­vam de acompanhar o bramido das ondas nas noites de tempestade com berros aterrorizadores...

Ágata pagou o pescador com pedras preciosas en­contradas em casa de seus pais. Em seguida, deixaram sem demora a beira da praia.

Os rastros deixados pelos homens da Confraria esta­vam perfeitamente visíveis.

— Vai ser brincadeira de criança segui-los — falou Tomás.

Seu pai era caçador e ele, esperto em matéria de pistas.

Estudaram o mapa do Mundo Incerto que Âmbar tirou da bolsa. Tendo feito uma nova cópia a partir do mapa de Guillemot, do verão anterior, teve também a presença de espírito de trazê-lo ao sair de Krakal para Dashtikazar. Não havia dúvida: os Cavaleiros dirigiam-se diretamente ao sul.

Puseram-se em marcha, em meio ao capim vermelho do pântano, que rangia e estalava com os passos.

— Acha que Qadehar vai ficar furioso conosco? — perguntou Corália, andando ao lado de Gontrand.

— Qadehar, acho que não. Mas, Geraldo, sim. Tenho certeza! — respondeu o menino em voz baixa.

Bertram, com efeito, tinha-lhes contado da presença, no Mundo Incerto, de Mestre Qadehar — que todo mun­do achava que estava preso em Gifdu — e de Uriano de Troïl e Valentim. Bertram tinha também aventado a hipótese de que Geraldo e os Cavaleiros recém-desembarcados de Ys iriam entrar imediatamente em contato com Qadehar e encontrar-se com ele... Essa notícia deu-lhes, ao mesmo tempo, confiança e inquietação.

Ao meio-dia, decidiram fazer uma parada para al­moçar. Bertram estendeu-se no chão.

— Ufa! — gemeu. — É terrível, não paro de pensar no meu Mestre. Espero que não fique com raiva demais de mim, quando descobrir nossa presença...

— É normal ele ficar com raiva — disse Corália. — Confiou a você uma missão — nos vigiar em Ys — e você traiu sua confiança.

— Obrigado pelo seu apoio psicológico, Corália! — gritou Bertram.

— E eu, não sou digno de pena, talvez? — disse Romaric.

— Meu bravo Escudeiro! — exclamou Corália.

— O problema é esse mesmo — exclamou ele, por um instante perturbado pela intervenção da jovem e os risos dos amigos — eu sou de fato Escudeiro! Ora, eu fugi de Bromotul, eu... eu agredi — não há outra palavra — um Cavaleiro perto da Porta. E agora? Eis-me correndo atrás daqueles que o bom senso me recomendaria evitar a qualquer custo: meu tio e a metade da Confraria! Tenho cara de quê, me digam!

— De alguém a quem nada de pior poderia acontecer — compadeceu-se Âmbar.

— Exceto ser chamado de “meu bravo Escudeiro” por uma menina diante de duzentos Cavaleiros! — zombou Gontrand.

— Idiota! — reagiu a bela morena. — Está com ciúme. Só isso.

— Eu bem que gostaria de ser o bravo alguma coisa de alguém — admitiu Tomás, sonhador.

— Está vendo, Gontrand? — vangloriou-se Corália. — Ainda existem meninos românticos!

— Mas não meninas ajuizadas que chegue — suspirou Âmbar. — Bom, não esqueçamos de recuperar as forças, ainda não acabamos a marcha...

Com a proximidade da noite, Feiticeiros e Cavalei­ros descortinaram uma floresta de aspecto selvagem, inquietante, de arrepiar o cabelo e acelerar o coração.

— O Bosque dos Enforcados — anunciou Mestre Qadehar.

Seus amigos reuniram-se em torno do mapa que ele tinha nas mãos.

— Tem razão — confirmou Uriano. — Eis aqui a Ilha do Meio, a Costa Berrante, onde desembarcamos, e o Pântano Vermelho — que acabamos de atravessar.

Após uma curta pausa, penetraram no bosque, atrás dos batedores, lançando em volta olhares desconfiados.

As árvores não eram muito altas, mas seus troncos eram largos e os galhos — que se contorciam como ten­táculos — estavam cobertos por uma folhagem espessa. Dir-se-ia um cruzamento de carvalho com salgueiro chorão. Uma espuma cinzenta corroia os troncos.

— Brrr! Existem lugares mais agradáveis! — desaba­fou Uriano.

Valentim voltou-se para ele:

— Mas não existe um melhor para esconder um exér­cito! — disse, com uma piscadela.

Logo desembocaram numa espécie de clareira, onde crescia um curioso tipo de capim pardo. O Comandante, depois de ter consultado Geraldo e Qadehar, deu ordem para instalarem ali o acampamento.

Uma vez todos confortavelmente sentados em volta de uma das fogueiras, o chefe dos Cavaleiros dirigiu-se aos Feiticeiros.

— Mestres Feiticeiros, quais são os projetos dos se­nhores agora?

— Antes de tudo, trata-se de nos protegermos e aproxi­marmos das partes habitadas do Mundo Incerto — respon­deu Qadehar, esticando as pernas. — Estávamos expostos demais e, principalmente, muito isolados, na Costa Berrante.

— Isso quer dizer que vamos ficar aqui? — perguntou Valentim.

— Enquanto não descobrimos para onde Guillemot foi levado — assegurou Geraldo.

— Esta floresta é densa e ninguém se aventura por aqui voluntariamente — prosseguiu Qadehar. — Contam que os padres de Yénibohor antigamente tinham o cos­tume de enforcar seus inimigos neste bosque. Hoje, todo mundo pensa que ele é assombrado pelos fantasmas daqueles enforcados todos.

— Fantasmas?... — Uriano inquietou-se ainda mais.

— Não me diga que você tem medo de fantasma! — zombou Qadwan, encostado a uma árvore, para aliviar as costas.

— Não, hum... É claro que não! Mas por que esperar? Dê-me cinqüenta homens — clamou, subitamente, o velho senhor de Troïl — e não precisarei três dias para obter desses vadios que povoam o Mundo Incerto as in­formações que nos faltam!

— É exatamente o tipo de estratégia que conduz dire­tamente às catástrofes — comentou ironicamente Qadehar.

— Quanto mais soubermos nos manter discretos, mais chances teremos...

— É da Treva que você tem medo? — perguntou o Comandante. — Eu a enfrentei uma vez em Ys, nas Mon­tanhas Douradas. E a venci, com meus Cavaleiros.

— No Mundo Incerto é diferente — explicou Qadehar.

— Sem entrar nos detalhes, a magia não funciona aqui exatamente como em nossa terra. Talvez por essa razão a Treva seja muito mais poderosa aqui que em Ys. En­quanto Feiticeiro Perseguidor, nunca tive a oportunida­de de topar com ela. Mas, se isso tivesse acontecido, eu sem dúvida não teria esse sucesso todo...

Essa confissão do mais poderoso Feiticeiro da Guilda mergulhou os homens presentes em torno do fogo num silêncio preocupado. O que aconteceria se, na hora agá, o homem mais bem armado dentre eles, admitisse sua impotência?

— Falemos pouco, mas falemos bem — propôs Valen­tim. — Que estratégia adotar para reencontrar Guillemot?

— Pensamos em localizá-lo através de um sortilégio — respondeu Geraldo. — Ai de mim! Não conseguimos: parece que seu raptor previu tudo...

— Será necessário nos decidirmos, eu temo — conti­nuou Qadehar —, por empregar métodos mais tradicio­nais. A saber: enviar espiões às principais cidades deste mundo em busca de qualquer informação capaz de nos conduzir a uma pista de Guillemot.

— Nosso tempo, porém, está contado... — suspirou Geraldo.

— Eu sei. Mas não vejo nenhuma outra solu...

Um tumulto repentino interrompeu Mestre Qadehar. Estava havendo uma luta no bosque, na proximidade da clareira.

Todos se levantaram num pulo.

— Os fantasmas! — gemeu Uriano. — São os fantasmas chegando!

— Cale-se já, bugre imbecil! — brigou Valentim. — Não está vendo que se trata tão somente de um intruso?

Com efeito, a confusão tinha passado e, diante do olhar vigilante dos Cavaleiros, que tinham se reagrupa­do, os guardas de sentinela do lado noroeste da clareira avançaram, trazendo com pulso firme um homem que não fazia o menor esforço para escapar.

Um homem alto e robusto, usando um grande manto vermelho...

Um dos guardas abaixou o capuz do prisioneiro.

— Yorwan! — exclamou Mestre Qadehar, descobrindo o rosto familiar.

— Yorwan! — rugiu Uriano, lançando-se para cima dele com os punhos fechados. — Sagrado nome de Deus!

— Comandante! — gritou Qadehar. — Segure Uriano! Num relâmpago, o Comandante se interpôs entre o prisioneiro e o velho Cavaleiro furibundo.

— Solte-me! — berrou Uriano, debatendo-se.

O Comandante teve dificuldade em contê-lo.

— Deixe-me acertar as contas com este traidor! — gri­tou ainda Uriano, tomado pela cólera.

Ambor e Bertolen acudiram, para ajudar seu chefe a dominá-lo.

Os gritos de Qadehar e, depois, de Uriano, entretan­to, despertaram uma viva emoção entre os Cavaleiros, que conservavam como uma cicatriz ardente a lembran­ça da traição de Yorwan. Qadehar, ao contrário, sentiu-se invadido pela esperança. Para dominar a agitação, subiu num tronco de árvore caído no chão e pediu silêncio.

— Escutem! Uriano tem razão: este homem, que no Mundo Incerto é chamado de Senhor Sha, é mesmo Yorwan, o jovem Feiticeiro renegado, ladrão do Livro das estrelas! Será sem dúvida necessário julgá-lo por isso. Mas, certamente, não aqui, e menos ainda agora! Pois Yorwan veio até nós deliberadamente e não se defendeu quando o apanhamos, embora domine perfeitamente a magia deste mundo! Acho que ele tem uma boa razão para agir assim. Deixemos de lado nosso ressentimento e escutemos o que ele tem de importante para nos dizer.

Os argumentos do Mestre Feiticeiro valeram e o pró­prio Uriano se acalmou, preparando-se, como os outros, para ouvir com atenção o que tinha a dizer o prisioneiro.

— Eu sei onde está Guillemot — disse simplesmente o Senhor Sha.

Romaric, Âmbar, Gontrand, Corália, Ágata, Bertram e Tomás decidiram passar a noite no pântano. O lugar lembrava a mata próxima a Dashtikazar, onde gostavam de passear nas noites de verão. Além disso, a estranheza daquele mundo e os animais curiosos, semelhantes a gatos gordos, que tinham visto diversas vezes ao longo do dia, não lhes botavam medo algum. Não temiam ficar sozinhos no meio de lugar nenhum.

Juntaram todos os tocos de pau seco que encontra­ram e acenderam uma fogueira. Depois, sentaram-se e devoraram as poucas provisões que tinham guardado.

— As pegadas que seguimos estão cada vez mais fres­cas — anunciou Tomás. — Devemos encontrar Geraldo amanhã...

— Ainda bem! — disse Corália. — Já não temos muito o que comer! A não ser algumas latas de conserva...

— Você resume muito bem o drama de uma grande maioria dos nossos concidadãos, Corália! — ironizou Gontrand. — Aí está você, pronta para sacrificar o perfu­me inebriante da liberdade pelo conforto do seu ventre!

— É você que vou sacrificar, se continuar assim! — defendeu-se a moça, envergonhada. — Mesmo não ha­vendo muito o que comer no seu corpo magricela...

— Isto me lembra uma linda fábula de La Fontaine, que aprendi no Mundo Certo — disse Bertram, com ar sonhador. — Vocês estudam La Fontaine em Ys?

— Acha que somos ignorantes, ou o quê? — respondeu Ágata.

— É a fábula do Lobo e do Cão — prosseguiu o jovem Feiticeiro. — O lobo, que está morto de fome, inveja a sorte do cachorro, sempre bem alimentado. Deixa-se convencer por seu novo amigo e aceita transformar-se em cão. Mas, quando fica sabendo que não poderá mais correr à vontade, foge...

— ... preferindo viver de barriga vazia, mas livre, em vez de saciado e acorrentado — terminou Âmbar. — Sim, conheço, é uma bela história.

Contemplaram as chamas um instante sem nada di­zer. Cada um compreendia, sentindo um ligeiro burburinho no estômago, o cruel dilema do lobo.

 

Guillemot abriu os olhos de repente, com o coração batendo a ponto de explodir. Lançou um primeiro olhar pelo aposento, depois observou atentamente os cantos de sombra, mas nada distinguiu. Esforçou-se para acal­mar-se. No entanto, pareceu-lhe, em seu torpor, ter ouvi­do a porta da cela se abrir.

Quantas vezes tinha despertado assim, ofegante, emergindo de um sono muito pesado, como um afogado tenta desesperadamente tornar a subir à superfície? Aquela espera o estava enlouquecendo.

— Meu menino...

Guillemot sobressaltou-se violentamente e soltou um grito. A Treva! A Treva estava ali, bem próxima! Então não tinha sonhado. Estava tenso como a corda de um arco. Era o cansaço. Há quanto tempo não comia? Dias? Talvez uma semana...

— Ora, ora... Você está nervoso... muito, muito ner­voso...

O sussurro cavernoso deslocou-se. Guillemot por fim percebeu a silhueta de trevas, do outro lado da Ar­madura de Aegishjamur. Mal a distinguia, mas a ouvia respirar e parecia sentir no rosto um sopro gelado. Pôs-se a tremer como folha.

— Então, meu menino... refletiu... sobre a minha pro­posta?...

Guillemot não respondeu de imediato. Meu Deus! Tinha que se acalmar a qualquer custo! Parar de tremer! Fechou os olhos e pediu, como se faz numa oração, a ajuda de Isaz, o Grafema que ajudava na concentração e reforçava a vontade. No fundo dele, Isaz se iluminou e expandiu seu calor pelo corpo da criança.

Quando o Aprendiz tornou a olhar para a Treva, tre­mia menos.

— Refleti. E não.

A Treva agitou-se.

— Ousa dizer não... a mim...

Recuando, soltou um gemido aterrorizante que, ape­sar da presença de Isaz, assustou Guillemot.

— Pior para você... Você mesmo decidiu... Não quer tornar-se meu aliado... pois então será meu escravo...

Guillemot compreendeu que o confronto era inevitá­vel. Verificou, numa olhada rápida, que todas as suas pro­teções ainda estavam ali, e sentou-se, precipitadamente, sobre Mannaz.

No final do que parecia ser um braço, a Treva fez nascer uma bola escura semelhante à que havia já lança­do durante a visita anterior. Depois, a projetou com for­ça sobre o abrigo mágico.

O sortilégio espatifou-se de encontro à Armadura de Aegishjamur e, como da última vez, foi murchando.

A Treva recomeçou a operação. Com o mesmo insu­cesso.

— Por que se enfurece? — interrogou-se Guillemot com ansiedade. — Está vendo que suas bolas não conse­guem fazer ceder minha Armadura!

Seu olhar foi atraído para o chão. Notou que os Aegishjamur gravados na pedra brilhavam intensamen­te. As bolas escuras mobilizavam sua energia! E en­quanto os Aegishjamur lutavam contra elas, não po­diam... Os olhos de Guillemot arregalaram-se. Tinha entendido a tática da Treva! Tentou reencorajar-se, pas­sando os dedos nas chamas vermelhas de Hagal.

Depois que umas vinte bolas maléficas tinham abalroado as paredes do Galdr, a Treva avançou, segura de si, em direção a Guillemot. Tocou na Armadura e passou um braço através dela, como se mergulha um braço na água. Soltando uma gargalhada, tentou atravessar a pa­rede de energia.

No mesmo instante, os Grafemas de Odala, que Guillemot tinha desenhado entre cada Aegishjamur, para reforçar seu refúgio, puseram-se, por sua vez, a cintilar. O braço que a Treva tinha passado através da bar­reira mágica viu-se de repente atacado por uma miríade de fagulhas brilhantes. A Treva gemeu de dor.

— Uma proteção dupla... Bem pensado, meu meni­no... Você não me decepciona... Oh, não, você não me decepciona...

A silhueta da Treva entoou, como se fosse um sal­mo, um sortilégio numa língua desconhecida de Guille­mot. As fagulhas se apagavam à medida que o encanta­mento ganhava em volume e potência.

— Pon choktu gher na gher noa magar gudaz bashzir noa...

As representações de Odala, no chão, perderam inten­sidade. Com um grito de dor, a Treva penetrou no interior da Armadura de Aegishjamur. Guillemot se conteve para não dar um berro. O inimigo tinha forçado a fortaleza e fazia cerco à sua torre!

Mal a Treva tinha vencido o Galdr, o gigantesco Grafema de Hagal, cujas oito ramificações crepitavam num fogo frio, orlou-se de uma aura avermelhada, pondo Guillemot ao abrigo de um novo muro de energia.

A Treva ficou imobilizada ao descobrir esse novo sortilégio.

— Subestimei você, meu menino... Todos nós fize­mos de você um julgamento errado...

Sondou a barreira transparente que a isolava do me­nino.

Estava bem perto e Guillemot distinguia naquele momento uma vaga forma humana debaixo do manto de trevas. Sem poder dizer por que, começou a sentir me­nos medo.

— Impressionante... muito impressionante...

A Treva colou-se de encontro à parede vermelha e estendeu os braços. Uma faísca de sombra mergulhou Guillemot na escuridão; instintivamente, o menino acocorou-se. Num rugido, a Treva apelou para os poderes do Mundo Incerto. E desencadearam-se as trevas...

Nunca antes Guillemot tinha assistido a um tal espe­táculo de magia. Surgindo do nada, formas espectrais de contornos indistintos iam e vinham, dando focinhadas contra a torre de Hagal, guinchando de raiva, depois tor­nando a atacar. A Treva as encorajava com uma voz ater­rorizadora. Guillemot pôs-se a gritar. De terror. De loucu­ra, talvez. Até que a proteção de Hagal racha-se. Rompe-se. E estala, com uma chuva de estrelas vermelhas.

A Treva acusou o golpe com um resmungão. Cam­baleou. Os espectros desapareceram como tinham vindo. Visivelmente exaurida pelo esforço que acabava de fazer, a Treva aproximou-se, num passo arrastado, de Guillemot, que soluçava. A escuridão circundante tinha-se tornado menos espessa.

— Agora você é meu... Você é meu, meu menino... E esticou o braço para pegá-lo.

Aos pés de Guillemot, o chão tremeu ligeiramente. Mannaz tinha se ativado. Numa fração de segundo, o Grafema envolveu o Aprendiz com uma luz branca lei-tosa, que desenhou os contornos de um ovo enorme. O ovo cósmico. O último refúgio...

Incontinenti, a Treva interrompeu o gesto. Hesitou, depois recuou, vacilante, num movimento de retirada. Guillemot, que percebeu isso através das lágrimas, com­preendeu, então, que nada mais tinha a temer: a Treva tinha usado todas as suas forças para combater Aegish­jamur, Odala e Hagal. Não tinha mais energia suficien­te para atacar Mannaz!

A porta da cela abriu-se subitamente e um homem de crânio raspado, vestindo túnica clara, entrou. Parou um instante, surpreso, ao descobrir Guillemot sentado den­tro do ovo translúcido, depois prostrou-se diante da Treva.

— Senhor... Com licença, Senhor... Mas, um exército estrangeiro está acampado às portas da cidade!

A Treva reprimiu um movimento de cólera.

— Já... já estão lá... Que má notícia me traz... Lomgo... É cedo demais... É cedo demais...

Depois, voltando-se para Guillemot, disse, com a voz fatigada:

— Infelizmente, tenho que deixá-lo... Mas ainda não desisti... Há outros meios... Sim, outros meios...

Contrariada, a Treva deixou a cela, seguida por Lomgo, que ia curvado, a cabeça caída para o lado.

Guillemot tentou lutar contra a zoeira que invadia seu espírito, mas em vão. Esgotado pelas emoções, en­fraquecido pela falta de comida, perdeu mais uma vez a consciência.

 

— O que fazemos agora? — perguntou Bertram.

Os jovens contemplavam com ar perplexo as impo­nentes muralhas da cidade de Yénibohor, que se erguiam ao longe. Era a primeira vez que viam a célebre cidade, e estavam impressionados. De fato, alguma coisa de ter­rível e angustiante desprendia-se de Yénibohor.

Uma torre gigantesca elevava-se no centro, refor­çando aquela impressão ameaçadora que a cidade ema­nava.

— Eis aí, então, o refúgio daqueles padres que botam medo em todo mundo! — falou Gontrand, ignorando a pergunta de Bertram.

— Wal, o Guardião dos Objetos do Povo do Mar, me contou coisas assustadoras sobre eles... — disse Corália.

— São histórias verdadeiras — confirmou Romaric, com a cara séria.

Na ocasião de sua estada anterior no Mundo Incerto, Romaric teve oportunidade de conhecer homens que o alertaram contra os padres de Bohor.

— Nós, decididamente, estamos sempre nos metendo em confusão! — Ágata soltou um suspiro.

— É preciso reconhecer que até este momento, basi­camente nos contentamos em seguir a Confraria — res­pondeu Âmbar, lacônica. — Não é culpa nossa se ela nos conduziu para cá!

Realmente, os jovens amigos de Guillemot acompa­nharam os rastros da Confraria através do Pântano Vermelho. E foi diante das muralhas de Yénibohor que afinal encontraram os Cavaleiros, em formação de bata­lha. Decidiram, de comum acordo, deixar para mais tar­de as descobertas e... as explicações. Ninguém ali queria se precipitar! Em certas circunstâncias, era vantajoso ficar escondido no bosque com os lobos...

Dirigiram-se, então, ao alto — na realidade, simples colinas, que chamavam de Cinzentas, devido a um aflo­ramento da rocha — não longe da cidade. Aquele ponto de observação oferecia ampla visão, embora distante da cena que se preparava.

— Bem, e agora, o que fazemos? — repetiu Bertram.

— Fazemos como eles, na planície — respondeu Romaric sem hesitar — esperamos...

Numa atitude ao mesmo tempo cavalheiresca e quase ridícula, levando-se em conta as circunstâncias particulares em questão, a fileira de couraças turquesa desafiava a poderosa cidade de Yénibohor. Atrás, com um mapa aproximado da cidade diante dos olhos, o Comandante mantinha um conselho de guerra com Ambor, Bertolen, Uriano e Valentim.

— Comandante — repetia pela décima vez Uriano de Troïl — não entendo por que o senhor permite que esse traidor do Yorwan dirija a operação!

Valentim deixou escapar um suspiro exasperado.

— É porque você decidiu que não vai entender — res­pondeu ele, no lugar do chefe dos Cavaleiros. — Uriano, por favor... Para começar, repita para si mesmo que Yorwan não está dirigindo nada; apenas nos dá informa­ções. Só isso. O que fez ou deixou de fazer no passado é uma coisa; o que está fazendo hoje, ou seja, ajudar-nos a encontrar Guillemot, outra.

— Está insinuando que sua boa ação seria o suficien­te para apagar o erro passado? — exclamou Ambor. — Nada disso!

— Não se trata disso — rosnou Uriano. — Não é uma boa ação, mas uma armadilha. Uma armadilha na qual estamos caindo de cabeça baixa! Se Yorwan não estives­se sob a proteção desses malditos Feiticeiros, eu o estrangularia com as minhas próprias mãos, para impe­di-lo de fazer mais estragos!

— Lembro aos senhores — interveio o Comandante num tom severo — que estamos aqui para organizar a tomada da cidade. Portanto, vamos refletir, ao invés de especular em vão! Yorwan afirma que é aí, em Yéni­bohor, que Guillemot está preso. Se Qadehar e Geraldo nos dizem que podemos confiar nas informações de Yorwan, é porque são válidas. Não nos cabe julgar...

Uriano não respondeu, mas cerrou os punhos até fi­car com as juntas brancas.

Mais adiante, sentados no capim rasteiro, Qadehar, Geraldo e Qadwan cercavam Yorwan, que tinha se enro­lado no manto vermelho de Senhor Sha. Ninguém pode­ria imaginar, ao vê-los conversando livre e amigavel­mente, que um era prisioneiro dos outros três...

— Não consigo acreditar que falhei e não respondi ao apelo do meu Aprendiz — disse Qadehar, desolado.

— É porque você é menos sensível que eu aos Gra­femas Incertos — respondeu Yorwan.

— No entanto, o ouvi — insistiu o Mestre Feiticeiro. — Fracamente, mas reconheci bem um apelo de socorro! Só que provinha do Mundo Incerto. Como podia saber que se tratava de Guillemot?

Estava terrivelmente aborrecido por não ter dado mais atenção ao sortilégio aleatório que tinha interceptado quando marchava com Uriano e Valentim alguns dias antes, em direção de Virdu.

— O essencial — confortou-o Geraldo — é que Yorwan tenha captado esse apelo e sobretudo, que tenha tido a presença de espírito de localizar Guillemot e tecer uma malha mental.

— Perdi seu rastro em Yénibohor — continuou Yorwan. — Com certeza ainda está lá! Enquanto isso...

— Enquanto isso o quê? — perguntou Qadwan com a voz cansada.

O velho Feiticeiro ainda estava enfraquecido. Sentia dificuldade de recuperar-se da passagem para o Mundo Incerto.

— Enquanto isso — recomeçou Yorwan — é preciso estarmos muito vigilantes. Os padres de Yénibohor são perigosos! Praticam uma forma de magia poderosa, ba­seada no culto a Bohor, o Senhor Obscuro. Contam que o Grande Sacerdote que os dirige não tem forma huma­na e que teria sido enviado ao Mundo Incerto pelo pró­prio Bohor... Seja ele quem for, será preciso muita pru­dência.

Lançou um olhar de desaprovação aos Cavaleiros postados em evidência diante da cidade. Qadwan soltou um suspiro.

— A Confraria é assim, cheia de orgulho e insensatez! Temos que aceitar. Mas seus homens são valorosos, não existem equivalentes em mundo algum!

— Os Cavaleiros não têm a menor chance contra os padres — insistiu Yorwan.

— O que recomenda? — inquiriu Qadehar.

— Astúcia ou negociação. Em caso algum a força.

— Sei que estou me repetindo — disse Geraldo — mas dispomos de pouco tempo! Seja quem for aquele que raptou Guillemot, Treva, Grande Sacerdote ou Bohor em pessoa, logo vai obter dele o que deseja. E se, além disso, for esse mesmo personagem o que roubou da sua torre O livro das estrelas, como nos contou, então, pode apostar que coisas formidáveis estão sendo gestadas...

— É preciso acreditar em mim — disse com insistência Yorwan. — O livro das estrelas me foi mesmo roubado em Djaghataël, enquanto eu corria atrás de Guillemot pelos corredores de Gifdu!

— Roubaram um ladrão! Seria divertido se a situação não fosse tão dramática! — deixou escapar Qadwan.

Yorwan lançou um olhar desolado para os três outros Feiticeiros.

— Quantas vezes será preciso dizer? Não roubei o velho livro; coloquei-o em segurança! Se não tivesse agido assim, contrariando até os meus próprios interes­ses, a situação hoje seria bem mais grave.

— Pode ser que esteja dizendo a verdade. Em todo caso, eu gostaria de acreditar... Mas isso veremos mais tarde — concluiu Qadehar, simplesmente, depois de um silêncio. — Por ora, ocupemo-nos de Guillemot!

Deixando Yorwan sob a guarda de Qadwan, Qadehar e Geraldo dirigiram-se ao grupo de homens reunido em torno do Comandante.

— Senhor, que fazemos?

— Por enquanto, nada...

A silhueta de sombra contemplava do alto de sua torre os homens da Confraria, que o desafiavam, diante das muralhas da cidade.

— Nada, Senhor? — surpreendeu-se Lomgo. — Mas...

— Eu tinha previsto isso... Era inevitável... Só que chegaram cedo demais...

A Treva interrompeu os sussurros. Refletia.

— Traga nosso amigo... Agora...

Lomgo inclinou-se e desapareceu na escadaria. Um bom tempo depois, resfolegando como um boi, maldizendo a altura da torre, um homem apareceu na plataforma. Era um colosso: desgrenhado, peludo como o diabo, e usava uma armadura negra amassada.

— Espero... que os seus homens estejam de pronti­dão... Thunku...

— Estão, Grande Sacerdote — respondeu o comandan­te Thunku, com uma voz tonitruante.

— Bem, muito bem... Vou dispor os meus... E vamos esperar que eles ataquem...

— O senhor crê que vieram para nos atacar? — interro­gou Thunku.

Lançou um olhar cheio de desprezo aos Cavaleiros.

— Não passam de um punhado!

— Acredite em mim, Thunku... eles vão atacar... Eu os conheço bem... Vão atacar...

A Treva soltou uma gargalhada e Thunku, a quem o ricto monstruoso não assustava nem um pouco, acompa­nhou a risada terrível.

Na planície, apesar da coragem que habitava seus corações, os Cavaleiros não puderam deixar de reprimir um arrepio.

 

A proposta de negociação de Yorwan, que Qadehar e Geraldo levaram ao estado-maior dos Cavaleiros, ficou longe de agradar os rudes homens de ação, com exceção, talvez, de Valentim, que era o mais sábio entre eles...

— O quê? — exclamou Uriano. — Vocês querem parla­mentar com esses loucos?

— Seria esta a ocasião de se ter uma medida das for­ças de que dispõe a cidade — tentou justificar-se Qadehar diante do velho Cavaleiro, que todos sentiam estar à beira de uma explosão de cólera.

— O senhor não tem confiança na coragem da Con­fraria? — perguntou o Comandante, ligeiramente desgostoso, ao Feiticeiro.

— O problema não está aí — interveio Geraldo. — Mestre Qadehar não está, absolutamente, colocando em questão a bravura dos senhores! Mas, segundo Yorwan, os padres de Yénibohor dispõem de poderes mágicos que...

— Yorwan! — Uriano soltou uma gargalhada. — Uma atitude frouxa dessas só podia vir dele! O que me espan­ta, Qadehar, é você se deixar manipular por esse indiví­duo, quando ele já nos traiu.

— Já chega, Uriano! — disse Qadehar secamente.

A atitude do gigante de Troïl o estava fazendo perder a paciência.

— As suas insinuações são inadmissíveis! — conti­nuou.

— Muito bem, então! — respondeu Uriano gritando — não admito obedecer à Guilda e seus malditos Fei­ticeiros!

Com o insulto, Qadehar avançou um passo em dire­ção a Uriano, com ar ameaçador. Geraldo, o Coman­dante e Valentim interpuseram-se entre os dois homens. Ambor e Bertolen, os dois capitães, pareciam divididos e perplexos. Sentiu-se uma agitação em meio às fileiras de Cavaleiros. Estavam ali diante da terrível cidade de Yénibohor, abrigando não se sabe qual ameaça, e seus chefes brigavam... A situação lhes pareceu inédita.

— Basta! — resmungou Uriano.

Libertando-se dos braços de Valentim e do Coman­dante, recuou alguns passos.

— Sei o que devo fazer!

O colosso dirigiu-se num passo apressado a um enorme rochedo. Subiu nele e com voz trovejante diri­giu-se aos Cavaleiros estupefatos.

— Cavaleiros! O raptor de meu sobrinho está preso nesta cidade! Uma cidade ocupada por um punhado de padres trêmulos! E o que nos propõem os Feiticeiros da Guilda, a conselho do traidor Yorwan? Negociar!

Um estrondo de desaprovação agitou os homens, atentos ao discurso marcial de Uriano de Troïl.

— Vocês não são os melhores combatentes dos Três Mundos? — continuou o colosso, cujo olhar brilhava de excitação e fúria. — Não se sentem capazes de tomar esta cidade?

Desta vez, a resposta foi um clamor entusiasmado. Os homens brandiram em direção ao céu as espadas e os escudos em que estavam gravados os brasões de suas famílias.

— Então — concluiu Uriano, levantando o machado de guerra — ao ataque! Façamos vomitar aqueles que ousa­ram desafiar Ys e a Confraria!

— Iahhhhh!

Os gritos roucos dos duzentos Cavaleiros ressoaram na planície. Uriano tomou a dianteira e precipitou-se, espumando, em direção às portas da cidade, que esta­vam completamente abertas. Os Cavaleiros correram atrás.

— É loucura! — gemeu Qadehar, que assistia à cena, impotente.

O Comandante exibia uma expressão de desalento.

— Lamento muito. Nada pude fazer. Uriano é uma lenda para os Cavaleiros. E estavam todos eles por de­mais impacientes para atacar...

Ambor e Bertolen, inflamados, como os outros, pelo discurso de Uriano, foram os primeiros a correr.

O Comandante dirigiu-se, por sua vez, à cidade. Valentim o seguiu.

— São meus homens — desculpou-se o Comandante. — Não posso abandoná-los!

— Vou com o senhor! — decidiu-se, de repente, Qa­dehar. — Vão precisar de mim se os padres usarem magia!

— Isso também é loucura... — disse Geraldo, num tom reprovador.

— Eu sei, meu amigo — reconheceu o Mestre Fei­ticeiro com tristeza. — Mas já abandonei uma vez meus companheiros diante de Djaghataël. Hoje, vou compar­tilhar o destino deles, seja ele qual for. Se a coisa acabar mal, refugiem-se no Bosque dos Enforcados! E em seguida voltem para Ys!

Geraldo, Qadwan e Yorwan o viram entrar em Yéni­bohor atrás dos Cavaleiros. Estavam aterrorizados.

— Acho — anunciou Yorwan com voz sinistra — que devemos pegar imediatamente a estrada do Bosque dos Enforcados...

Uriano, seguido pelos duzentos Cavaleiros da Con­fraria do Vento, e por Valentim, Qadehar e o Comandan­te, um pouco mais atrás, entrou cidade adentro. As vizi­nhanças da porta monumental encontravam-se desertas. Eles ainda correram uma centena de metros, depois alcançaram uma ponte de pedra que cruzava um grande curso d’água. Uriano estacou no meio de uma avenida, praguejando. Atrás dele, os guerreiros de armadura tur­quesa pararam e puseram-se a sussurrar. Não havia nin­guém ali. E o silêncio que reinava era um silêncio de morte. Tratava-se, muito provavelmente, de uma cilada...

— O que estou fazendo? Santo Deus, que foi que eu fiz? — lamentou-se Uriano, recuperando aos poucos a consciência, tendo a situação o efeito de uma ducha fria.

— Meia volta! — logo rugiu, dirigindo-se aos compa­nheiros. — Vamos sair desta armadilha, e depressa!

Mas, no mesmo instante, os pesados batentes das portas da cidade fecharam-se brutalmente, com um ruí­do sinistro, que ressoou como o estrondo do fim do mundo. Foi então que, das ruelas em volta, surgiram criaturas às dezenas, jogando-se, aos berros, sobre os Cavaleiros...

Eram Orks, aqueles monstros humanóides, podero­sos, assustadores, com a cara semelhante à dos lagartos, pele dura e escamosa, vestidos de pano grosseiro e cou­ro. Exibiam no peito, num pingente, o símbolo da cida­de de Yâdigâr: um leão a rugir, cercado de chamas.

Qadehar, mais na retaguarda, identificou o brasão. Empalideceu.

— Os homens de Thunku! Ainda mais essa! — excla­mou.

— Fizemos papel de ratos! — constatou, amargamen­te, o Comandante, vendo os bandos de monstros a se espalhar pela avenida e ocupar a ponte, cercando a Confraria.

— Temos que nos livrar deles e escapar! — disse Va­lentim, que tentava manter a calma. — É a nossa única chance...

— Eu cuido da porta — anunciou Qadehar, retroce­dendo.

Mas, no mesmo instante, um Ork gigantesco lhe bar­rou o caminho.

Instintivamente, o Feiticeiro lançou contra ele o Grafema Thursaz. Este não fez efeito.

— E essa agora? — espantou-se Qadehar. — E no entanto invoquei a forma incerta do Grafema!

Tentou mais uma vez aniquilar o adversário com o Grafema, ao mesmo tempo em que pulava de lado, para evitar um violento soco. Em vão...

— Yorwan tinha razão! — logo compreendeu. — Há aqui uma magia que elimina o efeito da minha!

Aparando um novo golpe do Ork, o Feiticeiro jogou-se contra ele. Conseguiu golpeá-lo no pescoço e, ao mesmo tempo, tomar sua arma — uma espada pesada, denteada como um serrote. Depois, voltou-se para os companheiros, às voltas com os monstros. O combate era total.

Um outro Ork percebeu-o e, com um grunhido de ódio, caiu em cima dele, brandindo a maça coberta de pregos. O Feiticeiro soltou um suspiro e esperou o cho­que, a espada levantada...

 

O Ork que tinha se precipitado sobre Qadehar media quase duas cabeças a mais que ele. Mas era preciso mais que isso para impressionar o Mestre Feiticeiro, que já tinha lutado com criaturas piores no Mundo Incerto! Deixou-o aproximar-se e, no último momento, deu um passo de lado. Enquanto a maça do monstro caía no chão, Qadehar golpeou-o no ventre. Sem olhar o adver­sário agonizante, preparou-se para o ataque de um ter­ceiro Ork. Aparou um primeiro golpe com a espada, pulou com agilidade no ar para evitar o segundo; depois, ao voltar ao chão, com todo o peso do corpo, empurrou o pé sobre o joelho do monstro. Este quebrou-se imedia­tamente, com um estalo horrível, e o Ork rolou por terra, gemendo de dor. Mal o Mestre Feiticeiro teve tempo de recuperar o fôlego, seus amigos pediram ajuda.

Lutavam por toda parte. A reputação dos Cavaleiros não era falsa: um contra três, batiam-se valorosamente, e suas espadas estavam vermelhas do sangue dos mons­tros. Quando um dos companheiros ia ao chão, abatido pelos golpes das criaturas desembestadas, sua raiva aumentava, fazendo-os combater com mais força ainda. Uriano de Troïl, de costas para Valentim, que lhe cobria a retaguarda, era o mais impressionante: a espada em uma das mãos, o machado de guerra na outra, a barba cheia de poeira e espuma nos lábios, eliminava os Orks, um depois do outro, com força titânica. O Comandante também infligia golpes mortais nas fileiras inimigas. Seu pulso era frio, metódico, preciso. As cicatrizes que lhe cobriam o rosto de veterano brilhavam ao sol. Ambor e Bertolen, de costas um para o outro, como a maior parte dos Cavaleiros, habituados a combater em dupla, lutavam como leões. Mas a batalha já estava antecipadamente perdida, todos sabiam disso. Além dos adversários parecerem inumeráveis, cada Ork que caía era substituído por outro...

— Comandante! — Mestre Qadehar chamou o chefe dos Cavaleiros. — Minha magia é impotente! Temos que tentar escapar deles. Não resta mais muito tempo.

O Feiticeiro balançou a ponta da espada em dire­ção ao pescoço de um monstro. Ouviu um grunhido aba­fado.

— Está vendo algum local onde possamos nos refu­giar? — perguntou-lhe o Comandante, desviando-se de um golpe de machado e esmagando o nariz de um Ork com o cotovelo.

— Vi um edifício, bem perto. Poderíamos tentar nos refugiar ali...

— De acordo — aprovou ele. Imediatamente emitiu algumas ordens breves.

Os Cavaleiros, protegendo-se da melhor maneira possível atrás dos escudos, reagruparam-se como pude­ram e, lentamente, bateram em retirada. O Comandante e Qadehar, logo alcançados por Ambor e Bertolen, abriam a marcha. Uriano e Valentim fechavam. O odor acre da batalha sufocava os combatentes.

— Estamos quase lá! — gritou o Feiticeiro para recu­perar a coragem dos homens, penetrando numa ruela perpendicular.

Logo, puderam avançar mais rapidamente. As casas os protegiam dos ataques laterais, e somente a retaguar­da era mais molestada pelos Orks.

Chegaram ao pé do edifício localizado por Qadehar, uma construção grande e quadrada, de pedra, que ultra­passava em altura as casas vizinhas e parecia ser o tem­plo do bairro. A porta estava solidamente fechada, mas um Cavaleiro não demorou a encontrar uma escada, num pátio, encostada à parede. Um por um, os homens de armadura turquesa subiram ao telhado e o ocuparam, como uma posição militar.

— É nossa vez de jogar — anunciou Uriano a Va­lentim.

Os dois tinham ficado por último, para proteger a escalada dos companheiros.

O colosso voltou-se e agarrou a escada. Mas não viu o Ork que, surgindo do outro lado da rua, caiu sobre ele, brandindo à frente uma estaca.

— Uriano, cuidado! — gritou Valentim, colocando-se entre o amigo e o monstro.

O choque foi violento. A estaca enterrou-se na cou­raça, na altura do ventre, e Valentim rolou pelo chão, mole, sem um ruído.

— Valentim! — berrou Uriano, pulando da escada. — Valentim!

Com um golpe de machado repeliu o Ork, que tenta­va lançar-se sobre ele. Depois, suspendeu o amigo. Uma impressionante mancha vermelha tingia o chão. Uriano quebrou a lança de madeira no nível da couraça, carre­gou o mordomo inanimado nos ombros e subiu para o telhado.

Uma centena de Cavaleiros conseguiu alcançar o topo do edifício providencial, desdobrando-se de modo a defender eficazmente o acesso. Os outros combatentes ficaram no campo de batalha, mortos, feridos ou aprisio­nados. O Comandante respirou. Mesmo tendo sido pesadas as perdas, a coisa poderia ter sido pior...

O Mestre Feiticeiro agia, à cabeceira de Valentim, enquanto Uriano, ao lado, chorava lágrimas amargas, soltando soluços, como uma criança.

— Fui eu quem o matou — repetia o gigante, abatido. — Fui eu quem matou todos eles... É minha culpa, sim, é minha culpa... Por causa do meu orgulho, da minha lou­cura...

— Lamentar-se não serve para nada — disse Qadehar, duramente. — O que está feito está feito e a sua irrespon­sabilidade será julgada mais tarde. Em vez disso, me ajude!

Despiram o velho, que pareceu ainda mais magro sem a armadura. A ponta da estaca estava profundamen­te enterrada em sua barriga.

— Perdeu muito sangue — disse Qadehar, inquieto.

O Feiticeiro remexeu no bolso do casaco e tirou um punhado de ervas secas, que molhou com saliva e apli­cou com precaução sobre as bordas da ferida.

— É um ferimento grave — anunciou.

— Temos que salvá-lo! — gemeu Uriano. — Temos que salvá-lo!

— Se eu possuísse algum poder aqui — respondeu Qadehar, pousando a mão no ombro do gigante, como que para confortá-lo — poderia prometer isso a você. Mas sem Grafemas para reforçar e completar a ação das plantas curativas... duvido muito do resultado. Temos que esperar, Uriano. Não posso fazer mais nada.

No mesmo momento, os Orks atacaram o terraço, uti­lizando uma dezena de escadas semelhantes àquela que havia permitido aos Cavaleiros ali se refugiar. Foram rechaçados com certa facilidade. Algumas setas em seguida quebraram-se de encontro ao telhado, atiradas de um prédio vizinho. Os Cavaleiros protegeram-se atrás dos escudos e logo cessou o arremesso. Visivelmente, as hordas de Orks só eram boas no combate corpo a corpo! Mas, os Cavaleiros não se deixaram iludir...

— Basta-lhes esperar — resmungou Bertolen. — Não temos comida nem água.

Mas a intenção dos senhores de Yénibohor era outra. Debruçado num telhado da cidade, não longe dos Cava­leiros, um homem de grande estatura dirigiu-se a eles aos berros.

— Qualquer resistência é inútil! Vocês estão condena­dos! Eu poderia esperar o tempo fazer seu trabalho, mas... sou impaciente por natureza!

— É o Comandante Thunku — revelou-lhes Qadehar —, o tirano de Yâdigâr. É o seu exército que acabamos de enfrentar.

A notícia espalhou-se entre os Cavaleiros como um rastro de pólvora.

— De certa forma — admitiu Ambor ao amigo Ber­tolen — prefiro assim. Para mim, seria inquietante se sim­ples padres fossem capazes de deixar em má situação os homens da Confraria...

— Mas o que está acontecendo? — espantou-se Ber­tolen, ao ver uns vinte homens vestidos com a armadura turquesa, amarrados, virem juntar-se a Thunku sob a ameaça de Orks armados até os dentes.

Thunku voltou a fazer uso da palavra.

— Como podem ver, fiz alguns prisioneiros! Peço que deponham as armas e rendam-se! Vou contar até du­zentos: a cada nova dezena, matarei um dos seus! Até que obedeçam! Um... dois...

— Comandante — apressou-o Ambor — é preciso render-se! Estamos perdidos, de todo modo! É inútil deixar os companheiros morrerem para nada!

— Tem razão. É claro — aquiesceu este, voltando-se para Thunku e gritando.

— Pare, nos rendemos!

Thunku estava no nove e já um Ork brandia um machado por sobre a cabeça do Cavaleiro que tinha mandado ajoelhar. O senhor de Yâdigâr fez sinal ao monstro, para que recuasse, e deixou o prisioneiro le­vantar-se.

— Sábia decisão, Comandante! Deixem todas as armas no telhado e desçam, um por um para a rua.

— Estamos perdidos! E, na verdade, não vejo o que poderia nos tirar daqui... — disse Qadehar, soltando um suspiro, ao Comandante.

Vestiu a armadura de Valentim e dissimulou o rosto, sujando-o de pó e sangue.

Aos olhos de Thunku, ele era Azhdar, o demônio, e a besta sentia por ele um ódio cego. Era melhor evitar que o reconhecesse...

 

— Que horrível! — gemeu Corália, refugiando-se no ombro de Romaric que, sem jeito, tentava confortá-la.

— Aquele é Qadehar...? — mal conseguiu dizer Âmbar, lançando a Gontrand um olhar ansioso.

— É meu tio? — insistiu Romaric, com a voz trêmula.

— É Uriano?

— Estamos longe demais — respondeu Gontrand, que tinha arrumado um lugar numa pedra, de onde a vista era melhor. — Impossível dizer quem sobreviveu...

Os jovens de Ys, das colinas onde se abrigaram, as­sistiram — não à batalha, que se desenrolou atrás das muralhas, embora os clamores que subiam da cidade logo os tivessem informado da dureza dos combates — mas ao episódio do telhado e à derrota da Confraria...

— Não eram padres que esperavam nossos amigos nesse lugar perigoso, não é mesmo? — perguntou Ágata.

— Não — reconheceu Gontrand. — Tratava-se de Orks.

— Provavelmente, mercenários chamados como reforço pelos padres, como se faz correntemente no Mundo Incerto.

— Quem diria — falou Tomás, pensativo — que a Con­fraria pudesse perder uma batalha!

— Os Orks eram muito mais numerosos — tentou Romaric.

— E além disso — acrescentou Bertram — os padres talvez tenham interferido, com seus poderes...

— Orks ou padres — deixou-se levar Âmbar — que importância tem, agora que os Cavaleiros estão todos mortos ou aprisionados?

— Calma, Âmbar — disse Bertram. — Estamos conver­sando, só isso...

— Sim, só isso, e é bom que eu recrimine vocês!

— O que vai acontecer agora? — perguntou Ágata, para pôr um fim na briga.

— Não sei de nada — acabou admitindo Âmbar. — Não sei de nada...

— O que fazemos? — perguntou Yorwan. Permanecia escondido atrás de uma pedra com os dois companheiros. Eles também assistiram à cena do telhado.

Geraldo não respondeu. Voltou-se para Qadwan, que fez um gesto de impotência.

— A única coisa de fato razoável — hesitou Geraldo — seria... voltar para Ys!

— E abandonar Guillemot? — exclamou Qadwan. Balançou a cabeça, incrédulo.

— É a única solução que se oferece a nós — tentou justificar-se o Feiticeiro, limpando os óculos. — Uma vez em Ys, avisaremos o Prefeito, que convocará, sem dúvi­da, o Grande Conselho, e...

— ...E uma decisão será tomada dentro de dez meses! Não, fora de questão. Será tarde demais.

— No fundo, você tem razão — admitiu Geraldo. — Mas, na realidade... não vejo outra solução senão retor­nar a Ys.

— Eu tenho uma solução — anunciou, então, Yorwan. O Senhor Sha achava que eles iam ignorar sua opi­nião, mas ao ver os rostos voltados para ele, compreen­deu que os Feiticeiros estavam dispostos a se agarrar à menor das esperanças...

Sentaram-se ao abrigo dos olhares da cidade, e Yorwan começou a falar.

— Pertenço, desde a minha juventude, a uma fraterni­dade secreta, presente nos Três Mundos, a Sociedade do Urso. É uma sociedade muito antiga. Nasceu quando O livro das estrelas chegou a Ys. Há quem pense que foram as mesmas pessoas que trouxeram o Livro que criaram essa sociedade. Esta, em seguida, reproduziu-se no Mundo Certo e no Mundo Incerto. Tem como único objetivo vigiar O livro das estrelas e os usos que dele se possa fazer... Pois o velho manual contém segredos for­midáveis! Não somos muitos na Sociedade do Urso. Mas nossa influência é grande e contamos com um bocado de apoio. Principalmente no Mundo Incerto, onde, há muito tempo, são tramados os principais complôs contra o Livro... Eu me proponho a alertar o chefe do Urso e pedir sua ajuda. Não sei se essa ajuda será su­ficiente para lutar contra os poderosos padres de Yéni­bohor, mas... não custa nada tentar!

Um silêncio estupefato acolheu a proposta de Yorwan.

— É incrível! — exclamou afinal Qadwan. — Eu nunca tinha ouvido falar dessa Sociedade do Urso! E, no entanto, o normal seria todos os segredos transitarem por Gifdu!

— Uma sociedade secreta fundada pelas próprias pes­soas que trouxeram O livro das estrelas... — refletiu em voz alta Geraldo. — Um poder e um contrapoder... Um remédio e um antídoto, para quando o remédio se trans­forma em veneno... É lógico, e principalmente, muito sábio!

— E você? Qual o seu papel na Urso? — perguntou Qadwan a Yorwan, franzindo as sobrancelhas.

— Antigamente, eu era correspondente secreto da sociedade junto à Guilda, em Ys. Hoje, sou os olhos e orelhas da Urso no mundo real...

— Então... a sua partida de Ys com O livro das estre­las tem alguma relação com a Urso? — questionou Ge­raldo, os olhos brilhando.

O Feiticeiro começava a entender.

— Sim — murmurou Yorwan, com uma ponta de tris­teza na voz e abaixando a cabeça. — Mas isso vou contar mais tarde. O tempo urge e, se vocês estiverem de acor­do, é preciso que eu entre em contato com meus amigos no Mundo Incerto...

Enquanto isso, nas colinas, Âmbar soltava um grito de triunfo. Acabava de ter uma idéia!

— Os Cavaleiros abriram ataque contra os padres para libertar Guillemot e fracassaram em sua tentativa... — declarou.

— Como pode ter tanta certeza de que Guillemot se encontra em Yénibohor? — interrompeu-a Ágata.

— Porque, se a Confraria investiu contra a cidade, isso, com certeza, não se deve ao calendário de paga­mento dos soldos! — retorquiu Âmbar, dando de ombros.

— Continue, Âmbar — encorajou-a Romaric.

— O fracasso dos Cavaleiros, portanto, nos obriga a agir, por nossa vez.

— Ainda mais porque — insistiu Gontrand, com o rosto sombrio — a precipitação da Confraria só pode sig­nificar uma coisa: dispomos de pouco tempo para liber­tar Guillemot...

— Mas como? — espantou-se Ágata. — Como podemos nós vencer ali onde duzentos Cavaleiros fracassaram?

Âmbar dirigiu-lhe um sorriso radiante.

— Nós temos amigos no Mundo Incerto! Não é, com­panheiros? Gontrand, estou pensando em Tofann, o seu gigante das estepes! Corália, em Wal, e no Povo do Mar! E depois Guillemot nos falou bastante dos Homens das Areias e da dívida que têm para com ele!

O rosto de Gontrand iluminou-se imediatamente.

— Quer que procuremos esses amigos e pecamos ajuda?

— Exatamente! — concordou Âmbar, cruzando os bra­ços, com ar vitorioso.

— Sim, mas nós não conhecemos ninguém! — inter­veio Tomás.

— Isso é verdade — confirmou Bertram.

— É simples — respondeu Âmbar — completamente resolvida a tomar as rédeas da operação. — Se o nosso tempo está contado, como diz Gontrand, na certa com razão, não podemos fazer a busca todos juntos. Vamos então formar equipes. Corália e Romaric vão em busca dos amigos: o Povo do Mar. Ágata parte com Gontrand atrás de Toffan. Tomás, Bertram e eu vamos ao Deserto Voraz.

— E se não encontrarmos ninguém? — inquietou-se Corália.

— O Mundo Incerto não é tão grande assim! E, além do mais, vocês sabem onde procurar! Por outro lado, combinamos um dia para nos reencontrarmos, seja qual for o resultado de nossas buscas...

A proposta de Âmbar foi mais uma vez submetida a voto. Foi aceita por unanimidade menos zero vozes, uma vez que Bertram já não dormia e exibia um sorriso enigmático.

— Não irei com você, Âmbar — anunciou ele.

— O quê?

— Tenho uma outra idéia! Preciso agir sozinho...

— Mas, então, explique, Bertram! — pressionou a me­nina.

— Inútil. Apenas peço que confiem em mim.

Todos olharam para ele com inquietação e, apesar dos esforços, não conseguiram fazê-lo mudar de idéia.

O jovem Feiticeiro juntou as coisas e partiu apressa­damente, argumentando que não podia demorar se qui­sesse que seu projeto tivesse chance de dar certo.

Os Cavaleiros renderam-se, portanto, um por um, aos Orks de Thunku, que os esperavam ao pé do templo onde tinham tentado se refugiar. Foram desarmados, maltratados, acorrentados, depois levados para os porões da cidade e jogados em jaulas úmidas.

— Está todo mundo bem? — perguntou o Coman­dante, depois que os Orks foram embora, através das barras da porta da cela, onde estava trancado com uma dezena dos seus homens.

Recebeu resposta positiva de todas as celas, exceto da que ficava próxima à dele.

— Valentim está morrendo — anunciou Qadehar triste­mente.

Dissimulado debaixo da armadura turquesa de um Cavaleiro, o Feiticeiro não tinha sido desmascarado, nem mesmo por Thunku, quando passou na sua frente. Conseguiu que os Orks o deixassem levar o mordomo gravemente ferido nos ombros, o que o ajudou a passar incógnito... Os padres de Yénibohor, homens magros, de cabeça raspada, vestidos de branco, bem que procu­raram pelo Feiticeiro da Guilda no meio dos prisionei­ros. Acharam que o tinham percebido no meio da bata­lha, logo ativando poderes que neutralizavam a magia das estrelas. Qadehar abandonou o manto de Feiticeiro numa fresta do terraço. Não se arrependeu! Decepcio­nados, os padres finalmente desistiram de encontrá-lo...

O Comandante fez a chamada das tropas: eram cento e vinte Cavaleiros sobreviventes, entre os quais uns qua­renta com ferimentos leves, dos duzentos com que con­tava a companhia antes da batalha...

— É a mais grave derrota que já sofreu a Confraria desde a sua fundação — disse apenas o Comandante a Ambor, que estava preso junto com ele.

— Perdemos uma batalha, não a guerra! — exclamou o fogoso capitão.

— Talvez — disse um outro, na dúvida. — Mas o pro­blema é que não estamos mais em condições de tocar essa guerra!

— Quais são as nossas chances, Comandante? — per­guntou uma voz, de outra cela.

— São precárias, não vou esconder de vocês — res­pondeu este. — Mas existem. Geraldo e Qadwan, os dois Mestres Feiticeiros estão livres, e lá fora. Não duvido um segundo de que já devem ter traçado um plano. Na minha opinião, tomaram o caminho de Ys, de onde, com certeza, trarão reforços.

Mesmo comportando muitas incertezas, as palavras do Comandante serenaram os Cavaleiros.

 

Guillemot emergiu do coma em que tinha mergulha­do depois de ter passado pelo espetáculo das trevas, a cabeça latejando e a garganta queimando. Estancou a sede bebendo vorazmente.

Sentiu-se melhor. Constatou, com surpresa e alívio, que as barreiras mágicas prejudicadas pela Treva tinham retomado seus lugares. A Armadura de Aegishjamur, reforçada por Odala, o Grafema protetor dos espaços fechados, luzia com sua reconfortante luz azul. As oito ramificações de Hagal, a Grande Mãe, crepitavam tran­qüilamente, com as chamas frias e vermelhas. Por fim, ainda sentia em baixo de si, profundamente encravado na pedra, Mannaz, o elo com os Poderes, o ovo estelar que o tinha definitivamente posto ao abrigo do inimigo...

E, no entanto, o Aprendiz imaginava que, depois dos ataques da Treva e levando em conta o estado de fraque­za em que se encontrava, suas proteções mágicas se teriam desmanchado. Pois era o Önd, o sopro vital, que carregava de energia os Grafemas na origem dos sortilégios! Um Feiticeiro forte fazia mágica forte; um Feiti­ceiro fraco, mágica fraca. Estranho: poder-se-ia dizer que os Grafemas viviam uma existência própria e que tinham regenerado os sortilégios sem apelar para ele! Até se poderia mesmo dizer que os Grafemas o prote­giam...

Guillemot não desperdiçou forças espantando-se ou procurando explicação: estava bem assim. Em seu esta­do, não poderia resistir a mais um ataque do implacável adversário sem ajuda dos Grafemas...

Quando a Treva voltou a entrar no aposento, ficou um tempo olhando com estupor as barreiras mágicas, visivelmente novas.

— Bem... muito bem, meu menino... Espero que tenha gasto muita energia... para restaurar os sortilégios...

Alguma coisa quase alegre no sussurro da Treva inquietou Guillemot muito mais que a cólera manifesta­da na visita anterior.

— Hoje me sinto no ataque... Uma vitória... chama outra... não é, meu menino?

— O que quer dizer? — perguntou Guillemot, com a voz fraca, que, aparentemente, deixou o adversário sa­tisfeito.

— Amo ver as flores turquesa morrerem... nos cam­pos de poeira...

Os propósitos da Treva estavam ainda mais difíceis de apreender que de hábito e o Aprendiz não insistiu.

— Você não devia... se dar tanto trabalho com as suas barreiras... — prosseguiu a Treva logo depois. — Logo, é você... quem as fará desaparecer... para se jogar em meus braços...

— Pode ficar esperando! — gritou Guillemot, com a voz alquebrada.

A Treva zombou dele e sentou-se, encostada a uma parede da cela — ou, pelo menos, foi essa a impressão que teve Guillemot; àquela distância, distinguia mal.

— Vamos conversar um pouco, está bem?... Temos tanto a nos dizer...

A voz cavernosa se fez acariciadora. Guillemot sentiu-se pouco à vontade.

— Diga, meu menino... Fale-me de seus pais... Como vão eles?

O coração de Guillemot bateu mais forte.

— Não tenho nada a dizer! Minha vida não lhe diz respeito!

— Ao contrário, meu menino, ao contrário... Diga-me... sua mãe continua bonita? ... A loura Alicia... de pele tão macia...

Guillemot abriu a boca de espanto. Como... como sabia? E o que significavam aquelas alusões?

— Cale-se! — gritou.

A voz da Treva ficou ainda mais doce.

— Tenho todo o direito, meu menino... Principalmen­te de falar da sua mãe com você...

— Não! Da minha mãe, não!

Na cabeça de Guillemot, os pensamentos se acoto­velavam, entrechocavam. Escapavam-lhe. Tinha a im­pressão de que uma mão com unhas afiadas, introduzindo-se em seu peito, divertia-se em arranhar seu cora­ção.

— Vamos falar do seu pai, então...

— Do meu pai? Por que do meu pai?

Guillemot sentia-se a ponto de derreter em lágrimas.

— Porque... Você me pergunta por que... Mas, enfim, meu menino... Porque o seu pai, que você nunca conhe­ceu... o seu pai, que esconderam de você desde que nas­ceu... aquele que amou a sua mãe, Alicia... o seu pai, Guillemot... Sou eu...

— Nãooo! Nãooo!

O Aprendiz de Feiticeiro segurou a cabeça com as mãos e gritou. Estava ficando louco. Seu pai, aquele monstro, aquele demônio! Era impossível! Não queria acreditar. Não devia acreditar!

Mas... e se fosse? O que esperava, nesse caso, para fazer cessar aquele sofrimento todo? O que esperava para eliminar as barreiras e precipitar-se em sua direção, abraçá-lo?

A Armadura de Aegishjamur pôs-se a brilhar com mais intensidade e Hagal ardeu com mais vigor... Como se para pôr Guillemot — que tinha se levantado e vacila­va — em guarda.

— Vem, meu menino... vem para perto do seu pai... Guillemot, meu filho...

O Aprendiz deu um passo, depois outro, em sua dire­ção, como um sonâmbulo. De repente, tudo lhe aparecia com clareza: seu pai, que desde sempre buscou, estava ali, do outro lado das barreiras que tinha, estupidamente, erigido! Seu pai o esperava, ia tomá-lo nos braços. Estava tudo terminado...

Foi então que um Grafema materializou-se no espí­rito de Guillemot. Um Grafema em forma de balança, com uma aura de claridade quente. Teiwaz, o signo de Irmin, o equilíbrio, a lei e a ordem, o invencível princí­pio de justiça e coesão do mundo!

Mal se instalou no espírito de Guillemot, o Grafema combateu os sutis elementos de magia que a Treva tinha inserido de maneira invisível nas suas palavras. Uma magia terrivelmente doce, que impedia o menino, enfra­quecido, de raciocinar normalmente e o privava de sua vontade, transformando-o em estúpido autômato.

Teiwaz trabalhou eficazmente no sentido de restabe­lecer a serenidade e a harmonia em seus pensamentos.

A Treva logo viu Guillemot hesitar, depois recuar.

— O que está esperando... meu filho?

Os sussurros tornaram-se inquietos. Teiwaz varria as partículas mágicas que acompanhavam as palavras da Treva antes de atingirem o cérebro do Aprendiz. Guillemot recuperava pouco a pouco a consciência.

Se a Treva era seu pai, por que tinha procurado fazer-lhe mal, desencadeando contra ele sua magia, no encontro anterior? Um pai não age assim com seu filho! Seu filho...

Uma evidência logo o assaltou. Alicia não era sua mãe de verdade! Ficou sabendo disso depois das revela­ções do Senhor Sha a respeito do assunto e, sobretudo, depois da confissão que ela mesma lhe tinha feito a pro­pósito do bebê roubado na maternidade! Ele sabia, e estava resignado com a evidência. Mesmo que a idéia daquela mulher — que amava mais que tudo no mundo — não ser sua mãe o fizesse sufocar de dor...

Ele sabia! Mas a Treva não.

A Treva na certa tinha tomado informações, decorado o nome de Alicia e sua aparência. A Treva ficou sabendo que ele não conhecia o pai. Tinha tentado enganá-lo! E quase conseguiu... Como pôde cair numa armadilha tão grosseira? Como foi tentado a jogar-se nos braços daque­le monstro?

Guillemot, ignorando tudo acerca do trabalho reali­zado por Teiwaz contra a magia insidiosa de seu tortura-dor, virou o rosto vermelho de cólera em direção ao lugar onde adivinhava que a Treva estava sentada.

— Não vou não. O senhor não é meu pai!

A Treva compreendeu que Guillemot lhe tinha esca­pado.

Não sabia por que sortilégio, mas o tinha perdido, quando estava quase chegando lá!

Berrou de raiva e lançou as bolas negras contra a Armadura, que as bloqueou.

— Não perde nada por esperar... Quando eu voltar... você vai me suplicar para eu matar você... para sentir menos dor...

As trevas animaram-se e tomaram a direção da porta, que se abriu e fechou com um estalo. Guillemot permitiu-se um sorriso satisfeito: tinha conseguido enfrentar a Treva mais um dia!

 

— Como é que vamos fazer?

— Tenho uma ideiazinha.

Foi essa a resposta que Corália deu a Romaric, inquieto, com razão, em relação a como poderiam loca­lizar um punhado de jangadas no meio do Mar das Queimaduras...

Tinham deixado as Colinas Cinzentas ao alvorecer. Voltando as costas para Yénibohor, naquele momento, tornavam a subir o litoral, na direção nordeste.

— E qual é essa ideiazinha?

— Você vai ver.

Romaric suspirou. Não gostava quando Corália brin­cava de misteriosa! O que estava pensando? Que ia suplicar para saber o que ela tramava? Fechou-se num silêncio carrancudo. Mas, logo, não agüentou mais.

— Ande, Corália, diga! Somos ou não uma equipe?

— Ah! Até que enfim uma boa pergunta!

A jovem parou e o observou, inclinando ligeiramen­te a cabeça. Era adorável, com os grandes olhos azuis e longos cabelos negros, que um ventinho do mar agitava. Romaric ficou preocupado.

— O que quer dizer?

— Eu? Nada. E você? Quer me dizer alguma coisa?

Ela deu um sorriso zombeteiro. O menino sentiu-se derreter. Sabia muito bem que não era boa idéia partir sozinho com aquela menina que... aquela menina que... aquela menina na qual pensava todas as noites antes de dormir! Que conseguia, com um só olhar, fazer parar o seu coração dentro do peito, para, logo em seguida, fazê-lo galopar. Que o exasperava às vezes, mas o enter­necia freqüentemente. Que era responsável pelos sorri­sos zombeteiros e maliciosos dos amigos, mas que lhe fazia uma falta horrível quando estava longe... Defini­tivamente, não a teria deixado com um outro por nada deste mundo! E pouco importava, pensando bem, que não soubessem para onde estavam indo: ele estava com ela, e isto era o suficiente!

— Sim — gaguejou afinal Romaric —, quero lhe dizer... que... bem... que não importa se eu não sei para onde vamos, se você sabe. Porque estamos juntos e... está bem assim.

Corália fez uma cara encantadora. Fez cara de quem refletiu sobre o que ele acabava de dizer e decidiu que aquilo valia como elogio. E resmungando uma coisa qualquer a propósito da estupidez dos meninos, pôs-se de novo a caminho.

Qadwan parou um momento para respirar. Depois que Geraldo e Yorwan o deixaram, para tentar trazer um novo exército contra Yénibohor, o velho Feiticeiro arrastou-se em direção ao Bosque dos Enforcados, onde tinham marcado encontro. Tinha ficado encarregado de ali se instalar e tranqüilizar os reforços que fossem che­gando...

Soltou um suspiro. A iniciativa dos amigos lhe pare­cia tão incerta!

Sentiu bater forte a saudade do ginásio em Gifdu. Após breve pausa, retomou a marcha. O Bosque dos Enforcados ainda estava longe para as suas pernas can­sadas.

Corália e Romaric andaram num bom ritmo. À tarde, chegaram à extremidade de uma espécie de cabo, cerca­do de falésias abruptas. Não eram muito altas, mas mer­gulhavam a pico no mar e pareciam inacessíveis. Ro­maric debruçou-se na borda. Percebeu, em baixo, bro­tando da rocha e tingindo o mar, um filete de água pra­teado.

— Pronto — anunciou. — Não podemos ir adiante. Fazemos meia volta?

— Não, chegamos. Agora é só esperar.

— Esperar? Mas você está louca! E os Gommons? Os ferozes Gommons assombravam todo o litoral do

Mundo Incerto.

— Aqui não tem Gommon — disse calmamente Corália, procurando com os olhos um local onde se ins­talar.

— Como pode ter tanta certeza?

— Não tem praia no canto. Os Gommons gostam de praia...

— Bem, de acordo — reconheceu Romaric, a contra­gosto. — Mas por que esperar, e a quem? O Povo do Mar? Você tem encontro marcado?

— As tribos do Povo do Mar vivem no mar, que é sal­gado, mas bebem água doce. E, ao longo da costa, só existem três fontes onde podem se abastecer sem temer o ataque dos Gommons. Sei disso: minha amiga Matsi me mostrou as fontes, numa espécie de mapa! Se espe­rarmos aqui, fatalmente encontraremos gente do Povo do Mar...

Romaric ficou impressionado.

— Quanto tempo, na sua opinião, será preciso esperar? Corália pensou.

— São trinta tribos. Elas podem se manter cerca de três semanas com a água doce que guardam. Nunca vão às fontes juntas. Imagine o engarrafamento de vinte jan­gadas por tribo! Se são três fontes, então... Digamos que não esperaremos muito! Será suficiente pedir aos pri­meiros que chegarem que nos levem a bordo e nos con­duzam à Sexta Tribo. A de Wal e Matsi.

O menino nada encontrou como resposta. Por que Corália sempre se revelava uma menina excepcional quando estavam os dois sozinhos? Ele gostaria tanto de poder saborear sua firmeza diante dos outros!

Desembocaram junto à queda d’água, entre dois rochedos, um recanto grande o suficiente para abrigá-los do vento e que, além disso, oferecia uma vista de­simpedida do mar. Ali instalaram-se.

— Posso encostar em você? — Vai ficar mais confortá­vel para os dois...

Sem esperar resposta, Corália aninhou-se no peito de Romaric. Este ficou um instante imóvel, depois, afi­nal, abraçou-a. Ela soltou um suspiro, de conforto.

— Está bem? — ele perguntou, soprando os cabelos escuros que lhe faziam cócegas no rosto.

Recebeu como resposta um “sim” que o fez estreme­cer da cabeça aos pés. Retesando-se, nos mesmos cabe­los, que voltavam a acariciar seu rosto, deu um beijo fur­tivo — que ela jamais sentiria. Depois, apertou-a nos bra­ços com mais força.

A noite trouxe frescor. Desenrolando os sacos de dormir apanhados junto com as provisões, na casa dos pais de Ágata, neles se enfiaram, vestidos.

— Acha que o Povo do Mar faria alguma coisa por Guillemot?

— Não sei — admitiu Corália. — Mas eles detestam os padres de Yénibohor que, no passado, levavam suas crianças. Sem dúvida, ficarão contentes em nos ajudar.

— Mas que vida eles têm! — continuou Romaric, sentindo-se excepcionalmente falastrão. — Passar os dias em jangadas, evitando as medusas Queimantes no mar e os Gommons perto da costa!

— Sabe, antigamente não existiam Gommons no Mundo Incerto — respondeu Corália, mordendo os lábios. — Fomos nós que os mandamos para cá! Quando a Confraria os expulsou de Ys, no fim da Idade Média... Antes, o Povo do Mar vivia nos vilarejos da costa, como os pescadores que nos receberam na Ilha do Meio. Depois, não tiveram outra alternativa: era viver no mar ou morrer na terra...

— Que terrível! — Romaric compreendeu, e ficou sério de repente. — Tenho certeza de que ninguém em Ys sabe que nós somos responsáveis por essa desgraça!

— No início, reagi como você. Mas Wal, o Guardião dos Objetos, e Matsi, sua filha, me fizeram ver as coisas de maneira diferente... Na verdade, não é que o destino tenha se voltado contra eles. Simplesmente mostrou-se claramente, com dois caminhos possíveis! Ao escolher o mais difícil, aceitaram ver o mundo deles com novos olhos. As Queimantes, que reinam no Mar das Queima­duras, suas inimigas quando eram pescadores, agora tornaram-se protetoras. Os Gommons foram obrigados a manterem-se afastados das costas, preservaram-nos do perigo dos outros homens! Hoje, eles não têm necessi­dade de trabalhar, não dependem de nenhum senhor, vão e vêm à vontade! Como vê, souberam transformar o que, no início, era uma limitação, em liberdade...

O discurso inflamado de Corália deixou Romaric pensativo. Suas próprias referências provinham do País de Ys e estava estupefato de ver a amiga compreender tão bem gente tão diferente...

— Talvez devêssemos montar turnos de guarda — sugeriu Romaric, quando a menina ameaçou aninhar-se ainda mais de encontro a ele. — Se seus amigos vierem esta noite, estamos arriscados a não vê-los!

— Tem razão — aprovou ela. — Então, primeiro você...

Romaric mais uma vez a abraçou e sorriu. A vigília na véspera, às muralhas de Bromotul tinha sido um bocado menos agradável que aqui!

 

Gontrand e Ágata deixaram as Colinas Cinzentas ao mesmo tempo que os companheiros. Tomaram imedia­tamente a direção sudoeste, para grande espanto de Ágata, pois lhe tinham dito que o gigante Toffan habita­va as estepes do Norte Incerto. Gontrand explicou que, depois de muito refletir sobre a questão, tinha chegado às duas conclusões seguintes: o Toffan que conhecia gostava demais de perigo e batalhas para ficar compor­tado e entediado numa estepe, e o Norte Incerto era, de todo modo, longe demais para se alcançar em apenas seis dias! Portanto, achou mais razoável e inteligente pegar a estrada que liga Virdu a Ferghânâ e informar-se com os mercadores que encontrasse sobre mercenários parecidos com Toffan...

Ágata nada encontrou para dizer a respeito do plano de Gontrand. Assim, caminharam até atingir, à noite, a Rota dos Mercadores.

Na verdade, era simplesmente uma estrada de terra larga, pavimentada em alguns trechos — lembrança dos tempos mais prósperos em que tinha sido construída. Profundas marcas de rodas indicavam que continuava, apesar de tudo, muito freqüentada, e com razão: ligava Virdu, a cidade dos Homenzinhos que extraíam de suas minas as pedras preciosas que serviam de moeda no Mundo Incerto, e Ferghânâ, a principal cidade de co­mércio. Antigamente, a rota se prolongava, por um lado, até Djaghataël — trecho hoje abandonado — e por outro, até Yâdigâr, atual refúgio dos piores bandidos daquela terra.

Gontrand e Ágata localizaram um pequeno bosque de árvores mirradas, próximo da estrada, e decidiram ali se acomodar, à espera da passagem de mercadores que os pudessem pôr na pista de Toffan. Se, por um acaso, se tratasse de ladrões, bastaria aos jovens permanecer es­condidos atrás das árvores...

— Esta marcha me esgotou!

— Não só a você. Pensei que não chegaríamos nunca...

— É engraçada a vida — continuou Ágata, desdobran­do com cuidado o saco de dormir no chão. — Quem poderia imaginar há uma semana que eu ia dormir à beira de uma estrada infestada de bandidos, à espera de um belo guerreiro bárbaro, ao lado de um menino que mal conheço!

— Está exagerando — respondeu Gontrand. — Já esta­mos começando a nos conhecer, já tem tempo! Lembre: nos encontramos pela primeira vez no palácio de Thunku...

— Eu não estava na minha melhor forma! — Ágata o interrompeu, divertida, entrando no jogo. — Toda suja, coberta de correntes...

— Pode ser, mas, pelo menos, naquela ocasião, al­guém ficou feliz de nos ver surgir onde não éramos es­perados!

Eles caíram na gargalhada.

— A segunda vez — continuou Gontrand — foi em Dashtikazar, no Samain. — Eu estava dançando com uma menina, que tive que deixar de lado para sair correndo atrás de você pelo mato.

— Está arrependido?

— Digamos que... nos divertimos um bocado na terra dos Korrigãs!

— Chama aquilo de diversão? Repare, pense sobre aquilo... Há momentos bastante cômicos, é verdade. Quando Bertram tentou fazer magia, por exemplo: a cara dele, quando se deu conta de que não funcionava!

— Sim, e quando, segura de si, você deu a resposta errada. Precisava ver a sua cara quando viu que tinha dito bobagem!

— Ai, não tem graça!

Apesar de tudo, riram mais uma vez, às gargalhadas. Depois, a evocação das aventuras vividas em compa­nhia de Guillemot os levou a pensar no amigo, prisionei­ro em Yénibohor...

— Espero que Guillemot esteja bem — Gontrand sus­pirou. — Se foi a Treva quem o levou, deve estar viven­do momentos terríveis! Só de pensar, tenho vontade de massacrar a terra inteira!

— Tem razão. Sinto o mesmo. É tão injusto! Não tem ninguém melhor que Guillemot. Mais generoso. Melhor dotado. Mais...

— Será que você não está apaixonada? — zombou Gontrand.

— Eu? Não! Enfim, sim, um pouco — ela acabou admitindo. — Mas que menina não ficaria apaixonada por Guillemot? Ao mesmo tempo tão frágil e tão forte, tão desajeitado e tão talentoso...

— Já chega! — interrompeu-a Gontrand, rindo. — As orelhas do pobre devem estar quentes!

— Diga-me — disse Ágata, de súbito —, será que você não está com ciúme, por acaso?

— Eu? Claro que não!

— É, estou vendo — concluiu Ágata, com um sorriso de viés, enfiando-se no saco de dormir. — Bem, até ama­nhã, Gontrand. Tenha bons sonhos!

— Sim — grunhiu ele, à guisa de resposta. — E você, não durma demais!

Deitando-se, por sua vez, não conciliou logo o sono, apesar da fadiga do dia. As meninas eram realmente incríveis! Você se mostrava gentil, cúmplice, atencioso e paf! — elas imaginavam que você estava apaixonado! Além disso, Ágata sequer era bonita. Muito alta, muito magra. A boca, grande demais; os olhos, negros demais; os cabelos, escuros demais. Está certo, era inteligente. E tinha caráter. Também irradiava alguma coisa de mag­nética e tinha — era preciso reconhecer — classe. Mas só isso! Gontrand esforçou-se para expulsá-la do pensa­mento. Difícil: estava dormindo a seu lado, ele ouvia a respiração regular dela a alguns centímetros da orelha. Um pássaro noturno soltou um grito. O vento fez ruído nas folhas de uma árvore bem em cima. O menino sor­riu: as notas de uma melodia lhe vieram ao espírito...

Foram despertados na manhã seguinte pelo barulho de um comboio que passava na estrada. Pularam dos sacos de dormir e saíram correndo do bosque, precipitando-se sobre a carruagem da frente. Um mercenário híbrido, mistura de Ork e humano, rosnando com a sur­presa, levantou a lança. Logo a baixou, ao identificar crianças, e fez ar de desprezo. O condutor, homem de aparência jovial, parou o veículo, puxando as rédeas e acalmando com a voz os dois enormes bois amarelos ali atrelados.

Gontrand dirigiu-se a ele em ska, a língua do Mundo Incerto. Perguntou se não conhecia um guerreiro que respondia pelo nome de Toffan e antigamente trabalha­va como mercenário para os mercadores de Ferghânâ.

— Um gigante originário das estepes do Norte? — res­pondeu o homem, cocando a cabeça. — Com dragões tatuados na careca? Conheço um, que há alguns meses criou uma companhia de proteção nesta mesma estrada. Está à frente de uns vinte homens, guerreiros das este­pes, como ele. Sua companhia é a melhor do mercado, no momento. Se dispusesse de recursos, a teria contrata­do no lugar destes híbridos, que só pensam em se embebedar a cada parada!

— E onde posso encontrar essa companhia? — inqui­riu Gontrand, alegre, ao ver sua intuição se revelar exata.

— Na estrada, evidentemente! Onde, exatamente, não sei. Mas se não estiver com muita pressa, aconselho esperar: fatalmente passará por aqui mais dia menos dia...

Gontrand e Ágata agradeceram calorosamente ao homem suas informações. Arrancaram dele a promes­sa de, se encontrasse Toffan, dizer que um menino com o nome de Gontrand o procurava e esperava num bos­que próximo à estrada. Depois voltaram ao abrigo das árvores.

— O mercador tem razão — disse Ágata. — Não se sabe onde se encontra o seu amigo. Se andarmos na direção errada, corremos o risco de perdê-lo... A melhor coisa a fazer é não nos movermos e sermos pacientes!

Gontrand reconheceu a justeza do raciocínio. Podiam esperar: dispunham de cinco dias menos um para o tra­jeto de volta. O mais duro ia ser ocupar aquela espera. Se tivesse trazido a citara!

 

No primeiro dia, Âmbar e Tomás tomaram direta­mente o rumo do sul. Tinham alcançado a Rota dos Mer­cadores, mas resolveram não ir por ela, pois passava perto demais de Yénibohor para seu gosto. Fizeram um atalho oblíquo na direção sudeste, com o fim de evitar a cidade maldita, ao mesmo tempo conservando o rumo do Deserto Voraz. A primeira noite sem os outros, pas­saram em algum lugar no meio dos campos, num antigo abrigo de pastores.

O segundo dia, tiveram que atravessar o Rio Molhado e, mais adiante, o Rio Triste, até chegar ao capim alto do interminável prado da Esfinge de Duas Cabeças. As duas travessias lhes custaram muito em termos de pe­dras preciosas. Primeiramente, pagando o barqueiro, que fizeram desviar-se de seu posto na margem e, de­pois, pagando um homem que pescava num bote, à beira do rio. Âmbar e Tomás não saberiam dizer onde dormi­ram na segunda noite: enrolaram-se, exaustos, ao pé de um grande arbusto com frutos cor de malva.

No terceiro dia, distinguiram na distância a massa amarela e brilhante do deserto...

— Ufa! Nada mal termos chegado... — admitiu Tomás, ajeitando a mochila com um rebolado.

— Eu também estou cansada — respondeu Âmbar, olhando a bússola, instrumento que lhes tinha permitido percorrer aquele itinerário selvagem. — Estamos avan­çando numa velocidade louca! Mas, afinal, não temos escolha: seis dias, é muito pouco...

Nem um nem outro era de falar muito naturalmente. Tinham trocado poucas palavras desde a partida. Con­tentavam-se com olhares e, com o tempo, sorrisos.

Bertram partiu para um destino misterioso. Âmbar tinha ficado apreensiva ao se ver sozinha com Tomás, um menino, a seus olhos, bronco e rude. Mas, rapida­mente, graças à simplicidade com que foram resolvendo juntos os problemas da viagem, instaurou-se uma cum­plicidade. A jovem percebeu que Tomás tinha caráter íntegro e dócil, e sua rudeza e falta de jeito dissimula­vam, na verdade, uma bela franqueza e uma grande generosidade. Entendeu também que ele não sabia ficar sozinho: Tomás tinha necessidade de alguém, alguém para acompanhá-lo, alguém a quem dar sua dedicação e amizade pródiga. Ou Ágata, ou Guillemot... Hoje, ela. Âmbar sentia-se investida de uma nova responsabilida­de...

— Que sorte não termos topado com a Esfinge de Duas Cabeças! — exclamou Tomás, sacudindo a cabelei­ra ruiva.

Aproximando-se do objetivo, sentia necessidade de falar. Era seu modo de estar contente.

— Ora! Ela morreu há muito tempo — disse Âmbar. — Os camponeses, cheios de vê-la devorar seus filhos en­quanto pastoreavam os rebanhos no prado, mataram-na! Foi Guillemot quem me contou essa história...

— Também fazia adivinhações essa Esfinge? Ou Es­finges, talvez, já que tinha duas cabeças!

— Não sei. Seria preciso perguntar às pessoas que comeu.

Âmbar calou-se de repente. Sem se dar conta, tinha pronunciado o nome de Guillemot. Era o suficiente para fazê-la sentir-se mal. Continuaram a caminhar em silêncio.

— Está sentindo muita falta dele? — perguntou Tomás, que viu o rosto da nova amiga se fechar.

— Quem?

— Bem... Guillemot, ora!

— Sinto muita falta — confiou-lhe Âmbar, após um momento de hesitação. — A um ponto incrível, que é difícil explicar. Sabe, quando ele não está comigo, tenho a impressão de que nada mais me interessa, me importa. É horrível... Será que ele sente isso também?

— Ah, com certeza.

— Tem certeza? Como pode saber? Ele fez alguma confidencia a você?

— Ele não me disse nada — Tomás tentou justificar-se, desajeitadamente — mas há coisas que as meninas vêem e os meninos não vêem. E outras que os meninos vêem e as meninas não. Eu sou menino. E posso dizer que vi bem como Guillemot olhava para você...

— É muita gentileza sua me dizer isso, Tomás — mur­murou Âmbar, emocionada, antes de mergulhar num longo sonho.

Um pouco mais tarde, chegaram à fronteira do Deserto Voraz. O prado parava de repente, como a terra pára diante do mar. A perder de vista havia areia, areia vibrante, que parecia esperar...

— Brrr! — fez Âmbar, estremecendo. — E pensar que este deserto devora você, se tiver a má sorte de nele botar o pé!

— O que vamos fazer?

— Guillemot me explicou que os Homens de Areia se comunicam entre si com fumaça.

— Como os índios do Mundo Certo?

— É.

— E você conhece os sinais deles, dos Homens de Areia?

— Não. Mas acho que um simples fogo, se o percebe­rem, será o suficiente para intrigá-los e atraí-los para cá.

Puseram-se, em vão, a buscar galhos, e juntaram er­vas secas num monte.

— É até mesmo melhor que madeira — declarou Âmbar, com satisfação, acendendo um fósforo debaixo do primeiro monte. — Mato solta mais fumaça!

Com efeito, este logo se consumiu, soltando uma fumaça espessa, que os obrigou a recuar.

— Espero que sejam mesmo os Homens de Areia que venham — disse Tomás — e não Orks, nem bandidos!

— Com suas raquetes de pedra, os Homens de Areia são os únicos capazes de atravessar o Deserto Voraz — confortou-o Âmbar. — E, depois, se aparecerem Orks, você vai fazê-los passar um mau pedaço, não é mesmo?

A alusão que Âmbar fez a seu ato de bravura na flo­resta de Troïl fez brotar um sorriso nos lábios do menino.

— Eu não sei, mas é certo que defenderei nossas vidas da melhor maneira que puder!

— Não duvido um segundo, Tomás... Calaram-se, e aplicaram-se em manter acesa a fo­gueira de capim seco.

— Eu imploro — Âmbar dirigiu-se em pensamento ao Deserto Voraz — venham! Guillemot está precisando de vocês! E nosso tempo é tão curto...

 

Curiosamente, parecia a Guillemot que, ao longo das horas, talvez até mesmo dos dias — a noção do tempo já lhe tinha escapado completamente! — estava menos can­sado que no início do encarceramento. E, no entanto, nada tinha comido, e a jarra d’água estava quase vazia.

Na verdade, não bebia já há muito tempo. Não sentia sede. Uma sensação de bem-estar o tinha invadido des­de que Kénaz, o Grafema do fogo que reaquece, Ingwaz, a Rica, que ajudava a concentrar as energias, e Laukaz, o fluido vital, tinham se acendido em seu interior. O me­nino agora tinha certeza: os Grafemas estavam tomando conta dele, e comportavam-se como presenças autôno­mas e vigilantes.

Mestre Qadehar tinha-lhe dito um dia, a propósito do Grande Mago Charfalaq, que acontecia de o corpo não mais alimentar a magia, mas a magia alimentar o corpo. Era o que estava acontecendo...

A Treva também hesitou, surpresa, quando penetrou pela quarta vez na cela escura.

— É impressionante, muito impressionante... Você devia estar se torcendo de fome e sede... rastejando pelo chão... e me suplicando que pusesse fim ao seu tormento... Ao invés disso... encontro você desperto... calmo e confiante...

Guillemot não respondeu. Estava abrigado atrás da Armadura de Aegishjamur e de Odala, reconfortado pelo crepitar de Hagal e a presença em baixo dele, na pedra, do ovo cósmico de Mannaz. Teiwaz bloqueava o acesso ao seu espírito de qualquer magia exterior e insidiosa e Ingwaz, Kénaz e Laukaz o mantinham vivo. A Treva não podia esperar mais. E sabia disso!

— Na verdade, meu menino... você me exaspera e me alegra ao mesmo tempo... Só tenho um desejo... destruir você... No entanto, não posso deixar de admirá-lo... Você me obriga a ir buscar o que existe de mais forte em mim... e gosto de você por isso... sim, gosto de você...

A Treva animou-se do outro lado da parede de energia.

— Procurei nos meus manuais... um meio de abatê-lo... E encontrei a solução... Uma solução velha como o mundo... velha como este mundo...

A atenção de Guillemot foi atraída por um objeto estranho, próximo da Armadura de Aegishjamur. Ele fez força para ver melhor. Na verdade, eram três objetos que a Treva tinha colocado no chão: uma águia de ma­deira, com as asas por sobre a cabeça e o bico ameaça­dor, uma tartaruga de argila, imobilizada numa posição de sofrimento e um disco de pedra, pousado sobre uma base, coberto de signos impossíveis de se distinguir. O Aprendiz espantou-se. O que significava tudo aquilo?

— Vou deixar você... com uma nova amiga... Eu bem que ficaria, mas... temo que ela me queira também...

Com um riso de chacota, a Treva aproximou-se da porta. No momento de deixar a cela, falou algumas pala­vras, ásperas e duras, numa sonoridade que não era humana. Instintivamente, Guillemot voltou-se para os objetos.

O primeiro a se animar foi o disco. Era do tamanho de um prato pequeno e tinha a espessura de uma bolacha grande. E tremia. Guillemot piscou o olho. Mais uma vez, tinha se enganado. Não era o disco que se mexia, mas os signos nele gravados! Para seu grande espanto, os signos caíram pelo chão e avançaram em direção à Armadura em fileira, como formigas. Batendo de en­contro à parede mágica, os signos-formigas aglutinaram-se e puseram-se a roê-la... Guillemot não acreditava no que via. Um buraco rapidamente se formou na base da Armadura, e a águia de madeira criou vida.

Tinha quinze centímetros de altura; ao estender as asas, soltou seu primeiro grito, agudo, como se tivesse ficado imobilizada durante uma eternidade. Aproximou-se, andando, do buraco cavado na Armadura pelos sig­nos-formigas e atravessou o obstáculo. Como tinha feito quando a Treva forçou a primeira barreira, o Grafema de Hagal resplandeceu, com uma aura avermelhada, e pôs Guillemot ao abrigo de uma segunda parede de energia. A águia de madeira então alçou vôo e pousou sobre ela. Soltou outro grito e começou a dar golpes possantes com o bico sobre o sortilégio. Guillemot estremeceu e acocorou-se, com os braços em volta dos joelhos. Viu a proteção mágica fender-se e derreter como uma parede de cristal, numa confusão de vidros partidos. Foi então que a tartaruga despertou...

Ela tinha o tamanho de uma pequena tartaruga ter­restre e a mesma lentidão de movimentos. Mexeu a cabeça, movendo as pálpebras. Depois, abriu a boca, e aí — Guillemot achou que ia ficar louco — começou a gemer!

— Ahhhh... Estou mal, muito mal! Obrigada por me despertar... Para dividir esta dor!

A tartaruga terrestre pousou o olhar de uma velhice infinita sobre Guillemot, que no mesmo instante soube que nada, mas absolutamente nada, poderia fazer contra aquela criatura. Um desespero profundo encheu seu coração.

O monstruoso animal enfiou-se pelo buraco debaixo da Armadura de Aegishjamur e aproximou-se dele len­tamente. Imediatamente, Mannaz o envolveu no ovo protetor e o colocou sob o olhar dos Poderes. A tartaru­ga parou. Guillemot pediu com todas as forças aos cinco elementos que ela não roesse nem atacasse o envoltório do Grafema.

— Estou mal, Guillemot, tão mal... E você é tão bom! Ter me tirado do meu sono... para carregar um pouco do meu fardo!

O menino se sentiu de repente invadido por um medo pânico. Olhou a tartaruga. E entendeu. Entendeu que o animal era tão velho quanto este mundo porque era este mundo! Ou, pelo menos, sua alma. E que leva­va em si todas as atrocidades, todas as dores. E o que queria fazer era transmitir a ele uma parte de seus sofri­mentos. Sua razão jamais poderia suportar. Cairia ins­tantaneamente na loucura... Ele soltou um berro.

— Você tem razão de sentir medo... Mas o medo não é nada, comparado a certas coisas. Você vai ter tempo para se dar conta... muito tempo!

A tartaruga terrestre não tentou atravessar o ovo estelar. Contentou-se com fechar os olhos. Logo, Guille­mot sentiu que alguma coisa tentava entrar em sua cabe­ça. Teiwaz tentou se opor à invasão, mas bateu precipi­tadamente em retirada: não estava a seu alcance.

Dois outros Grafemas surgiram, então, em seu so­corro, das profundezas de seu ser.

O primeiro era Ansuz, Ase e Úmido, que liberta do medo da morte e abre os últimos recursos interiores. O segundo era Ehwo, Cavalo e Gêmeos, veículo espiritual.

Ansuz começou por espantar o medo do ventre e do coração do menino. Depois, sob o domínio doce, porém firme, do Grafema, Guillemot entrou no estado de êxta­se que os Feiticeiros chamavam de Odhr, sem que nin­guém o tenha, na verdade, até ali, conhecido.

Afinal, como a tartaruga insistia, raivosamente, e para que o Odhr em que Guillemot estava mergulhado não sofresse mais seus ataques, Ehwo passou a cuidar, delicadamente, do espírito do menino, levando-o para regiões da alma às quais ninguém, nem mesmo os Poderes, têm acesso.

A tartaruga gemeu mais alto. Olhou Guillemot com uma pena imensa. Este tinha, naturalmente, cruzado as pernas e seus grandes olhos abertos permaneciam fixos no teto.

— Ele partiu... Você partiu, meu menino! Embora esteja aí... mesmo parecendo estar aí!

O animal fez meia volta no chão, em seu andar lento, seguido da águia de madeira e dos signos-formigas, que voltaram ao disco de pedra, onde se reagruparam, em espiral.

No lugar onde a Treva os tinha depositado, outra vez ficaram imóveis. A águia, com a cabeça encoberta sob uma das asas; a tartaruga, de volta dentro da carapaça.

No ovo de Mannaz, atrás das proteções destripadas, quebradas, de Aegishjamur e Hagal, encontrava-se Guillemot, tão imóvel quanto os três objetos.

 

Toffan estava nas alturas. Gontrand, decididamente, tocava divinamente bem! E as árias alegres que tirava da citara de um de seus guerreiros transportavam o gigante até o País de Ys, que ele não conhecia, mas do qual adi­vinhava muitas coisas, graças às notas que ouvia. Quan­to aos homens cobertos de cicatrizes e tatuagens que acompanhavam Gontrand, batendo com as manoplas — sorriam de tal maneira que o ambiente era, na verdade, de festa!

O reencontro do jovem músico e seu amigo Toffan aconteceu na Rota dos Mercadores, na manhã do tercei­ro dia.

Para passar o tempo, Gontrand e Ágata tinham, até então, conversado e jogado xadrez num tabuleiro de terra, com pedras e galhos no lugar das peças. Ao mesmo tempo, porém, ficaram atentos às caravanas de mercado­res que passavam de vez em quando pela estrada.

Como tinham previsto, Gontrand acabou percebendo, na frente de uma rica carruagem que avançava preguiço­samente, a silhueta familiar do guerreiro das estepes. Dando um grito e gesticulando alegremente, lançou-se ao seu encontro. Para espanto de Toffan, que mal acreditava nos seus olhos, e desapontamento de Ágata, que começa­va a apreciar muito seu tête-à-tête com Gontrand.

O gigante abraçou Gontrand, rindo, apertando-o até sufocar. Os vinte guerreiros do Norte, que constituíam a guarda do comboio agruparam-se em torno do chefe, para participar de sua alegria, dando em Gontrand umas taponas de amizade.

Ágata aproximou-se, timidamente, impressionada com aqueles guerreiros com aspecto predador, vestidos de couro e metal, que tinham por todo o corpo tatuagens selvagens e, presas às costas, espadas gigantescas. Toffan, sobretudo, se impunha, com sua altura de gigante, os olhos cinza, o rosto marcado de cicatrizes, o crânio tatuado de dragões e a voz grave.

A presença da jovem bem valeu a Gontrand alguns comentários divertidos da parte de Toffan, mas Ágata, retomando a firmeza e a mordacidade, foi rapidamente aceita, em meio às risadas e exclamações de alegria.

— Vou ajudar você — disse Toffan, depois que Gon­trand explicou as razões de sua presença no Mundo Incerto, na Rota dos Mercadores. — Meus companheiros também, sem dúvida, mas preciso conversar com eles. Eles decidem: são homens livres, que se puseram livre­mente a meu serviço, para constituir uma companhia de proteção. Não são meus servidores! Antes, porém, temos que conduzir estes mercadores — que nos pagaram por isto — até seu destino. Esperem por mim aqui, neste pequeno bosque: voltarei quando terminarmos...

Toffan cumpriu a palavra. Apresentou-se na noite seguinte diante de Gontrand, e todos os seus guerreiros o acompanhavam.

Gontrand e Ágata foram, então, os primeiros, na metade do quinto dia, a alcançar as Colinas Cinzentas, onde tinham marcado encontro.

— Ah! Músico — falou Toffan, ao final de uma balada cantada por Gontrand — você estava me fazendo falta! Nunca mais encontrei neste mundo alguém tão talentoso!

— Está vendo, Gontrand — ironizou Ágata — é uma carreira internacional que se abre para você!

— Pode ironizar, pode ironizar! — respondeu o meni­no. — Espere um pouco e verá. — Meus amigos — ele anunciou, dirigindo-se, em ska, aos guerreiros. — Agora, é a doce Ágata quem vai cantar uma canção para vocês!

— Está louco? — insurgiu-se a menina, em voz baixa, arregalando os olhos para ele. — Nunca na vida eu...

— Você tem que soltar a voz — interrompeu-a Gon­trand. — O povo das estepes não gosta de ficar esperan­do. E depois, um conselho: ele são melômanos. Se can­tar mal, está arriscada a passar um mau pedaço...

Ágata o observou atentamente, mas não conseguiu descobrir se estava ou não brincando. Na dúvida, deci­diu-se. Fosse como fosse, jamais tinha fugido diante de uma prova!

Pediu a Gontrand que fizesse a gentileza de acompa­nhá-la na citara, limpou a garganta e começou a cantar uma cantiga triste e melancólica, muito conhecida no País de Ys.

Aquelas que vão ao bosque são mãe e filha. A filha vai suspirando: o que tem você, Margarida? Eu sou me­nina de dia, e de noite, corça branca...

A voz de Ágata, um tanto grave, era precisa e pun­gente, e Gontrand ficou agradavelmente surpreso. Deci­didamente, aquela menina era um espanto! No final da canção, os homens das estepes aplaudiram com entu­siasmo.

Não foram os únicos.

— Bravo, Ágata!

— Sim, foi genial!

Todos se voltaram num mesmo impulso em direção às pessoas que saíam da sombra.

— Romaric! Corália!

Gontrand, abandonando a citara no chão, correu até os amigos.

Romaric e Corália esperaram muito tempo ao pé da fonte que corria para o mar, ao abrigo do vento, nos ro­chedos, a vinda de uma Tribo do Povo do Mar que esti­vesse precisando de água doce. Finalmente, jangadas da Quarta Tribo aproximaram-se das falésias, após dois dias de espera — dois dias que pareceram ser menos de duas horas, tantas foram as coisas que tinham para dizer um ao outro. O Povo do Mar foi tão discreto que quase partiu sem que se dessem conta. Felizmente, um grito de crian­ça chamou atenção e os fez saírem do abrigo, bem na direção da fonte, onde descobriram as grandes jangadas.

Corália, com as mãos em concha, dirigiu-se candidamente aos homens e mulheres espantadas de os verem aparecer lá em baixo. Felizmente, o episódio da estada da jovem estrangeira com Wal e Matsi tinha corrido as Tri­bos e sorrisos bondosos logo tomaram o lugar da ex­pressão de surpresa e medo em seus rostos.

Todos tinham os corpos quase nus e queimados, os cabelos descorados pelo sol e o sal; uma membrana branca por cima dos olhos, dando-lhes um aspecto vítreo, permitia que vissem debaixo d’água.

O guia das jangadas, aquele que tinha a responsabili­dade de conduzir o Povo do Mar das Queimaduras no meio das correntes e das Medusas, informou-lhes que a Sexta Tribo se encontrava longe dali. Corália perguntou se era possível transmitir uma mensagem a Wal. O tempo tinha passado depressa demais e já não dava para irem até ele... Responderam à menina que, assim que os reser­vatórios estivessem abastecidos, a Quarta Tribo se encar­regaria de ir à sua procura para transmitir-lhe a mensa­gem. Ela, então, explicou a situação, e Romaric sugeriu que, se a Sexta Tribo aceitasse vir ajudá-los, podia se dirigir diretamente a uma das enseadas que se abriam ao pé das Colinas Cinzentas, que caíam no mar. Era lá, com efeito, que os jovens tinham marcado encontro com seus amigos... Romaric e Corália sentiram que o Povo do Mar ficou preocupado com suas revelações a respeito de Yénibohor, dos padres e de Guillemot. O guia da Tribo prometeu fazer diligências no sentido de entregar a men­sagem. Depois, tendo constatado que nada mais podiam fazer, Corália e Romaric decidiram tomar o caminho das Colinas Cinzentas, sem pressa...

— Dois dias inteiros para vir até aqui, da fonte de vocês? — lançou Gontrand a Romaric, com uma piscada de olho. — Vocês deveriam estar incrivelmente cansados!

— Viemos devagar, é verdade — respondeu ele, com um sorriso incomodado. — Mas fomos depressa na ida, e Corália pensou que valia mais economizarmos nossas forças para o retorno, levando-se em conta tudo o que nos estaria esperando...

— Não se justifique, Romaric — disse Corália, olhan­do Gontrand de cima para baixo. — Que este senhor nos explique, ao invés disso, o sorriso palerma e feliz que exi­bia enquanto Ágata cantava!

— Ai! Ai! — interveio Toffan, rindo. — Pelos espíritos da estepe! Parece que estamos em Ferghânâ em dia de feira!

Gontrand gratificou o amigo com um sorriso reco­nhecido, e Corália pegou a mão do gigante, num gesto afetuoso. Foram juntar-se aos outros, junto à fogueira. Apresentações feitas, histórias trocadas, e a vigília reto­mou seu tom festivo. Toffan tirou da bagagem um tam­bor de pele estendida sobre um círculo de madeira, e os guerreiros entoaram um canto rústico, selvagem, que exaltava a rudeza e a beleza de sua estepe natal.

 

Na clareira do Bosque dos Enforcados, Qadwan ve­lava sempre junto às brasas avermelhadas do fogo. O sol subia lentamente e não conseguia desfazer as nuvens de bruma agarradas às árvores.

Yorwan e Geraldo apareceram, enfim, acompanhados de um personagem misterioso, envolvido numa pele de urso.

O velho Feiticeiro, feliz de poder, por fim, desentorpecer os membros anquilosados, deu um abraço fraterno em Geraldo, apertou calorosamente a mão de Yorwan e fez um sinal de boas-vindas à silhueta que permanecia ao largo.

— Nosso trabalho deu bom resultado — anunciou Geraldo, num tom satisfeito. — A Sociedade do Urso aceitou dar-nos a sua ajuda!

Qadwan voltou um olhar intrigado em direção ao personagem que permanecia atrás.

— Vamos nos aproximar do fogo — propôs o velho Feiticeiro, dirigindo-se ostensivamente a ele: ainda está fazendo frio, de madrugada! E além disso, estaremos melhor para conversar e nos conhecermos!

— É uma boa idéia, de fato — reconheceu o misterio­so convidado, com a voz ao mesmo tempo doce e firme.

Aproximando-se, tirou da cabeça o crânio de urso que a cobria. Seu gesto liberou uma longa cabeleira e descobriu um belo rosto de mulher, iluminado por gran­des olhos verdes.

— Qadwan — anunciou Geraldo ao amigo, admirado — eu lhe apresento Kushumái, a Caçadora, chefe da Socie­dade do Urso e da resistência contra Yénibohor...

Já era àquela altura completamente dia, mas o frio permanecia intenso. Yorwan, envolto em seu grande manto vermelho, parecia desconfiado.

— Alguma coisa errada?

— Sinto uma presença.

— Uma presença? De que natureza? — inquietou-se Geraldo. — Padres, Orks? A Treva?

— Não, não, nada disso — confortou-o Yorwan.

— Será que não se trata dos reforços que estamos aguardando? — perguntou Kushumái, aproximando-se.

— Não. É justamente isso o que está me intrigando! Acabo de lançar um sortilégio de investigação, para localizar as pessoas do Urso, que estão demorando a chegar. De fato, como reforço, o sortilégio me trouxe a presença de um pequeno grupo, estranho e heterogêneo, bem próximo...

— Você é capaz de determinar onde se encontra esse grupo?

— Sim. Encontra-se... nas colinas, que ficam a leste do Bosque dos Enforcados.

— Bom, vamos lá — disse simplesmente a Caçadora, ajeitando a espada em torno da cintura. — Se for uma ameaça, é preciso termos certeza. E depois, movimentarmo-nos nos aquecerá, enquanto esperamos nossos homens!

— E aí, Romaric, está vendo alguma coisa?

— Absolutamente nada! E, no entanto, a visão vai longe, além dessas colinas! Se Bertram ou Âmbar apa­recessem, os veria imediatamente!

— Espero que nada tenha acontecido com eles — mur­murou Corália, dolorosamente.

— Vamos — disse Romaric, com doçura, abraçando a menina. — Já escapamos de tanta coisa! Não há motivo para ser diferente desta vez... Você vai ver, sua irmã logo estará aí, assim como aquele grande idiota do Bertram!

Corália fez um esforço para sorrir e abandonou a cabeça de encontro ao peito do companheiro. Gontrand aproximou-se deles.

— Lamento interromper momento tão romântico, mas Toffan está nos fazendo sinal de que indivíduos se aproximam do nosso acampamento.

Convidando-os a segui-lo, fez sinal para que andas­sem depressa. Alcançaram Ágata que, deitada no chão, em companhia dos guerreiros das estepes, acompanhava com os olhos o avanço de quatro indivíduos pelas coli­nas. Um deles era mulher, coberta por uma pele de urso; outro usava um estranho manto vermelho e os dois últi­mos estavam vestidos... como Feiticeiros do País de Ys!

— Geraldo! É Geraldo! — exclamou alegremente Corália.

— Está tudo bem, Toffan — disse Gontrand ao gigante que lhe lançava um olhar interrogador. — Eles estão conosco!

Depois, levantando-se, seguido pelos amigos, fez grandes acenos na direção do pequeno grupo que subia a encosta.

Geraldo achou que estava sendo vítima de uma miragem. Mas não estava fazendo calor e ele não se encontrava num deserto! Mas, como explicar de outro modo o fato de que lhe parecia estar vendo Gontrand, Romaric e Corália a se agitarem lá no alto, diante de seus olhos, quando os tinha deixado no País de Ys, sob a guarda de Bertram? E, além do mais, se eram reais, quem eram aqueles marmanjos com ar valente que os acompanhavam?

— Uhu! Geraldo! Somos nós! Estamos aqui!

Não, não era uma miragem. O Feiticeiro ficou de boca aberta...

Ao contrário do acolhimento que Kushumái reser­vou a Toffan e seus homens, contente com o reforço inesperado, o de Geraldo a Gontrand, Romaric, Corália e a amiga, Ágata, não foi muito caloroso! Principal­mente quando o Feiticeiro soube que Bertram, Âmbar e um outro menino, Tomás, estavam também envolvidos na busca de amigos no Mundo Incerto, e ainda não tinham dado notícias...

Vermelho de cólera, Geraldo informou que dali em diante seria do interesse deles conformarem-se sem recla­mações com todas as ordens que lhes fossem dadas.

— Pelo menos fico feliz por ele não ter decidido nos mandar de volta para Ys — resmungou Ágata.

— Talvez valesse mais a pena — soltou Romaric. — Eis-nos transformados em criancinhas bem comporta­das, de volta nos seus lugares, depois de repreendidas!

— Vocês repararam? — continuou Corália. — Nem um agradecimento, nem uma palavra de reconhecimento pelos nossos esforços! Pelo menos, trouxemos para Geraldo os guerreiros do Norte! E depois, tem o Povo do Mar e os Homens de Areia que vão chegar e...

— Paciência — interrompeu-a Romaric. — Na primeira oportunidade, tornaremos a tomar a iniciativa!

— Estou completamente de acordo — aquiesceu Gontrand, tão envergonhado quanto os outros. — Mas será que virá, essa oportunidade?

— Se não vier, nós a provocaremos!

Enquanto Geraldo ralhava severamente com os jovens de Ys nas Colinas Cinzentas, em Yénibohor, Uriano de Troïl chorava sem parar.

— O que está acontecendo? — inquietou-se o Coman­dante.

— É Valentim — disse Qadehar, com a voz apagada. — Ele morreu... Estou desolado, nada pude fazer. Minha mágica continua bloqueada.

Um silêncio doloroso, entrecortado pelos soluços de Uriano, acolheu a notícia. De uma ponta à outra da ala da prisão em que estavam encerrados os Cavaleiros, um canto subiu, de cento e vinte gargantas. Um canto grave, rendendo homenagem ao camarada caído na batalha, um camarada que os companheiros jamais iriam esquecer...

Uriano estava desmoronado por sobre o corpo sem vida daquele que tinha sido seu irmão em armas. Res­peitando sua dor, os Cavaleiros presentes na cela sen­taram-se mais longe. Qadehar deixou a cabeça cair para trás, de encontro à pedra úmida da parede, e suspirou. Que loucura! Que caos... Mais que a derrota, era o sen­timento terrivelmente humilhante de ter que passar por aqueles acontecimentos que enchia de cólera o coração do Feiticeiro. Há quanto tempo a situação escapava ao seu controle? Desde o ataque a Djaghataël, onde tinha visto morrer, um após o outro, seus amigos Feiticeiros? Antes, talvez. Na realidade, desde a revelação dos poderes mágicos de Guillemot... Muitas coisas que então considerava sólidas foram desmoronando, como um objeto sólido que se pensava ter nas mãos transfor­mando-se, de repente, em fumaça... A invencível Con­fraria acabava de sofrer um grave revés; a Guilda estava corrompida pela Treva; Valentim, morto — sem que pudesse fazer nada. E Guillemot? Ao pensar que talvez alguém, naquele momento, o estivesse maltratando, Qadehar, pela primeira vez em muito tempo, sentiu o ódio afluir dentro de si. Em meio às incertezas que atro­pelavam o Feiticeiro, a afeição que sentia pelo menino era um ponto de referência intocável... Ele o salvaria. Nem que para isso tivesse que ir ao inferno e desafiar o próprio Bohor! Fez a si mesmo essa promessa e reen­controu alguma serenidade.

 

A decisão foi tomada por Kushumái: instalar as bases atrás do contra-ataque a partir das Colinas Cin­zentas, mais bem situadas e mais fáceis de defender que o Bosque dos Enforcados.

A Caçadora, para grande alívio de Geraldo, que se sentia pouco à vontade na pele de chefe, tinha tomado a frente das operações. Logo que ficaram sabendo quem era aquela mulher, os guerreiros das estepes lhe tinham manifestado respeito imediato, misturado com uma espécie de temor. Quanto a Romaric, Gontrand, Corália e Ágata, apesar de seu ressentimento em relação àqueles adultos ingratos, de início viram a jovem mulher da pele de urso com curiosidade e, depois que Qadwan lhes revelou sua identidade, com admiração.

— Esta mulher — confiou-lhes o velho Feiticeiro — é a chefe dos Ursos, uma sociedade secreta à qual também pertence o Senhor Sha. Uma sociedade ligada ao Livro das estrelas, encarregada de proteger os Três Mundos dos maus usos que se pode fazer do livro...

É claro que Ágata e Corália logo comentaram com os amigos, com uma ponta de malícia, que aquela orga­nização tão importante era dirigida por uma mulher...

Sua curiosidade, em seguida, foi atraída pelo homem misterioso de manto vermelho, aquele Senhor Sha, que também se chamava Yorwan, e sobre quem Guillemot lhes tinha dito alguma coisa. Mas dele só obtiveram sor­risos distantes.

Na realidade, Yorwan estava preocupado com a tomada de Yénibohor, e expôs a Kushumái seu plano de ataque.

— Vamos primeiro esperar e ver qual o reforço que meus homens me trarão! — objetou a jovem mulher.

— Você também parece preocupada — reparou Yorwan. — Acha que não seremos em número suficiente para tomar de assalto essa maldita cidade?

— Sabe, Senhor Sha — respondeu Kushumái franzin­do as sobrancelhas —, a Sociedade do Urso sempre so­nhou em pôr um fim às ações e intrigas do povo de Yénibohor! E por que acredita que não o fizemos? Por­que eles são poderosos, muito poderosos! A riqueza deles sempre permitiu que comprassem os serviços do ignóbil Thunku e de seus Orks. E, depois, há os padres e seu misterioso Grande Senhor, que parece formidável...

— Mas nós também temos nossos trunfos — disse Yorwan. — Contamos com a simpatia do conjunto do Mundo Incerto, exasperado pelo terror que os padres fazem reinar! Nosso exército será numeroso, não há dúvida alguma.

— Pode ser — reconheceu Kushumái. — Mas será que terá peso? Não esqueça que os duzentos Cavaleiros de Ys não conseguiram enfrentar por muito tempo os Orks de Thunku! E eles figuram entre os melhores combaten­tes dos Três Mundos!

— Mergulharam de cabeça numa armadilha, sem terem se dado ao trabalho de refletir sobre um plano de ataque — suspirou o Feiticeiro de manto vermelho. — Mas, desta vez, será diferente.

— Bem, supondo que sejamos capazes de enfrentar os mercenários presentes na cidade, como iremos combater o poder dos padres? Somos só você, Geraldo e eu. E, tal­vez, o velho Qadwan, se ele se recuperar daqui até lá. Não estou pondo em dúvida a qualidade da sua mágica, Senhor Sha, nem da de Geraldo. Mas, mesmo conjuga­dos, nossos esforços não terão muito peso diante da força dos padres!

— Então é isto o que a inquieta? — de repente Yorwan entendeu. — A fragilidade dos nossos recursos mágicos?

A chefe do Urso não respondeu, contentando-se com fazer um sinal afirmativo de cabeça.

O acampamento definitivo foi instalado num vale abrigado, junto a uma elevação, de onde poderiam ob­servar o prado, o mar e, mais adiante, a cidade de Yéni­bohor. Os guerreiros das estepes, feito feras, dispersa­ram-se, montando uma guarda discreta e eficaz.

Os quatro jovens deixaram Kushumái e os três Fei­ticeiros discutindo as chances de sucesso e sentaram-se um pouco à parte.

— Queria saber o que estará fazendo com a minha irmã. Por que até agora não chegou?

— Corália... é longa a estrada até o Deserto Voraz — Romaric ainda tentou reconfortá-la. — Dê-lhe tempo de retornar!

— Romaric tem razão — disse Gontrand. — É com Bertram que deveríamos estar preocupados! Vocês entenderam para onde ele foi?

— Não. E eu também estou preocupada — admitiu Ágata. — Bertram estava com aquele sorriso idiota que precede as catástrofes, cujo segredo só ele sabe...

— Nunca deveríamos ter deixado ele ir — disse Corália.

— Ora! ... Vamos confiar nele! — propôs Romaric. — Já nos provou muitas vezes que é capaz do pior assim como do melhor!

— Esperemos que desta vez seja do melhor! — excla­mou Gontrand, com um suspiro.

Uma névoa de poeira na campina anunciou a chega­da de uma grande tropa. Todos foram correndo ver quem vinha lá.

— Vêm do oeste — disse Geraldo, fazendo sombra na testa com as mãos, para que o sol não o cegasse.

— Não, do sul — retificou Qadwan.

Na realidade, duas tropas avançavam em direção às Colinas Cinzentas.

— Será que são os homens de Yénibohor? — inquie­tou-se Geraldo.

— Yénibohor fica para o leste — respondeu Kushumái. — Não, acho que são os reforços reunidos pelos Ursos. O Senhor Sha os preveniu mentalmente da mudança de lugar do nosso encontro.

Efetivamente, as tropas que se aproximavam, embo­ra excêntricas, não se pareciam com Orks nem padres, mas eram mesmo homens armados, equipados com es­padas e lanças, arcos, machados, foices e bastões...

— Quantos são? — espantou-se Qadwan.

— Difícil dizer... Talvez mil — respondeu-lhe Yorwan.

Kushumái adiantou-se e foi ao encontro dos primei­ros grupos de homens armados. Estes a saudaram com respeito.

— Mas... — exclamou Gontrand, reparando num indi­víduo em meio à multidão. — Eu o conheço, o louro alto, no meio dos homens ruivos! É o luthier que me vendeu a citara, um dia, num vilarejo do oeste!

Ele se aproximou do homem. Este não o reconheceu imediatamente. Mas, quando Gontrand se apresentou, apertou sua mão calorosamente.

— Então, o senhor é membro do Urso? — perguntou-lhe Gontrand.

— Não esqueça o que eu disse um dia, na minha loja, a um menino disfarçado de Homenzinho de Virdu: todos têm o direito de guardar seus segredos!

Eles riram lembrando o encontro.

Outras surpresas desse tipo esperavam os jovens de Ys. Entre os valorosos camponeses do oeste e os ho­mens de armadura que levavam no alto do capacete um crânio de animal selvagem — que diziam tratar-se da guarda pessoal de Kushumái, uma centena de salteadores, muitos com os rostos maltratados e rudes, distri­buíam francos apertões de mão aos companheiros de sorte. Gontrand reconheceu o jovem bandido, o Arqueiro, que tinha enfrentado Toffan na ocasião da embosca­da que, com seu bando, lhes tinha preparado, na estrada de Yâdigâr. O gigante poupou seu corajoso adversário, contentando-se com feri-lo. O reencontro entre Toffan e o Arqueiro foi, aliás, amigável — o primeiro, recordando a coragem do bandido, e o segundo, a generosidade do guerreiro que o tinha deixado com vida.

Ao lado do Arqueiro, estava um menino que os olha­va de olhos arregalados, como se o céu tivesse acabado de lhe cair sobre a cabeça...

— Toti! — gritou alegremente Corália, reconhecendo o jovem pagem, prisioneiro com eles na cadeia de Thunku, em Yâdigâr.

Correram em direção ao amigo, totalmente incrédu­lo, e o levaram para um canto. Enquanto os homens do Urso acabavam de chegar às Colinas, os meninos conta­ram as respectivas aventuras. Ficaram sabendo, assim, que Toti era irmão do Arqueiro e que os dois, um entre os bandidos, e o outro no palácio de Thunku, serviam de informantes à Sociedade do Urso. Quanto a Toti que, aplaudindo, tremeu com a história das façanhas de Guillemot no palácio do Comandante Thunku, cujo des­moronamento permanecia um mistério, não parava de se alegrar por reencontrar os amigos daquela forma. Só a ausência do Aprendiz de Feiticeiro e de Âmbar davam um tom sombrio ao quadro.

— Ai, meu Deus! Se soubessem como estou conten­te! Eu tinha realmente medo de me ver sozinho no meio dos brutos e dos soldados, como na última vez, na prisão do palácio!

— Fique tranqüilo — respondeu Romaric, amigavel­mente — estamos aqui e juntos. E garanto que estes dias aqui não serão menos excitantes que aqueles em Yâdigâr.

Com a chegada da noite, uns mil homens um bocado decididos a vencer os exércitos de Yénibohor instalaram seu acampamento nas Colinas Cinzentas. Só estavam faltando Bertram, Âmbar e Tomás...

 

— Corália, êi, Corália...

Qadwan sacudiu delicadamente a jovem adormecida ao lado dos amigos, enrolada no saco de dormir. O pe­queno grupo tinha sabiamente se retirado para um canto do vale quando acenderam as fogueiras do bivaque e os homens se puseram a rir, cantar e conversar...

— O que está acontecendo? — resmungou ela, mal conseguindo abrir os olhos.

— Tem uma pessoa procurando você. Quer vê-la de qualquer maneira.

Corália, os cabelos em desordem e os olhos meio fechados, demorou para acordar completamente. O dia mal raiava, com o céu cheio de nuvens. Ela se vestiu depressa, levantou-se e olhando com inveja os compa­nheiros ainda adormecidos, acompanhou o velho Fei­ticeiro.

Qadwan a conduziu até o topo da colina, onde Kushumái tinha instalado seu estado-maior. Ao lado da jovem mulher, encontravam-se Geraldo, usando o casa­co escuro da Guilda; Yorwan, envolvido no do Senhor Sha; Toffan, todo de couro e metal; o Caçador do Irtych Violeta, numa armadura leve; o Luthier, vestindo o pano grosso dos camponeses do Oeste e o Arqueiro, vestido com peças disparatadas, tiradas das vítimas de suas emboscadas. Todos os sete estavam voltados para uma pequena figura, que não parecia nem um pouco intimi­dada e jogou-se nos braços de Corália assim que a viu.

— Corália! Corália!

— Matsi! Mas... mas... — gaguejou ela, abraçando a menina de cabelos e olhos brancos.

— O povo da Quarta Tribo nos transmitiu sua mensa­gem — explicou Matsi, acariciando com alegria o rosto da única amiga de verdade que jamais tivera.

— Quer dizer que a sua tribo veio nos ajudar? Que maravilha!

— Não a minha tribo — ela retificou. — Meu pai conse­guiu convocar o conjunto das Trinta Tribos para uma reunião extraordinária. Você sabe, nós não gostamos na­da dos padres de Yénibohor. Durante muito tempo, eles levavam as crianças do Povo do Mar quando aportáva­mos à costa...

— Eu sei, o seu pai me contou. E daí?

— Aí — anunciou tranqüilamente Matsi — meu povo decidiu enviar nossos cem homens mais corajosos para ajudar vocês contra Yénibohor. Eles estão lá embaixo, na enseada, em cima das jangadas, com meu pai... Eu in­sisti para vir com ele. Estava com muita vontade de re­ver você!

— A ajuda do seu povo vai ser vital, menininha — interveio Kushumái, passando os dedos pelos curiosos cabelos brancos. — Vou pessoalmente agradecer e falar com os Homens do Mar! Enquanto isso, vá pedir-lhes que esperem e principalmente que não se mexam: ainda não terminamos de elaborar o nosso plano de ataque.

Matsi aquiesceu. Agitando a mão, pulando com os pés descalços, gritou para Corália:

— Até mais tarde, Corália! Até mais!

— Espere, Matsi! — a menina decidiu de repente. — Vou com você!

— Cuidado! — Qadwan não pôde deixar de gritar, quando a viu desaparecer atrás das colinas.

Kushumái voltou-se para os chefes de seu exército. Seus olhos verdes brilhavam.

— Ainda não resolvemos o problema dos poderes mágicos dos padres. Mas sei como vamos entrar na ci­dade.

— Está vendo? — sussurrou Gontrand a Romaric, que rastejava pelo capim, para chegar mais perto do lugar onde Kushumái expunha seu plano de ataque ao estado-maior.

— Não — respondeu este, no mesmo tom. — Mas os estou ouvindo! Psiu! Agora, calem-se!

Ao acordar, Ágata, Gontrand, Romaric e Toti ficaram sabendo da chegada dos Homens do Mar, que Corália tinha ido encontrar, às pressas. Tentaram misturar-se da maneira mais discreta possível à reunião sobre a colina, mas foram firmemente excluídos. Embora Kushumái tivesse agradecido delicadamente o entusiasmo e a boa vontade deles, Yorwan aconselhou-os a “ir brincar mais longe”.

Foi, essencialmente, isso o que provocou a cólera do pequeno grupo. Aqueles adultos eram decididamente incorrigíveis! Eles, que tinham a experiência do Mundo Incerto, que sempre se saíram bem das piores situações; eles, que estavam na origem do recrutamento dos valen­tes guerreiros das estepes e do dedicado Povo do Mar, eis que pediam a eles educadamente que “deixassem as pessoas grandes fazerem as coisas e fossem brincar mais para lá”. Que injustiça! Que ingratidão! Iam ver só...

Deitado na grama, fazendo de tudo para não apare­cer, de orelha em pé, Romaric tinha esperança de sur­preender o que estava sendo tramado. Kushumái desig­nava com uma vara, num desenho traçado no chão, um ponto que ele não conseguia ver direito.

— Uma vez as portas abertas — dizia ela — será preci­so alcançar, não importa a que preço, aquela torre. É lá que mora o Grande Senhor de Yénibohor, é lá que Guillemot — sem dúvida — está preso.

— E, na sua opinião, onde estão aprisionados os Ca­valeiros que sobreviveram ao primeiro ataque? — inquie­tou-se Geraldo.

— Certamente aqui — Kushumái mostrou um outro ponto no desenho — nos calabouços subterrâneos da cida­de. Temos todo interesse em aproveitar a batalha geral para tentar libertá-los. Os Cavaleiros sobreviventes cons­tituirão uma força suplementar nada desprezível.

— E os padres? — inquiriu Yorwan. — Como vamos fazer?

— Ainda não sei — admitiu Kushumái. — Meus infor­mantes dão conta de cerca de oitocentos Orks e cento e oitenta padres. Nós somos mais de mil, mas sabemos que será difícil enfrentar os monstros! E temo que três Feiticeiros e uma Feiticeira não sejam suficientes para vencer o poder maléfico dos padres...

As propostas da chefe do Urso os deixaram acabrunhados. Toffan foi o primeiro a reagir.

— Vamos nos bater corajosamente! Combates e sacri­fícios fazem parte do andamento normal do Mundo In­certo!

— Eu compartilho a sua visão das coisas, amigo das estepes — concordou o Caçador. — A morte não passa de uma etapa na dança eterna dos elementos!

— Ai! Tudo isto é muito bonito! — riu o Arqueiro, cujo rosto uma cicatriz profunda atravessava. — Eu quero me bater, mas não tenho intenção de me suicidar! De modo que valeria a pena encontrar uma solução para eliminar os padres-feiticeiros.

— O Arqueiro tem razão — disse o Luthier. — Os homens do Oeste são corajosos, e para poder viver em liberdade em suas terras, sem terem que pagar os impos­tos esmagadores que Yénibohor exige, estão dispostos a lutar. Mas seria injusto pedir que fizessem um sacrifício inútil...

— O problema — interveio Geraldo — é que, na verda­de, não temos escolha. Cada um aqui, aparentemente, tem uma boa razão para lutar. Mas a razão continua sen­do pessoal. Ora, o que está em jogo estes dias, aqui em Yénibohor, ultrapassa nossos próprios interesses. Se aquele que se esconde atrás dessas muralhas — Treva, Grande Sacerdote, ou não importa que outro nome tenha — se esse indivíduo conseguir conjugar os poderes do livro que roubou com os do menino que raptou, as con­seqüências serão terríveis para o mundo!

Kushumái tentou pacificar os homens que a inter­venção do Feiticeiro tinha deixado em alerta.

— Temos o dia todo para encontrar uma solução — anunciou ela. — Em todo caso, estamos prevendo atacar amanhã, ao romper do dia. Geraldo tem razão: não temos escolha. E principalmente não podemos esperar...

Romaric transmitiu aos outros, na língua ska, para que Toti pudesse compreender, tudo o que tinha captado da conversa.

— Eu não sabia que a situação era tão desesperadora!

— gemeu Ágata. — O que vamos fazer?

— Não entendi tudo — respondeu ele. — Mas vejam o que proponho: amanhã, vamos fingir que estamos resig­nados a ficar ao abrigo das Colinas Cinzentas, enquanto os outros atacam Yénibohor. Em seguida, nos esgueiramos discretamente e tentamos penetrar, igualmente dis­cretos, na cidade. Lá, será preciso localizar a torre em que Guillemot está preso, nos fazermos de invisíveis e en­trar. Depois, não sei...

— Não está tão mal... — ironizou Gontrand. — Sempre haverá tempo de resolver no local, se chegarmos vivos!

— Pode funcionar, se formos mesmo invisíveis — arriscou Toti a dizer.

— Vocês têm alguma outra idéia? — perguntou Ro­maric, irritado. — Não? Então...

— E Corália? — perguntou Ágata.

— Até lá, terá retornado.

— E Tomás e Âmbar? — tornou a perguntar Gontrand.

— Confio em que Âmbar vai chegar a tempo — disse calmamente Romaric. — Ela jamais abandonará Guille­mot, sabem disto tão bem quanto eu.

 

No dia seguinte, como tinham previsto, pediram de­licadamente a Romaric, Gontrand, Corália, Ágata e Toti que assistissem, das Colinas Cinzentas, à batalha que se preparava...

— Mas nada veremos! — protestou Corália, com natu­ralidade.

Após ter passado o dia com Wal e Matsi, tinha volta­do na véspera a se reunir aos amigos, e estes imediata­mente lhe contaram as novidades. Qadwan aproximou-se: os outros adultos pareciam tê-lo tacitamente e de uma vez por todas designado mediador junto ao peque­no bando.

— Vamos, crianças... — disse ele. — Guerra é coisa de adulto! Sei que estão preocupados com Guillemot. Mas já fizeram muita coisa por ele! Agora, sejam razoáveis.

Os meninos baixaram as cabeças, com ar contraria­do, mas não fizeram objeção. O velho Feiticeiro tomou aquilo como resignação e deu meia volta, satisfeito, sem ver as piscadas de olho que trocavam às suas costas...

Kushumái, ladeada por Yorwan e Geraldo, assistia aos preparativos de seu exército, que tinha chamado de “exército das Colinas”. Tinha elaborado um plano de ataque audacioso, totalmente baseado, em sua primeira fase, no Povo do Mar, com o qual conversou longamen­te na noite anterior. Observou os guerreiros das estepes a matar o tempo lutando entre si, para divertirem-se. Admirou sua força, sua agilidade, sua arte de combate erigida em modo de vida. Bem que trocaria várias cen­tenas de homens ruivos por apenas umas dezenas daque­les guerreiros! Não que duvidasse da coragem da gente do Oeste — mas eram sempre camponeses, mais hábeis no manejo da carroça que no da espada. Mesmo que os esforços do Luthier, despachado pelo Urso para aquela região particularmente hostil a Yénibohor, para ensinar aqueles camponeses a lutar, tenham conseguido um sucesso inesperado, aquilo não era suficiente para enfrentar os adversários formidáveis que esperavam por eles... Kushumái parou para observar os bandidos; se tinham sobrevivido até ali a todas as investidas contra os Orks mercenários, sobreviveriam sem dúvida ainda àquele novo confronto! Quanto aos Caçadores do Irtych Violeta, eram bravos e experientes, e tinham enfrentado na floresta criaturas tão ferozes como os Orks. Mas eram apenas um punhado! Kushumái soltou um suspiro. Se ao menos dispusesse de um esquadrão de mágicos para se opor aos padres! Os do Mundo Incerto ou eram charlatães ou frouxos, que tremiam de medo à simples menção do Grande Senhor de Yénibohor...

— Em que está pensando, Kushumái?

— Não estou pensando em nada, Senhor Sha. Estou rezando! É a única coisa que resta a fazer...

No mesmo instante, um murmúrio percorreu as filei­ras de homens do Oeste que, de repente, puseram-se a correr para todos os lados, soltando gritos de medo.

— O que está havendo? — perguntou Geraldo, inquieto. Os Caçadores instintivamente agruparam-se em volta de Kushumái, para protegê-la.

— Os Mirgi, os Mirgi! — berrou um homem, como resposta.

Os Mirgi eram, nas lendas do Mundo Incerto, espíri­tos maus, que se apresentavam em forma de gnomos, e faziam caretas...

— Calma, calma! Sou eu! Somos nós! — gritou alguém, para se fazer ouvir no meio do tumulto.

— Bertram? — perguntou Geraldo, incrédulo.

— Sim, Bertram! Digam a esses homens que guardem os machados e abaixem as lanças. Vão acabar ferindo alguém! Que insensatez!

Geraldo custou um pouco a convencer o povo do Oeste de que os recém-chegados eram aliados e não ini­migos. Também teve dificuldade em fazê-los aceitar que as criaturas que acompanhavam o jovem Feiticeiro não eram Mirgi...

— Bertram!

Atraídos pelos gritos, Romaric, Ágata, Gontrand e Corália, seguidos por Toti, tinham corrido para lá, e mani­festavam ao amigo a alegria de revê-lo com socos vigoro­sos e alguns abraços. Quando repararam nas criaturas que acompanhavam Bertram, ficaram imobilizados...

— Amigos de Dashtikazar! Eu muito feliz rever vocês!

— Kor Hosik!

Era mesmo Kor Hosik, o jovem Korrigã que tinha servido de tradutor ao rei Kor Mehtar, na ocasião em que o bando de amigos se viu prisioneiro em seu palácio de Bouléagant.

Os Korrigãs, pequenos seres de cerca de oitenta cen­tímetros, mirrados e enrugados, escuros e peludos, viviam nas terras do País de Ys, onde coexistiam em boa vizinhança — poderia se dizer assim — com os seres humanos.

Atrás de Kor Hosik encontrava-se uma dezena de outros Korrigãs, que pareciam ainda mais encolhidos, ainda mais curvados. Os cabelos e pêlos eram grisalhos ou simplesmente brancos. O grande chapéu, a veste e a tradicional calça de veludo bufante não eram negros, como de hábito, mas vermelhos. Quanto aos tamancos de ferro, estavam anormalmente polidos e gastos.

— Quando Âmbar falou das amizades que cada um tinha e que era preciso reunir, me senti burro e inútil — admitiu Bertram aos amigos e aos chefes do exército das Colinas, que tinham se aproximado e observavam com cara de espanto os enviados do Povo da Mata. — Foi aí que tive uma idéia!

— Voltou a Ys e foi ver os Korrigãs? — exclamou Corália, atônita. — Que beleza!

— Que demorado, isso sim! Corri o tempo todo ou quase até à Costa Berrante e tive a sorte de topar com um pescador disposto a me conduzir à Ilha do Meio!

— E na volta também veio correndo?

— Claro! Você sabe, os Korrigãs são muito vigorosos. Mesmo quando são muito velhos... Eu que tive dificul­dade de acompanhá-los...

— Continue, Bertram — interveio Geraldo. — Estamos todos curiosos para ouvir a sua história até o fim. E você, Corália, pare de interromper com as suas perguntas!

— Aí — continuou Bertram — conhecendo o poder dos padres de Yénibohor, eu disse a mim mesmo que Feiti­ceiros poderiam nos ser de grande valia. Infelizmente, com a Guilda — que está sob a vigilância de um espião da Treva — não se poderia contar. Onde encontrar mági­cos, então? Mas, é claro, entre os Korrigãs! De modo que retornei a Ys e fui logo para o mato. Finalmente, encontrei o famoso dólmen pelo qual nos fizeram descer até à caverna de Bouléagant. Esperei que um Korrigã se aproximasse e pedi para ser recebido por Kor Mehtar.

Vocês conhecem a curiosidade dos Korrigãs: ele me concedeu uma audiência imediata! Expliquei a situação, fazendo com que ele entendesse bem que haveria impli­cações para seu povo se a Treva viesse a se tornar por demais poderosa. Convencido, ele me confiou os mais sábios de seus mágicos, bem como um tradutor, para facilitar nossa relação! Aí está a história completa!

— Você diz que ele se convenceu? — repetiu Geraldo, com ar de dúvida.

— Por que só ele tem o direito de interromper? — res­mungou Corália, em voz baixa.

— Cale-se! — ralhou Romaric. — Deixe-nos escutar!

— Sim — respondeu Bertram a Geraldo, enrubescendo contra a vontade. — Eu soube encontrar argumentos... argumentos que...

— Seu amigo fazer promessa meu rei — interveio Kor Hosik, feliz. — Seu amigo prometer uma coisa em troca nossa ajuda!

— Isso só diz respeito a Kor Mehtar e a mim! — pro­testou Bertram, fulminando o Korrigã com o olhar. — Enfim, o essencial é que voltei a tempo, com amigos pa­ra nos ajudar, não?

— Tem razão, jovem Bertram — confirmou Kushumái, gratificando-o com um grande sorriso. — E essa ajuda que você nos traz talvez nos salve a todos! Ouvi falar da magia dos Oghams, dizem que é poderosa. Acima de tudo, é desconhecida neste mundo... Os padres não esta­rão preparados contra ela!

Ela se voltou para Yorwan e Geraldo.

— Pronto! Temos, afinal, nosso esquadrão de mági­cos. Como vêem, não se deve desesperar jamais!

Para grande alívio dos homens do Oeste, para quem era difícil não ver aquelas estranhas criaturas como Mirgi, Kushumái convidou os Korrigãs a seguirem-na até à colina, onde organizou uma última reunião do estado-maior.

Bertram permaneceu com os amigos que, por sua vez, contaram-lhe o que tinha acontecido nos dias pre­cedentes. Aplacaram sua curiosidade a respeito de Kushumái e do Senhor Sha. Puseram-no a par da ausên­cia de Âmbar e de Tomás, assim como dos últimos acon­tecimentos, sem, no entanto, abrir para ele seu projeto de ataque.

— É muito aborrecido vocês estarem confinados nes­tas colinas — disse Bertram, marcando com um franzir de sobrancelhas e um tom seguro de si o fato de perten­cer ao mundo dos adultos. — Juro que pensarei em vocês quando estiver no turbilhão da ação entre duas afrontas com os Orks e dois passes mágicos contra os padres! Aliás, estão vindo me buscar — concluiu, ao ver Geraldo vindo em sua direção. — Sejam sensatos! De minha parte, vou tratar de honrar vocês!

— Bertram?

— Estou indo, Geraldo. Adeus, meus amigos, adeus...

— Bertram — anunciou Geraldo, num tom aborrecido. — É preciso alguém para vigiar... para proteger os seus amigos. É melhor Qadwan ir conosco. Tem mais expe­riência, será mais útil diante de Yénibohor.

— O quê! — rugiu Bertram. — Mas Qadwan está senil, vai nos atrapalhar! Não pode fazer isso comigo, Ge­raldo... Por favor!

— Basta, minha decisão está tomada — disse o Fei­ticeiro, num tom que não admitia mais réplica. — Trate somente de cuidar destes jovens um pouco melhor do que em Ys!

Bertram o viu afastar-se, admirado e abatido. Geral­do foi encontrar Kushumái, Qadwan, Yorwan e os mági­cos Korrigãs. O exército das Colinas se preparava para marchar.

— Vamos, Bertram — consolou-o Gontrand, irônico. — Não faz mal! Quando você crescer, tudo isso vai mudar...

— Muito engraçado! Quando eu penso — gemeu ele — em tudo o que fiz por eles! Não têm o direito de me dei­xar de lado. Mereci participar da batalha!

— Nós todos também pensamos assim — aprovou Romaric, colocando a mão no ombro do jovem Feiticeiro. — Aliás, temos um plano.

— Um plano? Não me digam que estão pensando em desobedecer Geraldo de novo e que... ai, não!

— Isso mesmo, Bertram. — Isso mesmo!

 

A aproximação do exército das Colinas provocou uma efervescência na cidade de Yénibohor, efervescên­cia essa, visível até nas muralhas, para onde Orks, pesa­damente armados, correram a tomar posição. Kushumái deu umas ordens; seus homens pararam de avançar e ficaram fora do alcance de eventuais tiros de arcos, diante da porta de entrada, que estava solidamente fe­chada e parecia capaz de resistir a todos os ataques.

— Só nos resta esperar — anunciou Kushumái a Ge­raldo, Yorwan e Qadwan, assim como a Toffan, ao Caça­dor, ao Luthier e ao Arqueiro, que vieram instruir-se so­bre as novidades. E, sobretudo, esperar que o Povo do Mar tivesse sucesso!

Uma das particularidades da cidade residia no curso d’água que a atravessava de um lado a outro para lançar-se no Mar das Queimaduras. Canalizado em todo o seu trajeto dentro da cidade, servia para múltiplas utilidades cotidianas e era a única coisa que lhe trazia um toque de frescor. O Rio Molhado, então, entrava e saía de Yéni­bohor deslizando pelas muralhas, através de um arco munido de grades. As águas do rio e as do mar abriga­vam, com efeito, peixes carnívoros enormes, que seria desagradável encontrar no curso das suas abluções!

Usnak, um caçador excepcional, que tinha sido de­signado pelo conjunto das Tribos para ir à frente da estranha expedição, parou um instante seu nado subma­rino e voltou-se. Seus longos cabelos brancos flutuaram um instante em volta da cabeça. A centena de homens que o Povo do Mar tinha despachado para socorrer o exército das Colinas o seguia em um grupo compacto, dominando perfeitamente o nado submarino. Acabavam de tomar uma última provisão de ar, sabendo que podiam ficar longos minutos economizando seus gestos. Confiante, Usnak tornou a avançar.

Logo percebeu a grade que impedia os monstros do mar de subir o rio e entrar na cidade. Graças à membra­na que protegia seus olhos, à maneira de uma máscara de mergulho, distinguia os mínimos detalhes do que o rodeava. Assim, localizou bem embaixo, em contato com o chão coberto de algas, a barra de metal roída pela ferrugem que ia permitir-lhes entrar. Usnak fez um gesto: três homens vieram ajudá-lo a torcer a barra enferrujada. Em seguida, esgueiraram-se, um depois do outro, pela abertura assim franqueada. Tornando a subir, prudentemente, à superfície, encheram de novo os pul­mões e voltaram a mergulhar no fundo. Tirando a cabe­ça da água para respirar, puderam perceber que a aten­ção dos Orks e padres estava inteiramente voltada para a planície onde se encontravam os atacantes. Kushumái tinha razão! Conseguindo penetrar na cidade, o coman­do, com certeza, apanharia os defensores de surpresa.

Usnak verificou se a faca que lhe servia normalmen­te para abrir a carne dos peixes continuava na cintura. Tomou coragem, acariciando-a, e fez sinal de avançar. Chegaram, assim, à grande ponte que prolongava a porta principal, abrigando-se debaixo dela. A porta, a algumas dezenas de metros, só estava guardada por dois Orks. Os outros posicionavam-se nas muralhas... Essa confiança não era de espantar, quando se considerava a enorme viga que bloqueava os dois batentes de metal.

— Vamos nos dividir em três grupos — sussurrou Usnak. — Um, para neutralizar os monstros; o segundo, para abrir a porta e o terceiro, para cobrir nossa retirada...

Os Homens do Mar silenciosamente pisaram na mar­gem. Usnak tirou do cinto um objeto que Kushumái lhe tinha confiado quando foi falar com eles, na véspera, nas jangadas, para revelar o plano de ataque. Desfez as ataduras firmes que o protegiam e apontou o tubo de metal para o céu. Como tinha explicado a mulher de olhos ver­des, apertou um botão. Logo, uma bola de fogo explodiu no céu, sem ruído: uma intensa e breve luz azul.

— O sinal! — exclamou Kushumái, do outro lado das muralhas.

Já há algum tempo ela perscrutava o céu com inquie­tação.

— Conseguiram! Vão tentar abrir a porta. Estejam preparados!

No interior da cidade, o primeiro grupo de Homens do Mar, seguido de bem perto pelo segundo, lançou-se na direção dos Orks, enquanto o terceiro se colocou entre a porta e a ponte. Muito surpresos ao ver homens quase nus surgir de parte alguma, brandindo simples facas, os Orks não se defenderam tão bem quanto de hábito. O primeiro sucumbiu rapidamente. Mas o outro tornou a erguer-se, jogou dois homens no chão e berrou, pedindo socorro aos congêneres. Tarde demais: a tranca tinha sido tirada e os batentes da porta se abriam com­pletamente.

— Atacar! — exultou Kushumái. — Atacar! Camponeses do Oeste, salteadores, Caçadores e guerreiros do Norte correram todos à frente.

Enquanto isso, os homens de Usnak que tinham, afi­nal, eliminado o segundo Ork, recuaram em direção ao rio, carregando os corpos dos dois infelizes assassinados pelo monstro.

— Não estamos nos saindo tão mal — comentou Wal, o pai de Matsi, segurando o próprio braço, marcado por um corte sanguinolento.

— É — aquiesceu Usnak. — Mas nada mais temos a fazer aqui. O Povo do Mar cumpriu seu compromisso: cabe aos outros fazer a sua parte. Nós não somos guer­reiros...

Os homens de cabelos brancos mergulharam em silêncio no rio e retomaram o caminho do mar.

Os primeiros a alcançar a cidade foram os guerreiros das estepes, seguidos dos Caçadores do Irtych Violeta, conduzidos por Kushumái em pessoa. Atracaram-se com uma dezena de Orks que tentava fechar outra vez a porta.

— Enfim, um pouco de ação! — rugiu Toffan, abaten­do a espada gigantesca sobre o crânio de um dos mons­tros, estupefato de encontrar à sua frente um homem do seu tamanho.

Os guerreiros exterminaram os Orks presentes à porta, antes mesmo da chegada dos Caçadores.

— Vocês poderiam ter deixado um para nós! — brin­cou um deles, com uma lança numa das mãos e um machado na outra.

— Podem ter certeza — respondeu Toffan, mostrando com o queixo os cachos de Orks que desciam das mura­lhas — vai ter para todo mundo...

— Não era para os outros entrarem atrás? — inquietou-se Kushumái. — O que estão fazendo?

— Acho que está havendo um problema — falou um Caçador.

Com efeito, a cem metros das muralhas, salteadores e homens do Oeste, que constituíam o grosso das tropas, estavam presos ao chão, gritando de surpresa e raiva! Tinham sido paralisados por uma coisa qualquer móvel e leitosa, derrubados como balizas de boliche. Uma espécie de vaga mágica gigantesca deitou por terra os audaciosos que tentavam atingir a cidade.

Kushumái ergueu os olhos para o alto das muralhas: os padres tinham tecido um poderoso sortilégio que impedia seus amigos de lhe trazerem reforço!

— Coragem! — gritou aos cinqüenta homens, mais ou menos, que tornaram a cerrar fileiras. — Yorwan e Geral­do estão lá fora, com os mágicos Korrigãs. Com certeza irão encontrar uma solução!

— Rapidamente, espero — disse Toffan, com calma. — Porque parece que o número de Orks que está chegando é muito, muito grande!

Yorwan e Geraldo não perderam tempo pensando quando se deram conta de que Kushumái tinha sido apa­nhada numa armadilha na cidade, com apenas um pu­nhado de homens. Por mais valorosos que fossem, não seriam mais capazes que os Cavaleiros, diante das hor­das de Orks que Yénibohor abrigava! Os dois Feiticei­ros lançaram um olhar furioso aos padres de branco que, do alto da muralha, formavam uma cadeia, revezando-se na magia. Depois se afastaram, em companhia de Qadwan e dos Korrigãs.

— Vamos unir nossos poderes, Geraldo, Qadwan e eu — explicou Yorwan a Kor Hosik. — A magia de vocês é muito diferente para podermos nos aliar com vocês. Que os Korrigãs façam o melhor que puderem para nos aju­dar a romper a vaga branca!

Kor Hosik transmitiu a proposta aos velhos sábios. Estes sacudiram as cabeças. Enquanto os três Feiticeiros se davam as mãos e adotavam os Sthada Incertos do contra-sortilégio que elaboravam, os Korrigãs traçaram um círculo sobre o chão e se puseram a dançar no meio.

— Pelo poder do Auroch e da Mão; do Cisne e do Ano; Uruz, que corre sobre a neve dura; Naudhiz, que anda nu no frio; Elhaz, que crepita quando arde; Yéra, a generosa: façam dormir os espíritos maus e desfaçam aquilo que a magia fez! Uney!

— Gari Afiado como a serpente, violento fabricante de viúvas, pelo poder da peça de prata, e do sangue do qual te nutres, derruba o obstáculo poderoso, que zomba de teus filhos!

O sortilégio invocado pela magia das estrelas saiu de encontro à dos padres de Yénibohor. A bruma dourada atacou a vaga translúcida e tentou contê-la, à maneira de um afortunado dique lançado contra a tempestade. Mas, tendo lutado, cedeu e explodiu numa girândola de cente­lhas amarelas.

Imediatamente atrás, surgida da invocação dos Oghams, a magia da terra e da lua bateu, por sua vez, na vaga, com um intenso clarão vermelho. O ar adensou-se em torno do sortilégio leitoso, que se fixou e depois refluiu, ligeiramente. Mas, embora alquebrada, a prote­ção dos padres continuou no lugar.

— A magia nós mais forte que a magia homens bran­co nos muros — disse Hor Kosik desolado. — Mas eles muito numerosos! Um pouco menos homens branco e Ogham pulverizar o sortilégio!

— Tem razão, Kor Hosik — disse Geraldo, com a cara sombria. — Mas o que podemos fazer?

Ressoou a batida seca de um tiro. Um padre vacilou em cima das muralhas. Depois, caiu para a frente e se estatelou embaixo...

 

— Que foi isso? — perguntou Geraldo, que assistiu à cena sem compreender.

Outra detonação se fez ouvir e um segundo padre despencou das muralhas, segurando o ventre.

— Lá! — exclamou Yorwan, mostrando com o dedo o conjunto de rochedos de onde Uriano de Troïl tinha dis­cursado para a Confraria uns dias antes.

Com o cano das armas apoiado em pedras, fazendo pose para mirar, os Homens das Areias transformaram os padres em alvos...

Os três Feiticeiros correram até eles. Ninguém tinha visto arma de fogo no Mundo Incerto e os longos fuzis de um tiro que os homens, envoltos em tecidos espessos azul-noite, branco-creme e vermelho-sangue, portavam, provocou entre os salteadores e camponeses do Oeste um espanto considerável.

— Geraldo! — gritou Âmbar, com um sorriso, indo a seu encontro.

— Âmbar! — exclamou Geraldo, ao vê-la. — Então, conseguiu!

— Consegui! — confirmou a jovem, superexcitada. — Chegando à beira do Deserto Voraz, acendemos uma grande fogueira, eu e Tomás, para chamar a atenção dos Homens das Areias. Eles vieram, mas demorou! Depois, foi preciso encontrar o amigo de Guillemot, Kyle, e contar-lhe nossa história. Depois, Kyle teve que reunir os três clãs de seu povo e convencê-los a nos trazer ajuda. Em seguida, foi preciso voltar! Tudo isso demo­rou muito tempo! Tempo demais! Por isso só estamos chegando agora. E depois...

— Seu amigo, Tomás, está bem? — perguntou, de re­pente, Qadwan. Ele está com você?

— Sim, hum... ele... ele está aí! Ele vai bem.

— Tomás? — chamou Qadwan, que a hesitação de Âmbar tinha deixado inquieto. — Onde você está se escondendo?

— Não estou me escondendo — resmungou Tomás. No mesmo instante, deixou o abrigo dos rochedos, seguido de Romaric, Gontrand, Bertram, Corália, Ágata, Toti e um menino da idade deles, de olho azul, cabelo preto e pele queimada de sol.

— Não! — exclamou Geraldo, quando viu o pequeno bando todo. — Bertram, eu não pedi a você que...

— Eu tentei — defendeu-se ele. — Mas são mais cabeçudos que jumentos!

— Precisávamos de guias para chegar até os senhores — interveio o menino de cabelo preto.

E apresentou-se.

— Eu me chamo Kyle e sou o filho dos chefes das Três Tribos do Deserto!

— Kyle, sejam bem-vindos, você e os valorosos Homens das Areias — respondeu Yorwan, no lugar de Geraldo. — Pode-se dizer que essas armas, com as quais os Homens das Areias atiram, embora não habituais, são providenciais!

— Meu povo sempre as possuiu. Ou pelo menos desde que se viu bloqueado no Deserto Voraz — come­çou a explicar. — Com certeza, vêm de outro mundo, onde temos que adquiri-las, já que vivemos como nôma­des, fora do Mundo Incerto. Os filhos herdam as armas dos pais há gerações. Tomamos muito cuidado com elas, pois nos protegem dos bandidos e das hostes de Yâdigâr tanto quanto o medo do Deserto!

— O que me espanta — falou Geraldo — é que as balas dos fuzis não sejam, como nós, repelidas pela vaga mágica...

— Acho que são rápidas demais para a magia usada pelos padres — respondeu Yorwan, refletindo um mo­mento. — O importante é que os eliminam! Quanto menos padres houver, menos o sortilégio terá poder... Vamos voltar para junto dos Korrigãs e nos preparar para forçar passagem.

Geraldo concordou. Antes de se pôr em marcha, Yorwan voltou-se para os jovens, franziu as sobrance­lhas e fez uma cara séria.

— Eu os proíbo formalmente de deixar esses roche­dos! Se vir um só de vocês desobedecer às minhas or­dens, prometo uma punição cuja lembrança ficará para o resto dos seus dias! Espero ter sido bem compreen­dido...

Enquanto isso, Kushumái, seus Caçadores e os guer­reiros das estepes sofriam o assalto dos Orks que des­ciam das muralhas.

A jovem mulher desembainhou a espada e a apontou com um gesto preciso em direção aos monstros que ata­cavam. Os Caçadores se reuniram em torno dela, pron­tos para defendê-la, ao custo de suas vidas. Os guerrei­ros, por seu lado, se dispersaram, para terem maior amplidão de movimentos.

— Os primeiros a chegar nas Estepes de Luz esperam os outros! — gritou, quase que alegremente, Toffan, a seus companheiros.

Um Ork caiu em cima dele, brandindo uma maça manchada de sangue. O gigante empunhou com as duas mãos sua formidável espada e evitou o ataque com facilidade. Depois, abaixando-se e girando em torno de si mesmo, golpeou-o na barriga, reerguendo-se para lhe fender o crânio. Evitou agilmente o ataque de outro monstro, atrás, com um pontapé que o dobrou em dois; depois, grunhindo pelo esforço, fez saltar sua cabeça com um poderoso movimento da lâmina. A faixa de pano oleoso que mantinha os cabelos cinza e ásperos do Ork voou, enquanto a cabeça rolava pelo chão.

— Eu sempre disse que os Orks eram menos perigo­sos do que pareciam! — falou Toffan, que parecia estar se divertindo.

Não era essa a opinião dos Caçadores, que estavam tendo grandes dificuldades para conter os monstros, cuja força formidável já tinha matado três deles. Feliz­mente, treinados nas técnicas de combate em grupo, os Caçadores tinham formado uma linha de defesa com­posta dos portadores de lança, que mal ou bem manti­nham os Orks furibundos à distância.

— Se os seus Feiticeiros não acabarem rapidamente com os padres — avisou um dos Caçadores — nós sere­mos submersos.

— Eu sei — respondeu Kushumái, tomando fôlego. — Onde estão os guerreiros do Norte?

— Aparentemente, causando desgostos a nossos ata­cantes! — respondeu um Caçador, admirado.

A Caçadora felicitou-se pela presença deles. Eram combatentes dignos de nota. Com cem, se quisessem, poderiam conquistar o Mundo Incerto. Felizmente, eram de temperamento solitário, e sua visão da vida era, essencialmente, poética...

Um brilho de medo atravessava os pequenos olhos cruéis dos Orks, que afrontavam os robustos guerreiros. Um grande número deles jazia no chão, enquanto os gigantes do Norte estavam ainda todos de pé.

— E hop, corte e destripe, e hop! Fure os olhos! — pôs-se a cantar Toffan, com sua voz forte.

Derrubou um Ork e enfiou a espada no peito de outro.

— E hop, esvazie seu sangue, e hop, quebre seus den­tes! — continuaram em coro seus companheiros, arran­cando membros e triturando crânios.

Estavam todos tão absortos na batalha que se desen­rolava no interior das muralhas que ninguém reparou nos padres caindo das muralhas.

Os Homens das Areias atiravam metodicamente, com toda a calma, e cada tiro atingia seu alvo. Os pa­dres, pendurados nas muralhas altas da cidade, troca­vam olhares enlouquecidos. Mas, sob pena de romper o sortilégio que mantinha o exército das Colinas à distân­cia da cidade, lhes era proibido mover-se! Assim, lívidos, viram seus colegas caírem, uns após os outros.

— Agora, nossa magia deve passar — declarou Yorwan com um ar satisfeito, contando as silhuetas brancas em cima do muro. — Vamos tentar de novo!

Mas Kor Hosik se interpôs.

— Os Sábios Korrigãs dizer que vocês deixar fazer magia da terra. Vaga branca agora não fazer peso!

Yorwan, Geraldo e Qadwan hesitaram, mas final­mente aceitaram, para não melindrar os aliados. Afinal de contas, haveria tempo de apelar para a magia das es­trelas se a dos amigos viesse a se revelar insuficiente!

Os velhos Korrigãs recomeçaram a dançar, cantaro­lando um sortilégio em korriganês, à vista intrigada e atenta dos Feiticeiros.

— Stann! Osso da terra, potência do denso e da eternidade, pelo poder do farol etéreo e do dragão de pedra, faça-te mar desenvolto contra mar desenvolto! Rola e reverte as barreiras!

A magia vermelha destilou do contorno do círculo traçado no chão.

Reuniu-se para formar, por sua vez, uma vaga, uma vaga enorme, que se lançou em direção daquela que pro­tegia a cidade. Enfraquecida devido ao desaparecimento de numerosos padres, a vaga de energia branca ergueu-se, apesar de tudo, diante da magia dos Korrigãs. Mas, quando a onda dos Oghams a atacou, com uma explosão de trovão, quebrou-se e dispersou-se de maneira lamen­tável.

— Atacar! — berrou o Arqueiro, precipitando-se rumo a Yénibohor.

Os bandidos o seguiram.

— Ao ataque! — gritou, por sua vez, o Luthier, cha­mando os homens do Oeste ao combate.

— Vamos? — perguntou Yorwan aos companheiros.

— Vamos! — responderam ao mesmo tempo Geraldo e Qadwan.

Do rochedo onde Geraldo os tinha confinado, Ro­maric, Gontrand, Âmbar, Corália, Ágata, Tomás, Ber­tram, Toti e Kyle viram-nos lançarem-se ao ataque a Yénibohor. Mesmo os Korrigãs se juntaram ao grupo. Apesar do pouco tamanho, corriam mais depressa que os outros. Logo os Homens das Areias se misturaram, por sua vez, aos salteadores...

Os nove jovens se entreolharam.

— Vamos ficar aqui bem comportados? — perguntou Gontrand, num tom sarcástico.

— Está sonhando! — respondeu Kyle.

— Yorwan disse que não queria ver nenhum de nós longe do rochedo — lembrou Romaric. — Mas... se for­mos todos juntos, hein? Não estaremos desobedecendo de verdade!

— É verdade, Romaric tem razão! — aplaudiu Corália. Curiosamente, Bertram não tentou fazê-los mudar de idéia. Até parecia estar mais impaciente que os outros.

— O que estamos esperando, então? — falou.

— O último que chegar à cidade é mulher do padre! — gritou Âmbar.

E saíram correndo em direção às altas muralhas, sol­tando gritos selvagens.

 

— Senhor? Senhor? O exército lá fora se prepara para invadir a cidade...

A silhueta de trevas se encontrava de pé diante de uma mesa de carvalho maciço, no meio do aposento que lhe servia de laboratório, situado no alto da torre. Um livro grosso, com a capa preta salpicada de estrelas aber­to à sua frente, lia febrilmente, murmurando palavras inaudíveis.

Voltou-se, em fúria, para o sacerdote que a tinha interrompido.

— Ousa... me perturbar... por coisas insignificantes... O homem do crânio raspado e túnica branca se prosternou.

— Mas, Senhor... — gaguejou.

— Veja esse detalhe com Lomgo... e com Thunku... Eu o pago bem caro... para isso... Agora chega... Proíbo que me incomodem de novo... Mesmo que a cidade... venha a desmoronar no mar...

O padre permaneceu em silêncio e saiu do cômodo sem insistir. Azar, o Senhor ignorava que ninguém con­seguia encontrar Lomgo desde que a cidade tinha sido sitiada...

A Treva voltou ao sortilégio contido no Livro das estrelas. Era um dos últimos a que tinha chegado a deci­frar, usando de todos os seus poderes. O resto do manual se recusava obstinadamente a se deixar ler...

O livro das estrelas, que tinha dado à Guilda sua ciência da magia, possuía, de certo modo, uma vontade própria. Esta era uma de suas particularidades. Apesar do trabalho assíduo dos Feiticeiros e da própria obstina­ção da Treva em pessoa, o livro impedia o leitor de pro­gredir além de uma determinada página! E isso, há sécu­los. Foi preciso a Treva travar duelos impiedosos com O livro das estrelas para finalmente arrancar-lhe umas migalhas de sortilégios... que, a propósito, ninguém mais detinha.

Mas o que eram aqueles infelizes sortilégios compa­rados com todas as promessas contidas nas páginas? Aquele que viesse a decifrar o todo do Livro tomaria posse do mundo inteiro — de todos os mundos! Aquele que dominasse O livro das estrelas seria capaz de sub­meter à sua onipotência o País de Ys, o Mundo Incerto e, principalmente, o Mundo Certo.

Faltava pouca coisa para isso. Só uma criança, com um Önd mais desenvolvido que o normal, mais recepti­vo que os outros aos poderes dos Grafemas! Precisa­mente aquele rapazinho que o enfrentava, de modo incompreensível, numa masmorra da torre, no andar de baixo...

A Treva bateu na mesa com o punho, depois forçou-se a se concentrar de novo no seu sortilégio.

Tinha tido uma idéia para vencer a resistência de Guillemot! Uma idéia que lhe demandaria todo o seu tempo e toda a sua energia, depois do fracasso da Tartaruga-Mundo...

Uma vez que afrontar o menino diretamente só fazia reforçar os poderes deste, a Treva tinha decidido atacá-lo de surpresa, pelas costas, sem que ele se desse conta. Tinha, então, tramado um sortilégio complicado, que destilava de maneira invisível através das paredes da torre, a partir da sua mesa, Grafema após Grafema. Os primeiros resultados começavam nitidamente a se fazer sentir. Na cela de Guillemot, imobilizado no meio de seu ovo cósmico, na posição extática que o havia sub­traído do mundo exterior, a luz azulada de Odala já não iluminava a Armadura de Aegishjamur e as chamas ver­melhas estavam extintas em três das oito ramificações de Hagal...

O vigor do assalto fez recuar a guarnição de Orks até à ponte que atravessava o rio. Kushumái se plantou no meio da turba, procurando com os olhos os principais chefes do exército das Colinas, com o fim de organizar as operações dentro da cidade. Seus olhos verdes faiscavam. Estava linda — dir-se-ia uma deusa da Guerra.

— Caçadores! — gritou, dirigindo-se a seus homens. — Para a prisão! Libertem os Cavaleiros lá aprisionados!

Os homens do Irtych Violeta, abandonando o campo de batalha, lançaram-se em direção ao edifício que, se­gundo os espiões do Urso, deveriam abrigar as masmorras de Yénibohor.

— O Arqueiro! O Luthier! — continuou ela. — Cuidem dos Orks!

A batalha fervia. Os homens do Oeste enfrentavam os monstros. Os bandidos estavam se saindo melhor, mas via-se que a relação de forças era-lhes nitidamente desfavorável.

— Faremos o que for possível! — berrou o Arqueiro. Kushumái, que não tinha perdido de vista o principal objetivo daquele ataque, assegurou-se de que Yorwan, Geraldo e Qadwan, acompanhados dos Korrigãs, a seguiam de perto. A torre deveria ter sua defesa própria, não constituída de Orks, mas de padres!


— Toffan! — chamou ela. — Nós vamos à torre! Abra passagem para nós com os seus guerreiros!

— Você disse abrir? — respondeu o gigante, com iro­nia. — Muito bem!

Precipitou-se à frente e partiu um Ork ao meio.

Os guerreiros das estepes, usando as espadas imen­sas, abriram uma passagem no meio do campo de bata­lha. Os Feiticeiros, os Korrigãs e, furtivos como sombras, os Homens das Areias, com seus fuzis antigos, esgueiraram-se atrás deles.

— A torre! É desta torre mesmo que você falava? — perguntou Ágata a Romaria

— Pelo menos não estou vendo outra...

O pequeno bando tinha conseguido se enfiar cidade adentro e aproveitando-se do tumulto geral e das nuvens de poeira que o combate levantava, alcançou refúgio numa ruela, ao abrigo da batalha.

— Vamos lá — propôs Âmbar. — É inútil perder tempo.

— Estou de acordo! — aprovou Bertram.

Os nove jovens tomaram a direção da torre sombria que se destacava no céu. Com grande atenção, só anda­vam por ruelas, encostados às paredes.

Estavam a ponto de chegar ao pé da torre, quando Corália deu um berro. Saindo de uma rua perpendicular, um Ork se preparava para persegui-los, fazendo girar a maça por sobre sua cabeça.

— Ai, não! — gemeu Âmbar.

— Não acham que tem um certo ar de déjà vu! — exclamou Gontrand, com um suspiro.

Ele acabava de lembrar do episódio na floresta de Troïl, quando caíram numa emboscada armada por Orks.

— É verdade — replicou Tomás. — Vão ver só... Desembainhou o facão de caça tomado de emprésti­mo do pai de Ágata e fez meia-volta. Depois, lançou-se de encontro ao Ork que, visivelmente, não esperava ser tomado de assalto. A criatura monstruosa mal teve tempo de abater sobre ele sua arma: levada pelo seu impulso, esta mergulhou no chão. Tomás, atingido na perna e no ombro, berrou de medo. Lágrimas de dor lhe subiram aos olhos, mas mesmo assim encontrou forças para golpear o Ork diversas vezes com a faca. Depois, desmaiou. Embaixo dele, o Ork agitou-se um breve ins­tante, enrijeceu, depois parou definitivamente de se mexer.

— Tomás!

Ágata correu para junto do amigo. O resto do bando a seguiu. Em primeiro lugar, certificaram-se de que o Ork tinha mesmo passado desta para melhor, depois foram cuidar de Tomás, que jazia inconsciente, atingido pelo golpe de maça do monstro. Constatando o embara­ço e o mau jeito dos companheiros, Toti apressou-se a colocar o ferido de lado, numa posição em que não cor­ria o risco de sufocar.

— Você entende de primeiros socorros? — perguntou Ágata, lançando ao menino um olhar cheio de esperança.

— Sou eu que cuido dos amigos de meu pai quando estão feridos — admitiu Toti, enrubescendo ligeiramente.

— Neste caso, se você quiser — propôs Ágata —, você fica comigo para cuidar de Tomás e me ajudar a colocá-lo a salvo numa dessas casas vazias. Os outros, vão à torre. Ela está bem aí!

Romaric, Corália, Âmbar, Gontrand e Bertram hesi­taram em abandoná-los, mas após uma discussão, reco­nheceram que Ágata estava certa. Tinham que ir até o final de sua empreitada. Se não, todos os esforços dispendidos até ali teriam sido em vão.

— Boa sorte, Ágata — disse Âmbar, abraçando-a.

— Salve Guillemot por mim! — respondeu a menina alta, emocionada. — E também — acrescentou ela, em voz baixa — por favor, cuide de Gontrand...

Âmbar olhou para Ágata surpresa, depois esboçou um sorriso, querendo dizer que tinha entendido a men­sagem. Ao contrário do que pensavam os meninos, havia segredos que as meninas não traíam...

Ela tomou a frente do grupo então reduzido a seis pessoas. Alguns minutos mais tarde, esgueiravam-se torre adentro por um postigo entreaberto.

 

O alarido da batalha não passou despercebido dos Cavaleiros prisioneiros no subsolo de Yénibohor. Al­guns fizeram escadinha para que outros tentassem ver o que se passava através dos respiradouros que davam na rua.

— Não se vê nada — disse Ambor, que o Comandante tinha levantado nos ombros.

— O barulho parece vir da entrada da cidade — acres­centou Qadehar, montado nos ombros de Uriano, numa cela vizinha. — Na minha opinião — continuou ele, com uma ponta de esperança na voz — são os reforços que Geraldo e Qadwan trouxeram de Ys!

Exclamações alegres ressoaram de um extremo a outro do corredor que separava as fileiras de cubículos.

— Se Mestre Qadehar está certo — anunciou o Co­mandante com sua voz forte — temos de estar prepara­dos: nossos companheiros estão tentando nos libertar!

Mas a recomendação do chefe da Confraria foi inú­til: os Cavaleiros, vibrando, estavam todos de pé e espe­ravam por seus salvadores com esperança e vigor reno­vados.

Um tumulto acompanhado de gritos abafados logo se fez ouvir ao lado, da sala onde ficavam os guardas. Os Cavaleiros, que esperavam ver outros Cavaleiros, trazidos de Ys por Geraldo, ficaram de boca aberta quando descobriram, correndo pelo corredor, homens vestindo uma estranha armadura violeta e com capace­tes encimados por crânios de animais. Sua estupefação chegou ao auge quando esses homens, ao abrirem as grades das masmorras com a ajuda de chaves arrancadas dos guardas, se dirigiram a eles na língua do Mundo Incerto...

— Quantos vocês são? — perguntou um dos liberta­dores.

— Somos cento e vinte — respondeu o Comandante, identificando-se. — Cento e vinte Cavaleiros, dos quais uns quarenta têm ferimentos leves.

— Se puderem segurar uma arma, mesmo os feridos serão bem-vindos — declarou o Caçador. — É preciso ir socorrer os infelizes que estão lutando na entrada da cidade. Os Orks os estão dizimando!

— Infelizes? — espantou-se Bertolen.

— Salteadores e camponeses vindos de todo o Mundo Incerto! Gente mais acostumada a cortar trigo que pes­coços, mais hábil em roubar comerciante que em enfrentar monstros sanguinários.

— Vocês ouviram? — rugiu o Comandante, dirigindo-se a seus homens. — Vamos deixar as pobres pessoas serem massacradas, gente que teve a coragem e a amiza­de de vir em socorro de egressos de um mundo estran­geiro?

— Não! — berraram os Cavaleiros, em uníssono.

— Onde podemos encontrar armas? — perguntou o Comandante virando-se para o Caçador.

— Há sabres dos Orks e machados de guerra na sala dos guardas.

— Acredito — disse Ambor, com um grande sorriso — que isso vai resolver...

Entrementes, junto à entrada, encurralados entre a grande porta e o Rio Molhado, os homens do Oeste e os bandidos sofriam perdas pesadas. Lia-se o desespero no rosto dos combatentes, que aparavam os golpes e rea­giam sem acreditar no que estavam fazendo.

Ao contrário, os Orks grunhiam de satisfação, vendo as clareiras que se abriam nas fileiras do exército das Colinas. Estimavam que em pouco tempo teriam esma­gado aquela tropa ruim!

Mas, de repente, com o tropel de uma cavalgada, os Orks mais próximos da ponte, se voltaram. Seus olhinhos se arregalaram de medo: desembocava da rua que leva­va à prisão toda uma companhia de Cavaleiros, brandin­do sabres dentados e machados afiados, preparada para se atirar sobre eles.

— Estamos salvos! — berrou o Arqueiro.

— Os Cavaleiros de Ys! Esses são os Cavaleiros de Ys! — gritou o Luthier.

Serenados com a chegada daquele reforço inespera­do, salteadores e camponeses lançaram-se à batalha com nova energia.

Mergulhando, com a cabeça baixa e a arma erguida, bem no meio dos Orks, petrificados, os Cavaleiros de­ram livre curso a seu furor, amplificado com a humilha­ção de sua estada na prisão da cidade. O enfrentamento deu uma virada, e os Orks começaram a recuar, passo a passo...

Uriano e Qadehar, que continuava usando a armadu­ra amassada do pobre Valentim, saíram por último do edifício que abrigava o calabouço da cidade. O gigante suplicou a seu amigo que se apressasse; os Cavaleiros já estavam longe e, pelos gritos que ouviam, os primeiros já estavam às voltas com os Orks. Mas o Feiticeiro olha­va para outra parte. Para a torre maligna, que se erguia no centro da cidade.

— Vamos deixá-los, estão em número suficiente! Temos coisa melhor a fazer.

— Melhor que lutar? — protestou Uriano. — Mas, Qadehar...

— Escute, Uriano! — intimou-o secamente o Feiti­ceiro. — Não acha que já cometeu erros demais?

O colosso baixou a cabeça, com o ar miserável. A lembrança de sua responsabilidade na morte de Valentim o tomou dolorosamente. Deixou cair os ombros e uma lágrima lhe correu pela bochecha.

— Perdão, Qadehar — desculpou-se Uriano, com a voz fraca. — Não passo de um pobre tolo.

— Arrependimentos não servem para nada. Temos que chegar naquela torre! Tenho certeza de que é lá que Guillemot está preso.

Sem mais uma palavra, Qadehar fez meia-volta e andou apressado em direção ao prédio inquietante, arrastando atrás de si o Senhor de Troïl.

— Qual é o programa? — perguntou Kyle a seus ami­gos, uma vez que todos tinham penetrado na torre.

— Vamos procurar Guillemot e tirá-lo daqui! — res­pondeu Bertram.

— Perfeitamente resumido — aprovou Gontrand.

O aposento em que se encontravam assemelhava-se a uma cozinha. Deviam ter tomado uma entrada de ser­viço! Felizmente, estava deserta, talvez evacuada às pressas, como faziam supor as cadeiras caídas e a porta escancarada. Uma passagem, do lado oposto, se abria para uma escada em espiral, que conduzia, de um lado, ao subsolo e, do outro, aos andares.

No momento em que iam subi-la, ruídos de passos os fizeram recuar às pressas.

— Vem vindo alguém! — exclamou Corália, em voz baixa.

— Temos que nos esconder — disse Romaric.

— Mas onde? — desesperou-se sua amiga, olhando em volta.

— Ali, no armário! — propôs Kyle.

Correram todos os seis em direção a um armário imenso, do comprimento da parede, e meteram-se lá den­tro. Felizmente, o armário — um enorme guarda-comida, talvez — encontrava-se completamente vazio. Fecharam a porta, mas tiveram o cuidado de deixar uma fresta.

Uns cinqüenta Orks surgiram, então, correndo, na cozinha. Mais aterrorizadores que todos os que já ti­nham visto até o presente, eram dirigidos por uma espé­cie de gigante de armadura negra, cujos olhos faiscavam de cólera. Três sacerdotes, de cabeça raspada, vestindo sua inimitável túnica branca vinham atrás.

Atemorizado, o pequeno bando refugiado no armá­rio não pôde deixar de estremecer.

— Thunku! — murmurou Corália.

— Psiu! — fez Âmbar, rolando os olhos.

Os Orks e seu chefe, que era o Comandante Thunku em pessoa, saíram da torre. Os padres fecharam cuida­dosamente a porta principal, elaboraram rapidamente um sortilégio para bloqueá-la, depois afastaram-se em silêncio.

Os jovens — os corações batendo a ponto de explodir — esperaram por um longo tempo até ousarem deixar o esconderijo.

— Meu Deus! O que é isso? — espantou-se Uriano, ao descobrir a cortina de chamas negras que impedia o acesso à torre.

— Uma barreira mágica, com certeza, armada pelos sacerdotes — explicou Qadehar, examinando com aten­ção o sortilégio. — Uma barreira sólida, que não conse­guirei romper sozinho!

Cerrou os punhos de raiva.

— É muito estúpido! — disse o Feiticeiro intempesti­vamente. — Guillemot está aqui, a alguns passos, e eu estou impotente! Eu, o melhor Feiticeiro da Guilda! É ridículo...

— Puxa vida, sempre a se vangloriar, hein? Qadehar voltou-se bruscamente. Geraldo encontra­va-se à sua frente. Uma tropa espantosa o acompanhava.

— Não se preocupe — continuou Geraldo, enquanto Qadehar o abraçava emocionado. — Não está mais sozi­nho. Prometo que vamos tirar seu Aprendiz daí.

Escapando do abraço do Feiticeiro, Geraldo fez as apresentações.

— Ao lado de Yorwan e Qadwan, eis Toffan e seus guerreiros das estepes. Sem esses homens valorosos, estaríamos mortos a esta hora!

O olhar de Uriano iluminou-se ao ver os fortes guer­reiros.

— E eis Kor Hosik, enviado por Kor Mehtar, o rei dos Korrigãs de Ys, e os grandes mágicos do Povo Pequeno — continuou Geraldo — disposto a fazer as apresentações da maneira mais apropriada.

— Eis-me muito honrado de me ver na presença de mágicos tão famosos: têm toda a minha confiança... — disse Qadehar em korriganês, com um movimento respeitoso do busto, o que provocou murmúrios de satisfação entre os Korrigãs.

— Atrás de nós, armados com fuzis, sempre tão modestos quanto discretos, estão os Homens das Areias. Quanto à jovem mulher escondida atrás de Yorwan — ela comanda o nosso exército e, de maneira mais geral, diri­ge a Sociedade do Urso, da qual lhe falarei mais tarde...

Kushumái deu um passo à frente e fixou o olhar nos olhos de Qadehar. Os olhos verdes encontraram os cinza. Os primeiros, brilhantes de emoção, os outros, arregalados de surpresa.

— Você? — exclamou o Feiticeiro, atônito.

— Bom dia, Azhdar, ou Qadehar, já que parece ser esse o seu nome de verdade. Estou feliz de revê-lo. Faz tanto tempo...

 

— Vocês... se conhecem? — perguntou Yorwan, visi­velmente estupefato.

Não era o único. Geraldo e Qadwan estavam de olhos arregalados.

— Hum... Sim — gaguejou Qadehar, enrubescendo ligeiramente e retorcendo-se dentro da armadura. — Encontramo-nos há muitos anos numa taverna de Ferghânâ...

— Você está escarlate, nossa! — exclamou Geraldo. — É a primeiríssima vez que o vejo nesse estado!

— Deve ser o calor — brincou Qadwan, com ar mali­cioso.

— Então você se chama Azhdar? — interrogou-o Uriano.

— Azhdar é o nome que nosso amigo usa quando viaja para o Mundo Incerto — respondeu-lhe Geraldo. — Para poder investigar as coisas discretamente...

— E para levar uma vida dupla... — alfinetou-o ainda Qadwan.

— Ai, por favor — interveio Qadehar, agastado. — Tivemos oportunidade de passar alguns dias juntos, só isso!

— Alguns dias e algumas noites, para ser precisa — interveio Kushumái, que se divertia com o embaraço do Feiticeiro.

— Éramos jovens... Esse encontro tem... quinze anos!

— Catorze anos — retificou a jovem. — Azhdar, por que tenta se justificar? O passado pertence ao passado, só isso. Hoje, sou Kushumái, a Caçadora, Feiticeira em exílio no Irtych Violeta, chefe da Sociedade do Urso e do exército que está tomando esta cidade. Você é Qadehar, Feiticeiro da Guilda. Se estamos juntos outra vez, não é para lembrar nosso encontro do passado, mas para salvar uma criança de Ys! E para pôr definitiva­mente um fim nas tramóias dos sacerdotes e no terror que eles fazem reinar neste mundo.

Qadehar contemplava Kushumái. Relembrou a jovem descarada que dançava sobre as mesas das tavernas e por quem se apaixonou loucamente quando era um jovem Feiticeiro: a tinha conhecido no curso de uma missão que realizava para a Guilda no Mundo Incerto. Aquela jovem esplêndida tinha se tornado uma mulher soberba, impressionante em termos de autoconfiança e vontade.

Qadehar fez um esforço para se conter.

— Você tem razão, é claro — respondeu ele. — Vol­temos à barreira de chamas. Como ultrapassá-la?

Yorwan mostrou com um gesto da mão o grupo de padres imóveis no alto da torre, querendo com isso dizer que a magia de Bohor estava mais uma vez trabalhando contra eles.

— Vamos agir do mesmo modo como fizemos para entrar na cidade! — respondeu ele a Qadehar.

Os Homens das Areias tomaram posição embaixo da torre, ergueram as armas e passaram a abater metodicamente os homens de branco.

Durante esse tempo, os Korrigãs traçaram um círcu­lo no pó e os guerreiros das estepes se prepararam para saltar através da brecha que a magia vermelha não tarda­ria a abrir...

No mesmo momento, em seu laboratório, a Treva exultava. As proteções à volta de Guillemot tinham, afi­nal, cedido! O sortilégio tecido com paciência infinita a partir d’O livro das estrelas venceu os Grafemas de que se tinha cercado o Aprendiz de Feiticeiro...

A Treva fechou o livro. Carregando consigo as som­bras, dirigiu-se à escada, que desceu rapidamente até o andar em que Guillemot estava aprisionado. Abriu a porta: dissolvidas todas as barreiras erigidas entre os dois, o menino jazia no chão, no local onde o ovo este­lar se tinha rompido.

— Enfim... poderei enfim... realizar a Grande Obra... A Treva aproximou-se de Guillemot, que se mexeu ligeiramente.

— Está acordando... Melhor assim, meu menino... Isso evita que eu o faça acordar... com brutalidade demais...

— Os... os Grafemas? — balbuciou Guillemot, com a voz entrecortada.

— Desapareceram... voaram... foram destruídos... Eu lhe disse... que você ia acabar sendo meu...

O Aprendiz de Feiticeiro tentou levantar-se, opor resistência a seu adversário. Mas estava fraco demais, e tornou a cair sobre o piso de pedra da masmorra. A Treva o segurou. Guillemot sentiu um frio insidioso invadir seu corpo.

— Levo-o... rumo a seu destino... Rumo a nosso des­tino...

Guillemot se deu conta de que a Treva o levava, o carregava para fora da cela. Reuniu o pouco de forças que lhe restavam e soltou um berro de protesto, um berro desesperado.

Os jovens afinal se decidiram a deixar o esconderi­jo onde tinham encontrado refúgio, dirigindo-se à esca­da. Naquele momento, hesitavam: era melhor subir ou descer?

— Proponho que a gente desça — disse Bertram. — Guillemot foi aprisionado, deve se encontrar num calabouço. Ora, todos sabem que os calabouços ficam no subsolo.

Ninguém encontrou nada para contradizer a argu­mentação do jovem Feiticeiro.

Romaric tomou uma tocha que ardia de encontro a uma parede e abriu a marcha. Aprofundaram-se nas entranhas da torre.

— Corália, o que está fazendo? — impacientou-se Âmbar. — Os outros já foram.

— Calma, estou indo — disse ela, terminando tranqüi­lamente de reatar seus laços.

No mesmo instante, ouviram um berro.

— Você ouviu?

— Parece a voz de Guillemot!

Âmbar e Corália ficaram imóveis e de ouvido alerta. Só escutaram ruídos secos, regulares. O barulho dos tiros dos fuzis lá fora.

— Garanto a você que era Guillemot! — repetiu Âmbar. — Vamos lá!

— Âmbar, espere, temos que avisar aos outros! Mas a intrépida menina já se tinha lançado escada acima.

— É sempre a mesma coisa — resmungou Corália, indo atrás dela.

Passaram por um primeiro quarto, vazio, subiram mais e desembocaram, afinal, numa peça vasta, atulha­da de instrumentos de feitiçaria.

Âmbar tinha ficado imobilizada e apontava, tremen­do, uma coisa no meio do aposento.

— Lá... olhe! É Guillemot e...

— A Treva!

Corália gritou ao ver a cena.

Guillemot estava deitado numa mesa sólida, ao lado de um livro grosso, com a capa constelada; parecia agitar-se fracamente. Diante da mesa estava de pé um vulto envolvido em trevas. No movimento que fez ao voltar-se para as intrusas, centelhas de escuridão se des­tacaram e encarquilharam no chão de uma maneira sinistra. Furando o manto de sombra, dois olhos que pareciam brasas avermelharam-se.

— Não é tocante... Essas meninas devem ser suas ami­gas, meu menino... É bom... muito bom... Todo espetácu­lo, afinal... requer espectadores... Todo momento históri­co pede... testemunhas...

A Treva falou com uma voz acariciante, quase doce, e os sussurros satisfeitos gelaram o sangue das duas irmãs. Aterrorizadas, incapazes de bater em retirada, sentiram as pernas dobrarem-se, e o coração se liquifazer. A Treva escarneceu.

— Está demorando, demorando muito — queixou-se Qadehar, desembaraçando-se da armadura.

— Paciência, meu amigo — respondeu-lhe Geraldo. — Os Homens das Areias estão indo o mais depressa pos­sível!

No mesmo instante, como que para confirmar o que ele dizia, dois padres caíram do alto da torre. Estimando o número de defensores suficientemente reduzido, os mágicos Korrigãs elaboraram o seu sortilégio. De repente, este brotou do círculo e se lançou ao assalto da cortina de chamas, que destruiu e espalhou, num jato de gotículas vermelhas e pretas. Com o choque, os últimos padres caíram, como que fulminados.

— Até que enfim! — exclamou Qadehar.

Os guerreiros das estepes se preparavam para saltar em direção à torre quando um Caçador sem fôlego sur­giu de uma ruela.

— Estamos tendo problemas na entrada! Thunku che­gou com reforços de Orks e os Cavaleiros já não são suficientes. Precisamos da ajuda dos guerreiros do Norte. Sem contar que os padres estão se refazendo. Das muralhas, mandam sortilégios que paralisam nossos homens.

Kushumái avaliou rapidamente a situação. Se o exército das Colinas cedesse diante dos Orks, também não teriam tempo para atacar a torre. Tomou a decisão:

— Toffan e seus guerreiros vão acompanhá-lo, assim como os Homens das Areias e os Korrigãs, se estiverem de acordo. Preciso dos outros aqui. É só o que posso fazer. Espero que a força de uns, a habilidade e os pode­res dos outros sejam o suficiente para fazer a balança pender para o nosso lado.

Toffan aquiesceu, assim como Kor Hosik, que repre­sentava os Korrigãs. Os Homens das Areias se contenta­ram com aprovar com um sinal de cabeça. Depois, par­tiram todos correndo, atrás do Caçador.

Foi então que Uriano adiantou-se.

— Kushumái, Qadehar, peço a honra de acompanhar esses bravos e levar meu socorro aos companheiros. Ofereçam-me a oportunidade de me redimir. Deixem-me ir com eles!

— Vá, velho Cavaleiro — aceitou a mulher, depois de um momento de hesitação. — Você foi feito para a guer­ra, a guerra aberta, aquela que se dá no corpo a corpo e nos golpes de espada! Quem sabe o que nos espera den­tro dessa torre, quais os malefícios, dos quais você não compreenderá nada? Vá!

Uriano de Troïl dirigiu à Caçadora um olhar cheio de reconhecimento e apressou-se a ganhar o campo de batalha.

— Eis-nos agora ao pé do muro! — declarou ela sole­nemente. — Se é que posso me permitir brincar uma últi­ma vez!

— Ora! Tem um ditado que diz que é com a faca no peito que se conhece a pessoa — disse Geraldo, dirigindo-lhe um sorriso conivente. — É no torreão que veremos o Feiticeiro.

Qadehar, Geraldo, Qadwan, Kushumái e o Senhor Sha dirigiram-se num passo decidido rumo à porta prin­cipal da torre.

 

Como os Feiticeiros já esperavam, a porta principal estava fechada e bloqueada por um sortilégio. Qadehar foi tentar uma entrada de serviço que percebeu mais adiante.

— Condenada também — anunciou, ao voltar.

— Paciência, vamos tentar abrir esta aqui! — disse Yorwan.

Conjugaram os poderes em torno de Elhaz, o Gra­fema desbloqueador. A porta cedeu mais facilmente do que tinham imaginado.

— Com cinco, damos conta! — brincou Geraldo.

— Acho, ao contrário, que os padres que confeccio­naram o sortilégio estavam com pressa — respondeu Kushumái. — Vamos lá...

No mesmo instante, ouviram gritos atrás deles: um grupo de padres corria em direção à torre.

— De onde saíram esses aí? — resmungou Qadehar.

— Sem dúvida, das muralhas — respondeu Kushumái. — Estão vindo dar uma mão aos colegas!

— Vão vocês — disse, de repente, o Senhor Sha. — Revistem a torre! Eu me encarrego de retê-los.

— Tem certeza?

— Tenho, Caçadora. Vão.

O Senhor Sha adotou uma postura terrível e acolheu os padres com possantes Thursaz. Os atacantes gritaram de raiva, mas tiveram que parar para construir um sorti­légio de defesa.

— Vão! — repetiu o Feiticeiro.

Sem mais demora, Qadehar, Kushumái, Geraldo e Qadwan esgueiraram-se para dentro do edifício.

No alto da torre, no aposento construído com pedras cinzentas, cheio de móveis e estranhos instrumentos, Âmbar foi a primeira a recuperar o domínio sobre si. Passado o instante de terror, respirou umas lufadas de ar, depois, de repente, sem compreender a força incomum que a guiava, avançou em direção à mesa sobre a qual jazia Guillemot.

— Fique onde está... Falei de espetáculo... E nem você nem a sua amiga... estão entre os atores... Simples espectadoras... Eu disse simples espectadoras... A pri­meira que tentar se aproximar... ou que tentar perturbar meu ritual... eu transformo em sapo...

Os sussurros cavernosos da Treva ressoaram de modo autoritário. A criatura tinha Guillemot à sua dis­posição... A menina parou imediatamente. O sentimento de impotência que a tomou e também a profunda injus­tiça fizeram as lágrimas lhe encherem os olhos.

Atrás, Corália compartilhava sua emoção.

Elas recuaram passo a passo até os primeiros de­graus da escada. Estavam tão fascinadas pelo que viam que em momento algum lhes veio a idéia de fugirem.

A Treva, de repente, parou de prestar atenção nelas, como se jamais tivessem existido, e tornou a se concen­trar no ritual que preparava, com Guillemot e o livro. Âmbar e Corália esforçaram-se para retomar a respira­ção normal e apaziguar os tremores de medo que as agi­tavam.

— Olhe, Âmbar! O que a Treva está fazendo com Guillemot?

Tendo aberto o Livro das estrelas, a Treva tentava revigorar seu prisioneiro.

— Parece que está achando Guillemot fraco demais para seu ritual...

— Não acha que podemos nos aproveitar disso para nos aproximarmos sem sermos notadas?

A Treva de repente voltou em direção delas seus olhos de brasa. As duas encolheram-se no ângulo da porta.

— Silêncio... silêncio, meninas malditas... Vocês estão me impedindo... de me concentrar...

— Antes assim! — comentou Âmbar entredentes.

Elas se calaram. Sem combinar mais nada, encas­quetaram de seguir a idéia de Corália e avançaram bem devagar na direção de Guillemot.

— Acham... que sou imbecil... — pôs-se a resmungar a Treva. — Talvez haja uma que... definitivamente... quer ser transformada em sapo...

As meninas pararam a alguns passos da porta, cons­cientes de terem ido longe demais.

— E se encontrarmos a Treva, assim, no meio da es­cada? — perguntou Bertram a Romaric, que avançava prudentemente, segurando a tocha à frente.

— Caímos em cima dela e arrancamos suas orelhas! — ironizou Gontrand.

— Você está com medo? — espantou-se Kyle. — Mas foi você que propôs ir em direção ao subsolo.

Bertram resmungou uma coisa qualquer incom­preensível e calou-se.

A escada continuava a descer, interminavelmente. As paredes suavam de umidade. Em alguns pontos, via-se enormes aranhas enganchadas no centro das teias.

— Brrr! — fez Gontrand. — Essas aí devem se alimen­tar de ratos! É estranho ainda não termos escutado Corália berrar! Corália?

Ninguém respondeu. Inquieto, Gontrand pediu uma pausa.

— Quem viu Corália pela última vez?

Um silêncio preocupado respondeu. Todos tinham apenas prestado atenção em si mesmos ao longo da des­cida, tão escorregadios eram os degraus, e tão grande era a angústia de encontrarem algo ruim. Romaric pas­sou a tocha a Bertram, que fechava o cortejo. Eram somente quatro.

— Âmbar? Corália? — Gontrand gritou de novo.

— Talvez alguma coisa as tenha retardado — sugeriu Kyle.

— Ou então alguma coisa aconteceu com elas — corri­giu Gontrand lugubremente.

— Vamos subir de volta! — disse Romaric, retomando a frente do pequeno grupo.

Sempre no seu ritual, a Treva apanhou numa prate­leira um frasco contendo um líquido grosso e escuro. Destampando-o, enfiou o gargalo entre os lábios de Guillemot, pálido como morto.

— Beba... recupere as forças... preciso de um menino vivo para o ritual... não de um cadáver...

Guillemot tossiu e devolveu um pouco do líquido. De repente, como uma chicotada, sentiu a vida invadi-lo outra vez. Seu corpo recuperou força suficiente para sentar-se, a duras penas, na beira da mesa de madeira.

— Bom... Muito bom, meu menino... Vamos poder passar... às coisas sérias...

Logo se ouviu um tropel. A Treva lançou um olhar terrível às duas meninas. Estas arregalaram os olhos e ergueram as mãos, mostrando que nada tinham feito...

Um vulto surgiu no umbral, logo seguido por dois outros. A Treva soltou um grito de cólera. Qadehar, Geraldo e Kushumái preparavam-se para entrar no labo­ratório. Mais embaixo, na escada, Qadwan tossia e recu­perava o fôlego.

A Treva fez um gesto largo na direção da entrada e soltou uns gritos guturais...

— Mestre Qadehar! — exclamou Corália.

Âmbar, de boca aberta, os braços balançando, olha­va fixamente para Kushumái, a mulher que sempre lhe aparecia em sonhos! Olhos verdes, cabelo claro, crânio de urso sobre o capacete... Então existia de verdade? O que significava aquilo? A jovem mulher também olhava para ela, com um sorriso enigmático sobre os lábios.

— Vocês! — exclamou Qadehar, ao descobrir as meni­nas de encontro à parede, a alguns metros.

— Mas, afinal, o que estão fazendo aqui? E onde estão os outros? — espantou-se Geraldo, por sua vez.

— Elas viram luz e entraram... — respondeu, no lugar delas, Kushumái, dando de ombros. — Não acham que podemos esclarecer essas questões mais tarde?

Como que aprovando, Qadehar correu em direção à mesa, no meio do aposento, sobre a qual se encontravam Guillemot e o Livro das estrelas. Não avançou muito: trombou com uma parede de energia que a Treva tinha erigido bem diante da porta. Uma parede transparente, como vidro, mas sólida como aço.

Âmbar e Corália correram para a barreira invisível e bateram nela. Estavam prisioneiras! Separadas do Feiti­ceiro pela magia da Treva! Os dedos de Qadehar estavam a alguns centímetros dos delas, mas mais inacessíveis do que se estivessem a quilômetros...

Os Feiticeiros e a Feiticeira se aproximaram.

— Afastem-se dessa parede! — Qadehar intimou as meninas.

Elas logo obedeceram.

Durante esse tempo, indiferente às manobras dos Feiticeiros, a Treva entabulava o ritual que iria, graças aos poderes de Guillemot, quebrar a resistência de O livro das estrelas e permitir-lhe descobrir todos os segredos...

Kushumái, Qadehar e Geraldo tentaram diversos sortilégios contra a barreira, todos fracassando lamenta­velmente.

— É incrível! — reconheceu Geraldo. — O menor dos Galdr que lançamos contra esta parede seria suficiente para arrombar todas as portas de Gifdu!

— O poder da Treva é fenomenal — suspirou Qadehar. — Nunca vi um sortilégio como este!

— Na minha opinião... — disse Qadwan, com a voz extenuada — a construção desta parede de proteção deve ter exigido muito tempo, mesmo para a Treva. Já devia estar feita, e ela simplesmente a ativou quando chega­mos...

O velho Feiticeiro, ainda esgotado pelo esforço que tinha feito para subir os degraus até o topo da torre, encostou-se a uma parede. Embora suas explicações não tenham modificado em nada a realidade, deram nova confiança aos seus condiscípulos, que compreenderam melhor o fracasso repetido das suas tentativas. Um sor­tilégio tecido durante um longo tempo, e poderoso, não se quebrava com tanta facilidade!

— E se tentássemos elaborar o Insigil do Lindorm! — propôs Geraldo.

— O sortilégio do Dragão? — exclamou Qadwan. — Está louco? Nem temos certeza se será capaz de quebrar a parede! E, se nos escapar, ficamos mal!

— Qadwan tem razão — confirmou Qadehar. — O Lindorm é poderoso, mas é perigoso, e nos exigiria tanta energia para criá-lo como para controlá-lo. É preciso encontrar outra coisa.

— Vocês acham que a parede é tão resistente de den­tro para fora como de fora para dentro? — perguntou subitamente Kushumái.

— Dificilmente — afirmou Qadehar. — Parede assim é sempre construída para resistir a uma agressão externa. Mas isso não nos faz avançar muito: estamos exatamen­te do outro lado da proteção!

— Tenho uma idéia — murmurou a Caçadora.

E, aproximando-se da barreira invisível, fez um sinal a Âmbar.

 

— Âmbar, chegue aqui...

A menina hesitou, depois aproximou-se de Kushumái.

— Quem é a senhora? Ainda estou sonhando?

— Não, está bem acordada. Não se trata de sonho. Prometo a você que logo, logo responderei a todas as suas perguntas. Mas o tempo urge! Quer me ajudar a sal­var seu amigo?

Com o dedo, apontou Guillemot, em cima da mesa.

Âmbar voltou-se: tremores percorriam o Aprendiz de Feiticeiro, tomado de um sobressalto a cada palavra que a Treva pronunciava. Imaginando o quanto ele seria capaz de suportar, de novo as lágrimas encheram-lhe os olhos.

— O Grande Sacerdote de Bohor se apóia na força dele para poder vencer a resistência do livro — continuou Kushumái, com a voz calma.

— E... e aí? — perguntou a menina com a voz trêmula.

— Seu amigo está morrendo. E só você pode vir em seu auxílio...

— Mas como? Diga-me, por favor!

— Deixando-me agir. Abandonando-se a mim, minha pequena Hamingja! Mas pode doer, estou avisando.

— Não faz mal — disse Âmbar, secando as lágrimas. — Estou pronta para tudo, desde que Guillemot viva.

— Era o que eu esperava. Você é corajosa, eu sei. Sempre soube...

A Feiticeira fechou os olhos e se pôs a cantarolar uma melopéia cheia de Grafemas. Do outro lado da bar­reira, Âmbar soltou um grito rouco e jogou a cabeça para trás. Seus olhos convulsionaram-se e ficaram bran­cos. Um grunhido surdo saiu de sua garganta. Ela botou as duas mãos espalmadas contra a parede de energia.

Ao contato das palmas da mão da menina, a parede começou a se romper. Gotas grossas de suor correram por seu rosto. Ela continuava rosnando e esse rosnar se tornava, a cada minuto, um pouco menos humano.

— É a primeira vez que assisto a tal fenômeno! — exclamou Geraldo.

— Alguma coisa me escapa — reconheceu Qadwan, que tinha recuperado as forças. — Visivelmente, Kushumái enfeitiçou essa menina e fez dela uma Hamingja, uma criatura submissa à sua vontade. No entan­to, é a primeira vez que elas se vêem!

— Não tenho tanta certeza disso... — interveio Qa­dehar, com um ar pensativo. — Vocês não repararam na expressão de Âmbar, quando viu Kushumái? Poder-se-ia dizer que já a tinha visto antes. Âmbar voltou de sua última estada no Mundo Incerto com terríveis dores de cabeça. Eu tinha posto isso na conta da viagem, mas...

— ...mas é o sintoma mais flagrante de um sortilégio de condicionamento! — insistiu Qadwan.

— Sim, e me lembro de que a última estada de Âmbar no Mundo Incerto tem inúmeros buracos, como que esquecimentos — acrescentou Qadehar.

— Perdas de memória, outra característica desse fenômeno — concluiu o velho Feiticeiro.

Em torno das mãos que Âmbar mantinha coladas contra a barreira de energia, agora apareciam fendas nítidas. Kushumái, sempre de olhos fechados, ofegava, cantarolando as palavras mágicas que a mantinham em contato com a menina. De repente, Âmbar vacilou e caiu de joelhos, sem cessar, porém, de tocar na parede. Tremia, e parecia esgotada.

— Não! — gemeu Kushumái. — Não! Mais um esforço, pequena! Estamos quase lá!

Corália viu a irmã se rolar de encontro à parede invi­sível. Sem refletir, correu e, para segurá-la, apertou-a contra si.

— Âmbar, você está bem? O que ela está fazendo com você?

Mas Âmbar mal podia responder. Tremia muito, como se tomada por febres terríveis. Corália ia puxá-la pelos ombros e deitá-la no chão, quando sentiu um ardor invadi-la. Abriu a boca e gritou de surpresa, assim como de dor. A parede começou a se rachar em torno de suas mãos.

— O que está acontecendo? — espantou-se Geraldo, do outro lado da parede mágica.

— Um fenômeno raríssimo, se não estou enganado — respondeu Qadehar. — Sem saber, Corália está transmi­tindo suas forças à irmã gêmea, à beira do esgotamento.

— Isso pode ser perigoso? — inquietou-se Qadwan.

— Sim — admitiu Qadehar, com uma franqueza brutal. — Mas, seja como for, Âmbar poderia ter morrido se Corália não viesse em seu auxílio...

Corália, com efeito, sentia a vida escapar de seu corpo e entrar no da irmã. Ao mesmo tempo, deu-se conta de que Âmbar tremia menos. Concluiu daí que estava lhe fazendo bem e aquilo a ajudou a aceitar melhor a dor insuportável no rosto e em toda a superfí­cie do corpo. Instintivamente, olhou o antebraço. Ali, onde instantes antes, havia uma pele macia e lindamen­te bronzeada, só existia carne intumescida, coberta de feridas e pústulas repugnantes...

Enlouquecida, levou uma das mãos ao rosto — seu adorável rosto de boneca que tantas emoções provocava entre os meninos. O que tocou nada tinha em comum com o que conhecia. Os dedos mancharam-se de san­gue, que brotava da carne viva... Ela deu um berro. Não é possível! Aquilo tinha que acabar, antes que ficasse completamente desfigurada!

Soltou-se da irmã e, na mesma hora, a dor se ate­nuou. Mas Âmbar recomeçou a tremer cada vez mais e o grunhido animal que brotava de seus lábios tornou-se queixoso como o de uma fera ferida.

Ao ouvir seus gemidos, Corália começou a chorar baixinho. Âmbar ia morrer? Aproximou-se e, de novo, tomou a irmã nos braços, apertando-a com todas as for­ças, com toda a sua afeição, com todo o seu amor. O que importava o rosto, se Âmbar não estivesse mais lá para olhá-la?

Qadehar, Geraldo e Qadwan, com um nó na gargan­ta, permaneceram silenciosos e sérios. Só os encanta­mentos da Treva que, concentrada em seu ritual aterrorizador, apelava para os poderes de Guillemot para abrir o livro, e os de Kushumái, que solicitava os de Âmbar para demolir a parede de energia, rompiam o silêncio.

De repente, com um barulho de vidro quebrado, todo um lado da parede mágica se desmoronou, liberando o acesso ao laboratório. Âmbar, Corália e Kushumái, no mesmo momento, caíram no chão, exaustas e sem cons­ciência. Qadehar e Geraldo acorreram.

— Cuide delas, Geraldo! — disse Qadehar.

Em seguida, encarou a Treva.

Esta tinha dado um berro de raiva ao ouvir a parede ceder. Ainda era cedo demais! Viu a luta contra a prote­ção mágica, mas a imaginava mais sólida e pensava haver tempo para concluir o ritual! Estragaram todos os seus esforços... Os malditos!

A Treva apanhou O livro das estrelas com uma das mãos e pegou Guillemot, ainda fraco demais para cami­nhar. Fez que ia fugir.

— Pare! — intimou Qadehar. — Seja você quem for, homem, mulher ou diabo, ordeno que me entregue a criança e o livro!

— Vamos ver... — escarneceu a Treva. — Você espera me vencer... Feiticeiro miserável...

Com um grito de raiva, Qadehar projetou contra ela um Thursaz Incerto. A Treva aparou o Grafema e o fez desaparecer numa prega de seu grande manto de som­bras, com a mesma facilidade como se se tratasse de um simples pedregulho. Qadehar encadeou, elaborando com toda velocidade, um Lokk, em torno do Grafema da imobilização, Ingwaz; seu sortilégio desapareceu da mesma maneira. Atrás dele, Geraldo e Qadwan troca­ram um olhar rápido.

— Depressa! — falou Geraldo, abandonando contra a vontade as meninas desmaiadas. — É preciso ajudar Qadehar! Pronto para o Insigil do Lindorm?

— Estou pronto.

A voz de Qadwan saiu trêmula.

 

Jamais em sua vida Qadehar enfrentou adversário tão poderoso. Não só os sortilégios que mandava à Treva ficavam sem efeito, como tinha que usar de toda a sua ciência para se opor aos que ela mandava.

De seu lado, a Treva estava sendo atrapalhada por Guillemot, a quem tinha que segurar.

Ver o menino, assim, em parte oculto debaixo do manto de trevas, o menino, à mercê de seu terrível adversário, reforçava a determinação do Feiticeiro. Jamais renunciaria! Nunca abandonaria seu Aprendiz!

— Largue o menino! — berrava. — Vamos acertar isto nós dois!

A Treva gargalhou e lançou uma fórmula que cres­tou a bochecha de Qadehar.

Durante esse intervalo, Qadwan e Geraldo prepara­vam o sortilégio formidável do Insigil do Lindorm.

Depois que cada um elaborou em sua mente o com­plexo sortilégio, trocaram outro olhar. Em seguida, deram-se as mãos e invocaram a força do Dragão:

— Laukaz, Isaz, Naudhiz, Dagaz, Odala, Raidhu, Mannaz, Mar e Gelo e Mão, Luz do dia, Terras possuí­das, Carruagem do sol iluminando o Ancestral, Talismã, Thurses, Skadi, Cavaleiros, Águias, Nerthus e Mani, façam crescer, despertem e guiem, protejam os espíritos, abram os locais fechados, que a energia em espiral estabeleça o elo com os Poderes! Desapareçam e deixem seu lugar para o Dragão da Terra, para que ele nos livre do Ser das Trevas! Lindorm!

No início, não aconteceu nada. Depois, o solo come­çou a tremer diante dos Feiticeiros, que esperavam, com o coração batendo à toda. Com um grunhido surdo, o pó se levantou e se pôs a rodar em torvelinho, cada vez mais rapidamente, até formar uma serpente que se tor­nou gigantesca. Quando estava inteira, iluminou-se toda a partir de dentro, transformando-se em ectoplasma de luz. Uma cara monstruosa apareceu numa extremidade, encimada por dois olhos frios como gelo. Os combaten­tes ficaram imobilizados. A criatura fantasma berrou e seu grito petrificou todo mundo de horror. A própria Treva empalideceu. O dragão hesitou. Passeou seu olhar infernal pelos dois Feiticeiros que tinham ousado chamá-lo e que estavam, eles próprios, paralisados de medo. Parecia furioso. Depois, subitamente, dirigiu-se à lucarna e desapareceu lá fora...

A batalha continuava enraivecida nas proximidades da entrada da cidade. A chegada dos guerreiros das este­pes tinha restabelecido o equilíbrio entre as forças pre­sentes, um equilíbrio ameaçado um momento antes pelo repentino e furioso aparecimento do Comandante Thun­ku, acompanhado de uns cinqüenta Orks mais poderosos e mais bem treinados que os outros. Homens do Oeste e bandidos tinham pago um pesado tributo no confronto, de modo que na luta restava um número pequeno deles, que preferiram cuidar de seus feridos, deixando a ação aos aliados, cujo ofício era a guerra.

Os Caçadores do Irtych Violeta, treinados nas técni­cas da caça, mantinham-se honrosamente na batalha. Os Cavaleiros faziam jus à sua reputação de combatentes fora do comum, e os monstros que os enfrentavam rece­biam mais golpes do que davam. Os guerreiros das este­pes tinham reservado para si os Orks de elite de Thunku, e encontrado, enfim, adversários à sua altura. Enquanto isso, emboscados nas casas próximas, os Homens das Areias continuavam alvejando os padres, enquanto os Korrigãs muito se divertiam, opondo-se aos sortilégios que eram lançados das muralhas sobre o exército das Colinas.

Mas, dominando o confronto, dois homens, sobretu­do, chamavam a atenção e provocavam murmúrios de admiração e inveja em meio a todos os combatentes.

Semelhante a um deus da guerra, com sua grande es­pada, vestes de metal e couro vermelhas de sangue, Toffan aparava e cortava, evitava e esmagava, no meio dos berros de raiva e de dor.

Não longe, qual um titã desacorrentado, a armadura turquesa amassada e um machado gigantesco cintilando debaixo do sol, Uriano de Troïl derrubava adversários como um lenhador abate as árvores de um bosque. Espuma nos lábios, olhos arregalados, a barba grisalha molhada de suor, o velho Cavaleiro rendia uma última homenagem a Valentim...

De repente, um Ork designou grunhindo de surpresa o topo da torre que se erguia no centro de Yénibohor. No espaço de um instante, todos puderam ver uma enorme serpente de luz subir ao céu, parar de repente e soltar um doloroso grunhido, depois tornar a descer a toda veloci­dade e se enfiar por uma janela.

O desaparecimento do dragão durou apenas alguns segundos. Quando tornou a aparecer no aposento que acabava de deixar, imobilizou-se, empinou-se, abriu um bocão e soltou outro berro. Depois, saltou por sobre a Treva, transpassando-a.

A Treva deu um grito, curvando-se, e deixando Guillemot e o livro caírem no chão. Mas tornou a erguer-se, vacilante: ainda estava viva!

O dragão pareceu surpreso. Dardejou seu olhar de gelo sobre a estranha silhueta que deveria ter morrido. Não compreendia. Tinha sido posto no mundo para tirar uma vida. Aquela se recusava. Voltou-se mais uma vez em direção aos Feiticeiros que o tinham chamado. Olhando o velho, descobriu medo em seus olhos. Aquele daria conta do caso. Fora, para onde tinha tenta­do fugir de seus novos senhores, o dragão tinha sido ferido pela luz do dia. O Nada era mais repousante. Para lá voltar, tinha antes que cumprir, de qualquer maneira, a missão que lhe havia sido confiada... Atacou, então, como um relâmpago, logo em seguida desaparecendo com um jato de centelhas douradas.

— Qadwan! — gritou Geraldo.

O Feiticeiro viu, impotente, o Dragão da Terra jogar-se sobre o velho amigo. Qadehar o precedeu: correu e amparou Qadwan nos braços. O velho não tinha sofrido. Morreu na hora. Partiu com o dragão. Seu rosto, distendido, sorria. Qadehar pousou devagar o corpo sobre a pedra fria. E todos os olhares convergiram em direção à Treva.

Ela tinha sobrevivido ao ataque do Insigil do Lindorm. Era excepcional aquilo. Na memória dos Feiti­ceiros, pela primeira vez alguém escapava do Dragão! Mas, toda resistência tinha um preço e a Treva saiu con­sideravelmente enfraquecida do confronto desumano. Ainda cambaleava. O manto de trevas que a cobria e dissimulava desfiou-se. O disfarce de treva morreu, cen­telha após centelha, encarquilhado no chão.

Quando a Treva apareceu com seu rosto verdadeiro, os Feiticeiros soltaram um grito de surpresa...

— Pensam que venceram? Conseguiram acabar com a Treva, mas a mim, ainda não venceram!

— Envolto no manto da Guilda, um ancião, que já não era fraco nem curvado, dardejava o olhar vivo de alguém que jamais tinha sido cego, sobre os Feiticeiros estupefatos. Sua gargalhada, que nenhum ataque de tosse interrompia, os tirou do estupor.

— Charfalaq!

A Treva veio a ser substituída pelo Grande Mago de Gifdu em pessoa.

 

O Senhor Sha afinal se livrou dos padres que acorre­ram em reforço.

Ninguém conseguiu abrir a porta da torre. Ele os combateu sem descanso: sortilégios contra malefícios, Grafemas contra fórmulas tenebrosas. E os venceu, um por um.

Esbaforido, cansado do esforço que teve que dispender, subiu a escada e deu no laboratório da Treva.

A primeira coisa que viu foram os corpos inanimados de Kushumái e das duas meninas. Em seguida, dis­tinguiu Qadwan, também no chão; e, depois, Geraldo e Qadehar diante de um ancião, que não lhe era desconhe­cido.

— Então... a Treva era ele? — espantou-se Yorwan, falando sozinho, e aproximando-se dos amigos Fei­ticeiros.

Geraldo dirigiu-se a Charfalaq com lágrimas nos olhos.

— Mas, afinal, Mestre... por quê? Por quê?

O ancião olhou o Feiticeiro informático com desdém.

— Principalmente para não ser como você, sem outra ambição além de espanar os computadores!

A cólera enrubesceu o rosto de Geraldo, mas ele nada mais acrescentou. A Treva, ou melhor, Charfalaq, tentava preocupá-los, desmobilizá-los, encolerizando-os. Não deviam entrar no jogo dele.

O Grande Mago em seguida voltou-se em direção ao Senhor Sha.

— Eis! Yorwan, jovem Feiticeiro, brilhante e promis­sor, que saiu de Gifdu cedo demais! Perdeu a batalha, pode-se dizer. Sua especialidade é a deserção! Diga, agora que estamos fazendo confidencias: o que o levou a fugir com o Livro das estrelas1?

— Um apelo por segurança que o próprio Livro en­viou — respondeu Yorwan que, aproveitando-se da situa­ção para justificar-se definitivamente junto aos compa­nheiros, não ignorou as insinuações insultuosas de Charfalaq. — Suponho que o senhor tenha tentado deci­frar as partes proibidas: o senhor, sem saber, deslanchou um alarme mágico, que advertiu o pessoal do Urso de um perigo. Eu era, há pouco tempo, correspondente dessa sociedade muito antiga em Ys. Foi a mim que confiaram o cuidado de pôr o livro em segurança. A ameaça era difusa, o Livro nada transmitiu de preciso. Optei, portanto, para não correr riscos, por me exilar no canto mais perdido do Mundo Incerto...

— Como é tocante! — escarneceu Charfalaq. — E eu que acreditava, como aquele imbecil do Uriano, que você tinha fugido do casamento com aquela tola da Alicia!

Geraldo acalmou Yorwan, pondo a mão em seu ombro. Não deviam de forma alguma responder às pro­vocações do velho manhoso!

O Grande Mago tentou a sorte com Qadehar.

— E você, Qadehar, o maior Feiticeiro que a Guilda jamais teve em seu seio! Tão franco, tão reto, tão hones­to! Deve ter lhe feito mal ser apontado como traidor!

— Foi o senhor quem armou essa história sombria — resmungou ele. — Quem organizou a emboscada, com Thunku, diante de Djaghataël! Quem me nomeou chefe da expedição para poder atribuir a mim o fracasso se eu escapasse. Maldito seja! Mandou todos os Feiticeiros que me acompanhavam à morte certa!

— Admito que meu plano foi bem amarrado. Falta­ram-me duas coisas: o Livro das estrelas, que o Senhor Sha levou de mim e do qual jamais se separava e Guille­mot, esse famoso menino de grandes poderes de quem o livro falava e que por tanto tempo procurei no Mundo Incerto, onde, segundo estava escrito, ele se encontrava, quando na verdade estava em Ys, bem diante dos meus olhos! E ao enviar você, Qadehar, na companhia dos melhores Feiticeiros da Guilda, para um armadilha, eu estava isolando Guillemot. Prevenindo, por intermédio de uma carta anônima, o Senhor Sha, de que uma crian­ça que podia ser o filho dele se encontrava sozinha em Gifdu, eu o afastaria do livro. Assim, pude recuperar a primeira peça do meu jogo. Quanto à segunda, bem que me deu trabalho, mas acabei pondo-lhe as mãos em cima!

Enquanto falava, Charfalaq aproximou-se do Livro e do menino. Por demais ocupados em ouvi-lo, os Feiti­ceiros não se deram conta disso.

— Mas por quê? — repetia Geraldo, que não conseguia aceitar a verdade terrível. — Por quê? Não bastava ser o Mestre da Guilda, um dos homens mais influentes e res­peitados de Ys?

— Está enganado, Geraldo: sou o único personagem poderoso de Ys! — vangloriou-se Charfalaq. — E isso graças às expedições da Treva — quer dizer, eu mesmo! — que, ao manter o medo das populações, permitiu à Guilda obter prerrogativas cada vez maiores, em detri­mento da Confraria dos Cavaleiros. Sou, do mesmo modo, o verdadeiro senhor do Mundo Incerto, no qual reino, graças a meus sacerdotes, inspirando o terror...

— Você também vai pagar por isso! — ameaçou Qadehar.

Mas Charfalaq, com uma rapidez e um vigor de que sua aparência não permitia suspeitar apossou-se do Livro e agarrou o menino que tinham ficado ambos no chão.

— Se você se aproximar, eu o mato! — ameaçou, com a voz calma.

Qadehar ficou imóvel.

— Olhe só quem é esperto! — comentou ironicamente o Grande Mago. — Na verdade, estou precisando do menino para abrir as últimas páginas do Livro e desco­brir os sortilégios que me ajudarão a ajustar os Gra­femas ao céu do Mundo Certo. Quando isso tiver sido feito, a magia tomando espaço no conjunto do universo, nada mais me impedirá de estender meu poder ao infini­to e reinar como senhor absoluto sobre os Três Mundos!

— Eu impedirei! — rosnou ainda Qadehar, cerrando os punhos.

— Oh, não! Você nada fará! Não ia querer que eu fi­zesse maldade com seu filho, não é mesmo?

Uma pausa de espanto tomou conta do laboratório. Ninguém acreditou no que ouvia...

— Olhe só! — ironizou o velho. — Você não sabia? Ou não queria saber... Ora, ora! Nunca teve a curiosidade de olhar o espírito dele? Não o culpo. Para vasculhar seu crânio, também tive que esperar os Grafemas se acalma­rem. Mas, nossa época decididamente produz pais muito maus! Começando por você, Yorwan, que prote­ge ternamente um livro, mas abandona o filho nas areias do deserto...

— Está mentindo! — gritou Qadehar.

— O que está querendo dizer, velho maldito? — espantou-se dolorosamente Yorwan.

— Pergunte à Caçadora!

Entretendo a conversa e cativando o interesse dos Feiticeiros, Charfalaq conseguiu aproximar-se de uma pedra grande, diferente das que constituíam o piso do aposento. Estava coberta de signos gravados profunda­mente. Qadehar compreendeu, enfim, o perigo. Saltou para a frente, mas tarde demais. Charfalaq pronunciou algumas palavras e desapareceu instantaneamente, levando consigo Guillemot e O livro das estrelas.

— Um sortilégio de deslocalização! — gemeu Geraldo, compreendendo de repente a brusca manobra do Grande Mago.

— Ele pode estar em qualquer lugar — anunciou Yorwan.

— Vai ser muito difícil seguir seus rastros — suspirou Qadehar, desanimado.

Um silêncio profundo, cheio de desespero e de súbi­ta resignação, invadiu o local. Estava tudo acabado, eles sabiam: tinham jogado e tinham perdido...

No mesmo momento, resfolegando, esbaforidos, Romaric, Gontrand, Bertram e Kyle entraram em atro­pelo no laboratório.

— O que aconteceu? — perguntou Bertram.

— Guillemot! Onde está Guillemot? — gritou Ro­maric.

Os Feiticeiros, acabados, não precisaram dizer uma única palavra: um simples olhar em torno revelou aos jovens toda a extensão do desastre.

 

O Grande Mago materializou-se, com Guillemot e O livro das estrelas, numa peça bem mais vasta que aque­la que acabava de deixar. As paredes amareladas esta­vam cobertas de tapeçarias bordadas evocando cenas da vida do terrível demônio Bohor. Lâmpadas a óleo, no pedestal, difundiam uma luz laranja e, num canto, sobre uma mesa redonda de um só pé, estavam dispostos obje­tos de culto. Mais especificamente, o sortilégio de deslocalização os tinha conduzido a um templo de Bohor, em Yâdigâr. Charfalaq parabenizou a si mesmo por ter tido a boa idéia de gravar o sortilégio numa pedra de seu laboratório. Um sorriso de satisfação flutuou em seus lábios. Parabenizou-se, sobretudo, por ter sabido impor o fiel Lomgo, com identidades diferentes, aos poderosos do Mundo Incerto: conselheiro do Comandante Thunku, mordomo do Senhor Sha... Graças a isso, tinha final­mente conseguido recuperar o livro precioso em Djaghataël. E se as tentativas de Thunku para levar Guillemot de Ys fracassaram, uma após a outra, foi ape­sar disso, graças ao próprio Thunku, que ele hoje se encontrava em segurança na boa cidade de Yâdigâr! O Grande Mago franziu as sobrancelhas por um instante: onde tinha se metido Lomgo, a propósito? Não o tinha visto mais depois que aqueles idiotas ousaram atacar Yénibohor! Deu de ombros. Afinal, nada mais tinha importância, além do Livro e daquele menino, que lhe daria o acesso a ele. Logo seria o senhor, o senhor dos Três Mundos!

Demorou-se dando de beber a Guillemot alguns goles de licor de vida, depois levou-o para fora.

A cidade estava deserta. Apenas alguns grupos de soldados velhos perambulavam pelas ruas. O exército de Orks de Thunku estava todo ele naquele momento em Yénibohor, assim como os padres que serviam habi­tualmente no templo. O Grande Mago subiu a escada externa, que conduzia ao topo do templo, em forma de pirâmide.

Guillemot foi mais uma vez revigorado pela poção do Mago. Depois do episódio da horrível tartaruga, ele tinha sido, digamos assim, desconectado do mundo em volta, e demorou para emergir, sobre o chão frio de sua cela, de início, depois, sobre a superfície de uma mesa, no meio de um laboratório. A lembrança da tartaruga o assustou. Comparando, a Treva parecia quase que uma alegre companhia! Enfim, a Treva... ou melhor, o Grande Mago! Nunca tinha se sentido muito bem diante daque­le velho, que o atemorizava desde o primeiro encontro, em Ys, no palácio do Prefeito. A impressão foi depois reforçada quando surpreendeu sua conversa com Mestre Qadehar, conversa essa que o fez fugir de Gifdu... Que mentiroso, que hipócrita! Aquele homem, que todo mundo respeitava, embora não amasse, fazia teatro mancando e tossindo como um sofredor. Fazendo crer estar meio cego e meio senil! Enquanto todo mundo sentia pena dele, com o pretexto de repousar nos seus apartamentos, no monastério, desaparecia no Mundo Incerto e se transformava em Treva, para aterrorizar e martirizar as pessoas.

Guillemot lançou um olhar vingativo ao velho, per­feitamente vigoroso, que subia os degraus puxando-o atrás. Bem poderia tentar fugir, mas sabia, vendo as pró­prias pernas tremerem, que não iria muito longe. Deci­diu guardar as poucas forças que a poção lhe tinha dado para tentar enfrentar o Mago, quando este recomeçasse o ritual de abertura de O livro das estrelas...

Desembocaram no telhado, que formava um terraço do templo, dominando parte da cidade. Guillemot per­cebeu, ao longe, o Caminho de Pedra e, além, o Deserto Voraz, onde morava seu amigo Kyle.

— Guillemot — disse Charfalaq, com a voz quase ale­gre — posto que está de novo consciente e que temos tempo de sobra para as boas maneiras, pergunto a você uma última vez: você quer, de maneira livre e voluntá­ria, me ajudar a romper os sortilégios que protegem este livro ou deverei, de novo, obter sua assistência pela força?

— O senhor tem razão — respondeu Guillemot, levan­tando o queixo com ar de desafio. — Estou de novo cons­ciente. — Então, pode tentar me forçar ao que quer que seja! Vou resistir o tempo que puder!

— Ora, ora! — divertiu-se o Grande Mago. — Um jovem galo, eis o que você é! Um galinho tentando es­conder na força do canto a fragilidade do corpo... O que pode o jovem galo contra a velha raposa que sou?

Levantou um braço e compôs uma seqüência de Mudras, aqueles gestos da mão que reproduzem, para chamá-los, a forma dos Grafemas. Guillemot enrodilhou-se, vencido pela magia do Grande Mago. Tentou em vão opor os poderes de outros Grafemas ao sortilé­gio que o imobilizava, esmagando-o dolorosamente contra o solo. Mas, ou estes ainda dormiam dentro dele, seguindo-se ao último ataque insidioso da Treva, ou então tinha superestimado as próprias forças: permane­ceu totalmente impotente.

— Mestre! Mestre Qadehar! Suplico! — pôs-se a rezar sozinho. — Não me deixe assim! Não quero servir de ins­trumento à malvadeza do Grande Mago! Por favor, não me abandone!

Em seu espírito, por trás dos olhos inundados de lágrimas, apareceu a imagem do Mestre. Das imagens, era a que mais amava: Qadehar lhe sorria afetuosamen­te e o tomava num abraço protetor. Imaginou-se com a cabeça em seu ombro, de olhos fechados, sem pensar mais em nada. O Mestre tinha uma das mãos pousadas sobre seu cabelo e repetia que ele era um bom Aprendiz, sensato. E sábio...

Uma subida de adrenalina tirou Guillemot da fanta­sia desesperada. Sábio, sabedoria... Uma idéia acabava de lhe atravessar o espírito. Uma idéia brilhante! Havia uma chance ínfima de que funcionasse. Mas era a única, a última, a final! Era uma idéia louca. Deliciosamente, assustadoramente louca! Entretanto, para colocá-la em prática, era preciso conseguir certa liberdade de movi­mentos.

— O senhor ganhou! — gritou, como se estivesse renunciando a lutar. — Não agüento mais! Vou ajudar, se parar de me machucar...

Charfalaq o observou espantado. O menino cedia agora, depois de enfrentá-lo durante dias? O que signifi­cava aquilo? Lançou-lhe um olhar desconfiado. Era um novo ardil? Mas, à sua frente, diante dos seus olhos, Guillemot sofria de verdade. As lágrimas que inunda­vam seu rosto não eram fingidas. Afinal, o menino sabia que estava perdido, não tinha mais esperança. Seus ami­gos estavam longe, não podia mais se agarrar à idéia de vê-los chegar. Era lógico, afinal, que se entregasse. Não se suporta o sofrimento sem um motivo de esperança! Um sorriso de triunfo brotou nos lábios descarnados do Grande Mago. Se o menino aceitasse participar, as coi­sas ficariam bem mais fáceis. E, com um gesto, libertou Guillemot do sortilégio que o esmagava contra as pedras.

Em Yénibohor, a batalha chegava ao final. Os Orks, desmoralizados ao ver os padres caindo, um por um, debaixo das balas dos Homens das Areias e desencora­jados pelo ardor inesgotável dos Cavaleiros e guerreiros das estepes, rendiam-se em grupos inteiros. Eram desar­mados e conduzidos às prisões da cidade, que ocupa­ram, afinal, por sua vez, depois de para lá terem manda­do tantos infelizes. Os poucos padres ainda vivos tam­bém baixaram os braços e, com profunda amargura nos rostos, deixaram-se prender, sem uma palavra.

— Devem estar se perguntando por que Bohor, seu demônio todo-poderoso, não veio ajudá-los! — comen­tou ironicamente o Luthier, que tinha levado os campo­neses do Oeste à batalha.

— Acabarão sabendo que seu Bohor não passava de invenção de um homem, um homem que se dissimulava sob a aparência de demônio para cometer atos que um demônio jamais ousaria realizar — respondeu, com a voz fraca, Kushumái.

A Caçadora tinha saído da torre sustentada por dois Caçadores.

— Não consigo entender como os padres puderam inspirar tanto medo!

— É o espírito e o coração das pessoas que estão cheios de medos — disse ainda a Caçadora. — Basta dar um rosto a esses medos...

Toffan e o Comandante aproximaram-se, ainda resfolegando com o esforço do combate.

— Acabou, Kushumái — anunciou o guerreiro. — Os últimos bolsões de resistência cedem pouco a pouco. Nós controlamos inteiramente a cidade.

— Muito bem! — alegrou-se a jovem. — Puseram a mão em Thunku? Acho que entre nós há quem queira lhe dizer umas palavrinhas...

O Comandante entristeceu-se.

— Quem dera, senhora! Nem sombra do Thunku até agora. Em lugar nenhum.

— Bem... Ele vai acabar saindo do buraco quando passarmos um pente fino em Yénibohor.

Toffan ergueu os olhos para a torre.

— Como é que foi lá em cima?

— Mal — respondeu Kushumái. A Treva conseguiu fugir levando Guillemot e o livro. Os jovens que estão na torre passam bem. Neste momento, Qadehar, Yorwan e Geraldo estão tentando desbloquear o sortilégio que a Treva utilizou para escapar. Mas tenho também uma notícia triste para dar a vocês: o velho Feiticeiro Qadwan não resistiu ao confronto...

— O Arqueiro que dirigia os bandidos também está gravemente ferido — anunciou o Comandante, baixando a cabeça.

— Saberemos render-lhes homenagem quando tudo isto estiver terminado — afirmou Toffan, com os punhos cerrados.

— Espero, somente, que esse momento de que fala — disse Kushumái, com a voz grave — não seja também o do fim de todos aqueles que amamos...

 

O Grande Mago abriu O livro das estrelas, que até então segurava debaixo do braço, e Guillemot, aproxi­mando-se, pôde, afinal, vê-lo de perto. Era um livro grande, do tamanho de um livro de registro de escola, porém mais grosso. A capa, macia, era de couro preto, um couro que os séculos tinham encarquilhado e gera­ções de mãos, usado e polido. Miríades de estrelas pare­ciam estar ali salpicadas e davam ao manual uma apa­rência viva. No interior, nas páginas de papel amarelado pelos anos, uma caligrafia cuidadosa traçara, com o auxílio de uma tinta azul-noite, linhas de signos e de símbolos.

Charfalaq parou de folhear a obra e a deixou aberta na altura de dois terços. Era impossível compreender as últimas páginas! O Livro não lhe permitia atinar com o sentido...

— Como você,aceita ser meu assistente no ritual de abertura, será necessário seguir minhas instruções à risca.

— Então, só sou seu assistente no ritual? — disse Guillemot, demonstrando decepção e descontentamen­to. — Se bem me lembro, o senhor me propôs aliança de verdade, compartilhando até mesmo o seu poder. Foram as suas próprias palavras!

— Sim, sim, de acordo — falou Charfalaq num tom agastado. — Olhe, você será o primeiro ministro do meu futuro império! — continuou, no tom de quem não acre­dita numa palavra do que está dizendo. — Mas, antes de qualquer outra coisa, é preciso fazer com que o livro nos confie todos os seus segredos. Prepare-se...

Guillemot fez cara de satisfeito diante da promessa ridícula do Grande Mago e escutou atentamente suas instruções. Afinal, era bastante simples: bastava, segu­rando o Livro e concentrando-se com toda a força, repe­tir as fórmulas que Charfalaq ia recitar.

O Aprendiz pousou as mãos no Livro das estrelas. Logo um agradável formigamento o invadiu. Sentiu os Grafemas adormecidos no fundo dele despertarem, ronronando.

— Muito bom! Só pelo aspecto revigorado do seu rosto vejo que o manual aprecia a sua presença. Ótimo!

O Grande Mago começou o encantamento. Era muito longo. Felizmente, parava com freqüência para permitir que Guillemot repetisse o que acabava de dizer.

Guillemot trabalhava com aplicação. Trabalhava com aplicação principalmente porque os Grafemas pareciam sentir grande prazer no estranho ritual que se estava realizando. Logo, logo estavam todos lá: Féhu, Uruz, Thursaz, Ansuz, Raidhu, Kenaz, Gebu, Wunjo, Hagal, Naudhiz, Isaz, Yera, Eihwaz, Perthro, Elhaz, Sowelo, Teiwaz, Berkana, Ehwo, Mannaz, Laukaz, Ingwaz, Dagaz e Odala. Os vinte e quatro Grafemas do alfabeto das estrelas estavam todos lá, dentro do seu ventre, do seu peito, da sua cabeça, brilhantes e vibran­tes como nunca. Grafemas que os ensinamentos de Mestre Qadehar tinham semeado no mais profundo dele, que tinham germinado e crescido sobre o Önd mais poderoso e mais rico que um ser humano jamais pos­suiu! Grafemas nutridos por uma força tamanha que quase se transformavam em entidades completas, à parte, autônomas, capazes de substituir a vontade daquele que os carregava, se surgisse a necessidade! Hoje, estavam todos em alerta diante do Livro que os tinha inventado, que os tinha criado...

Enquanto Charfalaq suava em bicas, no esforço de conduzir o ritual, e os Grafemas permaneciam fascina­dos pela proximidade do manual, Guillemot, ao mesmo tempo repetindo mecanicamente as palavras do Mago, recitava para si mesmo o antigo Poema da Sabedoria dos Aprendizes Feiticeiros, ao qual seu Mestre era tão afeiçoado:

“Você sabe como se deve gravar? Sabe como se deve interpretar? Sabe como se deve colorir os Grafemas? Você sabe como experimentar? Sabe como pedir? Como se deve sacrificar? Sabe como se deve ofe­recer? Sabe como se deve projetar? Mais vale não pedir muito que sacrificar demais; um dom é sempre recom­pensado. Mais vale não oferecer que projetar demais...”

O Mestre sempre dizia que um dia ele compreende­ria o sentido dessas frases. Pois bem, esse dia tinha che­gado! Não saberia explicar por que, mas quanto mais refletia sobre essas frases, nas quais tinha encontrado uma série de soluções para os seus problemas, mais fica­va convencido de que seu significado era muito mais importante do que todo mundo pensava. Esse poema figurava no primeiro capítulo do Livro das estrelas e seguia-se imediatamente ao texto chamado O Dito do Criador, um texto fundamental que contava como o manual tinha sido criado. Havia, com certeza, uma razão para isso: o Livro começava dando uma chave a quem a quisesse! E uma chave podia abrir, mas também fechar uma porta...

Num momento do encantamento, o manual soltou um sinal de alarme — do mesmo modo como tinha avisa­do a Sociedade do Urso de que se encontrava em perigo — e os Grafemas se enevoaram. Guillemot sentiu-os des­vairados. Tranqüilizou-os, pedindo-lhes que confiassem nele. Os Grafemas acalmaram-se.

De repente, Chafalaq se pôs a falar mais depressa e mais alto. Guillemot adivinhou que estava na altura de atingir o ponto culminante do ritual. Isso significava que logo teria sucesso... Guillemot fechou os olhos e se uniu à exaltação do Mago. Chamados por uma força imensa, os Grafemas em seu interior tornaram a erguer-se, petrificando-se. Guillemot utilizou todos os seus recur­sos para impedir que acontecesse o mesmo com o décimo-sexto deles, Sowelo. Tinha absoluta necessidade dele para levar a cabo seu plano!

“Você sabe como se deve projetar? Mais vale não oferecer que projetar demais... Um dom é sempre recom­pensado! “ — repetiu a si mesmo, para se dar coragem.

Quando entendeu que o encantamento estava no auge, quando sentiu sob os dedos o Livro tremer, quan­do viu os Grafemas tornarem-se incandescentes atrás das pálpebras, chamou silenciosamente Sowelo. Sowelo, o Grafema do poder e do sol, do fogo aterrorizador e das vitórias devastadoras...

— Pelo poder da Roda e da Raiz, grande nutridor, energia poderosa que rompe as barreiras, inclino-me diante do sagrado e apelo para a sua vontade! Liberte-nos e remeta cada um a seu destino! Sowelo!”

O Grafema zumbiu, pôs-se a vibrar, depois explodiu. Guillemot deu um berro. O Grande Mago interrompeu o encantamento. Incrédulo, de olhos arregalados, viu Guillemot iluminar-se a partir de dentro e pegar fogo, um fogo de chamas frias. Uma coluna de luz jorrou para fora do menino que não parava de berrar e subiu em direção ao céu. Depois, o fogo comunicou-se ao Livro das estrelas e Charfalaq abriu a boca de espanto. Uma segunda coluna de energia fundiu as páginas do manual. — Nããão!

Mas o Grande Mago não teve tempo de se mexer: a partir do Livro, as chamas saltaram para cima dele. Grunhiu, e seu grunhido transformou-se num grito de dor; depois, de desespero e, por fim, de agonia — quando nasceu uma terceira coluna luminosa, que juntou-se às outras duas, indo em direção às estrelas.

Quando, afinal exaurida, a inverossímil quantidade de energia mágica terminou de se despejar no espaço, Guillemot deslizou suavemente para o chão. Até se pode­ria pensar que tinha outra vez perdido a consciência, mas sua respiração era regular e os traços pacificados: dormia.

O livro das estrelas também estava caído no chão, e o vento da noite, ao soprar, folheava suas páginas. A partir de dois terços da obra, estavam brancas, comple­tamente virgens, como se jamais tivessem conhecido tinta.

Bem ao lado, no local onde alguns instantes antes encontrava-se o Mago Charfalaq, chefe da Guilda e Grande Senhor do culto de Bohor, havia um montículo de pó, que desapareceu, pouco a pouco, varrido pelo próprio vento. Qadehar tinha razão quando disse, um dia, a seu aluno, que a magia se alimentava menos de certos corpos que certos corpos se alimentavam da magia! Tendo os Grafemas ido embora, o velho desman­chou-se, esgotou-se, sumiu...

No além, enfim, na noite que pouco a pouco enchia-se de estrelas, duas novas constelações puseram-se a brilhar, advindas da magia que se tinha espalhado pelo céu.

 

A noite caiu sobre Yénibohor. Os gemidos dos feri­dos subiam dos acampamentos instalados pelo exército das Colinas na cidade conquistada. Homens vasculha­vam as casas na esperança de encontrar mesas, cadeiras e até mesmo colchões que trouxessem maior conforto durante a noite, após a dura batalha. Tinham amontoado na prisão, que, no entanto, era vasta, os padres que esca­param das balas dos Homens das Areias e os Orks que restaram do exército de Thunku. Os mortos foram colo­cados lado a lado na avenida, diante da entrada da cida­de. Ouvia-se uma ou outra gargalhada junto às fogueiras que começavam a acender, mas sobretudo reinava, por toda parte, um sentimento de profundo cansaço.

Romaric, Gontrand, Bertram e Kyle, ao descobrirem Âmbar e Corália inanimadas no chão do laboratório, correram para socorrê-las. Elas acabaram voltando a si e Geraldo, deixando Qadehar e o Senhor Sha a lutar com o sortilégio de fuga utilizado pela Treva, veio lhes trazer algumas palavras reconfortantes. Assim que as meninas conseguiram levantar-se, o Feiticeiro acompanhou os seis até o pé da torre. No caminho, cedendo à insistência deles, acabou contando em detalhe o que tinha aconteci­do. Depois, entregou os jovens aos cuidados de um Cavaleiro, que os conduziu a uma das casas próximas à torre.

Ali encontraram Tomás, deitado num colchão de palha, velado por Ágata e Toti, sentados a seu lado. Âmbar, ainda muito fraca, apoiava-se em Bertram, que não permitiria que mais ninguém fizesse esse trabalho. Corália, cujo rosto e pele tinham, quando acordou, para seu grande alívio, voltado à aparência normal, era sus­tentada por Romaric. Dois Cavaleiros, que respondiam pelos nomes de Ambor e Bertolen, o rosto marcado pelo cansaço e as armaduras cheias de furos, receberam ordens expressas do Comandante e de Kushumái para ficarem junto deles, ao mesmo tempo atentos e obsequiosos...

— Como está indo, Tomás? — perguntou com gentile­za Gontrand, aproximando-se do ferido.

— O ombro e a perna doem demais — respondeu o menino, num tom rabugento. — Mas dizem que o fato de ainda senti-los é bom sinal!

— Bom sinal mesmo é você ainda estar em condições de fazer piada — disse Ágata, fazendo cara de sabida, devido ao papel de enfermeira que teve que desempe­nhar, embora a contra-gosto.

— Obrigado, Ágata, por ter ficado com ele — disse Gontrand, pousando a mão no braço dela.

— É a Toti que tem de agradecer, não a mim: foi ele quem cuidou de Tomás.

Ágata, enquanto falava, pousou a mão sobre a de Gontrand, que não a retirou.

— Ora, o que é isso? Não foi nada demais — defendeu-se, sem jeito, Toti.

— Venha cá, Toti — disse Kyle. — Estou orgulhoso de você.

E, abraçando-o, um tanto rudemente, posto que era um menino do Deserto e um menino do Deserto não devia mostrar suas emoções, falou ainda:

— Você honrou o Mundo Incerto!

Ambor e Bertolen ficaram à parte, para não atrapa­lhar o reencontro daquelas crianças que, cada uma a seu modo, tinha se comportado naquela batalha como ver­dadeiros heróis.

— E... Guillemot? — Ágata ousou perguntar.

— Foi levado pela Treva. Os Feiticeiros nada pude­ram fazer. Estão seguindo seu rastro... — respondeu Âmbar, cujo queixo tremia como se fosse começar a chorar.

— Vamos, Âmbar — Corália reconfortou-a. — Sabe muito bem que fizemos todo o possível! Você ainda mais que todos nós.

— Não é verdade — soluçou ela. — Eu estava enfeitiçada, condicionada por aquela mulher dos olhos verdes! Fiz o que ela queria que eu fizesse. Enquanto você, Corália — ninguém obrigou você a vir me ajudar! Você teve muita dificuldade, eu senti. E ficou! Você me sal­vou a vida!

Desmanchando-se em lágrimas no ombro da irmã, abraçou-a apertado. Corália acariciou-lhe os cabelos e começou também a chorar. Ninguém se atrevia a dizer nada. Era a primeira vez que os amigos viam Âmbar chorar. Mesmo que não tivessem assistido à cena, na torre, sabiam que Corália tinha demonstrado uma cora­gem da qual, sem dúvida, eles próprios não teriam sido capazes...

Uriano de Troïl irrompeu subitamente na sala. Tenso, tinha o rosto ainda todo sujo de sangue. Cheirava forte a suor. Ambor e Bertolen levantaram-se e o cumprimenta­ram respeitosamente. O velho Cavaleiro tinha se batido como um leão... Uriano aproximou-se dos jovens. Deu um tapa afetuoso no rosto de Romaric, seu sobrinho, depois perguntou, com sua voz grave:

— Qual de vocês é Toti?

— Sou eu... — respondeu timidamente o menino.

— Você tem um irmão que todos chamam de Ar­queiro e que comandava a tropa dos salteadores?

— Sim. Por... quê?

Uriano o olhou diretamente nos olhos.

— Seja forte, pequeno. O seu irmão morreu. Tombou na batalha. No campo de honra.

Toti abaixou a cabeça. Lágrimas brilharam em seus olhos. Saiu atrás de Uriano como um autômato e deixou a casa. Seus amigos, com exceção de Tomás, é claro — que fez um sinal, querendo dizer que podia ficar sozinho — o acompanharam.

O corpo do Arqueiro tinha sido depositado diante da casa por uma dezena de bandidos, à luz de tochas. Quando Toti apareceu no umbral, todos avançaram cerimoniosamente e apertaram sua mão, graves. Toti perma­neceu um longo tempo imóvel, diante do irmão deitado. Depois, jogou-se sobre ele e deu livre curso à dor, cho­rando e dando socos no peito imóvel.

— Você me deixou... completamente só... Você me abandonou... Agora estou completamente só!

— Pare, pequeno — disse Uriano, levantando-o. — Seu irmão não vai voltar. Você tem que se mostrar digno do sacrifício dele.

Toti foi se acalmando aos poucos. Desviou o olhar do corpo do Arqueiro, aproximou-se de Uriano e to­mou-lhe a mão. O velho Cavaleiro ficou imóvel, de sur­presa.

— Pobre Toti — murmurou Romaric aos outros. — Devíamos ir dizer-lhe alguma coisa gentil...

Um burburinho impediu o pequeno grupo de ir con­solar o infeliz menino. Três homens acabavam de sair da torre! Um deles trazia um menino nos braços.

Quando Qadehar, carregando Guillemot nos braços, seguido de Yorwan e de Geraldo, que trazia apertado contra seu peito o grande Livro negro constelado, surgi­ram, saindo da torre, uma grande multidão, com todo tipo de gente, acorreu logo a seu encontro. Os homens do exército das Colinas sabiam que, com os Feiticeiros se jogava o último ato daquela guerra audaciosa travada contra a Treva... Acolheram-nos com gritos de alegria e hurras, pois adivinhavam que, se estavam vivos, era porque a Treva tinha perecido. Kushumái, que, tendo re­cuperado as forças, já andava sem a ajuda de seus Caça­dores, foi das primeiras a aclamá-los.

— Vocês triunfaram! — disse. — Venceram o Grande Mago e trouxeram Guillemot! É magnífico!

— Nós nada fizemos — corrigiu Geraldo. — Contentamo-nos com desbloquear o sortilégio de deslocalização utilizado por Charfalaq e usá-lo, por nossa vez. Reaparecemos na cidade de Yâdigâr, num templo dedi­cado ao demônio Bohor. Encontramos Guillemot des­maiado no alto do templo, ao lado do Livro das estrelas e de um monte de pó. Não havia vestígio do Grande Mago. Ignoro o que se passou, mas, visivelmente, Guille­mot triunfou sozinho.

As explicações do Feiticeiro mergulharam a todos no espanto.

— O essencial — exclamou Kushumái — é que aquele maldito velho não conseguiu completar o ritual! Nossos dois mundos, e até mesmo o Mundo Certo, que jamais saberá disto, estão a salvo!

— Como está Guillemot? — perguntou o Comandante, aproximando-se.

— Muito fraco, mas respira normalmente — respon­deu Qadehar.

— Guillemot!

Empurrando a multidão reunida diante da torre da Treva, Âmbar, Corália, Romaric, Gontrand, Bertram, Ágata e Kyle correram para Qadehar.

Âmbar, ao ver o amigo inconsciente, soltou um grito lancinante.

— Ele está morto! Ai, ele morreu! Ele morreu!

— Calma, Âmbar! — interpôs-se Geraldo. — Ele está vivo, Guillemot está vivo!

Compreendendo que lhe diziam a verdade, Âmbar deixou escapar um sorriso de alívio. Correu a acariciar, com a mão trêmula, o rosto do menino adormecido. Este mexeu-se e com dificuldade abriu os olhos, fixou uma coisa qualquer diante de si e tornou a fechá-los.

— Têm certeza de que está bem? — inquietou-se Corália.

— Sim. Só está precisando de repouso. Muito repou­so.

Âmbar parecia mais calma. Olhava Guillemot com uma expressão curiosa no rosto.

— Engraçado... — disse ela, com ar pensativo, eu tinha esquecido que ele tinha os olhos tão verdes!

Qadehar procurou Kushumái com os olhos.

— Os olhos da mãe... murmurou. — Acho que precisa­mos ter uma pequena conversa, nós dois — acrescentou, olhando para a Caçadora.

— Os três — retificou Yorwan.

E voltou-se para Kyle. O menino ergueu os olhos para ele.

— Então, é verdade o que Geraldo me disse? Você é... eu sou...

— Eu sou o seu pai, Kyle, e a sua mãe, de quem você herdou esse lindo olhar, mora no País de Ys. Kushumái trocou você por Guillemot, quando você era bebê, e confiou você, pelo que entendi, ao Povo do Deserto...

— É isso mesmo — disse Kushumái, cuja voz pôs-se a tremer.

Nesse exato momento, a Caçadora não era mais a guerreira implacável, nem mesmo a fria Feiticeira que todos conheciam. Por um instante, apareceu como era no mais íntimo do seu coração: uma mãe que, para pôr o filho a salvo, teve que se separar dele e roubar o filho de uma outra mãe!

Mas Kushumái não tardou a repreender-se.

— Cada coisa a seu tempo. No momento, é urgente que Qadehar leve Guillemot para Ys e o entregue aos médicos. Quanto a mim, tenho que conversar com Âmbar. Preciso me desculpar.

Dirigiu-se, em seguida, a Qadehar, com um estranho sorriso nos lábios.

— Ah... Qadehar, ainda não é hora de festa, mas esse momento chegará. E quando chegar, será também o momento de nos reconstruirmos! Prepare-se...

Depois, virando-se para Âmbar, segurou-a delicada­mente pelo ombro e levou-a para um canto.

 

Guillemot revirou-se na cama, suspirando. Já fazia um mês que ocupava aquele quarto no hospital de Dashtikazar! Um quarto agradável, está certo: azul e branco, só para ele, com uma janela que se abria para a mata e outra para o mar, e cheio de flores que as enfer­meiras — que se desdobravam em pequenos cuidados para com ele — trocavam todos os dias; mas começava a sentir-se de novo aprisionado!

Quando Mestre Qadehar, Yorwan e Geraldo o en­contraram no telhado do templo, estava em tal estado de fraqueza que os médicos esperaram um pouco para dar uma opinião sobre sua saúde. Depois, graças aos cuida­dos e à atenção de todos, foi se recuperando lentamente e hoje, só o mantinham no hospital por precaução. Felizmente, para ocupar seus dias, podia contar com as visitas, tão numerosas, que o médico-chefe teve que intervir e pedir ao Prefeito que estipulasse uma lista de pessoas autorizadas...

— Mest... Papai! — exclamou Guillemot, ao ver Qadehar, que se tinha introduzido silenciosamente no quarto.

— Bom dia, filho — respondeu o Feiticeiro, exibindo um grande sorriso. — E então, como está nosso herói hoje?

A epopéia da expedição dos Cavaleiros, assim como o cerco de Yénibohor pelo exército das Colinas alimen­tavam todas as conversas no País de Ys. Quanto ao duelo que opôs Guillemot e Charfalaq, já tinha se torna­do mito! O Aprendiz de Feiticeiro, que agora não era mais considerado Aprendiz, ocupava já um lugar parti­cular no coração dos habitantes de Ys depois que salvou Ágata das garras dos monstros do Mundo Incerto. Hoje tornara-se glória nacional e estava à beira de virar uma lenda viva! Desde os primeiros dias, legiões de admira­dores aglomeravam-se no saguão do hospital para testemunhar-lhe sua gratidão por tê-los livrado da amea­ça da Treva. O seu reconhecimento era muito simpático, é claro, mas cansativo também. E Guillemot sentia imensa necessidade de calma e solidão para refletir sobre todos aqueles acontecimentos que, em tão pouco tempo, tinham revirado completamente a sua vida.

— Não me chame de herói... não tem graça! — disse Guillemot.

— Não estou brincando — respondeu Qadehar, aproximando-se e acariciando ternamente o rosto de Guillemot, sentado na cama. — Ao contrário, estou muito orgulhoso de você! Assim como sua mãe, acredi­te em mim! Estou falando de Alicia...

O primeiro choque, é claro, tinha sido receber a con­firmação de que sua mãe não era sua verdadeira mãe.

Foi muito doloroso para Alicia, que soluçou, apertando-o contra si, sem largar, repetindo que ele seria para sempre o filho dela. Lembrava-se de a ter olhado com muita ternura e ter dito que, para ele, nada mudava, que sua vida permaneceria a mesma, junto dela, em Troïl. E não pensava na mãe verdadeira? perguntou-lhe, aturdida.

A mãe verdadeira...

Sua verdadeira mãe era, então, aquela mulher de olhos verdes, que tinha transformado Âmbar em terrível Hamingja, que vivia no meio de animais selvagens, numa floresta escura do Mundo Incerto e comandava os homens de uma sociedade secreta! Não era bem assim que Guillemot imaginava uma mamãe. Foi o que disse a Alicia, assim como, timidamente, a Kushumái, que tinha vindo vê-lo um dia, no leito do hospital.

Kushumái sorriu, acariciou os cabelos dele e respon­deu que lamentava o fato das coisas terem se passado daquele jeito. Lamentava ter sido obrigada a abandoná-lo para o pôr a salvo num mundo distante daquele dos padres de Yénibohor. Mas suas responsabilidades eram tão importantes para tanta gente que não pôde permitir-se sentimentalismo. Estava decepcionada, mas com­preendia e aceitava a decisão dele de ficar em Ys perto de Alicia. Ele podia vir à casa dela quando quisesse... Guillemot respondeu que não deixaria de ir. Prometeu aproveitar as vezes que Alicia fosse ver Kyle no Mundo Incerto, e acompanhá-la.

Pois o verdadeiro filho de Alicia era Kyle. A criança que Kushumái pegou e deixou no Deserto Voraz, a criança que Alicia teve com Yorwan. Não era mentira a revelação da Treva para incitá-lo a deixar Djaghataël; que esta então ignorava era que o bebê tinha sido troca­do. A troca na maternidade explicava o fato do Senhor Sha não ter identificado Guillemot no subsolo de Gifdu. Agora Yorwan reencontrava Alicia, seu amor de sem­pre, e o filho que procurava! Única pincelada sombria no quadro: Kyle recusava-se obstinadamente a vir morar em Ys. Sua vida era no Deserto Voraz, entre os Homens das Areias. Yorwan, que conhecia e respeitava o Povo do Deserto, entendeu rapidamente seus motivos. Desde que a comunicação entre os mundos fosse fácil! Foi muito mais duro para Alicia, que chorou muito, mas afinal resignou-se com os argumentos do pai e do filho. Como Kyle, apesar de tudo, alegrava-se por ter encon­trado seus pais, combinaram encontros freqüentes no Mundo Incerto nos solstícios e no País de Ys por oca­sião dos equinócios.

— Aposto que você vai me dizer que só passou para me dar um abraço sem, na verdade, me dar um abraço! E que está trabalhando muito, que não pode ficar...

— Não me queira mal — suspirou o Feiticeiro. — Neste momento todo mundo me quer, como se, de repente, eu tivesse me tornado indispensável! Prometo que vamos recuperar o tempo perdido mais tarde, quando sair...

— Não se preocupe, não lhe quero mal — garantiu Guillemot, segurando sua mão. — Estou só brincando!

Isso porque o segundo choque que Guillemot teve que enfrentar, ao despertar, foi saber que seu pai, aquele pai que ele acreditava viver num exílio definitivo no mundo real e que tanto desejou, aquele pai era... Mestre Qadehar! E lhe disseram que Mestre Qadehar ele pró­prio tinha ficado igualmente surpreso quando soube disso! Kushumái nunca disse que esperava um filho e, como os dois logo perderam-se de vista, o Feiticeiro não tinha como adivinhar...

Assim, o relacionamento entre Qadehar e Guillemot mudou completamente. Qadehar agora podia dar livre curso à sua afeição pelo Aprendiz e a postura do Mestre em relação ao aluno rapidamente se transformou na de pai para com o filho. Essa evolução foi ainda mais fácil pelo fato de Guillemot — e aí está o terceiro choque que este teve que enfrentar — não poder permanecer Apren­diz de Feiticeiro...

Com efeito, tinha perdido todos os poderes. Seus poderes mágicos desapareceram nas estrelas, quando deslanchou a ruptura do ritual...

Demorou a aceitar que Grafema algum jamais volta­ria a responder a seu apelo. Sentia-se, assim como o Senhor Sha no Mundo Certo, simplesmente comum...

— Trouxe umas coisas para você ler — anunciou Qadehar, depositando sobre a mesa-de-cabeceira alguns romances de aventura. — Essas narrativas todas devem parecer meio sem graça para você agora.

— Engano seu! É agradável conhecer, no quentinho da cama, aventuras extraordinárias que acontecem com os outros.

— Fique bom depressa — disse o Feiticeiro, despe­dindo-se do antigo Aprendiz. — Estou louco para poder­mos retomar nossas caminhadas pelo campo!

Guillemot olhou para ele, suplicante. Qadehar deu um sorriso sem jeito; de repente, decidiu-se: curvou-se e beijou o filho na testa. O menino ficou feliz.

— Comporte-se! — falou o Feiticeiro, ao sair do quarto.

— Você também!

Guillemot lamentava que Qadehar não o visitasse com mais freqüência. Tanto gostava de rir e abraçar Alicia como de conversar horas com o pai Feiticeiro. Mas este tinha sido eleito Grande Mago no lugar de Charfalaq, e estava sobrecarregado de trabalho. Rara­mente deixava Gifdu. Depois que a parte considerada perigosa do Livro das estrelas tinha sido apagada, na famosa noite no telhado do templo de Yâdigâr, as rela­ções entre a Guilda e a Confraria do Vento foram escla­recidas. Qadehar esforçou-se, então, para estabelecer laços verdadeiros de amizade e confiança entre Feiticei­ros e Cavaleiros. Também estava trabalhando num pro­jeto de instalação de monastérios no Mundo Incerto. Contava-se, aliás, que ele próprio ia para lá de vez em quando, e as pessoas se perguntavam se o primeiro esta­belecimento da Guilda não ia abrir suas portas para os lados do Irtych Violeta...

Guillemot deu uma olhadela no despertador sobre a mesa-de-cabeceira. Logo, logo estaria recebendo a visi­ta de Alicia. Ela vinha todos os dias por volta de meio-dia, sozinha. Almoçavam juntos, cada um com um prato em cima dos joelhos. Guillemot nunca se sentiu tão pró­ximo dela. Adivinhava que ela lamentava não ser de fato sua mãe e, ao mesmo tempo, tinha quase que vergonha pela alegria que a animava ao reencontrar o homem que nunca tinha cessado de amar — o qual, tendo ido embora como ladrão, retornou como herói. Esforçava-se para provar a Guillemot que Kyle jamais tomaria seu lugar no coração dela. Guillemot tentava fazê-la compreender que ela não era responsável por todas essas confusões do passado e que não tinha nada que se criticar, uma vez que continuava existindo um lugar para ele. Não era o mais feliz dos meninos? Kushumái abriu-lhe os braços, deixando-o livre; ele respeitava e admirava Yorwan; Alicia o amava como se ama um filho e seu pai, afinal, lhe tinha sido dado...

Deixou os pensamentos vagabundearem um instante ainda. O rosto da Treva voltou-lhe à memória, no início preocupante, depois assustador, para, em seguida, tomar os traços do Grande Mago, escarnecendo, fatigado e aterrorizado, no momento em que a magia que ainda o mantinha vivo fugiu rumo às estrelas. A figura de um outro velho apareceu-lhe logo em seguida: a de Eusébio de Gris, que o tinha raptado tomando de empréstimo a aparência de Bertram. Qadehar tinha-lhe dito que o Mago de Gris tinha fugido e desaparecido, encontrando-se, com certeza, no Mundo Incerto. Mas, ao mesmo tempo, garantiu-lhe: não conseguiria escapar por muito tempo dos homens de Kushumái! A Sociedade do Urso desencadeara uma grande operação para encontrar o Comandante Thunku e seu conselheiro, um padre peri­goso com o nome de Lomgo, desaparecidos durante o cerco de Yénibohor.

Kushumái... Guillemot ainda lembrava da careta de Âmbar quando esta contou a conversa que as duas tive­ram, durante uma de suas visitas. A Caçadora explicou demoradamente, numa ocasião inesperada, que Âmbar tinha sido designada para proteger Guillemot, contra a vontade dela, enquanto Hamingja, quer dizer, pessoa enfeitiçada e condicionada. Kushumái pediu as mais sinceras desculpas, mas Âmbar sentiu que ela não esta­va, na verdade, nem um pouco sentida e que, se fosse o caso, faria tudo de novo, sem se importar com a dor que ela pudesse vir a sofrer nem com os riscos que isso poderia comportar para sua saúde, física e mental. Essa capacidade de sacrificar sem emoção o que considerava pequenas coisas para preservar as grandes tinha reforça­do a admiração de sua amiga por aquela mulher decidi­damente fora do normal, para além do bem e do mal, como era a Natureza, da qual ela se dizia filha. Mas tam­bém provocou em Âmbar uma desconfiança irremediá­vel, e saber que Kushumái era a verdadeira mãe de Guillemot a deixava pouco à vontade.

— Felizmente — disse a ele, em tom de brincadeira, piscando o olho — Qadehar é seu pai: ele dá equilíbrio à sua herança!

 

— Então, como vai nosso querido Guillemot? — per­guntou alegremente uma enfermeira, entrando no quar­to com os braços carregados de flores provenientes do Mundo Incerto.

Guillemot sorriu. Era a enfermeira preferida. Sempre de bom humor, sempre pronta a dizer umas bobagens que às vezes o faziam enrubescer até à raiz dos cabelos. E, depois, com seus olhos brilhantes e cabelos negros, lembrava Âmbar...

— Acho que tem visita para você — continuou ela, colocando o buquê num grande vaso.

— Quem é?

— Não sei — alfinetou-o. — Tem duas meninas e dois meninos se estrebuchando na entrada!

— Ai! Não tem graça — zangou-se Guillemot. — Man­de-os entrar.

A enfermeira saiu, rindo.

Alguns instantes depois, Romaric, Gontrand, Âmbar e Corália irromperam quarto adentro.

— É verdade que você vai sair em breve? — exclamou Gontrand. — Genial!

— Parece... Tomara, estou louco para sair daqui!

— Não se queixe, meu querido! — disse Corália. — Pelo menos, não está sendo obrigado a ir à escola!

— Mas e então? Está decidido? — perguntou Gontrand, que tinha acabado de receber a informação. — Kyle vai permanecer no Deserto?

— Vai — respondeu Guillemot, triturando o medalhão solar, que o Comandante tinha recuperado de um Ork, no final da batalha. — Vou sentir falta dele, mas prometi que iria vê-lo sempre que pudesse...

— E sobre o Toti, sabe das últimas? — falou Corália.

— Toti? O quê? Quais são as novidades?

— Vai vir morar em Ys — revelou Romaric. — Tio Uriano decidiu adotá-lo. Está achando o castelo de Troïl muito vazio, com a morte de Valentim. E, como o irmão, o Arqueiro, morreu na batalha, Toti não tem mais famí­lia no Mundo Incerto.

— Essa adoção é uma boa idéia — alegrou-se Guillemot. — Mas, diga-me, primo, ele mudou, o nosso tio, não é?

— Está trans-for-ma-do! Precisava vê-lo, na grande festa que o Prefeito deu em honra dos Cavaleiros! Ele abraçou Yorwan, chamou-o de irmão e, soluçando, pediu perdão por ter acreditado que tinha fugido, quando, na verdade, realizou um ato de imensa coragem, sacrifican­do a própria felicidade para salvar a de outros. Foi muito emocionante! Abraçou também o senhor de Krakal e o senhor de Balangru, que se reconciliaram depois que seus filhos tanto os honraram, combatendo juntos a Treva — enquanto eles brigavam por besteira...

— E Tomás? E Ágata? Como estão?

— Isso, fale um pouco de Ágata, Gontrand — pediu Romaric, em tom de zombaria.

— Ela vai muito bem — respondeu este último, igno­rando a alusão. — Tomás também. O ombro e a perna estão quase curados. E a Confraria entrou em contato com ele: vai freqüentar Bromotul no próximo ano leti­vo. Assim haverá pelo menos um Escudeiro decente!

— É verdade o que andam dizendo? — brincou Romaric. — Que Ágata e você estão preparando um espetáculo para o verão, no qual ela canta canções de amor e você toca mandolim?

— Citara — corrigiu Gontrand, imperturbável.

— Parem um pouco, vocês dois — interveio Guillemot, rindo. — E Bertram, têm notícias dele?

Os amigos trocaram olhares divertidos. Corália sol­tou um suspiro.

— Você não pode imaginar... — começou Romaric. — Você soube que Bertram foi pedir ajuda aos Korrigãs, quando cada um tentava trazer uma contribuição para engrossar as fileiras do exército das Colinas?

— Sim, meu Mes... meu pai contou. Chegou a dizer que a ajuda dos velhos mágicos Korrigãs contra os padres foi determinante.

— Bertram sempre foi evasivo quanto à razão que levou os Korrigãs a engajarem-se contra a Treva. Quer saber o final da história?

— É claro! Pare de me deixar curioso!

— Em troca de seu auxílio, Bertram prometeu a Kor Mehtar servir-lhe de bobo da corte pessoal pelo mesmo número de dias que os mágicos Korrigãs se ausentassem de Bouléagant!

— Quer dizer... que Bertram passou uma semana inteira com os Korrigãs, tendo que se fazer de palhaço e suportando os caprichos do rei? Não! Mas que horror!

— Isso explica por que estava sempre querendo que a gente andasse depressa lá em Yénibohor! — compreen­deu, de repente, Corália.

— Depois desse episódio que, pelo que ouvi dizer, não foi tão ruim assim — terminou Romaric — parece que Bertram está no Mundo Incerto com Geraldo. Está aju­dando Geraldo em não sei que trabalho importante para a Guilda...

— Meu... meu pai me explicou — confirmou Guillemot — que quando a minha energia mágica e a do livro parti­ram para o espaço, duas novas constelações nasceram e deslocaram o lugar das outras no céu. Para que os Grafemas possam continuar a funcionar no Mundo Incerto, agora é preciso lhes dar uma nova forma, cor­respondente aos novos desenhos das estrelas. É um trabalhão. Bertram e Geraldo não serão demais...

— É verdade que foi você quem deu o nome a essas duas constelações? — admirou-se Corália.

— É. Denominei-as constelação do Feiticeiro e cons­telação do Cavaleiro. Para homenagear o sacrifício de Qadwan e Valentim...

— É muito delicado...

— Guillemot — lembrou-se, de repente, Âmbar — espero que não tenha esquecido... Você precisa estar fora daqui sem falta semana que vem. O Prefeito está preparando uma festança em sua homenagem. Vai uma multidão louca! Todo Ys está convidado, assim como inúmeras pessoas do Mundo Incerto: Homens do Mar, das Areias, do Oeste, do Irtych Violeta.

— Pode ter certeza de que não perco essa festa por nada deste mundo!

— Bem — interrompeu-os Gontrand, olhando seu relógio — temos que ir. Se passarmos da hora, não tere­mos mais direito de vir ver você!

— Está certo, seus canalhas! Sumam daqui! E obriga­do pela visita!

Gontrand abriu a porta, divertindo-se em empurrar Âmbar à sua frente. Atrás, Romaric e Corália deram-se as mãos discretamente, sem saber que Guillemot os observava com um sorriso divertido.

— Esperem! — exclamou Âmbar, no corredor, baten­do na testa. — Esqueci meu casaco. Vão indo, já encontro vocês! — gritou para os amigos, e voltou.

Entrou no quarto de Guillemot e, num passo decidi­do, avançou até o leito do menino, que a fixava com o olhar espantado.

— Esqueci uma coisa — disse.

— Mas está nas suas costas!

— Eu sei!

Inclinando-se, aproximou os lábios dos de Guillemot, atônito. Mas nem por um instante este pensou em se esquivar. No momento em que as bocas se tocaram, eles fecharam os olhos.

— Estou loucamente feliz por você ter saído dessa...

— E eu também...

— Até amanhã!

— Até amanhã!

Guillemot viu a amiga partir com o coração batendo a ponto de explodir.

A partida do pequeno grupo deixou uma impressão de vazio, que ele procurou esquecer interessando-se pelos inúmeros presentes que lhe tinham dado e que dei­xava em torno da cama, como fazia quando era mais criança, ao receber os presentes do solstício de inverno.

Sua atenção foi atraída por uma bela pedra branca que Kor Mehtar em pessoa lhe havia dado, quando veio fazer-lhe uma visita em meio a uma delegação oficial conduzida pelo Prefeito. A pedra estava coberta de sig­nos que os Korrigãs chamavam de Oghams e que eram os instrumentos de uma magia que não provinha das estrelas, mas da terra e da lua. Esticando o braço, aca­riciou-a. Era polida e macia. De brincadeira, roçou num dos Oghams, gravado sobre a aresta.

Em seguida, deixou a cabeça cair nos travesseiros. Mordeu os lábios, maquinalmente. Sentiu ainda o gosto dos de Âmbar. Decididamente, e mesmo tendo retirado os poderes mágicos que lhe tinha dado, o mais belo pre­sente de todos foi O livro das estrelas deixá-lo com vida.

Sobre o chão, sem que Guillemot se desse conta, o Ogham acariciado despertou e pôs-se a brilhar com uma luz vermelha quente... 

 

                                                                                                   Erik L’Homme

 

 

              Voltar à “SÉRIE"

 

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades