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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ROUBO INEXPLICAVEL / Alec Baurer
O ROUBO INEXPLICAVEL / Alec Baurer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Samantha Allenger acordou sobressaltada ao ouvir a porta do quarto se abrir. Permaneceu deitada, os músculos tensos, totalmente alerta aos menores ruídos.
Plóc-plóc-plóc...
Ouviu passos rápidos e ritmados. Alguém (quem?) estava se aproximando.
Os guizos das argolas da cortina tiniram. O clarão do sol invadiu o quarto.
— Bom dia, dorminhoca! — soou uma voz alegre e vivaz. — Hora de acordar!
Samantha Allenger se espreguiçou na cama e olhou para o despertador digital no criado-mudo. Os cabelos escuros, longos e soltos, espalharam-se sobre os ombros expostos.
— Todd! Isso são horas?
— Olhe só pra isso! — disse Todd McKirney, escancarando as folhas da janela. — Outro lindo dia em Saigon!
Samantha Allenger se revirou na cama.
— Alguém deveria bordar essa frase em uma almofada — ironizou ela. — Pelo jeito, você não foi um adolescente muito comportado, Todd.
Todd não permitiu que as palavras da namorada ficassem suspensas no ar.
— É claro que não fui um adolescente muito comportado, mas o que fui não define o que sou agora. Agora eu sou rico, querida. Rico. Riquíssimo.
Todd McKirney riu. Era um rapaz alto, moreno, de físico invejável e pele bronzeada.
— Você não é rico, Todd. Ainda não.
— Mas vou ser, querida. Vou ser. Venha, levante! Vamos comer alguma coisa. Veja só... que manhã belíssima para um mergulho em Brighton Beach!
— Ah, não! Deixe-me dormir, vá!
— De jeito nenhum. Vamos logo! A disciplina é a mãe da força de caráter.
— Ah!
Samantha rolou até a borda da cama.

 


 


Todd remexeu na caixa de joias sobre a penteadeira. Havia de tudo: pingentes, uma elaborada corrente para o cabelo com uma pedra preciosa no centro e brincos.

— Tome, use estes! Combinam com a cor de seus olhos.

— Como se você reparasse, Todd querido! Você nunca olhou para minha beleza.

— A beleza não tem muito valor, e em geral é enganosa — respondeu Todd McKirney, erguendo o canto da boca em um sorriso irônico. — Se bem que hoje vou abrir uma exceção. Você está linda, Samantha! Linda!

— Todd! Todd! Seu falso...

Samantha escolheu uma roupa num tom bordô, sempre sob o olhar atento do rapaz. Depois de se trocar, penteou os cabelos com movimentos vigorosos e, para realçar a cor dos lábios, passou um batom cor-de-rosa.

— Já chega, venha. Temos que nos apressar. Já devem estar esperando por nós.

— E daí? Eles que esperem.

— Estamos aqui por um objetivo maior, Samantha. Não se esqueça disso.

Ela arregalou os olhos.

— Objetivo maior! Parece mais a receita para o desastre — comentou. — Vamos embora daqui, Todd! Vamos embora. Não gosto daqui.

— E acha que eu gosto? Você fala como se estivesse com medo.

— E você não?

— Não mesmo — disse Todd. — Eu aprendi que todas as coisas, por piores que sejam, podem ser viradas a nosso favor se soubermos agir.

— Por agir você quer dizer roubar! Ah, Todd, você é uma graça!

— Não faço ideia do que está falando — retrucou Todd com frieza. — Minhas aspirações são pequenas. Não busco poder, mas justiça. Acabou? Então vamos.

Pegando-a pela mão, Todd e Samantha saíram do quarto.

Viraram à direita e começaram a descer a longa escada que ia dar no térreo. Samantha deixou escapar um resmungo:

— Vá mais devagar, Todd. Ui, pra que essa pressa?

— Se você não dormisse tanto, já estaríamos lá embaixo há tempo.

— Quem disse que precisamos estar?

— Eu disse — respondeu Todd de mau-humor.

Todd e Samantha chegaram à sala de jantar.

As três pessoas ao redor da mesa ergueram a cabeça.

A mesa era quadrada, e não havia qualquer dúvida sobre quem ocupava a inquestionável posição de maioral. Adam McKirney, irmão de Todd, estava sentado à cabeceira — como se tivesse todo o direito do mundo de estar ali. Era um homem alto, ombros largos, cintura fina e queixo quadrado. O cuidadoso laço da gravata de Mr. McKirney exibia uma pepita de ouro.

A mulher a seu lado era outra história. Rachel Taylor-Bullers, a esposa, tinha a pele clara e olhos de cor violeta. Usava roupas cor de jade, e o cabelo estava preso com uma tiara prateada.

— Bom dia — disse Todd em voz alta.

Mr. McKirney e a esposa se limitaram a acenar com a cabeça.

— Oi — disse a moça sentada com eles.

A moça em questão era Catherine, filha do primeiro casamento de Mrs. Taylor-Bullers. Em seu rosto pálido havia uma expressão de tímida expectativa.

Todd e Samantha tomaram lugar na outra extremidade da mesa.

— Vocês já comeram? Estou morto de fome — comentou Todd, com sua habitual jovialidade. — E aí, dormiram bem?

— Muito bem — disse Mr. McKirney, cortando milimetricamente um pedaço de torrada com manteiga. — E vocês?

— Nós dormimos o sono dos justos — disse Todd. — Não é mesmo, Samantha?

— É-é...

— Dá pra perceber — disse Mr. McKirney, lacônico.

Os dez minutos seguintes transcorreram em meio a um gélido silêncio. Só Todd manteve-se sorridente, sem o menor sinal de embaraço, como se toda aquela situação o divertisse imensamente.

— Agora, os negócios — disse Mr. McKirney, levantando-se. — Pode vir comigo, Todd?

— É pra já, chefia. Espera por mim um pouco, querida?

— Oh, Todd! — murmurou Samantha, parecendo implorar para que ele não fosse.

Um leve sorriso surgiu nos lábios de Todd:

— Calma — sussurrou. — Eu já volto.

Os dois irmãos foram em direção da biblioteca.

A diferença entre eles não poderia ser mais gritante. Todd sempre fora o brincalhão da família, gastador e avesso a responsabilidades. Exatamente o contraponto do irmão, um autêntico homem empresarial, sério e pouco dado a externar as próprias emoções.

Uma única coisa os igualava: o fato de estarem ali com o mesmo propósito.

Depois de um minuto ou dois, Mr. McKirney disse:

— Acho que devemos resolver a questão pendente entre nós de uma vez por todas. Quanto antes terminarmos com isso, melhor.

— Também acho.

— Então concorda em pegar a sua parte da herança, dar o fora e nunca mais pôr os pés nesta casa?

— É há outra opção?

Mr. McKirney arqueou as sobrancelhas.

— Você vem falar em opção? Com que autoridade, Todd? Você nunca esteve do lado de papai quando ele precisou de você. E não sou só eu que pensa assim.

— Isso foi há muito tempo. As coisas mudam, e as pessoas também. Não vá dizer que sabe quem eu sou!

— As pessoas mudam! Quer que eu lhe diga que tipo de pessoa você é?

— Ah, é assim que vai ser? Você vai me jogar na cara tudo o que eu deveria ter sido e não fui. Que afeição profunda, obrigado! Vá em frente, vamos lá! Bote pra quebrar.

Mr. McKirney deixou escapar o ar dos pulmões.

— Não, isso seria ridículo. Agora que papai se foi, o melhor é chegar a um acordo o mais rápido possível e fazer com que cada um siga a sua estrada.

— Isso sim é música para meus ouvidos — disse Todd.

— Espero que pelo menos saiba onde irá aplicar o seu montante!

— Meu sonho sempre foi ter uma manada de gado e um celeiro entulhado de feno. Acho que finalmente vou poder realizá-lo. Quanto ao resto... bem, o meu campo de visão é meio estreito em se tratando de dinheiro.

— Creio que chegou a hora de expandi-lo, não acha?

— O que quer dizer com isso? É outra de suas insinuaçõezinhas?

— Não é nada disso. Pelo jeito como fala, esse tipo de coisa acontece bastante com você.

— Já acabamos? — cortou Todd. — Não estou aqui para dialogar. Temos um acordo? — perguntou ele por fim.

— Sim, acho que sim — murmurou o irmão —, mas ainda estou analisando o que isso significa. Todo predador sabe que para pegar a presa é preciso uma boa dose de paciência. Nunca ajo sem antes levar em consideração todas as possíveis consequências.

— Está achando que não vou cumprir a minha parte do combinado?

— Não foi isso o que eu quis dizer!

— Então o que quis dizer?

— Aquela sua namorada... (como é mesmo o nome?)... parece muito afeiçoada a você. Afeiçoada até demais — murmurou Mr. McKirney, inclinando a cabeça para um lado e com um brilho estranho no olhar.

Todd tentou responder, mas fechou a boca.

— Responda com sinceridade, meu caro Adam. Você acha que Samantha está comigo por causa da herança que vou ganhar?

— Você não? Devia pensar a respeito.

— Parece ter muita certeza. Antigamente as pessoas conheciam alguém, se apaixonavam e casavam. Agora é preciso fazer concurso público, responder um questionário ou obter a permissão dos irmãos. Sou da seguinte opinião, Adam... Quando um homem e uma mulher se gostam, devem se casar e não ficar se analisando como espécimes num laboratório.

— Vejo que confia nela.

— Confio, Adam. Confio incondicionalmente.

A expressão de Mr. McKirney endureceu, e murmurou:

— Então faça como quiser. Mas não diga que não avisei.

Todd baixou os olhos sem saber se devia dizer as palavras que rondavam seu cérebro.

— Já ouvi o suficiente — concluiu. — Tem mais alguma coisa que queira discutir?

— Não.

Todd desviou o olhar por um momento, apenas um momento, para tentar colocar os pensamentos em ordem.

— Se é só isso, até logo! Prometi a Samantha que iríamos para Brighton Beach.

Mr. McKirney aquiesceu com um gesto de cabeça:

— Está bem. Vamos nos ver à noite?

— Claro...

Todd retirou-se.

Adam McKirney cruzou os braços sobre o peito e deu de ombros.

— O teimoso de sempre, hein Todd? Um dia você ainda vai se arrepender dessa arrogância.


2.

 

Na sala de jantar a conversa não fizera qualquer progresso expressivo. Samantha Allenger sentia-se cada vez mais inquieta. Calculava nunca ter conhecido uma mulher como Mrs. Taylor-Bullers.

Oh, se pudesse sair dali, ir a um lugar em que não se sentisse tão oprimida!

— Então, menina — disse Rachel Taylor-Bullers, soprando o vapor que subia do chá. — Você é daqui de Melbourne?

Samantha piscou diversas vezes, desconcertada. Achou até que a pergunta não fosse para ela. Mas, pelo visto, era.

— Não. Nasci em Londres.

— É mesmo?

Samantha franziu a testa e suas faces coraram.

— Minha mãe é de Rapid City, Dakota do Sul — completou, sem saber ao certo o que dizer.

Um vinco se estendeu pela fronte de Mrs. Taylor-Bullers. As suas pálpebras estremeceram e entreabriram-se. No que estaria pensando?

— Onde conheceu Todd?

— Todd? Oh... Eu estava hospedada no Hotel Carfax. Todd era vizinho de quarto... Acabamos nos esbarrando...

“Isso já está indo longe demais!” pensou Samantha. Samantha tentava respirar, enraivecida. Fixou os olhos no rosto de sua interlocutora, tentando entender o motivo daquelas perguntas.

Até ali, ela respondera a tudo a contragosto. Mas Mrs. Taylor-Bullers era perseverante:

— A senhorita o ama, Miss Allenger?

— O quê?

— Eu perguntei se a senhorita o ama.

— Sim, sim...

— Pretendem casar?

— Oh, sim... Acho que sim.

Mrs. Taylor-Bullers fez cara de desdém.

— Sinto pena de você, querida. Muita pena.

Samantha tentou engolir a saliva, porém a garganta estava seca.

— Por que a senhora diz isso?

— Digo o quê?

— Essas coisas... sobre Todd...

Mrs. Taylor-Bullers estreitou os olhos e inclinou a cabeça para um lado.

— Ouso crer então que você não sabe, minha criança!

— Do que a senhora está falando? O que é que eu não sei?

— Das coisas que seu namorado fez...

— Todd... matou alguém?

— Não foi isso o que eu quis dizer. A pior coisa para um homem é a perda de sua reputação. E isso é algo que, a meu ver, Todd já perdeu há muito tempo.

Samantha sentiu um aperto no estômago. Tristeza, raiva, angústia e pânico, tudo isso fervia em seu íntimo, ameaçando sufocá-la, e ela não sabia como lidar com a situação, como processar tudo aquilo.

— Por que está me contando tudo isso?

— Por nada — disse Mrs. Taylor-Bullers. — É engraçado como é fácil reconhecer duas pessoas apaixonadas. E vocês dois parecem muito apaixonados. A paixão pode ser algo bastante perigoso. Vi muitos casais assim. Vi também discussões e brigas... saídas noturnas misteriosas...

— A senhora acha que Todd não é o homem certo para mim?

— Eu acho que Todd não é o homem certo para ninguém.

— Por que... não?

— Já lhe disse. É impossível alguém com o caráter dele ser um bom marido.

— O caráter pode ser modificado.

Mrs. Taylor-Bullers fez uma pausa e respondeu:

— O caráter sim, o passado não.

Samantha desviou o olhar e corou. A frase a atingiu como um soco no estômago.

— Mas eu o amo.

— E daí que o ama. Lute contra o fluxo. Enfrente a maré. Nade na direção contrária. Antes que seja tarde. Pense nisso. Areje a sua mente. Bem, isso responde às suas perguntas, não é?

— Mamãe, cale essa boca!

Era a voz de uma adolescente — uma voz fina, frágil, mas determinada. Foi a moça franzina, de mãos pequenas, que falou. Ela continuou, espichando-se para frente:

— A senhora não devia ficar aí julgando as pessoas.

A interrupção foi tão súbita que, por cinco ou seis segundos, a máscara de imponência de Mrs. Taylor-Bullers deixou entrever uma expressão de completa perplexidade.

— Catherine! Isso são modos de falar com a sua mãe?

— Não se trata de mim — argumentou a filha. — A senhora está enchendo ela de medo. Não é mesmo, moça?

Samantha estremeceu ao perceber que a pergunta era dirigida a ela.

— Um pouco — murmurou.

Samantha fitou Catherine fixamente, e viu a determinação em seus olhos. Admirou a sua coragem e impetuosidade, o fervor de suas convicções. E imaginar que, até ali, mal tinha reparado nela!

Tal constatação deixou Samantha ainda mais nervosa.

Felizmente, nessa hora Todd e o irmão voltaram. Samantha se pôs de pé de imediato, com uma pressa um tanto exagerada.

— E aí, demorei muito? — perguntou Todd.

Samantha ergueu os olhos e sorriu. Ela tinha a pele afogueada e cor-de-rosa, os lábios entreabertos.

— Claro que não, querido.

— Pronta para ir?

— Pronta.

Fazendo um breve aceno, os dois encaminharam-se para o hall e deixaram a casa. Atrás deles, Rachel Taylor-Bullers olhou furiosamente para a filha:

— Por que fez aquilo comigo? — perguntou com a voz entrecortada. — Que esta seja a última vez, mocinha!

Catherine ergueu o queixo em desafio.

— Eu não disse nada demais, mamãe.

Mrs. Taylor-Bullers não disse nada; apenas a fitou de maneira sombria.

— Eu não odeio você. Por que se esforça tanto para acreditar nessas coisas, filha?

— Porque é verdade — murmurou Catherine.

Havia alguma tensão em sua voz, mas tão pouco perceptível que um ouvido menos treinado não a teria notado.

Adam McKirney pressentiu que aquilo ia acabar dando mal. Abominava aquele tipo de discussão doméstica. Tentou mudar de assunto e, de maneira casual, disse:

— Então, Rachel... Falou com ela?

Mrs. Taylor-Bullers respondeu:

— Falei.

— Tudo que havíamos combinado?

— Sim.

— E?

— E nada. Foi errado, tudo foi um erro, e desejo colocar uma pedra sobre isso.

Ele segurou o queixo da esposa entre os dedos e ergueu seu rosto de modo que seus olhares se encontraram.

— Por que acha que foi errado?

As narinas de Mrs. Taylor-Bullers se dilataram.

— Porque falar com ela foi como mexer numa casa de marimbondo. Duvido muito que seu plano funcione.


3.

 

Martin Carnigham deu um suspiro, fechou os olhos e massageou as têmporas.

— Tudo isso é uma rematada loucura!

Eram três da tarde, mas parecia estar ali há séculos.

Martin Carnigham estava sentado a uma mesa, examinando e conferindo um calhamaço de papéis. Era um homem entroncado, ruivo, com veias salientes no pescoço. Trabalhava como assessor, secretário e consultor pessoal de Mr. McKirney há mais de quinze anos. Beirava os 65, mas ainda possuía uma vitalidade, uma energia, que fariam corar de inveja gente com a metade de sua idade.

Mas agora Carnigham sentia-se frustrado. E não só ele...

Além dele, havia mais alguém no solar.

Catherine Taylor-Bullers olhava para o terreno lá fora, debaixo da janela. O brilho do dia... o bosque... as roseiras... O esplendor da propriedade... os gramados bem cuidados.

Tudo tão bonito! No entanto...

Oh, ali estava ela — presa. Enjaulada!

A poucos quarteirões dali, o Sherwood Park! Ou o Melbourne Museum. Ou o Victoria Market.

Não podia ir a lugar nenhum! Coisas de sua mãe... Como se Catherine ainda fosse uma menininha imatura, irresponsável!

Catherine cerrou os dentes, inconformada.

Foi quando Mr. Carnigham soltou aquele: Tudo isso é uma rematada loucura!

— O que foi? — Catherine virou-se, olhando para ele.

— Sim? — respondeu ele, chocado por ter sido interpelado.

— O senhor parece exausto.

— E não deveria estar?

Catherine concordou com um gesto lento de cabeça.

— Sobre isso concordo com o senhor de todo o meu coração. Acho que está a ponto de me contar alguma coisa, não?

Carnigham sorriu de leve.

— Nunca consigo esconder nada da senhorita, não é?

— Não mesmo. Mas podemos manter isso entre nós, se o senhor quiser.

— Quero sim. Venha cá, vou mostrar-lhe uma coisa.

Martin Carnighan abriu a tampa de uma caixa e mostrou um anel. Era uma obra de arte de ouro com diamantes sobre um aro trabalhado.

— Comprou isto, Mr. Carnigham?

— Sim.

— O senhor deve ter muito dinheiro!

— Não tenho dinheiro, salvo o que ganho.

— Para quem é?

— Para minha avó.

Catherine deu um passo atrás como se estivesse chocada e arregalou os olhos.

— Sua avó? É a ultima pessoa da terra que eu imaginaria dizendo uma coisa dessas, Mr. Carnigham!

— Ué, por quê?

— Sua avó ainda é viva?

Ele concordou com um gesto de cabeça.

— Claro que sim. Creio que, no mínimo, isso vai ajudar a fechar velhas feridas. Meu avô era alcoólatra e batia nela; morreu aos trinta anos, deixando-a com dois filhos pequenos. O dinheiro desapareceu logo a seguir. Ela sim é que sabe o que é viver à beira do verdadeiro desespero! Fui eu que, pela primeira vez na vida, fiz algo de bom por ela. E teria feito muito mais se não fosse esse maldito ferimento no punho!

— Como o senhor se feriu, Mr. Carnigham? Numa batalha... acidente... duelo?

O assessor endureceu o maxilar, mas manteve uma expressão impassível.

— Sabe de uma coisa, Miss Xereta? Prefiro não falar sobre isso. Pensei que já soubesse disso a meu respeito.

— Não sei absolutamente nada de qualquer coisa a seu respeito. O senhor é muito misterioso!

— Eu... misterioso?

— É. E eu sou tímida, se é o que quer saber. Sempre me aninhei no quarto, escondendo-me de tudo e de todos. Estou acostumada a passar despercebida. Está vendo, temos algumas peculiaridades em comum.

Fez-se um breve silêncio e depois Catherine prosseguiu:

— O que o senhor acha de Todd?

— Todd, o irmão de seu pai?

— Meu padrasto, Mr. Carnigham!

Carnigham disse, com uma tendência claramente maldosa:

— Aquele rapaz é um desocupado, um refugo humano. Ele...

— Olá, filha!

— Oi, mãe...

Mrs. Taylor-Bullers acabara de entrar e, respirando fundo para que o ar enchesse os pulmões, reclamou:

— Ufa, que escada horrível! Temos que mandar instalar um elevador, Adam querido.

Ela usava uma blusa azul de mangas longas, uma faixa de seda branca passada pela saia e um cinto dourado.

O marido vinha logo atrás dela.

Todos diriam mais tarde que Mr. McKirney portava uma valise de couro — uma valise que, segundo opinião geral, teria colocado sobre um dos móveis laterais.

Sem se importar com a indireta da mulher, Mr. McKirney foi até onde estava o assessor.

— Então, meu caro Carnigham, já separou os papéis?

— Sim, senhor. São estes.

— Todos eles?

— Imagino que sim, senhor.

— Ótimo.

Mr. McKirney pegou o maço de documentos, lançou-lhes uma vista de olhos e jogou-os nas chamas.

— Vamos deixar o passado pra lá. Agora, o comando é nosso. O que papai fez, ou o que deveria ter feito, não tem importância. Para as cinzas com isto.

Carnigham enrugou a testa.

— Como queira, senhor.

Mr. McKirney serviu-se de uma bebida; inclinou a cabeça para um lado.

— Chocado, Carnigham?

— Não, senhor.

— Não é o que os seus olhos dizem. — Fez uma pausa e prosseguiu: — Achou que eu guardaria essas coisas velhas, não é? Não sou dado a isso. Não quero manter nenhuma memória viva. A crise internacional limou drasticamente as garras da economia. As negociações e falcatruas de meu pai morreram com ele; não vamos ressuscitá-las, está bem?

— Eu... nunca tinha pensado sob esse ponto de vista – murmurou Carnigham.

— Garanto que não. Acompanhe-me...

Mr. McKirney se dirigiu para as porta duplas e vermelhas, e as abriu devagar. Os dois foram para o terraço.

— Toda essa propriedade foi comprada por papai, quarenta anos atrás. Ele se mudou da Noruega para a Austrália para procurar trabalho nas minas e nas indústrias de geração de energia. Ele foi morar na zona rural do estado de Victoria. Trabalhou muito tempo como eletricista nas minas de carvão. Já casado, veio para cá. Cultivou tudo... até lá, nos bosques. Fez reformas aqui e ali... Chegou a pensar em construir um torreão, mas felizmente mamãe o deteve. Meu pai era um ambicioso patológico, Carnigham. Um ambicioso que agora está morto. Entendeu?

— Claro, senhor. Evidente, senhor.

Ainda conversando, foram para a extremidade mais afastada do terraço. Mr. McKirney continuou a sua explanação, sempre sob os ouvidos atentos do assessor, que às vezes intercalava um “É magnífico!” ou “Imagine só...” adequado à ocasião.

Dali onde estavam podiam ouvir o som das vozes e das mulheres se movendo dentro do solar.

— Parece que a coisa lá dentro está animada — disse Mr. McKirney em voz alta.

— Sua enteada é uma pessoa muito comunicativa, senhor.

— Comunicativa e teimosa. Parece que ela não consegue me perdoar por ter casado com Rachel. Como se a mãe pertencesse só e exclusivamente a ela! Já viu um exemplo maior de falta de esportividade? A inteligência feminina só criou problemas para a raça humana.

— A propósito daqueles memorandos e minutas... — começou Carnigham.

— Queime-os. Queime tudo. Não quero que fique resquício de coisa nenhuma, ouviu? Meu pai era um visionário. Nunca haverá outro igual a ele.

— Se me dá licença, vou fazer isso agora.

— Claro. Vá.

Mr. McKirney fez um aceno liberando o assessor, que se virou e entrou pela porta dupla. Quando o viu sumir de vista, começou a andar lentamente, deixando que a atmosfera do lugar invadisse seus sentidos.

“Que lugar mágico e monumental!”

Mr. McKirney recostou-se numa coluna, ponderando. Como as coisas tinham melhorado nas últimas semanas! Finalmente quase tudo estava nos eixos. Quase tudo...

Após alguns minutos, decidiu entrar também.

Carnigham fuçava num cofre ao lado do armário de arquivos.

— Onde estão os outros?

— Desceram, senhor.

— Espere um instante. Onde você guardou minhas coisas?

— Como, Mr. McKirney?

— A minha valise com as apólices. Onde você a pôs?

Os olhos do assessor luziam como esmeraldas à luz da lâmpada. Encarou o patrão com assombro.

— Mas deve estar aí, senhor.

— Acha que sou cego?

— Mas se o senhor a pôs aí.

— Então venha pra cá e veja.

O assessor corou até à raiz dos cabelos. Seu coração estava batendo mais forte e a respiração ficara difícil. Olhou para o lugar onde podia jurar que vira a valise pela última vez. Primeiro sentiu terror: era uma coisa tão descabida! Depois, começou a tremer, em pânico.

— Está vendo? — insistiu Mr. McKirney. — Não tem nada aqui.

Carnigham ficou imóvel. Boquiaberto.

— Eu nem sequer vim pra cá. Fiquei lá no canto o tempo todo.

— Tente se lembrar...

— Eu não toquei nela, senhor.

Mr. McKirney puxou uma cadeira e sentou-se. Cinco segundos depois, levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.

— Você deve estar querendo pregar uma peça em mim!

— Mas... mas... não pode ser. Eu vi... o senhor mesmo a pôs aí em cima. Será que não caiu atrás do móvel?

— Não. — A palavra foi pronunciada num tom baixo, implacável.

Mr. McKirney estava começando a irritar-se, aborrecido consigo mesmo; ficou quieto, imóvel, os olhos fixos no aparador. Uma vaga sensação de infortúnio se insinuou em sua mente. Era tudo tão novo, chocante, terrível. Aterrorizante.

Os dois homens olhavam insistentemente para o aparador, aturdidos com o inusitado acontecimento.

— Mais essa! — gritou Mr. McKirney. — As apólices sumiram!

Carnigham mal conseguia respirar ou raciocinar:

— Não... não dá para acreditar.

— Quem esteve neste solar? — perguntou o magnata.

— Todo mundo, senhor.

— Escute aqui, Carnigham. O que está querendo dizer com “todo mundo”?

— Quero dizer, senhor, que todos estiveram aqui.

— Todos sem exceção?

— Sem exceção.

— Meu irmão também?

— Ele e a namorada, senhor. Estiveram aqui por dois ou três minutos. Depois ele saiu, deixando a moça sozinha com sua enteada, senhor.

— Tem certeza disso?

— Posso garantir que sim.

— Era só o que faltava! — exclamou Mr. McKirney. Depois de outros segundos de irritada indecisão, disse: — Espere, temos que organizar as ideias. Revele-me tudo o que possa ajudar a formar uma opinião sobre o assunto, Carnigham. Precisamos pensar com clareza. Quem saiu primeiro?

— Julgo que foi Mr. Todd. Ele estava de pé ali e, de repente, disse que tinha um compromisso.

— Você julga?

— Desculpe-me... Foi Mr. Todd, senhor.

— Todd saiu andando ou correndo?

— Andando, senhor.

— De que forma? Com naturalidade... curvado... rastejando?

Carnigham arqueou as sobrancelhas.

— Rastejando?

— Por favor, homem de Deus, não se prenda a detalhes. Responda à pergunta.

— Eu lamento, senhor. Não fiquei reparando, mas... mas acho que ele andava normalmente.

— E depois?

— Depois foi a vez de Mrs. Taylor-Bullers.

Mr. McKirney apertou os lábios.

— Opa, a coisa está esquentando. É em horas assim que um homem demonstra se tem ou não presença de espírito. Vejamos... Primeiro Todd deixou o solar, em seguida Rachel. E depois?

— Em outras circunstâncias, senhor, eu teria prestado atenção, mas dessa vez estava entretido, vasculhando aquelas gavetas e...

— Fale logo, homem. Não fique aí enrolando. Não temos tempo para dúvidas e hesitações.

— Se não me falha a memória, quem saiu depois foi a moça.

— Miss Allenger?

— Sim, senhor.

— Ela levou alguma coisa?

— Eu não... vi. Como disse, eu estava ocupado separando os papéis.

Mr. McKirney fechou os olhos, o queixo cerrado. A raiva e a revolta faziam seu sangue ferver.

— É a coisa mais inacreditável. Minha pasta com documentos desaparece assim, como se tivesse evaporado no ar. Eu a deixo ali, dou as costas por alguns minutos e, quando volto, cadê ela? — Espalmou furiosamente ambas as mãos sobre a mesa. — Não, não, isso é totalmente impossível!

O assessor hesitou:

— O que faremos, senhor?

— E ainda pergunta? Temos que ir atrás de Todd. Ele é o ladrão. Todd nunca bateu bem da cachola. Nunca teve o menor respeito por mim. Eu, eu que sou o mais velho da família. Ele vem aqui, finge isso e mais aquilo. Tudo só purpurina no meio do trigo.

— Joio.

— O quê?

— Joio no meio do trigo, não purpurina.

— Tanto faz, Carnigham. Rápido, homem de Deus! — gritou Mr. McKirney imperativamente. — Corra, vá pegá-lo, antes que a gente o perca!


4.

 

— Só pode ter sido ele.

Quinze minutos mais tarde, Mr. McKirney e Carnigham estavam na sala de visitas da mansão e encaravam uma Miss Allenger chorosa e aflita.

Ela sentia-se trêmula, o corpo lânguido.

— Não, não foi Todd.

Mr. McKirney falava numa voz rouca e áspera.

— Onde está ele, Miss Allenger?

— Eu não sei, o senhor tem que acreditar em mim! Todd disse que ia dar uma saída. Disse que voltaria logo.

— Ah, está vendo, Carnigham! — exultou Mr. McKirney. — Aí está! Que sujeitinho ardiloso... Estou começando a perceber aonde ele quer chegar. Rouba minha pasta e cai fora antes que possamos impedi-lo.

Os olhos da moça estavam insolitamente grandes.

— Claro que não! — exclamou ela. — Não sou muito culta, mas posso lhe dizer uma coisa: Todd não fez nada disso. Ele é um homem de grande fibra moral.

— Fibra moral, pois sim! Escute aqui, mocinha, se está pensando em negociar, vamos negociar. Diga a verdade, e eu prometo não apresentar queixa contra ele.

Samantha arregalou os olhos.

— Queixa? Oh...

— Pare de chorar, por favor. Não aguento mais isso.

— Posso saber o que está acontecendo?

Catherine tinha aparecido subitamente, vinda do andar de cima. Olhou para Samantha Allenger e ficou paralisada diante do brilho intenso de seus olhos.

— O que houve, Samantha?

Samantha sentiu um aperto na garganta.

— Eles... eles acham que Todd é um ladrão.

— Que história é essa?

Mr. McKirney hesitou um pouco, antes de retrucar:

— Fique fora disso, menina. Não se atreva a interferir nos meus assuntos! Deixe que eu resolva as coisas à minha maneira.

— Não.

— Não o quê?

Catherine inclinou a cabeça para um lado e franziu os lábios.

— O senhor não pode fazer isso. Veja como vocês a assustaram! Seja o que for que queiram dela, esperem até que ela esteja em condições de falar.

O padrasto quis resistir, protestar, mas, por fim, baixou a cabeça e retirou-se.

— Mulheres! — disse ele em voz baixa para não ser ouvido por mais ninguém.

Catherine olhou-o sair, depois se virou para o assessor.

— E aí, o que houve? — perguntou com a mesma objetividade. — O senhor pode me dizer que carnaval é esse?

Carnigham contou, com a maior brevidade possível, os fatos.

— Seu padrasto acha que foi Mr. Todd que levou a valise.

— E o senhor? O senhor concorda com ele?

— Eu não sei dizer... Não vi nada. Talvez.

— Não foi ele! — gritou Samantha, as palavras entrecortadas pelos soluços. — Todd não seria capaz... Não seria!

Catherine tocou-a de leve no braço.

— Calma, Samantha. É claro que essa situação é constrangedora. Mas eu prometo que vamos investigar o que aconteceu. Eu prometo, compreende?

Samantha aquiesceu com um gesto de cabeça. Era incrível como aquela moça à sua frente conseguia se impor com tanta facilidade!

— Está bem, Catherine.

— Confia em mim?

— Confio.

— Ótimo. É assim que se fala. Agora quero que vá se lavar. Meu Deus, a sua maquiagem está toda borrada.

Samantha acenou agradecida, levantou-se e saiu.

Carnigham disse pausadamente:

— A senhorita parece ter jeito para confortar as pessoas.

Catherine deu de ombros.

— É um dom. Alguns o possuem.

Ela, porém, pensava em outra coisa.

— Seja sincero, Mr. Carnigham. O senhor acredita mesmo que foi Todd?

— Mas... mas se não foi ele, quem pode ter sido? Só a senhorita esteve lá, sua mãe, Mr. Todd e essa moça.

A voz de Catherine assumiu um tom condescendente.

— Penso que se esqueceu de mencionar alguém.

Catherine olhou tão significativamente para o homem que, após engolir em seco, ele disse:

— A senhorita está sugerindo que fui eu? Posso estar divorciado de minha esposa, e o relacionamento com meu filho não ser dos melhores. Mas daí a sair por aí roubando... Isso pode funcionar com outros, mas não comigo!

— Na verdade, não estava pensando no senhor.

— Não? Em quem então?

Catherine não respondeu. Seus olhos verdes metálicos brilhavam.

— Sabe qual vai acabar sendo o grande problema desse roubo? Primeiro, tenho dúvidas de que Todd é realmente o culpado. Segundo, se Todd, por alguma razão, tiver levado a valise, ninguém poderá provar nada contra ele.

— Temo que vá acontecer exatamente isso, Miss.

— Por isso mesmo é que eu vou tomar minhas próprias medidas.

Carnigham entreabriu os lábios involuntariamente.

— Medidas, Miss? Que medidas?

— Tenho uma amiga em cuja casa está de visita um detetive. Vou ver se falo com ela...

— Detetive? Não creio que...

— Não quero saber — replicou ela num tom glacial. — O que não podemos é ficar de braços cruzados, esperando que as soluções caiam do céu. O senhor acha que o anjo Gabriel vai pensar mal de mim porque vou fazer isso?

— Não falei por mal — desculpou-se Carnigham, embaraçado.

Catherine começou a mexer na agenda de seu celular.

— Deixe-me ver... Deve estar por aqui. A-há! É este.

Carnigham deu uma mirada na moça, que se inclinara para frente, a expressão intensa, enquanto fazia a ligação.

— Bolas! — murmurou entre os dentes. — Um detetive! Só faltava essa para fechar de vez a conta.


5.

 

Edmund Fëll subiu a escada que levava à porta de entrada e ergueu a mão para tocar a campainha. Mas não havia campainha — só uma aldrava imponente.

Deu uma olhada na casa. Parecia uma construção sem fim, de elegantes pedras cor de creme, a casa dos sonhos, com trepadeiras e janelas do século 19.

Fëll imaginou que um lacaio em libré púrpura e carmesim abriria a porta. Em vez disso, quem apareceu foi o porteiro, um sujeito de cabeça raspada e lábios grossos.

— Guten Morgen!

— Bom dia. O que deseja?

— Meu nome é Edmund Fëll. Tenho uma audiência marcada com Miss Taylor-Bullers.

O porteiro bufou, sacudindo a cabeça.

— Mr. Fëll?... Ah, sim. Entre.

Fëll foi conduzido até a sala de visitas. Logo se viu cercado por paredes revestidas de mármore claro; no soalho, um belo tapete persa. Cadeiras baixas de madeira estavam arrumadas em volta de uma mesa de tampo de vidro. No sofá estava sentada uma moça.

Fëll percebeu que ela era clara e a pele acetinada era cheia de sardas.

— Bom dia, Miss Taylor-Bullers — cumprimentou Fëll solenemente.

Catherine empalideceu, mas logo se levantou e disse em tom resoluto:

— Bom dia. Quem é o senhor?

— Eu sou a pessoa para quem a senhorita ligou ontem à tarde.

Catherine deu um passo para trás, pega de surpresa. Em seu rosto surgiu uma expressão vulnerável, pensativa, preocupada.

— Oh, sim... — pareceu se lembrar. — O senhor deve ser Mr. Fëll.

— Exatamente, Miss.

— Desculpe-me... Achei que fosse um... vendedor.

Fëll sorriu, mantendo o olhar fixo nela.

— Não se preocupe com isso, Miss — respondeu Fëll em tom apaziguador. — Enganos acontecem... Além disso, creio que nunca nos vimos pessoalmente.

— É verdade. Mas... oh, faça o favor, sente-se.

Fëll atendeu ao pedido, e sentou-se. Havia um misto de curiosidade e compaixão em seus olhos.

— É uma bonita casa, Miss Taylor-Bullers. Sempre morou aqui?

Catherine fez uma careta de angústia.

— Não, não. Eu nasci em Londres. Para ser sincera, viemos para cá porque vovô morreu e meu padrasto é um dos herdeiros.

— A senhorita é londrina! De que parte?

— Charrington Gardens.

Fëll sacudiu a cabeça.

— Acho que não conheço. E seu avô... Ele morreu aqui mesmo?

— Ele faleceu no Santa Monica Medical Center, na Califórnia. Estava de férias por lá quando foi hospitalizado. Teve que fazer uma amputação cirúrgica, e acabou não resistindo.

Fëll fungou.

— A senhorita era muito afeiçoada a ele?

— Como eu disse, ele era pai de meu padrasto. Não tínhamos muito contato. Vi-o uma ou duas vezes, no máximo.

— Seu pai legítimo, Miss, ainda é vivo ou...

Catherine piscou, sem saber ao certo o que dizer.

— Não. Papai está morto.

— Doença?

— Ninguém sabe. No exame de necropsia, realizado logo após a morte, o legista constatou sinais de asfixia, mas nada foi comprovado.

Fëll a fitou com uma expressão indecifrável.

— Asfixia?

— Estranho, não?

— Hum... Qual foi a versão dada pela polícia?

— A polícia forneceu uma versão plausível dos fatos — respondeu Catherine num tom calmo. — Mas não tudo.

— Lembra-se de alguma característica dele, Miss? De seu pai, quero dizer...

— Lembro-me principalmente dos olhos. Os olhos de papai eram tão... exóticos. O esquerdo tinha tons de azul e verde. O direito era verde e exibia um sinal na íris — uma malformação, a que a medicina chama coloboma, mas que as pessoas conhecem como olhos de gato.

Fëll sorriu amavelmente para ela.

— Não era a isso que eu me referia, Miss. Estava falando de algo mais subjetivo. Mas não importa.

Fëll respirou o ar fresco e fez a pergunta que o estava intrigando:

— Por que estou aqui, Miss? Disse que queria falar comigo sobre um... roubo.

O rosto de Catherine pareceu nublar-se.

— Ah! Sim. É isso mesmo.

— O que foi roubado? Como? Quando?

Catherine sacudiu a cabeça vigorosamente.

— Francamente, o senhor é bem direto.

— Infelizmente disponho de pouco tempo — disse Fëll, inclinando-se ligeiramente.

— Oh! Eu tinha me esquecido de que o senhor estava empreendendo uma viagem. O que aconteceu ontem é tão inexplicável que eu vou apresentar o caso e o senhor decidirá o que é importante ou não.

— Das gefällt mir — disse Fëll.

Catherine resumiu os fatos, com uma fluência cadenciada e espirituosa. Ao fim do quê, perguntou:

— O senhor entendeu tudo ou há alguma coisa que me esqueci de mencionar? O sincronismo não é o meu forte.

— De forma alguma, Miss. Sua exposição foi excelente. Ausgezeichnet!

— Meu padrasto vive dizendo que não sou humana.

— Pois ele está muito errado. Nós nos fazemos humanos quando aprendemos a falar, a conviver, aprendemos a desenhar as letras e a fazer todo tipo de cálculos. Acho que isso é algo que a senhorita aprendeu, não é? — disse Fëll com gentileza.

Ela abriu um sorriso triste.

— Suponho que sim.

Fëll passou a outro assunto.

— Pode descrever a valise que sumiu?

— É uma pasta executiva; possui porta laptop, bolso frontal e portfólio. Possui também alça transversal, alça de mão e alça carona, podendo ser acoplada nas malas.

— Pelo que entendi, havia seis pessoas presentes na hora do roubo. A senhorita, sua mãe, Mr. McKirney, Carnigham, Todd McKirney e Miss Allenger. Confere?

— Sim.

— De maneira que, assim que foi sentida a falta da valise, as primeiras suspeitas recaíram imediatamente sobre Todd McKirney. Por quê?

— Isso tem a ver com um longo histórico familiar — explicou a moça. — Meu padrasto e o irmão nunca tiveram uma convivência muito pacífica, se é que podemos chamá-la assim.

Fëll limitou-se a suspirar.

— Compreendo. Bem, que tal irmos até o solar? Seja lá o que for que tenha acontecido, é lá que vamos encontrar a solução.

— Está bem.

Catherine seguiu na frente acompanhada por Fëll. Quando chegaram ao pátio, enveredou por uma trilha e, após uma curta caminhada, começou a calcar uma escada em espiral; em cima, parou numa espécie de sacada e indicou com um gesto a porta onde Fëll deveria entrar.

Fëll adiantou-se e, detendo-se no vão da porta, olhou para dentro.

Eis aí o solar!

O detetive constatou que o ar era tépido e aromático. Os sofás não tinham uma ruga e as cadeiras estavam milimetricamente alinhadas. A um canto, um bar de vidro com as prateleiras repletas de copos e garrafas de cristal.

— Se houver algo que eu possa fazer... — ofereceu-se Catherine.

— Pode sim, Miss. Disse que, após o roubo, Todd McKirney esteve sumido durante algumas horas.

— Sim.

— Quando reapareceu, ele contou aonde havia ido?

— Não. “Posso ir aonde eu quiser e fazer o que eu bem entender!” foi o único argumento que deu. Disse que não devia satisfações a ninguém... e assim por diante.

— Bom, dessa cartola não sai coelho — disse Fëll. — Agora é sua vez, Miss Taylor-Bullers. Mostre-me como tudo aconteceu.

Catherine deu um passo atrás e sacudiu a cabeça, tentando ordenar os pensamentos.

— Eu e Carnigham estávamos aqui, conversando, quando minha mãe e meu padrasto vieram. Mr. McKirney estava com a valise e a depositou nesta mesa-vitrina. Sei que eu e mamãe nos afastamos um pouco, deixando os dois homens a sós. Também sei que Carnigham tinha separado alguns papéis — papéis estes que meu padrasto, assim que os viu, foi logo jogando na lareira. Depois de uma breve troca de palavras, os dois foram para o terraço. Daí chegaram Todd e a namorada... “Nem todas as mudanças são necessariamente prejudiciais, Samantha” dizia Todd. “Ao contrário, podem ser benéficas em muitos casos.” “Mas é que eu me preocupo” respondeu Samantha. “Eu vou sair já, e resolver esse assunto o quanto antes” disse Todd. Mamãe perguntou a propósito do que eles estavam falando, mas Todd, claro, desconversou. Todd ficou zanzando de um lado para o outro por algum tempo, e, por fim, saiu de novo.

— Por acaso, ele chegou a se aproximar da mesa-vitrina?

— Não posso afirmar que sim...

— Mas também não pode afirmar que não.

— Não, não posso.

O tom de Catherine era vazio e sem esperança.

— Eu entendo — disse Fëll num tom estranhamente apático. — Continue, Miss...

— Após a saída de Todd, mamãe e eu ficamos ali, vendo os porta-retratos. Se bem me lembro, ela saiu logo a seguir.

— Ah, então sua mãe foi a segunda pessoa a sair. Reparou se ela levava alguma coisa?

— Não levava nada — falou Catherine bruscamente.

— É mesmo? — perguntou Fëll com ar duvidoso. — A senhorita viu?

— Vi sim. Eu me despedi dela ali na porta. Daí a pouco Carnigham voltou e pôs-se a mexer no conteúdo do cofre.

— E Miss Allenger?

— Ela estava sentada no sofá. Foi nessa hora que virei-me para ela e disse: “Todd se acha um cavaleiro branco, salvando mulheres indefesas, hein?” Samantha olhou para mim com uma expressão de espanto. “O que quer dizer?” perguntou. “Estou querendo dizer que ele quer que você se acalme” disse eu. Ela fez um gesto afirmativo: “Sim, mas não é fácil...”

Fëll deu um pulo e, com agilidade, refestelou-se no sofá indicado.

— Mais ou menos aqui? Ou mais para cá?

Catherine mordeu o lábio inferior.

— Um pouco mais para a esquerda...

— Aqui? Ou, quem sabe, aqui!

— É, ali mesmo. O que o senhor está fazendo?

— Estou reconstituindo os fatos, Miss Taylor-Bullers.

— O senhor não acha que essa abordagem é um pouco... antiquada?

— Talvez seja antiquada, mas é a única abordagem que tem — disse Fëll com ar de completa inocência, embora houvesse um brilho divertido em seu olhar.

Catherine assentiu, franzindo a testa.

— Ah...

— Pelo que me contou há pouco, Miss Allenger foi a próxima a se retirar.

— Sim.

— E a senhorita?

— Eu saí um pouco depois.

— Quanto à valise... Ela ainda estava aqui?

— Eu não olhei... Talvez estivesse... ou não...

— Quer dizer que, depois de sua saída, Carnigham ficou sozinho?

— Sim.

— Por quanto tempo?

— Ele diz que por uns cinco minutos.

— Após esses cinco minutos, Mr. McKirney voltou do terraço.

— Sim.

— Mr. McKirney deu logo pelo roubo?

Catherine estendeu os braços para o lado.

— Creio que não. Pelo que apurei, meu padrasto só deu pela falta da valise por pura casualidade.

Fëll virou-se novamente para ela.

— Acho que não me falou toda a verdade, Miss Taylor-Bullers. Acho que, de algum modo, a senhorita tem uma suspeita, algo que está corroendo seu coração. Estou certo?

Não era propriamente uma pergunta e sim uma confirmação.

Erguendo, enfim, a cabeça, Catherine disse:

— É impossível esconder qualquer coisa do senhor, não é? Sim, eu tenho uma suspeita — acrescentou um pouco relutante.

— Qual?

— Penso que meu padrasto... de alguma forma... não sei como... pode ter feito as coisas parecerem o que não são. O senhor está me entendendo?

— Está insinuando que Mr. McKirney possa ter simulado um falso roubo, Miss?

— Em resumo, sim.

Um profundo silêncio baixou sobre os dois. Por algum motivo, Fëll havia ficado perdido em meditação. Muito concentrado, olhava a disposição dos móveis ao longo da parede. A mesa-vitrina estava no centro, tendo do lado esquerdo uma velha poltrona com encosto reclinável e, à direita, um aparador-floreira. Fixando os olhos no aparador, Fëll calculou a distância até a janela mais próxima.

Tomado por um súbito pressentimento, Fëll piscou algumas vezes.

— A pergunta-base que faço é essa: por que alguém quereria roubar a valise? O que havia de tão valioso nela a ponto de despertar a cobiça do ladrão? Ou, supondo que o próprio Mr. McKirney tenha forjado o roubo, o que tencionava ganhar com isso? Se for ele o culpado, é de se supor que tenha jogado a valise pela janela. Veja... são só três ou quatro metros daqui até lá! Mas reitero, tal como já perguntei: por que ele faria isso?

— Talvez para fazer com que a culpa recaísse sobre Todd! — disse Catherine enfaticamente.

Fëll aquiesceu com um gesto de cabeça lento.

— Sim, pode ser. Se isso for verdade, pode ter sido um ato regido pelo ódio cego e o desespero. Uma briga entre irmãos. O que, de certo modo, constitui o pior tipo de briga. Por falar nisso, Miss — Fëll olhou para ela. — Onde está todo mundo? Receio não ter visto ninguém até agora, exceto a senhorita e o porteiro.

— Saíram.

— Todos?

— Sim.

— Nem todos — soou instantaneamente uma terceira voz. — Se me permitem dizê-lo, eu fiquei em casa.

Martin Carnigham, o assessor, estava parado no vão da porta. Ele deu alguns passos timidamente, penetrando na zona de luz.

Carnigham deu um sorriso breve, mas muito presunçoso.

— Espero que não tenham nenhuma objeção em me incluir na conversa...


6.

 

— Mr. Carnigham, presumo.

— E o senhor deve ser Edmund Fëll — disse Carnigham.

— Ao seu dispor — disse Fëll.

O detetive austríaco examinou o homem à sua frente. Seu rosto era magro e comprido. Possivelmente um bom secretário, eficiente em suas atribuições.

Devia ter sido um homem másculo e vigoroso em sua juventude. Agora, porém, parecia fisicamente exausto.

— Se eu puder ser de alguma ajuda...

— Suponho que esteve ouvindo a nossa conversa, Mr. Carnigham.

— Em partes, não tudo.

A autoconfiança do velho quase atingia as raias da arrogância.

— O senhor esteve espionando... a gente? — perguntou Catherine, olhando-o com uma fagulha de hostilidade.

— Não é bem assim, Miss — comentou Carnigham, balançando a cabeça compassadamente. — Eu contei a Mr. McKirney que a senhorita havia ligado para esse senhor, e fui aconselhado a monitorar a presença dele aqui... de uma distância discreta, digamos.

— O senhor fez isso? Como ousa?

Ela deu um pulo para frente, indignada, mas Fëll segurou-a gentilmente pelo braço.

— Contenha-se, Miss. Estou convencido de que a cooperação desse homem será bastante valiosa.

— Ora — retrucou Catherine, zangada.

— Minha cooperação? Não creio que possa ajudá-lo em muita coisa...

— Ah, tenho certeza de que pode sim — respondeu Fëll com expressão impassível e fria.

Catherine voltou-se para Fëll:

— O senhor pretende interrogá-lo agora?

— Se não tiver nada a opor, Miss.

— Acha que eu tenho algo a opor? Vá em frente... Vou ter alguma função nisso? — perguntou Catherine.

— A sua função será a de figurante — disse Fëll. — Fique ali, bitte. Sempre que tivermos alguma dúvida, vamos nos reportar à senhorita.

— Está bem. Obrigada pela confiança.

Fëll esperou que a moça ficasse a postos num canto; depois, esfregando as mãos, e sorrindo ambiguamente, ocupou-se outra vez com o assessor.

Decidido a criar uma atmosfera agradável, Fëll disse:

— A partir de agora, é com o senhor, Mr. Carnigham. Acho correto ouvir do senhor o que pensa, porque, na verdade, o que sabemos não é suficiente para formar um panorama completo do caso. Apresente-me a sua versão dos fatos.

— Toda ela?

— Se puder...

Carnigham franziu a testa.

— Já disse uma vez e vou repetir: não sei muita coisa sobre o que aconteceu. Além do mais, se eu falar, receio que isso vá trazer inconvenientes para os McKirney. Quanto menos se falar sobre eles nos noticiários, melhor. A internet é uma coisa boa, mas espalha fatos que chegam a pessoas que nem sequer deveriam tomar conhecimento deles. Precisa me prometer que não vai divulgar nada do que eu disser, Mr. Fëll.

Fëll balançou a cabeça devagar e de modo afirmativo.

— Se isso o satisfaz, é claro que prometo.

Desenvolvendo um raciocínio coerente, Carnigham fez o seu relato, semelhante em muitos aspectos à história contada por Catherine Taylor-Bullers.

Finalizou, dizendo:

— Para sanar qualquer dúvida, fiz esta lista de horários. O papel está aí na escrivaninha.

Era um papel espesso e de boa qualidade. Nele estava anotado o seguinte:


15h25 Catherine Taylor-Bullers e eu a sós no solar

Entram Mr. McKirney e esposa

15h40 Mr. McKirney e eu fomos para o terraço

Entram Todd e Samantha Allenger

Sai Todd

Sai Mrs. Taylor-Bullers

16h05 Eu retorno

Sai Samantha Allenger

Após alguns minutos, sai Catherine

Volta Mr. McKirney


Após uma pausa, Fëll disse, medindo as palavras:

— Estes então são os fatos. Pessoas entrando e saindo neste solar, enquanto a valise estava pousada na mesa-vitrina. E o senhor atesta que não viu nada do que aconteceu a ela.

Um certo rubor cobriu o rosto de Carnigham.

— Como disse, Mr. Fëll?

— Eu disse, Mr. Carnigham, que deve saber mais do que está dizendo. E não acredito que esteja enganado.

Ao passo que ia ouvindo, o queixo de Carnigham descaía cada vez mais.

— Santo Deus! — murmurou ele. — Fiz o que pude, contei tudo o que sabia. Acha, por acaso, que estou sonegando alguma informação?

Fëll sentou-se, recostou-se na cadeira e vagarosamente colocou o monóculo.

— O senhor pode optar por falar comigo ou pode simplesmente continuar mentindo. Uma coisa, porém, eu garanto: isso não vai servir pra nada.

Carnigham deixou escapar uma risada rouca.

— Eu não estou mentindo! — respondeu, o corpo retesado de raiva.

— Compreendo seu ponto de vista — respondeu Fëll.

— Compreende? Não é o que parece. Exerci uma atividade próspera durante anos em Calcutá, na Índia. Sempre fui um homem franco e acima de qualquer suspeita.

— Terá que pensar em algo melhor, meu caro amigo.

— Eu não vou me sujeitar a isso! Achei que estaria fazendo um bem vindo aqui, mas vejo que cometi um engano.

— Não, o senhor não cometeu engano nenhum, fique tranquilo. O que nós precisamos fazer é nos ater aos fatos. Permanecer neles, única e exclusivamente neles. E os fatos são estes: seis pessoas estavam neste solar. Podemos formular mil e uma teorias, usando as paletas de cores mais ricas, combinando diferentes tonalidades de forma criativa, mas uma coisa não muda: o número de suspeitos. Seis. Nem mais, nem menos. Ora, o senhor esteve aqui. E é evidente que um homem como o senhor é acostumado a reparar nas coisas. Poderia ter estado fora, assistindo a uma corrida de cavalos, ou o que quer que fosse. Mas não, o senhor estava aqui, justo no lugar em que ocorreu o furto. Vamos, Mr. Carnigham... Desconfio que deva ter visto alguma coisa. Conte-me o que foi.

Uma resposta irritada aflorou nos lábios do assessor, mas ele se conteve. Lentamente foi para a poltrona e sentou-se.

Fëll continuou a olhar para ele, esperando por uma resposta.

— Eu nem sei o que dizer...

— Diga só a verdade — estimulou-o Fëll.

— É o que estou fazendo — disse Carnigham, com uma expressão aturdida. — Garanto que não vi nada. Essa moça é testemunha do que digo. Quando eu entrei, a mãe dela ia saindo, e eu fui logo para o cofre, pois sabia que ainda havia muitos papéis prontos para ser analisados e postos à parte.

— Concorda com a ordem das coisas, Miss Taylor-Bullers?

— Concordo — disse Catherine.

— Continue...

— Além do mais — acrescentou Carnigham —, a valise não estava completamente à mostra. Ela foi colocada não na ponta de cá, onde seria visível a todos, mas rente à parede, de modo que, dependendo de onde se estava, não dava para vê-la.

— Hum...

Carnigham fez uma pausa, torcendo a boca numa expressão de amargura. Fëll fitou-o, os olhos castanhos pensativos.

— Por esta relação de horários... aliás, muito bem composta!... o senhor e Mr. McKirney ficaram no terraço por uns bons vinte minutos. Tempo mais do que suficiente para o ladrão, se quisermos crer que ele seja um destes quatro: Mrs. Taylor-Bullers, a filha, Mr. Todd e Samantha Allenger.

— Mas... eu pensei que o senhor soubesse?

— Soubesse o quê?

— Que já existe um provável suspeito.

— Mr. Todd?

— S-sim...

— Aposta mesmo nisso?

A voz de Fëll era afável.

— Francamente... E eu que achava que o senhor estivesse aqui para ajuntar provas contra ele!

— Ah! Muito interessante.

Carnigham soltou uma exclamação de impaciência e acrescentou:

— Não é por isso que veio?

— Parece-lhe óbvio que Mr. Todd seja o ladrão?

— Sim, mil vezes sim!

— Por quê?

— O assunto foi investigado e comprovado!

— Investigado e comprovado por quem?

A pergunta apanhou Carnigham de surpresa. Ele ficou paralisado, sem coragem de se mexer, o coração batendo forte.

— Por Mr. McKirney... por mim.

— Ah, por vocês!

— É...

Fëll estava sorrindo, com uma expressão benevolente.

— Não é assim que são as coisas, Mr. Carnigham. É preciso mais do que suspeitas para julgar e decretar a culpa de um homem. As pessoas, por vezes, deixam escapar todas as paixões e emoções amontoadas no fundo de sua mente, o que pode ser desastroso. Esse caso talvez pareça ser relativamente simples, podendo ser resolvido sem maiores complicações. Mas não basta dizer: “Eu acho isso” ou: “Deve ser aquilo outro!” Nada disso... Não se pode acusar um rapaz que não foi pego em flagrante, nem foi visto saindo com a valise debaixo do braço, por uma mera questão de gosto. Entende o que estou querendo dizer, não é?

Carnigham sacudiu a cabeça, os lábios firmemente cerrados. Não era o que ele queria escutar, mas não havia nada que pudesse fazer para mudar isso.

— Está à vontade, Mr. Carnigham?

— Estou sim, obrigado.

— Parece-me um pouco pálido.

— Provavelmente eu devo ter tirado as conclusões erradas.

— Sobre esse negócio de Mr. Todd ser o ladrão?

— Sim...

A voz de Carnigham era quase humilde.

— Todos nós estamos sujeitos a erros — disse Fëll. — Algumas vezes coisas insignificantes assumem proporções gigantescas.

— Desculpe eu ter-me comportado como um idiota.

— Ora, Mr. Carnigham. Não vamos exagerar. Não se deixe perturbar por coisas à-toa.

— Mesmo assim... eu tinha tanta certeza! Certeza de que aquele rapaz... havia... feito aquilo.

— Não se angustie com isso. Responda-me só uma coisa... Acha que, de alguma maneira, Mr. McKirney jogou a culpa no irmão de propósito?

— Eu... eu não posso falar sobre isso. O único problema de Mr. McKirney é o excesso de trabalho e esgotamento nervoso. Não quero ser desleal para com ele. Não quero...

Fëll percebeu que precisava encerrar por ali.

Talvez o patrão de Carnigham não fosse lá um homem muito honesto! É possível que estivesse envolvido nalguma fraude. Ou fosse um falsário. É natural que o assessor começasse a ver o assunto do roubo com outros olhos, agora que a fragilidade de suas suspeitas viera à tona.

Carnigham era um homem sensível. Via-se que procurava rapidamente algum pretexto para sair dali imediatamente.

Fëll hesitou, não querendo ofendê-lo.

— Está bem... Vamos deixar as coisas como estão. Caso precise de seu auxílio, mandarei chamá-lo.

Carnigham encaminhou-se para a porta, sentindo-se um tolo. Chegando lá, virou-se para trás:

— Os outros estarão de volta à tarde. Caso queira ficar, o almoço é às 11h45.

— Boa ideia — ajuntou Catherine. — Fique com a gente, Mr. Fëll. Assim poderemos almoçar juntos.

Fëll se levantou bruscamente, o rosto radiante. Pensou: “Por Deus! Isto é ótimo!”; mas o que disse foi:

— Fico satisfeito de que tenha me dado essa informação. Acho que podemos descer, agora que já vi tudo o que havia para se ver por aqui.


7.

 


— Ele perdeu a confiança que eu depositava nele — disse Todd. — Mostrou-me um lado de Adam que eu nunca tinha visto antes.

O rapaz deixou escapar um suspiro, seguido por um prolongado acesso de tosse.

Ele e a namorada tinham sido os últimos a voltar do passeio. Seu irmão, Mrs. Taylor-Bullers e Catherine já tinham acabado de almoçar quando eles chegaram. Um almoço tardio, à uma hora da tarde.

Rachel Taylor-Bullers estava terminando de colocar a cobertura de frutas sobre o cheesecake. Ergueu a cabeça e fitou o cunhado, intrigada.

— O que deseja que eu faça, Todd? Quer que eu fale com Adam?

Todd olhou-a com uma expressão de incredulidade.

— Falar com Adam? Ah! Sei... Samantha contou-me tudo. Vocês tramaram contra nós... Tramaram. Vocês quiseram afastá-la de mim. Quiseram, mas falharam!

Mrs. Taylor-Bullers mordeu o lábio inferior procurando algo para objetar, mas não encontrou nada.

— Não me entenda mal, mas acha que há alguma chance de isso dar certo? Você e ela, quero dizer...

— Por que não haveria de dar certo, Rachel? Acha que sou um cara tão ruim, tão desajustado? Amo Samantha, amo. O que mais você quer?

Todd sentiu-se dominado por uma raiva cega e impotente. Ele ergueu o copo e esvaziou-o de um só gole.

— Acha mesmo que eu roubei aquela pasta idiota, Rachel?

— E não roubou?

— Francamente, não sou responsável pelo que aconteceu!

— Se não foi você, quem foi, Todd?

— Pois temos que descobrir quem diabo fez isso — disse Todd rispidamente. — Saber quem foi e saber o motivo. É isso o que mais me enfurece. É não conseguir até agora encontrar um motivo para este quebra-cabeça.

Todd ouviu alguém chamá-lo e, após um instante de hesitação, foi até a porta que dava diretamente da cozinha para a sala. Era Carnigham, olhando-o de maneira estranha.

— Boa tarde, homem — disse o rapaz, ao ver seu rosto. — Alguma coisa errada?

— T-temo que sim.

— O que houve? O senhor parece preocupado...

— Quero informá-lo de que tem um detetive fazendo perguntas por aí.

— Como? — perguntou Todd em tom de espanto. — Um detetive?

— Se me permite o aviso, deve ter cuidado com ele.

O rapaz olhou-o por um longo tempo em silêncio, completamente aturdido. Finalmente exclamou:

— Ora essa, e quem é?

— Não sei. Acho que é um suíço.

Carnigham respondeu a todas as perguntas de Todd rapidamente, retirando-se logo em seguida.

Todd fez uma pausa para deixar que a informação fosse absorvida e, subindo até o segundo andar, bateu na porta do quarto de Catherine. Uma voz mandou-o entrar.

Catherine Taylor-Bullers estava estirada na cadeira de balanço, fazendo rabiscos no diário.

— Algo de errado com você, Catherine?

— Comigo? — retrucou a moça rispidamente. — Não há nada errado comigo.

— Parece que andou ligando para um detetive.

— Liguei mesmo, e daí?

— Antes de continuar nisso, considere as inconveniências. Ter um detetive por aí, metendo o nariz em tudo...

— Engraçado você dizer isso, Todd. Logo você, que foi rotulado de ladrão.

— Eu é que sei o que é melhor para mim, Catherine. Não preciso de sua ajuda.

Todd baixou os olhos para o tapete, desesperado. Ele precisava pôr um ponto final àquela cena.

— Pode pelo menos me dizer quem ele é?

— Como é que vou saber!

— Então quer dizer que não sabe absolutamente nada a respeito dele.

— Por que você mesmo não fala com ele? São quase duas horas... Mr. Fëll deve estar lá embaixo agora.

— Mr. Fëll? Nunca ouvi falar nele!

— Grande coisa... Você não conhece ninguém.

A voz de Catherine tinha um tom inconfundível de desprezo.

De fato, Fëll acabara de ter seu primeiro contato com a antipática Mrs. Taylor-Bullers.

A fim de conquistar a simpatia da mulher, Fëll teve que fazer um grande esforço para falar com toda a calma. Explicou-lhe que havia um elemento ignorado a respeito do roubo que precisava ser desvendado. Um elemento que ele tinha vindo descobrir, de qualquer maneira.

Convidando-o secamente a ir para a sala, Mrs. Taylor-Bullers examinou atentamente o rosto de Fëll, lendo-lhe os olhos. Ao falar, ela procurou cuidadosamente não demonstrar a menor emoção na voz:

— Agora eu me lembro... Catherine falou sobre o senhor. É um detetive, não é? Adam quis chamar a polícia, pedir que expedissem um boletim geral urgente.

Fëll ficou imóvel, escutando atentamente. Disse que era normal, naquelas circunstâncias, querer a intervenção das autoridades competentes.

— O senhor é alemão?

— Austríaco.

— O senhor se entrega aos seus casos?

— É claro que sim. Mas tento canalizar e controlar o meu envolvimento emocional.

Havia algo estranho no tom de voz de Mrs. Taylor-Bullers, algo que Fëll não conseguia identificar imediatamente. Seria cautela? Medo?

— A senhora está gostando desta casa? — quis saber Fëll, procurando fazer com que a pergunta soasse natural.

Rachel Taylor-Bullers hesitou, mas finalmente disse:

— Acho que morar nesta ou naquela casa não é uma questão de gosto. Já fui pobre, não tinha sequer roupa suficiente para me proteger. O senhor sabe o que é isso? Nunca fiquei amargurada por causa de minhas limitações; simplesmente fiz o melhor que pude com o que tinha. Nunca deixei que a ansiedade gerada por aquelas circunstâncias me impedisse de fazer o meu melhor. Eu, por mim, preferiria um apartamento. No Eureka Towers, se pudesse. O meu lugar não é aqui. Mas fazer o quê se o velho McKirney deixou todo o patrimônio para Adam?

— Pelo que ouvi dizer, a senhora já foi casada antes.

— Meu primeiro marido chamava-se Eddye. Eddye era filho de um estivador em Piraeus.

— Ele, no caso, é o pai de Catherine?

— Sim.

— Um bom pai?

— Péssimo. Estava sempre colocando Catherine de castigo, principalmente depois que bebia. Eddye era arrogante e insolente por natureza. Achava que merecia ser tratado de maneira especial. Maldito seja!

— Não quero ser impertinente — disse Fëll. — Mas por que a senhora não partiu para o contra-ataque em vez de sofrer passivamente?

Mrs. Taylor-Bullers balançou a cabeça com desdém.

— Eddye era um criminoso. Durante anos, falsificou e emitiu cartas de crédito, letras de câmbio e outros títulos negociáveis. Quando o questionei sobre o que fazia, tornou-se tão agressivo que achei melhor esquecer o assunto.

— Sua filha sabia?

Ela arregalou os olhos.

— Não, por Deus! Nunca contei nada sobre isso para Samantha. Por que esse seu interesse nisso, Mr. Fëll? Ela lhe falou alguma coisa?

— Falou. Disse que o pai tinha sido assassinado.

— Sim, é verdade. Eddye foi encontrado morto num bosque de pinheiros perto de Kenilworth.

— Asfixiado?

Mrs. Taylor-Bullers mudou um pouco de posição. A expressão de seu rosto sofreu uma modificação que quase o tornou irreconhecível. Em voz rouca e nervosa, murmurou:

— Veio aqui por causa do roubo, Mr. Fëll?

— A-hã.

— Já tem alguma teoria?

Ao pé do fogo, Fëll olhou de viés para ela.

— Sim, Mrs. Taylor-Bullers. Diversas.

— Pode me citar uma delas?

— Por enquanto prefiro guardá-las só para mim.

Fëll abriu um sorriso largo, que eliminava qualquer possibilidade de revide.

Mrs. Taylor-Bullers fitou-o com uma expressão um tanto surpresa.

— Nunca mostra as cartas antes do tempo hem?

— O fato é que ainda há muitas coisas que não fazem o menor sentido.

— Tais como?

— Em primeiro lugar, o motivo. Quem é que iria roubar uma valise e, sobretudo, por que naquelas circunstâncias?

— Talvez tenha sido alguém com mania de grandeza; um megalomaníaco que pensa que pode tudo.

— Um megalomaníaco ladrão... É essa a sua opinião, Madame?

— É sim.

Era mentira. Fëll tinha certeza. A linguagem corporal dela dizia outra coisa.

— O que acha de Miss Allenger, Mrs. Taylor-Bullers?

— A meu ver, Samantha é talentosa demais, bonita demais, sofisticada demais... e, apesar disso, uma tola completa. Uma moça como ela deveria se sentir à vontade em qualquer ambiente. Mas não. Samantha fica o tempo todo enclausurada naquele seu mundinho. Como se não possuísse nenhum desaguadouro. Agora está lá em cima, roendo as unhas, muito nervosa. Não vai demorar a desmoronar por completo.

A voz de Mrs. Taylor-Bullers era visivelmente desaprovadora. Fëll podia adivinhar o que ela estava sentindo.

— Miss Allenger parece ser o oposto do namorado.

— É mesmo. Todd tem um temperamento explosivo, e está terrivelmente irritado conosco. Samantha já tentou de todo jeito arrastá-lo daqui, mas ele se recusa a ir. Diz que estamos lhe devendo horrores de dinheiro. Diz que só vai depois que receber a parte que lhe cabe por direito. Aqui entre nós, Mr. Fëll, ele me dá medo. O senhor não está apoiando Todd, está?

— Tenho procurado ser imparcial, Madame. A senhora também acha que foi ele?

— Acho sim.

— Que roupa ele usava ontem à tarde?

— Uma calça clara... camisa em xadrez...

— Alguma jaqueta?

— Não.

Fëll quis acrescentar alguma coisa que pudesse tranquilizá-la, mas não havia nada que ele pudesse dizer.

Houve um estalido agudo. Aparentemente alguém vinha descendo a escada.

Mrs. Taylor-Bullers hesitou, ia dizer alguma coisa, mas depois mudou de ideia e murmurou:

— Uma fachada simplória pode ocultar um cérebro ágil e esperto. Lembre-se disso, Mr. Fëll.

O som de passos estava agora mais perto. Logo um homem de aparência distinta entrou na sala. Trajava um terno mesclado, de bom corte, e usava chapéu de feltro preto.

— Bom dia.

— ‘ Morgen! — disse Fëll.

— O senhor é o detetive, calculo eu.

— Sim. E o senhor deve ser Mr. McKirney.

Fëll olhou para Mr. McKirney. Era um homem parrudo de tipo escandinavo, com ombros largos e peito maciço. Tinha a boca contraída numa expressão de cansaço e sem qualquer cordialidade.

— O senhor quer conversar comigo?

— Se puder... Vai tomar-lhe apenas alguns minutos — disse Fëll. — Quero fazer-lhe algumas perguntas.

Fëll ficou esperando que houvesse alguma alteração na voz dele. Nervosismo, ou medo. Mas, para sua surpresa, não houve nada.

— Naturalmente. Por aqui...

Mr. McKirney dirigiu-se para a porta que dava para o seu gabinete pessoal e abriu-a. Fëll seguiu logo atrás dele.

Havia dois sofás compridos e baixos, forrados com um tecido claro, de tons creme. Sentaram-se.

A voz de Mr. McKirney era suave quando falou:

— Muito bem... O que posso fazer pelo senhor?

Fëll ergueu os olhos e viu que Mr. McKirney o examinava atentamente.

— Quero que fale sobre ontem à tarde.

— Quer que eu fale sobre o aconteceu ontem à tarde?

— Seria bom se pudesse fornecer-me algumas informações.

Mr. McKirney respirou fundo e pôs-se a contar tudo pausadamente, procurando manter a voz calma e baixa. O mais concisamente possível, relatou tudo o que havia acontecido.

— Isso foi tudo — disse, por fim.

— Vejamos... O senhor e sua esposa chegaram ao solar umas 15h25. Foi?

— Às 15h25? — perguntou o homem em tom de espanto. —Quem... quem lhe disse isso?

— Mr. Carnigham.

— Ah, é? Quando?

— De manhã, quando falei com ele.

— Ora, se ele disse, deve ter sido.

— Mas o senhor não lembra!

— Não. Não lembro.

— Ah...

— Algo mais que meu assessor tenha dito?

— Sim... Que o senhor e ele foram para o terraço às 15h40. Que ficaram lá uns vinte e cinco minutos, sendo que, a seguir, ele foi o primeiro a vir para dentro. Ele também disse que, uma vez que ninguém deu especial atenção a isso, a valise nessa hora ainda poderia estar na mesa-vitrina. O que faz supor que, por mais remota que seja, existe a possibilidade de que ela tenha sumido de lá após a sua volta, Mr. McKirney.

Mr. McKirney levou um longo momento para compreender plenamente as palavras do detetive. Os seus olhos ficaram extremamente frios.

— Acho bom me contar o que significa isso!

— Significa que o senhor também é suspeito, Mr. McKirney.

— Não estou entendendo aonde quer chegar.

— A lugar algum. Só quero que repare que, para todos os efeitos, o senhor mesmo pode ter sumido com a valise.

— Mas como eu faria isso, homem?

— A janela — disse Fëll. — O senhor pode ter arremessado a valise pela janela.

— Eu não diria isso se fosse o senhor.

E então ocorreu algo surpreendente.

Mr. McKirney retorceu a boca em desprezo, enquanto o seu rosto exibia uma palidez apavorante. Seu peito inflou num esforço inconsciente e instintivo para se levantar.

— Acho que a nossa conversa acaba aqui, Mr. Fëll. Antes de emitir uma opinião, o senhor deveria obter dados abalizados sobre o que diz.

Os seus pés batiam no chão com vigor e convicção.

Fëll apressou-se em responder com uma subserviência conciliadora:

— Sinto muito... Acho que isso foi muito rude da minha parte.

— Foi mesmo. Tem sorte de eu ainda estar falando com o senhor. Acusar-me de ser um ladrão!

— Não era o que eu pretendia dizer...

— Não pretendia, é? Não vou discutir com o senhor sobre algo que existe apenas em sua imaginação.

Foi Fëll quem rompeu a tensão:

— Por que não mudamos de assunto? — Ele fez uma pausa; acrescentou: — Ontem à tarde, quando tomou ciência do roubo, a sua primeira reação foi atribuir a culpa a seu irmão. Por quê?

Mr. McKirney contemplou Fëll por um momento.

Lentamente, os seus músculos relaxaram, a cabeça parou de se agitar e um grande suspiro saiu de seus lábios.

— Ah! Agora sim. Finalmente estamos falando a mesma língua. Todd pode ser meu irmão, e tudo o mais, mas sempre me irritou vê-lo fugir do trabalho. Todd nunca entortou um dedo na vida; sempre foi sustentado por uma renda garantida e confortável. Para corrigir uma tendência errada é preciso agir de imediato. Quanto mais se prolonga algo ruim, piores são as consequências. Foi o que aconteceu com Todd. Meu pai deu-lhe uma vida de rei; sem compromissos, sem limites no cartão de crédito... Um homem como Todd, com suas habilidades matemáticas, poderia trabalhar em ciências contábeis, ou em qualquer outra coisa. Qual o quê! A única coisa que Todd sabe fazer é gastar o que tem e banquetear-se em resorts e balneários turísticos! “Sou apenas um cara tentando aproveitar a vida” diz ele. Aproveitar a vida, como se fosse! Não é possível avaliar, medir nem delimitar certas coisas. Mas se há uma coisa que se pode avaliar, medir e delimitar é a preguiça de Todd. A preguiça é provavelmente a expressão mais acentuada de seu caráter. Essa é uma coisa desconhecida por muitos ou, o que é ainda pior, equivocadamente conhecida por outros. Sempre fui severo e turrão. Eu tive de ser. Não tenho arrependimentos disso. Muitas pessoas beiraram a ruína. Mas eu sobrevivi. Todd, ao contrário, adquiriu o péssimo hábito de desperdiçar dinheiro como se fosse água. Nunca ganhou um centavo honesto em sua vida. Isso é uma coisa que não dá para aceitar. Ontem, afastei a possibilidade de uma investigação policial mais aprofundada. Não o quero preso, mas, dadas as circunstâncias, vou ter que pedir que ele saia desta casa.

O rosto de Mr. McKirney deixou transparecer toda a raiva que ele estava sentindo.

Fëll sacudiu a cabeça, desolado:

— Um berço de ouro tem esse poder de estragar as pessoas. Isso confirma mais uma vez que o caramujo toma a forma da concha.

— Falou muito bem, Mr. Fëll. Todd é um caso perdido, irremediável. Ele cresceu assim, e é assim que vai morrer. Todd nunca se conformaria se tivesse que levar uma vida difícil. A bem dizer, eu e ele nunca fomos da mesma estirpe. Não se endireitam árvores que crescem tortas. Quando um homem inteligente se volta para o crime, então é o fim. E isso é algo que eu não admito. Não admito! Assim que papai morreu, Todd já foi achando que estava rico. As coisas não são assim tão simples. Primeiro porque falta fazer o levantamento dos bens. Os títulos, os imóveis (a casa, as propriedades de investimento), as contas bancárias (incluindo os fundos do mercado financeiro), propriedades pessoais (coleções, obras de arte, joias, carros, mobília), seguro de vida, aposentadoria e negócios. Depois que tudo for alistado, será a vez de fazer uma lista do que papai devia — os imóveis financiados, empréstimos, promissórias e contas de cartão de crédito. Subtraindo essas obrigações do total dos bens obtém-se o patrimônio líquido. Antes de concluído o processo, não haverá nada para Todd.

— Por que o senhor acha que ele roubou a valise?

— Por causa de seu conteúdo altamente negociável. Uma valise de couro com dinheiro, cheques, apólices, ações... Um prato cheio para alguém cujo bolso precisa ser constantemente reabastecido.

— Que espécie de ações?

— Ações de uma empresa de comércio eletrônico.

— Empresa australiana?

— De um grupo francês.

— Qual foi sua impressão quando deu pelo roubo?

— No início não queria acreditar no que estava vendo; senti um choque de violação pessoal. E...

Mr. McKirney deu a impressão de que ia dizer mais alguma coisa, mas mudou de ideia.

— Essas coisas só acontecem comigo.

— Quanto a isso, sou forçado a discordar. Casos como esse são mais comuns do que imagina.

— Foi Catherine quem o contatou, não foi?

— Sim.

— Sinceramente, não sei o que se passa pela cabeça dessa menina. Faz as coisas sem consultar ninguém.

— É uma fase — disse Fëll em tom conciliatório.

Mr. McKirney examinou-a atentamente, comentando:

— O senhor parece-me um daqueles homens que preferem a honestidade à falta de sinceridade. Vai mesmo investigar esse caso, Mr. Fëll?

— Se me der a sua permissão...

Estranhamente, de maneira desconcertante, Mr. McKirney pareceu perder um pouco da tensão.

— Claro que dou — disse, com franqueza. — As coisas não são muito promissoras, mas acho que é melhor do que nada.


8.

 

Samantha Allenger era uma moça inteligente, alegre e afetiva. Disso Fëll tinha certeza. Mas ali, à frente do detetive, havia uma expressão de ansiedade em seu rosto.

Fëll viu que, se quisesse falar com ela, teria que romper a barreira que Miss Allenger inconscientemente erguera ao redor de si mesma.

— A senhorita acha possível que seu namorado tenha cometido o roubo?

Samantha sacudiu a cabeça rapidamente, mas conseguiu manter a voz sob controle:

— Claro que não. Todd não é nenhum ladrão! Ele jamais fez mal a alguém em toda sua vida. Tenho certeza de que o roubo foi cometido por alguém de fora, por um estranho.

— Um estranho, Miss?

— Sim.

— Como supõe que esse estranho tenha entrado no solar, pegado a valise e tenha saído sem ser notado?

Ela fitou-o em silêncio por um minuto, perplexa.

— Eu... eu não sei. O senhor tem que descobrir quem fez isso! Tem que descobrir, de alguma forma...

— É justamente o que eu pretendo fazer — disse Fëll, olhando fixamente para a moça. — Há quanto tempo está namorando Mr. Todd?

Ela já devia imaginar que ele ia fazer-lhe aquela pergunta, pois respondeu imediatamente:

— Cinco meses.

— É feliz com ele?

— Muito.

— Como se conheceram?

Durante alguns minutos, Fëll pulou rapidamente de um assunto para outro, sondando, experimentando o terreno. Perguntou sobre o passado de Miss Allenger, sua formação, etc. — tudo para deixá-la mais à vontade. Samantha tentou, de todas as formas, se lembrar das coisas. Coisas que há muito estavam enterradas em seu subconsciente.

Como se lesse seus pensamentos, ela disse:

— Obrigada.

— Pelo quê, Miss?

— Por ser paciente comigo. É que estou tão... abalada. Com as acusações, as suspeitas, e tudo o resto. Quase achei que iam prender Todd. Que iam prendê-lo e que ele nunca mais ia voltar para mim!

A voz de Samantha estava trêmula. Ela engoliu em seco e respirou fundo, procurando controlar-se.

— Tudo bem, Miss — disse Fëll. — Se ele for inocente, não há nada a temer. Pelo que entendi, a senhorita acha que o roubo foi obra de algum maníaco.

— Só pode ter sido. Sim, é o que eu acho.

— Mas mesmo um maníaco precisa de alguma motivação.

— Motivação para o quê?

— Para levar a valise.

— O senhor quer dizer que havia algo de valor nela? Pois eu acho que a pasta não continha nada que valesse a pena roubar. Acho que ela estava vazia.

— Isso não faz o menor sentido, Miss. Por que alguém iria querer roubar uma pasta vazia?

— E quem disse que ela foi roubada? Para mim a pasta foi tirada de lá de propósito, com a única intenção de incriminar Todd. É isso o que ele queria que acontecesse; é isso o que ele conseguiu fazer.

— Ele quem?

— Adam, o irmão de Todd. Tem de fazer qualquer coisa, Mr. Fëll...

— Não posso. Não tenho liberdade para julgar as pessoas. A não ser que haja provas contra elas.

— Quer dizer que não há nada, absolutamente nada, que o senhor possa fazer? Mas foi Adam. Adam fez isso.

— Isso não é argumento, Miss.

Samantha hesitou, mas depois continuou, quase que falando para si mesma:

— Todd não furtou a valise. Sei algo que o senhor não sabe. Quando eu saí, a valise ainda estava lá, na mesa-vitrina.

O coração de Fëll deu um salto.

— O que disse, Miss?

— Estou dizendo que quando saí do solar a valise ainda estava onde Mr. McKirney a havia deixado.

— A senhorita viu?

— Vi sim senhor. Eu vi.

— Acho uma história meio difícil de acreditar.

Samantha ergueu-se, uma expressão dura no rosto.

— Ah, é? Por acaso está insinuando que eu não vi?

— De modo algum, Miss. Mas talvez esteja querendo dar uma boa feição a uma situação ruim hein?

— Boa feição para quem?

— Para seu namorado. Afirmar ter visto a valise depois de Mr. Todd já ter-se retirado é a mesma coisa que dizer que ele não praticou o furto. Muito conveniente, não?

Samantha Allenger ergueu os olhos, surpresa por um momento. Depois sorriu.

— Acho que o senhor está fazendo suposições demais.

Fëll fungou, cerrando o maxilar.

— Essa provavelmente é a minha área de especialidade. Fazer suposições... Muita gente, para descobrir alguma coisa, usa objetos tais como bolas de cristal, cartas de baralho, dados, folhas de chá ou borra de café. Outros examinam os movimentos de camundongos ou cobras, o voo de pássaros, até mesmo a maneira de um galo debicar grãos de trigo espalhados no chão. Não compartilho dessas superstições. Eu prefiro o estilo clássico: método e investigação. Também acho que Mr. Todd não é culpado, quer por causa disso ou daquilo, quer por causa de uma combinação de fatores...

Samantha sacudiu a cabeça e respirou fundo por diversas vezes.

Quando falou, a voz tremia de raiva:

— Mas... mas quem pode ter feito uma coisa dessas?

Fëll acenou-lhe jovialmente.

— Não sei, Miss. É isso o que eu vou averiguar.

Samantha sorriu, um sorriso franco e cordial, sem qualquer artifício ou afetação.

— Infelizmente desperdicei o seu tempo, Mr. Fëll, e peço-lhe desculpas.

— Nada disso, Miss. Eu...

— Mas que diabo está acontecendo com todo mundo hoje?

A porta se abriu e Todd McKirney se adiantou, como que falando consigo mesmo. O rosto estava pálido e no pescoço havia um emplastro adesivo.

Quando viu Fëll cumprimentou-o com uma estranha cortesia, mas sem modificar a expressão sombria de seu rosto.

— Bom-dia — disse ele com firmeza.

— Guten Morgen!

— Vim apenas ver se podia ajudar em alguma coisa.

— É claro que pode, meu jovem. Bitte, entre. Precisamos conversar.

Todd dormira pouco e sentia os olhos pesados e irritados.

— Não estou muito certo de que haja alguma coisa sobre o que possamos conversar.

— É apenas uma questão de semântica — disse Fëll ambiguamente.

— Você está com um aspecto horrível — disse Samantha, examinando Todd criticamente. — O que foi que aconteceu?

— Não foi nada. Apenas uma escoriação...

— Não minta para mim, Todd? Quem fez isso com você?

— Ninguém, Sammy. Ninguém fez isso comigo.

— Oh!...

— Por favor, Sammy. Não aja como se eu tivesse sete anos. Se esse senhor já terminou com você, saia. Deixe-me falar com ele.

Samantha virou-se bruscamente para Fëll; fitou-o em silêncio por um minuto antes de perguntar:

— Eu posso ir, Mr. Fëll? Estou liberada?

— Está liberada, Miss Allenger — disse Fëll.

Ela virou-se para sair, mas parou no meio do caminho e disse:

— Obrigada de novo, Mr. Fëll.

Fëll lançou um olhar compreensivo para ela:

— Não há de quê.

Quando a porta se fechou atrás da moça, Todd levantou a cabeça com uma expressão furiosa:

— Eu perguntei para Catherine, mas ela não soube me dizer. Agora vou lhe fazer a mesma pergunta... Quem é o senhor?

— Eu sou Edmund Fëll, detetive e investigador privativo.

Todd fitou-o longamente, sem nada dizer, com olhar frio.

— Não vai adiantar nada — disse Todd, assumindo uma expressão de censura.

— O que não vai adiantar?

— O senhor vir aqui, investigar esse maldito roubo.

— Por que não?

— Simplesmente porque não houve roubo nenhum. Foi tudo uma armação.

Fëll já estava começando a ficar cansado de ouvir aquela frase. Inclinou-se deliberadamente para frente:

— Uma armação, Mr. Todd — repetiu.

— Armação sim senhor.

— Por que está me dizendo isso?

— Por nada. Achei que o senhor deveria ser informado.

Todd caminhava impaciente de um lado para outro. Logo em seguida, num impulso, acrescentou:

— O senhor é mesmo detetive?

— Sou.

— Dos bons?

— Depende de que lado se está.

— Por que aceitou esse caso prodigioso e cheio de mistérios?

— Porque esse caso prodigioso e cheio de mistérios aguçou minha curiosidade — disse Fëll.

— Só por isso?

— Essencialmente.

Fëll percebeu a estratégia do rapaz. Estava procurando sondá-lo, descobrir o seu calcanhar-de-aquiles.

Fëll resolveu partir para o ataque:

— Noto que está um pouco exaltado. Algo a ver com o seu irmão?

— Tudo a ver. Adam está me observando há horas de modo hostil — disse Todd. — Se olhar matasse...

— Parece ter sangue aventureiro, meu jovem.

— Quem não se aventura, perde-se a si mesmo. Aprendi que você deve seguir três leis na vida: Ataque cada problema individualmente, uma justificativa vale um pagamento e seja o que você não é. O resto é papo-furado.

— Onde esteve hoje de manhã?

— Samantha e eu estivemos na Federation Square.

— Federation Square?

— Ainda não foi lá? Ali perto ficam a National Gallery of Victoria, os Royal Botanical Gardens, o Crown Casino, o Melbourne Aquarium...

— É um homem viajado, Mr. Todd?

— Da última vez passei os dias mergulhado acima dos recifes da costa haitiana. Nada mal hein?

— Formado?

— Eu me formei sim. Na Monash University.

— Já foi preso alguma vez?

— Essa é uma pergunta e tanto. Por que o senhor não telegrafa a uma agência de notícias? Talvez eles lhe digam.

— Aonde foi ontem à tarde?

— Fui ao centro. Fiquei lá, observando as vitrines das butiques, joalherias e lojas de presentes.

— Está dizendo que saiu de casa apenas ver vitrines? Terá que contar uma história melhor do que essa.

— Quer uma história melhor?

— Muito melhor, bitte.

— Não estou entendendo.

— Claro que entende.

Todd levantou a cabeça e falou lentamente, a voz débil, vacilante:

— Fui para uma loja de penhores. Precisava de dinheiro e era o único modo de obtê-lo.

— O que empenhorou?

— Um castiçal e uns talheres de prata.

— Mr. Todd!

Todd soltou uma risada e acrescentou:

— Percebo que o senhor não tem lá muito senso de humor.

— Tenho sim. Mas depende da ocasião.

— Empenhorei uma corrente para o cabelo.

— Uma corrente para o cabelo?

— Pertencente à Samantha.

— Pertencente à sua namorada?

Todd não conseguiu conter o sorriso.

— Lamentável, não?

— Contou a ela o que fez?

— Nunca enganei Samantha. Para seu governo, fiz mais do que isso: pedi permissão a ela.

Fëll se lembrou do trecho de conversa que Catherine dissera ter ouvido.

— Por acaso era sobre isso que o senhor e Miss Allenger estavam falando quando chegaram ao solar?

— Sei lá. Deve ter sido.

Fëll decidiu não entrar em detalhes sobre o assunto.

— Então o senhor ia mal de dinheiro?

— Muito mal.

— Isso quer dizer que a morte de seu pai veio a calhar.

— Francamente, Mr. Fëll!

— Do que foi que ele morreu, Mr. Todd?

— Papai tinha diabetes, controlada com medicamentos, além de cálculos na vesícula e problemas de coluna.

— Disse que armaram para o senhor.

— Sim.

— Quem?

— Meu irmão.

— Por que supõe que ele fez isso?

Todd fez uma pausa. Sua voz elevou-se subitamente áspera:

— Mas como diabo eu posso saber! Adam se acha o protótipo de um executivo dos altos escalões. Ele é um purista e valoriza muito o dinheiro. Economiza cada centavo. Diferente de mim. Eu curto a vida. Já pratiquei até rap jumping! Deixe-me dizer-lhe uma coisa... A verdade pura e simples é que não havia ninguém que tivesse motivos para furtar a pasta.

— Ninguém que tivesse motivos aparentes — disse Fëll rapidamente.

— Seja como for, raciocine comigo... Eu não fui. Samantha menos ainda. Carnigham? Improvável, uma vez que ele tinha acesso contínuo à pasta, e não há relato de que, antes disso, ele tenha feito algo parecido. Ou acha que foi Rachel, a esposa de Adam? Dificilmente. Ela não me parece ser o tipo de mulher que sai por aí roubando maletas.

— O primeiro marido de Mrs. Taylor-Bullers foi assassinado, não foi?

— Sim. Acho que sim.

Fëll examinou-o com mais atenção.

— O ódio é complexo, e as pessoas costumam subestimá-lo. Adam me odeia, odeia do fundo da alma. Posso fazer uma análise longa e enfadonha sobre ele, se o senhor quiser.

— Não precisa. O que sua namorada disse é o bastante.

Todd hesitou, parecendo acanhado e pouco à vontade.

— Não existe qualquer perigo para a vida de quem quer que seja — disse Fëll. — O senhor acusa seu irmão de ter arquitetado algo para prejudicá-lo. Mas dizer não é o suficiente; é preciso provar. Temos que encontrar algo que possa nos proporcionar uma pista. Posso ajudá-lo nisso... se me ajudar.

— Farei qualquer coisa que o senhor quiser. Basta dizer.

— Combinado?

— Combinado — respondeu Todd prontamente e apertou-lhe a mão.

— No que foi que o senhor se machucou?

Todd lançou-lhe um olhar paciente e malicioso.

— Está falando deste emplastro? É falso, eu o pus só pra ver a sua reação.

— Minha... reação?

— Para algumas pessoas, a existência é um lugar-comum. Às vezes temos que dramatizar um pouco as coisas.

Todd encaminhou-se para a janela, acrescentando:

— Espero que não tenha se ofendido.

Fëll ficou olhando para o rapaz por alguns minutos, absorvido no que acabara de ouvir.

Temos que ir mais fundo nisso — pensou consigo mesmo. — Um pouco mais fundo.

Fëll recordou-se de muitos detalhes, mas lembrava-se de uma coisa com perfeita clareza.

Uma valise não some assim, à vista de seis pessoas. No entanto, era isso mesmo o que parecia ter acontecido.


9.

 

Bateram na porta.

— Pode entrar — disse Fëll.

Carnigham entrou.

— Desculpe incomodá-los — disse o assessor para Todd —, mas Mr. McKirney quer lhe falar.

— Ele que venha até aqui.

A voz de Carnigham soou ríspida:

— Acho que o senhor não está em condições de barganhar.

Houve um silêncio profundo e quase interminável.

— Diga-lhe que eu já vou — acabou dizendo Todd. Virou-se para Fëll: — Está vendo como me tratam por aqui?

Os dois levantaram-se e deixaram o solar. Enquanto Todd ia para o gabinete particular do irmão, Fëll foi para a sala, chegou-se ao fogo e aqueceu os pés entorpecidos.

Após alguns segundos, Catherine apareceu ao seu lado, com um ramalhete de rosas recém-colhidas.

— Podíamos conversar? — perguntou ela. — Acho que devíamos.

Catherine olhou para Fëll, desesperada. Ele assentiu, quase imperceptivelmente.

— Se a senhorita quiser — disse Fëll cautelosamente. — O que foi?

— Meu padrasto vai mandá-lo embora.

De algum lugar longínquo, dava para ouvir agora a cacofonia de uma acalorada discussão. Fëll ficou parado ali, ouvindo a babel de vozes.

— É, acho que tem razão, Miss.

A moça hesitou por um momento, mas acabou perguntando:

— O senhor não vai interromper a investigação, vai?

— Na verdade, não tenho nada em que me basear para continuar. Mas não se preocupe, não costumo entregar os pontos diante das dificuldades de um caso. Além disso, estou começando a pisar em terreno mais firme. Há só uma coisa que não está fazendo sentido. Uma coisa que não se ajusta ao resto da minha teoria.

Todd reapareceu subitamente à porta do gabinete, dominado por uma fúria selvagem e incontrolável.

— Se querem tanto que eu vá, estou indo. Podem mandar minha parte do bolo por cheque-postal.

Neste instante Samantha Allenger vinha descendo a escada, mas parou bruscamente no meio do caminho, levando a mão ao peito. Fëll não pôde deduzir nada de sua expressão, a não ser que ela estava extremamente cansada.

Samantha entreabriu os lábios para falar, mas Todd foi mais rápido:

— Vá voltando lá pra cima. É hora de arrumar as malas. Parece que nossa estada aqui terminou.

Mr. McKirney demonstrava a satisfação expansiva de quem acabara de obter uma vitória total.

— Uma atitude vale mais do que mil palavras — comentou.

Nos minutos seguintes aconteceu muita coisa. Todd voltou para baixo com as coisas a tiracolo. Mrs. Taylor-Bullers estava parada nohall e declarou friamente:

— Chamei um táxi para vocês. Espero que sirva.

— Desde que nos leve para longe daqui...

Exteriormente Todd parecia calmo, mas por baixo se podia sentir nitidamente a tensão que o dominava.

Mr. McKirney lançou um olhar duro para a esposa, mas Mrs. Taylor-Bullers não demonstrou qualquer reação.

Samantha veio logo em seguida, arrastando a bagagem atrás de si.

— Mais depressa! — gritou Todd lá de fora.

Fëll se adiantou e correu amavelmente em direção da moça.

— Permita-me ajudá-la, Miss.

Samantha sacudiu a cabeça, sem se sentir confiante o bastante para dizer qualquer coisa.

— Oh! Obrigada...

Havia um tom de alívio na voz dela, misturado com alguma apreensão.

— Lamento que as coisas tenham chegado a esse ponto, Miss. Às vezes interesses pessoais são sobrepujados pela vontade da maioria.

Antes de embarcar, Samantha lhe deu um aperto de mão, olhando firmemente para o austríaco.

— Não foi Todd — sussurrou. A voz era fraca e trêmula. — Não importa o que digam, não foi Todd. O senhor acredita em mim, não é?

Fëll ficou confuso e constrangido. Hesitou enquanto vasculhava sua mente à procura da melhor resposta.

— Eu acredito, Miss.

— Entre, querida — rosnou Todd. — Chega! O ar por aqui está irrespirável.

Mas, de repente, após sentar no banco traseiro, Samantha pôs a cabeça para fora da janela.

— Catherine! Catherine! Quero que fique com este broche. Por tudo o que fez por mim. Ele será a chave de sua felicidade, assim como foi para a minha.

— Eu... eu não posso...

Mrs. Taylor-Bullers disse com irritação:

— Não seja tola, filha. Se ela está lhe dando de bom grado, aceite.

Catherine apanhou o broche, embaraçada.

— Vá lá, chofer — comandou Todd. — Agora pé na tábua. Direto para a Flinders Station.

O táxi finalmente partiu, enquanto Fëll e Catherine faziam acenos de despedida.

— Enfim sós — disse Mr. McKirney. — Uma encrenca a menos para infernizar a nossa vida.

Todos entraram. Mrs. Taylor-Bullers foi para a cozinha, e voltou trazendo um bule com chá e uma travessa com massas folheadas.

Fëll olhou em redor, aparentemente procurando um lugar onde sentar-se.

Mr. McKirney começou a andar de um lado para o outro, irrequieto.

— Ameacei Todd, ameacei de todas as formas possíveis e imagináveis. Tudo em vão. Não obtive nem confissão nem confirmação. Que amarga ironia! Perdi a paciência e mandei que fosse embora, de preferência ainda hoje.

Fëll olhou-o com curiosidade.

— Praticamente anulando qualquer chance de chegarmos à verdade.

— Dane-se! Vou arcar um tremendo prejuízo, mas já tive tombos piores. E talvez tenha sido melhor assim.

Fëll achou melhor não insistir, pois, afinal, aquilo não era da sua conta.

— Que mancada! Olhem só o que Samantha se esqueceu de levar! — disse Catherine, apontando um baú de carvalho encostado a um canto.

— Deixe isso pra lá, filha. Venha comer...

— Espere, eu vou primeiro ligar pra ela.

A moça começou a discar o celular. Neste momento uma mão pousou no braço de Fëll. Era Carnigham torturado pela incerteza.

— Posso falar com o senhor... um minutinho?

Com um suspiro interno de resignação, Fëll o acompanhou. Entraram numa sala decorada com tons suaves de branco.

Em voz alta, Carnigham se limitou a dizer:

— Não compete a mim julgar a sua competência, mas, como deve ter visto, no seio dessa família há muitas coisas enterradas. Coisas que é melhor que jamais venham à tona, se é que me entende.

Fëll sacudiu a cabeça, completamente tonto. Friamente, respondeu:

— Obrigado por ser tão explícito. Mas sei manter segredo. Se quiser, pode redigir um documento de confidencialidade que assinarei agora mesmo!

— Ouça, eu...

— Alto lá, ouça-me o senhor! Não estou acostumado com gente que duvida de mim.

Carnigham engoliu em seco, ficando imóvel.

— Em vez disso, vamos falar de outra coisa — comandou Fëll, quando a pausa se prolongou. — Disse que certas coisas não devem vir à tona. Que coisas são essas?

— Pergunte a Miss Taylor-Bullers. Ela pode lhe falar mais livremente sobre isso.

— Miss Taylor-Bullers?

— Provavelmente o senhor tem muitas perguntas a fazer e será mais fácil se ela mesma as responder.

Por um momento Carnigham hesitou. Como se tentasse decidir se deveria dizer mais alguma coisa.

Será mais fácil se ela mesma as responder.

Fëll teve um lampejo de memória repentino... uma vaga imagem de algo que tinha visto. A mesa-vitrina... ladeada à esquerda por uma poltrona e à direita pelo aparador-floreira...

Fëll vislumbrou então, repentinamente, uma nova possibilidade. Em algum ponto, no fundo da sua mente, sentiu uma resposta aflorar devagarinho.

Exclamou de repente:

— Por Deus!

Havia uma expressão de excitamento crescente em seu rosto. Fëll subitamente soube a resposta a uma coisa. Sabia quem tinha furtado a valise. E, mais importante, como.

— Heureca! Acabo de ter uma ideia.

Carnigham lançou-lhe um olhar de perplexidade. Ao que tudo indicava, acreditava não ter ouvido bem.

Fëll voltou abruptamente para a sala. Mr. McKirney inclinou a cabeça para encará-lo ao vê-lo reaparecer.

— Até que enfim!

Fëll sorriu numa expressão de desculpa, irradiando simpatia.

— Tenho algo a dizer para o senhor.

— Sobre o quê?

— Sobre o seu assessor.


10.

 


Fëll contou o que acabara de se passar com Carnigham.

— Onde está querendo chegar, Mr. Fëll?

— Acho que o senhor sabe.

— Garanto que não.

— “Fale com Miss Taylor-Bullers”. Foi essa a frase que Mr. Carnigham usou. Isso não lhe sugere nada?

— Pouca coisa. A não ser...

Mr. McKirney interrompeu-se e virou-se para a enteada, com uma expressão interrogativa.

— Você desconfiou de mim esse tempo todo, Catherine... é isso? Você acha que eu roubei a valise?

Catherine sentiu uma raiva fria irromper dentro de si.

— O senhor queria Todd fora daqui. Tentou de tudo, mas ele não embarcou na sua. Daí inventou essa história mirabolante, e a primeira coisa que fez foi culpar Todd, que desde o começo jurou não ter tido nada a ver com o roubo. O senhor blefou, blefou apenas para conseguir um pretexto. Um pretexto para obrigá-lo a ir embora, fosse como fosse.

— Que bobagem!

— Bobagem nada. Prove que estou errada!

— Eu não preciso provar coisa alguma. E o pior é que nunca desvendaremos o mistério, ao menos enquanto permanecermos no terreno das sutilezas especulativas.

— Nisso o senhor se engana — disse Fëll. — Já conseguimos diminuir consideravelmente o nosso campo de busca.

Mr. McKirney fez uma pausa, visivelmente perturbado, antes de acrescentar:

— O que quer dizer?

— Quero dizer que já desvendei o mistério.

A voz de Fëll possuía o timbre impessoal de um robô.

Adam McKirney ficou em silêncio, mordendo o lábio inferior. Uma expressão indagativa surgiu em seu rosto.

— O senhor já sabe por que a valise foi furtada?

— Não só sei como e por quê..., mas já sei quem.

— Quem foi então?

— Ninguém.

Fëll lançou um olhar de triunfo para seus ouvintes, mas, ao que tudo indicava, mais ninguém participava de sua euforia.

— O senhor deve estar caducando — constatou Mrs. Taylor-Bullers baixinho.

— Não, Madame, não estou caducando. Eu vou tentar descrever o que aconteceu ontem à tarde e os atores desse pequeno drama. Primeiramente temos Miss Catherine e Mr. Carnigham no solar, conforme o esboço dos fatos que este me forneceu. Mais tarde a senhora e o seu marido chegam. Todos os depoimentos concordam num ponto: Mr. McKirney colocou a valise na mesa-vitrina e se afastou acompanhado pelo assessor. Até aí nenhuma dúvida. Logo a seguir vieram Mr. Todd e a namorada. Miss Catherine alega que Mr. Todd estava dizendo: “Eu vou sair já, e resolver esse assunto o quanto antes.” Resolver que assunto? Obtive a resposta a isso com o próprio Mr. Todd, que me falou das complicações financeiras pelas quais estava passando, do consentimento dado por Miss Allenger para empenhorar uma corrente de cabelo etc. etc. Isso é de suma importância, pois comporta em si a chave do mistério. Já explico por quê.

“Decorrem alguns minutos. Minutos nos quais — segundo o consenso de todos os presentes — Mr. Todd não se aproximou e nem ficou perto da mesa-vitrina. Outra coisa: apesar de todas as suspeitas aventadas contra ele, suspeitas que surgiram e tomaram vulto logo depois de constatado o suposto roubo, ninguém o viu saindo de lá carregando a valise. Ora, alguém que não se aproximou, alguém que não teve contato com a valise, e nem sequer foi visto com ela, não poderia tê-la roubado, não é mesmo?

“Vejam a sucessão de acontecimentos. A próxima a sair é Mrs. Taylor-Bullers. Daí Mr. Carnigham volta, Miss Allenger sai e, por último, Miss Catherine. As três mulheres tendo uma coisa em comum com Mr. Todd: elas também saem sem levar nada. O que, segundo as instâncias do caso, restringe o nosso número de suspeitos a apenas duas pessoas. De um sexteto chegamos a um par. Quem? Mr. Carnigham e Mr. McKirney. Como foi dito por Miss Catherine, Mr. McKirney queria o irmão fora daqui. Nesse caso a história do furto poderia ser sóum blefe, parte de um estratagema, que lhe permitisse concretizar de uma vez para sempre o seu propósito. Mas será que foi isso? O senhor não estava no solar quando o seu irmão chegou e nem tampouco quando ele saiu. Portanto, não viu o que ele fez ou não fez, até onde andou — coisinhas mínimas, é verdade, mas que lhe possibilitariam fazer uma acusação sem incorrer no risco de ser contrariado pelos fatos. Digamos que o senhor dissesse: “Foi ciclano!”, mas ciclano não tivesse estado perto da valise, qual seria a consequência? O senhor seria exposto como mentiroso e a sua tentativa de incriminação, por mais bem esquematizada que fosse, cairia por terra. Em vez disso, eu acho que o senhor, ao acusar Mr. Todd, pensou nele por ter lhe parecido ser a coisa mais obvia a fazer (por uma livre associação de ideias, digamos assim) e não porque tivesse maquinado alguma coisa contra ele com antecedência. Armar algo intencional, e fazer com que isso desse certo, teria dependido de uma série de fatores aleatórios, fatores estes além de seu controle, o que teria tornado qualquer plano nesse sentido praticamente inviável devido à sua complexidade. Não, Mr. McKirney não poderia ter feito uma coisa dessas, e não o fez.

“Assim, quem sobra? O assessor. E, para agravar, é sabido que, após a saída de Miss Catherine, Mr. Carnigham ficou sozinho no solar. Por tempo suficiente para esconder a valise, arremessá-la pela janela ou fazer qualquer outra coisa com ela. Antes de levar em conta essa hipótese, porém, é preciso perguntar: por que Mr. Carnigham roubaria a valise de seu patrão? Teria ele sido mal pago esses últimos meses, e agiu movido pelo desejo de reparar uma injustiça que supunha estar sofrendo? A fim de se apossar dos títulos e ações? Procurei unir os fatos, fiz várias especulações, mas uma certeza se impôs vez após vez: Mr. Carnigham não seria tão imprudente a ponto de cometer o roubo numa hora tão imprópria! Muito menos cercado de tantas pessoas que, mais tarde, poderiam depor contra ele. Não, isso não se adequava ao conceito que eu havia formado a seu respeito.

“Passei e repassei todas as possibilidades, sem chegar, de fato, a nenhuma conclusão. Ninguém estava usando uma roupa extravagante, a ponto de facilitar quaisquer intenções sinuosas, e ninguém foi visto saindo com a valise na mão. Não pude livrar-me da impressão de que eram muitos acasos reunidos de uma só vez. Fiquei nisso até agora há pouco. Há pouco me ocorreu algo a que, inconscientemente, não estava dando a devida consideração. E se, em vez de ter sido arrebatada, a valise tivesse permanecido no solar — pelo menos durante algumas horas? Pensei na disposição dos móveis. Lá, a mesa-vitrina... à direita, o aparador e, à esquerda, uma poltrona. Uma poltrona gasta e usada. Não só gasta e usada, mas com um tremendo rasgo no tecido sob o assento grosso e macio. E, como consequência do rasgo, um buraco. Um buraco que comportaria perfeitamente um volume de certas proporções, caso se quisesse esconder algo ali.”

Seguiu-se uma ligeira pausa. Carnigham soltou uma risada; parecia contrariado.

— O que o senhor está falando? Que a valise foi posta por alguém no vão embaixo do assento da poltrona?

— Justamente isso. A valise foi posta por alguém no vão embaixo do assento da poltrona.

— Por Todd, garanto — chiou Mr. McKirney.

Fëll negou com a cabeça. Ergueu os olhos e sentenciou:

— Ninguém pode ser condenado sem ser ouvido. Isso não se faz, mesmo que todas as circunstâncias pareçam incriminar a pessoa. Acho que o senhor se aferrou a essa crença por uma questão de comodidade. Por isso peço-lhe que fique quieto, preste atenção e não me contradiga. Conforme já frisei, o senhor foi o primeiro que quis imputar a culpa ao seu irmão. Mas vamos supor que outra pessoa quisesse que Mr. Todd recebesse a culpa. Quem mais sabia que ele ficaria pouco tempo no solar?

— Samantha sabia.

— Sim. Miss Allenger sabia.

Catherine fitou Fëll. Finalmente declarou em tom convicto:

— Não; não pode ser isso.

— Acha que não, Miss?

Ela fez um gesto de impaciência. Quando voltou a falar, o timbre de sua voz era totalmente diferente.

— Isso é... ridículo!

— Não é ridículo. É até muito lógico. — Fëll ficou firme em suas afirmações: — Ontem à tarde, quando Mr. Todd disse que ia dar uma saída, Miss Allenger ficou sozinha com vocês. Andou para lá, andou para cá, e viu a valise. Imaginem a reação dela! Os olhos, que até então estavam serenos, arregalam-se. Por algum tempo Miss Allenger permanece calada, de tão perplexa que se sente. De repente, fragmentos de ideias estranhas começam a atropelar-se em seu cérebro. Lembranças de toda a humilhação sofrida nesta casa. A mágoa, a dor, a raiva... Parece um filme, que passa repetidamente na tela de sua mente. Devagarzinho, e de forma quase natural, em seu espírito toma forma um plano. Ela olha em torno do solar — para as cortinas de renda, para os confortáveis agrupamentos de mobília. E se conseguisse fazer a valise desaparecer? Desaparecer pelo menos durante certo tempo. Talvez pareça incrível, mas esse pensamento proporciona-lhe uma imensa satisfação. Imaginem Miss Allenger cerrando os dentes e tentando lidar com o turbilhão de emoções em seu íntimo. Lentamente, dolorosamente, ela se aproxima da valise, a mente trabalhando a todo vapor. Para em frente da poltrona. Com cuidado, sua mão esquerda tateia o assento almofadado. Um gesto rápido e... vapt! — a valise some no vão aberto. Ela engole em seco, procurando dominar a náusea. O coração bate-lhe descompassadamente, as pernas estão fracas. Miss Allenger olha novamente em torno. Dessa vez para Mrs. Taylor-Bullers e Miss Catherine. Teriam elas visto alguma coisa? Não, nenhuma das duas vira nada. Tentando não demonstrar o menor embaraço, Miss Allenger afasta-se da mesa-vitrina e dirige-se à outra extremidade do solar. Ela inspira fundo e exala o ar a fim de se acalmar. Circula mais um pouco e senta-se no sofá, local onde Miss Catherine a encontra depois de acompanhar a mãe até a porta. Ambas conversam durante alguns minutos. Daí, quando Mr. Carnigham volta e vai para o cofre, Miss Allenger sai. A partir dali, tudo irá depender de Mr. McKirney. De como vai reagir ao suposto roubo, do que dirá e, sobretudo, do que vai fazer. Ligue-se a isso o fato de Mr. Todd ter saído antes — a conclusão se torna inevitável! É por isso que Miss Allenger pôde assegurar: “Não foi ele”, já que tinha sido ela. Como veem, tudo se torna banal, depois de explicado.

Catherine meneou a cabeça, piscando os olhos subitamente marejados de lágrimas.

— Está certo de que foi Samantha que fez isso, Mr. Fëll?

— Tenho. O que aconteceu é que vocês foram vítimas de uma mistificação.

— De qualquer maneira fico-lhe muito grato pelo auxílio que nos prestou — disse Mr. McKirney. — Se não fosse este auxílio, não teríamos conseguido muita coisa.

— Pobre Samantha! Deve pensar que não passamos de um bando de esnobes.

— Bando de esnobes uma ova! Não tomo, nem tomarei, parte em demonstrações de misericórdia. Não importa o que essa moça tenha feito, quero minha valise de volta.

— Mr. Fëll não disse onde ela foi colocada? — replicou Catherine. — Basta ir buscá-la.

— Ela não está mais lá — disse Fëll num tom manso.

— Onde está então?

— Reparem que eu disse que Miss Allenger pensou em deixá-la lá “durante certo tempo”. Se lembro bem, a senhorita acabou de ligar para ela, não foi? Conseguiu contatá-la?

— Sim.

— O que ela disse?

— Samantha disse que poderíamos ficar com a arca.

Fëll acenou com a cabeça. Parecia satisfeito.

— Exatamente como imaginei.

Um sorriso de escárnio surgiu no rosto de Carnigham.

— Ficar com a arca... E como vamos abri-la? Não temos chave.

— Aí o senhor se engana! — respondeu Fëll em tom exaltado. — Miss Allenger deu um broche para a senhorita, Miss Catherine. Tem ele aí?

— Tenho...

— Pode emprestá-lo um momento, bitte?

Hesitante, Catherine entregou o broche. Fëll o pegou, mexeu nele por alguns segundos e, logo, levantou a mão, exultante. Um objeto metálico refulgia entre seus dedos:

— A chave da felicidade, Herren und Damen!

Todos seguiam seus movimentos com os olhos arregalados. Fëll dirigiu-se resolutamente para a arca, colocou a chave na fechadura, girou-a e abriu a tampa. Lá dentro estava a valise de Mr. McKirney.

Neste exato instante, às suas costas, o mundo veio abaixo.

— Oh!

— O senhor está vendo? Todd era inocente! Inocente...

— Cale essa boca, Catherine! Respeite seu pai.

— Ele não é meu pai!

— Santo Deus! — murmurou Carnigham, soltando um gemido sem que o quisesse. — O senhor a encontrou! O senhor encontrou a bendita pasta.

Fëll deu uma mirada rápida em todos. Com voz amável, e palavras precisas, disse:

— Acho que isso coloca um termo satisfatório ao nosso caso.

Depois disso voltou a reinar o silêncio.

— Obrigada, Mr. Fëll — disse Catherine, agarrando-se ao empertigado e estoico detetive.

— Não me agradeça, Miss. Deixemos isso para depois. Ainda falta falar brevemente sobre o motivo.

— O senhor conhece o motivo?

Fëll avaliara corretamente a personalidade de Samantha Allenger. Agora, que se sentia vitorioso, estava disposto a exibir seus conhecimentos. Fez um gesto benevolente e respondeu:

— Por acaso eu conheço. Não era segredo para ninguém que Miss Allenger queria o namorado fora desta casa. Quando falei com ela não tive a menor dúvida de que estava tratando com uma mulher muito sensata. Era nítido o seu desapontamento com a insistência do namorado em ficar aqui. Como o senhor mesmo contou, a divisão dos bens depende do encadeamento de uma série de coisas. E, como mulher inteligente que é, Miss Allenger sabia disso. Mr. Todd achava estar defendendo direitos pessoais, mas uma moça ponderada como ela jamais compartilharia da mesma opinião. Miss Allenger queria arredar o pé daqui, e gastou nisso todos os argumentos de que dispunha. Tendo fracassado em seu objetivo, mas disposta a usar de quaisquer meios para conseguir o que queria, ela viu que precisava fortalecer uma estratégia diferente. Foi aí que teve a ideia salvadora. Ela não possuía o poder para convencer o namorado, mas Mr. McKirney sim. E o melhor: as relações entre o senhor e seu irmão já estavam tensas há anos. Bastaria uma só faísca! Alguma coisa que irritasse o senhor de verdade. Alguma coisa que, digamos, mexesse com os seus brios. Depois de tomada essa decisão, Miss Allenger ficou pacientemente à espera. À espera do melhor momento para dar o bote.

— Pois se foi isso, eu quero uma reparação.

Adam McKirney falou em atitude muito séria, fazendo um esforço inútil para dar um tom grave à voz, que saía quase aos guinchos.

Fëll fitou-o prolongadamente. Dirigindo-se aos demais, perguntou:

— Vocês se incomodam de sair um pouco?

Vagarosamente, um por um, todos deixaram a sala. Olhando ora para o detetive ora para o homem que, apesar de seu 1,90 metro de altura, peito e ombros largos, parecia estar sofrendo uma dolorosa inquietação mental.

Mr. McKirney levou um tempo para pronunciar a primeira palavra, e sua fala era acompanhada de um estertor ofegante.

— Não podemos falar sobre isso numa outra hora?

— Não. Pode não haver uma outra hora.

— Então?

— Estou disposto a ajudá-lo.

O homem girou ligeiramente a cabeça.

— Ajudar...?

— Sim, pretendo ajudar — confirmou Fëll. — Tenho certeza de que o senhor entende que Miss Allenger só fez o que tinha de fazer.

— Para falar com franqueza, devo dizer que ainda não sei o que pensar.

Mr. McKirney recostou-se, rindo com visível esforço.

— O que o senhor sugere que eu faça?

— Não houve roubo, portanto, dificilmente haverá imputação de culpa. Disse que quer uma reparação. Pelo quê?

— Danos morais.

Uma risadinha suave o sobressaltou. Fëll aparentemente estava se divertindo a valer.

— Por Miss Allenger tê-lo feito de bobo? Por ela ter feito o senhor fazer exatamente o que queria que fizesse? O senhor vai ser impedido.

— É mesmo? Quem vai me impedir?

— Eu vou.

— Aleluia!

Fëll reagiu com um entusiasmo vitoriano:

— A meu ver, nenhuma muralha é inexpugnável. Veja a cidade de Babilônia. Por mais poderosa que fosse, caiu numa única noite. Sem luta, sem nada. O senhor se esquece de que também tem um ponto fraco.

— Qual?

— O bosque de pinheiros perto de Kenilworth tem algum significado para o senhor? A sua esposa contou uma comovente história sobre um tal de Eddye. Quem ele foi, o que fazia... como morreu. Asfixiado, não foi? Creio que, se eu mover alguns pauzinhos e fizer meia dúzia de ligações, posso tranquilamente descobrir qual era o grau de envolvimento entre o senhor e Mrs. Taylor-Bullers na época do assassinato. As pistas que eu obtiver não representarão a solução do enigma, porém já vão ser um começo.

Mr. McKirney estremeceu num gesto nervoso e seu rosto ficou muito pálido.

— O que quer dizer com isso? — perguntou furiosamente.

— Nada. Seja como for, torço para que o senhor nunca tenha estado naquela região. Nem mesmo de férias. Com esse negócio de passaporte e cartões de credito é muito fácil a rastrear os passos de uma pessoa. Este é o sopro de uma tese. Um sopro... nada mais.

— Caramba! Com que habilidade o senhor apresenta essas mentiras.

— Talvez não sejam mentiras. Não tomei nota sobre o que foi dito nesta ou naquela ocasião, mas tenho boa memória e creio que, embora vagas, essas recordações representem fielmente o que foi dito.

— O senhor não tem provas.

— Ainda não. Mas posso dirigir uma petição ao Ministério da Justiça inglês. A informação que apurarmos pode ser de interesse mútuo.

— Parece que o senhor tem um prazer todo especial em xeretar a vida dos outros!

— Meu caro Mr. McKirney — disse Fëll —, se eu não fosse xereta, nunca conseguiria diagnosticar a verdadeira natureza de um crime.

 

 

                                                                  Alec Baurer

 

 

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