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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O. S. Marden / Querer é Poder
O. S. Marden / Querer é Poder

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Querer é Poder

1. A vontade e a sua educação

O agulheiro duma estação de estrada de ferro estava um dia no seu posto, no momento em que vinha a chegar um comboio rápido, quando viu um seu filho de seis anos a correr alegremente para ele, sem dar pela chegada do comboio. Se a criança desse mais um passo seria imediatamente colhida pela locomotiva. O agulheiro pensou que, se abandonasse o seu posto, poderia causar uma catástrofe que custaria a vida a centenas de pessoas, mas, cumprindo o dever de não se afastar das agulhas e não acudindo ao filho, expunha-o indubitavelmente a uma morte certa. Nesta dolorosa indecisão, teve o agulheiro a feliz idéia de gritar energicamente à criança: Pára aí, não te mexas. O pequeno obedeceu como autômato, no momento em que ia a atravessar a via por onde precisamente passou o comboio, que o teria esmagado, se ele não obedecesse ao pai ou se perdesse tempo em saber as razões por que lhe ordenava que parasse.

Este exemplo demonstra que a obediência disciplina a vontade e é o meio mais eficaz de a robustecer e orientar na infância, para que na juventude e na virilidade ela possa agir espontânea e rigorosamente, apenas sob o império da própria consciência. Quem não aprender a obedecer, nunca saberá mandar e muito menos imperar em si mesmo, que é no que consiste a mais eminente autoridade.

Dizem os psicólogos que a vontade é uma potência da alma, talvez a maior de todas, porque da sua boa ou má educação, da sua fortaleza ou deficiência depende o procedimento do indivíduo, os atos da sua vida e, por conseguinte, o êxito ou insucesso na utilização profissional da sua atividade.

Mas, sendo a vontade uma potência, por isso mesmo devemos desenvolvê-la, porque o que pode vir a ser alguma coisa não tem para nós valor algum, enquanto não chegar o momento de o ser na realidade. Sob o ponto de vista psíquico, ou seja, em tudo quanto se refere à vida espiritual, a vontade é uma força anímica tão susceptível de robustecimento por meio do exercício como o é a força muscular sob o ponto de vista físico.

Todos temos os mesmos músculos e as mesmas fibras em cada músculo. A diferença está em uns serem mais robustos do que outros; mas quem o não for, pode adquirir a necessária robustez e desenvolver a sua força muscular por meio do exercício, isto é, por meio da educação física, cultivada na infância em jogos pedagógicos, na puberdade em exercícios ginásticos e na juventude em desportos atléticos.

Convém notar que, no decurso da educação física, o educando não emprega a sua força muscular a seu bel-prazer, mas, pelo contrário, submete-a disciplinarmente às educativas condições dos jogos, exercícios e desportos. É o que poderíamos chamar de obediência física, que tem como conseqüência a fortaleza corporal.

Pois também, durante o período de educação moral, a vontade do educando tem de submeter-se obedientemente às leis morais que a dirigem para o seu verdadeiro ponto de aplicação, ou seja, para o bem. Deste modo, o fortalecimento da vontade no indivíduo consiste em obedecer aos pais, aos mestres e aos seus superiores, durante o tempo da infância e da juventude. Mais tarde, quando já homem, habituado a obedecer à lei moral expressa nas ordens recebidas, terá aprendido a imperar no seu ânimo com a certeza de vencer nas rudes batalhas da vida. Não será então um arrojo afirmar: Eu quero, e tem que ser. A vontade disciplinada e fortalecida pela educação identificará neste caso o querer com o poder, porque será uma força positiva, vigorosa, capaz de transformar dinamicamente o pensamento em ação.

Quantos há que fazem os seus juízos sobre os acontecimentos e contingências da vida social e notam, sem grande esforço de observação, que é manifesta a falta de caracteres da natureza do de Abraão Lincoln, em quem a integridade de sentimentos ombreava, em tripla harmonia, com o talento natural e a vontade indomável!

O imortal libertador dos escravos foi um desses homens considerados como estrelas de primeira grandeza, que parecem irradiar luz sobre todos os espíritos e que justificam plenamente o tão repetido como adulterado adágio de querer é poder.

A vida de Lincoln oferece ao psicólogo e ao educador numerosos episódios, que são outros tantos pontos de observação e de estudo, donde se podem tirar conclusões aplicáveis à instrução da juventude e servindo a esta de verdadeiro estímulo.

Os rapazes que atualmente folheiam com indolência os montões de livros luxuosamente encadernados, que lhes fornecem as casas editoras, achariam mesquinhos os livros, mal brochados e mal impressos, em que Lincoln começou a disciplinar o seu caráter e a fortalecer a sua vontade. Eram a Bíblia, as Fábulas de Esopo e a Jornada do Peregrino. Leu e releu estes livros com tal cuidado e reflexão, interpretando com a luz do seu espírito o sentido do que lia, que se julgou o rapaz mais feliz do mundo. Recitava de cor capítulos inteiros da Bíblia, todas as fábulas de Esopo e as passagens mais comovedoras do imortal livro de Bunyan.

Desde muito moço ainda, Lincoln revelou a austera integridade de caráter que o havia de fazer progredir no caminho da vida, à custa da sua vontade inabalável.

Lincoln habitava com sua família numa pobre choupana. Em certa ocasião, soube que um seu vizinho, chamado Crawford, tinha um exemplar da Vida de Washington, escrita por Weems. Ansioso por ler a obra, pediu-a emprestada a Crawford, e toda a primeira noite passou entregue à leitura, à luz duma vela de sebo, só deixando de ler quando a vela chegou ao fim. Lincoln colocou, então, o livro, que ele já considerava inestimável, numa fenda que havia numa das paredes da choupana; mas, durante a noite, desencadeou-se uma violenta tempestade e, na manhã seguinte, quando foi buscar o livro, ficou assombrado de o ver todo encharcado em água, não podendo já ser utilizado para a leitura.

Outro que não fosse ele teria feito o que geralmente fazem os que pedem livros emprestados, isto é, não os entregam aos seus donos e fingem-se esquecidos, considerando o empréstimo dum livro como coisa de pouca monta. Mas Lincoln não procedeu assim. Pegou no exemplar deteriorado e, com muita pena do que aconteceu, foi ter com Crawford e disse-lhe que, não podendo pagar-lhe em dinheiro o valor do livro, estava disposto a indenizar-lhe o prejuízo com o trabalho que fosse combinado. Afinal, resolveram que, durante dias, Lincoln fosse cortar forragem para o gado na granja de Crawford, em paga do livro. Mas Lincoln receando ainda que a dívida não ficasse satisfeita por este modo, perguntou:

– Acha que com os meus três dias de trabalho ficará pago o prejuízo?

– É claro que fica, respondeu o lavrador. O ajuste é dares-me três dias de trabalho, cortando erva para o gado, e o livro fica sendo teu.

Quando mais tarde Lincoln, pelo esforço da sua vontade indomável, chegou a ser o jurisconsulto mais notável do seu tempo, dedicou-se a essa famosa campanha contra Douglas, candidato à presidência da república e acérrimo defensor da escravatura negra. Nessa campanha, que antecedeu a que mais tarde havia de dirigir, quando ascendeu à mais alta magistratura da nação, Lincoln pôs toda a energia da sua vontade, mas também todo o vigor do seu talento e toda a retidão do seu caráter, ao serviço da oprimida raça negra. A vontade por si só, sem ter um ponto de aplicação em que pudesse atuar, de nada lhe teria valido, como de nada vale a força elástica do vapor, quando se não exerce nos órgãos da máquina. Desta forma, a vontade há-de ter por complemento ativo o espírito de decisão manifestado no caráter.

Douglas também era homem de vontade enérgica, e punha a eloqüência da sua palavra e o esforço da sua alma ao serviço duma causa que lhe parecia justa, embora laborasse num gravíssimo erro. Mas a ação de Lincoln naquela histórica campanha foi, sob o ponto de vista moral, incomparavelmente superior à do seu adversário.

Quando andava percorrendo as povoações onde ambos pronunciavam os seus discursos, Douglas viajava em comboio especial, acompanhado de uma banda de música e duma peça de artilharia, que, por entre acordes e salvas, anunciavam ostentosamente a sua chegada.

Nas assembléias de controvérsia, que foram muitas, Douglas costumava infringir as condições do debate e interrompia insolentemente o seu opositor. Nos discursos empregava frases depreciativas, senão injuriosas, contra os seus adversários, chamando-lhes indignos republicanos, e afirmando -– o que ele sabia ser uma falsidade – que estavam no propósito de estabelecer a cisão no país, por terem a leviandade de querer igualar socialmente as duas raças, a branca e a negra. Aleivosamente, diria ainda que os mesmos adversários queriam abolir a escravatura sem atenderem a que, de harmonia com os princípios democráticos, os cidadãos de cada estado e território eram os únicos que, por meio do seu voto, se deviam decidir a favor ou contra tal regime.

Lincoln, pelo contrário, viajava modestamente, em carruagem de terceira classe, acompanhado dalguns amigos leais, e bastava a sua presença nas povoações aonde ia para anunciar a sua chegada. Como os escravagistas estavam em maioria, a esse tempo, todos o recebiam aos gritos de embusteiro! farsante! e outros insultos piores, sem que o futuro libertador se melindrasse com isso ou se queixasse, e muito menos pensasse em replicar ao ultraje. Limitava-se a expor nos seus discursos as razões da sua atitude a favor da liberdade dos escravos, baseando-se na Declaração da Independência que diz textualmente: “Deus fez todos os homens iguais, concedendo-lhes certos direitos inalienáveis, entre os quais se contam a vida, a liberdade e a conquista da mesma”.

Insistia Lincoln no irrefutável argumento de que a Declaração da Independência dos Estados Unidos se referia a todos os homens, sem distinção de raça nem de cor, e que, portanto, a escravatura negra ia de encontro aos princípios da constituição. E, quanto à eficácia da vontade popular, expressa pelo voto dos habitantes dos estados e territórios, replicou Lincoln habilmente dizendo:

– Reconheço aos cidadãos dum país o direito de se governarem a si mesmos; mas nego-lhes o direito de governarem os outros sem o apoio da opinião geral.

Numa das assembléias em que se continuaram os debates, celebrada em Charleston (Illinois), Lincoln replicou a Douglas com tão persuasiva eloqüência e incontestável argumentação e demonstrou com tal habilidade as insídias e os subterfúgios do seu adversário que o auditório, a princípio desconfiado, ficou convencido, aplaudindo-o entusiasticamente.

Apoderou-se o pânico dos partidários de Douglas. Este, ao ver que ficara vencido e não podendo refutar o discurso de Lincoln, perdeu a serenidade e, levantando-se da cadeira, começou a passear na tribuna com manifesta impaciência, de relógio na mão, por trás do orador. Quando estava a expirar o tempo que fora marcado para o discurso, encarou com Lincoln, e pôs-lhe o relógio adiante dos olhos e disse-lhe:

– Queira sentar-se, Lincoln, sente-se que já passou a hora.

– Pois sim, respondeu o orador tranqüilamente. Vou sentar-me já. Creio que já passou a hora.

Um dos que estavam na tribuna acrescentou sarcasticamente:

– Já, já passou. Douglas já tem a sua conta. É tempo de o deixar em paz.

Noutra ocasião, Douglas, com o seu habitual desdém, disse num discurso:

– Assim como, entre um crocodilo e um negro, eu me colocaria ao lado do negro, assim também, entre o negro e o branco, hei-de sempre declarar-me a favor do branco.

Ao que Lincoln replicou:

– Parece-me que o que Douglas acabou de manifestar é uma espécie de regra de três, que pode assim estabelecer-se: o negro está para o branco como o crocodilo está para o negro. E, se o negro tem direito a tratar o crocodilo como um réptil, também como tal assiste ao branco o direito de tratar o negro. Portanto, cidadãos, o senhor Douglas propõe-vos uma norma de proceder que repugnaria a vossa consciência.

Citamos todas estas referências biográficas para demonstrar que, na realização dum plano, deve a vontade andar aliada à sabedoria e à ação, isto é, não basta querer para poder; é necessário ao mesmo tempo saber e agir.

Segundo nos ensina a psicologia experimental, a alma humana é, à semelhança de Deus, trina e una. A diversidade das suas três faculdades ou potências essenciais não é incompatível com a sua unidade, antes a confirma, como não é incompatível com a unidade de Deus a diversidade das suas três pessoas, aspectos ou manifestações simbolizadas no universal dogma religioso da Trindade.

As três faculdades ou potências da nossa alma são a vontade, a sabedoria, e a atividade, e todas elas concorrem e devem concorrer simultaneamente para o êxito feliz da vida humana. Não pode, porém, gozar-se plenamente destas faculdades, sem que a educação as desenvolva e as torne vigorosas, até atingirem no indivíduo a sua máxima eficiência. Assim, deve notar-se que a educação integral do ser humano é também trina e una, correspondendo a educação moral à vontade, a intelectual à sabedoria, e a educação física à atividade. Estas três modalidades ou aspectos deferenciais de educação integral hão-de harmonizar-se independentemente, de maneira que todas elas concorram para o mesmo fim, em vez de se considerarem completamente desligadas umas das outras, como agora sucede.

Em todas as nações, até nas que erradamente se acham colocadas na vanguarda da civilização, lamentam os homens refletidos a relaxação dos costumes; o predomínio do mais desenfreado egoísmo; a avalanche de ódios e violências terroristas que aviltaram a vida humana a ponto de ela valer menos do que a lama dos caminhos; a cegueira dos governantes que não conseguem resolver os problemas sociais; a desaforada inobservância das leis; a multidão de indivíduos que pensam unicamente em enriquecer por todos os modos, ainda que seja à custa alheia; a falta da austera integridade de caráter e inconcussa honradez dum Lincoln, dum Grant, e dum Gladstone que, como auroras boreais, brilham no tenebroso horizonte da idade-moderna.

Debaixo do ponto de vista doméstico, é já vulgar a falta de respeito e a manifesta desobediência aos pais, a desconsideração pelos velhos, o atropelo aos direitos alheios, a ausência de todo o sentimento de responsabilidade, o delírio pelos gozos sensuais, pelos prazeres mundanos, pelos espetáculos e por outras diversões que estimulam o espírito.

Alguns atribuem esta dissolvência social à falta de crenças religiosas; mas lembremo-nos de que pelo fruto se conhece a árvore e, se os homens perderam a fé tão ardente das gerações passadas, a culpa só poderá caber aos que eram obrigados a educar a geração presente no sentimento da vontade e na preparação psicológica indispensável, para que os verdadeiros princípios ficassem radicados no espírito de todos.

A operação da vontade é o querer. E sendo, por sua vez, a vontade uma força susceptível, como a muscular, de desenvolver-se em grandeza e intensidade por meio do exercício, é indispensável educá-la ou, o que é o mesmo, dar-lhe o máximo de eficiência.

O método que, em nossa opinião, mais convém adotar abrange três períodos correspondentes à infância, à puberdade e à juventude, que são os três fatores da virilidade. O primeiro período deve ter por principal característica a disciplina concretizada na obediência, tal como vimos no começo desta obra, no exemplo relativo ao filho do agulheiro.

A vontade da criança, como tudo o que nasce para a vida e começa a entrar em ação, manifesta-se sob a forma inquieta, volúvel e inconstante do desejo, reverso da vontade, porque precisa de disciplina que a fortaleça, apoio que a estabilize e bússola que a oriente. É como a ave que anda esvoaçando dum lado para o outro, antes de fabricar o ninho.

Durante a infância, tem de ser a obediência a primeira qualidade moral que devemos fortalecer no educando, porque é o alicerce do edifício educativo, e é por meio dela que o educador domina a vontade prematura do educando – como o agrônomo domina o crescimento precoce da planta – aplicando essa qualidade ao habitual cumprimento do dever, que é no que, afinal, se resume toda a educação moral.

Nunca, por qualquer motivo, a criança deve deixar de fazer o que se lhe manda, nem tão pouco deve fazer o que se lhe proíbe, pois o educador que for sempre condescendente ou tolerante verá diminuir o seu ascendente moral e, mais tarde, será escravo dos caprichos do educando.

A condescendência é precisamente o fraco das mães que, tímidas e imprudentes, deixam que os filhos pratiquem um sem-número de desatinos, por não terem a energia suficiente para lhes disciplinar a vontade.

Costumam as crianças responder muitas vezes: não quero ou não me apetece. Estas respostas freqüentes e as atitudes da resistência passiva, com a conseqüente pirraça a que as crianças são tão inclinadas, não devem permitir-se uma única vez sequer. O argumento de certas mães que dizem que os filhos ainda estão a tempo de se emendar ou que ainda são muito pequenos para serem reprimidos é uma ilusão e um erro. Se a mãe cede à resistência do filho, dá-se esta inversão de papéis: o filho irá tomando pouco a pouco sobre a mãe o ascendente moral que ela deveria tomar sobre ele.

Circunstância muito para ponderar é o fato das mães dos grandes homens terem Todas escrupulizado na verdadeira educação de seus filhos. Em crianças, não consentiram que eles fizessem o que queriam. Disciplinaram-lhes a vontade, acostumando-os a praticar boas ações, até que lhes criaram uma nova natureza, com tendência para os hábitos virtuosos, ao mesmo tempo que, por descostume, lhes incutiram aversão aos maus hábitos.

Quem assim diariamente exercitar a vontade na prática do bem, e se abstiver de praticar o mal, chega a adquirir os virtuosos hábitos da economia e da diligência, da honradez e da justiça, da laboriosidade e da prudência, sem os quais é impossível querer ou poder alcançar o êxito material e a felicidade espiritual da vida.

Mas, se a obediência cega, exemplificada no tipo do agulheiro, serve para disciplinar a vontade durante a infância e não para a atrofiar ou deprimir pela coação, é muito conveniente que tudo quanto se mande fazer à criança seja necessário, útil e exeqüível, e que as ordens e proibições não derivem do capricho, da cólera ou do abuso da autoridade do educador, mas sim da vontade aconselhada pela razão. Há muitas pessoas que não respeitam uma determinada ordem por a considerarem injusta e importuna.

A noção do bem e do mal, dos atos justos ou injustos, é rudimentarmente intuitiva na criança. Quando uma criança recebe uma repreensão ou é contrariada nos seus desejos, irrita-se e fica rancorosa por momentos; mas logo lhe passa a irascibilidade, acaba por reconhecer a justiça da repreensão e trata de afagar quem, com razão, a repreende.

Por outro lado, nada contribui tanto para perverter o caráter duma criança e para lhe deseducar a vontade como a injustiça, a arbitrariedade e o abuso da força. Por isso, é absolutamente indispensável que o educador, quer seja a mãe ou um professor estranho, dê ao educando uma ordem com fundamento e não o faça apaixonadamente; proíba só quando for preciso e não por mero capricho; satisfaça sempre um pedido justo, negando-se em absoluto a fazer vontades injustificadas. Antes de dar uma ordem, deve refletir bem se ela é razoável, não vá colocar-se na dura necessidade de a revogar, em prejuízo da sua autoridade.

A obediência é a mais eficaz disciplina da vontade, desde que quem manda saiba mandar e tenha em consideração a gravíssima responsabilidade em que incorre pelas conseqüências morais das ordens que der.

Logo que, durante a infância, a vontade fique disciplinada por meio da obediência, começa o segundo período da educação durante a puberdade. Neste caso, convém que a autoridade do educador ceda um tanto o passo à liberdade do educando, a fim de lhe avigorar o sentimento de responsabilidade, sem o qual seria um autômato que unicamente faria alguma coisa por influência estranha.

Neste período, tem o educador de evitar os dois extremos, igualmente viciosos, da rigidez do caráter e da tibieza, mantendo-se no grau de tensão necessária para que a vontade do educando seja dirigida e não fique subjugada. O rapaz que a nada se atreve sem que lho ordenem e que não sabe fazer coisa alguma sem lhe dizerem como é feita, é um pobre ser hipnotizado, sem vontade própria, que obedece por medo e não por convicção, espreitando todas as ocasiões que se lhe ofereçam para iludir a vigilância do educador e satisfazer o seu capricho.

Neste período da educação da vontade deve haver o especial cuidado de não estimular o educando a trabalhar bastante e a cumprir o seu dever com o engodo no prêmio, nem também a abster-se do mal com o receio de ser castigado. Se queremos despertar e fortalecer nele o espírito de iniciativa, que não é mais nem menos do que o primeiro impulso duma vontade bem dirigida, convém acostumá-lo a cumprir sempre o seu dever, sem outra satisfação além da que intimamente virá a sentir por o ter cumprido.

É um disparate recorrer aos prêmios e aos castigos para formar o caráter e robustecer a vontade. É o pior processo que pode adotar-se em educação moral, e, todavia, é o que desde tempos imemoriais tem empregado a rotineira e vulgaríssima pedagogia, vazada em avariadíssimos moldes. O prêmio desperta o orgulho, a soberba e a vaidade. O castigo gera a hipocrisia, o ódio e dá origem à perda do conceito próprio. Deu-se com um indivíduo um caso rigorosamente autêntico que serve de exemplo ao que afirmamos. É ele mesmo que o relata da maneira seguinte:

“Antes de conhecer os verdadeiros princípios da educação moral, julgava eu, como ainda julga a maior parte dos pais e dos professores, que o prêmio das boas ações e o castigo das más era o melhor processo para conduzir os meus dois filhos ao caminho do bem.”

“Nesta ilusão, disse-lhes um dia: – Ouçam o que lhes digo: de hoje em diante, vou proceder para convosco como um comerciante procede no seu negócio. Vou abrir-vos uma conta corrente das vossas ações. No Haver assentarei as que forem boas e no Deve as que forem más. Por cada dia em que não tiverdes cometido falta alguma, dar-vos-ei um tostão durante um mês, e por cada má ação que praticardes descontar-vos-ei dez tostões.”

Os dois rapazes ficaram contentíssimos com a proposta, e durante o primeiro mês tiveram um comportamento exemplar; mas, nos últimos dias do mês seguinte, o mais velho chegou-se ao pé de mim e disse-me com a maior desfaçatez:

– Papá, venho dizer-lhe que hoje cometi uma má ação. Estive a jogar toda a manhã o bilhar, em vez de ir para a escola. Como o professor é seu amigo e lhe falará a respeito da falta que eu dei, antes que ele lho diga, digo-lho eu. Ora segundo os meus cálculos, eu tenho direito a 28 tostões. Desconte-me 10 e ainda me fica a dever 18.

O desembaraço com que o rapaz disse tudo isto, com uma lógica irrefutável, convenceu-me da imprudência que eu tive em fazer do comportamento de meus filhos uma conta corrente de prêmios e castigos. Desde então, seja qual for o regime desta natureza, creio que todos, pouco mais ou menos, dão resultados inteiramente opostos à educação da vontade.

Evidentemente, assim é. A experiência a cada passo está demonstrando isto mesmo. Adquiridos que sejam os hábitos virtuosos durante o período infantil, por meio da disciplinação da vontade, há-de esta ir-se habituando a atuar espontaneamente, acompanhada da sabedoria, único meio de estimular a iniciativa individual, que é o gérmen de todo o empreendimento elevado.

Diz Kant muito acertadamente:

“Sem moral, o homem que aparenta de religioso não é mais do que um cortesão por mercê celestial. A moral prática ensina a criança a substituir pelo temor da própria consciência o castigo infligido pelos homens, a opinião alheia pela dignidade própria, o brilho das palavras pelo valor intrínseco das ações, e o religiosismo fanático e insociável pelo ar sereno e piedoso das maneiras.”

Depois se conclui que a educação moral não é mais que a educação da vontade e da sensibilidade, as duas potências da alma, cujo desenvolvimento normal determina os costumes, os hábitos e maneiras de proceder que são a norma reguladora das nossas ações.

Assim como a educação intelectual tem por objeto exercitar o entendimento na investigação da verdade, libertando-a do erro, e o fim da educação física é dar robustecimento ao corpo, preservando-o da fraqueza, assim também a educação moral exercita a vontade na prática do bem, libertando-a do mal. Não basta ser forte nem tampouco ser sábio; é necessário também ser bom, pois de nada servem, afinal, a saúde e a ciência, se não tiverem por complemento a virtude.

A prática do mal como a do bem chamam-se respectivamente vício e virtude, que se acham na mesma relação em que estão a fraqueza e a força na educação física, e o erro e a verdade na educação intelectual.

Havendo disciplina na primeira infância e direção na adolescência, adquirirá a vontade o suficiente desenvolvimento em plena virilidade para constituir uma poderosa força anímica. Como todas as forças, porém, nenhum valor terá, se não for aplicada a determinado ponto de atuação.

Um pequeno de oito anos, desses que, sem serem nenhuns prodígios, têm a suficiente precocidade intelectual para confundir com as suas perguntas as pessoas mais velhas, conversava um dia com o pai, um engenheiro de reconhecida nomeada, acerca das lições que o professor dava aos alunos do Colégio onde ele andava, e dizia assim:

“Ontem, o professor falou a respeito das propriedades do vapor de água, dizendo-nos que tinha uma força tom grande que arrasta velozmente os comboios de mercadorias e de passageiros, cujo peso total é de centenas de toneladas. Mas a mim parece-me que nem sempre o vapor tem a força que dizem, porque, quando o comboio passa todos os dias pela sanja da minha rua, veja que o vapor que sai pela chaminé da locomotiva se desfaz como as nuvens sem empregar a menor força.”

– Essa tem muita graça! Pois está claro. Onde é que tu viste a potência sem resistência? A força do vapor tem de aplicar-se ao êmbolo que move a biela, a qual, por sua vez, imprime movimento às rodas; e como a ação do vapor sobre o êmbolo é contínua, eis a razão por que as rodas não deixam de mover-se, enquanto se mover a biela acionada pelo êmbolo. Isto pode servir-te de exemplo para compreenderes o que te disse outro dia. A vontade também é uma força, mas para nada te servirá, se a deixares inativa, isto é, se a não aplicares ao ponto de ação mais de harmonia com os teus conhecimentos.

Tinha razão o hábil engenheiro. A vontade será uma força quando, por meia da educação, atingir o maior grau de desenvolvimento; mas essa força será tão ineficaz como o vapor de água espalhado na atmosfera ou a eletricidade neutralizada no ambiente, se não a soubermos aplicar à obra da nossa vida.

Vemos, portanto, que a repetida máxima de querer é poder merece ser objeto dum estudo muito demorado. Sem vontade não se pode querer, no sentido moral da palavra, único a que a máxima se refere. É que, se nós confundirmos a vontade com o desejo e quisermos obter alguma coisa que vá de encontra às leis de Deus e da natureza, não poderemos consegui-lo se contra nós se erguer uma vontade alheia em harmonia com a lei divina. Neste caso, terá realização o axioma dinâmico de que uma força maior vence outra menor; e, como a vontade é dinamicamente superior ao desejo, concluiremos que, para podermos realizar o que quisermos em conformidade com a lei, é indispensável habilitarmo-nos primeiro com uma eficaz educação moral que robusteça a vontade e aniquile o desejo.

2. A vontade em ação

O primeiro impulso da vontade é a firme resolução de a aplicar a um determinado fim. Antes de realizarmos um ato, devemos formar a atenção de o realizar; e, antes de formarmos essa atenção, devemos examinar detidamente as condições, as circunstâncias e a natureza do empreendimento que nos propomos efetuar, para nos certificarmos de que não é humanamente impossível realizá-lo, nem superior aos meios ou possibilidades de que dispomos ou de que eventualmente possamos dispor.

Sob o ponto de vista teórico e ideológico, não há nada mais nobre, generoso, magnânimo e cavalheiresco do que a inabalável resolução de D. Quixote em ser “casto nos pensamentos, honesto nas palavras, liberal nas boas obras, valente nos feitos de armas, paciente nas provações, caritativo com os necessitados e, finalmente, defensor da verdade, embora à custa da própria vida”. Mas não lhe bastou querer para poder, porque lhe faltava a ciência dos meios, das circunstâncias e das condições exigidas pela realidade para a efetivação do seu idealismo. Era assim que o engenhoso fidalgo fazia coisas próprias do maior louco do mundo e apresentava tão judiciosos argumentos que anulavam e deixavam a perder de vista os seus feitos de armas.

Quando, porém, o fim é nobre e os meios exeqüíveis, a vontade, impulsionada por um decidido propósito, tem muitíssimas probabilidades de triunfar.

Para exemplo admirável, citaremos Lincoln, modelo de auto-educação, que deveu tudo o que foi à confiança que teve em si mesmo e ao auxílio de Deus. Não era Lincoln tão néscio que se julgasse capaz de vencer todas as dificuldades apenas com as forças de que dispunha. Confiando em si, confiava também em Deus, que o auxiliaria na grandeza das suas intenções, sempre repassadas do mais puro altruísmo, porque todo o seu ardente desejo consistia em elevar o nível moral do gênero humano, em estabelecer o reinado da justiça e em abolir a iniqüidade. O seu triunfo foi devido à índole altruística dos seus propósitos. Lincoln, por um lado, confiava no feliz resultado dos seus esforços, e, por outro, não temia o inêxito de qualquer empreendimento, porque, se não conseguisse o que desejava, ficava ao menos com a consciência do dever cumprido.

Não foi de repente nem por intrigas de gabinete que Lincoln chegou a ser presidente dos Estados Unidos; foi avançando a pouco e pouco e com firmeza, sem arrepiar caminho, sem um desfalecimento, conservando, nas circunstâncias mais críticas, a integridade do seu caráter, que ele conquistou a estima pública e a lealdade dos cidadãos do pais.

A vida foi para Lincoln o mesmo que é para toda a gente: uma série de rápidos e furtivos sorrisos da sorte. A diferença está em os homens de vontade enérgica, como Lincoln, saberem aproveitar-se desses efêmeros sorrisos da fortuna, enquanto os pusilânimes e os néscios não dão por eles ou os desprezam. Para dar uma idéia do modo como Lincoln foi exercitando a sua vontade, depois de a ter fortalecido por auto-educação, ouçamos o que ele próprio refere pela pena dum dos seus biógrafos:

Contava eu uns dezoito anos, quando um dia me surgiu a idéia de construir uma barca, onde pudesse transportar pelo rio abaixo, até ao mercado mais próximo, os produtos da granja. Se, na minha infância, não tivesse aprendido a serrar madeira nos bosques de Indiana e a pô-la depois em obra, com certeza que não seria capaz de fazer uma barca que para mim foi tão útil e que me saiu tão perfeita como se fosse executada por um calafete. O que é certo é que me serviu para vender mais facilmente as frutas, os legumes e as hortaliças que a granja ia produzindo.

Um dia, depois de ter vendido todo o meu carregamento, estava eu a descansar na minha barca junto à margem, quando de repente apareceu deslizando pelo rio abaixo um navio a vapor, o primeiro que eu via na minha vida. Ao mesmo tempo, acercaram-se de mim dois homens, vindos de terra, com malas na mão, e perguntaram-me se eu queria levá-los na minha barca a bordo do vapor. Acedi. Em paga do serviço que lhes prestei, cada um deles me deu meio dólar. Olhei para o dinheiro e mal podia crer no testemunho dos meus olhos. Para qualquer outra pessoa, um dólar pareceria uma insignificância; mas, para mim, habituado a ganhar durante um dia de trabalho meia dúzia de centavos, foi o incidente mais extraordinário da minha vida. Parecia-me ver um mundo de felicidade na minha frente, ao ser remunerado com um dólar só por cinco minutos de trabalho. Desde então tive uma esperança mais sólida no futuro e mais ilimitada confiança em mim mesmo.

O que é conveniente é que o exercício da vontade seja precedido e acompanhado do exercício das faculdades intelectuais e especialmente da atenção, porque a atenção gera o interesse, e este estimula a vontade.

Tudo quanto nos cerca, os fenômenos da natureza, os fatos e as condições da vida, o ambiente social, o tempo e o espaço, são o mesmo para todos os homens de determinado grupo geográfico. Unicamente varia o grau de percepção em cada um de nós.

A lâmpada da catedral de Pisa oscilava igualmente à vista de todos os circunstantes; mas só Galileu conseguiu deduzir as leis do pêndulo, ao fixar a atenção nas suas oscilações. Centenas de exploradores de ouro passavam junto à choça que um grupo deles construíra nos arredores de Wooming, mas só Cookson reparou nos extraordinários rochedos que formavam as paredes da choça, e que vieram a ser as vértebras colossais, cujo exame determinou o descobrimento dos abundantíssimos jazigos de fósseis das montanhas Rochosas.

Por outro lado, o exercício da vontade exige a cooperação do discernimento, que consiste em apreciar as coisas pelo seu justo valor, sem as engrandecer mais pelo proveito pessoal a que possam dar lugar, nem tão pouco depreciá-las pelo prejuízo que ameacem causar aos nossos interesses individuais.

É ainda Lincoln que nos oferece um formoso exemplo de imparcial discernimento no exercício da vontade. Vejamos como:

No tempo em que Abraão Lincoln contava dezenove anos de idade, deu-se um dia o caso de ele conduzir, por conta dum comerciante chamado Gentry, um carregamento de mercadorias numa barca que seguia pelo rio Ohio, com destino a Nova Orleans. Acompanhava-o um filho do dito comerciante, o moço Allen, da mesma idade que Lincoln, e, depois de haverem navegado afanosamente durante um dia inteiro, atracaram na margem do rio para dormirem naquela noite. De repente ouviram um rumor de passos. Abraão, que era tão forte de músculos como de vontade, ergue-se rapidamente, gritando: “Quem vem lá?” Ninguém respondeu. Desconfiando, pelo silêncio, de que fossem gatunos, colocou-se na defensiva, empunhando um estadulho. Nisto, surgiram sete alentados negros, em ar de salteadores, que evidentemente se propunham saquear a barca.

O primeiro negro que saltou a bordo foi recebido com uma tão valente cacetada na cabeça que caiu à água, sucedendo o mesmo a outros três que também tentavam atacar a barca. Os outros, ao verem a impossibilidade de triunfar do hercúleo ex-lenhador e do seu companheiro, deram às de Vila Diogo, perseguidos pelos corajosos mancebos que, alcançando os fugitivos, sustentaram com eles uma luta tremenda braço a braço. Por último, os ladrões resolveram fugir, deixando o moço Abraão assinalado no rosto para toda a vida.

É claro que, num caráter menos imparcial, aquele incidente teria despertado um ódio inextinguível contra os negros, declarando-se logo o indivíduo com tal caráter um partidário acérrimo da escravatura. É que a maioria das pessoas não vêem as coisas como realmente são ou como deveriam ser, quando elas se não apresentam normalmente; vêem-nas por um lado egoísta, visando o interesse pessoal, e encaram-nas duma maneira apaixonada, guiadas muitas vezes pelos seus preconceitos. Desta maneira, é tão difícil fazer justiça ao adversário como conseguir fazer distinção entre os casos particulares e os gerais, entre a regra e a exceção.

Provando por esta forma a sua grandeza de alma, o seu claro entendimento e imparcial critério, esqueceu Lincoln aquele incidente, atendendo a que a pilhagem e o latrocínio não são peculiares da raça negra, pois também há infelizmente quadrilhas de salteadores com a pele branca.

Em compensação, durante aquela viagem pelo Ohio, presenciou Lincoln o comovedor espetáculo para sempre inolvidável, e que, com o andar do tempo, havia de ser o ponto de aplicação da sua vontade indomável. Viu os escravos trabalharem à sobreposse, tendo por única remuneração o escasso alimento das roças. Viu os mercados em que eles eram vendidos em bandos como se fossem reses; aqui o filho arrebatado dos braços da mãe, além o irmão brutalmente separado da companhia da irmã, todos obrigados a juntarem-se em grupos para enriquecerem o cruel negreiro com o produto da venda, que os pais amaldiçoavam da maneira mais atroz. Depois os açoites, as torturas, os castigos bárbaros, que o guarda desumano infligia quase sempre por motivos fúteis, intimidavam aqueles infelizes de tal maneira que lhes deixavam embotada a consciência.

Foi então que Lincoln prometeu, com o auxílio de Deus, dedicar toda a força da sua vontade e toda a energia da sua alma em conseguir um dia a emancipação dos escravos. Prometeu a Deus que havia de conseguido, e esta resolução aumentou, com a sua vontade tenaz, a possibilidade de realizar o seu intento. Desencadearam-se as iras dos partidários da escravatura contra o signatário do célebre manifesto de emancipação; mas nada houve que o fizesse recuar. Nem os libelos, nem as caricaturas que o ridicularizavam, nem o ataque dos inimigos, nem tão pouco a deserção dos amigos conseguiram quebrantar-lhe a fé indomável na possibilidade de acaudilhar a parte sã da nação para a luta mais gigantesca da sua história.

A vida de Edison dá-nos um exemplo do muito que pode o perseverante exercício da vontade. A este homem deve a civilização moderna uma gratidão imperecível, só por causa dum dos seus múltiplos inventos – a lâmpada elétrica – que, não sendo talvez tão admirável, é, contudo, mais útil do que o fonógrafo. Haverá quem tenha contribuído, em grau tão elevado, para a comodidade, satisfação e engrandecimento da vida humana?

Aos sete anos começou a ir à escola pública de Gratiot (Michigan), para onde tinham ido viver os pais, quando saíram de Milan (Ohio). E, para que se veja até que ponto iludem as aparências e como é absolutamente indispensável reformar os processos pedagógicos, o professor não foi capaz de descobrir o precioso engenho que se escondia nos recessos daquela alma infantil, destinada verdadeiramente a iluminar o mundo. O pequeno Tomaz era sempre o último da classe, talvez porque, como acertadamente diz Donnay, os primeiros na escola são os últimos da vida. Como quer que seja, o professor um dia dirigiu-se ao futuro inventor do fonógrafo e disse-lhe:

– Olha, Tomaz, por mais voltas que dês, nunca passarás de ser um estúpido. És bronco demais para aprender. O único remédio que tenho é mandar-te embora. Escusas de voltar mais à escola.

O pobre pequeno foi para casa a chorar muito triste; mas a mãe consolou-o, prometendo-lhe que lhe ensinaria o que o professor não fora capaz de lhe ensinar; e assim fez.

Aos onze anos, vendia Tomaz jornais no comboio que circulava entre Port Huron e Detroit, e aproveitando a carruagem destinada aos fumadores, que nunca era utilizada pelos passageiros, instalou nela um prelo minúsculo para publicar um semanário do tamanho dum lenço de assoar, intitulado Weekly Herald (O Heraldo Semanal), de que era ao mesmo tempo o único redator e impressor, vendendo 400 exemplares de cada número que publicava.

O texto constava das notícias referentes à guerra da Secessão, que ia colhendo nas estações do trânsito. Nisto provou Edison possuir uma das qualidades necessárias para triunfar na vida, isto é, sabia aproveitar as ocasiões que os outros perdiam. 0 público lia com avidez as notícias do pequeno semanário, e Edison conseguiu satisfazer perfeitamente a curiosidade geral, com a cooperação dos telegrafistas ferroviários que, por simpatia, lhe comunicavam as notícias recebidas. Do Weekly Herald apenas existe um exemplar, correspondente ao dia 3 de Dezembro de 1862, que a esposa de Edison conserva como uma relíquia de grande valor.

Com pronunciada inclinação para as ciências experimentais, instalou, ao lado do prelo, um laboratório químico e uma pilha elétrica, até que um dia, em conseqüência duma violenta trepidação do comboio, saltou dum matrás um pedaço de fósforo a arder, que pegou fogo ao vagão e que incendiaria todo o comboio, se os revisores não acodem a sufocar o incêndio. O condutor pegou num braço do inexperiente moço, pô-lo no meio do cais da estação imediata, juntamente com o prelo, a pilha e toda a bateria química e, por despedida, aplicou-lhe uma saraivada de murros que o deixou atordoado. Deste incidente lhe proveio a surdez que havia de atormentá-lo por toda a vida.

Quando, porém, se fecha uma porta, abre-se logo outra, e as boas ações têm sempre a sua recompensa, mais tarde ou mais cedo. Meses antes do incidente que acabamos de referir, tinha Edison arriscado a vida para salvar a do filho do telegrafista da estação, que ia sendo colhido pelo comboio. Na crítica situação a que o reduzira o narrado incidente, foi recolhido em casa do telegrafista, que se ofereceu para lhe ensinar telegrafia. Ao fim de dois meses, estava um telegrafista consumado, sendo-lhe confiada a estação de Port Huron. Depois de muitas revezes de sorte, cujo relato assumia proporções de biografia que não queremos dar a este rápido bosquejo, chegou pobre e faminto a Nova Iorque, no ano de 1869.

Uma tarde, ao passar por Wall Street, viu uma chusma de curiosos às portas dos escritórios da Gold & Stock Telegraph Company que, por meio de indicadores automáticos, expõe ao público, em tiras de papel, as cotações da Bolsa. O mecanismo dos indicadores tinha-se desarranjado, e o dr. Laws, gerente da empresa, estava desesperado, sem saber o que havia de fazer.

Aqui vemos praticamente demonstrado o que disse no capítulo anterior, isto é, que não basta querer para poder, mas sim que é necessário saber e acompanhar a sabedoria com determinadas qualidades de caráter, entre as quais se destaca a de aproveitar as ocasiões e vencer as circunstâncias de momento.

Edison nasceu com particulares aptidões para o estudo e aplicação das ciências experimentais, mas teve de deduzi-las e desenvolvê-las pelo perseverante exercício da vontade. As experiências realizadas no comboio onde vendia jornais foram, relativamente à sua auto-educação intelectual, o que são, em geral, os exercícios ginásticos e os desportos atléticos na educação física. Se não fosse a vontade de Edison, se não fosse o fato de querer chegar a ser mais do que um simples vendedor de jornais, não teria podido aproveitar a ocasião que lhe proporcionou o incidente de Wall Street.

Pelo exercício da sua vontade e com os olhos postos no futuro, preparou-se Edison para aproveitar a ocasião que se lhe oferecia em utilizar os seus conhecimentos. Mas esta preparação custou-lhe não poucos sacrifícios, porque o triunfo não se conquista sem fadiga, nem, segundo o adágio popular, se pescam trutas a bragas enxutas. Em vez de desperdiçar, em cavaqueiras e frivolidades, o tempo que mediava entre a chegada dos comboios a Detroit e o seu regresso a Port Huron, ia para a Biblioteca pública de Detroit, onde aumentou consideravelmente os conhecimentos científicos que lhe serviam de base às suas experiências.

Todavia, mesmo com todos os seus conhecimentos valorizados pela prática, não aproveitaria Edison aquele momento supremo da sua vida, se tivesse hesitado ou se, por timidez, tivesse receio de se abalançar. A decisão, isto é, a vontade em pleno exercício, foi o eixo em que girou o destino da sua vida. Intuitivamente, lembrou-se de que, naquela situação crítica, o gerente da empresa aceitaria fosse o que fosse para se livrar do apuro em que o colocava a avaria do aparelho e, com absoluta confiança em si mesmo, rompeu por entre o grupo dos circunstantes, entrou no edifício e dirigiu-se a Laws, dizendo-lhe:

– Não se apoquente vossa excelência. Tudo se há-de arranjar. Se os indicadores não funcionam, eu comprometo-me a pô-los a trabalhar.

E quem é o senhor?

– Eu sou Tomaz Alva Edison, mas neste momento o meu nome não faz nada ao caso; valem mais as minhas mãos que o meu nome.

– Pois então ande lá, que nada se perde em experimentar, desde que não deixe ficar o aparelho pior do que ele está.

– Garanto-lhe que o vou consertar.

– É preciso provar o que afirma.

Edison, com efeito, meteu mãos à obra e em vinte minutos pôs os indicadores a funcionar perfeitamente.

O Dr. Laws abraçou o mancebo com paternal carinho e disse-lhe:

– O senhor já daqui não sai. Fica desde já encarregado de lidar com os manipuladores, e receberá o ordenado de trezentos dólares por mês.

Edison, que não sabia onde havia de cear e dormir naquela noite, julgou que o gerente estava troçando com ele; mas, ao convencer-se de que era garantida a proposta que lhe fazia, aceitou profundamente comovido. Em vez, porém, de se dar por satisfeito com aquele triunfo que, para outros de vontade menos enérgica, representaria a conquista final das suas aspirações, continuou a ser infatigável nas suas experiências, que deram em resultado a construção dum indicador automático muito mais simples, mais exato, mais perfeito e seguro do que os que então se usavam.

O gerente, admirado do novo invento, chamou-o um dia ao seu gabinete de trabalho e perguntou-lhe:

– Quanto quer o senhor pela patente de invenção?

Edison pensava em pedir cinco mil dólares; mas cuidando que seria demasiado, não respondeu à pergunta, como a custar-lhe pedir uma quantia que julgava exorbitante.

Nisto, o gerente, com um ar quase suplicante, perguntou-lhe de novo:

– Ficaria satisfeito se lhe desse quarenta mil dólares?

Edison julgou não ter ouvido bem; mas, repetida a oferta, aceitou e recebeu logo um cheque de quarenta mil dólares, com a liberdade absoluta de se estabelecer por sua conta, se assim o desejasse, o que ele fez, instalando as oficinas de Newark. Contava então vinte e três anos. A era dos seus prodigiosos inventos e ruidosos triunfos ia ter o seu início.

Napoleão Bonaparte também nos oferece um exemplo de enérgica vontade, larga previsão e delicadeza de tato, embora num sentido muito diferente dos grandes homens que lutam pelos ideais incruentos da paz.

Evidentemente, os que desejam ver convertido o mundo num paraíso e anseiam pelo império da confraternização universal, amaldiçoarão a memória dos conquistadores, dos guerreiros que ensoparam de lágrimas o solo de todas as pátrias, que encheram os ares de queixas e lamentos, e juncaram de cadáveres os campos onde sinistramente batalharam. Mas pondo de parte, por não corresponder ao tema capital desta obra, a influência das guerras e, portanto, dos guerreiros na evolução humana, advertiremos que, para o caso, consideramos a vontade como força anímica nas suas características de grandeza e intensidade, sejam quais forem a sua direção e sentido. Todavia, não deixaremos de aconselhar os moços, desde já, a que dirijam a sua vontade no sentido da justiça, da verdade, da beleza e do bem, para com os seus esforços auxiliarem, e nunca dificultarem, o progresso do mundo e da humanidade.

Se bem examinarmos as vidas dos homens célebres, veremos que, num ou noutro sentido, nos provam que as leis da natureza imperam igualmente nos seus três reinos. Assim como cada árvore, cada arbusto, cada planta, enfim, considerada individualmente, difere das outras por certas particularidades de constituição, apesar das características comuns da sua espécie, assim também cada ser humano, quando nasce, traz em embrião as qualidades, aptidões e faculdades que, desenvolvidas pela educação ou irrompendo espontaneamente sob o impulso da sua própria exuberância, hão-de constituir o seu caráter em plena virilidade e marcar o destino da sua existência. Nuns manifestam-se desde a primeira infância as qualidades do caráter, noutros não aparecem distintamente até à adolescência, e nalguns ficam latentes, até que um supremo acaso ou um extraordinário revés da sorte as faz de repente vibrar.

Contudo, seja qual for a índole das qualidades constitutivas do caráter, estão elas subordinadas à vontade que, segundo a condição moral do indivíduo, se manifesta nas diversas formas de ambição, desejo, constância, ansiedade, perseverança e insistência, que podem considerar-se como estados alotrópicos do querer.

Napoleão, desde os primeiros anos da sua existência, revelou estas qualidades predominantes no seu caráter: ambição e tenacidade – duas variedades, ou melhor, dois aspectos da vontade, acompanhados de extraordinária aptidão para o cálculo matemático.

Desde muito criança, preferia os divertimentos belicosos, deleitando-se em seguir as tropas da guarnição de Ajácio nas suas marchas e exercícios, não como costuma fazer a maioria das crianças, em que é vulgaríssima esta tendência, mas como se observasse detidamente os movimentos das tropas. A sua atitude era tão singular que despertou a atenção dos oficiais, os quais dirigiam ao pequeno algumas chalaças.

Aos sete anos, teve Napoleão ensejo de por em prática a sua predileção pelos combates, suscitando a rivalidade entre os garotos da povoação e os do lugar limítrofe, pondo-se à frente daqueles para os fazer lutar com os suburbanos, a quem venceu várias vezes devido aos seus cálculos estratégicos. Freqüentemente, trocava o pão alvo da sua casa pelo da manutenção militar, dizendo que tinha de se ir habituando, pois estava destinado a ser soldado.

Na Academia de Brienne e depois na de Paris distinguiu-se pela sua aplicação ao estudo, empregando as horas vagas em proveitosas leituras sobre o governo, leis e religiões da antiguidade e da história contemporânea da Europa. Promovido a oficial de artilharia, era já capitão, quando foi incorporado num regimento de guarnição em Niza.A esse tempo, as tropas do general Carteaux haviam recebido ordem de reconquistar a cidade de Toulon, entregue pelos habitantes aos ingleses. A 7 de setembro de 1793, ocupou o exército revolucionário os desfiladeiros de Ollioules, depois de repelir um contingente de toloneses que intentaram barrar-lhe a passagem. Neste combate ficou ferido o comandante de artilharia Doumartin, tornando-se necessário substituí-lo por um chefe inteligente, porque o êxito da operação dependia precisamente do fogo da artilharia contra a cidade e os fortes.

Os comissários da Convenção que vigiavam o exército encarregaram um emissário, chamado Cervoni, de ir a Marselha procurar um oficial de artilharia que fosse capaz de tomar o comando da arma. Cervoni foi ter com José Bonaparte, que estava então em Marselha, e ele lembrou-lhe o nome de Napoleão, dizendo que era um militar que havia de corresponder perfeitamente ao desejo dos comissários.

Foram Cervoni e José avistar-se com Napoleão e expuseram-lhe o fim da sua diligência. O brioso oficial recusou a princípio, por não reconhecer no general Carteaux qualidades militares, mas depois acabou por aceitar, em proveito da arma a que pertencia.

Napoleão viu o que estava à vista de todos, e contudo, ninguém, nem mesmo o general em chefe, tinha visto coisa alguma antes dele. Estudou convenientemente a respectiva importância de todos os fortes da praça e concluiu que o mais estratégico era o da Eguillette, que dominava as duas enseadas. Se os republicanos o tomassem, derrotada ficaria a esquadra inglesa que, com a sua artilharia, estava desbaratando as operações do cerco.

Os ingleses adivinharam o plano de Napoleão e, sem demora, construíram quatro novos redutos para reforçarem as barreiras do forte.

Aqui agora é que vai reconhecer-se o que vale o exercício da vontade.

Se isto se desse com outros, teriam desanimado ao verem descoberto um plano que talvez já não pudessem realizar; mas Napoleão, em vez de desistir, aplicou-se com febril atividade à colocação de mais cinco baterias, que abriram fogo contra a esquadra inglesa, fazendo-a sair do porto de abrigo.

Não teve, porém, Napoleão que lutar simplesmente contra os sitiados, pois no seu próprio campo se via em dificuldades com os disparatados planos do general em chefe. Mas esta dificuldade também o não desanimou. Cortando o mal pela raiz, disse aos comissários que, para o bom êxito da empresa, era preciso que Carteaux renunciasse aos seus impertinentes projetos. Confiando no apoio dos comissários, Napoleão deliberou desobedecer abertamente ao general que, embora despeitado, dominou a sua cólera, não só com receio de que a Convenção o destituísse, mas por conselho de sua mulher, que lhe observou:

– Deixa fazer esse moço o que ele entender, porque sabe mais do que tu e não te pede conselhos. Se ele acertar, será tua a glória, e, se errar, a culpa será dele.

O resultado final das operações foi Carteaux ser substituído no comando pelo general Doppet e este, por sua vez, por Dugommier, que deixou Napoleão em completa liberdade para realizar o seu plano, como efetivamente o realizou com pleno êxito.

Todos os historiadores são unânimes em atribuir a Napoleão a glória do triunfo, acrescentando que não se sabe que mais admirar neste homem extraordinário – se a grandiosidade do plano que arquitetara, se a tenaz perseverança em o levar a efeito. Tinha ele então vinte e quatro anos de idade. Começou deste modo a sua prodigiosa carreira. O cerco de Toulon foi o ponto inicial da sua celebridade no mundo militar e a base da sua maravilhosa ascensão.

Aos vinte e três anos de idade, era já ministro do Fomento do governo inglês o notável estadista Guilherme Pitt, segundo filho do não menos celebre estadista do mesmo nome. Como justificadamente dizem os seus biógrafos, era nele tão profundo o sentimento do poder e tão excepcionais as suas qualidades de governo, que parecia ter já nascido ministro. A qualidade que nele predominava era a grande confiança que, sem orgulho, tinha em si mesmo, e mais ainda a sua enérgica vontade, acompanhada dum profundo conhecimento da psicologia do povo inglês, além da facilidade de palavra, com rasgos de eloqüência verdadeiramente assombrosos.

Quando em 1783 Fox e North se coligaram contra o governo e especialmente contra Pitt, o jovem ministro viu-se obrigado a pedir a demissão, e então disse ao duque de Devonshire em tom profético de absoluta confiança:

– Tenho a certeza de que ninguém mais é capaz de salvar este país senão eu.

Efetivamente, após uma curta viagem pela França, voltou ao Parlamento, onde combateu com tão progressiva eloqüência o projeto de lei apresentado por Fox sobre a índia, que o rei Jorge IV, a aristocracia e a maioria parlamentar reconheceram o talento e o prestígio de Pitt. Aos vinte e quatro anos, a 18 de dezembro de 1783, assumia o cargo de primeiro ministro da Inglaterra, chegando a salvar o país, como prometera.

O notável escritor e estadista Benjamim Disraeli, descendente duma das famílias de judeus expulsos de Espanha em 1492, também pôs a sua enérgica vontade em ação. Tendo-se dedicado às letras desde os vinte e dois anos, escreveu várias novelas em que revelava um profundo conhecimento do coração humano, e mais tarde, em 1832, ingressou na política militante, propondo-se como candidato liberal pelo distrito de Chipping Wycombe.

O candidato oposicionista e os seus partidários perguntavam em tom de mofa: Quem é Disraeli? Ao que o destemido mancebo respondeu com a mesma pergunta num folheto intitulado: Quem é ele? onde expunha o seu programa eleitoral. Derrotado naquelas eleições, mudou radicalmente de idéias políticas, e em 1835, apresentou-se como candidato conservador pelo distrito de Taunton, apesar das violentas diatribes com que o atacaram os amigos doutro tempo e especialmente O'Connell, que lhe chamou apóstata, saltimbanco e digno herdeiro do mau ladrão. Também nesta segunda tentativa fracassaram os seus esforços, até que finalmente em 1837 foi eleito deputado por Maidstone. A sua presença na tribuna foi acolhida com cicios, murmúrios e gritos de protesto, que teriam descoroçoado outro menos destemido. Disraeli, porém, sentou-se, envolto naquela atmosfera de manifesta hostilidade, e disse tranqüilamente:

– Tempo virá em que me hão-de ouvir.

E veio, com efeito, esse tempo em que os murmúrios se converteram em aplausos e os foras deram lugar aos vivas: foi quando, chefe do governo, ele traduziu em leis grande número de reformas políticas e sociais.

É surpreendente ver a maneira como os adversários ajudam e prestigiam um ânimo arrojado, um espírito de decisão, e como os obstáculos desaparecem do caminho dum homem que, sem arrogâncias fátuas, confia em si mesmo. Não há ciência, nem arte, nem meio algum que leve um homem a fazer uma coisa, se ele julgar que a não pode fazer.

Que triunfos não realizará o homem de alma forte, que sabe o que quer e confia na sua sabedoria e na sua vontade, desprezando o ridículo, a diatribe, o libelo e até a calúnia?

Para proveitosamente pôr a vontade em ação, é indispensável não escutar outra voz senão a da sua própria consciência, sem atender outras reclamações que não sejam as das circunstâncias de lugar e tempo, manifestadas pela consciência pública. Não hão-de ensoberbecê-lo os aplausos nem amedrontá-lo os protestos. Como misticamente diz o Bhagavad Gita, deve “manter-se inalterável na presença do amigo e do inimigo, quando adquire celebridade e quando cai na ignomínia, na felicidade e no infortúnio, no louvor e no vitupério”. Nem a pobreza será então capaz de o desalentar, nem a desdita de lhe deter os passos, nem os revezes da sorte de o dissuadir do seu propósito. Suceda o que suceder, conserva os olhos fitos no seu ideal e caminha para a frente.

3. A vocação e o ambiente

Todo aquele que, depois de observar os fatos, pensa e medita sobre eles, não pode deixar de reconhecer a profunda transformação que, com o andar do tempo, sofreram as idéias coletivas. O que ontem se repudiava unanimemente como erro manifesto, admite-se hoje como verdade axiomática; e o que há séculos atrás foi tido como traição infame, merecedora do cadafalso, ou como heresia abominável, digna das fogueiras da inquisição, enalteces-se hoje como patriótica façanha ou eleva-se ao sublime apogeu da santidade. Assim o demonstra a experiência, que é a mestra da vida humana.

Não imagine o leitor que vou fazer uma digressão inútil. É indispensável divagar um pouco para se compreender a relação que existe entre a vontade e a vocação, e ao mesmo tempo é necessário uma argumentação favorável às conclusões da psicologia transcendental que, não obstante explicarem racionalmente muitos fenômenos metafísicos, são consideradas como absurdas e quiméricas pelos que se acham imbuídos de superstição e fanatismo.

Quando em 23 de abril de 1521 os comunheiros de Castela ficaram vencidos na batalha de Villalar, por culpa da sua “má fortuna e não da sua boa vontade”, foram condenados sumariamente à pena última por traidores à coroa real destes reinos, segundo reza a sentença original que se conserva no arquivo de Simancas.

Ao levar ao patíbulo Padilla, Bravo e Maldonado, chefes das comunidades sublevadas contra os regentes que, na ausência do rei Carlos I, administravam vergonhosamente o reino, o pregoeiro ia gritando:

– É esta a justiça que Sua Majestade, o seu condestável e os governadores em seu nome mandam aplicar a estes cavaleiros. Mandam-nos degolar por serem traidores e amotinadores do povo.

Ouvindo isto, João Bravo replicou indignadíssimo:

– Mentes tu e quem te incumbiu de dizer essa aleivosia. Traidores não, ciosos do bem público e defensores da liberdade do reino, é que deves dizer.

E como o alcaide Cornejo, para o castigar, lhe batesse com a vara, Padilla disse ao seu companheiro:

– Senhor João Bravo, ontem lutamos como cavaleiros, hoje morremos como cristãos.

Quem seria então capaz de sair em defesa dos comunheiros para os defrontar, proclamando em voz alta que era verdade o que dizia João Bravo e mentira o pregão do rei? Pois ninguém, diria, naquele dia funesto para a Espanha, que ao fim de quatro séculos, a 23 de abril de 1921, havia de engrandecer-se e glorificar-se a memória daqueles que foram decapitados por traidores à coroa real desses reinos, como ninguém diria que essa mesma coroa real, cingida na fronte augusta do legítimo descendente de Carlos I, havia de presidir a esse engrandecimento e glorificação, corrigindo assim as faltas do seu antepassado.

Neste exemplo vemos confirmada a versatilidade dos juízos humanos, de maneira que não podemos considerar infalível e imutável coisa alguma neste mundo.

Remontemos aos tempos longínquos da história. A 6 de janeiro de 1412 nascia na aldeia francesa de Domremy uma menina que ia dar ao mundo a prova mais concludente do que pode a vontade estimulada pela vocação. Desde que os seus olhos aprenderam a ver, os seus ouvidos a ouvir e os seus lábios a rezar, escutava comovida os relatos das calamidades que ao tempo flagelavam a França.

A rivalidade entre esta nação e a sua vizinha Inglaterra, iniciada em 1328, quando Eduardo III pretendeu abertamente o trono da França que lhe foi negado pelos Estados gerais ou Parlamentos daquela época, havia chegado ao ponto culminante no segundo período da guerra dos Cem anos. O rei de Inglaterra, Henrique V, invadira o território francês, aproveitando-se da espantosa demagogia que dominava no reino, em conseqüência das lutas intestinas entre os partidos de Orleans e de Borgonha. Os ingleses vitoriosos em Azincourt, apoderaram-se de várias cidades da Normandia. A sorte das armas ia correndo para os franceses de mal a pior, até que teve o seu termo no tratado de Troyes. Por este tratado, o rei Carlos VI deserdava seu filho, o delfim Carlos, reconhecendo por herdeiro do trono de França Henrique V da Inglaterra, que casou com a princesa Catalina, irmã do esbulhado delfim. Tinha a esse tempo Joana d'Arc oito anos de idade. A Inglaterra lograra a sua ambição de se apoderar da França.

Nisto vemos um novo exemplo das mudanças radicais que experimenta o ambiente mental dos povos com o andar dos tempos. O ódio entre ingleses e franceses parecia inextinguível, de tão entranhado que era e, após curtas intermitências, havia de recrudescer com a maior intensidade durante o período napoleônico, para se transformar na cordialíssima harmonia ou firme aliança que liga atualmente as duas teimosas rivais.

Claramente se demonstra aqui a verdade daquela sentença de Tomás de Kempis: “Os que hoje estão a teu favor, amanhã estarão contra ti, e os que estão hoje contra ti, estarão amanhã a teu favor”.

O deserdado delfim, porém, não ficou de todo abandonado nem perdeu o ânimo com receio. Confiava “em Deus e na sua espada”, isto é, tinha confiança em si mesmo, mas sem a soberbia de julgar dispensável o auxílio divino.

Acompanhado dalguns leais defensores da legitimidade dos seus direitos, refugiou-se para além do rio Loire, onde ainda permaneciam fiéis ao nome da França sete províncias do reino, estabelecendo a sua pequena corte em Bourges, capital da província de Berry, enquanto Henrique V entrava triunfante em Paris.

Ao fim de dois anos, morreu Henrique V, deixando as coroas da Inglaterra e da França na fronte pueril de seu filho Henrique VI, que ao tempo contava apenas seis anos, ficando por este motivo entregue as regências dos reinos da França e Inglaterra, a seus tios paternos, respectivamente o duque de Bedford e o de Glocester.

Joana d'Arc era já uma perspicaz rapariga de dez anos, que nas suas orações quotidianas rogava a Deus pela salvação da sua pátria, e que ao mesmo tempo ouvia a misteriosa voz das fadas gemebundas na ramaria do azinheiro secular de Maio formoso, de cujo tronco brotava uma fonte, cujas águas tinham, na opinião dos aldeões, a virtude de acalmar a febre.

Talvez neste ponto os céticos mudem de folha ou atirem desdenhosamente com o livro para o lado, exclamando

– Estamos agora em pleno iluminismo. Afinal, a menina Joana sai-nos uma histérica como Margarida de Alacoque e outras de temperamento semelhante. Isso de ouvir a voz das fadas não passaria de ser uma ilusão acústica.

A este ímpeto de incredulidade cabe responder com os numerosíssimos, embora ainda invulgares, casos de clarividência e clariaudiência que os psicólogos de gabinete, incapazes de explicarem satisfatoriamente, atribuem a histerismo e a alucinação. Mas os que percebem um pouco das coisas invisíveis, que, segundo a crença cristã, são obra de Deus como são as visíveis, sabem que há pessoas que nascem clarividentes e clariaudientes, como na verdade o foi Joana d'Arc.

Também pode suceder que outros digam que a clarividência e a clariaudiência são coisas de feitiçaria e embustice contrárias à ortodoxia. Aos que de tal suspeitam, bastará, para lhes dissipar a dúvida, a paráfrase duma passagem da Bíblia, entre as muitas que corroboram a realidade das faculdades referidas:

Andava Benadad, rei da Síria, em guerra com Joram, rei de Israel, e reunindo em conselho os seus capitães, combinou pôr emboscadas em vários pontos da região. O conselho celebrou-se na câmara secreta do rei Benadad; e contudo, o profeta Eliseu, que se achava em Israel a muitos quilômetros de distância, ouviu o que em conselho se dizia, e enviou mensageiros ao rei Joram, dizendo-lhe:

– Acautela-te, não passes por tal ponto, por que os sírios estão lá de emboscada.

Ou a Bíblia mente, ou aqui não só temos uma prova de clariaudiência, isto é, da faculdade de ouvir o que normalmente não ouvem ouvidos humanos, mas estamos também em presença dum fenômeno de transmissão do pensamento, que os preconceitos do fanatismo atribuem hoje a artes diabólicas.

Continuaremos, porém, a narração:

Avisado por este modo o rei de Israel, tratou de ser o primeiro a ocupar os pontos indicados, de maneira que, quando os sírios foram para se emboscar nesses pontos, encontraram já lá o inimigo, à semelhança do que vai buscar lã e sai tosquiado. Isto aconteceu várias vezes, até que um dia o rei Benadad, inquieto com tais decepções, teve novo conselho de guerra com os seus generais, dizendo-lhes:

– Com certeza há entre vós um traidor que descobre os meus planos ao rei de Israel. Porque não direis quem é?

Ao que um dos generais respondeu:

– Meu rei e senhor, nenhum de nós é traidor, podeis crê-lo. Simplesmente o profeta Eliseu transmite ao rei de Israel tudo o que direis no sítio mais recôndito da vossa câmara.

– Pois se assim é, tratai de saber onde ele se encontra que eu o mandarei prender, respondeu Benadad.

Partiram esculcas por toda a parte, em demanda do profeta Eliseu, e ao fim dalguns dias trouxeram aviso ao rei de que o profeta estava em Dothan, lugar próximo de Siquem, na tribo de Manassés. Benadad enviou então um corpo de tropas com muita cavalaria e grande número de viaturas, que foram as precursoras dos modernos tanques de hoje, e pôs cerco à cidade de Dothan, onde se achava Eliseu.

O criado do profeta, quando pela manhã se levantou e saiu da cidade, como costumava, em busca de ervas e raízes para o almoço, ficou apavorado de ver tão poderoso exército, e, voltando para trás a correr, foi ter com o amo e disse-lhe:

– Ai, meu senhor! Desta vez é que não escapamos. Estão às portas da cidade milhares de homens a pé e a cavalo e com carros de guerra, que vêm para nos prender. Que havemos de fazer agora?

Eliseu, porém, respondeu tranqüilamente:

– Nada receies, porque temos por nosso lado muito mais homens para nos defender do que eles têm.

O criado ficou boquiaberto, supondo que o amo, com o susto, havia perdido a razão. Mas Eliseu orou a Deus, dizendo:

– Senhor, abre os olhos a este homem, para que ele veja.

E o Senhor abriu os olhos ao criado e ele viu o monte cheio de cavalos e carros de fogo a cercarem o exército sitiante.

Pois assim era Joana d'Arc, clarividente e clariaudiente, embora talvez em grau inferior. Via e ouvia as entidades que lhe pareciam fadas, e talvez o fossem, apesar de também poderem ser anjos, como os classificam as religiões, desses que sempre nos protegem, pelo menos o anjo da guarda, se a ortodoxia não mente.

Joana via com os olhos espirituais da intuição as povoações arruinadas, os bosques e as messes incendiadas, os campos juncados de cadáveres, o rei legítimo destituído da coroa e errante, na sua própria pátria, sarcasticamente achincalhado com o apodo de reisete de Bourges. Todos estes quadros se lhe representavam como se pessoalmente os presenciasse, e o seu coração infantil ardia numa chama de piedade e de patriotismo.

Tinha catorze anos, quando um dia, apascentando o rebanho de seu pai, ouviu pela primeira vez uma voz que, distinta e claramente, lhe dizia:

– Joana! Tens de acudir em socorro do delfim para, com o teu auxílio recuperar o reino que lhe pertence.

A rapariga ficou logo atemorizada, julgando ser vítima duma alucinação. Que poder tinha ela para se aventurar a uma empresa superior à sua idade, à sua profissão e ao seu sexo?

De vez em quando, porém, tornava a ouvir a mesma voz que, no mesmo tom, repetia as mesmas palavras. Por fim, a voz materializou-se numa aparição etérea, tornando-se para Joana visível e audível ao mesmo tempo, e repetindo-lhe os avisos anteriores. Dizia-lhe que o reino da França estava em completa ruína e que era preciso que ela fosse ao encontro do delfim, levando-o à catedral de Reims, para que lá o sagrassem como rei.

Era esta a inspiração clara e definida que chamava Joana ao cumprimento do seu histórico destino, como para corresponder aos veementes desejos e fervorosas orações que desde a sua infância sentira e elevara com sincera fé, base fundamental de todo o êxito.

Três anos esteve Joana em freqüente comunicação com os seres misteriosos, visíveis e audíveis só para ela, guardando, mais o seu gado, o segredo do que acontecia.

Um dia, porém, a seu pesar, deixou escapar algumas frases soltas. O pai ouviu-as e coligiu do que se tratava. Exasperado por tal motivo, disse-lhe:

– Enlouqueceste? Estarás em teu juízo? Que significa essa tolice de te meteres com soldados? Se tal intentasses, dava cabo de ti. Tira essas loucuras da cabeça, que eu vou tratar de te casar quanto antes, para ver se teu marido te mete em trabalhos.

A voz misteriosa, contudo, tinha para Joana maior autoridade e prestígio do que a de seu pai. Negou-se redondamente a aceitar por esposo o rapaz que a pretendia, e, quando as tropas borgonhesas saquearam a aldeia de Domremy e queimaram a igreja, ouviu novamente a voz que, com acento cominatório, lhe dizia:

– Não te demores. Vai a Vaucouleurs e fala com Roberto de Baudricourt.

Joana conseguiu ganhar a confiança dum seu tio, que, simpatizando com os sentimentos dela e possuído da mesma fé, tomou o encargo de ir ter com o comandante Baudricourt, chefe da guarnição de Vaucouleurs. O chefe, porém, despediu-o com modo brusco, dizendo-lhe que certamente o tinha vindo procurar para troçar dele. Apresentou-se então Joana pessoalmente, mas Baudricourt tomou-a por uma louca. A heroína donzela não se deu por vencida ante a repulsa do comandante. Tinha absoluta confiança no seu destino. Estava certa de que não eram aparentes nem quiméricas as vozes e as aparições que a incitavam à tentativa de salvar a pátria. A sua vontade submetia-se de bom grado à inspiração do céu.

Ficou em Vaucouleurs, hospedada em casa duma família das relações do seu tio, e, embora naquela época não houvesse jornais, nem telefones, nem telégrafos que transmitissem as novidades com a rapidez do relâmpago, como séculos depois profetizou o eminente dramaturgo espanhol Lope de Vega, o que é certo é que prontamente correu por todo o país a notícia de que havia uma corajosa donzela, inspirada por Deus, que garantia salvar o rei.

Vendo que Baudricourt ficava indiferente aos seus rogos, partiu Joana para a aldeia de Petit-Burci, onde pouco depois se soube que o usurpador-regente, duque de Bedford, havia posto cerco à cidade de Orleans, chave do Meio-dia da França, e reduzira ao extremo desespero o seu valoroso defensor, o cavaleiro Dunois. Chegaram aos ouvidos de Carlos VII os rumores da voz pública, por intermédio de Baudricourt, que por fim se viu obrigado a dar conhecimento à corte do que sucedia. O rei enviou-lhe uma mensagem, dizendo-lhe que gostaria muito de ver a donzela que o povo admirava.

O próprio Baudricourt deu-lhe uma espada; seu tio comprou-lhe o cavalo; cortaram o cabelo à donzela, vestiram-na de soldado e, escoltada por seis cavaleiros, pôs-se a caminho, chegando à aldeia de Fierbois a 5 de março de 1429. Imediatamente Joana escreveu ao rei, que estava no castelo de Chinon com a sua corte, e solicitou-lhe a honra duma entrevista.

Os cortesãos dividiram-se em dois partidos: um era de opinião que o rei recebesse Joana, o outro era de opinião contrária. Triunfou no ânimo do rei o partido favorável à donzela, capitaneado por Yolanda de Aragão, sogra do monarca; mas, para não descontentar de todo o partido contrário, combinou o rei vestir-se modestamente para ver se Joana se enganava, confundindo-o com um escudeiro.

Posta esta condição, introduziram-se na sala principal do castelo Chinon, onde estavam reunidos os grandes da corte, ficando o rei num segundo plano, disfarçado em escudeiro. Apesar de tudo, Joana d'Arc encaminhou-se na direção de Carlos VII, arrojando-se-lhe aos pés e abraçando-o pelos joelhos. Ele, porém, disse-lhe, indicando um dos magnatas

– Eu não sou o rei. É aquele.

A vidente replicou sem hesitar:

– Em nome de Deus, gentil príncipe, sois vós e mais ninguém. Sereníssimo delfim e real senhor, eu chamo-me Joana, a Donzela e sou enviada por Deus em vosso auxílio e no do vosso reino, para combater contra os ingleses. Porque não credes em mim? Posso garantir-vos que Deus se apiedou de vós, do vosso reino e do vosso povo.

O rei, comovido, ordenou aos cortesãos que se retirassem, ficando a sós com Joana. Quando terminou a conferência, não duvidava já da veracidade da sua missão.

Todavia, os clérigos hesitavam em crer que ela fosse realmente urna enviada de Deus, e para terem a certeza, conseguiram do monarca que Joana fosse em Poitiers examinada pelos teólogos de Paris, que ali se haviam refugiado para se livrarem do jugo inglês. Entre outras objeções, apresentaram-lhe as seguintes, que a donzela ia refutando sem titubear:

– Se Deus quisesse libertar a França, não seriam necessários os exércitos.

– Em nome de Deus hão-de pelejar os exércitos e Deus lhes dará a vitória.

– Em que língua falam as vozes que ouvis?

– Numa língua que é melhor do que a vossa.

– Dá-nos uma prova da tua missão.

- Não vim a Poitiers para apresentar provas. Levai-me a Orleans e lá as vereis. Em nome de Deus farei com que os ingleses levantem o cerco, levarei o delfim a Reims para receber a cerimônia da sagração, e depois deixá-lo-ei regressar á cidade de Paris.

– Mas os livros eclesiásticos não preceituam o que dizes.

– Os livros de Deus valem muito mais do que os vossos.

Respondeu Joana d'Arc duma forma tão terminante, refletia-se no seu semblante uma confiança tão absoluta e ao mesmo tempo uma tão profunda sinceridade, que os doutores declararam que não tinham visto nela mais do que bondade, devoção, honradez, castidade, singeleza e humildade, acordando, por isso, em que fosse conduzida a Orleans, para que lá desse a divina prova que prometera.

E deu-a da maneira mais completa. Os ingleses levantaram o cerco de Orleans. O exército francês, capitaneado por Joana, apodera-se das praças fortes de Jargeau e Beaugenci e derrota completamente o inglês, enviado por Talbot, na célebre batalha de Patay. De vitória em vitória, levou Carlos VII até Reims, onde recebeu a sagração régia.

Mas agora os céticos, os que atribuem à sorte e ao acaso tudo quanto existe e sucede no universo, argumentarão a seu modo, dizendo:

Afinal, que demonstram todos esses exemplos? Precisamente o contrário da intenção que levou o autor a expô-los. Porque Lincoln, apesar de toda a sua força de vontade, morre assassinado no palco dum teatro. Napoleão, acaba os seus dias lamentavelmente vencido em Santa Helena. Bismark construiu o seu império a custa da sua vontade de ferro, para nos nossos dias o vermos desmoronar-se como um castelo de cartas. A própria Joana d'Arc, por último, foi prisioneira dos ingleses e condenada a morrer na fogueira, acusada de herege e relapsa. De que serviu a esses espíritos fortes a sua vontade indomável, se após uns efêmeros triunfos, caíram na definitiva derrota? Não se nota em tudo isto a veleidade do cego acaso? A verdadeira resposta a estas perguntas tem certa semelhança lógica com a que poderia dar-se a quem aduzisse como argumento contra a lei da gravidade a elevação dos aerostatos, fenômeno que mais a corrobora. Do mesmo modo, os elementos funestos, próprios da natureza humana, que intervieram nas ações desses históricos personagens, mudaram o triunfo em derrota, por eles terem ultrapassado os limites do seu destino.

O primeiro imperador dos franceses poderia ter consolidado o seu trono, se a ambição o não cegasse depois de ter cumprido o que Deus lhe determinou, que foi garantir uma nova situação à humanidade revolucionada. A obra de Bismark poderia ter sido duradoura, se se limitasse a confederar politicamente os países desagregados de raça alemã, sem se enfurecer com os vencidos. E Joana d'Arc não teria um fim tão lamentável, se, depois de realizada a missão de que a voz misteriosa a havia encarregado, não tivesse ficado indiferente aos seus incitamentos, quando a aconselhou a voltar para junto dos seus rebanhos. Por lhe ter desobedecido é que lhe sobreveio o desastre que a aniquilou, como por lhe haver obedecido de começo conquistara o êxito brilhante que a exaltara.

De tudo isto se infere uma lição sumamente proveitosa para quantos dão os primeiros passos no caminho da vida. Não há ninguém, por muito humilde que pareça a sua condição, que não tenha vindo ao mundo para realizar uma determinada obra no vastíssimo campo das atividades humanas. Evidentemente, se não trata da empresa grandiosa dum Lincoln, dum Edison, dum Napoleão ou duma Joana d'Arc mas o êxito não consiste na grandiosidade da obra, consiste na realização completa da obra que se empreendeu. Não serão as vozes misteriosas que a donzela de Orleans ouvia distintamente que virão aconselhar-nos a que saibamos cumprir até ao fim o nosso dever; mas, se não são essas vozes, são outras que bradam dentro de nós e que podem dar lugar a que a vocação se manifeste em forma dum irresistível desejo de utilizarmos a nossa atividade.

A voz interior que vibrava dentro de Sócrates e a que ele chamava o seu demônio – cuja acepção etimológica e verdadeira significação é a de divindade ou gênio, e não a significação vulgar de diabo – não era mais do que o impulso da vontade sem a influência estranha do conselho. A este respeito diz Montaigne:

Cada indivíduo sente em si uma inclinação súbita, veemente e imprevista. Eu próprio tive impulsos semelhantes aos de Sócrates, que me convenciam ou despersuadiam dum determinado assunto. Obedeci a esses impulsos em horas tão felizes e com tal proveito para mim, que parecia haver neles uma como que inspiração divina.

É necessário, porém, não confundir a inclinação passageira com a vocação deliberada, nem tampouco os intuitos egoístas com os propósitos honestos, e deste modo deve apreciar-se a vocação na pedra de toque da consciência moral.

Há profissões, como, por exemplo, as de prestamista, magarefe, jogador e usurário, para as quais nenhuma vontade bem equilibrada, nenhum caráter nobre pode sentir vocação. Tudo o que consiste em auferir lucros à custa da desgraça, do infortúnio, da miséria ou da morte será incompatível com o delicado temperamento emocional da pessoa educada, por muito poderoso que seja o engodo da ganância material, sempre em proporção geométrica com a perda moral.

Há tempos, recebi uma carta dum rapaz de qualidades apreciadas, com competência para desempenhar cargos de confiança e de responsabilidade, em que ele me dizia:

Por circunstâncias da vida, estou metido num negócio de tão ruim natureza que ameaça pôr em cheque o meu caráter.

O desgosto de me ver nele envolvido e a profunda aversão que colhi a tal negócio, sufoca-me de tal maneira o ambiente em que tenho de agir, que estou ansioso por me ver livre dele o mais rapidamente que possa, sem prejudicar interesses alheios. Embora ganhe dez mil dólares por ano de ordenado, sem outros proventos para sustentar a família, não posso resistir a este gênero de trabalho nem dedicar-me com vontade e entusiasmo a um negócio que consiste em comerciar com a credulidade das pessoas de fortuna modesta. Não há nada que eu mais deteste do que é a hipocrisia, e, contudo, vejo-me continuamente obrigado a ser hipócrita, porque a burla e as modalidades mais requintadas da velhacaria elegante são a alma do negócio.

Reconheço que tudo isto influi deploravelmente no meu caráter. Repugnam-me os processos que tenho empregado, e envergonho-me de que os meus amigos saibam o que eu faço. Compreendo que deveria mudar de profissão; mas deixei-me iludir pela perspectiva dum ordenado rendoso, e, como adquiri hábitos que me ficam caros, não tenho a força de vontade precisa para arranjar outro modo de vida.

Aqui manifesta-se a relação íntima entre a vontade bem educada e a profissão bem escolhida. Se durante a infância e a puberdade a educação fundamental fortaleceu as vossas boas qualidades e deduziu as nobres aptidões, a voz interior – a vocação - não vos aconselhará a abraçardes uma profissão condenável nem a aviltardes as profissões nobres e honradas, por muito remuneradora que seja a ruindade dos processos para vos colocardes.

Não podereis respirar num ambiente mefítico, porque a vossa vontade se terá acostumado a praticar o bem. Além disso, o funesto emprego da atividade poderá produzir de momento resultados invejáveis no conceito vulgar; mas tempo virá em que o diabo leve as riquezas mal adquiridas, ou em que os desgostos, as doenças, os infortúnios, as desavenças domésticas, a perversão dos filhos e o remorso da consciência quase sempre intranqüila, não deixem desfrutar em paz os bens materiais.

O adolescente, quase a entrar na virilidade, deve lembrar-se de que não nasceu para que os outros lhe prestem serviços, mas para servir o próximo, aplicando as suas faculdades na obra em que melhor possa produzir e não naquela para que, sem ter competência, se sinta atraído pelo maior lucro que lhe possa dar. Se a vocação é definida, confirmada pela consciência e de harmonia com a lei moral, triunfará aquele que lhe obedecer. Se o móbil da vocação é o egoísmo, e se o que o possuir não obedece aos ensinamentos que Deus lhe marcou na própria personalidade, então será certo o inêxito. O triunfo não consiste no interesse material.

Podeis ter muito dinheiro, pode o vosso ideal resumir-se em acumulardes riquezas, com os olhos cobiçosos de quem só ouro vê adiante de si; mas, se acumulardes esse ouro à custa do bem-estar dos outros, não vos ufaneis pelo êxito alcançado, por que será ilusório todo esse mar de rosas, e a vossa decadência será inevitável. Amontoar dinheiro à força de praticar velhacarias é sempre um mau negócio, por muita habilidade que haja em as encobrir sob a aparência agradável do respeito e sinceridade para com todos.

Procedei sempre de harmonia com a voz da consciência que, nas circunstâncias críticas da vida, ressoará aos vossos ouvidos espirituais como ressoaram as palavras que compeliram Joana d’Arc ao cumprimento da sua missão. Obedecei a essa voz interior, embora vos pareça que da obediência vos tenha de sobrevir algum prejuízo material. Se lhe obedecerdes, toda a lei, toda a ciência, tudo quanto possa agir na natureza virá em vosso auxílio, porque a conquista da harmonia e da justiça é o plano do universo, a verdadeira natureza das coisas. Se não lhe obedecerdes, todas as energias que na natureza existem se congregarão para vos vencer.

Os rapazes que erraram a vocação e irrefletidamente seguiram um modo de vida qualquer, que lhes desagrada, por não corresponder às suas aptidões ou porque lhes repugne à sua consciência, acharão a princípio muito difícil, senão impossível, mudar de profissão como desejariam; mas a única circunstância de abandonarem um emprego, um ofício ou outra profissão de natureza ilícita, sem se preocuparem com as conseqüências que deste fato derivam, aumentará o seu valor pessoal, despertará neles maior confiança, e o prestígio derivado do sentimento do triunfo sobre o egoísmo dar-lhes há o aspecto de vencedores, em vez de parecerem vencidos. Ninguém perde nada em ser justo, quando, com decisão, firmeza e energia, levanta o pendão da justiça.

Numa das duas cidades limítrofes que na Catalunha rivalizam com a atividade fabril de Manchester, vivia um casal que tirava fartos lucros com o ofício pouco honesto de vender carnes brancas no mercado. Diariamente degolava, pois seria impróprio dizer que sacrificava, dúzias de aves de capoeira, e os dois cônjuges iam prosperando em tão cruenta indústria, até que um dia, tendo aprendido a conhecer o valor inestimável da vida, convenceram-se de que andavam por mau caminho para conquistarem o seu aperfeiçoamento espiritual. Resolveram imediatamente abandonar aquele ofício, apesar do abundante lucro material que lhes proporcionava, e esta firme resolução deu-lhes coragem para empregarem a sua atividade noutros misteres, inteiramente de harmonia com a renovação que os ensinamentos colhidos haviam operado na sua consciência.

A vocação é uma bússola cuja agulha indica a justiça com mais precisão do que a agulha do mareante indica a estrela polar. A Providência deu-vos esta bússola, quando pôs a vossa alma a bordo do navio do vosso corpo, lançado à água do mar da vida. É o único guia que vos conduzirá com segurança ao porto do triunfo.

Basta um leve descuido para desviar a bússola da sua posição normal. Não consintais que a ambição ou o utilitarismo desviem a bússola do sentido da vossa consciência, nem reprimam os cominatórios impulsos da vossa vocação.

Mas, para satisfazerdes à vossa vocação, é necessário que vos coloqueis num ambiente favorável, sem que isto signifique conformidade com a teoria do meio ambiente, que supõe a vontade escrava das circunstâncias. Poderá assim suceder com a maioria das pessoas; mas a experiência mostra-nos exemplos de homens que, nascidos e criados num ambiente inteiramente hostil à sua vocação natural, acabaram por se libertar dele e, até no meio das circunstâncias mais adversas, se rodearam dum ambiente especial completamente favorável à sua vocação.

Que diríamos do indivíduo que, tendo vocação para jurisconsulto, se cercasse dum ambiente médico e passasse o tempo lendo obras de medicina? Chegaria a ser legista eminente, seguindo tal procedimento? É claro que não. Há-de, pelo contrário, envolver-se numa atmosfera de jurisprudência e estudar as obras dos insignes jurisconsultos e legisladores de todas as épocas, até harmonizar todos os seus sentidos com o sentido jurídico.

O mesmo se pode dizer a respeito de qualquer outra vocação. É necessário concentrarmos nela todas as energias da nossa alma, a fim de que seja o principal objetivo da nossa vida, sem, contudo, chegarmos ao extremo vicioso de nos entrincheirarmos nessa vocação, como numa torre blindada que nos separe da harmonia social.

O pensamento é uma energia tão poderosa como a eletricidade, e a constante afirmação das nossas faculdades imanentes de querer saber e poder transformarão o ambiente adverso num ambiente favorável.

4. Fatalismo, determinismo e livre-arbítrio

Se tudo quanto tem de acontecer ao homem já se acha previamente escrito, como crêem os muçulmanos, de que serviria a vontade? Que fundamento teria a doutrina do livre-arbítrio? Seríamos uns autômatos sujeitos à determinação dum destino fatal de causa desconhecida, superior e anterior a nós mesmos, e seríamos impotentes para alterar as condições estabelecidas no nosso ser, sem outro motivo além do capricho de quem nos deu uma vida que não pedimos, e nos colocou num mundo em que todos entramos chorando e do qual poucos saem rindo.

Mas embora a teoria fatalista predomine no islamismo com aparências de dogma, também no mundo cristão tem milhões de adeptos inconscientes, que receberam muitos ensinamentos e não os assimilaram, e ouviram muitas prédicas a que não prestaram atenção e muito menos compreenderam. Apesar de tudo isto, porém, têm a firme crença naquilo a que ingenuamente chamam a influência do planeta, ou seja a sua boa ou má estrela, que é a fatal sujeição do homem ao que o destino lhe determinou sem que a mais enérgica vontade consiga evitar o seu domínio.

Superstições do vulgo! – exclamarão os filósofos enciclopédicos. E, contudo, foi esta a crença dominante entre os grandes da corte, os príncipes e não poucos luminares da Idade Média, dos quais podemos citar Alberto, o Magno.

Se o fatalismo fosse, como supõem os seus adeptos, uma deliberada predestinação das ações humanas, de maneira a neutralizar o esforço da vontade que quisesse opor-se ao desenrolar dos acontecimentos tão ilogicamente preestabelecidos, a liberdade e a responsabilidade seriam palavras vãs; os códigos, as leis e os tribunais de justiça para nada serviam, porque na vida individual e coletiva só imperavam as leis do destino, fatalmente expressas nesta sentença que muitos não compreendem: nem uma só folha de árvore se agita sem a vontade de Deus.

Há, contudo, algo de verdade no fatalismo, embora não seja no sentido de inevitável, como pretende o vulgo. O destino, o fado, o karma, o planeta, o kismet, ou como se lhe queira chamar, é, sem dúvida, o conjunto de contingências, de circunstâncias, de obstáculos e de facilidades que hão-de constituir o ambiente do indivíduo durante a vida terrena, que tem por limites o berço e o túmulo.

Como, quando e porquê estabelece o destino tanta diversidade de condições entre os indivíduos, favoráveis nuns, adversos noutros, felizes em muito poucos, nestes angustiosos, naqueles terríveis, e entremeados de dor e de prazer em todos só pode explicar-se racionalmente, admitindo a doutrina da evolução da espírito humano, duma maneira tão ampla como a ciência hoje admite a evolução da matéria e da forma.

Admitindo nós a evolução do espírito, compreenderemos facilmente que se opere o desenvolvimento gradual das suas potências volitiva, intelectiva e emotiva, ou sejam a vontade, a inteligência e a sensibilidade. Se não admitíssemos essa evolução, todo o ser humano possuiria no mesmo grau as mesmas características de vontade, inteligência e sensibilidade, a não ser que o Criador tivesse procedido duma maneira parcial e, portanto, com manifesta injustiça na criação das almas.

Desde o momento em que uns homens têm mais força de vontade, mais inteligência e mais sensibilidade do que outros – e não acusando este fato pequenas diferenças, mas diferenças enormíssimas como a que separa um zulu de Newton, e um antropófago do Kamerun de S. Francisco de Assisocorre perguntar: Não saíram igualmente do mesmo seio de Deus estas quatro almas, estes quatro espíritos livres e responsáveis? Então em que consiste tão profunda diferença na sua maneira de agir? Por que é que a inteligência de milhões de selvagens é tão obtusa como a dum pingüim, e a de Newton tão perspicaz que penetra o firmamento e descobre o eixo dos astros? Por que é que a sensibilidade do canibal está tão embotada que não sente as palpitações do seu próprio coração no coração do seu semelhante? E por que é que a sensibilidade do Serafim de Assis é tão delicada que eleva o seu amor para além do reino dos homens e o esparge também sobre todos os seres vivos, reconhecendo a unidade da vida na diversidade das formas?

Quem meditar sobre estes fenômenos da psicologia humana, sem preconceitos nem fanatismos obcecantes, não poderá deixar de admitir a evolução do espírito, se não tiver outro arrazoado com que satisfatoriamente possa dar uma solução ao problema da vida.

Admitida a evolução do espírito e o gradual desenvolvimento das suas potências, facilmente se explica que, sendo a vontade uma delas, necessita, como toda a potência, duma resistência para se fortalecer e vigorizar.

Esta resistência é precisamente o conjunto de revezes, circunstâncias, ocasiões, obstáculos, facilidades, venturas e infortúnios que, segundo o seu grau de evolução, a lei da vida opõe à alma humana durante a sua permanência neste mundo, a fim de que a sua vontade empregue todo o esforço em ir de encontro ao que é adverso e em se aproveitar do que é favorável, para aumentar a sua energia, depois de vencida a resistência.

É possível que aqueles que façam dum argueiro um cavaleiro exclamem indignados: “Heresia! Isso é uma heresia! Cheira a neo-platonismo ou coisa parecida”.

Mas Calderon, que é um fértil e esclarecido engenho, a quem ninguém poderá titular de heterodoxo, estuda na sua obra magistral A vida é um sonho, sem pretensões a drama de tese, o problema do fatalismo nas suas relações com o livre-arbítrio, e resolve-o com uma tal elevação de conceito e uma tão admirável intuição de verdade, que excede quantos pensadores, filósofos, psicólogos e teólogos trataram destas árduas questões metafísicas. O seu critério é idêntico ao que atualmente sustentam os que vêem com os olhos do espírito, como o profeta Eliseu.

A vida é um sonho representou-se, sem reparo da crítica, na época em que teve maior preponderância a Inquisição espanhola, que não permitia sequer a menor sombra de heterodoxia. Recordemos o argumento:

O rei Basílio da Polônia, com mais tendência para as matemáticas e para a astrologia do que para a política, teve de sua esposa Clorilene um filho, a cujo nascimento presidiu o terror dos elementos e dos fenômenos celestes. A mãe repetidas vezes sonhou, durante o período da gravidez, que um monstro com a forma humana havia de romper-lhe as entranhas impetuosamente e lhe produziria a morte. Nasceu num dia de eclipse total do sol, acompanhado de abalos sísmicos e violentas saraivadas que arrasaram as terras e tingiram de vermelho as águas dos rios. A mãe morreu a seguir ao parto, em cumprimento do que havia sonhado, apesar de que, nesse tempo, como agora não se deve acreditar em sonhos, porque é contrário ao que diz o primeiro mandamento.

O rei Basílio deduziu dos seus conhecimentos astrológicos o horóscopo de seu filho Segismundo, e por ele viu que havia de ser o homem mais arrojado, o príncipe mais cruel e o monarca mais ímpio, que devia arruinar o reino, obrigando o seu próprio pai a cair-lhe submisso aos pés.

Resolveu o rei Basílio opor-se ao vaticínio dos fados, sobrepondo a sua ciência aos decretos da sorte, e neste intuito mandou apregoar que o infante havia nascido morto, encerrando-o, porém, sob a guarda do alcaide Clotaldo, único que sabia do segredo, numa torre edificada entre rochedos e penhascos alcantilados, de que ninguém se podia aproximar, sob pena de morte. Ali cresceu Segismundo, sem ver outro rosto humano além do seu carcereiro Clotaldo, até que o rei, arrependido de ter tão facilmente acreditado no horóscopo, declarou diante da corte que bem poderia Segismundo vencer com o seu arbítrio a influência do destino, “porque a sorte mais esquiva, a influência mais poderosa, o planeta mais ímpio, só vergam a vontade, mas não a torcem”.

Calderon, com estas palavras que ficam entre aspas, postas na boca do rei Basílio, mostra-se partidário da ortodoxa doutrina do livre-arbítrio, oposto ao fatalismo, dando a entender que a vontade, quando quer, e o entendimento, quando sabe, podem dominar o destino em vez de se submeterem a ele, embora, como veremos mais adiante, se exijam para isso determinadas condições que nem sempre dependem da sabedoria e da vontade. Mas continuemos a relatar o argumento de A vida é um sonho:

Para experimentar, manda Basílio retirar o filho da torre enquanto dorme, sob a ação dum narcótico, e, ao acordar, Segismundo vê-se cercado pelos súditos e aclamado como príncipe herdeiro e governador geral do reino, por determinação de seu pai. O príncipe, porém, começa a revelar o seu caráter violentíssimo, como vaticinara o horóscopo, e o rei, convencido de que o filho carecia de indispensável força de vontade para reprimir o seu gênio e vencer o destino, torna a mergulhá-lo num sono profundo pela ação do narcótico, ministrado por Clotaldo, e é novamente encerrado na torre. Quando acorda, julga que foi um sonho tudo quanto se passou.

Tranqüilizada a consciência do pai por ter posto à prova a vontade do filho, pois desejava ver se ele, querendo, podia ser superior ao destino, nomeia herdeiro da coroa seu sobrinho Astolfo, duque de Moscóvia. O povo, porém, e parte do exército não querem Astolfo para rei por ser um estrangeiro, e, como já é notória a existência do herdeiro legítimo e toda a Polônia está inteirada do que ocorreu, estala uma revolta a favor de Segismundo e contra o rei Basílio e seu sobrinho Astolfo. Os revoltosos, arrancando Segismundo do cárcere, levam-no em triunfo, colocam-no à frente a comandá-los e, numa batalha campal, são vencidas as tropas leais que se convertem em traidoras do rei Basílio e de Astolfo, os quais se vão refugiar num monte. O rei, sob a proteção de Astolfo, pode, se quiser, pôr-se em fuga, mas prefere entregar-se ao filho, a cujos pés se roja, impelido pela força do destino. Segismundo, porém, tomou como lição a breve experiência que lhe pareceu um sonho, e consegue vencer o mau fado, triunfando de si próprio. Levanta do chão o pai, que se conservava de rojo, e oferece-lhe a cabeça para que ele se vingue. O rei, comovido por tão nobre ação, declara-o vencedor, digno dos louros e da palma da vitória.

Em diferentes passagens deste drama incomparável, dá Calderon a entender, pela boca dos seus personagens, que a astrologia judiciária não é uma ciência vã nem uma ridícula superstição como hoje afirmam os astrônomos que, por meio do telescópio e da fotografia, apenas observam movimentos, medem distâncias, calculam grandezas aparentes, anunciam previamente os eclipses e são, por assim dizer, os engenheiros da mecânica celeste, sem que a sua mente, só habituada a coisas concretas, consiga descobrir os segredos do dinamismo espiritual do universo.

Escolhamos as passagens em que Calderon, e com ele a censura eclesiástica do seu tempo, dão caráter de ciência verídica à astrologia judiciária. Diz assim o rei Basílio:

Esses círculos de neve, essas cúpulas de vidro, que o sol ilumina com os seus raios e a lua recorta nas suas fases; esses mundos de diamantes, esses globos cristalinos, que as estrelas esmaltam e que predominam sobre o destino dos homens, são o maior objeto de estudo da minha vida, são os livros onde, em papel de diamantes e em cadernos de safira, o céu escreve com linhas de ouro, em caracteres distintos, todos os fatos da nossa existência, ora adversos, ora favoráveis.

Isto não é mais nem menos do que a doutrina orientalista, segundo a qual todos os acontecimentos passados e futuros estão gravados na matéria cerúlea, a que em sânscrito se chama akasa, e com mais nitidez de estereotipagem do que a película que se projeta no écran. Todavia, os acontecimentos futuros não se acham caprichosamente preestabelecidos; são a conseqüência natural dos fatos passados, como o efeito é uma conseqüência da causa e a reação é o resultado da ação.

Pois muito bem. A vontade humana é uma força, cuja ação reside no querer, e, como tal, pode estabelecer livremente outras causas, cujos efeitos sejam contrários aos que resultam de causas anteriores, que tiveram por efeito os sucessos vaticinados pelo horóscopo, mas não fatalistamente.

Noutra passagem diz Clarim, mortalmente ferido:

Sou um desgraçado que, querendo livrar-me da morte, a fui procurar. Quis fugir dela e encontrei-a no meu caminho, pois não há sítio, por muito recôndito, que a morte não conheça; donde claramente se conclui que quanto mais se quer fugir às conseqüências, mais depressa elas se nos deparam. Por isso, voltai, voltai imediatamente à luta sangrenta, que entre as armas e o fogo há maior segurança do que no monte mais resguardado. Para a força do destino e para as inclemências da sorte é que não há lugar seguro. E assim, embora penseis em livrar-vos da morte, fugindo, da parte de Deus está em vos entregar à morte, querendo.

A isto responde o rei Basílio:

Inutilmente tenta o homem lutar contra uma força e uma causa superiores aos seus esforços.

Ambas as passagens parecem coonestar a doutrina do fatalismo; mas, analisado convenientemente o pensamento de ambas, verifica-se que não é porque Deus tenha decretado a seu capricho a morte dos que, fugindo a ela, tenham de morrer à força, mas porque a vontade do sentenciado não foi bastante enérgica para estabelecer uma nova causa contrária e maior do que aquela que, estabelecida anteriormente por si próprio, havia de ter como resultado a sua morte.

Idêntico raciocínio se pode aplicar às palavras do rei, pois, se ele diz que são inúteis as tentativas do homem em lutar contra uma força e uma causa superiores aos seus esforços, é evidente que triunfaria do destino, se, com a sua vontade, com o seu firme querer e com a sua prudente sabedoria, orientasse esses esforços, de maneira que a força e a causa que se lhe opõem, fossem menores do que a força da sua vontade e a nova causa por esta força restabelecida.

Assim o confirma prudentemente Clotaldo, quando diz ao rei:

Embora o destino, senhor, conheça todos os caminhos e descubra aqueles que deseja atingir na maior profundidade das fragas, não é cristão considerar a sua fúria como uma coisa muito natural. Não é, senhor, que o homem prudente triunfa do destino; e, se não estais precavido contra a dor e o infortúnio, procurai o meio de o conseguirdes.

Quer dizer: estabelecei uma causa favorável, empregai os meios mais sensatos para vos precaverdes, para vos livrardes da dor e do infortúnio com que vos ameaça o destino, que haveis criado com o vosso anterior procedimento.

Segismundo também corrobora a veracidade dos horóscopos, ou seja do destino com que nasce o indivíduo. Mas diz que quem quiser tornar próspero um destino adverso, o poderá fazer, se for prudente na sua conduta; se, porém, proceder erradamente, só tornará mais calamitoso o seu destino. Diz assim:

O que está determinado pelo céu e que Deus escreveu no azul do firmamento, em sinais misteriosos e admiráveis, a respeito da sorte dos mortais, é uma coisa que nunca falha, nunca mente.

Também isto parece ser uma defesa do fatalismo; mas afirmar que o que está determinado pelo céu nunca mente, não quer dizer que necessariamente tenha de suceder, mas sim que é infalível o que Deus escreveu, como resultado das ações anteriores daquele que tem o seu destino marcado. E assim o horóscopo, quando empregado utilmente, como lição preventiva que nos dá a certeza de não falhar nem mentir, pode servir ao homem para orientar a sua conduta, de modo que o arbítrio predomine sobre o destino.

Mas, se o horóscopo é profanado em, mãos de charlatões e usurários, que o vendem por determinado preço, e apenas serve como motivo de curiosidade ou de receio vão a quem o compra, então não passa a astrologia de ser uma superstição tão ridícula como é a dos espiritistas, das cartomantes, das sonâmbulas e adivinhadeiras, que ganham a sua vida a iludir os papalvos.

O horóscopo deve ser calculado e delineado por um profundo conhecedor da dinâmica celeste, do grandioso pentagrama da harmonia das esferas, da fraternal solidariedade dos mundos, sóis e sistemas dentro da variada unidade dos Cosmos. E quem receber de tão autêntica procedência o que bem poderia chamar-se a estatística dos seus antecedentes penais, tem de aproveitá-la como um verdadeiro aviso do céu para normalizar a sua conduta e governar a sua vida, de modo que, quando sobrevier a vicissitude, a contingência, a ocasião ou a circunstância vaticinada no horóscopo, possa resistir-lhe e vencê-la, se é adversa, ou aumentar a sua eficácia, se é favorável.

Estas razões coincidem exatamente com as que Calderon põe nos lábios do príncipe Segismundo, quando, depois de dizer que o horóscopo nunca falha nem mente, acrescenta que quem mente e é falível é o que, não sabendo aplicá-lo bem nem aproveitar-lhe as lições, pretende evitar malevolamente os seus vaticínios.

O rei Basílio atemorizou-se de ver o horóscopo do filho, e o temor levou-o pelo caminho oposto ao que devia seguir, pois, com o desejo de o livrar da cólera, converteu-o numa fera humana; de maneira que a descendência que ele tivesse, tornaria ferozes os costumes do reino, embora ele, príncipe, fosse de origem dócil e humilde. Diz Segismundo:

O destino não se vence com vinganças e injustiças, porque isto torna-o mais adverso. Quem o quiser vencer, tem de usar de prudência e comedimento. O que prevê o perigo, não se livra dele antes dele sobrevir; e, embora pense em se livrar dele, só na ocasião em que ele surge é que se resolve a evitá-lo, porque a ocasião é coisa que se não pode impedir.

Nesta passagem está admiravelmente enunciada a lei universal da casualidade ou de causa e efeito, de ação e reação, em que a vontade humana é já de si uma força componente do complicado sistema do universo moral, mas capaz de coincidir com a resultante em grandeza, intensidade, direção e sentido.

O fatalismo tem razão quanto ao fato de não haver um único meio de impedir que a ocasião sobrevenha, isto é, a vicissitude, a contingência ou a circunstância que há-de servir de resistência à potência da nossa vontade. Portanto, o que é preciso é fortalecer a vontade por meio da educação, a fim de querermos, sabermos e podermos resistir à adversidade e vencê-la, quando ela sobrevier.

O rei Basílio não cai rendido e humilhado aos pés do filho, porque assim tivesse de acontecer fatalmente por sentença do céu, mas porque “errou na maneira de o vencer”.

Há outra espécie de fatalismo, mais lógico na aparência, segundo o qual a vontade humana, por mais que queira, não poderá alterar em coisa alguma o plano de Deus, se tudo quanto sucedeu, sucede e há-de suceder foi por Ele determinado desde todo o princípio.

Todavia, se refletirmos sobre este ponto, notaremos que a vontade divina não se opõe ao arbítrio da vontade humana, cuja ação é livre dentro dos limites e nas condições do mundo de que dispõe para campo de experiência; mas, como Deus é onisciente, onipotente e está em toda a parte, quer em essência, quer em presença ou como potência, sabe o uso que cada um tem de fazer do seu arbítrio, sem que por este motivo violente a vontade humana.

O determinismo, revestido de ostentosa roupagem científica, não considera o homem sujeito a um destino fatal e inevitável; mas, no fundo, esta doutrina não é mais do que uma modalidade atenuada do fatalismo, pois baseia-se no fato de em tudo haver um motivo determinante, por não existir efeito sem causa, e, conseqüentemente, tudo estar determinado pelas leis imutáveis que regem o universo, contra as quais é impotente a vontade humana.

Segundo os deterministas, todas as nossas ações, boas ou más, se acham determinadas por um motivo, e, quando um homem se vê impelido para uma ação por vários motivos opostos, cede ao mais imperioso, como se, no nosso íntimo, houvesse um sistema de forças psíquicas, cuja resultante determinasse essa ação. Deste modo, segundo diz Leibniz, seria a alma humana um autômato espiritual, tendo por molas os motivos e por pesos e contrapesos os pensamentos e emoções. Se não admitimos a evolução do espírito, ou seja da consciência, em correlação com a evolução da vida e da forma, já admitida pelos cientistas, ficam tendo razão os fatalistas e os deterministas, cujas doutrinas são como os dois lados dum ângulo unidos por um vértice comum. Mas, se admitimos a evolução do espírito humano e vemos no universo o seu campo de evolução, ficam harmonicamente conciliadas as três doutrinas do fatalismo, do determinismo e do livre-arbítrio, as quais, sem o reconhecimento da evolução espiritual, não é possível conciliar. Igualmente se não pode compreender a razão dos inegáveis fenômenos psicológicos em que o fatalismo, umas vezes, e, outras, o determinismo, predominam evidentemente sobre o livre-arbítrio.

Admitida a evolução espiritual, infere-se dela que a vontade não está igualmente desenvolvida em todos os indivíduos, e é mais ou menos fraca ou mais ou menos enérgica, segundo o grau de evolução de cada um. Os que, todavia, tenham uma vontade débil como os indolentes, não poderão vencer o seu destino, isto é, os desagradáveis efeitos das causas estabelecidas pelas suas frouxas ações, porque a força da sua vontade será nula ou insuficiente para estabelecer outra causa que produz efeitos iguais e contrários aos que sobre eles estão iminentes, como a espada de Dâmocles. O indolente não tem outro remédio senão sofrer os rigores da sorte, porque a sua vontade é hesitante. Está sujeito ao fatalismo. A resistência é muitíssimo maior do que a potência.

A vontade dos que estão no ponto médio da evolução espiritual parece-se com uma balança sempre a oscilar entre o bem e o mal, entre a virtude e o vício, movida pelo incessante desequilíbrio dos pesos (emoções, desejos, pensamentos, tentações, etc.), cujo dinamismo varia, a cada passo, dum para outro prato. Neste caso, a potência é umas vezes maior, outras menor e outras igual à resistência. É o período da luta, do combate entre os motivos determinantes e a vontade que se determina. Freqüentemente, vencerá o motivo dimanante da natureza inferior, sem que o arbítrio intervenha; mas, de vez em quando, obterá a vontade assinalados triunfos que a robusteçam e predisponham para o exercício pleno do seu livre-arbítrio.

Na etapa superior de evolução, tem o homem completamente desenvolvidas todas as faculdades do seu espírito. A vontade e a sabedoria chegam ao ponto culminante da perfeição. O homem seguiu o conselho sublime com que Cristo termina o Sermão da Montanha: “Sede, pois, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celestial”.

Se o espírito não fosse susceptível de evolução, isto é, do desenvolvimento gradual das suas inerentes e divinas potências, de nada serviria o conselho de Cristo; mas as palavras do Mestre da Compaixão e da Sabedoria são a mais concludente prova da perfectibilidade do nosso ser. Quando o homem é perfeito como o Pai que está nos céus, goza então da liberdade suprema e absoluta, porque fica livre das paixões. Soube dominar a sua natureza inferior. É senhor de si próprio. Tem a perfeita autonomia da sua vontade. Assim se prova que o querer é poder.

5. Auto-educação

João Wanamaker foi urna vez convidado a tomar parte numa expedição organizada para tirar do fundo do mar os tesouros submergidos juntamente com as fragatas espanholas, metidas a pique pelos navios ingleses, quando regressavam da América, carregadas de ouro. O futuro multimilionário de Filadélfia respondeu:

Com muito prazer tomaria parte na vossa expedição, se não me seduzisse outra muito melhor e que, com menos perigo, aqui mesmo posso empreender. Sob os vossos pés jazem tesouros incalculáveis de que vos podeis apossar, estudando-vos e conhecendo-vos a vós mesmos. Acreditai no que vos digo. Não vos contenteis em extrair muito carvão das minas, nem em construir poderosas locomotivas, nem em fabricar formosas tapeçarias. Por entre o percutir das picaretas, o bater dos martelos, o efervescer das caldeiras, o revoltear das rodas e o matraquear dos teares, pensai no imortal mecanismo que Deus vos confiou e educai a mente, a vontade e o sentimento, para que prestem o maior e o mais nobre serviço que puder ser.

O homem inculto está sempre em manifesta desvantagem. Por muita inteligência que possua, não se lembra de que pode ser ignorante, pois não basta possuir dotes naturais. É preciso valorizá-los e torná-los eficientes, por meio da disciplina mental.

Muitos moços desprezam as pequenas ocasiões que se lhes proporcionam para se educarem a si próprios, porque esperam outras mais favoráveis. Deixam passar os anos sem cuidarem do seu aperfeiçoamento, até que a experiência da vida vem provar-lhes que ignoram o que deviam saber.

Aqueles mesmos que receberam a educação basilar nas escolas primárias hão-de concordar que não lhes é suficiente essa educação que receberam, quase sempre incompleta, limitada ou deficiente. O período da educação é indefinido, porque a vida oferece-nos sempre ocasiões de cultivarmos em maior grau a nossa inteligência, robustecer a nossa vontade e orientar melhor a nossa conduta.

A cada passo, vemos criaturas na plenitude da sua existência, que encontram grandes dificuldades no seu caminho por não terem educadas as suas faculdades naturais. Nunca é tarde demais para se praticar o bem e muito menos para o aperfeiçoamento individual. Em poucos anos, têm aumentado extraordinariamente os meios de cultura, e as escolas, bibliotecas, jornais, revistas, conferências e academias proporcionam ocasiões favoráveis para trabalhos de auto-educação a todos os que queiram tirar aos prazeres frívolos o tempo necessário para estudarem.

O primeiro passo que tendes a dar consiste em tomardes a firme resolução de não quererdes viver humilhados pela ignorância nem embaraçados com obstáculos, que na vossa mão está remover por todos os modos. Vereis então como tudo se vos apresenta debaixo dum novo aspecto, porque outra é a vossa atitude para com tudo o que vos cerca. Há-de surpreender-vos a facilidade com que podereis aumentar os vossos conhecimentos, uma vez que positivamente vos determineis a fazê-lo. Tomai essa resolução com a mesma firmeza com que vos resolveríeis a ganhar muitíssimo dinheiro.

Antigamente dizia-se:  “Fortuna te dê Deus, filho, que o saber pouco te vale.” E havia quem alterasse ironicamente o sentido do adágio com a interposição duma vírgula, dizendo:  “Fortuna te dê Deus, filho, que o saber pouco, te vale”.

Mas isto era e continua a ser verdade, simplesmente quando se confunde o saber com o verbalismo, quando se sabem muitos livros e se entende pouco do que eles dizem, e quando esse mesmo pouco que se sabe não tem aplicação prática na profissão que se exerce ou no ofício que se aprendeu. Se, porém, os conhecimentos são úteis e adaptáveis ao nosso mister, então o saber equivale a poder, como a este equivale o querer.

O homem foi criado para atingir, por meio da evolução, o ponto culminante do seu aperfeiçoamento individual. É este o objetivo da sua existência. Se não fosse possível esta evolução para o aperfeiçoamento, não nos teria aconselhado o divino Mestre, dizendo-nos que fôssemos perfeitos como perfeito é o nosso Pai que está nos céus. Este conselho admonitório demonstra a possibilidade de nos aperfeiçoarmos e, portanto a conveniência e também a necessidade da auto-educação.

Mui louvável é o desejo de ampliarmos um pouco mais os nossos conhecimentos, de fazermos recuar dia a dia o horizonte da ignorância, de sermos hoje melhores do que ontem e amanhã melhores do que hoje. A educação não termina com o período escolar. Os homens mais bem educados são os que estão sempre a aprender e a assimilar conhecimentos novos, que vão buscar onde seja possível e em qualquer ocasião favorável.

O mundo é uma vasta universidade. Desde o berço ao túmulo estamos sempre a aprender, como se fôssemos eternas crianças a estudarem na escola de Deus, onde todas as coisas nos ministram uma lição especial e nos revelam os seus segredos. A facilidade em aprender essas lições e descobrir esses segredos depende da perspicácia em examinar tudo o que nos cerca e da sagacidade em compreender aquilo que vemos.

Poucos são os que olham para as coisas com olhos de ver. Muitos vão por esse mundo afora, olhando superficialmente para o que os rodeia, e as suas percepções visuais são tão débeis e confusas que deixam escapar pormenores de importância capital. E contudo, a vista é um sentido que educa bastante. O cérebro está encerrado no crânio e nunca se revela ao mundo exterior. Depende dos seus cinco servidores – os sentidos que lhe proporcionam os materiais da sabedoria, e grande parte destes materiais chegam até ele por intermédio da vista. Quem aprende a arte de examinar as coisas com atenção, é como se as visse com o cérebro.

Um amigo meu ia um dia a passar por uma rua, quando viu junto ao passeio uma espécie de prego, de cerca de oito centímetros de comprido, que supôs tivesse sido perdido por algum operário. Movido pela superstição que considera feliz o que achar um prego ou uma ferradura, baixou-se para o apanhar, reparando então, muito admirado, que o que lhe parecia um prego era uma preciosa lapiseira de prata oxidada.

Com certeza, passaram por aquele sítio muitos indivíduos que viram a lapiseira, mas, porque não a examinaram convenientemente, julgaram que era um prego sem valor apreciável.

O mesmo costuma acontecer a muitas pessoas que não vêem o que outras mais atentas e curiosas descobrem entre a infinidade de objetos que as rodeiam. A atenção demorada é o talento dos inventores, como a paciência infinita é o segredo do gênio,

Quantos não têm ido a Roma e não viram o que nela existe! Quantos astrônomos não têm observado o céu com o telescópio que amplia a sua vista normal e, contudo, poucos são os que descobrem novos astros! E, afinal, esses astros estavam lá há milhões de séculos e não se escondiam, por timidez, da vista de ninguém. Houve muitos que examinaram e não viram um só desses astros; mas houve apenas um indivíduo que conseguiu ver o que não viram centenas de olhos.

Como todos os sentidos, o da vista, é susceptível de ser educado, e, entre os vários processos adotados para a educação dos sentidos, não deixa de ser engenhoso o que emprega outro amigo meu com um filho que tem, o qual, ao mesmo tempo que exercita a vista, educa o espírito de observação. Leva-o a passear por uma rua das mais concorridas, e quando regressa a casa, pergunta-lhe o que ele viu e observou. Acompanha-o aos museus, às exposições e aos espetáculos públicos, com a obrigação de, na volta, lhe descrever os objetos que mais lhe prenderam a atenção. Garante esse meu amigo que estes exercícios têm inveterado no filho o hábito de ver as coisas, em vez de se limitar a olhar para elas.

Se formos pelo mundo além, como um ponto de interrogação, sempre vigilantes, sempre atentos a tudo quanto se passa, adquiriremos conhecimentos muito mais valiosos do que as riquezas materiais.

Ruskin conseguiu canalizar grande cópia de idéias, por meio do estudo da natureza, observando as aves, os insetos, os quadrúpedes, as árvores, os rios, as montanhas, o pôr do sol, os panoramas e as paisagens. Não houve nada que, para o seu espírito investigador, lhe não ministrasse uma lição e lhe não revelasse um segredo.

O hábito de ouvir atentamente quem sabe mais do que nós, vale-nos de muito, pois quanto mais fugirmos do convívio com os nossos semelhantes, mais tímidos e mais sem valor nos mostramos. Quem se relacionar com as pessoas estranhas e tiver espírito investigador, cria uma grande soma de forças mentais. Na vida social, todos nós estabelecemos intercâmbio de idéias. Hoje em dia, quem desejar progredir nos seus negócios, tem de estar em contato com o mundo comercial, para sentir as palpitações da sua vida ativa; de contrário, não obterá os elementos necessários para triunfar.

Um único talento que eficazmente se aplique à sua modalidade prática vale mais do que dez talentos incultos e agrilhoados pela ignorância. A educação intelectual para nada serve, se o indivíduo não assimila os conhecimentos que hão-de preparar a integração do seu corpo mental, como os alimentos do regime dietético se assimilam e convertem em parte integrante do seu corpo físico. Os conhecimentos sem aplicação prática são tão inúteis como o vapor da água que se escapa pela chaminé das locomotivas.

A auto-educação, porém, não pode ser encarada dum modo tão absoluto que dispense qualquer auxílio. Há nela este inconveniente: se o indivíduo que deseja fazer auto-educação é pouco clarividente, apesar de bem intencionado, e não sabe como há-de conseguir o que deseja, arrisca-se a tomar por caminhos errados ou a seguir a linha de maior resistência, em que perde tempo e esforços, que seriam mais bem aproveitados, se tivesse melhor orientação.

Para evitar este contra, tem de pedir a alguém que o aconselhe e o oriente, alguém que conheça a sua vocação e necessidades, e seja por isso capaz de lhe traçar um programa dos estudos mais próprios para vencer a técnica da sua profissão. É indubitável que o adágio: o saber não ocupa lugar, tem um fundo de verdade; mas, por outro lado, consome tempo e trabalho. Portanto, quem quiser poder distinguir-se na atividade profissional para que tenha vocação, não deve perder tempo e esforço em adquirir conhecimentos que rigorosamente lhe não serviam para o fim que tem em vista.

Dirá talvez alguém que isto é o mesmo que fomentar o chamado utilitarismo, contra a cultura integral nobilitadora de todas as faculdades; mas convém notar que o nosso conselho só se entende com os que chegaram, pouco menos do que analfabetos, a meio da sua existência, e ainda assim aconselhamo-los apenas a que atendam primeiramente à aquisição dos conhecimentos especiais que lhes permitam vencer a técnica da sua profissão, sem deixarem de aumentar a sua bagagem intelectual com estudos superiores, logo depois de realizado o trabalho primordial.

Primeiro que tudo, é preciso vencer a técnica, isto é, a aplicação da teoria à prática, de maneira que ambas conjugadas uma com a outra, possam produzir a obra perfeita.

Não se imagine que circunscrevemos a auto-educação à modalidade estritamente científica. Também ela é possível nos pontos de vista artístico e literário. A este respeito, oferece-nos a história notáveis exemplos de homens nascidos num ambiente e numa esfera aparentemente hostis às suas congênitas aptidões, e que, não obstante, souberam vencê-los, colocando-se em condições favoráveis pelo esforço da sua vontade.

O célebre artista Ambrósio Bardone, conhecido durante toda a sua vida por Giotto, apócope ou abreviatura final de Ambrogiotto, pela qual o apelidaram desde criança e que era o diminutivo toscano do seu nome de batismo, foi pastor na sua infância e, estimulado pela sua inclinação artística, entretinha-se a desenhar árvores, montanhas, rios, lagos e a paisagem que abrangia com a vista, não deixando também de representar as ovelhas que guardava.

A sorte, mais solícita ainda com os moços cheios de boa vontade do que com os audaciosos, pois, se favorece estes, é pelos seus atos volitivos e não pelos seus atos de arrojo, interveio em auxílio do humilde zagal. Aconteceu passar pelo aprisco o pintor florentino Gualterio Cimabue, que por aqueles sítios andava procurando motivos para os seus quadros, e admirou-se de ver os rápidos desenhos do rapaz, que tão notáveis aptidões revelava para a arte.

– Quem te ensinou a manejar o lápis? perguntou-lhe Cimabue.

– Isto para mim é uma coisa tão natural como adivinhar quando as ovelhas têm sede ou conhecer as que estão doentes.

– Nunca andaste na escola?

– Não sei o que é uma escola. A minha escola é o monte, a minha mestra a natureza e as ovelhas os meus condiscípulos.

– Queres vir comigo? Servir-me-ás de criado e eu ensino-te a fazer desenhos muito mais bem feitos do que esses que fazes.

– Diga a senhor isso a meu pai. Eu por mim, iria agora mesma sozinho para ver esses quadros tão bonitos que dizem que há em Florença e na Toscana.

Não levantou grandes embaraços o pai de Giotto à proposta de Cimabue que, levando consigo o rapaz, lhe ensinou a técnica da arte com tão esplêndido resultado da parte do discípulo, que não tardou em exceder o mestre.

Antes da fama do seu nome chegar aos ouvidos do papa Bonifácio VIII, encarregou-o o governo de Florença duma pintura a fresco; mas, para começo da obra e segurança do contrato, exigiram-lhe, à laia de exame prévio, que desse uma prova do seu conhecimento pleno da arte pictural, sobretudo no desenho, visto o governo desejar na pintura a maior perfeição possível.

Por única resposta, Giotto pegou num pedaço de gesso e, rapidamente, traçou na parede uma circunferência tão geometricamente perfeita que não houve necessidade de melhor prova que demonstrasse a sua completa idoneidade para desempenhar o encargo a contento do governo.

O poeta Ovídio, digno rival de Horácio e de Virgílio, com os quais forma o glorioso triunvirato da poesia latina, teve de lutar em criança com a atitude irredutível do pai, que formalmente se opunha a que ele compusesse versos. Mas a criança não podia nem queria sufocar a voz interior que o chamava para a cultura das letras, e, às escondidas do pai, entregava-se avidamente à leitura de todas as poesias que os companheiros emprestavam. Um dia, porém, o pai surpreendeu o filho escrevendo uns versos à pressa, e, pegando-lhe por um braço, deu-lhe uma sova mestra, daquelas que marcam uma época na história das rebeldias infantis.

O mais engraçado foi que, para se livrar da sova do pai, o futuro autor do Ars Arnandi exclamou em tom suplicante: Juro, juro pater, nunquam facere versos, que na linguagem vulgar significa: “juro, meu pai, não tornar a fazer versos”. E contudo, naquela exclamação saiu-lhe espontaneamente um perfeito verso latino.

A auto-educação exige que se aproveite o tempo tão escrupulosamente como se os momentos fossem pequeníssimas lascas de diamante, granalha de platina ou partículas de rádio. O hábito de nunca estarmos sem fazer nada ajuda-nos a empregar os momentos que a maior parte das pessoas chamam momentos de ócio, por nunca terem aprendido a concentrar a mente em qualquer coisa útil nem a apreciar o valor do tempo.

As pessoas de são critério e de espírito de observação, que estejam nas condições de vos ajudarem, não deixarão de vos prestar o seu auxílio, se virem que tendes suficiente força de vontade para limardes as arestas do vosso caráter, aumentardes o cabedal dos vossos conhecimentos e aproveitardes todas as ocasiões que se vos oferecerem para serdes, com o andar do tempo, alguém de merecimento neste mundo.

Não deveis ser dos mais incompetentes na vossa profissão, porque, quando um rapaz trabalha por si e com entusiasmo, sem esperar que lhe dêem a papa mastigada, logo é ajudado por Deus, misteriosamente oculto sob a figura imaterial da sorte, ou materializado na pessoa dum protetor.

A sabedoria não abre as suas portas aos que se recusarem a pagar os direitos de entrada com a incoercível moeda das privações, com o sacrifício dos prazeres mundanos e com a perseverante laboriosidade. Deste modo, a educação recebida na infância é apenas um preparativo para mais tarde aproveitarmos as lições da experiência e aumentarmos o grau da nossa liberdade, pelo fortalecimento da nossa vontade e pela ampliação dos nossos conhecimentos.

Assim como o instinto ou, melhor, a propensão natural, serve de estímulo à vontade, assim também o hábito é o resultado do exercício da mesma vontade. Neste mundo, porém, o homem agita-se entre diversas dualidades de forças opostas, que simultaneamente o solicitam para ver a qual delas cede mais facilmente, e assim se vê ao mesmo tempo, atraído pela verdade e pelo erro, pelo bem e pelo mal, pelo egoísmo e pelo altruísmo, pela luz e pelas trevas, pela virtude e pelo vício, pela diligência e pela preguiça. Conforme a vontade ceder a uma ou outra força destas dualidades, assim formará hábitos que favoreçam ou contrariem o seu progresso moral, entendendo-se, neste caso, por hábito a aptidão para repetir, cada vez mais facilmente, uma ação determinada. Se a ação é boa, o hábito será virtuoso, e por conseguinte, favorável ao aperfeiçoamento do caráter e ao robustecimento da vontade. Se a ação é má, o hábito será vicioso e constituirá um obstáculo, uma resistência mais ou menos poderosa ao progresso moral.

O costume, nome por que também é conhecido o hábito, é uma segunda natureza. Diz a este respeito Montaigne:

O mau costume, ou hábito vicioso, é um mestre tirano que temos na vida. Começa primeiro a ensinar-nos duma maneira suave e carinhosa, para depois nos ir impondo pouco a pouco a sua autoridade e, finalmente, nos encarar com aspecto tirânico, a ponto de nem sequer nos atrevermos a erguer para ele os olhos. Quando os cretenses queriam amaldiçoar alguém, rogavam aos deuses que lhes fizessem adquirir um hábito vicioso.

Mas o hábito virtuoso produz efeitos contrários ao hábito vicioso, e, por isso mesmo, favoráveis ao desenvolvimento harmônico das nossas forças e faculdades anímicas.

Pois bem; a auto-educação compreende também o aspecto moral do indivíduo. E, como geralmente adquirimos desde a infância hábitos mais ou menos viciosos, que são outros tantos obstáculos ao triunfo que desejamos obter na vida, é necessário um esforço de vontade, proporcional à natureza e à inveteração do hábito vicioso, que nem por isso será impossível fazer desaparecer. Também neste caso querer equivale a poder, quando, por experiência, conhecemos as funestas conseqüências do vício que nos domina e nos propomos livrar-nos da sua vergonhosa tirania.

O eminente psicólogo Guilherme James, tratando da maneira de fugir ao domínio dum hábito inveterado, diz:

Devemos pensar seriamente em acumular em torno da nossa firme e deliberada iniciativa todos os motivos e circunstâncias que lhe sirvam de apoio, colocando-nos em situação favorável, para darmos o primeiro passo no caminho da reabilitação. Devemos por todos os modos criar embaraços ao vício inveterado. Isto dará um impulso tão formidável à vida nova que queremos iniciar, que a tentação não sobrevirá tão rapidamente como doutro modo poderia sobrevir. Cada vez que resistirmos vitoriosamente à tentação, maior força teremos para a vencer em ulteriores ataques, e em cada vitória se radicará mais firmemente o hábito contrário. Se umas vezes resistirmos à tentação e outras cedermos, acontece-nos o mesmo que a uma pessoa que, com muito trabalho, vai enrolando uma fita e, quando a operação já vai adiantada, lhe escapa das mãos de repente, sendo preciso novo tempo e trabalho para tornar a enrolar a parte que se desmanchou.

Claro está que os vícios ou maus costumes, embora todos eles desviem o homem do verdadeiro caminho, não o colocam todos à mesma distância, e, portanto, se uns são mais graves e inveterados do que outros, serão mais difíceis de aniquilar ou de substituir pela virtude oposta.

De todos os vícios, foi sempre a embriaguez um dos mais abomináveis. Assim como o mosto, quando fermenta no tanque do lagar, faz vir à superfície as impurezas depositadas no fundo, assim o álcool que ferve no sangue agita toda a lama da natureza brutal do ébrio.

Lembremo-nos, porém, de que a vontade é uma força espiritual e o apetite uma força concupiscente. A vontade tem no auxílio da graça divina ilimitadas possibilidades de vencer, enquanto a energia concupiscente está limitada pela sua própria natureza abominável. Quem quiser libertar-se dum vício, pode consegui-lo, contanto que se sujeite a empregar o esforço necessário para o vencer.

O notável orador norte-americano João B. Gough era, na sua juventude, um rapaz de brilhantes qualidades, mas muito inclinado a bebidas; e, embora, reconhecesse que era melhor dar ao cérebro uma aplicação útil, em vez de o enfraquecer com o excesso do álcool, seguia nisto o critério dalguns filósofos antigos, para quem as bebidas alcoólicas não eram tão perigosas como atualmente supõem os adeptos da temperança.

Um dos seus companheiros, que estava filiado numa das muitas associações de temperança dos Estados Unidos, disse-lhe um dia:

– Ora vamos a ver, João...

– O quê? Beber um copito? Vamos lá.

– Não, homem, não: quero eu dizer que vamos a ver se consigo converter-te. É uma vergonha ver-se sempre um rapaz como tu, de tão excelentes qualidades, esperança da pátria e honra da família, a bebericar como um borrachão. Não sei que diabo de prazer tu encontras nas bebidas. Se eu bebesse um dedal de licor de anis, ficava logo com as entranhas queimadas.

– Não sejas tolo. O álcool não manda em mim, sou eu que mando nele. Não leste o que diz Juvenal? Pois olha, diz que não era fácil vencer os teutões, ainda que eles estivessem bêbados como um cacho. E conta-se que Ciro, o vencedor da Babilônia, dentre os muitos predicados de que se orgulhava para se distinguir de seu irmão Artaxerxes, tinha o de ser muito mais amigo da pinga do que ele.

– Ora adeus! Deixa-te de contos e não te importes com o que fizeram esse personagens, que a tua bisavó nem sequer chegou a conhecer. O que é preciso é tu deixares esse vício. Os antigos emborrachavam-se com vinho, como sucedeu com o pai Noé, mas os borrachões de hoje ficam encandeados com o álcool das bebidas brancas.

– Sabes o que te digo? Quando eu resolver não beber, nem sequer provo uma gota. Sou homem que tenho vontade própria. Quando quiser, sei que hei-de poder conseguir o que desejo. Mas, enquanto não me resolver a isso, não me tornes a pregar mais sermões e deixa-me cá com as minhas bebidas.

A conversa ficou por aqui. Ao fim dum certo tempo tornaram a encontrar-se os dois amigos. O temperante perguntou a Gough:

– Então? Como te vais dando com as tuas bebidas?

– Cala-te, homem, que estou desesperado. Tinhas razão. Eu imaginava que quem mandava no álcool era eu, e não ele em mim; mas agora vejo que, se não fizer um esforço violento para quebrar a cadeia que a ele me prende, nunca recuperarei a minha perdida virilidade.

– Eu bem to dizia. Os laços do vício, que a princípio se partem sem grande esforço, por serem frágeis, converteram-se num poderoso cabo que te prende, como se estivesses algemado.

– E agora que remédio tenho para me livrar das algemas?

– Aconselho-te um remédio, que deu, noutros indivíduos, excelentes resultados. Amanhã as sociedades de temperança celebram uma grandiosa assembléia de propaganda. És homem sério?

– Essa pergunta ofende-me.

– Antes assim. Não esperava de ti outra resposta. Pois amanhã aparece e assina um compromisso incompatível com o vício inveterado que tens. Empenha a tua palavra de honra em abster-te de toda a qualidade de bebida alcoólica, a partir da hora em que firmares o teu compromisso.

Gough seguiu o conselho e assinou com mão trêmula o compromisso formal. Então, começou para ele uma luta titânica para se dominar. Durante dias e noites, lutou com o demônio do vício que procurava todos os meios para recuperar a presa; mas, por fim, embora extenuado pela violência do esforço, conseguiu alcançar completa vitória. O homem vencera o demônio que o queria assassinar. O S. Jorge da natureza superior atravessara de lado a lado, com a espada flamejante da vontade, o dragão da natureza inferior.

Depois de vencido o vício do álcool, converteu-se Gough no mais ardente apóstolo da temperança. Um dia, foi aconselhar-se com ele um amigo seu, que não era dado a bebidas, mas era escravo do hábito nocivo de mascar tabaco, o que lhe prejudicava gravemente a saúde. O eloqüente orador respondeu-lhe:

– Só há um remédio verdadeiramente eficaz: a energia da tua vontade. Quando fores para casa, atira fora com o cachimbo e com a tabaqueira, juntamente com todo o tabaco que tiver dentro.

– Se basta só isso, prometo-te que antes de meia hora farei o que me aconselhas.

– Espera aí, meu caro. Não é só atirar fora com os utensílios do fumador; há ainda o apetite, a ânsia do tabaco que fica sempre e que é tão violento como no ébrio é violento o desejo do álcool. Se não prometeres firmemente resistir à tentação ser-te-á difícil vencê-la. Quando perceberes a investida, dize em voz alta, de maneira que só te ouça a tua consciência: “Eu não nasci para ser escravo deste vício. A imagem de Deus, que reside, na minha alma, não pode ser profanada com vício tão asqueroso. Eu nunca darei prova dos nobres sentimentos que possuo, se continuar a aviltar-me nesta degradação. Nunca serei o homem que Deus quis fazer de mim e que eu me prezo de ser, enquanto der acolhida a este disfarçado inimigo que consome a minha vitalidade e diminui as probabilidades de êxito que tenho na vida. Hei-de acabar com este inimigo. A partir de hoje, hei-de apresentar-me diante de toda a gente como vencedor e não como vencido, como senhor e não como escravo. Hei-de livrar-me para sempre das tuas garras, vício maldito”. Se disseres isto, verás que hás-de ter brio para vencer a tentação, que nunca será superior às tuas forças.

Prometeu o amigo fazer o que lhe era aconselhado, e, efetivamente, desfez-se do cachimbo e da tabaqueira, dizendo que já estava tudo acabado e que não havia de tornar a fumar e muito menos mascar tabaco. Mas isto era apenas o prelúdio do terrível sofrimento que ele havia de experimentar. Em poucas horas, os desejos de tabaco foram tão intensos, que para os mitigar começou a mascar macela, genciana e até palitos de dentes. Num momento de fraqueza, comprou um maço de tabaco, não para o mascar, mas para o trazer consigo e iludir o vício. O apetite de estar sempre a roer chegou a ser tão violento, que pegou num ligeiro fio de tabaco para acabar com a aflição em que estava; mas, quando o ia para meter à boca, lembrou-se da palavra de honra que empenhara perante o seu amigo e a sua consciência, e, como cedendo a um impulso divino, exclamou, atirando fora com o tabaco:

– Tu és uma erva e eu sou um homem. Hei-de vencer-te, nem que seja à custa da minha vida.

E venceu.

A intensidade que as nossas forças interiores são capazes de adquirir pela auto-educação excede tudo quanto o mais otimista poderia presumir. São inesgotáveis por natureza, como inesgotável é a Fonte perene de que dimanam; mas, se é certo elas existirem latentes em todo o ser humano, logo ao nascer, desenvolvem-se nuns mais rapidamente e com maior intensidade do que noutros, conforme a origem donde cada um provém, a educação que recebe, o ambiente mental e moral que respira, e sobretudo, conforme o grau de evolução espiritual com que nasce.

Afirmam gratuitamente os doutrinários que, conforme Deus vai criando as almas, à maneira de bolas de sabão, umas maiores, outras mais pequenas, assim as vai dotando caprichosamente, sem merecimento individual, a umas com qualidades nobres, e outras com sentimentos vis, predestinando estas para a santidade, a partir do momento em que as formou, e condenando aquelas, sem mais formalidades, à sorte horrenda das penas eternas. Ora, admitir um arrojo deste jaez, seria negar a justiça, a misericórdia e a sabedoria dum Deus infinito.

Mas se isto sucede com as almas, não é menor a arbitrariedade que se nota, segundo o critério doutrinário, na formação dos corpos.

Porque é que uns nascem formosos e bem conformados, e outros nascem cegos, mudos, surdos ou aleijados?

E, em relação às faculdades intelectuais, porque existem essas enormes desproporções, não já entre os indivíduos de talento e os medianamente inteligentes, nem entre estes e os de inteligência vulgar, mas entre o homem de gênio e o idiota? Não terá alma o idiota? Não a criou Deus tão pura como a do gênio, e sem antecedentes espirituais como a dele? Então para que há-de haver essa enorme diferença entre a criança-prodígio e a criança imbecil? Altos mistérios de Deus, respondem os que imaginam que a terra é o único centro das almas. Mas os mistérios de Deus não podem ser absurdos e muito menos considerados impossibilidades morais. O que os doutrinários chamam mistérios de Deus, para coonestar a sua ignorância ou para não romperem com os seus preconceitos, deixa de ser mistério para ter esta explicação satisfatória: admitir a evolução do espírito, do verdadeiro ser humano, que tem o corpo por invólucro aparente e exterior, onde, segundo afirma o apóstolo S. Paulo, a alma divina tem a sua morada, como se ela fosse o templo do Espírito Santo.

Deste modo, resplandece com mais intenso fulgor a importância da auto-educação, porque, à medida que o indivíduo elimina os seus defeitos e fortalece as suas virtudes, vai aperfeiçoando o sela caráter e coloca-se num nível superior ao que antes ocupava, demonstrando assim aos olhos da sua própria consciência a realidade da sua evolução espiritual. Se o espírito não evolucionasse, o homem ficaria sempre no mesmo estado. Ora nós vemos que, conforme os anos vão decorrendo, assim variam as nossas idéias, as nossas emoções, os pontos de vista sobre a maneira como encaramos a vida e os outros homens, os nossos sentimentos e afetos; e, apesar destas variações às vezes radicalíssimas, a consciência da nossa individualidade permanece invariável, embora seja muito diferente a consciência que tenhamos das nossas relações com o mundo exterior.

Poderão os doutrinários replicar, dizendo que tudo isto são sofismas expostos milhares de vezes e outras tantas refutados; mas não pode ser sofisma o que está em harmonia com a natureza das coisas e as leis da vida. Refutar com palavras é facílimo, quando o polemista tem a suficiente esperteza para encobrir o erro com a máscara da verdade. Mas temos os fatos, os fenômenos, a experiência e o discernimento para demonstrar que, sem a evolução do espírito, o homem fica reduzido a um fantoche, o universo a uma cega casualidade e Deus a uma palavra inútil.

Por muito indispensável que seja a auto-educação, o seu resultado seria muitíssimo mais rápido e proveitoso, se o homem a ela estivesse habituado desde criança pela influência da boa educação.

À mãe cabe a responsabilidade moral deste encargo, antes de confiar o seu filho à direção do professor. É a ela que compete primeiro fazer vibrar a alma do homem, e desta vibração depende a maneira como convém ser dirigida a força da sua vontade.

Há um exemplo digno de ser imitado que nos oferece a mãe de George Washington, a qual, precisamente pelo muito amor que dedicava ao filho, reprimia sem contemplações aquela imprudente ternura, que tantas vezes leva as mães a estimular as paixões e os vícios dos filhos, condescendendo estultamente com os seus caprichos. Isto dá em resultado criar neles os maus hábitos, que não será possível banir mais tarde sem penosos e violentos esforços da vontade. Mas vamos ao caso.

A mãe de Washington acostumou o filho desde tenra idade a estas duas principais disciplinas da educação moral: obedecer-lhe sem replicar e dizer sempre a verdade.

Tinha ela na sua granja um formoso poltro alazão, de que muito gostava, e que, apesar de ter apenas dois anos, era indomável, por ser de natureza rebelde, não se atrevendo ninguém a montá-lo. George, que a esse tempo contava dezesseis anos, recebeu um dia a visita duns amigos que tinham ido passar o dia na granja, e disse-lhes que segurassem eles todos o animal, enquanto ele o montava, pois tinha resolvido amansá-lo.

Foi George buscar o poltro e, depois de lhe ter posto os arreios, o que deu a todos bastante trabalho, montou galhardamente sobre ele. O poltro, ao sentir carga em cima, deitou a correr à doida, encabritando-se a cada passo, no intuito de lançar por terra o cavaleiro, que se segurava na sela. Começou então entre o homem e o animal uma encarniçada luta que assustou os amigos, até que por fim o poltro, fazendo um violentíssimo esforço para derrubar o domador, rompeu uma artéria, caindo morto instantaneamente.

O moço Washington nada sofreu na queda, mas ficou extremamente apoquentado pelo inesperado e desagradável desfecho da proeza. Que diria sua mãe, que tanto gostava do poltro?

A hora do almoço, como a mãe já tinha dado por falta do poltro, perguntou aos rapazes:

– Então, meninos, que tal correu a partida? Que é feito do meu alazão? Fugiu?

Ninguém respondeu.

Repetida a pergunta, disse Washington serenamente, mas com tristeza:

– O poldro morreu, minha mãe.

E contou exatamente todas as circunstâncias e pormenores do incidente.

A mãe, apesar de desgostosa pela perda do seu favorito, respondeu:

– Penaliza-me bastante a morte do poldro; mas rejubilo por ter um filho que me diz sempre a verdade.

Depois de firmada a paz em que a Inglaterra reconhecia definitivamente a independência dos Estados Unidos, recolheu-se Washington à vida privada, qual outro Cincinato, donde a 14 de abril de 1789 o foi arrancar o voto unânime de todos os seus concidadãos, para o elevar à presidência da jovem república constelar. Ficou confundido por esta honra, que ele considerava imerecida, pois a modéstia, característica peculiar do verdadeiro mérito, não o deixava reconhecer a sua capacidade para assumir, naquelas circunstâncias arriscadas, a suprema magistratura nacional. Mal imaginava ele as fortes energias que ia desenvolver com assombro de todo o mundo. Esta mesma disposição de ânimo a manifestou ele nos seguintes parágrafos duma carta dirigida a um amigo:

 No acaso duma vida toda entregue a serviços públicos, é com sacrifício que vou trocar a paz do meu lar por um oceano de dificuldades, para cujo triunfo careço da necessária habilidade política. Parece-me que nesta viagem vou empenhar, junto com a minha reputação pessoal, a voz do povo que clama por mim. Veremos o que será de ambas, quando regressar da viagem. Só Deus o sabe. Pela minha parte, a única garantia que posso dar é a integridade e firmeza de caráter que nunca me abandonarão, quer seja curta ou longa a viagem, e embora me veja abandonado por todos os homens. O mundo não me poderá privar da consolação que a integridade e a firmeza de caráter me hão-de dar em qualquer circunstância.

Integridade e firmeza de caráter. Eis as duas pedras angulares do êxito, da felicidade, de todos os bens eficazes e de indiscutível valor. Têm a mente por alicerce. Firmai na vossa mente aquilo a que justamente aspirais o que se há-de manifestar na vossa conduta. Firmai-o confiadamente, com inquebrantável fé, sem a menor incerteza, e ser-vos-á mais fácil o processo da vossa auto-educação.

6. Obstáculos da vontade

Dois amigos de opiniões opostas entabularam um dia o seguinte diálogo sobre um tema que se relaciona com a epígrafe deste capítulo. Diziam eles:

– Que farias, se tivesses de arriscar a tua reputação, o teu bem-estar material, o teu futuro nalgum concurso a um campeonato desportivo ou ainda num concurso científico ou literário?

– Essa pergunta é muito vaga, meu caro, e tu misturas nela o físico com o intelectual, como se fosse indiferente dar pontapés numa bola, compor uma novela ou escrever uma memória sobre a pluralidade dos mundos habitados.

– Para o caso é o mesmo. Pensa bem e descobrirás a analogia que há entre os três pontos que te parecem tão dessemelhantes.

– Ah! já sei. Queres dizer que, havendo tempo e paciência para isso, o suposto concorrente há-de colocar-se em condições de vencer no concurso, pois, de contrário, não poderá realizar o seta intento.

– Adivinhaste. Bem me queria parecer que um rapaz tão esperto como tu não havia de ficar embaçado com a resposta à minha pergunta.

– Obrigado pela lisonja. Mas, se não me engano, parece-me que o teu exemplo vem a significar que todos os que desejam valorizar a sua vida e fazer algo de eficaz e relevante, têm de entrar num concurso idêntico.

– Perfeitamente. E eu ainda acrescentarei que, ao entrarem num conflito tão grave e transcendental que ameaça todo o futuro, a primeira coisa que devem fazer é remover todas as dificuldades que sirvam de estorvo à vontade, que deprimam o espírito, que debilitem o esforço, que obscureçam as faculdades e façam perder a energia, até deixarem o caminho do êxito livre de obstáculos. Repara no que sucede nas corridas pedestres. Por muito desejo que um corredor tenha de vencer, perderá a corrida, se não se tiver preparado para a vitória, libertando-se da gordura do tecido adiposo e da roupa que lhe tolhe os movimentos.

– Tudo isso ê muito verdade; mas parece-me um pouco vago. Deixa-te de generalidades, concretiza o teu pensamento e dize-me quais são esses obstáculos da vontade.

– Cada um tem os seus, embora poucos consigam vê-los e muito menos vê-los nos outros. O mal está em todos querermos triunfar e apenas um por cento poder consegui-lo. Os mais não caminham para a frente, têm as pernas presas, estão manietados, e não procuram libertar-se do que os estorva. Precisavam duma marreta na cabeça para os fazer andar. Confiam demasiado na sorte.

– Pois, meu caro, pelo que tenho visto, não é a sorte um fator tão desprezável que se possa prescindir dele no problema da vida. Lê as biografias de todos esses homens que, aos olhos do mundo inteiro, chegaram ao apogeu da fortuna e verás como a sorte os favoreceu, senão em tudo, pelo menos, nalguma coisa. Que teria sido de Colombo, se não tem a sorte de encontrar o frade Marchem? Que seria de Haendel, se não fosse a criada que, às escondidas, levou para a água-furtada o velho clavicórdio? Desengana-te, que não há homem sem homem, sem alguém que o proteja, sem, finalmente, ter sorte.

– Mas essa sorte não é a estouvada fortuna nem a cega casualidade dos céticos. É o auxílio que Deus dispensa a quem faz o que lhe cumpre. E a melhor maneira de fazer o que nos cumpre é removermos os obstáculos da vontade.

– E lá voltas à mesma. É como se andasses a tirar água a uma nora. Desculpa a analogia, mas isto é devido à confiança que temos. O que eu quero saber é quais são esses obstáculos.

– Em primeiro lugar, temos a trindade satânica.

– A trindade quê?

– A trindade satânica, torno a dizer. As mulheres, o vinho e o jogo. Quem tiver inveterado algum destes vícios de tal maneira que cheguem a constituir uma verdadeira paixão, não espere triunfar nos combates da vida e muito menos nos da consciência.

– E quem for escravo de toda a sataníssima trindade?

– Irá dar com os ossos numa cadeia, se não tiver a suficiente astúcia para escapar pelas malhas do código penal.

– Mas eu vejo por aí homens que não são muito respeitadores do sexto mandamento, que freqüentam as salas dos cassinos mais nobres, onde criminosamente se joga, e que têm conta aberta nas mais bem providas tabernas. E, contudo, não engrossam o número dos infelizes e dos vencido, nas lutas da vida; ao passo que outros tão castos como o filho predileto de Jacob, que não provam vinho, não conhecem um baralho de cartas nem sabem o que é uma roleta, parecem esmagados pelo infortúnio, sem poderem erguer a cabeça, condenados eternamente a sofrer. Como explicas tu este paradoxo?

– Primeiro que tudo, deves notar que a vontade é susceptível de inúmeros graus de desenvolvimento e, embora não fique de todo paralisada, apesar dos três obstáculos que apontei, mantém-se de pé a minha afirmação, porque o escravo do vício desenvolvê-la-ia em grau muito mais elevado, se formasse o propósito de se libertar da escravidão a que está sujeito. Se atares um barbante a uma perna dum pássaro sem lhe cortar as asas, ele voará como se estivesse livre, até à distância que lhe permita o comprimento do barbante. Quanto mais comprido este for, menor será o obstáculo ao vôo do pássaro; e quanto mais curto, maior será esse obstáculo. Mas, se ele fosse capaz de se soltar, a sua liberdade teria unicamente por limite a potência das asas.

– Agrada-me o paralelo que estabeleceste, e vou apresentar-te outro para que vejas que também alguns me ocorrem a propósito. Imagina que prendes curto um cavalo fogoso, vencedor nas corridas por ser muito veloz. De que lhe servirão as quatro patas? Uma pequena corrente de bronze com meia dúzia de elos será o suficiente para o inutilizar. Do mesmo modo, há muitos homens com excepcionais qualidades para uma determinada profissão, que não podem revelá-las nem utilizá-las frutuosamente, porque estão subjugados por uma paixão violenta que obsta ao desenvolvimento do seu espírito. Não progridem, enquanto se não libertarem do obstáculo.

– Tens razão. Um gigante encerrado numa masmorra ficaria com a força muscular atrofiada, por não ter espaço onde se pudesse mover livremente. Também a maior parte das pessoas vivem numa atmosfera que esfria o entusiasmo, gasta a energia e malbarata o tempo. Não têm força bastante para quebrar as algemas das paixões, a cadeia dos vícios, as convenções sociais e para se colocarem num ambiente favorável ao exercício das suas faculdades.

– Pelo que dizes, além das mulheres, do vinho e do jogo, há outros obstáculos da vontade?

– É claro. Não tão luxuosos, mas talvez mais formidáveis, porque estão dentro e não fora de nós.

– Quais são?

– A timidez, o tédio, a ignorância, o orgulho, a irascibilidade, a grosseria, a deslealdade e a mentira. São estes, além dos três que já mencionei, os oito obstáculos da vontade. Os oito remos do barco do inéxito.

– Contaste-os bem?

– São, pelo menos, os de maior tomo. Há ainda outros que hei-de de dizer, quando nos tornarmos a ver.

Ficou por aqui o diálogo entre os dois amigos, a que não será de todo mal fazer alguns breves comentários.

Há tempos, numa pequena povoação, havia um rapaz de notável talento artístico que, por circunstâncias da vida, passava os anos a peregrinar duma profissão para outra. Não estimulava os seus dons naturais, nem fazia o menor esforço para se livrar dos pequenos obstáculos que lhe barravam o caminho duma carreira artística triunfal. Esse rapaz era pobre e, para cúmulo da desgraça, tinha receio das privações e dos desgostos que, na sua opinião o esperavam, se abandonasse a ingrata profissão em que ganhava a vida, mas em que não fazia gosto nenhum.

Durante muitos anos, manteve-se na espectativa duma ocasião favorável, que nunca era como ele a desejava. Assim, foi diminuindo lentamente o seu amor pela arte, até que se extinguiu por completo. A timidez não lhe deixou manifestar o verdadeiro significado da sua vida.

O mesmo sucede a muitos rapazes que não se atrevem a deixar o certo pelo duvidoso, quando este se adapta melhor do que aquele às suas faculdades naturais. Não dão um passo para a frente com medo de o darem em falso. Esperam, inutilmente, que algum misterioso poder lhes dê coragem e esperança.

O tédio é outro obstáculo da vontade. Participa, ao mesmo tempo, da preguiça, do egoísmo, do pessimismo e da desconfiança. Qualquer trabalho violento que nos contrarie, os sofrimentos duma doença penosa ou incurável, ou um desgosto moral, costumam ser os fatores que dão origem ao tédio, quando não é firme o sentimento genuìnamente religioso, sendo a sua principal origem a fadiga física ou mental, resultante do excesso de trabalho.

O tédio é mais uma doença mental do que nervosa, e, portanto, para a curar, é preciso transformar a atitude pessimista da mente em atitude otimista, adaptando-nos às circunstâncias favoráveis e sobrepondo-nos às adversas. As abluções frias pela manhã, os intervalos de descanso, mesmo só de dez minutos, no trabalho cotidiano, quando se nota fadiga, o sono suficiente para restaurar as forças e um normal regime alimentício, contribuirão para mudar a nossa acabrunhante atitude mental numa atitude prazenteira, dissipando o tédio, como a luz dissipa as trevas. Tudo é uma questão de suportar um pouco o esforço necessário para operar a mudança de atitude mental.

Há outros a quem a ignorância serve de obstáculo à vontade. Nunca conquistam a liberdade que a educação proporciona. As suas faculdades intelectuais permanecem latentes. Imaginam que já são demasiado velhos para começarem por onde começam as crianças, e assim se conservam num nível inferior, quando poderiam ter subido até ao ponto onde a superioridade se alcança. Entendem que não servem para nada, que estão condenados pela má sorte a uma penúria perpétua, e são tão cegos que não dão sequer pela escravidão, que os subjuga.

O orgulho é uma das muitas modalidades do egoísmo, e, como tal, instiga contra o orgulhoso a animosidade dos que por ele se sentem humilhados e que não o auxiliam nas suas empresas, quando são solicitados por ele. Geralmente, os que são escravos desta paixão, que paraliza, ou, pelo menos, dificulta a vontade, são os que não chegaram à situação do mando pelos caminhos da obediência voluntária, mas sim por caprichos do favoritismo ou por condescendências do compadrio. Foi por estas vias que conquistaram situações de destaque impróprias da sua anterior preparação. Julgando-se intrinsecamente superiores aos que estão sob as suas ordens, tratam-nos com desdenhosa altivez, sem atenderem a que, na realidade, os que lhes estão subordinados são colaboradores e não servos da empresa comum que o orgulhoso supõe ser coisa exclusivamente sua.

Notemos que o homem de indiscutível valor se mostra tanto mais modesto quanto mais sábio é.

– Podes estar certo, ó Sócrates, que Minerva te concedeu o título de sábio, disseram ao sublime mestre os seus discípulos, depois de consultarem o oráculo.

– Muito me admira a concessão de semelhante título, e parece-me que, desta vez, ou se enganou o oráculo ou quem o recebeu, porque não vejo motivo algum para essa divina sentença. Há outros mais justos, mais temperantes, mais eloqüentes e mais úteis à pátria do que eu. Eu o que sei é que não sei nada.

– Nisso não tens razão, ó mestre, porque, se sabes que não sabes, alguma coisa sabes; e, se não sabes que sabes, não tens razão para dizer que não sabes.

– Então também jogais com sofismas como quem joga com palavras? Deixai-vos de argumentos capciosos e crede que, se Minerva me escolhe para sábio, o meu deus interior, que vale tanto ou mais do que a deusa da sabedoria, segreda-me que é estupidez orgulharmo-nos de ter sabedoria e ciência.

Também levanta obstáculos no seu caminho o que ostenta de sábio e o que altivamente abusa do seu poder, confundindo o orgulho com a energia. Diz Carlos Miguel Schwab:

Há muitas pessoas que não triunfam na sua vida, porque não reconhecem a vantagem de ser amáveis e corteses com os seus subordinados. A benevolência, sem baixeza, para com toda a gente, é sempre útil para quem a exerce; além de que é um prazer ser amável para com todos.

Dizem que a virtude consiste no meio termo, o que não é verdade, embora seja verdadeiro o conceito que o autor da sentença quis exprimir. Por meio termo não devem entender-se aqui as meias tintas, as cores indefinidas, mas o equilíbrio, a equanimidade tão difícil de conseguir, enquanto o homem não é senhor de si e não tem dominado a sua natureza inferior. Então, deixa de ser orgulhoso para ser duma tal melifluidade que até as moscas o comem. Coloca-se no fiel da balança, cujos pratos são a soberba e a baixeza. A sua vontade pode assim atuar livremente no sentido da justiça, que, com mais direito do que a caridade mal interpretada, é a rainha das virtudes e a única base sólida das relações dos homens entre si.

Semelhante à embriaguez, pelos seus efeitos, é a iracundia ou irascibilidade, que significa propensão para a ira pelo vicioso hábito de se irar. Também se chama cólera e raiva, porque a medicina medievel, julgava, e não andava muito longe da verdade, que os acessos da ira provinham dum humor do corpo e que deram o nome de cólera. E é assim que, por força da tradição, ainda hoje dizemos que uma pessoa está de mau humor, quando mostra a irritação que antecede a ira.

É uma paixão tão violenta que altera as feições do rosto, perturba a mente e, segundo diz Juvenal, impele o homem irado como um rochedo enorme que, perdendo subitamente o seu ponto de apoio, se precipita do cume duma montanha. E Ovídio acrescenta que o semblante do colérico começa a intumecer, as veias enlivedecem e os olhos despedem chispas mais ardentes do que as das fúrias.

O aspecto mais terrível da ira é o iracundo tornar-se tão louco que faz o contrário daquilo a que o arrastaria a sua paixão.

O festejado dramaturgo espanhol Antonio Garcia Gutiérrez, que floresceu no período álgido do romantismo, dá-nos um exemplo do ponto a que chega a obcecação da ira, no seu magnífico drama O Trovador, musicado mais tarde pelo gênio inspirado de Verdi. Narremos o caso:

O conde de Luna mandou queimar viva uma cigana que, na sua opinião, enfeitiçara o filho mais velho que ele tinha, uma criança de dois anos de idade. Açucena, a filha da condenada à fogueira, seguia-a de longe, quando a conduziam ao suplício, debulhada em lágrimas, como uma filha que pranteia sua mãe e levando nos braços um filhito de dois anos. Já próximo da fogueira, a ré encarou com a filha, fazendo um gesto de terror e, com voz surda, gritou-lhe:  “Vinga-me”. Açucena jurou vingá-la duma maneira horrorosa; e poucos dias depois teve ocasião de consegui-lo, porque pode entrar ocultamente no palácio do conde e raptar o filho, no intuito de o queimar vivo no mesmo sítio onde baviam queimado sua mãe. O pobrezinho chorava numa aflição e, como se intuitivamente pressentisse o perigo, afagava Açucena de maneira a que ela se compadecesse dele. Os lamentos da infeliz criança aplacavam a ira da cigana e rasgavam-lhe o coração, porque também era mãe. A luta entre as desencontradas emoções que no ânimo de Açucena provocava o choro da criança e o grito da mãe: Vinga-me, que ainda ressoava, aos seus ouvidos, era superior às suas forças e ela foi acometida duma violenta comoção. Mas, de repente, como num sonho lúcido, representou-se-lhe a cena do suplício, os soldados com as suas lanças, a mãe desgrenhada e pálida que, com passo trêmulo, caminhava lentamente, muito lentamente, para a morte, voltando-se para trás para a ver, e para lhe dizer: “Vinga-me”. Então apoderou-se de Açucena uma cólera indefinível, um furor violento, incomparável, e, louca de desespero, em vez de atirar às chamas o filho do conde, engana-se, no meio da obcecação que a dominava, e arremessa à fogueira o seu próprio filho.

Embora este exemplo, criado pela imaginação do drarrnaturgo, não tenha verdade histórica, não haverá ninguém que alguma vez na vida não tenha experimentado, por si ou pelos outros, os funestos resultados da ira que atingem sempre aquele que se encoleriza, porque, no seu desvairamento, luta consigo mesmo.

A grosseria é outro obstáculo da vontade nos caminhos do êxito. Muitas vezes, uma falta de atenção, um gesto desdenhoso, o não cumprimento duma promessa, o deixar de pagar uma visita, o silêncio a uma carta e outras coisas que para nós parecem insignificantes, são de muitíssima importância para os outros que as tomam por desprezo, e o desprezo é uma chaga incurável do coração humano. Os louvores e aplausos dos nossos adversérios desvanecem-nos; mas o desprezo dos amigos humilha-nos. Basta uma grosseria da nossa parte para desmerecermos no conceito alheio, de maneira a sermos esquecidos ou desprezados por quem tenha a ocasião de nos ajudar e não queira para isso aproveitar o ensejo.

A cortesia, a urbanidade e os bons modos valem muito e nada custam, quando são como devem ser – a expressão espontãnea dum caráter equânime; mas depõem contra o que é forçadamente cortês e que, em vez de se apresentar com simpática elegância e agilidade de maneiras, se apresenta timidamente e com ar suplicante, como raposa açoitada, dando assim prova dum valor medíocre.

Deste modo, são igualmente prejudiciais para o êxito que se pretende alcançar estes dois extremos – a grosseria insolente e o acanhamento servil.

Precisava um comerciante dum empregado que conscienciosamente lhe fizesse a escrituração da sua casa e, segundo o costume, mandou um anúncio para os jornais. Acudiram muitos indivíduos a solicitar o lugar, e o comerciante ia observando o aspecto de cada um, colhendo informações, inquirindo dos seus antecedentes, sem prometer a nenhum deles nada de positivo, pois podia dar-se o caso de aceitar um e apresentar-se logo outro numas condições mais vantajosas. Entre os pretendentes, havia alguns que ficavam logo desenganados. O seu aspecto e os seus modos grosseiros eram motivo suficiente para infundir repulsa. Um deles entrou no escritório do comerciante com ar consternado, e; depois de responder às perguntas do estilo que geralmente se fazem nestes casos, começou dizendo num tom de lamúria:

– Suplico-lhe por tudo quanto há que me dê a mim o lugar. Estou na miséria.

– Mas, meu caro senhor, deve compreender que a minha casa não é um asilo de beneficência. Pode haver quem reúna melhores condições de que o senhor para desempenhar o lugar.

– Eu fico por tudo o que V. Exa. me quiser dar. Outros talvez exijam mais ordenado. Veja, senhor, que estou no último extremo e já não sei a que porta deva ir bater, porque todas se me fecham.

– É porque o senhor não bate de forma que o ouçam e que o atendam. Em todo o caso, deixe-me o seu nome e a sua morada, que eu avisarei, se me convier.

Escusado é dizer que o comerciante não pensou mais em quem demonstrava tão pouca confiança em si próprio. Os modos acanhados do pretendente, a incoerência das suas palavras, o tom de servilismo em que suplicava eram motivos reveladores dum caráter mesquinho num homem que o comerciante não podia admitir para colaborar no seu negócio.

Em compensação, apresentou-se outro com tal ar de naturalidade, com gestos e atitudes de tão requintada cortesia, onde não havia a menor sombra de afetação, que parecia mais um indivíduo que confiadamente entrasse no escritório a propor um negócio do que a solicitar um emprego.

Às preguntas do comerciante respondeu sem titubear, num tom de quem sabe perfeitamente dominar-se:

– Tenho a dizer a V. Exa., com toda a franqueza, que um lugar semelhante ao que aqui está por preencher, estou eu desempenhando na casa tal. Como, sem vaidade, creio que mereço maior ordenado do que o que me dão, e o dever de todo o indivíduo é ir prosperando na sua carreira, solicitei o aumento; mas responderam-me que a situação financeira da casa não permitia aumentar as despesas. Eu posso garantir a V. Exa. que sei desempenhar o meu lugar e cumprir todas as minhas obrigações. O tempo se encarregará de confirmar as minhas palavras, que não são ditadas por um espírito de vaidade, mas pela certeza adquirida pela experiência. Agora, V. Exa. dirá da sua justiça.

Este rapaz nem era servil nem arrogante. Tinha plena confiança em si mesmo, porque conhecia bem a técnica contabilista, e não havia problema, embora difícil, que ele não fosse capaz de resolver. O comerciante convenceu-se de que tinha finalmente encontrado o homem que desejava e que, pelas suas palavras, maneiras e atitudes, revelava a energia necessária para trabalhar com vigor e entusiasmo no lugar que lhe ia ser confiado.

Henrique Pomeroy Davison, presidente da Junta Suprema da Cruz Roxa dos Estados Unidos e sócio do Banco Morgan, era, quando rapaz, um simples moço de recados, e um dia tinha passado rapidamente deste modesto emprego para o de cobrador dum Banco pouco importante de Bridgeport (Connecticut), quando leu nos jornais que se estava fundando um novo Banco em Nova Iorque. Imediatamente, tomou a resolução de que devia obter um lugar nesse Banco e, munido duma carta de recomendação dum dos directores do Banco de Bridgeport, que conhecia o caixa do de Nova Iorque, tomou, naquela mesma tarde, o comboio e apresentou-se nos escritórios, entregando a carta.

O caixa recebeu-o muito amavelmente, apesar de nem ao menos lhe dar esperanças de obter o lugar que ele desejava. Mas o moço Davison não era dos que se declaram facilmente vencidos e, regressando a Bridgeport, pensou que era conveniente insistir no pedido.

No dia seguinte, terminado o seu trabalho no escritório, tornou a meter-se no comboio que o conluzia a Nova Iorque. O caixa, embora algo surpreendido de o ver novamente, recebeu-o com a mesma cordialidade, dizendo-lhe, porém, que não era possível dar-lhe o lugar de pagador que solicitava, porque não lhes convinha um indivíduo de fora da terra, mas um homem que conhecesse a praça de Nova Iorque e tivesse desenvolvidas relações comerciais.

O jovem Davison nem por isso ficou menos lisongeado com a afabilidade com que o caixa o tratava, e ainda desta feita não desanimou, porque, no dia seguinte, estava outra vez em Nova Iorque, mais resolvido do que nunca a obter o ambicionado lugar.

– O caixa não virá hoje em todo o dia - disseram-lhe os contínuos do Banco.

– Onde mora ele?

– Em tal parte.

Daí a meia hora, estava Davison em casa do caixa. O criado disse-lhe:

– O patrão está-se a vestir para assistir a um convite de cerimônia.

– Está bem; eu espero. Só lhe quero dizer três palavras.

O criado foi participar ao amo que Davison o estava esperando e, daí a pouco, veio dizer a este que podia entrar.

O caixa, quando viu Davison, soltou uma gargalhada.

– Ah! Ah! Ah! Então o senhor outra vez por aqui? Já me parece a sombra de Nino.

– Pois sou ele mesmo, respondeu Davison também com o riso nos lábios. Mas vamos ao que importa. Eu tenho a certeza de que sou o homem de quem V. Exa. necessita para pagador. Sou um homem e não uma máquina. Terá V. Ex.a em mim um fiel auxiliar. Sinto ter que lho dizer pessoalmente, mas não tenho mais ninguém que o diga por mim. Se me der o lugar, garanto-lhe que não se há-de arrepender.

O ardor, o tom de sinceridade, o ar perseverante e cortês com que ele se exprimia, impressionaram o caixa tão profundamente que o levaram a admitir o pretendente ao serviço do Banco.

– Quanto quer o senhor ganhar?

– Eu queria 1.500 dólares, mas contento-me com 600 ou 700, o necessário para viver.

– Pois ficará então no lugar de pagador, com o ordenado anual de 1.500 dólares.

Louco de contentamento, despediu-se do Banco de Bridgeport para descansar uns dias em sua casa, antes de tomar posse do seu novo lugar, quando recebeu uma carta do Caixa, dizendo-lhe que o diretor do Banco não tinha aprovado a sua proposta, e que, para evitar questões, conviria que ele renunciasse ao lugar de pagador, aceitando em troca outro lugar inferior e com menos ordenado. Todavia, em vista de o Caixa ter empenhado a sua palavra, o diretor conformar-se-ia, no caso de Davison insistir em manter o seu direito.

O intrépido moço, com o generoso intuito de livrar o seu protector do cuidado em que estaria até receber a resposta por carta, telegrafou imediatamente nestes termos:  “Concordo plenamente aceitar o lugar inferior e ordenado.” Este telegrama satisfez tanto o director do Banco que, mudando de parecer, ratificou a Davison o lugar de pagador.

A trapacice ou ciganice, que também podia chamar-se improbidade, é talvez o maior obstáculo do êxito. Apesar de vulgarmente se dizer que todos os patifes têm sorte e vermos homens que arranjaram fortunas colossais por meios ilícitos, não podem eles gozá-las como desejam, porque, além dos remorsos da consciência que, moralmente, os não deixam tranqüilos, há as doenças crónicas, derivadas da febre com que dirigiram os seus negócios, e que lhes amarguram a existência, deixando-os miseráveis no meio de tanta riqueza inca-paz de lhes dar a menor parcela de saúde e de felicidade.

A prosperidade duradoura é inimiga irreconciliável dos negócios ilícitos e dos ruins processos de que se servem os trapaceiros e velhacos de toda a espécie para enriquecerem à custa alheia.

A vontade converte-se em desejo apaixonado, quando segue o tortuoso caminho da cobiça e da velhacaria. A trapacice ou improbidade é tão prejudicial no comerciante como no empregado, no patrão como no operário, no superior como no inferior. Há quem exija a mais rigorosa honestidade da parte dos seus empregados, e, por outro lado, não se importe de os ensinar a iludir os compradores no peso, na qualidade ou na porção da mercadoria, como se isto fosse a coisa mais natural deste mundo.

Nos mercados e nas lojas de comestíveis, principalmente, não pode ser maior a velhacaria dos vendedores. Quando pesam qualquer gênero, parece que dão o peso exato, por terem a habilidade de conseguir que a balança fique certa, e, contudo, roubam – é o têrmo – uma certa porção ao artigo, que vendem. Poderão estes comerciantes e vendedores gozar do fruto dos seus latrocínios, e ainda escarnecer das multas que a autoridade lhes aplique em flagrante delito, porque a importância da fraude é muito superior à importância da multa; mas dia virá em que, inesperadamente, hão-de ver diminuir a pouco e pouco a freguesia, até que perderão tudo o que, por meios ilícitos, adquiriram. Sob o ponto de vista do interesse material, é muito melhor ter probidade do que usar de velhacaria.

– Que é a honradez?  perguntava Benjamim Franklin a seu pai.

– Não sei que deva responder-te, meu filho, Cada um entende-a conforme convém aos seus interesses pessoais. Quem mais rigorosamente a exige dos seus inferiores, menos a respeita quase sempre nas suas relações com as pessoas de igual categoria. Para a maioria dos indivíduos, a honradez consiste em não roubar, nem furtar, nem vigarizar. Na sua opinião, pode-se ser um libertino e, contudo, ser-se honrado, por nunca se haver tirado um centavo a ninguém.

– Pois a mim parece-me, respondeu o jovem Franklin, que a honradez consiste na prática de todas as virtudes cívicas e morais, sem excluir uma só, porque, quem infringir a lei num único ponto, é como se a infringisse em todos, do mesmo modo que, para inutilizar uma cadeia, não é preciso partir-lhe todos os anéis, basta partir-lhe um só.

– Assim deveria ser como tu dizes, respondeu o pai, e muito folgo em te ver discorrer tão acertadamente, embora as tuas idéias discordem das que apresentam a maior parte das pessoas. Parece-me que, se continuares por esse caminho, hás-de erguer o nosso nome tão alto que o irás pôr nas nuvens.

– Não digo menos disso, porque se me meteu na cabeça que os relâmpagos não são mais do que um raio entre as nuvens.

– E que tem isso que ver com a honradez?

– É que também deve haver honradez científica, meu pai, e tão criminoso é o que rouba em descampado como o que não tem escrúpulo em considerar suas as invenções alheias.

– De maneira que entendes que a honradez deve ser extensiva a todas as relações humanas? Era preciso que todos tivéssemos nascido santos, e então não haveria ninguém honrado.

– Não exageremos até esse ponto, meu pai. Nem tanto nem tão pouco. O que eu quero dizer é que todo aquele que, na ausência dum seu superior, não proceder como quando ele está presente, revela tanta falta de probidade como o negociante que engana os seus fregueses. E o que é capaz de revolver o mundo inteiro para descobrir o dono duma jóia que encontrou na rua e a entrega sem estar atido a qualquer gratificação, não é honrado se, por outro lado, for um mau marido, um mau pai, um mau irmão ou um mau filho.

Tinha razão Franklin, a darmos crédito ao que dizem as crônicas; mas, quando ele não tivesse pessoalmente formulado os raciocínios que aí ficam, nem por isso eles são menos verdadeiros, e o que importa é que se diga a verdade, venha ela da boca dum judeu ou dum quacre.

Por outro lado, a improbidade é companheira inseparável da mentira. O que furta, rouba, vigariza ou caloteia, há-de forçosamente ser embusteiro, porque, para fugir das dificuldades em que o colocam as suas falcatruas, tem de recorrer a mil astúcias e artifícios que, enleando-se uns nos outros, formam a rede em que fica preso o embusteiro. A mentira é a moeda falsa do comércio intelectual. A sociedade tem por traço de união entre os homens a palavra falada ou escrita, único meio de manifestarmos claramente os nossos pensamentos e emoções. Quem dá á palavra uma expressão contrária à verdadeira é um falsário, um vigarista de idéias, e, como ninguém pode ter confiança na infidelidade da sua palavra, todos os caminhos da prosperidade lhe ficam obstruídos. Os esforços que tivermos de fazer para nos livrarmos de todos estes obstáculos da vontade chamarão, em nosso auxílio, forças espirituais e físicas, que teriam permanecido latentes toda a vida, sem darmos por elas, se a necessidade não nos obrigasse a desenvolvê-las.

Diz Filipe Brooks que ninguém pode ter uma vida fictícia, quando se convence de que é capaz de viver integralmente dentro do que a vida tem de melhor. Mas também ninguém pode viver na plenitude da sua existência, enquanto estiver ligado pelos laços do desejo passional a um ponto qualquer da sua natureza inferior. Há-de ser tão livre de pensamento como de ação, para chegar ao seu verdadeiro nível individual.

Os obstáculos da vontade que não nos deixam avançar no caminho da vida não são coisa que se possa remover num só dia, nem também é fácil eliminá-los todos duma vez. Convém, para o melhor resultado deste aperfeiçoamento moral, combater primeiramente o vício que estiver mais radicado nos nossos hábitos, porque, assim, os outros não custarão tanto a vencer. Quem verdadeiramente quiser, poderá vencê-los, porque nunca a tentação será superior às suas forças.

O talento em liberdade tem muito mais merecimento do que o gênio encarcerado. 

7. Idealistas e positivistas

“Sejamos práticos”.

Esta frase tem-se repetido vezes sem conta como uma espécie de conjuro contra as quimeras e utopias dos idealistas. É a eterna antítese entre Sancho Pança e D. Quixote.

Quem tem razão?

Os idealistas?

Os positivistas?

Os homens de pensamento?

Os homens de ação?

Verdade é que, segundo nos ensina Franklin, as boas ações são melhores do que as boas palavras; mas também é verdade que não é possível fazer uma coisa bem feita se primeiro não se pensar bem como ela se faz.

A idéia deve necessariamente anteceder o fato, como o pensamento deve preceder a ação.

Os positivistas são o braço que executa; os idealistas o cérebro que raciocina.

Entre uns e outros não deve haver hostilidades, mas harmonia de pensamentos e ações.

Os temperamentos práticos estão realizando atualmente o que os antepassados qualificaram de utópico, e os idealistas de hoje estão semeando as idéias cujo fruto uma geração ainda embrionária há-de colher em resultados de positiva utilidade para o gênero humano.

Uma escritora inglesa chamada Cecília Hamilton, estimulada pelo seu temperamento e julgando que todos os seres humanos afinam pelo mesmo diapasão, ataca os idealistas em termos, cuja sem-razão, por demais evidente, é inútil demonstrar. Diz assim:

A miséria atual da Europa provém do excesso de ideais que caracteriza o sexo masculino. Espero que as mulheres que se dediquem à política falem menos de princípios e ideais, por serem eles a origem da miséria e das catástrofes que assolam o mundo. Quando um homem está convencido do valor dum ideal, pensa logo em realizá-lo, ainda que tenha de degolar o seu adversário. Ora eu espero que as mulheres sejam menos idealistas e mais práticas. Verdade é que as sufragistas chegaram ao extremo de morder os agentes de polícia; mas, se a guerra não passasse de mordeduras, seria um grande bem para a humanidade. Os ideais são preciosidades muito valiosas que se guardam como relíquias. Desçamos ao campo das realizações e sejamos práticos.

Miss Hamilton tem razão, por um lado, porque se não houvesse homens e mulheres de espírito prático, isto é, capazes de darem efetividade às concepções dos idealistas, a idéia dissipar-se-ia com toda a sua energia inerente, como o vapor de água, na atmosfera, se dissipa com toda a sua força elástica.

No que miss Hamilton não tem razão é em aconselhar a serem práticas todas as mulheres que se dediquem à política. Poderão sê-lo todas as que tenham espírito prático; mas, em compensação, precisam das que tenham temperamento idealista e aspirem a melhorar as condições da vida humana, demolindo a superstição, combatendo a ignorância, socorrendo a miséria, destruindo os preconceitos e purificando as crenças, coisas com que as pessoas práticas se conformam, sem trabalho de raciocínio, mas preferindo seguir na esteira da rotina.

É como se miss Hamilton fosse muito loira e, encantada com o seu pigmento, se empenhasse por que todas as mulheres da sua raça fossem loiras também. Se todos fôssemos práticos, depressa ficaríamos sem matéria-prima para obrar, porque essa matéria fornecem-na os idealistas, os sonhadores, os que, por assim dizer, nos dão o carvão para aquecer a máquina do progresso.

Uma ocasião, estava Emerson em animada tertúlia com vários negociantes que falavam de estradas de ferro, de ações, de minas, de carregamentos e doutros assuntos de negócio, quando, de repente, exclamou:

– Meus senhores, falemos agora um bocadinho a respeito de coisas que valham a pena.

E pôs-se a explicar as condições necessárias e suficientes para gozar a vida sem tédio.

Os seus contemporâneos classificaram Emerson de sonhador e visionário, porque teve a profética visão do que seria o mundo no século XX. Hoje, porém, milhares de pessoas estão ao lado de Emerson, seguindo as mesmas idéias que ele a princípio perfilhava sozinho.

Edison é hoje alcunhado de sonhador, feiticeiro e mágico, isto é, idealista divorciado da realidade da sua época, porque vaticina, para daqui a meio século, descobrimentos e invenções que deixam a perder de vista os mais modernos instrumentos da civilização material. Os olhos mentais de Edison verão, daqui a cinqüenta anos, expostos nos museus de antiguidade, os mecanismos e aparelhos que tanto hoje nos maravilham. Os idealistas são, por este lado, verdadeiros profetas, porque vêem a civilização futura muito antes de ela ser uma realidade.

Dizer-se que o homem, apenas se convença do valor dum ideal, pensa logo em realizá-lo, ainda mesmo que tenha de degolar um seu adversário, é tudo quanto há de mais obcecante, porque os idealistas não matam ninguém pelo seu ideal, morrem precisamente por ele. Os idealistas têm o seu reverso nos fanáticos, como o verdadeiro recato o tem na impudicícia, e o verdadeiro sentimento religioso na hipocrisia.

Foi o fanatismo, e não o idealismo, que armou o braço de Bruto, de Jacob Clemente e de Ravaillac, e pôs, nas mãos dos niilistas, as bombas que deram a morte a Alexandre III. Foi aos cegos golpes do fanatismo político que baquearam Lincoln, Garfield e outros, todos eles mártires dum ideal de regeneração patriótica. Não são idealistas os que pensam em destruir e demolir instituições, mas sim os que facultam aos positivistas, aos homens práticos, os abundantes e sólidos materiais de construção.

No ano de 1849, travou-se no Parlamento dos Estados Unidos uma viva discussão acerca do problema que consistia em saber se era ou não prática a idéia de construir uma linha férrea que ligasse o Atlântico com o Pacífico, através do território da União.

Os defensores do projeto, os idealistas, viam, com os olhos penetrantes da intuição, numerosas cidades e vastas empresas industriais, comerciais e agrícolas, onde a maioria de senadores, que blasonavam de práticos, só descortinavam o interminável deserto de Oeste. Um dos mais eloqüentes parlamentares, Daniel Webster, qualificou o projeto de extravagante, porque lhe parecia uma loucura querer assentar carris de ferro por aquelas áridas planuras, interceptadas por montanhas intransponíveis.

Para que havia de servir uma linha férrea, de tão dispendiosa construção, num ermo de que não havia a esperar proveito algum? Os idealistas, porém, animados pela intuição, que é a mais divina faculdade humana, viam, desde todo o princípio, o fim a que visavam com o seu projeto. Discorrendo com mais acerto do que os positivistas, diziam que, se se tivesse de esperar pela fundação de cidades para construir a via férrea, nem daí a cinco ou seis séculos esse fato se daria, ao passo que a construção antecipada da estrada de ferro estimularia os colonos a fixarem residência nas proximidades.

O sonho de Collis P. Huntington e de Leland Stanford ligou com fitas de aço o Este com o Oeste, aproximou os dois oceanos, fez um oásis de todo aquele deserto e levantou cidades que hoje são empórios comerciais e centros de indústria, onde tudo era dantes silenciosamente triste.

Como o sonhador de Patmos, que viu a mística cidade de Jerusalém a descer do céu, assim os sonhadores da colonização norte-americana viram erguer-se do solo as atuais cidades populosas de Chicago, S. Francisco, Kansas, Denver, Salt Lake e Los Angeles, em sítios onde, um século antes, havia míseras povoações indígenas de duas centenas de almas.

Marshall Field, José Leiter e Potter Palmer foram sonhadores que viram nas cinzas fumegantes da incendiada Chicago uma nova e mais esplendorosa cidade do que a que o fogo consumiu; e os idealistas de S. Francisco deram aos positivistas os planos da imediata reconstrução da cidade, destruída pelo terremoto.

Quem seria capaz de enumerar os sonhos que, desprezados um ano antes, por serem quiméricos, se converteram, no século seguinte, em realidade, com admirativo aplauso da nova geração? Os idealistas! Os sonhadores! São eles a vanguarda da humanidade, os que se antecipam à época em que vivem, aqueles a quem se pode aplicar as evangélicas sentenças:

E a luz resplandecia nas trevas: mas as trevas não a compreenderam.

Estava no mundo e o mundo não o conheceu.

Dirigiu-se aos seus e os seus não o receberam.

Ninguém é profeta na sua terra.

Demos agora a palavra aos dois amigos que já atrás dialogaram sobre outro assunto e que, neste momento, continuam a falar sobre o tema que serve de epígrafe a este capítulo. Ouçamos o que eles dizem.

– Concordas com aquelas duas frases que há alguns anos apareciam impressas nos livros, nos jornais e nas revistas?

– Disseram-se tantas tolices por aí, desde que o primeiro charlatão começou a dar à língua...

– Não te recordas de que se aconselhava menos política e mais administração, e menos doutores e mais industriais?

– Já sei! É a eterna questão entre clássicos e românticos, entre praxistas e modernistas, entre acadêmicos e cubistas, e entre idealistas e positivistas.

– Quer-me parecer que não foste feliz na comparação, porque quem te ouvisse, havia de imaginar que os modernistas em literatura e os cubistas em pintura são idealistas, os incompreendidos que se antecipam à época em que vivem, quando na minha opinião são uns pobres desequilibrados, que hão-de desaparecer tão depressa como vieram à supuração.

– Isso é uma ninharia que não tem grande importância para o nosso caso. Limitemo-nos ao que primeiro disseste sobre o fato de se aconselhar menos doutores e mais industriais, ou seja menos teóricos e mais práticos, menos idealistas e mais positivistas.

– Está bem assim; mas é preciso distinguir entre teóricos e teorizantes, práticos e empíricos, industriais e fabricantes, comerciantes e lojistas, doutores e diplomados, idealistas e utopistas.

– Basta! Estou a ver que não nos entendemos, porque a todos os idealistas chamaram os seus contemporâneos fantasistas, sonhadores, loucos iluminados ou coisa pior. Como se há-de distinguir a cicuta do perrexil?

– Para isso, temos o discernimento que, bem exercitado, distingue o ideal da quimera, o sonho do pesadelo, o que é racional do que é absurdo.

– Acho isso muito difícil. Não há muitos anos, os sábios positivistas, os que só crêem no que vêem e conhecem os galos pela crista, consideraram a aviação uma coisa tão impossível de resolver como a quadratura do círculo e o moto-contínuo. E, contudo, aí tens a aviação montada em circunstâncias de se converter num vulgaríssimo meio de transporte.

– É verdade. Mas não nos desviemos do nosso tema. Na minha opinião, o que temos de mais e nos causa embaraço é essa multidão de farmacêuticos sem terem receitas para aviar, advogados sem questões para defender, engenheiros sem terem onde aplicar o seu engenho e doutores sem poderem ensinar as suas doutrinas. Do que nós precisamos é de máquinas, adubos, fábricas, canais, ciência útil e positiva e uma agricultura mais desenvolvida. Em suma: mais obras e menos palavras, menos doutores e mais industriais.

– Mas nota que essa teoria, essa idealidade tão desprezada pelos práticos, é uma série de verdades preconcebidas que a experiência há-de confirmar com o tempo. As descobertas dos sábios, que ao princípio parecem jogo de laboratório e recreio de amadores, convertem-se depois em fontes de prosperidade e riqueza. As infrutuosas tentativas de Porta, Wedgwood e Davy levaram Daguerre ao invento da fotografia, que tanto contribuiu para o progresso de todas as artes. Franklin, Galvani, Volta e Faraday foram para os positivistas do seu tempo frívolos idealistas, que se entretinham a deitar papagaios, esfolar rãs, empilhar rodelas de metal e fabricar barretes de escumilha. Mas estes passatempos, aparentemente pueris, foram a causa eficiente desses veículos que nos deixam, como por encanto, à porta de casa; dessa luz, roubada ao sol, que, sem viciar o ar, ilumina as nossas habitações; da corrente benéfica que alivia as nossas dores; da ponta metálica que arrebata o raio das mãos onipotentes de Júpiter.

– É inegável. Mas nota também que de nada serviriam as idéias mais luminosas, se não houvesse quem praticamente lhes desse realização.

– Por isso mesmo é que eu entendo e torno a dizer que são tão necessários ao progresso da humanidade os idealistas como os positivistas. O que hoje constitui monopólio da civilização não é mais do que a soma total dos sonhos de épocas anteriores. Os sonhos do passado, convertidos em realidade. Os transatlânticos, os túneis, as pontes, as bibliotecas, as universidades, os hospitais, as cidades cosmopolitas, com todas as suas comodidades e tesouros artísticos, são conseqüência dos sonhos dos nossos antepassados.

Na verdade, que seria da nossa civilização sem os idealistas? Ainda hoje viajaríamos na carreta de Édipo e navegaríamos nas pré-históricas pirogas.

– Isso é impossível, exclama o homem sem ideais.

– É possível, replica o sonhador.

E persiste no seu sonho, sofrendo toda a sorte de contrariedades, até realizar as suas visões, os seus inventos e as suas idéias, em prol do aperfeiçoamento da humanidade.

Vide Colombo, o sonhador, o idealista, alcunhado de aventureiro, metido a ridículo pelos pretensos sábios salamantinos, expulso donde quer que expusesse os seus planos, que, para a mentalidade dominante nessa época, eram considerados como disparates dum louco. Sonhava com um mundo transatlântico e, apesar de todos os obstáculos, acabou por converter o seu sonho em gloriosa realidade.

Dizem os práticos que o idealismo e a imaginação ficam muito bem aos artistas, aos músicos e aos poetas, mas que nada adiantam no mundo de negócios. E, contudo, todos os precursores da humanidade foram sonhadores. Os grandes industriais e os comerciantes notáveis distinguiram-se pela sua poderosa e profética imaginação. Tiveram fé nas inesgotáveis fontes de riqueza do seu país.

Sonhadores e idealistas são os que hoje mesmo projetam incrementar as obras públicas, susceptíveis de desenvolvimento em nações riquíssimas.

Sonhadores e idealistas são os que ardentemente desejam o reinado da paz e a harmonia entre todos os povos, a realização prática da confraternização universal entre todos os homens, embora a fria estátua da Liberdade dê a impressão de iluminar o mundo com o facho da discórdia.

Idealistas e sonhadores são os que vislumbram uma nova era sem exércitos permanentes, nem marinhas de guerra, nem metralhadoras, nem couraçados, quando os milhões, hoje deploravelmente gastos em instrumentos de destruição e de morte, a pretexto de defesa nacional, forem aplicados na cultura de baldios que centupliquem o valor produtivo do solo e que contribuam para o embaratecimento da vida; na instalação de vias férreas, na construção de pontes e na abertura de estradas que facilitem os transportes; no aumento da marinha mercante com novas linhas de navegação, que aproximem os continentes; na proteção das indústrias siderúrgicas e fabris, não com a artificiosa e instável muralha dos direitos, mas com o invulnerável escudo da educação técnica e da abundância de matérias-primas.

Todos estes sonhos, todos estes ideais parecem hoje quimeras de cérebros doentios, desconhecedores da realidade, e, contudo, estão preparando nas bigornas da imaginação e na forja do otimismo a futura sociedade que há-de amaldiçoar os armamentos e as esquadras de guerra – realidades do tempo atual – tão profundamente como hoje amaldiçoamos o regime feudal, as perseguições religiosas e a escravização das consciências.

Embora possa ser um paradoxo, os idealistas são os homens mais práticos do mundo, porque se antecipam à prática das coisas que idealizam e vislumbram o que há-de ser a civilização no porvir. Vêem o homem do futuro livre de fronteiras, de preconceitos e de rotinas que lhe tiranizam a mente. São os que eliminam racionalmente do seu vocabulário a palavra impossível.

O cárcere, o desterro, os tormentos e até a própria morte, não tiveram o poder de torcer a vontade que, fortalecida pela sabedoria, os instigava a serem constantes no seu ideal, naquelas aparentes quimeras destinadas a arrancar o mundo do selvagismo.

Haviam de nascer e morrer várias gerações antes de a ciência reconhecer as verdades afirmadas por Galileu, quando deu à humanidade um novo céu e uma nova terra, que o cego fanatismo condenou por as considerar uma heresia. Os sonhos de Confúcio, de Gautama e de Sócrates chegaram a ser uma realidade em milhões de vidas humanas. O próprio Cristo foi acusado de impostor, de visionário, de inimigo das leis vigentes, e, não obstante, toda a sua vida foi uma profecia, um sonho ideal do homem do futuro. Para além da humilde e imperfeita imagem de Deus, via o homem ideal, o homem perfeito, a restaurada imagem da Divindade.

As nossas visões não nos atraiçoam. São preliminares do que há-de ser, vislumbres de possíveis realidades. Os castelos no ar precedem sempre os que se edificam no chão.

George Stephenson, que era um pobre mineiro, sonhava com uma locomotiva que poderia revolucionar o tráfico do mundo. Trabalhava nos poços das minas por seis vinténs diários, e consertava as roupas e o calçado dos companheiros, para ganhar algum dinheiro com que pagasse a mensalidade da escola noturna que freqüentava, e para sustentar o pai, um infeliz cego, que vivia na companhia dele. Mas continuava sempre sonhando. Quando expôs em público o seu projeto, todos o consideraram louco. Os mais hábeis engenheiros escarneceram dele, dizendo:

– Haverá maior disparate do que este? As fagulhas da máquina pegariam fogo às casas.

– E por onde haviam de passar os gados?

– O fumo infectaria o ar.

– E, se a caldeira rebenta, mata todos os passageiros.

– Os segeiros e cocheiros morriam de fome por não terem que fazer.

– E ainda não é só isso. Quem é que se convence de que um comboio com muitos vagões possa andar sobre carris por uma superfície convexa como a da terra? Descarrilaria, logo que se pusesse em marcha.

– Antes ir preso ao rabo dum cavalo do que viajar em estrada de ferro.

– Não falemos mais nesse disparate, porque felizmente são poucos os que pensam em tal loucura.

Estas e outras amabilidades de igual jaez proferiram os sábios engenheiros da Academia londrina, quando examinaram o projeto.

Stephenson, porém, continuou a sonhar. A sua vontade não enfraquecia. Previa o futuro. Por último, conseguiu que o projeto de concessão da primeira estrada de ferro se discutisse na Câmara dos Comuns. Um deputado atacou o projeto, dizendo:

– Haverá maior absurdo e idéia mais ridícula? Como é possível uma locomotiva adquirir o dobro da velocidade dum cavalo? Se o parlamento aprovar a concessão da estrada de ferro, tem que limitar a velocidade a oito milhas à hora, que é o máximo a que se pode arriscar.

Pois apesar das calúnias, do ridículo dos obstáculos, da oposição da petulante engenharia oficial, e da hostilidade dum povo tão prático como o povo britânico, o sonhador Stephenson viu realizado o seu sonho. Mal imaginariam os engenheiros de então que os expressos do século XX haviam de andar cem quilômetros à hora! Nem por sombras previam a eletrificação das estradas de ferro! O próprio Stephenson estava longe de idealizar estas maravilhas nos seus sonhos, que tão quiméricos pareciam aos seus contemporâneos.

A 4 de agosto de 1907, celebrou Nova Iorque o centenário do sonho de Roberto Fulton.

Na sexta-feira, 4 de agosto de 1807, uma multidão que proferia toda a espécie de chufas, troas e zombarias, estava apinhada nos molhes do Hudson, para se rir do fiasco em que havia de resultar a idéia mais ridícula que jamais se abrigara em cérebro humano.

– Em que cabeça é que se mete querer navegar contra a corrente do Hudson num barco sem velas?  bradava a arraia miúda, sorrindo por entre os dentes.

– Caiu numa boa esparrela!  diziam outros,

– Quando a corrente pregar com o barco de encontro à margem, meteremos esse idiota num manicômio.

– Mal empregado tempo, trabalho e dinheiro, perdidos em semelhante estupidez!

O Clermont, porém, triunfou plenamente da experiência, e as troças deram lugar a gritos de admiração, os motejos foram substituídos por elogios, e Fulton foi aclamado benfeitor da humanidade.

O que não deve o mundo a Morse, que lhe deu o seu primeiro telégrafo? Quando o inventor solicitou um subsídio de cinco mil dólares para efetuar a experiência na linha de Washington a Baltimore, os parlamentares desataram a rir escarninhamente.

Depois de muitas decepções que desalentariam outros ânimos menos enérgicos, conseguiu que o governo norte-americano subsidiasse a experiência do invento. No dia da experiência, enquanto os convidados esperavam pelo telegrama, sem acreditarem no êxito da prova, um deles perguntou velhacamente a Morse:

– Diga-me o meu amigo uma coisa: quantas encomendas poderá mandar pelo fio?

Mas, daí a instantes, recebia-se o primeiro despacho telegráfico, e o velhaco ficou tão vexado como orgulhoso se sentiu o inventor.

Quando Guilherme Murdock, nos fins do século XVIII, sonhava em iluminar Londres com gás de hulha, canalizado para o interior das habitações, os homens de ciência desse tempo chasquearam da intenção, e até o próprio sir Humphry Davy, o celebre inventor da lâmpada mineira, troçava de Murdock, dizendo-lhe:

– Querem ver que pensa em utilizar para gasômetro o zimbório de S. Paulo? Então o senhor não vê que é impossível obter uma chama sem pavio?

Sir Walter Scott, o notável romancista, também meteu a ridículo a idéia de iluminar Londres com fumo; mas viveu o tempo preciso para escrever os seus últimos romances à luz do gás, no seu castelo de Abbottsford.

O já quase vulgaríssimo automóvel não seria hoje um fator valiosíssimo da indústria, do desporto e das comunicações e transportes, sem os sonhos de Carlos Goodyear, empenhado em dar aplicação prática ao caucho vulcanizado, de que se fazem os pneumáticos. Toda a gente lhe chamava maluco, porque, durante onze dilatados anos, teimou no seu propósito, lutando com toda a espécie de dificuldades. Esteve na cadeia por contrair dívidas. Teve de empenhar as roupas, para que os filhos não morressem de fome. O mais novo teve uma doença mortal, não tendo ele com que custear as despesas do enterro. E, contudo, o seu invento faz hoje a fortuna de muitos industriais.

Os grandes gênios foram sempre visionários. O escultor vê a estátua no pedaço de mármore antes de o golpear com o cinzel. O pintor vê o quadro, com todas as suas linhas e cores, antes de tocar a tela com o pincel. O arquiteto traça o edifício mentalmente, antes de colocar a primeira pedra. Cristóvão Wren viu a catedral de S. Paulo em toda a sua magnífica formosura, antes de lhe abrir os alicerces. Os seus sonhos revolucionaram a arquitetura londrina.

Os sonhos do barão de Haunmann fizeram de Paris a mais linda cidade do mundo.

As nossas casas são os sonhos dos que se esforçaram por melhorar as condições da habitação humana. Dia virá em que se realize o sonho dos que hoje desejam a extinção do iníquo regime do inquilinato e que toda a família tenha casa modesta, mas sua.

A divina herança do homem é a sua tendência para sonhar com o ideal. Pouco importa o muito que atualmente possamos sofrer, se temos fé num futuro melhor, porque esse futuro, apesar dos erros que predominam sobre a finalidade da vida, pertencerá aos mesmos que se esforçaram em prepará-lo.

Não há medicina tão saudável como o otimismo, nem tônico da alma tão eficaz como a esperança num tempo melhor. É inestimável a faculdade de vencermos, de momento, todas as dúvidas e tribulações que nos envolvem, elevando-nos a uma atmosfera de harmonia, de beleza e de verdade. Quem seria capaz de resistir à luta pela vida, se lhe destruíssem as esperanças e os ideais noutra vida mais alta em conformidade com as suas aspirações?

A vontade firme, o ideal luminoso, a esperança otimista é que é preciso ter, para não desanimarmos nos infortúnios de todos os dias.

Digamos como o inspirado poeta espanhol Adelardo Lopez de Ayala:

Dai-me, Senhor, a firme vontade, companheira e sustentáculo da virtude; a que sabe procurar a paz num abismo de miséria e a luz no meio das sombras.

– Parece impossível,- dizia uma senhora a uma sua amiga, que mostre tamanha afabilidade e tanta presença de espírito, quando já tem sofrido tanto neste mundo.

– É que eu vejo sempre as coisas e as pessoas pelo seu aspecto luminoso. As sombras não me seduzem. Estou acostumada a ascender, das contingências mais difíceis e desencontradas, a uma esfera de harmoniosa calma, e a regressar ao meu trabalho com o espírito retemperado e o corpo robustecido.

Mas não vamos até ao extremo vicioso do idealismo estéril, porque, se andamos sempre a olhar para o alto, arriscamo-nos a tropeçar nos obstáculos que se nos deparam pelo caminho. Há pessoas que passam a vida a fazer castelos no ar sem empregarem o menor esforço para os construir solidamente no chão. Vivem numa atmosfera teórica e aparente, até deixarem atrofiar, por inanição, todas as suas faculdades. São os malogrados que dizem mal da sua negra sorte.

É admirável sonhar com o ideal, quando o sonhador tem a suficiente perseverança e energia para harmonizar os sonhos com as realidades; mas perverte o seu caráter quem sonha sem empregar esforço para realizar as suas aspirações. É necessário conciliar o ideal com a realidade, o propósito com a ação. Assim se identifica o idealista com o positivista. Assim conseguiu John Harvard fundar, com um punhado de dólares, a hoje celebre universidade que tem o seu nome. E assim realizou Yale o sonho da sua vida, vendo o princípio do seu triunfo em meia dúzia de livros.

Não deixeis de sonhar; mas sonhai acordados. Dai alento às vossas visões e tende fé nelas. Acariciai os vossos sonhos e esforçai-vos por efetivá-los. É um dom divino aquele que nos impele o olhar para o alto e para diante, o que estimula as nossas aspirações e favorece os nossos desejos de progresso e perfeição.

O desejo ardente é a mão que nos aponta o caminho do céu. Conforme for a vossa visão, assim será a vossa vida.

A obra grandiosa consiste em regular o nosso procedimento pelo modelo que se nos revelou no momento da nossa suprema inspiração; consiste, portanto, em tornar duradouro o nosso supremo instante.

Todos estamos convencidos de que a nossa melhor obra é uma vaga e mesquinha representação do que devemos e podemos fazer. A potência criadora do ideal derrubará, um dia, as barreiras de delimitação, levantadas pelas diferenças de raça, de nacionalidade e de crença, e realizará a visão do poeta:

A idade de ouro ainda está para vir. O caminho do passado conduziu-nos ao ponto onde nos encontramos. O caminho do futuro ainda nos há-de conduzir a um plano superior.

8. O entusiasmo no trabalho

– Qual foi o segredo do seu êxito? , perguntaram uma vez a Daniel Guggenheim, o rei das minas, como lhe chamam nos Estados Unidos.

– O entusiasmo com que sempre trabalhei. O espírito de otimismo e confiança que infundi no meu trabalho.

– Mas a verdade é que tem aqui um gabinete no maior luxo: quadros preciosos, móveis riquíssimos, lâmpadas soberbas... Isto é que é gozar a vida!

– Pois note uma coisa: o gabinete, os quadros, os móveis, as lâmpadas e todo este luxo que o faz admirar, custaram-me quarenta anos de penosos sacrifícios no México, no Chile e em Alaska. É muito cômodo invejar os luxos citadinos e não fazer os esforços necessários para os gozar legitimamente.

– E o que é preciso para obter o êxito?

– Sacrifício, sacrifício e sacrifício. Depois, é preciso principalmente ter perseverança, entusiasmo no trabalho e tenacidade. Sem estas qualidades, ninguém espere vencer na vida. Desde todo o princípio, devem ser acompanhadas do conhecimento da profissão que se exerce, porque de nada valeria ao ignorante a mais enérgica vontade, se primeiro a não aplicasse ,à cultura profissional.

– E que mais?

– Há muitas outras regras que podem apresentar-se sob a forma de conselhos úteis. Assim como um revés dá lugar a outro revés, assim também um êxito é a origem doutro êxito. Portanto, convém sair triunfante dum combate antes de entrar noutro.

– E qual lhe parece melhor: o talento ou o entusiasmo no trabalho?

– Se me dessem a escolher entre um homem de extraordinário talento e excepcionais aptidões, mas sem entusiasmo nem perseverança, e outro de mediana inteligência, mas perseverante e entusiasta em último grau, eu, sem hesitar, preferiria o segundo.

Não é preciso perguntar a um homem se gosta da profissão que exerce, porque ele manifestará esse prazer no semblante e no espírito de ilimitado entusiasmo que puser na sua obra. Se gostar dela, esse gozo íntimo resplandecerá em todo o seu ser.

Uma prova reveladora do caráter do indivíduo é o espírito com que ele executa o seu trabalho. Nunca ocupará um lugar proeminente na sociedade, se o fizer forçadamente, como escravo azorragado, e se não puser nele o entusiasmo necessário, de maneira a sentir gozo espiritual, em vez de penosa fadiga. Nunca poderá obter da sua profissão os esplêndidos resultados que tinha a esperar quem fizer da vida uma idéia tão errônea que não compreenda o motivo por que o homem tem de trabalhar para viver, em lugar da natureza lhe dar tudo quanto ele necessita, sem esforço da sua parte.

Muitíssimas pessoas não têm consideração alguma pelo seu trabalho. Não vêem nele o meio de eduzir faculdades latentes e de proveitosamente se exercitarem para melhor produzirem; consideram-no antes como uma desagradável necessidade para lhes proporcionar o sustento e abrigo, e como uma inevitável fadiga que a cada instante os atormenta.

E aqui temos nós mais um argumento em prol da evolução do espírito. Para que uns homens nasçam com todas as qualidades de caráter, indispensáveis ao bom êxito, e outros tenham de desenvolver, tardiamente e em menor grau, as mesmas qualidades, sujeitos a um rude trabalho em que é muitíssimo maior o esforço do que o proveito, temos necessariamente que atribuir este fato à evolução espiritual; aliás, só poderíamos invocar o motivo inadmissível dos caprichos de Deus ou dos seus secretos desígnios, o que é o mesmo.

Admitindo, porém, a evolução do espírito, o resultado é este: é que, assim como no universo material não se perde um átomo de matéria nem um dine de energia, no universo moral não há esforço, por mais leve que seja, que não tenha a sua mediata ou imediata utilidade para quem o exerce com prudente entusiasmo.

A desigualdade entre os homens está na posição e não na sua nobreza hereditária. Daqui a importância do estímulo para desenvolver as qualidades latentes que outros já manifestaram em anteriores etapas de evolução, podendo todos os que ainda as não tenham desenvolvidas consegui-lo mais tarde ou mais cedo, se seguirem o exemplo dos que já as desenvolveram,

– Porque é que Guggenheim, o rei das minas, excedeu neste negócio todos os seus competidores?  perguntou alguém a um dos seus mais íntimos amigos.

– Porque sempre se distinguiu pelo seu admirável critério para escolher as ocasiões mais oportunas. Pelo seu inquebrantável otimismo, pela sua fé no futuro, pela sua confiança no aperfeiçoamento dos métodos siderúrgicos. Pela sua extraordinária sagacidade em escolher os seus subordinados e em lhes fazer ver as coisas tal como ele as via, comunicando-lhes o espírito de decisão e de entusiasmo de que era possuído. Pelo paternal carinho com que tratou todos os seus empregados, assegurando-lhes os meios de subsistência, sem que eles dispendessem um centavo. E porque não receou gastar um milhão de dólares em empresas que prometiam cinqüenta de rendimento, como por exemplo, nas minas chilenas de cobre, cujos jazigos estavam num árido e montanhoso deserto, a três mil metros acima do nível do mar. Era um terreno onde não se conhecia vegetação, nem há memória de que alguma vez tivesse caído uma gota de chuva, sendo preciso conduzir a água duma distância de 64 quilômetros, sem caminhos nem atalhos por onde passar. Era um sítio onde tudo mais parecia repelir do que convidar os seres humanos. O laborioso entusiasmo de Guggenheim converteu o triste deserto numa florescente povoação mineira.

A propósito deste fato, diz o próprio Guggenheim.

Os borrachos não voam para a vossa boca já assados e prontos para serem comidos. Haveis primeiro de ver o borracho, depois agarrá-lo, depená-lo e, em seguida, assá-lo antes de o comerdes. Pois nos negócios acontece o mesmo.

Deus colocou os minerais em sítios muito afastados das habitações humanas; por isso o negócio das minas seduz pouca gente. Todos preferem ficar na cidade, gozando as comodidades que ela oferece. Não querem sair para fora do seu ambiente, em busca de inexploradas riquezas, e lutar durante vinte ou trinta anos com tremendas fadigas.

Não encontrareis minas de cobre, chumbo, prata ou ouro, em Nova Iorque e em outras cidades. Haveis de ir a lugares desabitados e inacessíveis, onde tudo é rude, incômodo, áspero e ingrato. O único gozo que ali podeis experimentar é o do entusiasmo no trabalho que deve fazer prosperar a vossa empresa. Não podereis ir ao teatro, nem ao concerto, nem ao museu, nem ter magníficas alfombras, móveis confortáveis e quadros formosos. Tereis de trabalhar todo o dia como escravos, tendo por único recreio um pouco de leitura à noite, à luz dum candeeiro de petróleo.

As ocasiões para progredir são hoje tão numerosas como sempre o foram, desde que, para se aproveitarem, se esteja resolvido a fazer os necessários sacrifícios. Sem sacrifício, ninguém pode obter êxito legítimo, seja qual for a sua profissão. Em parte alguma se obtém nada por coisa nenhuma, porque o que nada custa nada vale nem nos proporciona prazer algum. O prazer, o gozo derivam do trabalho árduo, do esforço fatigante, do sacrifício feito para realizar a nossa aspiração. Quanto maior for esse sacrifício, mais intenso será o prazer do triunfo. Trabalho entusiasta, estudo minucioso e sacrifício pessoal –eis o que é indispensável para obter o êxito que alegra a alma, satisfaz a consciência e enxuga as lágrimas de muitos, deixando os corações tranqüilos.

Quando começamos com o negócio de metais, lembro-me de que meu pai nos disse, ao sete irmãos que éramos: “Ides estabelecer-vos por vossa conta, com o propósito firme de trabalhardes afanosamente. Mas lembrai-vos de que não será demais nenhum sacrifício que fizerdes para vos sairdes bem da vossa empresa”. A estas palavras de meu pai posso eu acrescentar, a título de conselho aos jovens que desejem ser alguma coisa neste mundo: “Os borrachos não voam para a vossa boca já assados e prontos para serem comidos”.

Este aforismo final do rei das minas exprime a mesma idéia que o antiqüíssimo rifão português: não se pescam trutas a bragas enxutas. Mas não basta trabalhar afanosamente e estar sujeito a perigos e prejuízos que atingem toda a empresa humana; é necessário que a índole do trabalho se harmonize com a do caráter, isto é, que haja uma relação exata entre a aptidão e a profissão, pois só assim se pode trabalhar com entusiasmo. O trabalho, então, é um verdadeiro prazer e é preferido às mais atrativas diversões mundanas.

Quando o indivíduo não ocupa o lugar que a natureza lhe destinou, é impossível trabalhar com entusiasmo. Deve necessariamente estar descontente, inquieto, desgostoso consigo mesmo e com a sociedade, contra cuja organização se revolta o seu desagrado pessoal.

Por conseguinte, não basta dizer às pessoas jovens: “Trabalhai com entusiasmo; não desanimeis; sede perseverantes na vossa empresa; concentrai todas as vossas energias no trabalho que fizerdes; não vos poupeis a esforços nem a sacrifícios, pois Deus ajuda a quem da sua parte fizer o que lhe compete, e ninguém vos ajudará, se da vossa parte não fizerdes o que vos cumpre.”

Tudo isto é muito bonito para se dizer numa passagem de literatura que incite ao trabalho; porém, para se passar das palavras aos fatos, exigem-se certas condições que não dependem em absoluto da vontade individual, mas que são o resultado da influência da educação recebida na infância e na adolescência.

Se os pais dão aos filhos uma errada orientação profissional, desviam-nos assim do caminho do êxito e levam-nos fatalmente para o da derrota. Desta forma, ficam os filhos numa posição falsa, visto exercerem uma profissão de índole oposta às suas naturais aptidões, de nada servindo os esforços duma vontade que esterilmente se debata contra si mesma:

Diz um escritor a este respeito:

A escola deve ser um laboratório psicológico, onde o professor descubra as naturais aptidões do educando e o oriente para a profissão social que melhor lhe convenha. Se, porém. o educando não se encontra satisfeito nessa profissão e não pode trabalhar nela com todo o seu entusiasmo, é sinal de que o professor errou na sua maneira de ver, e então o educando deve obedecer imediatamente aos impulsos da sua vocação já definida, enquanto é tempo para mudar de rumo.

É lamentável ver uma criatura, que Deus criou para ser uma nota harmônica no conceito social, desafinar deploravelmente, por ter sido colocada por mãos desajeitadas em sítio de pentagrama onde as suas vibrações não afinam com as outras notas.

Pouco importa que o vosso trabalho seja modesto e humilde. A qualidade dele será determinada pelo espírito com que o realizardes. É mais louvável tornar uma rua bem higiênica do que redigir atabalhoadamente um projeto de lei. O que principalmente deveis ter em vista é nunca fazerdes o vosso trabalho de má vontade nem o deixardes em meio, porque, além de ficar incompleto e, portanto, sem utilidade, desmerecereis no conceito dos vossos superiores, se trabalhais por conta alheia, ou perdereis o crédito na vossa profissão, se trabalhais por vossa conta.

Não adquirais o hábito de fazer as coisas sem o devido escrúpulo e ponderação. Lembrai-vos de que do resultado do vosso trabalho deve depender o vosso futuro. Fazei-o com a mesma solicitude e entusiasmo, como se tivésseis de apresentá-lo num exame, exibi-lo numa exposição ou levá-lo a um concurso.

Há uma relação tão íntima entre a força espiritual e a material que, conforme fora a atitude anímica com que o homem empreenda um trabalho, assim será o resultado dele. As coisas também têm alma, mas quem lhes inspira essa alma é quem as executa com entusiasmo.

A antiga máxima que diz que cada um é filho das suas obras, poderia completar-se, dizendo que as obras de cada um revelam as aspirações, os ideais e as características do autor. Ninguém pode atingir o máximo da sua energia individual, enquanto considerar o seu labor como trabalho forçado ou fardo inevitável.

Mas ainda no caso desfavorável de que as circunstâncias vos tenham colocado numa profissão de que não gosteis, vencei essa repugnância até achardes ocasião oportuna de descobrirdes outra profissão melhor e mais útil, o que decerto conseguireis.

Os ofícios, por mais humildes que sejam, podem sempre nobilitar-se, sabendo-os desempenhar habilmente, de maneira a transformá-los numa profissão digna.

Todavia, ao entusiasmo é preciso aliar a inteligência, a sabedoria, o senso comum, as faculdades intelectuais, enfim, que devem acompanhar as anímicas.

Diz a este respeito um indivíduo que triunfou nos combates da vida:

A coisa mais poderosa que eu conheço depois da vontade é o cérebro dum homem. Com ele pode lavrar diamantes e abrir túneis. Deus deu um cérebro a cada um de nós. Mas como costumamos utilizar este dom? Não há ninguém que, tendo aproveitado o tempo em adquirir conhecimentos úteis durante a infância e a puberdade, não possa fazer progredir a sua obra, desde que a ela se dedique de todo o coração e aplique utilmente o seu cérebro. O êxito é garantido para quem se colocar em atitude mental de conseguir o que deseja, e depois trabalhe, trabalhe incansavelmente e no trabalho faça consistir o motivo da sua existência.

Mas cá temos outra vez em animada conversa os nossos dois amigos, que encaram as coisas por dois aspectos diferentes e as vêem, conforme o prisma por que as examinam. Registremos o que eles dizem:

– Eu não confio tanto como tu na eficácia da literatura que incita ao trabalho, porque essa literatura trata especialmente das vidas dos homens, cuja preocupação única consistiu em amealhar dinheiro. Se todos os rapazes que lêem esses exemplos fossem capazes de os seguir, guiados apenas pelos estímulos da leitura, daria em resultado chegarem todos a ser milionários, ou todos pobres dentro das suas riquezas, o que é o mesmo, porque o pobre desapareceria como termo de comparação. Ora a riqueza sem a pobreza havia de ser uma coisa tão monótona como seria a luz sem a sombra, a virtude sem o vício, a verdade sem o erro e o bem sem o mal.

– Lá tornas tu com os exageros do costume. Eu não creio que os que escrevem obras de estímulo para a juventude tenham a veleidade de querer que os seus conselhos sirvam para toda a gente. Nada disso. Aproveitam somente os que reúnam circunstâncias especiais para pôr o conselho em prática.

– Mas não contestas que muitos homens se colocaram em atitude mental favorável para obterem o que desejavam e, apesar da sua perseverança e laboriosidade, e do seu entusiasmo para o trabalho, chegaram a envelhecer e a morrer sem triunfarem dos seus esforços.

– Porque não souberam utilizar o cérebro. Se o tinham, era um cérebro desequilibrado. Vou apresentar-te um exemplo: Há alguns anos morreu um opulento industrial que tinha um filho único. Por sua morte, deixou a este o negócio que ia prosperando de dia para dia. O filho, pesando a responsabilidade que ia assumir, tomou a direção do negócio, procurando mantê-lo na mesma grande prosperidade. Mas, como sucede com os noventa por cento dos negociantes, quis encarregar-se de todas as particularidades inerentes à sua indústria, e, ao fim dum mês, começou a adoecer de tal maneira que, tendo a mania de fazer tudo, acabou por não fazer nada. Nestas condições, o negócio começou a falhar e ele foi-se arruinando. Tudo isto por não haver utilizado convenientemente o seu cérebro.

– Nisso estou de acordo. Nem sempre havemos de estar a discutir como os políticos ministeriais e de oposição, entre os quais uns afirmam uma coisa, e outros passam logo a negá-la. Também entendo que o entusiasmo no trabalho não consiste em o dono do estabelecimento estar a espanar as prateleiras e deixar lá ficar o pó, ou estar a aviar os fregueses e a escrever cartas ao mesmo tempo.

– Evidentemente. O que tal fizesse seria um lojista e não um comerciante. Seria um carrejão e não um trabalhador consciente. O homem que quer triunfar, pensa, medita, prevê as coisas, toma planos e confia a empregados, sabiamente escolhidos, a execução dos pequenos assuntos. O dono do estabelecimento é o cérebro e o coração do negócio; os empregados são o braço que executa.

– É absolutamente verdade tudo o que dizes! Por mais que examine e observe o meio comercial, só vejo negociantes rotineiros que se assustam e desanimam, quando têm de pagar direitos alfandegários. Não pensam no verdadeiro sentido da palavra negociante.

– E não só não pensam como não vêem o que há além do dia ou da semana que lhes marca o calendário.

– Depois, queixam-se de que os tempos são maus e de que o governo não os protege, quando do que necessitam é de pôr o cérebro em vibração, em vez de o deixarem parado como um órgão sem vida, privado de todo o movimento.

9. Responsabilidade e energia

Cá temos outra vez em campo os nossos amigos desconhecidos, que cavaqueiam com a sua habitual cordialidade. A conversação é bastante animada, mas sem cair na discussão violenta, como costuma suceder, quando os adversários estão de antemão resolvidos a não se deixarem vencer nem a convencer.

Eis, em síntese, o que eles disseram:

– Já viste alguma vez um torpedo?

–Vivo, não.

­– Como assim? Queres talvez dizer carregado.

– Torpedo só vi o do gabinete de história natural que havia no colégio. E, por sinal, que estava muito bem dissecado.

– Que diacho de trapalhada é essa? Um torpedo dissecado? Ora deixa-te de disparates, que não ficam bem a ninguém e muito menos a ti, digo-to sem ofensa.

– Mas eu estou a falar sério! Um torpedo dissecado, repito. Não sabes o que é um torpedo?

Então não sei, homem?! Já tive alguns na minha mão.

– Estou a ver que não nos entendemos. Aí tens o motivo por que às vezes duas criaturas estão discutindo três horas sobre uma palavra, que cada uma interpreta a seu modo, por não terem antecipadamente compreendido o sentido em que deve ser tomada. Eu referia-me ao peixe que é da família do tubarão e da raia e a que, por entorpecer as suas vítimas com descargas elétricas, os naturalistas chamaram torpedo. E tu falas da pequena mas terrível arma submarina a que, por analogia com o peixe do mesmo nome, os engenheiros navais também chamaram torpedo.

– Estamos então entendidos!

– Agora podes começar pelo que ias a dizer.

– Pois bem. Torno a perguntar-te: já viste algum torpedo dos que não são peixes?

– Felizmente, ainda não. Instrumentos de morte nem vê-los.

– Põe de parte a sua aplicação destruidora e repara que um torpedo de maximite tem oculta uma energia poderosíssima para afundar uma dessas fortalezas flutuantes que, resistindo muitas vezes aos temporais, baqueiam com um simples furo.

– Mas é que, assim como Deus deu ao cavalo uma cauda, não só para adorno, mas para afugentar as moscas e os tavões, assim também os engenheiros navais dotaram os navios de guerra duns aparelhos próprios para caçar torpedos.

– A isso não pretendo referir-me. Simplesmente me proponho estabelecer um simile entre a energia do torpedo e a da alma humana.

– Pois parecem-me duas coisas tão heterogêneas que não servem para termos de comparação.

– Enganas-te. Há entre elas bastante analogia.

– Então vou cerrar os olhos e os lábios e serei todo ouvidos.

– Muito bem. Antes de mais nada, dir-te-ei que os pequenos choques não determinam a detonação dum torpedo de maximite.

– Faz lembrar o diminutivo dum nome de mulher. Agora abro os olhos e descerro os lábios para te perguntar. Que significa isso de maximite?

– É um explosivo, cujo nome deriva do apelido do seu inventor - Hiram Maxim.

– O das metralhadoras?

– Esse mesmo.

– Que engenho tão lamentável!

– Não te desvies da questão e deixa-me continuar.

– Pronto.

– Uma criança pode brincar impunemente com um torpedo de maximite e até arremessá-lo como uma bola contra a parede. É preciso dispará-lo por meio dum tubo, com muita velocidade, para encontrar uma resistência capaz de provocar, por violentíssimo choque, a detonação do explosivo.

– E a que propósito vem isso?

– A propósito duma pessoa não saber propriamente do que é capaz, enquanto se não manifestar a prova duma grande responsabilidade, duma suprema crise da sua vida. Aí tens Grant, o herói da guerra da Secessão. Na sua mocidade, teve uma vida rústica, acarretou troncos de árvores, trabalhou numa fábrica de curtumes, entrou depois na academia militar de West Point, abandonou mais tarde a carreira das armas para se dedicar a intermitentes ocupações civis, e nenhuma destas circunstâncias despertou o gigante que dormitava no fundo da sua alma. O seu nome, com certeza, não teria ultrapassado os limites da cidade onde vivia obscuramente, se não fosse a tremenda convulsão da guerra civil.

“Palpitava em Grant uma enorme energia potencial, mas precisou do choque da guerra civil para detonar, isto é, para se revelar em façanhas extraordinárias.”

Verdadeiramente, tinha razão o nosso anônimo interlocutor. Os homens enérgicos e vigorosos que deram impulso a civilização foram produto daquilo que fizeram da sua parte. Conquistaram, palmo a palmo, o terreno que pisaram. Merecem o título de gigantes da vontade, porque venceram dificuldades que para outros pareciam insuperáveis, e dominaram situações de suprema gravidade. Apoderaram-se da fortaleza dos obstáculos e destruíram-na.

Quando as circunstâncias da vida nos proporcionam os meios de continuarmos combatendo ou de perecermos na luta, porque estejam cortados todos os caminhos de retirada, a própria grandeza do perigo converte o instinto de conservação em estímulo da vontade, e então o homem faz das fraquezas forças, sendo capaz de fazer aquilo de que nem sequer presumira em circunstâncias ordinárias. Enquanto recebemos auxílio alheio, não conhecemos os nossos próprios recursos. A adversidade é muitas vezes a base da prosperidade, e por isso o adágio popular diz muito acertadamente que há males que vêm por bens.

Para que o homem produza tudo quanto possa produzir, é preciso, ou, pelo menos, é conveniente que tenha a verdadeira responsabilidade dos seus atos; que do que ele faça dependa a sua própria vida e a de todos os que estão debaixo das suas ordens. Aqueles que não desempenham cargos de responsabilidade pessoal nunca desenvolvem toda a sua energia anímica. Por este motivo, os militares, sujeitos aos rigores da disciplina, praticam façanhas em tempo de guerra que também praticaria qualquer outro que ocupasse o seu posto e tivesse vivo e ardente o sentimento do brio militar.

Geralmente, as circunstâncias críticas sobrevêm sem que sejam diretamente provocadas por quem nelas se vê envolvido. Podem ser o resultado final da imprevisão, da imprudência ou do mau procedimento do indivíduo; mas também são às vezes das que o vulgo chama circunstâncias fortuitas, embora na realidade sejam fios necessários na trama da vida.

Mas, quando o homem tem a suficiente coragem para dominar todas as situações, não espera que a contingência crítica venha espontaneamente, é ele mesmo que a provoca.

É assim que vemos Fernão Cortez desarvorar as naus para remediar o perigo que ameaçava a sua grandiosa empresa, devido à inconstância dos seus soldados. Alguns destes haviam já pensado em fazê-la abortar, tornando a Cuba, em embarcações ligeiras, para avisar o governador desta ilha, Diogo Velazquez, das relações que Cortez mantinha diretamente com o rei Carlos I, a quem no melhor navio da armada enviava riquíssimos presentes das novas terras descobertas e conquistadas, na esperança de invadir o misterioso império de Montezuma.

Estava Cortez, como costuma dizer-se, entre o martelo e a bigorna, pois era acusado pela espionagem de Diogo Velazquez, cioso da sua valentia, e aguardado temivelmente pelas incertas vicissitudes duma empresa que, vista hoje a quatro séculos ele distância, parece mitológica.

Cortez compreendeu, quatrocentos anos antes de se descobrir a psicologia transcendental, que só podia confiar nos seus soldados, permitindo que se salvassem por todos os meios que não fossem os do seu próprio valor. Então, resolveu meter os navios a pique, imitando neste ato os capitães da Antigüidade Agatocles, Timarco e Quinto Fabio Máximo, que, para encorajarem os seus soldados, queimaram as naus da expedição.

Os que passam a vida, desempenhando lugares inferiores, sem a responsabilidade de direção, não têm ensejo de desenvolver as suas energias, porque pensam com o cérebro alheio e limitam-se a executar o programa traçado pelos seus superiores. Não aprendem a pensar por si próprios e a agir independentemente, deixando para sempre em estado embrionário os seus dons de originalidade, de inventiva, de independência, de confiança própria e de iniciativa. Precisam dalguns anos de experiência em cargos de verdadeira responsabilidade para desenvolverem energias que possam resolver situações difíceis, acomodar os meios aos fins e estar à altura das supremas crises da vida.

É costume dizer-se que, se um rapaz tiver algum valor, o há-de revelar com o tempo. Mas esta afirmação não é de todo verdadeira, pois, por muito grande que seja o valor do indivíduo, a manifestação desse valor depende em grande parte das circunstâncias de lugar e tempo e do caráter das pessoas com quem a lei da vida o põe em mais estreita relação.

Muitos empregados de comércio e de escritório, gerentes de fábrica, contra-mestres de oficina, praticantes de advogado, redatores de jornais, possuem qualidades intimamente superiores às dos seus chefes, mas não se lhes proporciona a ocasião de ocuparem um lugar onde o sentimento da responsabilidade dê às energias íntimas o ponto de aplicação de que precisam, para se manifestarem em toda a sua plenitude.

Verdade é que os mais arrojados lutam confiadamente; mas isto não prova que tenham mais capacidade do que os que não avançam, porque às vezes o maior talento anda aliado à modéstia e até à timidez.

O gerente dum dos mais importantes estabelecimentos comerciais da formosa cidade do Tibidabo era o cérebro e o coração da casa, reunindo todos os requisitos que a técnica dos negócios exige no comerciante moderno. Mas, como a felicidade completa é coisa que não existe neste mundo, quis a morte que o dono do estabelecimento ficasse sem o seu inteligente representante, perdendo assim a felicidade que nele gozava.

– Pobre homem!

– Agora é que a casa dá em pantana!

– Quem virá substituí-lo?

– Por muito que procurem em todo o Tibidabo, não encontrarão outro como ele.

– Costumam os pintores representar o amor e a fortuna com os olhos tapados, mas não põem uma venda nos olhos à morte, que ainda é mais cega do que eles. É ela que nos arrebata o mais poderoso talento da casa e deixa-nos, talvez para semente, uma dúzia de cabeças ocas.

Estas e outras frases eram proferidas pelo pessoal do estabelecimento no dia do enterro, e o dono que, diga-se a verdade, não sabia sequer como se abria uma carta, confiou interinamente a gerência ao empregado que, durante muitos anos, fora o ajudante do extinto, porque o julgou mais apto para continuar a obra do seu antecessor.

Os empregados e o próprio dono receavam que o novo gerente se não saísse bem do novo encargo; mas ele demonstrou, desde logo, tal clarividência no exame e na resolução das questões inerentes ao serviço, introduziu reformas tão acertadas no regime do estabelecimento, em benefício do pessoal e sem prejuízo do serviço e do proprietário, que imediatamente todos reconheceram o que a primeira impressão não lhes deixava ver a princípio: reconheceram que, com todo o seu talento, sagacidade e tino, o falecido gerente julgava ter feito chegar o estabelecimento ao máximo de prosperidade, sem se lembrar de que tudo, neste mundo, por muito bom que pareça, é susceptível de melhoramento, e que unicamente se preocupava em conservar o prestígio adquirido.

O novo gerente, porém, a quem todos apenas supunham capaz de imitar servilmente os processos do seu antecessor, e que, por ter assumido aquele cargo de responsabilidade, via toda a gente com os olhos postos nele, resolveu envidar os melhores esforços e tomar rigorosos planos para alçapremar o prestígio e a prosperidade do estabelecimento, que o falecido gerente se limitara a conservar, e conseguiu-o a contento de todos.

– Quem tal diria!

– E tem muito mais valor do que o pobre gerente que morreu!

– Agora é que ele vai mostrando o que vale e que nunca foi capaz de revelar!

– Bem se diz que todos servimos para alguma coisa neste mundo.

– Se ele se chegasse a estabelecer por sua conta, era capaz de o acompanhar fosse para onde fosse.

Assim diziam uns para os outros, os empregados da casa, cada vez mais admirados da maneira como o novo gerente dirigia os negócios e das extraordinárias qualidades que ninguém presumia que tivesse.

Se analisássemos devidamente as sentenças da filosofia popular, descobriríamos nelas todo o enredo das mirabolantes escolas psicológicas. Ninguém contestará que, assim como a história é a mestra da vida e a experiência a mãe da ciência, assim também a indústria é filha da necessidade.

Daniel de Foe descreveu no seu admirável Robinson Crusoé a epopéia do trabalho, o que pode a vontade humana, quando, desenvolvida em condições inverossímeis pelo instinto de conservação, põe ao seu serviço as outras potências da alma.

Quando naufragamos no revolto mar da vida, como Robinson no mar Caribe, e o golpe da desgraça nos arremessa à solitária ilha do abandono, levando nós por único recurso a nossa mente e as nossas mãos, então manifestam-se, desenvolvidas pela angustiosa necessidade, as energias internas que, sem a adversidade ocasional, teriam ficado ignoradas nas sombras do túmulo, juntamente com o nosso corpo, enquanto não chegasse a hora da ressurreição.

Robinson fez o balanço dos males e dos bens que o cercavam, para se convencer de que ainda havia na terra seres mais desgraçados do que ele. Em vez de se render à adversidade, dispôs-se a lutar denodadamente contra ela, e a sua primeira resolução foi colocar-se em otimista atitude mental, por meio do escrupuloso exame de dois aspectos, tenebroso e luminoso, que lhe oferecia a situação em que se encontrava. O balanço foi o seguinte:

 

MALES

BENS

Estou numa ilha deserta sem esperança de sair para fora dela.

Mas não me afoguei como todos os meus companheiros de viagem.

Estou separado dos homens, vivendo profundamente angustiado.

Mas o que salvou da morte, também tem poder para me livrar da presente situação.

Não tenho quem me ajude.

Mas não sinto fome. Pior seria se tivesse ido parar a uma ilha estéril.

Não tenho roupa para vestir.

Mas estou num clima quente, onde não preciso dela.

Estou desarmado e não poderia resistir aos ataques das feras.

Mas nesta ilha não há feras.

Perdi tudo o que tinha.

Mas a Providência conduziu o navio naufragado para muito próximo da margem.

 

Deste balanço concluiu Robinson que, por muito miserável que seja a situação em que nas encontremos, poderemos sempre descobrir nela um ponto luminoso, pois de nós depende encontrar, mesmo no acume da desgraça, um motivo de consolação que, no cômputo dos males e dos bens, faça pender as nossas energias para o lado do otimismo.

10. Vontade e decisão

Diz lá, Miguel, perguntava na escola o professor ao aluno mais adiantado. – Que é preciso para que a água passe ao estado de vapor?

– É preciso ferver.

– E a quantos graus de calor ferve a água?

– A cem graus.

– Sempre?

– Não, senhor. É conforme a pressão do ar. Se taparmos a caldeira, a água ferverá mais depressa do que deixando-a destapada.

– Bem. Suponhamos que ferve a cem graus. Não poderia ferver a trinta?

– Não senhor. Tem de ser a cem, porque se fosse a menos, não ferveria nem se converteria em vapor capaz de mover uma máquina ou arrastar um comboio. A água morna não produz vapor na caldeira nem é capaz de mover a máquina.

– Perfeitamente. Agora vamos tirar a moral desta lição, embora não seja uma fábula. Há muitas pessoas que querem mover com água morna o comboio da sua vida e ficam muito admiradas de ele não andar. Querem que a água da sua caldeira ferva só a trinta graus de calor e não compreendem o motivo por que ela não ferve. A mornidão das obras dum homem está, a respeito do êxito, na mesma relação que a água morna a respeito da caldeira do locomotiva. Atendei bem ao que eu digo e nunca vos esqueçais: Nunca podereis fazer nada de notável neste mundo, se não puserdes no vosso trabalho todas as potências da vossa alma e todos os sentidos do vosso corpo. De pouco vos servirá o querer, se não tiverdes decisão para o transformar em poder.

Assim falou o professor sobre o assunto, um pouco mais discretamente do que Zaratustra, e todos os que escutaram as suas palavras e as recordam ainda, confirmam-nas com os seus atos, porque tudo quanto fazem é com a firme decisão de o fazerem melhor ou, pelo menos, tão bem como outrem poderia fazê-lo. Não se consideram essencialmente inferiores aos seus competidores profissionais, e se, acaso algum os ultrapassa, redobram de esforços para lhe passarem adiante.

Não basta o desejo ardente de realizar algo de proveitoso. É preciso tomar a resolução de sair da massa anônima com toda a energia do nosso ser. Todos manifestam o seu querer, mas só as mentes vigorosas e as vontades enérgicas o transformam em poder. Para essas, não se limita o querer ao simples desejo ou à simples aspiração. Os que passam a vida a dizer eternamente: Deus queira que suceda isto! Deus queira que suceda aquilo! São como martelos a baterem sempre na bigorna e sem nunca acabarem de percutir o ferro.

Do desejo à ação vai uma distância tão grande como do dizer ao fazer, e essa distância só pode vencer-se por meio do esforço da vontade a que chamamos decisão. Sem ela, nunca ferverá a água da energia que deve pôr em andamento o comboio da vida.

O homem de ânimo vigoroso e de firme decisão utiliza a sua vontade como uma força positiva e criadora, e dedica-se especialmente ao seu trabalho, concentrando nele, qual espelho ustório, os caloríficos raios do seu entusiasmo. Não é possível dedicarmo-nos a uma obra que não tenha despertado o nosso interesse, nem provocado o nosso entusiasmo.

Todos devemos considerar a nossa profissão como o artista considera a sua obra-prima, isto é, como uma manifestação da sua individualidade em que ele se compraz com nobre orgulho e em que sente uma satisfação tão íntima que mais coisa alguma lhe poderia proporcionar.

Sobre este assunto, conversavam, há pouco tempo, dois estudantes ainda jovens, um deles de caráter volúvel, desses que nunca estão bem em parte nenhuma e que só acham prazer nas casas alheias, e outro muito mais refletido do que lhe permitia a sua pouca idade. Diziam assim:

– Parece-me que errei a vocação. A carreira de engenheiro é muito complicada e eu não supus que ela exigisse tantas matemáticas. Gostava mais da carreira médica.

– O que me parece é que começas vinte carreiras e não achas nenhuma. Tens medo das matemáticas? Pois também te hão-de assustar a anatomia e a terapêutica.

– Estás enganado. São matérias que, em se aprendendo de cor e em se encarreirando no exame, já não metem medo.

– És muito parvo! Vês as coisas muito por alto, sem as examinares profundamente com a sonda da intuição. Sem querer melindrar-te, dir-te-ei que, estejas onde estiveres, tens sempre a impressão de que não estás bem, porque desanimas ao primeiro obstáculo, vês enormes dificuldades nas coisas mais simples e estás melhor nas casas alheias do que na tua.

– Isso não é bem assim como dizes. Se pensares maduramente, hás-de reconhecer que uma pessoa, quando sente vontade de mudar de posição, é porque não se acha bem naquela em que está. Se alguém abraça a profissão para que nasceu, há-de identificar-se com ela de tal maneira que fique gravada em todos os átomos do seu ser. Não terá desejos de a abandonar. Tê-la-á em tanta consideração como os seus próprios olhos, e senti-la-á mais junto de si do que as pulsações do seu coração e o ar dos seus pulmões.

– Deste agora em psicólogo.

– É que me vi ao espelho da minha consciência.

– Como te achaste?

– Como se acharia a maior parte dos rapazes da minha época, isto é, da minha geração, se se vissem ao mesmo espelho: muito mal educados e pior dirigidos.

– Mas já não estás em idade de precisar de andadeiras.

– Nem tão pouco as quero. O que lamento é que, quando precisei delas, mas pusessem ao contrário para agora não saber dar um passo para a frente.

– Como amigo, vou dar-te um conselho. Começaste a carreira de engenheiro? Estás já no segundo ano? Pois aplica-te a ela com inquebrantável decisão. Distribui o tempo o melhor possível, de modo que dediques umas certas horas ao trabalho, ao recreio e ao descanso. Não deixes nunca para amanhã o que puderes fazer hoje, nem te envergonhes de perguntar o que ignorares e te convenha saber. Por outro lado, envergonha-te sempre de perguntar o que não te diga respeito. As matemáticas metem-te medo? São o papão dos indolentes e o espantalho das mentes estouvadas.

– Muito obrigado pelas honras que me fazes.

– Não te ofendas, que é impessoal a maneira como falo. Quero eu dizer que o estudo das matemáticas parece coisa invencível para quem vê as coisas mais pequenas com lentes de grande aumento. Tudo é questão de método didático, disciplina mental e decisão da vontade, Compreendendo tu bem os princípios, facilmente levantarás sobre esses alicerces o edifício de toda a matemática. Não andes a cada passo a mudar de rumo, porque, andando nessa roda viva, acabarás por ficar cego do entendimento.

– Isso mesmo que tu dizes, ou coisa semelhante, já eu li nalguns livros de estímulo para a juventude; mas que queres? Acho muito difícil o que chamam auto-educação. Enquanto a argila está mole, pode o oleiro dar à sua vasilha a forma que quiser. Se fizer bem, aproveita-se a vasilha; mas se errar, como lhe há-de dar outra forma se a argila já está dura? O único remédio que tem é parti-la e aproveitar os cacos para os refundir noutra vasilha da forma que a experiência aconselhou,

– Vamos lá, que não está de todo mau o símile que, por sinal, me lembro de ter lido em não sei que obra da literatura oriental. Mas isso é o menos, porque ninguém tem privilégio de invenção das idéias, por muito suas que lhe pareçam e por muito reservadas que estejam nos registros de propriedade intelectual. O que importa ao nosso caso é que te decidas duma vez para sempre e que não olhes para trás como a mulher de Lot. Lembra-te do que o preclaro engenho de Lope de Vega disse três séculos antes de nascer Emerson, o pai da moderna literatura renovadora, embora haja quem por sua conta, mas sem razão, atribua a outro escritor a paternidade desta frase: “No caminho da vida, quem não avança, recua; e o que começa um trabalho não há-de olhar para trás, deve continuar e seguir para a frente”. Que te parece?

– Que não há nada novo em roda do sol nem mesmo no próprio sol.

– De acordo.

Quem não seguir sempre na linha rata a caminho da suprema finalidade da sua vida, não fará dela a magnífica obra que poderia fazer, se concentrasse na realização do seu propósito toda a sua decidida vontade.

Mas não esqueçamos que o propósito há-de reunir determinadas condições, para que a sua realização conduza ao bom êxito. Em primeiro lugar, há-de ser o que vulgar e propriamente se chama um propósito honesto, isto é, não deve ir de encontro às naturais leis da vida nem lesar os direitos e interesses legítimos do próximo. Por errado caminho andaria quem pensasse em enriquecer a todo o custo e só se guiasse pelo procedimento dos homens que, indigentes em pequenos, se elevaram, por decisão do seu firme querer, à opulentíssima virilidade.

Se todos os jovens, sem distinção de raça, de nacionalidade, de sexo e de religião, todos os que dentro de vinte anos hão-de administrar cidades e governar nações, dirigir estabelecimentos comerciais e abrir novos mananciais de riqueza pública, pudessem ouvir a voz de quem sincera e desinteressadamente lhes fala, com o pensamento na humanidade, eu dir-lhes-ia:

 “Não imaginem que estes conselhos, estas insinuações, advertências e estímulos são com o fim de despertar em vós a ambição de riquezas materiais. O dinheiro é um meio, um instrumento; mas não é com certeza o fim nem a atividade da vida. A lei divina é tão sábia e tão profunda que até dos males extrai os bens, como a abelha que converte em mel o néctar das plantas adstringentes. Se o dinheiro só se pudesse obter pelo honrado esforço do trabalho, a riqueza material seria sinônima de riqueza moral; mas, como as atuais condições econômicas e sociais dão largas ensanchas à astúcia, à fraude, à usura, ao roubo, à velhacaria e à má fé, com aparências de cavalheirismo, fidalguia e religiosidade, não haveis de ficar a olhar para os milhões que um ou outro prócere do negócio acumulou ao cabo dalguns anos. Ao que deveis atender, porque tal é o objeto destas lições e exemplos, é aos meios de que se valeram e aos recursos que esses homens empregaram para triunfar dos obstáculos e seguir pelo caminho da vida, sem nunca se deterem.”

Na verdade, o dinheiro é como a polpa ou mesocarpo em que está introduzido o sumo das frutas. Espremido o sumo, fica apenas a inútil celulose. Portanto, o que importa para o êxito da vida não é o dinheiro, mas as qualidades de caráter criadas e desenvolvidas pelo exercício constante, originado pelo esforço necessário para ganhar dinheiro à custa do trabalho.

Embora seja colossal a fortuna monetária, de nada absolutamente ela serve ao homem na outra vida, porque, quando a morte vem, espreme-lhe o sumo e deixa-lhe ficar a inútil celulose. Em compensação, as suas características individuais, as faculdades e qualidades do espírito, do seu verdadeiro ser, são o sumo do fruto da vida, e nunca podem perder o grau de magnitude e intensidade que alcançaram, mediante os esforços realizados durante a sua existência terrena.

Tudo isto se realiza deste modo, se foi nobre o seu intuito, honrada a sua decisão, e se não se acolheu ao imoral aforismo que diz que o fim justifica os meios. Mas se, obcecado pela cobiça, não teve outro fito senão acumular dinheiro, por meios ilícitos, para satisfazer ruins desejos, então, em vez de aperfeiçoar, corrompeu o seu caráter, despertou péssimas qualidades, e o seu êxito aparente, sob o ponto de vista mundano, redundou, em última análise, num tremendo fiasco. Se por um lado perdeu, com a vida física, a riqueza material, por outro, deixou de desenvolver as boas qualidades que teriam enriquecido perpetuamente o seu verdadeiro ser.

Carlos Miguel Schwab, o valiosíssimo colaborador de Carnegie, que confessa dever-lhe em grande parte a sua fortuna, começou a sua carreira trabalhando como jornaleiro nas fundições do então futuro rei do aço, e pouco a pouco chegou a ser diretor da Oficina Técnica, com o inverossímil ordenado de um milhão de dólares por ano, garantido por um contrato.

Quando se organizou o sindicato da maioria de fundições de aço dos Estados Unidos, com o título de United States Steel Corporation, a Companhia Carnegie, em que Schwab prestava os seus serviços, foi absorvida pela nova entidade industrial, cujo presidente, J. P. Morgan, contraía a obrigação de pagar ao diretor técnico o ordenado de um milhão de dólares.

A Morgan pareceu exorbitante a quantia estipulada no contrato, pois o ordenado maior de que tinha conhecimento na sua vida de negociante era de 100 mil dólares. Não sabia Morgan o que havia de fazer, pois, se tal ordenado lhe parecia semelhar-se a uma dotação de príncipe herdeiro, não queria em todo o caso prescindir dos valiosos serviços de Schwab no recém-nascido Sindicato. Chamou-o ao seu gabinete para tratar do assunto e disse-lhe:

– Olhe, meu amigo, o Sindicato ainda está em princípio e não sabemos se irá avante e se progredirá. Temos que caminhar muito devagar. O senhor, em virtude dum contrato, tem direito ao ordenado anual de um milhão de dólares. Embora este ordenado me pareça exorbitante, não teremos outro remédio senão dar-lho, se o senhor insistir em fazer valer o seu direito. O contrato original está aqui. Na sua opinião, que havemos de fazer?

– Simplesmente isto. Deixe-me ver o contrato. Vê-o aqui? Pois então... faz-se assim.

E rasgando-o em muitos pedaços, acrescentou

– Eu não me importo com o ordenado que os senhores me possam dar. Não é o dinheiro que me impele ao trabalho. Tenho fé no meu propósito e estou decidido a realizá-lo. Rasguei o contrato sem um momento de hesitação.

Morgan foi logo contar a Carnegie a ação magnânima de Schwab. E Carnegie exclamou:

– Dos homens que conheço é Carlos o único capaz dum ato tão heróico.

E imediatamente o premiou com um milhão de dólares em ações do Sindicato.

Nunca teve tão clara demonstração a verdade de que Deus, por cada esmola que recebe, dá cem. A ação nobilitante de Schwab valeu-lhe mil ações do Sindicato.

É claro que, se não se importasse com a situação da nova empresa, que podia periclitar no seu primeiro ano de existência, Schwab exigiria o cumprimento do que se achava estipulado no contrato e teria intensificado o abominável sentimento da cobiça, perdendo o ensejo de tornar mais vigoroso o sentimento oposto da generosidade. Além disso, quando expirasse o prazo marcado, também poderia perder o ordenado que até ali recebia.

Nada ambicionando, conseguiu tudo. Se tudo ambicionasse, tudo poderia perder.

11. O possível e o impossível

Se conhecêssemos todas as leis da natureza e no universo não houvesse segredos para nós, poderíamos, com absoluta certeza, estabelecer distinção entre o possível e o impossível; mas, como ainda ignoramos muito mais do que sabemos, a possibilidade e a impossibilidade são termos relacionados subjetivamente com o grau de evolução de cada indivíduo e segundo a mentalidade da época e do país que se considere. O que para uns é possível, para outros é impossível.

Ainda hoje mesmo se perguntássemos a um selvagem dos que ignoram as maravilhas da civilização moderna, se seria possível atrair o raio, de maneira que não atingisse as árvores da sua propriedade, as choças da sua povoação e as reses do seu rebanho, com certeza nos fitaria assombrado, perguntando-nos com o olhar se teríamos enlouquecido. A mesma incredulidade se lhe refletiria no semblante, se nós lhe garantíssemos que lhe seria possível falar com quem estivesse a mil quilômetros de distância, ou voar pelos ares como as águias e os condores, ou ainda ir num carro sem que fosse preciso qualquer animal a puxar. Para o selvagem são impossíveis as coisas de cuja possibilidade a experiência convenceu há anos o habitante dos países civilizados.

Os obcecados juizes de Galileu e os rotineiros detratores de Colombo estavam convencidos da impossibilidade de que a terra fosse redonda. Ainda não há dez anos houve ilustres homens de ciência que colocavam a direção dos globos aerostáticos no mesmo plano de impossibilidade que a quadratura do círculo e o moto-contínuo. Outros não menos notáveis cientistas afirmavam, sob palavra de honra, que o problema da aviação era insolúvel, se, para o resolver, não fosse adotado, sobretudo como princípio o fato de se escolher um corpo mais pesado do que o ar, contra a opinião dos que só julgavam possível resolvê-lo, admitindo como princípio a escolha dum corpo menos pesado do que o ar. A realidade, que com os seus fatos, está acima de todos os discursos que se lhe opõem, demonstrou a possibilidade de resolver o problema em ambos os sentidos.

Os inventores penetraram com o seu olhar perspicaz na alma das coisas, e viram na subtilíssima esfera da sua mente superior a possibilidade do fato impossível para as mentes vulgares.

Quando vemos nos circos e palcos os exercícios de força e destreza dos acrobatas, parecem-nos duma dificuldade insuperável, e com certeza os consideraríamos impossíveis, se os ouvíssemos, em lugar de os vermos trabalhar. Mas a impossibilidade está no espectador, e assim mesmo duma maneira relativa, não absoluta, porque, se há quem só acredite vendo, também se dedicasse tempo, vontade e paciência ao demorado exercício da mesma habilidade acrobática, acabaria por vencer as dificuldades em que a princípio esbarrara.

A uma criança de pouca idade será impossível levantar um peso de cem quilos apenas com a alavanca do seu braço; mas, se essa mesma criança se for acostumando a levantar pesos em série progressiva, cujos limites correspondam ao gradual robustecimento muscular, chegará a tempo de, em plena virilidade, levantar o peso de cem quilos que em criança lhe foi impossível levantar.

A operação aritmética chamada divisão será impossível para uma criança de tenra idade, a não ser que se trate dum desses prodígios comparáveis aos fogos fátuos. Mas essa mesma criança será amanhã o Descartes ou o Newton que dê novas possibilidades de progresso nas ciências exatas.

Pois, o que acontece sob o ponto de vista físico e intelectual, sucede também sob o ponto de vista puramente psíquico, demonstrando-nos novamente a interdependências das três faculdades superiores do homem: vontade, sabedoria e atividade.

Para a vontade que começa a manifestar-se, e que apenas desponta como cotilédone de semente recém nascida, são impossíveis os empreendimentos vulgares que as vontades já robustecidas realizam sem grande dificuldade da vida diária. Não obstante, estas vontades de robustez medíocre não ousarão lançar-se a empreendimentos que necessariamente lhes hão-de parecer impossíveis, por serem superiores às suas forças. Se estas forças irão fossem susceptíveis de desenvolvimento, então a impossibilidade seria neles absoluta; mas, como são forças psíquicas e espirituais, sem outra limitação além do organismo corporal, por meio do qual se manifestam, é naturalmente possível desenvolvê-las até ao limite de elasticidade marcado pelas condições do cérebro físico. Uma vez desenvolvidas essas forças, a vontade será capaz de realizar o que considerava impossível, quando ainda se não achava suficientemente fortalecida.

Para os técnicos militares era impossível atravessar os Alpes. A vontade de Napoleão demonstrou praticamente a possibilidade dessa travessia.

Vejamos o que diz um historiador que relata outro episódio dos feitos do grande capitão, cuja memória foi celebrada por uns e denegrida por outros, por ocasião do centenário da sua morte:

Revistava o imperador as suas tropas no planalto de Chamartin, próximo de Madri quando recebeu a notícia de que os ingleses se achavam na estrada de Burgos, com manifesto propósito de cortar as comunicações com a França. Napoleão ordena o desfile das tropas para os seus aboletamentos e marcha a galope para a sua residência de Chamartin, palácio do duque do Infantado. Consulta o mapa, dá instruções aos seus generais e a 20 de dezembro inicia a marcha à frente dum poderoso exército em demanda dos ingleses, em quem reconhece o seu mais formidável inimigo.

Na abrupta encosta de Guadarrama, são os soldados do exército imperial surpreendidos e furiosamente açoitados por uma tempestade de vento, neve e granizo, que os cega de todo, impedindo-lhes a marcha. Napoleão desmonta do cavalo, enterra na cabeça o chapéu característico, abotoa o capote cinzento, trava do braço do marechal Lannes e, como meio século depois fez Brim nos Castillejos, coloca-se à frente das tropas, sem se preocupar se é ou não seguido por elas, e grita com voz imperiosa: “Avançar! Avançar!” E dá o exemplo, enterrando as botas na neve regelante, sem retroceder na subida da alcantilada encosta.

Soldados e oficiais murmuram e proferem surdas maldições contra aquele pertinaz lutador que, não satisfeito com vencer os homens, desafia os elementos. Naquela noite bivaca o exército sobre a neve, e no dia seguinte, serenada a tempestade, quando, iluminado pelo sol de Espanha, Napoleão aparece a cavalo no acampamento, as tropas atacam-no freneticamente e com maior entusiasmo ainda os que, na tarde anterior, julgaram impossível a travessia de Guadarrama.

Corria o ano de 1830. Acabava de desabar em França o trono de Carlos X, e no de Inglaterra sentava-se pela primeira vez Guilherme IV, aconselhado por um governo conservador, presidido pelo duque de Wellington, a quem a história escrita pelos homens atribui a derrota de Napoleão em Waterloo, embora, segundo a verdadeira história tivesse sido obra exclusiva da Providência, que regula o destino das nações.

Aberto o Parlamento a 2 de novembro de 1830, aludiu Guilherme IV no discurso da Coroa às revoluções do exterior e às perturbações internas, dizendo que lamentava umas e saberia reprimir outras.

A causa das perturbações internas foi a aspiração do povo por uma reforma da lei eleitoral que, tal como estava, representava um sarcasmo do regime parlamentar, pois havia cidades importantes, como Manchester, Birmingham e Leeds, que não tinham direito a eleger deputados, enquanto cinqüenta e seis vilórios, de população inferior a duas mil almas, tinham o direito iníquo de eleger cada um deles dois deputados.

Lord Grey, chefe da oposição liberal, declarou ao discutir-se o discurso da Coroa:

Consta-nos que temos o perigo à porta, que a tempestade ruge no horizonte e que o furacão se aproxima. Aconselham-nos a que fortifiquemos as nossas casas e que tranquemos as portas; mas, senhores, a melhor maneira de o conseguir consiste em conquistardes a simpatia dos vossos concidadãos e reparardes os seus agravos, reformando o parlamento.

Respondeu Wellington a lord Grey, qualificando de insensata, inútil e impossível a reforma ambicionada pela oposição liberal; e, contudo, o tempo havia de demonstrar a sir Artur Wellesley que aqueles epítetos, ditados por um espírito doutrinário, não eram tão oportunos como a chegada de Blücher ao campo de Waterloo.

A opinião pública manifestou-se na Inglaterra com tão formidável impulso de vontade nacional que, quando após várias crises, Wellington tornou a formar governo com o plano exclusivo de enfrentar os perigos duma revolução, por não querer consentir na reforma eleitoral, convenceu-se de que, se triunfara do grande conquistador, lutando com armas iguais às dele e auxiliado pela Providência, era impotente para resistir a uma nação inteira, invulneravelmente armada de razão, justiça e vontade.

Então o monarca entendeu que os deveres de magistrado supremo da nação lhe exigiam o respeito pela vontade nacional de que dimanava a sua soberania, e, confiando de novo a lord Grey a presidência do governo, consentiu em nomear um número suficiente de pares e, com o seu apoio e o abstencionismo dos intransigentes, aprovou-se definitivamente a lei eleitoral de 4 de junho de 1832.

A insensata, inútil e impossível reforma transformara-se, devido à vontade, ao querer coletivo, em lei sensata, útil e possível, cujos efeitos contribuíram enormemente para o esplendor da era vitoriana. A Inglaterra pôs em ação, naquela epopéia da vontade nacional, todas as suas forças interiores, e venceu na luta, porque a vontade dum povo é sempre a vontade de Deus.

Os técnicos militares europeus julgavam impossível que os Estados Unidos pusessem no teatro ocidental da guerra os milhões de homens que a comprometida situação dos aliados reclamava para a derrota da Alemanha. E o auxílio norte-americano foi tão possível como decisivo para o triunfo,

Quando Carlos Schwab se encarregou da direção das fundições Carnegie, notou que um dos fornos não dava o rendimento correspondente â sua capacidade produtiva. Chamou o mestre fundidor e disse-lhe:

– Parece-me que esse forno poderia produzir mais lingotes diariamente entre o turno do dia e o da noite.

– É impossível, senhor Schwab. Experimentei todos os meios possíveis para conseguir maior produção, mas os operários garantem que não podem fazer mais do que fazem.

– Quantas fornadas produz o turno do dia?

– Seis.

– Está bem.

No dia seguinte, enquanto os fundidores trabalhavam no forno, passou por ali Schwab com ar indiferente e, como quem já se não lembra, fez-lhes a mesma pergunta que fizera ao mestre fundidor:

– Quantas fornadas tiram por dia?

– Seis. Não é possível tirar mais.

Schwab pegou num bocado de gesso e traçou no chão um enorme “6”, afastando-se em seguida sem dizer uma palavra.

Quando chegou o turno da noite, perguntaram os operários o que significava aquele “6” tão grande escrito no chão. O capataz do forno respondeu;

– É que o burguês esteve aqui esta manhã e perguntou-nos quantas fornadas fazíamos; dissemos-lhe que eram seis e ele escreveu este algarismo com gesso.

Na manhã seguinte apareceu escrito um “7” em vez dum “6”.

O turno do dia, ferido no seu amor-próprio, não quis que o da noite lhe passasse a dianteira, e ao anoitecer viu Schwab escrito no solo um enorme “10” . Ao quarto dia o forno havia duplicado a produção. O que era impossível foi possível sem necessidade de estímulos, ameaças ou repreensões. A emulação acudiu secretamente em auxílio da vontade.

De todos estes exemplos se infere que a impossibilidade não está nas coisas a cuja realização se não oponham as leis naturais, mas na nossa inferioridade física, intelectual e moral em relação a essas coisas. À medida que formos intensificando e robustecendo, pela educação e pela experiência, as forças interiores e eliminando do nosso caráter os vícios que atrasem ou estorvem o seu desenvolvimento, assim se alargará o campo dos nossos meios de ação e será muito menor o número de coisas que consideremos impossíveis.

As leis da dinâmica atuam no mundo moral como no mundo material. Uma força maior vence outra menor. A máquina não é mais do que o meio pelo qual facilitamos a ação das forças. Assim, quando as nossas potências anímicas são menores que a resistência oposta, expressa em dificuldades, obstáculos e inconvenientes da obra em projeto, ou quando esta obra está em oposição às leis da natureza, seria temeridade empreendê-la. Os gigantes inventados pela fantasia converter-se-iam, ao choque da lança da realidade, em moinhos de vento, e os exércitos em rebanhos de carneiros.

Daqui a importância capital das funções mentais no discernimento da possibilidade ou impossibilidade duma empresa, não em si mesma, mas com relação às nossas forças individuais. A mente é a máquina que facilita a aplicação das faculdades do espírito aos objetos que têm de ser conhecidos. Mas o primeiro objeto que a mente tem de conhecer deve ser o da sua própria essência.

12. Satisfação interior

Não confundamos a satisfação interior com o prazer egoísta do indivíduo que materialmente resolveu o problema da vida sem se preocupar com o bem-estar alheio. Estes são os epicuristas e os devassos, sem a mais leve sombra do sentimento de confraternização humana, descaridosos, individualistas que, por terem agenciado riquezas, talvez por meios condenáveis, julgam intangível a organização social, supondo que estamos no melhor dos mundos possíveis. O seu panglóssico otimismo é incapaz de fazer o menor esforço pelo melhoramento dumas condições sociais em que egoistamente se comprazem.

A satisfação interior de que tratamos é semelhante à tranqüilidade de consciência, que não conhece o remorso, porque de nada tem que se acusar na sua vida passada, e chegou a suficiente elevação de nível moral para reconhecer que nada tem de que se arrepender no futuro.

Mas quem pode orgulhar-se de ser impecável? Quem está isento de culpa, de erro, ou de remorso? Se para responder a estas perguntas consultarmos a divina lei que regula as ações humanas, ela nos dirá que o justo peca sete vezes ao dia e que ninguém pode permanecer de fronte erguida na presença de Deus.

Todavia, não podemos andar a farejar nas consciências individuais nem insinuar-nos no pensamento alheio para investigar das intimidades de cada um, pois só devemos tratar aqui de equívocos, erros ou extravios de procedimento em que costumamos incorrer com mais freqüência do que convém à nossa prosperidade. Se umas vezes são transgressões da lei moral, outras vezes não vão além de passos em falso ou quedas que nada têm que ver com a lei divina, embora sejam graves obstáculos para o êxito material da vida.

Quando, por exemplo, um comerciante faz o que em linguagem profissional se chama uma má compra, ou quando, por imprevisão, tem de vender em ruinosas condições os gêneros existentes, não transgride nenhum mandamento da lei de Deus, mas, em compensação, a operação infeliz, o inêxito sofrido, deixa-lhe na consciência um remorso tão torturante como se tivesse cometido uma má ação. Não está interiormente satisfeito. O desastre havido no negócio deixa-o um tanto ou quanto irritado. Invade-o o receio de tornar a enganar-se; e, se não faz das fraquezas forças, mobilizando as que sempre há em reserva no íntimo da alma, por mais solitária e desmantelada que nos pareça, arrisca-se a cair no desânimo, que é o mesmo que cair em definitivo inêxito.

A falta de satisfação interior de tranqüilidade como a que nos dá a consciência cívica e profissional, subordinada à consciência moral, é um grave obstáculo da vontade que, diminuindo a energia do nosso querer, diminui também as probabilidades do nosso poder. Todavia, não é obstáculo invencível, porque não há nada no mundo que, com tempo e trabalho, se não renda aos homens de boa e enérgica vontade, em harmonia com a vontade de Deus.

Às vezes, o inêxito é o indispensável preliminar do êxito. Para quem não possua em grau suficiente as virtudes cardeais de prudência e fortaleza, o inêxito será um rude golpe para lhe aturdir os sentidos, para lhe fazer perder a cabeça e o levar a cometer mil disparates, que darão em resultado agravar ainda mais a sua situação.

Mas o indivíduo que é prudente, vê no inêxito um aviso providencial, uma lição onde há muito que aprender e, em vez de se desesperar e, como vulgarmente se diz, ficar levado de todos os demônios, imobiliza-se numa serena reflexão sobre as causas do inêxito, medita sobre o remédio que lhe pode dar e, depois de refletir e meditar pacientemente, toma uma resolução, fazendo desaparecer da sua mente todo o pensamento de tédio e pessimismo. Apesar do desgosto que naturalmente lhe produz o inêxito, tem a satisfação interior de haver empregado todos os meios e realizado todos os esforços que lhe foram possíveis para conquistar o êxito.

Conhecidas pela reflexão as causas do inêxito, trata imediatamente de as eliminar, antes de voltar à atividade, e depois se atira ardentemente ao trabalho, confiando então no êxito.

Uma prova infalível de que o homem não está satisfeito consigo mesmo é a timidez, assim como a arrogância o convence a ter-se na conta de valer muito mais do que realmente vale. A timidez é um obstáculo muito maior do que a arrogância, porque, para abrir caminho na sociedade, vale mais o excesso do que o defeito de confiança própria, em que respectivamente consistem a arrogância e a timidez, que não deve confundir-se com a modéstia.

Do tímido ninguém faz caso, nem é possível entregar-lhe cargos de confiança, porque mal pode confiar-se em quem começa por não confiar em si próprio nem ter aquela satisfação interior que deriva do caráter íntegro, próprio de quem se conhece a si mesmo.

Não há maior elogio para um homem do que dizer-se dele com justiça que é imaculado na sua vida profissional, que não prostituiu o seu talento nem vendeu a sua pena, que não colocou mercenariamente a sua palavra e o seu braço ao serviço doutrem, nem abjurou das suas crenças políticas ou religiosas para medrar rapidamente no campo oposto.

A satisfação interior é um vivo engodo, um poderoso estímulo para o trabalho diário, podendo torná-la ainda maior, se adquirirmos o hábito de examinar a nossa consciência todas as noites antes de adormecermos, rememorando tudo quanto pensamos, dissemos e fizemos durante o dia, para vermos em que é que a nossa consciência se sente satisfeita ou descontente, e para tomarmos a firme deliberação de não dar curso aos motivos que nos desviaram do verdadeiro caminho. Então, ficará a consciência tranqüila, e a satisfação interior resultante desta tranqüilidade restabelecerá no dia seguinte as nossas forças mentais e anímicas para continuarmos, sem desfalecimento, a marcha pelo caminho do êxito.

Todavia, não caiamos no erro de acreditar que a satisfação interior significa, da parte do homem, uma desnecessidade de se esforçar pelo aperfeiçoamento cada vez maior do seu caráter e de desejar a conquista de novos e superiores ideais, só pelo fato de se sentir imensamente satisfeito consigo mesmo. Isto equivaleria a uma paralização de energias e a um quietismo, incompatíveis com a lei universal de evolução. Há-de estar satisfeito pelo que realizou até então; não pelas obras em si, que nunca deve considerar perfeitas, mas porque nunca fez derramar lágrimas a ninguém por culpa sua, nem deixou o rastro duma ação desonesta, coisa alguma capaz de manchar a reputação do verdadeiro homem de bem.

Não é difícil encontrar quem se distinga na desempenho da sua profissão; mas já não se encontra facilmente quem, sobretudo, seja homem no significado amplo desta palavra, e cuja nome seja sinônimo de integridade de caráter, preferindo a perda da fortuna à apostasia e à traição.

Mui para temer é a incompatibilidade entre o conceito que dum homem forma o íntimo critério  da consciência e o que dele fazem as pessoas que, julgando pelas aparências, não o conhecem intimamente.

Quando não há a satisfação interior, é bem triste viver à duvidosa luz da popularidade, ver-se invejado pelas suas riquezas ou pelo seu prestígio, ser considerado publicamente um homem justo e honrado; e, contudo, ter a convicção íntima de não ser realmente como os outros o apreciam, e viver em permanente receio de ser desmascarado por algum incidente imprevisto, que o apresente aos olhos de toda a gente na sua mais completa e repugnante miséria moral.

Mas a quem vive sem necessidade de encobrir os seus atos e sem receio de que lhe descubram na sua conduta alguma coisa que o envergonhe, nada pode suceder que sobremaneira o prejudique. A sua vida é clara, pura e transparente. Tudo quanto faz em segredo é tão digno e honrado como se publicamente o tivesse feito. Está interiormente satisfeito, porque sabe que, embora perdesse a última relíquia da sua fortuna material, o seu verdadeiro ser, o seu Eu superior, em nada se sente prejudicado. Se dedicou os seus esforços à vida pública, há-de ter um monumento no coração das pessoas honradas, na simpatia e na admiração da posteridade.

Talvez por atavismo do seu sangue puritano, os presidentes dos Estados Unidos – desde Washington, seguido de Lincoln, Garfield, Roosevelt e Wilson, até chegar a Harding – foram, para glória da república, modelos de honradez política e probidade administrativa, deixando de parte os erros em que alguns deles puderam incorrer como estadistas.

A memória de Lincoln mantém-se, de geração para geração, mais viva entre os seus concidadãos, apesar da corrupção dos tempos, porque nunca traficou com a sua reputação nem prostituiu o seu talento.

Atraídos os litigantes pela fama que Lincoln adquirira no exercício da advocacia, quando nem sequer sonhava na presidência da república, acudiam ao seu escritório, suplicando-lhe que tomasse conta da defesa dos seus pleitos.

Mas a primeira coisa que Lincoln fazia era examinar a questão no seu aspecto jurídico, e, se via que o cliente tinha razão, não tinha dúvida em aceitar o encargo sem receber um único centavo a título de honorários, até ganhar a questão do seu constituinte. Por muito tentadoras que fossem as ofertas, nunca Lincoln tomou a defesa duma causa injusta que lhe teria agenciado, só num dia, emolumentos muito mais avultados do que os que lhe rendia a sua profissão em todo o ano.

Significa isto que só Lincoln tinha sido capaz de desempenhar tão austeramente o exercício da advocacia? De modo nenhum. Em todos os países civilizados, há certamente jurisconsultos de absoluta probidade, incapazes de descerem ao nível degradante de mendigarem pleitos e de defenderem causas iníquas em matéria civil, porque em matéria criminal não há delinqüente que, oficiosamente, e por compaixão ao menos, não mereça defesa para apresentar ante o tribunal as circunstâncias atenuantes ou suavizar os agravantes do delito.

Por outro lado, a satisfação interior nem sempre é legítima, porque depende do grau de evolução da consciência, e, quando não é legítima, também não pode ser duradoura, pois, quando a consciência sobe de nível um grau, manifesta-se subitamente o remorso que transforma a satisfação em desgosto.

Enquanto a consciência se mantém adormecida e estacionária, pode o homem sentir satisfação interior por atos, cuja intrínseca imoralidade descobriria, se elevasse a sua consciência um só grau que fosse. Apresentemos um exemplo.

Infelizmente para a cavalheirosa Espanha, predominam entre os seus políticos, com rótulo de estadistas, os advogados de profissão, cujo rendimento excede em muito o ordenado dum ministro. Mas, como a administração da Justiça é, na Espanha. escrava submissa do Governo ou poder executivo, apesar dos hipócritas pruridos de independência, sucede que, quando um político com banca de advogado faz parte dos conselhos da Coroa, fecha o escritório que funciona em seu nome para quase sempre o abrir ocultamente, sob a direção dum outro colega que se vai encarregando das questões da advocacia. Todavia, ambos se sentem satisfeitos, parecendo-lhes que o fato de iludirem as aparências nada tem de pecaminoso. A sua consciência não chegou ainda ao necessário grau de elevação, para que lhes repugnem as combinações secretas que, adentro duma aparente honestidade, asseguram a marcha dos negócios forenses, que vão correndo num escritório supostamente fechado, como corre o rio Guadiana, oculto à vista do viandante, pelo subsolo do seu leito.

Também se sentem muito satisfeitos os políticos, que, por atraso na evolução da sua consciência, acham perfeitamente compatíveis as funções ministeriais do poder executivo com os encargos de gerente de companhias monopolizadoras, e o cargo de conselheiro do Estado com o de conselheiro das companhias ferroviárias. Procuram coonestar a compatibilidade, dizendo que nada há nem pode haver de imoral nesse fato, desde que exerçam honradamente os seus cargos.

Mas os que assim argumentam não reparam que caem numa flagrante contradição, fechando os seus escritórios de advogado, enquanto desempenham o cargo de ministro, porque, segundo o seu critério, também deveria ser perfeitamente compatível o exercício da advocacia com o das funções ministeriais, enquanto desempenhassem um e outras honradamente.

E, contudo, isto é que é o mais difícil, não porque os políticos sejam capazes de perturbar a satisfação interior da sua consciência, prevaricando, mas porque a incompatibilidade está na índole oposta dos interesses gerais do país, representados pelo ministro, e dos interesses particulares da empresa ou companhia, representados pelo mesmo ministro. Como pode haver, em tão antagônicas condições, legítima e duradoura satisfação interior?

Vejamos o exemplo de Teodoro Roosevelt. Desde muito moço, prometeu a si próprio não manchar nunca o seu nome com atos aviltantes nem abandonar os seus ideais, por muito que esse abandono lhe assegurasse uma grande fortuna. Queria manter puro o título de nobreza dos seus antecedentes, custasse o que custasse, quer fosse avante a sua empresa, quer pudesse abortar. A sua primeira aspiração foi ser homem, antes de mais nada. Nos princípios da sua carreira política, teve muitíssimas ocasiões de adquirir rapidamente uma avultada fortuna, conchavando-se com os usurários sem escrúpulos, que se servem da política para capa das suas falcatruas. Nunca, porém, quis seguir estes condenáveis processos. Preferiu recusar um emprego a ter de manchar a sua reputação para o obter. Sabia muito bem que o seu procedimento austero lhe havia de acarretar muitas inimizades, mas deliberou conseguir que os seus próprios inimigos o respeitassem pela sua integridade de caráter ou, pelo menos, que não tivessem motivo nem pretexto para o difamar.

Nos nossos dias, precisa o mundo de homens que anteponham a satisfação interior da sua elevada consciência às adulações da inconstante popularidade; que façam consistir como alvo das suas aspirações o cumprimento do dever e o amor pela verdade, e para este ideal caminhem sempre em linha reta, embora, como sucedeu a Cristo na solidão do deserto, possa haver quem os tente a imperar no mundo.

Mas ninguém se sente tão intimamente satisfeito no seu interior como quem consegue vencer-se a si mesmo, e nas críticas circunstâncias em que periga a sua existência se sobrepõe às excitações da sua natureza animal.

Quando a formidável greve revolucionária, que nos Estados Unidos estabeleceu o reinado do terror, estava no seu maior incremento, sucedendo-se sangrentas colisões entre grevistas e trabalhistas, um anarquista russo entrou violentamente no gabinete do opulento industrial Henrique Clay Frick disparando quatro tiros que o feriram gravemente. Ao ruído das detonações, acudiram os empregados da oficina que quiseram imediatamente linchar o agressor. Mas Frick disse-lhes imperativamente: “Não o matem”.

Por felicidade, os ferimentos não eram mortais; e, logo depois de restabelecido, perguntou a Frick um dos seus íntimos amigos:

– Que pensamentos se cruzaram no teu cérebro quando viste o anarquista a agredir-te?

– Estava tão sereno como estou neste momento. Quando o anarquista me apontou à cabeça e disparou a arma, vi a minha querida filha, que morreu o ano passado, tão clara e distintamente junto de mim, como se estivesse viva. A sua presença era tão real e corpórea que não pensei em defender-me da agressão e estendi os braços para a imagem querida. Quando entrou o pessoal da casa, desapareceu a visão e senti um desejo ardente de que não fizessem o menor mal ao assassino. Gozava eu interiormente, apesar dos meus ferimentos, uma satisfação tão íntima que todas as riquezas deste mundo pareciam não ter para mim o valor mais insignificante.

13. Originalidade, imitação e extravagância

– Olha cá, dize-me com a máxima franqueza: qual é a cabeça que pode admitir que os milhões de criaturas novas, que estão à espera de entrar no campo da vida, ocupem todas o lugar de honra e até mesmo os primeiros lugares?

– E quem admite semelhante coisa?

– Tu e os propagandistas do modernismo pedagógico, tão prejudicial, a meu ver, como o religioso e o poético. Julgam vocês que, com meia dúzia de livros, brilhantes na forma, mas pobres nas idéias, vão converter todos os recém-nascidos em multimilionários e prendê-los à roda da Fortuna.

– Cala-te, meu amigo, não digas mais. Gato escondido com o rabo à mostra. Pelo que dizes, quer-me parecer que és pessimista, desses que vêem tudo negro, como se estivessem toda a vida num subterrâneo, e chamam louco otimismo às vozes de incitamento, aos hinos de ressurreição, que despertam a consciência de toda a gente do letargo em que, durante tantos séculos, a conservou o meimendro da superstição e a dormideira do fanatismo!

– Ih! O que aí vai! Já disparaste a artilharia pesada. Superstição e fanatismo! Às vezes que certos lábios, tão fanáticos como supersticiosos, têm repetido estas duas palavras!

– Não é agora a ocasião de mostrar-te que infelizmente não são palavras vãs. Mas, em compensação, os teus amigos e camaradas são mestres no manejo do sofisma e na terrível arte da calúnia. Qualificando de dogmas infalíveis os absurdos mais extravagantes, e de disparates os mais lógicos raciocínios, resolveram todos os problemas metafísicos e conhecem Deus e os seus desígnios tão belamente como se tivessem ajudado a construir o universo. O seu lema é este: Só nós é que somos bons, só nós e mais ninguém. Mesmo que um distinto escritor publique um livro com licença de quem tem autoridade apostólica para lha conceder, logo se revolta contra ele, e por conseguinte contra a autoridade da sua própria grei, qualquer inconsciente com fumos de pedagogo, para cujo bestunto velhaco é pernicioso e demolidor tudo quanto não saia da sua pena venenosa.

– O que vai aí! Isso é que é bolsar toda a bílis.

– Limito-me a exercer o direito da defesa própria.

– Pois demos por acabada a defesa do assunto e vamos ao que mais nos importa. Dizia eu que, na minha opinião, não é tão eficaz como parece essa literatura que estimula a juventude, porque quem tenha nascido com as qualidades e circunstâncias pessoais que o êxito requer, há-de prová-las, quando chegue a ocasião, sem necessidade de excitação alheia, assim como o rouxinol canta sem ter mestre que o ensine. Além disso, tens-me dito várias vezes que cada um de nós veio ao mundo com um fim determinado; e, sendo assim, de pouco há-de servir a um jovem saber o que fez tal prócere da indústria, da ciência ou do comércio, porque não lhe será possível fazer o mesmo que ele fez.

– À primeira vista parece que tens carradas de razão, mas nota que não dizemos aos moços: inventa outro telefone, como Graham Bell; outro fonógrafo, como Edison; descobre novos jazigos de cobre, como Guggenheim; faze o que outros fizeram. Nada disso. A pena do autor de obras de estímulo para a juventude deve ser espora da vontade e acicate da consciência, para que o jovem fique na perfeita e plena posse da sua verdadeira individualidade e ponha em ação as suas próprias forças e não as do seu semelhante.

– Dessa maneira, é fácil acabar por nos entendermos.

– Como nos entenderíamos sempre com todos, se o preconceito e o nominalismo não obcecassem a mente. Às vezes, estamos discutindo horas e horas, não porque as idéias se não harmonizem, mas porque cada adversário dá um significado diferente à palavra que predomina no tema da discussão.

– Muito bem. Mias não te afastes a caminho da garganta do Colorado, que deve seduzir-te mais do que os cerros de Úbeda.

– Não te dê cuidado, que cá estou outra vez no teu campo.

– Pois eu, se não me engano, creio que a originalidade é condição indispensável para o êxito, entendendo-se por êxito não o interesse estreitamente material representado pelo dinheiro, mas o interesse material aliado ao bem moral.

– Está claro. O êxito não se pode imitar e muito menos arremedar-se. Há-de ser uma força original, uma criação individual. Quanto mais um indivíduo se esforçar por ser aquilo que não é, tanto mais se arrisca a fracassar no seu propósito.

– Por enquanto, estamos de acordo. Talvez mais adiante se parta algum anel da nossa cadeia de raciocínios.

– Não faltará ferreiro que o solde na forja do senso comum.

– Não te parece que o querer e o poder provém do nosso foro íntimo? Não te parece que ninguém é capaz de acrescentar um dine à nossa energia, nem um milímetro à nossa estatura?

– É preciso que nos entendamos. As nossas forças físicas, mentais e morais não podem crescer por justaposição ou de fora para dentro. O que podem é receber do exterior, por meio de conselhos, advertências e prevenções, o estímulo, a excitação que nos leve ao desenvolvimento das nossas forcas interiores.

– É preciso, porém, seguir o conselho com muito cuidado, para que o estímulo, por exagero, não venha a induzir um erro.

– Sem dúvida. Mas não me parece que haja conselheiro da juventude capaz de a alucinar com teorias opostas à realidade da vida.

– Pois há tal. Há os que, enfatuadamente, garantem que basta ter confiança própria para vencer todos os obstáculos que interceptam o caminho do êxito e que põem o indivíduo em comunicação com as imensas reservas do universo, que ninguém viu.

– Alto aí. Esse argumento não colhe. Se tu não viste as reservas do universo é motivo para afirmares que ninguém as tenha visto com os olhos da intuição, com os benditos olhos espirituais dos Santos Padres? És como um míope que se lembrasse de dizer que ninguém via mais ao longe do que ele.

– Ora adeus, meu amigo! Nem que tivesses no lugar dos olhos um par de telescópios.

– Não era preciso tanto, porque há coisas que, de tão axiomáticas, se vêem sem ser preciso olhar para elas. Epíteto diz, e muito bem, que, quando alguém nega verdades evidentes por si mesmo é impossível achar raciocínio suficientemente sólido para o convencer a mudar de opinião. Com que então ninguém viu ainda as reservas que o universo encerra? Mas também ainda ninguém viu Deus e intuitivamente cremos que Ele existe.

– Isso cheira-me a neoplatonismo, gnosticismo ou coisa deste gênero. Em resumo, é uma heresia como tantas que já se têm dito.

– Ah! Ah! Ah! Para vós outros é heresia o que vos não cabe no bestunto. Pois aí tens nada menos que o autor do Apocalipse, que, na sua primeira epístola, diz que  “Deus nunca foi visto por ninguém”.

– Não sei que hei-de responder-te, sendo a citação exata como suponho. Mas vem cá, e dize-me se não é para fazer aquecer o topete a um rapaz, tão estúpido como vaidoso, dizer-lhe que, se tem confiança em si próprio, poderá, querendo, realizar milagres em todos os gêneros de atividade. O pobre rapaz atira-se a uma empresa superior às suas forças e acontece-lhe o mesmo que aconteceu àquele homem que, seguindo pelo meio dos carris duma via férrea, sentiu vir atrás de si o comboio. Como o maquinista não deixasse de apitar, avisando-o de que se afastasse da via, olhou para trás, exclamando com ar de confiança em si próprio: “Apita, apita, que és tu e não eu quem se há-de afastar!...”

– Estás a desviar o assunto para outro lado, já vejo. Com certeza tens lido esses folhetos caluniadores que mentem descaradamente, por não dizerem toda a verdade. Não há ninguém que, discorrendo prudentemente, seja capaz de dizer que a fé no próprio indivíduo seja suficiente para triunfar em qualquer empresa que se tente. O que digo e repito é que a confiança própria é uma de tantas condições necessárias, mas não suficientes, para conquistar o êxito. E, exaltando eu a importância da confiança própria, é óbvio, por já o ter dito, que deve ser acompanhada das outras condições também necessárias, mas não bastantes só por si para triunfar. O que revela má.fé é escolher parágrafos truncados de várias obras, para erguer sobre elas um castelo de sofismas, que se desfaz ao ler-se a obra em conjunto.

– Não contesto. Mas nota que, se atribuis, por exemplo, os êxitos de Napoleão à sua incansável laboriosidade, à sua firmeza de intenções, à sua previsão dos pormenores mais insignificantes e não ao seu privilegiado talento estratégico, abstraís da verdadeira razão dos seus triunfos, pois, sem o talento estratégico, nem a sua laboriosidade, nem a sua confiança própria o teria. feito senhor da Europa.

– Sem dares por isso, pensas a este respeito exatamente como eu. Já te disse que o êxito, seja em que empresa for, exige várias condições, todas elas necessárias, mas nenhuma suficiente só por si. O mesmo exemplo de Napoleão o confirma, pois, por muito grande e privilegiado que fosse o seu talento estratégico, de nada lhe teria servido, sem a laboriosidade, previsão, confiança e outras condições exigidas pelo êxito. Todos nós conhecemos homens de muitíssimo talento natural e cultivado, dum talento quase genial, que o deixam atrofiar por lhes faltar as outras características do homem perfeito, entre elas a vontade. Todos dizemos:  "Que pena! Um homem com um talento como tem! Mas é tão indolente! É pena deixar-se embrutecer com o álcool!” De que serve o talento e o gênio a homens assim? Mas há os erros do parcialismo dos que vêem os defeitos dos outros e não reparam nos seus. Antes de tirarmos o argueiro do olho do vizinho, é necessário tirarmos  a trave do nosso; mas há pessoas que, em vez duma, têm um jogo de traves sobre os olhos.

– Creio que uns e outros tendes razão, cada qual debaixo do seu ponto de vista e segundo a cor do vidro das suas lunetas, por prejudicar ou não o seu íris.

– Um íris de paz é que nos faz falta.

– Pois, pela minha parte, não há motivo para criarmos inimizades, embora, às vezes, possamos divergir de opinião.

– E eu digo-te que, na essência, estamos todos do mesmo parecer. E agora já tens o tema da originalidade, da imitação e da extravagância.

– A boas horas!

– Como a boas horas?

– Sim, homem, depois de tanto palavreado, só agora é que acordas.

– Nunca é tarde para quem tem sempre tempo de sobra. A originalidade consiste em ser o que realmente se é, em proceder de conformidade com a sua idiossincrasia mental e em harmonia com as leis da vida. Tu imaginas que o mundo chegou ao máximo da perfeição?

– Nem por sombras.

– Pois então deves concordar comigo em que toda a profissão, todo o ofício, toda a arte e negócio são susceptíveis de aperfeiçoamento. O mundo precisa de quem queira, saiba e possa fazer as coisas por novos e melhores processos.

– Neste mundo, não há nada novo.

– É isso verdade, se por novo entendes o que a mente humana nunca concebeu e o que não teve precursores nem pretendentes. Mas eu aqui quero significar por novo a renovação e melhoramento do que é velho. É a justa relação entre o ontem e o hoje que dão lugar ao amanhã. É a discreta harmonia entre a tradição e o progresso, entre o que foi e o que continuamente está sendo.

– E a imitação?

– A imitação não é mais nem menos do que a originalidade atenuada, isto é, a assimilação mais conveniente daquilo que outros, por sua vez, assimilaram e beberam noutras fontes. Não confundas a imitação com o arremedo nem com o plágio. Na imitação, há algo de personalidade própria e, portanto, louvável. No arremedo, há servilismo, e no plágio, há roubo. Por isso, eu não diria nunca às pessoas moças:  “Sede como Napoleão, ou Carnegie, ou S. Francisco de Assis, ou Gladstone, ou Santa Tereza ... ”

– Oh! que salsada meu Deus, que estás a fazer! É uma baralhada de nomes que não se entende! Olha que um baralho onde todas as cartas são ases é um baralho que não serve para nada.

– Perfeitamente; mas nota que não estou a baralhar, estou a enumerar. E, apesar de não soar bem a ouvidos profanos o nome de Carnegie com o do Serafim de Assis, e o de Gladstone com o de Santa Tereza, quem sabe examinar através do invólucro corpóreo vê, na suprema unidade da sua origem divina, o espírito de todos os seres e a alma de todas as coisas.

– Deixa-te de mais sentenças, meu caro, senão acaba esta palestra num verdadeiro chinfrim.

– Põe de parte todo o pensamento hostil e harmoniza-te com as coisas finitas e com as infinitas.

– Também misturas a metafísica com as matemáticas?

– Deixa-te de ironias e terminemos por afirmar que não digo aos jovens que sejam diferentes do que são, mas que, em circunstâncias análogas, se conduzam como esses heróicos personagens a que me referi. Que tomem a sua vida, não como modelo para arremedar, mas como exemplo de conduta com o qual devem rivalizar, sem nunca perderem as características da própria personalidade. E, se estas características têm por si só sobrada energia, então talvez abram novos caminhos à atividade e desviem, num sentido mais fecundo, os canais por onde corre o pensamento humano.

 “Quem não atingir os acumes da originalidade também poderá fazer uma digna obra pessoal, imitando, sem arremedo, os seus antepassados, pois as idéias são como os raios de luz que tomam a cor do meio que atravessam. Diz o famoso literato e crítico espanhol Valera que  não há autor nenhum notável de quem, com um pouco de trabalho e paciência, se não possam tirar centenas de frases ou sentenças copiadas doutros autores; e que é dificílimo, ou quase impossível, tirar dum autor, por original que seja, por muito raro e peregrino que se mostre em pensamentos, estilo e linguagem cem frases de verdadeira e completa originalidade”. Virgílio copiou Homero e Teócrito; Gongora e Garcilaso copiaram Virgílio; Frei Luiz de Leão copiou Horácio e Petrarca; Espronceda copiou Lord Byron; André Chénier, o criador da moderna lírica francesa, imita Horácio, Homero, Eurípedes, Juvenal, Ésquilo e Racine.

– E que entendes por extravagância?

– O desejo ardente de querer parecer original sem condições para o ser. O vão receio de parecer imitador ou plagiário e que afasta os extravagantes dos caminhos trilhados, sem terem talento nem forças para abrir outros novos. Conheces o modernismo poético, o dadaísmo literário e o cubismo pictural? Pois aí tens a extravagância?

– Em resumo: segundo o teu critério, temos de seguir os passos das gerações passadas. O culto dos antepassados! Não é isso? À maneira dos chineses.

– Não é bem assim homem. Não interpretes mal o meu pensamento. O que em conclusão te digo é que quem produzir alguma coisa de novo e de valor – nota bem: que tenha valor – poderá esbarrar a princípio com a resistência dos misoneistas, com a hostilidade dos incompetentes e com o desdém dos intolerantes; mas, se teimar no empenho de beneficiar o mundo, o mundo acabará por escutá-lo e aplaudi-lo. 

14. Dinheiro e trabalho

Será um lugar comum afirmar que o dinheiro é um mau dono e um bom escravo. Mas como precisamente o que parece lugar comum aos eruditos e intelectuais de alta escola é o que mais convém repetir, para que, como a água na pedra, entre no espírito de toda a gente, vale bem a pena arrastar as iras dos críticos detratores e mostrar, a quem disso não esteja ainda convencido, que o dinheiro é coisa que a ninguém desagrada, nem mesmo aos que, por fazerem voto de pobreza individual, possuem fabulosas riquezas coletivas.

Não são estas páginas lugar apropriado para considerar o dinheiro no seu sentido econômico, mas como o meio material de poder realizar o que queremos e sabemos fazer.

Tal como está organizada a sociedade, na sua atual etapa de civilização – que não é a última nem a melhor – é indispensável o dinheiro não só para a obscura vida cotidiana, mas talvez ainda, com maior exigência, para tentar e realizar qualquer empreendimento em benefício do progresso humano.

Todavia, isto não significa que quem queira e saiba produzir alguma coisa de verdadeira utilidade, quem conceba novas idéias, novos processos de trabalho, novos inventos, cuja exploração prometa lucros regulares, segundo o cálculo de probabilidades, tenha de pessoalmente estar na posse do dinheiro necessário para dar realização prática à sua nova descoberta. Sabe que o encontrará nos cofres alheios, porque o dinheiro está sempre à espera de rendosa aplicação, e cada uma das suas moedas pode considerar-se como uma semente que, bem lançada, se reproduza, mais ou menos abundantemente, na colheita.

O dinheiro, por si só, nada vale. Precisa do coeficiente do trabalho para ter algum valor, enquanto o trabalho só por si vale o que não vale o dinheiro. O ouro, a prata, o níquel e o cobre, com que se cunham as moedas que constituem o dinheiro, têm intrinsecamente o valor que a sua utilidade como metais e não como moedas lhes pode dar, quando convenha aplicá-las às necessidades artificiais da vida. Mas, se esta necessidade não sobrevém, nem como metais nem como moedas têm o menor valor.

Suponhamos um navio açoitado pela tempestade, com o leme partido, a bússola desconjuntada, as máquinas avariadas, sem a mais pequena parcela de mantimentos, mas com cem caixas cheias de barras de ouro e outras tantas de moedas do mesmo metal. Os passageiros, pela sua parte, levam as carteiras e os bolsos recheados de dinheiro e de notas do Banco. De que lhes serviria todo aquele ouro, que seria uma enorme riqueza em terra firme e civilizada? Apesar de toda a sua fortuna, morreriam certamente de fome naquela conjuntura. Mas um dos passageiros, que é hábil mecânico, familiarizado com os maquinismos marítimos e com muita vocação para coisas de arte, oferece-se ao capitão para remediar uma situação tão arriscada. Com as ferramentas e instrumentos de bordo, ajudado pelos tripulantes que o capitão põe às suas ordens, enquanto o resto da marinhagem, dirigida pelos oficiais, luta denodadamente com a tempestade, o passageiro conserta o leme, compõe a bússola, põe as máquinas a funcionar, e o seu talento e trabalho salvam a nau, conduzindo-a a bom porto, onde o dinheiro recupera o autêntico valor que perdeu durante o sinistro que esteve iminente.

Este mesmo pensamento exprime Daniel de Foe, quando o seu herói Robinson encontra, após o naufrágio, entre os restos do desmantelado navio, trinta e seis libras em ouro com algumas outras moedas, exclamando:

Oh! vaidade das vaidades! Oh! metal impostor! De que me serves? Para mim nada vales, e não quero dar-me ao incômodo de me abaixar para te guardar. Um destes cutelos vale para mim muito mais do que todos os tesouros de Creso. Não preciso de ti. Fica-te para aí, ou será melhor que te atire para o Fundo do mar como objeto indigno de ver a luz do dia.

Mas Robinson é homem civilizado e não pode deixar de ressentir-se dos erros e preconceitos da civilização. Muda de parecer depois destas apóstrofes e, quase sem querer, embrulha as moedas num bocado de pano e leva-as para a sua ilha deserta. Deixa, porém, ficar a um canto aquele miserável tesouro, que lhe parecia tão inútil como um bocado de lama, e diz:

Com que prazer eu daria um punhado desse ouro em troca duma mó para pisar o meu trigo! Daria tudo por um punhado de ervilhas e uma garrafa de tinta. Na minha situação, não podia tirar a menor vantagem daquelas moedas que a umidade da cova oxidava dentro da caixa em que estavam enterradas. E, se, em vez de moedas, eu tivesse possuído diamantes, também não faria caso deles.

Nos meios urbanos, porém, o dinheiro é como uma locomotiva sobre os carris ou como um pato na água. Está no seu elemento e tem uma força prodigiosa, embora não onipotente. Muitíssimas coisas alcança o dinheiro no intercâmbio comercial; mas há outras que muitos milhões não são capazes de conseguir nos intercâmbios intelectual e moral. Não se compra o talento, nem a formosura, nem a virtude, nem a ciência, embora se saiba comprar, nos centros de palestra, falsas reputações de virtude, talento e formosura, ou, nos clubes acadêmicos diplomas, inculcando ciência.

O dinheiro honradamente adquirido é o denominador comum do trabalho; e, como conseqüência deste, converte-se, por acumulação, em meio material de iniciar novas empresas laboriosas. o dinheiro está para o trabalho como a máquina para a produção. A máquina aumenta e desenvolve a produção, mas não é a produção em si. E, assim como para obter o máximo rendimento de qualquer instrumento de trabalho é indispensável conhecê-lo e saber lidar acertadamente com ele, assim também é preciso conhecer o valor relativo do dinheiro e lidar com ele habilmente, para que não se arvore em nosso dono, devendo ser nosso escravo.

Este valor positivo que o dinheiro eventualmente possui na vida material é causa de aqueles que fazem alarde de desprezar os bens terrenos, se esfalfarem por o obter a todo o custo. Parece que os que têm mais obrigação de escutar e cumprir o que Cristo disse no célebre sermão da montanha fazem ouvidos de mercador a este conselho:

Não queirais amontoar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem e donde os ladrões os desenterram e roubam. Mas amontoai para vós tesouros no céu, onde não os consomem a ferrugem nem a traça e donde os não desenterram nem roubam os ladrões.

Contra este conselho vemos o acervo colossal de tesouros amontoados por velhacaria, astúcia, dolo, vigarismo e captação de vontades em todo o mundo civilizado, sem distinção de categoria plutocrática. Mas cá temos outra vez os nossos dois interlocutores, que estão mortos por meter colherada no assunto. Dizem eles:

– A que propósito vem essa citação evangélica, se precisamente o país onde a Bíblia está mais vulgarizada é no país dos multimilionários e dos caçadores do dólar?

– Temo-la outra vez travada. Aposto tudo quanto há em como não vais fazer reclamo mercantilista dos industriais norte-americanos, que adornam os seus produtos duma forma berrante, para os venderem como maravilhosa panacéia sem valor real.

– Tu antecipas-te aos meus raciocínios. Eu não queria ir tão longe. Só queria fazer-te notar que essa psicologia utilitária, ou como lhe queiras chamar, que excita nos jovens a ambição do dinheiro, parece-me ser uma coisa funesta,

– Vamos a entender-nos. Desde o momento em que vós, os que censurais esses estímulos, classificando-os de loucura, não perdeis ocasião de amealhar um escudo que seja, parece-me lícito excitar os moços ao trabalho honrado, como único meio de alcançar o verdadeiro êxito da vida. Ora este não consiste em amontoar milhões, isto é, em acumular tesouros para vós, mas em saber distribuir as riquezas materiais, de modo que, sem prejuízo da satisfação das necessidades pessoais, dêem impulso ao progresso da humanidade.

– Ah! meu amigo, como é difícil o que dizes! Para página de literatura estimulante está mesmo a calhar. Mas quem é capaz de tanta abnegação na prática da vida?

– Pois, sem ir mais longe, aí tens o exemplo dos homens que das minas do trabalho extraíram, com o seu esforço pessoal, o dinheiro que generosamente espalharam, como semente fecunda, a partir das culminâncias do êxito, onde se elevaram.

– E quem são esses melros brancos?

– Os que fizeram o que nunca serão capazes de fazer os corvos negros.

– A quem queres atingir com essa insídia?

– A quem se interponha na trajetória. Santa Tereza, com todo o seu misticismo, chamava corvos aos carmelitas calçados, e hoje é nada menos que doutora.

– E a que propósito vem isso?

– A propósito do que quiseres. Mas vamos ao nosso caso. Aí tens Carnegie que, espontaneamente, faz entrega de duzentos milhões de dólares para fundar bibliotecas, colégios, escolas, institutos, pensões e outras obras de verdadeira e indiscutível beneficência. Temos Rockefeller, o fundador do Instituto Médico, com o fim humanitário de que as investigações a que nele se procedessem conseguissem, com o tempo, descobrir novos processos terapêuticos em benefício de todo o gênero humano.

– Mas, na minha opinião, quando tu e os teus partidários aconselham os jovens a manterem firmemente o seu ideal, esse ideal não é o da virtude nem da santidade, mas sim o da riqueza ou bem-estar temporal.

– Estás redondamente enganado. As riquezas materiais devem ser consideradas um estímulo prudentemente alentador, só como meio e nunca como fim da nossa existência. Nós diremos aos moços: O êxito não tem segredos para o homem laborioso, para o que sabe alternar o trabalho com o descanso e com o recreio; que dá ao corpo tudo quanto ele necessita, mas não tudo quanto ele pede. Nas mãos do ocioso egoísta, o dinheiro, sem trabalho, é uma maldição. O dinheiro, em poder do homem trabalhador e prudente, é a suprema bênção da fortuna. O êxito só exige trabalho assíduo, entusiasmo pelo nosso labor, domínio das paixões e conhecimento daquilo com que lidamos. Muitos ricos de hoje nasceram na pobreza e não improvisaram fortunas ao sinistro ardor duma guerra fratricida; pelo contrário, apesar da sua limitada educação, trabalharam heroicamente e aproveitaram todas as ocasiões que lhes proporcionaram as contingências do seu modo de vida, para progredirem no seu trabalho consciente e honesto. O homem, além da natural aptidão para o trabalho que empreender, precisa de ter energia, perseverança e discernimento para vencer nas lutas da vida. Não deve perder nunca a equanimidade. Nem os elogios o devem ensoberbecer, nem os vitupérios o hão-de humilhar. Deve manter-se sempre austero de princípios e confiado em que nada sucede ao acaso, que tudo está sujeito a leis, embora ainda não tenhamos investigado inteiramente a antiqüíssima e, contudo, sempre novíssima compilação do eterno Legislador.

– Não desgosto de ouvir o que dizes, embora me pareça ter mais brilho que solidez. E qualquer coisa assim como uma enfiada de pérolas lapidadas.

– Não te digo isto só a ti. Quisera que me ouvissem os milhões de criaturas moças que entendem a minha língua, pois lhes diria mais isto: Não vos aflijais nunca por falta de dinheiro, enquanto tiverdes na vossa mente os tesouros do talento e no vosso coração o tesouro inestimável da bondade. Muitos benfeitores do gênero humano lutaram desesperadamente durante largos anos com a pobreza e a miséria, até que, como prêmio da sua constância, encontraram um protetor, um Mecenas, que lhes proporcionou os meios materiais de produzirem um invento que os livrasse dalguma obra fatigante e lhes aliviasse as duras condições do trabalho.

– Mas não é o trabalho um suplício, um castigo, uma maldição de Deus?

– O suplício, o castigo e a maldição é a ociosidade. Infeliz do que não sabe em que empregar o tempo! O aborrecimento, o tédio e o desespero são o fruto amargo da sua indolência.

– Não o contesto. Mas também não me contestarás que há trabalhos duros e ingratos que, se o não são, parecem castigo de Deus.

– Parece-te isso, porque tens uma idéia antiquada do que é o trabalho. Repara e verás como a resistência que se opõe ao nosso esforço robustece a vontade, aviva o entendimento e estimula a nossa atividade até a vencer.

– De tudo quanto dizes, tiro a conclusão de que as riquezas bem adquiridas só podem ser fruto do trabalho. O doutor Pero Grullo não diria mais a tal respeito.

– Zomba à vontade, que muitas verdades perogrullescas não penetraram ainda no bestunto dos eruditos que presumem de sábios nem no cérebro dos estadistas. Nota que é muitíssimo mais difícil saber aplicar o dinheiro do que ganhá-lo. Para o ganhar, basta trabalhar com firmeza e entusiasmo em obras que estejam de harmonia com as nossas aptidões. Basta querer e saber, para poder trabalhar. Por outro lado, a conveniente aplicação do dinheiro exige que nos desviemos dos escolhos da avareza e da prodigalidade.

15. A vontade e o ascendente

Entendemos por ascendente o predomínio moral, a influência parecida com a sugestão irresistível que os caracteres enérgicos exercem sobre os fracos e as vontades robustas sobre os indolentes.

A experiência da vida oferece-nos, a cada passo, numerosos exemplos do ascendente moral daqueles que aliam à superioridade dos seus conhecimentos e à firmeza do seu caráter um procedimento regulado pela mais rigorosa justiça, pois é esta uma condição indispensável para que o ascendente dimane da própria personalidade e não da posição social que ocupe ou da autoridade que exerça.

Não dá nem pode dar a psicologia regras fixas para adquirir ascendente sobre as pessoas das nossas relações. É qualquer coisa que espontaneamente resulta duma infinidade de pormenores inerentes à nossa maneira de proceder e impossíveis de enumerar, porque dependem das intrínsecas qualidades do nosso verdadeiro ser, manifestado através da personalidade.

Quem não possua, ou melhor, quem não tenha ainda desenvolvidas as características exigidas pelo ascendente, não poderá, por muito que queira e por muito elevada que seja a sua autoridade legal, ter a autoridade moral que não necessita de agentes que materialmente lhe sirvam de apoio. Por outro lado, o ascendente do indivíduo que é superior em dignidade, soberania e governo, em relação aos seus subordinados, é quase sempre acompanhado do sutilíssimo sentido psicológico que, com os olhos da intuição, examina o interior dos outros e aprecia o seu verdadeiro valor.

Há muitos homens que ocupam elevadas posições políticas e sociais e nada produzem no seu desempenho, por não saberem apreciar devidamente o mérito dos que o cercam, colocando-os no lugar onde melhores serviços poderiam prestar ao trabalho coletivo. Entre as condições individuais que o êxito requer, tem grandíssima importância a do conhecimento do coração humano e o tato em escolher os colaboradores da empresa, pois, por muito prodigiosa que seja a atividade dum homem, não deve nem pode atender pessoalmente a todos os pormenores. O cérebro que pensa necessita do braço que execute; mas é indispensável que o braço obedeça inteligentemente ao pensamento do cérebro.

Depois de vencer Dario Codomano na batalha do Granico, Alexandre Magno caiu gravemente enfermo. Um dos seus generais mandou-lhe uma carta, prevenindo-o de que o médico que o tratava, subornado por Dario, procurava envenená-lo, e então que não tomasse nada que ele lhe desse.

Alexandre leu tranqüilamente a carta e colocou-a debaixo da almofada. Daí a pouco, veio o médico que, depois de lhe tomar o pulso, lhe disse em tom jovial:

– Parece que tens menos febre; mas a doença ainda é grave. A febre pode tornar-se maligna; mas, para evitar isso, vou preparar um medicamento que te salvará a vida.

Arranjou o médico a beberagem e, ao trazê-la ao enfermo, disse-lhe este:

– Deixa-a aí ficar próximo de mim, que eu já a tomo. Entretanto, lê esta carta.

E entregou-lhe a carta que recebera, prevenindo-o da tentativa de envenenamento.

Alexandre endireitou-se na cama, com o cotovelo apoiado na almofada e os olhos fitos no semblante do médico, observando-o atentamente como se lhe sondasse a alma. Mas o médico não aparentou o menor receio. O seu rosto permaneceu sereno.

Alexandre tomou em seguida a poção, bebendo-a dum trago, e o médico disse-lhe:

– Como tomaste a poção, apesar do que diz a carta?

– Porque sei que és um homem honrado.

Alexandre tinha um poderoso ascendente sobre todos os que o cercavam, conhecia os homens e os motivos a que obedeciam. Lia no coração humano como num livro aberto. Nas gargantas do Isso, desbaratou completamente o formidável exército que contra ele enviara Dario. Este, ao reconhecer-se impotente, procurou fazer um pacto com o vencedor, oferecendo-lhe dez mil talentos de prata, metade da Ásia até ao rio Eufrates e a mão duma de suas filhas. Alexandre respondeu ao mensageiro que lhe trouxe a proposta:

– Olha, dize a teu amo que nem a terra pode ter dois sóis nem a Ásia dois reis.

Mas Parmênio, amigo de Alexandre, julgando vantajosíssima a oferta, disse-lhe:

– Se eu fosse Alexandre, aceitava.

Ao que o jovem conquistador respondeu:

– Também eu aceitaria, se fosse Parmênio.

Arte subtil e delicada é a que consiste em apreciar devidamente as qualidades dos homens, medi-los e pesá-los com acerto e confiar-lhes os cargos em que melhor possam desenvolver as suas energias e fortalecer as suas fraquezas.

André Carnegie deixou disposto no seu testamento que lhe inscrevessem no túmulo o seguinte epitáfio:

 

AQUI JAZ UM HOMEM QUE SOUBE

CERCAR-SE DOUTROS QUE VALIAM

MAIS DO QUE ELE

 

Confessava Carnegie que devia a sua fortuna à colaboração valiosíssima de Guilherme Jones e de Carlos Miguel Schwab.

Toda a gente se admira de como um Morgan, um Rockefeller, um Wanamaker puderam triunfalmente levar a cabo tão poderosas empresas. Mas o segredo está não só em terem posto em ação as suas qualidades pessoais e sobretudo a força de vontade, mas em terem conseguido utilizar outras vontades tão enérgicas como a sua e sobre as quais exerciam um saudável ascendente moral.

O segredo do êxito tem tantas modalidades como as cores têm de gradações. Se alguém pretendesse determinar o segredo do êxito ou desvendar o seu mistério como mola oculta dum aparelho mecânico, não o conseguiria antes que quisesse. Assim como um concerto sinfônico não depende de um nem de vários, mas de todos os instrumentos da orquestra, postos em vibração pelo gênio do compositor, assim o êxito não depende de um nem de vários, mas de todos os colaboradores que constituem a empresa. O diretor, o chefe, o gerente ou o dono dessa empresa não deve tocar nenhum instrumento, isto é, não deve fazer trabalho algum determinado, mas dirigi-los todos, como o mestre dirige a orquestra com a sua batuta.

Portanto, um dos segredos do êxito, em qualquer empresa, consiste na hábil instrumentação, ou seja, a colocação acertada de cada colaborador no emprego que melhor se harmonize com as suas naturais aptidões. Que diríamos dum chefe de orquestra que trocasse os instrumentos, dando o trombone ao violinista e o contrabaixo ao cornetim? Confederá-lo-íamos um louco varrido. Pois com a mesma loucura procedem os que, por não conhecerem o coração humano, por falta de vontade e ascendente moral, não colocam acertadamente, no seu devido lugar, os colaboradores da sua empresa.

Pior, porém, é quando se enganam totalmente, vendo negro o que é azul, e amarelo o que é branco. Um dos mais famosos comerciantes do nosso tempo, Marshall Field, a quem o ensino prático comercial tanto deve, e que é muito diferente do ensino rotineiro que não estabelece a ligação da escola com a loja, era filho dum aldeão, que colocou o rapaz no armazém dum negociante seu amigo, chamado Davis, estabelecido em Pittsfield (Massachusetts).

Havia já alguns meses que o jovem Field estava como aprendiz no armazém, quando um dia veio vê-lo seu pai, João Field, e saber do estado de adiantamento em que ele ia.

– Que tal vai o rapaz, amigo Davis?

– Que te hei-de eu dizer, João. Nós somos amigos velhos e não me atrevo a ofender os teus sentimentos. Mas sou muito franco e tenho de confessar-te a verdade. Marshall é um bom rapaz, trabalhador, serviçal, tudo o que quiseres; mas para comerciante não dá nada, ainda que estivesse mil anos no armazém. Não tem fibra de comerciante. Leva-o para a granja, João, e ensina-o a mungir as vacas.

Se Marshall Field se tivesse conservado no armazém de Davis, nunca teria sido um dos magnatas do mundo comercial. Mas, quando foi para Chicago e viu por lá os maravilhosos exemplos de pobres rapazes que haviam triunfado à custa dos seus generosos esforços, sentiu despertar-se-lhe o desejo ardente de chegar a ser um grande comerciante, dizendo de si para si:

– Se outros fizeram coisas tão admiráveis porque não poderei eu fazê-las também?

Nesta pergunta resumia-se o desejo ansioso, o querer, com a aptidão natural para o comércio, que a miopia mental de Davis não consegui descobrir no jovem Field. Se este tivesse seguido indiferentemente o conselho de Davis que o mandava mungir vacas, por não revelar uma vontade decidida, uma firme intenção de responder à voz interior que o chamava ao comércio, com certeza o mundo comercial teria perdido um dos seus mais enérgicos propulsores.

Aqui vemos já duas condições necessárias para o êxito. A aptidão natural e a vontade, de que deriva o ascendente sobre pais, amigos, mestres e todos os que, por cegueira mental, são incapazes de ver o coração humano.

Mas são suficientes a aptidão e a vontade? Por muito talento e vontade que tivesse um engenheiro agrônomo, de nada lhe serviriam no insensato desejo de fazer plantações em rochas áridas e escalvadas. Nem ao engenheiro industrial serviria de nada a sua vontade e talento, se projetasse montar uma rede ferroviária nas vetustas ruínas das tortuosas cidades medievais.

As circunstâncias e o ascendente que sobre elas exerce uma vontade perseverante são também condições necessárias para que o querer se concretize em poder. Talvez Marshall Field não tivesse prosperado tão rapidamente se, em vez de Chicago, tivesse escolhido outra cidade. Em 1856, quando ele para lá foi cheio de esperança, começava a desenvolver-se a maravilhosa cidade que é hoje. Só tinha então oitenta e cinco mil habitantes. Poucos anos antes, era uma modestíssima feitoria indiana. Mas a cidade ia progredindo rapidamente, ultrapassando sempre as previsões dos seus habitantes mais otimistas. O êxito flutuava no ambiente. Toda a gente pressentia que se encontravam ali maravilhosas fontes de prosperidade.

Marshall Field não esqueceu nunca o erro cometido pelo seu primeiro patrão e, guiado por esta experiência, não deixava de observar os seus empregados, lendo-lhes o futuro no seu aspecto, sem que eles dessem pela observação de que eram alvo. A sua habilidade para pesar, medir e avaliar os homens, adivinhando-lhes o intento, era quase genial.

A petulância é um obstáculo tão grave para o ascendente como a timidez. O que se gaba de saber tudo e de ter todo o poder, não sabe geralmente fazer nada que jeito tenha. Quer dar lições a toda a gente, fundado apenas no empirismo que possui, e, se é dono duma casa de comércio ou se, por direito hereditário, é gerente duma firma social, imagina que nem os criados serão capazes de varrer o escritório, se ele mesmo não for pegar na vassoura. Sem o dom de saber ler na natureza humana, arrisca-se a ser o alvo secreto dos seus empregados, que intimamente o depreciam por incompetente, apesar de o lisonjearem sem a menor reserva.

Poucos são os homens que têm o discernimento suficiente para conhecerem as suas fraquezas e a estreiteza do seu espírito, cercando-se ainda doutros com defeitos de caráter, o que dá em resultado a empresa abortar irremissivelmente.

Pelo contrário, o êxito pertence àqueles que, sem descerem ao ínfimo grau de timidez, permanecem no nível prudente da modéstia e, reconhecendo que nem tudo sabem nem são capazes de fazer tudo por suas mãos, procuram cercar-se de homens dotados das qualidades que eles não têm, compondo assim um hábil sistema de forças, cuja resultante é o êxito da empresa.

O chefe, o diretor ou gerente, o que tem a seu cargo dirigir e está investido de autoridade, não só tem de saber apreciar e conhecer os outros, mas deve possuir a arte, ainda mais difícil, de conhecer-se a si mesmo, sabendo quais as suas qualidades e defeitos.

Grant tinha extraordinárias aptidões militares. Era da fibra dos generais vitoriosos. Sabia descobrir nos seus subordinados a aptidão militar; mas não tinha a mesma habilidade para descobrir a aptidão política. Foi assim que, ao chegar à Casa Branca, não conseguiu adquirir sobre os políticos do seu partido o ascendente que adquirira sobre os militares. Viu-se obrigado a confiar no conselho dos amigos e não manteve como presidente a altíssima reputação alcançada como general.

As maneiras, os gestos e as atitudes espontâneas dum homem revelam o seu caráter muito mais claramente do que a sua estudada conversação. Os olhos não mentem; dizem a verdade em todos os idiomas e quase sempre desmentem, o que a boca profere. Enquanto o hipócrita, com as suas palavras, vos possa enganar, ledes vós fixos seus olhos toda a expressão da verdade. Os seus gestos e ademanes revelam o verdadeiro homem, enquanto as palavras caracterizam o cômico que está representando um papel aprendido de cor.

Todos nós conhecemos diretores de bancos, gerentes de estabelecimentos vários, donos de casas comerciais, que trabalham como escravos e, contudo, não progridem muito nos seus negócios, simplesmente porque não sabem rodear-se de homens competentes.

O êxito não só exige talento, mas também método. De contrário, às mais brilhantes qualidades ficarão como um montão de pérolas, sem a disposição conveniente que lhes dá todo o brilho e todo o relevo. Não basta fazer bem a própria obra pessoal. É necessário harmonizá-la com a de todos os fatores humanos que concorrerem para a obra comum.

Há muitos que costumam iludir-se com o palavreado inútil, com as maneiras esquisitas, com as lisonjas intencionadas e, levados pelas aparências, colocam um teórico onde só um prático pode alcançar êxito!

Mas não se limita este exame psicológico a inquirir do valor dos colaboradores duma empresa, pois, se esta for de caráter comercial, também é conveniente conhecer o temperamento coletivo desse corpo bastante complexo que se chama público.

Diz Woolworth, o inventor do processo comercial conhecido pelo preço único, que tanto se vai divulgando como ampliação do preço fixo:

Eu dei sempre ao público uma tal importância que procurei incutir no espírito de todas as pessoas a convicção de que tratando comigo economizariam dinheiro. Por outro lado, tive sempre o cuidado especial de tratar os meus empregados não como criados, mas como representantes da minha própria pessoa, para que servissem bem os fregueses.

A princípio, julgava Woolworth que o negócio correria melhor se pessoalmente olhasse por todos os seus pormenores. Mas um dia adoeceu com um tifo que o conservou oito semanas afastado dos negócios, e, ao recuperar a saúde, aprendeu por experiência própria, a distribuir a responsabilidade pelos seus empregados, reservando para si a direção geral da casa. Assim pode dar ao seu negócio o maravilhoso impulso, que doutro modo lhe teria sido impossível.

Nisto como em todas as coisas, vemos que o ascendente é filho do amor e não do temor da benevolência enérgica e não do orgulho austero.

16. O direito à vida

Um rapaz de quinze anos compareceu no tribunal de menores de Cleveland, por ter furtado oito dólares.

– Que foi que te obrigou a furtar? perguntou-lhe o juiz.

– Não tenho pais nem pessoa nenhuma de família. Andava ao abandono pelas ruas, nu e esfomeado. Vi o dinheiro em cima do mostrador duma loja, onde entrei a pedir esmola, e tirei-o, porque tenho direito à vida.

– E quem te disse que tens direito à vida?

– Ouvi muitas vezes dizer nas reuniões socialistas que todos temos direito à vida; e então pensei que, em vez de morrer de fome, podia tirar os oito dólares para comprar qualquer coisa de comer.

Neste breve interrogatório se notam as conseqüências que na gente moça produz a errada interpretação de idéias e doutrinas, que propagandistas não sabem expor com a necessária ponderação para não desorientarem cérebros juvenis.

O ratoneiro de Cleveland julgava que a sociedade era obrigada a sustentá-lo, e, nesta mesma crença, vivem muitíssimos dos que se chamam deserdados, em cujo espírito vai fermentando a revolucionária idéia do terrorismo.

A quem se devem lançar as culpas da situação espantosamente crítica a que ficaram reduzidas todas as nacionalidades do mundo depois da guerra? Em todos os países e climas na Europa e na América, no Oriente e no Ocidente, na Ásia e na Oceania, se ouve atentamente o surdo rumor das ígneas correntes subterrâneas que, a espaços, fazem estremecer a crosta social do globo, ameaçando quebrá-la com tremendas convulsões, se não encontrarem uma cratera suficientemente ampla para a erupção.

A culpa desta violenta colisão entre a reação que reprime e a ação que impulsiona deve dividir-se em duas partes: uma, para os governantes que durante muitíssimos anos mantiveram os povo na ignorância dos seus direitos; e outra, para os demagogos que, na tribuna e na imprensa, os conservavam na ignorância dos seus deveres.

Sobre esta questão conversavam duas amigas, feministas entusiastas, embora uma delas fosse partidária dos processos de violência, à maneira de sufragista inglesa, e a outra se inclinasse mais aos processos ruidosos, com muitas manifestações estrondeantes, cheias de cartazes ironicamente sugestivos, muitos discursos e uma grande profusão de alocuções impressas às portas dos Parlamentos.

– Mas dize-me cá: porque estou eu neste mundo? Quem me trouxe cá? Eu não vim espontaneamente, porque, se me tivessem consultado se queria ou não vir, diria redondamente que não.

– Olha, isso são coisas muito transcendentes em que não nos devemos meter, para não darmos em malucas. Acredita no que te digo: não te metas em fantasias e encara as coisas como elas são, porque, se queres que sucedam como tu desejas e não como devem suceder, virias a arrepelar-te certamente, se visses o teu desejo realizado,

– Pois a mim não há quem me convença do contrário. Trouxeram-me ao mundo sem minha vontade e, portanto, nada devo ao mundo. Pelo contrário, o mundo é que me deve reconhecer o direito à vida.

– No fundo, tens razão, mas falta-te discernimento para compreenderes em que consiste esse direito à vida, A cada passo ouves dizer a pessoas sensatas que todos temos direito à vida; que, quando o sol nasce, é para todos; que Deus castiga justos e pecadores; que não se deve deixar morrer ninguém de fome...

– É que todos somos iguais como irmãos, visto sermos filhos do mesmo Deus.

– E onde viste que sejam iguais os filhos dum mesmo pai? Um será louro, outro moreno; este terá os olhos pretos, aquele tem-nos azuis; uns serão bem feitos de corpo, outros desajeitados.

– Mas todos se sentarão à mesma mesa e comerão do mesmo pão. O pai não deixará morrer nenhum de fome.

 – Pois aí tens, tu mesma, sem reparares, expões o verdadeiro sentido do direito à vida, porque, quando viemos ao mundo, sem querer saber porque viemos, donde viemos e para onde vamos, nascemos no seio duma família...

– Ou no desvão duma porta, onde te deixam abandonada como coisa inútil, dizendo:  “Fica-te para aí”.

– E para que servem os hospícios?

– Para vergonha da civilização.

– Modera os teus ímpetos e não vás imaginar que sou um deputado antifeminista. Não é possível corrigir num século os erros de cem. Lá virá dia em que os hospitais, os asilos, os manicômios, as rodas e outros estabelecimentos de beneficência regulamentada sejam antiguidades tão curiosas como são hoje os hieróglifos egípcios ou os cilindros de Babilônia. Mas continuemos com o nosso ponto de vista, e deixemos lá as exceções e irregularidades. Quem a este mundo nos traz, embora não pareça que viemos por nossa vontade e conveniência, dá-nos uns pais que têm o dever de nos alimentar, de nos educar e de nos dar bons exemplos, como sempre ordenou a lei natural, muito antes da doutrina cristã o haver prescrito. No dever dos pais está o direito dos filhos à vida.

– Isso é muito bonito de dizer-se! E senão, vejamos. Cumprirão esse dever os pais que tenham mesa farta e o dinheiro suficiente para viver. Mas não há milhões de crianças a quem os pais vilmente exploram, apenas elas começam a falar e a andar, obrigando-as a um trabalho violento? Que espécie de direito à vida têm esses infelizes?

Dão ao mundo muitíssimo mais do que dele recebem.

– Esse também é um dos muitos males que certamente se hão-de remediar com o tempo. A nossa época, a esse respeito, está melhor do que antigamente, apesar dos ignorantes dizerem que vamos do mal a pior. Hoje em dia, as leis, harmonizando-se com os costumes, respeitam o direito que à vida têm os menores, tendo diminuído, em enormes proporções, o número das crianças condenadas pela cobiça paterna a um trabalho prematuro.

– Mas os abusos ainda se cometem.

– É que do dizer ao fazer vai muito. Uma coisa é fazer uma lei, e outra coisa é cumpri-la. Todavia, a consciência pública irá subindo de nível., até chegar a um ponto em que seja impossível a escravidão da infância.

– Isso há-de ser muito tarde.

– Estás enganada. O mundo marcha com movimento uniformemente acelerado, em progressão geométrica e não aritmética, de modo que, em cinqüenta anos, adianta hoje dez vezes mais do que dantes em dois séculos. Lembras-te da anedota do inventor do xadrez?

– Sabe Deus quem o teria inventado! Havia de ter sido um eminente matemático.

– Fosse quem fosse, que ao certo não se sabe, conta-se que o rei, admirado do invento, disse ao inventor que pedisse, como prêmio, o que quisesse. Ele respondeu que, visto o tabuleiro ter sessenta e quatro casas, se contentava com um grão de trigo pela primeira casa, dois pela segunda, quatro pela terceira, oito pela quarta, dezesseis pela quinta, e assim dobrando de cada vez os grãos da casa precedente até chegar à sessenta e quatro. O rei desatou a rir, pensando que era uma bagatela o que o inventor pedia, e disse logo que sim; mas ao fazer a conta quantos grãos de trigo supões tu que somavam as casas do tabuleiro?

– Uma conta enorme, eu sei lá quanto seria! Talvez não fosse menos de um milhão de grãos.

– Mais um pouco.

– Dois milhões?

– Mais um bocadito.

– Mil?

– Mais, mulher, mais.

– Então não sei quanto dá. Dize lá quanto foi.

– Não fiques assombrada nem deites a fugir. Dezoito trilhões, quatrocentos e quarenta e seis mil e setecentos bilhões de grãos de trigo. Se reduzires o trigo ao seu equivalente em dinheiro, calculando, pelo menos, sessenta escudos o hectolitro, dá a bagatela de quarenta e quatro bilhões, duzentos e setenta e dois mil e oitenta milhões de escudos. Já vês que não era nenhum parvo o inventor do xadrez, quando pediu esta quantia.

– É um absurdo! Ao pé desse pedinchão, qualquer multimilionário do nosso tempo não mais do que um liliputiano.

– Tudo o que te disse é salvo erro ou omissão. Não venha algum menino prodígio emendar-me o cálculo ou o preço do trigo.

– Mas que tem tudo isto que ver com o direito a vida?

– Não é o pão o nosso principal alimento, a ponto da sua falta dar origem a desordens e assaltos a padarias? Não é de trigo que se faz o pão? Pois, se o pão é o primeiro alimento da vida e o trigo a primeira matéria de que o pão é feito, não foi digressão impertinente misturar o trigo com o direito à vida. Outros o misturam com milho e passam por ser grandes pessoas.

– Ora! Não digas mais tolices e cinge-te ao assunto. Que entendes tu por direito à vida e que relação tem este direito com a vontade, com o querer e o poder?

– Falando seriamente e fora de mangação, dir-te-ei que o direito à vida consiste, a meu ver, em sustentar e educar, durante a sua menoridade, todo o indivíduo que nasce, de modo que vá desenvolvendo as suas faculdades e revelando as suas aptidões, para que, quando chegar à maioridade, seja senhor dos seus atos, sem perigo de cometer loucuras, e possa fazer o que quiser e souber, em harmonia com a lei fundamental da vida.

– Dessa forma, o direito à vida só prevalece durante a menoridade.

– Espera. A ninguém se hão-de negar os meios de dar à sua atividade um emprego útil. O mais eficaz é a educação recebida na infância; mas já na virilidade não deve haver privilégios, nem monopólios, nem foros, nem coisa que coarcte a livre atividade individual. O que um fizer, podem fazê-lo todos, contanto que satisfaçam as condições naturalmente exigidas pelo caráter da obra.

– Admitindo que todas essas belas coisas se passam realizar, que me dá o mundo em troca do meu trabalho? O indispensável, para não morrer de fome. Nós que não temos camarote de assinatura, lugar reservado no restaurante, voz nos comícios, nem automóvel de passeio, temos de comer para viver, viver para trabalhar e trabalhar para comer. Nem tu, nem todas as tuas filosofias serão capazes de me tirar deste círculo vicioso.

– Alto lá. O círculo vicioso será o do camarote, do restaurante, dos comícios e do automóvel dos que, pela manhã, fazem gala em servir a Deus e à noite são escravos de Mammon. O círculo de comer para viver, de viver para trabalhar e de trabalhar para comer é um círculo mais perfeito que o da verdadeira roda da fortuna. Na tua mão está trabalhar com prazer, viver satisfeita e comer com apetite. Que mais queres?

– O mesmo direito à vida que têm as outras.

– Coitada! O direito à verdadeira vida, a vida superior, ninguém to nega, nem to pode postergar. Depende de ti mesma, porque é natural, inalienável, imprescritível e ilegislável.

– Oh! que chuva de adjetivos!

– Que são verdadeiros substantivos.

– Mas nada substanciosos, se não derem de comer.

– Estás sempre a pensar na gamela, como os da vista baixa.

– Não comas e verás em que dão todas as tuas filosofias. Simplesmente em ossos.

– A minha filosofia é a filosofia da vida prática. Não a das cátedras a dois contos de ordenado por mês e com dez meses de férias por ano.

– Mas afinal que devo eu ao mundo?

– O trabalho que para ti tem feito toda a civilização através dos séculos. Tu estás colhendo tranqüilamente o fruto que as gerações passadas semearam a força de sacrifícios, de infortúnios, de perseguições e de trabalhos. Tens coragem para te defrontares com os mineiros do progresso humano e aproveitares-te dos benefícios do seu trabalho, sem lhes dares nada em troca? Quem não agradece comovidamente o bem que os antepassados fizeram ao mundo é um parasita da sociedade e um ladrão do trabalho alheio.

– Não é tanto assim, filha, não é tanto assim. Eu creio, pelo contrário, que esses progressos materiais que a ciência trouxe ao mundo vieram complicar a vida e dificultar o direito que todos deveríamos ter a ela, em vez de a simplificarem e difundirem o bem-estar entre todas as pessoas. Tu falaste no telégrafo, no telefone, nas estradas de ferro, nos aeroplanos, nos automóveis, na radiografia, na rádio-telegrafia, no cinematógrafo, nos comboios elétricos, no fonógrafo, eu sei lá! em todas essas maravilhas que a ciência descobriu. Mas o mundo dá-tas sem interesse? Dá-te essas coisas ao menos baratas? É o dás! Custam-te os olhos da cara e não as tens, quando mais urgentemente precisas delas. Vais à pressa e queres tomar um comboio? Passam todos já cheios de passageiros. Queres ir ao ultramar? Não tens bilhete de passagem. Precisas de telefonar com urgência? Está a linha impedida ou não responde chamada, talvez pela ligação estar mal feita. Convém-te transmitir pelo telégrafo uma notícia ou perguntar alguma coisa de que porventura possa depender o teu futuro? Tens de te encostar à boca do guichê e esperar três horas, para que o telegrama chegue no seu destino dois dias depois da carta que tiveres mandado. A civilização é como a cabeça dum busto: formosa, mas sem miolos. Podes acreditar. Melhor estava o patriarca Abraão sentado à porta da sua barraca, à sombra da figueira, do cicômoro ou do que quer que fosse.

– Que exageros tu dizes! Vês as coisas pelo seu lado tenebroso. Vê-as pelo seu aspecto luminoso e verás que tudo quanto existiu antes de ti faz parte da tua vida e da tua época. Gozas da soma de todos os momentos passados no tempo e de todos os instantes decorridos no espaço. Lembra-te dos rios de sangue vertido pelos antepassados, dos milhares de mártires que morreram no meio de tormentos ou se extinguiram dentro das masmorras, para comprarem com as suas vidas a liberdade do pensamento, da palavra e da ação de que hoje gozas.

– Protesto!

– Contra quê?

– Contra o que acabas de dizer. Para que me vens falar em liberdade de pensamento, de palavra e de ação e doutras futilidades, quando, sem lei votada no Parlamento, me têm suspendido as garantias constitucionais, durante anos inteiros, e até trazem beleguins a vigiarem-me os passos? O que te digo é que nos tempos da tão odiada Inquisição se publicavam livros com frases que a censura hoje cortaria nos jornais.

– Em compensação, podes tu e outras como tu, discutir e barafustar, sem que ninguém vos ponha uma mordaça, nem vos corte a língua ou vos ampute a mão, como na Inglaterra medieval.

– Isso é o que tu querias.

– Não tenho tão mau coração como supões.

– Parabéns, e em conclusão te digo, sem receio de que me desmintas, que nem os sábios com a sua ciência, nem os santos com a sua virtude foram capazes de melhorar o mundo, de modo que as condições econômicas e sociais valorizassem o direito à vida, mesmo segundo a tua opinião. Falta ainda qualquer coisa que vibre nas entranhas virgens do futuro. Falta a justiça distributiva que dê a cada um o que lhe pertence e merece, segundo a sua capacidade, e o coloque no lugar onde perfeitamente contribua com a sua ação para o harmônico funcionamento do organismo social.

17. A vontade e a sorte

Nós não devemos ser uns fetichistas da vontade. É uma força poderosa, mas não onipotente. Há outra força superior e que prevalece sobre a vontade humana – é a vontade divina – que, por caminhos ocultos, dirige a realização dos seus desígnios, valendo-se das ações humanas.

Portanto, temos de atender a que há coisas sobre as quais não tem o menor poder a vontade do homem, porque dependem diretamente da vontade de Deus, não por arbítrio ou capricho, mas por formarem parte do plano da evolução universal, cuja finalidade deve ser necessariamente o triunfo definitivo do bem.

Se conhecêssemos todas as leis que a natureza ainda conserva envoltas no mistério, e que irá revelando à medida que se aperfeiçoe o homem coletivo, não atribuiríamos à sorte nem à casualidade nada do que sucede, pois tudo está disposto e ordenado de modo que, sem prejuízo do livre-arbítrio, se cumpram os desígnios de Deus.

Segundo a idéia mesquinha, limitada e errônea, que sobre a vida têm a maioria dos europeus e americanos, em conseqüência da falsa instrução que recebem desde a infância, só deveríamos admitir o fator sorte ou o seu equivalente, a casualidade, para o êxito ou inêxito das ações humanas. Vemos que alguns progridem no seu modo de vida, chegam a ocupar elevadas posições, adquirem riquezas materiais e prosperam nos seus negócios, não pelo seu próprio mérito, mas pelo favor alheio, pela proteção que lhes concedem os seus parentes, amigos e colegas.

A cada passo, ouvimos queixas contra a injusta postergação do mérito e contra a marcha ascensional dos medíocres ou dos nulos, que tiveram a sorte de ser parentes, amigos ou protegidos de quem os podia fazer subir. É verdade que contra o mérito genial e extraordinário nada pode o favor, sob pena de manifesta e flagrante injustiça que levanta clamores de indignação; mas é freqüentíssimo que prevaleça contra o talento ou a aptidão, como todos os dias o estamos vendo.

Acontece outras vezes um mísero jornaleiro ou uma humilde lavadeira receber uma herança dum parente falecido em terras longínquas, e todos os que vêem apenas o aspecto externo dos acontecimentos humanos, exclamam:  “Aquilo é que foi uma sorte!”

Milhares de pessoas, ansiosas por enriquecerem dum momento para o outro, compram bilhetes e décimos das loterias, sós ou de sociedade, e, de cem mil, só algumas, talvez uma apenas, terá a sorte de receber o prêmio maior.

Centenas de passageiros vão a bordo dum transatlântico. Sobrevêm um temporal, ou o navio vai de encontro a um bloco de gelo, como sucedeu ao Titanic, e no naufrágio perecem todos, menos uma dúzia de pessoas que têm a sorte de salvar-se milagrosamente, sem saberem como conseguiram escapar.

Chocam dois comboios, e do sinistro resulta ficarem várias carruagens feitas em estilhas, morrendo todos os passageiros, menos dois que, sem procurarem salvar-se, têm a sorte de ficar ilesos por milagre.

Recebe o chefe duma empresa qualquer vários bilhetes anônimos, ameaçando-o de que o hão-de matar. Não faz caso deles e continua tratando da sua vida, sem tomar a mais leve precaução. Uma noite, é surpreendido pelos agressores que lhe disparam sete tiros quase à queima-roupa, não sendo atingido por nenhum. Todos os que têm conhecimento do atentado dizem que o homem esteve com sorte. O agredido não fez absolutamente nada para evitar a agressão. O que se deu foi uma coisa independente da sua vontade.

Dois políticos rivais, que disputam entre si o predomínio numa cidade, acabam por ajustar um duelo à pistola. A bala disparada por um deles não fere o adversário, e a do outro vai achatar-se contra a fivela do cinto que segura as calças do primeiro.

“Também andou com sorte!”, exclamam as testemunhas do duelo e todas as que dele têm conhecimento pelos jornais.

Em compensação, à sorte opõe-se a desgraça, que ainda é mais inexplicável, segundo o vulgar conceito da vida. Ao menos, na boa sorte – que, como o êxito, se toma sempre em sentido de felicidade, embora a rigor tanto possa haver boa como má sorte e êxito feliz ou infeliz – nota-se uma favorável disposição do invisível poder que concede o benefício, e, sem diminuir os seus atributos, podemos dizer que a sorte é um favor de Deus, por muito incompatíveis que sejam a misericórdia e a justiça com o favoritismo. Na desgraça, porém, ou na má sorte, que muitas vezes persegue os bons, a ponto de se não contentar em atormentá-los com infortúnios passageiros, mas que, pelo contrário, os martiriza, afogando-os num naufrágio, queimando-os num incêndio ou trucidando-os num sinistro ferroviário – como é possível ver a misericórdia, a justiça e a bondade divinas, se apenas vemos a vida pelo prisma por que a vêem os que supõem ser a terra a residência das almas?

Vai um passageiro na plataforma duma carruagem de primeira classe, porque todos os lugares estão já ocupados. É pessoa de representação social. Um seu amigo, que está dentro da carruagem, vê-o e oferece-lhe o seu lugar. O convidado recusa, mas o outro insiste. Por fim, aceita. O amigo muda para outra carruagem, em vez de ir para a plataforma, como parecia natural. Decorridos poucos minutos, dá-se um choque tremendo. O passageiro que aceitou o lugar morre no sinistro. A carruagem em que ele ia fica feita em pedaços. O passageiro que cedeu o seu lugar não sofre a menor arranhadura, e a carruagem para onde ele mudou fica indene. A vontade dum ou doutro é que provocou o incidente? De maneira nenhuma. São incidentes e contingências que ninguém prevê nem calcula, e só neles tem parcial ingerência a intuição, manifestada no que vulgarmente se chamam pressentimentos. Porque é que um morre e o outro se salva? É uma casualidade? É infortúnio para um e sorte para outro? Que vontade, que lei, que razão ou justiça preside a estes acontecimentos independentemente do querer e do poder do homem?

Outros exemplos: Uma viúva com dois filhos, um de quatorze e outra de dezesseis anos, tem por único amparo o que lhe oferece um seu irmão que, por estar numa posição desafogadíssima, quer e pode ocorrer às necessidades de sua irmã e sobrinhos, cujos estudos vai custeando. Os dois irmãos concluíram os seus estudos com distinção, tendo ambos tirado a bacharelado. O tio pergunta-lhes o que desejam como prêmio da sua aplicação. Eles respondem que gostariam imenso de visitar o encantador Alto Minho, que é, sem dúvida, a Suíça Portuguesa. Tomam o comboio, cheios de júbilo e, muito satisfeitos, infinitamente reconhecidos para com seu tio que os considera como filhos, a mente cheia de projetos para o futuro que se abre na sua frente, fazem a viagem de regresso, ansiosos por abraçarem a mãe que, com o mesmo anseio, os espera, morta por saber como lhes tinha corrida a excursão. Mas o comboio em que viajavam chocou com um rápido que ia muito atrasado, e o abnegado protetor com os seus dois protegidos morrem instantaneamente na catástrofe. A abnegação daquele homem merece ser premiada desta maneira? O prêmio do seu sacrifício deve confinar-se na morte violenta e inesperada? Que delito cometeram aqueles dois rapazes, filhos modelares, em quem a mãe depositava todas as esperanças, legítimo orgulho do tio, garantia segura da pátria e da humanidade, pelas virtudes e pelo talento que os exornavam? Porque é que as suas vidas, que começavam a desabrochar esplendidamente são de repente mutiladas como botões em flor que o granizo corta e a multidão espezinha? Foi a má sorte? Foi a desgraça? Que motivo, que fundamento racional teve tão tremendo infortúnio? Seria realmente desgraça ou sorte para as vítimas do sinistro?

O maquinista dum expresso português, que dirige uma sólida e poderosa locomotiva alemã, prevê o choque, e, embora se possa salvar, bastando saltar habilmente da máquina e deixar o comboio e os numerosos passageiros que leva entregues à sua sorte, mantém-se firme no seu posto. Sabendo positivamente que vai morrer, aperta os freios, diminuindo o mais possível a velocidade do comboio e consegue atenuar os efeitos do sinistro. Neste exemplo vemos a vontade transformada em heroísmo.

O intrépido e heróico maquinista – mais digno de receber o aplauso da posteridade do que certas figuras ridículas, cuja memória, por falta de virtualidade memorável, desaparecerá do fervor cultual das multidões – sentiu perpassar-lhe pela mente, naquele trágico instante, o sublime pensamento do dever, antevendo, por assim dizer, o horrendo espetáculo da iminente catástrofe. Quis e fez tudo quanto pode para a evitar, oferecendo a sua vida, como Cristo, para salvar a do próximo. Uma ação tão heróica não deve ter outra recompensa diferente da que assegura o futuro material da família do morto? E não se compreende que é estultícia atribuir à casualidade, à sorte cega e vária, a uma fatal coincidência de circunstâncias combinadas pela acaso, fatos que tão formidavelmente se interpõem contra a vontade humana?

É preciso, se quisermos satisfazer as exigências da razão, admitir um novo conceito da vida, que tenha por base a evolução do espírito e o reconhecimento do verdadeiro homem, cuja vida real não interrompe o seu curso nem morre, embora se desmembre e desapareça a forma corpórea em que temporariamente reside. A única explicação para este fato consiste em ver em todos os acontecimentos, circunstâncias e acidentes da nossa vida os elos duma extensíssima cadeia, das que, em mecânica, se chamam sem fim, que, partindo do seio de Deus, vai terminar no seio do mesmo Deus. Cada elo desta cadeia é uma conseqüência natural do elo anterior, como o efeito é natural conseqüência da causa, embora com os olhos corporais só possamos ver uma pequena porção da extensíssima cadeia.

E assim, chegamos à conclusão de que a sorte ou a desgraça na vida real não tem mais do que a continuação dos atos de cada um na vida presente. Embora na nossa vida haja acontecimentos, circunstâncias e fatores independentes da nossa vontade, há em compensação, outros acontecimentos, circunstâncias e fatores que, com a vontade, a sabedoria, e a retidão de proceder em obediência à lei de Deus, podemos combinar, num resultado previsto, com a certeza do químico que, obediente às leis de proporcionalidade, combina os elementos para obter um determinado composto.

18. Pobreza e fortuna

Na sua obra intitulada: O Evangelho da riqueza, diz André Carnegie:

Não está longe o dia em que toda a gente deixe de prantear e de venerar o homem que morra, deixando uma fortuna de muitos milhões, seja qual for o destino que dê a essa coisa vil que não pôde levar consigo. Infeliz do que morrer milionário. A maior parte dos filhos dos ricaços são incapazes de resistir às tentações com que a riqueza os acomete e desaparecem numa vida estéril. O que começa por ser pobre não deve temer a rivalidade por parte dos filhos dos ricos, mas sim a dos mais pobres do que ele, a dos que começam por varrer escritórios, servir de moços de fretes e aviar recados.

Sem dúvida, o honroso esforço para se libertar da pobreza é e tem sido sempre um dos fatores que eficazmente desenvolve as qualidades potenciais do adolescente. Se todos nascessem na abastança e no meio de riquezas, sem necessidade de trabalhar para comer, a humanidade ainda hoje estaria na sua infância. Não há maior obstáculo ao progresso individual do que viver, gozando constantemente as delícias de Capua.

Se nos países que ainda têm uma curta história, como as repúblicas americanas, todos tivessem nascido ricos desde os tempos da colonização, ainda estariam por utilizar os vastos recursos daquelas terras. O ouro, o ferro, o carvão e o cobre continuariam dormindo nos seus jazigos ignorados, e Buenos Aires, Santiago, Rio de Janeiro e Nova Iorque seriam umas cidades no seu estado embrionário.

Pode bem afirmar-se que o fator capital da civilização é a luta constante do homem para se libertar da pobreza, porque o maior esforço e a menor obra correspondem sempre ao período da vida em que lutamos, para conquistar aquilo que ambicionamos. Geralmente, ninguém trabalha, se a imperiosa necessidade a isso o não obrigar. O homem que precisa de melhorar de posição para se pôr a salvo da pobreza e da miséria, é obrigado a trabalhar, fortalece a sua vontade e avigora o seu caráter.

A história dá-nos exemplos de homens que foram infelizes, apesar da sua fortuna, indicando-nos, pelo contrário, outros que, nascidos na ínfima pobreza, chegaram ao apogeu da celebridade pelo seu talento ou pela fortuna que alcançaram. Pobres foram na sua infância Franklin, Lincoln, Grant, Garfield, entre os estadistas; Edison, Graham Bell, Faraday, entre os homens de ciência; Carnegie, Rockefeller, Schwab, entre os milionários; e, se fôssemos a citar mais nomes,  veríamos que a maior parte dos nossos industriais, fabricantes, catedráticos, escritores, artistas, inventores e banqueiros não são de descendência nobre. Ou eles ou seus pais foram educados na severíssima escola da necessidade, senão na da pobreza, e alguns na da miséria.

Poucos são os jovens, embora alguns sejam uma honrosa exceção, que, nascidos em bons lençóis, como costuma dizer-se, acostumados desde a mais tenra infância a todas as comodidades e luxos que lhes proporciona o carinho materno, sem se verem obrigados a ganhar o pão já custa do seu trabalho, poucos são, repetimos, os que denotam energia de caráter ou força de vontade. São como o frágil abeto dos bosques, em relação ao gigantesco carvalho que, desde que a semente germina, vai crescendo em luta constante contra os ventos e tempestades.

É impossível aperfeiçoar o caráter ou fortalecer as qualidades individuais, sem combater e triunfar nas lutas pela vida. Quem vive sem ter passado por qualquer prova nas lutas diárias, perde esterilmente metade da sua existência. Que diríamos daquele que, para robustecer os músculos, se sentasse na sala dum ginásio, contentando-se com ver os aparelhos? Se o pai trabalha, enquanto o filho anda vadiando, não há pior maldição para o filho nem mais tremenda responsabilidade moral para o pai, embora ao morrer lhe deixe uma fortuna avultada, para o livrar da pobreza no resto da vida.

As riquezas são como muletas de aleijado, porque deixam ao herdeiro do rico a ocasião de se servir da sua mente e dos seus braços.

Perguntaram a um artista notável se acreditava que um jovem discípulo seu chegasse com o tempo a ser um grande pintor, e ele respondeu: “Não, nunca o será. Tem um rendimento de seis mil libras por ano”.

As preocupações vulgares brigam neste ponto com o senso comum. Quando, excepcionalmente, um rico trabalha com tal decisão como se fosse um pobre que procurasse todos os meios para se libertar da sua pobreza, atribui-se o seu gesto a uma ambição desmedida, o que na realidade não é mais que repugnância à ociosidade. Exclamam então os que o conhecem: “Que necessidade tem esse homem de trabalhar com a fortuna de que dispõe? Se não era melhor deixar-se de negócio e viver tranqüilamente, sem tantas quebreiras de cabeça”.

Mas é que o rico laborioso não trabalha por cobiça nem por ambição de acumular dinheiro; trabalha, porque o trabalho para ele é tão indispensável como a água é para a fonte, como o gorjeio para o canário e o brilho para a estrela. Com toda a sua fortuna sentiria aborrecimento, se não fizesse nada, e nem as viagens, nem as diversões, nem os teatros, nem os desportos poderiam proporcionar-lhe o gozo interior que ele experimenta, ao contemplar o resultado do seu esforço individual, quando, com a graça do Supremo Criador, terminou a sua obra. Não é um trabalho servil aquele em que se ocupa o rico laborioso. É um trabalho de direção e de ordem, de investigação e de análise, com o fim de imprimir à humanidade e à sua profissão uma característica um pouco melhor do que tivera até então.

Assim trabalhou Henrique Cavendish, o descobridor do hidrogênio, do ácido nítrico e da composição da água, que foram outros tantos passos agigantados no progresso da química. Assim trabalhou, naqueles tempos do século XVIII, sem embargo da sua enorme fortuna de mais dum milhão de libras.

A filosofia popular, que possui um espírito incompatível com as superstições e patranhas também populares, tem entre os seus muitos apotegmas o que diz que a necessidade é a mãe das invenções; mas a filosofia racional deve ratificar este apotegma noutro sentido. É que, quando a vontade não está orientada para o bem por meio da sabedoria, a necessidade, ou melhor, a pobreza é a mãe sinistra das invenções, e, em vez de estimular a uma legítima prosperidade e a uma virilidade virtuosa, induz ao crime, preocupando-se apenas em enriquecer sem atender aos meios, e dizendo que é preferível ser acoimado de ladrão do que desprezado por ser pobre. Está claro que temos de prevenir a juventude contra este perigo que deploravelmente coloca a riqueza acima da virtude. A sabedoria de que falamos não consiste em escapar-se arteiramente por entre as malhas do código penal, nem dar aparências da honradez à velhacaria; consiste em ter pleno conhecimento do ofício ou dá profissão que se tenha seguido, em virtude de uma vocação natural, concentrando no trabalho todas as energias da vontade e todas as faculdades do espírito.

Considerando a pobreza e a riqueza duma maneira absoluta, ambas são prejudiciais à vida do verdadeiro homem. Não são fins, são meios que a lei da vida nos confia para, com a sua utilização tirarmos o proveito positivo e permanente que resulta do aperfeiçoamento da nossa individualidade. A pobreza é o ponto de partida, e a riqueza o da chegada, nesta longa jornada da vida. A pobreza é como o aparelho ginástico que nos serve de meio para desenvolvermos as nossas forças. Considerada em si, é um mal, uma escravidão, um obstáculo que a lei opõe no princípio da vida ao que nasce pobre, para ver se consegue vencê-lo e sair da pobreza.

Poderá dizer-se que a maioria das pessoas nascem, vivem e morrem pobres, sem que consigam alguma vez libertar-se da pobreza, apesar de todos os seus esforços. Mas nisto vemos uma nova prova da evolução do espírito humano.

Se todos os pobres chegassem a ser ricos, dava-se um caso idêntico ao que se daria, se todas as teclas dum piano tivessem o mesmo som. O progresso seria uma palavra vã, e a humanidade ficaria como a água estagnada dum pântano, sem poder evoluir. Os esforços do pobre, para se libertar da pobreza, não são de todo improdutivos. Alguma coisa ganha, embora não realize toda a sua aspiração, e essa alguma coisa servir-lhe-á de ponto de partida, de capital psíquico, para começar com êxito os seus esforços, quando avance outra etapa no caminho da sua evolução. Assim se devem interpretar as palavras de Cristo:  “Tereis sempre pobres no meio de vós”. Isto é, haverá sempre entre vós pobres de sabedoria ou ignorantes, pobres de vontade ou indolentes, pobres de coragem ou pusilânimes, não porque intrinsecamente tenham de sê-lo assim em oposição aos sábios, aos enérgicos e valorosos, mas porque ainda não chegaram ao ponto da sua evolução espiritual, em que desenvolvam as qualidades de sabedoria, vontade e ação.

O principal esforço para sair da pobreza não é a fortuna material que com o esforço pode alcançar-se; está nas qualidades, nas potências e nas faculdades que se vão desenvolvendo pelo esforço realizado para alcançar a fortuna. Diz a este respeito o senador norte-americano J. P. Dollixer, que também nasceu pobre:

Se dais a um adolescente cem mil dólares, para que entre nos combates da vida, é muito possível que saiam frustrados os seus esforços. Não sabe o que custa o dinheiro. Melhor será colocar os cem mil dólares a um lado e o adolescente ao outro, a ver se ele os ganha. A choupana onde nasceu Lincoln não deu abrigo à infância dum rei, mas à dalguém superior a um rei: à infância dum homem.

Se o adolescente sabe que há-de herdar uma fortuna colossal, é natural que pense e diga: Que necessidade tenho eu de me levantar cedo e de estar todo o dia a trabalhar, se possuo uma fortuna mais que suficiente para não me preocupar com a vida, ainda que viva mil anos? Por isso, a sua única preocupação são os desportos estéreis, os devaneios consumptivos, a ociosidade viciosa, tudo quanto deprime o espírito e rebaixa o caráter.

Pelo contrário, o que sabe que só pode contar consigo mesmo e mobiliza as suas reservas espirituais, mentais e físicas para lutar contra a adversidade, tem Deus por único protetor, se nEle confia e obedece às suas leis, e, com a proteção divina e o seu esforço pessoal, transforma-se de pigmeu em gigante.

Conclusão

Tudo quanto deixamos escrito atrás não representa originalidade de idéias. A isso não aspiramos, porque bem sabemos que ninguém pode ser original nas idéias, embora o saiba ser nos conceitos. Este é um dos pontos em que o querer não é suficiente para conseguir o poder, nem mesmo com o auxílio do saber, porque, sendo o espírito humano reflexo e imagem do espírito divino, não pode nunca brilhar com luz própria, mas sim com a luz que de Deus recebe, como os planetas brilham com a luz do sol.

Quando, porém, o espírito humano se deixa ensombrar pelos preconceitos, pelos erros e pelos equívocos duma crença facciosa, partidarista e sectária, no intuito orgulhoso de monopolizar a verdade que se supõe revelada por Deus apenas a uma casta de homens, como se os outros fossem ilotas ou párias do seu reino, então as idéias torcem-se, desvirtuam-se e adulteram-se, à semelhança das grotescas imagens refletidas nos espelhos côncavos e convexos.

O erro ainda é mais grave, quando um único homem, apenas com a autoridade que lhe dá a sua jactância, se arvora em definidor da verdade absoluta, qualificando de erro tudo quanto for contrário às suas opiniões pessoais.

Estamos prontos a demonstrar que de todas as doutrinas contidas nos capítulos desta obra não há uma só que possa conduzir a juventude para os despenhadeiros do orgulho, da vaidade ou da soberba. Pelo contrário, todas as nossas exortações e conselhos tendem a nortear a geração futuro, pelos verdadeiros caminhos que, durante séculos, lhes ocultaram aqueles que, podendo ser a luz, se converteram nas trevas que envolvem a humanidade.

Afirmamos bem alto que o espírito humano é de natureza divina e que a sua evolução, na forma material, lhe serve de instrumento para desenvolver gradualmente as potências intrínsecas da vontade, da sabedoria e da atividade, que constituem a sua essência trina e una, à semelhança de Deus.

Diremos à juventude, sem distinção de sexo, de raça ou de crença religiosa, que há verdades basilares, princípios fundamentais, que são universais por serem divinos, não sendo possível encerrá-los numa rede de malhas grosseiras, entretecidas pela superstição, porque convêm igualmente a todos os homens de todos os tempos e de todas as nacionalidades. Acrescentamos que a estas verdades, cuja evidência excede a dos axiomas matemáticos, se deve ajustar o procedimento de todo o jovem que queira fazer da sua vida terrena uma magistral preparação para a vida futura.

Propomos aos adolescentes o alto ideal que todos, absolutamente todos, podem conseguir, pois a todos é acessível, e que consiste em aperfeiçoarem o seu caráter, por meio da alquimia espiritual que elimina a escória dos vícios e torna brilhante o puríssimo ouro da virtude.

Repetimos-lhe que a confiança em si próprios não deve cair no extremo oposto da jactância e muito menos no da soberba, mas deve antes ser acompanhada da confiança em Deus, equivalente à confiança na atuação das leis que regem o mundo moral, tão sábias e imutáveis como as que governam o mundo material.

Completamos o antigo adágio: querer é poder, dizendo e demonstrando que não basta querer para poder, pois é necessário saber o que se quer. Sem a sabedoria e a vontade, é impossível a ação.

Aconselhamos os jovens a concentrarem todas as energias do seu ser na profissão, ofício ou outro gênero de atividade a que os conduza a sua natural aptidão. Devem sacrificar os prazeres mundanos, pôr de parte as diversões doentias, evitar as despesas supérfluas, de maneira que apliquem, no perfeito conhecimento da índole e na técnica da profissão escolhida, o tempo, o dinheiro e o esforço malbaratados em deprimentes frivolidades, sem que por este motivo devam abster-se dos recreios honestos e prazeres amenos em que consiste a genuína e saudável diversão do trabalho quotidiano.

Tudo quanto dizemos e aconselhamos aos adolescentes está de harmonia com a verdadeira natureza do ser humano. Não há nas nossas palavras nada que seja utópico, quimérico ou ilusório. É uma realidade que certamente não se consegue num dia, nem todos podem consegui-la ao mesmo tempo, porque não é um objeto físico que todos facilmente possam atingir, mas um ideal moral, cuja consecução depende do trabalho interno de cada indivíduo. Também não expusemos nada que se oponha às crenças religiosas da mais pura ortodoxia, se, dando a esta palavra o seu verdadeiro sentido, queremos significar como tal a crença primitiva e original duma religião, excluindo, porém, as sobreposições, aditamentos e cerziduras com que, no decorrer do tempo, o fanatismo sectário adulterou as doutrinas do seu fundador.

Afirmamos que o nosso verdadeiro ser, a nossa espiritual natureza superior, o Eu real, é essencialmente bom, sábio e indefinidamente perfectível, de maneira que o ideal de amanhã será muitíssimo mais elevado que o de hoje.

Prevenimos a juventude que não seja temerária em tentar empresas superiores às suas forças; mas, por outro lado, aconselhamo-la a ter coragem, assegurando-lhe a possibilidade de aumentar as suas forças de hoje, de modo a estar amanhã preparada a realizar com probabilidades de êxito a empresa que ontem lhe foi impossível efetuar.

Finalmente, explicamos que o êxito é um produto de vários fatores, e, embora os principais sejam a vontade e a sabedoria, há outros, como a aptidão, o talento, o ambiente, a educação e as circunstâncias de lugar e tempo ou ocasiões, que contribuem poderosamente para transformar o querer em poder.

 

                                                                                            O. S. Marden

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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