Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O SANJACO PERDIDO
O capelão da prisão entrou pela última vez na cela do condenado à morte a fim de lhe prestar toda a consolação possível em semelhantes casos.
- A única consolação por que anseio - disse o condenado - é contar toda a minha história a alguém que pelo menos a ouça com atenção.
- Não nos poderemos demorar muito a ouvi-la - disse o capelão com uma olhadela ao relógio.
O condenado reprimiu um estremecimento e principiou:
- A maior parte das pessoas pensará que estou a pagar o preço das minhas actividades criminosas. Na verdade sou vítima de uma falta de especialização na minha educação e maneira de ser.
- Falta de especialização! - exclamou o padre.
- Sim. Se eu fosse conhecido como um dos poucos homens da Inglaterra familiarizados com a fauna das Novas Hébridas ou capazes de repetir de cor e na língua original estâncias de Camões, não teria tido dificuldade em provar a minha identidade nesta crise, quando a minha identidade se tornou numa questão de vida ou morte para mim. Mas a minha cultura foi apenas moderadamente boa e o meu temperamento pertencia a esse tipo mais comum que se mostra avesso à especialização. Conheço um pouco, de uma forma geral, de jardinagem, de história e dos velhos mestres, mas nunca seria capaz de dizer do pé para a mão se «Stella van der Loopen» é um crisântemo, ou uma heroína da Guerra da Independência da América, ou qualquer coisa pintada por Romney e exposta no Louvre.
O capelão agitou-se pouco à vontade no banco. Agora que alternativas tinham sido sugeridas, todas elas pareciam terrivelmente possíveis.
- Apaixonei-me, ou pensei que me apaixonei, pela mulher do médico local - prosseguiu o condenado. - Não consigo explicar como foi que isso sucedeu porque ela não era nem particularmente bela nem particularmente inteligente. Vendo as coisas em retrospectiva, penso até que ela era manifestamente vulgar, mas suponho que o médico se havia apaixonado por ela outrora, e o que sucedeu a um homem pode suceder a qualquer outro também. Ela parecia satisfeita com as amabilidades que eu lhe endereçava, e nesse aspecto posso dizer que me encorajava, mas penso que ela não percebera que eu pretendia mais do que uma simples amizade de vizinhos. Quando uma pessoa se encontra na presença da morte deve dar o seu a seu dono.
O capelão soltou um murmúrio de aprovação.
- Seja como for, ficou verdadeiramente horrorizada quando, certa noite, aproveitando a ausência do médico, lhe declarei o que julgava ser a minha paixão. Ela suplicou-me que desaparecesse da sua vida, e eu pouco mais podia fazer do que concordar, embora não tivesse a menor ideia de como havia de fazer tal coisa. Eu sabia que nas novelas e no teatro essas situações são moeda corrente, e quando uma pessoa se equivoca sobre os sentimentos ou as intenções de uma dama, parte para a Índia a cometer heroicidades na fronteira como se isso fosse o pão-nosso de cada dia. Enquanto descia, a cambalear, o caminho de carros que conduzia a casa do doutor, não fazia qualquer ideia clara de qual seria a minha linha de conduta, mas sentia nebulosamente que precisava de dar uma vista de olhos ao Atlas do Times antes de me meter na cama. Então, nessa azinhaga escura e solitária, topei subitamente com um morto.
O interesse do capelão pela história aumentou a olhos vistos.
- A ajuizar pelas roupas que o cadáver vestia, tratava-se de um capitão do Exército de Salvação. Tudo indicava que qualquer horroroso acidente o fulminara e a cabeça estava de tal modo esmagada e triturada que as feições não conservavam qualquer semelhança com as de um ser humano. Provavelmente, pensei, um desastre de automóvel; e logo a seguir, com uma súbita insistência que tudo dominava, surgiu outro pensamento: o de que estava ali uma excelente oportunidade de perder a minha identidade e de sair para sempre da vida da mulher do médico. Não precisava de fazer nenhuma viagem arriscada e maçadora a distantes terras, bastava simplesmente trocar de roupas e de identidade com a vítima desconhecida de um acidente sem testemunhas. Vencendo consideráveis dificuldades, despi o cadáver e voltei a vesti-lo com as minhas roupas. Qualquer pessoa que tenha feito às escuras de criado de quarto de um defunto capitão do Exército de Salvação apreciará as minhas dificuldades. Com a ideia, presumivelmente, de convencer a mulher do médico a trocar o tecto conjugal por qualquer habitação mantida à minha custa, atulhara os bolsos com uma reserva de notas de banco que representavam grande parte das minhas disponibilidades imediatas de fortuna. Por conseguinte, quando regressei ao mundo sob o disfarce de um salvacionista sem nome, não me encontrava desprovido de recursos capazes de sustentarem um indivíduo de tão humilde condição por um período considerável. Calcorreei a distância que me separava de uma cidade de feira vizinha, e, tarde como era, a apresentação de alguns xelins proporcionou-me uma ceia e uma cama para pernoitar num estanco. No dia seguinte prossegui o meu caminho sem destino, vagabundeando de cidadezinha para cidadezinha. Principiava já a arrepender-me da minha súbita fantasia; poucas horas decorridas, ainda mais arrependido iria ficar. Na primeira página de um jornal local li a notícia do meu próprio assassínio às mãos de pessoa desconhecida; comprando um exemplar desse periódico para tomar conhecimento dos pormenores da tragédia, que inicialmente despertara dentro de mim um certo sentimento de irónica amargura, descobri que o crime era atribuído a um salvacionista vagabundo de antecedentes duvidosos, que fora visto a pairar na estrada vizinha da cena do crime. Já não me sentia nada divertido. A história prometia ser embaraçosa. O que eu erradamente tomara por um acidente de automóvel fora, evidentemente, um caso de brutal agressão e assassínio, e, até ser encontrado o verdadeiro culpado, eu teria dificuldade em explicar a minha intrusão na cena do crime. Claro que me seria sempre possível estabelecer a minha própria identidade; mas como, sem envolver desagradavelmente a mulher do médico, poderia eu dar qualquer razão compreensível para mudar de roupas com o homem assassinado? Enquanto por um lado o meu cérebro se ocupava febrilmente deste problema, por outro lado ia surgindo em mim a consciência instintiva, do que devia fazer: afastar-me tanto quanto possível do local do crime e libertar-me, custasse o que custasse, da farpela incriminadora. Aí surgiu uma dificuldade. Tentei em duas ou três obscuras lojas de roupas feitas, mas a minha entrada despertava invariavelmente uma atitude de suspeita hostil nos proprietários, e com uma desculpa ou outra esquivavam-se a vender-me a agora ardentemente desejada muda de roupa. O uniforme que eu levianamente envergara parecia tão difícil de despir como a fatal camisa de... sabe a quem me refiro, esqueci-me do nome da criatura.
- Sim, sim - atalhou o capelão precipitadamente. - Prossiga com a sua história.
- De qualquer maneira, sentia que seria perigoso apresentar-me voluntariamente à polícia antes de me desembaraçar daquelas roupas comprometedoras. A coisa que me causava maior confusão era o motivo por que não faziam nenhuma tentativa para me prender, visto não haver a mínima dúvida de que a suspeita me seguia como uma sombra, fosse eu para onde fosse. Olhadelas, cotoveladas, segredinhos, e mesmo a observação em voz alta de «é aquele» saudavam constantemente a minha aparição e, por mais ordinária e mal afreguesada que fosse a casa de pasto que eu escolhesse para ir comer, logo se enchia de uma multidão de fregueses que desatavam a observar-me furtivamente. Comecei a compreender os sentimentos das personagens reais quando tentam fazer algumas compras de carácter pessoal sob o olhar implacável de um público irreprimível. E contudo, a despeito dessa perseguição silenciosa, que pesava sobre os meus nervos quase mais do que a declarada hostilidade, nenhuma tentativa era feita para interferir com a minha liberdade. Mais tarde descobri o motivo. Pouco depois do crime, na azinhaga deserta, tinham-se efectuado várias experiências com sabujos e cerca de dúzia e meia de casais de cães altamente treinados foram lançados na pista do suposto assassino - na minha pista. Um dos mais patrióticos diários de Londres oferecera um prémio principesco ao dono do casal que primeiro me localizasse, apostando nas probabilidades dos respectivos competidores se despistarem na vastidão do país. Os cães foram espalhados por toda a parte, em cerca de treze condados, e, embora os meus movimentos fossem nessa altura perfeitamente conhecidos tanto da polícia como do público, os instintos desportivos da nação intervieram a fim de impedir a minha prisão prematura. «Dêem uma oportunidade aos cães» era o sentimento que prevalecia, quando algum polícia local, com ambições de carreira, pretendia pôr termo à minha prolongada evasão da justiça. A minha captura final pelo casal vencedor não foi um episódio muito dramático, de facto nem sequer estou certo de que reparassem em mim se eu não lhes tivesse falado e dado umas palmadinhas, mas o acontecimento provocou um extraordinário movimento de excitação partidária. O proprietário do casal que se encontrava em segundo lugar mais próximo do alvo era um americano que apresentou um protesto alegando que um otterhound(2) se casara na família do par vencedor seis gerações atrás, que o prémio fora oferecido ao primeiro casal de sabujos que capturasse o assassino, e que um cão com um sexto de sangue de otterhound não podia tecnicamente considerar-se um sabujo. Esqueci como é que a questão ficou finalmente arrumada, mas sei que desencadeou incontáveis e acrimoniosas discussões de um e do outro lado do Atlântico. A minha única contribuição para a controvérsia consistiu em salientar que a disputa não tinha qualquer fundamento visto que o verdadeiro assassino ainda não fora capturado; mas depressa descobri que neste ponto não havia a mínima divergência de opinião, quer no meio do público, quer no meio dos peritos. Eu esperava com certa apreensão e como uma desagradável necessidade o momento em que teria de provar a minha identidade e explicar os motivos do meu procedimento; depressa verifiquei que o mais desagradável do caso era que isso não se podia fazer. Quando vi no espelho a expressão de fadiga e receio que as provações das últimas semanas tinham estampado no meu outrora plácido semblante, dificilmente pude admirar-me de que os poucos amigos e parentes que possuía se recusassem a reconhecer-me sob aquele aspecto alterado e persistissem na sua obstinada, mas amplamente espalhada crença, de que fora eu quem morrera assassinado na estrada. Para tornar as coisas piores, infinitamente piores, uma tia do homem realmente assassinado, uma mulher pavorosa, dotada, claro, de uma inteligência inferior, identificou-me como seu sobrinho e forneceu às autoridades uma lúgubre narrativa da minha juventude depravada e dos seus louváveis mas ineficazes esforços para me meter à pancada no bom caminho.
- Mas - atalhou o capelão - com certeza que o seu grau de instrução...
- Foi esse justamente o ponto crucial - disse o condenado -, o ponto onde a minha falta de especialização se voltou contra mim. O defunto salvacionista, cuja identidade eu tão leviana e desastrosamente adoptara, possuíra apenas uma ténue camada dessa moderna instrução de saldo. Devia ter sido fácil demonstrar que os meus conhecimentos eram de um plano totalmente diferente, mas no meu nervosismo espalhei-me de modo miserável em todas as provas a que me submeteram. O pouco francês que eu sempre soubera, abandonou-me; não me foi possível traduzir uma frase simples sobre a groselha do jardineiro porque me tinha esquecido de como se dizia groselha em francês.
O capelão voltou a agitar-se embaraçado no seu banco.
- E depois - resumiu o condenado - veio a derrota final. Na nossa aldeia havia um modesto clube cultural e eu recordei-me de ter prometido, principalmente, creio eu, para agradar e impressionar a mulher do médico, proferir uma pequena conferência sobre a crise dos Balcãs. Contava conseguir obter elementos de um ou dois livros sobre o assunto e de números antigos de certos periódicos. A acusação tinha tomado boa nota de que o homem que eu pretendia ser, e realmente sou, se apresentara na aldeia como uma espécie de autoridade em segunda-mão nos assuntos balcânicos, e, no meio de uma série de perguntas sobre pontos irrelevantes, o advogado que me interrogava perguntou-me súbita e diabólicamente se eu era capaz de dizer ao tribunal onde ficava Novibazar. Percebi que se tratava de uma pergunta crucial; alguém me soprou que a resposta era São Petersburgo ou Baker Street. Hesitei, olhei desamparadamente em volta para aquele mar de faces tensamente expectantes, empertiguei-me, e optei por Baker Street. E foi então que compreendi que estava tudo perdido. A acusação não teve a menor dificuldade em provar que um indivíduo, mesmo moderadamente versado nos assuntos do Próximo Oriente, nunca poderia com tanta sem-cerimónia deslocar Novibazar do seu habitual lugar no mapa. Era a resposta que o capitão do Exército de Salvação teria concebivelmente dado - e eu dera-a. As provas circunstanciais relacionando o salvacionista com o crime eram esmagadoramente convincentes e eu encontrava-me inextricávelmente identificado com o salvacionista. E é assim que dentro de dez minutos vou ser pendurado pelo pescoço até morrer em expiação do assassínio de mim mesmo, assassínio que nunca se deu, e do qual em qualquer hipótese me encontro necessariamente inocente.
Quando o capelão regressou aos seus aposentos, uns quinze minutos mais tarde, a bandeira negra flutuava na torre da prisão. O pequeno-almoço esperava-o na sala de jantar, mas primeiro passou pela sua biblioteca e, retirando o Atlas do Times, consultou um mapa da península balcânica.
- Uma coisa destas - observou o padre, fechando o volume de estalo - pode suceder a qualquer pessoa.
Notas:
1 Distrito nas regiões dos Balcãs ocupadas outrora pela Turquia.
2 Cão especializado na caça às lontras.
Saki
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