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O SANTO
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Capítulo 15


Ela parecia terrivelmente vulnerável quando dormia. Com sua inteligente mente em silêncio e a confiança em si mesma em repouso, era toda ternura e inocência.
Passou a última hora contemplando-a, deleitando-se nas contrações nervosas de suas pálpebras e seus lábios, embriagando-se de olhá-la, como um menino de campo encantado ante a primeira garota que finalmente lhe havia dito sim.
Fazer amor só significou embolar-se ainda mais no matagal. Poderia ter ajudado se ela tivesse sido menos aberta e apaixonada. Menos feliz. Todas as defesas que ele segurou contra seus próprios sentimentos foram demolidas pelo prazer.
Um prazer assombroso. Incrivelmente intenso. Se alguma vez tivesse experimentado algo assim, recordaria, e não recordava. Inclusive as grandes teimosias de seus dias de juventude, como ficar fascinado por Catalina e outras, voltavam-se insignificantes, superficiais e imaturas em comparação. E sem dúvida, a sensualidade simplesmente eficaz que praticou durante os anos recentes não proporcionou nada nem remotamente similar. Um homem não se permite verdadeira intimidade com uma mulher profissional.
Ela era consciente do que havia dito com voz entrecortada no meio de seu delírio? Seus gemidos melódicos e alentadores encheram seus ouvidos fazendo suas tentativas de domínio frágeis, por dizer pouco. «Sim… Quero isto, te amo.» O eco lhe fez dar voltas à mente e sua ereção se endureceu.
Além de dizer, teria se dado conta do que pensava? Ele sabia muito bem o que podia chegar a dizer-se na agonia da paixão. Esse era o problema que o aguardava em um futuro muito próximo e que tingia de receios sua vaidosa alegria.
Ele não queria ter com ela uma confusão amorosa levada com discrição. Queria-a como esposa. Não estava de tudo convencido de que ela aceitasse, em cujo caso ele a teria corrompido aquela noite, e possivelmente a teria iniciado precisamente nessa vida que tanto temia para ela.
Mais tarde. Primeiro queria extrair desse interlúdio toda a felicidade possível. Haveria tempo suficiente para explicar que agora ela teria que casar-se com ele.
Riu em voz alta. Deixemos Bianca terminar sua imponente sedução com as intenções completamente ao contrário. Negava-se condenadamente a despertá-la e a pedir que fizesse o correto por ele.
—Do que ri? —esticou-se e piscou como um gatinho despertando. Um sorriso sonolento apareceu ao aceitar seu beijo de bom dia.
—Só estou te contemplando e desfrutando de que esteja ao meu lado.
Ela se aproximou contra seu ombro e esquadrinhou a luminosa estadia.
—Deixou de chover. O sol… Tudo parece tão diferente.
—Não muito diferente, espero.
—Não muito, mas um pouco sim. —Dirigiu-lhe um olhar fugaz— Deveria me sentir envergonhada por me encontrar aqui contigo?
—Isso depende de se tiver remorsos. Tem?
Ficou pensando.
—Não, embora fosse certo que deveria ter.
—Sempre suspeitei que todos esses «seria certo» são decididos por gente que carece de experiência nas situações sobre as quais se pronunciam.
—Tia Edith dizia o mesmo, sobre diferentes situações, é obvio. Acredito que você gostaria dela. Não faz muito caso às pessoas que tenta lhe dizer o que se supõe que deve fazer ou pensar. Minha mãe deve ter sido da mesma forma, mas como eu era sua menina ela não me expressaria essas ideias. Edith, entretanto, é muito mais velha para reservar suas opiniões.
Gostaria de conhecer tia, e lamentava que nunca conheceria sua mãe. Desfrutaria vendo a cidade onde Bianca viveu e as ruas por onde caminhou de menina e de jovenzinha.
Ela agasalhou o pescoço com a manta. Apesar de sua fachada valente, tinha um pouco de vergonha, e sua vulnerabilidade o comoveu.
—O que fazemos agora? —Ela continuava observando a estadia.
«Nos vestir, cavalgar para York, conseguir uma licença especial do arcebispo e nos casar.»
—O que queira. Acredito que podemos pospor um dia mais sua volta com Penelope se quiser, ou posso pedir a Morton que prepare a carruagem agora mesmo.
Ela mordeu o lábio inferior.
—Quer que fique?
Ele se deu conta de que seu desconforto estava relacionado com ele. Ela se perguntava que julgamentos estaria fazendo esta manhã. Ele devia ter considerado que o novo dia poderia requerer alguns consolos.
—Quero que fique quanto tempo podemos conseguir, e encarecidamente desejaria que não existisse nada que pusesse limites a nosso tempo para estar juntos a sós. Se você quiser, podemos tomar este dia e fazer tudo o que possamos e decidir amanhã sobre o mundo que nos espera.
Um belo sorriso iluminou seu rosto.
—Eu gostaria. É muito tarde? Dormimos grande parte do dia e o gastamos?
—Não é tão tarde. Ainda não é meio-dia.
—Temos tempo para ir a Manchester? Ver nossa fábrica?
Se tivesse sido qualquer outra mulher, ele teria pensado que o estava adulando expressando interesse em sua vida.
—Se não quiser, entenderei Laclere. Depois de tudo, existe o risco de que as pessoas me vejam contigo.
«Queria que o mundo inteiro te visse comigo.»
—Eu gostaria muito de te mostrar nossa fábrica. Iremos esta tarde. Há alguma outra coisa que você gostaria de fazer?
Umas luzes pícaras iluminaram seus grandes olhos azuis. Deixou correr um dedo ao longo de sua clavícula e se ruborizou de uma forma adorável.
—Bom, ainda é tudo um pouco diferente e estranho, o sol, o dia e tudo. Não muito, mas sim um pouco. Possivelmente se você fizesse… Se nós fizéssemos… quer dizer, se fizéssemos outra vez… Pode ser que então fosse menos… Tenho sensações estranhas e diferentes, isso.
Inclinou a cabeça para lhe dar um beijo.
—Se não fosse porque me preocupasse que se sentisse muito cansada gostaria que o fizéssemos logo que abriu os olhos. Eu gosto que me queira Bianca, e que me diga isso.
—Oh, sim — sussurrou— Te quero.
Ele apoiou seus ombros sobre vários travesseiros no encosto da cama e a ensinou como ficar escarranchada sobre ele. Saboreou o peso dela apoiando-se contra seu peito, adorou o rosto que se entregava a seus beijos, abraçou-a e a acariciou como o precioso presente que era. Afastou a roupa de cama para poder ver por cima de seus ombros as sinuosas linhas que desciam em pendente por suas costas antes de curvar-se elegantemente no traseiro, serpenteando daqui para lá ao longo de suas pernas dobradas. Seu falo duro se aproximou a suas coxas e sentiu como a umidade de sua excitação escapava de seu interior.
Endireitou-a para poder ver seu corpo e sua paixão. Um pouco diferente, como o sol, o dia e tudo. Não muito, a não ser um pouco, e era maravilhoso. Gostava de contemplar como crescia seu êxtase enquanto a tocava.
Inclinou-a para ele para poder lamber e chupar seus seios. Seu delírio estalou e todas essas afirmações eróticas começaram a sair dela em forma de suspiros. Como chamas, converteram seu sangue em fogo.
—Me ponha dentro de você — disse ele, preparando-se para a explosiva urgência de possuí-la de todas as formas imagináveis antes de aceitar liberar-se.
Ela se endireitou aturdida e confusa.
—Fica onde está e me ponha dentro de você. É assim como te quero desta vez.
Ela olhou seu falo aninhando entre suas coxas, sua ponta pressionava visivelmente contra a fenda dela. Nunca o havia sentido. Ao vê-la vacilar ele recordou a recente ignorância que seu despertar tão rápido à paixão o fez esquecer.
Estava a ponto de assumir o controle quando ela se elevou para cima e o agarrou com firmeza, como uma mulher decidida enfrentando um desafio. Em um momento ele deslizava dentro de sua estreita calidez de veludo enquanto seus olhos se fechavam com satisfação e um melódico gemido de alívio escapava dela. Empurrou-a para baixo e a sustentou imóvel em um firme abraço para poder simplesmente gozar sentindo-a durante um momento.
Ela empurrou para baixo e se retorceu até que a penetração se fez profunda. Suas mãos vagaram à deriva pelo peito dele criando dois acesos atalhos. Com cautela e com curiosidade, ela se levantava e baixava e piscava atônita.
Encontrou um ritmo que o deixou seguir até que começou a mover-se e a franzir o cenho como se procurasse algo que estava fora de seu alcance. Seus gritos e ofegos e duras sacudidas estiveram a ponto de fazê-lo perder o sentido. Ele deslizou sua mão para sua greta e tocou aquele lugar que a conduziria até o clímax. Com crescente desenfreio ela o cavalgou com mais dureza até que deu um grito de liberação que encheu a estadia e o levou também até o final.
Teve que levantá-la à força para retirar-se a tempo. Ela desabou sobre ele, descansando a cabeça sobre seu peito e com o corpo envolvido entre seus braços. O suor da paixão deslizava ao longo de suas costas.
Segurando-se firmemente a seu calor, aos batimentos de seu coração e a seus lentos suspiros, ele esticou a manta para que os cobrisse. Apertou seus lábios contra seu cabelo úmido e permitiu a sua alma saborear o estranho e profundo sabor do amor.

***

Morton desapareceu. Como um fantasma ocupado, que executa seus deveres, mas nunca chega a mostrar seu rosto. Quando finalmente baixaram para um café da manhã tardio, tudo estava preparado, como se tivesse adivinhado o momento exato em que o necessitariam. Ao voltar para seu dormitório encontraram água quente esperando-os, e a carruagem e os cavalos estiveram preparados bem a tempo para sua viagem a Manchester. O velho Lucas levava as rédeas porque, conforme explicou Vergil, o camareiro tinha assuntos a atender no imóvel.
Bianca agradecia a solidão total que criava a ausência de Morton. Não porque sentisse vergonha. Não se sentia absolutamente envergonhada. O velho imóvel se tornou só deles, um pequeno mundo que existia em um tempo sonhado, e a solidão intensificava profundamente sua intimidade.
Era domingo, e Vergil a acompanhou ao redor de trabalhos abandonados. Mostrou onde se recebia e se limpava o algodão sem refinar, e os edifícios grandes e baixos cheios de potentes máquinas de vapor para a fiação. Seus comentários se voltaram animados e detalhados quando descrevia as melhorias que inventou, e ela se deleitava com o sereno orgulho que ele encontrava em seus descobrimentos. Finalmente a conduziu até uma nova construção, maior que as outras.
—Deveria ver isto, já que está investindo nisso — explicou.
O edifício continha fileiras de grandes teares conectados por braços verticais de ferro.
—Serão máquinas muito potentes, como as de fiar. Muito poucos já têm feito isto, e não a esta escala. O motor está se construindo na sala ao lado. —Mostrou o caminho e falou sobre a enorme caldeira de metal, as tubulações de água e as válvulas que fariam com que os braços de metal movessem as partes dos teares que requeriam movimento.
—A maioria das malhas ainda se faz nos lares. Isto será muito mais rápido e mais eficaz. Prometi os postos de trabalho daqui a tecedores que trabalham em casa e querem aprender os novos métodos.
—Alguns não irão querer.
—Terão ainda uma boa temporada para arrumar. A mudança não ocorrerá da noite para o dia, mas o ofício não existirá para seus filhos. Serão estes quem viverão as mudanças, como a imaginava seu avô a respeito de meus filhos. Seu mundo está agonizando.
—Não me parece que seu mundo esteja agonizando. Acredito que meu avô se adiantava aos acontecimentos.
—As profecias são sempre prematuras. Como com os tecedores, a mudança não se dará da noite para o dia, e dois séculos de novos Duclairc e Calne continuarão sendo lordes com privilégios. Mas eu acredito que seremos tão curiosos e pitorescos como as ruínas medievais de Laclere Park. Espero que no curso de minha vida nosso domínio seja circunscrito, como o exigem cidades como Manchester. Minha esperança é que a mudança aconteça pacificamente, e não com a violência que já estalou no campo, refletindo a impaciência das pessoas.
Revisou seu escritório em busca de algum material que o senhor Thomas pudesse ter deixado a sua atenção. Ela esquadrinhou por cima do ombro dele enquanto estava sentado em seu escritório e folheava algumas cartas.
—O senhor Thomas escreveu isto? —perguntou ela, pegando uma para examiná-la— Bom, isso então explica tudo.
—Explica o que?
—Essas cartas no escritório de meu avô. Essas das que te falei ontem à noite, as que eu acreditava que eram de Milton. É a mesma caligrafia. Devem ser cartas a respeito dos assuntos da fábrica, que Thomas escreveu a Adam.
Vergil ficou totalmente imóvel. Deixou de ler as folhas que tinha diante. Bianca notou que algum assunto o levava longe dela, a algum lugar de sua cabeça onde ela não devia misturar-se.
Ele deu a volta e lhe dirigiu um olhar pensativo.
—Qual disse que era a saudação? Que encabeçava a carta que viu?
—Meu mais querido amigo.
—É uma maneira estranha de se dirigir a Adam Kenwood por parte de um empregado, não acredita?
—Devem ter feito uma rápida amizade. Estas coisas acontecem.
Ele franziu o cenho.
—De todas as formas quero ver essas cartas, e não tenho intenção de esperar até retornar a Laclere Park. —levantou-se— O senhor Thomas vive no povoado da região. Já que estou aqui, será melhor que vá falar com ele sobre isto agora. Não me levará muito tempo.

O povoado se achava a uns quatrocentos metros, uma só rua de casinhas apertadas umas contra as outras. A idade de algumas delas indicava que aquele lugar estava habitado há muitas gerações e devia ter sido uma comunidade agrícola antes que a fábrica fosse construída. Agora muitas das casas estavam lotadas de gente, e a rua naquele domingo mostrava uma comunidade relaxando do trabalho da semana.
—Há muitos homens — disse Bianca enquanto esticava o pescoço para contemplar o tumulto através do guichê— Parece que em muitas dessas casas as pessoas vivem amontoadas.
—Estamos construindo novas moradias, mas serão entregues primeiro às famílias. Por agora o fazem homens que vêm de outros lugares.
—Acredito que teremos que construir mais rápido, Laclere, se pretende trazer aqui também os tecedores.
—Se a neta de Adam Kenwood decidiu seguir como sócia estou seguro de que poderemos nos permitir construir mais rápido.
Ela sorriu satisfeita, de uma forma que o aliviou. Entretanto, as observações que fez na noite anterior sobre o fato de que seu casamento com outro homem poderia pôr em perigo o controle da fábrica, não tinha desaparecido com a paixão.
Ele realmente precisava resolver seu futuro juntos. Mas não agora. Agora precisava ter uma conversa com seu secretário, um homem jovem que provavelmente sabia muito mais a respeito da fábrica e dos Duclairc do que ele previamente suspeitava.
—Deveria falar com ele a sós — disse ele enquanto o carro diminuía a marcha para deter-se frente a uma velha casa de pedra que teve melhores dias.
—Compreendo. Seria complicado que fizéssemos uma visita juntos.
Não se tratava disso. Não queria que ela ouvisse essa conversa. De fato, nem sequer queria tê-la se estivesse presente.
Caminhou até a porta rapidamente. De todas as formas não passou inadvertido. Notou como o bulício da rua se serenava e sentiu sobre ele olhos que o observavam.
O senhor Clark nunca visitava esse povoado, ao menos não de forma que seus habitantes o notassem. Suas inspeções foram tão sutis e secretas como o resto de sua vida nessa região.
Seu secretário se mostrou tão surpreso como o resto dos habitantes. Desconcertado ante a visita, conduziu Laclere até uma pequena sala de estar e rapidamente colocou uma cadeira perto da mesa.
Vergil advertiu sua expressão cautelosa.
—Não vim te criticar, nem te castigar, Thomas, e certamente tampouco te despedir. Esta é uma visita social.
Harry Thomas era um homem corpulento e de pele branca, o tipo de homem cujo rosto fica avermelhado quando está zangado ou de mau humor. E estava muito avermelhado agora. Por sua pose na cadeira, com as pernas e os braços cruzados, parecia que estava abraçando a si mesmo por causa de um desgosto, ou controlando-se fisicamente para não revelar suas reações.
Ele sabia que, tratasse-se ou não de uma visita social, a inesperada presença de seu chefe não tinha a ver com boas notícias.
Estava certo, mas Vergil intuía que as notícias seriam piores para o chefe que para o secretário. Em lugar de demorar a dor, lançou-se diretamente à arena depois de trocar alguns comentários banais sobre o bom dia que fazia e o crescimento do povo.
—Você sabe quem sou verdade? —disse— Acredito que também sabe quem era o último senhor Clark.
O rosto daquele homem se avermelhou ainda mais. Os olhos se abriram com cautela.
—Ele confiava em mim. Guardei isso para mim então e contínuo fazendo o mesmo com você.
—Acredito em você. —Acreditava? Tinha a resposta a tudo justo ali mesmo, nessa sala? Harry Thomas traiu a confiança de Milton o ameaçando revelar que mantinha um comportamento indigno de sua classe, interessando-se pela indústria?
Podia ter sido Thomas, mas a fábrica não era uma razão suficiente. Não para Milton. Tinha que ser algo muito mais incontestável.
A solução lutava por si mesma dentro de sua mente, e a rebelião de seu coração mal conseguia mantê-la a raia.
Vergil caminhou a grandes passos pela estadia, perguntando-se como proceder. Seu olhar se deteve em uma grande caixa de livros, um deles chamou sua atenção. Tirou o volume de seu lugar. Ao fazê-lo ouviu um movimento atrás dele, o de um homem afastando-se de seu lugar. Advertiu o alarme de Harry Thomas.
—A Odisseia de Homero. Meu irmão amava este livro. —Embalou o livro em suas mãos. Reconheceu a encadernação. Tinha sido um livro de Milton, formava parte de sua biblioteca pessoal. Seu pai o tinha dado.
E agora pertencia a Harry Thomas.
—Ele me emprestou isso. Devia ter lhe devolvido. Fique com ele.
Vergil esteve a ponto de aceitar essa explicação. Queria assentir com a cabeça, sair dali e caminhar de retorno ao carro e a Bianca.
Mas aquilo não foi um empréstimo. Simplesmente sabia. Suspeitava que se abrisse a capa encontraria uma dedicatória que o convertia em um presente.
Manteve a capa fechada e olhou os outros livros, todos novos e com encadernações impressionantes. Muito impressionantes para um secretário de duvidosa fortuna. Revisou os autores. Poetas, filósofos, e historiadores. Milton deu todos eles a Harry, estava seguro.
Foi uma espécie de lição educativa? Uma tentativa de melhorar uma mente aguda por natureza com um pouco de cultura? Um experimento digno de Voltaire?
Adivinhava que a resposta se achava dentro do volume que sustentava. Milton não teria entregado seu tesouro da adolescência a um simples estudante de literatura.
—Vim te fazer algumas perguntas a respeito de meu irmão — disse, colocando o livro sobre a mesa de forma que ambos pudessem vê-lo. Harry tinha claramente o aspecto de um homem ao que gostaria de arrebatá-lo e escondê-lo sob seu casaco— Há algumas cartas tuas para Milton. Pergunto-me do que tratam.
—Eu lhe escrevia. Era meu trabalho, não? Ele vinha aqui com menos frequência que você, e depois que Kenwood caiu doente eu tinha que me ocupar da fábrica no dia a dia. Tinha que mantê-lo informado.
—Vi essas cartas. Estavam entre seus papéis de negócios, foram enviadas a sua direção de Londres e dirigidas ao senhor Clark. Falo de outras cartas, provavelmente enviadas a Laclere House em Londres e a Laclere Park em Sussex. Estavam separadas das outras e guardadas juntas. Nelas se dirigia a meu irmão como «meu mais querido amigo».
A cara de Harry se voltou tão insondável que parecia feita de pedra.
—Ficamos amigos. Aqui, na fábrica, no trabalho, ele não dava de grande homem. Não era do tipo de pessoa que se acredita melhor que as demais.
Não, não era esse tipo de pessoa. Não era o tipo de pessoa que se preocuparia pensando que sua amizade poderia ser delatada.
Vergil pôs a mão sobre o livro.
—Quero que o pense um momento. Algumas dessas cartas eram indiscretas?
—O que você está insinuando? Não serei…
—Não finja estar indignado comigo. Eu era seu irmão. Posso ter ignorado o que vi, mas o vi de todas as formas. Preciso saber se alguém que lesse essas cartas podia ter feito hipóteses a respeito da profundidade de sua amizade.
A mandíbula de Harry estava tensa pela ira, mas seus olhos eram os de um homem apanhado e assustado.
—Está a salvo comigo. Nunca faria nada que danificasse seu nome — disse Vergil calmamente.
A rígida pose de Harry se afrouxou, mais por sentir-se vencido que por alívio.
—Suponho, é possível, se alguém as leu… Mas eu acreditava que tinham sido destruídas.
—Um homem sensato as teria queimado, mas meu irmão era um pouco louco às vezes, e o sentimentalismo o dominou neste assunto.
Apesar de sua consternação, a ideia de que essas cartas tinham sido salvas pareceu comover Harry. Assinalou com a cabeça para as estantes.
—Me fazia ler filósofos e essas coisas. Queria me abrir a esse mundo. —Sorriu com nostalgia— São histórias interessantes, mas não ajudam muito quando os trabalhadores se voltam loucos depois que se dita que os meninos não podem trabalhar. Essas famílias dependem dos salários. Tentei que ele aceitasse permitir que os meninos trabalhassem algumas horas, ao menos. Kenwood não podia influir nele a respeito de algumas de suas ideias, mas eu sim. A vida real não é tão pulcra como nesses livros, o disse. Inclusive as boas ações podem conduzir maus resultados. Você é mais prático que ele. Kenwood também o dizia. Dizia que você o levava no sangue, que em seu caso não era um simples experimento.
—É bom que você estivesse aqui para lhe ajudar. Quando vinha ao norte te visitava nesta casa?
—Ninguém o viu. Era discreto. Não vinha em um carro de luxo como você acaba de fazer.
—Nos povos como este não há discrição que seja suficiente. Visitaram Manchester alguma vez juntos?
—Às vezes. Ninguém nos viu fazer nada inapropriado, se essa for à pergunta. Era lógico que fôssemos juntos às reuniões e essas coisas. Trabalhávamos juntos.
Isso era certo, mas um olhar incorreto, uma risada incorreta…
—Temo que devo retornar a essas cartas. Alguma vez escreveu a Milton outro tipo de carta, lhe pedindo algo que fosse de valor para ele?
A suavidade da expressão de Harry desapareceu.
—O que está dizendo?
—Exigiu-lhe algo? Sua amizade contigo o fazia vulnerável ante qualquer que a conhecesse, incluído você.
—Também me fazia vulnerável. Não teria sentido lhe exigir nada.
—Não é verdade, e ambos sabemos. Ele era um lorde. Qualquer escândalo, uma só prova, afetaria mais a ele. Os homens já não são levados a forca por essas coisas, mas podem ser destruídos. Você podia desaparecer se fosse necessário, mas ele não.
—Maldita seja. Malditos todos vocês. Assumindo que fui ambicioso só porque não nasci rodeado de prata como vocês. Isso não é assim, mas nunca esperei que nenhum dos dois o entendesse.
—O que quer dizer com nenhum dos dois?
—Você não é o primeiro em manter este bate-papo comigo, senhor Clark.
—Outro homem falou contigo a respeito desta relação? Quem?
—Não foi um homem. Veio uma dama, coberta de véus e de dissimulação. Disse que sabia da fábrica, de mim, e que temia por sua reputação e a de sua família.
—Sabia quem era realmente o senhor Clark?
—Com toda segurança. Disse que ele era descuidado, e perguntou se havia cartas dirigidas a ele como visconde que deveriam ser destruídas. Ela estava disposta a fazê-lo. Para protegê-lo. Antes de ir me ameaçou. Disse-me que se alguma vez o contasse a alguém, se alguma vez tentasse tirar partido disso, me veria na forca.
—Isso foi antes ou depois da morte de meu irmão?
—Uns quatro meses antes. Eu não queria que ele soubesse que ela o tinha descoberto. Se soubesse possivelmente… — deu de ombros.
—Pode ser que estivesse coberta de véus, mas você deve ter sabido quem era se falou de tudo isso com ela.
Thomas lhe falou com desprezo, como se fosse idiota.
—Sabia quem era, porque me disse isso abertamente. Era sua irmã, a condessa de Glasbury.

***

A menina esquadrinhou Bianca e Bianca fez o mesmo com ela. Por ser domingo, tinham lavado à pequena, e seu cabelo vermelho brilhava ao sol. Seus grandes olhos examinaram os objetos de Bianca com surpresa, depois voltou correndo com sua mãe que a olhava da porta.
Sua casa era pequena, arrumada e nova. Uma pequena fileira de casas como essa flanqueava a ruela, frente às casas mais velhas, que mostravam sua idade e indiferença para o cuidado.
Vergil saiu da casa do senhor Thomas e viu Bianca na ruela. Caminhou para ela com uma expressão preocupada.
—Encontrou o que queria? —perguntou ela quando chegou a seu lado.
—Mais do que queria. —Parecia cansado e perdido.
—As cartas eram do senhor Thomas?
—Sim.
—Vê, eram amigos, como te disse.
—Não eram para Adam, a não ser para meu irmão.
Ela deu de ombros.
—Uma amizade diferente, então. Charlotte sempre fala de Milton como alguém solitário, assim devia ser uma alegria para ele ter alguns amigos queridos. Deveria te fazer sentir melhor saber que os tinha, que não estava sozinho na vida.
Dirigiu-lhe um olhar estranho.
—Sim, suponho que deveria me fazer sentir melhor saber isso. Agora voltemos para casa. Das muitas vidas que me sinto vivendo hoje a que inclui você é a única que agora necessito.
Logo que entraram no carro, pegou sua mão e a atraiu para ele para sentá-la em seu colo.
—O que pensa de sua fábrica?
—Acredito que possivelmente deixarei que o administrador continue durante alguns anos mais, ao menos. Entretanto, não estou segura de que Nigel seja tão otimista. Como conseguiu mantê-lo ignorante de seu papel aqui?
—Ele estava na França, e desde que retornou o senhor Clark escapuliu dele. Mantemos uma animada correspondência. Conto com que ele esteja contente de que seus benefícios ultrapassem os que podia obter com o fundo de investimento, mas se for necessário oferecerei comprar sua parte por uma quantidade generosa.
—Por que não fazê-lo já?
—A oferta do senhor Johnston e o senhor Kennedy reportaria a ele cinquenta mil libras. Não posso elevá-la sem hipotecar a fábrica.
—Cinquenta mil… Isso significa que minha parte deve ser valiosa.
—Mais de duzentas mil. O valor está nos equipamentos e a terra e as faturas mais que nos proveitos anuais. Está arrependida de ter prometido não vender?
—Não saberia o que fazer com essa quantia. De todos os modos, você disse que os benefícios da fábrica superam os que se podem obter com um fundo de investimento, assim conforme parece me convém conservar minha parte.
—Uma má decisão por parte de seu administrador e o valor da fábrica diminuiria.
Ela bicou seu nariz com um pequeno beijo.
—Acredito que me arriscarei. Confio em meu administrador. Não porque esteja ansioso para obter benefícios, mas sim porque sente paixão pelo que faz e, portanto o fará bem.
Uma sobrancelha arqueou de forma libertina.
—A paixão pode conduzir a uma prática soberba? Acredito que essa teoria deveria ser posta a prova mais frequentemente.
Um longo beijo deixou claro o queria dizer. Ela ficou sem fôlego.
—Lucas… — disse com voz entrecortada enquanto desatava o pescoço da capa.
—Não ouvirá nada com todo o ruído que faz a carruagem.
De repente não parecia estar fazendo nada de ruído, mas a boca dele estava provocando sensações que faziam que o sangue martelasse em seus ouvidos.
—Se alguém nos detiver…
—Ninguém o faria exceto um salteador de caminhos, e por aqui não foi visto nenhum há uma década.
—Estamos quase em casa.
—Faltam ao menos vinte minutos. Mas tem razão, não gostaríamos de nos deter no momento equivocado, e não me sinto inclinado a te fazer amor rapidamente, justamente o contrário. Passaremos o tempo com atividades mais relaxadas.
—Um jogo de cartas?
—Estava pensando em descobrir até que ponto posso conseguir que te volte selvagem daqui ao imóvel. —Sua expressão não acompanhava seus jogos de palavras. A preocupação que ela viu quando se encontraram na ruela ainda velava seus olhos— Me sinto muito agradecido de que esteja aqui comigo agora, mais do que seria capaz de explicar.
Resultou ser que ele pôde conseguir que se voltasse muito selvagem. As sensações se acumulavam, dividiam-se e se multiplicavam. O prazer se amontoava em capas sobre o prazer. Nem sequer a despiu, mas suas mãos encontravam e tocavam com malvada precisão através de seu sutiã e por debaixo de sua saia. O final não chegava nunca e o delírio duplicava por si mesmo, jogando-a a um louco topo de necessidade. Com observadora deliberação ele a mantinha balançando em um ponto de deliciosa tortura.
Quando chegaram ao imóvel, ele ajudou seu aturdido corpo a descer da carruagem. Conduziu-a até a porta tão despreocupadamente que Lucas podia ter suposto que passaram o tempo discutindo sobre algo.
O frio aristocrata desapareceu logo que se fechou a porta do imóvel. Em um instante ela se encontrou encurralada contra a parede com painéis do vestíbulo, a boca dele em seus seios e sua mão subindo a saia. Em um arrebatamento de primitiva necessidade desabotoou as calças e a levantou para que suas pernas se pendessem ao redor de seus quadris.
Sua excitação imediatamente se centrou no glorioso alívio que lhe dava. Sentia-o como não havia sentido nunca antes e não queria nada mais, nenhuma outra carícia, só essa quente pressão, empurrando e enchendo-a. Agora desesperada, incitou sua energia selvagem com dentadas e beijos enlouquecidos e arranhões ao segurá-lo.
—Sim. Me ame. Mais. Mais duro, mais profundo. Sim.
Os tremores despertavam ali onde ambos se uniam, estremeciam-se e se estendiam. Um final diferente exercia sua atração, quase terrível em seu poder.
—Sim. Vêm comigo. —Desta vez a voz dele, e não a dela, repetia uma e outra vez estas palavras contra seu peito, a ordem era enfatizada pelos ritmos de sua violenta paixão. O êxtase que a fazia dar voltas a assustou e se aferrou a ele como uma mulher enlouquecida.
—Te amo. Te amo. Não me deixe desta vez. Te amo. —Perdeu a noção do mundo e entrou em uma espiral de pura sensação.
Levou uma eternidade reencontrar-se depois. Nenhum dos dois se moveu durante um tempo. Permaneceram entrelaçados e apertados contra a parede, Vergil sustentava o peso dela com seus braços e seus quadris. Já não estava dentro dela, mas ela não podia recordar se obedeceu a sua súplica de que não se retirasse.
Em sua emoção se desfez de qualquer preocupação pelo fato de que acabava de flertar com a possibilidade de uma gravidez. Tudo o que queria naquele momento era que ele continuasse abraçando-a, que não a permitisse partir nunca, e que nunca deixasse de enchê-la inteira.

***

—Ontem tomei a liberdade de preparar o quarto do lado, milord. —Morton colocou a bandeja do café da manhã na mesa do dormitório. Bianca ainda dormia atrás das cortinas corridas da cama— Pensei que a dama gostaria de um pouco de privacidade em algum momento. Para lavar-se e essas coisas. Estou preparando para ela um banho ali agora.
—Tomou muitas moléstias desnecessárias.
—É um prazer cuidar de sua comodidade. Com sua permissão, pensava ir ao povoado e ver se ali há alguma garota adequada para vir aqui e atendê-la.
—Também é desnecessário. A senhorita Kenwood e eu partiremos hoje.
—York é uma viagem bastante curta. Depois de conseguir a licença especial poderiam retornar esta noite.
—Não é de tudo claro que a senhorita Kenwood consinta em ir a York, Morton.
O camareiro sorriu com indulgência.
—É obvio que o fará. Que alternativa tem agora?
A obstinação. Chegou a hora de abordar a questão.
Ela não o fez nenhuma só vez, como ele tinha esperado, maldita seja. Nem captou suas próprias alusões a respeito de continuar o que tinham começado. Parecia aceitar que ele a tivesse ali um par de dias, arrebatasse sua virgindade, fizesse amor repetidamente e logo a enviasse alegremente de retorno a Londres sem mais preâmbulos. Sentiria-se insultado se se permitisse contemplar essa atitude dela por muito tempo.
Caminhava para cima e para baixo pela estadia, esperando que despertasse. O curso a seguir estava claro, era óbvio, inevitável. Se não atendia a razões por bem, ia ter que mostrar-se muito firme com ela.
Não é que fazer isso teve alguma eficácia antes.
Ouviu-a mover-se atrás das cortinas e resistiu ir para ela. Não faria amor aquela manhã. Não queria que a última lembrança pudesse estar carregada do peso de emoções solenes. Se aquilo tinha que acabar, preferia deixar que a última noite de risadas e jogos e fáceis confidências pusesse o fechamento.
Ela apareceu à cabeça entre as cortinas, esfregando os olhos com um gesto encantador que lhe fez doer o coração.
—Já está levantado e vestido — disse.
—Aqui está o café da manhã, e um banho te espera na estadia do lado quando tiver acabado.
A compreensão de que o idílio tinha acabado apagou seus olhos.
Correu a um lado as cortinas e alcançou a túnica de dormir dele que tinha estado usando.
—É obvio. Temos que sair cedo. Devia ter me despertado.
—Vem e come algo.
—Tomarei só um pouco de chá no banheiro. Não tenho fome. —Ela se levantou e serviu o chá— Onde está a banheira?
—Por aqui.
Ele abriu a porta que unia as duas estadias.
Não viu a estadia da amante preparada há anos. As capas brancas que cobriam os móveis foram tiradas, a lareira estava limpa, os móveis dourados polidos e o relógio desempoeirado. A grande estadia brilhava amarela e branca e dourada, seus espelhos refletiam a luz clara da manhã penetrando pelos cristais limpos da janela. Morton devia ter passado o dia inteiro preparando aquele ninho de noivos.
—É muito grande. Parece o quarto de uma rainha. —Ela avançou até a banheira, desatando os laços da roupa.
A seda de cor azul meia-noite deslizou por suas costas da mesma forma que a água fez aquele dia em que ele a viu no lago. Memorizou cada curva de seu corpo enquanto ela se inclinava e se metia na banheira. A possibilidade de perder a posse de sua beleza não o turvava tanto como renunciar a essa familiaridade que a permitia despir-se com uma falta total de acanhamento.
Ela começou a lavar-se.
—Precisamos falar agora — disse ele.
—Como mínimo precisamos esclarecer nossa história, não? Pensou em como explicará que me encontrou?
—Eu gostaria de falar de outras coisas. —Ele começou a aproximar uma cadeira.
Um som do mais débil, como um pequeno tremor na estrutura do imóvel, deteve-o. Cresceu em intensidade até converter-se em um alvoroço que deslizou através do corredor até chegar à porta da estadia.
—Maldição. —Ele deu a volta e se dirigiu a grandes passos até seu quarto. Entrou nele e fechou a porta que a conectava com o outro.
O alvoroço estalou em vozes audíveis amortecidas pelas paredes.
—Digo-lhes que meu senhor hoje não recebe. —Proclamava Morton com furioso desespero.
—Sim nos receberá.
—Dante, deveríamos deixar que Morton o desperte e esperá-lo abaixo.
—Passei as últimas quinze horas em um infernal carro de cavalos. Maldito seja se me digno a esperar ao prazer do lorde esta manhã.
A porta se abriu de repente. Dante entrou em grandes pernadas no qurto, seguido por Penelope.
—Bianca fugiu, Verg. Deus sabe onde demônios foi, ou com que descarado está.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Capítulo 16


Havia provas de uma visitante feminina espalhadas por todo o quarto, mas nem Pen, nem Dante viram.
—Bianca desapareceu há três dias — disse Dante— Eu a estava vigiando de perto, mas ela falou com Pen para que lhe permitisse voltar para Laclere Park.
—Estava afligida pela contínua presença de Dante, e pediu… Parecia suficientemente seguro…
—Confronta-o, Pen, ela é muito ardilosa para você. No caminho desceu do carro vestida com a capa de Jane e depois a criada se ocultou em seu quarto, fingindo ser ela. A governanta descobriu o ardil ontem, a notícia foi enviada imediatamente a Londres e nos pusemos a caminho logo que nos inteiramos.
—Pensamos que era melhor que você decidisse o que fazer — concluiu Pen.
—Como devia fazer — disse Vergil.
Dante se jogou no sofá, justo ao lado da blusa desabotoada de Bianca. De fato a afastou a um lado sem dar-se conta do que estava tocando.
—Ainda há mais, temo. Nigel abandonou Londres também, e não está em Woodleigh. Acredito que deveríamos cavalgar a toda velocidade até a Gretna Green. Se eles se acreditarem a salvo, ainda não devem ter empreendido a viagem e ainda existe a possibilidade de que ainda não se casaram.
—Por que não começa pela Escócia imediatamente enquanto eu visito os escritórios de navios em Liverpool? —sugeriu Vergil— Pode ter decidido navegar de volta para casa.
—Não acredito — disse Pen— Não levou quase nada consigo, e nunca deixaria Jane aqui.
—Se estiver com Kenwood, cabe ter a esperança de que o homem espere… — Dante olhou Pen e se retratou— Me desculpo por não ter tomado mais a sério suas preocupações a respeito de Nigel, Verg. É de supor que fugiram para se casar, mas se existir a outra possibilidade…
—Confio em que a senhorita Kenwood está a salvo no momento nesse sentido, Dante.
Fazia ao menos quinze anos que Pen não visitava o imóvel. Percorreu oquarto concentrada em suas preocupações, tocando os objetos e os móveis distraidamente. Seu andar sem propósito a levou perto da mesa.
—Deveríamos decidir de uma vez como proceder — disse Dante— Quem sabe o que aconteceu…
Pen admirava vagamente a baixela de prata da bandeja do café da manhã.
—…Especialmente dado que suspeitamos que Kenwood possa inclusive ser o homem que…
A testa de Pen se enrugou quando esta franziu o cenho. Virtualmente se podia ouvi-la contar os dois pratos, facas e garfos. Ruborizou-se.
—Por que não saímos daqui e discutimos isto abaixo? —interrompeu-os, voltando-se com uma expressão afligida.
—O que vejo é que não temos tempo para discutir nada — disse Dante. Se levantou e caminhou até a janela. Justo debaixo da janela se achava o banco onde ainda se amontoavam os objetos que os amantes tiraram um do outro a noite anterior.
—Dante, Vergil precisa acabar de vestir-se. Você e eu podemos discutir o próximo passo a seguir enquanto o faz.
—Já está impecavelmente vestido e barbeado. Provavelmente desde o amanhecer. Agora, Verg…
—Em qualquer caso, acredito que deveríamos ir abaixo.
—Faz o que queira Pen. Agora, Verg, são mais os pontos a favor da Escócia que de Liverpool, assim tem mais sentido que vá ao norte se alguém tiver que… — Se interrompeu de repente ao ver os objetos junto a seus joelhos. Inclinou a cabeça com curiosidade. — Serei condenado — murmurou, tocando a borda de umas anáguas— Te peço desculpas… — se interrompeu de novo ante a impressão que produziu algo que viu. Aproximou-se da pilha de roupa para tocar uma manga de cor verde— Diabos, é igual a um de…
Sua exclamação deteve a retirada de Pen. Voltou-se para olhar e se fixou na cor da manga. Com o cenho completamente franzido, dirigiu-se até a janela, extraiu o objeto e o sustentou para inspecioná-lo.
É obvio, ambos o reconheceram. O vestuário de Bianca não era muito extenso e pôs esse objeto muitas vezes em sua presença.
Dante contemplava seu irmão atônito. Pen parecia a ponto de desmaiar. Deu a volta exibindo o vestido como a prova irrefutável que este era.
—Vergil — começou.
—Sim, Pen?
Agitou o vestido contra ele de forma acusadora.
—Vergil, acredito que foi um menino muito mau.
Diabos e maldição.
—Sim, Pen.

—Jesus. —Dante caminhava de um lado a outro com os braços cruzados sobre seu peito, era a imagem de um homem muito aniquilado para falar.
Pen recolheu os objetos de Bianca e se colocou no quarto do lado.
—Diabos.
—Isso é tudo, Dante? Se é assim, deve me desculpar, pois preciso falar com Bianca.
—Não ainda, e não se atreva a voltar a empregar esse tom de superioridade comigo nunca mais. —Fez um gesto brusco— Se tornou louco? Perdeu o julgamento completamente?
—Em certo sentido suponho que sim.
—Por favor, me diga que não esteve aqui durante todo este tempo, mas sim se extraviou de caminho a qualquer lugar que fosse e alguém a deixou esta manhã ante sua porta.
—Não te insultaria com uma história tão absurda, nem que me acreditasse.
—Maldita seja, Verg, este é o tipo de coisa que se supõe que eu faria, e nem sequer eu seria tão descarado. É sua protegida.
—Não precisa me recordar quão desonroso foi meu comportamento.
—Não tenho que fazê-lo? Não tenho que fazê-lo? —Dante o olhava furioso— Mal feito. Muito mal feito. Torpe e arriscado. Se pretendia ter uma aventura, por que não o fez em Londres ou em Laclere Park? Levar isso furtivamente para te reunir com ela aqui… — A perspicácia cintilava em seus olhos— Sim, torpe e arriscado. Muito para meu cuidadoso e discreto irmão. Você não planejou, verdade? Foi ideia dela. Seguiu-te até aqui e… — Se deteve fazendo um gesto de superioridade moral ante o escândalo— Diabos.
Vergil não gostava de ser censurado por Dante, menos que por ninguém, mas se este sabia como e por que Bianca fez aquela viagem ficaria mais escandalizado que se tratasse só de um assunto amoroso.
—Agora entendo por que me rechaçou. Tinha o olho posto em seu título. Queria te apanhar desta forma, para aproveitar-se de seu fastidioso senso de honra… Custa acreditar que alguém tão jovem possa ser tão desumana.
Censurá-lo era uma coisa. Insultar Bianca era outra muito distinta.
—Não diga nenhuma só palavra mais contra ela, Dante.
—Ainda está confuso, verdade? Resulta que você também é humano, muito conforme parece. Pode ser a névoa da paixão que nubla seus olhos, irmão mais velho, e atende aos fatos. A menos que pretenda te render e converter esta sem vergonha em sua viscondessa, será melhor que nos concentremos juntos e encontremos a maneira de frustrar seus planos.
Ao inferno com a ideia de proteger vidas secretas.
—Não veio a este imóvel sem ser convidada, o tempo que passamos juntos não foi planejado por nenhum dos dois. Encontramo-nos acidentalmente quando ela veio ao norte para…
—É muito cavalheiro por sua parte tentar me proteger, Laclere, mas não será necessário — o interrompeu a voz de Bianca.
Estava de pé na soleira que conectava os dois quartos, com seu vestido verde. Pen se achava a seu lado.
Vergil se aproximou dela e pegou sua mão. Ela apertou a sua com gratidão e logo a soltou.
—Sempre fui muito impetuosa. Penelope pode dar fé disso — disse Bianca a Dante— Você também pode. Mas seguir seu irmão até aqui não foi parte de um complô. Não tenho esse tipo de inteligência, e não procurava apanhá-lo no matrimônio. Vim para pedir minha independência. O resto do ocorrido não foi absolutamente planejado.
Nenhuma só palavra era mentira, mas obscureceu os detalhes e protegeu seu segredo. Entretanto, sua história dificilmente os absolvia.
—Pelo bem de seu irmão, peço que ambos sejam discretos com o que encontraram. Estou segura de que não querem vê-lo arruinado por culpa de minha teimosia. Agora, acredito que eu gostaria de estar um momento a sós. E, além disso, suponho que os três gostariam de tomar uma decisão fora de minha presença.
Caminhou com orgulho para a porta, mas Vergil pôde ver a humilhação sob sua máscara de valentia.
—Segue-a, Pen, para ver se aceita sua companhia. Irei abaixo em seguida — disse ele.
Pen estava feliz de escapar. Vergil fechou a porta atrás dela e voltou com seu irmão.
—Nunca poderei te perdoar por Bianca ouvir suas malditas palavras, Dante.
—Possivelmente é melhor que seja testemunha de que há alguma influência racional sobre você. Graças a Deus chegamos aqui antes que ela te enfeitiçasse e te levasse até o altar.
—Pareço um homem enfeitiçado e confuso? Interpretou ao reverso. Eu a trouxe a este imóvel, com toda a intenção de seduzi-la. Sua chegada interrompeu minhas tentativas de enrolá-la para que se case comigo.
A reação de surpresa de Dante se fundiu em desfruto.
—Por que quereria fazer isso? É bastante bonita, mas não uma beleza. Não é adequada para você, e suas maneiras liberais só lhe causarão problemas e afetarão sua posição. Fleur seria uma esposa muito melhor, e sabe. Se encontrou Bianca apaixonada e quis tê-la por um momento, é óbvio que não tem que se casar com ela por isso.
—Corre o grave perigo de encontrar meu punho em sua cara outra vez, Dante.
Dante baixou as pálpebras.
—Se assim for, o final poderia ser diferente hoje, Vergil. Depois de tudo, não me pegará despreparado, porque não estou convexo sobre a senhorita Kenwood desta vez.
Vergil quase o golpeia. Tragando sua fúria, caminhou até a porta.
—Vou propor agora. Se por um dom de graça ela aceita, e inclusive se não o fizer, não voltará nem a levantar uma sobrancelha para censurá-la. Se o fizer, acabei contigo.
—Por não ser um homem enfeitiçado nem confuso está atuando como um parvo. Há vezes em que é necessário deixar a honra de lado, como desta vez em que foi manipulado por uma mulher com seu caráter.
—Já deixei a honra de lado, e agora é o momento de recuperá-la outra vez. Está tão enfastiado que não é capaz de ver o que verdadeiramente aconteceu aqui? Ela não estava manchada antes de me conhecer. Entrou nesta casa sendo inocente e eu deliberadamente a seduzi até sabendo isso.
Afastou-se de Dante, que tinha ficado boquiaberto, e caminhou a grandes pernadas até o vestíbulo. Pen se achava sentada frente à lareira, com aspecto cansado e abatido.
—Onde está Bianca?
—Na biblioteca. —Lhe estendeu uma mão e ele tomou entre as suas em um gesto de consolo — Isso foi uma tremenda comoção, Vergil. Eu não teria esperado nem sequer de Dante... Mas de você. Ainda não tenho a menor ideia de como reagir.
—Só promete ser uma amiga para ela, aconteça o que acontecer. Fará isso por mim?
—É obvio. —Levantou a vista com um sorriso vacilante— Vai casar com ela?
—Sim, se ela me aceitar.
—Graças a Deus. É obvio que fará o correto, especialmente depois de ser descoberto desta forma.
—É o correto, Pen, mas não porque o dite a honra, não porque você e Dante nos descobriram.

***

Ela caminhava de um lado a outro pela biblioteca, contemplando a poltrona onde ele se sentou essa primeira noite. Podia sentir de novo a excitante antecipação que pulsou entre eles, e depois as correntes de intimidade que forjaram mais tarde no chão. Piscou para afastar essas lembranças que partiam seu coração.
Soube ao despertar que esse mundo sonhado estava agonizando. Sentiu ao notar o espaço vazio onde devia ter estado o corpo de Vergil. Então o viu já vestido, orgulhoso e alto e pensativo. A nobreza o vestia tanto como o terno e a gravata atada de forma impecável. Imbuía sua atitude despreocupada com o magnetismo da autoconfiança nascida através de gerações de privilégios. «O visconde Laclere», sussurrou seu próprio coração. Nem o senhor Clark, nem seu amante Vergil sorriram, a não ser um par do reino.
Ela soube ao olhá-lo que a liberdade de sua paixão terminou com a noite. Ele disse que aquela manhã deviam decidir o que fazer com respeito ao mundo que esperava. Esse mundo que esperava era o mundo do visconde, e ao amanhecer ele a deixou de lado e se vestiu para encontrar-se com ele.
Mas o mundo depois de tudo não esperava. Estrelou-se contra a porta e lhes roubou os doces momentos que ficavam. E o muito honrado visconde quase convidou à censura de sua família para evitar a ela uma pequena fração de desprezo, como se as circunstâncias que a levaram a esse imóvel e a sua cama fizessem alguma diferença.
Não podia recordar ter se sentido nunca tão triste. Doía o coração, por razões que não podia nomear. Recordava muito à nostalgia da dor que se sente quando se perde algo importante para sempre.
A porta se abriu. Não era Dante, nem Pen, a não ser Vergil. Deveria ter se sentido aliviada, mas em lugar disso, voltou a notar aquela pontada.
—Parece muito solitária, Bianca. Posso estar contigo? —Ofereceu sua mão— Vem se sentar comigo, querida?
Ela deixou que a conduzisse até o sofá, onde ele a envolveu em um delicado abraço. Ela descansou a cabeça contra seu peito e relaxou na doce segurança de sua força. Por esses preciosos momentos ela se permitiu imaginar que ele podia fazer tudo correto e perfeito e que a levaria a um mundo à parte onde as regras e a vergonha não poderiam intrometer-se. Por esse breve feitiço de silenciosa paz fechou sua mente a toda realidade além dele e sua proximidade, seu consolo e os suaves beijos que lhe dava no cabelo.
—Sinto muito que Penelope e Dante chegassem assim, Bianca. Se pudesse fazer desaparecer esta última hora, faria, não porque queira esconder o que ocorreu entre nós, a não ser para te evitar a vergonha. Devo ser honesto, entretanto, e te confessar que não faria desaparecer nada do que ocorreu durante estes últimos três dias.
Ela teve que apertar os dentes para não chorar. Havia dito as únicas palavras que queria ouvir. A mais leve referência a remorsos seria terrível.
Parecia tão sério. Cada ruga de sua preocupação era por ela, e não por ele. A gratidão ante o fato de que ele se preocupasse com sua queda desembocou no pânico sobre como tentaria salvá-la.
—Se tinham que chegar hoje, acredito que é preferível que não tenha sido há uma hora. Prefiro que Pen tenha me descoberto empapada em seu penhoar e não que Dante tivesse me encontrado nua em sua cama.
Ele sorriu e a acariciou na bochecha.
—Continua sendo assombrosa. Sua compostura superou a minha esta manhã. A maioria das mulheres teria ficado histéricas.
Ela não moveu a cabeça. Nenhum milímetro. Queria e necessitava o calor de sua mão. Estava desesperada por qualquer contato com ele naquele momento, porque se achava obstinada a sua louvável serenidade por um fio muito fino de orgulho. Seu coração se encolhia porque sabia aonde conduziria inevitavelmente essa doce conversa.
Ele veio oferecer algo mais que desculpas e calor. Era um homem honrado. Isso significava que só havia um caminho possível. Um caminho equivocado, a seu modo de ver. Por razões equivocadas.
—Está decepcionado porque não fiquei histérica?
—Bom, teria encontrado justificável que perdesse os estribos e desse uma surra em meu irmão, que sem dúvida a merecia.
—Eu não gostei de ouvir o que disse, mas tendo em conta seu descobrimento e meu comportamento no passado, não posso culpá-lo.
—Adverti-o que deverá mostrar unicamente respeito por você no futuro. Se alguma vez te ofenda, embora seja de um modo sutil, deverá me dizer isso.
Ele deixou cair uma mão para pegar as suas. Pensativamente contemplou seu dedo polegar acariciando o dorso de uma mão dela.
—Não quereria apagar nada do que ocorreu nestes dias, mas eu gostaria de acrescentar umas poucas coisas. Palavras que deviam ter sido ditas e oferecimentos que deviam ter sido feitos. Pen e Dante interromperam minhas tentativas de dizer isso quando despertou. Agora me pergunto se poderá acreditar que não me sinto coagido. —Beijou o interior de sua mão— Eu gostaria que nos casássemos de uma vez. Acredita em mim, verdade? Creio que falo com sinceridade? Casará comigo?
Aí estava. É obvio. Que outra coisa podia fazer?
Suas palavras desencadearam uma batalha em seu coração. O orgulho e o amor se enfrentavam com confusão e medo. Afundou a cabeça, desejando que o amor não lutasse com essas outras tumultuosas emoções.
—Não de tudo — disse.
—Não de tudo? Uma resposta estranha. Não crê do tudo que não falo sem me sentir coagido, ou quer se casar comigo, mas não de tudo? —brincou ele, mas com cautela.
—O primeiro. Embora, se pudesse controlar a situação, escolheria o segundo. Isso arrumaria as coisas de uma forma ideal.
—Crê que seria ideal encontrar uma forma de se casar comigo, mas não de tudo?
—Se refletir, estará de acordo comigo. Podemos continuar como estivemos aqui os últimos dias. Ambos seríamos livres de viver como quiséssemos e continuaríamos sendo fiéis amantes sem que isso fosse motivo de escândalo. Estaríamos casados em certo sentido, mas não em outro.
—Não estou de acordo com que isso seja o ideal. Eu quero estar casado. De tudo. De fato eu gostaria de estar mais casado que a maioria dos casais.
Soava um pouco como Laclere o autoritário. Dois dias de paixão não mudam completamente uma pessoa, é obvio. Considerando o que estava afirmando, ela encontrou seu tom mais encantador que exasperante.
A doce felicidade do amor queria obscurecer sua confusão. Ansiava render-se, e lhe custava não fazê-lo. Mas seu aceso coração ao mesmo tempo sabia que essa oferta implicava consequências muito sérias. As sombras do que ele ganhava e do que ele perdia com esse matrimônio avançavam sigilosamente ao redor dos limites de seu amor.
—Suponho que possivelmente você desfrutaria estando completamente casado. Em seu caso não importa quão casados estejamos, pois você poderia fazer o que quiser e continuar com o que faz agora. Eu sou a única para quem mudariam as coisas. Por isso é pelo que desejaria que Pen e Dante não tivessem chegado hoje. Se não o tivessem feito, acredito que você teria aceitado não estar de tudo casado, e inclusive não estar casado absolutamente.
Ele levantou uma sobrancelha com suspicacia.
—Agora não estar casado absolutamente.
—Há duas noites te perguntei especificamente o que significava fazer amor, e você só me pediu fidelidade. Se tivesse pretendido que nos casássemos, poderia tê-lo dito então. Por isso é que não acredito do tudo que agora não esteja atuando coagido pelos cânones sociais.
—Admito que o mais honesto teria sido expressar minhas intenções no momento em que você fez essa pergunta. Entretanto, eu não quis te surpreender com essa ideia justo nesse preciso momento.
—Entendo-o perfeitamente. Não queria correr o risco de me assustar e ficar insatisfeito. De verdade o entendo, porque, verá, naquele momento, justo diante das estantes, se você tivesse dito que fazer amor significava casamento, eu não estava em condições de negociar ou de ir.
Ele piscou.
—Teria aceitado?
—Sem dúvida nenhuma. Tinha perdido minha prudência.
—E em consequência, se eu tivesse começado a te fazer amor e antes de acabar te tivesse proposto matrimônio…
—Não teria resistido à oportunidade. Essa é a razão pela qual não acredito que de verdade queira de coração se casar comigo.
—Bianca, os homens não fazem às mulheres cair no matrimônio dessa forma. Somos quase fisicamente incapazes de fazê-lo.
—Então como fazem às mulheres cair no matrimônio? Intoxicando-as de prazer e confiando em que voltarão em busca de mais?
Ele deixou escapar um profundo suspiro dessa forma exasperada que tinha usado com ela ao princípio.
—Bianca, sou eu, o visconde Laclere. Que você tenha visto o que há debaixo da superfície estes dias não significa que a superfície seja inteiramente falsa. Deveria ter se dado conta de que nunca teria te deixado enquanto estivesse nesta casa se não pretendesse me casar contigo. Não pode me acreditar tão descarado para seduzir uma inocente e depois deixá-la de lado. Deveria ter entendido o que significava fazer amor, inclusive embora eu não explicasse isso com detalhe.
Possivelmente sim o entendeu. Possivelmente preferiu ignorar uma verdade incômoda com tal de desfrutar dele por um tempo.
—Talvez seja melhor que me explique isso com detalhe agora. O que significa o casamento, quero dizer.
Ele não respondeu em seguida. Sabia o que estava perguntando.
—O que normalmente significa Bianca — disse finalmente.
—E meu canto?
—Eu não quero te afastar do que ama. Pode praticar. Traremos o melhor professor da Itália aqui para você. Poderá atuar para nossos convidados, e as damas lhe pedirão com frequência que cante.
—Mas não poderei atuar em um teatro de ópera, em um espetáculo completo, com um acompanhamento completo. Não serei conhecida por minha arte, a não ser só como sua destra esposa. Não serei respeitada por meus iguais na música, porque não me conhecerão como uma profissional.
—Fala como se te estivesse pedindo que vendesse sua alma. Se casar comigo não é mais que um sacrifício para você?
—Claro que não, carinho. Me casar contigo é enormemente atraente. Nunca teria permitido esta intimidade se não tivesse sentido que era natural e inevitável estar entre seus braços. É muito duro para meu coração enfrentar esta escolha, porque, diga o que disser, significa abandonar a metade daquilo que quero, e, sim, a metade de minha alma.
—Assombra-me mais que nunca, Bianca. Me enche de alegria falando de afeto profundo, e depois me aflige falando de perdas. Faz-me sentir mais descarado te oferecendo casamento que se a tivesse violado e a tivesse abandonado em uma sarjeta da estrada.
—Não deveria se sentir descarado absolutamente. Eu queria isso. Baixei para te buscar aquela noite. Mas não consenti em me casar ao fazê-lo.
—Então me usou sem piedade para seu próprio prazer, e agora se nega a fazer o correto comigo. —Um sorriso irônico aparecia em seus lábios, mas umas luzes profundas ardiam em seus olhos.
—Não te rechacei ainda. Quero que entenda por que não me lancei em seus braços quando fez esta oferta. Não quero que pense que joguei em falso estes últimos dias. Minha felicidade não era mentira. Se me casar contigo, não quero me arrepender de minha decisão, e tampouco quero que os dois sejamos desgraçados se o faço. Acredito que não deveria tomar esta decisão justo agora, com o desastre abatendo-se em torno de nós.
Ele não gostou disso.
—E se eu te exijo que o faça?
—Provavelmente me perguntaria quais podem ser suas motivações para me forçar a tomar uma decisão quando estou em desvantagem.
—Minhas motivações? —Seu tom foi cortante como uma aresta de gelo.
—Pode dizer honestamente que minhas ações na fábrica não realçam meu atrativo como esposa?
Ele se levantou e caminhou até a lareira.
—Chegou à conclusão de que tudo isto foi pela fábrica? Acredita que sou capaz de simular meu afeto de maneira tão cínica?
—Não tirei tal conclusão. Realmente não penso que…
—Terá tanto tempo como necessita para se decidir, é obvio. —Falou com brutalidade— Já que ficará na Inglaterra até seu aniversário, possivelmente possa esperar uma decisão para então, se não for antes.
Ela não acreditava que a fábrica fosse sua principal motivação, mas devia estar em sua cabeça. Sua severidade agora escondia a culpa tanto como a ofensa.
—Falarei com Pen e pedirei que te deixe viver com ela. Ajudará a encontrar um tutor em Londres até que tragamos um professor de canto de Milão. Sua estadia na Inglaterra até junho não interferirá em seus planos, nem atrasará seu desenvolvimento. Espero que me perdoe este último exercício de minha autoridade, Bianca. Não te deixarei sair antes do que devo.
Ela caminhou para ele e deslizou seus braços ao redor de sua cintura até que suas palmas descansaram em seu abdômen e sua cabeça se apertou contra suas costas.
—Não tinha intenção de te pedir que me deixasse partir. Acredito que eu gostaria de ficar na Inglaterra até junho. Viver com Pen pode me fazer bem, e fará as coisas mais fáceis para os dois.
Ele se voltou para ela e lhe sustentou o queixo.
—Pensa que estou tomando estas decisões porque me facilitarão ter um caso contigo? Pen dificilmente consentiria algo assim, sejam quais sejam minhas intenções com respeito a você. E eu não arriscaria dessa forma sua reputação.
—Mas eu pensava…
—Que sua escolha estava entre o casamento ou uma relação de amantes. «Não estar casados absolutamente», como disse antes? Isso fica fora de consideração, querida. Você não é uma mulher amadurecida e experiente, a não ser uma jovem solteira. Toda a discrição do mundo não serviria para te salvar se alguém fizesse conjecturas.
—Ontem… A outra noite você falava como se…
—Referia-me ao casamento que acabo de te oferecer, Bianca, não a um assunto sórdido.
—Sórdido? É assim como pensa que foi? O que é o que pensa que eu fui?
—Absolutamente. Mas o mundo assim acreditaria, e ambos o sentiríamos. Não quero viver da forma que se tem que viver para ocultar uma relação assim, fingindo indiferença quando se está em público, me deslizando por sua porta traseira ao final da noite. Isso corromperia o que compartilhamos aqui, e finalmente o asfixiaria. Continuar o que começamos aqui não é mais prático para você fora do casamento que dentro dele. Poderia inclusive carregar uma criatura. Pelo que sei, já posso tê-lo feito, apesar de meus esforços para te proteger.
Causava pavor que ele tomasse essa atitude. Seu coração começou a rasgar-se de um modo que produziu uma dor física. A tensa queimação de lágrimas reprimidas a afogava.
Ele a agarrou em um reconfortante abraço. Ela enterrou o rosto em seu peito.
—Por que me protegeu? Se queria o casamento, por que você sempre…
Seus fortes braços a rodearam e as firmes e doces mãos acariciaram suas costas. Ela saboreou cada detalhe, sabendo que podia ser a última vez.
—Já te disse por que. Nunca foi minha intenção te apanhar em algo que não quisesse Bianca.

***

Vergil ajudou Bianca a subir à carruagem de Pen. Sua irmã sorriu fracamente de seu assento e depois retornou a seu estado de confusão em relação à garota que se mostrou tão estranhamente obstinada com alguém que tentava fazer o correto por ela.
Dante se achava de pé ante a porta do imóvel com aspecto de não ter se recuperado inteiramente do choque. Inteirar-se de que seu irmão seduziu uma virgem o desfez. Que essa virgem depois tivesse rechaçado ser redimida por seu sedutor, que tinha a grande sorte de ser um aristocrata latifundiário possuidor de um título nobiliário… Dante começava a ver claro que a tentativa de desenvolvimento dos acontecimentos parecia uma loucura no melhor dos casos e altamente suspeito no pior.
Vergil se inclinou para o carro e atraiu Bianca para ele para lhe dar um longo beijo que demonstrava a seus dois irmãos que aquele pecador não se arrependia nem um ápice do que fez.
Fez durar aquele beijo, absorvendo seu fôlego. O espírito de Bianca se elevou com ele, uma pequena lembrança do abandono à paixão, para acrescentar tortura à despedida. Ele se obrigou a afastar-se e fechou a porta. As rodas ficaram em marcha.
Vergil ficou olhando até que o carro desapareceu por completo. Aquele beijo teria que durar durante muito tempo. Possivelmente durante o resto de sua vida.
Dante se aproximou da casa para reunir-se com ele em sua contemplação do caminho vazio.
—Nada disto tem nenhum sentido, Verg.
Tinha perfeito sentido. Ele interferiu nos planos de Bianca, propondo uma vida distinta a que ela esperava. Era compreensível que queria pensar antes de responder. Ao contrário que no caso da maioria das garotas, seu sonho não era o do matrimônio e a família. De fato, ela aceitou que isso era impossível se perseguia sua arte. Inclusive embora se deprimisse de alegria ante a proposta dele, a excitação não teria durado muito antes que ela começasse a analisar as consequências.
O que veria ela quando se acalmasse sua paixão e pesasse o valor do que ele oferecia? Não necessitava seu dinheiro, que nem sequer era abundante, e sua posição não significava nada para ela. Não requeria amparo financeiro, e muito pouco amparo de outro tipo. Além disso, sua parte da fábrica manchava a pureza das intenções dele.
Achava-se ante ela na posição que Dante descreveu uma vez falando de si mesmo. Não tinha nada a lhe oferecer exceto o prazer.
Ao que parece não era suficiente.

 


Capítulo 17

O frio jardim da casa de Londres de Daniel Saint John exercia sua atração sobre Vergil. E também sobre Adrian Burchard.
Estava evitando Adrian, mas não podia continuar fazendo-o. E tampouco é que quisesse. Precisava falar com alguém a respeito das coisas que rondavam sua mente.
Não a respeito de todas as coisas. Não sobre Bianca. Se fizesse confidências a algum outro homem sobre isso, não escolheria Burchard. Possivelmente Daniel Saint John. O casamento deste foi precedido por uma aventura amorosa, Vergil estava quase seguro.
Vergil recordou com quanta desaprovação se comportou quando o suspeitou. Considerou acabada sua amizade com Saint John como resultado desse assunto. Parecia imperdoável que um homem seduzisse uma prima jovem que vivia em sua casa e da qual era responsável. O fato de que agora soubesse que em realidade Diane não era a prima de Saint John não mudava as coisas.
Entretanto, que os dois se sentissem loucos de felicidade por seu casamento sim as mudava. Isso e o fato de que o visconde Laclere se comportou precisamente de forma igualmente imperdoável, e, além disso, desejasse de todo coração poder seguir fazendo.
As semanas que transcorreram ao deixar Lancashire foram uma lenta tortura no que respeita a Bianca. Foi até Laclere Park para procurar as cartas de Thomas e fazer algumas averiguações, e ela ocupou sua cabeça todo o tempo, criando uma distração da qual não podia livrar-se.
Entretanto, ao retornar foi ainda muito pior. Vê-la na casa de Pen, ser testemunha das visitas que recebia, escutá-la fazer seus exercícios de canto com seu professor no salão… Ele continuava esperando alguma prova de que fosse desventurada. Mas em lugar disso ele via uma prometedora estrela dos círculos artísticos gozando de sua independência.
Seguiu Adrian através das portas que havia no extremo do salão de jantar, deixando o resto dos integrantes da Sociedade de Duelo com seu porto e seus charutos. Saint John os convidou para jantar e foi um agradável e estridente encontro entre homens que se conheciam há vários anos e tinham plena confiança entre eles.
—Fez alguma descoberta interessante? —perguntou Adrian.
—Achei provas de que Milton teve uma relação que pode ter sido muito prejudicial para ele no caso de que outros se inteirassem. Apareceu um conjunto de cartas entre os papéis de Adam Kenwood. Eram cartas para Milton dessa pessoa com a qual se relacionava, e seus conteúdos eram comprometedores.
—Como é que foram parar em Kenwood?
—Kenwood foi quem encontrou meu irmão depois de sua morte. Tinha uma reunião com ele e entrou em seu escritório para buscá-lo. Foi o primeiro a descobri-lo. Suponho que rapidamente examinou o lugar procurando algo que pudesse ter sido a causa do suicídio, encontrou as cartas e as levou para proteger o nome de Milton.
—Mas nunca lhe deu isso.
—O mais provável é que também queria proteger meu irmão de meu desprezo. Em qualquer caso, se tais cartas existiram, e agora sei que sim, alguém pode ter encontrado alguma e utilizado-a para chantagear meu irmão.
—Os conteúdos permitem fazer isso?
—Sim.
Detiveram-se à luz da lua. Em uma janela do andar de cima se viu a silhueta de uma mulher passando atrás das cortinas. Era a esposa de Saint John, Diane, e levava um de seus filhos nos braços enquanto passeava acima e abaixo.
A elegante e feminina imagem cativou Vergil. Ficou olhando, distraído, invejando a felicidade doméstica de Saint John.
—Por que Kenwood não as destruiu? —perguntou Adrian, fazendo-o retornar.
Vergil deixou de olhar a janela e os dois homens continuaram seu passeio.
—Não sei. Entretanto acredito que ele também viu uma amostra de extorsão e deve ter estado investigando isso. Em seu escritório, junto às cartas, havia um papel com o nome de meu irmão e alguns outros. O de Castlereagh era um. Além dos outros dois homens que venderam uma enorme parte de sua propriedade neste último ano.
—Uma amostra ou uma lista de suas vítimas. Isso é o que este descobrimento implica, não?
—Considerei a ideia que Kenwood pode ter sido o chantagista, mas não acredito que assim fosse. Lorde Fairhall morreu depois que Kenwood, por um lado, e por outro o conde de Glasbury não pode ser sua vítima agora.
Caminharam até um extremo do jardim, depois deram a volta e retornaram em sentido contrário. As folhas caídas revoavam em torno de suas pernas e a brisa movia nuvens fantasmas diante da lua.
—Acredito que estamos chegando às mesmas conclusões, Laclere — disse Adrian— Esse episódio com Glasbury em Hampstead foi revelador.
—Estou de acordo. Embora não estou seguro do que é o que revela.
—Indica que duas das pessoas que foram chantageadas têm relação com sua família. Esse fato não pode ser ignorado. Isso, além disso, sugere que o chantagista provavelmente não é alguém do norte, nem dos conhecidos e previsíveis radicais.
—Alguém mais próximo a casa, então — disse Vergil, repetindo a observação que Bianca, com sua perspicácia, fez junto ao fogo.
Essa frase jogou luz em torno das sombras de sua busca. Quis evitar chegar a essa conclusão? Preferiu ignorar a evidência que demonstrava que estava perdendo tempo procurando radicais como esses dois que conspiraram para assassinar oficiais do Governo no passado?
Desejou sem saber que o segredo de Milton foi à traição, do que o que em realidade foi?
—Pode ter sido coincidência que duas das vítimas estivessem aparentadas com os Duclairc, mas por agora assumamos que não — disse Vergil — Significa que se trata de alguém de nosso círculo.
—Ou de alguém que conhece alguém em seus círculos. Ou podemos estar vendo uma pauta que em realidade não existe. Depois de tudo, se Hampton pôde descobrir os segredos do conde de Glasbury, isso significa que qualquer um pode fazê-lo.
Julian Hampton já descobriu esses segredos. Além disso, Hampton conheceu bem Milton, foi seu advogado, e pôde ter examinado facilmente mais que os livros de contas, tanto no escritório de Milton em Londres como em Laclere Park.
O perfil do homem em questão podia ver-se através da porta. Vergil desgostava a sensação de trair sua própria experiência ao estar considerando a conexão de seu amigo com as vítimas do chantagista.
—Hampton também conhecia Castlereagh. E lorde Fairhall. —Adrian falava com leveza, mas com certo ar de determinação, como se a questão não pudesse passar por alto.
—Você também se move nesses mesmos círculos, Burchard. Sua capacidade para inteirar-se de coisas é ultrapassada pela sua. Conheço esse homem. Conheço-o desde que era menino. Além disso, ele não tem motivos políticos, e no caso de Milton, ele sabia que não havia dinheiro.
—Se disser que não tem motivos políticos, acredito. Eu por minha parte não tenho ideia de quais são suas convicções, e nem sequer sei se as tem.
Adrian acabava de fazer um bom tanto. Hampton era uma incógnita em muitos sentidos, e o conhecimento que Vergil tinha dele se apoiava mais no instinto que em discussões explícitas.
—Inclino-me mais por Nigel Kenwood — disse Vergil— Estive perguntando por ele em Sussex. Não ficou na França todos estes anos. Visitava Woodleigh ao menos cinco vezes ao ano, e inclusive acompanhou Adam em visitas a Laclere Park várias vezes.
—Parece improvável. Não tinha relação com Castlereagh, por exemplo.
—Isso não sabemos. E há algo mais. —Vergil duvidava se revelava essa parte. Era fácil que fosse interpretado mal— Acredito que se Castlereagh foi chantageado, a informação usada para isso também tem conexão com minha família. Acredito que veio de Milton.
Adrian se deteve. Simplesmente ficou de pé, com a vista fixa no atalho do jardim, esperando.
—Meu irmão e o ministro de Assuntos Exteriores tinham uma amizade íntima da que eu me dei conta. Mantinham uma fluida correspondência — disse Vergil— Menti sobre isto quando me encontrei contigo e com Wellington, porque a maioria das cartas que vi tratava de questões políticas. Entretanto, as reli e, se alguém já tinha uma ideia na mente, se alguém tinha alguma prova sobre meu irmão que dava certo tipo de interpretação… É possível que exista uma carta que se possa dar um mau uso.
—Como um mau uso?
—Por si só duvido que tivesse um significado especial. Mas se Milton já tinha caído em desgraça, podia ser suficiente para afundar outro homem.
Adrian não se moveu. Castlereagh lhe deu emprego quando ele era um jovem cujo pai se desentendeu dele sem o deixar uma libra. Sua lealdade para o último ministro dos Assuntos Exteriores era compreensível e sua calma expressava um ar glacial.
—Sejamos francos, Laclere. Agora não estamos falando sobre assuntos políticos, verdade?
—Não.
—As cartas dirigidas a Milton que encontrou entre os pertences de Adam Kenwood não eram de um radical, e não indicavam que Milton tivesse se aprofundado nessas coisas mais do que acreditávamos. A chantagem concerne a questões privadas.
—Sim.
—E você agora está sugerindo que podem ter havido outras cartas, de Castlereagh a seu irmão, de natureza similar.
—Não. Estou dizendo que a expressão de uma amizade entre homens que não significa nada na maioria dos casos pode ser usada para trair um homem em outros casos. Quero dizer que nessas cartas poderia ler-se algo mais do que há se houvesse uma razão para fazê-lo. Isso seria suficiente para preocupar muito Castlereagh se já de entrada era um homem instável.
Adrian cruzou os braços e olhou o chão.
—Maldita seja.
—Estou te dizendo isto em privado, é obvio.
—Diabos, sim. Tem alguma ideia de quem estamos procurando?
—Pode ser que não se trate tão somente de uma pessoa. De momento sei que uma mulher está envolvida.
Sentia que Adrian o olhava fixamente na escuridão da noite.
—Isso certamente abre maiores possibilidades a favor do jovem Kenwood, se é que teve ajuda. Quem é ela?
—Ainda não sei, mas possivelmente tenha uma maneira de averiguá-lo. —Esteve evitando aquele descobrimento durante semanas. Tentando convencer-se de que não precisava perseguir aquela prova, que tudo poderia resolver sem utilizar essa peça do quebra-cabeça. Entretanto, isso parecia improvável, e sentiu um nó no estômago ante a perspectiva de enfrentar essa parte da verdade.
—Laclere, se o que suspeita for certo… Se alguém pode danificar o nome do ministro dessa forma, nunca deve ocorrer, e não só por sua memória e por sua família.
—Parece como se Wellington falasse.
—É Wellington quem está falando. Castlereagh representou este país depois da derrota de Napoleão, e sua reputação está atada a da Inglaterra nas capitais da Europa. Nem sequer sua morte quebrou esta conexão.
—Essa é sua missão, Adrian? Proteger seu nome desta mancha em particular? Se é assim, Wellington devia ter suspeitado como se podia desembaraçar tudo isto.
Adrian vacilou. Depois falou lentamente.
—Quando Castlereagh falou com ele antes de sua morte, mencionou que havia alguém afirmando ter uma carta que podia arruiná-lo. Aludiu a uma como a que você descreve, uma que podia ser interpretada mal.
—Não deveríamos ter evitado ter um bate-papo honesto aquele dia em Laclere Park. Teríamos nos economizado algum tempo.
—Ninguém pode nos culpar por evitar falar sobre isto. Agora ao menos o estamos fazendo, não?
Dirigiram-se de volta para a casa. Através da porta aberta ouviram que Daniel Saint John dizia algo e Hampton respondia. Todos na mesa puseram-se a rir.
—O que faremos quando o chantagista for descoberto? —perguntou Vergil.
—Devolvo sua pergunta. O que pensava fazer quando descobrisse sua identidade? Apresentar a julgamento as provas que há contra ele?
Vergil enfrentou essa pergunta há tempo. Antes que Wellington tivesse demonstrado interesse, e antes de conhecer Bianca. Tanto se as razões da morte de Milton eram políticas ou pessoais, decidiu que não faria um julgamento do chantagista.
Os segredos de Milton seriam enterrados no sepulcro de Laclere Park, e o homem que fez tudo menos matá-lo seria silenciado.

 


Capítulo 18


—Se os Saint John visitarem nosso camarote, podemos dizer?
Charlotte soltou a pergunta enquanto Penelope inspecionava o cabelo de Bianca. Jane arrumou alguns cachos.
—É obvio que não. —Pen se aproximou e colocou uma mecha em seu lugar— Nenhuma palavra a ninguém, Charlotte.
Charlotte fez um gesto desajeitado acompanhado de um bico.
—Ter um grande segredo é muito menos divertido se não pode contar a ninguém. Normalmente o diz ao menos a uma pessoa, e este segredo é o melhor que jamais ouvi. Que minha amiga vai atuar em um teatro, em uma ópera… É tão deliciosamente atrevido.
—Você só se inteirou disto porque não houve maneira de te ocultar isso.
Bianca franziu os lábios. Pen não estava fazendo nenhum esforço para fingir que essa noite não representaria um risco para sua reputação.
—Vá terminar de se vestir, Charlotte — ordenou Pen— O senhor Bardi estará aqui logo para nos escoltar até o teatro. Bianca deve chegar cedo.
Bianca esperou que Charlotte saísse e depois se despediu de Jane também. Havia alguns segredos muito grandes para uma jovem inocente ou uma criada que algum dia poderia informar a tia Edith.
—Ele está aqui? —perguntou Bianca.
—O senhor Bardi? Ainda não.
—Não estou falando de meu professor de música e você sabe. Laclere está aqui?
—Meu irmão está em Londres, mas me surpreenderia se aparecesse esta noite. Sabe que não aprova isto.
Não, não o pensava. O senhor Bardi, o professor de bel canto recomendado por Catalani, ficou bastante impressionado com Bianca para pensar que já estava preparada para algumas atuações menores no cenário. Conseguiu que a incluíssem nos coros de vários espetáculos. Vergil o mimou a contra gosto, mas pediu que se mantivesse em segredo.
Ela rezava para que viesse de todas as formas. Desejava que compartilhasse algo da alegria dessa noite com ela. Era a primeira vez que ia cantar em um teatro de verdade. Era uma noite importante para ela, apesar de que fosse só um membro anônimo do coro de uma ópera cômica menor.
—Você repudiou seu afeto com esta decisão — disse Pen— Só lhe permitiu isso porque é fraco com você.
—Eu não repudiei nada, e não me parece que ele seja fraco absolutamente, já que não tem problema em estar longe de mim.
—Deveria sentar-se para suspirar na soleira da porta? Os dois chegaram muito longe para isso, e se exibisse seu interesse só conseguiria levantar perigosas especulações. Mas eu vi como te beijou quando abandonamos o imóvel, e vejo como te olha agora, e te digo Bianca, que nada mudou.
A Bianca parecia que nas últimas semanas tudo havia mudado. Via Vergil quando estava em Londres, mas não muito frequentemente. Ele visitava Pen e a Charl e às vezes se unia em diversões com elas. Na presença de todo o mundo, inclusive de suas irmãs, seu comportamento para ela era tão reservado que ninguém suspeitaria que foram amantes. Sem dúvida os outros homens jovens que visitavam a casa de Pen nunca imaginaram. Inclusive Charlotte e Nigel acreditavam que seguiam zangados entre si.
Só quando tinham breves momentos a sós a deixava ver seus sentimentos. A questão pendente ardia em seus olhos, e a paixão insatisfeita eletrificava seu discreto contato. Cada vez que se despediam, ele beijava sua mão tão brandamente como uma vez beijou seus seios. Esse breve contato tinha nela o mesmo efeito que tiveram uma vez aqueles beijos mais íntimos, deixando-a frustrada e sem fôlego.
Para piorar as coisas, ela não podia chorar sobre o ombro de ninguém em quem pudesse confiar. Pen continuava sendo uma amiga, mas só apoiou essa estreia com a esperança de que umas poucas noites em um cenário deixassem Bianca satisfeita para sempre.
Seria assim? Ela quase o desejava. Sentia-se desventurada com aquele estado de coisas. Sentia saudades de Vergil terrivelmente. Uma parte dela passava seus longos períodos de separação unicamente esperando. E não deixava de angustiá-la a ideia de que uma só palavra sua podia terminar para sempre com essa espera.
Um lacaio anunciou a chegada do senhor Bardi e Pen mandou trazer o carro.
Bianca se entreteve procurando seu xale, esperando que outro homem fosse anunciado. Não foi assim. Tremendo de excitação, reuniu-se com Pen, Charlotte e o senhor Bardi, de cabelo cinza, para dirigir-se até a Casa Inglesa de Ópera.
Separaram-se na porta do luxuoso teatro. O senhor Bardi conduziu Bianca para os camarins para que pudesse transformar-se na mulher do povo que devia representar.
Meia hora mais tarde ela se precipitava para um lado do cenário e esquadrinhava a crescente multidão. Uma parede curva de camarotes se elevava até o teto, rodeando a orquestra e o fosso. Ouvia a seu redor o alvoroço da multidão. O brilho assustador dos abajures de gás tingia a audiência de uma cor antinatural. Ela forçou a vista, tentando distinguir os rostos no camarote de Penelope.
Seu coração se afundou. Vergil seguia sem estar ali.
Retornou à sala do coro. Encontrou um local para ela e se uniu às outras vozes que começavam a afinar e esquentar-se. Realizou os exercícios mecanicamente. Seu entusiasmo era apagado e forçado, como se observasse outra pessoa preparando-se para aquela estreia.
Se ao menos ele tivesse vindo vê-la, possivelmente… Possivelmente o que? Possivelmente isso seria um sinal de que podiam viver algum tipo de vida juntos? Uma vida em que não precisasse partir sua alma em dois pedaços e depois desfazer-se de uma das duas metades.
Os corpos ao seu redor começaram a mover-se. Uniu-se ao coro que entrava no cenário e ocupou sua posição na parte de trás. Com a luz difusa, sua roupa e a multidão que a rodeava era improvável inclusive que a vissem, e não só que a reconhecessem.
Seus pensamentos melancólicos desapareceram instantaneamente quando o coro começou a cantar. Vozes ensurdecedoras, festivas, exuberantes a rodearam e se uniram à sua. Seu espírito se elevou com assombroso deleite. Elevou-se e logo empreendeu voo.
Nunca experimentou um som assim. Alagava-a como uma enorme onda de sensibilidade. As curvas do cenário e o teatro pareciam infundir à música uma complexa ressonância. Olhou suas companheiras de canto e se deu conta de que elas sentiam o mesmo e de que a densidade de suas vozes intensificava a euforia que até então só tinha conhecido em privado. Algumas a viram olhar e se sorriram ante seu assombro.
Sentia seu sangue pulsar. A música tomava o poder. Ela nunca se sentiu tão viva desde… Olhou para o camarote de Pen. «Que esteja ali, por favor, que esteja ali. Compartilha isto comigo.» Viu Nigel de pé na parte de trás, falando com Cornell Witherby.
Uma figura alta e escura se afundou nas sombras e seu coração deu um salto. Quando se moveu de modo que ficou à vista, sua decepção foi tão intensa que lhe falhou a voz. Não era Vergil, a não ser um tal senhor Siddel, que estava se insinuando no círculo de Pen o mês passado.
A atuação parecia continuar e continuar, mas ainda assim terminou muito rápido. Ela desfrutou de cada coisa. O canto, a espera nos bastidores, a camaradagem com os outros, o brilho dos abajures a gás, e a umidade das salas traseiras. O teatro se transformou em um lugar à parte, onde a vida e as emoções se intensificavam igual a que ocorreu no imóvel durante aqueles dias de intimidade. Ela saboreou cada detalhe e ignorou a decepção que provocava o fato de que Vergil a abandonasse aquela noite.
Finalmente, depois do último pano de fundo, encontrou-se se apertando dentro de uma das salas do coro com as outras mulheres, trocando-se para vestir-se com seus próprios objetos. A excitação transformava o cansaço de todas em uma espécie de vertigem, e a maioria dos risinhos tolos estava relacionado com o rumor de vozes masculinas que havia fora no corredor.
—Os meninos esperam impacientes — disse a seu lado uma soprano— Você é nova, verdade? Esperam-lhe sua mãe ou sua irmã?
—Meu professor estará me esperando.
—Menos mal. Uma garota tão bonita como você… Não sabem nos respeitar. Acreditam que somos todas iguais. Esquecem suas maneiras às vezes.
Ela duvidava que alguém pudesse esquecer suas maneiras com o senhor Bardi. Seus olhos negros se voltavam satânicos quando se zangava.
Infelizmente, o senhor Bardi não se achava na porta da sala quando ela saiu. Entretanto, havia ao menos vinte homens jovens. Estudantes, empregados de escritório e advogados jovens que formavam redemoinhos no corredor esperando seus pássaros cantores favoritos. Flores, palavras carinhosas e homens que avançavam diretamente para ela pressionando-a. Rodeavam-na por ambos os lados.
—Permita passar a jovem dama, cavalheiro. —Uma voz fria se ouviu do fundo.
Ela olhou através da desordem e viu uns olhos azuis que a contemplavam. Finalmente veio. Lançou-se a seus braços, mas sua expressão a fez deter-se. «Vê? — diziam seus olhos— A isto é ao que estará submetida.»
Ouviram-se murmúrios.
—Laclere… Visconde… — Alguns dos jovens se afastaram.
Sentiu a decepção como uma punhalada. Sua intenção ao lhe permitir aquela atuação foi que ela conhecesse as humilhações, não o prazer. Isso a entristeceu tanto que sucumbiu ao impulso de lhe devolver o golpe e privá-lo de sua satisfação.
Ignorou a mão que Vergil estendia e se voltou para um estudante de cabelo curto e ruivo que havia a sua direita. Este a oferecia duas rosas amarelas. Disse que podia sentir-se adulada por isso, como todas as mulheres cantoras, e decidiu aceitar esse precioso presente.
Pegou as rosas agradecendo. Animados, e dirigindo olhadas precavidas para Vergil, que estava rondando e vigiando, outros dois homens jovens se aproximaram para felicitá-la.
Um homem algo mais velho se introduziu no grupo. Observou-a de forma penetrante e depois lançou a Vergil um olhar mordaz. Apesar de todo o amor que sentia pela música, seu primo Nigel não parecia contente de encontrá-la ali.
—Pensei que era você, mas não podia acreditar — disse isso, afastando a um lado um jovem e ansioso admirador— Laclere deve tirá-la daqui.
—Estou preparado para acompanhar minha pupila até em casa, mas será difícil recolhê-la e levá-la.
—Não teria esperado que reagisse de um modo tão estrito — brincou ela com Nigel— Você conhece melhor que ninguém quão importante é atuar.
—Atuar é uma coisa, fazê-lo aqui é outra. O que pensa você, Laclere? Confio em que esta noite seja a última vez.
Sua rixa foi interrompida por outro homem que se escorria para diante. Era o senhor Siddel. Era da idade de Vergil, e de uma constituição e aspecto similar. Possivelmente inclusive mais atrativo. Mostrou seu interesse em conhecê-la durante o último mês, vagando perto dos círculos de Pen. As advertências que lhe fez Pen falando dele como de um tipo perigoso eram desnecessárias. Possuía um talento especial para conseguir que inclusive os cuidados sutis parecessem uma invasão.
—Pareceu-me reconhecê-la, senhorita Kenwood. —Ficou frente a ela de modo que não ficava lugar para ninguém mais— Sabia que estudava com o senhor Bardi, mas nunca ouvi que atuasse. —Seu tom mostrava o deleite que lhe produzia o descobrimento.
Quatro passos mais longe o perfil de Vergil se voltava mais severo.
—Olhe para aqui, Siddel — fanfarroneou Nigel.
—É um experimento, para poder ver o que se sente ao cantar com um grande coro.
—Certamente. Por que tomar lições com Bardi a menos que seja muito a sério? Possivelmente algum dia a vejamos convertida na protagonista principal de alguma das grandes casas de Londres.
Não disse nada inapropriado. E tampouco seu tom podia criticar-se. Mas Bianca notou algo especial na maneira em que se dirigia a ela e não passou despercebida a insultante dupla intenção de seu comentário.
De repente Vergil se achava cara a cara com o senhor Siddel.
—Tem que nos desculpar. Minha irmã está esperando à senhorita Kenwood.
—É obvio Laclere. Perguntava-me, a princípio, como é que havia retornado você aqui. Já não é seu estilo, verdade? Devia ter me dado conta de que só o dever seria a causa de que o amparo de um santo se fizesse público.
Jogava com as palavras como se estivesse participando de um jogo de engenho, pois quase cada uma delas tinha um duplo sentido. Vergil assumiu uma atitude fria para enfrentar Siddel.
—Vai muito rápido, Siddel — disse Nigel, esquadrinhando Bianca com um olhar de soslaio receoso— Esteve perto de uma ofensa imperdoável, e se Laclere não te chama à atenção a respeito disso, eu sim o farei.
—Siddel não pretendia ofender. Simplesmente sua língua vai mais depressa que seu cérebro. Esse foi o lastro de sua vida desde que era um moço, mas o cérebro normalmente chega a tempo para evitar um desafio. —Vergil baixou as pálpebras— Estou seguro de que a falta de sensatez desta noite pode ser atribuída a que bebeu muito porto. Estou certo, Siddel?
—Sem dúvida. Minhas desculpas, senhorita Kenwood. Doeria-me muito saber que minha pobre tentativa de usar um pouco de humor a ofendeu de alguma forma ou me afastou de seu afeto. —Fez uma reverência com um irônico sorriso e partiu a toda pressa.
Nigel se apressou a ir atrás dele.
—…Inexcusávelmente rude… —o ouviu dizer.
—Abre os olhos — replicou Siddel com uma risada.
Vergil ofereceu a mão outra vez.
—Já teve o bastante? Podemos partir?
—Sim, acredito que agora sim.
Habilmente a resgatou da multidão. Seu carro estava esperando.
—Desfrutou? —perguntou depois de ajudá-la a subir. A decepcionou que se sentasse em frente, e não a seu lado. Na escuridão ele se converteu em uma sombra imaterial mal insinuada pela tênue luz que ocasionalmente penetrava através da janela enquanto avançavam.
—Ao princípio não estava tão excitada como esperava, mas assim que nos encontramos no cenário foi tão emocionante que pensei que ia estalar.
—Não estou falando da atuação, Bianca.
Não, não falava disso. Seu tom tenso já o tinha sugerido.
—Não acredito que esses homens soubessem nem sequer quem sou, para eles só fui mais uma entre as outras cantoras que saíram pela porta quando estavam perto. Além de Nigel e do senhor Siddel, duvido que ninguém mais se fixasse em mim quando estava na parte posterior desse coro.
—Estava tão exuberante que esperava que a qualquer momento fosse voar. Pode ser que não a reconheceram, mas não cabe a menor dúvida de que se fixaram em você.
—Você me viu?
—Estava no camarote de um amigo.
—Estive… — Se interrompeu e pôs-se a rir— Ia perguntar se estive bem, mas naturalmente não há maneira de dizê-lo.
—Esteve magnífica, querida. E parecia que a metade de Oxford e Cambridge e a maioria dos empregados de escritório aprendizes de Londres se mostraram de acordo.
—Parece ciumento, Laclere.
—Não acredito que seja a palavra correta para esta noite, Bianca. Ciúmes é o que sinto quando vejo o interesse que mostram por você os amigos de Pen, e sei que não posso impedir, pois só poderia com um matrimônio que não aceitará. Ciúmes é o que experimento ao ver seu primo te cortejando abertamente. Esta noite não estava ciumento. Estava absolutamente escandalizado pela familiaridade que os estranhos se sentiam livres de mostrar quando saiu da sala do coro. Esta noite me pus furioso quando ouvi as insinuações que um mulherengo bêbado como Siddel te fez, e tudo porque você se entretinha nesse corredor para te pavonear de sua independência na minha cara.
Uma ira tensa se derramava pelo carro, levando as duras palavras. Ao princípio seu coração ficou doente ante o ataque, mas depois se sentiu cada vez mais zangada consigo mesma até ficar completamente abatida.
—Acreditei que queria que me entretivesse. Pensei que queria que visse tudo isso para enfrentar à realidade dessa vida e comprovar a degradação que se sente ante os olhares lascivos dos admiradores.
—Nunca quereria ver nenhum homem te olhando da forma em que lhe olhavam esses meninos.
—Então por que não os deteve?
—A pergunta é por que não o fez você. Estava ali de pé imaginando que me faria sentir como um parvo se tentava te tirar daí. Estava me perguntando se através de seu comportamento estava me dizendo que já tomou uma decisão…
—Não!
—…E que eu podia me afirmar em público como seu tutor e de nenhuma outra forma.
Seus olhos se nublaram. Aquele não era Vergil. Era seu fantasma, mostrando como reage um homem quando sente seu orgulho ferido.
—Não quero seguir falando disto — sussurrou ela, rezando para que se detivessem antes de dizer o tipo de palavras que nunca poderiam ser reparadas.
—Eu sim. Temos muito do que falar me parece.
O carro se deteve.
—Não, Laclere. Não quero ter uma briga contigo. Estou muito cansada esta noite. Dou a você boa noite.
Escapuliu pela porta. Ele a seguiu dois passos mais atrás.
—Não me despedirá como a um desses pretendentes com a cara cheia de pústulas, Bianca.
—Lástima. —encaminhou-se pelo atalho iluminado com velas que conduzia à entrada. O primeiro andar estava fechado. Todos os outros deviam ter se retirado. — Dado que esta é a casa de sua irmã não posso te negar a entrada. Entretanto, não vou submeter-me a suas rixas e insinuações, Laclere. Estou muito cansada para discutir e muito ferida para ser inteligente. Conseguiu converter uma das noites mais importantes de minha vida em algo vergonhoso e sórdido. Era glorioso, e fui uma idiota ao pensar que só sua presença podia fazer que fosse melhor. Em lugar disso arruinou tudo. Nunca poderei perdoar sua crueldade.
Suas acusações o fizeram deter-se em seco. Algumas das nuvens de tormenta desapareceram de seus olhos.
—Se fui cruel, peço desculpas. Vamos à biblioteca, Bianca. Quero falar contigo.
—Se pontifique e dê lições a si mesmo, querido tutor. Eu vou à cama.
Ele a agarrou enquanto subia a escada.
—Volta aqui, Bianca.
—Vá, Laclere. Não faça uma cena ou despertará toda a casa.
—Despertarei toda a maldita cidade se quiser.
Ela liberou seu braço.
—Cale a boca, Vergil. Boa noite.

«Cale a boca.» Onde demônios aprendeu palavras como essas?
Ele sabia onde. Desses jovens cheios de vida, comovedores, adoráveis e perfeitas imagens de romântica sensibilidade que gravitavam ao redor da casa de Pen como abelhas que acabam de descobrir um novo jardim em flor.
Com grandes pernadas entrou na biblioteca. Nem a lareira, nem as velas estavam acesas, mas de todas as formas encontrou o porto. Esteve muito longe de resultar tão reconfortante como pensava que seria e tampouco acalmou sua irritação.
Seu mau humor não era só por causa de Bianca, tinha que reconhecer. No dia seguinte devia enfrentar uma tarefa desagradável em sua busca da verdade a respeito da morte de Milton. A perspectiva da entrevista que o esperava o fazia sentir-se doente, e entrou no teatro ressentido e zangado por isso tanto como pela atuação de Bianca.
Seu mundo ameaçava fazendo-se pedaços. O centro de cada relação de amizade e de amor parecia ter se voltado tão inseguro, cheio de duplicidade e falso como sua própria vida.
Aquela noite descobriu que Bianca estava escorrendo de sua vida também. Vivia aqui, praticava com o senhor Bardi, fazia novos amigos e desfrutava de sua juventude, e cada nova experiência a empurrava mais longe dele. Podia sentir o abismo que se alargava. Às vezes se perguntava se ela recordava que se supunha que estava considerando a possibilidade de casar-se com ele.
Teria proibido essa estréia se pudesse. Teria estrangulado Bardi, ou ao menos o teria subornado se tivesse imaginado que o professor proporia uma coisa como essa.
O encantou. Certamente que sim. Catalani havia dito uma vez que a magia que se criava entre o público era dez vezes maior entre os intérpretes. Como devia ser estar ali de pé rodeado pelo som retumbando no teto? Como estar submerso em um oceano de sensações. Viu o assombro de Bianca e soube com certeza que em uma noite os pontos de vantagem se inclinaram contra ele nessa competição por ela.
Sua mente recordava o excitado sorriso ao vê-lo no corredor, e depois seu refúgio em uma pose fria ao ver sua ira. Esteve tão absorto em seu ressentimento que não chegou a dar-se conta a tempo de quão belo era esse sorriso, nem de que existiu exclusivamente para ele.
A pior parte de seu ressentimento se quebrou e morreu. Deixou a um lado o porto, acalmando-se por razões que nada tinham a ver com a bebida. Evocou esse sorriso uma e outra vez, esse sorriso substituído pela dor.
Seu comportamento foi indesculpável. Deliberadamente cruel, se quisesse ser honesto consigo mesmo. Reagiu aos acontecimentos daquela noite como se ele fosse o centro de tudo, quando na realidade foi simplesmente um convidado na festa de outra pessoa. Salvo pela felicidade que ela demonstrou ao vê-lo realmente podia dizer-se que ele não tinha nada o que fazer ali. Possivelmente ele sabia. Talvez provocasse aquela discussão para assegurar-se de que seu papel secundário não seria o de um mero figurante.
O silêncio reinava na casa. Desejou que algum dos criados estivesse ali. Nesse caso o enviaria para pedir a Bianca que descesse por um momento. Não queria partir dali aquela noite com as coisas tal como estavam.
A grandes passos saiu até o corredor. Alguém fechou a porta principal, um sinal seguro de que nenhum criado apareceria. Não havia velas iluminando o caminho, mas conhecia aquela casa tão bem como a sua própria e podia mover-se às cegas.
Pulsava o silêncio. Ela não devia estar dormindo ainda. Iria se desculpar, e depois sairia pela porta do jardim.

Não estava dormindo. Nem sequer se preparou para meter-se na cama. Estava sentada com uma bata em uma poltrona junta ao fogo. Quando ele entrou, ela não demonstrou a mais leve surpresa, tão somente levantou seus olhos tristes. Era como se tivesse estado esperando-o.
Fez um gesto de saudação, depois baixou a vista para seu colo. Suas mãos descansavam ali entrelaçadas.
—Não mais lições, Laclere.
—Não.
—Então o que? É perigoso para você estar aqui.
Parecia tão desventurada. Teria a agarrado em seus braços, mas não se atrevia a responder por si mesmo se a tocava.
—Quero me desculpar. Tentei arruinar sua noite. O prazer que sentia… Me assustou.
Ela se levantou e caminhou pensativamente ao redor do quarto.
—Também me assustou. Tudo isto me assusta. É uma tortura. Não me diga que posso terminar com uma palavra. Já sei. —Lançou a ele um olhar acusador— Esta noite me falou como se não me conhecesse absolutamente. Se me converti em uma estranha para você, não me jogue a culpa. Não sou eu a que me mantenho longe.
—Eu não me mantenho longe.
—Sim o faz. Apenas te vi nas últimas semanas. Não me disse nenhuma palavra de que viria esta noite. Só fica me perguntar se me esqueceu, e me sentir agradecida pela pequena consideração que mostra comigo quando me visita.
—Sabia que seria assim, Bianca. Dificilmente poderia demonstrar meu afeto e anunciar ao mundo o que ocorreu. Dado que não posso, não me faz graça a ideia de me sentar no salão de Pen entre outros homens que podem te cortejar abertamente enquanto eu devo interpretar meu papel de tutor.
—Você poderia arrumá-lo…
—Não.
—Poderia ao menos me beijar ao ir. Poderia me dar tão somente um pequeno beijo para me mostrar que não se tornou indiferente.
—Estou longe de ser indiferente, é por isso pelo que nunca poderia te dar tão somente um pequeno beijo.
Ela continuava caminhando de cima abaixo, como se um espírito inquieto a conduzisse e o quarto lhe resultasse muito pequeno. Olhou-o com um brilho de desafio.
—Fiz de propósito, sabe. Provocar esses jovens. Aceitar as rosas e falar com eles. Queria te demonstrar que não representam nenhum perigo para mim, nem para minha virtude. Assim é como minha mãe tratava os homens que a perseguiam. Com suficiente educação, mas mantendo uma firme distância. Sem dúvida poderia funcionar comigo também.
—Sem dúvida poderia ser, mas as hipóteses do mundo teriam mais força que suas ações. Em qualquer caso, eu não posso suportar vê-lo.
Ela enrugou a testa.
—Deixou-o claro. Essa é a outra razão pela que me comportei assim esta noite, acredito. Para te pôr ciumento.
—Para me pôr ciumento?
—Sim, acredito que sim. A verdade é que acredito que sim.
—Bianca, estive me censurando mesmo por ter reagido mal. Desculpei-me por minha desajuizada atitude esta noite e você aceita essas desculpas. E agora acrescenta alegremente que possivelmente tive razão desde o começo.
Ela deu de ombros.
—Não posso dizer honestamente que te pôr ciumento não teve nada a ver com meu comportamento, isso é tudo.
—Além de nossa infelicidade, o que esperava conseguir com isso?
Ela caminhava tão perto que seu perfume e a bata de seda formaram uma nuvem em torno dele.
—Bom — disse ela, puxando os laços de sua bata com lentos e brincalhões movimentos— Por um lado parece que serviu para que viesse ao meu quarto, não?
Seu sorriso pícaro quase lhe parou o coração. A porta estava a cinco passos atrás dele, mas de repente parecia que se achava a vários quilômetros.
A bata caiu ao chão. Não estava nua. Um espartilho lhe rodeava o torso e os quadris. A regata e as anáguas criavam um magro tecido que cobria seus seios e suas coxas. E umas meias brancas presas por umas ligas que chegavam até os joelhos.
O mundo ficou reduzido a ela, ele e o espaço que havia entre ambos. O descarado desafio que havia nos olhos dela fez que o corpo dele se acendesse de desejo.
—Não é prudente tentar um homem que arde de ciúmes, querida.
Ela baixou as pálpebras.
—Enquanto esteja ardendo, Laclere, não me importa por que.
Maldição. Caminhou para ela.
—Parece que é perigosa e um pouco malvada, depois de tudo.
—Só contigo, Laclere.
—Acaba de confessar o contrário.
—Era diferente, não? Não fui realmente malvada com eles. Mas sim os usei para provocar você, o qual é injusto.
Estavam tão perto como era possível sem chegar a tocar-se.
—Do mais injusto.
—É muito peralta por minha parte?
—Muito peralta.
—Suponho que não há nada a fazer, Laclere. Terá que me castigar.
Com uma careta de arrependida resignação subiu à cama. Agarrou várias almofadas e os colocou sob seu estômago, de forma que seu traseiro ficasse levantado para receber a penitência.
Girou a cabeça para olhá-lo e sua expressão o excitou ainda mais que a erótica posição. A ereção de sua vida empurrou contra sua roupa. Seu sangue pulsava sem piedade.
Acariciou-lhe a perna, agarrou a borda de suas anáguas e as rasgou. Os farrapos de gaze saíram voando de suas nádegas e coxas. Ele a puxou e as almofadas lhe levantaram os quadris de modo que teve que dobrar-se e esticar as pernas para manter o equilíbrio. Ajoelhou-se junto a ela e beijou os suspensórios de sua regata até que seus seios nus apareceram altos e famintos por cima da borda de seu sutiã. Ele os lambeu e os puxou para fora brandamente.
Depois se levantou e se despiu, sem afastar o olhar do bonito corpo ali estendido que se abandonava a ele. Ela viu cair a jaqueta e o pescoço da camisa com os olhos tão ardentes como os dele. O perfume de sua excitação chegou a ele em uma rajada. Deitada ali, vulnerável e exposta, já flexionava sutilmente os quadris com um ritmo sexual.
Tirou seu relógio de bolso do colete e olhou a hora, depois o colocou perto da vela que havia junto à cama.
—Rápido — sussurrou ela, elevando uma mão em sua direção.
—Não. —desabotoou a camisa e tirou a roupa interior. Ajoelhou-se entre suas pernas. Subindo um tornozelo dela sobre seu ombro, começou a beijar a parte interior de sua perna— Isto não vai ser rápido absolutamente.
Ele esfregou seu rosto contra suas costas e a beijou ao longo de toda a coluna. O tentador espartilho foi desabotoado em algum momento durante essa noite muito quente. Seus beijos avançaram sobre suas nádegas e desceram por suas coxas até a meia que seguia cobrindo uma de suas pernas.

Ela não estava dormindo, suspirou satisfeita e moveu as pernas, voltando a adotar a posição sobre as almofadas com a que tudo começou, convidando-o a repetir os novos beijos íntimos que lhe mostrou essa noite.
Seus braços esticando-se para tocar sua cabeça, a pressão de sua bochecha contra os lençóis, seu corpo arqueando-se e oferecendo-se… Para sua própria surpresa essa sensualidade relaxada o fez ficar duro outra vez.
—Amanhecerá logo. Devo ir. —ficou de costas sobre a cama e a agarrou entre seus braços. A chegada do dia o recordou o encontro que tinha para aquela manhã. Não queria partir, e não só porque isso significava deixar Bianca.
Ela suspirou mal-humorada, como se as revoluções da terra tivessem sido desenhadas unicamente para limitar seu tempo juntos.
—Voltará esta noite?
—Não.
—Ninguém se inteirará. Ficou esta noite e…
—E se formos sortudos, tudo irá bem. Repeti-lo seria tentar a sorte. Nada mudou Bianca.
Não gostou de ouvir isso. Beijou-o com tristeza.
—Parece que seria difícil tentar a sorte mais do que já acaba de fazer.
—Decidi que se forem me enforcar, melhor seria que fosse por uma libra e não por um penique.
Afastou-a com suavidade e se levantou da cama. Ela o observou vestir-se com uma expressão sonolenta. Ele tentou não revelar sua aversão por aquele momento. A hora que marcava o relógio, a fuga secreta, a discrição que sufoca… O recordava muito às visitas que recebem esse tipo de mulheres que nunca se converterão em esposas, e ela batia as asas como uma mariposa noturna ao redor da chama de uma vida que frequentemente conduzia nessa direção.
Ficou de pé junto à cama e a olhou. Imagens daquela noite passaram através desse olhar. Ele tomou liberdades que muitos homens jamais tomariam com suas esposas, e isso confundia ainda mais a forma em que ele devia contemplar essa relação e seus direitos com respeito a ela.
Acariciou-lhe a bochecha com o dorso dos dedos. Era tão adorável. Tão alegre e inocente em sua paixão. Conheceu mulheres que podiam degradar a sensualidade de um simples beijo. O assombro de Bianca podia converter o mais exótico jogo amoroso em um ritual sagrado.
—Dizia a sério? Quando fazemos amor, diz a gritos que me ama. Todas às vezes o fez. É consciente de que diz isso? — Se surpreendeu ouvir-se fazer a pergunta em voz alta.
—Se não o dissesse a sério, não estaria agora mesmo saindo de minha cama. Sei que me arrisco. Jamais teria feito nada disto só por prazer.
Ele supostamente já sabia. Entretanto, era bom estar seguro. Dava um pouco mais de esperanças sobre como acabaria aquilo e o amor era uma razão melhor que o puro desejo se seu comportamento acabasse por destruir a ambos.
—Bom, se pensar que me ama, suponho que posso esperar um pouco mais, querida.
Os olhos dela brilharam com afeto e preocupação. Ninguém se preocupou com ele com tanta transparência como ela.
—Esperar para que, Laclere? Para renunciar a mim, ou para decidir corresponder a meu amor?
Ela ainda podia deixá-lo atônito.
—Ambas as coisas, suponho. Provavelmente logo terá que ser uma ou outra.
Saiu ao corredor escuro e silenciosamente fechou a porta atrás dele. Só uma luz tênue penetrava através das janelas inferiores. Encontrou o corrimão e deslizou escada abaixo, depois se dirigiu para a escada dos criados. Achava-se de novo abaixo, desta vez na cozinha.
Percorreu seu caminho com mais insegurança no andar inferior e ouviu o ruído de seus passos retumbando nas paredes. Perto do lugar onde devia encontrar a porta tropeçou com outro corpo que avançava a provas.
—O que é… Quem demônios…
—Maldição! Vigia onde põe…
Ambos ficaram gelados.
—Witherby?
—Laclere!
—Chegando ou indo, Witherby?
—Oh, Deus. Laclere. Isto é do mais incômodo.
—Suponho que indo, a julgar pela hora. A porta está aqui acima.
—É obvio. Jesus. —Cornell Witherby deu uns poucos passos para trás e se deteve.
—Vem? Acredito que deveríamos discutir isto fora.
Quando se acharam ao ar fresco, Witherby tentou dar uma explicação.
—Já sei o que isto deve parecer.
—Parece que iniciou uma aventura com minha irmã Penelope. Trata-se de Penelope, verdade? Porque se fosse Charlotte te mataria, e odiaria ter que fazer isso a um velho amigo.
—Charlotte! Deus! Por quem me toma? Quanto a Pen, asseguro que tem meu mais profundo afeto e admiração. Uma deusa não poderia receber mais adoração que a que eu lhe professo. Possui uma alma tão doce, gentil adorável, e…
—Sim, sim. A porta do jardim está por aqui, ou é que não reconhece o caminho na escuridão?
—Asseguro-te que nunca antes…
—Estou seguro de que entende que a discrição é essencial. Se o conde descobrisse este assunto, usaria-o para lhe retirar sua ajuda, que já por si é pouco substanciosa.
As botas de ambos davam chutes às rochas, pontuando o silêncio.
—Está sendo muito pormenorizado com isto, Laclere. Encontro-me, é obvio, cheio de alegria por sua aprovação, mas pensávamos que mostraria menos simpatia por nós.
Vergil se deteve quando chegaram ante o caminho.
—Preferia não saber o bastante para aprová-lo ou desaprová-lo. Entretanto, minha irmã teve muito pouca felicidade em sua vida. Se ela te quiser, não interferirei.
Embora fosse de forma sutil, a noite se tornou menos escura. Vergil podia distinguir agora com mais claridade a alta e esbelta figura de Witherby, e inclusive apreciava algo de sua expressão.
—Isto não é o que esperávamos Laclere. Me atreveria a dizer que Pen estará tão assombrada como eu.
Vergil deu a volta para retornar a casa.
—Se assegure de que não chegue a me arrepender de me mostrar tão aberto de mente.
—Farei-a tão feliz como sou capaz — disse Witherby— E já que é tão generoso me absterei de te perguntar por que saía dessa casa à mesma hora e através da mesma porta que eu.

***

A pistola soou naquele dia de outono. A bala deu no tronco de uma árvore do bosque que havia atrás da academia de esgrima de Chevalier Corbet.
—Não praticou bastante — disse Vergil.
Dante, que se achava de pé a seu lado, voltou a recarregar.
—Para alguns de nós é só um esporte, Verg. Não tenho intenção de matar um homem em um duelo.
Vergil apontou a seu objetivo.
—E se algum homem pretende te matar?
—Me atreveria a dizer que se nenhum marido me desafiou até agora, ninguém o fará.
Vergil disparou sua pistola. A bala deu justo no centro do papel enganchado à árvore.
Dante deu um assobio de apreciação.
—Já vejo que você sim esteve praticando.
—Se algo vale à pena, vale a pena fazê-lo bem.
Dante riu.
—Estou de acordo. Simplesmente você e eu preferimos fazer coisas distintas.
Voltou a ocupar seu lugar. Vergil observou sua postura descuidada. Só pela graça da providência Dante não necessitou nunca pôr em prática essa habilidade.
Disparou a pistola. Dante se afastou a um lado.
—Não havia tornado a carregar.
—Não.
A Dante chamou a atenção a resposta. A mão que sustentava a pistola caiu a um lado.
—Tem esse ar na cara. O que aconteceu desta vez? Tornou a vir alguém para te pressionar para que pague alguma de minhas dívidas?
—Não é isso.
—Bom, seja o que seja solta já. Sugeriu que deveríamos disparar, mas não acredito que um par de balas justifique ter cavalgado até Hampstead, não acha?
Vergil guardou seu revólver no estojo.
—Tenho que te perguntar algo. É importante que me responda com honestidade.
Dante inclinou a cabeça para trás e fechou as pálpebras.
—Então pergunta.
—Estive tentando descobrir a verdade a respeito da morte de Milton. Passei meses fazendo. Estou convencido de que foi chantageado.
—Chantageado! Que segredos podia ter Milton? Suas ideias políticas eram radicais, mas as expressava em cartas e essas coisas, todo mundo sabia que era completamente inofensivo.
—Não foi por questões políticas. Acredito que descobri por que e como foi chantageado, mas os detalhes não importam. Entretanto, ainda falta uma peça. E acredito que você pode me proporcionar essa peça.
—Acha que tive algo a ver nisso? Essa é uma insinuação terrível. Seria espantoso que o único homem a quem tivesse que desafiar a duelo fosse você, Vergil.
—Não acredito que tenha a ver com isso de forma intencional. Confia em mim, se pudesse evitar esta conversa, faria. De fato a estive evitando durante muito tempo.
—Possivelmente deveria continuar fazendo-o. Não pode conseguir que ele volte.
—Isto vai além dele.
—Diabos. —Dante franziu o cenho e deixou sua pistola no estojo— O que precisa saber?
—Estive fazendo algumas perguntas aos criados. Disseram-me que há um ano levou certa visita a Laclere House em Londres. Uma mulher de boa família. Quem era?
—Não falo de minhas mulheres com outros homens, nem sequer contigo.
—Isso é elogiável, mas desta vez deve fazê-lo. Deixou que alguma mulher passasse a noite nessa casa?
O rosto de Dante assumiu uma máscara de ressentimento.
—Se o fiz, pode estar seguro de que não se tratava de uma americana virgem.
—Isto não tem a ver com nossos defeitos privados, Dante. Quero saber se alguém mais além dos membros da família teve acesso ao quarto e ao escritório de Milton antes de sua morte. Esteve na casa de Londres com uma mulher enquanto ele se achava em Laclere Park?
—O que está insinuando? Que ela…
—Que alguém, de algum jeito, conseguiu cartas de amor dirigidas a Milton. Uma mulher foi até seu casal, fazendo-se passar por Pen, para confirmar o que já suspeitava, e depois encontrou a forma de conseguir provas que o demonstrassem. Com essas provas chantageou Milton.
—Cartas de uma amante? Milton? Vivia como um monge quanto a mulheres se refere. De verdade, Verg…
—Já não somos moços, Dante. E tampouco meninos. Não se faça de ignorante. Apesar de seus cuidados e sua discrição eu suspeitava. E acredito que você também.
Dante lhe lançou um olhar de ódio.
—Se estiver sugerindo que eu penso…
—Você sabe o que estou sugerindo. Foi uma tragédia para nosso irmão viver em um mundo onde inclusive sua própria família tinha que negar que era o homem que era. Teve que esconder essa parte de si mesmo inclusive ante nós, e por isso quando crescemos se afastou de nós e dos outros.
Dante deu a volta e contemplou o papel enganchado à árvore.
—Maldita seja. Basta. Não quero falar disto.
—Ninguém quer fazê-lo. Mas tampouco podemos permitir que os homens estourem o cérebro quando seus segredos são descobertos e se sintam ameaçados. É um pecado permiti-lo. E o certo é que o silêncio e a vergonha mataram Milton antes que o fizesse esse revólver. Preferiria vê-lo enforcado a permitir que essa pessoa que o acossou saia com a sua. Agora, diga-me isso maldita seja. Quem era ela?
Dante sacudiu a cabeça, consternado. A ira e o assombro lutavam em sua expressão.
—Um entretenimento, chamou-o. Dizia que sempre tinha sentido curiosidade pelo velho casarão, e que nunca o viu por dentro. Não havia festas ali há muito tempo, pelo que eu podia recordar. Perguntou-me se podia lhe mostrar o interior da casa.
—Ficou?
Dante sorriu ironicamente com certa repugnância.
—É obvio.
—Toda a noite?
Assentiu.
—Enquanto dormia possivelmente ela estava acordada.
—Não acredito. Estou seguro de que te equivoca.
—Está? De verdade?
Dante cruzou os braços e olhou o chão.
—Seu nome, Dante.
Ele suspirou e sacudiu levemente a cabeça outra vez. Sua mandíbula se esticou e uma labareda de fúria apareceu em seus olhos.
—Se estiver certo, a muito cadela me usou para destruir meu próprio irmão.
—Você o ignorava. Não se culpe…
—Não o diga — grunhiu Dante. Furioso levantou uma mão para interromper as desculpas, e também em sinal de advertência— Simplesmente não diga. — Deixou cair à mão, e afrouxou também sua ira. Só a dor permanecia em sua expressão. — Era a senhora Gaston, Vergil.

Capítulo 19


Nigel havia dito que planejava voltar para Woodleigh uma vez mais, por isso Bianca se surpreendeu quando foi anunciado vários dias depois de sua secreta estreia.
Ele entrou no salão com uma expressão séria. Conversou durante um momento com Pen e Charlotte, mas era óbvio que uma missão importante o distraía. Finalmente perguntou a Pen se podia falar com Bianca a sós. Bianca se deu conta de que Pen temia que Nigel pretendesse declarar-se. A contra gosto partiu com Charlotte.
Nigel caminhava de cima abaixo frente à Bianca. Parecia um homem a ponto de lhe dar uma bronca, mais que a ponto de lhe fazer uma proposta.
—Confio em que não tenha repetido sua atuação no cenário.
—Uma vez mais, a noite seguinte. Por algum tempo não há outras planejadas.
—Siddel esteve dizendo às pessoas. Fala disso como se se tratasse do capricho inofensivo de uma moça, mas temo que para a sociedade seja igualmente chocante.
—Não se preocupe por minha reputação, Nigel. Já tenho a todos os Duclairc fazendo isso por mim.
—É precisamente a forma em que os Duclairc dirigem sua reputação o que me preocupa. —ficou frente a ela e deixou escapar um profundo suspiro— Vai obrigar-me a dizer o que não pode mencionar-se sem ser pouco delicado? Está em poder de um homem falso e perigoso, e que influiu em você da maneira mais desonrosa.
—De quem está falando?
—De Laclere, é obvio. Suspeitava que te pretendesse para seu irmão, e isso já era bastante inquietante, pois Dante só teria te trazido infelicidade. Mas era uma farsa, dou-me conta agora, para dissimular um plano muito mais vergonhoso. Me amaldiçoo por não ter visto antes seu jogo e por permitir que as coisas tenham chegado tão longe.
—Esta família só me mostrou amizade e afeto.
—Você não é um deles. Não é de seu sangue, nem de seu mundo. A honra que dão a suas mulheres não se estende a você também. É uma estrangeira e de uma classe social inferior, e isso te faz vulnerável.
—O visconde nunca se comportou comigo de uma forma que eu possa considerar desonesta.
—Interpretou o rol de protetor de uma cantora a outra noite. Que tenha te permitido estar ali e depois viesse te visitar como amante…
—Seu dever é me proteger. Sou sua pupila.
—O qual faz ainda mais viável o fato de que se aproveite de você. — Reatou seus passeios— Sou seu único parente na Inglaterra, Bianca. Corresponde-me fazer todo o possível para evitar isto. Planejei esperar até seu aniversário para lhe pedir isso porque sabia que Laclere não o aceitaria. Entretanto, acredito que é imprescindível que esteja além de sua influência de uma vez. Acredito que será melhor que nos casemos agora.
Estava se cansando de que os homens lhe fizessem propostas como essa. Pela terceira vez ocorreu algum tipo de coação externa que requeria que sua reputação fosse salva mediante um casamento precipitado. Acaso os homens ingleses não saberiam fazê-lo de um modo normal? Era necessário que houvesse acontecimentos que os obrigassem a fazer essa oferta?
—Nigel, está alterado.
—Me escute, Bianca. Tenho muito carinho por você, e acredito que eu também te importo. Além disso, temos interesses similares. Estou seguro de que seu avô viu a possibilidade de que existisse uma mútua simpatia e esperava que descobríssemos um ao outro. Essa era a única razão para converter Laclere em seu tutor e não a mim. Para deixar o caminho livre.
—Pode ser que esteja certo, Nigel, mas seria doentio casar-se para cumprir com os desejos de um homem morto.
Ele ouviu o princípio do rechaço em sua resposta. Isso provocou um olhar severo, ao tempo que detinha seu passeio.
—Acredito que deveria considerar minha oferta seriamente, prima. É por seu próprio interesse.
Algo na forma de olhá-la a assustou. Uma pequena rajada de perigo revoou por sua coluna.
—A considerarei, e me sinto adulada, mas me sinto obrigada a te dizer que é improvável que a aceite.
A boca dele se torceu em uma careta de desprezo.
—É por ele, verdade? Crê que está apaixonada, não?
Ela queria negar, mas a mentira se afogou em sua garganta. Sua expressão disse que ele de todos os modos não acreditaria.
—Vi-a. Quando ele se encontrou contigo atrás do cenário, eu estava no corredor. Vi quando se deu conta de que ele estava ali. — aproximou-se uns passos e ela instintivamente se tornou para trás. Agarrou seu queixo e levantou seu rosto para poder inspecioná-lo. — Não posso permiti-lo. Ele não pode te ter como uma amante. Ou prometeu casar-se contigo?
—Não tenho intenção de me casar com ninguém por agora. Quero continuar com minha formação.
—É o que pensava. Ele já te corrompeu. Maldito seja esse homem. Devemos te tirar daqui de uma vez.
—Não irei a nenhuma parte, Nigel.
A firmeza de seu tom o surpreendeu. Observou-a com as pálpebras entreabertas. Esboçou um magro sorriso, que lhe deu a aparência de um réptil.
—Devo insistir. Ele sem dúvida romperá seu coração, Bianca. O melhor que pode esperar é que a tenha como um pássaro enjaulado que só canta para ele. E o mais provável é que te volte tão ordinária que acabe aceitando cantar para qualquer um que tenha suficiente dinheiro ou diga suficientes mentiras.
—Você é o que se tornou ordinário, Nigel. Reconheço um insulto quando o ouço. Não consentirei que fale assim dele, nem de mim. Devo te pedir que saia.
Sua agitação se transformou em uma fria e maliciosa fanfarronice.
—Não te faça à grande e poderosa comigo, prima. É a bisneta de um homem que começou vendendo fruta com um carrinho de mão, igual a mim. Seu pai era um estudioso do latim de terceira categoria, e sua mãe cantou em tantos botequins como Igrejas. Você não pertence à Laclere, e ele sabe se é que você não. Se te ofereceu matrimônio, foi porque se deixou levar pela emoção do momento. —sacudiu uma bolinha de pó da manga— Agora, tal como eu o vejo, não deveríamos ir à Escócia. O continente tem mais sentido. Podemos nos casar na França.
Sua proposta era presunçosa, mas a confiança com que insistia a assustou. Atuava como um homem que sustenta em sua mão mais azes dos que o baralho deveria conter.
—Não tenho intenção de me casar contigo em nenhum país.
—Deixará de estar atada às leis inglesas assim que deixe estas terras. É americana, e a autoridade de Laclere se acaba nesta costa. Depois da França, iremos à Itália se quiser.
—Não vou à Itália contigo.
—Eu sou parte do pacote, querida moça.
—Então ficarei aqui.
—Se o fizer, o destruirei. Contarei ao mundo o que fez.
Proferiu a ameaça com tanta calma, com tanta normalidade, como se estivesse comentando que parecia que ia fazer bom tempo. Ela quis amedrontá-lo, mas sua garganta se esticou. Parecia tão seguro de si mesmo. Muito seguro.
—Ninguém acreditará. Está fazendo hipóteses e não tem provas.
—Com os rumores está acostumado a ser suficiente. Às pessoas gostam de ver a queda dos mais rigorosos. Nunca viu como esta sociedade pode matar as pessoas com desprezo e com esquecimento. Imagina à pequena Charlotte de repente sem amigos ou sem perspectivas de um matrimônio decente. Penelope sendo desprezada por seus artistas. E até o próprio Laclere convertido em um par banido.
—Se o destruir com rumores, também me destrói. Uma fina prova de seu afeto. Desmentirei tudo. Retornarei a América antes que possa feri-lo se começar a propagar histórias daninhas.
—Um sacrifício encantador, mas desnecessário. Em última instância, te seduzir não é o único pecado que pode afundá-lo. —Sorriu com presunção— Verá, sei o de Manchester. Sei o do senhor Clark. Para isso há provas, e não haverá compaixão se, além disso, desonrou uma inocente.
Sentia-se tão fraca como se a tivesse golpeado.
—Manchester?
—Acaso não sabe? Explicarei isso a caminho da França. É suficiente te dizendo que tenho o modo de arruinar Laclere e a toda sua família de um modo total e definitivo. Não o duvide, Bianca, e quando souber a verdade me agradecerá isso. Seu visconde é falso no sentido mais literal do termo. O interesse que mostra por você tem a ver inteiramente com a fábrica do norte. Quer te controlar pela parte que você herdou. Precisa ter poder para te dar ordens.
—E você, Nigel? Minha propriedade e minha renda não tem nenhum papel em sua oferta?
—Minha preocupação primitiva é sua segurança e sua reputação. A propriedade é obviamente interessante, mas ao menos comigo poderá desfrutá-la. Uma vez que se case comigo poderá cantar se o deseja, e praticar adequadamente, e triunfar em atuações.
Não acreditava. Duvidava que estivesse disposto a deixá-la desfrutar de sua herança ou a lhe permitir que a usasse para estudar na Itália. Ele queria essa herança. Era por isso que estava ali.
Chantageava-a para obrigá-la a casar-se e assim ficar com sua herança.
Teria também chantageado Milton? Achava-se ante o homem responsável por aquilo? Teria visto ou ouvido algo durante suas visitas a Woodleigh, e depois teria usado essa informação para tentar sangrar Milton? Se Milton teve alguma vez uma visita inapropriada por parte de um amante, as palavras poderiam circular entre os criados ou os arrendatários, como ela mesma comprovou que ocorria com a visita feminina de Nigel. Olhou-o com novos olhos, olhos que percebiam o perigo que se escondia por baixo dessa pessoa elegante. O único que procurava na vida era sua própria satisfação. Sim, ele poderia tê-lo feito. Era capaz de exibir a destruição com uma mão enquanto com a outra aceitava um suborno. Era isso o que estava fazendo agora.
Olhou-a da forma que alguém examina uma nova posse interessante.
—Acredito que estará de acordo em que isto está resolvido. Não tem sentido seguir alargando a discussão. Vai logo a Laclere Park, não?
Assentiu atordoada. Tinha estado ansiosa para passar várias semanas no campo. Vergil prometeu que estaria ali a maior parte do tempo. Em uma casa tão grande, com um terreno tão extenso, certamente poderiam encontrar tempo para estar juntos a sós.
—Então sairemos de Woodleigh. Enviarei as instruções. —inclinou-se para lhe roçar a boca. Os lábios dela se apertaram contra seus dentes com desagrado— Nenhuma palavra sobre nossos planos, Bianca. Não o diga a ninguém, nem a sua criada, e muito menos ao visconde Laclere. Que fique claro que o arruinarei se se intromete, e desfrutarei fazendo-o. Agora devo te deixar, mas espero com ânsia o momento em que possamos estar juntos para sempre.
Deixou-a aturdida e com uma sensação de absoluta impotência. Não tinha tido tempo para recompor-se quando Charlotte entrou correndo e se ajoelhou a seu lado sobre o sofá.
—Te pediu para se casar com ele? Via-se muito bonito hoje. Pen estava segura de que veio para pedir isso e resmungava dizendo que Vergil preferiria vê-lo morto a permiti-lo, mas eu não acredito que meu irmão seja tão estrito e irrazoável. Afinal, está a ponto de alcançar a maioridade. Se você está decidida, ele não pode fazer nada em realidade. Então o que, pediu isso?
O rosto de Charlotte se ruborizava de uma maneira muito formosa quando ficava nervosa. Seus olhos, tão marrons e limpos como os de Dante, brilharam com luzes profundas. Irradiava pureza e doce inocência e não teria a mínima ideia de como atuar se o mundo a colocasse de pernas para o ar.
E era isso o que aconteceria se Nigel cumpria com sua ameaça. Em certo modo, a discrição de Vergil se devia principalmente a Charlotte.
—Não, não me pediu — mentiu — Veio para me reprovar as atuações do coro.
Os olhos de Charlotte se iluminaram com picardia.
—É muito emocionante conhecer alguém capaz de atrever-se a fazer semelhante travessura. É um pouco como cometer a travessura eu mesma. Segue-me assombrando que obtivesse que Vergil a permitisse isso. Talvez esteja começando a lhe cair um pouco melhor. Possivelmente algum dia você e ele cheguem inclusive a ser amigos.
Bianca riu para ocultar as lágrimas. Sua mente galopava, calculando o tempo que ficava com o homem a quem não deveria gostar. Rezou para que a visitasse, embora temesse sua chegada.

Salvo pelos dias de sonho no imóvel, a sombra da despedida final não deixava de tingir suas emoções cada vez que ele se aproximava. A gota de melancolia não amargurava o vinho do amor. Enriquecia-o e o suavizava. Mas tudo seria distinto a partir de agora. A chantagem de Nigel acelerava a separação. Eram poucos os dias que ficavam, e podia imaginar a surpresa de Vergil quando descobrisse que ela partiu. Como ia poder falar com ele sem que o adivinhasse?
Descobriu antes do que queria. Chegou à tarde seguinte. Ela permaneceu em seu quarto, tentando se recompor o suficiente para esconder seu mal-estar. Durante as últimas vinte e quatro horas experimentou o pânico de uma mulher encurralada por um predador. Cada plano de escape que contemplava parecia irremediavelmente condenado ao fracasso.
Charlotte veio procurá-la.
—Meu irmão chegou. Está perguntando por que não veio ao salão.
—Não me encontro muito bem.
Era realmente certo.
—Pelo visto, ele tampouco está muito bem. Parece distraído e aborrecido. Perguntou a Pen onde está à senhora Gaston, e mal escutou sua explicação de que deixou Londres para fazer uma visita a uns amigos no campo. Agora me ordenou vir te pedir que vá à biblioteca. —Charlotte arqueou as sobrancelhas— Fez alguma nova travessura, Bianca?
Desejaria de todo coração ter que preocupar-se só por ter se comportado um pouco mal.
Vergil a esperava na biblioteca, com um aspecto pensativo e despenteado e devastadoramente formoso. Uma mecha escura lhe cobria a testa e ela desejava voltar a colocá-la entre as grossas ondas de seu cabelo com uma carícia. As dobras de seu lenço não estavam perfeitamente centradas, e Bianca esteve a ponto de estender a mão para arrumá-las. Os olhos ardentes e a boca reta de Vergil a faziam temer que se inteirou da chantagem de Nigel e pretendesse lhe fazer recriminações por não ter pedido sua ajuda.
Vergil fechou as portas da biblioteca.
—Isto não pode ser — disse.
—O que não pode ser?
—Isto. —Abrangeu com o gesto de seu braço a sala, a casa em geral, e de maneira específica a ela e a ele— Você. Eu. Você enche meus dias, minhas noites, meus pensamentos, meu coração. Não suporto a tortura de sua presença, mas tampouco sei aguentar o inferno de estar longe de você. Não posso seguir vivendo deste modo. Devemos chegar a algum tipo de resolução.
«Laclere, não, por favor, não. Me deixe desfrutar dos poucos dias que ficam.»
—Prometeu que poderia ter um pouco de tempo.
—Entendeu-me mau, querida. Não vim para consolidar minha vantagem, a não ser para confessar que não tenho nenhuma. Meus sentimentos por você reduziram todas minhas outras preocupações à insignificância total. —Estendeu-lhe as mãos— Você ganha. Faremos a sua maneira. Com as condições que você queira. Se só me desejar como amante, procuraremos ser discretos e esperar que tudo saia bem.
Bianca ficou petrificada e totalmente desolada. Desejava lhe agarrar à mão e apertá-la contra seu coração. O amor e a gratidão a transbordavam, mas não podia demonstrá-lo.
Ela teve vontade de fugir e não chegar a ver jamais sua reação. Jogar com ele agora seria imperdoável. Não lhe deixava nenhuma opção salvo a de rechaçar sua generosidade, jogando em plena cara.
Vergil viu a vacilação de Bianca. Deixou cair sua mão.
—É obvio, se decidiu que já não me deseja, podemos fazer os planos para essa eventualidade, também.
Não desejá-lo? Não ficava dúvida, dissesse o que dissesse aquele dia, ele saberia que não podia ser certo. Se daria conta de que ela não seguia seu coração e que outra coisa a impulsionava.
Sim, a não ser que atuasse com muito cuidado, era claro que se daria conta. Não podia permitir. Tinha que inventar alguma história capaz de convencê-lo.
Percorreu amorosamente cada ângulo de seu rosto. Seus olhos de azul cristalino a ponderavam atentamente, curiosos ante sua reticência. Bianca sentia vontade de se jogar em seus braços e contar tudo. Mas o que ele podia fazer para conseguir superar aquela situação?
Afastou o olhar.
—Estive pensando.
Vergil ficou totalmente imóvel. Esperou com tanto silêncio que era como se não se achasse na sala. Ela se obrigou a prosseguir.
—O que ocorreu entre nós… É perigoso. Ruinoso. Devíamos estar loucos. Estive pensando… Você sabe que sempre acreditei que o casamento é um castigo muito permanente para um crime tão efêmero.
—Para mim não seria nenhum castigo, assim não finja que está me perdoando, Bianca.
O tom de sua voz a deixou gelada. Fechou os olhos e apertou os dentes.
—Não, não fingirei. É minha vida a que mudaria completamente com o casamento, de uma forma que não desejo. Considerando isto, parece-me que nenhum acerto servirá. Se quero seguir com minha música, tenho que ir a Milão, você e eu devemos nos separar, e tal como estão as coisas só estamos postergando a tristeza uns meses.
Assim que pôde enunciar as palavras. O silêncio ficou tremendo em sua esteira. Seguia sem querer olhá-lo, mas o sentia atrás de si, grande e escuro e ardente. Deu-se conta de um movimento dele, mas não conseguiu discernir se se afastou ou não.
Não o fez. Ao falar, o fôlego de Vergil acariciou seu cabelo.
—Já que te iniciei no amor, talvez devesse te instruir nisto também. É um ato de covardia se negar a me olhar, e você é algo menos covarde.
—Eu não sou valente. Sou terrivelmente débil. Se estiver lhe ferindo o que digo, não quero vê-lo. —Tentou controlar as ondas de angústia provocadas por aquele estalo— E se não te ferir, tampouco quero vê-lo. Sou assim egoísta, Laclere.
A mão firme de Vergil a agarrou pelo ombro para lhe dar a volta. Um de seus dedos lhe levantou o queixo.
Oh, como a olhou. Sem ira. Seus olhos brilhavam com as lembranças da intimidade. Observou-a tão direta e minuciosamente que Bianca se deu conta de que era o último olhar honesto que pensava lhe dirigir em sua vida.
—Corresponde sempre à dama o direito de concluir uma relação, Bianca. Um cavalheiro não o reprova, nem exige mais explicações das que ela escolhe oferecer.
Como podia aceitar com tanta rapidez? Era como se no fundo de seu coração nunca acreditou que poderiam permanecer juntos. Se assim era, ela tinha a culpa, mas só de pensar produzia uma decepção feroz.
—Está levando com muita gentileza e generosidade e o está fazendo muito fácil para mim. Preferiria que gritasse e que me acusasse de malvada e inconstante e perversa.
—Não é nenhuma dessas coisas. Lamento que tenha tomado esta decisão, mas sabia que podia ocorrer.
As lágrimas reprimidas ardiam, atando-se em sua garganta e seu peito. «Não afaste o olhar. Não me escute. Me tome entre seus braços. Me faça amor aqui mesmo, agora, sobre o chão. Se negue a aceitar isto, rogo-lhe isso.»
Vergil levou a mão de Bianca a seus lábios e a reteve ali, fechando de uma vez os olhos.
—Minha querida moça.
Ao momento seguinte já partia, afastando-se a grandes passos.
—Laclere. —O nome escapou enquanto as lágrimas transbordavam— Não fui falsa. Não menti. É só que… É só que…
Ele se deteve ante a porta.
—Sei que não foi falsa, Bianca.
As palavras a asfixiavam.
—Não menti. Quero você, e… Só…
A expressão de Vergil delatou certo aborrecimento agora. Indevidamente, tinha que haver algo disso também.
—Acredito. Parece que é certo que me quer. Só que… Não o suficiente.

 

 


Capítulo 20


Desta vez não escapuliu.
Esperou em Laclere Park até receber a carta de Nigel, que lhe dizia quando partir. Então preparou as malas, entregou a Jane uma nota para Pen, e a manhã seguinte, à alvorada, pediu um carro que a levasse até Woodleigh.
Manteve-se fechada em si mesma durante toda a semana depois de sua volta a Laclere Park. Pen sabia que rompeu com Vergil. O desconforto da situação fazia que fosse fácil estabelecer uma distância. Charlotte andava tão distraída por seus sonhos a respeito de sua iminente apresentação em sociedade que não se precaveu da reserva de Bianca.
Contra seus planos iniciais, Vergil não as acompanhou a Sussex. Uns negócios inesperados lhe exigiram permanecer em Londres, conforme explicou a suas irmãs.
Enfim, o que ela podia esperar? Que perdoasse sua inconstância e se esquecesse da ofensa?
O carro dobrou por uma curva e entrou no caminho que levava a Woodleigh. Uma maleza cinza e prados opacos caíam em declive a ambos os lados do caminho. Umas nuvens baixas apagavam a luz, tirando a cor do mundo, apagando as formas longínquas até as converter em uma só deprimente massa. Woodleigh surgiu entre a paisagem, seu imponente bloco mal aliviado pelo elegante classicismo de sua arquitetura. Um carro alugado de quatro cavalos esperava ante a entrada.
Nigel saiu de casa a tempo de ver a carruagem parar. Um lacaio se encarregou de sua mala, enquanto outro a ajudava a baixar. Ao que parecia, Nigel contratou uma palmilha de criados desde sua última visita.
—Simplesmente foi? —perguntou enquanto a carruagem se afastava.
—Escreveu que partiríamos assim que chegasse, assim que me pareceu excessivamente dramático escapar pela janela pendurada de meus lençóis e atravessar a pé os bosques. Pen será informada quando despertar de que vim aqui, mas confio em que então já estaremos muito longe.
—Sim, muito longe, e a caminho para Dover, onde nos espera o barco a vapor que leva o correio.
—Devo te advertir que levo muito pouco dinheiro. Deixei quase tudo o que tinha com Jane. Já que a estou abandonando, parecia que era o mais correto.
—Laclere se encarregará de que Jane retorne a Baltimore. Já não é sua preocupação. Já nada é. Eu cuidarei de você a partir de agora.
Acompanhou-a a casa. Outros novos criados estavam tirando baús e atando-os sobre o carro.
—Não vou causar muito boa impressão na França, primo. Não tenho mais que a roupa dessa mala — disse enquanto se esquentava ante a lareira da sala de estar.
—Estará formosa vista o que vista, e lhe faremos confeccionar um guarda-roupa com objetos das melhores costureiras de Paris.
Sorria e elogiava como corresponde a um prometido, como se pretendesse que fingissem que ela não estava ali sob coação.
A atividade no vestíbulo se deteve. Nigel estendeu a mão.
—Deveríamos ir, Bianca. Se pode ser, seria preferível evitar uma corrida à costa, perseguidos por seu guardião.
—Ele nem sequer se encontra em Laclere Park. Mas sim, vamos.
O carro era tão luxuoso como podia ser um veículo alugado, mais novo que a maioria e com quatro cavalos parecidos. Nigel já estava se pondo à altura de sua herança, confiando adiantado em suas expectativas.
Um lacaio abriu a porta e baixou a escada. Nigel ajudou Bianca a subir. Ela se deteve a meio caminho.
Uma mulher esperava dentro do carro. A senhora Gaston lhe deu um sorriso de bem-vinda.
—Por favor, querida, sente-se. Já lhe explicarei — disse Nigel.
Bianca se acomodou junto à senhora Gaston. Nigel se sentou em frente.
—A senhora Gaston teve a gentileza de aceitar nos acompanhar e servir como sua acompanhante até que nos casemos — disse.
—Que amável por sua parte.
A senhora Gaston lhe acariciou a mão.
—Que emocionante, não te parece? Que bom casal formarão. Dois músicos. Desde que os vi atuar juntos na festa da condessa, pensei que o destino o quis assim.
—Não me dei conta de que você e Nigel fossem tão bons amigos.
—Tivemos o prazer de nos encontrar em várias ocasiões durante estes últimos meses, desde esse primeiro encontro em Laclere Park. Seu primo é um músico de muito talento, e eu recolho estrelas como ele em meu círculo.
—A senhora Gaston me propôs uma série de concertos para assinantes a próxima primavera — disse Nigel, dedicando um sorriso largo e lisonjeiro a sua grande mecenas.
—Por Deus, senhora Gaston, sua generosidade para meu primo não tem limites. Uma oferta de patrocínio é extraordinária. Desgraçadamente, esta fuga estragará esses planos. Estaremos em Milão pela primavera. Não é assim, Nigel?
O sorriso de Nigel se torceu um pouco.
—Claro que sim.
A senhora Gaston adotou um sorriso benigno e voltou a acariciar a mão de Bianca.
Bianca mordeu a língua.
Ela não acreditava que os dois se conheceram em Laclere Park. Suspeitava que a senhora Gaston fosse à mulher que visitou Woodleigh em segredo. Era o único que explicava sua presença nessa carruagem e nessa viagem. A senhora Gaston, mecenas das artes, não interromperia seus planos para servir como acompanhante a dois músicos desconhecidos e sem nenhum dinheiro.
Nigel parecia contente, como era natural. O canalha a estava chantageando para que se casasse com ele e logo controlaria sua fortuna, e nem se incomodou em desfazer-se de sua amante para a fuga.
Nigel interpretou mal a expressão de Bianca.
—Tudo sairá bem, prima. Estamos a salvo. Laclere não se intrometerá.
Laclere. Oxalá Nigel não o tivesse mencionado. Pen enviaria um recado a Londres. Saberia essa noite.
O que pensaria? Que realmente o abandonou por Nigel? Se fosse assim, mudaria sua forma de recordar tudo.
O carro balançava com um ritmo que acompanhava o compasso de sua furiosa frustração. Em frente dela, Nigel relaxou e fechou os olhos. Uns cabelos loiros oscilavam em torno de seu rosto. Poderia ter sido um menino adormecido, a julgar por seu aspecto totalmente despreocupado.
O deixaria desfrutar de seu triunfo. Esperaria até que chegassem a França para o fazer saber que ela também tinha feito uns quantos planos.

***

Vergil morria de vontade de dar um murro a algo. O lacaio de Pen o informou e escapuliu em seguida para que esse algo não fosse sua mandíbula.
A pequena bruxa. Que um homem de sua idade, um respeitado membro da Câmara dos Lordes, um confidente dos conselheiros do rei, um santo, maldita seja, foi posto em ridículo por uma mulherzinha das colônias já era por si o bastante mau. Mas inteirar-se agora de que seu amor foi um jogo, uma brincadeira bem elaborada, e que durante todo esse tempo… Sua cabeça parecia a ponto de estalar ante a intensidade do ultraje.
O lacaio teve vontade de fundir-se com a porta.
—Maldita seja, volta para Sussex. Não tenho nenhuma mensagem para minha irmã.
O lacaio apressou sua retirada. Vergil o despediu de uma portada tão violenta que os livros nas estantes da biblioteca ficaram tremendo.
Voltou sua atenção à nota de Pen jogada no chão, e logo à carta de Bianca que tinha enrugado com o punho. Abriu a carta e a alisou.
Obviamente estava dirigida a Pen, mas Vergil ouvia a voz de Bianca falando com ele.

Minha querida amiga:
Quando receber esta carta, estarei a caminho da França. Peço desculpas por partir desta forma, mas me parecia improvável que me desse sua aprovação se tivesse contado meus planos. Agradeço toda a gentileza que me mostrou, mas é a hora de fazer o que foi minha meta desde que sai de Baltimore, e não tem sentido esperar mais tempo.
Nigel teve a amabilidade de oferecer-se a me acompanhar. Antecipa o casamento, mas não vejo como uma aliança dessa índole poderia me beneficiar. Entretanto, na eventualidade de que me convencesse do contrário, tomei medidas através do senhor Peterson para me assegurar de que semelhante incidente não criará dificuldades para nenhum de meus amigos na Inglaterra. Durante os próximos meses, não ficará mais remédio que viver à espera de minha herança, a não ser que Laclere aceite me adiantar uma quantidade quando contatar com ele. Não tenho nenhuma dúvida de que Nigel será um administrador excelente para o adiamento dos pagamentos a comerciantes.
Rogo que expresse meu sincero agradecimento e meu amor a sua família, Pen. Espero voltar a vê-la, se tiver lugar em seu círculo para mais uma artista e lugar em seu coração para uma moça tão problemática.
Por favor, convença seu irmão de que não deve me seguir.
Seu amiga errante,
Bianca

Podia ouvir como enunciava cada palavra. A imaginava escrevendo. Não soava nem arrogante, nem emocionada. Aparentava seriedade, determinação e inquietação. Mais lhe valia. Não tinha ideia do perigo ao que poderia enfrentar ao ficar nas mãos e à mercê de Nigel.
Que diabos estava ocorrendo? Era ela a mais desavergonhada das mulheres, mantendo uma relação com um homem enquanto ensaiava com outro nos bastidores? Assim o sugeria essa fuga com Nigel, sobre tudo porque indicava que possivelmente nem sequer se incomodava em casar-se com ele.
Voltou a ler aquele fragmento e experimentou um alívio delicioso, mas de uma vez terríveis receios. Que inteligente, que ardilosa era Bianca. Tinha toda a razão do mundo a respeito ao nulo benefício daquela aliança. Pelo contrário, um casamento com Bianca arrumaria as coisas maravilhosamente para Nigel.
Seu primo estaria mais que aborrecido se ela se negasse. Esse desgosto e as consequências que poderia ter não paravam de apresentar-se ante Vergil com desumana nitidez.
Não existia nenhuma prova que Nigel pretendesse lhe fazer mal. Mas ali na França, se ela obstaculizasse seu caminho para a fortuna… Ninguém a conhecia nesse país. Quem teria suspeitas se lhe ocorresse algum acidente?
Com uma nova, fria calma voltou a ler a carta. Todas as implicações se desdobraram ante seus olhos. Ela aludia aos acertos que fez para evitar problemas. O temor de Vergil se fez mais profundo. Se isso significava o que ele acreditava, Bianca poderia correr grave perigo quando Nigel se inteirasse do que fez.
Isso também demonstrava que fez seus planos enquanto ainda se encontrava em Londres, talvez antes de pôr fim a sua relação com Vergil. Tentou não tomar muito a sério a ideia de que Nigel a tivesse obrigado de algum modo a tomar aquela decisão, mas um raio de esperança embriagadora irrompeu na escuridão que enchia seu coração desde esse dia na biblioteca de Pen.
«Convence seu irmão de que não deve me seguir.» A ordem soava como uma advertência desesperada.
Chamou Morton.
—Ordena os preparativos para uma viagem de mais ou menos uma semana. Faz chamar também a Dante. Segue na cidade. Preciso falar com ele.
—Agora mesmo. Suponho que vamos outra vez ao norte.
—Não, partiremos para a França. Agora devo ir a Cidade. Se encarregue de que o lacaio de Pen coma e descanse antes de retornar. E o peça que comunique a minha irmã que seguirei à senhorita Kenwood apesar de suas instruções de que não o faça.

***

—A senhora Gaston se foi? —Bianca apertou a capa contra seu corpo para proteger-se da brisa marítima que atravessava o jardim da pequena casa. O grande casaco de Nigel batia as asas no ar.
—Foi a Cherbourg para visitar sua amiga.
—Eu também gostaria de ir a Cherbourg, Nigel, em lugar de estar nesta granja tão campestre. Em realidade, eu gostaria de estar em Paris. Não vejo por que temos que nos deter aqui durante dias pela enfermidade de uma amiga da senhora Gaston.
—Seria inapropriado que viajássemos sem ela, Bianca. A menos que tenha mudado de opinião a respeito de um casamento imediato.
Arrancou a cabeça seca ao comprido caule de um girassol morto.
—Saiamos de passeio, Nigel. Em realidade, celebro que não esteja aqui hoje e que você e eu tenhamos a oportunidade de conversar um pouco em privado.
Ele saiu atrás dela através da grade e passearam pela horta. Cruzaram o prado de trevos que conduzia ao passeio que havia na borda dos escarpados. O vento esbofeteava ainda mais forte aí, gelado após de seu contato com a água, e fez do cabelo de Nigel uma tempestade e avermelhou suas bochechas.
—Mudei de opinião a respeito do casamento, Nigel.
—Está cansada da viagem, Bianca. Uma vez instalados em Paris, verá as coisas de outro modo. Com mais claridade.
—Quer dizer que recordarei suas ameaças a respeito de Laclere? Penso cada vez mais que o visconde é capaz de cuidar de si mesmo, meu querido primo. E estou vendo as coisas com absoluta claridade. A senhora Gaston, por exemplo. Vejo que é algo mais que uma simples conhecida tua. Deve me acreditar uma estúpida se pensava que não me daria conta da cômoda situação que preparou.
Nigel soltou uma gargalhada de derrota.
—Devo confessar que é uma velha amiga. Conhecemo-nos há mais de um ano quando visitou Paris, e… Mas isso é passado.
—Depois de ouvir o ruído que saía ontem à noite do quarto da senhora Gaston, custa-me bastante acreditá-lo.
Nigel ao menos teve a decência de ruborizar-se. Já fosse por sua franqueza ou por sua experiência no mundo, Bianca o pegou despreparado, e era exatamente isso o que ela queria nesse momento.
—Supunha que estaria dormindo ou que seria muito ignorante para compreender? Os dois poderiam esperar que eu não estivesse sob o mesmo teto.
—Foi impetuoso e indiscreto por nossa parte. Nunca pensei que… Explicarei que nossa relação não pode seguir.
—Eu não me apressaria muito em jogá-la.
—Entre você e ela não há ponto de comparação. Parece como se esperasse que escolhesse. É muito provinciano por sua parte, Bianca. Muito americano.
—Escolhe-me tão depressa? Isso deve significar que ela não tem uma fortuna e que seus ganhos são muito escassos.
—Agora está me insultando. Entendo que esteja chateada depois do de ontem à noite, mas minha primeira preocupação é sua segurança e a segunda o afeto que te tenho. Seus ganhos são o de menos.
—Meus ganhos não são exatamente o de menos, mas há coisas sem dúvida mais importantes. A fábrica de Manchester, por exemplo. Estou a par da oferta do senhor Johnston e o senhor Kennedy. Uma quantidade muito grande de dinheiro por suas poucas ações. Com quarenta e cinco por cento sob seu controle, não só poderia lhes vender uma parte muito maior da empresa, mas também poderia te fazer muito rico com o negócio. Meus ganhos anuais são insignificantes em comparação.
A expressão de Nigel se obscureceu. Abaixo, o mar batia rugindo contra a borda. As gaivotas planavam sobre suas cabeças e as rajadas de vento levavam o aroma de sal do oceano.
—Não negarei que seria conveniente para mim vender minha parte da fábrica, Bianca. Tenho algumas dívidas. Meu tio avô decidiu me deixar virtualmente nada além da fazenda e com uns ganhos apenas capazes de mantê-la. Esperava algo mais.
—Esperava tudo, e vivia em Paris como se já fosse teu.
—Evidentemente, não esperava que renovasse uma conexão rota há tanto tempo e que desse uma soma tão importante à filha de…
—De seu único filho e da mulher que esse filho amava — disse interrompendo-o— Você não o expressaria assim, é obvio. Estava a ponto de delatar suas verdadeiras intenções com respeito a mim, e ao mesmo tempo seus preconceitos. É por isso que não me casarei contigo, além do fato que sou incapaz de me apaixonar por um chantagista. Você nunca permitiria que sua mulher cantasse em público. Se estivesse disposta a me converter no pássaro enjaulado de algum homem, como você o expressou tão astutamente em Londres, teria escolhido com muito gosto Laclere.
Nigel se plantou diretamente diante dela, lhe obstruindo o passo pelo atalho do escarpado.
—Seus sentimentos por ele são os de uma menina apaixonada pela primeira vez. Passarão. Será mais feliz comigo. Temos muitas mais coisas em comum.
—Como você pode saber o que tenho em comum com ele? Acha que conhece de verdade a qualquer dos dois?
—Devo insistir no casamento, Bianca. Não é algo aberto à negociação. Se duvida de meu afeto ou não encontra em você nenhum por mim, não é necessário que compartilhemos o leito, mas deveremos nos casar.
—Você não pode me obrigar a me casar, Nigel. Inclusive na França a mulher deve estar de acordo.
—Você se mostrou de acordo ao me acompanhar.
—Só vim contigo para te afastar da Inglaterra.
—Acaso acha que as coisas mudam pelo fato de que eu esteja aqui? Certamente que o arruinaria se não cooperava e posso fazê-lo de Paris com a mesma facilidade que de Londres.
—Não acredito. Acredito que nececitará algo mais que uma carta a um conhecido para destruir sua reputação. Não se trata de seu irmão. Ele não virá abaixo com a mesma facilidade. Teria que estar ali, revolvendo a peçonha, divulgando os rumores.
—Se é assim, voltarei para divulgá-los durante a alta temporada. Não jogue comigo agora, Bianca. Não sou um homem a quem convém irritar.
A resistência dela suscitou os aspectos mais ásperos de seu temperamento. Tinha o gesto sombrio e o tom de sua voz estava crispado pelo ressentimento e a ameaça.
—Eu não acredito que seja capaz de divulgar essas histórias, Nigel. Verá, estou disposta a te pagar duas mil libras ao ano para que não diga nada sobre o que sabe.
—Sendo seu marido teria muito mais.
—Você nunca será meu marido, e se não aceitar este trato não terá nada. Se exigir embora seja um xelim a mais, não te darei nada e será livre para fazer o que quiser.
Separou-se dela, furioso, para logo inspecioná-la com uma venenosa careta de desprezo.
—Quem teria pensado que uma cara tão doce pudesse ocultar uma mente tão ardilosa, prima? A senhora Gaston me disse que não te subestimasse, que não poderia ser tão ingênua e infantil se Laclere se interessava em você, mas eu só via esses grandes olhos azuis.
Voltou ao seu lado e a observou com um olhar perigoso. Ela nem se alterou. Afinal, se se tratava de rondar em torno dela, Nigel não podia competir com Vergil.
—Tudo deveria ser meu — ladrou— Seu pai tinha morrido para ele, e eu era o único que tinha. Se Milton não se apropriasse de seu afeto, teria se comportado mais generosamente comigo, mas em lugar disso, quão único fazia era me falar desse aristocrático Duclairc até que eu já não suportava visitar o velho. E depois, ao morrer, o que conseguiu foi me atar a Woodleigh, mas assegurando-se de que não tivesse dinheiro para desfrutá-lo.
—Possivelmente seu legado fosse um desafio, para te obrigar a fazer algo da fazenda e de uma vez a você mesmo. Poderia contratar um bom administrador e aprender. Laclere te ajudaria.
—Eu não quero a ajuda de Laclere!
—Então, aceita as duas mil libras que te ofereço ou vai ao diabo!
Ele se afastou uns passos e voltou em seguida. A campina invernal se estendia para o horizonte por um lado e o escarpado se precipitava para o mar pelo outro. Desta vez se aproximou tanto dela que quase se tocavam.
Ela esquadrinhou seu duro rosto e um tremor lhe percorreu a coluna vertebral.
Tinha passado da raiva a uma fúria fria, do ressentimento à amargura. Ela olhou de esguelha o lugar onde se encontrava, justo na borda do atalho do escarpado. Tentando dissimular, como se pensasse em outra coisa, tentou afastar-se dele e dirigir-se para o campo.
O braço de Nigel se levantou com violência para detê-la. Apertou-a em um abraço com seu grande casaco e estudou seu rosto como se ponderasse um imponente julgamento. A três metros de distância, o terreno desaparecia no lugar onde o escarpado desabava para o mar.
—Desgraçadamente, Bianca, duas mil libras ao ano não servem nem para começar a resolver minhas necessidades econômicas.
Ante o tom de desculpa, o pânico se apoderou do coração de Bianca. O mar e a terra pareciam dar voltas a seu redor. Ele a apertou ainda mais.
Ela se aferrou a seu braço.
—Para, agora mesmo. Eu não valho um assassinato, Nigel. A fábrica já não está.
Ele retorceu violentamente seu cabelo com uma mão.
—O que quer dizer com que a fábrica já não está?
—Vendi minha parte a Vergil antes de partir. Por cem libras. Os documentos ficaram nas mãos de meu advogado à espera que Vergil firme.
—Vendeu uma sociedade que vale quase duzentas e cinquenta mil libras só por cem? É uma imbecil exímia? —gritou com tanta raiva que lhe zumbiram os ouvidos.
—Uma imbecil exímia não — disse ela— Para começar, não sou sua imbecil. Já que me obrigava a me casar, não tinha nenhuma intenção de te deixar vender essa fábrica para tirá-la de Vergil. Tampouco pensava te permitir que gozasse dos frutos de sua venda. E se decidia delatá-lo por ressentimento, assegurei-me de que ao menos fosse rico apesar de seu ostracismo social.
—Não é legal. Não pode ser legal.
—E por que não? Meu administrador e guardião estará de acordo, estou segura. E se não for assim, asseguraram-me que seus tribunais funcionam muito devagar nestes assuntos. Todos teremos morrido antes que chegue a resolução.
—Isso é mais que provável, minha doce menina — ladrou Nigel— Eu contava em vender essa fábrica. Colocou-me em uma situação impossível.
Seus pés perderam o contato com a terra ao levantá-la Nigel. Desesperava-se, começou a chutá-lo e golpeá-lo e mordê-lo. Brigando como um louco, tentou arrastá-la para o escarpado.
De repente deixou de lutar. Depositou-a no chão e a olhou, assustado. Era como se olhasse dentro de si, como se o que o aturdisse fosse sua própria alma.
—Deus, Bianca, não sei o que me aconteceu. Nunca faria…
Algo o distraiu. Girou a cabeça e franziu o cenho.
Bianca recuperou o fôlego. Seu coração pulsava enquanto seguia seu olhar para a casa.
Um carro estava chegando. A senhora Gaston havia retornado.
Bianca se liberou do abraço de Nigel e baixou correndo pela costa. Saiu a tropeções da horta justo no instante em que a senhora Gaston descia da carruagem.
O homem que a ajudava não era o chofer.
Bianca se deteve cem metros da casa e tentou compreender o significado dessa visita inesperada.
Nigel a alcançou. Chegou a seu lado e sua expressão indicou que para ele também era um mistério.
—Que diabos faz Witherby aqui? —resmungou.

 

 

 


Capítulo 21


O cavalo que Vergil alugou estava cansado, mas ele o obrigou a continuar. Sua impaciência não permitiria nenhum descanso agora. Perdeu muito tempo em Calais. Demorou dois dias em rastrear a estalagem onde Nigel e Bianca se alojaram e em encontrar o criado que os ouviu falar de seus planos.
O descobrimento de que Nigel e Bianca não continuaram rumo a Paris, mas sim se instalaram em uma casa isolada na costa normanda, só aumentava seus receios.
Duas mulheres viajavam com o homem, havia dito o criado. A notícia não serviu exatamente para acalmá-lo. O mais provável era que essa outra mulher fosse à senhora Gaston.
Estavam jogando a seu velho jogo, mas desta vez o prêmio era grande. Muito grande. O valor da herança de Bianca, diabos, simplesmente o valor da fábrica, transbordava tudo o que tinham conseguido antes com suas chantagens. Se Bianca opusesse resistência uma só vez na França…
Afinal antes já tinham chegado ao assassinato.
Não foi difícil segui-los. Nigel alugou uma carruagem majestosa para a viagem, e algo assim não passava inadvertido nos povoados. No último, alguns granjeiros indicavam o caminho para a casa ao lado do mar que foi alugada por um inglês loiro.
Dirigiu-se para o edifício de madeira e argamassa que surgia ao final da costa. Um pequeno jardim se escondia atrás de um breve muro de pedra. A horta abandonada obstruía sua visão da costa, mas o rugido do mar crescia à medida que se aproximava.
Ninguém saiu para recebê-lo. Desmontou e entrou na casa.
As três pessoas sentadas dentro não mostraram nenhuma surpresa ante sua chegada. Bianca o olhou com temor, Nigel se limitou a esboçar uma careta e a senhora Gaston sorriu com alegria.
Havia também outra pessoa na casa. Alguém cuja presença Vergil não tinha antecipado e que sorriu ao ver sua reação de estranheza.
—Demorou bastante, Laclere — disse Cornell Witherby.
Bianca se levantou de um salto e se jogou nos braços de Vergil.
—Não devia ter vindo — disse, beijando-o.
—Não ficava mais remédio, senhorita Kenwood — disse Witherby— Não é certo, Laclere? Não ia deixá-la partir desse modo. —voltou-se para a senhora Gaston— Te disse que viria.
Nigel se levantou e se afastou dos outros dois.
—Quero que saiba que não tive nada a ver com isto, Laclere. Não me dei conta de que estavam procurando uma forma de te atrair. Nem sabia que Witherby era o sócio desta puta.
—Dizer que não teve nada a ver é um exagero — disse Vergil— É possível que a senhora Gaston tenha o enganado, e que isto não esteja se desenrolando como você esperava, mas fez todo o necessário para que Bianca te acompanhasse.
—Disse-me que sabia o nosso, e o seu com a fábrica — disse Bianca— Me ameaçou te afundando.
Vergil tomou o rosto de Bianca entre suas mãos e se esqueceu dos outros por um instante precioso.
—Devia dizer a ele que fizesse o pior, minha amada. Se isso significava que teria você comigo, teria me arruinado de boa vontade. —Apertou-a contra si e observou Witherby— Sei como à senhora Gaston conseguiu as cartas de meu irmão, mas a forma em que se inteirou do do conde de Glasbury… É o pior dos canalhas, Witherby. Ganhou o afeto de minha irmã e logo traiu sua confiança. Só ela pôde ter te contado o do conde.
—Oxalá não tivesse investigado Laclere.
—Você matou meu irmão. Não podia não investigar.
—Eu não matei ninguém.
—A efeitos práticos, é como se você mesmo tivesse apertado o gatilho.
—Em princípio ninguém tinha que morrer — disse a senhora Gaston— Pedimos um pouco de dinheiro, e isso foi tudo. Tampouco uma quantidade excessiva. Uns quantos milhares. O fato de que o visconde e os outros tenham sentido a necessidade de matar-se… Enfim, não é culpa nossa que tenham reagido de uma maneira tão temerária.
Parecia zangada pelo mau comportamento que aqueles homens mostraram e a moléstia que lhe causaram.
—Primeiro Milton e Dante, logo Pen. E finalmente eu. Utilizou à família Duclairc uma e outra vez nestes crimes.
Witherby se levantou e cruzou o salão até o suporte da lareira. Ali havia uma pistola.
—Sua família leva gerações coxeando. A debilidade pedia a gritos que alguém a explorasse.
—Não foi à debilidade o que você explorou, a não ser a confiança e o afeto. Por que não completou o assunto? Você sabia de minha relação com Bianca, Witherby. Por que eu não recebi também uma carta anônima me chantageando? Por que este jogo tão elaborado para me trazer aqui?
—Teria sido um gesto tipicamente teu aceitar a queda, Laclere. Ou pior ainda, utilizá-la para nos encontrar. Sei que leva meses nos buscando. Sua irmã me disse isso. Oh, ela desconhece o motivo de suas ausências, mas eu entendi no que andava quando me descreveu suas frequentes viagens e seu interesse tão profundo pela vida de Milton. Sabia que era só uma questão de tempo. E aquele drama com o conde e Hampton… A longo prazo recordaria que houve outra pessoa que conhecia o segredo de Glasbury. Sua irmã. —Levantou a pistola do suporte— O mais sensato teria sido que não investigasse.
Vergil observou como os dedos de Witherby se fechavam sobre a arma.
—Aqueles acidentes em Laclere Park. Não era que Nigel tentasse matar Bianca, mas sim vocês dois tentavam matar a mim, não é certo?
A cabeça de Bianca girou rapidamente. Assustada, olhou para Witherby e a senhora Gaston. Vergil notou que um estremecimento de medo a sacudia.
Os olhos de Nigel se alargaram.
—Pensou que eu estava tentando matar minha prima?
—Não finja que é incapaz de fazê-lo — disse Bianca brandamente.
Por algum motivo, isso deteve a indignação de Nigel. Ruborizando-se afastou o olhar.
—Me ocorreu essa ideia — disse Vergil— Entretanto, se a senhora Gaston estava de visita no mesmo dia em que Bianca e eu fomos ver as posses de seu tio, acredito que não me equivocarei se disser que os disparos que quase nos alcançaram foram deles.
Nigel olhou à senhora Gaston com uma expressão de horror.
—Disse-me que estava no parque quando não te encontrei ao voltar. Que tinha escapulido para que não a descobrissem na casa.
—É pura conjectura do Laclere, Nigel. Está acusando sem provas.
—O desmoronamento das rochas foi tua coisa, Witherby — continuou Vergil— Acabava de chegar essa manhã. Viu como seguia Bianca e você me seguiu.
—Estava se aproximando muito, Laclere. Soubemos que ocupou o lugar de Milton em Manchester. A longo prazo se inteiraria da visita ao senhor Thomas. Não foi fácil tomar a decisão. —Fez um gesto para a pistola— Tampouco é fácil decidir isto. Entretanto, não vejo alternativas. Acredito que todos sairemos para dar um passeio. O mar é formoso a esta hora do dia.
Bianca se encolheu sutilmente. Nigel ficou pálido. Vergil se manteve atento à pistola e à determinação que se desenhava no rosto de um homem que tinha considerado seu amigo.
—Witherby, não vim à França sozinho.
—Veio aqui sozinho.
—Me adiantei aos outros tão somente em meia hora. A carruagem tinha que ir pelos caminhos, enquanto que eu galopava através do campo. Em escassos minutos os outros terão chegado. Embora se atrasassem e você conseguisse nos jogar pelo escarpado e escapar, já sabem o da senhora Gaston, e logo se inteirarão de seu papel em tudo isto.
—É uma isca. Nunca correria o risco de que alguém se inteirasse do de seu irmão, ou de você e sua pupila.
—Os homens a quem o contei têm minha mais plena confiança.
Witherby fez um gesto mais contundente para a porta com sua pistola.
—Se for verdade o que me diz, não tenho nada a perder. Me arriscarei. Vamos. Você, também, Nigel.
A senhora Gaston começou a levantar-se.
—Não — disse Witherby— Você fica aqui.
Abrigando Bianca sob seu braço, Vergil saiu da casa atrás de Nigel. Witherby e a pistola rondavam a seu lado.
—A ideia foi sua, não é assim? —perguntou Vergil, olhando para trás onde a senhora Gaston permanecia sentada em sua cadeira.
—Em realidade não. Ao princípio não foi mais que um jogo. Quando funcionou com o primeiro, quando o dinheiro apareceu com tanta facilidade… Vimos que resultava tão fácil. O assombroso é que não esteja ocorrendo todo o tempo. Todos esses segredos que a metade do mundo já suspeita, mas finge não saber… Diabos, lorde Fairhall não era exatamente muito discreto a respeito de seu gosto pelas meninas.
—E você também é seu amante Witherby, como Nigel?
Witherby negou com a cabeça.
—Meu interesse por sua irmã não é fingido, Laclere. A senhora Gaston e eu somos simples amigos, sócios em nossos negócios.
Aproximaram-se daquela horta estéril. Os ramos das árvores formavam uma intrincada rede de linhas contra o céu. Vergil olhou o rosto de Bianca. Comportava-se com valor, mas seus olhos brilhavam de medo e inquietação.
Abraçou-a mais estreitamente para consolá-la e aguçou o ouvido se por acaso chegava o som de uma carruagem.
Não ouviu mais que o próximo rugido do fluxo.
—Como soube o de meu irmão, Witherby?
—Sua vida de solitário. O fato de que não se casou, apesar de ser um visconde. É uma situação típica. Não cabe dúvida de que muitos mais o suspeitavam. Quanto ao de Manchester e o senhor Clark, isso foi um acidente. Vi-o entrar em uma livraria faz um par de anos e deixar ali uma carta. Eu só perguntei na loja pelo nome do senhor que acabava de sair e me disseram que era Clark. Com uma libra obtive a informação de que suas cartas procediam de Manchester. Enfim, era um mistério delicioso e tive que me pôr a averiguá-lo. Imagina minha surpresa ao compreender como tinha rebaixado sua família com essa fábrica e esse amante.
—E sua amizade comigo não contava para nada enquanto se aproveitava daquilo.
Witherby se ruborizou.
—Fiz um favor a você. Afinal herdou o título.
—Eu não queria o título, e muito menos a esse preço.
Nigel, que caminhava diante dele, de repente se deteve e olhou para o este.
—Graças a Deus — murmurou.
Vergil e Bianca se voltaram. O ponto longínquo de uma carruagem avançava pelo caminho, aumentando a cada instante.
Atrás deles, Witherby se esticou. Por um momento seus olhos pareceram cheios de pânico. Logo deu um profundo suspiro e se recompôs. Baixou a pistola, deixando-a pendurar de seu braço a um lado.
—Quem é? —perguntou com a voz baixa de um homem que precisava saber a que tem que enfrentar. Era o pedido de um amigo a outro, para poder fazer os preparativos necessários.
—Hampton e Burchard. Saint John fez que um de seus navios fosse à França, assim é possível que ele também esteja. —Vergil deu uma olhada a casa, onde a senhora Gaston ainda seguia— Imagino que meu irmão também tenha insistido em acompanhá-los, embora o sugerisse que ficasse em Calais.
—A Sociedade do Duelo quase completa, então.
Não só a Sociedade do Duelo. Quando a carruagem se achou mais próxima a casa, viram que Dante ia sentado ao lado do chofer porque a carruagem estava cheia. Uma vez que baixaram Hampton, Burchard e Saint John, outro homem permanecia ainda dentro. O perfil de seu nariz aquilino podia ver-se da janela aberta ao outro lado.
Os homens da Sociedade do Duelo não mostraram uma grande reação ao ver Witherby. Não obstante, Vergil viu como cada um chegava às necessárias conclusões, e percebeu a desolação em seus olhos.
Adrian se aproximou e tirou de Witherby a pistola da mão.
—Não voltará a necessitá-la no momento. Se escolher pistolas, então lhe devolverei isso.
Bianca se esticou sob o abraço de Vergil. Levantou os olhos com um gesto de inquietação que lhe oprimiu o coração.
Witherby negou com a cabeça.
—Farei-o desse modo só se permitir que a senhora Gaston parta primeiro. De outro modo, haverá um julgamento e tudo se fará público, Laclere, seu irmão, o conde… Tudo, juro-lhe isso.
Dante o ouviu. Aproximou-se a grandes pernadas e com os olhos acesos.
—Ela não ficará livre, Vergil.
Vergil soltou Bianca e afastou Dante a um lado.
—Se ela voltar a Inglaterra, se nós usarmos as provas que temos contra eles… Não só ficará arruinado o nome de nosso irmão, mas também o de outros homens. Também o seu. Não posso permiti-lo, e se o preço de seu silêncio é a liberdade, estou disposto a pagá-lo.
—E o que acontece com o que eu estou disposto a pagar? Eu não vejo isto como uma decisão exclusivamente sua.
—Se o pensar um pouco, também te imporá a mesma decisão.
A expressão de Dante se endureceu.
—Então, deixa que eu me bata com ele. É meu dever fazê-lo.
—Não é o teu mais que o de Pen.
—Maldita seja, claro que é.
—Dante, você não é um bom atirador. E se ele escolher sabres, não terá nenhuma opção. Matará você.
—Também é possível que mate a você.
Vergil observou Witherby, cujo rosto permanecia impassível.
—Não, não acredito.
Vergil fez um gesto para Adrian e este entrou na granja. Demorou um momento em explicar as coisas à senhora Gaston; Vergil se perguntou o que lhe estaria dizendo exatamente. Quando os dois saíram, o rosto dela estava ruborizado, enquanto que os olhos escuros de Adrian brilhavam.
Wellington desceu do carro e submeteu à senhora Gaston a um exame carregado de desprezo.
—Confio em que não volte a vê-la na Inglaterra, senhora.
Ela avermelhou ainda mais.
O duque de ferro assinalou o caminho.
—Recomendo-lhe que se dirija para o oeste. Se a alcançar no caminho, não posso prometer me comportar como um cavalheiro.
Recompondo-se e adotando uma expressão de desdém, a senhora Gaston se dirigiu para o estábulo, onde aguardava o carro alugado de Nigel. Não olhou para trás.
Wellington dirigiu sua atenção a Witherby e se converteu na viva imagem da raiva que continha.
—Diga que escolha as armas.
Alarmado, Adrian se aproximou e assinalou para Vergil para que também se aproximasse.
—Não deve fazê-lo — disse Vergil— Se o fizer que motivo dará? Só servirá para alimentar os rumores a respeito do ministro de Assuntos Exteriores.
—Maldita seja, homem… Que motivo dará você?
—A honra de minha irmã.
—Diabos, ninguém vai acreditar nisso.
—Dá no mesmo para mim.
—Não deve ser você, Sua Excelência — disse Adrian, com força— Qualquer de nós, mas você não.
—Não qualquer de nós, Adrian. Devo ser eu — disse Vergil.
Wellington estreitou os olhos, enojado ao contemplar Witherby.
—Se você fracassar, Laclere, será meu.
Saint John tinha estado falando com Witherby. Aproximou-se deles.
—Sabres — disse. Entrou na carruagem e tirou duas espadas.
Vergil se voltou para Dante.
—Quero que fique aqui com Bianca, para que não esteja sozinha. Fará isso por mim?
—Maldita seja, Verg…
—Estou pedindo isso por mim, Dante. Não por você.
Dante não chegou a mostrar-se de acordo, mas tampouco se negou.
Os outros começaram a avançar para a horta. Nigel, com o claro aspecto de alguém que foi sacudido, humilhado e salvo, procurou a segurança da casa.
Wellington, Witherby e a Sociedade do Duelo desapareceram atrás das árvores. A vinte passos de distância Bianca se manteve reta como um pau.
Obrigando-se a conter as emoções que lutavam contra seu senso de justiça e de dever, Vergil abriu os braços.
Ela correu para ele.
—Não diga nada — sussurrou, levantando-se nas pontas dos pés para receber seu beijo— Nada. Não penso te perder hoje. Meu coração sabe.
Esses grandes olhos azuis podiam criar um mundo que existia só para os dois. Ele saboreava a felicidade que ela sabia inspirar nele.
—Tenho que falar. Tenho que te dizer quanto te amo Bianca.
—Já me disse isso muitas vezes, Laclere, de formas muito mais eloquentes que as palavras.
—Não posso evitar pensar que se hoje morrer, ter te amado terá sido o melhor que fiz em minha vida. Assim é importante que saiba que te amo, que saiba com toda claridade. Eu não gostaria que jamais tivesse dúvidas sobre isso.
As pálpebras de Bianca baixaram e se ruborizou.
—As mesmas dúvidas que tinha você? —sussurrou.
Vergil beijou ambas as pálpebras e logo uma bochecha e segurou seu rosto para que seus lábios chegassem a tocar os dela.
—O orgulho de um homem pode ser algo ridículo. Meu coração sempre te compreendeu. É só que eu não queria aceitar o que isso significava para mim.
Estreitou-a contra seu corpo, tentando absorvê-la para que formasse parte de sua própria essência. Não teve tempo para celebrar que estava a salvo e o alívio começou agora a alagá-lo, lhe estremecendo a alma.
Bianca o olhava com uma expressão de amor e confiança que ocultava o iminente perigo.
—Entra na casa com Dante, Bianca.
Afastou-se, mas ela não entrou na casa. No limite da horta, Vergil olhou para trás e a viu ainda fora, seguindo-o com seus olhos.
Da soleira da casa, Dante também olhava.

Vergil percorreu com o olhar a borda do escarpado e o vazio cinza do oceano. Havia algo elementar dentro da força natural do oceano. A violenta abstração do mar, a desolação dos escarpados e as praias… A civilização parecia terminar com o começo da água, e o homem e suas leis simplesmente se desvaneceram em uma onda.
Uniu-se aos outros. Witherby já segurava seu sabre e Hampton se aproximou para lhe dar o outro e pegar seu casaco.
—Um lugar muito apropriado — disse em voz baixa.
—Sim, tratando-se de lugares para morrer, uma paisagem marítima está entre os melhores.
Saint John se aproximou.
—Parece que o destino quer que nos ajudemos em assuntos desagradáveis, Laclere.
—Pareceria que sim.
—O Chevalier não está aqui, assim que me corresponde te recordar sua primeira lição. Uma cabeça limpa e o sangue-frio. A mente deve dominar, não o coração.
Vergil duvidava se sua mente seria capaz de dominar de tudo. A justiça desta resolução não a fazia mais fácil, e o homem que aguardava não era um estranho, e tampouco era uma pessoa completamente malvada.
Hampton e Saint John se afastaram. Sob o olhar contemplativo de Wellington e a Sociedade do Duelo, Vergil avançou para Cornell Witherby.
—Que assunto tão terrível — disse Witherby— Tantos anos treinando juntos e agora nos encontramos nos batendo em duelo de verdade um contra o outro.
Vergil repassou de repente todos esses anos. Sua mente recordou Witherby na universidade, sempre disposto a brincar e sempre indiferente a seus estudos. Viu Witherby emocionado pela publicação de seu primeiro poema, e contribuindo com vida e humor às reuniões da Sociedade do Duelo.
Umas lembranças mais recentes relampejavam em sua cabeça… Os de Penelope, feliz pela primeira vez em muitos anos graças a esse homem.
—Pode se consolar sabendo que inclusive embora ganhe, também perderei — disse Vergil— Eu serei o encarregado de voltar para Londres e dizer a minha irmã que matei ao homem que ama.
A expressão de Witherby desmoronou. Na luz pura e difusa da tarde nublada, tinha um aspecto muito jovem e triste.
—Terminemos de uma vez, Laclere — disse brandamente— Não há nada mais que possamos fazer.
Saudaram-se com os sabres e o rugido do fluxo abriu passo na cabeça de Vergil.

***

—Não vai obedecê-lo e esperar aqui, verdade? —perguntou Dante enquanto caminhava para ela.
Bianca contemplava o lugar da horta por onde Vergil desapareceu.
—Não, não vou obedecê-lo.
—É obvio que não. Não há razão para que comece a fazê-lo agora. Ao menos sua teima me evita ter que fazer o papel de babá. —Dante a adiantou e entrou entre as árvores— Vamos, então.
Caminharam rapidamente através da horta. A meio caminho, Bianca acreditou ouvir o débil som do metal contra o metal. Ela e Dante puseram-se a correr ao mesmo tempo.
Chegaram até o campo de trevos. Perto da borda do escarpado, as magras silhuetas negras de seis homens podiam ver-se recortadas contra o céu cinza. Pequenas bolinhas de luz brilhavam nas pontas dos sabres.
Dante a segurou pela mão e avançaram a tropeções através do campo. Ela não podia afastar os olhos dessas figuras negras. Quatro delas permaneciam de pé quietas como estátuas, testemunhas estoicas da dança com a morte dos outros dois.
—Laclere é muito bom nisto, verdade? —disse ela— Por favor, me diga que é um perito espadachim, Dante.
—É melhor com as pistolas.
Nunca viu Dante tão sério. Tão preocupado. Não parecia um homem convencido de que seu irmão ganharia esse duelo. Sua expressão debilitou a confiança de Bianca e o medo ocupou seu lugar.
Fixou a vista desesperadamente nesse drama e correu ainda mais rápido, sem saber para que se dava tanta pressa. Duvidava que sua mera presença pudesse deter aquilo.
Talvez inclusive piorasse as coisas, pois poderia distrair Vergil.
Esse pensamento a fez deter-se abruptamente no meio do campo. De um puxão se liberou da mão de Dante.
—Vai você. Eu ficarei aqui. Por alguma razão ele não quer que esteja ali.
Dante assentiu e se dispôs a continuar. De repente se deteve. Seu olhar se concentrou nas figuras que se moviam contra o céu. As expressões de Vergil e de Witherby não podiam ver-se, mas o progresso do duelo estava claro.
—Tampouco quer que eu esteja ali — disse Dante— Esperaremos juntos aqui.
Deu a volta e ficou de pé ao lado dela. Ombro com ombro, daquele campo que deixou de existir para os homens que estavam no escarpado, contemplaram em silêncio o terrível combate.
De repente as duas formas passaram a ser uma. O coração de Bianca se deteve e ficou sem fôlego. Paralisada pela impressão, ficou esperando que um dos dois homens caísse ao chão.
A seu lado Dante também deixou de respirar. As mãos de ambos instintivamente se buscaram, e seus dedos se entrelaçaram com toda a força do medo compartilhado.
Vergil e Witherby se separaram. Nenhum caiu. Em lugar disso Witherby seguia de pé ali, como as sentinelas que eram testemunhas dessa antiga forma de julgamento.
De repente já não estava, e só cinco homens permaneciam de pé junto ao escarpado.
—Jesus — murmurou Dante.
Soou mais como uma prece de gratidão que como uma maldição.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Capítulo 22

—Mostrou um pouco de honra ao final — disse Wellington.
Foi o primeiro a falar depois que o silencioso grupo fez o caminho de volta para a cabana.
Vergil levava Bianca abraçada, sem se importar nenhum pouco com quem os visse. Nada disso importava agora. Precisava sentir seu calor e sua vitalidade, e o mundo inteiro podia ir ao inferno se punha alguma objeção.
Nenhuma das pessoas que tinham a seu redor o fez.
—Tirarei os navios de Cherbourg — disse Saint John— Se encontrarem seu corpo não terá feridas de armas. Podemos dizer que foi um acidente, que caiu do escarpado. Desse modo ninguém saberá que houve um duelo.
Vergil apertou seus lábios contra o sedoso cabelo de Bianca e a abraçou mais forte. Fechou os olhos e viu Witherby no escarpado.
O homem baixou sua espada e abandonou sua defesa deliberadamente, expondo-se à morte.
Vergil não queria aproveitar-se. Não investiu contra ele.
Duvidava que fosse capaz de esquecer alguma vez os olhos de seu amigo quando lentamente estes se encontraram com os olhares das testemunhas e depois com a do próprio Vergil. Um último sorriso triste e Witherby deu um passo para trás, até que sua bota topou com o vazio.
—Uma pessoa terá que saber — disse Vergil, afrouxando o abraço, mas sem chegar a afastar Bianca— Devo falar com Pen. Não viverei com uma mentira entre nós.
—A condessa é mais forte do que muita gente sabe Laclere — disse Hampton— Embora perdoar o conde dos frutos de seus pecados… Enfim, dentre todos os homens que foram chantageados não chorarei por ele.
Isso era o pior daquele assunto, e uma triste ironia. Aquele dia Pen não só perdeu ao homem que amava, mas também além aquele que odiava e a livrou dos grilhões.
—Eu o explicarei — disse Dante com firmeza, dirigindo a Vergil um olhar que não permitia pôr objeções— Desse modo me assegurarei de que saiba a verdade de um modo completo.
—Está ficando tarde, e devemos partir — disse Wellington— Há um pequeno problema com o transporte. Com a senhorita Kenwood e seu primo aqui não há lugar suficiente para todos no carro.
—Eu montarei o cavalo de Vergil, e Kenwood pode ocupar meu lugar junto ao condutor — disse Dante— Vergil, você e a senhorita Kenwood terão que esperar aqui até que enviemos um carro para vocês.
Wellington baixou as pálpebras e examinou o casal que se abraçava com os olhos entrecerrados.
Todos os outros adotaram expressões completamente insossas.
—Sua Excelência? —disse Adrian, fazendo um gesto para a porta.
—Bem. —Wellington saiu e uma fileira de homens o seguiu.
—Por que não fazer uma visita a Paris, já que estão no continente? —disse Saint John ao passar— Minha irmã, Jeanette, estaria contente de recebê-los.
—Possivelmente o façamos — respondeu Vergil.
O resto dos membros da Sociedade do Duelo partiu, e só ficaram Vergil, Bianca e Dante.
—Ir a Paris poderia ser uma boa ideia, Verg. Não se preocupe com Pen. Eu cuidarei dela. É o menos que posso fazer.
—Obrigado, Dante.
Dante se deteve ante a soleira.
—Pode ser que o carro não chegue até amanhã — disse— Confio em que será um santo, Verg, e em que a senhorita Kenwood estará a salvo contigo.
—É obvio.
Dante partiu rindo. Vergil e Bianca o seguiram e viram os homens subir no carro.
Nigel se aproximou deles.
—Eu gostaria de saber se vai chamar testemunhas contra mim, prima. Eu gostaria de retornar a Inglaterra, mas obviamente não posso fazê-lo se você decide me proibir isso.
—Não apresentarei provas contra você. Quando teve que escolher, fez o correto — disse Bianca— O preço, entretanto, é que não fale contra Vergil, que guarde silêncio a respeito de seu descobrimento.
—Pretendia fazê-lo de todos os modos. Descobri que a chantagem não me agrada tanto como aos outros. Expõe partes de alguém que é melhor deixar enterradas.
Bianca sorriu com aprovação, mas Vergil se sentia menos otimista. Nigel parecia bastante sincero, mas quem sabe o que poderia trazer o manhã. O bom senso e a perseverança não eram as maiores virtudes daquele homem.
—Woodleigh é uma boa fazenda, Kenwood. Com uma boa administração pode ser bastante produtiva para mantê-la. Não para viver como um duque, mas sim para viver bem — disse Vergil— Quando retornar a Sussex pedirei ao administrador de minha fazenda que te visite. Poderia te recomendar algum bom homem para que se ocupe de suas coisas.
—Agradeço isso. Possivelmente é tempo de fincar raízes em casa. Talvez estivesse certa, Bianca. Pode ser que seu avô tivesse suas razões para dispor as coisas do modo que o fez.
Nigel caminhou para o carro e subiu junto ao condutor.
—O que quis dizer quando comentou que fez o correto no momento de escolher? —perguntou Vergil.
—Digamos que acredito que o demônio esteve lutando por sua alma, mas não ganhou. —Observou como a carruagem se afastava — Acha que guardará silêncio?
—Provavelmente. Tampouco é de importância, já que a senhora Gaston sem dúvida estará disposta a contar tudo a qualquer um que queira escutá-la. Com o tempo, suas histórias sobre mim chegarão a Londres.
—Oh, querido, podemos encontrar algum modo de detê-la?
Ele pôs dois dedos sobre seus suaves e quentes lábios.
—Não me preocupa. Acredito que devemos nos alegrar por isso. Estou cansado de levar uma vida dupla Bianca. Estou cansado de negar uma parte do que sou. Isso fez meu irmão vulnerável, e finalmente o matou. Eu não viverei assim. Estou orgulhoso do que fiz com a fábrica. É importante para mim, essencial para mim, e não tenho intenção de deixá-lo.
—Acredito que posso entendê-lo.
—Sim, pode. E eu posso te entender. Entendo que abraçar seu sonho e sua arte não significa me rechaçar, inclusive se significa que não pode estar comigo.
Ela se apertou contra ele. Era tão agradável sentir sua feminina calidez. Entretanto, seu abraço reconhecia que era a hora de tomar decisões. A beleza de sua tristeza sacudiu o coração dele.
—O que vamos fazer agora? —balbuciou ela.
Estava pedindo ajuda para seguir.
—Visitaremos Paris e depois você continuará até a Itália. Trouxe um giro do banco que pode levar. Te virá bem até que possamos por tudo em ordem. Faremos Jane vir quando estivermos em Paris e disporemos os planos para sua viagem ao sul.
Seus grandes olhos azuis se abriram daquele modo tão inocente e tão erótico.
—Não me referia a isso, Laclere. O que nós vamos fazer agora?
Seu sangue se acendeu imediatamente em resposta a seu tranquilo convite. Atraiu-a para ele e a beijou com uma ferocidade nascida do alívio e do arrependimento.
—É a mais perigosa das mulheres.
Ela caminhou de costas para o interior da casa.
—Só sou perigosa para você, meu senhor. Prometo isso.
Ele se deixou conduzir até um tapete de pele que havia junto ao fogo. Com uns olhos que anunciavam a paixão por chegar, ela soltou a capa e começou a despi-lo.
—Pensava em você frequentemente quando caminhava perto do mar. — Deixou cair seu colete e arrancou o lenço do pescoço— O poder das ondas, seu ritmo e sua força, a glória de toda essa natureza indômita… Podem empapar uma pessoa do mesmo modo que o amor e a paixão. Puro movimento. Como a música. Sim, parece-se muito à música. Queria contemplar o mar e fazer amor contigo e deixar meu coração cantar.
—Faremos então. —Agarrou a capa e a tirou— No escarpado. Faremos amor ali e você cantará para mim, uniremos nossa paixão a da criação e recordaremos este dia para sempre.
Voando de desejo, fizeram seu caminho para o escarpado, encolhidos um contra o outro para se proteger do vento, a ponto de derramar seu amor na horta quando se detiveram para dar-se calor com um abraço. Fizeram o caminho de ascensão para o ponto mais alto, onde o sol do oeste ainda esquentava e uma luz rosada e etérea banhava as flores nascentes.
Bianca contemplou o mar, tão perto da borda do escarpado que alguém esperava que se pusesse a voar. O vento açoitou sua capa, seu vestido e seu cabelo até fazê-la parecer o centro de uma diminuta tempestade. Fechou os olhos e simplesmente sentiu, e ele sentiu através dela. Sua voz trilava acima e abaixo as escalas enquanto ela se apresentava ante os elementos.
—Isto é divino — sussurrou.
Ele se aproximou uns passos por trás dela.
—Canta a ária de Rossini — disse— Canta como fez aquele dia nas ruínas.
—Essa é a que prefere? Sabe o que diz a letra?
—A cantora explica que não se casará com seu malvado guardião, mas sim encontrará uma maneira de estar com seu verdadeiro amor.
—Muito adequado para esse dia nas ruínas, exceto o amor verdadeiro era em realidade o malvado guardião.
—No profundo de seu coração o malvado guardião desejava que assim fosse. —Abraçou-a— Canta-a para mim.
Ao princípio mal podia ouvi-la. O vento lhe roubava o som dos lábios e o levava entre as nuvens. Mas seu fôlego e sua voz encontraram sua potência e a música saiu a torrentes dela, outro vento fazendo voar sua paixão, outra força empapando sua alma. Ele a sentia ao seu lado, ela o atraía para essa força, orgulhando-se da energia elementar de sua voz e sua feminilidade.
A fez baixar até o chão e a tomou enquanto cantava. A união a deixou sem fôlego, incapaz de fazer soar as notas, mas a ária continuava silenciosamente em sua cabeça, cheia do rugido do vento e do mar. Sua alma cantava também. Expressou seu êxtase através de seus beijos, abraços e gritos até que a culminação estalou fundindo os dois na sublime fúria da costa.

***

Aferrou-se à parede da lareira enquanto um prazer de uma intensidade extraordinária a deixava sem forças. Só porque ele a segurava conseguia permanecer de joelhos, enquanto a língua de Laclere fazia pulsar sua vulva com sensações prodigiosas. Ele alcançou sua cintura e a empurrou até colocá-la escarranchada sobre seus quadris, no tapete de pele que havia junto ao fogo. Ela se recostou contra seu peito e piscou com seus sentidos alerta.
Naquele instante, com a solidez de seu corpo debaixo dela e o calor de sua paixão ardendo, viu seu futuro. Soube como devia ser. Nenhum arrependimento tingiria a alegria que aquela decisão daria. Nos anos que viriam possivelmente experimentaria certa nostalgia por aquilo ao que ia renunciar, mas nunca se afligiria.
Sentiu-o duro debaixo dela, sua necessidade se intensificou pelos beijos que acabava de lhe dar. Ela se elevou para sentar-se sobre suas coxas, e contemplou o homem que se misturou em seus planos só para converter-se no centro de sua vida.
—Quero que sejamos amantes para sempre, Laclere.
—Seremos querida. Viajarei a Itália frequentemente e as separações não serão muito longas.
Acariciou-lhe o peito, maravilhosamente consciente de sua pele e de seu corpo.
—Não quero distância. Não quero separação. Não te deixarei Laclere. Meu coração não me permite isso. Quero me casar.
Sua declaração o surpreendeu. Apertou suas mãos para deter as carícias e a olhou aos olhos.
Não havia triunfo em sua expressão. Ela só viu alívio e amor e surpresa.
Depois uma compreensão mais profunda escureceu as radiantes emoções.
—Disse que renunciar a seu sonho significaria renunciar a metade de sua alma. Eu não quero isso.
—Posso cantar em qualquer lugar, Laclere. Em meu quarto e no teu. Em um castelo em ruínas. Não preciso estar na Itália para que minha alma esteja inteira. Não preciso me formar em atuações para poder praticar minha arte.
Sua rendição parecia preocupá-lo. As gemas de seus dedos roçavam o inchaço de seus seios enquanto pensava, como se suas sombras o ajudassem em suas reflexões.
—Deve continuar estudando, querida. Quando ultrapassar a destreza do senhor Bardi, traremos outro professor de canto da Itália, como te prometi.
Atraiu-a para ele para abraçá-la. Deu-lhe um longo beijo enquanto deslizava suaves carícias sobre seu corpo.
—Treinará e atuará quando estiver preparada. Se eu faço algo tão escandaloso como administrar uma fábrica, ter uma esposa que atua é quase insignificante.
Agora tocava a ela surpreender-se.
—Não será tão simples, Laclere. Permitir isso terá um custo social muito alto. Eu não quero que sua família sofra por minha culpa.
—Passarão alguns anos antes que atue nos cenários. Charlotte já estará casada então, assim não prejudicaremos seu futuro. Quanto a Pen e a Dante não são precisamente modelos quanto ao decoro. Possivelmente as pessoas simplesmente pensarão que me tornei excêntrico como meu pai e meu irmão. E se não, tampouco me importa. Sua felicidade não tem preço, meu amor.
A Bianca ardia à garganta e enchiam os olhos de lágrimas. Amava-o tanto naquele momento que esse amor enchia seu coração de uma forma esplêndida.
—Obrigado por querer fazer isto por mim, mas não está sendo prático. Quando estiver preparada para atuar já teremos filhos.
—Então teremos um exército de babás e tutores que estarão com eles quando tiver que viajar por seus compromissos. Cumprirá seu sonho, Bianca. Se estiver comigo, não permitirei que nosso matrimônio te faça renunciar a nada.
Ela o beijou. A calidez de seus lábios pareceu forjar a mais doce conexão que jamais compartilhou. Ela sabia com a certeza de uma mulher que esse matrimônio a faria renunciar a uma parte de seu sonho, mas não importava. Seu desejo de dar-lhe tudo era algo que sempre recordaria.
—Não pretendo viajar muito. Não farei atuações no continente. Não quero construir uma carreira para a fama, Laclere. Entretanto, seria bonito, às vezes, ter a oportunidade de cantar ante centenas de pessoas.
Elevou seu corpo e a atraiu para ele para poder enchê-la. Segurando-a contra seu coração a levou de volta à paixão.
Depois ela ficou estendida e empapada por sua presença. As doces palavras de amor que ele havia dito ao final continuavam soando em seus ouvidos, e lentamente se deu conta de que ele ainda as repetia. Fez um esforço para recuperar seus aturdidos sentidos.
E se deu conta de que pela primeira vez ele permanecia dentro dela.
Elevou-se sobre seus cotovelos e o olhou.
Um amor incondicional foi rememorado.
Compartilharam uma unidade perfeita nesse honesto olhar.
Que terrivelmente maravilhoso podia ser o amor, pensou ela. Alguém se encontrava e se perdia no interior de seu silencioso poder. O amor tinha uma força transportadora maior que a do êxtase da música e a natureza. Era mais emocionante que a borda de um escarpado ou que o estalo da paixão.

 

                                                                  Madeline Hunter

 

 

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