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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SATANICO DR. NO
O SATANICO DR. NO

 

                                                                                                                                              

 

 

 

 

 

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

XIX - UMA CHUVA MORTAL


Bond correu os olhos por todo o cenário e puxou logo a cabeça.

Encostou-se à superfície fria da rocha e esperou que a sua respiração voltasse ao normal. Levantou a faca até junto dos olhos e examinou-lhe cuidadosamente a lâmina. Satisfeito, colocou-a na cintura da calça. Ali estaria à mão e não poderia bater em nada. Em seguida, Bond sentou-se e meticulosamente examinou a fotografa que tinha no cérebro.

Depois da curva, a não mais de dez metros de distância, estava o guindaste. A cabina não tinha parede traseira. Em seu interior estava um homem sentado, com as mãos nos controles. Era o capataz chinês que já dirigira o trator do pântano. À sua frente, o cais avançava vinte metros para dentro do mar o terminava num T. Um navio-tanque, já muito velho, de cerca de dez mil toneladas, estava atracado na barra superior do T. Estava bem à tona d’água, com o convés talvez a uns doze pés acima do cais. O navio chamava-se “Blanche”, e o “Ant” de Antuérpia podia ser visto do lado de estibordo, na popa. Não havia indícios de vida a bordo, com exceção de um vulto, junto à roda do leme, na ponte de comando. O resto da tripulação estaria embaixo, fugindo à poeira do guano. Bem à direita do guindaste, uma correia transportadora elevada projetava-se da frente do penhasco. Era sustentada por altas pilastras, até o cais, terminando quase sobre o porão do navio-tanque. Sua boca terminava numa enorme garganta de lona, talvez de uns seis pés de diâmetro. O objetivo do guindaste era levantar a armadura de arame daquela boca, de modo que ficasse exatamente sobre o porão do navio, assim como deslocá-la de um lado para outro, a fim de lograr uma distribuição uniforme da carga, no porão. Daquela boca de lona, num jato sólido o cheio, dirigido para baixo, o pó de guano estava sendo levado para dentro do porão do navio, à razão de toneladas por minuto.

Embaixo, no cais, para a esquerda e a sota vento daquela poeira de guano, estava a figura alta e vigilante do Dr. No.

Era tudo. A brisa da manhã fustigava o ancoradouro de águas profundas, ainda meio coberto pela sombra dos penhascos que lhe ficavam a cavaleiro, e a esteira transportadora saltitava serenamente em seus rolamentos, enquanto o motor do guindaste matraqueava ritmadamente. Não havia nenhum outro som ou movimento, nem outra vida a não ser a do vigia, na ponte de comando do navio, a do guindasteiro que operava na cabina, e a do Dr. No a fiscalizar tudo o que se fazia. Do outro lado da montanha, outros homens estariam trabalhando, na faina de alimentar a esteira transportadora com o guano triturado, mas deste lado não se permitia a presença de ninguém, e aliás qualquer outra presença seria desnecessária. A não ser dirigir a enorme boca de descarga, não havia nenhuma outra tarefa a fazer.

Bond sentou-se e pensou, medindo distâncias, visualizando ângulos, procurando onde estariam as mãos e pés do guindasteiro, nos pedais e alavancas da cabina. Lentamente, um sorriso fino e duro começou a desabrochar no seu rosto queimado pelo sol. Sim! Podia ser feito! Mas silenciosamente e com todo o cuidado! Valeria a pena aquela empreitada! Bond examinou as solas dos pés e as mãos. Eles permitiriam que ele o fizesse. Teriam que permitir. Apalpou o flanco e sentiu o cabo da faca. Puxou a lâmina um pouco para fora. Continuou de pé, respirou profundamente, por várias vezes, passou as mãos pelos cabelos encharcados de suor e sal, depois esfregou-as para cima e para baixo, de encontro ao rosto, e em seguida passou-as nos flancos esfarrapados de suas calças. Fez uma enérgica contração final com os dedos e deu-se por preparado.

Bond subiu para a rocha e deu uma espiada em volta.

Nada tinha mudado. Seus cálculos de distâncias tinham sido corretos. O guindasteiro estava absorvido em sua tarefa. O pescoço emergia da camisa aberta, nu, oferecendo-se, à espera. A vinte metros de distância, o Dr. No, também de costas para Bond, mantinha-se de sentinela à espessa e rica catarata de poeira amarelo-esbranquiçada. Na ponte de comando, o vigia estava acendendo um cigarro.

Bond observou os dez metros de caminho que o separavam da parte posterior do guindaste. Examinou bem os lugares em que iria pisar. Depois, saiu de trás da rocha e correu para o lado direito do guindaste, para um ponto que escolhera por nele ficar escondido do cabineiro e do cais, pela parte lateral da cabina. Chegando àquele ponto, Bond parou e procurou ouvir, atento. O motor continuava a trabalhar, e a esteira a arrastar o guano.

As duas pequenas plataformas para facilitar aos pés a escalada da cabina estavam a algumas polegadas do rosto de Bond e pareciam sólidas. De qualquer forma, o barulho do motor abafaria pequenos ruídos. Mas ele teria que ser rápido e tomar logo os controles. O primeiro golpe da faca teria que ser mortal. Bond tateou a sua própria clavícula, sentindo o mole triângulo de pele sob o qual pulsava a veia jugular; pensou mais uma vez no ângulo de aproximação para as costas do cabineiro, e tornou a recomendar-se que forçasse a faca profundamente, mantendo-a enterrada em sua vítima.

Durante um segundo final ele ainda ouviu. Depois, empunhou a faca e subiu os degraus de ferro, penetrando na cabina com a rapidez e a leveza de uma pantera.

No último momento não houve necessidade de pressa. Bond ficou atrás do cabineiro, como que a cheirá-lo. Teve tempo para levantar a faca quase até o teto da cabina, assim como tempo bastante para reunir todas as suas energias, antes de cravar a arma naquela pele amarelo-escura.

As mãos e pernas do homem afastaram-se bruscamente dos controles, e seu rosto projetou-se para trás, em direção a Bond, que julgou ter visto naqueles olhos um brilho de reconhecimento, antes de se voltarem para cima. Depois, um som estrangulado saiu daquela boca aberta, e o enorme corpo rolou para o lado, estatelando-se no chão.

Os olhos de Bond não o acompanharam nem mesmo em sua queda até o chão, pois logo se acomodou no assento, procurando os pedais e alavancas. Tudo tinha escapado ao controle. O motor trabalhava em ponto neutro, com o cabo de aço repuxando o tambor de lona; e a extremidade da lança do guindaste baixava lentamente, para frente, como o pescoço de uma girafa, descarregando a sua coluna de poeira entre o cais e o navio. O Dr. No tinha os olhos voltados para cima, e a sua boca estava aberta. Talvez estivesse gritando alguma coisa.

Calmamente, Bond dominou a máquina, levando com cuidado os pedais e alavancas para os ângulos em que o guindasteiro os estivera segurando. O motor acelerou, as engrenagens pegaram, e o conjunto retomou o ritmo de trabalho anterior. O cabo de aço do guindaste afrouxou um pouco, e, depois, mudando de direção, desviou a boca de lona para cima do navio. A extremidade da lança elevou-se e parou. A cena era a mesma de antes. Agora!

Bond esticou o braço para apanhar a roda de ferro que o guindasteiro estivera manipulando, assim que ele o vira na cabina. Para que lado deveria virar? Bond tentou a esquerda, e a extremidade da lança deslocou-se levemente para a direita. Então Bond torceu para a direita. Sim, por Deus, a lança obedecia, deslocando-se pelo ar e arrastando consigo a boca de descarga. Os olhos de Bond desviaram-se para o cais. O Dr. No tinha saído de seu lugar. Tinha dado alguns passos, aproximando-se de uma pilastra que passara despercebida de Bond. Segurava um telefone, nas mãos, e procurava ligar com alguém do outro lado da montanha. Bond podia vê-lo a agitar frenèticamente o fone.

Bond rodou mais rapidamente aquele volante de direção. Por Deus, aquilo não andaria mais depressa? Dentro de alguns segundos o Dr. No desligaria, e então seria muito tarde. Vagarosamente, a lança passeou pelas alturas e agora a boca de descarga deixava cair a sua coluna de guano triturado para fora da amurada do navio. O montículo amarelo estava passeando silenciosamente sobre o cais. Cinco metros, quatro metros, três dois metros! Não olhe para o lado, bastardo! Ah, apanhei-o! Pare o volante! Agora, tome, Dr. No!

Ao primeiro raspão da coluna de guano, o Dr. No virou-se rapidamente. Bond viu os seus compridos braços se abrirem, como se procurassem abraçar aquela repugnante massa. Um dos joelhos ergueu-se para correr. A boca abriu-se, e um grito agudo chegou aos ouvidos de Bond, por entre o barulho do motor. Depois houve o rápido espetáculo do um homem de neve bailando. E, depois, um enorme monte de guano que rapidamente ia crescendo.

— Deus do céu! — a voz de Bond devolveu um eco causado pelas paredes de ferro da cabina. Pensou nos pulmões que com os brados se estariam enchendo daquele pó nauseabundo, o corpo curvando-se e depois caindo sob aquele peso, o último movimento impotente dos calcanhares, o último clarão de pensamento — de ódio, horror e derrota? — e o silêncio do asqueroso túmulo.

Agora a montanha amarela tinha vinte pés de altura, e o guano começava a transbordar pela orla do cais, caindo no mar. Bond lançou um olhar ao navio, e, no momento em que o fez ouviram-se três apitos de sua sirena. O eco contornou os penhascos e ouviu-se um quarto apito, que não parou. Bond podia ver o vigia debruçando-se à janela da ponte de comando e olhando para baixo. Retirou as mãos dos controles e deixou que eles se estragassem. Era tempo de abandonar a cabina.

Bond saltou do assento de ferro e inclinou-se sobre o cadáver. Recolheu do coldre um revólver e examinou-o. Fez uma careta — era um “Smith & Wesson”, calibre 38, de modelo usual. Enfiou-o em sua cintura. Era bom sentir o metal frio e pesado encostado à pele. Chegou até a porta da cabina e saltou para o chão.

Uma escada de ferro subia pelo penhasco, por trás do guindaste, até o ponto em que se erguia a instalação da esteira transportadora. Havia uma pequena porta na parede de ferro ondulado, no galpão que protegia a instalação da esteira. Bond galgou a escada. A porta abriu-se facilmente, deixando escapar uma baforada de pó de guano, e Bond entrou.

No interior, o barulho causado pelo deslizamento da esteira sobre os roletes era ensurdecedor, mas havia pálidas luzes de inspeção, no teto do túnel, e uma picada se internava pela montanha, acompanhando aquele apressado rio de pó. Bond andou rapidamente pelo caminho, procurando respirar superficialmente, por causa daquele cheiro de amoníaco. Custasse o que custasse, ele devia ir até o fim, antes que a sirena do navio e o telefone que não respondia vencessem os temores dos guardas.

Bond corria e tropeçava através daquele horrível túnel cheio de ecos. Qual seria a sua extensão? Duzentos metros? E depois? Nada lhe restava senão deixar a boca do túnel, correndo, e começar a atirar — isto é: causar pânico e esperar pelo melhor. Agarraria um dos homens e tiraria dele a revelação do paradeiro da jovem. E depois? Quando ele chagasse à falda da montanha, o que aconteceria? Que teria sido deixado dela?

Bond correu mais depressa, com a cabeça baixa, prestando atenção para a estreita pinguela, e pensando no que aconteceria se falseasse o pé e caísse no rio de poeira de guano. Seria ele capaz de safar-se da esteira ou seria arrastado e, finalmente, atirado à sepultura do Dr. No?

Quando a cabeça de Bond bateu num ventre mole e sentiu um par de mãos em seu pescoço, já era muito tarde para pensar em seu revólver. Sua única reação foi jogar-se no chão e para a frente, de encontro às pernas do inimigo. As pernas cederam ao impacto de seus ombros, e ouviu-se um grito agudo quando o corpo do adversário caiu sobre as suas costas.

Bond já tinha iniciado o golpe que lançaria o seu atacante para dentro da esteira, quando o som daquele grito e algo de leve e suave no impacto daquele corpo paralisaram-lhe os músculos.

Não podia ser!

Como que em resposta, dentes agudos cravaram-se na barriga de sua perna direita, e um cotovelo feriu-o maldosamente, propositadamente em certa região, próxima à virilha.

Bond gritou com a dor. Tentou encolher-se para o lado, a fim de se proteger, mas, mesmo quando já havia gritado “Honey!”, tornou a sentir mais uma cotovelada.

A respiração opressa, causada pela agonia, passando entre os dentes de Bond, fez que ele assobiasse. Havia apenas um meio de detê-la sem jogá-la para dentro da esteira. Agarrou fortemente um de seus tornozelos e levantou-se, sustentando-a de cabeça para baixo, sobre seu ombro, e segura por um pé. O outro pé desferiu-lhe golpes na cabeça, mas com pouca violência, como se ela também já tivesse compreendido que alguma coisa estava errada.

— Pare com isso, Honey. Sou eu!

Ele ouviu-a gritar “James!” e sentiu as suas mãos agarrarem-se em suas pernas. “James, James!”

Cuidadosamente, Bond soltou-a. Depois, virou-se e, ajoelhando-se, estendeu-lhe as mãos. Colocou os braços à volta de sua cintura e estreitou-a fortemente. — Oh, Honey, Honey! Você está bem? — Desesperadamente, sem acreditar no que estava acontecendo, ele apertou-a ainda mais.

— Sim, James! Oh, sim! — Ele sentiu as suas mãos nas suas costas e em seu cabelo. — Oh, James, querido!

— Ela encostou a cabeça no peito de Bond, soluçando.

— Está tudo bem, Honey. — Bond alisou os seus cabelos. — O Dr. No está morto; mas agora teremos que correr. Temos que sair daqui. Vamos! Como poderemos sair do túnel? Como é que você chegou aqui? Temos que andar depressa!

Como uma resposta à situação, a esteira parou com um solavanco.

Bond pousou a jovem no chão. Ela estava usando um sujo macacão de trabalhador, com as mangas e calças arregaçadas. A roupa era muito grande para ela, e Honey parecia uma menina metida num pijama de homem! Estava toda branca com a poeira do guano, com exceção das marcas de lágrimas em seu rosto. Ela disse, sem fôlego:

— Para lá! Há um túnel lateral que conduz às oficinas e à garagem. Eles nos virão procurar?

Não havia tempo para falar. Bond disse apressadamente: “Siga-me” e pôs-se a correr. Atrás, os pés de Honey batiam suavemente no silêncio vazio. Chegaram ao cruzamento onde o túnel lateral atravessava a rocha. De que lado viriam os homens? Bond puxou a jovem alguns pés, acima do túnel principal, atraiu-a para junto de seu corpo e sussurrou: — Sinto muito, Honey. Receio ter que matá-los.

— Claro. — A resposta sussurrada era perfeitamente natural. Ela apertou a mão de Bond e afastou-se para trás, a fim de lhe dar espaço. Depois, pôs as mãos nos ouvidos.

Bond tirou o revólver da cintura, cuidadosamente deslocou o tambor para o lado, e apalpou com o polegar para certificar-se de que as seis câmaras estavam carregadas. Bond sabia que não iria gostar daquilo: matar, novamente, a sangue frio, mas aqueles homens deviam ser os bandidos chineses negros, os guardas que se encarregavam do trabalho sujo. Certamente que tinham matado Strangways e sua companheira. Mas não adiantava procurar acalmar a sua consciência. A questão era: matar ou ser morto. Devia apenas fazê-lo com eficiência.

As vozes já estavam mais próximas. Havia três homens que falavam alto e nervosamente. Bond se perguntou se eles olhariam em torno, quando chegassem ao túnel principal. Ou teria que disparar contra eles, pelas costas?

Agora, eles estavam muito perto. Podiam-se ouvir os seus sapatos ferindo o chão.

— Isso perfaz dez dólares, que você me deve, Sam. — Não antes desta noite. Faça-os em pedaços, rapaz.

Faça-os em pedaços.

— Nada de dados para mim, esta noite. Hoje vou querer um pedaço daquela garota branca.

— Ha, ha, ha...

O primeiro homem chegou, depois o segundo, em seguida o terceiro. Eles carregavam os revólveres frouxamente, nas mãos.

Os três homens entraram no túnel principal, encaminhando-se para o lado em que estava Bond. Os alvos dentes dos guardas brilharam em suas bocas abertas. Bond atirou contra o último homem, na cabeça, e contra o segundo no estômago. O revólver do primeiro já estava em posição de tiro e uma bala passou raspando por Bond, perdendo-se pelo túnel. O revólver de Bond replicou e o homem levou as mãos ao pescoço para logo cair lentamente sobre a esteira transportadora. Os ecos reboaram lenta e abafadamente pelo túnel. Uma nuvem de fina poeira levantou-se no ar e depois pousou no chão e nas paredes do túnel. Dois corpos jaziam imóveis no chão, mas o homem que fora atingido no estômago agitava-se ainda no solo. Bond enfiou o revólver na cintura da calça e disse à jovem — Venha. — Ato contínuo, segurou a mão de Honey e foi arrastando-a atrás de si, pela entrada do túnel lateral. A caminho, ele disse: — Desculpe-me, Honey — e logo pôs-se a correr.

Ela respondeu: — Não seja estúpido. — Depois disso não se ouviu mais nada, a não ser as batidas dos pés descalços de ambos no chão.

O ar era limpo, no túnel lateral, e era mais fácil de percorrê-lo, mas depois da tensão dos tiros, a dor começou novamente a se apossar do corpo de Bond. Contudo, continuava correndo automaticamente e mal conseguia pensar na jovem. Toda a sua mente se concentrava em resistir à dor e nas tarefas que o aguardavam quando chegasse ao fim do túnel.

Não sabia se os tiros tinham sido ouvidos e também não tinha a mínima idéia relativamente à oposição que ainda lhe restaria enfrentar. O seu único plano era disparar contra qualquer pessoa que se lhe interpusesse no caminho, e, de qualquer maneira, chegar à garagem e apoderar-se do trator. Essa era a sua única esperança de se afastar da montanha e atingir a costa.

As lâmpadas de uma luz amarelada e pálida bruxuleavam sobre suas cabeças, mas nada de o túnel acabar. Atrás, Honey tropeçou. Bond deteve-se e se amaldiçoou por não ter pensado nela. Ela estendeu os braços para ele e por um momento descansou em seu peito, trêmula e com o coração palpitando.

— Desculpe-me, James — disse ela; — é que...

Bond estreitou-a e disse:

— Você se machucou, Honey?

— Não; estou bem. Sinto-me terrivelmente cansada. E os meus pés se cortaram um pouco ria montanha. Caí muito durante a noite, no escuro. Se pudéssemos andar um pouco... Já estamos quase chegando. E há uma porta na garagem, antes de chegarmos à oficina. Não poderíamos entrar lá?

Bond apertou-a mais de encontro ao peito, e disse:

— Isso é justamente o que estou procurando fazer, Honey. Esta é a nossa única esperança de nos livrarmos daqui. Se você puder agüentar até chegarmos lá, então teremos uma boa oportunidade.

Bond passou um braço pela cintura da jovem e alivio-a de seu peso. Preferiu não olhar para os pés de Honey. Sabia que eles deveriam estar em más condições. Pouco adiantaria que um se apiedasse do outro. Não havia tempo para isso, se é que desejassem escapar.

Pôs-se novamente a caminho, mas as contrações de seu rosto bem demonstravam o que significava para ele aquele esforço extra. Os pés de Honey iam deixando pegadas ensangüentadas no chão. Subitamente ela sussurrou algo ao seu ouvido, mostrando-lhe uma porta de madeira, na parede do túnel. A porta estava entreaberta e nenhum ruído vinha do outro lado. Bond tirou o revólver e abriu a porta. A comprida garagem estava vazia. Sob as lâmpadas de gás néon, o dragão pintado de ouro e negro, sobre rodas, parecia um carro alegórico — que aguardasse o momento de participar da procissão do Prefeito de Londres. Estava de frente para as portas corrediças, e a portinhola da cabina blindada estava aberta. Bond desejou que o tanque de gasolina estivesse cheio e que o mecânico tivesse feito os consertos necessários.

Súbito, de algum ponto do lado de fora, ouviram-se vozes. Elas se aproximaram mais e mais, tagarelando ansiosamente.

Bond segurou a mão de Honey e avançou. Havia apenas um lugar onde poderiam esconder-se — no trator. A jovem subiu para a cabina, logo acompanhada por Bond. Ali, agacharam-se e esperaram. Bond pensou: apenas três cartuchos deixados no tambor. Demasiado tarde ele se lembrava das armas penduradas à parede, na garagem. Agora as vozes estavam bem em frente à garagem. Ouviu-se o ruído da porta que deslizava sobre os roletes e uma confusão de vozes.

— Como é que você sabe que eles estavam atirando?

— Não podia ser outra coisa. Do contrário eu saberia.

— É melhor apanhar os rifes. Aqui, Joe! Apanhe aquele lá, Lemmy! E algumas granadas. A caixa está debaixo da mesa. Ouviu-se o barulho de parafusos sendo apertados e fechos de segurança estalando.

— Algum sujeito andou disparando. Não podia ser aquele gringo inglês. Você viu a que ficou reduzido aquele sujeito grande, lá na enseada? Credo! E o resto das armadilhas que o Doutor colocou no túnel? E aquela garota branca? Ela não deve ter guardado a mesma forma, hoje de manhã. Algum de vocês foi dar uma espiada?

— Não, senhor.

— Não.

— Não.

— Há, há... Não há dúvida que estou muito surpreendido com vocês, rapazes.

Ouviu-se ainda mais barulho de pés e depois a mesma voz que dizia:

— Bem, vamos indo? Dois na frente, até chegarmos ao túnel principal. Atirem para as pernas. Quem quer que esteja fazendo confusão, o Doutor há-de querê-lo para os seus passatempos.

As pistolas daqueles homens ecoaram no concreto. Bond susteve a respiração, enquanto os guardas se iam retirando, um a um. Notariam eles que a portinhola do trator agora estava fechada? Mas todos eles passaram sem prestar atenção àquele detalhe, internando-se pelo túnel. O ruído de seus passos foi diminuindo gradativamente, até silenciar de todo.

Bond tocou no braço da jovem e colocou o dedo nos lábios. Cautelosamente ele abriu a portinhola da cabina e tornou a escutar. Nada. Pulou para o chão, deu a volta ao trator, e foi até a porta da garagem que estava entreaberta. Olhou para todos os lados. Não havia ninguém à vista. Apenas um cheiro de alimentos fritos, que trouxe água à boca de Bond. Podia-se ouvir o barulho de pratos e panelas, na construção mais próxima, a cerca de vinte metros de distância, e de uma das tendas mais distantes chegou o som de uma guitarra e a voz de um homem entoando um calipso. Cães começaram a ladrar sem muita vontade, e depois reinou o silêncio. Eram os cães de fila Dobermann.

Bond deu a volta e correu para o fundo da garagem. Nenhum som vinha do túnel. Suavemente fechou a porta do túnel a chave e trancou-a. Depois foi ao suporte das armas, pregado à parede, e escolheu outro “Smith & Wesson” e uma espingarda “Remington”, tendo o cuidado de verificar que ambas as armas estavam carregadas. Em seguida foi ter à portinhola do trator e entregou as armas à jovem. Agora, para a porta de entrada. Bond encostou o ombro e lentamente começou a abri-la. Quando a porta ficou escancarada, Bond correu para a cabina do trator e sentou-se no banco do motorista.

— Feche a porta, Honey — sussurrou ansiosamente, enquanto simultaneamente virava a chave de partida.

A agulha, no mostrador, correu para “máximo”. Bond pediu a Deus que a máquina partisse rapidamente. Ele bem sabia que alguns motores diesel eram lentos. Em seguida pisou resolutamente no acelerador.

O chocalhar das engrenagens era ensurdecedor. Certamente que aquela barulheira seria ouvida em todo o grupo de construções. Bond parou e tentou novamente. O motor resfolegou e silenciou. Mais uma vez, agora felizmente a coisa pegou e Bond calmamente procurou engrenar. Para que lado? Experimente este. Sim, deu certo. Solte o freio, idiota! Por Deus, o motor quase afogara.

Mas agora já estavam fora da garagem e ganhando velocidade. Bond pisou até a tábua.

— Alguém está-nos perseguindo: — Bond teve que gritar, para poder ser ouvido naquela barulheira.

— Não. Espere! Sim, um homem saiu de alguma das tendas! Outro! Estão nos acenando com os braços e gritando. Agora estão chegando outros. Um deles correu para a direita e outro entrou apressadamente na tenda. Lá vem ele com um rife. Deitou-se. Vai disparar.

— Feche a fenda aí. Deite no chão!

Bond olhou para o velocímetro. Vinte quilômetros. E eles estavam numa descida. Não se podia esperar mais do motor. Bond concentrou-se em manter as gigantescas rodas nos sulcos do caminho. A cabina saltava e sacolejava sobre as molas. Não era muito fácil manter pés e mãos nos controles. Um punho de ferro bateu com clangor na cabina. E mais um. Qual seria a distância? Quatrocentos metros? Boa pontaria. Bond gritou:

— Honey, dê uma espiada. Abra a fenda, um pouquinho só.

— O homem já se levantou. Parou de atirar. Eles estão todos nos observando — uma multidão deles. Espere, não é só isso. Os cães estão vindo! Ninguém os acompanha. Estão descendo pelo caminho, em nosso encalço. Será que eles nos pegam?

— Não tem importância, Honey. Venha e sente-se ao meu lado. Segure-se bem. Cuidado com a cabeça no teto. — Bond soltou um pouco o acelerador. — Puxa, Honey, saímos dessa! Quando chegarmos ao lago pararei e atirarei contra os cães. Eu conheço bem esses monstrinhos, basta matar-se um para que os outros se entretenham em devorá-lo.

Bond sentiu a mão de Honey em seu pescoço, e ela a manteve assim, enquanto o trator ia aos pulos pela rota. Chegando ao lago, Bond avançou uns cinqüenta metros para dentro da água, deu volta com o trator e debreou. Através do pára-brisa ele pôde ver a matilha contornando a última curva. Apanhou o rife a seus pés e introduziu o cano pela abertura. Agora os cães já tinham chegado ao lago e começavam a nadar. Bond manteve o dedo no gatilho e descarregou uma saraivada no meio dos animais. Um deles começou a se debater, e logo outro, e mais outro. Bond podia ouvir os seus uivos de dor, a despeito do ruído do motor. Havia sangue na água, e dentro em pouco começou uma luta. Bond viu um dos cães saltar sobre um dos feridos e enterrar os dentes em sua nuca. Agora todos pareciam estar loucos. Todos se mordiam, numa verdadeira roda viva, em meio a uma água sanguinolenta e espumante. Bond descarregou toda a sua arma entre os animais e deixou-a cair no chão. Depois disse: “Eis aí, Honey”, e embreou novamente, iniciando a travessia do lago em velocidade moderada, na direção dos mangues que ficavam na foz do rio.

Durante cinco minutos mantiveram-se assim em silêncio. Depois Bond descansou uma das mãos no joelho da jovem e disse:

— Agora não deve haver mais perigo, Honey. Quando descobrirem que o chefe está morto, haverá pânico. Acho que os mais espertos procurarão fugir para Cuba, num avião ou numa lancha. Hão-de ficar preocupados com salvar a pele e não conosco. De qualquer forma, não sairemos com a canoa enquanto não estiver bastante escuro. Agora devem ser umas dez horas. Devemos chegar à costa dentro de uma hora. Chegando lá descansaremos e procuraremos pôr-nos em forma para a viagem. O tempo parece muito bom, e acho que haverá um pouco mais de luar, esta noite. Você acha que pode agüentar?

A mão de Honey apertou a garganta de Bond:

— É claro que posso, James. E você? Pobre do seu corpo! Está todo coberto de queimaduras e ferimentos. E o que são essas marcas vermelhas em sua barriga?

— Depois eu conto. Estou bem. Mas diga-me o que lhe aconteceu na noite passada. Como é que você conseguiu safar-se dos caranguejos? Que teria falhado nos planos daquele bastardo? Durante toda a noite não pude pensar em outra coisa senão em você sendo devorada pelos caranguejos. Meus Deus, que pesadelo! Que aconteceu?

A jovem estava mesmo rindo. Bond observou-a melhor. Os seus cabelos estavam desgrenhados e os seus olhos azuis inchados pela falta de dormir, mas a não ser isso ela bem poderia estar a caminho de casa, de volta de um churrasco.

— Aquele homem pensou que entendia de tudo — começou a jovem. — Mas não passava de um tolo. — Ela bem poderia estar falando de um mestre-escola idiota. — Ele estava muito mais impressionado com os caranguejos negros do que eu. Para começar, não me importo que nenhum animal me toque, mas, de qualquer modo, aqueles caranguejos nem mesmo pensariam em arranhar alguém que fique imóvel e não tenha nenhuma ferida no corpo. A verdade é que eles não gostam de carne. Nutrem-se principalmente de plantas e outras coisas. Se ele disse a verdade, isto é, se ele conseguiu matar uma jovem negra, por aquele modo, ou ela tinha alguma ferida ou deve ter morrido de terror. Ele com certeza quis ver se eu resistia à prova. Velho nojento. Só desmaiei durante o jantar porque sabia que ele reservava algo de muito mais terrível para você.

— Diabo! Eu gostaria de ter sabido disso. Logo imaginei você sendo reduzida a pedaços.

A jovem resmungou:

— Naturalmente que não foi muito agradável ver arrancarem as minhas roupas e amarrarem-me em cavilhas, no chão. Mas aqueles negros não ousaram tocar em mim. Apenas disseram gracejos e depois se afastaram. Também não era muito agradável a rocha, mas eu estava pensando em você e como poderia chegar até o Dr. No e matá-lo. Foi então que ouvi os caranguejos começando a Corrida — é como nós dizemos cm Jamaica — e logo eles chegavam matraqueando o escorregando às centenas. Passaram sobre o meu corpo e à minha volta. Pela atenção que eles me deram, eu bem poderia ter sido uma rocha. É verdade que me fizeram um pouco de cócegas ou me aborreceram tentando puxar o meu cabelo, e isso foi tudo. Apenas esperei que amanhecesse, quando eles se recolhem em buracos e vão dormir. Gostei muito deles. Fizeram-me companhia. Depois foram-se tornando mais e mais escassos, até que desapareceram, e eu então pude começar a mexer-me. Sacudi todas as cavilhas, uma a uma, o depois me concentrei na que prendia a minha mão direita. Por fim consegui arrancá-la da fenda feita na rocha, e o resto foi fácil. Voltei para as construções e comecei a fazer reconhecimentos. Entrei na oficina, próxima à garagem, e encontrei este velho macacão. Foi quando a esteira transportadora começou a se mover, não muito longe, e eu me pus a pensar naquilo, chegando à conclusão de que deveria levar o guano através da montanha para o cais. Sabia que você já devia estar morto àquela hora. Pensei, pois, em chegar até a esteira, atravessar a montanha e alcançar o Dr. No para matá-lo. Para isso tive o cuidado de munir-me de uma chave de parafusos. Ela riu; depois continuou:

— Quando nos esbarramos, eu deveria ter enterrado a chave de parafusos em você, mas como ela estivesse em meu bolso, não pude apanhá-la. Encontrei a porta, na parte posterior da oficina, e atravessei-a, indo ter ao túnel principal. Essa é a minha história. — Nova pausa, durante a qual ela acariciou a nuca de Bond. Depois prosseguiu:

— Querido, espero não o ter machucado muito quando estávamos lutando. Minha babá sempre me disse que atingisse os homens naquele lugar.

Bond riu. — Ah, sim? — Simultaneamente esticou os braços, agarrou os cabelos de Honey e atraiu o rosto da jovem de encontro ao seu. A boca de Honey foi deslizando pela face de Bond e colou-se aos seus lábios.

O trator deu um solavanco para um lado e o beijo terminou. Eles tinham dado de encontro às primeiras raízes de mangue à entrada do rio.


XX - TRABALHO ESCRAVO


— O senhor está certo de tudo isso?

Os olhos do Governador interino mostravam assombro e ressentimento. Como é que tais coisas poderiam ter acontecido sob o seu nariz num dos territórios pertencentes a Jamaica? O que iria dizer o Ministério das Colônias a respeito daquilo? Já via o longo envelope azul-claro, com a marca. “Pessoal. Apenas para o destinatário”. Depois, aquela folha de papel-ofício, com aquelas margens muito amplas: “O Secretário de Estado para as Colônias instruiu-me no sentido de manifestar-lhe a sua surpresa...”

— Sim, senhor. Sem dúvida. — Bond não tinha a mínima simpatia pelo homem. Não gostara da recepção que tivera em sua última visita a King’s House, nem tampouco dos comentários mesquinhos feitos por ele relativamente a Strangways e à jovem. Apreciava o Governador ainda menos, agora que sabia estarem o seu amigo e a jovem sepultados no fundo do Reservatório Mona.

— Ah — bem, não devemos deixar que isso chegue ao conhecimento da imprensa, compreende? Enviarei o meu relatório ao Secretário de Estado, pela próxima mala. Estou certo de que poderei contar com a sua...”

— Desculpe-me, sr. Governador. — O brigadeiro encarregado do comando da Força de Defesa das Caraíbas era um soldado moderno, de trinta e cinco anos de idade. A sua folha de serviços militares era bastante boa para que se deixasse impressionar por relíquias da era eduardiana de governadores de colônias, aos quais ele se referia coletivamente como “bonecos de chapeuzinhos de penas”. — Acho que podemos ter como certo que o comandante Bond não procurará comunicar-se com ninguém a não ser o seu Departamento. E, se posso dar a minha opinião, sugiro que tomemos medidas para limpar Crab Key sem esperar a aprovação de Londres. Posso fornecer uma patrulha pronta para embarcar, esta noite. O “H. M. S. Narvik” chegou ontem. Se o programa de recepções em sua homenagem pudesse ser adiado por quarenta e oito horas mais ou menos...” O brigadeiro deixou o seu sarcasmo pairando no ar.

— Concordo com o brigadeiro, Sr. Governador. — A voz do chefe de polícia era tensa. Uma ação rápida podia salvá-lo de uma reprimenda, mas teria que ser rápida. — De qualquer forma, eu terei que agir imediatamente contra quaisquer jamaicanos que pareçam estar implicados no caso. Terei que pôr os mergulhadores a trabalhar no Reservatório de Mona. Se se deve tirar essa história a limpo, não se pode esperar por Londres. Como diz o Sr. — Ahn!... — Comandante Bond, a maior parte desses bandidos negros provavelmente agora já estarão em Cuba. Terei que entrar em contato com o meu colega de Havana, a fim de apanhá-los, antes que eles se refugiem nas montanhas ou passem à clandestinidade. Acho que nos devemos pôr em ação imediatamente, senhor.

Fez-se silêncio na sala fria e sombria onde se estava efetuando a reunião. No teto, acima da pesada mesa de conferências, de mogno, via-se uma inesperada franja de sol. Bond imaginou que aquele reflexo tivesse vindo de uma fonte ou de um lago de lírios e atravessado as frestas das persianas. À distância ouvia-se o som de bolas de tênis. Depois, uma voz de moça gritou: É você quem serve, Gladys. — Seriam as filhas do Governador? Suas secretárias? Numa das extremidades da sala o Rei George VI e em outra a Rainha olhavam para baixo, sobre a mesa, com bom humor.

— O que pensa disso, Sr. Secretário para a Colônia? — A voz do Governador vinha às sacudidelas.

Bond ouviu as primeiras e poucas palavras e compreendeu que Pleydell-Smith concordava com os outros dois. Depois deixou de ouvir, pois a sua mente já estava vagando num mundo de campos de tênis e lagos de açucenas, de reis e rainhas, de Londres, de pessoas sendo fotografadas com pombos em Trafalgar Square, de fores que em breve estariam desabrochando nos jardins, pois estávamos em maio, da dona de casa que em seu apartamento próximo a King’s Road se estaria levantando para preparar uma xícara de chá (aqui eram onze horas; seriam seis horas em Londres), dos primeiros trens, começando a correr, sacudindo o chão sob o seu leito. E o doce clima da Inglaterra: as suaves brisas, as ondas de calor, as ondas de frio — “o único país em que se pode dar um passeio todos os dias do ano” — como se diz nas Cartas de Chesterfeld. E então Bond pensou em Crab Key, no vento, quente começando a soprar, no mau cheiro causado pelos gases do pântano, nos corais cinzentos e anfratuosos, já mortos, em cujos orifícios os caranguejos negros estavam agora agitando, com seus olhos vermelhos e negros movimentando-se rapidamente na extremidade de suas antenas à passagem de uma sombra causada por uma nuvem ou por um pássaro. Na colônia de pássaros, as aves brancas, rosas e marrons estariam caminhando pé ante pé nos baixos, ou ocupadas com alguma luta, ou simplesmente aninhadas, enquanto no alto, na guaneira, os corvos marinhos estariam de volta do desjejum, a fim de depositar o seu miligrama de aluguel ao seu senhorio, que já não estaria mais lá para cobrá-lo. E onde estaria o senhorio? Os homens do “SS Blanche” o teriam desenterrado. O corpo teria sido examinado, para a certeza de que nele não havia mais vida, e depois posto em algum lugar. Teriam eles lavado o corpo, para tirar-lhe a poeira amarela, vestindo-o em seguida com seu quimono, enquanto o comandante telegrafava para Antuérpia, a fim de” pedir instruções? E para onde teria ido a alma do Dr. No? Teria ela sido uma alma má ou apenas uma alma louca? Bond pensou nos restos contorcidos e carbonizados pelas chamas que tinham sido Quarrel. Lembrou-se das maneiras ternas daquele grande corpo, da inocência que havia naqueles olhos cinzentos à procura dos horizontes distantes, de suas luxúrias e desejos simples, de seu respeito pelas superstições, as suas faltas infantis, a lealdade e mesmo o amor que Quarrel lhe tinha demonstrado. Certamente que ele não teria ido para o mesmo lugar que o Dr. No. O que quer que acontecesse aos mortos, sem dúvida que haveria um lugar para onde iriam os frios e outro lugar para onde iriam os ardentes. E para onde, quando fosse chegado o dia, iria ele, Bond?

O Secretário para a Colônia estava mencionando o nome de Bond, o que fez que ele rapidamente se endireitasse.

“... que ele tenha sobrevivido é francamente extraordinário. Penso, senhor, que deveríamos demonstrar a nossa gratidão ao comandante Bond e ao seu Departamento, aceitando as suas recomendações. Parece, senhor, que ele fez pelo menos três quartos da tarefa. Certamente o que devemos fazer agora é encarregar-nos do último quarto.”

O Governador resmungou e olhou de soslaio, sobre a mesa, para Bond. Este não parecia estar prestando muita atenção, mas nunca se podia estar muito seguro com esses sujeitos do Serviço Secreto. Sujeitos perigosos para a gente os ter à volta, a bisbilhotarem e espionarem tudo. E o seu maldito chefe tinha um tremendo prestígio junto ao chefe do governo, em Londres. Não valeria a pena indispor-se com ele. Naturalmente que havia algo de justificável no envio do “Narvik”, mas certos fatos chegariam ao conhecimento público. Toda a imprensa do mundo cairia sobre sua cabeça. Mas, subitamente, o governador viu as manchetes: “O Governador empreende rápida ação... O homem forte da Ilha intervém... A Marinha já chegou!” Afinal de contas, talvez fosse melhor agir daquela maneira. Até mesmo ir em pessoa ver o embarque das tropas. Sim, por Deus, era isso que devia ser feito. O repórter Gargill, do “Gleaner”, viria almoçar. Faria então uma ou duas insinuações ao rapaz e se certificaria de que a história fosse devidamente coberta. Sim, era isso. Essa era a maneira de fazer a jogada.

O governador levantou as mãos e deixou-as cair pesadamente, sobre a mesa, num gesto de submissão. Por fim, dirigiu um sorriso forçado de aquiescência aos presentes:

— Então, estou em minoria, senhores. — Em seguida, sua, voz tornou-se condescendente, como a de um velho tio que dissesse aos seus sobrinhos que desta vez... “eu aceito o veredicto dos senhores. Sr. Secretário para a Colônia, queira ter a gentileza de visitar o comandante do “H.M.S. Narvik” para explicar-lhe a situação. Em caráter estritamente confidencial, naturalmente. Brigadeiro, deixo as providências militares em suas mãos. Sr. Chefe de Polícia, o senhor saberá o que fazer”. O Governador levantou-se, inclinando a cabeça num gesto de realeza na direção de Bond:

— Resta apenas manifestar a minha apreciação ao comandante — eehh — Bond, por sua participação no caso. Não deixarei de mencionar a sua cooperação, comandante, ao Secretário de Estado.

Do lado de fora. o sol reverberava na aléia semicircular de cascalho. Dentro do “Hillman Minx” estava um verdadeiro banho turco. As mãos queimadas de Bond encolheram-se quando ele agarrou o volante.

Pleydell-Smith debruçou-se à janela do carro, e disse:

— Você já ouviu a expressão jamaicana “rarse”?

— Não.

— “Rarse”, homem, é uma expressão vulgar que quer dizer “vá às favas”. Se assim me posso expressar, você poderia, muito apropriadamente, ter empregado essa expressão ainda há pouco. Todavia — Pleydell-Smith fez um largo gesto com a mão, como se pedisse desculpas por seu chefe e o pusesse de lado — há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? Acha realmente que deveria voltar a Beau Desert? Lá no hospital eles foram bem explícitos, no sentido de que você deve ficar lá durante uma semana.

— Muito obrigado — disse Bond laconicamente — mas preciso voltar. Quero ver se a pequena está bem. Você quer dizer lá no hospital que estarei de volta amanhã? Mandou aquele despacho para o meu chefe?

— Com urgência.

— Bem, então — Bond acionou o motor de arranque — acho que você já fez muito. Não deixe de procurar o pessoal do Instituto de Jamaica, a respeito da jovem. Ela sabe realmente uma porção de coisas sobre história natural. Mas não coisas aprendidas em livros. Se eles pudessem arranjar-lhe um emprego apropriado... Gostaria de vê-la colocada. Eu mesmo vou levá-la a Nova Iorque e acompanhá-la em sua operação. Ela poderia começar uns quinze dias depois da operação. Incidentalmente, — Bond parecia embaraçado, — ela é realmente uma garota admirável. Quando ela voltar... se você e sua esposa... Você sabe. Apenas para ter alguém olhando-a um pouco.

Pleydell-Smith sorriu. Pensou ter apanhado bem o quadro que o amigo lhe sugeria. Respondeu:

— Não se preocupe. Eu verei isso. Batty é formidável para essa espécie de encargo. Gostará de ter a garota sob sua asa. Só isso? Tornarei a vê-lo no fim da semana, de qualquer forma, não é? Aquele hospital é um inferno com este calor. Você poderia ficar uma noite ou duas conosco antes de voltar para a Inglaterra — quero dizer Nova Iorque. Terei muito prazer em receber você — ehh — ambos.

— Obrigado. E obrigado por tudo o mais.

Bond pôs o carro em marcha e lá se foi pela avenida ensolarada. Corria cèleremente, atirando para longe os cascalhos, nas curvas. Queria ver-se longe. Queria ver-se livre de King’s House, e do tênis, e de reis e rainha. Até mesmo do bondoso Pleydell-Smith queria ver-se livre. Bond gostava do homem, mas tudo quanto queria era voltar por Junction Road a Beau Desert, afastando-se do mundo ameno. Passou pela sentinela e entrou na estrada principal. Pisou o acelerador até a tábua.

A viagem noturna, sob as estrelas, tinha sido sem incidentes. Ninguém os tinha perseguido. A jovem tinha dirigido a maior parte da travessia. Bond não discutira com ela, deixando-se ficar no fundo do bote, numa espécie de colapso, como um morto. Acordara uma ou duas vezes e ouvira o marulhar das ondas de encontro ao casco do barco, admirando o tranqüilo perfil da jovem, sob as estrelas. Depois, o embalo das pulsações marinhas o tinha adormecido e lançado nos pesadelos que o perseguiam desde Crab Key. Não se preocupou com eles, nem mesmo pensou que depois daquilo viria a se impressionar com um pesadelo. Com efeito, depois do que lhe acontecera na noite anterior seria preciso algo de verdadeiramente forte para tornar a assustá-lo.

A batida de uma pedra contra o casco acordara-o. Estavam atravessando os recifes e penetrando em Porto Morgan. A lua em quarto crescente estava alta no céu e para dentro dos recifes o mar era um espelho prateado. A jovem conduzira a canoa com a vela desfraldada. Atravessaram a baía em direção à pequena orla da areia e a proa sob a cabeça de Bond raspou-a docemente. Honey tivera que ajudá-lo a deixar a canoa e atravessar o relvado em direção à casa. Ele se agarrara a ela, amaldiçoando-a ternamente, enquanto ela ia arrancando-lhe as roupas e levando-o para baixo do chuveiro. Ela nada dissera quando vira o seu castigado corpo sob as luzes. Abrira completamente o chuveiro e passara-lhe sabonete em todo o corpo, como se ele fosse um cavalo. Depois, tirara-o do chuveiro, enxugando-o suavemente com toalhas que eram aplicadas a seu corpo, sob leve pressão, e que logo se tingiam de sangue. Ele a vira apanhar uma garrafa de antisséptico. Depois, urrara de dor e se agarrara desesperadamente à banheira. Antes de começar a aplicar-lhe aquele líquido ela o tinha beijado nos lábios. Em seguida, dissera-lhe: — Agüente firme, querido. E chore. Vai doer um bocado. — enquanto ela lhe aplicava aquele maldito líquido, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que ele experimentasse nenhum sentimento de vergonha.

Em seguida viera o magnífico desjejum, enquanto a aurora ia raiando sobre a baía, logo seguido da horrível corrida para Kingston, em busca da mesa operatória, na enfermaria de pronto-socorro. Pleydell-Smith fora chamado, mas não se fizeram perguntas. Mertiolato fora posto nas feridas e ungüento de ácido tânico nas queimaduras. O eficiente médico negro escrevera afanosamente no livro de registro... o quê? Provavelmente apenas “queimaduras e contusões generalizadas”. Depois, com promessas de que se recolheria a uma enfermaria particular, no dia seguinte, Bond fora com Pleydell-Smith a King’s House e participara da primeira reunião que terminara com uma conferência ampliada. Bond enviara uma curta mensagem cifrada para M, através do Secretariado das Colônias, e terminara friamente com as seguintes palavras: “Lamento dever solicitar novamente licença para tratamento de saúde ponto segue o relatório dos cirurgiões ponto queira ter a gentileza de informar ao armeiro que o “Smith & Wesson” é ineficaz contra um lança-chamas ponto.”

Agora, enquanto ia dirigindo o carro, serpeando por aqueles SS intermináveis, em direção à Costa Norte, lamentava o gracejo. M não gostaria daquilo. Era um gracejo barato e desperdiçava grupos de cifras. Upa!, quase! Bond desviara rapidamente para evitar um célere ônibus vermelho que trazia em sua tabuleta de destino as palavras “Brownskin Gal”. Quisera apenas mostrar a M que aquilo não fora apenas férias ao sol. Mais tarde pediria desculpas, quando enviasse o seu relatório escrito.

O quarto de dormir de Bond era fresco e escuro. Encontrara um prato de sanduíches e uma garrafa térmica cheia de café, ao lado da cama. Sobre o travesseiro estava uma mensagem escrita com grandes letras infantis, anunciando: “Você vai ficar comigo esta noite. Não posso deixar os meus animais. Eles estavam inquietos. Também não posso deixá-lo. E você me deve horas de trabalho escravo. Voltarei às sete. Sua H.”

Ao anoitecer ela atravessou o relvado, indo ao encontro de Bond, no lugar em que ele terminava o seu terceiro copo de uísque. Ela vestia uma saia de algodão, de listras pretas e brancas, e uma blusa cor de rosa claro. Os cabelos dourados cheiravam a xampu. Estava incrivelmente fresca e bela. A jovem estendeu-lhe a mão e Bond apanhou-a, acompanhando Honey pela aléia e por um estreito caminho muito trilhado e que atravessava o canavial. O caminho serpeava numa longa extensão, em meio à mata elevada, indo ter a uma pequena e limpa esplanada, onde se viam espessas paredes de pedras, já muito estragadas e recobertas de hera, e logo alguns degraus que desciam conduzindo a uma pesada porta, cujas ombreiras brilhavam com os reflexos de luz. Ela olhou-o da porta e disse:

— Não se assuste. O canavial está alto e a maioria de trabalhadores está fora.

Bond não sabia o que esperar, mas pensara vagamente num chão de terra batida e paredes úmidas. Provavelmente seriam encontradas algumas peças quebradas de mobiliário, uma armação de cama em pedaços, coberta de farrapos, e um forte cheiro de animais. Ele tomara todas as precauções para não ferir os seus sentimentos.

Todavia, não pôde evitar um sentimento de surpresa quando se viu dentro do que mais parecia uma grande caixa de charutos muito limpa. O chão e o teto eram de cedro polido e exalavam um cheiro agradável. As paredes eram recobertas de painéis feitos com tiras de bambu. A luz vinha de uma dúzia de velas colocadas num fino candelabro de prata pendente do centro do teto. Muito no alto; havia três janelas quadradas, através das quais Bond podia ver o azul escuro do céu e as estrelas. Viam-se ainda várias peças de fina mobília do século dezenove. Sob o candelabro estava posta uma mesa para dois, com um serviço de prata e cristais caros mas antiquados.

Bond disse:

— Honey, que sala adorável! Pelo que você me disse, imaginei que você vivia numa espécie de jardim zoológico.

Ela sorriu encantada:

— Eu retirei a velha prataria e outras coisas. Foi o que me ficou. Tive que passar o dia polindo-os, coisa que antes nunca fiz. Ficou bonito, não ficou? Sabe, geralmente arrumo uma porção de pequenas gaiolas contra a parede. Gosto de tê-las comigo, pois fazem-me companhia. Mas agora que você está aqui... — Ela fez pausa. — Meu quarto de dormir é ali, — fez um gesto, indicando a outra porta. — É muito pequeno, mas há lugar para nós dois. Agora venha. Receio que seja um jantar frio — apenas lagostas e frutas.

Bond aproximou-se dela e tomou-a nos braços, beijando-a com força nos lábios. Estreitou-a e fixou-a em seus olhos azuis.

— Honey — disse ele — você é uma das garotas mais maravilhosas que já encontrei. Espero que o mundo não a modifique muito. Você quer realmente fazer essa operação? Gosto de seu rosto como ele está. Ele é parte de você, parte de tudo isto.

Ela franziu o cenho e libertou-se dele. Depois disse:

— Não seja sério esta noite e não fale dessas coisas. Não quero pensar nisso. Essa é a minha noite com você. Por favor, fale-me de amor. Não quero ouvir falar de outra coisa. Promete? Agora venha e sente-se aqui.

Bond sentou-se e sorriu para ela. Em seguida respondeu:

— Prometo. Honey disse:

— Aqui está a maionese. Não é pré-fabricada: eu mesma a preparei. E sirva-se de pão e manteiga.

Ela sentou-se em frente de Bond, observando-o. Quando viu que ele parecia satisfeito, disse:

— Agora você pode começar a me falar de amor. Diga-me tudo sobre ele. Tudo o que você souber.

Bond contemplou aquele rosto dourado, com um matiz de rubor. Os seus olhos eram brilhantes e ternos, sob a luz das velas, mas tinham aquele mesmo brilho imperioso da primeira noite que a vira na praia, quando Honey pensara que ele tinha vindo para roubar-lhe as conchas. Os lábios cheios e rubros estavam entreabertos pela excitação e pela impaciência. Com ele a jovem não sentia qualquer inibição. Eram dois animais amorosos. Havia um sentimento de naturalidade e ela não sentia vergonha. Ela podia perguntar-lhe qualquer coisa e esperar que ele respondesse. Era como se já estivessem na cama, sozinhos, como amantes. Sob o corpete apertado, os mamilos de seus seios se mostravam duros e intumescidos.

Bond perguntou:

— Você é virgem?

— Não, já lhe disse. Aquele homem...

— Bem... — Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

— Honey, ou como ou falo de amor com você. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

— Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.

Os olhos de Bond eram tênues fendas azuis. Levantou-se e descansou sobre um joelho, ao lado da jovem. Apanhou uma de suas mãos e contemplou-a. O monte de Vênus estava intumescido pela volúpia. Bond inclinou a cabeça sobre aquela mão e mordeu suavemente aquela formação carnosa. Ele sentiu a mão livre dela acariciar-lhe os cabelos. Mordeu com mais força, e a mão que ele sustentava aconchegou-se à volta de sua boca. Ela tremia. Bond mordeu ainda mais forte, o que a fez soltar um grito e afastar a sua cabeça.

— O que é que você está fazendo?

Seus olhos estavam muito abertos e sombreados. A jovem tornara-se bastante “pálida, e baixando os olhos contemplava a boca de Bond. Docemente ela atraiu o rosto dele de encontro ao seu.

Bond pousou uma das mãos no seio esquerdo da jovem e reteve-o com força. Depois, levantou a mão cativa e ferida de Honey e passou-a em torno de seu pescoço. As duas bocas encontraram-se e colaram-se longamente.

Acima de suas cabeças, as velas começaram a bruxulear. Um grande besouro acabara de entrar pela janela e pusera-se a dar voltas ao candelabro, com o seu zumbido característico. Os olhos da jovem abriram-se e olharam para o besouro. Sua boca afastou-se da de Bond e a jovem endireitou os cabelos. Depois, levantou-se e sem dizer palavra retirou as velas, uma a uma, apagando-as. O besouro desapareceu zumbindo por uma das janelas.

A jovem manteve-se afastada da mesa. Em seguida, despiu a blusa e atirou-a no chão. Depois, a saia. Sob a claridade do luar ela era uma figura pálida, com uma sombreada mancha no meio do corpo. Junto a Bond, aquele corpo cheirava a feno acabado de segar. Ela arrastou-o para longe da mesa, passando com ele por uma porta. O luar que filtrava por duas janelas altas clareava um leito de solteiro. Sobre a cama estava um saco de dormir. Ela ergueu os olhos para ele e disse: — Comprei isto hoje. Custou-me um bocado e dinheiro. Tire as roupas e entre comigo. Você prometeu. Não se esqueça de que me deve horas de trabalho-escravo.

— Mas...

— Faça o que lhe digo.

 

 

                                                                                                    Ian Fleming

 

 

 

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