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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SATANICO DR. NO / Ian Flaming
O SATANICO DR. NO / Ian Flaming

 

                                                                                                                                              

 

 

 

 

 

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.

 

 


 

 


Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_SATANICO_DR._NO.jpg


Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_SATANICO_DR._NO.jpg


Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


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Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

CONTINUA

Pontualmente, às seis horas, o sol se pôs com uma derradeira irradiação amarela por trás das Montanhas Azuis, ao mesmo tempo em que uma onda de sombra violeta se esparzia ao longo da Estrada de Richmond e os grilos e sapos começavam a cricrilar e coaxar.
A não ser os ruídos produzidos pelos insetos, a ampla estrada estava mergulhada em silêncio. Os ricos proprietários das grandes residências retiradas — gerentes de bancos, diretores de companhias e altos funcionários civis — já se encontravam em casa desde as cinco horas e deveriam estar comentando o dia com suas esposas ou tomando um banho e mudando de roupa. Dentro de meia hora a estrada voltaria a regurgitar de vida com o "tráfego de coquetel", mas agora esse importantíssimo quilômetro de "Estrada Rica", como era chamado aquele trecho pelos comerciantes de Kingston, nada mostrava a não ser a tensa expectativa sugerida por um palco vazio e o perfume noturno e penetrante do jasmim.
A Estrada de Richmond é a artéria mais aristocrática em toda Jamaica. É a Park Avenue de Jamaica, a sua Kensington Palace Gardens ou a sua Avenue d'Iéna. As personalidades mais importantes vivem em grandes casas de antiquado estilo, situadas em áreas de um ou dois acres recobertos de belos gramados, que exibem as mais belas árvores e flores procedentes do Jardim Botânico do bairro de Hope. A extensa e reta estrada é fresca e sossegada, e fica retirada do torvelinho e do calor de Kingston, onde os homens de negócio ganham o seu dinheiro. A parte superior de uma junção que forma um T confina com os terrenos de King's House, onde o Governador e Comandante-Chefe de Jamaica vive com a família. Em Jamaica, nenhuma estrada poderia ter mais bonito final.
No extremo oriental da barra superior do T, fica o número um da Estrada de Richmond, uma grande casa de dois andares, com amplas varandas pintadas de branco, contornando os dois pavimentos. Da estrada, um caminho de cascalhos leva até a sua estrada de pilastras, atravessando amplos parques cheios de quadras de tênis e onde, nesse entardecer, como aliás em todas as outras tardes, se podiam ver os irrigadores de água em ação. Essa mansão é a Meca social de Kingston. É o Clube da Rainha, que, há cinqüenta anos, se tem orgulhado da freqüência de suas recusas à admissão de sócios, e dos desastrosos efeitos que tais recusas acarretavam aos pretendentes.
Tão irredutíveis retiros não sobreviverão por muito tempo na moderna Jamaica. Um dia o Clube da Rainha terá as suas janelas quebradas e será reduzido a cinzas. Por enquanto, porém, é um reduto encantador encravado numa ilha subtropical — bem administrado, com ótimos empregados, e com a mais fina cozinha e a melhor adega em todo o mar das Antilhas.


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_SATANICO_DR._NO.jpg


Naquela hora do dia, e na maioria das noites do ano, poder-se-iam encontrar os mesmos quatro automóveis estacionados na estrada do lado de fora do clube. Eram os carros de quatro jogadores que se reuniam pontualmente às cinco horas da tarde, e jogavam "brigde" até a meia-noite. Quase se poderia acertar o relógio por aqueles carros. Pertenciam, na ordem em que agora se enfileiravam no meio-fio, ao brigadeiro comandante da Força de Defesa das Antilhas, ao mais destacado criminologista de Kingston, e ao professor de Matemática da Universidade de Kingston. Em último lugar, na fila, vinha o "Sunbeam Alpine" preto, do comandante John Strangways, da Marinha Real, já reformado, mas agora ocupando o posto de Oficial do Controle Regional das Antilhas — ou, menos discretamente, o representante local do Serviço Secreto britânico.

Cerca das seis e quinze o silêncio da Estrada de Richmond foi suavemente rompido. Três mendigos cegos dobraram a esquina da junção e encaminharam-se vagarosamente, pela calçada, em direção aos quatro carros. Eram chigros — negros chineses — homens corpulentos, mas encurvados, em seu andar arrastado, com bengalas brancas ferindo o solo. Caminhavam em fila. O primeiro homem, que usava óculos azuis e que possivelmente enxergava melhor do que os outros, vinha à frente, segurando com a mão esquerda uma caneca de folha de encontro ao cabo recurvado da bengala. A mão direita do segundo homem descansava em seu ombro, e a mão direita do terceiro apoiava-se no ombro do segundo. Os olhos do segundo e do terceiro homens estavam fechados. Os três vestiam-se com farrapos e usavam sujos bonés de "baseball". Não conversavam e nenhum barulho deles partia, exceto as leves batidas de suas bengalas, enquanto se aproximavam vagarosamente dos quatro carros.

Os cegos não seriam um espetáculo estranho em Kingston, onde se podem encontrar muitas pessoas doentes pelas ruas, mas naquela luxuosa rua vazia causavam impressão desagradável. Era também estranho que todos eles fossem negros chineses, pois esta não é uma mistura de sangue muito encontradiça.

Na sala do carteado, a mão queimada pelo sol do comandante Strangways estendeu-se até o centro do pano verde e recolheu as quatro cartas. Ouviu-se um seco estalido quando as cartas se juntaram ao resto da mão de Strangways. — Cem honras — disse Strangways — e noventa em baixo! — Depois, olhou para o seu relógio e levantou-se. — Voltarei dentro de vinte minutos. A sua vez, Bill. Peça bebida. Para mim, como de costume. Não se dê ao trabalho de me "preparar" u'a mão, enquanto eu estiver fora. Eu descubro sempre a coisa.

Bill Templar, o brigadeiro, deu uma risadinha. Sacudiu uma sineta de chamada que estava ao lado e amontoou as cartas em direção a Strangways. — Para o diabo com você!... Você sempre deixa esfriar tanto as cartas como os seus parceiros.

A essa altura Strangways já tinha atravessado a porta. Os três homens acomodaram-se resignadamente em suas cadeiras. Um garção negro entrou e eles pediram as suas bebidas e um uísque com água para Strangways.

Havia sempre essa aborrecida interrupção, todas as noites, às seis e quinze, em meio ao seu segundo róber. Exatamente a essa hora, ainda que estivesse no meio de uma partida, Strangways tinha que ir para seu "escritório" a fim de "fazer uma chamada". Era profundamente desagradável, mas Strangways era um parceiro imprescindível no grupo dos quatro, e por isso os seus companheiros tinham que aceitar aquela situação. Nunca fora explicado que "chamada" era aquela, e também jamais alguém lhe fizera perguntas. As atribuições de Strangways eram estritamente reservadas e todos aceitavam o fato. Raramente se ausentava por mais de vinte minutos, e tàcitamente aceitava-se que pagasse essa "falta" arcando com a despesa de uma rodada de bebida.

As bebidas chegaram e os três homens puseram-se a falar de corridas.

 

Na verdade, aquele era o momento mais importante do dia de Strangways — a hora de seu contato radiofônico regulamentar com o poderoso transmissor situado no teto do edifício, em Regents Park, onde fica a sede do Serviço Secreto. Todos os dias, às seis e meia, a menos que ele desse sinal, na véspera, de que não estaria no ar, o que poderia ocorrer quando tivesse que executar alguma tarefa numa das ilhas de seu território, ou quando estivesse seriamente doente — Strangways transmitia o seu relatório diário e recebia ordens que porventura lhe dessem. Se deixasse de ir para o ar exatamente às seis e trinta, haveria uma segunda chamada para ele, a chamada "azul", às sete horas e, finalmente, a chamada "vermelha", às sete e trinta. Depois disso, se o seu transmissor continuasse silencioso, era caso de "Emergência", e a Terceira Secção, a autoridade controladora de Londres, pôr-se-ia urgentemente em campo para saber o que lhe acontecera.

Mesmo uma chamada "azul" sempre representa algo de desfavorável para um agente, a menos que as suas "razões por escrito" sejam irrespondíveis. Os horários das chamadas da estação de Londres são rigorosíssimos, sem qualquer margem de tolerância para atrasos, razão pela qual a mínima perturbação desses horários, em virtude de uma chamada extra, constitui um terrível incômodo. Strangways jamais sofrerá a ignomínia de uma chamada "azul", quanto mais a de uma "vermelha", e tinha a certeza de que jamais haveria de sofrê-la. Todas as tardes, exatamente às seis e quinze, deixava ele o Clube da Rainha, entrava em seu carro, e, por dez minutos lá ia ele galgando as faldas das Montanhas Azuis, até chegar à sua elegante casa, com maravilhosa vista para o porto de Kingston. Às seis e vinte e cinco atravessava um vestíbulo que o conduzia a um escritório situado nos fundos da casa. Abria a porta desse escritório e tornava a fechá-la. A Srta. Trubeblood, que passava como sua secretária, mas que, na verdade, vinha logo abaixo dele, hierarquicamente, e pertencera aos quadros do Serviço Feminino da Marinha Real, como oficial, já devia estar sentada diante dos mostradores disfarçados dentro de um falso arquivo. Com os fones nos ouvidos já estaria ela fazendo o primeiro contato, captando o seu sinal de chamada, o WXN, em 14 megaciclos. Descansando em seus elegantes joelhos, poder-se-ia ver ainda um bloco de estenógrafa. Strangways se acomodava na outra cadeira, ao seu lado, colocando nos ouvidos o outro par de fones, para, exatamente às seis e vinte e oito, tomar o controle em suas mãos e aguardar o súbito ruído oco, vindo do éter, que significaria que WWW, em Londres, logo confirmaria a chamada.

Era aquela uma rotina de ferro. Aliás, Strangways era um homem de férrea rotina. Infelizmente, porém, padrões inflexíveis de conduta podem ser fatais, se chegam ao conhecimento do inimigo.

Strangways, um homem alto e magro, com uma venda preta no olho direito e o tipo de perfil aquilino que se pode associar com a ponte de um destróier, atravessou rapidamente o vestíbulo de entrada do Clube da Rainha e bruscamente abriu passagem pelas portas protegidas com mosquiteiros de tela metálica, para descer pelos três degraus da escada e ganhar a rua.

Naquele momento, não havia muita coisa ocupando a sua mente — talvez apenas uma sensação de prazer sensual que lhe vinha do fresco ar da noite, e a lembrança da habilidade que lhe permitira a posse daquelas três cartas de espadas. Havia naturalmente aquele caso, de que se ocupava na ocasião, um negócio curioso e complicado, que M empurrara sem cerimônia para cima dele, pelo rádio, duas semanas antes. Mas a coisa estava indo bem. Um feliz acaso, que o levara à comunidade chinesa, estava dando bons resultados. Alguns aspectos estranhos tinham vindo à luz, mas se a coisa desse certo — ia pensando Strangways, ao atravessar o caminho de cascalho e ao pisar na Estrada de Richmond — ele poderia ver-se a braços com algo de verdadeiramente excitante.

Strangways encolheu os ombros. Naturalmente que o fantástico nunca se concretizava no campo de suas atividades. Haveria certamente alguma solução prosaica que fora dificultada por imaginações excitadas e pela histeria habitual dos chineses.

Automaticamente, uma outra parte do cérebro de Strangways se apercebeu da presença dos três cegos, que avançavam lentamente em sua direção, pela calçada. Estavam a cerca de vinte metros de distância, e Strangways calculou que os cegos passariam por ele um ou dois segundos antes que alcançasse o carro. Por um sentimento de vergonha, diante de sua própria saúde, e de gratidão por ela, Strangways meteu a mão no bolso à procura de uma moeda. Tirou-a do bolso. Agora caminhava ao lado dos mendigos. Estranho, eram todos negros chineses! Estranho mesmo! A mão de Strangways avançou para a frente e a moeda tiniu no fundo da caneca.

— Deus o abençoe, patrão! — disse o chefe dos cegos. — Deus o abençoe! — repetiram os outros em coro.

A chave do carro estava na mão de Strangways. Fez-se um momento de silêncio, ao cessarem as batidas das bengalas brancas. Mas já era tarde.

Assim que Strangways ultrapassou o último homem, todos os três deram meia volta. Os últimos dois tinham-se distanciado um passo, para os lados, a fim de terem um campo aberto de tiro. Três revólveres, deselegantes dentro de seus silenciadores em forma de salsichas, saltaram de coldres escondidos sob trapos. Com disciplinada precisão os três homens visaram diferentes pontos, ao longo da espinha de Strangways — um entre as omoplatas, outro na curva lombar e um outro na região pelviana.

Os três ruídos secos quase se fundiram num. O corpo de Strangways caiu para a frente. Depois, ficou completamente imóvel em meio à pequena nuvem de poeira que se levantou da calçada.

Eram seis horas e dezessete minutos. Com um rangido de pneus, um coche funerário escuro, com plumas negras balançando nos quatro cantos de sua cobertura, entrou pela Estrada de Richmond e se aproximou do grupo que estava na calçada. Os três homens apenas tiveram tempo de recolher o corpo de Strangways, quando o coche parou pouco adiante deles. As portas duplas da parte traseira foram abertas, da mesma forma que o caixão simples que estava em seu interior. Os três homens lançaram o corpo de qualquer maneira, pela porta, para dentro do caixão. Em seguida pularam para o veículo, baixaram a tampa do caixão e fecharam as portas do coche. Os negros sentaram-se em três dos quatro primeiros lugares nos cantos do caixão, e calmamente descansaram os bastões ao lado. Amplos paletós de alpaca negra estavam pendurados nas costas daqueles assentos. Os três personagens puseram aqueles paletós sobre os andrajos, tiraram os casquetes de "baseball" e, abaixando-se, apanharam, no chão do coche, cartolas negras e puseram-nas na cabeça.

O chofer, que também era um chinês negro, olhou nervosamente por sobre os ombros.

— Vamos, homem! Vamos! — disse o assassino mais corpulento. Olhou para o mostrador luminoso de seu relógio de pulso. Eram seis horas e vinte minutos. Apenas três minutos para fazer o serviço. Morte a tempo.

O coche fez um a solene volta em U e moveu-se em velocidade moderada na direção da junção, que dobrou a uma velocidade de quarenta e oito quilômetros por hora, rumando maciamente pela estrada pavimentada em direção às colinas, com as plumas dolentes a indicarem a natureza fúnebre de sua carga, com três homens velando o morto, respeitosos e empertigados em seus assentos, com as mãos cruzadas sobre o coração.

 


* *
— WXN chamando WWW... WXN chamando WWW... WXN... WXN... WXN...

O dedo médio da mão direita de Mary Trueblood feria, suave e elegantemente, a chave. Levantou seu pulso esquerdo. Eram seis e vinte e oito. Ele estava um minuto atrasado. Mary Trueblood sorriu pensando no pequeno "Sunbeam" aberto e rodando a toda velocidade pela estrada, em sua direção, naquele momento. Logo, num segundo, ela iria ouvir aqueles passos rápidos, depois a chave na fechadura, e, finalmente, ele estaria sentado ao seu lado. Haveria também o sorriso de desculpas, ao apanhar ele os seus audiofones. "Desculpe-me, Mary, o diabo do carro não queria dar a partida." Ou então: "Já era de esperar que aqueles idiotas da polícia a essa altura já conhecessem o número do meu carro. Fizeram-me parar em Haefway Tree." Mary Trueblood tirou o segundo par de audiofones do gancho e colocou-os sobre a cadeira dele, a fim de lhe poupar meio segundo.

"WXN chamando WWW... WXN chamando WWW." Ela sintonizou, girando o dial quase imperceptivelmente e tentou de novo. Seu relógio marcava seis e vinte e nove. Começou a sentir-se inquieta. Dentro de poucos segundos, Londres chamaria. Céus! Que faria ela? — pensou a moça, de repente, — se Strangways não chegasse a tempo? Era inútil que ela respondesse a Londres e fingisse que era ele — inútil e perigoso. A Segurança Radiofônica estaria vigiando o chamado, como vigiava, aliás, os chamados de todo e qualquer agente. Aqueles instrumentos que mediam as mínimas particularidades da "mão" de um operador denunciariam imediatamente que não era Strangways quem operava. Tinham mostrado a Mary Trueblood a floresta de dials na sossegada sala da sede; ela tinha observado como os ponteiros oscilantes registravam o peso de cada mão, a velocidade de cada grupo de cifras, a hesitação diante de determinada letra. O Encarregado do Controle tinha-lhe explicado tudo quando ela fora destacada para a estação das Caraíbas, cinco anos antes — como tocaria uma cigarra e o contato seria automaticamente interrompido, se outro operador que não o genuíno entrasse no ar. Era essa a proteção básica contra o perigo de algum transmissor do Serviço Secreto cair em mãos inimigas. E se um agente fosse capturado e forçado a entrar em contato com Londres, sob ameaça de tortura, bastaria que ele acrescentasse umas poucas particularidades fora de rotina, e estas revelariam a história de sua captura como se a tivessem narrado em linguagem comum.

Pronto! Já estava começando! Ela estava percebendo aquela espécie de vácuo no éter que significava que Londres ia entrar. Mary Trueblood olhou para o relógio. Seis e trinta. A moça entrou em estado de pânico! Mas agora, finalmente, ouviam-se passos no "hall". Graças a Deus! Dentro de um segundo ele estaria aí. Ela tinha que protegê-lo! Tomou a resolução desesperada de correr o risco e manteve o circuito aberto.

"WWW chamando WXN... WWW chamando WXN... Está-me ouvindo?... Está-me ouvindo?" Londres estava entrando, claramente, procurando a estação de Jamaica.

Os passos se aproximavam da porta.

Friamente, com plena segurança, ela respondeu — Estou ouvindo alta e claramente... Estou ouvindo alta e claramente... estou ouvindo...

Houve uma explosão por trás dela. Alguma coisa foi bater em seu tornozelo. Ela olhou para os pés: era a fechadura da porta.

Mary Trueblood voltou-se rapidamente na cadeira giratória. Um homem estava no limiar da porta. Não era Strangways. Era um enorme mestiço de pele amarelada e olhos oblíquos. Segurava um revólver na mão. A arma estava munida de vim grosso cilindro preto.

Mary Trueblood abriu a boca para gritar.

O homem sorriu. Devagar, amorosamente, ergueu a arma e desfechou três tiros que a alcançaram no seio esquerdo e à volta dele.

A moça caiu molemente pelo lado da cadeira. Os audiofones escorregaram de sua cabeça dourada para o chão. Por um segundo, se tanto, o pequeno crepitar de Londres soou no quarto. Em seguida, parou. A cigarra do quadro de controle, da Segurança Radiofônica, assinalara que algo de anormal estava ocorrendo com WXN.

O assassino retirou-se. Voltou pouco depois, carregando uma caixa, com os dizeres "Presto Pire" na etiqueta a cores e um grande saco de açúcar da tradicional marca "Tate & Lyle". Colocou a caixa no chão e voltou-se para o corpo. Enfiou a força o saco por cima da cabeça, até os tornozelos. Os pés ficaram de fora. Ele dobrou-os e enfiou-os para dentro. Arrastou o volumoso saco até o vestíbulo e voltou novamente para o quarto. Num dos cantos estava aberto o cofre, como lhe tinham dito que estaria, e os livros de códigos estavam na escrivaninha, prontos para o trabalho de decifração dos sinais de Londres. O homem atirou esses livros e todos os papéis, do cofre no centro do quarto. Arrancou as cortinas e acrescentou-as ao monte, em cima do qual pôs ainda duas cadeiras. Abriu a caixa de acendedores "Presto" e tirou um punhado deles, que meteu na pilha e acendeu. Foi então para o vestíbulo e preparou fogueiras semelhantes em pontos estratégicos. Os papéis e as peças de mobília bem secos pegaram fogo rapidamente e as labaredas começaram a lamber os lambris das paredes. O criminoso dirigiu-se à porta da frente e abriu-a. Podia avistar o coche fúnebre através da cerca de hibiscos. Não se ouvia barulho, a não ser o cricrilar dos grilos e o roncar abafado do motor. Para baixo e para cima, na estrada, não havia outros sinais de vida. 0 homem entrou novamente no vestíbulo cheio de fumaça e levantou sem esforço o saco, que pôs às costas, e saiu, deixando a porta aberta a fim de que passasse uma corrente de ar. Andou rapidamente pela alameda até a rua. A porta traseira do coche estava aberta. Deu o saco aos dois outros homens e ficou a observá-los, enquanto eles o punham a força no caixão, por cima do corpo de Strangways. Subiu, então, fechou a porta e sentou-se, pondo a cartola na cabeça.

Quando as primeiras chamas começaram a aparecer nas janelas do andar de cima do bangalô, o coche fúnebre se pôs silenciosamente em movimento e prosseguiu seu caminho na direção da represa Mona. Ali, o caixão bem lastrado deslizou para o seu túmulo de cem metros de profundidade. Dentro de exatamente quarenta e cinco minutos, os registros e o pessoal do posto das Caraíbas, do Serviço Secreto, estariam totalmente destruídos.


II - A ESCOLHA DAS ARMAS


Três semanas mais tarde, em Londres, o mês de março chegou tão traiçoeiro quanto uma cascavel.

Desde o raiar da primeira luz do dia primeiro de março, o granizo e uma chuva mesclada de neve, tocados por fortes vendavais, fustigavam a cidade e continuavam a fustigá-la, enquanto os londrinos se arrastavam penosamente para o trabalho, com as pernas açoitadas pelas barras encharcadas dos impermeáveis e os rostos congestionados de frio.

Era um dia horrível, e todos o diziam — até mesmo M, que raramente admitia a realidade das condições atmosféricas, mesmo em suas manifestações mais acentuadas. Quando o velho "Rolls" preto, cuja placa não trazia nenhum número digno de despertar atenções, parou à porta do alto prédio de Regents Park e ele apeou, subindo à calçada com movimentos rígidos, o granizo bateu-lhe no rosto como uma saraivada de chumbo de caça. Em lugar de correr para dentro do edifício, deu volta ao carro, até a janela do lado do chofer.

— Não precisarei mais do carro, Smith. Pode recolhê-lo e voltar para casa. Irei pelo metrô, à noite. Não é tempo para se guiar carro. Pior ainda que no tempo dos comboios de guerra!

O antigo foguista-chefe Smith distendeu a boca num amplo sorriso. — Está bem. Muito obrigado. — E ficou a olhar o vulto aprumado, apesar da idade, que passava diante do "Rolls" e cruzava a calçada, entrando no prédio. O velho era assim mesmo. Sempre pensava primeiro nos subordinados. Smith engatou em primeira e deu a saída, procurando ver através do pára-brisa por onde escorria a água. Homens assim não existiam mais, hoje em dia.

M subiu pelo elevador até o oitavo andar e seguiu pelo corredor revestido de espessa passadeira, até sua sala. Fechou a porta atrás de si, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os atrás da porta. Puxou do bolso um grande lenço azul de seda e passou-o rapidamente pelo rosto. Era estranho, mas nunca teria feito uma coisa dessas diante dos porteiros ou do ascensorista. Chegou à escrivaninha, sentou-se e inclinou-se para o aparelho de intercomunicações. Apertou um botão.

— Acabo de chegar, srta. Moneypenny. Transmita-me os sinais, por favor, e qualquer coisa mais que a senhorita tenha em mãos. Em seguida, mande chamar Sir James Molony. Deve estar fazendo suas visitas no hospital de St. Mary, agora. Diga ao Chefe de Pessoal que vou avistar-me com 007 dentro de meia-hora. E mande-me entregar a pasta relativa a Strangways. — M esperou pelo metálico "Sim, senhor" e largou o botão.

Recostou-se na cadeira e apanhou o cachimbo. Começou a enchê-lo com ar pensativo. Não levantou os olhos quando sua secretária entrou com uma pilha de papéis, nem tomou conhecimento da meia-dúzia de "urgentes" marcados a lápis vermelho no alto do arquivo de sinais. Se tivessem importância vital, teria sido chamado durante a noite.

Uma luz amarela piscou no aparelho de intercomunicações. M apanhou o fone preto dentre uma carreira de quatro aparelhos.

— É o senhor, Sir James? Tem cinco minutos disponíveis?

— Seis, para o senhor. — Na outra extremidade da linha, o famoso neurologista riu-se. — O senhor deseja que eu dê um atestado de insanidade mental a algum ministro de Sua Majestade a Rainha?

— Hoje, não. — M franziu as sobrancelhas, irritado. A velha Marinha sempre respeitara os membros do Governo. — É a respeito daquele meu homem de quem o senhor tratou. Não vamos dizer o nome. Esta linha é pública. Ouvi dizer que o senhor lhe deu alta ontem. Ele está apto a reassumir?

Houve uma pausa. A voz que respondia era agora profissional, judiciosa.

— Fisicamente, está forte como um touro. A perna sarou completamente. Não creio que haja seqüela. Sim, ele está perfeitamente bem.

Houve nova pausa.

— Só uma coisa, M. Ele ainda está sob forte tensão nervosa. O senhor exige muito desses seus homens, sabe? Poderia dar-lhe uma tarefa suave para começar? Pelo que o senhor me contou, ele tem passado por uns pedaços difíceis nestes últimos anos.

M respondeu um tanto asperamente:

— É para isso que ele é pago. Logo saberemos se ele não está em condições de trabalhar. Não seria o primeiro a ficar imprestável. Pelo que o senhor me diz, ele está em perfeita forma. Não é como se tivesse sido verdadeiramente escangalhado, como alguns dos clientes que lhe enviei — homens que passaram realmente pelo torniquete.

— Bem, naturalmente, se for esse o seu ponto de vista. Mas a dor é coisa estranha. Não se pode medir a diferença entre a dor de mulher no parto e a de um homem com eólicas renais. E, graças a Deus, o corpo parece esquecer mais ou menos depressa. Mas esse seu homem sofreu dor verdadeira, M. Não vá pensar que pelo fato de não ter havido fraturas...

— Tem razão, tem razão. — Bond cometera um erro e sofrerá por causa dele. Fosse como fosse, M não gostava de ouvir advertências, mesmo vindas de um dos mais célebres médicos do mundo, sobre como deveria tratar seus agentes. Um tom de crítica soara na voz de Sir James Molony. M perguntou abruptamente:

— Já ouviu falar de um homem chamado Steincroln — Dr. Peter Steincroln?

— Não, quem é?

— Um médico americano. Escreveu um livro que meu pessoal de Washington mandou para a nossa biblioteca. Esse homem fala de quanto sofrimento o corpo humano pode tolerar. Dá uma lista dos pedaços do corpo, dos quais um homem comum pode prescindir. Aliás, copiei esse trecho para referências futuras. Gostaria de ouvir a lista? — M remexeu no bolso do paletó e pôs algumas cartas e uns pedaços de papel na escrivaninha, à sua frente. Separou um dos papéis com a mão esquerda, abrindo-o. Não ficou desconcertado com o silêncio da outra ponta da linha.

— Alô, Sir James! Bem, aqui está: vesícula biliar, baço, amídalas, apêndice, um rim, um pulmão, dois de seus quatro ou cinco litros de sangue, dois quintos de fígado, a maior parte do estômago, um metro ou um metro e meio de seus dez metros de intestinos e metade do cérebro.

M fez uma pausa. Como o silêncio se prolongasse, perguntou:

— Algum comentário, Sir James?

Ouviu-se um grunhido relutante na outra extremidade da linha telefônica.

— Gostaria de saber porque ele não acrescentou à lista um braço e uma perna, ou todos os membros. Não estou percebendo bem o que o senhor está querendo provar.

M deu uma risada seca.

— Não estou querendo provar nada, Sir James. Apenas achei interessante esta lista. Tudo o que estou querendo dizer é que o nosso homem parece ter escapado com poucos estragos, em comparação com esse rol de torturas. Mas, — prosseguiu M, abrandando um pouco —, na verdade estava pensando em dar-lhe um trabalho mais folgado. Aconteceu qualquer coisa em Jamaica. — M olhou para as vidraças por onde escorria água. — Será mais uma cura de repouso do que um verdadeiro trabalho. Dois dos nossos agentes, um homem e uma moça, fugiram juntos. Pelo menos, é o que parece. Nosso amigo poderia passar um tempo como agente de inquérito — e numa terra ensolarada. Que acha?

— Ótimo. Eu mesmo não recusaria o emprego, num dia como hoje. — Mas Sir James Molony estava resolvido a fazer-se compreender claramente e insistiu com brandura. — Não pense que esteja querendo interferir. Sei que o senhor tem que tratar essa gente como se fossem feitos de borracha, mas penso que não há-de querer que rebentem no momento mais inoportuno. Esse que passou por minhas mãos é rijo. Poderia afirmar que ele lhe prestará ainda muitos serviços. Mas o senhor sabe o que Moran disse sobre a coragem, em seu livro.

— Não me lembro.

— Diz ele que a coragem é um capital que se reduz com os gastos. Estou de acordo. O que quero que o senhor compreenda é que esse rapaz parece ter-se desgastado muito, já desde antes da guerra. Não quero dizer que não tenha mais reserva — ainda não. Mas há um limite.

— Exatamente. — M decidiu que o assunto estava esgotado. Hoje em dia, encontrava-se moleza por toda parte. — Por isso é que quero mandá-lo para fora. Umas férias em Jamaica. Não se preocupe, Sir James, vamos ter cuidado com ele. A propósito, o senhor conseguiu descobrir que droga era aquela que a mulher russa injetou nele?

— Recebi a resposta ontem. — Sir James Molony estava também satisfeito por ter mudado de assunto. Aquele velho era mesmo duro de roer. Haveria alguma possibilidade de suas palavras terem penetrado através daquilo que ele designava — de si para consigo — por "o crânio duro de M?" — As investigações nos tomaram três meses. Foi um rapaz esperto da Escola de Medicina Tropical quem acertou. A droga era o veneno fugu. Os japoneses usam-no para se envenenarem. Provém dos órgãos sexuais de um peixe, o tetrodonte dos mares no Japão. Pode-se sempre contar com os russos para usarem alguma coisa de que ninguém nunca ouviu falar. Poderiam perfeitamente ter empregado o curare. Tem praticamente o mesmo efeito — a paralisia do sistema nervoso central. O nome científico do fugu é tetrodotoxina. É uma coisa terrível e muito rápida. Basta uma injeção, como recebeu o seu subordinado, e dentro de poucos segundos os músculos motores e órgãos respiratórios estarão paralisados. No começo, o sujeito enxerga tudo em dobro e, logo depois, não consegue mais ficar com os olhos abertos. Em seguida, não pode mais deglutir. Sua cabeça cai e ele é incapaz de mantê-la erguida. Acaba morrendo de paralisia respiratória.

— Nosso homem teve sorte de escapar.

—, Foi um milagre. Foi graças àquele francês que estava com ele. Estendeu o rapaz no chão e aplicou-lhe a respiração artificial, como se fosse algum afogado. Conseguiu manter os pulmões em funcionamento até a chegada do médico. Este, felizmente, tinha trabalhado na América do Sul. Diagnosticou presença de curare e aplicou o tratamento correspondente. Mas foi como tirar uma sorte grande: as probabilidades eram de uma em um milhão que se acertasse com o tratamento. Por falar nisso, que foi feito daquela russa?

M respondeu secamente:

— Oh! Ela morreu. Bem, muito obrigado, Sir James. E não se preocupe com o seu paciente. Vou dar um jeito para que ele tenha um serviço leve. Até a vista.

M desligou. Seu rosto estava frio e inexpressivo. Puxou para perto o arquivo das transmissões radiofônicas. Revolveu-o rapidamente. Garatujou comentários em alguns dos registros de transmissões. Ocasionalmente, pedia uma rápida comunicação telefônica para uma das seções. Depois de ter acabado, colocou a pilha de papéis na bandeja dos "documentos a arquivar" e pegou o cachimbo e o pote de fumo, feito com a base de um obus de catorze polegadas. Nada mais havia à sua frente, a não ser uma pasta amarela assinalada com a estrela vermelha dos documentos secretíssimos. No centro da capa estava escrito em letra de forma maiúscula: POSTO DAS CARAÍBAS" e logo abaixo, em itálico: Strangways e Trueblood.

A luz do telefone interno piscou. M apertou o botão.

— Fale.

— Chegou 007.

— Mande-o para cá. E diga ao Armeiro que suba daqui a cinco minutos.

M recostou-se na cadeira. Pôs o cachimbo na boca e chegou-lhe um fósforo. Através da fumaça, ficou vigiando a porta do escritório de sua secretaria. Seus olhos estavam muito brilhantes e atentos.

James Bond entrou por aquela porta e fechou-a atrás de si. Caminhou até a cadeira em frente à escrivaninha de M e sentou-se.

— Bom dia, 007.

— Bom dia, senhor.

Nada perturbava o silêncio, a não ser o resfolegar de M fumando cachimbo. Parecia necessário um número incalculável de fósforos para mantê-lo aceso. Em surdina, gotas da chuva mesclada de neve batiam nas vidraças das duas amplas janelas.

Tudo estava exatamente como o recordara Bond durante os meses em que fora mandado de hospital em hospital, nas semanas de aborrecida convalescença, durante o duro trabalho de repor seu organismo em forma. O que ele via naquele momento representava sua volta à vida. Estar sentado naquela sala, em frente de M, era o símbolo da normalidade pela qual almejara. Através das nuvens de fumaça, fitou os perspicazes olhos cinzentos. Estavam a observá-lo. Que estava para acontecer? Uma necropsia da verdadeira matança, que tinha sido a sua última missão? Uma seca comunicação de que ia ser transferido para alguma das seções metropolitanas, para executar trabalhos de escritório durante algum tempo? Ou alguma nova e magnífica missão que M teria guardado, à 'espera de que Bond voltasse ao trabalho?

M jogou a caixa de fósforos sobre o couro vermelho da mesa. Recostou-se mais e juntou as mãos por trás da cabeça.

— Como se está sentindo? Contente por reassumir?

— Muito contente. E sinto-me perfeitamente bem.

— Algumas idéias definitivas a respeito do seu último caso? Não quisemos aborrecê-lo com isso enquanto não estivesse restabelecido. O senhor ouviu dizer que mandei abrir um inquérito. Creio que o Chefe de Estado-Maior tomou um depoimento do senhor. Tem alguma coisa a acrescentar?

A voz de M era fria, impessoal, a voz de um homem tratando de negócios. Não agradou a Bond. Algo desagradável estava por acontecer. Ele respondeu:

— Nada. Meti os pés pelas mãos. Censuro-me por ter deixado aquela mulher me pegar. Não deveria ter acontecido.

M tirou as mãos de trás do pescoço e colocou-as espalmadas na mesa, inclinando-se devagar para a frente. Seu olhar fizera-se duro.

— É isso mesmo. — Sua voz era perigosamente macia. — Sua pistola enguiçou, se estou bem lembrado. Aquela sua "Beretta" com silenciador... Alguma coisa andou mal, 007. O senhor não pode dar-se ao luxo desses contratempos, se fizer questão de ter um número com 00. Prefere renunciar a ele e voltar a um tipo de trabalho normal?

Bond retesou-se. Cravou com ressentimento os olhos nos de M. A licença de matar em favor do Serviço Secreto, o prefixo com dois zeros, constituía uma grande honra. Fora ganho arduamente. Trazia a Bond as únicas missões de que ele gostava, as missões perigosas.

— Não, isso eu não quero.

— Então, teremos que modificar o seu equipamento. Foi uma das recomendações da Comissão de Inquérito. Concordo com ela. Compreendeu?

Bond disse obstinadamente:

— Estou acostumado com essa pistola. Gosto de trabalhar com ela. O que aconteceu poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Com qualquer tipo de arma automática.

— Não estou de acordo. Nem tampouco a Comissão de Inquérito. Portanto, está decidido. A única questão a resolver é o que o senhor há-de usar em seu lugar.

M inclinou-se para o telefone interno.

— O Armeiro chegou? Mande-o entrar. M tornou a sentar-se.

— Talvez não saiba disso, 007, mas o major Boothroyd é o maior perito do mundo em armas de pequeno calibre. Não estaria aqui, se não o fosse. Vamos ouvir o seu parecer.

Abriu-se a porta. Um homem baixo, pouco corpulento, entrou e caminhou até a escrivaninha, permanecendo em pé junto à cadeira de Bond. Este levantou os olhos para o rosto do recém-chegado. Vira-o antes, raramente, mas lembrava-se dos olhos cinza-claros, muito apertados, que pareciam nunca pestanejar. Lançando a Bond um olhar inexpressivo, o homem ficou em pé, à vontade, olhando para M. Cumprimentou-o num tom de voz neutra, sem inflexões.

— Bom dia, Armeiro. Desejava fazer-lhe algumas perguntas. — M falava como que despreocupadamente. — Primeiro, que pensa da "Beretta", a de calibre 25?

— É uma arma para moças.

M arqueou ironicamente as sobrancelhas, olhando para Bond. Bond teve um sorriso forçado.

— Deveras? E por que está dizendo isso?

— Não é capaz de neutralizar um ataque. Mas é fácil de ser manejada. Um pouco bonitinha demais, também, se o senhor compreende o que quero dizer. Agrada às senhoras.

— Como ficaria, com silenciador?

— Menos eficaz ainda. Não gosto de silenciadores. São pesados e prendem-se às roupas, quando a gente está com pressa. Não aconselharia a ninguém experimentar uma combinação dessas. Não, se se quiser um trabalho sério.

M disse ironicamente a Bond: — Tem algo a dizer, 007? Bond deu de ombros:

— Não concordo. Utilizei-me da "Beretta" 25 durante quinze anos. Nunca enguiçou e nunca errei o alvo, até agora. Não é tão má, para uma pistola. O que acontece é que estou habituado a ela e posso apontá-la diretamente. Tenho-me utilizado de armas maiores, quando se tornou preciso — o "Colt" 45 de cano comprido, por exemplo. Mas para pequenas distâncias e trabalhos discretos, gosto da "Beretta". — Bond fez uma pausa. Parecia-lhe que deveria ceder em algum ponto. — Estou de acordo quanto ao silenciador. É um estorvo. Mas às vezes é preciso usá-lo.

— Já vimos o que acontece quando o senhor o faz — disse M, ríspido. — E quanto à troca de arma, é apenas uma questão de treino. O senhor logo sentirá sua mão perfeitamente acomodada ao novo revólver. — M consentiu que um laivo de simpatia passasse em sua voz. — Sinto muito, 007. Mas já tomei a decisão. Fique um instante em pé, por favor. Quero que o Armeiro examine sua conformação.

Bond pôs-se de pé e ficou de frente para o outro homem. Não havia calor nos olhares que trocavam. Os de Bond demonstravam irritação e os do major Boothroyd eram indiferentes, cínicos. Andou à volta de Bond. — Dá licença, — disse ele, e apalpou os tríceps e antebraços de Bond. Voltou à frente dele e perguntou:

— Posso dar uma olhada na sua pistola?

A mão de Bond enfiou-se vagarosamente dentro do paletó. Ele estendeu a "Beretta" listada, de cano serrado. Boothroyd examinou a arma e pesou-a em sua mão. Pô-la na mesa e perguntou:

— E o seu coldre?

Bond despiu o paletó e tirou do ombro a correia com o coldre de couro. Tornou a vestir o paletó.

Boothroyd deitou um rápido olhar à boca do coldre, talvez para verificar se se notavam sinais de agarramento, e jogou-o ao lado da pistola, com um gesto de escárnio. Olhou para M.

— Posso fazer coisa melhor — declarou ele com o mesmo tipo de voz que recordava a Bond a primeira vez que tinha ido a um alfaiate de luxo.

Bond sentou-se novamente. Controlou-se, a fim de não ficar olhando insolentemente para o alto. Ao contrário, fitou fleugmaticamente M.

— Bem, Armeiro, que recomenda o senhor?

O major Boothroyd empregou sua voz de perito:

— Na verdade, o senhor sabe — disse ele com ar modesto — acabo de fazer provas com quase todas as pequenas armas automáticas. Cinco mil disparos cada uma, distância de vinte e cinco metros. Entre todas, eu escolheria a "Walther PPPK", de 7,65 milímetros. Está em quarto lugar, após a "M-14", dos japoneses, a "Tokrev" russa e a "Sauer M-38". Mas gosto da leveza de seu gatilho e da extensão de seu cabo, que permite segurá-la de uma maneira que, creio, deva ser conveniente para 007. É uma verdadeira arma de defesa. Naturalmente, é de calibre 32, ao passo que a "Beretta" é de 25; mas eu não aconselharia nenhuma arma mais leve. E pode-se encontrar munição para a "Walther" em qualquer parte do mundo. Isso confere-lhe vantagem sobre os revólveres russos e japoneses.

M voltou-se para Bond: — Tem alguma objeção a fazer?

— É uma boa arma — concordou Bond. — Um pouco mais volumosa que a "Beretta". Como sugere o Armeiro que eu deva carregá-la?

— Coldre de três correias de Berns Martin — respondeu sucintamente o major Boothroyd. — É melhor levá-lo por baixo do cós da calça, para a esquerda. Mas pode ser posto também sob a axila. Couro rijo, de selim. Esse coldre retém a arma dentro, com uma mola. Faz com que se puxe a arma com maior rapidez do que isso — apontou para o coldre que estava sobre a escrivaninha. — Três quintos de segundo para balear um homem a sete metros de distância, é o que calculo.

— Está resolvido, então. — A voz de M tinha um tom definitivo. — E quanto a uma arma mais pesada?

— Existe somente um revólver para isso — disse o major Boothroyd, impassível. — O "Smith & Wesson" (Centennial Airweight). Revólver de calibre 38, sem percussor, de modo que não prende nas roupas. Comprimento total de seis polegadas e meia, e pesa menos de 400 gramas. Para diminuir o peso, só cabem cinco balas no tambor. Mas quando todas forem disparadas, — e o major Boothroyd condescendeu em dar um sorriso glacial, — alguém terá morrido. Atira com os cartuchos especiais "S & W". Cartuchos muito precisos. Com carga normal, a velocidade de boca é de 290 metros por segundo, e a energia de boca é de duzentas e sessenta libras. Há diversos comprimentos de cano, três polegadas e meia, cinco polegadas...

— Está bem, está bem! — A voz de M fizera-se impaciente. — Está aprovado sem discussão. Se o senhor diz que é a melhor arma, eu acredito. Portanto, vão ser a "Walther" e o "Smith & Wesson". Mande um exemplar de cada arma para 007. Com coldre e correia. E providencie para que ele se exercite com elas, a partir de hoje. Deve estar em forma dentro de uma semana. Combinado? Então, muito obrigado, Armeiro. Não quero tomar mais seu tempo.

— Muito obrigado — respondeu o major Boothroyd. Deu meia-volta e saiu com passo duro.

Houve um momento de silêncio. M fez girar a poltrona e ficou observando as vidraças sobre as quais escorria uma cortina de água. Bond aproveitou a oportunidade e relanceou os olhos no relógio. Dez horas. Seu olhar fixou-se então na pistola e no coldre que estavam' sobre a mesa. Pensou em sua união de quinze anos com aquele feio pedaço de metal. Lembrou-se das ocasiões em que a voz seca daquela arma lhe salvara a vida, e daquelas em que a sua ameaça fora suficiente. Pensou nos dias em que se preparava literalmente para matar, em que desmontava a pistola, lubrificava-a e colocava as balas cuidadosamente no carregador de mola. Em seguida, experimentava o mecanismo uma ou duas vezes, descansando os cartuchos no colchão de alguma cama de hotel. Depois, a limpeza final com um trapo bem enxuto e a pistola era colocada no pequeno coldre a tiracolo. Fazia uma pausa diante do espelho, para certificar-se de que nada podia ser percebido. Finalmente, saía para o encontro que haveria de terminar em trevas ou em luz. Quantas vezes a arma lhe salvara a vida? Quantas sentenças de morte tinha ela assinado? Bond sentia-se desarrazoadamente triste. Como era possível sentir-se tamanho apego por um objeto inanimado e, além do mais, feio? Por uma arma que, era forçoso reconhecê-lo, não pertencia à mesma classe das que o Armeiro escolhera? Mas ele lhe tinha tal apego e M ia romper esses laços...

M fez novamente girar a poltrona e encarou-o.

— Sinto muito, James, — disse ele, mas não havia simpatia em sua voz. — Sei que gosta deste pedaço de ferro, mas creio que é preciso desistir dele. Nunca se deve dar nova oportunidade a uma arma — nem tampouco a um homem. Não posso correr riscos com os membros da Seção Dois-Zeros. Eles têm que estar convenientemente equipados. Compreende isso, não? Uma pistola é mais importante que um braço ou uma perna, no seu trabalho.

Bond sorriu levemente.

— Bem sei. Não vou discutir. Estou apenas triste por me separar dela.

— Então, está bem. Encerremos o assunto. Tenho outras notícias para o senhor. Um trabalho a fazer. Em Jamaica. Trata-se de um problema pessoal. Pelo menos, é o que parece. Já houve investigação de rotina e um relatório. O sol lhe fará bem, e o senhor poderá exercitar-se com suas novas armas, atirando em tartarugas ou quaisquer outros bichos que existam por lá. Umas pequenas férias não lhe farão nenhum mal. Gostaria de tratar desse caso?

— Está ainda ressentido comigo por causa do meu último trabalho, — pensou Bond. — Ele acha que eu não correspondi à confiança que tinham em mim. Não quer me dar trabalho sério. Quer me experimentar primeiro. Está certo! — E disse em voz alta — Está parecendo vida de preguiçoso. Não tenho feito outra coisa senão viver no mole, nestes últimos tempos. Mas se tiver que ser feito... Se o senhor mandar...

— Sim — respondeu M. — Estou mandando.

 

 

                                        CONTINUA