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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SEDUTOR
O SEDUTOR

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 20
Paul levou Jeanette para dentro da capela do minúsculo vilarejo nos arredores de Dunbar. Os aromas frescos da primavera entravam pelas janelas e o pastor aguardava
ao fundo da nave.
Diane olhou de relance para Daniel. Ele parecia calmo o bastante. A decisão estava tomada, e agora isto tratava-se apenas de algo a levar a cabo. Ele não passara
os três dias de viagem até lá tão perturbado que nem conseguia comer. Durante as refeições nas estalagens ao longo do percurso, a sua postura fora sempre espantosamente
relaxada, leve, mesmo.
A de Paul também. Foram ela e Jeanette quem viveu num silêncio tenso. As duas tinham ido numa carruagem, acompanhadas pela criada de Jeanette, e Paul e Daniel noutra.
O que proporcionara a Diane muitas horas para pensar, porque Jeanette falou muito pouco durante todo o caminho para norte.
Paul sentou Jeanette numa cadeira próxima do pastor e ficou de pé ao lado dela. Daniel ofereceu o braço a Diane. Avançaram.
Nos votos tudo estava turvo. Ouviu-se dizer as palavras, como se estivesse distante. Assemelhava-se tanto a um sonho que, quando saíram da capela, o clarão do sol
a apanhou desprevenida e como que a obrigou a acordar.
- Voltaremos dentro de dez dias, espero - ouviu Daniel dizer.
Nas carruagens, um cocheiro mudava o baú dela para o veículo que Daniel e Paul tinham usado.
Jeanette deu-lhe um beijo. Depois Paul pegou nela, colocou-a na carruagem onde a criada aguardava, e subiu para junto delas.
- Para onde vão eles? - perguntou Diane.
- Para Londres. Jeanette anunciará o casamento e assim quando chegarmos já não será novidade nenhuma.
A carruagem pôs-se em movimento. Diane olhou para a que restava. - E para onde vamos nós?
- Tenho uma pequena propriedade aqui perto.
- Vamos esconder-nos até os rumores cessarem?
- Penso nisso como ter-vos só para mim durante uma semana.
Desde que haviam saído de Londres que ela sentia um nó no estômago, que agora se torceu todo. A porta aberta da carruagem aguardava a noiva. O que ela sentia era
muito parecido com o que sentira quando se vira defronte da casa de Paris de Daniel, paralisada pelo medo de se ter metido em algo que náo planeara muito bem.
Aguardava-a naquela carruagem uma vida com Daniel St. John. Ela só sabia uma coisa sobre casamento, e imaginou que fosse a única que importaria durante as semanas
seguintes. Se ainda fosse ignorante, estaria menos nervosa. ,
O braço dele rodeou-lhe a cintura. - Vinde comigo. Prometo náo vos possuir pelo caminho, pelo que escusais de pôr já esse ar de condenada.
A propriedade podia ser pequena aos olhos de Daniel, mas ela achou-a encantadora e do tamanho certo. Aninhada no sopé de uma pequena colina e ladeada por um conjunto
de árvores, a antiga casa de pedra dava para um pequeno lago. com dois pisos, possuía quatro divisões em baixo e quatro em cima. O homem e a mulher que cuidavam
dela viviam numa casa lá perto.
Ela e Daniel náo tinham sido anunciados, e foram dar um passeio enquanto o casal se apressava a preparar as coisas.
- Pareceram muito surpreendidos por vos verem - comentou ela quando passeavam à volta do lago.
- Agora raramente cá venho. Já passaram alguns anos desde a última vez. Vivi aqui algum tempo quando era pequeno, mas foi antes de o Harold e de a Meg virem para
cá. Para eles sou um dono ausente, e este sítio agora é mais deles do que meu.
Ela olhou a propriedade ao seu redor com interesse renovado.
- Vivestes aqui? Depois de virdes de França?
Ele avançou uns vinte passos silenciosos antes de responder.
- Sim.
- Então era da vossa família? - Imaginou a casa cheia de pessoas e um Daniel muito novinho a correr pela relva.
- A família da minha mãe tinha-a há gerações. Nem sequer sei como ficaram na posse dela. Terá provavelmente sido na altura em que a França e a Escócia se juntaram
contra Inglaterra.
- Que idade tínheis quando viestes? Quando saístes de França?
- Oito.
- É a mesma idade que eu tinha quando saí de Inglaterra. Que coincidência curiosa. Vós saístes de França para vir para aqui e eu saí de Inglaterra para ir para lá,
com a mesma idade. Sempre pensei que não tínhamos nada em comum, mas parece que sim.
- Aparentemente.
Deixaram a margem do lago e entraram num pequeno bosque. Não demorou até alcançarem o outro lado. Havia um muro de pedra a circundar um cemitério onde as árvores
terminavam. Daniel dirigiu-se para norte, na direção da colina, mas Diane entrou no cemitério, curiosa.
Ele seguiu-a e ficou ao seu lado, enquanto ela se debruçava sobre muitas dezenas de pedras que emergiam do chão. - São antigos criados e outras pessoas - explicou
ele.
- São a história deste lugar, e as famílias que aqui viveram. Acho estas coisas fascinantes, já que não tenho nada disso. - O olhar dela percorria os nomes que definiam
as vidas dos que ali haviam vivido. McGregor e Graham, LaTour e Mirabeau e Jervais. Smith e Johnson e Scott. - Não há nenhum St. John - comentou ela, continuando
a andar para poder examinar o resto.
A mão dele tomou o braço dela. - Era propriedade da família da minha mãe, não do meu pai, e como disse aqui estão enterrados principalmente criados. Agora vamos.
Não me interessam as sepulturas tanto quanto a vós.
Ela deixou que ele a conduzisse em direção à colina. Subiram até ao topo e contemplaram a casa e o lago.
- Obrigada por me terdes trazido. Gosto de saber que vivestes aqui enquanto rapaz e que a vossa família está na posse dela há várias gerações. Não é a minha família,
claro, mas agora estou-lhe ligada oficialmente, não é?
Ele lançou-lhe um olhar inquiridor. - Parece que estais, sim. Oficialmente.
- Não gostais de fazer isto, pois não?
- Disparate. É um desporto e pêras. Não tenho ocasiões suficientes para o aproveitar, e fico contente com esta oportunidade.
Estavam a pescar.
Depois da refeição ela pedira a Daniel para lhe ensinar. Aquiescendo prontamente, ele desencantara canas de pesca, iscara linhas, e agora estavam lado a lado à espera
que acontecesse alguma coisa.
Alguma coisa era algo que não acontecia há muito tempo.
- Talvez se pretenda induzir algum tipo de meditação, como quando se observam as ondas do mar - avançou ela.
- Sem dúvida. Mas menos sublime.
- Sim, pescar num laguito numa quinta não é assim muito sublime, pois não?
É necessário haver uma visão de grandeza e esplendor para isso acontecer. - Olhou o pequeno
volume que lhe espreitava do bolso. - Se preferirdes ler o vosso livro, eu não me importo.
Ele puxou a linha para cima e para baixo algumas vezes. - Tendes a certeza de que ficais bem sozinha? Não vão ser de mais para vós? Não vos puxarão para as profundezas
enquanto vos debateis?
Ela riu. - Eu fico bem.
- Se tendes a certeza, então talvez me sente debaixo daquela árvore até vos fartardes.
Ele pousou a cana e afastou-se.
Ela ficou a experimentar com a cana e a linha, tentando apanhar um dos vultos prateados e serpenteantes que via na água.
Foi uma das melhores tardes da sua vida. Quando ele falara em tê-la só para ele, ela presumira que seria na cama. Não esperara que fosse o companheirismo que partilharam
durante aquelas horas, imbuído como estava da intimidade daquela longa noite nos seus braços.
Os peixes não queriam ser apanhados. Ela sabia que se conseguisse levar a linha mais para dentro do lago a sua sorte melhoraria. Olhou para Daniel e viu que ele
estava absorto na sua leitura.
Sentou-se no chão e tirou as meias. De saia puxada até aos joelhos numa mão e cana na outra, entrou devagar no lago e lançou a linha.
O anzol desceu. Ela ficou o mais quieta que conseguiu, com a água fria a chegar-lhe à bainha do vestido. Levantou-o um pouco mais e enfiou a cana debaixo do outro
braço.
Um puxão vigoroso indicou-lhe que tinha peixe no anzol. Mas não havia como puxá-lo sem deixar cair a saia à água. Excitada com o sucesso da empreitada, deu meia-volta
e regressou para a margem do lago, arrastando atrás de si o peso irrequieto.
Subiu para a erva, com água a escorrer-lhe pelas pernas, a saia amassada na mão e já a meio das coxas. Examinou os pés enlamea- dos e depois olhou para cima, diretamente
para os olhos de Daniel.
Ele já não lia. Observava-a, e pareceu-lhe que já o fazia há algum tempo. Ela deixou cair a saia e voltou-se para ir buscar o peixe.
- Não é nem de perto tão grande como parecia na linha - disse, ao tirá-lo da água. - Acho que devia voltar a pô-lo lá.
- Eu faço isso. - Ele levantou-se para a ajudar.
Mas ela já tinha dado conta do recado. Sem pensar, agarrou no peixe e retirou o anzol. Quando ele se aproximou dela, o peixito já voava pelos ares, de volta à água.
- Que bem que vos saístes. A maior parte das mulheres não gosta de lhes tocar.
Ela olhou para a mão de onde o peixe acabava de sair. Portara-se de facto muito bem. A sensação de ter o peixe na mão também não fora surpresa. - Acho que já fiz
isto antes. Em criança. Depois disso certamente que não, ou lembrar-me-ia. Agora ficarei a cheirar a peixe, infelizmente.
Ele pegou na mão dela e cheirou-a. A respiração dele arrepiou-lhe o braço todo. - Não é um cheiro mau. De qualquer forma, dar-vos-emos banho. - Tirou-lhe a cana
da mão. - Agora entremos. Faz-se tarde.
Ela agarrou nas meias e nos sapatos e foi descalça para a casa. A sensação da relva por baixo dos pés era-lhe familiar. Também fizera aquilo antes. Era outro pequeno
eco da sua infância perdida, tinha a certeza.
Daniel falou em privado com Harold antes de se juntar a ela na sala de jantar. Quando ele se sentou à janela, ao sol do fim de tarde, ouviram-se numerosas passadas
nas escadas das traseiras.
Numa mesa, a um canto, estava um vaso chinês. Ela examinou-o? - É um dos vossos?
- Sim. Trouxe-o de uma das minhas primeiras viagens ao Oriente.
- É Ming?
Ele riu-se. - Não. Podeis parti-lo. Foi feito para exportação e não é muito valioso. Na altura eu não sabia o que eram, mas gostei dele e comecei a aprender mais
sobre os vasos.
-Tendes muitas coisas orientais. O vosso quarto de Londres...
- com a garganta embargada por memórias daquele quarto, procurou controlar-se. - É isso que transportais nos vossos navios? Vasos e coisas semelhantes?
- Por vezes. Geralmente coisas menos interessantes.
- Coisas valiosas, ainda assim, se fizeram de vós um homem rico.
- A sorte desempenhou o seu papel. Como também grandes riscos que correram bem. Durante vários anos não transportei mercadoria de outros homens, só minha. Se me
tivesse ido ao fundo
algum navio, hoje podia andar a cruzar as águas, içando peixe seco e nada mais.
- Porque não evitastes esses riscos?
Ele encolheu os ombros. - Era muito jovem quando comecei, e muito impaciente.
Muito jovem? Conteve a pergunta, mas quis fazê-la. Afinal, ele ainda era bastante jovem. Devia ser muito novo quando a levara para Rouen, mas ele disse-lhe que tinha
conhecido o pai dela na navegação. Então devia ter sido depois de alguns daqueles grandes riscos. Mas isso significaria que ele era ridiculamente novo quando começou
a fazer fortuna.
Olhou para ele. Talvez fosse mais velho do que ela pensava. Alguns homens aparentam ser mais novos do que são. A sua vida não tinha sido fácil, porém. Andara muito
tempo no mar a viajar pelo mundo inteiro.
- Dizeis muito novo como se fôsseis um velho. Não podeis ter mais do que trinta e dois ou trinta e três.
- Quando os anos são cheios, é preciso mais tempo para os viver.
Era uma boa resposta, mas não a que ela queria. Ele nem a corrigira nem concordara com ela.
- Há rumores sobre vós, além dos que me envolvem a mim. Sabíeis disso? A condessa disse-me que há quem julgue que vós fostes pirata nos mares do Oriente. Os vossos
riscos foram assim tão grandes?
- Preocupa-vos a possibilidade de vos terdes casado com um pirata? Nada de tão arrojado, lamento. E não houve mais do que dois ou três episódios durante aqueles
anos todos que pudessem ser descritos dessa forma.
Ele estava a meter-se com ela. Principalmente. Ela suspeitava de que havia variadíssimos episódios que podiam bem ter sido descritos daquela forma.
Examinou os livros que estavam dentro da caixa encostada à parede. Não conseguia ver os títulos e as encadernações. Imaginou-o
na cadeira junto à janela, de botas e pernas cruzadas, lenço displicentemente atado, cotovelo apoiado no braço da cadeira, e queixo pousado na mão.
Ela sentiu-se alvo da atenção dele.
Harold apareceu à porta, chamou a atenção de Daniel, e indicou o andar de cima com um gesto breve. Desapareceu. Sons que se ouviam na parte de trás da casa, de Meg
a atarefar-se na cozinha, pararam.
- O vosso banho está pronto, no andar de cima - informou Daniel.
Seria bem-vindo, um banho. Ela ainda estava descalça, e a lama do lago secara nas suas pernas. As suas máos ainda cheiravam vagamente a peixe.
Fez menção de sair da sala. Ele ficou ali sentado, muito à semelhança do que ela o imaginara fazer, tão belo que ela nem queria mexer-se. A sua presença saturava
o ar da divisão, perturbando-a, apesar de ele se limitar a olhar para ela.
- Como quereis fazer isto, Diane? Preferis banhar-vos sozinha antes de eu subir?
Sentiu um frémito no ventre quando o seu corpo constatou as implicações do que ele disse.
Ele mostrara-se tão moderado o dia inteiro. Mal lhe tocara. Ela presumira que aquilo seria adiado até depois da ceia. Até à noite.
Ela limitou-se a ficar ali de pé, sentindo-se estúpida e nervosa.
Ele levantou-se e foi para junto dela. O seu coração iniciou um rodopio lento. - Meg saiu com Harold e voltaram à casa deles. Provavelmente precisais de alguma ajuda
com os laços e afins.
Pegou-lhe na mão. Resistindo ao impulso de sair a correr, ela deixou que ele a levasse dali para fora. Chamou a si toda a coragem e tentou conter a torrente de reações
que girava dentro dela. Agora estavam casados e ela não se comportaria como uma rapariguinha tonta. Já nem sequer era inocente, e não se comportaria como tal.
Era o que dizia a si própria ao subir as escadas com ele atrás de si. Senti-lo ali atrás perturbava-a, contudo. Ocorreu-lhe que talvez
fosse melhor se ele simplesmente a tivesse possuído na carruagem. O Daniel que sucumbia à paixão crua era alguém que ela já conhecia. Esta sensualidade mais tranquila,
calma, contida, parecia mais perigosa.
E mais excitante. Não podia negá-lo. Quando chegaram por fim aos aposentos do piso superior, os seus sentidos estavam despertos para tudo, especialmente a proximidade
dele.
Tinham colocado uma comprida banheira de metal num dos quartos, à frente da lareira protegida. Uma pequena fogueira ardia, retirando a frieza ao edifício.
Ela mergulhou os dedos na água do banho. - Perfeito.
Sentiu-o atrás dela. As suas mãos começaram a desatar as fitas do vestido. Ela pôs-se muito direita, instintivamente, para disfarçar um tremor visceral que ameaçava
abanar-lhe o corpo todo.
- Importais-vos que faça isto? - perguntou ele.
- Estou muito inquieta, é tudo.
- É desagradável, estar inquieta?
Constatou que não era. Não podia dizê-lo. Abanou a cabeça.
O vestido abriu-se nas costas e soltou-se-lhe nos ombros. Sem esforço da parte dela, deslizou-lhe pelo corpo abaixo, deixando-a de roupa interior e pernas nuas.
Ele beijou a pele do seu ombro despido.
- Não estais inquieta, querida. Estais excitada. Estais a sentir o quanto nos queremos um ao outro.
Dar-lhe um nome só tornava aquilo mais forte. A sensação passou a ser física. O seu corpo tornou-se mais consciente ainda dele. As partes do ato amoroso que não
eram completamente horríveis, de todo, começaram a atravessar-lhe a mente.
Ele lançou-se aos cordões do espartilho. Ela sentiu a peça de roupa libertá-la suavemente, demasiado consciente de que em breve não teria nada vestido. Se fosse
como a primeira vez, duvidou que chegasse a tomar banho.
Naquele momento, nem sequer tinha a certeza de querer tomar banho.
O espartilho também caiu ao chão. Agora só lhe restava a sua fina camisa. Ainda era dia. Não havia velas para apagar.
Envolvendo-a com os braços, ele virou-a e beijou-a. Não a arrebatou com a sua paixão como tinha feito no quarto dele, mas ela ficou igualmente afetada. Tudo o que
ela estava a sentir, a deliciosa excitação e os estremecimentos, multiplicou-se por dez, soterrando o medo e o cuidado.
Ele fez deslizar a camisa, seguindo com o olhar a sua descida lenta. O choque ressoou como um eco, mas o desejo mútuo vibrou mais alto. O desconcerto de se ver nua
apagou-se. Gostava da forma como ele olhava para ela. Acordava aquele pulsar profundo, e o latejar parecia espalhar-se pelo seu corpo todo.
Ela queria que ele a beijasse outra vez. Que a tocasse. Queria-o o bastante para não conseguir fingir que não. Imaginou-o a fazê-lo, o que lhe criou uma sensação
expectante que só a deixou mais excitada. O poder do que experimentava era a única coisa que naquele momento a surpreendia. Admitir que se queriam um ao outro estava
a deixá-la descontrolada.
Em vez daquele beijo e daquela carícia, ele entregou-a à banheira.
Ela sentiu o toque sensual e temperado da água, que lhe lambia suavemente a pele morna, mostrando-lhe o quão alerta os seus sentidos estavam.
Ele passou-lhe o sabonete.
- Ide-vos embora? - perguntou ela, erguendo e ensaboando uma perna enlameada.
O olhar dele subiu-lhe, serpenteante, pela perna, seguindo-se o resto do corpo. - Quereis que vá?
De repente, ela viu-o como o vira quando estava deitada, nua e expectante, no quarto dele. Era a mesma sensualidade tensa entre eles, e regressou um pouco do velho
medo. - Não sei.
- Sabeis, sim. - Ele sorriu e contornou a lareira.
Ela foi esfregar a outra perna, desapontada consigo própria. Que covarde que era. Ele tão paciente com aquela lenta sedução e ela a recuar...
Subitamente, ele estava atrás dela. Ela sentiu-o à altura da sua cabeça, ajoelhado ao lado da banheira. - Dai-me o sabonete.
Olhou para trás quando lho passou e viu que ele retirara o casaco e a camisa.
Estava maravilhoso. Tão belo e terno, tão atraente, assim esguio e forte. Viu-se nos braços dele e sentiu que lhe faltava o ar.
Ao seu lado, ele mergulhou o sabonete na água. A ação trouxe-o mais para perto. Ele juntou as mãos para fazer espuma e os seus braços envolveram-na numa espécie
de abraço.
- Sois bela de mais para que vos deixe na vossa privacidade. Se conseguísseis ver-vos, compreenderíeis. Parece-me que dar banho à sua mulher deve ser um dos direitos
do marido. - Espalhou-lhe a espuma pelos braços numa carícia escorregadia. Toque atrás de toque, lentos e suaves, os seus dedos e as palmas das mãos cobriram-lhe
a pele de espuma branca.
Uma estimulação sensual e lânguida ia-lhe de encontro às coxas, rodeava-as, acompanhando a água. Ela encostou-se à banheira, apoiando-se no peito dele, e submeteu-se
às carícias sedutoras. Observou aqueles músculos definidos alongarem-se para espalhar o sabonete, para cima e para baixo, para cima e para baixo.
- Isto também me ajudará a descobrir que partes não foram completamente horríveis para vós. - Cobriu-a de espuma até aos ombros e peito. As palmas das suas mãos
passavam pelos seios dela, na diligência de lhe cobrir o tronco de espuma.
Os movimentos abrandaram. As mãos dele moviam-se deliberadamente. Deslizavam por baixo dos seus seios e à volta deles, estimulando-a. Ela fechou os olhos e aguardou.
- É isto que quereis? - perguntou ele, com a boca colada à sua orelha. As suas carícias percorriam-lhe os dois seios em movimentos suaves e lânguidos. O movimento
era incrivelmente sensual. Quando aquelas mãos suaves se concentraram nos mamilos, o prazer agudizou-se, acelerando-lhe a respiração, conduzindo-a a uma excitação
quase desesperada.
Ela observava através de pálpebras semicerradas, mordendo o lábio para reprimir os arquejos de prazer ao sentir as voltas dos dedos dele nos seus mamilos, intensificando
o prazer.
- Ajoelhai-vos. Virai-vos para mim.
Era tão bom que ela não queria que acabasse. Porém, ele pegou-lhe pelos ombros, fazendo-a colocar-se de joelhos, erguida acima da água, e voltada para ele.
Aquilo não a afetara só a ela. A expressão contida dele era reflexo da sua própria excitação e da consciência que tinha da presença dela. Ela pensou que ele ia pegar
nela e tirá-la dali para fora, mas ele pegou no sabonete e fez mais espuma.
Acariciou-lhe novamente os seios, e depois mais abaixo. Enquanto a beijava, as mãos dele passaram para as costas e desceram-lhe até ao traseiro. Acariciaram-lhe
as nádegas de todas as maneiras possíveis, fazendo o pulsar profundo de excitação latejar até a dominar.
Aquela sensação quente lá em baixo enlouquecia-a. Agarrada aos ombros dele, aceitando o seu beijo, ela ofereceu as nádegas às mãos dele, incitando-o com o seu corpo
a tocá-la mais abaixo e mais fundo.
Ele pegou-lhe nas mãos e pousou-as na banheira. Passou para o lado dela, sempre a lavá-la, ora descendo pela parte de trás das coxas e subindo entre elas, ora subindo
pelo traseiro e descendo até lá abaixo. Por todo o lado, exceto onde ela o queria.
Era um tormento lento e maravilhoso, e ela não podia nada contra o que lhe fazia. Agarrava-se despudoradamente aos lados da banheira e erguia as ancas, arqueando
as costas e baixando os ombros.
Ele curvou-se e beijou-lhe as costas. A sua mão acariciava-a entre as coxas. - Da última vez não o queríeis. Quereis, agora?
Ele tratara de fazer com que o quisesse. Queria-o tanto que cerrava os dentes, para impedir os gritos.
- Quereis? - Um toque leve, como um ponto de interrogação.
Escapou-lhe um grito, então, de alívio e assentimento. Seguiu-se uma longa série deles quando ele respondeu com carícias diretas.
A sensação aumentou mais e mais, tornando-se tão intensa que a lançou num abandono total.
Endireitou-se e agarrou nele, puxando-o para si para conseguir abraçá-lo. A paixão dele libertou-se para se juntar à dela. Chamou-a a si num abraço apertado e envolveu-a
num beijo possessivo. Continuou a tocar nela e a acariciá-la até nada mais importar, nada existir, a não ser ele e aquela sensação concentrada tão cheia de um prazer
inacreditável.
Fios de água desciam o peito dele, vindos dos seus braços molhados. Ela beijou um deles, para deter o seu curso, e depois outro. Lambeu o minúsculo ribeiro, brincalhona.
A sua língua seguiu-o mesmo até ao ombro, varrendo-lhe a pele. Virando ligeiramente a cabeça, ela viu nos olhos dele um novo tipo de paixão. Orgulhosa de si própria,
beijou-o.
Os lábios dele afastaram-se, e subitamente ela invadia-o como ele a invadira a ela. A audácia do gesto raiou o desejo de triunfo.
Sentia a água a bater-lhe no corpo. Ele tirava-lhe a espuma com uma mão e segurava-a contra si com a outra, encorajando-a nas suas audazes explorações. Tirou-a para
fora da banheira e apertou-a ainda mais contra si, num abraço que pareceu envolvê-la completamente.
Ainda juntos, ainda unidos pelos corpos quentes e a água fresca, ele desapertou o resto da roupa, que caiu ao chão para o abraço se fazer completo.
Braços firmes no seu ombro e na sua anca limitavam-lhe os movimentos. O beijo profundo ordenava rendições menos físicas. A sensação de estar a ser absorvida espalhava-se
dentro dela. De não-separação. De ser controlada da forma mais benigna, mas dominada, ainda assim.
Os seus pés deixaram de tocar no chão. Continuando a segurá-la, continuando a beijá-la, ele levou-a para a cama.
À luz clara do entardecer, ele ajoelhou-se ao lado dela, das suas coxas. Não havia noite escura a esconder a sua imagem. A figura de Daniel, de força elegante e
musculada, de controlo e paixão contidos, acelerava-lhe o coração e deixava-lhe o corpo desejoso. Os seus olhos
escuros refletiam o saber confiante de que ela o queria e ele a teria em breve.
Posicionou-se sobre ela, braços fortes de ambos os lados, ainda ajoelhado, e beijou-a. A cabeça dele mergulhou e a sua língua lambeu-lhe o mamilo como a dela lhe
fizera ao peito.
O prazer atenuara-se numa excitação profunda, contínua, mas a boca dele deixou-a novamente atordoada. com os dedos, estimulou o seu outro seio. Ela agarrava-se aos
ombros dele e à sua sanidade, mas a intensidade incessante do prazer determinou que perdesse a última. Fechando os olhos, submeteu-se e foi transportada para um
lugar onde não existia mais nada a não ser sensação.
A sua cabeça fervilhava com clamores por alívio e súplicas por mais. Agarrava-se a ele com mais força, onde conseguia, incapaz de impor calma às mãos e ao corpo.
Aos braços e antebraços. Ao tronco e às ancas. Acariciou-lhe o peito, tentando regressar à entrega daquele beijo perto da banheira. O corpo dela tornou-se um vazio
que necessitava de algo para se sentir completo.
A mão dela roçou o falo dele no espaço entre os seus corpos. Mesmo na sua loucura ela percebeu que ele gostou, que queria que o acariciasse daquela forma.
Ele olhou para o sítio onde a mão dela se movia. Colocando a sua mão entre as pernas dela, também a acariciou.
Partilharam um momento de prazer erótico celestial. Então ele tocou-a de uma forma diferente, muito específica, e a sua respiração deteve-se. Começou a girar numa
espiral que se condensava num prazer insuportavelmente concentrado. Saber que ele observava, que ele via o seu corpo suplicante e os gritos e arquejos descontrolados,
só vinha aumentar o controlo que ele detinha sobre ela.
Tornou-se insuportável. Ela sentira aquilo antes, da última vez. Tentou recuar, procurar alívio.
Ele colocou-se ao lado dela e ela conseguiu abraçá-lo. O alívio não durou muito. Ele beijou-a e a sensação de tortura acalmou um pouco. Ele afagou longa e profundamente,
espalhando a sensação que provinha daquele ponto único e intenso.
A boca dele roçou a orelha dela. - Rendei-vos. Abandonai-vos e será maravilhoso.
Ela não estava certa de conseguir. Não estava certa de o querer. Só sabia que estava perto de começar a chorar.
Ele beijou-lhe o seio. - Ides render-vos, querida. Quero que saibais o que isto pode ser.
Um novo toque cortou-lhe a respiração e deixou-lhe a mente vazia. Uma tensão de prazer fez desaparecer todos os pensamentos de retirada. Ele forçava-a a ir ao encontro
de algo que ela desejava alcançar.
A tensão fez-se mais forte, insuportável. Uma sensação maravilhosa e aguda disparou dentro dela em todas as direções e ela gritou. Um prazer perfeito perdurou durante
uma fração irreal, para logo se desfazer num milhão de estilhaços lançados por todo o seu corpo.
Ele estava dentro dela quando ela recuperou o sentido de si, instalado entre as suas pernas. Não houve dor desta vez, apenas alívio, como se o seu corpo estivesse
incompleto e precisasse de ser preenchido por ele.
Ela não ofereceu resistência desta vez. Não podia proteger-se de nada, muito menos do seu próprio coração. Não podia impedir a forma como ele a possuía. Ele preenchia
todos os vazios, mesmo o mais antigo, alojado no seu coração, que desaparecera, como naquela noite, no quarto dela. Ela nada podia face às emoções suscitadas pela
intimidade.
Ela deu mais do que ele. Sabia-o. Mesmo quando ele se deteve e a olhou nos olhos e ela pensou ver a alma dele, mesmo aí ele reservou algo para si próprio. Ela não
conseguia fazer a mesma coisa. Não sabia como. Nem sequer o queria, pois o seu coração nunca conhecera tanta plenitude.
O prazer regressou, pulsando onde eles estavam unidos. Ela ergueu as pernas para lhe permitir entrar mais fundo, e moveu-se em resposta tanto a ele como às sensações.
Ele penetrou-a com mais
força, mais fundo, e o poder conquistou-a. Ela uniu-se ao seu movimento e ofereceu-se à sua paixão para que o desejo, a avidez e o delírio fossem mútuos.
No fim ela encorajou-o, erguendo as ancas ao vigor das investidas finais. Ela comprazeu-se com a prova de que ele estava tão à mercê da paixão quanto ela.
Durante aquele fiozinho de tempo, quando a entrega foi mútua e ele era dela tanto quanto ela era dele, ela compreendeu o que aquilo podia ser.

CAPITULO 21
A primavera estava linda naquele ano, concluiu Daniel enquanto conduzia o seu cavalo pelas ruas de Londres, tendo como destino uma reunião com a qual não se importava
por ai além.
Mas devia importar-se, e muito. Prometia uma pequena vitória em vez de uma grande, mas seria alguma coisa. No entanto, quando recebeu a carta a convocar a reunião,
a sua reação fora de enfado e não de expectativa.
Riu para si próprio enquanto conduzia o cavalo pelo meio de grandes carroças e carruagens. As últimas duas semanas tinham-no amolecido muito. Ele sempre suspeitara
que uma mulher lhe poderia fazer aquilo.
Não conseguia lamentá-lo. Não teria abdicado de um momento daqueles dias no lago e daquelas noites nos braços dela.
Memórias da beleza e da paixão de Diane, da sua avidez e do seu êxtase, ocupavam-lhe a mente. De longas horas de incrível prazer e manhãs alvas de paz surpreendente.
Londres ficara a um mundo de distância e o passado numa outra vida.
Ele estivera muito perto de lhe contar tudo. Houvera alturas em que o contentamento fora tão completo que tivera a certeza de que nada poderia estragá-lo. Ficava
a olhar para ela com as confissões e as desculpas a queimarem-lhe a língua, e, de cada vez, uma
imagem dela, magoada e confusa, e dos seus olhos, desconfiados e cautelosos, remetiam-no ao silêncio. Depois, decidia sempre. Quando regressarmos à cidade.
O enlevo persistia após o regresso, porém. Ele rendera-se-lhe e prontamente pusera de parte a realidade.
Nem mesmo a carta, e a reunião, tinham conseguido imiscuir-se.
Sem reparar que freara o cavalo, deu por si em frente à casa que procurava.
A sua alma soltou um suspiro de resignação, e não de triunfo, como devia. Desmontou e dirigiu-se à porta.
O mordomo conduziu-o por uma casa ricamente mobilada até ao jardim das traseiras. Tal como a própria casa, as plantas tinham sido dispostas visando o efeito visual
mais do que a beleza. Lilases, perfeitamente aparados, perfilavam-se contra um muro. Haviam sido sacrificados muitos rebentos de grande beleza para manter aqueles
globos. Ao canto, uma pequena árvore de fruto podia ter sido pintada, tão artificial era o cuidado com que os seus ramos, cheios de rebentos, se esticavam. Quanto
aos caminhos, parecia que alguém passara horas a lavrar cada pedra a cinzel.
Fez-lhe lembrar um brinquedo que ele tinha visto uma vez numa loja, composto de minúsculos arbustos e flores e ladrilhos de ferro para uma menina compor. Naquele
momento estava entre versões gigantes das mesmas formas apertadas.
Andrew Tyndale estava sentado numa cadeira, a uma mesa de ferro, bebericando chá e lendo um grande livro de filosofia grega numa tradução latina. Daniel achou aquilo
divertido. Duvidava que Tyndale alguma vez tivesse lido coisa semelhante, mesmo quando estava na escola e tal era requerido.
- Ah, aqui estais vós - proclamou Tyndale. Abriu um sorriso largo e indicou uma cadeira.
Foram trazidas bebidas. Quando Daniel declinou, chegou chá.
- Regressado da Escócia, imagino. - O tom jovial de Tyndale indicava que sabia tudo a respeito do casamento.
Claro que sabia. Quando voltaram a Londres, Daniel e Diane descobriram que eram o assunto da cidade. Na ausência deles, a condessa de Glasbury revelou a verdadeira
história. Disse que Daniel recuara porque a iminência do duelo tinha feito com que ele e Diane reconhecessem os sentimentos que nutriam um pelo outro.
As conversas especulavam agora a respeito do que poderia estar a ocorrer na casa de Daniel durante as últimas semanas. O papel de Tyndale estava praticamente esquecido.
- Parabéns pelo vosso casamento recente. - Disse-o como se reconhecesse uma derrota, como se se tivessem batido num duelo menor e Daniel tivesse ganhado.
Daniel aceitou os votos e ficou a aguardar. Não estava lá para trocar amabilidades e não queria estar na companhia do homem mais tempo do que o necessário. A proximidade
a que estavam, e ver a postura insípida e falsa de Tyndale, obscureciam já como uma nuvem o sol radiante da semana anterior. Outras memórias, antigas, ameaçavam
afastar as de Diane.
- Pareceu-me que devíamos discutir o assunto da dívida - principiou Tyndale.
- Uma letra serve perfeitamente.
- Claro. No entanto, gostaria de propor uma alternativa, uma alternativa que poderá interessar-vos sobremaneira.
- Se quereis atribuir-me terra na América do Sul, não tenho interesse em coisas dessas.
O sorriso tenso de Tyndale mostrava que sabia que acabava de ser insultado. - É mais complicado do que isso, e tem um potencial significativo. Há homens que matariam
para terem esta oportunidade.
- Estou a ouvir.
- Sabeis como se faz aço?
- Como sempre se fez.
- Está correto. É forjado em pequenas fornadas, com muito trabalho, o que faz com que seja demasiado caro para usar na maior parte das indústrias.
- Há sempre o ferro.
- Tem limitações. O ferro fundido é fraco e o ferro forjado apresenta problemas na sua manufatura e no seu peso. Imaginai o que seria se se conseguisse produzir
aço mais rapidamente, sem trabalho nenhum. Qual vos parece que seria o valor desse processo?
Daniel teve de se esforçar para não mostrar a sua surpresa. Pelo menos, agora sabia quem era o sócio de Dupré. - Seria impossível de calcular. Estais a dizer que
vos encontrais na posse de um processo assim?
- Sim. Terei a prova dentro de um dia, aproximadamente.
- Aquela vossa proposta está ligada a este processo?
- Tencionava explorá-lo sozinho, mas concluí que talvez fosse bom ter um sócio.
- E, generosamente, pensastes em mim?
- Gosto do vosso jeito, por assim dizer. Oh, sei que tivemos aquele pequeno problema por causa de uma jovem, como tantas vezes acontece entre homens. Foi tudo um
mal-entendido e não correu pelo pior a ninguém, muito menos a vós. Sou capaz de ultrapassar isso, e espero que vós também. Penso que temos muito em comum, na verdade.
Vejo algo de mim em vós.
Daniel teve de se conter para náo desferir um murro no rosto sério e sincero que estava do outro lado da mesa. Fixou o olhar na fila de arbustos idênticos e freou
a raiva que lhe deixou o corpo inteiro a fervilhar.
- Porque precisais de um sócio?
- Ocorreu-me que a exploração mais lucrativa requererá alguns contactos na comunidade industrial. Penso que o meu sócio teria mais facilidade em encontrar tais homens
e em lidar com eles.
- Por outras palavras, preferis ser apenas investidor e não vos transformardes num industrial. Oferecei-lo para evitardes essa necessidade.
- Sim.
- Claro que também o fazeis porque me deveis vinte mil libras. Presumo que é esse o preço desta parceria?
Tyndale estava radiante, satisfeito e surpreendido com a rapidez de raciocínio de Daniel.
- Como é que sei que vale assim tanto?
- Se pensardes no assunto, constatareis que vale muito mais.
- Depende da eficácia do processo e do tamanho da parte que
estou a comprar.
- Penso que se poderão arranjar uns vinte e cinco por cento. Daniel olhou para o jardim e ponderou a oferta e a cómica ironia de lhe estar a ser feita a ele.
- Quero ver a prova de que falais.
- Estará pronta amanhã ou no dia seguinte.
- Hoje. Se não está pronta, quero ver como estão a prepará-la.
- Isso é segredo. Certamente compreendeis que não posso autorizar-vos a ver o processo até que haja um compromisso.
- E eu não posso comprometer-me até ver o processo. Não sou tão estúpido que me entreguem um pedaço de aço e me limite a aceitar a vossa palavra sobre a forma como
ele é feito. Se for inconveniente, podeis sempre passar-me aquela letra.
Desta vez, Tyndale pareceu menos agradado com a rapidez de raciocínio. Surgiu-lhe uma ruga pensativa no sobrolho.
Daniel suspeitou que era a primeira vez em anos que alguém reconhecia uma expressão falsa no rosto do homem.
- Imagino que possa mostrar-vos, mas há coisas que não posso explicar neste ponto. Há detalhes que vos devo ocultar.
- Muito bem. Outra coisa. Há mais sócios? Não gostaria de vir a saber a dada altura que eu tenho vinte e cinco por cento e outros cinco também.
Tyndale riu, mas a raiva tornou o riso oco. - Não, apenas vós.
Daniel esperou que fosse verdade. Não queria nenhum pateta inocente a ser atraído para o esquema. - E o inventor? Tenho a certeza de que não fostes vós a descobrir
o processo.
- Eu compensarei o inventor à minha maneira. O processo pertence-me só a
mim, e absolutamente mais ninguém terá uma parte
a não ser vós. Viestes a cavalo? Pedirei que me tragam o meu e levo-
-vos a ver o processo.
Daniel seguiu-o até à casa, pensando em Gustave Dupré, que Tyndale compensaria à sua maneira. A quem exatamente pretenderia Tyndale passar a perna? Dupré ou Daniel
St. John?
Ambos, provavelmente.
Tyndale retirou três chaves do casaco e lançou-se aos cadeados pesados que fechavam a porta do barracão.
- São as únicas chaves? - inquiriu Daniel. Inundara Tyndale de perguntas desconfiadas durante o caminho até àquele beco de Southwark. Tyndale interpretara o interesse
dele como reflexo de um sentimento de posse, e acolhera bem o interrogatório.
- Só eu e o inventor é que temos chaves.
- Mesmo assim, se concordar, quero aqui um guarda. Um dos meus homens.
A segunda fechadura abriu. - Dizeis com isso que eu posso estar a mentir, que trarei aqui outros como vos trago a vós.
- Digo com isto que estamos numa zona difícil da cidade e que qualquer pessoa consegue entrar neste barracão. Podeis ter as chaves, mas bastaria um machado para
desfazer a porta.
Entraram no espaço húmido e sombrio. Em cima da mesa estavam os cilindros, cada qual com a sua panela de líquido.
Tyndale indicou a Daniel que espreitasse.
Daniel olhou para dentro de uma das panelas. - Pensei que tínheis dito que só estaria terminado amanhã, na melhor das hipóteses.
Tyndale virou a cabeça. Os seus olhos arregalaram-se. Chegou a cabeça bem para perto. - Disseram-me... claro, os cálculos da massa e do peso só puderam ser aproximados...
e o efeito da potência foi só um palpite... - Pegando num pau, tirou alguns fios da panela e enfiou cautelosamente os dedos no líquido.
A mão subiu, segurando uma barra de aço de aspeto esguio. Os seus olhos estreitaram-se de entusiasmo. Era como se tivesse
descoberto ouro. - Parece fazer a transformação mais rápido ainda do que previmos. A reação física deve aumentar em velocidade com uma massa maior.
Daniel segurou na barra molhada. - Como se faz?
- Aqueles cilindros têm pilhas voltaicas que geram eletricidade, algo cujos poderes só estão a começar a ser compreendidos. Esta descoberta de que consegue alterar
as propriedades do metal é uma descoberta científica de monta.
- Porque não foi publicada ainda? Coisas dessas são habitualmente comunicadas através de uma das sociedades científicas.
- É demasiado valioso para ser assim disseminado. Não queremos que todos saibam antes de conseguirmos patenteá-la e dar-lhe um uso prático.
- O que está naquelas panelas? Água?
- Sim, e químicos. Não posso dizer-vos quais. Não até vos comprometerdes.
Daniel sentiu o peso da barra de metal. - Há alguma possibilidade de se tratar de uma fraude? O vosso inventor poderia tê-las trocado? Tirado o ferro e tê-lo substituído
por aço?
- Ele não tem essa esperteza. No entanto, saberei ao certo já a seguir. - Tirou os fios da terceira panela, agarrou na barra de metal e percorreu a base com as pontas
dos dedos. - Aqui está. Fiz uma marca nesta sem lhe dizer, só para me certificar de que era a mesma no fim que no início.
Daniel andava à volta da mesa. - Precisa de ser feito novamente a uma escala maior. Pode acontecer que, se o ferro for grande de mais, não funcione. Barras pequenas
servirão de pouco para a indústria. Abrangeu o barracão com um gesto. - É necessário montar muitas mais, com diferentes quantidades de químicos e diferente número
de cilindros, usando barras grandes e pesadas. De outro modo, não há como calcular os custos do processo, o calendário, e a sua rentabilidade. Pode ser que o custo
da produção exceda o valor do aço como produto, por isso também precisamos de determinar o tamanho mínimo dos cilindros para funcionar em ferro de bom tamanho.
Tyndale assentiu com a cabeça. - Sim, estou a ver. - Olhou para Daniel com um novo respeito. Era como se nunca tivessem disputado uma mulher. - Penso que é bom estardes
envolvido. Os meus instintos estavam corretos, que podia ser bom ter nisto um homem de sentido prático como sócio.
- Ainda não sou sócio. Até eu ver os resultados do que estou a descrever, não haverá dinheiro meu a ser gasto neste barracão. E o meu homem estará lá fora quando
se iniciar a nova demonstração, para ter a certeza de que não entra aço por engano.
Tyndale abrandou. - Estou a ver. Parece-me fazer sentido. Mas, na vossa opinião, qual pensais ser o ganho se o processo mostrar ser lucrativo?
Daniel voltou a colocar a barra de aço no seu líquido. Agraciou Tyndale com um sorriso cúmplice. - Mesmo se o lucro por libra for uns meros xelins, penso que estamos
a falar de milhões.
- Que história! Ah, Diane, parece uma história para crianças, com um final perfeito. - Margot dava palmadinhas no peito como se o seu coração sofresse de palpitações.
Estavam sentadas lado a lado no aposento de Margot. Em Londres, Mister Johnson alojava Margot com estilo, mas sem ostentação. O ninho de amor ficava num edifício
próximo o suficiente de Mayfair para ser respeitável, mas num bairro que não fazia parte dos mais cobiçados.
Ainda assim, a sala de estar estava muito bem arranjada, tal como Margot. De regresso a casa vinda da Escócia, Diane recebera uma carta da amiga de escola e decidira
que seria rude não a visitar.
- E gostais da vida de casada? - Um sorriso sugestivo e um erguer de sobrancelhas.
Diane sentiu-se corar. Riu. - Bastante.
- Ainda bem. Fazei-lo feliz à noite e tudo correrá bem. Se assim não for ele vai à procura de alguém como eu. Não é sensato ser
senhora de mais na cama. Acho que as mães inglesas ensinam às filhas coisas estúpidas a esse respeito. Trata-se de dever, não de prazer. Como? Diane não conseguia
obrigar-se a pronunciar a palavra. Como é que fazes Mister Johnson feliz à noite? Ela não tinha sido criada por uma mãe inglesa, por mãe nenhuma, mas sentia-se constrangida
ao falar daquilo.
- Perguntei a Msieur Johnson sobre o Homem Diabo - confidenciou Margot. - Nunca se tinham encontrado antes daquela vez nas Tulherias, mas o vosso marido era-lhe
familiar. Começou a ouvir falar de St. John há cerca de oito anos, de homens que faziam negócios com ele. Ele ia para o mar em navios mercantes quando era apenas
um rapaz, diz-se, e um dia conseguiu o seu próprio navio. A partir daí a frota não parou de aumentar. O sucesso que teve numa idade tão jovem é muito admirado, e
ele também. A facilidade com que se inseriu em círculos melhores é invejada, penso.
Como? A palavra voltou a surgir na mente de Diane. Como é que lhe foi tão fácil?
Margot deu-lhe a resposta. -As senhoras ajudaram, diz-se. Ele é muito discreto, muito educado, mas a sua fama de sedutor é lendária.
O que só veio levantar novamente a questão de como é que uma rapariga ignorante conseguia fazer tal homem feliz. Recordou as mulheres deslumbrantes, experientes,
com quem eles tinham socializado e perguntou-se qual delas teria auxiliado na entrada de Daniel naqueles círculos melhores, e quem teriam sido as amantes do sedutor.
A história de Margot suscitou outras perguntas, porém, e estas rapidamente substituíram as outras sobre mulheres. Como é que ele obteve aquele primeiro navio? Quão
jovem era quando começou a ter sucesso?
A curiosidade que sentia sobre isso espicaçava-a desde o dia em que perguntara a Daniel a respeito do vaso na casa da Escócia.
- Tomai bem conta dele e tereis tudo o que quiserdes, garanto-vos - disse Margot, dando-lhe palmadinhas na mão.
Como?
Foi o caminho todo para casa a pensar naquilo. Daniel parecia contente o bastante quando estavam juntos. Não parecia esperar algo que ela não desse.
Talvez fosse porque pensava nela como a Margot tinha dito que os maridos ingleses pensavam nas esposas deles. Como mulheres que cumpriam um dever e das quais não
podia esperar-se que soubessem de prazer.
Ela lembrou-se das exortações de Madame Leblanc a que as amantes fizessem as coisas que estavam naquele livro. Deixara entender que as esposas não as faziam. Segundo
Margot, era essa a razão pela qual os homens tinham amantes. E não, como dissera Daniel naquele dia nas Tulherias, porque as esposas eram frias, ou doentes, ou distantes.
Foi até à biblioteca e espreitou para as prateleiras de livros, à procura de um volume pequeno e fino de capa vermelha.
Não estava lá. Talvez Daniel afinal o tivesse queimado.
Pensou no assunto enquanto atravessava o corredor. Parou à porta do escritório dele.
Entrou. Ali não havia tantos livros e as prateleiras tinham principalmente livros-mestre e capas. Ao examinar a prateleira que estava mesmo por cima da sua cabeça,
porém, vislumbrou uma tira de pele de um vermelho brilhante.
Puxou o livro e foi até à janela. Página a página, percorreu as estampas. As imagens não lhe pareceram tão bizarras como da última vez que as vira. A maior parte
ainda era confrangedora, mas o calor que sentia não provinha só daí.
Um som fê-la sobressaltar-se. Rodou nos calcanhares, viu a porta a abrir e escondeu o livro atrás das costas.
Daniel entrou, parecendo tão absorto como sempre. Levou uns segundos a reparar que ela lá estava.
Inclinou a cabeça, curioso. Uma pergunta surgiu-lhe no olhar.
Caminhando para ela, lançou um olhar inquisitivo à secretária e aos papéis lá dispostos. - Queríeis alguma coisa, Diane?
Ela abanou a cabeça e recuou para a janela. Talvez conseguisse enfiar o livro por trás das cortinas, deixá-lo no peitoril...
- O que tendes aí, querida? -Aí onde?
- Atrás das vossas costas.
- Nada. Nunca estive muito neste aposento e pensei vir ver como era. Se não devia ter entrado, peço desculpa.
- Podeis entrar. Só me pergunto por que razão tendes o aspeto de quem foi apanhado a roubar. - Acariciou-lhe os braços a todo o comprimento. Até lá a baixo, às mãos
escondidas atrás das costas. Tirou-lhe o livro.
De repente, ele estava com o volume nas mãos, mesmo à frente dela.
Ele olhou para o livro, depois para ela. - Parece que decidistes que afinal tem algum valor.
- As estampas têm algo de artístico. Há virtuosismo na utilização da gravura. - A observação não lhe saiu tão objetiva quanto ela queria. com efeito, ouviu a voz
fraquejar-lhe.
- Ah! Então estudais isto para melhorar a vossa apreciação da técnica artística.
- É um assunto muito discutido nos jantares e outras reuniões.
- A arte não se limita à técnica, claro, mas também ao conteúdo. Que tal vos pareceu o conteúdo aqui retratado, interessante ou chocante?
Ela engoliu em seco. - Um pouco de ambos, suponho.
Ele foi até à secretária e pegou em dois pedaços de papel. Abriu o livro, folheou-o, marcou algumas páginas, e voltou para ela. - Porque não decidis se as considerais
mais interessantes do que chocantes?
Voltou para ela o livro com as páginas marcadas. Ela perguntou-se se erraria em pegar nele. Ele fez aquele seu sorriso muito próprio e os seus olhos brilharam, divertidos.
Estava a provocá-la. A desafiá-la. Mas ela sentiu que ele queria
que ela lhe pegasse. Ele não se importaria se ela considerasse parte daquilo mais interessante do que chocante.
Tirou-lhe o livro das mãos e, com o que esperava ser uma expressão sofisticada, avançou para a primeira tira de papel.
Ora bem, aquela não era assim tão chocante. A bem dizer, houve alturas em que eles faziam amor em que ela se perguntara se ele ia fazer aquilo.
com plena confiança, passou então à seguinte. Estava um bocado mais à frente, na gravura número XVI. Ela contemplou a imagem. O que a gravura retratava não era completamente
claro.
Ela virou a estampa para um lado e para o outro, interrogando-se. Certamente que o homem não estava a...
- O que é que ele está a fazer?
- A beijá-la.
- Ah. - De repente a imagem fez sentido e deixou-a perplexa.
- Parece um sítio esquisito para dar um beijo a alguém.
- E um beijo muito especial.
- Não consigo imaginar que o homem goste muito.
- Eu julgo que sim. Talvez mais do que a mulher.
Ela mexeu nervosamente na tira de papel que marcava a gravura. - Tencionais beijar-me assim uma destas noites?
- Sim. A não ser que o proibais. Ela perguntou-se se deveria fazê-lo.
Voltou a abrir o livro. A sua surpresa inicial tinha-se desvanecido, mas ainda parecia uma coisa muito esquisita de se fazer. - Posso decidir depois?
- Nada acontecerá entre nós que vós não queirais.
Passou a outra página. A imagem seguinte tinha algo de parecido, mas também era mais complicada. - Vede. A mulher também está a beijar o homem.
Ele inclinou a cabeça para ver a imagem. - Pois está.
- Mas não marcastes esta. Ele não respondeu.
- Imagino que isso significa que a considerais mais chocante do que interessante.
Silêncio.
- Os homens não gostam de ser beijados assim? Ele limitou-se a olhar para ela.
- Sois muito seletivo quanto às partes deste livro que quereis que eu considere, Daniel. - Bateu com a lombada do volume contra o peito dele, como que a repreendê-lo.
- Espera-se de mim que vos permita dar-me beijos peculiares, mas vós sois poupados a coisas dessas. Talvez eu também queira beijar-vos a vós de maneira especial.
O que pensaríeis disso?
- Imagino que pudesse ser convencido a permiti-lo.
- É o que espero. Afinal, se vão acontecer coisas estranhas naquela cama, parece-me que vós deveis ser sujeito a elas tanto quanto eu.
- Tendes toda a razão. Dou a mão à palmatória. - Ele pegou no livro, rasgou o segundo marcador ao meio e colocou metade na gravura XVII. - A bem dizer, se algum
dia me decidirdes sujeitar a isto, julgo que..
-Sim?
-Julgo que provavelmente vos comprarei um colar de diamantes no dia seguinte.
Diane estava sentada perto da janela, procurando sinais do regresso de Daniel. Na rua, os candeeiros impunham halos de luz difusa à escuridão da noite, e as poucas
carruagens e cavalos que passavam apareciam e desapareciam. Ela não sabia onde ele tinha ido, mas ele dissera que não voltaria tarde. Ela abdicara de uma visita
ao teatro para estar ali quando ele regressasse.
Viu-o finalmente. Era apenas uma sombra ao fundo da rua, mas ela sabia que era ele porque o cavaleiro não trazia chapéu.
Mordendo o lábio, saiu da sala de estar e foi para os seus aposentos. Deixou que a criada lhe tirasse o vestido e o espartilho e mandou-a embora.
Uma vez sozinha, foi até ao guarda-vestidos, abriu uma gaveta e tirou de lá o livrinho vermelho.
Folheou-o até à primeira estampa que Daniel marcara. Examinara-a várias vezes ao longo da tarde. A dada altura, não sabia precisar quando, começara a tornar-se muito
mais interessante do que chocante.
Na realidade não retratava nada de estranho. Um pouco diferente, mas não propriamente indecente.
Lançando um último olhar à estampa para referência futura, devolveu o livro à gaveta. Começou a apagar as velas e depois parou. Na imagem havia algumas velas acesas.
Despiu a camisa. De meias pelas coxas, apenas, subiu para a cama. Afastou todas as almofadas com exceção de uma grande. Ajoelhou-se com a almofada à frente dela,
e depois deitou-se de maneira a ficar com um alto por baixo das ancas e o rabo erguido num pequeno monte. Reviu mentalmente a estampa e afastou as
pernas.
Era muito depravado estar assim deitada.
Sons na câmara ao lado anunciaram a presença de Daniel. Ela ouviu os movimentos dele a despir-se e os murmúrios da conversa dele com o criado de quarto. Só o facto
de estar ali a ouvi-lo e a aguardar que ele chegasse ao quarto excitava-a.
Como também a posição em que se encontrava. Estava surpreendida com o excitante que era. A expectativa e a vulnerabilidade eram incrivelmente eróticas.
Os murmúrios pararam. Os movimentos diminuíram. Ela ouviu passos do lado de lá da porta que unia o seu aposento ao quarto de vestir dele.
Daniel deteve-se na porta de comunicação e considerou dormir na sua própria cama naquela noite. Ficara de humor sombrio e instável. Agora as memórias regressavam
continuamente. Cada vez que pensava em Tyndale, ou via Jeanette, apossavam-se da sua mente, imagens horrendas que lhe gelavam o sangue.
Diane merecia melhor. Ele não queria levar aquilo até ela. Não queria constatar que nem sequer ela conseguiria fazê-lo esquecer.
Ele não devia mesmo entrar.
Mesmo assim, abriu a porta.
Ainda havia velas acesas. Normalmente ela apagava-as antes de ir para a cama, para não haver risco de incêndio mais tarde.
As chamas suaves conferiam ao quarto uma luz difusa, misteriosa. Ele entrou, e viu-a.
Estava deitada na cama numa pose erótica. Ele reparou que era a do livro. Ainda tinha as pernas cobertas até às coxas, com meias, mas nada mais. As suas costas nuas
afundavam-se na base da coluna e depois curvavam-se até à visão erótica do seu rabo erguido.
Ele ficou atrás dela, arrebatado com o convite e com a entrega, ela ali, assim, a aguardá-lo. Sentiu o desejo tomar conta dele, e o seu estado de espírito e a pose
submissa dela conferiram-lhe uma força selvagem.
Ele tirou o roupão. - Deveis ter visto o que me ia no espírito esta noite.
- Decidi que não era assim tão chocante.
Ele conseguia ver-lhe o rosto de lado, apoiado nas mãos. - Olhai para mim, Diane.
Ela ergueu a cabeça e olhou para trás, por cima do seu próprio corpo. O brilho dos seus olhos era inconfundível. A surpresa que sentia na excitação e a expectativa
tornavam-lhe a expressão tão convidativa quanto a pose.
Ele subiu para a cama e ajoelhou-se ao lado dela. Percorreu-lhe as costas com beijos. - Estais há muito à minha espera?
- Não muito.
- Excita-vos, estardes assim deitada?
Ela voltou a pousar a cabeça nas mãos e indicou que sim.
Ele ajoelhou-se atrás dela e acariciou-lhe o rabo com ambas as mãos. As costas dela afundaram-se e as suas ancas ergueram-se em resposta. Ela mordeu o lábio inferior.
- Já estais húmida? - Ele sabia que sim, e ficou satisfeito. O seu humor não toleraria grandes demoras. Queria que a paixão incendiasse tudo o mais que se apossava
da sua alma naquela noite.
Ela voltou a acenar que sim.
- bom. Porque vos quero agora, imediatamente. - Entrou nela. O prazer cru tomou conta dele, obscurecendo tudo como ele
esperara. Passou a existir apenas Diane e o seu toque aveludado.
- Estais perdido nos vossos pensamentos - disse Diane. Através das cortinas abertas, ele via uma lua brilhar num céu
escuro. Uma brisa ligeira arrefeceu o suor que lhes cobria a pele. "
- Precisei de muito tempo para perceber o significado de quando ficais assim. A vossa cabeça está a um mundo de distância, não está?
A um mundo de distância. A uma vida de distância. Ela tinha razão, e ele maldizia a forma como aquilo voltara a apossar-se dele.
- Peço desculpa.
- Não me importo. Tenho a certeza de que os vossos negócios vos devem preocupar. Sei que não posso ter-vos por completo a tempo inteiro.
Ele beijou-lhe a nuca e puxou-a mais para si. Ela aninhou-se nele com a cabeça no peito dele e o braço à volta do seu tronco.
Ele pensou na reunião daquele dia com Tyndale. Devia ter recusado a proposta de se envolver no esquema. Devia ter exigido dinheiro e ficar satisfeito com aquela
pequena vitória. Em vez disso, não fora capaz de resistir à oportunidade de arrasar completamente com o homem.
Sentiu-se uma vítima do seu próprio jogo. Ele passara anos a seduzir homens com prémios que apelavam às suas maiores fraquezas. Hoje, sem o intentar, um daqueles
homens poderia ter-lhe feito a mesma coisa.
Penso que temos muito em comum.
O ombro claro de Diane espreitava por entre o seu cabelo gracioso. Observou a sua mão mover-se sobre ele, sentindo a pele luminosa. Não arriscava uma ruína normal
ao sucumbir à tentação naquele dia. Nem desastre financeiro. O grande perigo estava ali, naquele abraço. A verdadeira perda podia ser o contentamento que ele tinha
agora com aquela mulher, e a liberdade que o seu espírito sentia quando estava total e completamente com ela.
Há coisas que preciso de vos contar. Coisas que devíeis ouvir de mim e não de outra pessoa. As palavras estavam-lhe no peito, depois na garganta. Contudo, não avançavam
mais. Ela nunca o perdoaria depois de ficar a saber.
Ela inclinou a cabeça para poder olhar para ele. À luz do luar, viu um sorriso e esticou-se para o beijar.
- Tenho trinta e dois anos. - Ele nem sequer sabia porque o dissera. Saiu-lhe, apenas, uma espécie de medida para a encorajar a procurar a verdade, talvez. - Na
Escócia estáveis curiosa sobre a minha idade. Tenho trinta e dois anos.
Ela olhou para ele, pensativa. - E viestes para aqui quando tínheis oito? Então talvez a condessa tivesse razão. Ela contou-me que se diz que fostes
emigré durante a revolução. É verdade?
- Sim.
Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. - O vosso pai era aristocrata? Fugíeis?
- O meu pai não era aristocrata. No entanto, escolheu partir. Os tempos não eram fáceis e ninguém estava a salvo.
- Então viestes para aqui, e vivestes naquela casa, na Escócia. Onde estão agora os vossos pais?
- A minha mãe tinha morrido, quando viemos. O meu pai morreu pouco depois de chegarmos. Louis estava connosco. O chevalier ajudara-nos a sair, porque era um velho
amigo da minha mãe. Ele cuidou de mim até eu ter idade de me desenvencilhar sozinho.
- Margot disse que fostes para o mar muito novo. - Ela parecia alguém a terminar um história, contente por ter lido o livro inteiro.
Voltou a aninhar-se nos braços dele. - Lembrais-vos de muita coisa dessa altura? De vir para aqui, da vida que tínheis antes, em França?
- É como se me lembrasse de tudo. - Cada dia e cada imagem. Cada perda e cada medo. Lembrava-se bem de mais.
- Eu não me lembro de quase nada. Ambos deixámos as nossas casas em crianças e fomos viver para outras. Porque é que vós tendes memórias tão nítidas e eu tenho tão
poucas?
-As memórias são caprichosas. Algumas desaparecem, e outras, as insignificantes, ficam para sempre. Talvez a diferença seja que eu não me sentia muito criança quando
fiz aquela viagem.
Não se sentira de todo criança. A vida já o envelhecera e cansara e endurecera. Não restava nada da infância quando seguira Louis para aquele barco pequeno.
A conversa criou uma atmosfera de intimidade, como só as confidências noturnas conseguem fazer. Fez o dia desaparecer, mais as suas distrações. Ele comprazeu-se
com a sua retirada.
Os braços dela apertaram-se e ela beijou-lhe o peito. - Daniel, quero dizer-vos uma coisa. Vim para Inglaterra à procura de algo. Tinha um... buraco dentro de mim,
um vazio, que parecia que nunca desaparecia. Eu pensava que se encontrasse os meus parentes, a minha história, que ele seria preenchido. Eu achava que ser amada
o preencheria.
O coração dele condoeu-se da infelicidade dela e dos anos que ela vivera com aquele buraco. Pediu a Deus para poder fazer com que não fosse assim, mas sabia que,
mais do que qualquer outro homem, não conseguiria.
- Encontrei o que procurava. - A voz dela era pouco mais do que um sussurro. - Tinha percebido tudo mal. Pensei que sendo amada aquele vazio se preencheria. Descobri
que amar outra pessoa é que tem esse efeito. - Parou, e o silêncio suplicava por mais palavras. - Eu sei que vós não sentis o mesmo e eu não me importo. Acho que
é o que seria de esperar, e talvez um dia me importe. Neste
momento, amar-vos preenche-me tão completamente que me sinto grata por isso apenas.
As palavras dela tocaram-no tão profundamente que ele não conseguiu falar. Colocou-a gentilmente em cima dele, com a cabeça pousada no seu ombro e o rosto contra
o seu. Assim deitada, ele conseguia envolvê-la completamente com os braços e sentir o corpo dela junto ao seu.
Seria avisado serdes mais cuidadosa com o vosso amor. Quis dizê-lo, avisá-la. Não o fez. Em vez disso, ergueu o corpo para poder entrar nela outra vez, e para que
a paixão deles pudesse obscurecer o aviso, e a própria razão para o dar.
Empurrou-lhe suavemente os ombros, até ela estar sentada sobre as suas ancas, os dois ligados. A posição dominante confundiu-a. Ela parecia não saber bem o que fazer,
e surpreendida por os ver unidos antes de estar louca de vontade.
- Isto não está em nenhuma estampa que vós marcastes.
- Não. Não apreciais?
- É diferente, ter-vos dentro de mim antes de eu...
Ela voltou a verificar a situação. - E ficamos só assim? - A pergunta foi acompanhada de um pequeno movimento que, simultaneamente, lhe respondeu. Ela inclinou-se
para a frente para se reposicionar.
- Ficai assim, para eu poder tocar-vos. - Ele esticou-se para a acariciar. Ao seu toque, ele sentiu a excitação dela reavivar-se, o seu corpo a apertar-se à volta
dele. Estava bela, como uma estátua misteriosa tocada pela luz ténue do luar. Os olhos dela observavam as mãos que lhe percorriam o corpo.
O lânguido avolumar do prazer criou uma intimidade deliciosa. Ele percebia cada sensação que ela tinha, cada respiração.
Ela endireitou-se e lentamente percorreu o tronco dele com as mãos macias. Não dizia nada, mas a declaração de amor que lhe fizera estava no seu toque e na forma
como olhava para ele.
O seu coração queimava dolorosamente. Maravilhosamente.
Voltou a incliná-la para conseguir beijar-lhe os lábios, e depois mais ainda para a sua boca conseguir chegar-lhe aos seios.
Não teve de lhe mostrar o que fazer. Bastou o prazer. Enquanto a sua língua lhe estimulava os seios, ela encavalitou-se em cima dele. As suas ancas moveram-se em
resposta aos tremores profundos e delicados que os uniam tanto quanto os seus corpos.
O êxtase chegou lentamente, numa longa escalada para fora do mundo. Os gritos dela, os seus movimentos, o seu espanto face à intensidade - ofereceram-lhe a escapatória
perfeita para o seu espírito e o seu coração.
Ele não fez nada para apressar o fim. Retardou o convidativo clímax, não querendo abrir mão das camadas intensas que o prazer contemplava. Nos braços dela, por um
momento, deixava de ser escravo das memórias e da raiva.

CAPÍTULO 22
Dupré está a gastar dinheiro como um homem com grandes expectativas - informou Adrian. - Está a voltar a todos os sítios onde o levei para fazer compras, a encomendar
zinco e cobre e discos de prata, panelas e químicos e ferro. Montes de ferro.
Daniel tirou a camisa e pendurou-a no gancho do quarto de vestir. Seguiu com Adrian para o salão.
- Estou receoso pelo tal sócio dele, Daniel. Concordei ajudar-vos em Paris por causa daquela altura em que me tirastes de apuros na Síria. Falastes em acertar contas
sem derramamento de sangue, e pareceu pouco mais do que uma partida. Todavia, não gosto da ideia de alguém estar a ser arruinado.
- Tratarei de ver isso, e de garantir que nenhum inocente sai prejudicado.
Daniel não explicara a Adrian que o sócio era Andrew Tyndale. E certamente não expusera o facto de os planos para Gustave terem adquirido uma nova vida, bem diferente.
- Penso que devíamos expor o caso todo para termos certeza disso.
- A seu tempo, mas não agora. Eu retiro-vos qualquer responsabilidade. Sei quem é o sócio, e nem ele nem Dupré são dignos da vossa preocupação. Acreditai em mim
quando vos digo que os seus crimes são tão grandes que nem sequer as suas mortes os saldariam.
- Sentir-me-ia melhor se me contásseis a história toda, Daniel. É evidente, agora, que sei muito pouco.
- Acreditai, náo quereríeis saber a história toda.
Nem Daniel queria que ele soubesse. Se ficasse a saber de tudo, provavelmente julgaria que a honra o obrigava a alertar Tyndale. Um filho de conde sentir-se-ia obrigado
a proteger outro filho de conde.
Adrian parecia profundamente cético. - Receio que isto se tenha transformado numa fraude.
- Sempre foi uma fraude, só que agora é dinheiro que está em jogo e não uma reputação.
Não é a nossa fraude, contudo. Eu não incentivei Dupré a fazer o que faz agora.
Foi a ganância. E o sócio dele é um ladrão, assim como Dupré, e não se enganam os vigaristas. Não há pecado em mentir ao Diabo.
- Fica um bocado dúbio, não é verdade? Qual de vós é o Diabo, o trapaceiro?
Daniel fez uma saudação com o sabre. - De todo. Somos todos. Não tenho ilusões acerca disso.
Diane percorria o trilho do jardim num estado de deslumbramento. Flores alegres espreitavam à sua passagem e a pereira também se cobria de rebentos. Ela adorava
aquele jardim, e a casa, e a vida dela. Maravilhava-se pela forma como renascera naquele amor que era o seu. Fazia-a sentir-se segura e amparada, desejada e completa.
Todas as coisas que nunca conhecera existiam para ela agora. A rapariguita da escola podia mesmo nunca ter existido.
Jeanette estava sentada por baixo da pereira. Desde o casamento, também ela andava mais feliz. Agora eram irmãs, e Jeanette perguntava muitas vezes a Diane sobre
as festas e os espetáculos a que assistia. Diane tinha esperança de que Jeanette desistisse muito em breve de tanta reclusão e a acompanhasse a ela e à condessa,
ou a Daniel, quando saíam de casa à noite.
-Talvez quando o tempo ficar quente de mais no verão possamos ir todos para a Escócia - comentou Diane. Ia entregando a Jeanette as flores que apanhava. - Imagino
que gostásseis de visitar a casa enquanto estais em Inglaterra.
Levando as florzinhas ao nariz, Jeanette fez menção de encolher os ombros.
- Deixavam-vos lá sozinha quando Daniel ia para o mar? Deve ter sido muito solitário. Muito isolado, tendo em conta que o vosso pai já tinha falecido.
- Estar sozinha nunca me fez sentir só nem triste.
- Quem cuidava de vós? Paul já era um amigo?
- Nos primeiros anos que Daniel esteve no mar, foram duas mulheres que tomaram conta de mim. - Jeanette esboçou um gesto de impaciência. - Foi há muito tempo. Já
não penso nessa época. Depois de fazer a sua fortuna, Daniel pôs-me de novo em França, que é o sítio a que pertenço. Ao contrário do meu irmão, nunca poderia sentir-me
confortável aqui. Na verdade, vou pedir-lhe que trate de providenciar para breve o meu regresso a Paris. Estou há tempo a mais nesta cidade.
- Quem me dera que ficásseis connosco. Não gosto de pensar que casar-me com o vosso irmão signifique perder a vossa companhia.
- Ireis frequentemente a Paris. Tendes de insistir para Daniel vos levar. Não lhe agrada a cidade mais do que esta me agrada a mim, mas se lho pedirdes ele irá.
Diria para me visitardes sozinha, mas penso que ele precisa mais de vós do que eu.
Que coisa estranha para ouvir da boca de Jeanette. Daniel não precisava de ninguém, tanto quanto lhe era dado perceber. Ele vivera uma vida de independência e aventura.
Parecia satisfeito no casamento, até feliz, mas não precisava dela. Ele gostava da sua companhia, mas não tinha necessidade dela.
Levaram-lhes o correio. Jeanette deu uma olhadela ao punhado de convites e pousou-o com um resmungo.
Apesar do seu recolhimento, sempre tinham chegado convites para Jeanette, pequenas intrusões diárias que a irritavam. Chegavam
mais, recentemente, e Diane imaginava tratar-se de curiosidade por parte dos remetentes. A história do casamento de Daniel convertera a irmã invisível em assunto
de especulação. Algumas senhoras até tinham passado por lá, mas Jeanette não as tinha recebido.
- Ides desapontá-las - observou Diane. Tornou-se um jogo, ver quem vos apanha primeiro. Se decidirdes aceitar algum, espero que não seja de nenhuma mulher que tenha
desdenhado Pen.
- Se alguma vez mudasse de ideias, só a condessa seria digna de tal triunfo, asseguro-vos. Mas eu não vou andar a desfilar à frente dessas mulheres.
Diane viu as cartas que lhe eram dirigidas. - Aceitareis pelo menos o meu convite? Penso que darei um jantar entretanto. Pequeno, com Pen e os irmãos, e talvez Mister
Hampton, não que ele seja assim grande companhia, visto que é tão raro falar.
Perto do fim do monte estava uma carta de um papel menos refinado. Ela enfiou o polegar por baixo do selo simples. - O que achais? Consigo tirá-lo sem estragar...
Ela estacou e a voz morreu-lhe nos lábios. O seu olhar estava pousado numa palavra deveras surpreendente escrita no papel que tinha nas mãos.
Era o nome do sítio de onde a carta fora enviada. A localidade onde vivia quem a escrevera.
Fenwood.
A primeira linha de texto revelava que a carta fora enviada pelo pastor de Fenwood, Mister Albret. Ao fim de cinco palavras, ela compreendeu que Tyndale nunca chegara
a visitá-lo. A carta era a resposta à que ela enviara durante o fim de semana.
Leu-a rapidamente. O seu coração disparou, primeiro num ritmo grave, rápido, depois sonoro, gritante. A sua cabeça latejava com a sensação de ter lá dentro uma bigorna,
ressoando ao mesmo ritmo.
Ela captou a essência da carta, o suficiente para a deixar ofegante. Regressou ao início e voltou a ler. Enquanto absorvia as
implicações do conteúdo, o vigor da agitação abrandou até se tornar uma pulsação dolorosa.
Leu-a outra vez, tentando fazer com que dissesse algo diferente do que lá constava. O seu coração doía-lhe tanto que ela pensou que partiria. Foi difícil manter
o controlo. Sabia que, se não o fizesse, os pedaços dispersos seriam ainda mais esmagados pelas ondas de confusão que arremetiam contra a sua cabeça.
- Jeanette, onde é que Daniel está hoje?
- O que se passa, querida? Pareceis estar prestes a desmaiar.
- Onde está Daniel? - Ela ergueu os olhos da carta, para ver o rosto preocupado de Jeanette a fitá-la.
- Onde?
- Penso que foi a Hampstead, a cavalo. A casa do chevalier. Diane amassou a carta na mão e levantou-se.
A casa de Hampstead estava silenciosa, com o cavalo de Daniel amarrado na frente. Não se ouviam reverberações de aço a sair pelas janelas abertas.
Diane não esperou que o cocheiro abrisse a porta. Fê-lo sozinha, impaciente por se ver fora do espaço confinado. Por sua ordem, tinham-se apressado o mais possível,
e agora os cavalos resfolegavam e pingavam de suor.
A fúria que a fizera sair a correr de Londres esmorecera e transformara-se num desalento revoltado. Olhou para a carta, ainda amarfanhada na sua mão. Se ela nunca
tivesse falado com a criada... se nunca tivesse escrito ao pastor... se, como dizia a carta, ele tivesse seguido as suas primeiras inclinações e não tivesse respondido...
Se qualquer uma daquelas coisas não tivesse acontecido, ela teria sido feliz durante muito mais tempo.
O coração doía-lhe. Doía-lhe o peito todo. Ardiam-lhe lágrimas nos olhos. Desejou que lhe tivesse sido concedido mais tempo antes de a verdade se despenhar contra
o seu sonho, e voltar a esvaziá-la.
Queria desfazer-se da carta e fingir que nunca chegara. O seu amor queria-o, desesperadamente. Mas não podia ignorar aquilo.
Desviou-se da casa. Fora lá falar com Daniel, mas isso podia esperar. Ela não era assim tão corajosa que lhe apetecesse fazer as perguntas que tinha e ouvir as respostas
que ele daria.
Entrou no bosque e seguiu o caminho. Os seus pés sabiam para onde ir. Claro que sabiam. Sempre o haviam sabido. Ela não se perdera da primeira vez que ali fora.
Sem sequer pensar, encontrara o caminho da casa grande até à casa rústica.
A imagem veio-lhe com a aproximação da clareira. Desta vez não era a sensação de reviver um momento. Parecia-lhe decididamente familiar. Fragmentos de memórias apareciam
e desapareciam na sua mente, dos arbustos mais pequenos e do caminho mais largo.
Foi até ao poço e espreitou para baixo. Dentro da cabeça, ouvia o eco de uma voz de mulher a avisá-la para não subir porque era perigoso.
Virou-se, quase a contar ver uma mulher idosa de touca e roupas simples à porta.
A porta abriu-se, mas não viu mulher nenhuma. Quem apareceu foi George, o homem que lá vivia agora. Ele deteve-se e observou-a.
- Quereis alguma coisa? - perguntou, curioso. - Pareceis doente.
- Não estou doente. - Ela ficou a olhar para ele, pedindo à sua mente para cooperar. - Dissestes, da última vez que nos encontrámos, que estais aqui há anos. - Sempre
vivestes nesta casa?
Ele abanou a cabeça. - Costumava estar lá em cima, nos estábulos. Era moço, nesse tempo, quando havia muitos cavalos. Cavalariço-mor, mais para o fim. Depois, quando
ficou tudo vazio e todos se foram embora, passei a ser caseiro, até agora.
Cavalos. Sim, claro. Imaginou George, anos mais novo, sem o cabelo tão branco nem a barba tão grande.
- E a mulher que vivia na casa antes de vós? A senhora idosa? O que é feito dela?
- Alice? Conheceis Alice? Mas que raio... hum... desculpai, é que me espantastes. Ficou algum tempo, mas faleceu, ha... faz agora dez anos, por isso vim cá para
baixo. - Inclinou a cabeça.
- Como conheceis Alice?
- Sou Diane.
A boca dele escancarou-se, e depois abriu-se num grande sorriso. - Bem, raios me part... Bem me parecestes familiar da última vez. Não sabia bem o quê... Era qualquer
coisa... Claro, éreis só uma criancinha quando fostes embora. E que senhora estais agora, hein? Quem diria...
Sim, que senhora... Apenas uma pessoa não se surpreenderia com a transformação.
- Permitíeis-me que visse a casa? O interior?
Ele afastou-se e fez um gesto galante. - Mas claro que sim. Sempre foi a vossa casa em criança, não é?
Ela parou à soleira da porta e respirou fundo. A casa dela. Entrou.
Uma invasão de memórias, ancorando-se no que ela via. Não no espaço todo, apenas pormenores e sensações. A luz a atravessar a janela aberta e a pousar no chão. Um
odor, como o que há em todas as casas, específico deste sítio. As vigas do teto, e uma cuja ponta se separara.
A lareira. Vê-la subitamente trouxe-lhe memórias completas e precisas. A lareira no verão, fria e sem vida, e no inverno, uma fonte de calor e longos abraços.
Não ficou muito tempo nem pediu para ver as outras divisões. Não conseguia fazê-lo no mesmo dia. As lembranças não lhe traziam paz. Não preenchiam o doloroso vazio
que tinha dentro. Noutra altura talvez o fizessem. Noutro dia, quando o seu coração não soubesse que uma infelicidade terrível a aguardava, ela poderia gostar de
descobrir esta história que durante tanto tempo sonhara desvendar.
Reunindo coragem, regressou à outra casa. Atravessou o bosque e os seus pés não se enganaram nos caminhos. O percurso levou-a
a aproximar-se da casa de um ângulo que mostrava um pouco do lado e das traseiras. Aquela imagem, dos troncos inclinados a partir dos cantos direitos, podia ter-lhe
sido gravada a ferros no cérebro.
A familiaridade alarmou-a. Se da última vez ela tivesse regressado por aquele caminho e não outro, se não tivesse havido a distração dos beijos de Daniel ao pé do
ribeiro, ela teria compreendido o que este sítio era para ela.
Os beijos de Daniel... Parou e fechou os olhos para fazer recuar uma mágoa insuportável.
Encontrou-o na casa. Ouviu barulho de vozes e seguiu-o até um aposento nas traseiras. Pequeno e arrumado, com alguns objetos elegantes e mobília, parecia ser a saleta
privada do chevalier.
Ele e Daniel estavam sentados em duas cadeiras perto da janela, partilhando uma garrafa de vinho. Ambos tinham tirado os casacos. Compunham uma imagem de amizade
descontraída, de confiança absoluta.
Tinham ouvido alguém aproximar-se. A conversa parou antes de ela chegar. Quando deu por si à soleira da porta, a olhar para eles, eles olhavam para ela.
- Diane. - A inflexão da sua voz revelava surpresa e curiosidade.
- Tínhamos presumido que a carruagem era de um dos alunos de Louis.
- Sou só eu. - As acusações acutilantes e astutas tinham-na abandonado, assim como a fúria inicial. Só conseguiu olhar para ele e desejar que aquele dia nunca tivesse
começado.
- O que desejais, querida?
- Vim visitar a casa do meu pai. O rosto de Daniel transformou-se.
O chevalier franziu os lábios e levantou-se. - vou deixar-vos sozinhos.
Ela afastou-se para ele poder passar, e depois aproximou-se de Daniel. Ele voltara os olhos para lá da janela, para os bosques e o campo que desciam a colina.
- Não façais isso - disse ela, com a mão ainda a amassar a carta.
- Não me ignoreis dessa forma. Não agora.
Ele olhou para trás. Ela viu a expressão dele e soube que ele se sentia como ela, e que também desejava que aquele dia nunca tivesse chegado.
- Não estou a ignorar-vos. Nunca vos ignorei. Não estivestes uma única vez na minha presença sem que eu tivesse total e completa consciência de vós, mesmo quando
éreis criança e eu desejava poder anular a vossa presença.
Ele procurou-a, mas ela recuou. com um suspiro, deixou a mão cair. - Como sabeis que esta era a casa do vosso pai?
Ela abriu a mão para mostrar a carta amarfanhada. - O meu avô escreveu-me, em resposta à carta que eu lhe enviei. Não ia fazê-lo. Nem sequer sabe quem eu sou, mas
eu agora sei. Ele explicou o suficiente para eu entender.
- O que é que ele explicou que vos deixou tão angustiada?
- Que teve uma filha que morreu a dar à luz. Que ela não era casada com o pai do bebé. Que o pai ficou com a filha a seu cargo, numa casa que tinha em Hampstead.
O seu tom de voz elevava-se. As palavras jorravam descontroladamente.
- Que o homem que seduzira a filha estava na navegação, mas que ficou arruinado há mais de uma dúzia de anos, e que ele e a criança desapareceram.
Daniel observava-a e aguardava.
- Que o nome do homem era Jonathan. Jonathan Makepeace. Não Jonathan Albret, como me fizestes acreditar. Albret era o apelido da minha mãe. - A agitação dentro dela
levou-lhe a melhor. Queria bater-lhe, com toda a força. Em vez disso, atirou-lhe com a carta, que lhe bateu no rosto e caiu ao chão. - Enganastes-me. Deixastes-me
procurar pela família dele sem sequer me dardes o nome certo.
- Sim, enganei-vos. - Ele levantou-se e aproximou-se dela.
- Não me toqueis. - Ela afastou-se, contornando-o. Abrindo o braço, indicou a sala e tudo para além dela. - Como ficastes na posse deste sítio?
- Fiquei na posse dele por causa de uma noite de cartas.
- Conseguiste-lo no jogo?
- Eu era muito novo e Jonathan limitou-se a presumir que ganharia. No início foi simples, mas depois aumentou.
- Como aconteceu com Andrew Tyndale?
- Praticamente. Lá para o fim eu já ia muito à frente. O vosso pai era um homem imprudente. Apostou tudo o que lhe restava, os dois navios, a casa de Londres e esta,
numa jogada contra tudo o que eu tinha ganhado.
- Também tenho estado a viver na casa do meu pai, em Londres?
- Não. Vendi essa e comprei outra alguns anos mais tarde.
- E deixaste-lo fazer isso? Deixaste-lo apostar tudo?
As pálpebras dele baixaram. Um lampejo de escuridão. Por um segundo, voltou a ser o Homem Diabo. - Claro que sim.
- Não admira que tenhais feito fortuna tão rápido. Roubaste-la a outro homem. Nessa noite tirastes-lhe tudo! Foi assim que conseguistes os vossos primeiros barcos,
não foi?
- Foi assim que consegui os meus primeiros barcos.
- Como pudestes fazê-lo? Arruiná-lo assim? Não tínheis de concordar fazer a última aposta.
- Soube-me bem fazê-lo. Eu não gostava do vosso pai. Na verdade, desprezava-o. Ele tinha um fraco pelo jogo e foi isso que o arruinou, não eu.
Ela não conseguia acreditar que ele o dissesse daquela maneira. Diretamente. Friamente. - Espantais-me. Destruístes a vida dele e arruinastes a minha, mas não tendes
remorsos. Absolutamente nenhum.
- Não tenho remorsos por ele. Lamento que um inocente tenha sido prejudicado. A forma como vos afetou foi uma coincidência infeliz.
- Uma coincidência infeliz! Que maneira conveniente de dizer as coisas, Daniel.
Ele deu um passo em frente, para lhe impedir a passagem. As suas mãos fecharam-se sobre o braço de Diane e baixou os olhos para ela. - Eu não sabia nada de vós.
Ele não era casado; não tinha família. Eu só soube que havia uma filha quando vos vi.
Algo no aspeto dele não a deixava sossegada. Havia suavidade na sua expressão e arrependimento real, mas não pelo passado. Era o mesmo aspeto daquele dia na carruagem
a caminho das Tulherias, quando ela pedira informações.
Ela abriu a boca para falar, mas a pergunta que se formava estava-lhe presa na garganta. Ela sabia que não iria gostar de ouvir a resposta. - Como é que ficastes
na minha posse?
- A última aposta incluía esta propriedade e tudo o que nela estivesse. Quando cheguei para tomar posse, encontrei-vos aqui.
A verdade devastadora arrasou com a sua compostura. O seu pai abandonara-a. Virara-lhe costas e deixara-a entregue aos caprichos do destino.
Provavelmente deveria estar grata por Daniel não a ter despejado na paróquia local. Talvez um dia estivesse. Naquele preciso instante, a desolação era tão vasta
que não restava espaço para gratidões nem para mais nada além de uma centena de perguntas.
Algumas daquelas perguntas repetiam-se com insistência. - Porque me enganastes? Porque não mo dissestes logo em Paris? Não acho que fosse para me poupar o desgosto.
Se me deixastes pensar , que ele tinha outro nome, se me deixastes pedir informações sobre o homem errado, deveis ter tido uma boa razão.
Ele afastou-se e virou-se para a janela. Não a ignorá-la. Ela sentia que, apesar de o seu olhar estar mais além, a sua mente estava com ela por completo.
A raiva avolumou-se, como que para formar um escudo para a proteger do golpe que a sua alma sabia estar a avizinhar-se.
- Não era do meu interesse que alguém percebesse que sois filha de Jonathan Makepeace.
- Porquê? - Saiu-lhe num grito frustrado.
Ele voltou-se. - Porque Jonathan era um velho amigo de Andrew Tyndale, e eu não queria que Tyndale soubesse que eu me tinha cruzado com Jonathan, de forma alguma.
Não queria que Tyndale soubesse quem sois, e depreendesse que havia uma ligação com aquela noite de cartas há tantos anos.
Ouvi-lo admiti-lo só a confundiu mais. Tinha a cabeça cheia de fragmentos, de impressões e palavras todas misturadas.
Cruzou os braços sobre o peito, para manter o domínio de si.
- O duelo. Dissestes que não era apenas devido a mim. Dissestes que Jeanette não se oporia porque sabia a história toda.
O seu coração ecoava com gritos mudos, alguns acusadores, outros suplicantes. - Era o vosso plano desde o início, encontrar uma maneira de desafiar Tyndale? E não
era realmente por minha causa mas por outras razões? É por isso que não queríeis que ele soubesse da minha ligação a Jonathan? Daniel, trouxestes-me para Londres
e fizestes de mim uma senhora para ter uma oportunidade de enfrentar Tyndale?
Ela vislumbrou a resposta na expressão dele. Depois, o rosto dele tornou-se indistinto, pois lágrimas ardentes escorriam-lhe dos olhos.
- Foi o meu plano inicial, Diane, mas não consegui levá-lo até ao fim. Não era minha intenção que acabasse por ter esse resultado.
Ele não se limitara a enganá-la. Ele tencionara usá-la.
Ela não podia mais. Não podia ficar a ouvir mais daquilo.
Chorando tanto que nem sequer conseguia ver, saiu aos tropeções da sala e foi a correr para a carruagem. A voz de Daniel seguiu-a, chamando o seu nome.

CAPÍTULO 23
O homem maltrapilho seguia-o outra vez. Gustave olhou para trás. Era o mesmo ladrão que Adrian identificara, o da barba. O homem parecia andar a vadiar pelo bairro
onde Gustave se alojara. Sem dúvida que Adrian tinha razão e se tratava de um carreirista que atacava os homens de negócios e da lei que percorriam aquelas ruas.
Devia ter reconhecido o corte estrangeiro do casaco de Gustave e decidido que ele seria uma presa fácil, possivelmente.
Ter a sensação de ser observado era enervante. Gustave não gostava da ideia de ter havido alturas em que este homem pudesse tê-lo seguido sem que ele tivesse reparado.
Talvez o ladrão até soubesse do barracão do outro lado do rio.
O pensamento deixou-o desorientado. Podia ser desastroso.
Já era de mais. Ia mostrar àquele ladrão que fora desmascarado e que estava na altura de perseguir um homem menos astuto.
Gustave abrandou a passada. Parou, por fim, para examinar os livros expostos à frente de uma tipografia. Pelo canto do olho viu que o ladrão não continuou mas se
limitou a parar e esperar. Que descaramento.
Irritado, Gustave estugou o passo. Colocou alguma distância entre si e o homem, e entrou num café. Escolheu uma mesa perto da janela e viu o homem aparecer e passar.
Virou-se e também entrou no estabelecimento.
E aproximou-se e foi sentar-se à mesa de Gustave.
Realmente, era de mais.
- Se esperais que vos pague para me deixardes em paz, julgastes mal a vossa presa, msieur. - Gustave falou rispidamente, só se apercebendo no fim de que falara em
francês e que o criminoso nunca compreenderia. Confiou, contudo, que o seu tom de voz transmitisse a mensagem com suficiente clareza.
O homem sorriu e tirou o chapéu. - Pareceu-me que estava na altura de falarmos.
Para espanto de Gustave, a resposta também lhe foi dada em francês.
- Duvido seriamente que você e eu tenhamos alguma coisa do que falar.
- Temos muito do que falar. Por exemplo, podemos falar de como vos estão a fazer a cama.
-Vede lá...
- Não, vede vós. - Apontou para os seus olhos. Baralhado, Gustave olhou atentamente para os olhos dele.
O susto foi tal que ficou tonto. - Meu Deus, sois vós! Mas estais morto!
- Morto não. Apenas enterrado há muito tempo na bebida e pobreza ignóbil.
- É um choque tão grande... O que quereis dizer com estarem a fazer-me a cama?
- Estais a ser usado. Ficareis na ruína. - Esticou-se por cima da mesa. - Primeiro eu, depois Hercule, agora vós. Levados à ruína, um por um.
- Que disparate. Eu não estou a ser levado a coisa nenhuma.
- Ai não? Então porque estais em Inglaterra?
Gustave olhou-o com desdém. - Isso só me diz respeito a mim.
- Só a vós? Não está mais ninguém envolvido?
Gustave mexeu-se, sentindo-se subitamente desconfortável.
- Vós não fostes levado à falência. Foi o vosso caráter que vo-lo
ditou, tal como a Hercule. Vós sempre quisestes riqueza fácil, e ele sempre quis glória.
- E o que quisestes sempre vós, Dupré? Estais em Inglaterra nessa demanda, agora?
Uma pontada de ansiedade fez Gustave mudar novamente de posição.
- Então estou enganado. Sou apenas um homem que gosta demasiado de bebida, que viu esquemas que não existem. - Levantou-se. - E pensar que me dei a este trabalho
todo para avisar um velho amigo. Tive de me enfiar debaixo de um monte de lonas para atravessar.
Aquela apreensão voltou a incomodá-lo, arruinando a satisfação de Gustave em ver o fantasma partir.
- Esperai. Sentai-vos. Tomai um café. Dizei-me que esquema vedes.
Aguardaram que o café chegasse e o maltrapilho pediu alguns bolos, que ficaram para Gustave pagar.
- Falai - exigiu, começando a suspeitar que pretendiam extorquir-lhe uma refeição grátis.
- Quando perdi tudo, fugi para o Continente. Havia dívidas em Inglaterra... bom, é uma velha história. Vivi em Nápoles. Um dia, há mais de dois anos, logo depois
de Napoleão chegar a Elba, estava nas docas e vi um dos meus navios. Ah! Tinham mudado algumas coisas ao longo dos anos, mas eu reconheci-o.
- Então vistes o navio. E depois?
- Perdi o navio para Edward St. Clair. O navio estava na posse da mesma pessoa, só que era mais velha e tinha um nome diferente, Daniel St. John.
Um olhar perplexo no rosto de Gustave.
- Quando regressei a França, ouvi a história do pobre Hercule. Estranho que uma confidência em privado a um oficial inglês tenha chegado a público.
- E julgais que St. John...
- Ele jantava muitas vezes com os oficiais daquele regimento. Penso que aquele, quando estava com os copos, era indiscreto. Foi curioso ficar a saber daquela ligação
entre St. John e o oficial. Foi o que me pôs a pensar.
- Estou certo de que construís castelos no ar. E coincidência a mais. Vós e Hercule... tantos anos depois.
- Talvez. Mas pergunto-vos isto: vós também sois uma coincidência? De repente estais em Inglaterra, muito atarefado com alguma coisa. Alguma vez vos encontrastes
com este St. John, ou St. Clair, ou seja lá qual for o nome dele?
A boca de Gustave ficou estranha. Demasiado húmida.
- A vossas diligências atuais estão relacionadas com uma reunião com St. John?
Gustave engoliu em seco. - Se tiverdes razão, então porquê?
- Eu, Hercule, e agora vós. Só há duas explicações. Primeiro pensei que St. John fosse alguém que soubesse da nossa ligação, de quando éramos novos. Agora pergunto-me,
contudo, se ele será meramente um agente de alguém que sabe.
- Um agente? É muito tempo para se ser agente.
- Não, se trabalhar para alguém com poder. Alguém que possa ser o seu patrono. St. John teve muito sucesso.
É bem recebido aqui em Inglaterra.
- Mas quem?
- Alguém, talvez, que preferisse que a nossa associação consigo ficasse enterrada com as nossas fortunas e reputações. Alguém com ambições, que não gostaria que
o mundo ficasse a saber de certas coisas que aconteceram há muito tempo.
Gustave dava um golo no café quando percebeu ao que ele aludia. De repente, sentiu azia.
- Dizei-me, Dupré, tendes tido negócios a tratar com Tyndale aqui em Inglaterra? Aquele barracão que visitais do outro lado do rio também é dele?
- Barracão? Que barracão? Estais engana...
- A razão pela qual pergunto isto é: St. Johri tem-se encontrado com Tyndale recentemente, e St. John sabe do barracão. Sei porque o vi lá um destes dias.
Diane sentia-se à deriva, como nunca havia estado. Experimentava a existência desenraizada e desnorteada que sempre temera. Saíra da escola, confiante que a verdade
a pouparia a uma vida daquelas. Em vez disso, a verdade lançara-a nessa direção.
Não voltou à casa de Daniel. Dirigiu a carruagem para uma rua onde se mudou para um veículo alugado e foi nele até à casa de Margot. No dia seguinte mandou buscar
um baú de roupas práticas e instruiu a criada de Margot para se recusar a dizer para onde o baú ia. Ela ainda não queria que Daniel soubesse do seu paradeiro, embora
tivesse enviado uma carta a Jeanette a assegurar-lhe que estava bem. Ao saber que ela tinha deixado Daniel, Margot deu-lhe espaço para recuperar e fazer planos.
Não estava pronta para fazer nenhuma das duas coisas. Sentia uma dor terrível, que a deixava apática e sem concentração. Era como se o vazio tivesse regressado,
ganhado vida, e se tivesse apoderado do seu corpo e do seu espírito. Oscilava entre raiva e desolação e uma desilusão devastadora. Na sua mente, recordava continuamente
cada detalhe do tempo que passara com Daniel, apesar do esforço que fazia para nem sequer pensar nele.
Por detrás daquela angústia devastadora, circulava outra emoção, igualmente arrasadora. Um enorme desejo de que as coisas tivessem sido diferentes. Uma mágoa nostálgica
por até as memórias de terna intimidade terem sido completamente destruídas.
Ela não acompanhava Margot a festas e visitas. Quando Margot recebia, Diane ficava no quarto. Ela não pertencia ao mundo de Margot. Não pertencia a mundo nenhum.
O que não impediu um daqueles mundos de ir ter com ela ao outro.

Três dias depois de ter recebido a carta do pastor, Margot deu uma festa. Diane manteve-se fora de circulação, mas à noitinha esgueirou-se até à cozinha para fazer
uma chávena de chá. No corredor que dava para o aposento onde os convivas jogavam às cartas, quase esbarrou com Vergil Duclairc.
Ele ficou muito surpreendido por a ver, e um pouco constrangido por ela o ter visto a ele. Antes de ele fechar prontamente a porta do aposento, ela vislumbrara o
rosto de uma certa cantora de ópera.
- Então estais aqui. St. John está... bom, o vosso marido está consternado. Visitou logo a minha irmã, à vossa procura.
Razão pela qual ela não procurara Pen. - Ele sabe que estou em segurança.
Vergil conseguiu mostrar-se severo e atencioso ao mesmo tempo. - Não vai resultar. Sabeis disso.
- Não é assim tão raro. Pen...
- O marido de Pen é um canalha da pior espécie.
- Talvez o meu também seja.
- Isso não é verdade. Conheço St. John e...
- Eu acho que vós e eu somos jovens de mais para conhecer um homem como St. John. Por favor, permiti-me que passe. Estais a interferir, como é apanágio dos homens.
Ele lançou um olhar à porta do aposento por trás da qual Margot e os seus amigos riam e jogavam. - Não podeis ficar em casa desta mulher. Não é apropriado e vós
não pertenceis aqui.
- Eu não pertenço a lugar nenhum. Pelo menos aqui não tenho amigos do meu marido a repreender-me todos os dias. Infelicidade a minha que a vossa amada tenha conhecido
Margot, senão era poupada a repreensões.
Ao ouvir a alusão à sua cantora de ópera, ele afastou-se com relutância.
- Peco-vos que não digais a St. John onde estou.
Ele não disse nada, o que significava que lhe contaria mesmo. Diane não dormiu naquela noite. A sua mente ensaiava o confronto que estava para vir. Ela não sabia
o que lhe diria.
Na manhã seguinte, bem cedo, muito antes de serem horas de receber, anunciaram-lhe que tinha uma visita. Não era Daniel. Uma senhora, que não dera nome. Pensando
que Vergil tivesse enviado a duquesa para a persuadir, Diane saiu do quarto para ir para a sala de estar.
Chegou no momento em que um homem muito grande pousava uma mulher de véu numa cadeira. Jeanette afastou o véu e indicou a Paul que saísse.
Diane curvou-se e beijou-a. - Estou surpreendida por vos ver aqui, Jeanette.
- Eu é que estou surpreendida por vos ver a vós aqui, na casa de uma cortesã.
- Dificilmente poderia procurar a condessa. Ela já tem tribulações suficientes sem que se saiba que deu abrigo a uma mulher que deixou o marido. As pessoas dirão
que está a formar uma Sociedade de Esposas Desobedientes.
Jeanette não achou piada ao gracejo. - Devíeis estar com o vosso marido, não aqui nem com a condessa.
- Jeanette...
- Sentai-vos.
Muito à semelhança da ordem de Madame Leblanc naquele último dia na escola. Diane obedeceu.
- O que estava na carta que lestes no jardim no outro dia? Que maledicência vos escreveram, para vos fazer abandonar o meu irmão? - inquiriu Jeanette.
- Não foi maledicência. O homem que a escreveu não sabia o significado que o conteúdo teria para mim. Ele presumiu que estava apenas a explicar-me que eu estava
errada em pensar que ele e eu éramos parentes. Não vos contarei o que dizia. Não quero falar-vos mal de Daniel.
- Quereis poupar-me? É amoroso. Não há nada que pudésseis dizer-me sobre o meu irmão que me surpreendesse. Não, não é bem assim. O afeto que ele tem por vós, as
mudanças que suscitou... suspeito que conhecestes um lado dele que eu nunca conhecerei.
Agora dizei-me o que ficastes a saber sobre o outro lado, aquele que eu conheço muito bem.
Diane descreveu o conteúdo da carta e a prova da traição de Daniel. Explicou as revelações ouvidas durante a discussão deles em Hampstead.
Jeanette não pareceu surpreendida com a história. - Sim, estáveis destinada a ser
um engodo. Culpai-me a mim como o culpais a ele. Não impedi nada, e ajudei-o.
Em altura nenhuma ele tencionou que fôsseis magoada, nem o teríeis sido. Era perfeito. Vós éreis perfeita. Tyndale gosta de raparigas como vós, refinadas, e inocentes.
Tem por elas uma fraqueza nada saudável que não se atreve a satisfazer com as filhas da sua própria classe. Não se sentiria tão constrangido com a prima de um armador.
Desenrolou-se tal como Daniel previra, à exceçáo um inconveniente.
- O que foi? - A confirmação de que Jeanette estivera sempre ao corrente de tudo só a fez sentir-se pior.
- O meu irmão apaixonou-se por vós.
- Não acredito. Acho que ele concluiu que o plano funcionaria ainda melhor se Tyndale importunasse uma esposa e não uma prima. Acho que o plano ainda não estava
concluído. Acho que, e visto que Daniel foi forçado a recuar por causa do que aconteceu comigo naquela noite, ele encontrou outra forma de concretizar o que planeara.
- As palavras saíam-lhe em torrente do lugar mais triste do seu coração.
- Que disparate. - Jeanette afastou a ideia com um aceno de braço. - Se o meu irmão fosse tão pouco honrado, não teria mantido o acordo que fez convosco.
Diane mordeu a língua para não lhe sair pela boca fora que a própria Jeanette não esperara que Daniel mantivesse o acordo e fosse honrado.
- Ele não explicou a razão pela qual queria uma forma de atingir Tyndale, pois não?
- Não quero ouvir.
- É indiferente. Ele nunca me sujeitaria ao constrangimento de ver a história revelada. Penso que é essa a razão pela qual não veio aqui ontem à noite para vos levar
para casa, depois de ficar a saber onde estáveis. Eu posso contar-vos, porém, a parte que ele nunca contaria.
Ela abriu os braços com um floreado dramático. - Andrew Tyndale é responsável por isto. Pelo facto de Paul ter de me carregar até aqui, em vez de ser eu a andar
por meus próprios pés. Ele é a razão pela qual não vou a Inglaterra, e não saí daquela casa.
- Estais a dizer que ele vos conhece?
- Ele conhece-me. Se me reconheceria já é uma coisa diferente. Talvez sim. Afinal, há vinte e quatro anos fui sua amante.
- Amante?!
Jeanette notou a surpresa de Diane com uma satisfação mórbida. - Eu era uma rapariga. Tinha dezassete anos. A minha família estava a tentar sair de França e ele
ofereceu-se para ajudar. Pôs-me em Inglaterra primeiro, clandestinamente. Eu levava jóias e dinheiro, para que quando os outros chegassem houvesse um lugar à espera
deles. Eu era ignorante e crédula, e quando ele me seduziu pensei que era amor.
Diane não teve dificuldade em ver o rosto de Tyndale, anos mais jovem, amável e preocupado, falando em afeto e aludindo a casamento.
Afinal, dissera-lhe a mesma coisa a ela.
- Ele levou-me para uma propriedade obscura. O tempo passou e não me chegavam notícias da minha família. Sempre que ele lá ia eu perguntava-lhe, e ele dizia-me que
aquelas coisas demoravam tempo. Eu estava isolada e não tinha notícias do que acontecia em França. Mesmo assim, fiquei desconfiada. Finalmente confrontei-o e exigi
ser levada para Londres. Daquele dia em diante tornei-me prisioneira. Mas, vendo bem, era o que sempre fora. Continuou a usar-me, mas depois daquilo não houve ilusões.
Eu tinha pavor às visitas dele. Odiava o toque dele. Finalmente, uma vez ele estava de visita e eu não consegui suportar mais. Roubei
um cavalo e fugi. Era inverno, e o cavalo atirou-me ao chão. Eu caí de costas e não conseguia mexer-me.
A voz dela relatou os terríveis factos em frases neutras e rápidas. Diane ficou com a impressão de que Jeanette raramente falara naquilo antes, e só a força de vontade
lhe permitia manter a compostura.
Jeanette olhava em frente, subitamente com os olhos em chamas. - Ele seguiu-me. Encontrou-me, num baldio, estropiada. Ainda me lembro das palavras dele. - bom, assim
já não me servis de nada. - Deixou-me ali. Levou o cavalo.
- Podíeis ter morrido.
- Ele provavelmente presume que sim.
- Julgais que foi a intenção dele?
- Por que outra razão deixar uma mulher ao frio sem ter como se salvar? Aconteceu, porém, que de noite passou um agricultor e eu chamei. Ele pôs-me na carroça e
levou-me para casa dele. A mulher e a filha tomaram conta de mim. Vivi com eles durante anos, acamada. E, um dia, o Daniel entra na casa. A última vez que o vira
era um rapaz. Ele andara à minha procura. Sempre que estava em Inglaterra procurava as propriedades que a família de Tyndale tinha e perguntava naquelas partes por
uma francesa jovem, de cabelo escuro. Finalmente encontrou-me e levou-me para França.
Abriu as mãos, anunciando o fim da história. Diane mal conseguia absorver o horror que devia ter sido a vida de Jeanette. Anos de medo e impotência.
- Quando Daniel vos procurava, porque não se limitou a confrontar Tyndale e perguntar onde estáveis?
- Há boas razões pelas quais não podia, mas essa é a história do meu irmão, não a minha.
Chamou Paul. Ele estava logo ali, do outro lado da porta, como sempre. Ouvira tudo. Pela sua expressão, Diane adivinhou que ele já conhecia a história.
Ele ergueu a sua senhora nos braços. Do seu poiso, Jeanette baixou os olhos para Diane. - Estais tão branca. Amanhã promete
ser um dia bonito. Penso que devíeis dar um passeio em St. Jamess Park amanhã. Paul disse-me que há lá um pequeno lago rodeado de junquilhos. Far-vos-á bem ir até
lá. Ninguém deve ficar em reclusão a não ser que haja uma excelente razão para tal.
Dupré estava a comportar-se de forma muito estranha. Normalmente Andrew não reparava, pois Gustave era sempre um homem peculiar. Era o típico picuinhas que investia
muito na aparência mas que conseguia parecer constrangido e desconfortável em vez de elegante. Aqueles anos todos com o nariz enfiado nos livros tinham-no deixado
com a cara de uma mulher, e tinha um sem-fim de maneirismos quase intoleráveis.
Naquele dia, porém, o comportamento de Dupré era estranhamente cauteloso. Hesitava antes de responder a qualquer pergunta. Até quando estava parado se remexia. Estava
inquieto.
Andrew observou a elaborada demonstração que o barracão albergava, e as suas inquietações transitaram de Dupré para o dinheiro que aqueles cilindros e aquele ferro
representavam. Custara uma fortuna satisfazer as exigências de St. John com respeito a provas. Era melhor que o homem ficasse satisfeito quando tudo estivesse pronto.
Dupré fez má cara ao olhar para um enorme pedaço de ferro metido numa panela de metal muito funda. - Preocupa-me este. O cobre da tina pode afetar as coisas.
- Talvez seja pelo melhor. Talvez fiquemos a saber que o processo melhora quando se utiliza cobre.
- Eu ainda não sei porque insististes numa experiência tão elaborada e tão cara. A última foi esclarecedora, como eu disse que seria.
- Assim podemos calcular melhor o custo e avaliar o lucro. Não serviria de nada começarmos a vender aço que não conseguimos produzir rapidamente ou que custasse
mais do que conseguimos recuperar.
Dupré alvoroçava-se como uma velha. - Aquele grandalhão lá fora, porque está aqui? :
- Para proteger o barracão, já vos disse.
- Não estou a gostar. Ele não fala francês. Vim ontem e ele não me autorizava a entrar.
- Se me tivésseis informado que viríeis, eu tê-lo-ia alertado. Dupré cruzou os braços, descruzou-os, e voltou a cruzá-los.
- Não gosto que estejais a tomar essas decisões sem mim, como se escond... como se não confiásseis em mim.
Andrew olhava para um pedaço de ferro no qual fizera algumas marcas. As palavras que Dupré quase pronunciou captaram-lhe a atenção, porém. Como se escondêsseis alguma
coisa, quase dissera.
Sim, Dupré comportava-se de forma muito peculiar naquele dia.
Aproximou-se e colocou o braço por cima dos ombros de Gustave. - O que está a perturbar-vos, velho amigo?
Os lábios de Gustave comprimiram-se, conferindo-lhe um aspeto muito afetado. - Não é nada. Apenas não previ esta etapa. Não calculei que demorasse tanto. - Apontou
para os cilindros. E isto tudo. Eu dei-vos a prova que queríeis. E de repente estais a fazer uma demonstração como se fossem precisas mais provas. Insististes que
usasse a pouca fortuna que tinha para construir isto tudo.
- A maior parte dos fundos foram meus. Não era descabido que vós também assumísseis o risco.
- Foi o que combinámos. Dou por mim a perguntar-me por que razão queríeis isto, é tudo.
- Pareceis estar desconfiado de mim. Não é bom numa sociedade.
- Simplesmente me pergunto se estais a dizer-me tudo.
Por sorte, Dupré não era tão subtil quanto era peculiar. - Pareceis acreditar que não. O que vos faz pensar assim?
- Eu não...
- Ora. com uma fortuna destas em jogo, não podemos andar a discutir por um assunto menor. Falemos francamente.
Observou Dupré a debater-se. Feita a escolha, o semblante de Gustave assumiu uma expressão emproada, superior. Sim, o néscio não conseguia nunca resistir à oportunidade
de exibir o seu brilhantismo.
-Tenho razões para crer que deixastes que arriscasse tudo deliberadamente. Suspeito que este ferro vai, misteriosamente, deixar de se transformar em aço. Fareis
alguma coisa, adicionar químico novo, talvez, que abortará o processo.
- Porque é que, em nome de Deus, eu faria algo tão estúpido?
- Para que eu pensasse que não resultara e voltasse para França, arruinado tal como os outros foram arruinados, e a descoberta fosse
apenas vossa.
Andrew riu. - Que mente maquiavélica me atribuís.
- Eu sei a mente maquiavélica que tendes.
- Se engendrasse tudo tão bem, seria dono do mundo. Vós viestes até mim, Dupré. Ou já vós esquecestes disso? E só vós sabeis a fórmula química. Estais recordado?
- Não estou certo disso.
- De quê?
- Não estou certo de que também não a tenhais. Afinal, eu recebi-a do vosso conspirador.
Dupré disse-o com um ar de superioridade insuportável. Muito confiante, Andrew teria rido novamente não fora a centelha de satisfação nos olhos do homem.
- O meu conspirador?
- O vosso conspirador secreto. O homem que enviastes para nos arruinar, para proteger a bela reputação que tendes.
- Dupré, se eu julgasse que vós ou alguém pudesse prejudicar-me, não me ficaria pela destruição. Matar-vos-ia simplesmente. Se eu tivesse a fórmula, como sugeris,
não teria de vos levar a descobri-la confiando na probabilidade de me contactardes para financiar o projeto. Pensai, homem. Não dizeis coisa com coisa.
A palavra "matar" deixou Gustave de olhos arregalados. O seu olhar foi direito à porta, como se procurasse uma hipótese de fuga.
- Acalmai-vos. Apenas ressalvo que este esquema que mostrais é demasiado improvável, até para mim. - Andrew apertou mais os ombros de Dupré. - No entanto, agora
preciso de saber por que razão acreditais que eu tenho um conspirador que sabe a fórmula.
Uma linha de suor humedecia a testa de Dupré. - Disseram-me que tinha estado aqui outra pessoa, além de vós e de mim. Foi visto outro homem. E este mesmo homem vendeu-me
o manuscrito que continha a fórmula e a maior parte do processo. É também o mesmo homem que foi a desgraça dos outros.
Andrew tinha o olhar pregado naquela linha de suor e deu por si a contar cada minúscula gotícula. Um arrepio trespassou-o como um aviso. - Quem vos disse isso? Quem
viu este outro homem?
Dupré selou os lábios. Idiota. Como se conseguisse manter o silêncio quando Andrew queria a informação.
- Dizeis que um homem vos vendeu o manuscrito que continha a maior parte do processo. Onde fostes buscar o resto? Através de experiências?
Dupré assentiu com a cabeça, mas a verdade estava-lhe nos olhos.
- Onde o fostes buscar, Gustave? Não se trata de uma prova matemática que não interessa a ninguém. As nossas fortunas podem estar dependentes de que mo digais.
Dupré contorceu-se e libertou-se. Os seus olhos arregalaram-se. - Como sabeis? A prova... fui buscar o cálculo do número de células à biblioteca, tal como fiz com
a prova.
Santo Deus.
- E quem vos vendeu o manuscrito?
- O vosso amigo, Andrew. Foi Daniel St. John quem mo vendeu. Santo Deus.
De repente, Andrew teve uma imagem mental de um túnel constituído por várias secções, cada uma das quais uma das suas ligações recentes a St. John. No final do túnel,
olhando fixamente para ele, estavam os olhos satisfeitos do próprio Diabo.
- Seu idiota, Dupré. Seu perfeito idiota.
- Eu é que sou o idiota? Como vos atreveis a insultar...
- Ponde esse vosso brilhantismo inútil e questionável a funcionar em algo prático por uma vez na vida.
- Porque gritais? Sou eu quem devia estar irritado. É óbvio que pusestes este St. John a conspirar para vós.
- A conspirar não, a investir. Mas tendes razão, ele atraiu-vos para a desgraça e agora vós também me arrastastes.
- Como é que isto ficou a ser culpa minha?.
- Pensai. Pensai. Quem poderia saber que o resto do processo estava algures naquela maldita biblioteca?
- Foi coincidência. Está sempre a acontecer na ciência.
- Não foi coincidência. Quem vos vendeu o manuscrito foi alguém que conhecia o homem a quem a biblioteca pertencera. Alguém que sabia que outro homem começara a
trabalhar no processo, e que os apontamentos dele podiam ser encontrados naquela biblioteca. - Agarrou em Gustave e deu-lhe um abanão firme. - Alguém que sabia como
é que vós havíeis ficado na posse da biblioteca.

CAPÍTULO 24
Ele foi à procura dela à primeira claridade da manhã, atravessando o parque em largas passadas, com uma expressão séria e determinada. Daniel estava absorto e atento
ao mesmo tempo.
Diane observava atrás de uma árvore. A preocupação que lhe via nos olhos aumentava a confusão que sentia e minava a sua determinação. Quem diria que chegaria o dia
em que ela veria Daniel St. John preocupado.
Ele parou onde Jeanette lhe dissera a ela para estar, num sítio onde flores amarelas enfeitavam o lago. Não a vendo, ficou a olhar para a água à espera dela.
O coração ferido de Diane alvoroçou-se. Ele estava tão belo. A sua aparência evidenciava grande cuidado. O lenço estava atado na perfeição, e parecia pronto para
um retrato de família. As suas botas brilhavam ao sol matutino, com gotinhas de humidade que cintilavam como diamantes. Até trazia chapéu, que passava de uma mão
para a outra como se não soubesse onde o pôr. Ela suspeitava que o criado de quarto dele tinha ficado encantado e ao mesmo tempo perplexo com as súbitas exigências.
Ela não sabia bem porque tinha comparecido. Fora uma decisão impulsiva. As revelações de Jeanette explicavam as ações de
Daniel, mas isso não era o mesmo que desculpá-las. O seu coração não conseguia absolvê-lo completamente, por muito que ela o desejasse.
Talvez fosse melhor ir-se embora sorrateiramente, ou limitar-se a aguardar até ele se cansar e ser ele a partir.
Sem saber porque o fazia, saiu silenciosamente de trás da árvore. O corpo dele ficou quieto ao sentir a presença dela. Manteve a pose durante uns cinco segundos
e depois voltou-se.
Ela perguntou-se o que ele estaria a conter durante aquela pequena pausa. Alívio? Raiva?
- Jeanette disse-me que talvez vos encontrasse aqui hoje de manhã. Julgou que talvez aceitásseis falar comigo.
- Estou aqui, apesar de não saber muito bem porquê.
- Seja qual for a razão, estou grato.
Daniel St. John, grato? Queria acreditar, mas uma nova prudência, que a fazia sentir-se velha e gasta, alimentou a desconfiança.
- E eu estou grata por não me terdes forçado a regressar.
- Quase o fiz. Penso que poderei ter de o fazer, mais cedo ou mais tarde.
As implicações daquela afirmação não lhe passaram despercebidas. Ainda poderia fazê-lo, mais cedo ou mais tarde. Pelo menos era honesto e não arvorava uma equanimidade
que não era verdadeira.
- Jeanette falou-me acerca de Tyndale e do que ele lhe fez. Explicou porque tencionáveis usar-me para chegar até ele.
- Só posso pedir-vos perdão por isso. Sei que não tenho direito de o esperar.
- Eu julgo compreender. Tínheis um objetivo e eu era um meio para o alcançar. Era meramente um isco, sem estar em perigo. O meu papel seria uma coisa menor, comparado
com o luxo e os confortos que recebi.
- Sim.
- Esperastes largo tempo para terdes a vossa vingança. Anos, aparentemente.
- Sim.
- É o vosso único objetivo na vida? A vossa alma pertence-lhe?
- Isto saiu-lhe, revelando a dor que queria dilacerar-lhe o coração, e a suspeita que não parara de crescer toda a noite. Não há espaço para mais nada, nem mesmo
para mim? O que me destes resumiu-se a paixão e piedade?
- Porque não deixamos o Céu e o Inferno julgar-me a alma? Aborrecido, olhou o chão por um momento e depois os olhos dela. Um fogo que ela conhecia e temia deflagrara.
O Homem Diabo emergira, convocado pelas suas perguntas.
- A minha irmã contou-vos demasiadas coisas, mas, ainda assim, não vos contou tudo. Na verdade, o crime de Tyndale para com ela ainda foi o menos.
- Eu diria que foi pesado o suficiente. Compreendo o ódio que nutris por ele.
- Sois incapaz de compreender o ódio que tenho por ele. Sois boa de mais.
- Nem tanto. Também já não tão inocente. Há dois dias detestava-vos um pouco, por isso até comecei a aprender algo sobre essa emoção, como aprendi sobre o amor.
Talvez devêsseis confiar na minha capacidade de compreender. Foi por isso que viestes, não foi?
- Não tenho a certeza do que me fez vir. Provavelmente a esperança de ver algo no vosso rosto além da desilusão que mostrava quando fugistes em Hampstead. Não consigo
aceitar que essa seja a última imagem que tenho de vós a olhar para mim.
A tristeza com que ele o disse tocou-a. Aproximou-se dele e olhou fundo nos seus olhos. Ele não veria desilusão. As suas reações haviam-se tornado mais complexas
e confusas do que isso.
- Podíeis ter-me dito, Daniel. Assim o choque teria sido menor. Se a confidência tivesse partido de vós, os meus sentimentos por vós poderiam ter vencido a minha
consternação.
- Quase o fiz. Várias vezes. Tencionava fazê-lo.
Mas algo o detivera. -Talvez seja altura de o fazer agora. Jeanette disse que havia mais.
Ele olhou novamente para a água. - Não estou acostumado a falar nisso. Vós conheceis os meus pecados, ou a maior parte deles. O resto não tem assim tantas repercussões
sobre mim.
- Suspeito que o resto tem grandes repercussões sobre vós. Sereis sempre um mistério, Daniel. Considero que um homem como vós nunca se conhece realmente. Contudo,
este mistério eu não posso permitir que continue, a não ser que preservá-lo seja mais importante para vós do que eu sou.
Ele assentiu com a cabeça e soltou um suspiro de resignação.
- Tyndale tinha ficado de utilizar o dinheiro e as jóias que a minha irmã trouxe para Inglaterra para tirar, clandestinamente, a minha família e outros de França.
Era um bom plano, devidamente elaborado e vendido a pessoas desesperadas. Teve ajuda de outros, mas a ideia foi dele.
- Foi o que a vossa irmã disse. E vós viestes para Inglaterra, mas ele impediu-a de ver a vossa família.
- Não foi assim que se passou. Tyndale ficou com tudo, e abandonou trinta pessoas à sua sorte. Esperámos numa faixa de terra pelo navio que viria salvar-nos,
e ele nunca apareceu. Em vez disso, chegou o exército francês, e quase todas aquelas pessoas, indefesas, foram levadas. - Cerrou os dentes. - Eu era um rapaz, mas
lembro-me claramente. De cada pormenor. E sonho com aquilo. Vejo as caras, esperançosas e pacientes, e depois desesperadas. A guilhotina aguardava a maior parte
delas.
Ao contrário de Jeanette, ele não narrava calmamente a sua história. Cuspia-a, como se o cenário da traição se desenrolasse na sua cabeça.
- Fostes levado com eles?
- Eu estava com Louis, e longe dos outros quando o exército veio. Vimos tudo a acontecer e depois fomos para Paris, para ver se os meus pais tinham sido soltos.
O meu pai sim, mas era um homem destruído, tinha perdido o juízo. A minha mãe...
Voltou abruptamente os olhos para o pequeno lago, contemplando a água com aquela expressão alheada.
Ela aproximou-se mais, até o seu corpo quase tocar o dele. Viu, pela primeira vez, a dor subjacente àquela expressão velada. Partiu-lhe o coração, tão completamente
absorveu ela aquela angústia.
A dor sempre estivera ali. Ela fora cega, era tudo. Vira apenas o rosto que ele mostrava ao mundo e não as emoções que a máscara escondia.
- O que aconteceu à vossa mãe?
- Morreu.
- Como?
Ele cerrou os dentes. - A minha mãe vinha de uma família marcada por alguns revolucionários. Dantes não importara, mas na altura, durante o terror... - Os olhos
dele passaram rapidamente por ela e depois afastaram-se, como se olhar para outra pessoa tornasse a revelação demasiado difícil de fazer. - Foi executada. Eu caminhei
ao lado da carroça dela, apesar de Louis tentar impedir-me. Eu fui a última coisa que ela viu antes de a amarrarem àquela tábua e lhe baixarem o pescoço.
Ela parara de respirar e agora arquejava profundamente para não desfalecer.
Ele vira. Criança, ele vira tudo.
- Ela não tinha nada a ver com nada daquilo - disse, amargamente. - Mas o país tinha ficado sedento de sangue, e ela tinha o nome errado. E era assim tão simples,
tão implacável. - Olhou de novo para ela. - Ainda vejo caras. As caras raivosas da multidão, ávidas por ver mais uma cabeça rolar. As caras enfastiadas dos carrascos.
O rosto dela, o terror, no fim... sim, vingá-lo, e à minha irmã, e a tudo o que aconteceu, consome-me a alma. Tem sido o único propósito da minha vida. - A afirmação
saiu-lhe com tanta dureza que teve a força de um juramento.
- Não admira que não hesitásseis em arruinar um homem às cartas, para acederdes à sua riqueza, ou usar-me como um mero isco. Julgo que não consigo culpar-vos por
nada disso. Depois de tamanha traição, e de tão horrível desfecho, compreendo que o objetivo seja mais importante do que qualquer outra coisa.
A raiva e a amargura de Daniel desapareceram com as palavras dela, como se o tivesse chamado de outro sítio. O seu rosto suavizou-se tanto que parecia um rapaz.
Pegou na mão dela com as suas.
- Não é mais importante do que vós. Foi com espanto que constatei que vós importáveis mais.
- Penso que conseguis sempre os vossos objetivos, Daniel.
- Não este, penso eu. E agora vós jamais sereis o meio para o conseguir.
- Não tenho a certeza de acreditar no que dizeis.
- Foi o que disse minha irmã. Disse-me que suspeitais que casei convosco para ter um motivo ainda melhor para desafiar Tyndale depois, quando ele continuar a perseguir-vos.
Estais enganada. Não foi por isso que casei convosco.
- Não espero que admitais uma coisa dessas.
- Então não vos fiqueis pela palavra do vosso marido, mas do homem que agora sabeis que sou. Quando vos tirei a inocência, destruí o fascínio que ele tem por vós.
- Então arruinastes um grande plano por alguns momentos de paixão. Não admira que me resistísseis tanto. A minha sedução levou-vos a um muito mau negócio, não foi?
- Foi o melhor negócio da minha vida, querida.
- Não, não foi. O que posso oferecer não é par para emoções sustentadas por anos de raiva. Acho que ides acabar por mo cobrar.
- De repente, apercebeu-se de uma coisa. - O silêncio na primeira noite, depois... já estáveis ressentido comigo, não estáveis?
Ele levou a mão dela à boca e beijou-a com doçura. - Sim. Ela não estava a contar com aquela palavra. Aquela honestidade. Arrancou-lhe as defesas de uma maneira
brutal.
- Vede o que está entre nós, Daniel. Traição e mistérios. Vós arruinastes o meu pai, fizestes-me órfã, e agora eu interferi com o vosso sonho de vingança.
- Não posso justificar as traições, Diane. Só posso jurar-vos que não lamento a interferência.
- Verdade? Deve ser um fardo pesado. Conseguis viver sem o ter resolvido?
- Julgo que posso viver com qualquer coisa se vos tiver comigo.
- Beijou-lhe novamente a mão. - Voltai para casa. Agora. Dizei que sim.
A proximidade dele, os lábios dele na sua pele e a sua respiração quente a roçar-lhe a mão, deixaram-na tonta. A simples presença dele enfeitiçava-a, como sempre
acontecera. Ela sentiu que ele derramara sobre ela toda a força do seu magnetismo, deliberada e desavergonhadamente.
Ela quase sucumbiu. O seu amor respondeu a todas as partes dele que ela sabia serem boas. Mas agora o mistério e a circunspeçáo tinham uma razão e um propósito e
não podiam ser ignorados. Haviam-na excitado anteriormente e ainda era assim, mas ela reconhecia o perigo que representavam para o seu amor e a sua felicidade.
- Daniel, conseguis abandonar a vingança que procurais? Ter-me é tão importante que o façais?
- É o preço que pedis?
- Não estou certa de conseguir viver com isso como vós tendes vivido, sabendo agora que está sempre em vós.
- Não está em mim sempre. Já não está. Quando estou convosco desaparece. com o tempo, será uma coisa menor.
- Ou talvez não. Talvez um dia eu acorde e veja que não estais lá, e me digam que morrestes num duelo com ele, que tivestes finalmente o vosso acerto de contas.
Ela imaginou aquela manhã. Imaginou a iminência desse dia, ano após ano, e a visão dos seus olhos absortos, revelando que aquele dia, mais cedo ou mais tarde, chegaria.
- Também não me parece que queirais que se converta numa coisa menor. Não verdadeiramente. Por isso, sim. Receio que seja o preço de me terdes convosco.
O ultimato enraiveceu-o. Ela achou que ele o iria recusar, e partiria. Durante uma longa pausa não houve sons nem suspiros em
volta deles, apenas Daniel a pesar e a decidir, com os lábios pressionados sobre a pele da mão dela.
O coração de Diane batia dolorosamente. Ela não queria que ele fosse embora. Quando compreendeu a dimensão do ultimato que lhe fizera ficou sem fôlego.
O braço dele mexeu-se e rodeou-lhe a cintura. Puxou-a para si, e os seus corpos tocaram-se. Já havia outros visitantes a passearem-se perto do lago, mas ele não
se importava que fossem vistos.
A respiração dela tornou-se entrecortada, como se estivesse a ser esmagada, apesar de ele a segurar com meiguice. O pânico martelava-lhe no peito. Sabia que o seu
bom senso não poderia fazer frente ao desejo da sua alma, de acreditar em tudo o que ele lhe dissesse.
- Quero mesmo que se converta numa coisa menor, querida. Nunca pensei vir a querê-lo. Presumi que não haveria nada que pudesse ocupar o seu lugar. Aprendi que não
é assim. - Beijou-a com doçura, como um rapaz que beijasse uma rapariga. - Vinde comigo para casa. Deitai-vos nos meus braços e vamos construir um futuro juntos.
Descartaremos o passado. Se estiverdes comigo, consigo renunciar. Por vós eu consigo. Se é o preço de vos ter, fá-lo-ei.
A confiança que ele tinha nela deixou-a a tremer e com medo. Ela não tinha a certeza de que o seu amor conseguiria substituir o ódio. Era inconcebível ela ter semelhante
poder. Era impossível que ele a quisesse tanto que descartasse o propósito da sua vida.
Ele ergueu uma mão, chamando-a para si enquanto voltava a beijá-la, profundamente. Aproximou-a num abraço. No torpor, ela ouviu vagamente o ruído de uma carruagem
a aproximar-se devagar e a exclamação de desagrado de uma mulher que passou por perto.
O beijo dele levou-a à euforia. A promessa libertou as suas preocupações e foi com gratidão que ela as dispensou. Ele tinha razão. Podiam construir um futuro juntos.
Ela conseguia esquecer o que ele havia feito e fazê-lo feliz, para que ele nunca quisesse concluir a sua demanda. Claro que conseguia. Que conseguiam. Os beijos
dele assim o diziam. O seu abraço exigia-o. Ela era dele e mais nada importava.
Ele fê-la dar meia-volta e encaminhou-a para a carruagem. Ela não hesitou em entrar. A alma dela queria acreditar em tudo o que ele dizia. O amor deixava-lhe as
pernas bambas. O desejo físico iniciara o seu pulsar concentrado.
A porta da carruagem fechou-se. Ele pô-la no seu colo e envolveu-a num abraço que a chamou mais para perto. Não a beijou nem acariciou enquanto a carruagem fazia
o seu percurso. Apenas a apertou contra si, com a respiração a aquecer-lhe as fontes, a sua mão firme não permitindo qualquer distanciamento.
A viagem lenta e silenciosa excitou-a. Não precisava de demonstração nenhuma para saber o quanto ele a queria. Estava no ar e no silêncio dele. Ela sentia-a na tensão
do seu corpo e no ritmo seguro do seu coração.
Olhou de relance para ele. A sua expressão revelava o paradeiro dos seus pensamentos, independentemente do comedimento que ele mostrava. A expectativa despertava-lhe
o corpo mais do que qualquer carícia. A mistura de excitação sensual e intimidade emocional era inebriante. Quem diria que as confidências e um silêncio calmo podiam
dar origem a uma sedução tão poderosa?
Sedução. A palavra fez com que um pequeno lampejo de razão penetrasse aquele torpor de excitação.
Ele oferecera-lhe exatamente o que ela queria. Seduzira-a, convencendo-a a regressar, dando-lhe aquilo que ela mais queria - a promessa de si próprio.
Não houve criado a abrir a porta. Não se ouviam sons na casa. Daniel levou-a para dentro pela mão, como se a guiasse para um sítio onde ela nunca tivesse estado.
- Foram todos embora? - perguntou ela. -Não.
- Estão só fora de vista? - Tinham sido instruções dele. Quisera poupá-la a qualquer cerimónia ou constrangimento quando ela voltasse para ele.
Também presumira que ela regressaria. O abraço que lhe deu na entrada assegurou que ela não se importasse demasiado com a
confiança que ele evidenciara. A memória do seu rosto quando esperava por ela no lago revelara que ele náo estivera verdadeiramente confiante de todo.
O seu beijo possessivo deu expressão à fome que tornara a viagem lenta e sensual.
- Não volteis a deixar-me - murmurou entre beijos, segurando o rosto dela entre as mãos. Ela ouviu uma súplica a par da ordem.
Subitamente, viu-se levada em braços, subindo as escadas numa névoa de luzes e sombras.
As instruções haviam sido obedecidas. Não se cruzaram corri ninguém da casa. Ele não se teria ralado caso tivesse acontecido.
Levou-a para o quarto. Só ali seria capaz de preencher o vazio medonho que a sua promessa lavrara.
As cortinas e portadas do quarto tinham sido fechadas, isolando-os da cidade. Ele fechou a porta com um pontapé. O seu sangue fervia e ele queria deitá-la e arrancar-lhe
as roupas, e aplacar os desejos ardentes que rugiam dentro dele.
Ao aperceber-se da sua violência, parou. Se seguisse aqueles impulsos, ela podia interpretar mal. Nem ele conseguiria explicar o que estava dentro de si. Só sabia
que não era físico. Mera excitação física não daria origem a este tipo de necessidade.
Os braços dela ainda lhe pendiam do pescoço. Os seus olhos mostraram-se divertidos. - Estais inclinado a arrebatar-me?
- Sim.
Ela olhou para a cama e depois para ele, inquiridora. - Mudastes de ideias?
Deitou-a. - O dia de hoje merece melhor. - Virou-a de costas e soltou-lhe as fitas do vestido. Sentado ao lado dela, passou aos cordões do espartilho.
Ela estava tão adorável, ali deitada naquela luz fria, filtrada. A sua pele parecia mais clara, os seus olhos mais escuros. Senti-lo a
desapertar-lhe a roupa excitara-a. Ele viu-o quando as suas pálpebras se fecharam e sentiu-o na flexão subtil do seu corpo.
Acariciou-lhe as costas cobertas pela camisa fina e descreveu o mesmo percurso com beijos. Conter o seu desejo não era fácil, mas esta opção paciente conferiu ao
ímpeto delirante um poder especial.
Os seus beijos lentos alcançaram-lhe a cabeça e a nuca. - Querer-vos, especialmente agora, tem a ver com algo mais do que prazer.
- Ela merecia sabê-lo, especialmente porque ele não acreditava que o seu comportamento o provasse. - Não quero que penseis que estou meramente a reivindicar os meus
direitos como marido.
Ela virou-se. - Nunca me fizestes julgar que fosse só isso. Mesmo na primeira vez. Foi isso que me assustou.
E depois, quando ele mostrou frieza, foi o que a devastou.
- Nunca é só prazer comigo, também. - Ela falou como se quisesse reconfortá-lo, como se a inquietasse que ele pudesse não saber.
- Não julgo que alguma vez pudesse ser. - Ela sorriu. - Ainda bem que vós me quereis e eu vos quero, pois não acho que algum dia conseguisse ser uma Margot.
Ele percorreu com os dedos a linha curva da franja do robe dela.
- É bom ouvir-vos dizê-lo.
- Que eu nunca conseguiria ser cortesã ou amante?
- Que me quereis.
- Duvidáveis? Mas eu disse-vos que vos amava.
- Para as mulheres, pode haver amor sem desejo.
- Certamente conseguis perceber. Quando estamos juntos...
- Consigo fazer-vos sentir prazer, mas isso também é uma coisa à parte.
- Eu fui ter convosco naquela primeira noite.
- Tínheis outro motivo.
Uma centelha de discernimento faiscou nos seus olhos. - Hoje não tenho mais nenhum. - Saiu ligeira da cama, puxando para si as vestes desalinhadas.
Pôs-se à frente dele, a escassos centímetros mas sem lhe tocar. O seu cabelo despenteara-se todo, em caracóis e cachos à volta do
rosto, caindo-lhe sobre o ombro. Ele ficou satisfeito por ela não se mexer para o soltar completamente, porque tinha um aspeto adorável assim como estava.
Sedutora, deixou que o robe lhe deslizasse pelas costas. - Se regressei, é justo que saibais de todas as razões, Daniel. Queríeis que eu soubesse que não me quereis
só pelo prazer. Preciso que saibais que o prazer é, decididamente, uma das razoes pelas quais aqui estou.
O robe caiu-lhe aos pés, como uma espuma da qual o seu corpo esguio se erguesse. Estava tão encantadora que todo o ser dele ansiava por ela. Queria agarrá-la.
Ela reparou. - Não. Ainda não. Não até vós compreenderdes como o meu amor e o meu desejo estão interligados, e não são coisas separadas para esta mulher.
com elegância, começou a libertar-se da camisa de noite. Revelou lentamente os ombros e depois a pele luminosa. A sua expressão prendia-o tanto quanto o seu corpo.
Parte vivida, parte tímida, cheia de amor, fixou os olhos nele e deixou que a sua expressão revelasse o quanto lhe agradava a sua atenção e as incríveis sensações
que fluíam entre eles.
Deixou-o em brasa. Desta vez ele procurou-a. Ela deu um passo atrás e abanou a cabeça. Um pé delicado ergueu-se e aninhou-se entre as coxas dele. com um ar malandro
ela aconchegou-o mais até os seus dedos alcançaram a base da ereção dele.
com as mãos, começou a retirar as meias. Ele sentia a cabeça latejar. O pé dela enlouquecia-o mais. Conteve-se e fez deslizar as mãos pela perna dela. - Eu faço
isso.
Acariciou-a até ao fim da meia, depois mais acima na coxa. A respiração dela acelerou ao sentir pele contra pele e os dedos dele roçaram a humidade lá em cima. Ela
afastou a perna o suficiente para lhe permitir tocar aquele ponto que mal se via, mas que estava ali disponível para ele.
Ele aproximou-se o suficiente para ela o desejar, para a excitar mais. O olhar dela, fixo no dele, mostrava que a sedução se tinha
tornado mútua. Ela aguardava o toque seguinte de lábios apartados e olhos húmidos, pronta a sucumbir à paixão.
Se o fizesse, estariam enlaçados na cama em meros segundos. Ele apercebeu-se de que não o queria ainda.
Desceu as mãos e começou a tirar-lhe a meia.
A sensação e a demora fizeram com que os dedos dela se enroscassem tão intimamente que ele teve de cerrar os dentes para se controlar.
Ela deve ter visto a reação dele. Quando tirou aquela perna e encavalitou a outra, os dedos enroscaram-se ainda mais.
Ele viu tudo turvo. - Parai já com isso. - Ela sorriu, endiabrada, permitindo que o pé executasse mais um movimento devastador.
Ele não se incomodou com a meia. Puxou Diane para si, impaciente por lhe tocar. Ela exigiu que fosse à sua maneira. Alçou-se com cuidado e sentou-se no seu colo,
virada para ele, com os joelhos a contornar-lhe as ancas e o rabo sobre os seus joelhos.
Ele beijou-a, para libertar alguma da ânsia devastadora. O que só o fez querer mais. Em vez de abrandar, o beijo acelerou as coisas. Ali com aquele corpo nu nos
braços, sentindo aquela pele macia e o suave odor almiscarado que se libertava de entre as suas coxas, ficou completamente atordoado. O abraço e o beijo dela foram
igualmente agressivos. Juntos, giravam numa pequena espiral de prazer, ansiando por mais.
Ela afastou-lhe o casaco dos ombros, e ele desfez-se dele. Enquanto beijava e se mexia ao ritmo da sua excitação, ela tirou-lhe o lenço e o colete. Juntos despiram-lhe
a camisa, mas ele não percebeu como. Sem nunca parar o beijo voluptuoso, inesgotável, revezando-se, até ele poder finalmente tê-la contra o peito, ter a sua pele
nua a aquecer e acariciar a sua.
Ele parou de a beijar e segurou-a contra si, sentindo o bater do coração dela, ouvindo a sua respiração. A par da necessidade violenta fluía a mais singular e deliciosa
sensação. Contentamento. Gratidão. Maravilhava-o e prostrava-o, e preenchia o pavoroso vazio que ele combatera no caminho até àquela casa.
O novo sentimento fascinava-o. Não era uma coisa separada do desejo que tinha dela. Nunca poderia ser. Nem se extinguiria depois do amor de hoje. Seria mais um fio
do cordão. O seu poder deixava entrever que seria o mais forte.
Ele afrouxou o abraço e voltou a sentá-la nos seus joelhos, o que a confundiu, fazendo-a franzir as sobrancelhas, algo magoada.
- Ainda não. - Ele percorreu-lhe os seios com as pontas dos dedos. Ela arquejou e agarrou-se aos ombros dele. Ele brincou com os mamilos até exclamações baixinhas
se escaparem dela. Adorava ouvir a sua paixão. Adorava os movimentos do seu corpo e o brilho sensual dos seus olhos. Adorava que o seu corpo, assim como o seu coração,
tivessem voltado para ele e o quisessem agora.
Entraram novamente no delírio. Ela estendeu as mãos e começou a debater-se com os botões das calças dele. com uma nova audácia, a sua mão colou-se a ele e agarrou-o,
e depois afagou até onde o pé tinha estado.
Observou as reações dele, tal como ele observara as dela.
- Agora acreditais que vos quero?
- Sim.
Os dedos dela deslizavam para cima e para baixo, levando-o à loucura. - Até quando estamos sentados a comer, quero-vos. Quando não estais e penso em vós, quero-vos.
Quando estais perto, basta olhardes para mim para o meu coração e o meu corpo reagirem. Ainda antes de saber o que lhe chamar, sentia-o. - Iniciou com o dedo um
círculo devastador na ponta do falo. - Fico contente que saibais. Não quero que penseis em mim como os Ingleses pensam nas mulheres. Não vos quero a acreditar que
é só dever. Não quero que vades à procura de uma amante para ter prazer.
- Nunca o faria.
-Tenciono fazer por isso. - Ela tomou o rosto dele entre as mãos e beijou-o. - Estive a estudar as várias formas de garantir que nunca o queirais.
Escorregou do colo dele. Ele não compreendeu o porquê até ela se pôr de joelhos. Na sua cabeça só havia lugar para o que viria
a seguir, anulando tudo o resto, até mesmo a surpresa que a expressão confiante dela lhe causou.
O prazer quase o deixou fora de si. Poderia tê-lo feito, se as insuportáveis sensações não tivessem criado uma nova fome e uma nova possibilidade de concretização.
Mesmo perdido num delírio tormentoso, batia dentro dele uma compulsão primitiva.
Pegou nela, levantando-a, beijando-a com ânsia de mais. Erguendo-se, pousou-a na cama e tirou o resto da roupa.
Tudo nela revelava que a paixão a enlouquecera tanto quanto a ele. As pernas afastadas e expressão expectante, os peitos cheios e os mamilos duros, até o rubor da
pele, e a sua respiração, leve e rápida, eram de uma mulher em completo abandono. O olhar dela absorveu-o, lenta e completamente, com uma franqueza que mostrou que
não haveria quaisquer noções de inocência a inibi-los durante mais tempo.
Ele afastou-lhe mais as pernas e ajoelhou-se entre elas. Fez-lhe as carícias pelas quais ela ansiava desde o início. As ancas dela ergueram-se suavemente, incitando
o seu toque. Um suave gemido de paixão transparecia na sua respiração frenética. Ele tocou-lhe de formas que lhe agudizaram os gritos e súplicas.
Ele ergueu-lhe as ancas. Não pediu permissão. Os beijos especiais dela já o tinham feito.
O odor e o sabor dela extinguiram tudo exceto a noção da reação dela. Ele ouviu e sentiu o seu choque, depois a sua aceitação, e por fim os seus gemidos. Usou a
língua para brincar com a sua excitação até a surpresa desaparecer, e depois mais deliberadamente, enquanto ambos sucumbiam ao prazer selvagem.
O clímax dela chegou violentamente, em estremecimentos que os arrebataram aos dois, num grito que nenhuma parede poderia conter. Estilhaçou o seu controlo e fê-lo
desejar intensamente outros beijos e outros abandonos.
Ela agarrou-se a ele quando ele se colocou em cima dela. Apossou-se loucamente dele, e os seus gritos ainda comandavam cada
respiração, sem que o clímax pusesse cobro à ânsia. - Sim, sim. Puxava-o para o seu corpo expectante. - Sim, saciai-me, Daniel. Saciai-me.
Ela não falava apenas do seu corpo. Ele sabia porque ela também o saciava. Já não se limitava a obscurecer a revolta do passado como antes, mas substituía-a. O seu
amor derramava-se dentro dele com cada beijo desesperado e carícia possessiva e grito ofegante, prometendo que não restaria nenhum vazio a preencher.
Na ventura de se possuírem e completarem mutuamente, ele acreditou finalmente ser capaz de cumprir a promessa impetuosa que lhe fizera.

CAPÍTULO 25
Esperai aqui. Eu chamo-vos depois para trazerdes a arca. Diane deu a instrução enquanto o lacaio a ajudava a sair da carruagem, à frente do edifício de Margot.
Estava uma tarde gloriosa, fresca e luminosa. Já que Daniel tinha ido a Hampstead, Diane aproveitara a oportunidade para reaver os seus pertences. Margot enviara-lhe
uma carta a pedir-lhe que a visitasse e explicasse o que tinha acontecido.
Não havia muito a contar. Ainda assim, Margot recebera-a quando ela fugira, e merecia ter alguma explicação.
Diane pensava no que explicar quando a porta da frente se abriu.
A casa estava muito silenciosa. O silêncio era tão completo que, quando seguia a criada até à sala de estar, um passo que ouviu atrás da porta lhe pareceu extremamente
alto.
Margot estava sentada muito direita numa cadeira. Os seus olhos refletiam preocupação.
Diane foi logo ter com ela. - Não pareceis bem. O que aconteceu desde que me escrevestes, que causasse isto?
Margot pegou na mão dela, apertando-a com força.
Diane abraçou-a. - É Mister Johnson? Acabou tudo convosco?
Margot abanou a cabeça. - Perdoa-me. Receio ter feito uma coisa que pode provocar mais problemas entre vós e o vosso marido -
sussurrou. - Ele chegou cedo e insistiu que escrevesse e vos convidasse a vir cá. Falou em amor, que o tornava imprudente. Disse que St. John vos tinha forçado a
regressar, e que íeis querer vê-lo. Os seus olhos pediam perdão. - Se cometi um erro, lamento muito.
Diane olhou para baixo, sem compreender. Quando o fez, a atmosfera da sala mudou subtilmente.
De repente, sentiu a presença de uma pessoa e deu meia-volta.
Não estavam sozinhas. Alguém mais estava agora na sala, perto da porta. Instintivamente, Diane deu um passo atrás.
- Estais adorável, como sempre, minha querida - disse Andrew Tyndale. - Que atencioso da vossa parte responder à chamada da vossa amiga tão prontamente. - Dirigiu-se
a elas. - E que conveniente. Tornará tudo mais eficiente para todos.
- Não estais nos vossos dias, St. John. - Continuai assim a fazer asneiras e vou acabar por fazer sangue sem querer.
Daniel deu um passo atrás e baixou o sabre. Não estava nos seus dias e a sua prática tornara-se desajeitada e perigosa. Não estava ali com o coração. Nem com a alma
ou a cabeça.
Passara anos a aperfeiçoar aquela aptidão, mas a razão para o fazer tinha desaparecido. Podia ser um desporto para os membros mais jovens da sociedade, mas nunca
o fora para ele. Ao que parecia, ele também não conseguia forçá-lo.
Indicou a Vergil que voltasse a começar e tentou concentrar-se. Ao lado deles treinavam Adrian e Hampton, e ao pé da parede Louis dava ao jovem Dante a sua primeira
lição.
Daniel conseguiu prestar alguma atenção ao sabre de Vergil, mas o resto concentrava-se no dilema que enfrentava. Prometera a Diane que desistiria do plano que tinha
para Tyndale, só que era mais fácil falar do que fazer. O plano adquirira vida própria e progredia a bom ritmo naquele barracão de Southwark, sem esforço da sua
parte. Subtrair-se ao esquema parecia-lhe praticamente
impossível, a não ser que se encontrasse com Tyndale e confessasse todo o estratagema.
O que teria seguramente como desfecho o duelo que Diane queria evitar. Parecia que a única solução era deixar a demonstração seguir o seu curso e falhar. Altura
em que, supunha, teria de propor a Tyndale que retirasse os custos do equipamento e dos químicos à dívida de jogo.
Pareceu-lhe uma recompensa adequada, e que Diane julgaria justa. Fazer semelhante coisa ia dar cabo dele, mas era para isso que servia a penitência.
Claro, Diane podia sugerir que perdoasse a dívida em si. Seria mesmo dela fazer isso. Daniel debatia se aquilo seria mesmo necessário.
Vergil afastou-se abruptamente, voltando-se em seguida, carrancudo. - De que rides? Não é de mim, espero. Não sou nenhum perito nisto, mas vós, hoje, também não
passais por grande mestre.
- Não me rio de vós, mas de mim próprio.
- St. John, nunca vos vi rir de vós próprio nos três anos em que vos conheço, por isso duvido que tenhais começado hoje.
- Talvez eu já não seja o homem que conhecestes. Talvez hoje comece uma nova vida. - A ideia soou a Daniel como uma ótima piada, e voltou a rir.
O que distraiu Adrian e Hampton. Pararam e olharam Daniel com curiosidade.
Vergil gesticulou e revirou os olhos. - Está bêbado, acho.
Daniel aproximou-se dele e deu-lhe uma palmada no ombro.
- Não estou bêbado. Apenas tento determinar como me libertar de uma armadilha diabólica.
- E achais isso divertido? Estais bêbado.
- Dado que a armadilha é de meu próprio lavor, é extremamente divertido.
Vergil começou a responder. Algo o distraiu. O seu olhar disparou para a entrada do salão e ele grunhiu, exasperado.
- Raios, outra vez aqui. Uma vez é erro, duas é descaramento.
Se o marido dela não fosse tamanho canalha, insistiria que ela voltasse para ele para que ele a mantivesse longe de confusões, porque a tarefa é demasiado grande
para mim. - Sacudindo a mão de Daniel, caminhou para a entrada, onde a condessa de Glasbury aguardava.
- Fomos novamente agraciados com uma visita - disse Adrian.
- Quem é aquela loura deslumbrante que está com ela desta vez?
Daniel não reparara na loura que estava por trás da condessa, e a quem mal se distinguia a cabeça. Agora ficara à vista.
- É uma antiga colega de escola de Diane. - Entregou o sabre a Adrian no momento exato em que Vergil se voltou e chamou por Daniel. - Um de vós que me chegue a camisa,
por favor.
Daniel sentiu um mau presságio no coração ao aproximar-se do vão da porta. Foi a expressão das mulheres que o provocou, e a mera presença de Margot piorava-o.
Tanto quanto sabia, Diane tencionara fazer uma visita a Margot durante o dia.
Quando chegou à porta, constatara já que aquela intrusão era um prenúncio de perigo. Aquilo que restava do homem que tinha sido durante anos começou a sobrepor-se
à euforia do amor.
Não esperou por uma explicação. - Duclairc, levai-as ao escritório de Louis. Eu vou logo que esteja apresentável.
Adrian apareceu com a sua camisa e casacos logo que as mulheres desapareceram. Daniel vestiu-os e seguiu.
- Peço desculpa por arrastar a vossa irmã para este assunto dizia Margot a Vergil. - Soube que Msieur St. John vinha para este sítio, mas não sabia como o encontrar.
O mordomo disse que ele vinha ter convosco aqui, e eu fui ter com Lady Glasbury, na esperança de que ela soubesse o caminho.
- Não vos desculpeis - disse a condessa. - Claro que tínheis de vir. Estou grata por o terdes feito, se resolver isto mais rapidamente. E aqui está St. John. Dai-lhe
a carta.
Daniel estendeu a mão, na qual Margot colocou uma carta selada. Reconheceu a letra de Diane.
- Onde fostes buscar isto?
- A ela. Estava à minha espera depois de ele a ter levado.
- Andrew Tyndale é a pessoa a quem ela se refere - acrescentou a condessa, alterada. - Daniel, parece que ele pode tê-la raptado.
Daniel ficou com o coração nas mãos, que depois se encheu de raiva, na maior parte dirigida a si próprio. Agora não havia como escapar à armadilha diabólica.
- Raios partam o homem, é um descaramento - disse Vergil. Sim, era um descaramento. Mas, conhecendo Tyndale, bem
pensado. - Sabeis o que diz? - perguntou a Margot.
Ela abanou a cabeça. - Ele fez-me sair da sala quando ela chegou. A carruagem dela estava mesmo à porta, e se eu soubesse que ele ia levá-la teria... mas pensei
que ele fosse embora sozinho, claro. Saíram pelo jardim e desapareceram antes de eu conseguir alertar o vosso cocheiro.
- Ele disse que eles eram amantes e que Diane quereria vê-lo disse, zangada, a condessa. - Fez com que parecesse que ela fugira com ele.
Margot estava quase a chorar. - Primeiro acreditei nele, e escrevi a carta a pedir a Diane que viesse. Mas, pensando melhor, achei suspeito. Ela não o tinha procurado
quando ficou comigo. Não tinha escrito a dizer que vós a tínheis obrigado a regressar... fui muito estúpida, e quando descobri que ambos se tinham ido embora percebi
que algo estava mal.
- Agradeço-vos por me terdes procurado com tanta rapidez, e agradeço-vos a vós, condessa, por lhe terdes mostrado o caminho. Ambas foram verdadeiras amigas da minha
mulher e nunca esquecerei isso.
Ele levou a carta até à janela e quebrou o selo com o polegar. Atrás dele, ouviu movimentos que revelavam que os outros saíam da divisão.
Tyndale ditara a carta, era óbvio. Diane declarava que se ia embora de vez e que ficaria com amigos no Kent. Nada na carta podia ser utilizado como prova da vileza
do que se passava, tal como
a convicção de Margot de que Diane fora raptada não seria credível. Se se chegasse ao ponto de ser a palavra de uma cortesã contra a do irmão de um conde, não havia
dúvida sobre qual seria a vencedora.
A carta deixava o marido em questão sem outra alternativa que não ir atrás dos amantes.
Diane estava a ser usada como isco. Outra vez. Só que desta vez era um homem diferente. Um homem que não se importaria se ela fosse magoada.
Ele fechou os olhos e disse a primeira oração de muitos anos. Suplicou silenciosamente que Tyndale, uma vez na posse do homem que queria, permitisse a Diane ir embora.
Um som sobressaltou-o. Olhou por cima do ombro. Louis estava a dez passos de distância. Tinha um sabre numa mão e a caixa de pistolas de duelo na outra.
- O que pensais que sabe?
Daniel encolheu os ombros. - Provavelmente só do aço. Seria suficiente.
- Trazei alguns dos vossos jovens amigos.
- O que lhes diria? Que defraudei um cientista proeminente e o irmão de um par? Que um respeitável membro do Parlamento raptou a minha mulher? Ninguém além dela
e de mim sabe que ela voltou por vontade própria, e que não amava Tyndale antes do nosso casamento.
- São vossos amigos. Acreditarão em vós.
- São conhecidos, e quando se trata de coisas deste tipo não há círculos democráticos. O sangue contará mais do que uma amizade sem proximidade. É assim que funciona,
Louis. Ambos sabemos isso. - Dobrou a carta. Nunca esperei que Gustave admitisse que a descoberta não era dele. Eu dependia do orgulho dele para manter em segredo
a sua ligação a mim.
- O que fareis quando os encontrardes?
- Dar a Tyndale o que quer que seja que ele quiser, desde que compre a segurança de Diane.
- É óbvio que o que ele quer sois vós.
- Então ter-me-á.
- Se não levardes os outros, eu acompanho-vos.
- Se eu aparecer com companhia, vai ser-nos dito que nem Tyndale nem Diane lá estão. Receio que se não alinhar no jogo dele ele lhe faça mal. - Também receava que,
mesmo que satisfizesse Tyndale, Diane estivesse em perigo. Ele não quereria dizer ao mundo que a raptara, ainda que pensasse que a sua reputação conseguiria sobreviver
à acusação.
Louis pousou, com cerimónia, o sabre e a caixa na mesa.
- Duvido que vá ser assim tão honrado - comentou Daniel.
- Levai-os. É o mais seguro com ele. Tyndale não vai querer suspeitas e acusações de assassínio. E um homem daqueles nunca acredita que pode perder.
- Então serão pistolas. Ele não tem vantagem com sabres. Daniel sorriu amargamente ao erguer a caixa de armas de duelo.
- Tinha prometido a Diane que renunciaria.
- Ela não quererá que renuncieis ao ponto de morrerdes.
- Não, não me parece.
- Quando o virdes, lembrai-vos, cabeça fria. Coração calmo. É essencial ter sang-froid.
- Foi o que sempre ensinastes, velho amigo.
Daniel enfiou a caixa debaixo do braço. - Há muitos anos, pedi-vos que deixásseis isto ao meu cuidado, mas agora tenho um favor a pedir-vos.
- Certainement.
- Se eu falhar, e lhe acontecer alguma coisa a ela, matai-o.
- Daccord. Claro. Será um privilégio, e um prazer.
- É um encanto. Tão nova. Parece uma pardalita.
Diane não se sentou nem abriu os olhos. Quando acordou, decidira fingir que continuava a dormir. Não queria que Andrew Tyndale visse o seu medo.
Não tencionara adormecer, mas dormitara na mesma. Fora delicioso escapar assim para os seus sonhos. Desejou poder ter lá ficado até Daniel chegar.
A casa rústica cheirava a humidade. Até o pequeno leito onde dormia tinha um odor a mofo. A humilde habitação há meses que não era arejada.
Supôs que estivessem numa das propriedades de Tyndale. Ele não a levara para a casa grande, onde haveria criados, mas escondera-a ali.
O homem que falou não era Tyndale. Era o outro. O homenzinho cómico, o francês chamado Gustave, que ficara à espera na carruagem, ao pé do jardim de Margot. Depreendeu
que Gustave não falasse inglês, porque Tyndale só usara francês com ele, e às vezes inglês com ela quando, imaginava, não queria que o francês compreendesse.
As ameaças tinham sido em inglês.
- Tão inocente. Tão...
- Bolas, basta! Pareceis um velho babado. Ela é mulher dele e, como todas as mulheres, é uma pega.
- É uma barbaridade falardes assim dela. Não gosto disto. Uma mulher... não é honrado - criticou Gustave. A voz dele estava muito próxima. Diane conseguiu senti-lo
inclinar-se e olhar para ela.
- Já vos disse, quando ele chegar deixamo-la ir.
- E quando será?
- Já vos disse. Esta noite.
- Pode não ser antes de amanhã ou do dia seguinte - disse uma terceira voz. - Pode precisar de algum tempo para descobrir onde fica a vossa propriedade do Kent.
Diane por pouco não conseguiu controlar um sobressalto. Não tinha reparado que havia outra pessoa no quarto. Aquele homem devia ter chegado enquanto ela dormitava.
Também falava francês, mas, tal como Tyndale, não era nativo.
- Espero bem que não me faça esperar - resmungou Tyndale.
- Pode não chegar a vir - inquietou-se Gustave.
- Virá. - Diane sentiu movimento do outro lado do quarto. -
vou para a casa esperar por ele, agora que estais aqui. - Tyndale mudou para o inglês. - Se aquele francês estólido decidir armar-se em herói pelo seu novo amor,
tratai disso. Se tentar interferir, matai-o. Uma mão acariciou-lhe o cabelo. A mão de Gustave? Não, flutuou até ela um aroma diferente, de outro homem. Tyndale.
Quase se encolheu quando compreendeu que ele lhe tocara.
- Sim, um encanto - murmurou. - Mas danificada para sempre, e já não me serve de nada, a não ser para trazer o marido até cá.
Um arrepio deixou-a gelada. Já não me serve de nada. Jeanette tinha-lhe contado que Tyndale lhe dissera as mesmas palavras quando a encontrara.
Ouviu Tyndale a sair da casa.
- Não gosto disto - alvoroçou-se outra vez Gustave. - Está a dormir há tempo de mais. Ele deu-lhe uma dose demasiado grande, tenho a certeza. Só um pouquinho, disse
ele, para ela dormir e não nos importunar, mas pareceu-me que foi parar ao chá um bom bocado.
- Não é um erro que ele cometesse.
- Não é nenhum Deus. Comete erros.
- Não deste tipo. Além disso, ela já não está a dormir. Já está acordada há algum tempo. Não estais, madamel
Foi um choque dirigirem-se diretamente a ela. Perguntou-se se tentaria continuar com a artimanha. Sem Tyndale, já não tinha assim tanto medo.
Além disso, estava curiosa relativamente ao terceiro homem.
Levantou-se a custo. Sentia a cabeça estranha, como se alguém a tivesse enchido de algodão. Esfregou os olhos e virou-se para o chão de tábuas de madeira, e as duas
janelas de portadas abertas. A luz indicava que era o fim da tarde.
Gustave estava sentado numa cadeira perto do seu leito tosco. Sorriu de alívio.
- Estais a ver, ela está bem - disse o outro homem. Foi sentar-se numa mesa perto das janelas, uma silhueta iluminada pelo sol poente.
- Quem sois? - inquiriu ela.
- Só outro homem que deseja avidamente um acerto de contas com o vosso marido.
Ela olhou a barba dele, o cabelo escuro e palidez doentia. Esforçou-se por distinguir os pormenores do seu rosto.
A inspeção dela divertiu-o. Virou-se.
Subitamente, o choque: ela constatou que olhava para os seus próprios olhos.
Ele pressentiu que algo não estava bem. O sorriso desapareceu e inclinou a cabeça, curioso.
Ela só conseguiu ficar de boca aberta a olhar para ele.
- Vai desmaiar - gritou Gustave.
Ela levantou uma mão. - Não vou. Não vos inquieteis. - Recuperou a compostura. - Quem sois? - voltou a perguntar.
- Não vos diz respeito - disse o homem.
- Eu diria que sim. Ajudastes a raptar-me. Estais de emboscada ao meu marido.
- Dizei-me, madame. Quem é o vosso marido? Se satisfizerdes a minha curiosidade, talvez eu satisfaça a vossa.
- Daniel St. John.
- Conheci-o com outro nome.
- Equivocais-vos.
- Não sobre este homem. Julgo que vós estais equivocada, o que significa que ele não pode ser vosso primo.
Ela fixou os olhos dele. Era como se as imagens indistintas do seu espelho, o rosto fantasma que emergia por vezes, tivesse ganhado vida. - Não, não é meu primo
- disse, em inglês, para Gustave não compreender. - Quando era pequena, ele encontrou-me, abandonada, numa propriedade que tinha adquirido. Pôs-me na escola, e garantiu-me
cuidados e educação, mesmo sem eu ser responsabilidade dele. Todos os anos viajou para me visitar, mesmo quando isso significava percorrer grandes distâncias, e
arriscar a própria segurança
para entrar em França durante a guerra. Seja qual for o nome por que o conheceis, é isto que ele é para mim. E o homem que me deu uma vida depois de outro homem
se ter desembaraçado de mim. O sorriso dele desapareceu antes de ela terminar.
- O que disse ela? - perguntou Gustave.
- Nada que vos interesse. Ide lá fora, Gustave. Ide apanhar ar.
- O quê? Porquê? Não me parece que devais ficar sozinho...
- Saí. Bolas, homem, por quem me tomais? Ide. Já. Alarmado com o acesso de irritação, Gustave levantou-se como
uma marioneta a quem se puxassem os fios. - Ficarei por perto garantiu a Diane. - Só tendes de chamar se necessitardes da minha assistência.
com a saída dele, um silêncio pesado encheu a sala. Diane observava o homem sentado à mesa. Deixou as suas memórias, as poucas que existiam, agarrarem-se aos olhos
e aos maneirismos dele.
- Ele falou-vos de mim - disse, na defensiva. - É por isso que sabeis... e agora usais isso para confundir as coisas.
- Ele falou-me muito pouco acerca de vós. Estou a dizer-vos quem sou, e quem ele é para mim.
O olhar dele disparou em todas as direções, como se a sua mente procurasse forma de escapar à conversa.
- Onde ficava a propriedade onde ele vos encontrou?
Ela quase teve pena dele. - Se fordes Jonathan Makepeace, sabeis onde ficava. Hampstead.
Os olhos dele fecharam-se. - Raios.
Parecia irritado e ressentido. Feriu-a. Em rapariga, sonhara com o encontro dos dois. Imaginara que corria para ele e lhe saltava para os braços. Talvez fosse assim
que o cumprimentava, em criança, quando ele visitava Hampstead. Ouvira sempre riso nas suas fantasias de reencontro, não um praguejar perplexo.
- Ele deixou que eu pensasse que estáveis morto - disse ela, querendo magoá-lo também. - Percebo agora que foi caridoso da parte dele. Deixou que acreditasse que
a partida de cartas tinha
acontecido por acaso. Nunca me disse que estáveis envolvido com Tyndale, ou que vos arruinou deliberadamente.
- Então agora sabeis que tipo de homem ele é.
- Sei, sim. É o tipo de homem que omitiu a verdade sobre vós
para me poupar os poucos sonhos de infância. Nunca me fez saber que o meu pai tinha tomado parte no esquema de Tyndale para roubar àquelas pessoas as suas vidas
e propriedade. Era o vosso navio que supostamente iria buscar aquelas pobres almas à costa, não era? Ele não disse nada. Não olhou para ela.
- Chegastes ao menos a fazer-vos ao mar para tentar salvá-los?
- O ouro e as jóias estavam à mão... Tyndale... se eles não fossem resgatados, ficaríamos com tudo, muito mais do que o pagamento que receberíamos. Estava decidido
desde cedo. Todos sabíamos como iria ser. Eu tinha dívidas...
Encolheu os ombros, como se a decisão fosse coisa pouca. Diane via-lhe os olhos, porém. Conseguiu ver a culpa. O próprio encolher de ombros pareceu-lhe cansado e
pesado, de resignação mais do que indiferença.
- Eu não poderia ter mudado o rumo das coisas - declarou.
- Tyndale tinha tudo combinado. Nem sequer me dava o destino final, não fosse eu decidir ir buscá-los de qualquer forma.
Ela duvidou que ele tivesse discutido vivamente com Tyndale, se é que discutira de todo. O seu tom de voz indicava que não.
- Admira que o meu marido não vos tenha matado. -Talvez fosse melhor se o tivesse feito. Tirou-me tudo, até vós.
- Vós deixastes-me. E a mim parece-me que levou o que aquela traição vos permitiu construir.
Os olhos dele iluminaram-se com um lampejo de raiva. No entanto, a energia morreu quase imediatamente. Ficaram sentados em silêncio, estranhos por completo, exceto
no principal. Diane sentia o laço familiar a puxar por ela. Impediu que o detestasse ou que o temesse. Fê-la desejar ardentemente algum reconhecimento.
Partiu-lhe o coração.
De repente, o rosto de Gustave espreitou pela janela. Jonathan rosnou um impropério e o rosto desapareceu.
- Quem é ele? - perguntou ela.
- Um cientista. Uma mente brilhante, a julgar pelo que ele diz. Um tolo, se quereis saber a minha opinião.
- O que ficou a ganhar com a traição?
- Uma biblioteca.
- Uma biblioteca? Deixou que morressem pessoas por causa de alguns livros?
- Aqueles livros incluíam um tratado com uma prova matemática. Ele não lamentou que o homem a quem guardava a biblioteca e a quem devia enviar o tratado tivesse
morrido. A prova ficou a ser apenas de Gustave e garantiu-lhe a reputação. Ele esquadrinhou cada página daquela biblioteca à procura de algo mais que o dono tivesse
escrito, e conquistou a fama dele com o brilhantismo de outro homem. Não, Gustave não teve pena de que o navio não tivesse chegado, mesmo tendo sido ele a apresentar
Tyndale àquelas pessoas.
Começou a tamborilar no tampo da mesa, transferindo a sua atenção para os dedos. Os pecados de Gustave tinham deixado de lhe interessar.
- Ele pôs-vos numa escola, dissestes. Trataram bem de vós, então.
- Sim.
Tamborilou um pouco mais. - A parteira quis dar-vos a um casal de agricultores quando nascestes. Mas eu amara a vossa mãe e não podia dar-vos. A longo prazo, teria
sido melhor para vós. Não vos via muito, mas parecíeis contente o suficiente quando vos via, mas... Mas depois daquele jogo... não podia levar-vos comigo. Não sabia
sequer para onde ia.
- Compreendo. - E compreendia, com a cabeça. O seu coração era menos racional. O facto de ele a ter abandonado ainda magoava, mas esta nova prova, de que ele gostara
dela o suficiente para ficar com ela quando nascera, atenuava-o com algo que se assemelhava a perdão.
- Onde era a escola?
- Rouen.
Ele sorriu, e abanou a cabeça. - Pensava muitas vezes em vós, e perguntava-me... e nos últimos dois anos, estáveis a não mais do que um dia de viagem. - As suas
pálpebras semicerraram-se, o suficiente para a deixar de sobreaviso. - Sabeis quem ele é?
- Daniel St. John.
- Não havia St. Johns nem Saint-Jeans entre as pessoas que Tyndale prometeu salvar. Nem St. Johns nem St. Clairs, o outro nome pelo qual era conhecido.
- bom, é o único nome que sei.
Voltou a olhar para os dedos irrequietos. - Não deixeis que Tyndale e Gustave saibam que sois minha filha. Não sei como reagirão. Especialmente Tyndale.
- Julgais que poderia ficar em perigo?
- Já estais em perigo. Mas se ele não souber talvez eu possa ajudar-vos. - Outro encolher de ombros incerto, como se não tivesse decidido bem se poderia, ou se o
faria.
Era uma oferta modesta, nem sequer uma promessa, mas ela sentiu o coração apertado. Levantou-se e foi até à mesa e ficou ao lado do estranho que era seu pai. Olhou
para os seus próprios olhos.
Os anos anularam-se durante aquele olhar longo e intenso. Acusações e ressentimentos e negações e perdões, tudo fluía silenciosamente na estranha cumplicidade, visceral,
que partilhavam. Os seu olhos humedeceram-se, e parecia que os dele também.
Colocou a mão em cima da dele. Pareceu-lhe muito natural tocar naquele homem pálido de aspeto doente, porque os olhos não haviam mudado e ela conhecia-os. Formou-se
um pequeno sorriso na boca dele, e ela também o conhecia.
A mão dele voltou-se para segurar a dela.
- Falais-me da minha mãe? - pediu. - E da minha infância, e de todas as coisas que eu esqueci?

CAPÍTULO 26
Daniel não estava acostumado a negociar a partir de uma posição de fraqueza. Seguiu o criado até à biblioteca da propriedade do Kent, demasiado ciente de estar à
mercê de Tyndale.
Tyndale parecia tão inexpressivo e inofensivo como sempre. Só quando o criado saiu é que o brilho malévolo lhe entrou nos olhos. Indicou a caixa que Daniel transportava.
- Pistolas?
- Contei que as escolhesses como armas.
- Viestes até aqui para um duelo?
- Claro. Raptastes a minha mulher.
- Ela veio comigo de boa vontade.
- Não, não veio. De qualquer forma, vim pedir contas.
- Conceder-vos-las-ei, mas apenas se me derdes primeiro o que exijo. - Examinou Daniel por detrás de pálpebras semicerradas.
- Deveis julgar que sois um homem muito inteligente. Sois certamente muito paciente, ditando a nossa ruína um a um durante estes anos. Ah, claro, os outros perceberam
há quanto tempo estais nisto e o vosso papel nas suas desgraças. Agora engendrais este esquema elaborado para me apanhar a mim e a Gustave.
Então não era só pelo aço. A revelação aumentava o perigo, e o que estava em jogo.
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- Os meus planos para Gustave eram muito simples. Nunca pensei que ele viesse para Inglaterra e vos envolvesse. Não procurara enriquecer-se com dinheiro antes.
- Julgastes que ele deixaria passar ao lado uma oportunidade destas e se contentaria com a pouca fama que advém de uma descoberta científica?
- Uma fama que não seria assim tão pouca no mundo dele. O desprezo também não o teria sido, quando todos vissem o idiota que fora.
- Verdade. Teria destruído tudo quanto era importante para ele. Muito eficaz - concedeu Tyndale. - E muito a propósito.
- Foi o que pensei. Quanto à parceria dele convosco, e depois a proposta que me fizestes, já foram um presente da Providência.
- Um presente do Inferno, diria, já que nos permitiu compreender o vosso esquema. - Tyndale sorriu maliciosamente. - Se não esperáveis que Gustave se interessasse
pelos lucros da sua descoberta, então tínheis outros planos para mim. Diane? Um duelo por causa de uma mulher? Que básico. Arriscado, também. Eu teria ganhado. Melhor
ter-me apanhado desprevenido e cortar-me a garganta.
- Considerei fazê-lo.
- Estou certo que sim, e ainda o considerais. Não é que me incomode.
Tyndale foi até à secretária e tirou uma pistola de uma das gavetas.
- Não tendes intenção de me matar aqui, já, nesta biblioteca disse Daniel. - Não sois assim tão estúpido.
- Se for necessário, é o que farei. Estão cá poucos criados. Mandei a maior parte embora, exceto um bom número de homens que me deve a vida. - Empurrou alguns papéis
até ao fundo da secretária. - Ides assiná-los agora. Se o fizerdes, tereis o vosso duelo, e tereis a vossa oportunidade de me matar antes de eu vos matar a vós.
Se não o fizerdes, mato-vos como a um cão.
Daniel examinou os papéis. Estes passavam para o nome de Tyndale tudo o que Daniel tinha, para pagar dívidas não especificadas.
- Só se fosse um idiota.
- Sereis um homem morto se não o fizerdes.
- Penso que estais a contar que o seja, em qualquer dos casos, já que a minha assinatura não valerá nada se eu não estiver, obtida como foi com uma pistola apontada
à cabeça. Julgo que prefiro morrer rico, obrigado.
- Ela também morrerá se não assinardes.
-Tanto quanto sei, ela já está morta. -Apontou para a pistola. Mostrai-me que ela está ilesa, ou usai-a. Se esperáveis que eu assinasse os papéis para comprar a
hipótese de salvar a minha própria vida, enganastes-vos redondamente. Talvez a idade esteja a diminuir-vos as capacidades.
- As minhas capacidades estarão três vezes mais aguçadas aos sessenta do que as vossas alguma vez estiveram.
- Se assim é, Diane está aqui e está bem.
- Pois está. Direi para a trazerem. Poupai-me a reencontros sentimentais, está bem? - Tyndale foi até à porta e falou com um homem que aguardava lá fora.
Daniel envergara a armadura da frieza antes de se pôr a caminho da propriedade, mas agora notava que esta começava a rachar. O alívio por Diane estar salva e saber
que estava quase a vê-la inundou-o por um segundo, imediatamente seguido de raiva implacável por Tyndale se ter atrevido a ameaçar a sua segurança.
Virou-se para Tyndale não ver nenhuma das duas reações.
- É uma propriedade imponente - disse. - Não consegui deixar de a admirar quando entrei.
- Não é tão grande como a propriedade da minha família, evidentemente. Nunca seria possível, mas é superior em várias coisas.
- O vosso irmão, o conde, alguma vez a viu, para poder admirar esse facto?
- Uma vez, pouco depois de eu a comprar, há vinte e poucos anos. Há vinte anos. Fora comprada com aquelas jóias e aquele ouro.
Tyndale procurava atingi-lo ao dizer-lhe que jogavam a mão final de um jogo que começara há muito. Uma mão que Tyndale contava
ganhar, como ganhara todas as outras. Daniel engoliu a fúria e as memórias que quiseram levantar-se em resposta à referência.
- Sabeis com certeza que há outros que sabem que vim aqui.
- A carta da vossa mulher não dizia nada sobre esta propriedade. Podíeis estar em qualquer outro sítio do Kent.
- Estavam outros presentes quando abri a carta. Sabem que vim atrás de vós.
- Viestes aqui, mas não me encontrastes... será essa a história que os criados relatarão. Eu não estava aqui, nem Diane. Fostes embora, procurar noutro lado.
- Margot sabe que levastes Diane.
- A palavra de uma cortesã, sustentada, por sinal, por um mercador, não terá peso nenhum. E, já agora, passo o dia de hoje e os próximos dias com um velho amigo,
que jurará que estive permanentemente com ele. O conde de Glasbuiy. Deve-me o favor. Quanto à vossa mulher, ela fugiu de vós, vós forçaste-la a regressar, e ela
voltou a fugir. - Tyndale andava para um lado e para o outro enquanto falava, até se impor ao olhar de Daniel. - Julgastes que me esqueceria de atender a estas coisas?
Sinto-me insultado.
O que deixou Daniel satisfeito, pela simples razão que o pusera a aludir aos seus planos e intenções. Até ao momento, as revelações não tinham sido encorajadoras.
Diane podia estar bem por agora, mas se Tyndale planeava matar alguém, não podia deixá-la viver como testemunha.
Arrependeu-se de ter exigido vê-la. Podia ter precipitado uma atitude por parte de Tyndale. Se ela permanecesse na ignorância... Pelo canto do olho, reparou que
Tyndale o estudava. Não haveria atitudes precipitadas. Tyndale tinha tudo decidido desde o início.
- Gostaria de ver a minha curiosidade satisfeita relativamente a um ponto - prosseguiu Tyndale. - Quem raio sois vós?
- Sou filho do vosso passado e testemunha dos vossos pecados.
- Poupai-me a má poesia. Quem sois? Sabíeis o que estava na biblioteca, mas não me lembro de haver nenhuma criança naquela família.
Daniel sonhara com o dia em que faria saber àquele homem quem tinha sido a sua desgraça. Vivera para ver o momento em que o nariz de Tyndale seria forçado a enterrar-se
no inferno que as suas próprias ações haviam criado. Agora, subitamente, isso não importava.
Que se interrogasse. Que se preocupasse. Que ficasse para sempre pendente, na iminência de lhe aparecer outro filho do passado.
- O meu pai tivera a permissão de usar a biblioteca e comentara na minha presença as experiências do dono desta. Os cientistas gostam de discutir as suas teorias
com qualquer pessoa que os ouça. Dupré pode explicar-vos isso. Afinal, ele sabia que havia uma importante prova matemática a ser encontrada entre aqueles papéis
e anotações.
As pálpebras de Tyndale semicerraram-se. - Não podíeis ser mais do que um rapaz na altura. O que perceberíeis vós de provas e teorias da eletricidade?
- O que eu não sabia ou percebia outros explicaram. Nem todos os que aguardavam naquele pedaço de costa morreram. Nem todas as pessoas que traístes foram executadas.
Eu não sou o único que se lembra do que fizestes. Matai-me, mas não matareis o passado. A guerra protegeu-vos, mas isso também já acabou há muito. Outros virão atrás
de vós, agora que podem fazê-lo.
A expressão de Tyndale ficou mais pesada e endureceu. Daniel viu uma centelha de dúvida reunir-se ao brilho mais cruel dos seus olhos.
Ouviram agitação na entrada e a sua atenção voltou-se para lá. A porta abriu-se e Diane entrou. Antes de um braço a empurrar, Daniel conseguiu ver um cientista francês
muito preocupado e outro homem de barba, provavelmente um dos criados de Tyndale.
Diane aproximou-se de Daniel e deu-lhe um beijo leve. Os olhos dela fitaram os seus com uma expressão maravilhosa de calor e amor, mas também transmitiu uma mensagem
de advertência com aquele breve olhar.
Voltou-se para Tyndale. - Espero que não volteis a mandar-me para aquela casa grosseira e bafienta.
- Ficareis aqui. Já tratei dos criados, por isso já não preciso de vos esconder.
- Não compreendo porque chegastes sequer a fazê-lo. Se apenas desejáveis encontrar-vos com o meu marido, podíeis ter ido visitá-lo.
- Eu não vou visitar os da laia do vosso marido. Chamo-os. Dirigiu a Daniel um sorriso manhoso. - Nunca lhe dissestes, pois não?
- Dizer-me o quê?
- O vosso marido é um vigarista, minha querida. Como também um embusteiro. É um impostor, que adota nomes conforme lhe convém, e usa de sedução para entrar nos melhores
círculos para roubar as pessoas com os seus esquemas. Será que vos encontrou em algum beco e vos pagou para o ajudardes? Duvido que seja vosso primo, sabeis, por
isso tenho uma certa curiosidade sobre o parentesco que tendes com ele.
O chorrilho de insultos endureceu a expressão de Diane.
- Não deixeis que o agastamento por a ter perdido vos leve a melhor - interveio Daniel. - Voltai a insultá-la e não obtereis nada de mim.
- Obterei de vós tudo o que quiser - rosnou Tyndale. - Tudo o que tendes, incluindo ela se eu assim quiser. - Fechou os olhos e forçou-se a aplacar o surto de raiva.
- Claro que tínheis de a estragar, e agora já não tem interesse para mim. A não ser que recuseis fazer o que vos digo. Nesse caso serei forçado a dar-lhe um tiro
na cabeça.
Diane tentou não mostrar medo a Tyndale, mas Daniel viu que a ameaça a deixara impressionada.
Colocou o braço à volta dela, protetor. - Tendes um quarto preparado para ela, presumo. Deixai-a ir para lá, para que eu e vós possamos terminar a nossa conversa.
- Claro. O meu homem mostra-vos o caminho. As minhas desculpas por não haver uma mulher a assistir-vos, mas nunca se pode confiar nelas. Ah, e as fechaduras... é
importante que não vades embora já, por isso não vos incomodeis a tentar abrir a porta.
Diane virou costas a Tyndale. Ergueu os olhos para Daniel.
Nada podia ser dito com Tyndale a ver. O rosto de Diane não estava visível para o raptor, mas Daniel sabia que o seu estava, e não se atreveu a revelar a dor que
lhe consumia o coração. Tanto quanto sabia, seria a última vez que a veria. Devia estar a dizer-lhe coisas, a dizer palavras ainda não ditas e a pedir-lhe perdão
por a ter posto em perigo, mas isso foi-lhe negado. Só podia olhar para dentro dos seus olhos húmidos e expressivos e confiar que ela compreendia tudo aquilo.
Um sorriso pequenino, vacilante, formou-se, apesar das lágrimas. Ela pôs-se em bicos de pés para o beijar. Não disse mais do que um sussurro, mas foi suficiente
para lhe chegar aos ouvidos.
- Sei que me amais - foi o que disse.
Diane não se despiu. Não fazia tenção de passar a noite no quarto onde a tinham trancado.
Pôs-se à escuta dos sons que lhe revelariam o que estava a acontecer. Certamente que, se fosse disparada alguma pistola, o som chegaria até ela. com cada minuto
que decorria em silêncio, crescia a sua convicção de que Daniel encontraria forma de levar a melhor sobre Tyndale.
Da sua janela alta, viu uma lua fininha subir pelo céu. Acordada, acompanhou o correr lento da noite, pensando em Daniel. Toda a sua concentração estava em memórias
dele, como se os seus pensamentos bastassem para o proteger.
Quando metade da noite tinha decorrido e ela estava convencida de ser a única pessoa da casa que ainda se mantinha acordada, um som do lado de fora da porta informou-a
de que não era verdade.
Saltou do banco da janela e agarrou num pesado castiçal. Tyndale disse que ela agora não tinha serventia para ele, mas ela não confiava no homem. Podia magoá-la
ou violentá-la só para torturar Daniel.
Chaves tiniram na fechadura. A porta abriu-se. Entrou uma sombra.
Ela começou a erguer o castiçal, mas parou. A sua alma reconheceu o intruso.
- Vinde comigo - disse Jonathan baixinho.
- Para onde?
- O Gustave está à espera na casa pequena com um cavalo. Ele tira-vos daqui.
- Também tendes de soltar Daniel.
- Não posso fazê-lo. Nem quero. Porém, nem Gustave nem eu desejamos ver-vos ferida. Se ficardes, receio que o sejais.
- Talvez também vós o sejais. Libertai o meu marido. Vamos embora todos juntos. SeTyndale pensa matar alguém, nem vós nem Gustave estarão em segurança se souberdes
o que ele fez. Ninguém dará pela vossa falta. Ninguém sabe que ainda estais vivo.
- Vós sabeis. Se escapardes, Tyndale terá de refazer os planos dele, sejam eles quais forem. - Voltou a abrir a porta. - Quanto ao vosso marido, são mais do que
fechaduras a guardá-lo. Não consigo chegar-lhe, ainda que o quisesse. Vinde rápido, antes que Gustave perca a coragem, ou decida que entre arriscar-se à forca e
enfrentar a ira de Tyndale, prefere a primeira.
Ela foi ter com ele à porta, mas tocou-lhe no braço, detendo-o.
- Porque não me levais vós, em vez de Gustave? O que ficar en- ; frenta o maior perigo.
- Tem de ser Gustave. Sou melhor mentiroso do que ele e tenho melhores hipóteses quando Tyndale começar a fazer perguntas. - Cobriu a mão dela com a dele. - Quanto
a potenciais perigos.. permiti-me ser pai desta vez. Finalmente.
A pele dele era áspera e tinha uma humidade que revelava que aquela bravura não lhe fora fácil. Ele estava com medo. Ela imaginou-o durante aquelas últimas horas,
a pesá-la a ela e a tudo o resto, sabendo que não podia corresponder àquela ligação primitiva que tinham, mas sucumbindo, ainda assim, à urgência do dever paterno.
Ela abraçou-o com gratidão pela dura escolha que tinha feito.
- Não mintais demasiado bem - disse. - Deixemos Tyndale pensar que vou procurar ajuda. Deixá-lo saber que vou dizer a toda a gente o que aqui vi.
- Idiota.
Andrew Tyndale não conseguia acreditar que tinha sido amaldiçoado com um pateta como Gustave Dupré.
A ironia era insuportável. O homem era cientista, mas mostrava-se incapaz de qualquer decisão racional. A ausência dos dois, Gustave e Diane, naquela manhã, provava-o.
O homenzinho ajudara-a a fugir.
- Diga ela o que disser, vai implicá-lo - esclareceu. - Corre atrás da própria forca. O homem é estúpido de mais para ver isso?
Jonathan encolheu os ombros. - Acho que se apaixonou por ela. Ontem não parava de lhe chamar pardalita. Estava numa aflição por os vossos planos a porem em perigo.
- Ela não estava em perigo. Era apenas um isco para atrair o marido até aqui. - Tyndale tentou ignorar o quão falsa soava a mentira. Ditas com sinceridade suficiente,
e ele falava agora com grande sinceridade, as mentiras convertiam-se em verdades para as pessoas desejosas de as ouvir.
- Então devíeis ter explicado melhor as coisas. Gustave não conseguia perceber como poderíeis deixá-la ir embora, sabendo ela que o marido viera aqui ter convosco.
Eu também não tinha ideia de como seria, e não consegui ajudá-lo. Ainda assim, nunca esperei que fosse tão arrojado. bom, não havia grande lua e Dupré não é nenhum
cavaleiro. Talvez tenham caído por algum monte abaixo e partido o pescoço.
Andrew assim o esperou. Não podia contar com isso, porém. Nem sabia a altura exata em que os dois tinham partido. com a propriedade sem a maior parte dos criados,
ninguém vira nada.
O seu olhar foi ter aos documentos empilhados ao canto da mesa da biblioteca. Na noite anterior passara horas a tentar que
St. John os assinasse. Horas de promessas com respeito a Diane, e juramentos de honra, e discussões e ameaças. Jogara com a preocupação que St. John sentia pela
mulher. Ao oferecer um caminho para salvar a única pessoa que importava à sua presa, esperara obter as assinaturas. Funcionara antes. Em vez disso, St. John mostrara-se
irredutível em como não assinaria nada até Diane ser libertada.
Ele não teria mantido a mesma posição se ela tivesse uma pistola apontada ao coração. Coisa que teria acontecido naquela manhã, estava decidido.
E agora Gustave tinha rugido com a rapariga, complicando tudo.
bom, se tivesse de ser por duelo, que fosse. Não é que houvesse a possibilidade de St. John ganhar.
- Também o ides deixar ir? - perguntou Jonathan.
- E passar o resto da vida a olhar por cima do ombro? Tratarei disto de outra forma, é tudo. Levai-lhe estes documentos. Dizei-lhe que ela já cá não está, e que
se ele os assinar nos disputaremos honradamente para acertar contas.
A porta do quarto de Daniel abriu-se. O criado barbudo que vira no corredor no dia anterior entrou. Trazia consigo os documentos da noite anterior.
- Tyndale quer encontrar-se convosco - disse.
- Até eu ter provas de que a minha mulher está em segurança, ele e eu não temos nada a dizer um ao outro.
- Na verdade, a vossa mulher foi embora. Saiu durante a noite. Ele não quer falar sobre nada. Quer encontrar-se em duelo.
A notícia surpreendeu Daniel. Recusou-se a acreditar, apesar de sentir um profundo alívio. Seria mesmo de Tyndale mentir sobre isso, para conseguir que lhe assinasse
as escrituras. Mal a tinta secasse, revelar-se-ia uma artimanha.
Esforçando-se por controlar a vã esperança de que ela tivesse de facto partido, viu formar-se um pequeno sorriso por cima da barba do homem.
Examinou-o com mais atenção. - Eu conheço-vos?
- Porque perguntais? Pareço-vos familiar? Pareceis, vagamente.
- Sou um velho amigo de Tyndale, e uma velha vítima vossa, St. John. Ou devo dizer, St. Clair?
St. Clair. Daniel viu subitamente o homem à luz das lâmpadas de uma rua parisiense, arremetendo com uma faca. Voltou a vê-lo, esgueirando-se num beco de Southwark.
Por fim, viu-o, com total clareza, sem a barba e a palidez doentia, de cartas na mão e sorriso confiante.
Observou os olhos do homem. Conhecia-os muito bem porque os vira muitas vezes, recentemente, noutro rosto.
- Tiraste-la daqui? - perguntou, sentindo novamente a esperança a formar-se.
- Sim.
- Então percebestes quem ela é.
- Ela reconheceu-me. Conseguis acreditar? Só a via umas poucas vezes por ano quando era pequena, mas ela reconheceu-me.
- Manteve viva a vossa imagem quando todas as outras memórias a abandonaram.
Jonathan assentiu com a cabeça. - bom, ela está longe e fora disto.
- Agradeço-vos.
- Não o fiz por vós. Tanto quanto me diz respeito, Tyndale pode cortar-vos às postas. Ainda assim, não será assassínio, e assim é melhor. Fosse qual fosse o plano
que ele engendrara, suspeito que Gustave e eu teríamos sido surpreendidos pelas partes que nos diriam respeito. Agora ele tem de dar conta de vós honradamente.
- Deixou cair os documentos na cama. - Se os assinardes, é assim que será.
Daniel não esperava que o duelo fosse de todo honrado. As testemunhas seriam todas de Tyndale. Ainda assim, era uma oportunidade, o que era mais do que ele esperara.
Enfiou o casaco. - Tendes a certeza de que ela está longe? De que está a salvo? í
- Como pai dela, juro-vos que é verdade. Desta vez o alívio venceu. Inundou-o, varrendo uma noite de
preocupação e recriminação. Mais tarde, se sobrevivesse, confrontar-se-ia novamente com a última, mas não podia deixar que esta o distraísse agora.
Pegou nos documentos e levou-os para uma mesa. Usando a pena e o tinteiro que lá estavam, rabiscou o nome em cada um deles.
- Desçamos. Está na altura de acabar com isto.

CAPÍTULO 27
Aguardaram no jardim por trás da casa que o céu prateado se iluminasse. A manhã tinha uma qualidade mística. Tirando o coro de trinados, a terra revelava a sua beleza
sem som algum. Daniel inspirou os aromas fecundos e reparou em todos os pormenores como nunca antes tinha feito.
A paz invadia-o juntamente com o novo dia.
Saber que Diane estava a salvo fazia toda a diferença. Pelo menos não seria distraído por preocupações a esse respeito.
Jonathan saiu de trás da árvore onde estava com os três lacaios que guardavam Daniel. - Deve estar quase a vir.
- O que direis quando houver perguntas? Sabeis decerto que ele não tem qualquer intenção de fazer isto justamente. Tyndale certificar-se-á de que este duelo termina
apenas de uma maneira.
- Não vos devo nada. Aqueles papéis que assinastes vão devolver-me a minha vida - ripostou Jonathan. Se morrerdes, vi um duelo justo.
- E a vossa filha? Diane vai saber a verdade. Ela tem conhecimento de todos os fios deste nó de traição e vingança que nós atámos.
- Perdi-a há muito tempo. Não tenho sonhos a esse respeito. Abriu-se uma porta na casa. Ao longe assomou uma cabeça
loura que seguiu na direção deles. Caminhavam dois outros homens
a seu lado. Quando se aproximaram, Daniel viu a caixa de pistolas que trouxera de Hampstead nos braços de um dos homens. O outro transportava um tabuleiro de prata
cheio de chávenas e um bule de café.
A mente de Daniel reviu num instante toda uma vida de emoções. Não via Tyndale, mas duras imagens da sua meninice e juventude. Começou a crescer raiva dentro de
si. E depois os seus pensamentos transitaram para memórias mais recentes, de Diane e do seu meigo amor, e sentiu-se inundado pela nostalgia e pelo arrependimento
mais doces e profundos.
Vivera para aquele momento, para aquela oportunidade de acertar contas passadas com Tyndale. A ruína fora suficiente para os outros, mas ele sonhara matar o homem
que tinha sido o instigador daquela traição de há tantos anos. Esperara que fosse ódio a preenchê-lo quando chegasse a altura.
No entanto, tudo o que lhe importava agora era a terrível consciência de que poderia não voltar a segurar Diane nos seus braços.
com enorme tristeza, forçou os seus pensamentos a afastarem-se dela. Duvidava que tivesse muitas hipóteses de sobreviver, mas não teria absolutamente nenhuma se
ocupasse a mente com aquilo que poderia perder.
O sol despontou por entre as árvores. Espalhou-se pelo terreno uma luz dourada, revelando a perfeição da aparição de Tyndale. Daniel fez um esforço para envergar
a armadura de fria concentração de que em breve necessitaria.
O sol trouxe consigo sons a par da luz clara. A Natureza ganhou vida e juntou-se ao coro de pássaros chilreantes. Em segundo plano, insinuava-se no ar o ruído vago
de rodas e cavalos.
O som ficava mais alto a cada passada que Tyndale dava.
Tyndale ouviu. Deteve-se e lançou um olhar interrogativo à casa.
O som parou abruptamente. Os pássaros preencheram o vazio que deixou, a ponto de ficar a interrogação sobre se alguma vez lá tinha estado.
Tyndale avançou, com a expressão tão aberta como sempre. Indicou o criado: - Café?
Daniel olhou para lá do tabuleiro e por cima do ombro do homem que o transportava. Um movimento chamara-lhe a atenção. Apareceu uma figura ao lado da casa, que no
instante seguinte desapareceu.
O olhar de Tyndale seguiu o de Daniel até lá acima à casa.
- Parece que temos um convidado - disse Tyndale com uma nota amarga.
- Deve ser o meu padrinho - disse Daniel. - O chevalier Corbet. Tyndale pousou a chávena no tabuleiro. - Parece que afinal não
caíram e partiram o pescoço, Jonathan. Nem Gustave teve o bom senso de a manter em cativeiro.
- Ele estava completamente rendido. Ela deve tê-lo influenciado com os seus artifícios.
- bom, não muda nada.
O vulto do chevalier apareceu novamente. Desta vez não estava sozinho. Tinha um pequeno grupo à sua volta. Todos se encaminharam para a árvore.
Tyndale observava. - O idiota do francês.
- Talvez queirais recuar - disse Daniel.
- Não me faltava mais nada.
O grupo aproximou-se. Os rostos de Vergil, Adrian e Hampton tornaram-se distintos. Uma figura franzina vinda da retaguarda passou por eles e correu pela erva com
as saias bem altas para poder mexer-se depressa.
Diane parecia um anjo, voando na luz matinal. Ao vê-la, o coração de Daniel transbordou de alegria. Avançou em passadas largas e abriu os braços para a receber.
O abraço dela aqueceu-o como sol nenhum conseguiria. Fechou os olhos e saboreou o seu odor e a sensação de a ter nos braços. Agarrada a ele, o coração dela batia,
acelerado, contra o seu corpo.
- Jeanette mandou chamar o chevalier e viemos de carruagem, mas eu mandei avisar os outros e eles também vieram e apanharam-nos a meio do caminho - sussurrou, apressada,
colando o rosto ao ombro dele, voltando-se para o beijar. - Eles vieram para impedir isto.
Daniel olhou por cima do rosto dela, para os de Louis e dos membros da Sociedade de Duelos. Cada um deles sabia algo da sua disputa com Tyndale, mas só Louis sabia
tudo. As suas expressões deixavam entrever que não acreditavam que pudesse ser impedida.
Não tinham ido lá para impedir um duelo, mas para o testemunhar e se certificarem de que seria leal.
Quando alcançaram a árvore, apareceu outro vulto perto da casa. Paul trilhava o parque, trazendo nos braços uma mulher de véu. Sem uma palavra, pousou Jeanette no
chão ao lado da árvore e ela dispôs o seu longo xaile em cima do colo e das pernas inertes.
- Não ficava em Londres nem por nada - disse Paul a Daniel. Louis dirigiu-se ao homem que segurava a caixa das pistolas e
indicou que a abrissem para se inspecionarem as armas. Hampton foi até Daniel e falou baixinho.
- O vosso barco que está em Southampton... Mandei dizer ao capitão que saísse com a maré e que ancorasse ao largo da costa. Estará um bote à espera para vos levar
até lá.
A cabeça de Diane virou-se imediatamente. - Porquê?
- Os duelos são aceites entre cavalheiros, madame. Relativamente ao vosso marido, se ele matar o irmão de um par, não se pode dizer com certeza que não será enforcado.
- Mas não tem de haver duelo. Tyndale não pode forçá-lo.
A um gesto de Daniel, Hampton retirou-se. Daniel puxou Diane para si e acariciou-lhe o rosto. - Se não ficar terminado hoje, sê-lo-á noutro dia. Ele é tão tenaz
como eu e encontrará forma de me matar, honradamente ou não.
- Não se contardes a toda a gente a verdade sobre ele. Não se o denunciardes por aquilo que é e pelo que fez.
- O facto de poder fazê-lo só quer dizer que o perigo é imediato. E não apenas para mim. com isso posso bem viver. Mas ele mostrou que também poderá magoar-vos.
Não posso permiti-lo. Não sairei deste lugar a saber que ele pode tentar vingar-se de mim através de vós.
- Tem de haver outra maneira.
- Não há outra maneira. Dizei-me que o compreendeis. Não quero defrontá-lo sabendo que estais zangada comigo, ou que acreditais que traio a minha promessa para convosco.
A figura esguia de Diane tremeu de preocupação. Ele sentiu que atingia níveis avassaladores. E depois desvaneceu-se quando ela
a venceu.
Ela olhou para ele e só se via amor nos seus olhos. - compreendo. Não é vossa escolha.
Ele beijou-a. Paz e calma invadiram-no como um bálsamo quando ele se perdeu nela. O mundo inteiro recuou e eles ficaram sozinhos no presente maravilhoso, no qual
o passado sombrio e os velhos ódios não podiam interferir.
- Há algo que tenho de vos dizer - começou ele. - Vós roubastes-me o coração. Sois o meu mundo agora. Amo-vos tanto que me enche de espanto.
- E vós sois o meu mundo. Disse-vos ontem à noite que sabia que vós me amáveis. Não há duvidas na minha alma a respeito disso. Agora fazei o que tendes a fazer.
Devo ir embora? Não quero assistir a isto, mas não posso ir se por acaso forem...
Se por acaso forem os nossos últimos minutos juntos. Ele devia obrigá-la a ir-se embora, mas a consciência de que aquele poderia ser um adeus final doía-lhe no coração.
- É vossa escolha, querida. As mulheres não assistem a duelos, mas este não é um duelo normal.
- Então ficarei, se não interferir. Se me dais a escolher, escolho ficar convosco.
Desenlaçou-se lentamente do abraço dele. Ele ficou grato por ela ter reunido força para o fazer, pois duvidava que conseguisse separar-se sozinho.
Ela colocou-se ao lado de Jeanette. Ele dirigiu-se aos rapazes da Sociedade de Duelos. Vergil parecia extremamente sóbrio, com os olhos azuis cheios de preocupação.
- É necessário, St. John?
- É necessário, assevero-vos.
Adrian parecia mais calmo, mas Adrian já vira homens morrer.
- A cabeça ou o coração, Daniel - disse baixinho com um pequeno sorriso.
- O meu cavalo está pronto - informou Hampton. - Quando terminar, ide imediatamente para a costa.
Daniel tirou o casaco e entregou-o a Adrian. Louis avançou. Tyndale esperava ao sol.
- Cabeça fria - disse. - É essencial ter sang-froid.
Daniel olhou para Diane e permitiu que o seu amor por ela lhe limpasse a alma.
Depois fez vir a si o sangue-frio que Louis aconselhava, e que seria necessário para sobreviver.
Ela náo conseguia ficar a ver. E não conseguia desviar o olhar.
Quão calmos se mostravam todos, como se aquelas coisas fossem triviais e várias vezes por semana se visse dois homens a atirar um sobre o outro.
O estoicismo enfureceu-a. Devia haver algum reconhecimento de que em breve seria ceifada uma vida.
Rezou para que náo fosse a de Daniel.
Tyndale escolheu uma arma da caixa e Daniel pegou na outra. O chevalier perguntou se o duelo podia ser evitado, e Tyndale riu, desdenhoso.
Diane não gostou da confiança que sentiu na sua reação. E gostava menos ainda da expressão vazia de Daniel. Devia ser revoltada e intensa. Aqueles olhos diabólicos
deviam estar a arder. Em vez disso, parecia que estava a olhar de uma janela.
Os homens começaram a afastar-se. A pulsação de Diane abrandou até acompanhar o ritmo das passadas deles. Tyndale caminhava na direção dela.
Quando tinha avançado seis passos, um movimento ao lado de Diane distraiu-o. O olhar dele voou para a anca dela, sem que parasse de caminhar.
Diane olhou para baixo, para ver o que lhe chamara a atenção.
Jeanette tinha levantado o véu do rosto.
Tyndale franziu as sobrancelhas. Quase conseguia ver-se a sua mente a procurar, como que espicaçada por algo que ele não compreendia.
Subitamente parou de andar e ficou a olhar para Jeanette. O assombro do reconhecimento espelhou-se-lhe nos olhos.
Jeanette devolveu-lhe um olhar determinado, enquanto as suas mãos compunham o grande xaile que lhe cobria o colo.
Foi questão de poucos segundos, mas durante esse tempo, Daniel finalizara os seus passos e tinha a pistola apontada às costas de Tyndale.
- Andrew - soprou Jonathan num aviso.
Tyndale girou na direção da pistola. A sua arma ainda pendia frouxa a seu lado. Nem sequer completara os passos habituais. Sem preparação, e já sem confiança, disparou.
O som fez Diane dar um salto e ficar a olhar, à espera de ver Daniel cair. Ele nem sequer pestanejou. Ainda estava de pé, rígido, pernas afastadas, arma na mão.
Passou um longo e terrível momento, com todos imóveis, olhando, à escuta da explosão seguinte que despedaçaria a manhã.
Diane parou de respirar. Parecia que o mundo inteiro tinha parado. O braço de Daniel esticou-se ainda mais. Agora não estava de todo distraído. Apesar da sua expressão
descontraída, tinha labaredas no olhar.
Ela adivinhou as memórias e os ódios que as tinham invocado. Por um instante, voltou a ser o Homem Diabo, satisfeito por estar prestes a concretizar o seu sonho
e mandar Andrew Tyndale para o Inferno.
O olhar dele mudou ligeiramente. Via-a a ela agora. O brilho áspero morreu e outro muito diferente apareceu em seu lugar. A linha dura do seu braço vacilou.
O estampido de uma pistola quebrou o silêncio. Uma bala entrou no corpo de Tyndale.
Daniel olhava na sua direção, mas não para Tyndale. Desorientada, Diane olhou para baixo, para ver o que lhe atraía a atenção.
Jeanette segurava uma pistola fumegante.
Enquanto um grupo se reunia à volta de Tyndale para verificar o seu estado, Daniel atirou a arma para o chão e avançou para Jeanette. Aninhou-se ao lado dela e tirou-lhe
a arma das mãos trémulas.
- Não devíeis...
- E melhor ter sido eu. Quanto à maneira como o fiz, deixo que o Céu me julgue. A minha mãe intervirá por mim, juntamente com todos os que ele traiu. - Deu-lhe uma
palmadinha na cara. Além disso, não me parece que fôsseis fazê-lo. Tínheis perdido o impulso.
Ele não teve resposta para o que ouviu. Diane lembrou-se do momento de hesitação e perguntou-se se Jeanette teria razão.
- Não vos sintais culpado, irmão - sussurrou Jeanette. - Estou contente por ele não ter conseguido estropiar-nos aos dois para toda a vida. Quando me enforcarem,
sentir-me-ei mais satisfeita do que me sinto há anos, sabendo que sois feliz e livre.
- Não sereis enforcada. - Daniel levantou-se e agarrou no ombro de Paul. - Tirai-a daqui, levai-a para Southampton, para o navio. Já. Levai-a para França.
Paul pegou nela e começou a afastar-se. Jeanette fê-lo parar e chamou Diane.
Diane aproximou-se para abraçar a irmã. - Vamos ver-vos em breve, prometeu. - Não creio que agora Daniel se oponha a visitar Paris.
Jeanette olhou para o irmão. - E verdade, Daniel? Terminou?
- Sim, terminou, querida.
Paul levou Jeanette embora e Hampton aproximou-se com a pistola de Daniel, espreitando para o tambor com ar inquiridor.
- Parece estar um bocado húmido aqui dentro. - Apontou a pistola para o ar e puxou o gatilho. Uma arranhadela em vez de um estampido. - Tyndale deve tê-la adulterado.
Louis é demasiado inexperiente com armas de fogo e não reparou. Ainda bem que chegámos
no momento certo, senão seríeis um homem morto mesmo que tivésseis disparado primeiro.
- Não digais a ninguém. Essa pistola é a única coisa que está entre a minha irmã e a forca se ela for apanhada.
- O que dizeis?
- Se ela não escapar, vistes-me disparar. Vistes-me matar Tyndale.
O coração de Diane sobressaltou-se. O receio de que Daniel ainda estivesse em perigo provocou-lhe um arrepio na espinha. Subitamente, a progressão de Paul pelo terreno
pareceu muito lenta.
Hampton apontou por cima do ombro. - Penso que é seguro dizer que ela conseguirá escapar.
Louis e os outros membros da Sociedade de Duelos tinham cercado Jonathan e os criados. As suas expressões diziam que homem nenhum sairia da propriedade durante um
bom bocado.
Os olhos de Daniel cintilavam. O seu braço esticou-se para Diane e ela rendeu-se ao seu abraço. - Eles nem sequer sabem porque ela o fez. Não compreendem quem Tyndale
era para nós.
- Eles conhecem-vos - disse Hampton. - Confiam que a história, quando for contada, vos ilibará aos dois. Se não aos olhos da lei, pelo menos aos da honra e da justiça.
- E vós? Vós sois um homem da lei, Hampton.
Hampton agraciou-os com um dos seus raros sorrisos. - Hoje sou vosso amigo, St. John. Todos nós somos.

CAPÍTULO 28
O conde de Highbury pareceu náo saber o que fazer ou pensar quando recebeu a notícia da morte do irmão. Julian Hampton contou a história na sua melhor voz de advogado.
O conde examinou as visitas que tinham invadido a sua casa de Londres. O seu olhar lento passou pelo filho de um conde, pelo irmão de um visconde e pelo chevalier.
Parou no homem menos importante do escritório.
- Então sois vós St. John. Ouvi rumores das peripécias do meu irmão com a vossa prima. A minha mulher contou-me que vós recuastes e casastes com a rapariga. Eu tento
não dar ouvidos à tagarelice dela, mas é tão permanente que alguma coisa acaba por se infiltrar. Foi decente da vossa parte agirdes daquela forma.
- Infelizmente, como acabais de ouvir, o vosso irmão não foi assim tão decente - devolveu Daniel.
Ao seu lado, Vergil deu-lhe uma cotovelada breve mas enfática.
O conde abanou a cabeça. - Por a ter raptado, quereis dizer. bom, eu sempre soube o que esperar dele.
Daniel duvidou, mas o resto da história, as partes mais antigas, não seriam ditas naquela sala a não ser que fosse necessário. Tinham-no decidido todos ainda no
Kent.
- Todos juram que ocorreu como dizeis? Que a pistola de St. John falhou e a irmã atirou para o proteger quando Andrew não parou?
Vergil, Adrian e Julian murmuraram todos vagos assentimentos.
- Quem mais estava lá, além das duas mulheres? Que coisa escabrosa, mulheres a assistir a um duelo...
- Alguns criados dele - respondeu Daniel.
- bom, esses podem-se comprar. - Ergueu-se da cadeira. - Cavalheiros, o meu irmão morreu num acidente.
É a história que farei saber. Estava na propriedade dele no
Kent e morreu num acidente de caça.
Daniel não duvidava que um conde conseguisse encontrar um cirurgião que ignorasse que uma bala de pistola entrara no corpo de Tyndale pelas costas.
- Não quero que o resto, a questão da mulher, o duelo, fique a conhecer-se. Enterrarei o meu irmão com discrição e o seu bom nome intacto.
- O juiz de paz local - começou Hampton.
- Deixai-me explicar-lhe. Eu isento-vos de qualquer responsabilidade, dado que oficialmente nem sequer lá estáveis. O assunto está agora nas minhas mãos.
Não havia mais nada a dizer. Encabeçada por Louis, a Sociedade de Duelos despediu-se e abandonou o escritório. Daniel era o último da fila.
- St. John - chamou o conde, fazendo-o deter-se. Ele voltou-se e olhou para o irmão de Tyndale.
- Eu sei quem sois. Foi aquela coscuvilhice toda. Sei que usaste de sedução para chegar a alguns dos seus círculos, que encantastes certas senhoras há vários anos
para chegardes aonde estais. A minha mulher falou tanto de vós que me perguntei se a tínheis cortejado.
- A condessa e eu nunca nos cruzámos. O mundo dela é seletivo de mais para mim.
- Eu concordo que assim seja. Não aprovo estas novas ideias de mistura de classes, como alguns. E meramente uma moda passageira,
que eu ficarei satisfeito por ver terminar, como acontece com todas as modas.
Ouvia-se o burburinho continuado de uma manifestação, que vogava na brisa e entrava pela janela aberta. Os seus altos e baixos pareciam troçar das palavras do conde.
O rosto do conde endureceu. - Há mais nisto do que aquilo que me contaram, não há?
- Sim, mas acreditai em mim quando vos digo que não quereis saber.
- Então não deixeis que ninguém fique a saber. Se ouvir alguma calúnia sobre ele, alguma ponta de escândalo por causa disto, terei de vos destruir.
Os quatro homens que acabavam de sair já sabiam tudo, mas seriam discretos. - Já não tenho interesse no vosso irmão. Ele está morto, e acabou tudo. Não posso garantir
que algum dos seus velhos pecados não seja exposto com o tempo, contudo. Se sabíeis o que podíeis esperar dele, compreendereis o que quero dizer. Se fosse a vós,
poria de parte algum dinheiro para pagar a quem for necessário para o impedir.
Que confusão era aquela biblioteca.
Gustave estalava a língua ao percorrer as prateleiras. Estava naquilo há horas, depois de acordar da sesta profunda que a sua aventura exigira. Visto que os lacaios
daquela casa não o deixavam sair, tinha de fazer alguma coisa.
Examinar a biblioteca de St. John também o abstraía de outras coisas. Não por completo, infelizmente. Mesmo enquanto lia os títulos das lombadas não conseguia deixar
de se preocupar. E se Tyndale fosse à sua procura? E se a irmã de St. John fosse às autoridades? E se a pardalita acusasse Gustave Dupré sob juramento, mesmo tendo
ele arriscado a vida para a salvar?
Os livros não tinham organização. Ao contrário da biblioteca
de Tyndale, porém, todos tinham sido lidos. Pegando em alguns, viu que um ou outro até tinham anotações na margem.
Continuou, torcendo o nariz à variedade de assuntos. St. John tinha uma mente de amador, que mudava constantemente de direçáo. Sem foco, sem especialização. Havia
mais poesia do que Gustave aprovava. Pelo menos o homem parecia preferir os franceses antigos, e não o desordenado disparate emotivo, cheio de meandros, que se tornara
popular ultimamente.
- Encontrastes o que procurais, Dupré?
Gustave deu um salto. Voltou-se e viu St. John e Jonathan à porta.
- Apenas os espreitava para passar o tempo. - Apontou para as prateleiras. - É costume ordená-los segundo algum sistema. Vereis que é mais eficiente.
- Estão ordenados segundo um sistema. Estão pela ordem em que os obtive. Os mais recentes estão aqui. Por exemplo, o artigo de Volta sobre a criação de efeitos elétricos
a partir de pilhas metálicas está na segunda prateleira a contar do fundo.
Parecia que St. John tencionava explicar-se. Era o prenúncio de um bom fim para aquele desagradável episódio. Aparentemente, não houvera assassínio, mas sim negociações.
Agora, St. John estava pronto a retificar o seu comportamento criminoso para evitar a exposição.
- A descoberta de Volta é famosa e o facto de a conhecerdes não me surpreende. No entanto, sabíeis que na minha biblioteca podem ser encontradas especulações acerca
do efeito da eletricidade nos metais. O que é mais provocador.
- Não é a vossa biblioteca. Já pertenceu ao meu tutor, que se correspondia com Volta e soube da teoria dele antes dos outros cientistas. Ele desenhou-me uma imagem
no seu bloco de notas, para me mostrar como poderia funcionar semelhante pilha, e explicou-me as ideias dele sobre como as propriedades químicas e físicas poderiam
ser isoladas quando se conseguisse produzir eletricidade à vontade.
- Dizeis que o resto era vosso apenas, baseado nessas conversas com o vosso tutor? Mas o outro manuscrito...
- Uma falsificação. Um embuste. O resto foi tudo produto da minha imaginação.
Gustave agarrara-se à ténue esperança de que a teoria tivesse algum mérito, e de não ter investido a sua fortuna e a sua reputação numa farsa completa. Apesar da
convicção de Tyndale de que tinham sido enganados, ele esperara que, com alguma experimentação, um acerto aqui e ali...
Lamentou ter interferido com os planos de Andrew para matar o homem que tinha à frente. Naquele momento, ele próprio mataria St. John se pudesse. O homem atraíra-o
para a ruína e ele caíra na armadilha como um cão persegue o cheiro da carne.
A porta abriu-se e outro homem entrou. Era Adrian, o seu secretário.
- O que fazeis aqui? Adrian sorriu para St. John. Realmente, era de mais.
- Estais ao serviço deste vigarista? Que trama diabólica é esta?
- A resposta ocorreu-lhe antes de a pergunta ser feita. - A experiência em Paris, as marcas no ferro... contastes-lhe tudo. Traidor! vou contar a todos sobre vós.
Ides ver que Gustave Dupré tem influência. Destruístes a minha fortuna e eu agora destruo-vos a vós.
A sua indignação foi recebida com um riso escarninho. Transformou-se em tosse, com Jonathan a cair numa cadeira e a dobrar-se.
- Dupré, sois cá um imbecil. - Mal conseguiu pronunciar as palavras, com o corpo sacudido por tosse e risos. -Todos raptámos a esposa do homem, seu pateta. Ficai
satisfeito por ainda estardes vivo. Provavelmente escrevereis o vosso próximo tratado na cela de uma prisão.
Prisão?
- Não desmaieis, Dupré. Não tenho qualquer plano para vós
- disse St. John. - Adrian, tratais deles? Diane está à minha espera, para saber como correu com o conde.
Depois de St. John sair, Gustave atirou-se ao seu secretário.
- Estou muito desiludido convosco.
- Ele contou-me tudo - disse Adrian com frieza. - Sei da vossa velha história com Tyndale e como ficastes com a biblioteca. Por isso, sei como obtivestes aquela
prova que ostenta o vosso nome.
- Vós nunca... - Mas poderia. St. John provavelmente fá-lo-ia. Havia aqueles que sempre tinham mostrado suspeita, que espalhariam o rumor.
Gustave nunca na vida se sentira tão desamparado. A destruição não se limitava à sua fortuna, mas também à sua reputação.
- Fomos apanhados, Dupré - anunciou Jonathan. - Estais arruinado, como eu fui. Bem, podia ter-nos acontecido pior. Afinal, Tyndale está morto.
- Morto!
- Hum.
Estava encurralado. Condenado. - Mais vale dar um tiro na cabeça. Não me resta um único franco.
- Não é inteiramente verdade - avançou Adrian. - Está um armazém cheio de metal em Southwark. Aquelas pilhas contêm cobre e zinco, e também há lá muito ferro. Quando
forem vendidos, vós e Jonathan estareis melhor do que quando isto começou. Vamos lá agora, ver o que pode ser aproveitado.
Jonathan parecia incrédulo. - E St. John permite?
- A mulher sugeriu-lho e ele não pode recusar-lho, visto que a ajudastes a escapar ontem à noite.
- Estou estupefacto - disse Gustave, tonto de alívio. Fora obra da pardalita. Ele sabia que ela tinha uma afeição especial por ele, mas um gesto daqueles... A salvação
inesperada fez-lhe o sangue correr em todas as direções que não devia e ele viu o quarto começar a andar à roda.
- Raios, ele vai cair - ouviu Jonathan gritar, imediatamente antes de a escuridão se apossar da sua consciência.
Diane pegou em Daniel pela mão logo que este entrou no jardim. - Depois. Falemos depois - disse ela.
Levou-o para um canto mais afastado da casa e abraçou-o à luz das estrelas enquanto procurava avidamente o seu beijo. - Abraçai-me apenas, para eu ter a certeza
de que estamos ambos aqui e de que tudo terminou.
- Está tudo mais do que terminado, querida.
Ela puxou-o contra si, desesperada por senti-lo. A preocupação acumulada dos últimos dois dias ameaçava voltar a reclamá-la, e só tê-lo junto a si o impedia. - Beijai-me.
Amai-me. - As mãos dela andavam de um lado para o outro, sentindo-lhe o corpo, procurando tocar todo o calor que conseguisse. Puxou as ancas dele contra as suas,
para poder sentir o desejo dele por ela.
Não queria palavras. Isso podia esperar. Precisava dele, do amor e da fome dele, e da paixão que convenceria a sua alma de que ele estava lá e estava bem e que o
que vivia era real.
O abraço dele absorveu-a. Os beijos dele consumiam-na. Não era suficiente. Precisava de mais. De tudo.
- Aqui. Agora. - Suplicou entre beijos selvagens. - Amai-me. Saciai-me, querido.
Deitaram-se no leito de flores primaveris. Instalou-se entre as pernas dela, envolvendo-a toda com o seu abraço e cobrindo-a com o seu corpo. Aromas doces soltavam-se
das plantas esmagadas, inebriando-a ainda mais.
Ela saboreou a realidade dos cheiros e do céu, do peso e do querer dele, da paixão que os unia totalmente. Não houve palavras nem necessidade delas. Sentia tudo
nele, todo o amor e todo o alívio.
Daniel começou a levantar-lhe a saia. Ela ajudou, ansiosa por completar a união, desesperada por estarem juntos.
Ele acariciou-a, para a preparar. Não era o que ela queria, não precisava daquilo. - Não. Vinde a mim apenas, querido. Saciai-me o corpo e o coração, saciai-me toda
logo que possais.
com a cabeça emoldurada pelo céu noturno, ele baixou os
olhos para ela. O frenesim acalmou, mas não a paixão. Preenchia-os e rodeava-os como um vento espiritual.
Aquela beleza toda fê-la ter vontade de chorar. Quando ele a penetrou, lágrimas silenciosas correram-lhe pelas fontes. Na sua união, ela conhecia-o completamente.
A alma dela compreendia os mistérios que não tinham palavras. O seu coração sentia o deslumbramento prudente da alma dele.
Ele fez amor com ela lentamente, maravilhosamente. Não refreou nada. O prazer era o menos, uma mera metáfora da verdadeira partilha. Derramaram amor um no outro,
reafirmando a sua aliança face a um mundo indiferente.
O fim foi poderoso, mútuo, místico. Fundiram-se durante um longo momento de consumação. No seu êxtase, ela sabia que as melhores partes do amor daquela noite durariam
para sempre. Nunca mais voltaria a estar sozinha.
No fim ele permaneceu dentro dela, e os dois sobre a terra desperta. Ele relatou-lhe calmamente o encontro com o conde, e a forma como o irmão de Tyndale os apagara
a todos da história da sua morte.
- Então tínheis razão quando dissestes a Jeanette que terminou completamente - disse ela. - E como se nada tivesse acontecido. Conseguis aceitar que o mundo nunca
saiba o que ele fez?
- Eu nunca procurei que o mundo soubesse.
- Porque não? Porque não o denunciastes?
- Não tinha provas do que ele fizera, nem sequer de quem eu era. Quem teria acreditado em mim? Ele era irmão de um par e um homem poderoso só por si. Mesmo que eu
tivesse passado anos a gritar a verdade, o mundo dele ter-me-ia ignorado. Por isso tratei da situação de forma diferente.
Sim, de forma diferente. Subtil. Um duelo por causa de uma jovem. Mas não Jeanette, porém. Também não havia provas daquilo, exceto a palavra de um armador e de uma
aleijada.
- Destruístes os outros de formas que aludiam ao passado e ao que eles tinham feito. Penso que queríeis fazer o mesmo com Tyndale.
- Talvez assim fosse.
Ela passou-lhe os dedos pelo cabelo. - Então agora sei tudo. Não há mais mistérios. Exceto um. -Qual?
- O meu pai disse que não ficou nenhum St. John à espera na costa naquele tempo. Nem nenhum St. Clair, o nome que usáveis quando o arruinastes. Por isso, dizei-me,
marido, quem sois vós? Se a vossa história será a minha, quero saber.
Ele apoiou-se nos braços e baixou o olhar para ela. - Hoje, agora, sou Daniel St. John. Nasci, contudo, Daniel de Ia Tour. O meu pai ensinava línguas antigas na
universidade de Paris.
- E a vossa mãe?
Ela sentiu-o tremer com o eco da antiga angústia, e arrependeu-se imediatamente da pergunta.
- A minha mãe era a filha mais nova de um barão. Casou muito abaixo da posição social da família e foi renegada por eles. O que, no fim, não significou nada.
- Dissestes-me na Escócia que o vosso pai não era aristocrata. Não vos lembrastes de mencionar que a vossa mãe o era.
Ele voltou a aninhar-se no seu abraço. - Um descuido. Ela riu. - Houve algum descuido mais? Ele encolheu os ombros. - Devo provavelmente mencionar que sou o último
da linhagem, tirando Jeanette.
- Isso quer dizer que sois o barão agora.
- Imagino que sim, se quiser tentar reivindicá-lo. A palavra de Louis sobre a minha identidade pode ser suficiente.
- Quereis fazê-lo?
Ele ficou algum tempo sem responder. Ela pressentiu uma nova sombra.
- Precisarei de algum tempo para o descobrir. A minha família não acreditava nesse tipo de privilégio. Tal como muitos intelectuais, o meu pai aprovava a revolução,
e enquanto rapaz eu via-a como algo bom e necessário, um golpe pela igualdade. Claro que nunca esperámos que acabasse por nos dizimar também.
Ela não sabia o que dizer. Tinha pensado que conhecia todos
os mistérios, mas não pudera adivinhar que lhe restava um último no fundo da alma. A grande causa em que ele acreditara acabara por lhe tirar tudo o que lhe era
caro. Era mais um negro cambiante das suas experiências de infância, e mais um nó no emaranhado de emoções que o tinham impulsionado durante toda a vida.
A confidência final aligeirou-lhe a disposição. Beijou-lhe a face.
- Estas coisas já não são assim tão importantes. Tenho outras a ocupar-me os pensamentos agora.
- O quê?
- Vós, e a oferta que me fizestes com o vosso amor. Sem vós, hoje estaria completamente desolado. Vazio, com uma vida terminada e sem outra à espera. Em vez disso,
estou contente que tenha terminado. Aliviado. Construiremos uma vida nova juntos, onde quer que queirais. Tudo o que me importa é que sois minha e que o vosso amor
é meu.
- É vosso para sempre. Amar-vos faz-me sentir inteira. Se não fosse por vós, seria ainda órfã, sem história nem família. Nem mesmo Jonathan poderia ter preenchido
o vazio com que uma vez vivi. Só amar-vos.
- Éramos ambos órfãos, Diane. Mas isso agora acabou. Formaremos a nossa própria família, e uma nova história.
Ouvir a confiança e a certeza da sua voz comoveu-a desmesuradamente. O seu coração fez-se grande, repleto da promessa que o amor deles oferecia.
- Diane, na noite antes do duelo, quando viestes ter comigo... foi muito corajoso e generoso. Dizer-me que me amáveis... conseguiu penetrar nuvens no meu coração
que eram escuras e antigas. Até àquela noite, nem sequer me apercebera de como obscureciam o mundo.
Não fora corajoso. Fora necessário, para ela e para o seu coração.
Ele olhou para baixo ainda com o corpo colado ao dela. A noite ocultava-lhe a expressão, mas ela sentiu que a sua atenção estava completamente nela.
Beijou-a. - Obrigado.

CAPÍTULO 20
Paul levou Jeanette para dentro da capela do minúsculo vilarejo nos arredores de Dunbar. Os aromas frescos da primavera entravam pelas janelas e o pastor aguardava
ao fundo da nave.
Diane olhou de relance para Daniel. Ele parecia calmo o bastante. A decisão estava tomada, e agora isto tratava-se apenas de algo a levar a cabo. Ele não passara
os três dias de viagem até lá tão perturbado que nem conseguia comer. Durante as refeições nas estalagens ao longo do percurso, a sua postura fora sempre espantosamente
relaxada, leve, mesmo.
A de Paul também. Foram ela e Jeanette quem viveu num silêncio tenso. As duas tinham ido numa carruagem, acompanhadas pela criada de Jeanette, e Paul e Daniel noutra.
O que proporcionara a Diane muitas horas para pensar, porque Jeanette falou muito pouco durante todo o caminho para norte.
Paul sentou Jeanette numa cadeira próxima do pastor e ficou de pé ao lado dela. Daniel ofereceu o braço a Diane. Avançaram.
Nos votos tudo estava turvo. Ouviu-se dizer as palavras, como se estivesse distante. Assemelhava-se tanto a um sonho que, quando saíram da capela, o clarão do sol
a apanhou desprevenida e como que a obrigou a acordar.
- Voltaremos dentro de dez dias, espero - ouviu Daniel dizer.
Nas carruagens, um cocheiro mudava o baú dela para o veículo que Daniel e Paul tinham usado.
Jeanette deu-lhe um beijo. Depois Paul pegou nela, colocou-a na carruagem onde a criada aguardava, e subiu para junto delas.
- Para onde vão eles? - perguntou Diane.
- Para Londres. Jeanette anunciará o casamento e assim quando chegarmos já não será novidade nenhuma.
A carruagem pôs-se em movimento. Diane olhou para a que restava. - E para onde vamos nós?
- Tenho uma pequena propriedade aqui perto.
- Vamos esconder-nos até os rumores cessarem?
- Penso nisso como ter-vos só para mim durante uma semana.
Desde que haviam saído de Londres que ela sentia um nó no estômago, que agora se torceu todo. A porta aberta da carruagem aguardava a noiva. O que ela sentia era
muito parecido com o que sentira quando se vira defronte da casa de Paris de Daniel, paralisada pelo medo de se ter metido em algo que náo planeara muito bem.
Aguardava-a naquela carruagem uma vida com Daniel St. John. Ela só sabia uma coisa sobre casamento, e imaginou que fosse a única que importaria durante as semanas
seguintes. Se ainda fosse ignorante, estaria menos nervosa. ,
O braço dele rodeou-lhe a cintura. - Vinde comigo. Prometo náo vos possuir pelo caminho, pelo que escusais de pôr já esse ar de condenada.
A propriedade podia ser pequena aos olhos de Daniel, mas ela achou-a encantadora e do tamanho certo. Aninhada no sopé de uma pequena colina e ladeada por um conjunto
de árvores, a antiga casa de pedra dava para um pequeno lago. com dois pisos, possuía quatro divisões em baixo e quatro em cima. O homem e a mulher que cuidavam
dela viviam numa casa lá perto.
Ela e Daniel náo tinham sido anunciados, e foram dar um passeio enquanto o casal se apressava a preparar as coisas.
- Pareceram muito surpreendidos por vos verem - comentou ela quando passeavam à volta do lago.
- Agora raramente cá venho. Já passaram alguns anos desde a última vez. Vivi aqui algum tempo quando era pequeno, mas foi antes de o Harold e de a Meg virem para
cá. Para eles sou um dono ausente, e este sítio agora é mais deles do que meu.
Ela olhou a propriedade ao seu redor com interesse renovado.
- Vivestes aqui? Depois de virdes de França?
Ele avançou uns vinte passos silenciosos antes de responder.
- Sim.
- Então era da vossa família? - Imaginou a casa cheia de pessoas e um Daniel muito novinho a correr pela relva.
- A família da minha mãe tinha-a há gerações. Nem sequer sei como ficaram na posse dela. Terá provavelmente sido na altura em que a França e a Escócia se juntaram
contra Inglaterra.
- Que idade tínheis quando viestes? Quando saístes de França?
- Oito.
- É a mesma idade que eu tinha quando saí de Inglaterra. Que coincidência curiosa. Vós saístes de França para vir para aqui e eu saí de Inglaterra para ir para lá,
com a mesma idade. Sempre pensei que não tínhamos nada em comum, mas parece que sim.
- Aparentemente.
Deixaram a margem do lago e entraram num pequeno bosque. Não demorou até alcançarem o outro lado. Havia um muro de pedra a circundar um cemitério onde as árvores
terminavam. Daniel dirigiu-se para norte, na direção da colina, mas Diane entrou no cemitério, curiosa.
Ele seguiu-a e ficou ao seu lado, enquanto ela se debruçava sobre muitas dezenas de pedras que emergiam do chão. - São antigos criados e outras pessoas - explicou
ele.
- São a história deste lugar, e as famílias que aqui viveram. Acho estas coisas fascinantes, já que não tenho nada disso. - O olhar dela percorria os nomes que definiam
as vidas dos que ali haviam vivido. McGregor e Graham, LaTour e Mirabeau e Jervais. Smith e Johnson e Scott. - Não há nenhum St. John - comentou ela, continuando
a andar para poder examinar o resto.
A mão dele tomou o braço dela. - Era propriedade da família da minha mãe, não do meu pai, e como disse aqui estão enterrados principalmente criados. Agora vamos.
Não me interessam as sepulturas tanto quanto a vós.
Ela deixou que ele a conduzisse em direção à colina. Subiram até ao topo e contemplaram a casa e o lago.
- Obrigada por me terdes trazido. Gosto de saber que vivestes aqui enquanto rapaz e que a vossa família está na posse dela há várias gerações. Não é a minha família,
claro, mas agora estou-lhe ligada oficialmente, não é?
Ele lançou-lhe um olhar inquiridor. - Parece que estais, sim. Oficialmente.
- Não gostais de fazer isto, pois não?
- Disparate. É um desporto e pêras. Não tenho ocasiões suficientes para o aproveitar, e fico contente com esta oportunidade.
Estavam a pescar.
Depois da refeição ela pedira a Daniel para lhe ensinar. Aquiescendo prontamente, ele desencantara canas de pesca, iscara linhas, e agora estavam lado a lado à espera
que acontecesse alguma coisa.
Alguma coisa era algo que não acontecia há muito tempo.
- Talvez se pretenda induzir algum tipo de meditação, como quando se observam as ondas do mar - avançou ela.
- Sem dúvida. Mas menos sublime.
- Sim, pescar num laguito numa quinta não é assim muito sublime, pois não?
É necessário haver uma visão de grandeza e esplendor para isso acontecer. - Olhou o pequeno
volume que lhe espreitava do bolso. - Se preferirdes ler o vosso livro, eu não me importo.
Ele puxou a linha para cima e para baixo algumas vezes. - Tendes a certeza de que ficais bem sozinha? Não vão ser de mais para vós? Não vos puxarão para as profundezas
enquanto vos debateis?
Ela riu. - Eu fico bem.
- Se tendes a certeza, então talvez me sente debaixo daquela árvore até vos fartardes.
Ele pousou a cana e afastou-se.
Ela ficou a experimentar com a cana e a linha, tentando apanhar um dos vultos prateados e serpenteantes que via na água.
Foi uma das melhores tardes da sua vida. Quando ele falara em tê-la só para ele, ela presumira que seria na cama. Não esperara que fosse o companheirismo que partilharam
durante aquelas horas, imbuído como estava da intimidade daquela longa noite nos seus braços.
Os peixes não queriam ser apanhados. Ela sabia que se conseguisse levar a linha mais para dentro do lago a sua sorte melhoraria. Olhou para Daniel e viu que ele
estava absorto na sua leitura.
Sentou-se no chão e tirou as meias. De saia puxada até aos joelhos numa mão e cana na outra, entrou devagar no lago e lançou a linha.
O anzol desceu. Ela ficou o mais quieta que conseguiu, com a água fria a chegar-lhe à bainha do vestido. Levantou-o um pouco mais e enfiou a cana debaixo do outro
braço.
Um puxão vigoroso indicou-lhe que tinha peixe no anzol. Mas não havia como puxá-lo sem deixar cair a saia à água. Excitada com o sucesso da empreitada, deu meia-volta
e regressou para a margem do lago, arrastando atrás de si o peso irrequieto.
Subiu para a erva, com água a escorrer-lhe pelas pernas, a saia amassada na mão e já a meio das coxas. Examinou os pés enlamea- dos e depois olhou para cima, diretamente
para os olhos de Daniel.
Ele já não lia. Observava-a, e pareceu-lhe que já o fazia há algum tempo. Ela deixou cair a saia e voltou-se para ir buscar o peixe.
- Não é nem de perto tão grande como parecia na linha - disse, ao tirá-lo da água. - Acho que devia voltar a pô-lo lá.
- Eu faço isso. - Ele levantou-se para a ajudar.
Mas ela já tinha dado conta do recado. Sem pensar, agarrou no peixe e retirou o anzol. Quando ele se aproximou dela, o peixito já voava pelos ares, de volta à água.
- Que bem que vos saístes. A maior parte das mulheres não gosta de lhes tocar.
Ela olhou para a mão de onde o peixe acabava de sair. Portara-se de facto muito bem. A sensação de ter o peixe na mão também não fora surpresa. - Acho que já fiz
isto antes. Em criança. Depois disso certamente que não, ou lembrar-me-ia. Agora ficarei a cheirar a peixe, infelizmente.
Ele pegou na mão dela e cheirou-a. A respiração dele arrepiou-lhe o braço todo. - Não é um cheiro mau. De qualquer forma, dar-vos-emos banho. - Tirou-lhe a cana
da mão. - Agora entremos. Faz-se tarde.
Ela agarrou nas meias e nos sapatos e foi descalça para a casa. A sensação da relva por baixo dos pés era-lhe familiar. Também fizera aquilo antes. Era outro pequeno
eco da sua infância perdida, tinha a certeza.
Daniel falou em privado com Harold antes de se juntar a ela na sala de jantar. Quando ele se sentou à janela, ao sol do fim de tarde, ouviram-se numerosas passadas
nas escadas das traseiras.
Numa mesa, a um canto, estava um vaso chinês. Ela examinou-o? - É um dos vossos?
- Sim. Trouxe-o de uma das minhas primeiras viagens ao Oriente.
- É Ming?
Ele riu-se. - Não. Podeis parti-lo. Foi feito para exportação e não é muito valioso. Na altura eu não sabia o que eram, mas gostei dele e comecei a aprender mais
sobre os vasos.
-Tendes muitas coisas orientais. O vosso quarto de Londres...
- com a garganta embargada por memórias daquele quarto, procurou controlar-se. - É isso que transportais nos vossos navios? Vasos e coisas semelhantes?
- Por vezes. Geralmente coisas menos interessantes.
- Coisas valiosas, ainda assim, se fizeram de vós um homem rico.
- A sorte desempenhou o seu papel. Como também grandes riscos que correram bem. Durante vários anos não transportei mercadoria de outros homens, só minha. Se me
tivesse ido ao fundo
algum navio, hoje podia andar a cruzar as águas, içando peixe seco e nada mais.
- Porque não evitastes esses riscos?
Ele encolheu os ombros. - Era muito jovem quando comecei, e muito impaciente.
Muito jovem? Conteve a pergunta, mas quis fazê-la. Afinal, ele ainda era bastante jovem. Devia ser muito novo quando a levara para Rouen, mas ele disse-lhe que tinha
conhecido o pai dela na navegação. Então devia ter sido depois de alguns daqueles grandes riscos. Mas isso significaria que ele era ridiculamente novo quando começou
a fazer fortuna.
Olhou para ele. Talvez fosse mais velho do que ela pensava. Alguns homens aparentam ser mais novos do que são. A sua vida não tinha sido fácil, porém. Andara muito
tempo no mar a viajar pelo mundo inteiro.
- Dizeis muito novo como se fôsseis um velho. Não podeis ter mais do que trinta e dois ou trinta e três.
- Quando os anos são cheios, é preciso mais tempo para os viver.
Era uma boa resposta, mas não a que ela queria. Ele nem a corrigira nem concordara com ela.
- Há rumores sobre vós, além dos que me envolvem a mim. Sabíeis disso? A condessa disse-me que há quem julgue que vós fostes pirata nos mares do Oriente. Os vossos
riscos foram assim tão grandes?
- Preocupa-vos a possibilidade de vos terdes casado com um pirata? Nada de tão arrojado, lamento. E não houve mais do que dois ou três episódios durante aqueles
anos todos que pudessem ser descritos dessa forma.
Ele estava a meter-se com ela. Principalmente. Ela suspeitava de que havia variadíssimos episódios que podiam bem ter sido descritos daquela forma.
Examinou os livros que estavam dentro da caixa encostada à parede. Não conseguia ver os títulos e as encadernações. Imaginou-o
na cadeira junto à janela, de botas e pernas cruzadas, lenço displicentemente atado, cotovelo apoiado no braço da cadeira, e queixo pousado na mão.
Ela sentiu-se alvo da atenção dele.
Harold apareceu à porta, chamou a atenção de Daniel, e indicou o andar de cima com um gesto breve. Desapareceu. Sons que se ouviam na parte de trás da casa, de Meg
a atarefar-se na cozinha, pararam.
- O vosso banho está pronto, no andar de cima - informou Daniel.
Seria bem-vindo, um banho. Ela ainda estava descalça, e a lama do lago secara nas suas pernas. As suas máos ainda cheiravam vagamente a peixe.
Fez menção de sair da sala. Ele ficou ali sentado, muito à semelhança do que ela o imaginara fazer, tão belo que ela nem queria mexer-se. A sua presença saturava
o ar da divisão, perturbando-a, apesar de ele se limitar a olhar para ela.
- Como quereis fazer isto, Diane? Preferis banhar-vos sozinha antes de eu subir?
Sentiu um frémito no ventre quando o seu corpo constatou as implicações do que ele disse.
Ele mostrara-se tão moderado o dia inteiro. Mal lhe tocara. Ela presumira que aquilo seria adiado até depois da ceia. Até à noite.
Ela limitou-se a ficar ali de pé, sentindo-se estúpida e nervosa.
Ele levantou-se e foi para junto dela. O seu coração iniciou um rodopio lento. - Meg saiu com Harold e voltaram à casa deles. Provavelmente precisais de alguma ajuda
com os laços e afins.
Pegou-lhe na mão. Resistindo ao impulso de sair a correr, ela deixou que ele a levasse dali para fora. Chamou a si toda a coragem e tentou conter a torrente de reações
que girava dentro dela. Agora estavam casados e ela não se comportaria como uma rapariguinha tonta. Já nem sequer era inocente, e não se comportaria como tal.
Era o que dizia a si própria ao subir as escadas com ele atrás de si. Senti-lo ali atrás perturbava-a, contudo. Ocorreu-lhe que talvez
fosse melhor se ele simplesmente a tivesse possuído na carruagem. O Daniel que sucumbia à paixão crua era alguém que ela já conhecia. Esta sensualidade mais tranquila,
calma, contida, parecia mais perigosa.
E mais excitante. Não podia negá-lo. Quando chegaram por fim aos aposentos do piso superior, os seus sentidos estavam despertos para tudo, especialmente a proximidade
dele.
Tinham colocado uma comprida banheira de metal num dos quartos, à frente da lareira protegida. Uma pequena fogueira ardia, retirando a frieza ao edifício.
Ela mergulhou os dedos na água do banho. - Perfeito.
Sentiu-o atrás dela. As suas mãos começaram a desatar as fitas do vestido. Ela pôs-se muito direita, instintivamente, para disfarçar um tremor visceral que ameaçava
abanar-lhe o corpo todo.
- Importais-vos que faça isto? - perguntou ele.
- Estou muito inquieta, é tudo.
- É desagradável, estar inquieta?
Constatou que não era. Não podia dizê-lo. Abanou a cabeça.
O vestido abriu-se nas costas e soltou-se-lhe nos ombros. Sem esforço da parte dela, deslizou-lhe pelo corpo abaixo, deixando-a de roupa interior e pernas nuas.
Ele beijou a pele do seu ombro despido.
- Não estais inquieta, querida. Estais excitada. Estais a sentir o quanto nos queremos um ao outro.
Dar-lhe um nome só tornava aquilo mais forte. A sensação passou a ser física. O seu corpo tornou-se mais consciente ainda dele. As partes do ato amoroso que não
eram completamente horríveis, de todo, começaram a atravessar-lhe a mente.
Ele lançou-se aos cordões do espartilho. Ela sentiu a peça de roupa libertá-la suavemente, demasiado consciente de que em breve não teria nada vestido. Se fosse
como a primeira vez, duvidou que chegasse a tomar banho.
Naquele momento, nem sequer tinha a certeza de querer tomar banho.
O espartilho também caiu ao chão. Agora só lhe restava a sua fina camisa. Ainda era dia. Não havia velas para apagar.
Envolvendo-a com os braços, ele virou-a e beijou-a. Não a arrebatou com a sua paixão como tinha feito no quarto dele, mas ela ficou igualmente afetada. Tudo o que
ela estava a sentir, a deliciosa excitação e os estremecimentos, multiplicou-se por dez, soterrando o medo e o cuidado.
Ele fez deslizar a camisa, seguindo com o olhar a sua descida lenta. O choque ressoou como um eco, mas o desejo mútuo vibrou mais alto. O desconcerto de se ver nua
apagou-se. Gostava da forma como ele olhava para ela. Acordava aquele pulsar profundo, e o latejar parecia espalhar-se pelo seu corpo todo.
Ela queria que ele a beijasse outra vez. Que a tocasse. Queria-o o bastante para não conseguir fingir que não. Imaginou-o a fazê-lo, o que lhe criou uma sensação
expectante que só a deixou mais excitada. O poder do que experimentava era a única coisa que naquele momento a surpreendia. Admitir que se queriam um ao outro estava
a deixá-la descontrolada.
Em vez daquele beijo e daquela carícia, ele entregou-a à banheira.
Ela sentiu o toque sensual e temperado da água, que lhe lambia suavemente a pele morna, mostrando-lhe o quão alerta os seus sentidos estavam.
Ele passou-lhe o sabonete.
- Ide-vos embora? - perguntou ela, erguendo e ensaboando uma perna enlameada.
O olhar dele subiu-lhe, serpenteante, pela perna, seguindo-se o resto do corpo. - Quereis que vá?
De repente, ela viu-o como o vira quando estava deitada, nua e expectante, no quarto dele. Era a mesma sensualidade tensa entre eles, e regressou um pouco do velho
medo. - Não sei.
- Sabeis, sim. - Ele sorriu e contornou a lareira.
Ela foi esfregar a outra perna, desapontada consigo própria. Que covarde que era. Ele tão paciente com aquela lenta sedução e ela a recuar...
Subitamente, ele estava atrás dela. Ela sentiu-o à altura da sua cabeça, ajoelhado ao lado da banheira. - Dai-me o sabonete.
Olhou para trás quando lho passou e viu que ele retirara o casaco e a camisa.
Estava maravilhoso. Tão belo e terno, tão atraente, assim esguio e forte. Viu-se nos braços dele e sentiu que lhe faltava o ar.
Ao seu lado, ele mergulhou o sabonete na água. A ação trouxe-o mais para perto. Ele juntou as mãos para fazer espuma e os seus braços envolveram-na numa espécie
de abraço.
- Sois bela de mais para que vos deixe na vossa privacidade. Se conseguísseis ver-vos, compreenderíeis. Parece-me que dar banho à sua mulher deve ser um dos direitos
do marido. - Espalhou-lhe a espuma pelos braços numa carícia escorregadia. Toque atrás de toque, lentos e suaves, os seus dedos e as palmas das mãos cobriram-lhe
a pele de espuma branca.
Uma estimulação sensual e lânguida ia-lhe de encontro às coxas, rodeava-as, acompanhando a água. Ela encostou-se à banheira, apoiando-se no peito dele, e submeteu-se
às carícias sedutoras. Observou aqueles músculos definidos alongarem-se para espalhar o sabonete, para cima e para baixo, para cima e para baixo.
- Isto também me ajudará a descobrir que partes não foram completamente horríveis para vós. - Cobriu-a de espuma até aos ombros e peito. As palmas das suas mãos
passavam pelos seios dela, na diligência de lhe cobrir o tronco de espuma.
Os movimentos abrandaram. As mãos dele moviam-se deliberadamente. Deslizavam por baixo dos seus seios e à volta deles, estimulando-a. Ela fechou os olhos e aguardou.
- É isto que quereis? - perguntou ele, com a boca colada à sua orelha. As suas carícias percorriam-lhe os dois seios em movimentos suaves e lânguidos. O movimento
era incrivelmente sensual. Quando aquelas mãos suaves se concentraram nos mamilos, o prazer agudizou-se, acelerando-lhe a respiração, conduzindo-a a uma excitação
quase desesperada.
Ela observava através de pálpebras semicerradas, mordendo o lábio para reprimir os arquejos de prazer ao sentir as voltas dos dedos dele nos seus mamilos, intensificando
o prazer.
- Ajoelhai-vos. Virai-vos para mim.
Era tão bom que ela não queria que acabasse. Porém, ele pegou-lhe pelos ombros, fazendo-a colocar-se de joelhos, erguida acima da água, e voltada para ele.
Aquilo não a afetara só a ela. A expressão contida dele era reflexo da sua própria excitação e da consciência que tinha da presença dela. Ela pensou que ele ia pegar
nela e tirá-la dali para fora, mas ele pegou no sabonete e fez mais espuma.
Acariciou-lhe novamente os seios, e depois mais abaixo. Enquanto a beijava, as mãos dele passaram para as costas e desceram-lhe até ao traseiro. Acariciaram-lhe
as nádegas de todas as maneiras possíveis, fazendo o pulsar profundo de excitação latejar até a dominar.
Aquela sensação quente lá em baixo enlouquecia-a. Agarrada aos ombros dele, aceitando o seu beijo, ela ofereceu as nádegas às mãos dele, incitando-o com o seu corpo
a tocá-la mais abaixo e mais fundo.
Ele pegou-lhe nas mãos e pousou-as na banheira. Passou para o lado dela, sempre a lavá-la, ora descendo pela parte de trás das coxas e subindo entre elas, ora subindo
pelo traseiro e descendo até lá abaixo. Por todo o lado, exceto onde ela o queria.
Era um tormento lento e maravilhoso, e ela não podia nada contra o que lhe fazia. Agarrava-se despudoradamente aos lados da banheira e erguia as ancas, arqueando
as costas e baixando os ombros.
Ele curvou-se e beijou-lhe as costas. A sua mão acariciava-a entre as coxas. - Da última vez não o queríeis. Quereis, agora?
Ele tratara de fazer com que o quisesse. Queria-o tanto que cerrava os dentes, para impedir os gritos.
- Quereis? - Um toque leve, como um ponto de interrogação.
Escapou-lhe um grito, então, de alívio e assentimento. Seguiu-se uma longa série deles quando ele respondeu com carícias diretas.
A sensação aumentou mais e mais, tornando-se tão intensa que a lançou num abandono total.
Endireitou-se e agarrou nele, puxando-o para si para conseguir abraçá-lo. A paixão dele libertou-se para se juntar à dela. Chamou-a a si num abraço apertado e envolveu-a
num beijo possessivo. Continuou a tocar nela e a acariciá-la até nada mais importar, nada existir, a não ser ele e aquela sensação concentrada tão cheia de um prazer
inacreditável.
Fios de água desciam o peito dele, vindos dos seus braços molhados. Ela beijou um deles, para deter o seu curso, e depois outro. Lambeu o minúsculo ribeiro, brincalhona.
A sua língua seguiu-o mesmo até ao ombro, varrendo-lhe a pele. Virando ligeiramente a cabeça, ela viu nos olhos dele um novo tipo de paixão. Orgulhosa de si própria,
beijou-o.
Os lábios dele afastaram-se, e subitamente ela invadia-o como ele a invadira a ela. A audácia do gesto raiou o desejo de triunfo.
Sentia a água a bater-lhe no corpo. Ele tirava-lhe a espuma com uma mão e segurava-a contra si com a outra, encorajando-a nas suas audazes explorações. Tirou-a para
fora da banheira e apertou-a ainda mais contra si, num abraço que pareceu envolvê-la completamente.
Ainda juntos, ainda unidos pelos corpos quentes e a água fresca, ele desapertou o resto da roupa, que caiu ao chão para o abraço se fazer completo.
Braços firmes no seu ombro e na sua anca limitavam-lhe os movimentos. O beijo profundo ordenava rendições menos físicas. A sensação de estar a ser absorvida espalhava-se
dentro dela. De não-separação. De ser controlada da forma mais benigna, mas dominada, ainda assim.
Os seus pés deixaram de tocar no chão. Continuando a segurá-la, continuando a beijá-la, ele levou-a para a cama.
À luz clara do entardecer, ele ajoelhou-se ao lado dela, das suas coxas. Não havia noite escura a esconder a sua imagem. A figura de Daniel, de força elegante e
musculada, de controlo e paixão contidos, acelerava-lhe o coração e deixava-lhe o corpo desejoso. Os seus olhos
escuros refletiam o saber confiante de que ela o queria e ele a teria em breve.
Posicionou-se sobre ela, braços fortes de ambos os lados, ainda ajoelhado, e beijou-a. A cabeça dele mergulhou e a sua língua lambeu-lhe o mamilo como a dela lhe
fizera ao peito.
O prazer atenuara-se numa excitação profunda, contínua, mas a boca dele deixou-a novamente atordoada. com os dedos, estimulou o seu outro seio. Ela agarrava-se aos
ombros dele e à sua sanidade, mas a intensidade incessante do prazer determinou que perdesse a última. Fechando os olhos, submeteu-se e foi transportada para um
lugar onde não existia mais nada a não ser sensação.
A sua cabeça fervilhava com clamores por alívio e súplicas por mais. Agarrava-se a ele com mais força, onde conseguia, incapaz de impor calma às mãos e ao corpo.
Aos braços e antebraços. Ao tronco e às ancas. Acariciou-lhe o peito, tentando regressar à entrega daquele beijo perto da banheira. O corpo dela tornou-se um vazio
que necessitava de algo para se sentir completo.
A mão dela roçou o falo dele no espaço entre os seus corpos. Mesmo na sua loucura ela percebeu que ele gostou, que queria que o acariciasse daquela forma.
Ele olhou para o sítio onde a mão dela se movia. Colocando a sua mão entre as pernas dela, também a acariciou.
Partilharam um momento de prazer erótico celestial. Então ele tocou-a de uma forma diferente, muito específica, e a sua respiração deteve-se. Começou a girar numa
espiral que se condensava num prazer insuportavelmente concentrado. Saber que ele observava, que ele via o seu corpo suplicante e os gritos e arquejos descontrolados,
só vinha aumentar o controlo que ele detinha sobre ela.
Tornou-se insuportável. Ela sentira aquilo antes, da última vez. Tentou recuar, procurar alívio.
Ele colocou-se ao lado dela e ela conseguiu abraçá-lo. O alívio não durou muito. Ele beijou-a e a sensação de tortura acalmou um pouco. Ele afagou longa e profundamente,
espalhando a sensação que provinha daquele ponto único e intenso.
A boca dele roçou a orelha dela. - Rendei-vos. Abandonai-vos e será maravilhoso.
Ela não estava certa de conseguir. Não estava certa de o querer. Só sabia que estava perto de começar a chorar.
Ele beijou-lhe o seio. - Ides render-vos, querida. Quero que saibais o que isto pode ser.
Um novo toque cortou-lhe a respiração e deixou-lhe a mente vazia. Uma tensão de prazer fez desaparecer todos os pensamentos de retirada. Ele forçava-a a ir ao encontro
de algo que ela desejava alcançar.
A tensão fez-se mais forte, insuportável. Uma sensação maravilhosa e aguda disparou dentro dela em todas as direções e ela gritou. Um prazer perfeito perdurou durante
uma fração irreal, para logo se desfazer num milhão de estilhaços lançados por todo o seu corpo.
Ele estava dentro dela quando ela recuperou o sentido de si, instalado entre as suas pernas. Não houve dor desta vez, apenas alívio, como se o seu corpo estivesse
incompleto e precisasse de ser preenchido por ele.
Ela não ofereceu resistência desta vez. Não podia proteger-se de nada, muito menos do seu próprio coração. Não podia impedir a forma como ele a possuía. Ele preenchia
todos os vazios, mesmo o mais antigo, alojado no seu coração, que desaparecera, como naquela noite, no quarto dela. Ela nada podia face às emoções suscitadas pela
intimidade.
Ela deu mais do que ele. Sabia-o. Mesmo quando ele se deteve e a olhou nos olhos e ela pensou ver a alma dele, mesmo aí ele reservou algo para si próprio. Ela não
conseguia fazer a mesma coisa. Não sabia como. Nem sequer o queria, pois o seu coração nunca conhecera tanta plenitude.
O prazer regressou, pulsando onde eles estavam unidos. Ela ergueu as pernas para lhe permitir entrar mais fundo, e moveu-se em resposta tanto a ele como às sensações.
Ele penetrou-a com mais
força, mais fundo, e o poder conquistou-a. Ela uniu-se ao seu movimento e ofereceu-se à sua paixão para que o desejo, a avidez e o delírio fossem mútuos.
No fim ela encorajou-o, erguendo as ancas ao vigor das investidas finais. Ela comprazeu-se com a prova de que ele estava tão à mercê da paixão quanto ela.
Durante aquele fiozinho de tempo, quando a entrega foi mútua e ele era dela tanto quanto ela era dele, ela compreendeu o que aquilo podia ser.

CAPITULO 21
A primavera estava linda naquele ano, concluiu Daniel enquanto conduzia o seu cavalo pelas ruas de Londres, tendo como destino uma reunião com a qual não se importava
por ai além.
Mas devia importar-se, e muito. Prometia uma pequena vitória em vez de uma grande, mas seria alguma coisa. No entanto, quando recebeu a carta a convocar a reunião,
a sua reação fora de enfado e não de expectativa.
Riu para si próprio enquanto conduzia o cavalo pelo meio de grandes carroças e carruagens. As últimas duas semanas tinham-no amolecido muito. Ele sempre suspeitara
que uma mulher lhe poderia fazer aquilo.
Não conseguia lamentá-lo. Não teria abdicado de um momento daqueles dias no lago e daquelas noites nos braços dela.
Memórias da beleza e da paixão de Diane, da sua avidez e do seu êxtase, ocupavam-lhe a mente. De longas horas de incrível prazer e manhãs alvas de paz surpreendente.
Londres ficara a um mundo de distância e o passado numa outra vida.
Ele estivera muito perto de lhe contar tudo. Houvera alturas em que o contentamento fora tão completo que tivera a certeza de que nada poderia estragá-lo. Ficava
a olhar para ela com as confissões e as desculpas a queimarem-lhe a língua, e, de cada vez, uma
imagem dela, magoada e confusa, e dos seus olhos, desconfiados e cautelosos, remetiam-no ao silêncio. Depois, decidia sempre. Quando regressarmos à cidade.
O enlevo persistia após o regresso, porém. Ele rendera-se-lhe e prontamente pusera de parte a realidade.
Nem mesmo a carta, e a reunião, tinham conseguido imiscuir-se.
Sem reparar que freara o cavalo, deu por si em frente à casa que procurava.
A sua alma soltou um suspiro de resignação, e não de triunfo, como devia. Desmontou e dirigiu-se à porta.
O mordomo conduziu-o por uma casa ricamente mobilada até ao jardim das traseiras. Tal como a própria casa, as plantas tinham sido dispostas visando o efeito visual
mais do que a beleza. Lilases, perfeitamente aparados, perfilavam-se contra um muro. Haviam sido sacrificados muitos rebentos de grande beleza para manter aqueles
globos. Ao canto, uma pequena árvore de fruto podia ter sido pintada, tão artificial era o cuidado com que os seus ramos, cheios de rebentos, se esticavam. Quanto
aos caminhos, parecia que alguém passara horas a lavrar cada pedra a cinzel.
Fez-lhe lembrar um brinquedo que ele tinha visto uma vez numa loja, composto de minúsculos arbustos e flores e ladrilhos de ferro para uma menina compor. Naquele
momento estava entre versões gigantes das mesmas formas apertadas.
Andrew Tyndale estava sentado numa cadeira, a uma mesa de ferro, bebericando chá e lendo um grande livro de filosofia grega numa tradução latina. Daniel achou aquilo
divertido. Duvidava que Tyndale alguma vez tivesse lido coisa semelhante, mesmo quando estava na escola e tal era requerido.
- Ah, aqui estais vós - proclamou Tyndale. Abriu um sorriso largo e indicou uma cadeira.
Foram trazidas bebidas. Quando Daniel declinou, chegou chá.
- Regressado da Escócia, imagino. - O tom jovial de Tyndale indicava que sabia tudo a respeito do casamento.
Claro que sabia. Quando voltaram a Londres, Daniel e Diane descobriram que eram o assunto da cidade. Na ausência deles, a condessa de Glasbury revelou a verdadeira
história. Disse que Daniel recuara porque a iminência do duelo tinha feito com que ele e Diane reconhecessem os sentimentos que nutriam um pelo outro.
As conversas especulavam agora a respeito do que poderia estar a ocorrer na casa de Daniel durante as últimas semanas. O papel de Tyndale estava praticamente esquecido.
- Parabéns pelo vosso casamento recente. - Disse-o como se reconhecesse uma derrota, como se se tivessem batido num duelo menor e Daniel tivesse ganhado.
Daniel aceitou os votos e ficou a aguardar. Não estava lá para trocar amabilidades e não queria estar na companhia do homem mais tempo do que o necessário. A proximidade
a que estavam, e ver a postura insípida e falsa de Tyndale, obscureciam já como uma nuvem o sol radiante da semana anterior. Outras memórias, antigas, ameaçavam
afastar as de Diane.
- Pareceu-me que devíamos discutir o assunto da dívida - principiou Tyndale.
- Uma letra serve perfeitamente.
- Claro. No entanto, gostaria de propor uma alternativa, uma alternativa que poderá interessar-vos sobremaneira.
- Se quereis atribuir-me terra na América do Sul, não tenho interesse em coisas dessas.
O sorriso tenso de Tyndale mostrava que sabia que acabava de ser insultado. - É mais complicado do que isso, e tem um potencial significativo. Há homens que matariam
para terem esta oportunidade.
- Estou a ouvir.
- Sabeis como se faz aço?
- Como sempre se fez.
- Está correto. É forjado em pequenas fornadas, com muito trabalho, o que faz com que seja demasiado caro para usar na maior parte das indústrias.
- Há sempre o ferro.
- Tem limitações. O ferro fundido é fraco e o ferro forjado apresenta problemas na sua manufatura e no seu peso. Imaginai o que seria se se conseguisse produzir
aço mais rapidamente, sem trabalho nenhum. Qual vos parece que seria o valor desse processo?
Daniel teve de se esforçar para não mostrar a sua surpresa. Pelo menos, agora sabia quem era o sócio de Dupré. - Seria impossível de calcular. Estais a dizer que
vos encontrais na posse de um processo assim?
- Sim. Terei a prova dentro de um dia, aproximadamente.
- Aquela vossa proposta está ligada a este processo?
- Tencionava explorá-lo sozinho, mas concluí que talvez fosse bom ter um sócio.
- E, generosamente, pensastes em mim?
- Gosto do vosso jeito, por assim dizer. Oh, sei que tivemos aquele pequeno problema por causa de uma jovem, como tantas vezes acontece entre homens. Foi tudo um
mal-entendido e não correu pelo pior a ninguém, muito menos a vós. Sou capaz de ultrapassar isso, e espero que vós também. Penso que temos muito em comum, na verdade.
Vejo algo de mim em vós.
Daniel teve de se conter para náo desferir um murro no rosto sério e sincero que estava do outro lado da mesa. Fixou o olhar na fila de arbustos idênticos e freou
a raiva que lhe deixou o corpo inteiro a fervilhar.
- Porque precisais de um sócio?
- Ocorreu-me que a exploração mais lucrativa requererá alguns contactos na comunidade industrial. Penso que o meu sócio teria mais facilidade em encontrar tais homens
e em lidar com eles.
- Por outras palavras, preferis ser apenas investidor e não vos transformardes num industrial. Oferecei-lo para evitardes essa necessidade.
- Sim.
- Claro que também o fazeis porque me deveis vinte mil libras. Presumo que é esse o preço desta parceria?
Tyndale estava radiante, satisfeito e surpreendido com a rapidez de raciocínio de Daniel.
- Como é que sei que vale assim tanto?
- Se pensardes no assunto, constatareis que vale muito mais.
- Depende da eficácia do processo e do tamanho da parte que
estou a comprar.
- Penso que se poderão arranjar uns vinte e cinco por cento. Daniel olhou para o jardim e ponderou a oferta e a cómica ironia de lhe estar a ser feita a ele.
- Quero ver a prova de que falais.
- Estará pronta amanhã ou no dia seguinte.
- Hoje. Se não está pronta, quero ver como estão a prepará-la.
- Isso é segredo. Certamente compreendeis que não posso autorizar-vos a ver o processo até que haja um compromisso.
- E eu não posso comprometer-me até ver o processo. Não sou tão estúpido que me entreguem um pedaço de aço e me limite a aceitar a vossa palavra sobre a forma como
ele é feito. Se for inconveniente, podeis sempre passar-me aquela letra.
Desta vez, Tyndale pareceu menos agradado com a rapidez de raciocínio. Surgiu-lhe uma ruga pensativa no sobrolho.
Daniel suspeitou que era a primeira vez em anos que alguém reconhecia uma expressão falsa no rosto do homem.
- Imagino que possa mostrar-vos, mas há coisas que não posso explicar neste ponto. Há detalhes que vos devo ocultar.
- Muito bem. Outra coisa. Há mais sócios? Não gostaria de vir a saber a dada altura que eu tenho vinte e cinco por cento e outros cinco também.
Tyndale riu, mas a raiva tornou o riso oco. - Não, apenas vós.
Daniel esperou que fosse verdade. Não queria nenhum pateta inocente a ser atraído para o esquema. - E o inventor? Tenho a certeza de que não fostes vós a descobrir
o processo.
- Eu compensarei o inventor à minha maneira. O processo pertence-me só a
mim, e absolutamente mais ninguém terá uma parte
a não ser vós. Viestes a cavalo? Pedirei que me tragam o meu e levo-
-vos a ver o processo.
Daniel seguiu-o até à casa, pensando em Gustave Dupré, que Tyndale compensaria à sua maneira. A quem exatamente pretenderia Tyndale passar a perna? Dupré ou Daniel
St. John?
Ambos, provavelmente.
Tyndale retirou três chaves do casaco e lançou-se aos cadeados pesados que fechavam a porta do barracão.
- São as únicas chaves? - inquiriu Daniel. Inundara Tyndale de perguntas desconfiadas durante o caminho até àquele beco de Southwark. Tyndale interpretara o interesse
dele como reflexo de um sentimento de posse, e acolhera bem o interrogatório.
- Só eu e o inventor é que temos chaves.
- Mesmo assim, se concordar, quero aqui um guarda. Um dos meus homens.
A segunda fechadura abriu. - Dizeis com isso que eu posso estar a mentir, que trarei aqui outros como vos trago a vós.
- Digo com isto que estamos numa zona difícil da cidade e que qualquer pessoa consegue entrar neste barracão. Podeis ter as chaves, mas bastaria um machado para
desfazer a porta.
Entraram no espaço húmido e sombrio. Em cima da mesa estavam os cilindros, cada qual com a sua panela de líquido.
Tyndale indicou a Daniel que espreitasse.
Daniel olhou para dentro de uma das panelas. - Pensei que tínheis dito que só estaria terminado amanhã, na melhor das hipóteses.
Tyndale virou a cabeça. Os seus olhos arregalaram-se. Chegou a cabeça bem para perto. - Disseram-me... claro, os cálculos da massa e do peso só puderam ser aproximados...
e o efeito da potência foi só um palpite... - Pegando num pau, tirou alguns fios da panela e enfiou cautelosamente os dedos no líquido.
A mão subiu, segurando uma barra de aço de aspeto esguio. Os seus olhos estreitaram-se de entusiasmo. Era como se tivesse
descoberto ouro. - Parece fazer a transformação mais rápido ainda do que previmos. A reação física deve aumentar em velocidade com uma massa maior.
Daniel segurou na barra molhada. - Como se faz?
- Aqueles cilindros têm pilhas voltaicas que geram eletricidade, algo cujos poderes só estão a começar a ser compreendidos. Esta descoberta de que consegue alterar
as propriedades do metal é uma descoberta científica de monta.
- Porque não foi publicada ainda? Coisas dessas são habitualmente comunicadas através de uma das sociedades científicas.
- É demasiado valioso para ser assim disseminado. Não queremos que todos saibam antes de conseguirmos patenteá-la e dar-lhe um uso prático.
- O que está naquelas panelas? Água?
- Sim, e químicos. Não posso dizer-vos quais. Não até vos comprometerdes.
Daniel sentiu o peso da barra de metal. - Há alguma possibilidade de se tratar de uma fraude? O vosso inventor poderia tê-las trocado? Tirado o ferro e tê-lo substituído
por aço?
- Ele não tem essa esperteza. No entanto, saberei ao certo já a seguir. - Tirou os fios da terceira panela, agarrou na barra de metal e percorreu a base com as pontas
dos dedos. - Aqui está. Fiz uma marca nesta sem lhe dizer, só para me certificar de que era a mesma no fim que no início.
Daniel andava à volta da mesa. - Precisa de ser feito novamente a uma escala maior. Pode acontecer que, se o ferro for grande de mais, não funcione. Barras pequenas
servirão de pouco para a indústria. Abrangeu o barracão com um gesto. - É necessário montar muitas mais, com diferentes quantidades de químicos e diferente número
de cilindros, usando barras grandes e pesadas. De outro modo, não há como calcular os custos do processo, o calendário, e a sua rentabilidade. Pode ser que o custo
da produção exceda o valor do aço como produto, por isso também precisamos de determinar o tamanho mínimo dos cilindros para funcionar em ferro de bom tamanho.
Tyndale assentiu com a cabeça. - Sim, estou a ver. - Olhou para Daniel com um novo respeito. Era como se nunca tivessem disputado uma mulher. - Penso que é bom estardes
envolvido. Os meus instintos estavam corretos, que podia ser bom ter nisto um homem de sentido prático como sócio.
- Ainda não sou sócio. Até eu ver os resultados do que estou a descrever, não haverá dinheiro meu a ser gasto neste barracão. E o meu homem estará lá fora quando
se iniciar a nova demonstração, para ter a certeza de que não entra aço por engano.
Tyndale abrandou. - Estou a ver. Parece-me fazer sentido. Mas, na vossa opinião, qual pensais ser o ganho se o processo mostrar ser lucrativo?
Daniel voltou a colocar a barra de aço no seu líquido. Agraciou Tyndale com um sorriso cúmplice. - Mesmo se o lucro por libra for uns meros xelins, penso que estamos
a falar de milhões.
- Que história! Ah, Diane, parece uma história para crianças, com um final perfeito. - Margot dava palmadinhas no peito como se o seu coração sofresse de palpitações.
Estavam sentadas lado a lado no aposento de Margot. Em Londres, Mister Johnson alojava Margot com estilo, mas sem ostentação. O ninho de amor ficava num edifício
próximo o suficiente de Mayfair para ser respeitável, mas num bairro que não fazia parte dos mais cobiçados.
Ainda assim, a sala de estar estava muito bem arranjada, tal como Margot. De regresso a casa vinda da Escócia, Diane recebera uma carta da amiga de escola e decidira
que seria rude não a visitar.
- E gostais da vida de casada? - Um sorriso sugestivo e um erguer de sobrancelhas.
Diane sentiu-se corar. Riu. - Bastante.
- Ainda bem. Fazei-lo feliz à noite e tudo correrá bem. Se assim não for ele vai à procura de alguém como eu. Não é sensato ser
senhora de mais na cama. Acho que as mães inglesas ensinam às filhas coisas estúpidas a esse respeito. Trata-se de dever, não de prazer. Como? Diane não conseguia
obrigar-se a pronunciar a palavra. Como é que fazes Mister Johnson feliz à noite? Ela não tinha sido criada por uma mãe inglesa, por mãe nenhuma, mas sentia-se constrangida
ao falar daquilo.
- Perguntei a Msieur Johnson sobre o Homem Diabo - confidenciou Margot. - Nunca se tinham encontrado antes daquela vez nas Tulherias, mas o vosso marido era-lhe
familiar. Começou a ouvir falar de St. John há cerca de oito anos, de homens que faziam negócios com ele. Ele ia para o mar em navios mercantes quando era apenas
um rapaz, diz-se, e um dia conseguiu o seu próprio navio. A partir daí a frota não parou de aumentar. O sucesso que teve numa idade tão jovem é muito admirado, e
ele também. A facilidade com que se inseriu em círculos melhores é invejada, penso.
Como? A palavra voltou a surgir na mente de Diane. Como é que lhe foi tão fácil?
Margot deu-lhe a resposta. -As senhoras ajudaram, diz-se. Ele é muito discreto, muito educado, mas a sua fama de sedutor é lendária.
O que só veio levantar novamente a questão de como é que uma rapariga ignorante conseguia fazer tal homem feliz. Recordou as mulheres deslumbrantes, experientes,
com quem eles tinham socializado e perguntou-se qual delas teria auxiliado na entrada de Daniel naqueles círculos melhores, e quem teriam sido as amantes do sedutor.
A história de Margot suscitou outras perguntas, porém, e estas rapidamente substituíram as outras sobre mulheres. Como é que ele obteve aquele primeiro navio? Quão
jovem era quando começou a ter sucesso?
A curiosidade que sentia sobre isso espicaçava-a desde o dia em que perguntara a Daniel a respeito do vaso na casa da Escócia.
- Tomai bem conta dele e tereis tudo o que quiserdes, garanto-vos - disse Margot, dando-lhe palmadinhas na mão.
Como?
Foi o caminho todo para casa a pensar naquilo. Daniel parecia contente o bastante quando estavam juntos. Não parecia esperar algo que ela não desse.
Talvez fosse porque pensava nela como a Margot tinha dito que os maridos ingleses pensavam nas esposas deles. Como mulheres que cumpriam um dever e das quais não
podia esperar-se que soubessem de prazer.
Ela lembrou-se das exortações de Madame Leblanc a que as amantes fizessem as coisas que estavam naquele livro. Deixara entender que as esposas não as faziam. Segundo
Margot, era essa a razão pela qual os homens tinham amantes. E não, como dissera Daniel naquele dia nas Tulherias, porque as esposas eram frias, ou doentes, ou distantes.
Foi até à biblioteca e espreitou para as prateleiras de livros, à procura de um volume pequeno e fino de capa vermelha.
Não estava lá. Talvez Daniel afinal o tivesse queimado.
Pensou no assunto enquanto atravessava o corredor. Parou à porta do escritório dele.
Entrou. Ali não havia tantos livros e as prateleiras tinham principalmente livros-mestre e capas. Ao examinar a prateleira que estava mesmo por cima da sua cabeça,
porém, vislumbrou uma tira de pele de um vermelho brilhante.
Puxou o livro e foi até à janela. Página a página, percorreu as estampas. As imagens não lhe pareceram tão bizarras como da última vez que as vira. A maior parte
ainda era confrangedora, mas o calor que sentia não provinha só daí.
Um som fê-la sobressaltar-se. Rodou nos calcanhares, viu a porta a abrir e escondeu o livro atrás das costas.
Daniel entrou, parecendo tão absorto como sempre. Levou uns segundos a reparar que ela lá estava.
Inclinou a cabeça, curioso. Uma pergunta surgiu-lhe no olhar.
Caminhando para ela, lançou um olhar inquisitivo à secretária e aos papéis lá dispostos. - Queríeis alguma coisa, Diane?
Ela abanou a cabeça e recuou para a janela. Talvez conseguisse enfiar o livro por trás das cortinas, deixá-lo no peitoril...
- O que tendes aí, querida? -Aí onde?
- Atrás das vossas costas.
- Nada. Nunca estive muito neste aposento e pensei vir ver como era. Se não devia ter entrado, peço desculpa.
- Podeis entrar. Só me pergunto por que razão tendes o aspeto de quem foi apanhado a roubar. - Acariciou-lhe os braços a todo o comprimento. Até lá a baixo, às mãos
escondidas atrás das costas. Tirou-lhe o livro.
De repente, ele estava com o volume nas mãos, mesmo à frente dela.
Ele olhou para o livro, depois para ela. - Parece que decidistes que afinal tem algum valor.
- As estampas têm algo de artístico. Há virtuosismo na utilização da gravura. - A observação não lhe saiu tão objetiva quanto ela queria. com efeito, ouviu a voz
fraquejar-lhe.
- Ah! Então estudais isto para melhorar a vossa apreciação da técnica artística.
- É um assunto muito discutido nos jantares e outras reuniões.
- A arte não se limita à técnica, claro, mas também ao conteúdo. Que tal vos pareceu o conteúdo aqui retratado, interessante ou chocante?
Ela engoliu em seco. - Um pouco de ambos, suponho.
Ele foi até à secretária e pegou em dois pedaços de papel. Abriu o livro, folheou-o, marcou algumas páginas, e voltou para ela. - Porque não decidis se as considerais
mais interessantes do que chocantes?
Voltou para ela o livro com as páginas marcadas. Ela perguntou-se se erraria em pegar nele. Ele fez aquele seu sorriso muito próprio e os seus olhos brilharam, divertidos.
Estava a provocá-la. A desafiá-la. Mas ela sentiu que ele queria
que ela lhe pegasse. Ele não se importaria se ela considerasse parte daquilo mais interessante do que chocante.
Tirou-lhe o livro das mãos e, com o que esperava ser uma expressão sofisticada, avançou para a primeira tira de papel.
Ora bem, aquela não era assim tão chocante. A bem dizer, houve alturas em que eles faziam amor em que ela se perguntara se ele ia fazer aquilo.
com plena confiança, passou então à seguinte. Estava um bocado mais à frente, na gravura número XVI. Ela contemplou a imagem. O que a gravura retratava não era completamente
claro.
Ela virou a estampa para um lado e para o outro, interrogando-se. Certamente que o homem não estava a...
- O que é que ele está a fazer?
- A beijá-la.
- Ah. - De repente a imagem fez sentido e deixou-a perplexa.
- Parece um sítio esquisito para dar um beijo a alguém.
- E um beijo muito especial.
- Não consigo imaginar que o homem goste muito.
- Eu julgo que sim. Talvez mais do que a mulher.
Ela mexeu nervosamente na tira de papel que marcava a gravura. - Tencionais beijar-me assim uma destas noites?
- Sim. A não ser que o proibais. Ela perguntou-se se deveria fazê-lo.
Voltou a abrir o livro. A sua surpresa inicial tinha-se desvanecido, mas ainda parecia uma coisa muito esquisita de se fazer. - Posso decidir depois?
- Nada acontecerá entre nós que vós não queirais.
Passou a outra página. A imagem seguinte tinha algo de parecido, mas também era mais complicada. - Vede. A mulher também está a beijar o homem.
Ele inclinou a cabeça para ver a imagem. - Pois está.
- Mas não marcastes esta. Ele não respondeu.
- Imagino que isso significa que a considerais mais chocante do que interessante.
Silêncio.
- Os homens não gostam de ser beijados assim? Ele limitou-se a olhar para ela.
- Sois muito seletivo quanto às partes deste livro que quereis que eu considere, Daniel. - Bateu com a lombada do volume contra o peito dele, como que a repreendê-lo.
- Espera-se de mim que vos permita dar-me beijos peculiares, mas vós sois poupados a coisas dessas. Talvez eu também queira beijar-vos a vós de maneira especial.
O que pensaríeis disso?
- Imagino que pudesse ser convencido a permiti-lo.
- É o que espero. Afinal, se vão acontecer coisas estranhas naquela cama, parece-me que vós deveis ser sujeito a elas tanto quanto eu.
- Tendes toda a razão. Dou a mão à palmatória. - Ele pegou no livro, rasgou o segundo marcador ao meio e colocou metade na gravura XVII. - A bem dizer, se algum
dia me decidirdes sujeitar a isto, julgo que..
-Sim?
-Julgo que provavelmente vos comprarei um colar de diamantes no dia seguinte.
Diane estava sentada perto da janela, procurando sinais do regresso de Daniel. Na rua, os candeeiros impunham halos de luz difusa à escuridão da noite, e as poucas
carruagens e cavalos que passavam apareciam e desapareciam. Ela não sabia onde ele tinha ido, mas ele dissera que não voltaria tarde. Ela abdicara de uma visita
ao teatro para estar ali quando ele regressasse.
Viu-o finalmente. Era apenas uma sombra ao fundo da rua, mas ela sabia que era ele porque o cavaleiro não trazia chapéu.
Mordendo o lábio, saiu da sala de estar e foi para os seus aposentos. Deixou que a criada lhe tirasse o vestido e o espartilho e mandou-a embora.
Uma vez sozinha, foi até ao guarda-vestidos, abriu uma gaveta e tirou de lá o livrinho vermelho.
Folheou-o até à primeira estampa que Daniel marcara. Examinara-a várias vezes ao longo da tarde. A dada altura, não sabia precisar quando, começara a tornar-se muito
mais interessante do que chocante.
Na realidade não retratava nada de estranho. Um pouco diferente, mas não propriamente indecente.
Lançando um último olhar à estampa para referência futura, devolveu o livro à gaveta. Começou a apagar as velas e depois parou. Na imagem havia algumas velas acesas.
Despiu a camisa. De meias pelas coxas, apenas, subiu para a cama. Afastou todas as almofadas com exceção de uma grande. Ajoelhou-se com a almofada à frente dela,
e depois deitou-se de maneira a ficar com um alto por baixo das ancas e o rabo erguido num pequeno monte. Reviu mentalmente a estampa e afastou as
pernas.
Era muito depravado estar assim deitada.
Sons na câmara ao lado anunciaram a presença de Daniel. Ela ouviu os movimentos dele a despir-se e os murmúrios da conversa dele com o criado de quarto. Só o facto
de estar ali a ouvi-lo e a aguardar que ele chegasse ao quarto excitava-a.
Como também a posição em que se encontrava. Estava surpreendida com o excitante que era. A expectativa e a vulnerabilidade eram incrivelmente eróticas.
Os murmúrios pararam. Os movimentos diminuíram. Ela ouviu passos do lado de lá da porta que unia o seu aposento ao quarto de vestir dele.
Daniel deteve-se na porta de comunicação e considerou dormir na sua própria cama naquela noite. Ficara de humor sombrio e instável. Agora as memórias regressavam
continuamente. Cada vez que pensava em Tyndale, ou via Jeanette, apossavam-se da sua mente, imagens horrendas que lhe gelavam o sangue.
Diane merecia melhor. Ele não queria levar aquilo até ela. Não queria constatar que nem sequer ela conseguiria fazê-lo esquecer.
Ele não devia mesmo entrar.
Mesmo assim, abriu a porta.
Ainda havia velas acesas. Normalmente ela apagava-as antes de ir para a cama, para não haver risco de incêndio mais tarde.
As chamas suaves conferiam ao quarto uma luz difusa, misteriosa. Ele entrou, e viu-a.
Estava deitada na cama numa pose erótica. Ele reparou que era a do livro. Ainda tinha as pernas cobertas até às coxas, com meias, mas nada mais. As suas costas nuas
afundavam-se na base da coluna e depois curvavam-se até à visão erótica do seu rabo erguido.
Ele ficou atrás dela, arrebatado com o convite e com a entrega, ela ali, assim, a aguardá-lo. Sentiu o desejo tomar conta dele, e o seu estado de espírito e a pose
submissa dela conferiram-lhe uma força selvagem.
Ele tirou o roupão. - Deveis ter visto o que me ia no espírito esta noite.
- Decidi que não era assim tão chocante.
Ele conseguia ver-lhe o rosto de lado, apoiado nas mãos. - Olhai para mim, Diane.
Ela ergueu a cabeça e olhou para trás, por cima do seu próprio corpo. O brilho dos seus olhos era inconfundível. A surpresa que sentia na excitação e a expectativa
tornavam-lhe a expressão tão convidativa quanto a pose.
Ele subiu para a cama e ajoelhou-se ao lado dela. Percorreu-lhe as costas com beijos. - Estais há muito à minha espera?
- Não muito.
- Excita-vos, estardes assim deitada?
Ela voltou a pousar a cabeça nas mãos e indicou que sim.
Ele ajoelhou-se atrás dela e acariciou-lhe o rabo com ambas as mãos. As costas dela afundaram-se e as suas ancas ergueram-se em resposta. Ela mordeu o lábio inferior.
- Já estais húmida? - Ele sabia que sim, e ficou satisfeito. O seu humor não toleraria grandes demoras. Queria que a paixão incendiasse tudo o mais que se apossava
da sua alma naquela noite.
Ela voltou a acenar que sim.
- bom. Porque vos quero agora, imediatamente. - Entrou nela. O prazer cru tomou conta dele, obscurecendo tudo como ele
esperara. Passou a existir apenas Diane e o seu toque aveludado.
- Estais perdido nos vossos pensamentos - disse Diane. Através das cortinas abertas, ele via uma lua brilhar num céu
escuro. Uma brisa ligeira arrefeceu o suor que lhes cobria a pele. "
- Precisei de muito tempo para perceber o significado de quando ficais assim. A vossa cabeça está a um mundo de distância, não está?
A um mundo de distância. A uma vida de distância. Ela tinha razão, e ele maldizia a forma como aquilo voltara a apossar-se dele.
- Peço desculpa.
- Não me importo. Tenho a certeza de que os vossos negócios vos devem preocupar. Sei que não posso ter-vos por completo a tempo inteiro.
Ele beijou-lhe a nuca e puxou-a mais para si. Ela aninhou-se nele com a cabeça no peito dele e o braço à volta do seu tronco.
Ele pensou na reunião daquele dia com Tyndale. Devia ter recusado a proposta de se envolver no esquema. Devia ter exigido dinheiro e ficar satisfeito com aquela
pequena vitória. Em vez disso, não fora capaz de resistir à oportunidade de arrasar completamente com o homem.
Sentiu-se uma vítima do seu próprio jogo. Ele passara anos a seduzir homens com prémios que apelavam às suas maiores fraquezas. Hoje, sem o intentar, um daqueles
homens poderia ter-lhe feito a mesma coisa.
Penso que temos muito em comum.
O ombro claro de Diane espreitava por entre o seu cabelo gracioso. Observou a sua mão mover-se sobre ele, sentindo a pele luminosa. Não arriscava uma ruína normal
ao sucumbir à tentação naquele dia. Nem desastre financeiro. O grande perigo estava ali, naquele abraço. A verdadeira perda podia ser o contentamento que ele tinha
agora com aquela mulher, e a liberdade que o seu espírito sentia quando estava total e completamente com ela.
Há coisas que preciso de vos contar. Coisas que devíeis ouvir de mim e não de outra pessoa. As palavras estavam-lhe no peito, depois na garganta. Contudo, não avançavam
mais. Ela nunca o perdoaria depois de ficar a saber.
Ela inclinou a cabeça para poder olhar para ele. À luz do luar, viu um sorriso e esticou-se para o beijar.
- Tenho trinta e dois anos. - Ele nem sequer sabia porque o dissera. Saiu-lhe, apenas, uma espécie de medida para a encorajar a procurar a verdade, talvez. - Na
Escócia estáveis curiosa sobre a minha idade. Tenho trinta e dois anos.
Ela olhou para ele, pensativa. - E viestes para aqui quando tínheis oito? Então talvez a condessa tivesse razão. Ela contou-me que se diz que fostes
emigré durante a revolução. É verdade?
- Sim.
Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. - O vosso pai era aristocrata? Fugíeis?
- O meu pai não era aristocrata. No entanto, escolheu partir. Os tempos não eram fáceis e ninguém estava a salvo.
- Então viestes para aqui, e vivestes naquela casa, na Escócia. Onde estão agora os vossos pais?
- A minha mãe tinha morrido, quando viemos. O meu pai morreu pouco depois de chegarmos. Louis estava connosco. O chevalier ajudara-nos a sair, porque era um velho
amigo da minha mãe. Ele cuidou de mim até eu ter idade de me desenvencilhar sozinho.
- Margot disse que fostes para o mar muito novo. - Ela parecia alguém a terminar um história, contente por ter lido o livro inteiro.
Voltou a aninhar-se nos braços dele. - Lembrais-vos de muita coisa dessa altura? De vir para aqui, da vida que tínheis antes, em França?
- É como se me lembrasse de tudo. - Cada dia e cada imagem. Cada perda e cada medo. Lembrava-se bem de mais.
- Eu não me lembro de quase nada. Ambos deixámos as nossas casas em crianças e fomos viver para outras. Porque é que vós tendes memórias tão nítidas e eu tenho tão
poucas?
-As memórias são caprichosas. Algumas desaparecem, e outras, as insignificantes, ficam para sempre. Talvez a diferença seja que eu não me sentia muito criança quando
fiz aquela viagem.
Não se sentira de todo criança. A vida já o envelhecera e cansara e endurecera. Não restava nada da infância quando seguira Louis para aquele barco pequeno.
A conversa criou uma atmosfera de intimidade, como só as confidências noturnas conseguem fazer. Fez o dia desaparecer, mais as suas distrações. Ele comprazeu-se
com a sua retirada.
Os braços dela apertaram-se e ela beijou-lhe o peito. - Daniel, quero dizer-vos uma coisa. Vim para Inglaterra à procura de algo. Tinha um... buraco dentro de mim,
um vazio, que parecia que nunca desaparecia. Eu pensava que se encontrasse os meus parentes, a minha história, que ele seria preenchido. Eu achava que ser amada
o preencheria.
O coração dele condoeu-se da infelicidade dela e dos anos que ela vivera com aquele buraco. Pediu a Deus para poder fazer com que não fosse assim, mas sabia que,
mais do que qualquer outro homem, não conseguiria.
- Encontrei o que procurava. - A voz dela era pouco mais do que um sussurro. - Tinha percebido tudo mal. Pensei que sendo amada aquele vazio se preencheria. Descobri
que amar outra pessoa é que tem esse efeito. - Parou, e o silêncio suplicava por mais palavras. - Eu sei que vós não sentis o mesmo e eu não me importo. Acho que
é o que seria de esperar, e talvez um dia me importe. Neste
momento, amar-vos preenche-me tão completamente que me sinto grata por isso apenas.
As palavras dela tocaram-no tão profundamente que ele não conseguiu falar. Colocou-a gentilmente em cima dele, com a cabeça pousada no seu ombro e o rosto contra
o seu. Assim deitada, ele conseguia envolvê-la completamente com os braços e sentir o corpo dela junto ao seu.
Seria avisado serdes mais cuidadosa com o vosso amor. Quis dizê-lo, avisá-la. Não o fez. Em vez disso, ergueu o corpo para poder entrar nela outra vez, e para que
a paixão deles pudesse obscurecer o aviso, e a própria razão para o dar.
Empurrou-lhe suavemente os ombros, até ela estar sentada sobre as suas ancas, os dois ligados. A posição dominante confundiu-a. Ela parecia não saber bem o que fazer,
e surpreendida por os ver unidos antes de estar louca de vontade.
- Isto não está em nenhuma estampa que vós marcastes.
- Não. Não apreciais?
- É diferente, ter-vos dentro de mim antes de eu...
Ela voltou a verificar a situação. - E ficamos só assim? - A pergunta foi acompanhada de um pequeno movimento que, simultaneamente, lhe respondeu. Ela inclinou-se
para a frente para se reposicionar.
- Ficai assim, para eu poder tocar-vos. - Ele esticou-se para a acariciar. Ao seu toque, ele sentiu a excitação dela reavivar-se, o seu corpo a apertar-se à volta
dele. Estava bela, como uma estátua misteriosa tocada pela luz ténue do luar. Os olhos dela observavam as mãos que lhe percorriam o corpo.
O lânguido avolumar do prazer criou uma intimidade deliciosa. Ele percebia cada sensação que ela tinha, cada respiração.
Ela endireitou-se e lentamente percorreu o tronco dele com as mãos macias. Não dizia nada, mas a declaração de amor que lhe fizera estava no seu toque e na forma
como olhava para ele.
O seu coração queimava dolorosamente. Maravilhosamente.
Voltou a incliná-la para conseguir beijar-lhe os lábios, e depois mais ainda para a sua boca conseguir chegar-lhe aos seios.
Não teve de lhe mostrar o que fazer. Bastou o prazer. Enquanto a sua língua lhe estimulava os seios, ela encavalitou-se em cima dele. As suas ancas moveram-se em
resposta aos tremores profundos e delicados que os uniam tanto quanto os seus corpos.
O êxtase chegou lentamente, numa longa escalada para fora do mundo. Os gritos dela, os seus movimentos, o seu espanto face à intensidade - ofereceram-lhe a escapatória
perfeita para o seu espírito e o seu coração.
Ele não fez nada para apressar o fim. Retardou o convidativo clímax, não querendo abrir mão das camadas intensas que o prazer contemplava. Nos braços dela, por um
momento, deixava de ser escravo das memórias e da raiva.

CAPÍTULO 22
Dupré está a gastar dinheiro como um homem com grandes expectativas - informou Adrian. - Está a voltar a todos os sítios onde o levei para fazer compras, a encomendar
zinco e cobre e discos de prata, panelas e químicos e ferro. Montes de ferro.
Daniel tirou a camisa e pendurou-a no gancho do quarto de vestir. Seguiu com Adrian para o salão.
- Estou receoso pelo tal sócio dele, Daniel. Concordei ajudar-vos em Paris por causa daquela altura em que me tirastes de apuros na Síria. Falastes em acertar contas
sem derramamento de sangue, e pareceu pouco mais do que uma partida. Todavia, não gosto da ideia de alguém estar a ser arruinado.
- Tratarei de ver isso, e de garantir que nenhum inocente sai prejudicado.
Daniel não explicara a Adrian que o sócio era Andrew Tyndale. E certamente não expusera o facto de os planos para Gustave terem adquirido uma nova vida, bem diferente.
- Penso que devíamos expor o caso todo para termos certeza disso.
- A seu tempo, mas não agora. Eu retiro-vos qualquer responsabilidade. Sei quem é o sócio, e nem ele nem Dupré são dignos da vossa preocupação. Acreditai em mim
quando vos digo que os seus crimes são tão grandes que nem sequer as suas mortes os saldariam.
- Sentir-me-ia melhor se me contásseis a história toda, Daniel. É evidente, agora, que sei muito pouco.
- Acreditai, náo quereríeis saber a história toda.
Nem Daniel queria que ele soubesse. Se ficasse a saber de tudo, provavelmente julgaria que a honra o obrigava a alertar Tyndale. Um filho de conde sentir-se-ia obrigado
a proteger outro filho de conde.
Adrian parecia profundamente cético. - Receio que isto se tenha transformado numa fraude.
- Sempre foi uma fraude, só que agora é dinheiro que está em jogo e não uma reputação.
Não é a nossa fraude, contudo. Eu não incentivei Dupré a fazer o que faz agora.
Foi a ganância. E o sócio dele é um ladrão, assim como Dupré, e não se enganam os vigaristas. Não há pecado em mentir ao Diabo.
- Fica um bocado dúbio, não é verdade? Qual de vós é o Diabo, o trapaceiro?
Daniel fez uma saudação com o sabre. - De todo. Somos todos. Não tenho ilusões acerca disso.
Diane percorria o trilho do jardim num estado de deslumbramento. Flores alegres espreitavam à sua passagem e a pereira também se cobria de rebentos. Ela adorava
aquele jardim, e a casa, e a vida dela. Maravilhava-se pela forma como renascera naquele amor que era o seu. Fazia-a sentir-se segura e amparada, desejada e completa.
Todas as coisas que nunca conhecera existiam para ela agora. A rapariguita da escola podia mesmo nunca ter existido.
Jeanette estava sentada por baixo da pereira. Desde o casamento, também ela andava mais feliz. Agora eram irmãs, e Jeanette perguntava muitas vezes a Diane sobre
as festas e os espetáculos a que assistia. Diane tinha esperança de que Jeanette desistisse muito em breve de tanta reclusão e a acompanhasse a ela e à condessa,
ou a Daniel, quando saíam de casa à noite.
-Talvez quando o tempo ficar quente de mais no verão possamos ir todos para a Escócia - comentou Diane. Ia entregando a Jeanette as flores que apanhava. - Imagino
que gostásseis de visitar a casa enquanto estais em Inglaterra.
Levando as florzinhas ao nariz, Jeanette fez menção de encolher os ombros.
- Deixavam-vos lá sozinha quando Daniel ia para o mar? Deve ter sido muito solitário. Muito isolado, tendo em conta que o vosso pai já tinha falecido.
- Estar sozinha nunca me fez sentir só nem triste.
- Quem cuidava de vós? Paul já era um amigo?
- Nos primeiros anos que Daniel esteve no mar, foram duas mulheres que tomaram conta de mim. - Jeanette esboçou um gesto de impaciência. - Foi há muito tempo. Já
não penso nessa época. Depois de fazer a sua fortuna, Daniel pôs-me de novo em França, que é o sítio a que pertenço. Ao contrário do meu irmão, nunca poderia sentir-me
confortável aqui. Na verdade, vou pedir-lhe que trate de providenciar para breve o meu regresso a Paris. Estou há tempo a mais nesta cidade.
- Quem me dera que ficásseis connosco. Não gosto de pensar que casar-me com o vosso irmão signifique perder a vossa companhia.
- Ireis frequentemente a Paris. Tendes de insistir para Daniel vos levar. Não lhe agrada a cidade mais do que esta me agrada a mim, mas se lho pedirdes ele irá.
Diria para me visitardes sozinha, mas penso que ele precisa mais de vós do que eu.
Que coisa estranha para ouvir da boca de Jeanette. Daniel não precisava de ninguém, tanto quanto lhe era dado perceber. Ele vivera uma vida de independência e aventura.
Parecia satisfeito no casamento, até feliz, mas não precisava dela. Ele gostava da sua companhia, mas não tinha necessidade dela.
Levaram-lhes o correio. Jeanette deu uma olhadela ao punhado de convites e pousou-o com um resmungo.
Apesar do seu recolhimento, sempre tinham chegado convites para Jeanette, pequenas intrusões diárias que a irritavam. Chegavam
mais, recentemente, e Diane imaginava tratar-se de curiosidade por parte dos remetentes. A história do casamento de Daniel convertera a irmã invisível em assunto
de especulação. Algumas senhoras até tinham passado por lá, mas Jeanette não as tinha recebido.
- Ides desapontá-las - observou Diane. Tornou-se um jogo, ver quem vos apanha primeiro. Se decidirdes aceitar algum, espero que não seja de nenhuma mulher que tenha
desdenhado Pen.
- Se alguma vez mudasse de ideias, só a condessa seria digna de tal triunfo, asseguro-vos. Mas eu não vou andar a desfilar à frente dessas mulheres.
Diane viu as cartas que lhe eram dirigidas. - Aceitareis pelo menos o meu convite? Penso que darei um jantar entretanto. Pequeno, com Pen e os irmãos, e talvez Mister
Hampton, não que ele seja assim grande companhia, visto que é tão raro falar.
Perto do fim do monte estava uma carta de um papel menos refinado. Ela enfiou o polegar por baixo do selo simples. - O que achais? Consigo tirá-lo sem estragar...
Ela estacou e a voz morreu-lhe nos lábios. O seu olhar estava pousado numa palavra deveras surpreendente escrita no papel que tinha nas mãos.
Era o nome do sítio de onde a carta fora enviada. A localidade onde vivia quem a escrevera.
Fenwood.
A primeira linha de texto revelava que a carta fora enviada pelo pastor de Fenwood, Mister Albret. Ao fim de cinco palavras, ela compreendeu que Tyndale nunca chegara
a visitá-lo. A carta era a resposta à que ela enviara durante o fim de semana.
Leu-a rapidamente. O seu coração disparou, primeiro num ritmo grave, rápido, depois sonoro, gritante. A sua cabeça latejava com a sensação de ter lá dentro uma bigorna,
ressoando ao mesmo ritmo.
Ela captou a essência da carta, o suficiente para a deixar ofegante. Regressou ao início e voltou a ler. Enquanto absorvia as
implicações do conteúdo, o vigor da agitação abrandou até se tornar uma pulsação dolorosa.
Leu-a outra vez, tentando fazer com que dissesse algo diferente do que lá constava. O seu coração doía-lhe tanto que ela pensou que partiria. Foi difícil manter
o controlo. Sabia que, se não o fizesse, os pedaços dispersos seriam ainda mais esmagados pelas ondas de confusão que arremetiam contra a sua cabeça.
- Jeanette, onde é que Daniel está hoje?
- O que se passa, querida? Pareceis estar prestes a desmaiar.
- Onde está Daniel? - Ela ergueu os olhos da carta, para ver o rosto preocupado de Jeanette a fitá-la.
- Onde?
- Penso que foi a Hampstead, a cavalo. A casa do chevalier. Diane amassou a carta na mão e levantou-se.
A casa de Hampstead estava silenciosa, com o cavalo de Daniel amarrado na frente. Não se ouviam reverberações de aço a sair pelas janelas abertas.
Diane não esperou que o cocheiro abrisse a porta. Fê-lo sozinha, impaciente por se ver fora do espaço confinado. Por sua ordem, tinham-se apressado o mais possível,
e agora os cavalos resfolegavam e pingavam de suor.
A fúria que a fizera sair a correr de Londres esmorecera e transformara-se num desalento revoltado. Olhou para a carta, ainda amarfanhada na sua mão. Se ela nunca
tivesse falado com a criada... se nunca tivesse escrito ao pastor... se, como dizia a carta, ele tivesse seguido as suas primeiras inclinações e não tivesse respondido...
Se qualquer uma daquelas coisas não tivesse acontecido, ela teria sido feliz durante muito mais tempo.
O coração doía-lhe. Doía-lhe o peito todo. Ardiam-lhe lágrimas nos olhos. Desejou que lhe tivesse sido concedido mais tempo antes de a verdade se despenhar contra
o seu sonho, e voltar a esvaziá-la.
Queria desfazer-se da carta e fingir que nunca chegara. O seu amor queria-o, desesperadamente. Mas não podia ignorar aquilo.
Desviou-se da casa. Fora lá falar com Daniel, mas isso podia esperar. Ela não era assim tão corajosa que lhe apetecesse fazer as perguntas que tinha e ouvir as respostas
que ele daria.
Entrou no bosque e seguiu o caminho. Os seus pés sabiam para onde ir. Claro que sabiam. Sempre o haviam sabido. Ela não se perdera da primeira vez que ali fora.
Sem sequer pensar, encontrara o caminho da casa grande até à casa rústica.
A imagem veio-lhe com a aproximação da clareira. Desta vez não era a sensação de reviver um momento. Parecia-lhe decididamente familiar. Fragmentos de memórias apareciam
e desapareciam na sua mente, dos arbustos mais pequenos e do caminho mais largo.
Foi até ao poço e espreitou para baixo. Dentro da cabeça, ouvia o eco de uma voz de mulher a avisá-la para não subir porque era perigoso.
Virou-se, quase a contar ver uma mulher idosa de touca e roupas simples à porta.
A porta abriu-se, mas não viu mulher nenhuma. Quem apareceu foi George, o homem que lá vivia agora. Ele deteve-se e observou-a.
- Quereis alguma coisa? - perguntou, curioso. - Pareceis doente.
- Não estou doente. - Ela ficou a olhar para ele, pedindo à sua mente para cooperar. - Dissestes, da última vez que nos encontrámos, que estais aqui há anos. - Sempre
vivestes nesta casa?
Ele abanou a cabeça. - Costumava estar lá em cima, nos estábulos. Era moço, nesse tempo, quando havia muitos cavalos. Cavalariço-mor, mais para o fim. Depois, quando
ficou tudo vazio e todos se foram embora, passei a ser caseiro, até agora.
Cavalos. Sim, claro. Imaginou George, anos mais novo, sem o cabelo tão branco nem a barba tão grande.
- E a mulher que vivia na casa antes de vós? A senhora idosa? O que é feito dela?
- Alice? Conheceis Alice? Mas que raio... hum... desculpai, é que me espantastes. Ficou algum tempo, mas faleceu, ha... faz agora dez anos, por isso vim cá para
baixo. - Inclinou a cabeça.
- Como conheceis Alice?
- Sou Diane.
A boca dele escancarou-se, e depois abriu-se num grande sorriso. - Bem, raios me part... Bem me parecestes familiar da última vez. Não sabia bem o quê... Era qualquer
coisa... Claro, éreis só uma criancinha quando fostes embora. E que senhora estais agora, hein? Quem diria...
Sim, que senhora... Apenas uma pessoa não se surpreenderia com a transformação.
- Permitíeis-me que visse a casa? O interior?
Ele afastou-se e fez um gesto galante. - Mas claro que sim. Sempre foi a vossa casa em criança, não é?
Ela parou à soleira da porta e respirou fundo. A casa dela. Entrou.
Uma invasão de memórias, ancorando-se no que ela via. Não no espaço todo, apenas pormenores e sensações. A luz a atravessar a janela aberta e a pousar no chão. Um
odor, como o que há em todas as casas, específico deste sítio. As vigas do teto, e uma cuja ponta se separara.
A lareira. Vê-la subitamente trouxe-lhe memórias completas e precisas. A lareira no verão, fria e sem vida, e no inverno, uma fonte de calor e longos abraços.
Não ficou muito tempo nem pediu para ver as outras divisões. Não conseguia fazê-lo no mesmo dia. As lembranças não lhe traziam paz. Não preenchiam o doloroso vazio
que tinha dentro. Noutra altura talvez o fizessem. Noutro dia, quando o seu coração não soubesse que uma infelicidade terrível a aguardava, ela poderia gostar de
descobrir esta história que durante tanto tempo sonhara desvendar.
Reunindo coragem, regressou à outra casa. Atravessou o bosque e os seus pés não se enganaram nos caminhos. O percurso levou-a
a aproximar-se da casa de um ângulo que mostrava um pouco do lado e das traseiras. Aquela imagem, dos troncos inclinados a partir dos cantos direitos, podia ter-lhe
sido gravada a ferros no cérebro.
A familiaridade alarmou-a. Se da última vez ela tivesse regressado por aquele caminho e não outro, se não tivesse havido a distração dos beijos de Daniel ao pé do
ribeiro, ela teria compreendido o que este sítio era para ela.
Os beijos de Daniel... Parou e fechou os olhos para fazer recuar uma mágoa insuportável.
Encontrou-o na casa. Ouviu barulho de vozes e seguiu-o até um aposento nas traseiras. Pequeno e arrumado, com alguns objetos elegantes e mobília, parecia ser a saleta
privada do chevalier.
Ele e Daniel estavam sentados em duas cadeiras perto da janela, partilhando uma garrafa de vinho. Ambos tinham tirado os casacos. Compunham uma imagem de amizade
descontraída, de confiança absoluta.
Tinham ouvido alguém aproximar-se. A conversa parou antes de ela chegar. Quando deu por si à soleira da porta, a olhar para eles, eles olhavam para ela.
- Diane. - A inflexão da sua voz revelava surpresa e curiosidade.
- Tínhamos presumido que a carruagem era de um dos alunos de Louis.
- Sou só eu. - As acusações acutilantes e astutas tinham-na abandonado, assim como a fúria inicial. Só conseguiu olhar para ele e desejar que aquele dia nunca tivesse
começado.
- O que desejais, querida?
- Vim visitar a casa do meu pai. O rosto de Daniel transformou-se.
O chevalier franziu os lábios e levantou-se. - vou deixar-vos sozinhos.
Ela afastou-se para ele poder passar, e depois aproximou-se de Daniel. Ele voltara os olhos para lá da janela, para os bosques e o campo que desciam a colina.
- Não façais isso - disse ela, com a mão ainda a amassar a carta.
- Não me ignoreis dessa forma. Não agora.
Ele olhou para trás. Ela viu a expressão dele e soube que ele se sentia como ela, e que também desejava que aquele dia nunca tivesse chegado.
- Não estou a ignorar-vos. Nunca vos ignorei. Não estivestes uma única vez na minha presença sem que eu tivesse total e completa consciência de vós, mesmo quando
éreis criança e eu desejava poder anular a vossa presença.
Ele procurou-a, mas ela recuou. com um suspiro, deixou a mão cair. - Como sabeis que esta era a casa do vosso pai?
Ela abriu a mão para mostrar a carta amarfanhada. - O meu avô escreveu-me, em resposta à carta que eu lhe enviei. Não ia fazê-lo. Nem sequer sabe quem eu sou, mas
eu agora sei. Ele explicou o suficiente para eu entender.
- O que é que ele explicou que vos deixou tão angustiada?
- Que teve uma filha que morreu a dar à luz. Que ela não era casada com o pai do bebé. Que o pai ficou com a filha a seu cargo, numa casa que tinha em Hampstead.
O seu tom de voz elevava-se. As palavras jorravam descontroladamente.
- Que o homem que seduzira a filha estava na navegação, mas que ficou arruinado há mais de uma dúzia de anos, e que ele e a criança desapareceram.
Daniel observava-a e aguardava.
- Que o nome do homem era Jonathan. Jonathan Makepeace. Não Jonathan Albret, como me fizestes acreditar. Albret era o apelido da minha mãe. - A agitação dentro dela
levou-lhe a melhor. Queria bater-lhe, com toda a força. Em vez disso, atirou-lhe com a carta, que lhe bateu no rosto e caiu ao chão. - Enganastes-me. Deixastes-me
procurar pela família dele sem sequer me dardes o nome certo.
- Sim, enganei-vos. - Ele levantou-se e aproximou-se dela.
- Não me toqueis. - Ela afastou-se, contornando-o. Abrindo o braço, indicou a sala e tudo para além dela. - Como ficastes na posse deste sítio?
- Fiquei na posse dele por causa de uma noite de cartas.
- Conseguiste-lo no jogo?
- Eu era muito novo e Jonathan limitou-se a presumir que ganharia. No início foi simples, mas depois aumentou.
- Como aconteceu com Andrew Tyndale?
- Praticamente. Lá para o fim eu já ia muito à frente. O vosso pai era um homem imprudente. Apostou tudo o que lhe restava, os dois navios, a casa de Londres e esta,
numa jogada contra tudo o que eu tinha ganhado.
- Também tenho estado a viver na casa do meu pai, em Londres?
- Não. Vendi essa e comprei outra alguns anos mais tarde.
- E deixaste-lo fazer isso? Deixaste-lo apostar tudo?
As pálpebras dele baixaram. Um lampejo de escuridão. Por um segundo, voltou a ser o Homem Diabo. - Claro que sim.
- Não admira que tenhais feito fortuna tão rápido. Roubaste-la a outro homem. Nessa noite tirastes-lhe tudo! Foi assim que conseguistes os vossos primeiros barcos,
não foi?
- Foi assim que consegui os meus primeiros barcos.
- Como pudestes fazê-lo? Arruiná-lo assim? Não tínheis de concordar fazer a última aposta.
- Soube-me bem fazê-lo. Eu não gostava do vosso pai. Na verdade, desprezava-o. Ele tinha um fraco pelo jogo e foi isso que o arruinou, não eu.
Ela não conseguia acreditar que ele o dissesse daquela maneira. Diretamente. Friamente. - Espantais-me. Destruístes a vida dele e arruinastes a minha, mas não tendes
remorsos. Absolutamente nenhum.
- Não tenho remorsos por ele. Lamento que um inocente tenha sido prejudicado. A forma como vos afetou foi uma coincidência infeliz.
- Uma coincidência infeliz! Que maneira conveniente de dizer as coisas, Daniel.
Ele deu um passo em frente, para lhe impedir a passagem. As suas mãos fecharam-se sobre o braço de Diane e baixou os olhos para ela. - Eu não sabia nada de vós.
Ele não era casado; não tinha família. Eu só soube que havia uma filha quando vos vi.
Algo no aspeto dele não a deixava sossegada. Havia suavidade na sua expressão e arrependimento real, mas não pelo passado. Era o mesmo aspeto daquele dia na carruagem
a caminho das Tulherias, quando ela pedira informações.
Ela abriu a boca para falar, mas a pergunta que se formava estava-lhe presa na garganta. Ela sabia que não iria gostar de ouvir a resposta. - Como é que ficastes
na minha posse?
- A última aposta incluía esta propriedade e tudo o que nela estivesse. Quando cheguei para tomar posse, encontrei-vos aqui.
A verdade devastadora arrasou com a sua compostura. O seu pai abandonara-a. Virara-lhe costas e deixara-a entregue aos caprichos do destino.
Provavelmente deveria estar grata por Daniel não a ter despejado na paróquia local. Talvez um dia estivesse. Naquele preciso instante, a desolação era tão vasta
que não restava espaço para gratidões nem para mais nada além de uma centena de perguntas.
Algumas daquelas perguntas repetiam-se com insistência. - Porque me enganastes? Porque não mo dissestes logo em Paris? Não acho que fosse para me poupar o desgosto.
Se me deixastes pensar , que ele tinha outro nome, se me deixastes pedir informações sobre o homem errado, deveis ter tido uma boa razão.
Ele afastou-se e virou-se para a janela. Não a ignorá-la. Ela sentia que, apesar de o seu olhar estar mais além, a sua mente estava com ela por completo.
A raiva avolumou-se, como que para formar um escudo para a proteger do golpe que a sua alma sabia estar a avizinhar-se.
- Não era do meu interesse que alguém percebesse que sois filha de Jonathan Makepeace.
- Porquê? - Saiu-lhe num grito frustrado.
Ele voltou-se. - Porque Jonathan era um velho amigo de Andrew Tyndale, e eu não queria que Tyndale soubesse que eu me tinha cruzado com Jonathan, de forma alguma.
Não queria que Tyndale soubesse quem sois, e depreendesse que havia uma ligação com aquela noite de cartas há tantos anos.
Ouvi-lo admiti-lo só a confundiu mais. Tinha a cabeça cheia de fragmentos, de impressões e palavras todas misturadas.
Cruzou os braços sobre o peito, para manter o domínio de si.
- O duelo. Dissestes que não era apenas devido a mim. Dissestes que Jeanette não se oporia porque sabia a história toda.
O seu coração ecoava com gritos mudos, alguns acusadores, outros suplicantes. - Era o vosso plano desde o início, encontrar uma maneira de desafiar Tyndale? E não
era realmente por minha causa mas por outras razões? É por isso que não queríeis que ele soubesse da minha ligação a Jonathan? Daniel, trouxestes-me para Londres
e fizestes de mim uma senhora para ter uma oportunidade de enfrentar Tyndale?
Ela vislumbrou a resposta na expressão dele. Depois, o rosto dele tornou-se indistinto, pois lágrimas ardentes escorriam-lhe dos olhos.
- Foi o meu plano inicial, Diane, mas não consegui levá-lo até ao fim. Não era minha intenção que acabasse por ter esse resultado.
Ele não se limitara a enganá-la. Ele tencionara usá-la.
Ela não podia mais. Não podia ficar a ouvir mais daquilo.
Chorando tanto que nem sequer conseguia ver, saiu aos tropeções da sala e foi a correr para a carruagem. A voz de Daniel seguiu-a, chamando o seu nome.

CAPÍTULO 23
O homem maltrapilho seguia-o outra vez. Gustave olhou para trás. Era o mesmo ladrão que Adrian identificara, o da barba. O homem parecia andar a vadiar pelo bairro
onde Gustave se alojara. Sem dúvida que Adrian tinha razão e se tratava de um carreirista que atacava os homens de negócios e da lei que percorriam aquelas ruas.
Devia ter reconhecido o corte estrangeiro do casaco de Gustave e decidido que ele seria uma presa fácil, possivelmente.
Ter a sensação de ser observado era enervante. Gustave não gostava da ideia de ter havido alturas em que este homem pudesse tê-lo seguido sem que ele tivesse reparado.
Talvez o ladrão até soubesse do barracão do outro lado do rio.
O pensamento deixou-o desorientado. Podia ser desastroso.
Já era de mais. Ia mostrar àquele ladrão que fora desmascarado e que estava na altura de perseguir um homem menos astuto.
Gustave abrandou a passada. Parou, por fim, para examinar os livros expostos à frente de uma tipografia. Pelo canto do olho viu que o ladrão não continuou mas se
limitou a parar e esperar. Que descaramento.
Irritado, Gustave estugou o passo. Colocou alguma distância entre si e o homem, e entrou num café. Escolheu uma mesa perto da janela e viu o homem aparecer e passar.
Virou-se e também entrou no estabelecimento.
E aproximou-se e foi sentar-se à mesa de Gustave.
Realmente, era de mais.
- Se esperais que vos pague para me deixardes em paz, julgastes mal a vossa presa, msieur. - Gustave falou rispidamente, só se apercebendo no fim de que falara em
francês e que o criminoso nunca compreenderia. Confiou, contudo, que o seu tom de voz transmitisse a mensagem com suficiente clareza.
O homem sorriu e tirou o chapéu. - Pareceu-me que estava na altura de falarmos.
Para espanto de Gustave, a resposta também lhe foi dada em francês.
- Duvido seriamente que você e eu tenhamos alguma coisa do que falar.
- Temos muito do que falar. Por exemplo, podemos falar de como vos estão a fazer a cama.
-Vede lá...
- Não, vede vós. - Apontou para os seus olhos. Baralhado, Gustave olhou atentamente para os olhos dele.
O susto foi tal que ficou tonto. - Meu Deus, sois vós! Mas estais morto!
- Morto não. Apenas enterrado há muito tempo na bebida e pobreza ignóbil.
- É um choque tão grande... O que quereis dizer com estarem a fazer-me a cama?
- Estais a ser usado. Ficareis na ruína. - Esticou-se por cima da mesa. - Primeiro eu, depois Hercule, agora vós. Levados à ruína, um por um.
- Que disparate. Eu não estou a ser levado a coisa nenhuma.
- Ai não? Então porque estais em Inglaterra?
Gustave olhou-o com desdém. - Isso só me diz respeito a mim.
- Só a vós? Não está mais ninguém envolvido?
Gustave mexeu-se, sentindo-se subitamente desconfortável.
- Vós não fostes levado à falência. Foi o vosso caráter que vo-lo
ditou, tal como a Hercule. Vós sempre quisestes riqueza fácil, e ele sempre quis glória.
- E o que quisestes sempre vós, Dupré? Estais em Inglaterra nessa demanda, agora?
Uma pontada de ansiedade fez Gustave mudar novamente de posição.
- Então estou enganado. Sou apenas um homem que gosta demasiado de bebida, que viu esquemas que não existem. - Levantou-se. - E pensar que me dei a este trabalho
todo para avisar um velho amigo. Tive de me enfiar debaixo de um monte de lonas para atravessar.
Aquela apreensão voltou a incomodá-lo, arruinando a satisfação de Gustave em ver o fantasma partir.
- Esperai. Sentai-vos. Tomai um café. Dizei-me que esquema vedes.
Aguardaram que o café chegasse e o maltrapilho pediu alguns bolos, que ficaram para Gustave pagar.
- Falai - exigiu, começando a suspeitar que pretendiam extorquir-lhe uma refeição grátis.
- Quando perdi tudo, fugi para o Continente. Havia dívidas em Inglaterra... bom, é uma velha história. Vivi em Nápoles. Um dia, há mais de dois anos, logo depois
de Napoleão chegar a Elba, estava nas docas e vi um dos meus navios. Ah! Tinham mudado algumas coisas ao longo dos anos, mas eu reconheci-o.
- Então vistes o navio. E depois?
- Perdi o navio para Edward St. Clair. O navio estava na posse da mesma pessoa, só que era mais velha e tinha um nome diferente, Daniel St. John.
Um olhar perplexo no rosto de Gustave.
- Quando regressei a França, ouvi a história do pobre Hercule. Estranho que uma confidência em privado a um oficial inglês tenha chegado a público.
- E julgais que St. John...
- Ele jantava muitas vezes com os oficiais daquele regimento. Penso que aquele, quando estava com os copos, era indiscreto. Foi curioso ficar a saber daquela ligação
entre St. John e o oficial. Foi o que me pôs a pensar.
- Estou certo de que construís castelos no ar. E coincidência a mais. Vós e Hercule... tantos anos depois.
- Talvez. Mas pergunto-vos isto: vós também sois uma coincidência? De repente estais em Inglaterra, muito atarefado com alguma coisa. Alguma vez vos encontrastes
com este St. John, ou St. Clair, ou seja lá qual for o nome dele?
A boca de Gustave ficou estranha. Demasiado húmida.
- A vossas diligências atuais estão relacionadas com uma reunião com St. John?
Gustave engoliu em seco. - Se tiverdes razão, então porquê?
- Eu, Hercule, e agora vós. Só há duas explicações. Primeiro pensei que St. John fosse alguém que soubesse da nossa ligação, de quando éramos novos. Agora pergunto-me,
contudo, se ele será meramente um agente de alguém que sabe.
- Um agente? É muito tempo para se ser agente.
- Não, se trabalhar para alguém com poder. Alguém que possa ser o seu patrono. St. John teve muito sucesso.
É bem recebido aqui em Inglaterra.
- Mas quem?
- Alguém, talvez, que preferisse que a nossa associação consigo ficasse enterrada com as nossas fortunas e reputações. Alguém com ambições, que não gostaria que
o mundo ficasse a saber de certas coisas que aconteceram há muito tempo.
Gustave dava um golo no café quando percebeu ao que ele aludia. De repente, sentiu azia.
- Dizei-me, Dupré, tendes tido negócios a tratar com Tyndale aqui em Inglaterra? Aquele barracão que visitais do outro lado do rio também é dele?
- Barracão? Que barracão? Estais engana...
- A razão pela qual pergunto isto é: St. Johri tem-se encontrado com Tyndale recentemente, e St. John sabe do barracão. Sei porque o vi lá um destes dias.
Diane sentia-se à deriva, como nunca havia estado. Experimentava a existência desenraizada e desnorteada que sempre temera. Saíra da escola, confiante que a verdade
a pouparia a uma vida daquelas. Em vez disso, a verdade lançara-a nessa direção.
Não voltou à casa de Daniel. Dirigiu a carruagem para uma rua onde se mudou para um veículo alugado e foi nele até à casa de Margot. No dia seguinte mandou buscar
um baú de roupas práticas e instruiu a criada de Margot para se recusar a dizer para onde o baú ia. Ela ainda não queria que Daniel soubesse do seu paradeiro, embora
tivesse enviado uma carta a Jeanette a assegurar-lhe que estava bem. Ao saber que ela tinha deixado Daniel, Margot deu-lhe espaço para recuperar e fazer planos.
Não estava pronta para fazer nenhuma das duas coisas. Sentia uma dor terrível, que a deixava apática e sem concentração. Era como se o vazio tivesse regressado,
ganhado vida, e se tivesse apoderado do seu corpo e do seu espírito. Oscilava entre raiva e desolação e uma desilusão devastadora. Na sua mente, recordava continuamente
cada detalhe do tempo que passara com Daniel, apesar do esforço que fazia para nem sequer pensar nele.
Por detrás daquela angústia devastadora, circulava outra emoção, igualmente arrasadora. Um enorme desejo de que as coisas tivessem sido diferentes. Uma mágoa nostálgica
por até as memórias de terna intimidade terem sido completamente destruídas.
Ela não acompanhava Margot a festas e visitas. Quando Margot recebia, Diane ficava no quarto. Ela não pertencia ao mundo de Margot. Não pertencia a mundo nenhum.
O que não impediu um daqueles mundos de ir ter com ela ao outro.

Três dias depois de ter recebido a carta do pastor, Margot deu uma festa. Diane manteve-se fora de circulação, mas à noitinha esgueirou-se até à cozinha para fazer
uma chávena de chá. No corredor que dava para o aposento onde os convivas jogavam às cartas, quase esbarrou com Vergil Duclairc.
Ele ficou muito surpreendido por a ver, e um pouco constrangido por ela o ter visto a ele. Antes de ele fechar prontamente a porta do aposento, ela vislumbrara o
rosto de uma certa cantora de ópera.
- Então estais aqui. St. John está... bom, o vosso marido está consternado. Visitou logo a minha irmã, à vossa procura.
Razão pela qual ela não procurara Pen. - Ele sabe que estou em segurança.
Vergil conseguiu mostrar-se severo e atencioso ao mesmo tempo. - Não vai resultar. Sabeis disso.
- Não é assim tão raro. Pen...
- O marido de Pen é um canalha da pior espécie.
- Talvez o meu também seja.
- Isso não é verdade. Conheço St. John e...
- Eu acho que vós e eu somos jovens de mais para conhecer um homem como St. John. Por favor, permiti-me que passe. Estais a interferir, como é apanágio dos homens.
Ele lançou um olhar à porta do aposento por trás da qual Margot e os seus amigos riam e jogavam. - Não podeis ficar em casa desta mulher. Não é apropriado e vós
não pertenceis aqui.
- Eu não pertenço a lugar nenhum. Pelo menos aqui não tenho amigos do meu marido a repreender-me todos os dias. Infelicidade a minha que a vossa amada tenha conhecido
Margot, senão era poupada a repreensões.
Ao ouvir a alusão à sua cantora de ópera, ele afastou-se com relutância.
- Peco-vos que não digais a St. John onde estou.
Ele não disse nada, o que significava que lhe contaria mesmo. Diane não dormiu naquela noite. A sua mente ensaiava o confronto que estava para vir. Ela não sabia
o que lhe diria.
Na manhã seguinte, bem cedo, muito antes de serem horas de receber, anunciaram-lhe que tinha uma visita. Não era Daniel. Uma senhora, que não dera nome. Pensando
que Vergil tivesse enviado a duquesa para a persuadir, Diane saiu do quarto para ir para a sala de estar.
Chegou no momento em que um homem muito grande pousava uma mulher de véu numa cadeira. Jeanette afastou o véu e indicou a Paul que saísse.
Diane curvou-se e beijou-a. - Estou surpreendida por vos ver aqui, Jeanette.
- Eu é que estou surpreendida por vos ver a vós aqui, na casa de uma cortesã.
- Dificilmente poderia procurar a condessa. Ela já tem tribulações suficientes sem que se saiba que deu abrigo a uma mulher que deixou o marido. As pessoas dirão
que está a formar uma Sociedade de Esposas Desobedientes.
Jeanette não achou piada ao gracejo. - Devíeis estar com o vosso marido, não aqui nem com a condessa.
- Jeanette...
- Sentai-vos.
Muito à semelhança da ordem de Madame Leblanc naquele último dia na escola. Diane obedeceu.
- O que estava na carta que lestes no jardim no outro dia? Que maledicência vos escreveram, para vos fazer abandonar o meu irmão? - inquiriu Jeanette.
- Não foi maledicência. O homem que a escreveu não sabia o significado que o conteúdo teria para mim. Ele presumiu que estava apenas a explicar-me que eu estava
errada em pensar que ele e eu éramos parentes. Não vos contarei o que dizia. Não quero falar-vos mal de Daniel.
- Quereis poupar-me? É amoroso. Não há nada que pudésseis dizer-me sobre o meu irmão que me surpreendesse. Não, não é bem assim. O afeto que ele tem por vós, as
mudanças que suscitou... suspeito que conhecestes um lado dele que eu nunca conhecerei.
Agora dizei-me o que ficastes a saber sobre o outro lado, aquele que eu conheço muito bem.
Diane descreveu o conteúdo da carta e a prova da traição de Daniel. Explicou as revelações ouvidas durante a discussão deles em Hampstead.
Jeanette não pareceu surpreendida com a história. - Sim, estáveis destinada a ser
um engodo. Culpai-me a mim como o culpais a ele. Não impedi nada, e ajudei-o.
Em altura nenhuma ele tencionou que fôsseis magoada, nem o teríeis sido. Era perfeito. Vós éreis perfeita. Tyndale gosta de raparigas como vós, refinadas, e inocentes.
Tem por elas uma fraqueza nada saudável que não se atreve a satisfazer com as filhas da sua própria classe. Não se sentiria tão constrangido com a prima de um armador.
Desenrolou-se tal como Daniel previra, à exceçáo um inconveniente.
- O que foi? - A confirmação de que Jeanette estivera sempre ao corrente de tudo só a fez sentir-se pior.
- O meu irmão apaixonou-se por vós.
- Não acredito. Acho que ele concluiu que o plano funcionaria ainda melhor se Tyndale importunasse uma esposa e não uma prima. Acho que o plano ainda não estava
concluído. Acho que, e visto que Daniel foi forçado a recuar por causa do que aconteceu comigo naquela noite, ele encontrou outra forma de concretizar o que planeara.
- As palavras saíam-lhe em torrente do lugar mais triste do seu coração.
- Que disparate. - Jeanette afastou a ideia com um aceno de braço. - Se o meu irmão fosse tão pouco honrado, não teria mantido o acordo que fez convosco.
Diane mordeu a língua para não lhe sair pela boca fora que a própria Jeanette não esperara que Daniel mantivesse o acordo e fosse honrado.
- Ele não explicou a razão pela qual queria uma forma de atingir Tyndale, pois não?
- Não quero ouvir.
- É indiferente. Ele nunca me sujeitaria ao constrangimento de ver a história revelada. Penso que é essa a razão pela qual não veio aqui ontem à noite para vos levar
para casa, depois de ficar a saber onde estáveis. Eu posso contar-vos, porém, a parte que ele nunca contaria.
Ela abriu os braços com um floreado dramático. - Andrew Tyndale é responsável por isto. Pelo facto de Paul ter de me carregar até aqui, em vez de ser eu a andar
por meus próprios pés. Ele é a razão pela qual não vou a Inglaterra, e não saí daquela casa.
- Estais a dizer que ele vos conhece?
- Ele conhece-me. Se me reconheceria já é uma coisa diferente. Talvez sim. Afinal, há vinte e quatro anos fui sua amante.
- Amante?!
Jeanette notou a surpresa de Diane com uma satisfação mórbida. - Eu era uma rapariga. Tinha dezassete anos. A minha família estava a tentar sair de França e ele
ofereceu-se para ajudar. Pôs-me em Inglaterra primeiro, clandestinamente. Eu levava jóias e dinheiro, para que quando os outros chegassem houvesse um lugar à espera
deles. Eu era ignorante e crédula, e quando ele me seduziu pensei que era amor.
Diane não teve dificuldade em ver o rosto de Tyndale, anos mais jovem, amável e preocupado, falando em afeto e aludindo a casamento.
Afinal, dissera-lhe a mesma coisa a ela.
- Ele levou-me para uma propriedade obscura. O tempo passou e não me chegavam notícias da minha família. Sempre que ele lá ia eu perguntava-lhe, e ele dizia-me que
aquelas coisas demoravam tempo. Eu estava isolada e não tinha notícias do que acontecia em França. Mesmo assim, fiquei desconfiada. Finalmente confrontei-o e exigi
ser levada para Londres. Daquele dia em diante tornei-me prisioneira. Mas, vendo bem, era o que sempre fora. Continuou a usar-me, mas depois daquilo não houve ilusões.
Eu tinha pavor às visitas dele. Odiava o toque dele. Finalmente, uma vez ele estava de visita e eu não consegui suportar mais. Roubei
um cavalo e fugi. Era inverno, e o cavalo atirou-me ao chão. Eu caí de costas e não conseguia mexer-me.
A voz dela relatou os terríveis factos em frases neutras e rápidas. Diane ficou com a impressão de que Jeanette raramente falara naquilo antes, e só a força de vontade
lhe permitia manter a compostura.
Jeanette olhava em frente, subitamente com os olhos em chamas. - Ele seguiu-me. Encontrou-me, num baldio, estropiada. Ainda me lembro das palavras dele. - bom, assim
já não me servis de nada. - Deixou-me ali. Levou o cavalo.
- Podíeis ter morrido.
- Ele provavelmente presume que sim.
- Julgais que foi a intenção dele?
- Por que outra razão deixar uma mulher ao frio sem ter como se salvar? Aconteceu, porém, que de noite passou um agricultor e eu chamei. Ele pôs-me na carroça e
levou-me para casa dele. A mulher e a filha tomaram conta de mim. Vivi com eles durante anos, acamada. E, um dia, o Daniel entra na casa. A última vez que o vira
era um rapaz. Ele andara à minha procura. Sempre que estava em Inglaterra procurava as propriedades que a família de Tyndale tinha e perguntava naquelas partes por
uma francesa jovem, de cabelo escuro. Finalmente encontrou-me e levou-me para França.
Abriu as mãos, anunciando o fim da história. Diane mal conseguia absorver o horror que devia ter sido a vida de Jeanette. Anos de medo e impotência.
- Quando Daniel vos procurava, porque não se limitou a confrontar Tyndale e perguntar onde estáveis?
- Há boas razões pelas quais não podia, mas essa é a história do meu irmão, não a minha.
Chamou Paul. Ele estava logo ali, do outro lado da porta, como sempre. Ouvira tudo. Pela sua expressão, Diane adivinhou que ele já conhecia a história.
Ele ergueu a sua senhora nos braços. Do seu poiso, Jeanette baixou os olhos para Diane. - Estais tão branca. Amanhã promete
ser um dia bonito. Penso que devíeis dar um passeio em St. Jamess Park amanhã. Paul disse-me que há lá um pequeno lago rodeado de junquilhos. Far-vos-á bem ir até
lá. Ninguém deve ficar em reclusão a não ser que haja uma excelente razão para tal.
Dupré estava a comportar-se de forma muito estranha. Normalmente Andrew não reparava, pois Gustave era sempre um homem peculiar. Era o típico picuinhas que investia
muito na aparência mas que conseguia parecer constrangido e desconfortável em vez de elegante. Aqueles anos todos com o nariz enfiado nos livros tinham-no deixado
com a cara de uma mulher, e tinha um sem-fim de maneirismos quase intoleráveis.
Naquele dia, porém, o comportamento de Dupré era estranhamente cauteloso. Hesitava antes de responder a qualquer pergunta. Até quando estava parado se remexia. Estava
inquieto.
Andrew observou a elaborada demonstração que o barracão albergava, e as suas inquietações transitaram de Dupré para o dinheiro que aqueles cilindros e aquele ferro
representavam. Custara uma fortuna satisfazer as exigências de St. John com respeito a provas. Era melhor que o homem ficasse satisfeito quando tudo estivesse pronto.
Dupré fez má cara ao olhar para um enorme pedaço de ferro metido numa panela de metal muito funda. - Preocupa-me este. O cobre da tina pode afetar as coisas.
- Talvez seja pelo melhor. Talvez fiquemos a saber que o processo melhora quando se utiliza cobre.
- Eu ainda não sei porque insististes numa experiência tão elaborada e tão cara. A última foi esclarecedora, como eu disse que seria.
- Assim podemos calcular melhor o custo e avaliar o lucro. Não serviria de nada começarmos a vender aço que não conseguimos produzir rapidamente ou que custasse
mais do que conseguimos recuperar.
Dupré alvoroçava-se como uma velha. - Aquele grandalhão lá fora, porque está aqui? :
- Para proteger o barracão, já vos disse.
- Não estou a gostar. Ele não fala francês. Vim ontem e ele não me autorizava a entrar.
- Se me tivésseis informado que viríeis, eu tê-lo-ia alertado. Dupré cruzou os braços, descruzou-os, e voltou a cruzá-los.
- Não gosto que estejais a tomar essas decisões sem mim, como se escond... como se não confiásseis em mim.
Andrew olhava para um pedaço de ferro no qual fizera algumas marcas. As palavras que Dupré quase pronunciou captaram-lhe a atenção, porém. Como se escondêsseis alguma
coisa, quase dissera.
Sim, Dupré comportava-se de forma muito peculiar naquele dia.
Aproximou-se e colocou o braço por cima dos ombros de Gustave. - O que está a perturbar-vos, velho amigo?
Os lábios de Gustave comprimiram-se, conferindo-lhe um aspeto muito afetado. - Não é nada. Apenas não previ esta etapa. Não calculei que demorasse tanto. - Apontou
para os cilindros. E isto tudo. Eu dei-vos a prova que queríeis. E de repente estais a fazer uma demonstração como se fossem precisas mais provas. Insististes que
usasse a pouca fortuna que tinha para construir isto tudo.
- A maior parte dos fundos foram meus. Não era descabido que vós também assumísseis o risco.
- Foi o que combinámos. Dou por mim a perguntar-me por que razão queríeis isto, é tudo.
- Pareceis estar desconfiado de mim. Não é bom numa sociedade.
- Simplesmente me pergunto se estais a dizer-me tudo.
Por sorte, Dupré não era tão subtil quanto era peculiar. - Pareceis acreditar que não. O que vos faz pensar assim?
- Eu não...
- Ora. com uma fortuna destas em jogo, não podemos andar a discutir por um assunto menor. Falemos francamente.
Observou Dupré a debater-se. Feita a escolha, o semblante de Gustave assumiu uma expressão emproada, superior. Sim, o néscio não conseguia nunca resistir à oportunidade
de exibir o seu brilhantismo.
-Tenho razões para crer que deixastes que arriscasse tudo deliberadamente. Suspeito que este ferro vai, misteriosamente, deixar de se transformar em aço. Fareis
alguma coisa, adicionar químico novo, talvez, que abortará o processo.
- Porque é que, em nome de Deus, eu faria algo tão estúpido?
- Para que eu pensasse que não resultara e voltasse para França, arruinado tal como os outros foram arruinados, e a descoberta fosse
apenas vossa.
Andrew riu. - Que mente maquiavélica me atribuís.
- Eu sei a mente maquiavélica que tendes.
- Se engendrasse tudo tão bem, seria dono do mundo. Vós viestes até mim, Dupré. Ou já vós esquecestes disso? E só vós sabeis a fórmula química. Estais recordado?
- Não estou certo disso.
- De quê?
- Não estou certo de que também não a tenhais. Afinal, eu recebi-a do vosso conspirador.
Dupré disse-o com um ar de superioridade insuportável. Muito confiante, Andrew teria rido novamente não fora a centelha de satisfação nos olhos do homem.
- O meu conspirador?
- O vosso conspirador secreto. O homem que enviastes para nos arruinar, para proteger a bela reputação que tendes.
- Dupré, se eu julgasse que vós ou alguém pudesse prejudicar-me, não me ficaria pela destruição. Matar-vos-ia simplesmente. Se eu tivesse a fórmula, como sugeris,
não teria de vos levar a descobri-la confiando na probabilidade de me contactardes para financiar o projeto. Pensai, homem. Não dizeis coisa com coisa.
A palavra "matar" deixou Gustave de olhos arregalados. O seu olhar foi direito à porta, como se procurasse uma hipótese de fuga.
- Acalmai-vos. Apenas ressalvo que este esquema que mostrais é demasiado improvável, até para mim. - Andrew apertou mais os ombros de Dupré. - No entanto, agora
preciso de saber por que razão acreditais que eu tenho um conspirador que sabe a fórmula.
Uma linha de suor humedecia a testa de Dupré. - Disseram-me que tinha estado aqui outra pessoa, além de vós e de mim. Foi visto outro homem. E este mesmo homem vendeu-me
o manuscrito que continha a fórmula e a maior parte do processo. É também o mesmo homem que foi a desgraça dos outros.
Andrew tinha o olhar pregado naquela linha de suor e deu por si a contar cada minúscula gotícula. Um arrepio trespassou-o como um aviso. - Quem vos disse isso? Quem
viu este outro homem?
Dupré selou os lábios. Idiota. Como se conseguisse manter o silêncio quando Andrew queria a informação.
- Dizeis que um homem vos vendeu o manuscrito que continha a maior parte do processo. Onde fostes buscar o resto? Através de experiências?
Dupré assentiu com a cabeça, mas a verdade estava-lhe nos olhos.
- Onde o fostes buscar, Gustave? Não se trata de uma prova matemática que não interessa a ninguém. As nossas fortunas podem estar dependentes de que mo digais.
Dupré contorceu-se e libertou-se. Os seus olhos arregalaram-se. - Como sabeis? A prova... fui buscar o cálculo do número de células à biblioteca, tal como fiz com
a prova.
Santo Deus.
- E quem vos vendeu o manuscrito?
- O vosso amigo, Andrew. Foi Daniel St. John quem mo vendeu. Santo Deus.
De repente, Andrew teve uma imagem mental de um túnel constituído por várias secções, cada uma das quais uma das suas ligações recentes a St. John. No final do túnel,
olhando fixamente para ele, estavam os olhos satisfeitos do próprio Diabo.
- Seu idiota, Dupré. Seu perfeito idiota.
- Eu é que sou o idiota? Como vos atreveis a insultar...
- Ponde esse vosso brilhantismo inútil e questionável a funcionar em algo prático por uma vez na vida.
- Porque gritais? Sou eu quem devia estar irritado. É óbvio que pusestes este St. John a conspirar para vós.
- A conspirar não, a investir. Mas tendes razão, ele atraiu-vos para a desgraça e agora vós também me arrastastes.
- Como é que isto ficou a ser culpa minha?.
- Pensai. Pensai. Quem poderia saber que o resto do processo estava algures naquela maldita biblioteca?
- Foi coincidência. Está sempre a acontecer na ciência.
- Não foi coincidência. Quem vos vendeu o manuscrito foi alguém que conhecia o homem a quem a biblioteca pertencera. Alguém que sabia que outro homem começara a
trabalhar no processo, e que os apontamentos dele podiam ser encontrados naquela biblioteca. - Agarrou em Gustave e deu-lhe um abanão firme. - Alguém que sabia como
é que vós havíeis ficado na posse da biblioteca.

CAPÍTULO 24
Ele foi à procura dela à primeira claridade da manhã, atravessando o parque em largas passadas, com uma expressão séria e determinada. Daniel estava absorto e atento
ao mesmo tempo.
Diane observava atrás de uma árvore. A preocupação que lhe via nos olhos aumentava a confusão que sentia e minava a sua determinação. Quem diria que chegaria o dia
em que ela veria Daniel St. John preocupado.
Ele parou onde Jeanette lhe dissera a ela para estar, num sítio onde flores amarelas enfeitavam o lago. Não a vendo, ficou a olhar para a água à espera dela.
O coração ferido de Diane alvoroçou-se. Ele estava tão belo. A sua aparência evidenciava grande cuidado. O lenço estava atado na perfeição, e parecia pronto para
um retrato de família. As suas botas brilhavam ao sol matutino, com gotinhas de humidade que cintilavam como diamantes. Até trazia chapéu, que passava de uma mão
para a outra como se não soubesse onde o pôr. Ela suspeitava que o criado de quarto dele tinha ficado encantado e ao mesmo tempo perplexo com as súbitas exigências.
Ela não sabia bem porque tinha comparecido. Fora uma decisão impulsiva. As revelações de Jeanette explicavam as ações de
Daniel, mas isso não era o mesmo que desculpá-las. O seu coração não conseguia absolvê-lo completamente, por muito que ela o desejasse.
Talvez fosse melhor ir-se embora sorrateiramente, ou limitar-se a aguardar até ele se cansar e ser ele a partir.
Sem saber porque o fazia, saiu silenciosamente de trás da árvore. O corpo dele ficou quieto ao sentir a presença dela. Manteve a pose durante uns cinco segundos
e depois voltou-se.
Ela perguntou-se o que ele estaria a conter durante aquela pequena pausa. Alívio? Raiva?
- Jeanette disse-me que talvez vos encontrasse aqui hoje de manhã. Julgou que talvez aceitásseis falar comigo.
- Estou aqui, apesar de não saber muito bem porquê.
- Seja qual for a razão, estou grato.
Daniel St. John, grato? Queria acreditar, mas uma nova prudência, que a fazia sentir-se velha e gasta, alimentou a desconfiança.
- E eu estou grata por não me terdes forçado a regressar.
- Quase o fiz. Penso que poderei ter de o fazer, mais cedo ou mais tarde.
As implicações daquela afirmação não lhe passaram despercebidas. Ainda poderia fazê-lo, mais cedo ou mais tarde. Pelo menos era honesto e não arvorava uma equanimidade
que não era verdadeira.
- Jeanette falou-me acerca de Tyndale e do que ele lhe fez. Explicou porque tencionáveis usar-me para chegar até ele.
- Só posso pedir-vos perdão por isso. Sei que não tenho direito de o esperar.
- Eu julgo compreender. Tínheis um objetivo e eu era um meio para o alcançar. Era meramente um isco, sem estar em perigo. O meu papel seria uma coisa menor, comparado
com o luxo e os confortos que recebi.
- Sim.
- Esperastes largo tempo para terdes a vossa vingança. Anos, aparentemente.
- Sim.
- É o vosso único objetivo na vida? A vossa alma pertence-lhe?
- Isto saiu-lhe, revelando a dor que queria dilacerar-lhe o coração, e a suspeita que não parara de crescer toda a noite. Não há espaço para mais nada, nem mesmo
para mim? O que me destes resumiu-se a paixão e piedade?
- Porque não deixamos o Céu e o Inferno julgar-me a alma? Aborrecido, olhou o chão por um momento e depois os olhos dela. Um fogo que ela conhecia e temia deflagrara.
O Homem Diabo emergira, convocado pelas suas perguntas.
- A minha irmã contou-vos demasiadas coisas, mas, ainda assim, não vos contou tudo. Na verdade, o crime de Tyndale para com ela ainda foi o menos.
- Eu diria que foi pesado o suficiente. Compreendo o ódio que nutris por ele.
- Sois incapaz de compreender o ódio que tenho por ele. Sois boa de mais.
- Nem tanto. Também já não tão inocente. Há dois dias detestava-vos um pouco, por isso até comecei a aprender algo sobre essa emoção, como aprendi sobre o amor.
Talvez devêsseis confiar na minha capacidade de compreender. Foi por isso que viestes, não foi?
- Não tenho a certeza do que me fez vir. Provavelmente a esperança de ver algo no vosso rosto além da desilusão que mostrava quando fugistes em Hampstead. Não consigo
aceitar que essa seja a última imagem que tenho de vós a olhar para mim.
A tristeza com que ele o disse tocou-a. Aproximou-se dele e olhou fundo nos seus olhos. Ele não veria desilusão. As suas reações haviam-se tornado mais complexas
e confusas do que isso.
- Podíeis ter-me dito, Daniel. Assim o choque teria sido menor. Se a confidência tivesse partido de vós, os meus sentimentos por vós poderiam ter vencido a minha
consternação.
- Quase o fiz. Várias vezes. Tencionava fazê-lo.
Mas algo o detivera. -Talvez seja altura de o fazer agora. Jeanette disse que havia mais.
Ele olhou novamente para a água. - Não estou acostumado a falar nisso. Vós conheceis os meus pecados, ou a maior parte deles. O resto não tem assim tantas repercussões
sobre mim.
- Suspeito que o resto tem grandes repercussões sobre vós. Sereis sempre um mistério, Daniel. Considero que um homem como vós nunca se conhece realmente. Contudo,
este mistério eu não posso permitir que continue, a não ser que preservá-lo seja mais importante para vós do que eu sou.
Ele assentiu com a cabeça e soltou um suspiro de resignação.
- Tyndale tinha ficado de utilizar o dinheiro e as jóias que a minha irmã trouxe para Inglaterra para tirar, clandestinamente, a minha família e outros de França.
Era um bom plano, devidamente elaborado e vendido a pessoas desesperadas. Teve ajuda de outros, mas a ideia foi dele.
- Foi o que a vossa irmã disse. E vós viestes para Inglaterra, mas ele impediu-a de ver a vossa família.
- Não foi assim que se passou. Tyndale ficou com tudo, e abandonou trinta pessoas à sua sorte. Esperámos numa faixa de terra pelo navio que viria salvar-nos,
e ele nunca apareceu. Em vez disso, chegou o exército francês, e quase todas aquelas pessoas, indefesas, foram levadas. - Cerrou os dentes. - Eu era um rapaz, mas
lembro-me claramente. De cada pormenor. E sonho com aquilo. Vejo as caras, esperançosas e pacientes, e depois desesperadas. A guilhotina aguardava a maior parte
delas.
Ao contrário de Jeanette, ele não narrava calmamente a sua história. Cuspia-a, como se o cenário da traição se desenrolasse na sua cabeça.
- Fostes levado com eles?
- Eu estava com Louis, e longe dos outros quando o exército veio. Vimos tudo a acontecer e depois fomos para Paris, para ver se os meus pais tinham sido soltos.
O meu pai sim, mas era um homem destruído, tinha perdido o juízo. A minha mãe...
Voltou abruptamente os olhos para o pequeno lago, contemplando a água com aquela expressão alheada.
Ela aproximou-se mais, até o seu corpo quase tocar o dele. Viu, pela primeira vez, a dor subjacente àquela expressão velada. Partiu-lhe o coração, tão completamente
absorveu ela aquela angústia.
A dor sempre estivera ali. Ela fora cega, era tudo. Vira apenas o rosto que ele mostrava ao mundo e não as emoções que a máscara escondia.
- O que aconteceu à vossa mãe?
- Morreu.
- Como?
Ele cerrou os dentes. - A minha mãe vinha de uma família marcada por alguns revolucionários. Dantes não importara, mas na altura, durante o terror... - Os olhos
dele passaram rapidamente por ela e depois afastaram-se, como se olhar para outra pessoa tornasse a revelação demasiado difícil de fazer. - Foi executada. Eu caminhei
ao lado da carroça dela, apesar de Louis tentar impedir-me. Eu fui a última coisa que ela viu antes de a amarrarem àquela tábua e lhe baixarem o pescoço.
Ela parara de respirar e agora arquejava profundamente para não desfalecer.
Ele vira. Criança, ele vira tudo.
- Ela não tinha nada a ver com nada daquilo - disse, amargamente. - Mas o país tinha ficado sedento de sangue, e ela tinha o nome errado. E era assim tão simples,
tão implacável. - Olhou de novo para ela. - Ainda vejo caras. As caras raivosas da multidão, ávidas por ver mais uma cabeça rolar. As caras enfastiadas dos carrascos.
O rosto dela, o terror, no fim... sim, vingá-lo, e à minha irmã, e a tudo o que aconteceu, consome-me a alma. Tem sido o único propósito da minha vida. - A afirmação
saiu-lhe com tanta dureza que teve a força de um juramento.
- Não admira que não hesitásseis em arruinar um homem às cartas, para acederdes à sua riqueza, ou usar-me como um mero isco. Julgo que não consigo culpar-vos por
nada disso. Depois de tamanha traição, e de tão horrível desfecho, compreendo que o objetivo seja mais importante do que qualquer outra coisa.
A raiva e a amargura de Daniel desapareceram com as palavras dela, como se o tivesse chamado de outro sítio. O seu rosto suavizou-se tanto que parecia um rapaz.
Pegou na mão dela com as suas.
- Não é mais importante do que vós. Foi com espanto que constatei que vós importáveis mais.
- Penso que conseguis sempre os vossos objetivos, Daniel.
- Não este, penso eu. E agora vós jamais sereis o meio para o conseguir.
- Não tenho a certeza de acreditar no que dizeis.
- Foi o que disse minha irmã. Disse-me que suspeitais que casei convosco para ter um motivo ainda melhor para desafiar Tyndale depois, quando ele continuar a perseguir-vos.
Estais enganada. Não foi por isso que casei convosco.
- Não espero que admitais uma coisa dessas.
- Então não vos fiqueis pela palavra do vosso marido, mas do homem que agora sabeis que sou. Quando vos tirei a inocência, destruí o fascínio que ele tem por vós.
- Então arruinastes um grande plano por alguns momentos de paixão. Não admira que me resistísseis tanto. A minha sedução levou-vos a um muito mau negócio, não foi?
- Foi o melhor negócio da minha vida, querida.
- Não, não foi. O que posso oferecer não é par para emoções sustentadas por anos de raiva. Acho que ides acabar por mo cobrar.
- De repente, apercebeu-se de uma coisa. - O silêncio na primeira noite, depois... já estáveis ressentido comigo, não estáveis?
Ele levou a mão dela à boca e beijou-a com doçura. - Sim. Ela não estava a contar com aquela palavra. Aquela honestidade. Arrancou-lhe as defesas de uma maneira
brutal.
- Vede o que está entre nós, Daniel. Traição e mistérios. Vós arruinastes o meu pai, fizestes-me órfã, e agora eu interferi com o vosso sonho de vingança.
- Não posso justificar as traições, Diane. Só posso jurar-vos que não lamento a interferência.
- Verdade? Deve ser um fardo pesado. Conseguis viver sem o ter resolvido?
- Julgo que posso viver com qualquer coisa se vos tiver comigo.
- Beijou-lhe novamente a mão. - Voltai para casa. Agora. Dizei que sim.
A proximidade dele, os lábios dele na sua pele e a sua respiração quente a roçar-lhe a mão, deixaram-na tonta. A simples presença dele enfeitiçava-a, como sempre
acontecera. Ela sentiu que ele derramara sobre ela toda a força do seu magnetismo, deliberada e desavergonhadamente.
Ela quase sucumbiu. O seu amor respondeu a todas as partes dele que ela sabia serem boas. Mas agora o mistério e a circunspeçáo tinham uma razão e um propósito e
não podiam ser ignorados. Haviam-na excitado anteriormente e ainda era assim, mas ela reconhecia o perigo que representavam para o seu amor e a sua felicidade.
- Daniel, conseguis abandonar a vingança que procurais? Ter-me é tão importante que o façais?
- É o preço que pedis?
- Não estou certa de conseguir viver com isso como vós tendes vivido, sabendo agora que está sempre em vós.
- Não está em mim sempre. Já não está. Quando estou convosco desaparece. com o tempo, será uma coisa menor.
- Ou talvez não. Talvez um dia eu acorde e veja que não estais lá, e me digam que morrestes num duelo com ele, que tivestes finalmente o vosso acerto de contas.
Ela imaginou aquela manhã. Imaginou a iminência desse dia, ano após ano, e a visão dos seus olhos absortos, revelando que aquele dia, mais cedo ou mais tarde, chegaria.
- Também não me parece que queirais que se converta numa coisa menor. Não verdadeiramente. Por isso, sim. Receio que seja o preço de me terdes convosco.
O ultimato enraiveceu-o. Ela achou que ele o iria recusar, e partiria. Durante uma longa pausa não houve sons nem suspiros em
volta deles, apenas Daniel a pesar e a decidir, com os lábios pressionados sobre a pele da mão dela.
O coração de Diane batia dolorosamente. Ela não queria que ele fosse embora. Quando compreendeu a dimensão do ultimato que lhe fizera ficou sem fôlego.
O braço dele mexeu-se e rodeou-lhe a cintura. Puxou-a para si, e os seus corpos tocaram-se. Já havia outros visitantes a passearem-se perto do lago, mas ele não
se importava que fossem vistos.
A respiração dela tornou-se entrecortada, como se estivesse a ser esmagada, apesar de ele a segurar com meiguice. O pânico martelava-lhe no peito. Sabia que o seu
bom senso não poderia fazer frente ao desejo da sua alma, de acreditar em tudo o que ele lhe dissesse.
- Quero mesmo que se converta numa coisa menor, querida. Nunca pensei vir a querê-lo. Presumi que não haveria nada que pudesse ocupar o seu lugar. Aprendi que não
é assim. - Beijou-a com doçura, como um rapaz que beijasse uma rapariga. - Vinde comigo para casa. Deitai-vos nos meus braços e vamos construir um futuro juntos.
Descartaremos o passado. Se estiverdes comigo, consigo renunciar. Por vós eu consigo. Se é o preço de vos ter, fá-lo-ei.
A confiança que ele tinha nela deixou-a a tremer e com medo. Ela não tinha a certeza de que o seu amor conseguiria substituir o ódio. Era inconcebível ela ter semelhante
poder. Era impossível que ele a quisesse tanto que descartasse o propósito da sua vida.
Ele ergueu uma mão, chamando-a para si enquanto voltava a beijá-la, profundamente. Aproximou-a num abraço. No torpor, ela ouviu vagamente o ruído de uma carruagem
a aproximar-se devagar e a exclamação de desagrado de uma mulher que passou por perto.
O beijo dele levou-a à euforia. A promessa libertou as suas preocupações e foi com gratidão que ela as dispensou. Ele tinha razão. Podiam construir um futuro juntos.
Ela conseguia esquecer o que ele havia feito e fazê-lo feliz, para que ele nunca quisesse concluir a sua demanda. Claro que conseguia. Que conseguiam. Os beijos
dele assim o diziam. O seu abraço exigia-o. Ela era dele e mais nada importava.
Ele fê-la dar meia-volta e encaminhou-a para a carruagem. Ela não hesitou em entrar. A alma dela queria acreditar em tudo o que ele dizia. O amor deixava-lhe as
pernas bambas. O desejo físico iniciara o seu pulsar concentrado.
A porta da carruagem fechou-se. Ele pô-la no seu colo e envolveu-a num abraço que a chamou mais para perto. Não a beijou nem acariciou enquanto a carruagem fazia
o seu percurso. Apenas a apertou contra si, com a respiração a aquecer-lhe as fontes, a sua mão firme não permitindo qualquer distanciamento.
A viagem lenta e silenciosa excitou-a. Não precisava de demonstração nenhuma para saber o quanto ele a queria. Estava no ar e no silêncio dele. Ela sentia-a na tensão
do seu corpo e no ritmo seguro do seu coração.
Olhou de relance para ele. A sua expressão revelava o paradeiro dos seus pensamentos, independentemente do comedimento que ele mostrava. A expectativa despertava-lhe
o corpo mais do que qualquer carícia. A mistura de excitação sensual e intimidade emocional era inebriante. Quem diria que as confidências e um silêncio calmo podiam
dar origem a uma sedução tão poderosa?
Sedução. A palavra fez com que um pequeno lampejo de razão penetrasse aquele torpor de excitação.
Ele oferecera-lhe exatamente o que ela queria. Seduzira-a, convencendo-a a regressar, dando-lhe aquilo que ela mais queria - a promessa de si próprio.
Não houve criado a abrir a porta. Não se ouviam sons na casa. Daniel levou-a para dentro pela mão, como se a guiasse para um sítio onde ela nunca tivesse estado.
- Foram todos embora? - perguntou ela. -Não.
- Estão só fora de vista? - Tinham sido instruções dele. Quisera poupá-la a qualquer cerimónia ou constrangimento quando ela voltasse para ele.
Também presumira que ela regressaria. O abraço que lhe deu na entrada assegurou que ela não se importasse demasiado com a
confiança que ele evidenciara. A memória do seu rosto quando esperava por ela no lago revelara que ele náo estivera verdadeiramente confiante de todo.
O seu beijo possessivo deu expressão à fome que tornara a viagem lenta e sensual.
- Não volteis a deixar-me - murmurou entre beijos, segurando o rosto dela entre as mãos. Ela ouviu uma súplica a par da ordem.
Subitamente, viu-se levada em braços, subindo as escadas numa névoa de luzes e sombras.
As instruções haviam sido obedecidas. Não se cruzaram corri ninguém da casa. Ele não se teria ralado caso tivesse acontecido.
Levou-a para o quarto. Só ali seria capaz de preencher o vazio medonho que a sua promessa lavrara.
As cortinas e portadas do quarto tinham sido fechadas, isolando-os da cidade. Ele fechou a porta com um pontapé. O seu sangue fervia e ele queria deitá-la e arrancar-lhe
as roupas, e aplacar os desejos ardentes que rugiam dentro dele.
Ao aperceber-se da sua violência, parou. Se seguisse aqueles impulsos, ela podia interpretar mal. Nem ele conseguiria explicar o que estava dentro de si. Só sabia
que não era físico. Mera excitação física não daria origem a este tipo de necessidade.
Os braços dela ainda lhe pendiam do pescoço. Os seus olhos mostraram-se divertidos. - Estais inclinado a arrebatar-me?
- Sim.
Ela olhou para a cama e depois para ele, inquiridora. - Mudastes de ideias?
Deitou-a. - O dia de hoje merece melhor. - Virou-a de costas e soltou-lhe as fitas do vestido. Sentado ao lado dela, passou aos cordões do espartilho.
Ela estava tão adorável, ali deitada naquela luz fria, filtrada. A sua pele parecia mais clara, os seus olhos mais escuros. Senti-lo a
desapertar-lhe a roupa excitara-a. Ele viu-o quando as suas pálpebras se fecharam e sentiu-o na flexão subtil do seu corpo.
Acariciou-lhe as costas cobertas pela camisa fina e descreveu o mesmo percurso com beijos. Conter o seu desejo não era fácil, mas esta opção paciente conferiu ao
ímpeto delirante um poder especial.
Os seus beijos lentos alcançaram-lhe a cabeça e a nuca. - Querer-vos, especialmente agora, tem a ver com algo mais do que prazer.
- Ela merecia sabê-lo, especialmente porque ele não acreditava que o seu comportamento o provasse. - Não quero que penseis que estou meramente a reivindicar os meus
direitos como marido.
Ela virou-se. - Nunca me fizestes julgar que fosse só isso. Mesmo na primeira vez. Foi isso que me assustou.
E depois, quando ele mostrou frieza, foi o que a devastou.
- Nunca é só prazer comigo, também. - Ela falou como se quisesse reconfortá-lo, como se a inquietasse que ele pudesse não saber.
- Não julgo que alguma vez pudesse ser. - Ela sorriu. - Ainda bem que vós me quereis e eu vos quero, pois não acho que algum dia conseguisse ser uma Margot.
Ele percorreu com os dedos a linha curva da franja do robe dela.
- É bom ouvir-vos dizê-lo.
- Que eu nunca conseguiria ser cortesã ou amante?
- Que me quereis.
- Duvidáveis? Mas eu disse-vos que vos amava.
- Para as mulheres, pode haver amor sem desejo.
- Certamente conseguis perceber. Quando estamos juntos...
- Consigo fazer-vos sentir prazer, mas isso também é uma coisa à parte.
- Eu fui ter convosco naquela primeira noite.
- Tínheis outro motivo.
Uma centelha de discernimento faiscou nos seus olhos. - Hoje não tenho mais nenhum. - Saiu ligeira da cama, puxando para si as vestes desalinhadas.
Pôs-se à frente dele, a escassos centímetros mas sem lhe tocar. O seu cabelo despenteara-se todo, em caracóis e cachos à volta do
rosto, caindo-lhe sobre o ombro. Ele ficou satisfeito por ela não se mexer para o soltar completamente, porque tinha um aspeto adorável assim como estava.
Sedutora, deixou que o robe lhe deslizasse pelas costas. - Se regressei, é justo que saibais de todas as razões, Daniel. Queríeis que eu soubesse que não me quereis
só pelo prazer. Preciso que saibais que o prazer é, decididamente, uma das razoes pelas quais aqui estou.
O robe caiu-lhe aos pés, como uma espuma da qual o seu corpo esguio se erguesse. Estava tão encantadora que todo o ser dele ansiava por ela. Queria agarrá-la.
Ela reparou. - Não. Ainda não. Não até vós compreenderdes como o meu amor e o meu desejo estão interligados, e não são coisas separadas para esta mulher.
com elegância, começou a libertar-se da camisa de noite. Revelou lentamente os ombros e depois a pele luminosa. A sua expressão prendia-o tanto quanto o seu corpo.
Parte vivida, parte tímida, cheia de amor, fixou os olhos nele e deixou que a sua expressão revelasse o quanto lhe agradava a sua atenção e as incríveis sensações
que fluíam entre eles.
Deixou-o em brasa. Desta vez ele procurou-a. Ela deu um passo atrás e abanou a cabeça. Um pé delicado ergueu-se e aninhou-se entre as coxas dele. com um ar malandro
ela aconchegou-o mais até os seus dedos alcançaram a base da ereção dele.
com as mãos, começou a retirar as meias. Ele sentia a cabeça latejar. O pé dela enlouquecia-o mais. Conteve-se e fez deslizar as mãos pela perna dela. - Eu faço
isso.
Acariciou-a até ao fim da meia, depois mais acima na coxa. A respiração dela acelerou ao sentir pele contra pele e os dedos dele roçaram a humidade lá em cima. Ela
afastou a perna o suficiente para lhe permitir tocar aquele ponto que mal se via, mas que estava ali disponível para ele.
Ele aproximou-se o suficiente para ela o desejar, para a excitar mais. O olhar dela, fixo no dele, mostrava que a sedução se tinha
tornado mútua. Ela aguardava o toque seguinte de lábios apartados e olhos húmidos, pronta a sucumbir à paixão.
Se o fizesse, estariam enlaçados na cama em meros segundos. Ele apercebeu-se de que não o queria ainda.
Desceu as mãos e começou a tirar-lhe a meia.
A sensação e a demora fizeram com que os dedos dela se enroscassem tão intimamente que ele teve de cerrar os dentes para se controlar.
Ela deve ter visto a reação dele. Quando tirou aquela perna e encavalitou a outra, os dedos enroscaram-se ainda mais.
Ele viu tudo turvo. - Parai já com isso. - Ela sorriu, endiabrada, permitindo que o pé executasse mais um movimento devastador.
Ele não se incomodou com a meia. Puxou Diane para si, impaciente por lhe tocar. Ela exigiu que fosse à sua maneira. Alçou-se com cuidado e sentou-se no seu colo,
virada para ele, com os joelhos a contornar-lhe as ancas e o rabo sobre os seus joelhos.
Ele beijou-a, para libertar alguma da ânsia devastadora. O que só o fez querer mais. Em vez de abrandar, o beijo acelerou as coisas. Ali com aquele corpo nu nos
braços, sentindo aquela pele macia e o suave odor almiscarado que se libertava de entre as suas coxas, ficou completamente atordoado. O abraço e o beijo dela foram
igualmente agressivos. Juntos, giravam numa pequena espiral de prazer, ansiando por mais.
Ela afastou-lhe o casaco dos ombros, e ele desfez-se dele. Enquanto beijava e se mexia ao ritmo da sua excitação, ela tirou-lhe o lenço e o colete. Juntos despiram-lhe
a camisa, mas ele não percebeu como. Sem nunca parar o beijo voluptuoso, inesgotável, revezando-se, até ele poder finalmente tê-la contra o peito, ter a sua pele
nua a aquecer e acariciar a sua.
Ele parou de a beijar e segurou-a contra si, sentindo o bater do coração dela, ouvindo a sua respiração. A par da necessidade violenta fluía a mais singular e deliciosa
sensação. Contentamento. Gratidão. Maravilhava-o e prostrava-o, e preenchia o pavoroso vazio que ele combatera no caminho até àquela casa.
O novo sentimento fascinava-o. Não era uma coisa separada do desejo que tinha dela. Nunca poderia ser. Nem se extinguiria depois do amor de hoje. Seria mais um fio
do cordão. O seu poder deixava entrever que seria o mais forte.
Ele afrouxou o abraço e voltou a sentá-la nos seus joelhos, o que a confundiu, fazendo-a franzir as sobrancelhas, algo magoada.
- Ainda não. - Ele percorreu-lhe os seios com as pontas dos dedos. Ela arquejou e agarrou-se aos ombros dele. Ele brincou com os mamilos até exclamações baixinhas
se escaparem dela. Adorava ouvir a sua paixão. Adorava os movimentos do seu corpo e o brilho sensual dos seus olhos. Adorava que o seu corpo, assim como o seu coração,
tivessem voltado para ele e o quisessem agora.
Entraram novamente no delírio. Ela estendeu as mãos e começou a debater-se com os botões das calças dele. com uma nova audácia, a sua mão colou-se a ele e agarrou-o,
e depois afagou até onde o pé tinha estado.
Observou as reações dele, tal como ele observara as dela.
- Agora acreditais que vos quero?
- Sim.
Os dedos dela deslizavam para cima e para baixo, levando-o à loucura. - Até quando estamos sentados a comer, quero-vos. Quando não estais e penso em vós, quero-vos.
Quando estais perto, basta olhardes para mim para o meu coração e o meu corpo reagirem. Ainda antes de saber o que lhe chamar, sentia-o. - Iniciou com o dedo um
círculo devastador na ponta do falo. - Fico contente que saibais. Não quero que penseis em mim como os Ingleses pensam nas mulheres. Não vos quero a acreditar que
é só dever. Não quero que vades à procura de uma amante para ter prazer.
- Nunca o faria.
-Tenciono fazer por isso. - Ela tomou o rosto dele entre as mãos e beijou-o. - Estive a estudar as várias formas de garantir que nunca o queirais.
Escorregou do colo dele. Ele não compreendeu o porquê até ela se pôr de joelhos. Na sua cabeça só havia lugar para o que viria
a seguir, anulando tudo o resto, até mesmo a surpresa que a expressão confiante dela lhe causou.
O prazer quase o deixou fora de si. Poderia tê-lo feito, se as insuportáveis sensações não tivessem criado uma nova fome e uma nova possibilidade de concretização.
Mesmo perdido num delírio tormentoso, batia dentro dele uma compulsão primitiva.
Pegou nela, levantando-a, beijando-a com ânsia de mais. Erguendo-se, pousou-a na cama e tirou o resto da roupa.
Tudo nela revelava que a paixão a enlouquecera tanto quanto a ele. As pernas afastadas e expressão expectante, os peitos cheios e os mamilos duros, até o rubor da
pele, e a sua respiração, leve e rápida, eram de uma mulher em completo abandono. O olhar dela absorveu-o, lenta e completamente, com uma franqueza que mostrou que
não haveria quaisquer noções de inocência a inibi-los durante mais tempo.
Ele afastou-lhe mais as pernas e ajoelhou-se entre elas. Fez-lhe as carícias pelas quais ela ansiava desde o início. As ancas dela ergueram-se suavemente, incitando
o seu toque. Um suave gemido de paixão transparecia na sua respiração frenética. Ele tocou-lhe de formas que lhe agudizaram os gritos e súplicas.
Ele ergueu-lhe as ancas. Não pediu permissão. Os beijos especiais dela já o tinham feito.
O odor e o sabor dela extinguiram tudo exceto a noção da reação dela. Ele ouviu e sentiu o seu choque, depois a sua aceitação, e por fim os seus gemidos. Usou a
língua para brincar com a sua excitação até a surpresa desaparecer, e depois mais deliberadamente, enquanto ambos sucumbiam ao prazer selvagem.
O clímax dela chegou violentamente, em estremecimentos que os arrebataram aos dois, num grito que nenhuma parede poderia conter. Estilhaçou o seu controlo e fê-lo
desejar intensamente outros beijos e outros abandonos.
Ela agarrou-se a ele quando ele se colocou em cima dela. Apossou-se loucamente dele, e os seus gritos ainda comandavam cada
respiração, sem que o clímax pusesse cobro à ânsia. - Sim, sim. Puxava-o para o seu corpo expectante. - Sim, saciai-me, Daniel. Saciai-me.
Ela não falava apenas do seu corpo. Ele sabia porque ela também o saciava. Já não se limitava a obscurecer a revolta do passado como antes, mas substituía-a. O seu
amor derramava-se dentro dele com cada beijo desesperado e carícia possessiva e grito ofegante, prometendo que não restaria nenhum vazio a preencher.
Na ventura de se possuírem e completarem mutuamente, ele acreditou finalmente ser capaz de cumprir a promessa impetuosa que lhe fizera.

CAPÍTULO 25
Esperai aqui. Eu chamo-vos depois para trazerdes a arca. Diane deu a instrução enquanto o lacaio a ajudava a sair da carruagem, à frente do edifício de Margot.
Estava uma tarde gloriosa, fresca e luminosa. Já que Daniel tinha ido a Hampstead, Diane aproveitara a oportunidade para reaver os seus pertences. Margot enviara-lhe
uma carta a pedir-lhe que a visitasse e explicasse o que tinha acontecido.
Não havia muito a contar. Ainda assim, Margot recebera-a quando ela fugira, e merecia ter alguma explicação.
Diane pensava no que explicar quando a porta da frente se abriu.
A casa estava muito silenciosa. O silêncio era tão completo que, quando seguia a criada até à sala de estar, um passo que ouviu atrás da porta lhe pareceu extremamente
alto.
Margot estava sentada muito direita numa cadeira. Os seus olhos refletiam preocupação.
Diane foi logo ter com ela. - Não pareceis bem. O que aconteceu desde que me escrevestes, que causasse isto?
Margot pegou na mão dela, apertando-a com força.
Diane abraçou-a. - É Mister Johnson? Acabou tudo convosco?
Margot abanou a cabeça. - Perdoa-me. Receio ter feito uma coisa que pode provocar mais problemas entre vós e o vosso marido -
sussurrou. - Ele chegou cedo e insistiu que escrevesse e vos convidasse a vir cá. Falou em amor, que o tornava imprudente. Disse que St. John vos tinha forçado a
regressar, e que íeis querer vê-lo. Os seus olhos pediam perdão. - Se cometi um erro, lamento muito.
Diane olhou para baixo, sem compreender. Quando o fez, a atmosfera da sala mudou subtilmente.
De repente, sentiu a presença de uma pessoa e deu meia-volta.
Não estavam sozinhas. Alguém mais estava agora na sala, perto da porta. Instintivamente, Diane deu um passo atrás.
- Estais adorável, como sempre, minha querida - disse Andrew Tyndale. - Que atencioso da vossa parte responder à chamada da vossa amiga tão prontamente. - Dirigiu-se
a elas. - E que conveniente. Tornará tudo mais eficiente para todos.
- Não estais nos vossos dias, St. John. - Continuai assim a fazer asneiras e vou acabar por fazer sangue sem querer.
Daniel deu um passo atrás e baixou o sabre. Não estava nos seus dias e a sua prática tornara-se desajeitada e perigosa. Não estava ali com o coração. Nem com a alma
ou a cabeça.
Passara anos a aperfeiçoar aquela aptidão, mas a razão para o fazer tinha desaparecido. Podia ser um desporto para os membros mais jovens da sociedade, mas nunca
o fora para ele. Ao que parecia, ele também não conseguia forçá-lo.
Indicou a Vergil que voltasse a começar e tentou concentrar-se. Ao lado deles treinavam Adrian e Hampton, e ao pé da parede Louis dava ao jovem Dante a sua primeira
lição.
Daniel conseguiu prestar alguma atenção ao sabre de Vergil, mas o resto concentrava-se no dilema que enfrentava. Prometera a Diane que desistiria do plano que tinha
para Tyndale, só que era mais fácil falar do que fazer. O plano adquirira vida própria e progredia a bom ritmo naquele barracão de Southwark, sem esforço da sua
parte. Subtrair-se ao esquema parecia-lhe praticamente
impossível, a não ser que se encontrasse com Tyndale e confessasse todo o estratagema.
O que teria seguramente como desfecho o duelo que Diane queria evitar. Parecia que a única solução era deixar a demonstração seguir o seu curso e falhar. Altura
em que, supunha, teria de propor a Tyndale que retirasse os custos do equipamento e dos químicos à dívida de jogo.
Pareceu-lhe uma recompensa adequada, e que Diane julgaria justa. Fazer semelhante coisa ia dar cabo dele, mas era para isso que servia a penitência.
Claro, Diane podia sugerir que perdoasse a dívida em si. Seria mesmo dela fazer isso. Daniel debatia se aquilo seria mesmo necessário.
Vergil afastou-se abruptamente, voltando-se em seguida, carrancudo. - De que rides? Não é de mim, espero. Não sou nenhum perito nisto, mas vós, hoje, também não
passais por grande mestre.
- Não me rio de vós, mas de mim próprio.
- St. John, nunca vos vi rir de vós próprio nos três anos em que vos conheço, por isso duvido que tenhais começado hoje.
- Talvez eu já não seja o homem que conhecestes. Talvez hoje comece uma nova vida. - A ideia soou a Daniel como uma ótima piada, e voltou a rir.
O que distraiu Adrian e Hampton. Pararam e olharam Daniel com curiosidade.
Vergil gesticulou e revirou os olhos. - Está bêbado, acho.
Daniel aproximou-se dele e deu-lhe uma palmada no ombro.
- Não estou bêbado. Apenas tento determinar como me libertar de uma armadilha diabólica.
- E achais isso divertido? Estais bêbado.
- Dado que a armadilha é de meu próprio lavor, é extremamente divertido.
Vergil começou a responder. Algo o distraiu. O seu olhar disparou para a entrada do salão e ele grunhiu, exasperado.
- Raios, outra vez aqui. Uma vez é erro, duas é descaramento.
Se o marido dela não fosse tamanho canalha, insistiria que ela voltasse para ele para que ele a mantivesse longe de confusões, porque a tarefa é demasiado grande
para mim. - Sacudindo a mão de Daniel, caminhou para a entrada, onde a condessa de Glasbury aguardava.
- Fomos novamente agraciados com uma visita - disse Adrian.
- Quem é aquela loura deslumbrante que está com ela desta vez?
Daniel não reparara na loura que estava por trás da condessa, e a quem mal se distinguia a cabeça. Agora ficara à vista.
- É uma antiga colega de escola de Diane. - Entregou o sabre a Adrian no momento exato em que Vergil se voltou e chamou por Daniel. - Um de vós que me chegue a camisa,
por favor.
Daniel sentiu um mau presságio no coração ao aproximar-se do vão da porta. Foi a expressão das mulheres que o provocou, e a mera presença de Margot piorava-o.
Tanto quanto sabia, Diane tencionara fazer uma visita a Margot durante o dia.
Quando chegou à porta, constatara já que aquela intrusão era um prenúncio de perigo. Aquilo que restava do homem que tinha sido durante anos começou a sobrepor-se
à euforia do amor.
Não esperou por uma explicação. - Duclairc, levai-as ao escritório de Louis. Eu vou logo que esteja apresentável.
Adrian apareceu com a sua camisa e casacos logo que as mulheres desapareceram. Daniel vestiu-os e seguiu.
- Peço desculpa por arrastar a vossa irmã para este assunto dizia Margot a Vergil. - Soube que Msieur St. John vinha para este sítio, mas não sabia como o encontrar.
O mordomo disse que ele vinha ter convosco aqui, e eu fui ter com Lady Glasbury, na esperança de que ela soubesse o caminho.
- Não vos desculpeis - disse a condessa. - Claro que tínheis de vir. Estou grata por o terdes feito, se resolver isto mais rapidamente. E aqui está St. John. Dai-lhe
a carta.
Daniel estendeu a mão, na qual Margot colocou uma carta selada. Reconheceu a letra de Diane.
- Onde fostes buscar isto?
- A ela. Estava à minha espera depois de ele a ter levado.
- Andrew Tyndale é a pessoa a quem ela se refere - acrescentou a condessa, alterada. - Daniel, parece que ele pode tê-la raptado.
Daniel ficou com o coração nas mãos, que depois se encheu de raiva, na maior parte dirigida a si próprio. Agora não havia como escapar à armadilha diabólica.
- Raios partam o homem, é um descaramento - disse Vergil. Sim, era um descaramento. Mas, conhecendo Tyndale, bem
pensado. - Sabeis o que diz? - perguntou a Margot.
Ela abanou a cabeça. - Ele fez-me sair da sala quando ela chegou. A carruagem dela estava mesmo à porta, e se eu soubesse que ele ia levá-la teria... mas pensei
que ele fosse embora sozinho, claro. Saíram pelo jardim e desapareceram antes de eu conseguir alertar o vosso cocheiro.
- Ele disse que eles eram amantes e que Diane quereria vê-lo disse, zangada, a condessa. - Fez com que parecesse que ela fugira com ele.
Margot estava quase a chorar. - Primeiro acreditei nele, e escrevi a carta a pedir a Diane que viesse. Mas, pensando melhor, achei suspeito. Ela não o tinha procurado
quando ficou comigo. Não tinha escrito a dizer que vós a tínheis obrigado a regressar... fui muito estúpida, e quando descobri que ambos se tinham ido embora percebi
que algo estava mal.
- Agradeço-vos por me terdes procurado com tanta rapidez, e agradeço-vos a vós, condessa, por lhe terdes mostrado o caminho. Ambas foram verdadeiras amigas da minha
mulher e nunca esquecerei isso.
Ele levou a carta até à janela e quebrou o selo com o polegar. Atrás dele, ouviu movimentos que revelavam que os outros saíam da divisão.
Tyndale ditara a carta, era óbvio. Diane declarava que se ia embora de vez e que ficaria com amigos no Kent. Nada na carta podia ser utilizado como prova da vileza
do que se passava, tal como
a convicção de Margot de que Diane fora raptada não seria credível. Se se chegasse ao ponto de ser a palavra de uma cortesã contra a do irmão de um conde, não havia
dúvida sobre qual seria a vencedora.
A carta deixava o marido em questão sem outra alternativa que não ir atrás dos amantes.
Diane estava a ser usada como isco. Outra vez. Só que desta vez era um homem diferente. Um homem que não se importaria se ela fosse magoada.
Ele fechou os olhos e disse a primeira oração de muitos anos. Suplicou silenciosamente que Tyndale, uma vez na posse do homem que queria, permitisse a Diane ir embora.
Um som sobressaltou-o. Olhou por cima do ombro. Louis estava a dez passos de distância. Tinha um sabre numa mão e a caixa de pistolas de duelo na outra.
- O que pensais que sabe?
Daniel encolheu os ombros. - Provavelmente só do aço. Seria suficiente.
- Trazei alguns dos vossos jovens amigos.
- O que lhes diria? Que defraudei um cientista proeminente e o irmão de um par? Que um respeitável membro do Parlamento raptou a minha mulher? Ninguém além dela
e de mim sabe que ela voltou por vontade própria, e que não amava Tyndale antes do nosso casamento.
- São vossos amigos. Acreditarão em vós.
- São conhecidos, e quando se trata de coisas deste tipo não há círculos democráticos. O sangue contará mais do que uma amizade sem proximidade. É assim que funciona,
Louis. Ambos sabemos isso. - Dobrou a carta. Nunca esperei que Gustave admitisse que a descoberta não era dele. Eu dependia do orgulho dele para manter em segredo
a sua ligação a mim.
- O que fareis quando os encontrardes?
- Dar a Tyndale o que quer que seja que ele quiser, desde que compre a segurança de Diane.
- É óbvio que o que ele quer sois vós.
- Então ter-me-á.
- Se não levardes os outros, eu acompanho-vos.
- Se eu aparecer com companhia, vai ser-nos dito que nem Tyndale nem Diane lá estão. Receio que se não alinhar no jogo dele ele lhe faça mal. - Também receava que,
mesmo que satisfizesse Tyndale, Diane estivesse em perigo. Ele não quereria dizer ao mundo que a raptara, ainda que pensasse que a sua reputação conseguiria sobreviver
à acusação.
Louis pousou, com cerimónia, o sabre e a caixa na mesa.
- Duvido que vá ser assim tão honrado - comentou Daniel.
- Levai-os. É o mais seguro com ele. Tyndale não vai querer suspeitas e acusações de assassínio. E um homem daqueles nunca acredita que pode perder.
- Então serão pistolas. Ele não tem vantagem com sabres. Daniel sorriu amargamente ao erguer a caixa de armas de duelo.
- Tinha prometido a Diane que renunciaria.
- Ela não quererá que renuncieis ao ponto de morrerdes.
- Não, não me parece.
- Quando o virdes, lembrai-vos, cabeça fria. Coração calmo. É essencial ter sang-froid.
- Foi o que sempre ensinastes, velho amigo.
Daniel enfiou a caixa debaixo do braço. - Há muitos anos, pedi-vos que deixásseis isto ao meu cuidado, mas agora tenho um favor a pedir-vos.
- Certainement.
- Se eu falhar, e lhe acontecer alguma coisa a ela, matai-o.
- Daccord. Claro. Será um privilégio, e um prazer.
- É um encanto. Tão nova. Parece uma pardalita.
Diane não se sentou nem abriu os olhos. Quando acordou, decidira fingir que continuava a dormir. Não queria que Andrew Tyndale visse o seu medo.
Não tencionara adormecer, mas dormitara na mesma. Fora delicioso escapar assim para os seus sonhos. Desejou poder ter lá ficado até Daniel chegar.
A casa rústica cheirava a humidade. Até o pequeno leito onde dormia tinha um odor a mofo. A humilde habitação há meses que não era arejada.
Supôs que estivessem numa das propriedades de Tyndale. Ele não a levara para a casa grande, onde haveria criados, mas escondera-a ali.
O homem que falou não era Tyndale. Era o outro. O homenzinho cómico, o francês chamado Gustave, que ficara à espera na carruagem, ao pé do jardim de Margot. Depreendeu
que Gustave não falasse inglês, porque Tyndale só usara francês com ele, e às vezes inglês com ela quando, imaginava, não queria que o francês compreendesse.
As ameaças tinham sido em inglês.
- Tão inocente. Tão...
- Bolas, basta! Pareceis um velho babado. Ela é mulher dele e, como todas as mulheres, é uma pega.
- É uma barbaridade falardes assim dela. Não gosto disto. Uma mulher... não é honrado - criticou Gustave. A voz dele estava muito próxima. Diane conseguiu senti-lo
inclinar-se e olhar para ela.
- Já vos disse, quando ele chegar deixamo-la ir.
- E quando será?
- Já vos disse. Esta noite.
- Pode não ser antes de amanhã ou do dia seguinte - disse uma terceira voz. - Pode precisar de algum tempo para descobrir onde fica a vossa propriedade do Kent.
Diane por pouco não conseguiu controlar um sobressalto. Não tinha reparado que havia outra pessoa no quarto. Aquele homem devia ter chegado enquanto ela dormitava.
Também falava francês, mas, tal como Tyndale, não era nativo.
- Espero bem que não me faça esperar - resmungou Tyndale.
- Pode não chegar a vir - inquietou-se Gustave.
- Virá. - Diane sentiu movimento do outro lado do quarto. -
vou para a casa esperar por ele, agora que estais aqui. - Tyndale mudou para o inglês. - Se aquele francês estólido decidir armar-se em herói pelo seu novo amor,
tratai disso. Se tentar interferir, matai-o. Uma mão acariciou-lhe o cabelo. A mão de Gustave? Não, flutuou até ela um aroma diferente, de outro homem. Tyndale.
Quase se encolheu quando compreendeu que ele lhe tocara.
- Sim, um encanto - murmurou. - Mas danificada para sempre, e já não me serve de nada, a não ser para trazer o marido até cá.
Um arrepio deixou-a gelada. Já não me serve de nada. Jeanette tinha-lhe contado que Tyndale lhe dissera as mesmas palavras quando a encontrara.
Ouviu Tyndale a sair da casa.
- Não gosto disto - alvoroçou-se outra vez Gustave. - Está a dormir há tempo de mais. Ele deu-lhe uma dose demasiado grande, tenho a certeza. Só um pouquinho, disse
ele, para ela dormir e não nos importunar, mas pareceu-me que foi parar ao chá um bom bocado.
- Não é um erro que ele cometesse.
- Não é nenhum Deus. Comete erros.
- Não deste tipo. Além disso, ela já não está a dormir. Já está acordada há algum tempo. Não estais, madamel
Foi um choque dirigirem-se diretamente a ela. Perguntou-se se tentaria continuar com a artimanha. Sem Tyndale, já não tinha assim tanto medo.
Além disso, estava curiosa relativamente ao terceiro homem.
Levantou-se a custo. Sentia a cabeça estranha, como se alguém a tivesse enchido de algodão. Esfregou os olhos e virou-se para o chão de tábuas de madeira, e as duas
janelas de portadas abertas. A luz indicava que era o fim da tarde.
Gustave estava sentado numa cadeira perto do seu leito tosco. Sorriu de alívio.
- Estais a ver, ela está bem - disse o outro homem. Foi sentar-se numa mesa perto das janelas, uma silhueta iluminada pelo sol poente.
- Quem sois? - inquiriu ela.
- Só outro homem que deseja avidamente um acerto de contas com o vosso marido.
Ela olhou a barba dele, o cabelo escuro e palidez doentia. Esforçou-se por distinguir os pormenores do seu rosto.
A inspeção dela divertiu-o. Virou-se.
Subitamente, o choque: ela constatou que olhava para os seus próprios olhos.
Ele pressentiu que algo não estava bem. O sorriso desapareceu e inclinou a cabeça, curioso.
Ela só conseguiu ficar de boca aberta a olhar para ele.
- Vai desmaiar - gritou Gustave.
Ela levantou uma mão. - Não vou. Não vos inquieteis. - Recuperou a compostura. - Quem sois? - voltou a perguntar.
- Não vos diz respeito - disse o homem.
- Eu diria que sim. Ajudastes a raptar-me. Estais de emboscada ao meu marido.
- Dizei-me, madame. Quem é o vosso marido? Se satisfizerdes a minha curiosidade, talvez eu satisfaça a vossa.
- Daniel St. John.
- Conheci-o com outro nome.
- Equivocais-vos.
- Não sobre este homem. Julgo que vós estais equivocada, o que significa que ele não pode ser vosso primo.
Ela fixou os olhos dele. Era como se as imagens indistintas do seu espelho, o rosto fantasma que emergia por vezes, tivesse ganhado vida. - Não, não é meu primo
- disse, em inglês, para Gustave não compreender. - Quando era pequena, ele encontrou-me, abandonada, numa propriedade que tinha adquirido. Pôs-me na escola, e garantiu-me
cuidados e educação, mesmo sem eu ser responsabilidade dele. Todos os anos viajou para me visitar, mesmo quando isso significava percorrer grandes distâncias, e
arriscar a própria segurança
para entrar em França durante a guerra. Seja qual for o nome por que o conheceis, é isto que ele é para mim. E o homem que me deu uma vida depois de outro homem
se ter desembaraçado de mim. O sorriso dele desapareceu antes de ela terminar.
- O que disse ela? - perguntou Gustave.
- Nada que vos interesse. Ide lá fora, Gustave. Ide apanhar ar.
- O quê? Porquê? Não me parece que devais ficar sozinho...
- Saí. Bolas, homem, por quem me tomais? Ide. Já. Alarmado com o acesso de irritação, Gustave levantou-se como
uma marioneta a quem se puxassem os fios. - Ficarei por perto garantiu a Diane. - Só tendes de chamar se necessitardes da minha assistência.
com a saída dele, um silêncio pesado encheu a sala. Diane observava o homem sentado à mesa. Deixou as suas memórias, as poucas que existiam, agarrarem-se aos olhos
e aos maneirismos dele.
- Ele falou-vos de mim - disse, na defensiva. - É por isso que sabeis... e agora usais isso para confundir as coisas.
- Ele falou-me muito pouco acerca de vós. Estou a dizer-vos quem sou, e quem ele é para mim.
O olhar dele disparou em todas as direções, como se a sua mente procurasse forma de escapar à conversa.
- Onde ficava a propriedade onde ele vos encontrou?
Ela quase teve pena dele. - Se fordes Jonathan Makepeace, sabeis onde ficava. Hampstead.
Os olhos dele fecharam-se. - Raios.
Parecia irritado e ressentido. Feriu-a. Em rapariga, sonhara com o encontro dos dois. Imaginara que corria para ele e lhe saltava para os braços. Talvez fosse assim
que o cumprimentava, em criança, quando ele visitava Hampstead. Ouvira sempre riso nas suas fantasias de reencontro, não um praguejar perplexo.
- Ele deixou que eu pensasse que estáveis morto - disse ela, querendo magoá-lo também. - Percebo agora que foi caridoso da parte dele. Deixou que acreditasse que
a partida de cartas tinha
acontecido por acaso. Nunca me disse que estáveis envolvido com Tyndale, ou que vos arruinou deliberadamente.
- Então agora sabeis que tipo de homem ele é.
- Sei, sim. É o tipo de homem que omitiu a verdade sobre vós
para me poupar os poucos sonhos de infância. Nunca me fez saber que o meu pai tinha tomado parte no esquema de Tyndale para roubar àquelas pessoas as suas vidas
e propriedade. Era o vosso navio que supostamente iria buscar aquelas pobres almas à costa, não era? Ele não disse nada. Não olhou para ela.
- Chegastes ao menos a fazer-vos ao mar para tentar salvá-los?
- O ouro e as jóias estavam à mão... Tyndale... se eles não fossem resgatados, ficaríamos com tudo, muito mais do que o pagamento que receberíamos. Estava decidido
desde cedo. Todos sabíamos como iria ser. Eu tinha dívidas...
Encolheu os ombros, como se a decisão fosse coisa pouca. Diane via-lhe os olhos, porém. Conseguiu ver a culpa. O próprio encolher de ombros pareceu-lhe cansado e
pesado, de resignação mais do que indiferença.
- Eu não poderia ter mudado o rumo das coisas - declarou.
- Tyndale tinha tudo combinado. Nem sequer me dava o destino final, não fosse eu decidir ir buscá-los de qualquer forma.
Ela duvidou que ele tivesse discutido vivamente com Tyndale, se é que discutira de todo. O seu tom de voz indicava que não.
- Admira que o meu marido não vos tenha matado. -Talvez fosse melhor se o tivesse feito. Tirou-me tudo, até vós.
- Vós deixastes-me. E a mim parece-me que levou o que aquela traição vos permitiu construir.
Os olhos dele iluminaram-se com um lampejo de raiva. No entanto, a energia morreu quase imediatamente. Ficaram sentados em silêncio, estranhos por completo, exceto
no principal. Diane sentia o laço familiar a puxar por ela. Impediu que o detestasse ou que o temesse. Fê-la desejar ardentemente algum reconhecimento.
Partiu-lhe o coração.
De repente, o rosto de Gustave espreitou pela janela. Jonathan rosnou um impropério e o rosto desapareceu.
- Quem é ele? - perguntou ela.
- Um cientista. Uma mente brilhante, a julgar pelo que ele diz. Um tolo, se quereis saber a minha opinião.
- O que ficou a ganhar com a traição?
- Uma biblioteca.
- Uma biblioteca? Deixou que morressem pessoas por causa de alguns livros?
- Aqueles livros incluíam um tratado com uma prova matemática. Ele não lamentou que o homem a quem guardava a biblioteca e a quem devia enviar o tratado tivesse
morrido. A prova ficou a ser apenas de Gustave e garantiu-lhe a reputação. Ele esquadrinhou cada página daquela biblioteca à procura de algo mais que o dono tivesse
escrito, e conquistou a fama dele com o brilhantismo de outro homem. Não, Gustave não teve pena de que o navio não tivesse chegado, mesmo tendo sido ele a apresentar
Tyndale àquelas pessoas.
Começou a tamborilar no tampo da mesa, transferindo a sua atenção para os dedos. Os pecados de Gustave tinham deixado de lhe interessar.
- Ele pôs-vos numa escola, dissestes. Trataram bem de vós, então.
- Sim.
Tamborilou um pouco mais. - A parteira quis dar-vos a um casal de agricultores quando nascestes. Mas eu amara a vossa mãe e não podia dar-vos. A longo prazo, teria
sido melhor para vós. Não vos via muito, mas parecíeis contente o suficiente quando vos via, mas... Mas depois daquele jogo... não podia levar-vos comigo. Não sabia
sequer para onde ia.
- Compreendo. - E compreendia, com a cabeça. O seu coração era menos racional. O facto de ele a ter abandonado ainda magoava, mas esta nova prova, de que ele gostara
dela o suficiente para ficar com ela quando nascera, atenuava-o com algo que se assemelhava a perdão.
- Onde era a escola?
- Rouen.
Ele sorriu, e abanou a cabeça. - Pensava muitas vezes em vós, e perguntava-me... e nos últimos dois anos, estáveis a não mais do que um dia de viagem. - As suas
pálpebras semicerraram-se, o suficiente para a deixar de sobreaviso. - Sabeis quem ele é?
- Daniel St. John.
- Não havia St. Johns nem Saint-Jeans entre as pessoas que Tyndale prometeu salvar. Nem St. Johns nem St. Clairs, o outro nome pelo qual era conhecido.
- bom, é o único nome que sei.
Voltou a olhar para os dedos irrequietos. - Não deixeis que Tyndale e Gustave saibam que sois minha filha. Não sei como reagirão. Especialmente Tyndale.
- Julgais que poderia ficar em perigo?
- Já estais em perigo. Mas se ele não souber talvez eu possa ajudar-vos. - Outro encolher de ombros incerto, como se não tivesse decidido bem se poderia, ou se o
faria.
Era uma oferta modesta, nem sequer uma promessa, mas ela sentiu o coração apertado. Levantou-se e foi até à mesa e ficou ao lado do estranho que era seu pai. Olhou
para os seus próprios olhos.
Os anos anularam-se durante aquele olhar longo e intenso. Acusações e ressentimentos e negações e perdões, tudo fluía silenciosamente na estranha cumplicidade, visceral,
que partilhavam. Os seu olhos humedeceram-se, e parecia que os dele também.
Colocou a mão em cima da dele. Pareceu-lhe muito natural tocar naquele homem pálido de aspeto doente, porque os olhos não haviam mudado e ela conhecia-os. Formou-se
um pequeno sorriso na boca dele, e ela também o conhecia.
A mão dele voltou-se para segurar a dela.
- Falais-me da minha mãe? - pediu. - E da minha infância, e de todas as coisas que eu esqueci?

CAPÍTULO 26
Daniel não estava acostumado a negociar a partir de uma posição de fraqueza. Seguiu o criado até à biblioteca da propriedade do Kent, demasiado ciente de estar à
mercê de Tyndale.
Tyndale parecia tão inexpressivo e inofensivo como sempre. Só quando o criado saiu é que o brilho malévolo lhe entrou nos olhos. Indicou a caixa que Daniel transportava.
- Pistolas?
- Contei que as escolhesses como armas.
- Viestes até aqui para um duelo?
- Claro. Raptastes a minha mulher.
- Ela veio comigo de boa vontade.
- Não, não veio. De qualquer forma, vim pedir contas.
- Conceder-vos-las-ei, mas apenas se me derdes primeiro o que exijo. - Examinou Daniel por detrás de pálpebras semicerradas.
- Deveis julgar que sois um homem muito inteligente. Sois certamente muito paciente, ditando a nossa ruína um a um durante estes anos. Ah, claro, os outros perceberam
há quanto tempo estais nisto e o vosso papel nas suas desgraças. Agora engendrais este esquema elaborado para me apanhar a mim e a Gustave.
Então não era só pelo aço. A revelação aumentava o perigo, e o que estava em jogo.
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- Os meus planos para Gustave eram muito simples. Nunca pensei que ele viesse para Inglaterra e vos envolvesse. Não procurara enriquecer-se com dinheiro antes.
- Julgastes que ele deixaria passar ao lado uma oportunidade destas e se contentaria com a pouca fama que advém de uma descoberta científica?
- Uma fama que não seria assim tão pouca no mundo dele. O desprezo também não o teria sido, quando todos vissem o idiota que fora.
- Verdade. Teria destruído tudo quanto era importante para ele. Muito eficaz - concedeu Tyndale. - E muito a propósito.
- Foi o que pensei. Quanto à parceria dele convosco, e depois a proposta que me fizestes, já foram um presente da Providência.
- Um presente do Inferno, diria, já que nos permitiu compreender o vosso esquema. - Tyndale sorriu maliciosamente. - Se não esperáveis que Gustave se interessasse
pelos lucros da sua descoberta, então tínheis outros planos para mim. Diane? Um duelo por causa de uma mulher? Que básico. Arriscado, também. Eu teria ganhado. Melhor
ter-me apanhado desprevenido e cortar-me a garganta.
- Considerei fazê-lo.
- Estou certo que sim, e ainda o considerais. Não é que me incomode.
Tyndale foi até à secretária e tirou uma pistola de uma das gavetas.
- Não tendes intenção de me matar aqui, já, nesta biblioteca disse Daniel. - Não sois assim tão estúpido.
- Se for necessário, é o que farei. Estão cá poucos criados. Mandei a maior parte embora, exceto um bom número de homens que me deve a vida. - Empurrou alguns papéis
até ao fundo da secretária. - Ides assiná-los agora. Se o fizerdes, tereis o vosso duelo, e tereis a vossa oportunidade de me matar antes de eu vos matar a vós.
Se não o fizerdes, mato-vos como a um cão.
Daniel examinou os papéis. Estes passavam para o nome de Tyndale tudo o que Daniel tinha, para pagar dívidas não especificadas.
- Só se fosse um idiota.
- Sereis um homem morto se não o fizerdes.
- Penso que estais a contar que o seja, em qualquer dos casos, já que a minha assinatura não valerá nada se eu não estiver, obtida como foi com uma pistola apontada
à cabeça. Julgo que prefiro morrer rico, obrigado.
- Ela também morrerá se não assinardes.
-Tanto quanto sei, ela já está morta. -Apontou para a pistola. Mostrai-me que ela está ilesa, ou usai-a. Se esperáveis que eu assinasse os papéis para comprar a
hipótese de salvar a minha própria vida, enganastes-vos redondamente. Talvez a idade esteja a diminuir-vos as capacidades.
- As minhas capacidades estarão três vezes mais aguçadas aos sessenta do que as vossas alguma vez estiveram.
- Se assim é, Diane está aqui e está bem.
- Pois está. Direi para a trazerem. Poupai-me a reencontros sentimentais, está bem? - Tyndale foi até à porta e falou com um homem que aguardava lá fora.
Daniel envergara a armadura da frieza antes de se pôr a caminho da propriedade, mas agora notava que esta começava a rachar. O alívio por Diane estar salva e saber
que estava quase a vê-la inundou-o por um segundo, imediatamente seguido de raiva implacável por Tyndale se ter atrevido a ameaçar a sua segurança.
Virou-se para Tyndale não ver nenhuma das duas reações.
- É uma propriedade imponente - disse. - Não consegui deixar de a admirar quando entrei.
- Não é tão grande como a propriedade da minha família, evidentemente. Nunca seria possível, mas é superior em várias coisas.
- O vosso irmão, o conde, alguma vez a viu, para poder admirar esse facto?
- Uma vez, pouco depois de eu a comprar, há vinte e poucos anos. Há vinte anos. Fora comprada com aquelas jóias e aquele ouro.
Tyndale procurava atingi-lo ao dizer-lhe que jogavam a mão final de um jogo que começara há muito. Uma mão que Tyndale contava
ganhar, como ganhara todas as outras. Daniel engoliu a fúria e as memórias que quiseram levantar-se em resposta à referência.
- Sabeis com certeza que há outros que sabem que vim aqui.
- A carta da vossa mulher não dizia nada sobre esta propriedade. Podíeis estar em qualquer outro sítio do Kent.
- Estavam outros presentes quando abri a carta. Sabem que vim atrás de vós.
- Viestes aqui, mas não me encontrastes... será essa a história que os criados relatarão. Eu não estava aqui, nem Diane. Fostes embora, procurar noutro lado.
- Margot sabe que levastes Diane.
- A palavra de uma cortesã, sustentada, por sinal, por um mercador, não terá peso nenhum. E, já agora, passo o dia de hoje e os próximos dias com um velho amigo,
que jurará que estive permanentemente com ele. O conde de Glasbuiy. Deve-me o favor. Quanto à vossa mulher, ela fugiu de vós, vós forçaste-la a regressar, e ela
voltou a fugir. - Tyndale andava para um lado e para o outro enquanto falava, até se impor ao olhar de Daniel. - Julgastes que me esqueceria de atender a estas coisas?
Sinto-me insultado.
O que deixou Daniel satisfeito, pela simples razão que o pusera a aludir aos seus planos e intenções. Até ao momento, as revelações não tinham sido encorajadoras.
Diane podia estar bem por agora, mas se Tyndale planeava matar alguém, não podia deixá-la viver como testemunha.
Arrependeu-se de ter exigido vê-la. Podia ter precipitado uma atitude por parte de Tyndale. Se ela permanecesse na ignorância... Pelo canto do olho, reparou que
Tyndale o estudava. Não haveria atitudes precipitadas. Tyndale tinha tudo decidido desde o início.
- Gostaria de ver a minha curiosidade satisfeita relativamente a um ponto - prosseguiu Tyndale. - Quem raio sois vós?
- Sou filho do vosso passado e testemunha dos vossos pecados.
- Poupai-me a má poesia. Quem sois? Sabíeis o que estava na biblioteca, mas não me lembro de haver nenhuma criança naquela família.
Daniel sonhara com o dia em que faria saber àquele homem quem tinha sido a sua desgraça. Vivera para ver o momento em que o nariz de Tyndale seria forçado a enterrar-se
no inferno que as suas próprias ações haviam criado. Agora, subitamente, isso não importava.
Que se interrogasse. Que se preocupasse. Que ficasse para sempre pendente, na iminência de lhe aparecer outro filho do passado.
- O meu pai tivera a permissão de usar a biblioteca e comentara na minha presença as experiências do dono desta. Os cientistas gostam de discutir as suas teorias
com qualquer pessoa que os ouça. Dupré pode explicar-vos isso. Afinal, ele sabia que havia uma importante prova matemática a ser encontrada entre aqueles papéis
e anotações.
As pálpebras de Tyndale semicerraram-se. - Não podíeis ser mais do que um rapaz na altura. O que perceberíeis vós de provas e teorias da eletricidade?
- O que eu não sabia ou percebia outros explicaram. Nem todos os que aguardavam naquele pedaço de costa morreram. Nem todas as pessoas que traístes foram executadas.
Eu não sou o único que se lembra do que fizestes. Matai-me, mas não matareis o passado. A guerra protegeu-vos, mas isso também já acabou há muito. Outros virão atrás
de vós, agora que podem fazê-lo.
A expressão de Tyndale ficou mais pesada e endureceu. Daniel viu uma centelha de dúvida reunir-se ao brilho mais cruel dos seus olhos.
Ouviram agitação na entrada e a sua atenção voltou-se para lá. A porta abriu-se e Diane entrou. Antes de um braço a empurrar, Daniel conseguiu ver um cientista francês
muito preocupado e outro homem de barba, provavelmente um dos criados de Tyndale.
Diane aproximou-se de Daniel e deu-lhe um beijo leve. Os olhos dela fitaram os seus com uma expressão maravilhosa de calor e amor, mas também transmitiu uma mensagem
de advertência com aquele breve olhar.
Voltou-se para Tyndale. - Espero que não volteis a mandar-me para aquela casa grosseira e bafienta.
- Ficareis aqui. Já tratei dos criados, por isso já não preciso de vos esconder.
- Não compreendo porque chegastes sequer a fazê-lo. Se apenas desejáveis encontrar-vos com o meu marido, podíeis ter ido visitá-lo.
- Eu não vou visitar os da laia do vosso marido. Chamo-os. Dirigiu a Daniel um sorriso manhoso. - Nunca lhe dissestes, pois não?
- Dizer-me o quê?
- O vosso marido é um vigarista, minha querida. Como também um embusteiro. É um impostor, que adota nomes conforme lhe convém, e usa de sedução para entrar nos melhores
círculos para roubar as pessoas com os seus esquemas. Será que vos encontrou em algum beco e vos pagou para o ajudardes? Duvido que seja vosso primo, sabeis, por
isso tenho uma certa curiosidade sobre o parentesco que tendes com ele.
O chorrilho de insultos endureceu a expressão de Diane.
- Não deixeis que o agastamento por a ter perdido vos leve a melhor - interveio Daniel. - Voltai a insultá-la e não obtereis nada de mim.
- Obterei de vós tudo o que quiser - rosnou Tyndale. - Tudo o que tendes, incluindo ela se eu assim quiser. - Fechou os olhos e forçou-se a aplacar o surto de raiva.
- Claro que tínheis de a estragar, e agora já não tem interesse para mim. A não ser que recuseis fazer o que vos digo. Nesse caso serei forçado a dar-lhe um tiro
na cabeça.
Diane tentou não mostrar medo a Tyndale, mas Daniel viu que a ameaça a deixara impressionada.
Colocou o braço à volta dela, protetor. - Tendes um quarto preparado para ela, presumo. Deixai-a ir para lá, para que eu e vós possamos terminar a nossa conversa.
- Claro. O meu homem mostra-vos o caminho. As minhas desculpas por não haver uma mulher a assistir-vos, mas nunca se pode confiar nelas. Ah, e as fechaduras... é
importante que não vades embora já, por isso não vos incomodeis a tentar abrir a porta.
Diane virou costas a Tyndale. Ergueu os olhos para Daniel.
Nada podia ser dito com Tyndale a ver. O rosto de Diane não estava visível para o raptor, mas Daniel sabia que o seu estava, e não se atreveu a revelar a dor que
lhe consumia o coração. Tanto quanto sabia, seria a última vez que a veria. Devia estar a dizer-lhe coisas, a dizer palavras ainda não ditas e a pedir-lhe perdão
por a ter posto em perigo, mas isso foi-lhe negado. Só podia olhar para dentro dos seus olhos húmidos e expressivos e confiar que ela compreendia tudo aquilo.
Um sorriso pequenino, vacilante, formou-se, apesar das lágrimas. Ela pôs-se em bicos de pés para o beijar. Não disse mais do que um sussurro, mas foi suficiente
para lhe chegar aos ouvidos.
- Sei que me amais - foi o que disse.
Diane não se despiu. Não fazia tenção de passar a noite no quarto onde a tinham trancado.
Pôs-se à escuta dos sons que lhe revelariam o que estava a acontecer. Certamente que, se fosse disparada alguma pistola, o som chegaria até ela. com cada minuto
que decorria em silêncio, crescia a sua convicção de que Daniel encontraria forma de levar a melhor sobre Tyndale.
Da sua janela alta, viu uma lua fininha subir pelo céu. Acordada, acompanhou o correr lento da noite, pensando em Daniel. Toda a sua concentração estava em memórias
dele, como se os seus pensamentos bastassem para o proteger.
Quando metade da noite tinha decorrido e ela estava convencida de ser a única pessoa da casa que ainda se mantinha acordada, um som do lado de fora da porta informou-a
de que não era verdade.
Saltou do banco da janela e agarrou num pesado castiçal. Tyndale disse que ela agora não tinha serventia para ele, mas ela não confiava no homem. Podia magoá-la
ou violentá-la só para torturar Daniel.
Chaves tiniram na fechadura. A porta abriu-se. Entrou uma sombra.
Ela começou a erguer o castiçal, mas parou. A sua alma reconheceu o intruso.
- Vinde comigo - disse Jonathan baixinho.
- Para onde?
- O Gustave está à espera na casa pequena com um cavalo. Ele tira-vos daqui.
- Também tendes de soltar Daniel.
- Não posso fazê-lo. Nem quero. Porém, nem Gustave nem eu desejamos ver-vos ferida. Se ficardes, receio que o sejais.
- Talvez também vós o sejais. Libertai o meu marido. Vamos embora todos juntos. SeTyndale pensa matar alguém, nem vós nem Gustave estarão em segurança se souberdes
o que ele fez. Ninguém dará pela vossa falta. Ninguém sabe que ainda estais vivo.
- Vós sabeis. Se escapardes, Tyndale terá de refazer os planos dele, sejam eles quais forem. - Voltou a abrir a porta. - Quanto ao vosso marido, são mais do que
fechaduras a guardá-lo. Não consigo chegar-lhe, ainda que o quisesse. Vinde rápido, antes que Gustave perca a coragem, ou decida que entre arriscar-se à forca e
enfrentar a ira de Tyndale, prefere a primeira.
Ela foi ter com ele à porta, mas tocou-lhe no braço, detendo-o.
- Porque não me levais vós, em vez de Gustave? O que ficar en- ; frenta o maior perigo.
- Tem de ser Gustave. Sou melhor mentiroso do que ele e tenho melhores hipóteses quando Tyndale começar a fazer perguntas. - Cobriu a mão dela com a dele. - Quanto
a potenciais perigos.. permiti-me ser pai desta vez. Finalmente.
A pele dele era áspera e tinha uma humidade que revelava que aquela bravura não lhe fora fácil. Ele estava com medo. Ela imaginou-o durante aquelas últimas horas,
a pesá-la a ela e a tudo o resto, sabendo que não podia corresponder àquela ligação primitiva que tinham, mas sucumbindo, ainda assim, à urgência do dever paterno.
Ela abraçou-o com gratidão pela dura escolha que tinha feito.
- Não mintais demasiado bem - disse. - Deixemos Tyndale pensar que vou procurar ajuda. Deixá-lo saber que vou dizer a toda a gente o que aqui vi.
- Idiota.
Andrew Tyndale não conseguia acreditar que tinha sido amaldiçoado com um pateta como Gustave Dupré.
A ironia era insuportável. O homem era cientista, mas mostrava-se incapaz de qualquer decisão racional. A ausência dos dois, Gustave e Diane, naquela manhã, provava-o.
O homenzinho ajudara-a a fugir.
- Diga ela o que disser, vai implicá-lo - esclareceu. - Corre atrás da própria forca. O homem é estúpido de mais para ver isso?
Jonathan encolheu os ombros. - Acho que se apaixonou por ela. Ontem não parava de lhe chamar pardalita. Estava numa aflição por os vossos planos a porem em perigo.
- Ela não estava em perigo. Era apenas um isco para atrair o marido até aqui. - Tyndale tentou ignorar o quão falsa soava a mentira. Ditas com sinceridade suficiente,
e ele falava agora com grande sinceridade, as mentiras convertiam-se em verdades para as pessoas desejosas de as ouvir.
- Então devíeis ter explicado melhor as coisas. Gustave não conseguia perceber como poderíeis deixá-la ir embora, sabendo ela que o marido viera aqui ter convosco.
Eu também não tinha ideia de como seria, e não consegui ajudá-lo. Ainda assim, nunca esperei que fosse tão arrojado. bom, não havia grande lua e Dupré não é nenhum
cavaleiro. Talvez tenham caído por algum monte abaixo e partido o pescoço.
Andrew assim o esperou. Não podia contar com isso, porém. Nem sabia a altura exata em que os dois tinham partido. com a propriedade sem a maior parte dos criados,
ninguém vira nada.
O seu olhar foi ter aos documentos empilhados ao canto da mesa da biblioteca. Na noite anterior passara horas a tentar que
St. John os assinasse. Horas de promessas com respeito a Diane, e juramentos de honra, e discussões e ameaças. Jogara com a preocupação que St. John sentia pela
mulher. Ao oferecer um caminho para salvar a única pessoa que importava à sua presa, esperara obter as assinaturas. Funcionara antes. Em vez disso, St. John mostrara-se
irredutível em como não assinaria nada até Diane ser libertada.
Ele não teria mantido a mesma posição se ela tivesse uma pistola apontada ao coração. Coisa que teria acontecido naquela manhã, estava decidido.
E agora Gustave tinha rugido com a rapariga, complicando tudo.
bom, se tivesse de ser por duelo, que fosse. Não é que houvesse a possibilidade de St. John ganhar.
- Também o ides deixar ir? - perguntou Jonathan.
- E passar o resto da vida a olhar por cima do ombro? Tratarei disto de outra forma, é tudo. Levai-lhe estes documentos. Dizei-lhe que ela já cá não está, e que
se ele os assinar nos disputaremos honradamente para acertar contas.
A porta do quarto de Daniel abriu-se. O criado barbudo que vira no corredor no dia anterior entrou. Trazia consigo os documentos da noite anterior.
- Tyndale quer encontrar-se convosco - disse.
- Até eu ter provas de que a minha mulher está em segurança, ele e eu não temos nada a dizer um ao outro.
- Na verdade, a vossa mulher foi embora. Saiu durante a noite. Ele não quer falar sobre nada. Quer encontrar-se em duelo.
A notícia surpreendeu Daniel. Recusou-se a acreditar, apesar de sentir um profundo alívio. Seria mesmo de Tyndale mentir sobre isso, para conseguir que lhe assinasse
as escrituras. Mal a tinta secasse, revelar-se-ia uma artimanha.
Esforçando-se por controlar a vã esperança de que ela tivesse de facto partido, viu formar-se um pequeno sorriso por cima da barba do homem.
Examinou-o com mais atenção. - Eu conheço-vos?
- Porque perguntais? Pareço-vos familiar? Pareceis, vagamente.
- Sou um velho amigo de Tyndale, e uma velha vítima vossa, St. John. Ou devo dizer, St. Clair?
St. Clair. Daniel viu subitamente o homem à luz das lâmpadas de uma rua parisiense, arremetendo com uma faca. Voltou a vê-lo, esgueirando-se num beco de Southwark.
Por fim, viu-o, com total clareza, sem a barba e a palidez doentia, de cartas na mão e sorriso confiante.
Observou os olhos do homem. Conhecia-os muito bem porque os vira muitas vezes, recentemente, noutro rosto.
- Tiraste-la daqui? - perguntou, sentindo novamente a esperança a formar-se.
- Sim.
- Então percebestes quem ela é.
- Ela reconheceu-me. Conseguis acreditar? Só a via umas poucas vezes por ano quando era pequena, mas ela reconheceu-me.
- Manteve viva a vossa imagem quando todas as outras memórias a abandonaram.
Jonathan assentiu com a cabeça. - bom, ela está longe e fora disto.
- Agradeço-vos.
- Não o fiz por vós. Tanto quanto me diz respeito, Tyndale pode cortar-vos às postas. Ainda assim, não será assassínio, e assim é melhor. Fosse qual fosse o plano
que ele engendrara, suspeito que Gustave e eu teríamos sido surpreendidos pelas partes que nos diriam respeito. Agora ele tem de dar conta de vós honradamente.
- Deixou cair os documentos na cama. - Se os assinardes, é assim que será.
Daniel não esperava que o duelo fosse de todo honrado. As testemunhas seriam todas de Tyndale. Ainda assim, era uma oportunidade, o que era mais do que ele esperara.
Enfiou o casaco. - Tendes a certeza de que ela está longe? De que está a salvo? í
- Como pai dela, juro-vos que é verdade. Desta vez o alívio venceu. Inundou-o, varrendo uma noite de
preocupação e recriminação. Mais tarde, se sobrevivesse, confrontar-se-ia novamente com a última, mas não podia deixar que esta o distraísse agora.
Pegou nos documentos e levou-os para uma mesa. Usando a pena e o tinteiro que lá estavam, rabiscou o nome em cada um deles.
- Desçamos. Está na altura de acabar com isto.

CAPÍTULO 27
Aguardaram no jardim por trás da casa que o céu prateado se iluminasse. A manhã tinha uma qualidade mística. Tirando o coro de trinados, a terra revelava a sua beleza
sem som algum. Daniel inspirou os aromas fecundos e reparou em todos os pormenores como nunca antes tinha feito.
A paz invadia-o juntamente com o novo dia.
Saber que Diane estava a salvo fazia toda a diferença. Pelo menos não seria distraído por preocupações a esse respeito.
Jonathan saiu de trás da árvore onde estava com os três lacaios que guardavam Daniel. - Deve estar quase a vir.
- O que direis quando houver perguntas? Sabeis decerto que ele não tem qualquer intenção de fazer isto justamente. Tyndale certificar-se-á de que este duelo termina
apenas de uma maneira.
- Não vos devo nada. Aqueles papéis que assinastes vão devolver-me a minha vida - ripostou Jonathan. Se morrerdes, vi um duelo justo.
- E a vossa filha? Diane vai saber a verdade. Ela tem conhecimento de todos os fios deste nó de traição e vingança que nós atámos.
- Perdi-a há muito tempo. Não tenho sonhos a esse respeito. Abriu-se uma porta na casa. Ao longe assomou uma cabeça
loura que seguiu na direção deles. Caminhavam dois outros homens
a seu lado. Quando se aproximaram, Daniel viu a caixa de pistolas que trouxera de Hampstead nos braços de um dos homens. O outro transportava um tabuleiro de prata
cheio de chávenas e um bule de café.
A mente de Daniel reviu num instante toda uma vida de emoções. Não via Tyndale, mas duras imagens da sua meninice e juventude. Começou a crescer raiva dentro de
si. E depois os seus pensamentos transitaram para memórias mais recentes, de Diane e do seu meigo amor, e sentiu-se inundado pela nostalgia e pelo arrependimento
mais doces e profundos.
Vivera para aquele momento, para aquela oportunidade de acertar contas passadas com Tyndale. A ruína fora suficiente para os outros, mas ele sonhara matar o homem
que tinha sido o instigador daquela traição de há tantos anos. Esperara que fosse ódio a preenchê-lo quando chegasse a altura.
No entanto, tudo o que lhe importava agora era a terrível consciência de que poderia não voltar a segurar Diane nos seus braços.
com enorme tristeza, forçou os seus pensamentos a afastarem-se dela. Duvidava que tivesse muitas hipóteses de sobreviver, mas não teria absolutamente nenhuma se
ocupasse a mente com aquilo que poderia perder.
O sol despontou por entre as árvores. Espalhou-se pelo terreno uma luz dourada, revelando a perfeição da aparição de Tyndale. Daniel fez um esforço para envergar
a armadura de fria concentração de que em breve necessitaria.
O sol trouxe consigo sons a par da luz clara. A Natureza ganhou vida e juntou-se ao coro de pássaros chilreantes. Em segundo plano, insinuava-se no ar o ruído vago
de rodas e cavalos.
O som ficava mais alto a cada passada que Tyndale dava.
Tyndale ouviu. Deteve-se e lançou um olhar interrogativo à casa.
O som parou abruptamente. Os pássaros preencheram o vazio que deixou, a ponto de ficar a interrogação sobre se alguma vez lá tinha estado.
Tyndale avançou, com a expressão tão aberta como sempre. Indicou o criado: - Café?
Daniel olhou para lá do tabuleiro e por cima do ombro do homem que o transportava. Um movimento chamara-lhe a atenção. Apareceu uma figura ao lado da casa, que no
instante seguinte desapareceu.
O olhar de Tyndale seguiu o de Daniel até lá acima à casa.
- Parece que temos um convidado - disse Tyndale com uma nota amarga.
- Deve ser o meu padrinho - disse Daniel. - O chevalier Corbet. Tyndale pousou a chávena no tabuleiro. - Parece que afinal não
caíram e partiram o pescoço, Jonathan. Nem Gustave teve o bom senso de a manter em cativeiro.
- Ele estava completamente rendido. Ela deve tê-lo influenciado com os seus artifícios.
- bom, não muda nada.
O vulto do chevalier apareceu novamente. Desta vez não estava sozinho. Tinha um pequeno grupo à sua volta. Todos se encaminharam para a árvore.
Tyndale observava. - O idiota do francês.
- Talvez queirais recuar - disse Daniel.
- Não me faltava mais nada.
O grupo aproximou-se. Os rostos de Vergil, Adrian e Hampton tornaram-se distintos. Uma figura franzina vinda da retaguarda passou por eles e correu pela erva com
as saias bem altas para poder mexer-se depressa.
Diane parecia um anjo, voando na luz matinal. Ao vê-la, o coração de Daniel transbordou de alegria. Avançou em passadas largas e abriu os braços para a receber.
O abraço dela aqueceu-o como sol nenhum conseguiria. Fechou os olhos e saboreou o seu odor e a sensação de a ter nos braços. Agarrada a ele, o coração dela batia,
acelerado, contra o seu corpo.
- Jeanette mandou chamar o chevalier e viemos de carruagem, mas eu mandei avisar os outros e eles também vieram e apanharam-nos a meio do caminho - sussurrou, apressada,
colando o rosto ao ombro dele, voltando-se para o beijar. - Eles vieram para impedir isto.
Daniel olhou por cima do rosto dela, para os de Louis e dos membros da Sociedade de Duelos. Cada um deles sabia algo da sua disputa com Tyndale, mas só Louis sabia
tudo. As suas expressões deixavam entrever que não acreditavam que pudesse ser impedida.
Não tinham ido lá para impedir um duelo, mas para o testemunhar e se certificarem de que seria leal.
Quando alcançaram a árvore, apareceu outro vulto perto da casa. Paul trilhava o parque, trazendo nos braços uma mulher de véu. Sem uma palavra, pousou Jeanette no
chão ao lado da árvore e ela dispôs o seu longo xaile em cima do colo e das pernas inertes.
- Não ficava em Londres nem por nada - disse Paul a Daniel. Louis dirigiu-se ao homem que segurava a caixa das pistolas e
indicou que a abrissem para se inspecionarem as armas. Hampton foi até Daniel e falou baixinho.
- O vosso barco que está em Southampton... Mandei dizer ao capitão que saísse com a maré e que ancorasse ao largo da costa. Estará um bote à espera para vos levar
até lá.
A cabeça de Diane virou-se imediatamente. - Porquê?
- Os duelos são aceites entre cavalheiros, madame. Relativamente ao vosso marido, se ele matar o irmão de um par, não se pode dizer com certeza que não será enforcado.
- Mas não tem de haver duelo. Tyndale não pode forçá-lo.
A um gesto de Daniel, Hampton retirou-se. Daniel puxou Diane para si e acariciou-lhe o rosto. - Se não ficar terminado hoje, sê-lo-á noutro dia. Ele é tão tenaz
como eu e encontrará forma de me matar, honradamente ou não.
- Não se contardes a toda a gente a verdade sobre ele. Não se o denunciardes por aquilo que é e pelo que fez.
- O facto de poder fazê-lo só quer dizer que o perigo é imediato. E não apenas para mim. com isso posso bem viver. Mas ele mostrou que também poderá magoar-vos.
Não posso permiti-lo. Não sairei deste lugar a saber que ele pode tentar vingar-se de mim através de vós.
- Tem de haver outra maneira.
- Não há outra maneira. Dizei-me que o compreendeis. Não quero defrontá-lo sabendo que estais zangada comigo, ou que acreditais que traio a minha promessa para convosco.
A figura esguia de Diane tremeu de preocupação. Ele sentiu que atingia níveis avassaladores. E depois desvaneceu-se quando ela
a venceu.
Ela olhou para ele e só se via amor nos seus olhos. - compreendo. Não é vossa escolha.
Ele beijou-a. Paz e calma invadiram-no como um bálsamo quando ele se perdeu nela. O mundo inteiro recuou e eles ficaram sozinhos no presente maravilhoso, no qual
o passado sombrio e os velhos ódios não podiam interferir.
- Há algo que tenho de vos dizer - começou ele. - Vós roubastes-me o coração. Sois o meu mundo agora. Amo-vos tanto que me enche de espanto.
- E vós sois o meu mundo. Disse-vos ontem à noite que sabia que vós me amáveis. Não há duvidas na minha alma a respeito disso. Agora fazei o que tendes a fazer.
Devo ir embora? Não quero assistir a isto, mas não posso ir se por acaso forem...
Se por acaso forem os nossos últimos minutos juntos. Ele devia obrigá-la a ir-se embora, mas a consciência de que aquele poderia ser um adeus final doía-lhe no coração.
- É vossa escolha, querida. As mulheres não assistem a duelos, mas este não é um duelo normal.
- Então ficarei, se não interferir. Se me dais a escolher, escolho ficar convosco.
Desenlaçou-se lentamente do abraço dele. Ele ficou grato por ela ter reunido força para o fazer, pois duvidava que conseguisse separar-se sozinho.
Ela colocou-se ao lado de Jeanette. Ele dirigiu-se aos rapazes da Sociedade de Duelos. Vergil parecia extremamente sóbrio, com os olhos azuis cheios de preocupação.
- É necessário, St. John?
- É necessário, assevero-vos.
Adrian parecia mais calmo, mas Adrian já vira homens morrer.
- A cabeça ou o coração, Daniel - disse baixinho com um pequeno sorriso.
- O meu cavalo está pronto - informou Hampton. - Quando terminar, ide imediatamente para a costa.
Daniel tirou o casaco e entregou-o a Adrian. Louis avançou. Tyndale esperava ao sol.
- Cabeça fria - disse. - É essencial ter sang-froid.
Daniel olhou para Diane e permitiu que o seu amor por ela lhe limpasse a alma.
Depois fez vir a si o sangue-frio que Louis aconselhava, e que seria necessário para sobreviver.
Ela náo conseguia ficar a ver. E não conseguia desviar o olhar.
Quão calmos se mostravam todos, como se aquelas coisas fossem triviais e várias vezes por semana se visse dois homens a atirar um sobre o outro.
O estoicismo enfureceu-a. Devia haver algum reconhecimento de que em breve seria ceifada uma vida.
Rezou para que náo fosse a de Daniel.
Tyndale escolheu uma arma da caixa e Daniel pegou na outra. O chevalier perguntou se o duelo podia ser evitado, e Tyndale riu, desdenhoso.
Diane não gostou da confiança que sentiu na sua reação. E gostava menos ainda da expressão vazia de Daniel. Devia ser revoltada e intensa. Aqueles olhos diabólicos
deviam estar a arder. Em vez disso, parecia que estava a olhar de uma janela.
Os homens começaram a afastar-se. A pulsação de Diane abrandou até acompanhar o ritmo das passadas deles. Tyndale caminhava na direção dela.
Quando tinha avançado seis passos, um movimento ao lado de Diane distraiu-o. O olhar dele voou para a anca dela, sem que parasse de caminhar.
Diane olhou para baixo, para ver o que lhe chamara a atenção.
Jeanette tinha levantado o véu do rosto.
Tyndale franziu as sobrancelhas. Quase conseguia ver-se a sua mente a procurar, como que espicaçada por algo que ele não compreendia.
Subitamente parou de andar e ficou a olhar para Jeanette. O assombro do reconhecimento espelhou-se-lhe nos olhos.
Jeanette devolveu-lhe um olhar determinado, enquanto as suas mãos compunham o grande xaile que lhe cobria o colo.
Foi questão de poucos segundos, mas durante esse tempo, Daniel finalizara os seus passos e tinha a pistola apontada às costas de Tyndale.
- Andrew - soprou Jonathan num aviso.
Tyndale girou na direção da pistola. A sua arma ainda pendia frouxa a seu lado. Nem sequer completara os passos habituais. Sem preparação, e já sem confiança, disparou.
O som fez Diane dar um salto e ficar a olhar, à espera de ver Daniel cair. Ele nem sequer pestanejou. Ainda estava de pé, rígido, pernas afastadas, arma na mão.
Passou um longo e terrível momento, com todos imóveis, olhando, à escuta da explosão seguinte que despedaçaria a manhã.
Diane parou de respirar. Parecia que o mundo inteiro tinha parado. O braço de Daniel esticou-se ainda mais. Agora não estava de todo distraído. Apesar da sua expressão
descontraída, tinha labaredas no olhar.
Ela adivinhou as memórias e os ódios que as tinham invocado. Por um instante, voltou a ser o Homem Diabo, satisfeito por estar prestes a concretizar o seu sonho
e mandar Andrew Tyndale para o Inferno.
O olhar dele mudou ligeiramente. Via-a a ela agora. O brilho áspero morreu e outro muito diferente apareceu em seu lugar. A linha dura do seu braço vacilou.
O estampido de uma pistola quebrou o silêncio. Uma bala entrou no corpo de Tyndale.
Daniel olhava na sua direção, mas não para Tyndale. Desorientada, Diane olhou para baixo, para ver o que lhe atraía a atenção.
Jeanette segurava uma pistola fumegante.
Enquanto um grupo se reunia à volta de Tyndale para verificar o seu estado, Daniel atirou a arma para o chão e avançou para Jeanette. Aninhou-se ao lado dela e tirou-lhe
a arma das mãos trémulas.
- Não devíeis...
- E melhor ter sido eu. Quanto à maneira como o fiz, deixo que o Céu me julgue. A minha mãe intervirá por mim, juntamente com todos os que ele traiu. - Deu-lhe uma
palmadinha na cara. Além disso, não me parece que fôsseis fazê-lo. Tínheis perdido o impulso.
Ele não teve resposta para o que ouviu. Diane lembrou-se do momento de hesitação e perguntou-se se Jeanette teria razão.
- Não vos sintais culpado, irmão - sussurrou Jeanette. - Estou contente por ele não ter conseguido estropiar-nos aos dois para toda a vida. Quando me enforcarem,
sentir-me-ei mais satisfeita do que me sinto há anos, sabendo que sois feliz e livre.
- Não sereis enforcada. - Daniel levantou-se e agarrou no ombro de Paul. - Tirai-a daqui, levai-a para Southampton, para o navio. Já. Levai-a para França.
Paul pegou nela e começou a afastar-se. Jeanette fê-lo parar e chamou Diane.
Diane aproximou-se para abraçar a irmã. - Vamos ver-vos em breve, prometeu. - Não creio que agora Daniel se oponha a visitar Paris.
Jeanette olhou para o irmão. - E verdade, Daniel? Terminou?
- Sim, terminou, querida.
Paul levou Jeanette embora e Hampton aproximou-se com a pistola de Daniel, espreitando para o tambor com ar inquiridor.
- Parece estar um bocado húmido aqui dentro. - Apontou a pistola para o ar e puxou o gatilho. Uma arranhadela em vez de um estampido. - Tyndale deve tê-la adulterado.
Louis é demasiado inexperiente com armas de fogo e não reparou. Ainda bem que chegámos
no momento certo, senão seríeis um homem morto mesmo que tivésseis disparado primeiro.
- Não digais a ninguém. Essa pistola é a única coisa que está entre a minha irmã e a forca se ela for apanhada.
- O que dizeis?
- Se ela não escapar, vistes-me disparar. Vistes-me matar Tyndale.
O coração de Diane sobressaltou-se. O receio de que Daniel ainda estivesse em perigo provocou-lhe um arrepio na espinha. Subitamente, a progressão de Paul pelo terreno
pareceu muito lenta.
Hampton apontou por cima do ombro. - Penso que é seguro dizer que ela conseguirá escapar.
Louis e os outros membros da Sociedade de Duelos tinham cercado Jonathan e os criados. As suas expressões diziam que homem nenhum sairia da propriedade durante um
bom bocado.
Os olhos de Daniel cintilavam. O seu braço esticou-se para Diane e ela rendeu-se ao seu abraço. - Eles nem sequer sabem porque ela o fez. Não compreendem quem Tyndale
era para nós.
- Eles conhecem-vos - disse Hampton. - Confiam que a história, quando for contada, vos ilibará aos dois. Se não aos olhos da lei, pelo menos aos da honra e da justiça.
- E vós? Vós sois um homem da lei, Hampton.
Hampton agraciou-os com um dos seus raros sorrisos. - Hoje sou vosso amigo, St. John. Todos nós somos.

CAPÍTULO 28
O conde de Highbury pareceu náo saber o que fazer ou pensar quando recebeu a notícia da morte do irmão. Julian Hampton contou a história na sua melhor voz de advogado.
O conde examinou as visitas que tinham invadido a sua casa de Londres. O seu olhar lento passou pelo filho de um conde, pelo irmão de um visconde e pelo chevalier.
Parou no homem menos importante do escritório.
- Então sois vós St. John. Ouvi rumores das peripécias do meu irmão com a vossa prima. A minha mulher contou-me que vós recuastes e casastes com a rapariga. Eu tento
não dar ouvidos à tagarelice dela, mas é tão permanente que alguma coisa acaba por se infiltrar. Foi decente da vossa parte agirdes daquela forma.
- Infelizmente, como acabais de ouvir, o vosso irmão não foi assim tão decente - devolveu Daniel.
Ao seu lado, Vergil deu-lhe uma cotovelada breve mas enfática.
O conde abanou a cabeça. - Por a ter raptado, quereis dizer. bom, eu sempre soube o que esperar dele.
Daniel duvidou, mas o resto da história, as partes mais antigas, não seriam ditas naquela sala a não ser que fosse necessário. Tinham-no decidido todos ainda no
Kent.
- Todos juram que ocorreu como dizeis? Que a pistola de St. John falhou e a irmã atirou para o proteger quando Andrew não parou?
Vergil, Adrian e Julian murmuraram todos vagos assentimentos.
- Quem mais estava lá, além das duas mulheres? Que coisa escabrosa, mulheres a assistir a um duelo...
- Alguns criados dele - respondeu Daniel.
- bom, esses podem-se comprar. - Ergueu-se da cadeira. - Cavalheiros, o meu irmão morreu num acidente.
É a história que farei saber. Estava na propriedade dele no
Kent e morreu num acidente de caça.
Daniel não duvidava que um conde conseguisse encontrar um cirurgião que ignorasse que uma bala de pistola entrara no corpo de Tyndale pelas costas.
- Não quero que o resto, a questão da mulher, o duelo, fique a conhecer-se. Enterrarei o meu irmão com discrição e o seu bom nome intacto.
- O juiz de paz local - começou Hampton.
- Deixai-me explicar-lhe. Eu isento-vos de qualquer responsabilidade, dado que oficialmente nem sequer lá estáveis. O assunto está agora nas minhas mãos.
Não havia mais nada a dizer. Encabeçada por Louis, a Sociedade de Duelos despediu-se e abandonou o escritório. Daniel era o último da fila.
- St. John - chamou o conde, fazendo-o deter-se. Ele voltou-se e olhou para o irmão de Tyndale.
- Eu sei quem sois. Foi aquela coscuvilhice toda. Sei que usaste de sedução para chegar a alguns dos seus círculos, que encantastes certas senhoras há vários anos
para chegardes aonde estais. A minha mulher falou tanto de vós que me perguntei se a tínheis cortejado.
- A condessa e eu nunca nos cruzámos. O mundo dela é seletivo de mais para mim.
- Eu concordo que assim seja. Não aprovo estas novas ideias de mistura de classes, como alguns. E meramente uma moda passageira,
que eu ficarei satisfeito por ver terminar, como acontece com todas as modas.
Ouvia-se o burburinho continuado de uma manifestação, que vogava na brisa e entrava pela janela aberta. Os seus altos e baixos pareciam troçar das palavras do conde.
O rosto do conde endureceu. - Há mais nisto do que aquilo que me contaram, não há?
- Sim, mas acreditai em mim quando vos digo que não quereis saber.
- Então não deixeis que ninguém fique a saber. Se ouvir alguma calúnia sobre ele, alguma ponta de escândalo por causa disto, terei de vos destruir.
Os quatro homens que acabavam de sair já sabiam tudo, mas seriam discretos. - Já não tenho interesse no vosso irmão. Ele está morto, e acabou tudo. Não posso garantir
que algum dos seus velhos pecados não seja exposto com o tempo, contudo. Se sabíeis o que podíeis esperar dele, compreendereis o que quero dizer. Se fosse a vós,
poria de parte algum dinheiro para pagar a quem for necessário para o impedir.
Que confusão era aquela biblioteca.
Gustave estalava a língua ao percorrer as prateleiras. Estava naquilo há horas, depois de acordar da sesta profunda que a sua aventura exigira. Visto que os lacaios
daquela casa não o deixavam sair, tinha de fazer alguma coisa.
Examinar a biblioteca de St. John também o abstraía de outras coisas. Não por completo, infelizmente. Mesmo enquanto lia os títulos das lombadas não conseguia deixar
de se preocupar. E se Tyndale fosse à sua procura? E se a irmã de St. John fosse às autoridades? E se a pardalita acusasse Gustave Dupré sob juramento, mesmo tendo
ele arriscado a vida para a salvar?
Os livros não tinham organização. Ao contrário da biblioteca
de Tyndale, porém, todos tinham sido lidos. Pegando em alguns, viu que um ou outro até tinham anotações na margem.
Continuou, torcendo o nariz à variedade de assuntos. St. John tinha uma mente de amador, que mudava constantemente de direçáo. Sem foco, sem especialização. Havia
mais poesia do que Gustave aprovava. Pelo menos o homem parecia preferir os franceses antigos, e não o desordenado disparate emotivo, cheio de meandros, que se tornara
popular ultimamente.
- Encontrastes o que procurais, Dupré?
Gustave deu um salto. Voltou-se e viu St. John e Jonathan à porta.
- Apenas os espreitava para passar o tempo. - Apontou para as prateleiras. - É costume ordená-los segundo algum sistema. Vereis que é mais eficiente.
- Estão ordenados segundo um sistema. Estão pela ordem em que os obtive. Os mais recentes estão aqui. Por exemplo, o artigo de Volta sobre a criação de efeitos elétricos
a partir de pilhas metálicas está na segunda prateleira a contar do fundo.
Parecia que St. John tencionava explicar-se. Era o prenúncio de um bom fim para aquele desagradável episódio. Aparentemente, não houvera assassínio, mas sim negociações.
Agora, St. John estava pronto a retificar o seu comportamento criminoso para evitar a exposição.
- A descoberta de Volta é famosa e o facto de a conhecerdes não me surpreende. No entanto, sabíeis que na minha biblioteca podem ser encontradas especulações acerca
do efeito da eletricidade nos metais. O que é mais provocador.
- Não é a vossa biblioteca. Já pertenceu ao meu tutor, que se correspondia com Volta e soube da teoria dele antes dos outros cientistas. Ele desenhou-me uma imagem
no seu bloco de notas, para me mostrar como poderia funcionar semelhante pilha, e explicou-me as ideias dele sobre como as propriedades químicas e físicas poderiam
ser isoladas quando se conseguisse produzir eletricidade à vontade.
- Dizeis que o resto era vosso apenas, baseado nessas conversas com o vosso tutor? Mas o outro manuscrito...
- Uma falsificação. Um embuste. O resto foi tudo produto da minha imaginação.
Gustave agarrara-se à ténue esperança de que a teoria tivesse algum mérito, e de não ter investido a sua fortuna e a sua reputação numa farsa completa. Apesar da
convicção de Tyndale de que tinham sido enganados, ele esperara que, com alguma experimentação, um acerto aqui e ali...
Lamentou ter interferido com os planos de Andrew para matar o homem que tinha à frente. Naquele momento, ele próprio mataria St. John se pudesse. O homem atraíra-o
para a ruína e ele caíra na armadilha como um cão persegue o cheiro da carne.
A porta abriu-se e outro homem entrou. Era Adrian, o seu secretário.
- O que fazeis aqui? Adrian sorriu para St. John. Realmente, era de mais.
- Estais ao serviço deste vigarista? Que trama diabólica é esta?
- A resposta ocorreu-lhe antes de a pergunta ser feita. - A experiência em Paris, as marcas no ferro... contastes-lhe tudo. Traidor! vou contar a todos sobre vós.
Ides ver que Gustave Dupré tem influência. Destruístes a minha fortuna e eu agora destruo-vos a vós.
A sua indignação foi recebida com um riso escarninho. Transformou-se em tosse, com Jonathan a cair numa cadeira e a dobrar-se.
- Dupré, sois cá um imbecil. - Mal conseguiu pronunciar as palavras, com o corpo sacudido por tosse e risos. -Todos raptámos a esposa do homem, seu pateta. Ficai
satisfeito por ainda estardes vivo. Provavelmente escrevereis o vosso próximo tratado na cela de uma prisão.
Prisão?
- Não desmaieis, Dupré. Não tenho qualquer plano para vós
- disse St. John. - Adrian, tratais deles? Diane está à minha espera, para saber como correu com o conde.
Depois de St. John sair, Gustave atirou-se ao seu secretário.
- Estou muito desiludido convosco.
- Ele contou-me tudo - disse Adrian com frieza. - Sei da vossa velha história com Tyndale e como ficastes com a biblioteca. Por isso, sei como obtivestes aquela
prova que ostenta o vosso nome.
- Vós nunca... - Mas poderia. St. John provavelmente fá-lo-ia. Havia aqueles que sempre tinham mostrado suspeita, que espalhariam o rumor.
Gustave nunca na vida se sentira tão desamparado. A destruição não se limitava à sua fortuna, mas também à sua reputação.
- Fomos apanhados, Dupré - anunciou Jonathan. - Estais arruinado, como eu fui. Bem, podia ter-nos acontecido pior. Afinal, Tyndale está morto.
- Morto!
- Hum.
Estava encurralado. Condenado. - Mais vale dar um tiro na cabeça. Não me resta um único franco.
- Não é inteiramente verdade - avançou Adrian. - Está um armazém cheio de metal em Southwark. Aquelas pilhas contêm cobre e zinco, e também há lá muito ferro. Quando
forem vendidos, vós e Jonathan estareis melhor do que quando isto começou. Vamos lá agora, ver o que pode ser aproveitado.
Jonathan parecia incrédulo. - E St. John permite?
- A mulher sugeriu-lho e ele não pode recusar-lho, visto que a ajudastes a escapar ontem à noite.
- Estou estupefacto - disse Gustave, tonto de alívio. Fora obra da pardalita. Ele sabia que ela tinha uma afeição especial por ele, mas um gesto daqueles... A salvação
inesperada fez-lhe o sangue correr em todas as direções que não devia e ele viu o quarto começar a andar à roda.
- Raios, ele vai cair - ouviu Jonathan gritar, imediatamente antes de a escuridão se apossar da sua consciência.
Diane pegou em Daniel pela mão logo que este entrou no jardim. - Depois. Falemos depois - disse ela.
Levou-o para um canto mais afastado da casa e abraçou-o à luz das estrelas enquanto procurava avidamente o seu beijo. - Abraçai-me apenas, para eu ter a certeza
de que estamos ambos aqui e de que tudo terminou.
- Está tudo mais do que terminado, querida.
Ela puxou-o contra si, desesperada por senti-lo. A preocupação acumulada dos últimos dois dias ameaçava voltar a reclamá-la, e só tê-lo junto a si o impedia. - Beijai-me.
Amai-me. - As mãos dela andavam de um lado para o outro, sentindo-lhe o corpo, procurando tocar todo o calor que conseguisse. Puxou as ancas dele contra as suas,
para poder sentir o desejo dele por ela.
Não queria palavras. Isso podia esperar. Precisava dele, do amor e da fome dele, e da paixão que convenceria a sua alma de que ele estava lá e estava bem e que o
que vivia era real.
O abraço dele absorveu-a. Os beijos dele consumiam-na. Não era suficiente. Precisava de mais. De tudo.
- Aqui. Agora. - Suplicou entre beijos selvagens. - Amai-me. Saciai-me, querido.
Deitaram-se no leito de flores primaveris. Instalou-se entre as pernas dela, envolvendo-a toda com o seu abraço e cobrindo-a com o seu corpo. Aromas doces soltavam-se
das plantas esmagadas, inebriando-a ainda mais.
Ela saboreou a realidade dos cheiros e do céu, do peso e do querer dele, da paixão que os unia totalmente. Não houve palavras nem necessidade delas. Sentia tudo
nele, todo o amor e todo o alívio.
Daniel começou a levantar-lhe a saia. Ela ajudou, ansiosa por completar a união, desesperada por estarem juntos.
Ele acariciou-a, para a preparar. Não era o que ela queria, não precisava daquilo. - Não. Vinde a mim apenas, querido. Saciai-me o corpo e o coração, saciai-me toda
logo que possais.
com a cabeça emoldurada pelo céu noturno, ele baixou os
olhos para ela. O frenesim acalmou, mas não a paixão. Preenchia-os e rodeava-os como um vento espiritual.
Aquela beleza toda fê-la ter vontade de chorar. Quando ele a penetrou, lágrimas silenciosas correram-lhe pelas fontes. Na sua união, ela conhecia-o completamente.
A alma dela compreendia os mistérios que não tinham palavras. O seu coração sentia o deslumbramento prudente da alma dele.
Ele fez amor com ela lentamente, maravilhosamente. Não refreou nada. O prazer era o menos, uma mera metáfora da verdadeira partilha. Derramaram amor um no outro,
reafirmando a sua aliança face a um mundo indiferente.
O fim foi poderoso, mútuo, místico. Fundiram-se durante um longo momento de consumação. No seu êxtase, ela sabia que as melhores partes do amor daquela noite durariam
para sempre. Nunca mais voltaria a estar sozinha.
No fim ele permaneceu dentro dela, e os dois sobre a terra desperta. Ele relatou-lhe calmamente o encontro com o conde, e a forma como o irmão de Tyndale os apagara
a todos da história da sua morte.
- Então tínheis razão quando dissestes a Jeanette que terminou completamente - disse ela. - E como se nada tivesse acontecido. Conseguis aceitar que o mundo nunca
saiba o que ele fez?
- Eu nunca procurei que o mundo soubesse.
- Porque não? Porque não o denunciastes?
- Não tinha provas do que ele fizera, nem sequer de quem eu era. Quem teria acreditado em mim? Ele era irmão de um par e um homem poderoso só por si. Mesmo que eu
tivesse passado anos a gritar a verdade, o mundo dele ter-me-ia ignorado. Por isso tratei da situação de forma diferente.
Sim, de forma diferente. Subtil. Um duelo por causa de uma jovem. Mas não Jeanette, porém. Também não havia provas daquilo, exceto a palavra de um armador e de uma
aleijada.
- Destruístes os outros de formas que aludiam ao passado e ao que eles tinham feito. Penso que queríeis fazer o mesmo com Tyndale.
- Talvez assim fosse.
Ela passou-lhe os dedos pelo cabelo. - Então agora sei tudo. Não há mais mistérios. Exceto um. -Qual?
- O meu pai disse que não ficou nenhum St. John à espera na costa naquele tempo. Nem nenhum St. Clair, o nome que usáveis quando o arruinastes. Por isso, dizei-me,
marido, quem sois vós? Se a vossa história será a minha, quero saber.
Ele apoiou-se nos braços e baixou o olhar para ela. - Hoje, agora, sou Daniel St. John. Nasci, contudo, Daniel de Ia Tour. O meu pai ensinava línguas antigas na
universidade de Paris.
- E a vossa mãe?
Ela sentiu-o tremer com o eco da antiga angústia, e arrependeu-se imediatamente da pergunta.
- A minha mãe era a filha mais nova de um barão. Casou muito abaixo da posição social da família e foi renegada por eles. O que, no fim, não significou nada.
- Dissestes-me na Escócia que o vosso pai não era aristocrata. Não vos lembrastes de mencionar que a vossa mãe o era.
Ele voltou a aninhar-se no seu abraço. - Um descuido. Ela riu. - Houve algum descuido mais? Ele encolheu os ombros. - Devo provavelmente mencionar que sou o último
da linhagem, tirando Jeanette.
- Isso quer dizer que sois o barão agora.
- Imagino que sim, se quiser tentar reivindicá-lo. A palavra de Louis sobre a minha identidade pode ser suficiente.
- Quereis fazê-lo?
Ele ficou algum tempo sem responder. Ela pressentiu uma nova sombra.
- Precisarei de algum tempo para o descobrir. A minha família não acreditava nesse tipo de privilégio. Tal como muitos intelectuais, o meu pai aprovava a revolução,
e enquanto rapaz eu via-a como algo bom e necessário, um golpe pela igualdade. Claro que nunca esperámos que acabasse por nos dizimar também.
Ela não sabia o que dizer. Tinha pensado que conhecia todos
os mistérios, mas não pudera adivinhar que lhe restava um último no fundo da alma. A grande causa em que ele acreditara acabara por lhe tirar tudo o que lhe era
caro. Era mais um negro cambiante das suas experiências de infância, e mais um nó no emaranhado de emoções que o tinham impulsionado durante toda a vida.
A confidência final aligeirou-lhe a disposição. Beijou-lhe a face.
- Estas coisas já não são assim tão importantes. Tenho outras a ocupar-me os pensamentos agora.
- O quê?
- Vós, e a oferta que me fizestes com o vosso amor. Sem vós, hoje estaria completamente desolado. Vazio, com uma vida terminada e sem outra à espera. Em vez disso,
estou contente que tenha terminado. Aliviado. Construiremos uma vida nova juntos, onde quer que queirais. Tudo o que me importa é que sois minha e que o vosso amor
é meu.
- É vosso para sempre. Amar-vos faz-me sentir inteira. Se não fosse por vós, seria ainda órfã, sem história nem família. Nem mesmo Jonathan poderia ter preenchido
o vazio com que uma vez vivi. Só amar-vos.
- Éramos ambos órfãos, Diane. Mas isso agora acabou. Formaremos a nossa própria família, e uma nova história.
Ouvir a confiança e a certeza da sua voz comoveu-a desmesuradamente. O seu coração fez-se grande, repleto da promessa que o amor deles oferecia.
- Diane, na noite antes do duelo, quando viestes ter comigo... foi muito corajoso e generoso. Dizer-me que me amáveis... conseguiu penetrar nuvens no meu coração
que eram escuras e antigas. Até àquela noite, nem sequer me apercebera de como obscureciam o mundo.
Não fora corajoso. Fora necessário, para ela e para o seu coração.
Ele olhou para baixo ainda com o corpo colado ao dela. A noite ocultava-lhe a expressão, mas ela sentiu que a sua atenção estava completamente nela.
Beijou-a. - Obrigado.

 

                                                                  Madeline Hunter

 

 

 

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