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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SEGREDO DAS SOMBRAS / Alan Bradley
O SEGREDO DAS SOMBRAS / Alan Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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ESPIRAIS DE CERRAÇÃO PURA subiam do gelo flutuando qual espíritos atormentados abandonando seus corpos. O ar frio era como um nevoeiro baço e sinuoso.
Eu voava subindo e descendo a longa galeria, as lâminas prateadas dos patins produzindo o triste som rascante de uma faca de açougueiro sendo amolada energicamente sobre uma pedra. Abaixo da superfície do gelo, o parquete de padrões intricados do piso de madeira de lei ainda era bem visível – muito embora suas cores fossem algo empanadas pela difração.
Acima, as doze dúzias de velas que eu tinha furtado da copa e enfiado nos antigos candelabros tremeluziam enlouquecidas com o vento da minha rápida passagem. Dei voltas e mais voltas pela sala – voltas e voltas, para cima e para baixo. Inspirando grandes alentos do ar cortante, expirando de volta em pequenas trombetas de condensação.
Quando afinal parei derrapando, fragmentos de gelo voaram para cima como uma onda de minúsculos diamantes coloridos se quebrando.
Tinha sido bem fácil inundar a galeria de retratos: uma mangueira de jardim de borracha colocada sinuosamente para dentro, vinda do terraço através de uma janela aberta, despejando água a noite inteira deu conta do trabalho – isso e o frio intenso que, na última quinzena, assolara toda a zona rural em seu domínio gélido.
Como ninguém costumava vir para a ala leste sem aquecimento de Buckshaw, ninguém iria reparar na minha pista improvisada de patinação no gelo – pelo menos não até a primavera, quando ela derretesse. Ninguém, a não ser talvez os meus antepassados pintados a óleo, fileira após fileira deles, que neste momento olhavam para mim com cara azeda de suas pesadas molduras, em desaprovação glacial ao que eu fizera.

 


 


Mandei para eles um som de “pum” com os lábios e a língua, que reverberou bem alto, e disparei de novo para dentro da cerração gelada, agora com o corpo dobrado na cintura como uma patinadora velocista, o braço direito perfurando o ar, as tranças voando, a mão esquerda acomodada atrás das costas displicentemente, como se estivesse saindo para uma caminhada de domingo no campo.

“Como seria adorável”, pensei, “se algum fotógrafo da moda como Cecil Beaton aparecesse com sua câmera para imortalizar o momento”.

“Continue exatamente como estava, querida”, ele diria. “Faça de conta que não estou aqui.” E eu voaria de novo como o vento em volta da vastidão da antiga galeria de retratos, minha passagem congelada de quando em quando pelo espoucar discreto de uma lâmpada de flash.

Então, em uma ou duas semanas, lá estaria eu, nas páginas da Country Life ou do Illustrated London News, capturada no meio do movimento – congelada para sempre em uma postura relaxada e determinada.

“Deslumbrante... encantadora... De Luce”, diria a legenda. “A patinadora de onze anos é um poema em movimento.”

“Bom Deus!”, exclamaria o pai. “É Flavia!”

“Ophelia! Daphne!”, ele chamaria, agitando a página no ar como se fosse uma bandeira de papel, depois olhando de novo para ela, só para ter certeza. “Venham depressa, é Flavia, sua irmã.”

Ao pensar nas minhas irmãs, deixei escapar um gemido. Até então eu não me sentira muito incomodada pelo frio, mas agora ele me pegara com a força súbita de um temporal no Atlântico: o frio agudo, cortante, paralisante de um comboio de inverno – o frio de uma sepultura.

Estremeci dos ombros aos dedos dos pés e abri os olhos.

Os ponteiros do meu despertador de latão marcavam seis e quinze.

Jogando as pernas para fora da cama, procurei os chinelos com os pés, embrulhando-me com a roupa de cama – lençóis, acolchoado e tudo –, levantei da cama e, encurvada como uma barata corpulenta, fui gingando como uma pata até as janelas.

Ainda estava escuro lá fora, é óbvio. Nessa época do ano, o sol não apareceria por mais duas horas.

Os dormitórios em Buckshaw eram tão vastos quanto praças de desfile – espaços frios, com correntes de ar, paredes distantes e perímetros sombrios, e de todos eles, o meu, no canto do extremo sul da ala leste, era o mais distante e desolado.

Por causa de uma longa e rancorosa disputa entre dois dos meus antepassados, Antony e William de Luce, com respeito à integridade na conduta de certas táticas militares durante a Guerra da Crimeia, eles haviam dividido Buckshaw em dois campos com uma linha preta pintada atravéz do centro do foyer: uma linha que cada um deles proibira o outro de cruzar. E assim, por várias razões – algumas um tanto chatas e outras bem bizarras –, na época em que outras partes da casa estavam sendo renovadas durante o reinado do rei George V, a maior parte da ala leste fora deixada sem aquecimento e totalmente abandonada.

O soberbo laboratório químico construído para meu tio-avô Tarquin, ou “Tar”, de Luce pelo pai dele, tinha ficado esquecido e negligenciado até eu descobrir seus tesouros e torná-lo meu. Com a ajuda dos cadernos bastante detalhados de tio Tar e de uma paixão selvagem por química que deve ser minha de sangue, consegui me tornar muito boa em rearranjar aquilo que eu gostava de encarar como os elementos fundamentais do universo.

“Muito bom”, dizia uma parte de mim. “Apenas ‘muito bom’? Pare com isso, Flavia, velha amiga! Você é uma tremenda maravilha e sabe disso!”

A maioria dos químicos, admitam ou não, tem uma área favorita em seu ofício na qual estão sempre especulando, e a minha abrange os venenos.

Embora eu ainda ficasse muito excitada só de lembrar como tingira as calcinhas da minha irmã Felinha com um inconfundível amarelo-malaio fervendo-as numa solução de acetato de chumbo, dando em seguida uma boa fervida numa solução de cromato de potássio, o que realmente fez meu coração pular de alegria foi minha capacidade de produzir um veneno improvisado, porém conveniente, raspando o azinhavre verde vivo do flutuador de cobre de um dos tanques dos banheiros vitorianos de Buckshaw.

Me curvei para mim mesma diante do espelho, rindo alto ao ver a gorda e branca lesma-no-acolchoado que se curvava de volta para mim.

Pulei para dentro das minhas roupas de frio, me enfiando em um folgado cardigã cinzento que eu surrupiara da gaveta de baixo da cômoda do pai. Essa monstruosidade desajeitada – infestada de losangos cáqui e marrons, como uma cascavel bem passada – tinha sido tricotada para ele no Natal anterior por sua irmã, a tia Felicity.

“Muito gentil de sua parte, Lissy”, dissera o pai, habilido-samente se esquivando de qualquer louvor direto ao horrível item de vestuário. Quando reparei, em agosto, que ele ainda não tinha usado aquela coisa, considerei-a como presa fácil, e desde então tornara-se minha peça favorita para o frio.

O suéter não me servia, é claro. Mesmo com as mangas enroladas, eu parecia um macaco de calça folgada colhendo bananas. Mas em meu modo de pensar, pelo menos no inverno, roupas quentes de lã superam qualquer outra opção da moda para o frio congelante.

Eu sempre fiz questão de nunca pedir roupas para o Natal. Já que é absolutamente certo que você vai ganhá-las, por que desperdiçar um pedido?

No ano passado eu pedi a Papai Noel alguns itens urgentemente necessários de artigos de vidro – cheguei a me dar o trabalho de preparar uma lista item por item de frascos, provetas e tubos de ensaio graduados, a qual enfiei com cuidado embaixo do meu travesseiro, e, vejam só: ele trouxe!

Felinha e Daphne não acreditavam em Papai Noel, o que, imagino, é exatamente a razão por que ele sempre lhes trouxera presentes tão sem graça: sabonete perfumado, em geral, e vestidos, e pares de chinelos que pareciam ter sido recortados de um tapete turco.

Papai Noel, elas me disseram milhares de vezes, era para crianças.

“Ele não é mais que uma brincadeira cruel inventada por pais que desejam despejar presentes sobre sua repulsiva descendência sem precisar realmente tocá-la”, insistiu Daphne no ano passado. “Ele é um mito. Acredite em mim, afinal sou mais velha que você e sei dessas coisas.”

Será que acreditei nela? Não tenho certeza. Quando fui capaz de sair sozinha e pensar nisso sem lágrimas brotando nos olhos, apliquei meus talentos dedutivos muito consideráveis ao problema e cheguei à conclusão de que minhas irmãs estavam mentindo. Alguém, afinal, trouxera os artigos de vidro, ou não?

Só havia três candidatos humanos possíveis. Meu pai, coronel Haviland de Luce, estava sem um centavo, e portanto estava fora de questão, bem como minha mãe, Harriet, que morrera em um acidente de alpinismo quando eu não era mais que um bebê.

Dogger, que era o factótum geral e pau para toda obra do pai, simplesmente não tinha os recursos de mente, corpo ou finanças para sair arrastando presentes generosos em segredo, na calada da noite, em uma casa de campo decadente e cheia de correntes de ar. Dogger tinha sido um prisioneiro de guerra no Extremo Oriente, onde sofrera tão horrivelmente que seu cérebro continuara conectado com aqueles horrores por um cordão elástico invisível – um cordão em que o destino cruel ainda dava um puxão de vez em quando, quase sempre nos momentos mais inoportunos.

“Ele tinha de comer ratos!”, contara a sra. Mullet na cozinha, de olhos arregalados. “Ratos, imagine! Eles tinham de fritá-los!”

Com todo mundo na casa desqualificado por uma razão ou outra como o Portador de Presentes, restava apenas Papai Noel.

Ele viria de novo em menos de uma semana, e, a fim de resolver a questão de uma vez por todas, eu planejara havia muito tempo uma armadilha para ele.

Cientificamente.

Visgo de pegar passarinho, como qualquer químico prático confirmaria, pode ser facilmente preparado fervendo a casca do meio do azevinho por oito ou nove horas, enterrando sob uma pedra por quinze dias, e então, depois de desenterrada, lavando e pulverizando em água corrente de rio e deixando para fermentar. O material vem sendo usado há séculos por vendedores de passarinhos, que lambuzam galhos de árvore com ele para pegar as aves canoras que vendem nas ruas da cidade.

O grande Sir Francis Galton descreveu um método para prepará-lo em seu livro A arte de viajar; ou artimanhas e maquinações disponíveis em terras selvagens, do qual encontrei um exemplar autografado no meio de um conjunto de suas obras excessivamente sublinhadas na biblioteca de tio Tar. Segui as instruções de Sir Francis literalmente, carregando para casa no meio do verão braçadas de azevinho dos grandes carvalhos que crescem no bosque de Gibbet e fervendo os ramos quebrados sobre um bico de Bunsen no laboratório, em uma caçarola emprestada da sra. Mullet – sem o conhecimento dela. Durante os estágios finais eu acrescentara alguns truques químicos de minha própria lavra, para deixar a resina pulverizada cem vezes mais grudenta que na receita original. Agora, depois de seis meses de preparação, minha mistura era poderosa o bastante para deter um gorila do Gabão instantaneamente, e Papai Noel – se é que existia – não teria a menor chance. A não ser que o velho e alegre cavalheiro por acaso viajasse com uma garrafa de éter sulfúrico – (C2H5)2O – à mão para dissolver o visgo, ele iria ficar preso no topo da nossa chaminé para sempre – ou até que eu decidisse libertá-lo.

Era um plano brilhante. Eu me perguntava por que ninguém pensara nisso antes.

Espiando para fora através das cortinas, vi que tinha nevado à noite. Impulsionados pelo vento norte, flocos brancos ainda turbilhonavam loucamente à luz que vinha da janela da cozinha, no andar de baixo.

Quem poderia estar acordado a essa hora? Era cedo demais para a sra. Mullet ter vindo a pé de Bishop’s Lacey.

E então eu me lembrei!

Hoje era o dia em que os intrusos estariam chegando de Londres. Como pude ter esquecido uma coisa dessas?

Fazia mais de um mês – em 11 de novembro, na verdade, naquele cinzento e quieto dia de outono em que todos em Bishop’s Lacey haviam chorado em silêncio por aqueles que tinham perdido nas guerras – que o pai nos convocara para a sala de estar para dar as amargas novas:

— Receio ter de contar a vocês que o inevitável aconteceu – disse ele afinal, voltando-se da janela para fora da qual ficara olhando morosamente por um quarto de hora. – Não preciso lembrar vocês sobre nossas precárias perspectivas financeiras...

Ele disse isso esquecendo o fato de que nos lembrava com frequência – em algumas ocasiões, duas vezes em uma hora – das nossas reservas minguantes. Buckshaw pertencia a Harriet, e quando ela morreu sem deixar testamento (quem, afinal, poderia imaginar que alguém tão transbordante de vida poderia encontrar seu fim em uma montanha no distante Tibete?) os problemas começaram. Fazia dez anos que o pai vivenciava os passos palacianos da “Dança da Morte”, como ele a chamava, com os homens cinzentos do Conselho da Receita Fiscal de Sua Majestade.

Contudo, a despeito da crescente pilha de contas na mesa do foyer e apesar do número cada vez maior de exigências telefônicas de pessoas com voz áspera de Londres, o pai, de algum modo, conseguira lidar mais ou menos satisfatoriamente com a situação.

Uma vez, por causa de sua fobia em relação ao “instrumento”, como ele chamava o telefone, eu mesma atendera uma dessas chamadas insolentes, levando-a a um fim bem divertido ao fingir não falar inglês.

Quando o telefone tocou de novo, um minuto depois, atendi de pronto e então bati o dedo bem rápido no gancho.

— Alô? — gritei. — Alô? Alô? Desculpe, não estou conseguindo ouvir. Está horrível a ligação. Tente de novo outro dia.

Quando tocou a terceira vez, tirei o fone do gancho e cuspi no bocal, que logo começou a produzir um ruído crepitante horroroso.

— Fogo — eu disse em uma voz entorpecida e vagamente monótona. — A casa está em chamas... as paredes e o chão. Acho que vou ter de desligar. Desculpe, mas os bombeiros estão arrebentando a janela.

O cobrador não ligou mais.

— Minhas reuniões com a Secretaria de Impostos sobre a Propriedade — dizia o pai — não chegaram a lugar nenhum. Agora tudo depende de nós.

— Mas a tia Felicity! — protestou Dafi. — Com certeza a tia Felicity...

— A sua tia Felicity não possui nem meios nem disposição para aliviar a situação. Receio que ela...

— Venha nos visitar no Natal — interrompeu Dafi. — Você podia pedir a ela quando estiver aqui!

— Não — disse tristemente o pai, meneando a cabeça. — Todos os meios fracassaram. A dança terminou. Fui forçado afinal a ceder Buckshaw...

Deixei escapar um arquejo.

Felinha inclinou-se para a frente, a testa franzida. Estava roendo uma unha, coisa inédita para uma pessoa tão vaidosa como ela.

Dafi ficou olhando com olhos semicerrados, inescrutável como sempre.

— ... para um estúdio de cinema — prosseguiu o pai. — Eles vão chegar na semana anterior ao Natal e vão ter a posse total até terminar o trabalho.

— Mas e nós? — perguntou Dafi. — O que vai ser de nós?

— Nós seremos autorizados a permanecer na área — respondeu o pai —, desde que fiquemos em nossas acomodações e não interfiramos com os trabalhos da companhia. Sinto muito, mas esses foram os melhores termos que pude conseguir. Em troca, receberemos no final uma remuneração suficiente para manter a cabeça para fora da água, pelo menos até o próximo Dia da Anunciação.

Eu deveria ter suspeitado de alguma coisa do gênero. Fazia apenas alguns meses que tínhamos recebido a visita de um par de jovens cavalheiros usando lenço no pescoço e calça de flanela, que passaram dois dias fotografando Buckshaw de todos os ângulos imagináveis, por dentro e por fora. Neville e Charlie, eles se chamavam, e o pai fora extraordinariamente vago a respeito das intenções dos dois. Imaginando que seria apenas mais uma visita para fotografias da Country Life, tinha afastado aquilo da cabeça.

E agora o pai fora atraído de novo para a janela, onde ficou plantado, olhando para fora, para a sua propriedade em dificuldades.

Felinha pôs-se em pé e caminhou displicentemente para o espelho. Ela se inclinou para a frente, examinando com atenção o próprio reflexo.

Eu já sabia o que lhe passava pela cabeça.

— Tem alguma ideia de qual é o assunto? — perguntou ela em uma voz que não era a dela. — Do filme, quero dizer.

— Mais uma daquelas malditas coisas sobre casas do campo, eu acho — respondeu o pai, sem se voltar. — Não me dei ao trabalho de perguntar.

— Algum nome famoso?

— Nenhum que eu reconhecesse — disse o pai. — O agente tagarelou sem parar sobre alguém chamado Wyvern, mas não significou nada para mim.

— Phyllis Wyvern? — Dafi ficou toda excitada. — Não foi Phyllis Wyvern?

— Sim, é isso — disse o pai, animando-se, mas só um pouco. — Phyllis. O nome soou familiar. O mesmo nome da presidente da Sociedade Filatélica de Hampshire. Só que o nome dela é Phyllis Bramble — acrescentou ele. — Não Wyvern.

— Mas Phyllis Wyvern é a maior estrela de cinema do mundo! — disse Felinha, boquiaberta. — Da galáxia!

— Do universo — acrescentou Dafi solenemente. — Em A filha do guarda-chaves, ela fez o papel de Minah Kilgore, estão lembrados? Anna das estepes... Amor e sangue... Vestida para morrer... O verão secreto. Ela era para fazer o papel de Scarlett O’Hara em E o vento levou, mas engasgou com um caroço de pêssego na noite anterior ao seu teste e não conseguiu falar nem uma palavra.

Dafi mantinha-se atualizada com os últimos mexericos do cinema pelas publicações de leitura rápida na agência de jornais e revistas da aldeia.

— Ela vem a Buckshaw? — perguntou Felinha. — Phyllis Wyvern?

O pai ensaiou um encolher de ombros e voltou a olhar, taciturno, pela janela.

Desci correndo a escadaria leste. A sala de jantar estava às escuras. Quando entrei na cozinha, Dafi e Felinha ergueram os olhos do mingau com expressão azeda no rosto.

— Ah, aí está você, querida — disse a sra. Mullet. — Estávamos justamente falando sobre mandar uma equipe de resgate para ver se você ainda estava viva. Agora se apresse. O pessoal do filme já está chegando.

Devorei sem mastigar o meu desjejum (mingau grumoso e torradas queimadas com coalhada de limão) e estava prestes a escapulir quando a porta da cozinha se abriu e Dogger entrou, trazendo uma lufada de ar fresco e frio.

— Bom dia, Dogger — eu disse. — Vamos escolher uma árvore hoje?

Desde que me lembro, tem sido uma tradição para minhas irmãs e eu, na semana anterior ao Natal, acompanhar Dogger para dentro do bosque nas cercanias a leste de Buckshaw, onde consideraríamos com seriedade esta ou aquela árvore, concedendo pontos a cada uma por altura, forma, volume e todos os aspectos em geral antes de finalmente decidir por uma campeã.

Na manhã seguinte, como por mágica, a árvore escolhida apareceria na sala de estar instalada em um balde para carvão e pronta para atrair nossas atenções. Todos nós – com exceção do pai – passaríamos o dia em um verdadeiro turbilhão de ouropéis, grinaldas prateadas e douradas, bolas de vidro colorido e anjinhos soprando trombetas de cartolina, andando de um lado para outro com pequenas tarefas até o escurecer, quando, relutantemente, consideraríamos a missão cumprida.

Como era o único dia do ano no qual minhas irmãs eram um pouco menos detestáveis comigo do que de costume, eu ansiava por ele com uma excitação mal contida. Por um único dia – ou pelo menos por umas poucas horas – seríamos delicadamente civilizadas umas com as outras, caçoando, brincando e às vezes até rindo juntas, como se fôssemos uma daquelas famílias pobres, porém alegres, de Dickens.

Eu já estava até sorrindo por antecipação.

— Receio que não, senhorita Flavia — disse Dogger. — O coronel deu ordens para deixar a casa como está. São as instruções da equipe de filmagem.

— Ora, dane-se a equipe de filmagem! — disse eu, talvez alto demais. — Eles não podem nos impedir de ter um Natal.

Mas vi imediatamente pelo olhar de Dogger que eles podiam.

— Vou pôr uma árvore pequena na estufa — disse ele. — Ela vai durar mais no ar frio.

— Mas não vai ser a mesma coisa! — protestei.

— Não, não vai — concordou Dogger —, mas teremos feito o melhor possível.

Antes que eu pudesse pensar em uma resposta, o pai entrou na cozinha, fazendo uma carranca para nós como se fosse um gerente de banco e nós, um grupo de investidores que, de algum modo, conseguiram romper as barreiras antes do horário de abertura.

Todos nos sentamos de olhos baixos enquanto ele abria seu London Philatelist e concentrava sua atenção em passar uma pálida margarina em sua torrada esturricada.

— Caiu uma neve fresquinha durante a noite — observou alegremente a sra. Mullet, mas pude ver por sua olhadela preocupada para a janela que seu coração estava longe. Se o vento continuasse soprando como estava, ela teria de vadear para casa através das correntezas quando terminasse sua jornada de trabalho.

É claro que se o tempo continuasse muito ruim o pai diria a Dogger para chamar o táxi de Clarence Mundy – mas, com os ventos cruzados de um inverno severo, seria sempre arriscado para Clarence atravessar os montes profundos de neve que invariavelmente se acumulavam entre as valas das sebes. Todos sabíamos que Buckshaw ficava inacessível, a não ser a pé.

Quando Harriet estava viva, havia um trenó, com sinetas e cobertores – de fato, o trenó ainda estava lá, em um canto escuro da cocheira, atrás do Rolls-Royce Phantom II de Harriet. Cada qual um monumento à sua proprietária falecida. Os cavalos, infelizmente, se foram havia muito tempo, vendidos em leilão logo depois da morte de Harriet.

Alguma coisa ressoou a distância.

— Escutem! — pedi. — O que foi aquilo?

— O vento — respondeu Dafi. — Você quer aquela última torrada ou posso ficar com ela?

Agarrei a torrada e devorei-a, seca mesmo, enquanto disparava para o foyer.


2

UMA LUFADA DE AR FRIO soprou um turbilhão de flocos congelantes no meu rosto quando abri a pesada porta da frente com um puxão. Me envolvi com meus braços, tremendo, e voltei os olhos apertados para o mundo do inverno lá fora.

À primeira luz gélida do dia, a paisagem era uma fotografia em preto e branco, as vastas extensões de gramado coberto de neve quebradas apenas pela silhueta negra como carvão das rígidas castanheiras desfolhadas que ladeavam a avenida. Aqui e ali nos gramados, arbustos cobertos de branco curvavam-se para a terra, cedendo sob a pesada carga.

Por causa da neve turbilhonante, era impossível enxergar sequer até os Portões Mulford, mas alguma coisa lá fora se mexia.

Enxuguei a condensação dos olhos e olhei de novo.

Sim! Um pontinho de cor pálida, seguido de outro, apareceu na paisagem! Na frente vinha um imenso caminhão de mudanças, sua cor escarlate ficando cada vez mais vívida à medida que ribombava na minha direção através da neve que desabava. Movendo-se pesadamente atrás dele como que em uma procissão vinha uma série de furgões menores... dois... três... quatro... cinco... não, seis deles!

Quando o caminhão fez sua lenta curva final para dentro do pátio de acesso, pude distinguir claramente o nome na lateral: ILIUM FILMES, escrito em caracteres fortes amarelo e creme, pintados como em três dimensões. Os veículos menores estavam marcados do mesmo modo, mas ainda assim eram impressionantes quando estacionaram como um rebanho em volta de seu líder.

A porta do caminhão de mudanças se abriu, e um homem musculoso de cabelos cor de areia desceu. Ele usava macacão de operário, um boné e lenço vermelho em volta do pescoço.

Enquanto vinha esmagando a neve na minha direção, de repente tomei consciência de Dogger ao meu lado.

— É, faz frio — disse o homem, fazendo uma careta para o vento.

Com uma sacudida incrédula de cabeça, ele se aproximou de Dogger, estendendo uma grande mão carnuda e rude.

— McNulty — disse ele. — Ilium Filmes. Departamento de Transportes. Pau para toda obra e mestre de todas elas.

Dogger sacudiu aquela mão enorme, mas não disse nada.

— Preciso levar todo este circo para os fundos da casa e escapar do vento norte. O gerador de Fred apronta traquinagens quando fica frio demais. Precisa ser mimado, esse gerador do Fred.

Depois de um breve silêncio, McNulty perguntou de repente, virando-se para mim e agachando-se:

— Qual é o seu nome, menininha? Margaret Rose, eu aposto. Sim, é isso... Margaret Rose. Você é uma Margaret Rose, se é que eu já vi uma.

Eu já estava meio decidida a marchar escada acima para o meu laboratório, pegar um pote de cianeto, agarrar o nariz daquele idiota, inclinar a cabeça dele para trás, despejar-lhe a substância goela abaixo e aguardar as consequências.

No entanto, a boa educação me impediu de fazer isso.

“Margaret Rose, faça-me um favor!”

— Sim, é verdade, senhor McNulty — eu disse, forçando um sorriso de admiração. — Meu nome é Margaret Rose. Como você adivinhou?

— É o sexto sentido com que fui agraciado — disse ele, com o que me pareceu um encolher de ombros ensaiado. — É o meu sangue irlandês — acrescentou, assumindo de repente um pouco do velho sotaque irlandês e tocando insolentemente seu boné de lã ao se levantar. — Bem, então — disse ele dirigindo-se a Dogger —, os nobres senhores e senhoras chegarão ao meio-dia em seus automóveis. Estarão famintos como cães de caça depois da viagem de Londres. Portanto fiquem atentos e tratem de ter baldes de caviar preparados.

A cara de Dogger era um vazio total.

— Ora, estou só brincando, companheiro! — disse McNulty.

Por um horrível momento, pensei que ele ia dar uma cutucada nas costelas de Dogger.

— Estou brincando, entende? Nós viajamos com a nossa própria taverna.

Ele deu uma sacudida no dedão para mostrar um dos furgões aguardando pacientemente no pátio.

— Só brincando — disse Dogger. — Eu entendo. Se você fizer a gentileza de tirar as suas botas e me seguir...

Quando Dogger fechou a porta atrás dele, McNulty parou e olhou em volta, boquiaberto. Ele parecia especialmente maravilhado com as duas grandes escadarias que levavam ao primeiro andar.

— É verdade! — disse. — As pessoas vivem assim mesmo?

— É o que me é dado acreditar — disse Dogger. — Por aqui, por favor.

Segui atrás enquanto Dogger oferecia a McNulty uma excursão rápida pela sala de jantar, pelo museu de armas de fogo, pela Sala Rosada, pela Sala Azul, pela sala matinal...

— A sala de estar e o estúdio do coronel estão fora dos limites permitidos — disse Dogger —, como foi previamente acordado. Afixei pequenos círculos brancos em cada uma dessas portas como um aviso, para que não haja uma invasão da... privacidade deles.

Ele quase disse “da nossa privacidade”. Tive certeza disso.

— Vou informar a todos — disse McNulty. — Não haverá problemas. A nossa turma também é muito exclusivista.

Seguimos através da ala leste e para dentro da galeria de retratos. Eu meio que esperava encontrá-la como no meu sonho: um lugar desolado, gélido e inundado. Mas a sala permanecia como sempre fora desde tempos imemoriais: uma longa sucessão sombria de antepassados carrancudos que, com apenas umas exceções (a Condessa Daisy, por exemplo, que ao que dizem recebia os visitantes em Buckshaw dando saltos mortais no telhado vestindo uma bata chinesa de seda), pareciam ter decaído para um estado de perpétuo mau humor coletivo que não alegrava o coração de ninguém.

— O uso da galeria de retratos foi negociado... — dizia Dogger.

— Mas sem as suas botas de combate com tachas na sola sobre o assoalho, faz favor! — interrompeu uma voz. Era a sra. Mullet.

Com as mãos no quadril, ela fulminou McNulty com seu olhar de proprietária e depois, em uma voz mais suave, falou:

— Com a sua licença, Dogger, o coronel está partindo agora para Londres, para a sua reunião sobre selos. Ele quer falar com você sobre a carne enlatada, antes de sair.

“Carne enlatada” era um código significando que o pai precisava de dinheiro emprestado para o trem e o táxi. Eu descobrira isso ouvindo junto à porta do estúdio do pai. Era um fato que eu teria preferido não saber.

— É claro — disse Dogger. — Me deem licença um momento.

E desapareceu do jeito que sabe fazer.

— Vocês vão precisar estender alguns oleados naquele assoalho — disse a sra. Mullet para McNulty. — Eles chamam de “parqueite”: é feito com madeira de cerejeira, mogno, nogueira, bétula e seis tipos diferentes de carvalho. Não posso permitir que trabalhadores fiquem pisoteando uma coisa dessas, posso?

— Acredite-me, senhora...

— Mullet — completou ela. — Com “M”.

— Senhora Mullet. Meu nome é McNulty, também com “M”, aliás. Patrick McNulty. Posso assegurar que nossa equipe da Ilium Filmes é contratada por sua natureza exigente e detalhista. De fato, posso lhe contar um segredo, sabendo que não será passado adiante: nós acabamos de voltar da filmagem de uma cena no interior de uma certa residência real sem nem uma palavra de reclamação de Você-Sabe-Quem.

Os olhos da sra. M se arregalaram.

— Você quer dizer...

— Exatamente — disse McNulty, encostando um dedo indicador nos lábios. — Você é uma mulher muito sagaz, senhora Mullet. Posso ver isso.

Ela lhe deu um sorriso débil, como o da Mona Lisa, e eu soube que sua lealdade tinha sido comprada. Não importava o que mais ele fosse, Patrick McNulty era escorregadio como sebo nasal.

Agora Dogger estava de volta, a expressão imperturbável e competente, sem entregar coisa nenhuma. Fui seguindo-os enquanto ele mostrava o caminho para o andar de cima e para dentro da ala leste.

— O quarto no extremo sul do corredor é o boudoir da senhorita Harriet. É estritamente privativo, e a entrada não é permitida sob nenhum pretexto.

Ele falou isso como se Harriet tivesse acabado de sair por algumas horas, para fazer uma visita social no condado ou para cavalgar acompanhada dos cães de caça. Ele não contou a McNulty que minha mãe estava morta havia dez anos e que seus quartos tinham sido preservados pelo pai como um santuário onde ninguém, ou assim pensava ele, podia ouvi-lo chorando.

— Entendido — disse McNulty. — Câmbio e desligando. Vou passar adiante.

— Os dois dormitórios à esquerda pertencem à senhorita Ophelia e à senhorita Daphne, que vão dividir um só quarto enquanto for necessário. Escolha o que desejam usar como cenário, e elas ficarão no outro.

— Muito generoso da parte delas — disse McNulty. — Val Lampman vai decidir isso. É o nosso diretor.

— Todos os outros dormitórios, salas de estar e toucadores, incluindo os da fachada norte, poderão ser atribuídos como os senhores acharem adequado — prosseguiu Dogger, sem piscar um olho à menção do diretor de cinema mais celebrado da Inglaterra.

Até eu sabia quem era Val Lampman.

— É melhor eu voltar para a minha equipe — disse McNulty, dando uma olhada para o relógio de pulso. — Vamos organizar os caminhões e então tratar de descarregá-los.

— Como queira — disse-lhe Dogger, e me pareceu que havia um quê de tristeza na voz dele.

Descemos a escada, McNulty correndo ostensivamente os dedos pelas extremidades dos balaústres cinzelados, esticando o pescoço para olhar como um idiota para os painéis entalhados.

— É verdade — resmungou ele a meia-voz.

— Você nunca vai adivinhar quem está dirigindo esse filme! — eu disse, irrompendo na sala de estar.

— Val Lampman — disse Dafi em uma voz entediada, sem erguer os olhos de seu livro. — Phyllis Wyvern não trabalha com nenhum outro hoje em dia. Não desde que...

— Desde que o quê?

— Você é jovem demais para entender.

— Não, eu não sou. O que me diz de Boccaccio?

Dafi estivera recentemente lendo em voz alta para nós algumas histórias selecionadas do Decameron de Boccaccio na hora do chá.

— Aquilo é ficção — disse ela. — Val Lampman é vida real.

— Quem disse? — eu reagi.

— Quem disse foi a Cinema World. Estava na primeira página inteira.

— O que estava?

— Ah, pelo amor de Deus, Flavia! — disse Dafi, jogando o livro de lado. — Cada dia que passa você fica mais parecida com um papagaio: Desde que o quê? Quem disse? O que estava?

Ela imitou cruelmente a minha voz.

— Devíamos ensinar você a dizer “Quem é o louro bonitinho?” ou “Polly quer biscoito”. Já mandamos fazer uma gaiola para você: lindas grades douradas, um poleiro e uma tigela de água para você tomar banho; não que você jamais chegue a usá-la.

— Vá para o diabo!

— Rebato o diabo para você — disse Dafi, erguendo um escudo invisível.

— E eu rebato de volta para você — disse eu, repetindo o gesto.

— A-há! O seu escudo é de lata. Lata não rebate o diabo. Você sabe disso tão bem como eu.

— Rebate!

— Não rebate!

Foi nesse momento que Felinha interferiu no que tinha sido, até então, uma discussão perfeitamente civilizada.

— Falando de papagaios — disse ela —, Harriet tinha um papagaio adorável antes de você nascer; uma ave linda, um papagaio africano cinzento chamado Simbad. Eu me lembro dele muito bem. Sabia conjugar o verbo amare em latim e cantar trechos de “Lorelei”.

— Você está inventando isso — contestei.

— Você se lembra de Simbad, Dafi? — disse Felinha, rindo.

— “O menino resistia no convés em chamas” — disse Dafi. — O pobre Simbad costumava se agitar no poleiro enquanto grasnava essas palavras. Hilariante.

— Então, onde está ele agora? — demandei. — Ele ainda devia estar vivo. Papagaios podem viver mais de cem anos.

— Ele saiu voando — disse Dafi com um ligeiro frêmito na voz. — Harriet tinha estendido um cobertor no terraço e levado você para fora, para tomar um pouco de ar fresco. De algum modo, você conseguiu soltar a trava da porta da gaiola, e Simbad saiu voando. Você não se lembra?

— Eu não fiz isso!

Felinha me encarava com olhos que não eram mais o de uma irmã.

— Ah, mas você fez. Ela depois disse, muitas vezes, que desejava que tivesse sido você a sair voando e Simbad tivesse ficado.

Pude sentir a pressão subindo no meu peito, como se eu fosse uma caldeira a vapor.

Eu disse uma palavra proibida e saí da sala andando rigidamente e jurando vingança.

Havia momentos em que um toque da velha estricnina seria de fato a coisa certa.

Eu iria diretamente escada acima para minha cozinha química, a fim de preparar uma iguaria que obrigaria minhas odiosas irmãs a implorar por mercê. Sim, era isso! Eu iria temperar seus sanduíches de salada de ovo com um par de grãos de nux vomica. Isso as manteria longe de pessoas decentes durante uma semana.

Eu estava no meio da escadaria quando soou a campainha da porta.

— Droga! — falei. Não havia nada que eu odiasse mais do que ser interrompida quando estava prestes a fazer alguma coisa gratificante com produtos químicos.

Desci do patamar batendo os pés e abri a porta furiosamente.

Olhando para mim de cima de seu nariz, estava um chofer de libré: casaco cor de chocolate claro, calça de boca larga enfiada em botas altas de couro, chapéu de abas e um par de luvas flácidas de couro marrom seguradas com certa displicência em suas mãos perfeitamente manicuradas.

Não gostei do jeito dele, e, pensando melhor, é provável que ele não tenha gostado do meu.

— De Luce? — perguntou ele.

Fiquei imóvel, aguardando algum sinal de decência.

— Senhorita De Luce?

— Sim — eu disse de má vontade, espiando atrás do corpo dele como se pudesse haver outros como ele se escondendo entre os arbustos.

O caminhão de mudança e as vans tinham desaparecido do pátio de acesso. Um labirinto de marcas de pneus cobertas de neve me contou que eles tinham sido levados para os fundos da casa. Em seu lugar, funcionando silenciosamente em marcha lenta entre pequenos sopros de neve, estava uma limusine Daimler preta, polida como um carro funerário até chegar a um lustro espectral.

— Entre e feche a porta — eu disse. — O pai não é um tremendo entusiasta de neve acumulada no foyer.

— A senhorita Wyvern chegou — anunciou ele, pondo-se em posição de atenção.

— Mas... — consegui dizer — ...eles não deveriam estar aqui antes do meio-dia...

Phyllis Wyvern! Minha cabeça rodava. Com o pai longe de casa, certamente não se poderia esperar que eu...

Eu a tinha visto na tela de cinema, é claro, não só no Gaumont, mas também na pequena sala de projeção de Hinley. E, também, quando o vigário contratou o sr. Mitchell, que dirigia o estúdio fotográfico de Bishop’s Lacey, para exibir A esposa do reitor no salão paroquial na esperança, suponho, de que a história despertasse um sentimento de simpatia nos correligionários da nossa paróquia pela sua mulher cara de rato e coração de rato, Cynthia.

É claro que o filme não causou nenhum efeito semelhante. A despeito do fato de que era tão velho e cheio de riscos e emendas que às vezes fazia a imagem pular na tela como uma marionete, Phyllis Wyvern estava magnífica no papel da corajosa e nobre sra. Willington. No fim, quando as luzes se acenderam, até o projecionista estava em lágrimas, muito embora já tivesse visto o filme centenas de vezes.

Ninguém reparou em Cynthia Robertson, embora eu a tenha visto depois, no escuro, andando sozinha furtivamente pelo cemitério em direção a casa.

Mas como uma pessoa pode falar, cara a cara, com uma deusa? O que dizer?

— Vou chamar Dogger — eu disse.

— Vou cuidar disso, senhorita Flavia — disse Dogger, já ao meu lado.

Eu não sei como ele faz isso, mas Dogger sempre aparece no momento exato, como uma daquelas figuras que surgem da portinhola de um relógio suíço.

E de repente ele já estava caminhando na direção do Daimler, o motorista escorregando e deslizando na frente dele, tentando ser o primeiro a segurar a maçaneta da porta do carro.

Dogger venceu.

— Senhorita Wyvern — disse ele, sua voz chegando nítida aos meus ouvidos no ar gelado. — Em nome do coronel De Luce, posso lhe dar as boas-vindas a Buckshaw? É um prazer têla conosco. O coronel me pediu para dizer que lamenta muito o fato de não estar aqui para recebê-la pessoalmente.

Phyllis Wyvern segurou a mão estendida de Dogger e desceu do carro.

— Cuidado onde pisa, senhorita. O piso está perigoso esta manhã.

Pude enxergar cada respiração dela distintamente no ar frio quando ela segurou o braço de Dogger e flutuou para a porta da frente. Flutuou! Não existe outra palavra para isso. A despeito da passagem escorregadia, Phyllis Wyvern flutuou em minha direção como se fosse um fantasma.

— Não a esperávamos antes do meio-dia — disse Dogger. — Lamento que a neve das passagens ainda não tenha sido removida de todo, e por isso não foram cobertas de cinzas.

— Nem pense nisso, senhor...

— Dogger — respondeu ele.

— Senhor Dogger, eu sou apenas uma menina de Golders Green. Já me arranjei com a neve antes e, espero, posso me arranjar agora. Opa! — disse ela com uma risadinha, fingindo escorregar e sorrindo para ele enquanto se agarrava a seu braço.

Não pude acreditar em como ela era pequenina, a cabeça mal chegando ao nível do peito dele.

Ela usava um vestido preto justo e uma blusa branca com um lenço de pescoço, e, apesar do dia cinzento, sua pele era como um creme.

— Olá! — disse ela, parando na minha frente. — Já vi seu rosto antes. Você é Flavia de Luce, se não estou enganada. Esperava que você estivesse aqui.

Parei de respirar e não me importei.

— Sua foto saiu no Daily Mirror, você sabe. Aquela história horrível sobre Stonepenny, ou Bonepenny, ou seja qual for o nome.

— Bonepenny — disse eu. — Horace Bonepenny.

Eu prestara ajuda à polícia naquele caso quando eles estavam completamente perdidos.

— É isso — disse ela, estendendo a mão e segurando a minha como se fôssemos irmãs. — Bonepenny. Eu tenho assinaturas pagas do Police Gazette e do True Crime e jamais perdi uma edição do News of the World. Simplesmente adoro ler tudo sobre os grandes assassinos: as Noivas no Banho... o Murmurador de Islington... o Major Armstrong... o Dr. Crippen... A essência dos grandes dramas. Faz você pensar, não é? O que, afinal, seria a vida sem uma morte intrigante?

Exatamente!, pensei.

— E, agora, acho que devemos entrar e não manter o pobre senhor Dogger em pé no frio.

Dei uma olhada rápida para Dogger, mas o rosto dele refletia tanta emoção quanto uma poça d’água.

Quando ela esbarrou em mim ao passar, não pude deixar de pensar: “estou respirando o mesmo ar que Phyllis Wyvern!”

Minhas narinas de repente foram preenchidas com o perfume dela: jasmim.

O perfume provavelmente tinha sido preparado em alguma perfumaria, pensei, com fenol e ácido asséptico. O fenol, ou “benzenol”, lembrei-me, foi descoberto no meio do século XVII por um químico alemão chamado Johann Rudolf Glauber, embora não tenha sido isolado de fato até cerca de duzentos anos depois por um de seus conterrâneos, Friedlieb Ferdinand Runge, que o extraiu do alcatrão de hulha e o chamou de “ácido carbólico”. Como eu mesma já havia sintetizado aquele material extremamente venenoso por um processo que envolvia a oxidação incompleta do benzeno, lembrava com prazer que era o agente embalsamador mais poderoso conhecido pela humanidade: o material que é usado sempre que um corpo precisa durar, e durar, e durar.

Também podia ser encontrado em certos uísques escoceses.

Phyllis Wyvern passara por mim no foyer e agora girava em círculos, deleitada.

— Que lugar velho e sombrio! — disse ela, batendo palmas. — É perfeito! Absolutamente perfeito!

A essa altura, o motorista já havia trazido a bagagem e a estava empilhando do lado de dentro da porta.

— Deixe tudo aí, Anthony — disse ela, fazendo muita questão de chamar atenção. Ele quase bateu os calcanhares.

Havia algo de familiar nele, mas eu não conseguia, de jeito nenhum, pensar o que era.

Ele ficou lá parado por um longo momento, completamente imóvel, como se estivesse esperando uma gorjeta – ou será que esperava ser convidado para entrar, para uma bebida e um charuto?

— Você pode ir — anunciou ela de súbito, e o encanto foi quebrado. Num instante ele não era mais que um membro do coro em O soldado de chocolate.

— Sim, senhorita Wyvern — disse ele, voltando-se para a porta, quando vi em seu rosto uma expressão de... O que seria? Desdém?


3

— ESTE É MAIS ENSOLARADO, senhorita — dizia Dogger. — Se não se importa, a acomodaremos aqui até que o quarto que lhe foi designado esteja pronto.

Estávamos olhando dormitórios e, enfim, tínhamos chegado ao de Felinha.

Como não tínhamos muito sol nesta época do ano, imaginei que Dogger estivesse apenas pensando em dias passados.

— Está perfeito — disse Phyllis Wyvern, aproximando-se da janela. — Vista para um pequeno lago... confere. Uma ruína romântica... confere. Vislumbres da van do guarda-roupa. O que mais poderia desejar uma estrela?

— Posso desfazer as malas? — perguntou Dogger.

— Não, obrigada. Bun cuidará disso. Ela estará aqui sem demora.

— Não será incômodo nenhum, posso lhe assegurar — disse Dogger.

— Muito gentil de sua parte, Dogger, mas não; devo insistir. Bun é muito possessiva. Ela vai praguejar cobras e lagartos se achar que outra pessoa pôs as mãos em meus pertences.

— Eu entendo — disse Dogger. — Posso ser útil em mais alguma coisa? Devo pedir à senhora Mullet que lhe traga um bule de chá?

— Dogger, você é um tesouro mais valioso que rubis. Eu não desejaria nada melhor. Vou vestir alguma coisa mais confortável e mergulhar no abominável roteiro de Val. Tenho de estar perfeita em cada palavra no momento em que as luzes estiverem instaladas.

— Obrigado, senhorita — disse Dogger, e se foi.

— Um sujeito incomum e engraçado — disse ela. — Está com vocês desde sempre, é claro?

— O pai e Dogger estiveram juntos no exército — eu disse, um tanto eriçada.

— Ah, sim, irmãos de armas. Muito comum hoje em dia, eu entendo. Olho por olho. Você salva a minha vida, e depois eu salvo a sua. Talvez você tenha me visto em A trincheira na sala de estar. Uma trama muito parecida.

Eu sacudi a cabeça.

Naquele instante a porta se abriu violentamente, e Felinha irrompeu para dentro.

— Que diabos você pensa que está fazendo? — berrou ela. — Eu já disse o que aconteceria se eu a pegasse de novo no meu quarto.

Felinha não tinha reparado em Phyllis Wyvern em pé junto à janela.

Ela me agarrou.

— Não!

Felinha girou o corpo para ver quem dissera aquilo. Sua mão erguida caiu de lado, onde ficou pendurada flacidamente.

Por um momento as duas ficaram olhando uma para a outra, Felinha como se tivesse sido confrontada por algum espectro apavorante, Phyllis Wyvern como quando ela se agarrara desafiante à torre da catedral fustigada pela chuva nos momentos finais de O coração de vidro.

Então o lábio inferior de Felinha começou a tremer, os olhos marejando de repente.

Ela se virou e saiu correndo.

— Então — disse Phyllis Wyvern depois de um longo silêncio —, você também tem uma irmã mais velha.

— Aquela era Felinha — eu disse. — Ela...

— Não precisa explicar. As irmãs mais velhas são muito parecidas no mundo inteiro: meia taça de amor e meia taça de desdém.

Eu mesma não poderia ter colocado melhor!

— Minha irmã é a mesma coisa — disse ela. — Seis anos mais velha?

Assenti.

— A minha também. Vejo que temos muita coisa em comum além de um gosto por assassinatos hediondos, Flavia de Luce.

Phyllis atravessou o quarto e, pondo um dedo sob meu queixo, levantou-o para que meus olhos encontrassem os dela. E, então, me abraçou.

Ela me abraçou de verdade, e eu inspirei seu jasmim, sintético ou não.

— Vamos descer até a cozinha para o chá. Vai poupar uma viagem escada acima para a senhora Mullet.

Eu abri um sorriso radiante para ela. Quase segurei sua mão.

— Isso também — acrescentou ela — nos dará uma oportunidade de ouvir os últimos mexericos. As cozinhas são um viveiro para os escândalos, você sabe.

— Ooohhhhh! — disse a sra. Mullet, quando entramos na cozinha. Fora a reação inicial e o fato de ofegar um pouco, ela lidou muito bem com a situação.

— Decidimos descer para a Central de Comando — disse Phyllis Wyvern. — Algo que eu possa fazer para ajudar?

Pude ver que ela ganhara a sra. Mullet – simples assim.

— Não, não, não — disse a sra. Mullet, ofegante —, sente-se, senhorita. A água já está quase fervendo, e tenho um belo pão de passas de Corinto saindo do forno.

— Pão de passas de Corinto! — exclamou Phyllis Wyvern, pondo as mãos na frente dos olhos e espiando através dos dedos.

— Bom Deus! Não como um pão de passas de Corinto desde que usava trancinhas!

A sra. Mullet ficou radiante.

— Eu faço para o Natal, como fazia a minha mãe antes de mim, e a mãe dela antes dela. Os pães de passas de Corinto estão na família, por assim dizer.

E assim era, mas eu não ia deixar escapar o segredo.

— Aqui está — disse ela, puxando o pão para fora do forno com um par de pegadores de panela e colocando-o em cima de uma grelha de arame. — Olhe para isso. Quase bom para comer!

Era uma velha piada, e, embora eu a tivesse ouvido uma centena de vezes, ri obedientemente. Havia mais verdade naquilo do que Phyllis Wyvern sabia, mas eu não ia estragar sua guloseima. Quem sabe? Ela poderia até achar aquela coisa comível.

Se cozinhar fosse um jogo de dardos, a maior parte dos repastos da sra. Mullet dificilmente atingiria o alvo.

A sra. Mullet cortou o pão em doze pedaços.

— Dois para cada alma na casa — proclamou ela, com uma olhada para Dogger quando ele entrou na cozinha. — Foi isso que nos ensinaram na Lady Rex-Well: dois pedaços por alma nova, e você fica fora da cova. O que quer dizer do túmulo, é claro. A velha senhora falou que isso queria dizer todo mundo, desde ela mesma até o filho do jardineiro. Uma mulher bem desagradável, ela era, mas viveu até os noventa e nove e meio, portanto devia estar certa em alguma coisa.

— O que você acha, Dogger? — perguntou Phyllis Wyvern a Dogger, que tomava seu chá inconspicuamente, em pé num canto.

— A boa gordura traz a boa bile. A boa bile traz a boa digestão, que resulta em grande longevidade — disse Dogger, muito hesitante, olhando para dentro de sua xícara. — Pelo menos foi o que ouvi dizer.

— E tudo por causa da dupla porção de pão de passas de Corinto! — disse Phyllis Wyvern batendo palmas, deleitada. — Bem, vamos rumo aos cem anos.

Ela pegou seu garfo e levou um pedaço à boca, pausando no meio do caminho para dar à sra. Mullet um sorriso que teria custado mil guinéus a alguém.

Mastigou, pensativa.

— Ah, meu Deus! — disse ela, pousando o garfo sobre o prato. — Ah, meu Deus!

Mesmo seu magnificente talento para as artes dramáticas foi incapaz de suprimir o pequeno reflexo de náusea que vi em sua garganta.

— Eu sabia que você ia gostar — arrulhou a sra. Mullet.

— Mas eu preciso ser brutal e me conter — disse Phyllis Wyvern, empurrando seu prato rudemente para longe e pondo-se em pé. — Tenho uma tendência a me comportar como um suíno quando estou diante de um bolo, e, quando se trata de um pão de passas de Corinto, não se passa mais de um dia até que desça da boca para o quadril. Tenho certeza de que você entenderá.

A sra. Mullet removeu o prato e o colocou um tanto cuidadosamente atrás da pia.

Eu sabia sem sombra de dúvida que ela levaria o pedaço de bolo para casa, o embrulharia em papel de presente e o poria em sua cristaleira entre o saleiro e pimenteiro de cachorro de porcelana marcado como “Um presente de Blackpool” e o esguio pássaro de vidro que se inclinava para cima e para baixo enquanto bebia água de um tubo.

Quando sua amiga sra. Waller viesse visitá-la, a sra. Mullet desembrulharia reverentemente a relíquia mofada.

“Você nunca vai adivinhar quem comeu o pedacinho que está faltando aqui”, ela diria em voz abafada. “Phyllis Wyvern! Olhe: você ainda pode ver as marcas dos dentes dela. Mas só uma olhadela rápida, para que não fique rançoso.”

A campainha da porta tocou, e Dogger pôs de lado seu chá.

— Deve ser Bun — disse Phyllis Wyvern, com um sorriso irônico. — Vai dizer que perdeu a conexão de Paddington. Ela sempre diz.

— Vou preparar uma boa xícara de chá para ela — disse a sra. Mullet. — O trem sempre deixa o estômago todo embrulhado, pelo menos o meu. — E sussurrou ao meu ouvido: — Ele me dá diarreia.

Em um momento, Dogger estava de volta, seguido por uma mulherzinha rotunda com óculos de aro de ferro, o cabelo amarrado atrás em uma bola grande e apertada como a cauda do cavalo Ajax, que outrora pertencera a uma das minhas antepassadas, Florizel de Luce. Ambos, Florizel e Ajax, imortalizados em pinturas a óleo, estavam agora pendurados lado a lado na galeria de retratos.

— Desculpe ter me atrasado, senhorita Wyvern — disse a mulherzinha. — O táxi pegou o desvio errado e perdi minha conexão em Paddington.

Phyllis Wyvern olhou em volta triunfante para cada um de nós, mas não disse nada.

Eu me senti realmente compadecida da pequena criatura, que, agora que pensei melhor, parecia uma bala de canhão meio confusa.

— A propósito, eu sou Bun Keats — disse a mulher, dando uma sacudida de cabeça para cada um de nós no recinto. — Assistente pessoal da senhorita Wyvern.

— Bun é a minha camareira, mas ela tem aspirações maiores — disse Phyllis Wyvern em uma voz altiva e teatral, e eu não consegui perceber se ela estava caçoando. — Depressa agora, Bun — acrescentou ela. — Vapt-vupt! O meu guarda-roupa quer ser tirado da mala. E, se o meu vestido cor-de-rosa estiver amarrotado de novo, vou ficar feliz em estrangulá-la.

Ela disse isso muito afavelmente, mas Bun Keats não sorriu.

— Você é aparentada com o poeta, senhorita Keats? — despejei, ansiosa por deixar o momento mais leve.

Dafi certa vez lera para mim a “Ode a um rouxinol”, e nunca esqueci a parte sobre beber cicuta.

— De longe — disse ela, e se foi.

— Pobre Bun — disse Phyllis Wyvern. — Quanto mais se esforça... mais ela se esforça.

— Vou dar-lhe uma mão — disse Dogger, saindo em direção à porta.

— Não!

Por um instante – mas só por um instante –, o rosto de Phyllis Wyvern ficou parecido com uma máscara grega: os olhos arregalados, a boca retorcida. E então, quase de imediato, suas feições fundiram-se em um sorriso despreocupado, como se aquele momento não tivesse acontecido.

— Não — repetiu ela mansamente. — Não faça isso. Bun precisa aprender a sua pequena lição.

Tentei capturar o olhar de Dogger, mas ele tinha se afastado e começado a arrumar latas na despensa.

A sra. Mullet começou a polir laboriosamente as tampas do fogão Aga.

Quando me arrastei para cima, a casa parecia algo mais fria do que antes. Das janelas altas sem cortinas do meu laboratório, olhei para os veículos da Ilium Filmes lá embaixo, amontoados como elefantes em volta de uma poça d’água rodeando os muros de tijolos vermelhos da horta da cozinha.

Os membros da equipe estavam atarefados em seu trabalho, num balé bem ensaiado, erguendo, transportando e descarregando caixotes: sempre um par de mãos no lugar certo e no momento certo. Era fácil ver que eles já tinham feito aquilo muitas vezes antes.

Aqueci as mãos acima da chama bem-vinda de um bico de Bunsen, depois levei um béquer de leite a uma fervura borbulhante e misturei uma boa quantidade de Ovomaltine. Nessa época do ano, nenhum refrigerador era necessário para manter o leite gelado: eu simplesmente mantinha a garrafa em uma prateleira, entre o manganês e a morfina, esta última etiquetada com capricho na caligrafia aracnoide do tio Tarquin.

Tio Tar tinha sido afastado de Oxford sob circunstâncias misteriosas logo antes de obter um título duplo em estudos clássicos e matemáticos. O pai dele, para compensá-lo, construiu o notável laboratório químico em Buckshaw onde tio Tar, por escolha, passou o resto de seus dias, conduzindo o que diziam ser uma pesquisa altamente secreta. Entre seus papéis, descobri diversas cartas que sugeriam que ele tinha sido um amigo leal e conselheiro do jovem Winston Churchill.

Enquanto tomava um gole de Ovomaltine, mudei o foco dos meus olhos para a pintura pendurada acima da lareira: uma bonita jovem com duas meninas e um bebê. As meninas eram minhas irmãs, Ophelia e Daphne. Eu era o bebê. A mulher, é claro, era minha mãe, Harriet.

Harriet encomendara secretamente o trabalho como um presente para o pai logo antes de partir para aquela que viria a ser sua jornada final. A pintura permanecera quase esquecida por dez anos no ateliê de uma artista em Malden Fenwick, até eu descobri-la ali e trazê-la para casa.

Eu havia planejado pendurar o retrato na sala de estar: encenar uma surpresa, descerrando-o para o pai e minhas irmãs. Mas meu esquema foi frustrado. O pai me pegou contrabandeando a pesada pintura para dentro da casa, tomou-a de mim e a removeu para seu estúdio.

Na manhã seguinte, encontrei-a pendurada em meu laboratório.

“Por quê?”, me perguntei. Teria o pai achado doloroso demais olhar para sua família destruída?

Não havia dúvida de que ele tinha amado – e ainda amava – Harriet, mas às vezes parecia que minhas irmãs e eu nada mais éramos para ele do que lembretes sempre presentes do que havia perdido. Para o pai nós éramos, Dafi dissera certa vez, uma Hidra de três cabeças, cada uma das nossas faces um espelho nevoento de seu passado.

Dafi é uma romântica, mas eu sabia o que ela queria dizer: éramos imagens fugazes de Harriet.

Talvez fosse essa a razão por que o pai passava seus dias e noites entre seus selos de correio: cercado por milhares de semblantes amigáveis, reconfortantes e que não fazem perguntas, e nenhum deles, como os de suas filhas, zombava dele, da manhã até a noite.

Eu pensava nessas coisas até meus miolos ficarem azuis, mas ainda não sabia por que minhas irmãs me odiavam tanto.

Seria Buckshaw alguma sinistra academia de treinamento na qual eu fora jogada pelo destino para aprender as leis da sobrevivência? Ou seria a minha vida um jogo cujas regras eu supostamente deveria adivinhar?

Seria exigido de mim deduzir os caminhos secretos pelos quais elas me amavam?

Eu não conseguia pensar em nenhuma outra razão para a crueldade das minhas irmãs.

O que eu tinha feito a elas?

Bem, eu as envenenara, é claro, mas somente de modos menores – e somente em retaliação. Eu nunca, ou pelo menos quase nunca, começara uma briga. Eu sempre fora a inocente...

— Não! Cuidado! Cuidado!

Um grito subiu de fora da janela – primeiro áspero e agonizante, depois rapidamente cortado. Corri para a janela e olhei para fora, para ver o que estava acontecendo.

Trabalhadores afluíam em volta de uma figura prensada contra a lateral de um caminhão por um caixote derrubado.

Eu soube pelo lenço vermelho no pescoço que era Patrick McNulty.

Desci correndo a escadaria, atravessei a cozinha vazia e saí para o terraço, nem me lembrando de jogar um casaco nas costas.

Socorro era necessário. Ninguém da equipe de filmagem saberia para quem pedir ajuda.

— Afaste-se! — disse um dos motoristas, agarrando-me pelos ombros. — Houve um acidente.

Me desvencilhei dele e forcei passagem para ver mais de perto.

McNulty estava mal. Seu rosto tinha uma cor de massa de pão molhada. Seus olhos, marejando de lágrimas, encontraram os meus, e seus lábios se moveram.

— Ajude-me — acho que ele sussurrou.

Pus o meu primeiro e quarto dedos nos cantos da boca e soltei um assobio penetrante: um truque que tinha aprendido observando Felinha.

— Dogger! — soltei um grito, seguido por mais um assobio. Pus meu coração e minha alma naquilo, rezando para que Dogger estivesse ao alcance da voz.

Sem tirar os olhos dos meus, McNulty deixou escapar um arquejo de virar o estômago.

Dois dos homens estavam tentando com grande esforço mover o caixote.

— Não! — eu disse, mais alto do que tencionava. — Deixem no lugar.

Eu tinha ouvido no rádio – ou teria lido em algum lugar? – sobre uma vítima de acidente que havia sangrado até a morte quando um guindaste de estrada de ferro fora removido cedo demais de cima de suas pernas.

Para minha surpresa, o maior dos homens concordou com a cabeça.

— Parem, vocês — disse ele. — Ela está certa.

E então Dogger estava lá, forçando passagem entre a multidão acumulada.

Os homens se afastaram instintivamente.

Havia uma aura em volta de Dogger que não tolerava contrassensos. Ela não estava sempre em evidência – de fato, na maior parte do tempo, não estava.

Mas não creio que jamais tenha sentido esse seu poder – fosse lá o que fosse – com tanta força como naquele momento

— Segure a minha mão — disse Dogger a McNulty, estendendo a mão entre o caminhão e o caixote, que agora oscilava precariamente.

Me pareceu uma coisa estranha – quase bíblica – para se fazer. Talvez fosse a calma na voz dele.

Os dedos ensanguentados de McNulty se moveram e, então, se entrelaçaram com os de Dogger.

— Não tão forte — disse Dogger. — Você vai esmagar a minha mão.

Um sorriso doentio, tolo, se espalhou pela face de McNulty.

Dogger soltou a parte de cima da pesada jaqueta de McNulty, depois foi lentamente insinuando a mão para dentro da manga. Seu braço comprido deslizou ao lado do braço de McNulty, apalpando seu caminho, centímetro a centímetro, pelo espaço entre o caixote virado e o caminhão.

— Você me disse que era mestre de muitos ofícios, senhor McNulty — disse Dogger. — Quais em particular?

Parecia uma pergunta muito estranha a fazer, mas os olhos de McNulty mudaram dos meus para os de Dogger.

— Carpintaria — disse ele através de dentes cerrados. Era fácil ver que o homem estava sofrendo dores horríveis. — Eletricidade... hidráulica... desenho industrial...

O suor frio manou em glóbulos na sua testa.

— Sim? — perguntou Dogger, seu braço trabalhando diligen temente entre o caixote pesado e o caminhão. — Mais algum?

— Um pouco de ferramentaria — prosseguiu McNulty, e então acrescentou, quase pedindo desculpas: — Eu tenho um torno mecânico em casa...

— É mesmo? — perguntou Dogger, parecendo surpreso.

— ... para construir modelos de máquinas a vapor.

— Ah! — disse Dogger. — Motores a vapor. Para estradas de ferro, agricultura ou estacionários?

— Estacionários — disse McNulty através dos dentes cerrados. — Eu os equipo com... pequenos apitos de latão... e reguladores.

Dogger removeu o lenço do pescoço de McNulty, torcendo-o rápida e fortemente acima da parte superior do braço aprisionado.

— Agora! — disse ele vivamente, e uma centena de mãos dispostas, ao que me pareceu, de súbito agarravam o caixote.

— Devagar agora! Devagar! Sem pressa! — os homens diziam um para o outro; não porque fossem necessárias palavras, mas como se elas fossem parte de um ritual de mover um objeto pesado.

E então, muito subitamente, eles ergueram e removeram o caixote como se fosse um bloco de construção de brinquedo.

— Maca! — bradou Dogger, e uma maca foi trazida de imediato.

“Eles devem trazer essas coisas com eles aonde quer que vão”, pensei.

— Levem-no para a cozinha — pediu Dogger, e, em menos tempo do que eu preciso para contar, McNulty, enrolado em um cobertor pesado, já se erguia do chão da cozinha sobre o cotovelo bom e bebia da xícara da chá quente que estava na mão da sra. Mullet.

— Tudo certo — disse ele, dando-me uma piscadela.

— E agora, senhorita Flavia — disse Dogger —, se não se importa, precisamos dar um telefonema ao doutor Darby...

— Hummm... — disse o dr. Darby, procurando com dois dedos uma bala de hortelã no saquinho de papel que sempre trazia consigo no bolso do colete. — Vamos levá-lo para o hospital, onde poderei dar uma olhada decente em você. Raios X e tudo o mais. Vou levá-lo eu mesmo, já que estou indo naquela direção.

McNulty agora se erguia dolorosamente de uma cadeira à mesa da cozinha, o braço e a mão em uma tipoia, cheio de ataduras dos ombros até os tornozelos.

— Eu consigo — resmungou ele quando muitas mãos se estenderam para ajudá-lo.

— Passe o braço em volta do meu ombro — disse o dr. Darby. — Essa boa gente aqui vai entender que não há nada de grave.

Amontoados em um canto da cozinha, os homens do estúdio de filmagem deram boas risadas com isso, como se o médico tivesse feito uma piada impagável.

Fiquei olhando enquanto McNulty e o dr. Darby avançavam cautelosamente até o foyer.

— E agora estamos encrencados — resmungou um dos homens depois que eles se foram. — Como vamos nos arranjar sem Pat?

— Será Latshaw então, não é? — disse outro.

— Imagino que sim.

— Então, que Deus nos ajude — disse o primeiro, e ele ousou cuspir no chão da cozinha.

Até aquele momento, eu não tinha notado como estava com frio. Dei uma tremida tardia, que não escapou aos olhos da sra. Mullet, e ela veio apressada da copa.

— Você vai para cima, querida, e vai tomar um banho quente. O coronel vai ficar bem aborrecido se chegar em casa e descobrir que você esteve do lado de fora vagabundeando na neve quase nua, por assim dizer. Ele vai querer a minha cabeça e a de Dogger em cima de uma bandeja. Agora vá!


4

LÁ EMBAIXO NA ESCADA, fui tomada por uma súbita, porém brilhante, ideia.

Mesmo no verão, tomar um banho na ala leste era como uma grande campanha militar. Dogger teria de carregar baldes de água, fosse da cozinha ou da ala oeste, para encher a banheira de assento em meu quarto, a qual depois teria de ser removida e a água despejada em um WC na ala oeste ou em uma das pias do meu laboratório. De um jeito ou de outro, a coisa toda era um transtorno.

Além disso, jamais gostei muito da ideia de água suja do banho ser trazida para o meu sanctum sanctorum. Meio que parecia uma blasfêmia.

A solução era bastante simples: eu tomaria banho no boudoir de Harriet.

Por que não tinha pensado nisso antes?

A suíte de Harriet tinha uma antiga banheira slipper vitoriana, coberta por um alto e diáfano dossel branco. Como uma vetusta locomotiva, a coisa era equipada com uma variedade de interessantes torneiras, botões e válvulas com os quais era possível ajustar a velocidade e a temperatura da água.

Aquilo tornaria o banho quase divertido.

Sorri por antecipação enquanto seguia pelo corredor, feliz com o pensamento de que meu corpo gelado logo estaria imerso até as orelhas em espuma quente.

Parei e ouvi junto à porta – só para me certificar.

Alguém lá dentro estava cantando!

“Oh, quem me dera asas de pomba eu tivesse!

E longe, tão longe voar eu pudesse!

E em terras selvagens um ninho fizesse...”

Abri a porta de leve e deslizei para dentro.

— É você, Bun? Pegue o meu robe para mim, por favor? Está atrás da porta. Ah, e enquanto você cuida disso, um drinquezinho seria justo o que o doutor receitou.

Fiquei perfeitamente imóvel e aguardei.

— Bun?

Havia uma leve porém perceptível nota de medo na voz dela.

— Sou eu, senhorita Wyvern... Flavia.

— Pelo amor de Deus, menina, não entre furtivamente desse jeito. Está tentando me matar de susto? Venha até aqui, onde eu possa vê-la.

Eu me mostrei do outro lado da porta entreaberta.

Phyllis Wyvern estava mergulhada até os ombros em água fumegante. Seu cabelo estava empilhado no topo da cabeça como um monte de feno na chuva. Não pude deixar de notar que ela não se parecia nem um pouco com a mulher que eu vira na tela do cinema. Para começar, não estava usando maquiagem. E, ademais, tinha rugas.

Senti, para ser perfeitamente honesta, que acabara de invadir a privacidade de uma bruxa no meio de uma transformação.

— Abaixe a tampa — disse ela, apontando para o vaso. — Sente-se e faça-me companhia.

Obedeci de imediato.

Eu não tive a coragem — na verdade, a audácia — de lhe contar que o boudoir de Harriet era zona proibida. Mas então, é claro, ela não tinha como saber disso. Dogger explicara as normas básicas a Patrick McNulty antes da chegada dela. McNulty estava agora a caminho do hospital em Hinley e provavelmente não tivera tempo de transmitir a mensagem.

Uma parte de mim observava o restante em temor reverencial diante da estrela de cinema mais famosa do mundo... da galáxia... do universo!

— O que você está olhando? — perguntou Phyllis Wyvern de repente. — As minhas rugas?

Dessa vez, não pude pensar em uma resposta diplomática.

Eu assenti.

— Que idade você acha que eu tenho? — perguntou ela, pegando uma comprida piteira na beirada da banheira. A fumaça estava invisível no meio do vapor.

Pensei cuidadosamente antes de responder. Um número muito baixo denotaria bajulação; muito alto poderia resultar em desastre. As chances estavam contra mim. A não ser que acertasse na mosca. Eu não poderia ganhar.

— Trinta e sete — eu disse.

Ela soprou um jato de fumaça como um dragão.

— Bravo, Flavia de Luce — disse ela. — Você acertou em cheio! Um recheio de trinta e sete anos em uma tripa de cinquenta e nove. Mas eu ainda tenho um pouco de tempero em mim.

Phyllis deu uma risada gutural, e pude ver por que o mundo era apaixonado por ela.

Ela mergulhou uma esponja de banho do tamanho de um pudim na água e depois a espremeu por cima da cabeça. A água escorreu por seu rosto e derramou-se para fora pelo queixo.

— Veja! Eu sou as Cataratas do Niágara! — disse ela, fazendo cara de boba.

Não pude me conter: gargalhei alto.

Naquele exato instante, como numa cena daquelas comédias em dois atos que a Sociedade Dramática Amadora de São Tancredo apresentava no salão paroquial, uma voz alta na sala externa disse:

— Que diabos você pensa que está fazendo?

Era Felinha.

Ela irrompeu tempestuosamente – não existe outra maneira de expressar: tempestuosamente – no quarto.

— Você sabe tão bem quanto eu, você, sua porquinha imunda, que ninguém pode...

Nua, a não ser por algumas bolhas de sabão, Phyllis Wyvern ficou olhando para Felinha através das volutas de vapor.

O tempo, por um instante, congelou.

Fui tomada pelo louco pensamento de que havia sido subitamente jogada para dentro da pintura de Botticelli O nascimento de Vênus, mas logo o rejeitei: muito embora a expressão de Felinha fosse bem parecida com a do deus do vento, Zéfiro, “vou bufar e vou resfolegar”, Phyllis Wyvern não era nenhuma Vênus – nem com muita boa vontade.

O rosto de Felinha estava ficando da cor da água em que se tivessem cozinhado beterrabas.

— Eu... eu... Eu peço desculpas — disse ela, e eu poderia ter gritado de alegria! Mesmo no apuro daquele momento bizarro, não pude deixar de pensar que aquela foi a primeira vez na vida de Felinha em que ela chegou a pronunciar essas palavras.

Como um cortesão se retirando da presença real, ela saiu do quarto andando devagar, de costas.

— Me passe a toalha! — comandou a totalmente pelada rainha, saindo da banheira.

— Ah, você está aqui — disse Bun Keats atrás de mim. — A porta estava aberta, então eu...

Ela me avistou e fechou a boca bruscamente.

— Bem, bem, bem — disse Phyllis Wyvern. — Enfim a delinquente Bun condescende em nos dar o ar de sua graça.

— Desculpe, senhorita Wyvern. Eu estive cuidando de desfazer as malas.

— “Desculpe, senhorita Wyvern. Eu estive cuidando de desfazer as malas.” Deus nos ajude. — Ela arremedou a voz de sua assistente do mesmo modo cruel e mordaz que Dafi usara para me arremedar, porém nesse caso a imitação foi brilhante. Profissional.

Me dei conta imediatamente de que uma grande atriz jamais pode ser maior do que quando está estrelando sua própria vida.

Lágrimas brotaram nos olhos de Bun Keats, mas ela se curvou e começou a recolher as toalhas encharcadas.

— Não creio que estes aposentos sejam parte do acordo, senhorita Wyvern — disse ela. — Já preparei seu banho na ala norte.

— Enxugue isso tudo — disse Phyllis Wyvern, ignorando-a. — Use as toalhas. Não existe nada pior que um chão molhado. Alguém pode escorregar e quebrar o pescoço.

Aproveitei a oportunidade para escapar.

Do lado de fora, o tempo tinha piorado. Fiquei olhando pela janela da sala de estar enquanto a neve, levada por um impiedoso vento norte, empanava os contornos das vans e dos caminhões. No fim da tarde, o vento amainou um pouco, e a neve agora caía diretamente para baixo na escuridão que se aprofundava.

Voltei-me da janela para Dafi, que estava afundada numa poltrona, as pernas penduradas por cima dos braços. Ela lia A casa abandonada outra vez.

— Adoro livros em que está sempre chovendo — disse-me certa vez. — Parece tanto a vida real... — Eu não tive muita certeza se aquilo era um de seus insultos inteligentes, portanto não respondi.

— Está nevando pra diabo lá fora — eu disse.

— Sempre neva lá fora. Nunca dentro — disse ela sem erguer os olhos do livro. — E não diga “pra diabo”. É vulgar.

— Você acha que o pai vai conseguir chegar em casa voltando de Londres?

Dafi encolheu os ombros.

— Se ele chegar, chegou. Se não conseguir, poderá pernoitar na tia Felicity. Normalmente, ela não cobra dele mais do que um par de libras pela cama e pelo desjejum.

Ela inverteu a posição na poltrona, deixando claro que a nossa conversa havia terminado.

— Encontrei Phyllis Wyvern esta manhã — eu disse.

Dafi não respondeu, mas vi que seus olhos tinham parado de se mover pela página. Eu por fim conseguira a atenção dela.

— Conversamos enquanto ela tomava banho — confidenciei. Não mencionei que isso tivera lugar no boudoir de Harriet. O que quer que eu fosse, não era um rato.

Não houve reação.

— Você não está interessada, Dafi?

— Temos tempo suficiente para conhecer esses astros e estrelas depois. Eles sempre dão um show promocional antes de começar a filmagem de fato. Uma questão de dádiva e generosidade. Eles chamam isso de “paparicar os caipiras”. Alguém nos levará para dar uma volta, mostrar toda a parafernália de filmagem e nos contar que maravilha fantástica aquilo é. Então vão nos apresentar aos atores, começando com o menino que faz o papel do herói quando era criança e cai por um buraco no gelo e terminando com a própria Phyllis Wyvern.

— Você parece saber um bocado a respeito.

Dafi envaideceu-se um pouquinho.

— Tento me manter bem informada — disse ela. — Além disso, eles filmaram uma série de exteriores nos Foster, no ano passado, e Flossie ficou sabendo de todos os mexericos.

— Eu não esperaria muitos mexericos se eles estavam apenas filmando exteriores — eu disse.

— Você ficaria surpresa — disse Dafi soturna, e voltou à sua leitura.

Às quatro e meia, a campainha tocou. Eu estava sentada na escadaria, observando enquanto os eletricistas passavam quilômetros de cabos serpenteando do foyer até cantos remotos da casa.

O pai ordenara que ficássemos nos nossos aposentos e não interferíssemos no trabalho em curso, e eu fazia o melhor possível para obedecer. Como a escadaria leste levava ao meu quarto e ao laboratório, ela podia ser considerada, ao menos tecnicamente, como parte de meus aposentos, e eu certamente não tinha intenção de atrapalhar a equipe de filmagem.

Diversas fileiras de cadeiras tinham sido colocadas no foyer como se estivessem planejando uma reunião, e eu fui costurando entre elas para ver quem estava à porta.

Com todo o barulho e a agitação dos trabalhadores, Dogger não devia ter ouvido a campainha.

Abri a porta, e lá estava, para minha surpresa, no meio da neve turbilhonante, o vigário, Denwin Richardson.

— Ah, Flavia — disse ele, sacudindo os flocos de neve de seu pesado casaco preto e batendo as galochas como os cascos de um cavalo de carroça. — Que prazer ver você. Posso entrar?

— É claro — disse eu, e quando recuei da porta fui tomada por um certo mau presságio. — Não são más notícias sobre o pai, são?

Mesmo sendo um dos mais velhos e queridos amigos do pai, ele raramente fazia uma visita a Buckshaw, e eu sabia que um vigário inesperado à porta poderia às vezes ser um sinal agourento. Talvez tivesse ocorrido um acidente em Londres. Talvez o trem tivesse descarrilado e tombado em um campo nevado. Se fosse o caso, eu não tinha certeza se queria ser a primeira a ouvir.

— Bom Deus, não! — disse o vigário. — O seu pai foi a Londres hoje, não foi? Uma reunião sobre selos ou coisa assim?

Outra coisa certa sobre vigários é que eles sabem da vida de todo mundo.

— Quer entrar? — perguntei, sem saber o que mais dizer.

Quando entrou, o vigário deve ter me visto olhando atônita para além dele, para seu surrado e velho Morris Oxford, que estava estacionado no pátio de acesso, parecendo notavelmente lustroso para sua idade, com uma camada de neve sobre a capota e o capô do motor, dando-lhe uma aparência de bolo de casamento coberto com um exagero de glacê.

— Pneus de inverno mais correntes para neve — disse ele em um tom confidencial. — O segredo de qualquer sacerdócio bem-sucedido. O bispo me deu a dica, mas não conte isso a ninguém. Ele aprendeu com os soldados americanos.

Forcei um sorriso e bati a porta.

— Bom Deus! — disse ele, olhando para o labirinto de cabos e a floresta de equipamentos de iluminação. — Eu não esperava nada parecido.

— Você sabia disso? Da filmagem, quero dizer?

— Ah, sim, é claro. Seu pai mencionou isso um bom tempo atrás... me pediu para ficar de boca fechada, e, é claro, foi o que fiz. Mas, agora que o vasto comboio passou através de Bishop’s Lacey e essa confusão acampou bem nas terras de Buckshaw, isso não pode mais ser um segredo, pode?

E prosseguiu:

— Devo admitir para você, Flavia, que desde que ouvi dizer que Phyllis Wyvern estaria aqui em Buckshaw, em carne e osso, por assim dizer, andei fazendo meus próprios planos. Não é sempre que somos brindados com uma visitante tão augusta... tão luminosa... e bem, afinal, uma pessoa precisa moer os grãos que lhe são dados; não que Phyllis Wyvern possa ser chamada de grão, seja qual for o sentido da palavra, por favor, não, mas...

— Eu me encontrei com ela esta manhã — me adiantei.

— Jura? Cynthia vai ficar muito enciumada ao ouvir isso. Bem, talvez não enciumada, mas quem sabe só um pouquinho invejosa.

— A senhora Richardson é uma das fãs de Phyllis Wyvern?

— Não, acredito que não. Cynthia, no entanto, é prima de Stella Ferrars, que, é claro, escreveu a novela O grito do corvo, na qual se baseou o filme. Prima em terceiro grau, na verdade, mas ainda assim uma prima.

— Cynthia? — Eu mal pude acreditar em meus ouvidos.

— Sim, difícil de acreditar, não é? Eu mesmo mal posso acreditar. Stella foi sempre a ovelha negra da família, você sabe, até que se casou com um senhor de terras, se estabeleceu nas regiões montanhosas cobertas de urzes e começou a produzir uma procissão sem fim de obras medíocres, entre as quais O grito do corvo é apenas a última. Cynthia esperava aparecer de repente e dar à senhorita Wyvern algumas dicas sobre como o papel da heroína devia ser interpretado.

Eu quase soltei um “Fuuu!”, mas não fiz isso.

— E é por isso que você está aqui? Para ver a senhorita Wyvern?

— Bem, sim — disse o vigário. — Mas não para tratar desse tópico em particular. O Natal, como você sem dúvida já me ouviu dizer em mais de uma ocasião, é sempre uma das maiores oportunidades não apenas de receber, mas também de dar, e tenho esperado que a senhorita Wyvern se sinta livre para recriar para nós apenas algumas cenas de seus maiores triunfos – tudo por uma boa causa, é claro. O Fundo para o Telhado, por exemplo... ai, meu Deus...

— Você gostaria que eu o apresentasse a ela? — perguntei.

Pensei que o bom homem fosse sucumbir de uma vez. Ele mordeu o lábio e puxou um lenço para enxugar os óculos. Quando se deu conta de que esquecera de trazê-los consigo, assoou o nariz em vez disso.

— Por favor — disse ele.

Enquanto subíamos a escada, acrescentou:

— Espero que não estejamos perturbando. Detesto ser um pedinte, mas às vezes realmente não há escolha.

Ele se referia à Cynthia.

— Nossa última iniciativa foi uma espécie de fracasso, não foi? Então temos ainda maior razão para compensar desta vez.

Agora ele se referia, é claro, a Rupert Porson, o falecido bonequeiro, cujo espetáculo no salão paroquial havia apenas uns poucos meses fora levado a um final abrupto por uma tragédia e uma mulher desprezada.

Bun Keats estava sentada em uma cadeira no topo da escadaria, a cabeça entre as mãos.

— Oh, Deus — disse ela quando a apresentei ao vigário. — Eu sinto terrivelmente. Receio estar com uma horrível enxaqueca.

O rosto dela estava tão branco quanto neve encrostada.

— Que coisa horrível para você — disse o vigário, pousando uma mão no ombro dela. — Eu me compadeço de todo o coração. Minha mulher sofre horrivelmente da mesma enfermidade.

“Cynthia?”, pensei. “Enxaqueca?” Isso com certeza explicaria muita coisa.

— Ela às vezes descobre — prosseguiu ele — que uma compressa quente ajuda. Tenho certeza de que a senhora Mullet ficaria feliz em preparar uma.

— Eu vou ficar bem... — começou Bun Keats, mas o vigário já estava a meio caminho escada abaixo.

— Ah! — disse ela com um gritinho. — Eu devia tê-lo detido. Não quero causar problema nenhum, mas, quando estou assim, mal posso pensar direito.

— O vigário não vai se importar — eu disse a ela. — Ele é um bom sujeito. Sempre pensando nos outros. Na verdade, ele veio para ver se a senhorita Wyvern poderia ser persuadida a apresentar um show para levantar fundos para a igreja.

A cara dela, se é que isso era possível, ficou ainda mais pálida.

— Ah, não! — disse ela. — Ele não deve pedir isso a ela. Ela tem um problema com caridades. É totalmente contra. Alguma coisa da infância, eu acho. É melhor contar isso a ele antes que ele traga o assunto à baila. Se não for assim, decerto haverá uma cena horrível!

Para minha surpresa, o vigário estava subindo a escada de volta, de dois em dois degraus.

— Sente-se, cara senhora, e feche os olhos — disse ele em uma voz tranquilizadora que eu nunca ouvira antes.

— A senhorita Keats diz que a senhorita Wyvern está indisposta — eu lhe disse enquanto ele aplicava uma compressa à sua testa. — Então talvez seja melhor não mencionar...

— É claro. É claro — disse o vigário.

Eu inventaria alguma desculpa inofensiva mais tarde.

Uma voz atrás de mim disse:

— Bun? Que diabos...?

Dei meia-volta.

Phyllis Wyvern, vestindo um robe cor de orquídea e parecendo tão harmoniosa quanto todos os violinos da Filarmônica de Londres, vinha flutuando pelo corredor em nossa direção.

— Ela está sofrendo de enxaqueca, senhorita Wyvern — disse o vigário. — Eu acabei de trazer uma compressa...

— Bun? Ah, minha pobre Bun!

Phyllis Wyvern arrebatou a compressa das mãos do vigário e reaplicou-a com as próprias mãos sobre as têmporas de Bun.

— Ah, minha pobre, querida Bun. Conte a Phyllis onde dói.

Bun revirou os olhos.

— Marion! — chamou Phyllis Wyvern, estalando os dedos, e uma mulher alta, chamativa, usando óculos com aro de chifre e que devia ter sido outrora de grande beleza, apareceu como que do nada. — Leve Bun para o quarto dela. Diga a Dogger para chamar um médico imediatamente.

Quando Bun Keats foi levada embora, Phyllis Wyvern estendeu a mão.

— Eu sou Phyllis Wyvern, vigário — disse ela, segurando a mão dele com ambas mãos e aplicando uma leve carícia. — Obrigada por sua pronta atenção. Este foi um dia exaustivo em todos os aspectos: primeiro, o pobre Patrick McNulty, e agora a minha querida Bun. É muito penoso; somos todos uma família tão grande e feliz, você sabe.

Eu tive uma rápida sensação de déjà vu: em algum lugar eu já tinha visto esse momento antes.

É claro que tinha! Poderia ter sido uma cena de qualquer um dos filmes de Phyllis Wyvern.

— Estou em dívida com o senhor, vigário — ela dizia. — Se o senhor não tivesse aparecido, ela poderia ter sofrido um tombo sério na escada.

Ela estava dramatizando a situação: não foi assim que aconteceu; nem um pouco.

— Se um dia houver alguma coisa que eu possa fazer para demonstrar minha gratidão, tudo o que tem a fazer é pedir.

E então saiu tudo aos borbotões da boca do vigário – ou pelo menos a maior parte. Afortunadamente, ele não mencionou as lições de interpretação de Cynthia.

— Assim, como vê, senhorita Wyvern — ele terminou —, o telhado está mais ou menos em risco desde George IV, e o tempo agora é de vital importância. O sacristão me contou que, nos últimos tempos, tem encontrado água na fonte que não foi posta lá para fins eclesiásticos, e...

Phyllis Wyvern tocou o braço dele.

— Nem mais uma palavra, vigário. Ficarei feliz em arregaçar as mangas e pôr mãos à obra. E vou lhe dizer o que mais: eu acabo de ter uma ideia maravilhosa. Meu coadjuvante, Desmond Duncan, vai chegar hoje à noite. Você deve se lembrar de que Desmond e eu tivemos um certo sucesso tanto em teatro no West End como em filme com o nosso Romeu e Julieta. Se Desmond estiver disposto, e tenho certeza de que estará...

Ela disse isso com uma piscadela marota e um brilho no olhar.

— ... então certamente conseguiremos improvisar alguma coisa para impedir que o telhado de São Tancredo venha abaixo.


5

EU ESTIVERA TANTO TEMPO SENTADA a meio caminho escada abaixo que começava a me sentir como Christopher Robin.

Era onde eu me encontrava agora, observando o foyer abarrotado, no qual várias dúzias de pessoas da equipe de filmagem estavam reunidas em pequenos grupos, conversando. A única que reconheci foi a mulher chamada Marion, que levara Bun Keats embora à tarde. Como Bun não estava visível em lugar nenhum, imaginei que ainda estivesse descansando no quarto dela.

— Senhoras e senhores! — gritou alguém, batendo palmas para chamar atenção. — Senhoras e senhores!

A zoeira das conversas parou tão abruptamente como se tivesse sido cortada com uma tesoura.

Um jovem pálido com cabelos cor de areia abriu caminho para o pé da escada, subiu alguns degraus e voltou-se de frente para os outros.

— O senhor Lampman vai se dirigir a vocês agora.

Algumas luzes discretas tinham sido trazidas para compensar o antiquado sistema elétrico de Buckshaw.

De algum lugar nas sombras atrás dos grupos, um homem diminuto de meia-idade apareceu e, como um menino em uma estrada do campo, foi caminhando lenta e despreocupadamente através do foyer como se tivesse todo o tempo do mundo. Usava, de cima para baixo, um chapéu de feltro verde-oliva muito batido, um suéter preto de gola rulê e calça preta informal.

Em um traje diferente, Val Lampman poderia ter se passado por um duende irlandês.

Ele se voltou e encarou os outros. Notei que não subiu nem mesmo um dos degraus.

— É bom ver tantas velhas caras familiares, e algumas novas também — disse ele. — Entre essas últimas está Tom Christie, nosso diretor assistente...

Ele parou para pôr a mão no ombro de um homem de cabelos cacheados que se juntara a ele.

— ... que vai cuidar para que todo mundo esteja com o zíper puxado e que nenhum de vocês suba nas paredes.

Um riso discreto, porém polido, se ergueu.

— Como a maioria de vocês já sabe a essa altura, estamos começando com alguma desvantagem. Pat McNulty sofreu um deplorável ferimento, e, embora me tenha sido assegurado de que ele vai ficar bem, simplesmente teremos de nos arranjar sem suas benevolentes táticas maternais, pelo menos por enquanto. — Fez uma breve pausa. — Ben Latshaw ficará encarregado da equipe técnica até segunda ordem, e sei que vocês lhe estenderão toda a sua cortesia.

Cabeças se viraram, mas não pude ver para quem eles estavam olhando.

— Eu esperava fazer uma leitura da primeira cena com a senhorita Wyvern e o senhor Duncan, mas, como ele ainda não chegou, vamos em vez disso passar à cena quarenta e dois, com a criada e o carteiro. Onde estão a criada e o carteiro? Ah! Jeannette e Clifford; muito bom. Procurem a senhorita Trodd, e nos encontraremos lá em cima assim que tivermos terminado aqui.

Jeannette e Clifford atravessaram o foyer na direção da Marion dos aros de chifre, que acenou uma prancheta no ar para orientá-los através da multidão.

Marion Trodd – então era esse o nome dela.

— Val, querido! Desculpe o meu atraso.

A voz soou como uma corneta de cristal, reverberando nos lambris polidos do foyer.

Todos se voltaram para assistir a Phyllis Wyvern começando sua descida do patamar da escadaria oeste. E que descida foi aquela! Ela havia trocado de roupa para um traje de dançarina mexicana: blusa branca de babados e uma saia que parecia um toldo de carrossel à beira-mar.

A única coisa que faltava era uma banana no cabelo.

Houve uma pequena quantidade de aplauso discreto e um único assobio de provocação com o qual ela fingiu corar, abanando as bochechas com a mão.

“Ela deve estar congelando com aquelas mangas curtas”, pensei. Talvez trabalhando sob luzes quentes ela tenha ficado imune ao inverno inglês.

Ela parou uma vez para dar um pequeno encolher de ombros desamparado e apontar o queixo para as partes superiores da casa.

— Pobre, querida Bun — disse ela em uma voz subitamente solene; uma voz com intenção de envolver. — Tentei fazê-la tomar um pouco de sopa, mas ela não conseguia mantê-la no estômago. Dei-lhe alguma coisa para ajudá-la a dormir.

Chegando ao pé da escada, ela flutuou através do foyer, segurou os antebraços de Val Lampman como que para impedi-lo de tocá-la e fez menção de dar-lhe um beijinho na bochecha.

Mesmo de onde eu estava sentada, pude ver que ela não o atingiu por uma milha. Ela parecia um pouco irritada, pensei, por ele ter roubado sua entrada triunfal.

Enquanto eles se seguravam um ao outro a um braço de distância, a porta da frente se abriu, e Desmond Duncan fez sua entrada.

— Desculpem, todos — disse ele naquela sua voz que era conhecida no mundo inteiro. — Foi a última matinê da pantomima. Apresentação especial para Sua Majestade. E eu simplesmente não pude aguentar a ideia de me desligar dos pobres coitados.

“Ele estava todo empacotado em uma espécie de casaco de couro pesado – búfalo ou iaque”, pensei. Em sua cabeça havia um chapéu mole de aba larga, do tipo usado pelos artistas no continente.

— Ted! — disse ele, dando uma palmada nas costas de um dos eletricistas. — Como vai indo a patroa? Ainda colecionando caixas de fósforos? Eu arranjei uma que ela vai gostar de ter, diretamente do Savoy.

E, com uma ampla piscadela de pantomima, acrescentou:

— Só dois fósforos faltando.

Eu tinha visto Desmond Duncan em um filme cujo nome esquecera: um sobre a menininha que contrata um advogado falido para forçar os pais separados a se reconciliarem. Também tinha visto fotografias dele em algumas das revistas de fãs que Dafi escondia no fundo de sua gaveta de calcinhas.

Ele tinha um nariz pontudo, como um bico, e um queixo proeminente, o que lhe emprestava o perfil de um relâmpago: um perfil que provavelmente era reconhecido de imediato da Groenlândia à Nova Guiné.

Uma arfada súbita vinda de cima e de trás me fez esticar o pescoço e olhar para cima. Eu devia saber! Dafi e Felinha estavam espiando através dos balaústres. Elas deviam estar achatadas, de barriga no chão.

Felinha fez movimentos de “xô, cai fora!” com as mãos, indicando que eu não devia chamar a atenção para a presença delas olhando para cima.

Subi a escada aos pulos e deitei no chão entre as duas. Dafi tentou me beliscar, mas eu rolei para longe.

— Faça isso de novo e vou gritar seu nome e o tamanho do seu sutiã — eu chiei, e ela me lançou um olhar ferino. Dafi só começara a se desenvolver havia pouco tempo e ainda tinha vergonha de trombetear os detalhes.

— Olhem para eles! — sussurrou Felinha. — Phyllis Wyvern e Desmond Duncan, realmente juntos aqui, em Buckshaw!

Olhei para baixo através da grade, bem a tempo de vê-los tocando as pontas dos dedos um do outro – como Deus e Adão no teto da Capela Sistina, a não ser pelo fato de que suas roupas lhes davam a aparência, ali de cima, de algo mais parecido com um grande bisão dando de cara com um pequeno cata-vento de papel.

Desmond Duncan agora tirava o volumoso casaco, que foi instantaneamente apanhado por um homenzinho que vinha vindo atrás dele.

— Val! — bradou Duxan, olhando em volta para captar o foyer inteiro. — Você conseguiu de novo!

À guisa de resposta, Val Lampman deu um sorriso tenso e uma olhada quase despreocupada demais para seu relógio de pulso.

— Muito bem, então — disse ele. — Todos presentes e considerados. Jeannette e Clifford, recomponham-se. Vocês podem se retirar. Vamos trabalhar com os principais esta noite, afinal. Primeira leitura amanhã de manhã às sete e meia, figurinos às nove e quinze. A senhorita Trodd entregará os textos em duas horas.

— Agora é a sua chance — sussurrou Dafi, cutucando Felinha. — Vá perguntar a ele!

No foyer, os atores e a equipe estavam começando a se dispersar, deixando Val Lampman sozinho ao pé da escada, anotando alguma coisa em um caderno.

— Não! Eu mudei de ideia — disse Felinha.

— Sua palerma! — disse Dafi. — Quer que eu vá perguntar a ele? Eu vou, você sabe.

— Ela vai estar entre os figurantes — sussurrou Dafi. — Ela deseja demais isso.

— Não! — disse Felinha. — Quieta!

— Ah, senhor Lampman — disse Dafi em voz bem alta —, a minha irmã...

Val Lampman ergueu os olhos para as sombras acima.

Felinha deu uma cutucada no braço de Dafi.

— Pare com isso! — chiou ela.

Levantei do chão, dei uma esfregada na cara com a palma da mão, ajeitei as roupas e desci a escada de um jeito que teria deixado o pai orgulhoso.

— Senhor Lampman? — eu disse no patamar. — Sou Flavia de Luce, dos De Luce de Buckshaw. Minha irmã Ophelia tem dezessete anos. Ela tinha esperanças de que você pudesse lhe dar um pequeno papel secundário. — Eu apontei. — Ela está lá em cima, espiando através dos balaústres.

Val Lampman pôs a mão em pala sobre os olhos e olhou para cima, para dentro do madeiramento escuro.

— Por favor, mostre-se, senhorita De Luce — disse ele.

Lá em cima, Felinha ficou de joelhos, depois em pé, sacudiu a poeira e olhou com cara de boba por cima do corrimão.

Houve um silêncio embaraçoso. Val Lampman ergueu seu chapéu de feltro e coçou os cabelos finos e loiros.

— Você vai servir — disse ele afinal. — Procure a senhorita Trodd pela manhã.

O telefone tocou em seu cubículo embaixo da escada, e, embora eu não pudesse vê-lo, ouvi os passos ponderados de Dogger vindo através da cozinha para atendê-lo. Depois de uma conversa abafada, ele saiu e me avistou na escada.

— Era o vigário — disse ele. — A senhorita Felicity ligou para ele para dizer que o coronel De Luce vai passar a noite em Londres.

“Deve estar nevando como o diabo!”, pensei, um tanto maldosamente.

— Estranho que a tia Felicity não tenha ligado para cá — comentei.

— Ela ficou tentando por mais de uma hora, mas a linha estava ocupada. Então ela ligou para o vigário. Por acaso, ele vai de carro para Doddingsley de manhã, para buscar um pouco mais de azevinho para a decoração da igreja. Ele se ofereceu gentilmente para se encontrar lá com o coronel De Luce e a senhorita Felicity na estação de trem e trazê-los para Buckshaw.

— “O azevinho e a hera” — cantarolei em voz alta a canção de Natal, sem me importar que estivesse um pouco desafinada.

“Quando a maturação é boa,

Entre os venenos que há no bosque,

O azevinho ganha a coroa.”

“Provavelmente”, pensei, porque ele contém teobromina, o alcaloide amargo que também pode ser encontrado no café, no chá e no cacau, e foi sintetizado pela primeira vez pelo imortal químico alemão Hermann Emil Fischer a partir de resíduos humanos. A teobromina nas bagas e folhas do azevinho era apenas um dos glicosídeos cianogênicos que, quando mascados, liberam cianeto de hidrogênio. Em que quantidades, eu ainda tinha de determinar, mas só o pensamento de um experimento tão delicioso fazia os pelos dos meus antebraços se arrepiar de prazer!

— Você está pensando na ilicina — disse Dogger.

— Sim, estou pensando na ilicina. É um alcaloide presente nas folhas do azevinho e causa diarreia.

— É o que acredito ter lido em algum lugar — disse Dogger.

Eu poderia usar o mesmo maço de azevinho que levara para casa para fazer o visgo!

— “É melhor você se cuidar...” — cantei enquanto saltitava escada acima com mais do que apenas a captura de Papai Noel em mente.

Flocos molhados e pesados caíam direto para baixo em direção à terra, e não havia dois iguais enquanto mergulhavam diante da janela iluminada do meu laboratório – e, no entanto, todos eles eram membros da mesma família.

No caso dos flocos de neve, o nome da família é H2O, conhecido pelos não iniciados como água.

Como toda matéria, a água pode existir em três estados: em temperaturas normais, ela é um líquido. Aquecida a 100 graus Celsius, ela se torna um gás; resfriada abaixo de zero grau, ela se cristaliza e se transforma em gelo.

Dos três, o gelo é o meu estado favorito: a água, quando congelada, é classificada como um mineral – um mineral cuja forma cristalina, em um iceberg, por exemplo, é capaz de imitar um diamante tão grande quanto o Queen Elizabeth.

Porém, acrescente um pouco de calor e puf! – você é um líquido de novo, capaz de fluir facilmente, com a ajuda apenas da gravidade, para dentro dos lugares mais secretos. Só de pensar em alguns dos locais subterrâneos nos quais a água já esteve me dá frio no estômago!

Então, aumente a temperatura o bastante, e Ali-kazam! Você é um gás – e de repente pode voar.

Se isso não é mágica, eu não sei o que é!

O ácido hiponítrico, por exemplo, é absolutamente fascinante: a -20 graus Celsius, ele assume a forma de cristais prismáticos incolores; aqueça-o a apenas -13 graus, e ele se torna um líquido claro. A -1,11 grau, o líquido se torna amarelo e depois laranja, até os 27,8 graus, quando ferve e se transforma em um vapor marrom avermelhado: tudo dentro de uma faixa de não mais de 46,7 graus!

Estupendo, se você parar para pensar.

Mas, voltando à minha velha amiga água, a questão com ela é a seguinte: não importa quão quente ou quão fria, não importa seu estado, sua quantidade ou sua cor, cada molécula de água ainda consiste em não mais que um único átomo de oxigênio e dois átomos irmãos de hidrogênio. É preciso que haja todos os três para formar uma nevasca cegante – ou, de fato, um temporal... ou uma nuvem branca e fofa em um céu de verão.

“Quão numerosas são as tuas obras, ó Senhor!”

*  *  *

Mais tarde, na cama, apaguei a luz e fiquei ouvindo por algum tempo os sons distantes das pessoas andando de um lado para outro, fazendo preparativos de última hora para a manhã. Em algum lugar na ala oeste ainda estariam ajustando os refletores; em algum lugar Phyllis Wyvern estaria estudando seu roteiro.

Mas, afinal, depois do que pareceu ser um tempo muito longo, o dia de trabalho chegou ao fim, e, com alguns rangidos e gemidos relutantes, Buckshaw adormeceu no silêncio da neve que caía.


6

ACORDEI AO SOM DE PÁS cavando. Droga! Eu devia ter dormido demais!

Pulando para fora do edredom, me enfiei com rapidez nas roupas antes que minha carne congelasse.

O mundo do lado de fora das janelas do meu quarto era como a sombra doentia de um instantâneo mal revelado: um branco e preto escoriado, sob o qual jazia um matiz apenas um pouco ameaçador de roxo, como se o céu estivesse resmungando: “Espere só para ver!”.

Uns poucos flocos zombeteiros ainda flutuavam lentamente para baixo, como pequenas notas de admoestação dos deuses, sacudindo seus pequenos punhos congelados ao passar pela janela.

Metade da equipe de filmagem, ao que parecia, estava trabalhando para limpar a neve de um labirinto de caminhos entre as vans e os caminhões.

Revirei rapidamente uma pilha de discos de gramofone (Dafi me disse que, quando eu era menor, pronunciava “grampofone”) e, escolhendo o que eu estava procurando, tirei o pó de cima dele com a saia.

Era “Manhã”, de Edvard Grieg, de sua suíte Peer Gynt: a mesma peça musical que o falecido Rupert Porson usara no salão paroquial setembro passado para abrir seu espetáculo de marionetes João e o pé de feijão.

Não era a minha peça favorita de música matinal, mas era infinitamente melhor do que “Vamos todos cantar como cantam os passarinhos”. Além disso, o disco trazia a adorável figura de um cão com a cabeça inclinada de um jeito cômico, ouvindo a voz do dono que saía de uma corneta, sem perceber que seu dono estava atrás dele, pintando seu retrato.

Dei uma bela manivelada no gramofone e pousei a agulha na superfície do disco girante.

— La-la-la-LAH, la-la-la-la, LAH-la-la-la — eu cantei junto, incluindo até mesmo os pequenos defeitos da gravação, até o fim da melodia principal.

Então, como parecia combinar com a desolação do dia, ajustei o controle para reduzir a velocidade, o que fez a música soar como se a orquestra inteira de repente tivesse sido tomada por náuseas: como se alguém tivesse envenenado os músicos.

Ah, como eu adoro música!

Eu me movi flacidamente em volta da sala, arrastando-me com a música ralentada como uma boneca cujo recheio de serragem vai se derramando para fora, até que a corda do gramofone chegou ao fim e eu desabei no chão como um monte de carne desossada.

— Espero que você não fique se metendo no caminho — disse Felinha. — Lembre-se do que o pai nos disse.

Deixei minha língua se arrastar lentamente para fora da boca, como uma minhoca emergindo depois de uma chuva, mas foi um esforço desperdiçado. Felinha não tirou os olhos do papel que estava estudando.

— Isso é o seu papel? — perguntei.

— Na verdade, é.

— Vamos dar uma olhada.

— Não. Não é da sua conta.

— Vamos, Felinha! Fui eu que consegui. Se você ganhar alguma coisa, eu quero metade.

Dafi inseriu um dedo em A casa abandonada para marcar o lugar.

— “Em BG, OOF, uma criada põe uma carta em cima da mesa” — disse ela em um tom trivial.

— É isso? — perguntei.

— É isso.

— Mas o que significa?

— As siglas significam que no fundo, fora de foco, uma criada coloca uma carta em cima da mesa. Exatamente como está escrito.

Felinha fingia estar preocupada, mas pude perceber pela coloração crescente de sua garganta que ela estava ouvindo. Minha irmã Ophelia é como uma daquelas rãs exóticas cuja pele muda de cor involuntariamente como um aviso. Na rã, significa que ela está tentando fazer você pensar que ela é venenosa. Com Felinha, é mais ou menos a mesma coisa.

— Caramba! — eu disse. — Você vai ficar famosa, Felinha!

— Não diga “Caramba” — disparou ela. — Você sabe que o pai não gosta.

— Ele vai estar em casa esta manhã — eu lembrei a ela. — Com a tia Felicity.

Com isso, um mau humor generalizado caiu sobre a mesa, e terminamos nosso desjejum em um silêncio pétreo.

O trem de Londres era esperado em Doddingsley às dez e cinco. Se Clarence Mundy tivesse ido buscá-los com seu táxi, o pai e tia Felicity estariam em Buckshaw dentro de meia hora. Mas hoje, considerando toda a neve e o experiente ritmo de funeral em que o vigário normalmente dirigia, parecia provável que passasse das onze até eles chegarem.

E, de fato, não foi antes de quinze para a uma que o Morris do vigário encostou, exaurido, diante da porta da frente, atulhado como um carro de refugiado com diversos objetos de formas peculiares se projetando das janelas e amarrados em cima da capota. Assim que eles desceram do carro, pude perceber que o pai e tia Felicity estiveram brigando.

— Pelo amor de Deus, Haviland — dizia ela —, qualquer um que não possa ver a diferença entre um tentilhão comum e um tentilhão preto e branco devia ser proibido de olhar através da janela de um vagão de trem.

— Tenho toda a certeza de que era um tentilhão preto e branco, Lissy. Ele tinha as características...

— Bobagem. Traga a minha mala, Denwin. Aquela com o cadeado grande de latão.

O vigário pareceu um pouco surpreso por ser comandado de um jeito tão desrespeitoso, mas ele puxou a bolsa de viagem que estava sob o banco de trás do carro e entregou-a a Dogger.

— Muito inteligente da sua parte pensar em pneus de inverno e correntes — disse tia Felicity. — A maioria dos eclesiásticos é uma negação quando o assunto é automóveis.

Eu quis contar a ela sobre o bispo, mas fiquei calada.

Tia Felicity avançou pela porta da frente com seu jeito costumeiro de buldogue. Por baixo do casaco comprido de viagem, eu sabia, ela estaria usando sua parafernália completa de exploradora vitoriana: um conjunto Norfolk de duas peças, com casaco e saia, e bolsos extras costurados para tesouras, canetas, alfinetes, faca e garfo (ela viajava sozinha: “Com talheres estranhos, você nunca sabe quem comeu o quê”, gostava de dizer); diversos pedaços de barbante, elásticos sortidos, um dispositivo para cortar pontas de charutos e um pequeno frasco de vidro de Gentleman’s Relish para viagem: “Você não encontra mais desses desde a guerra”.

— Está vendo? — disse ela, entrando no foyer e apreendendo num relance a selva de equipamento cinematográfico. — É bem como eu disse. Os magnatas do cinema estão determinados a arrasar com todos os lares nobres da Inglaterra. Eles são comunistas até o último homem. Para quem eles fazem seus filmes? Para “O Povo”. Como se “o povo” fossem as únicas pessoas que precisam de entretenimento. Fu! É o bastante para fazer as hostes celestiais vomitarem o seu maná!

Fiquei feliz por ela não ter dito Deus, pois isso teria sido uma blasfêmia.

— Bom dia, Lissy! — gritou alguém. — Tentando andar na linha, hein? — Era Ted, o mesmo eletricista com quem Desmond Duncan havia falado. Ele estava em cima de um andaime, atarefado com um enorme holofote.

Tia Felicity sufocou um espirro enorme, revirando a bolsa à procura de um lenço.

— Tia Felicity — perguntei, incrédula —, você conhece aquele homem?

— Cruzei com ele em algum lugar durante a guerra. Algumas pessoas nunca esquecem um nome ou uma cara, você sabe. Bastante notável. Durante um blecaute, provavelmente.

O pai fez que não ouviu e seguiu direto para seu estúdio.

— Se foi durante um blecaute — perguntei —, como ele poderia ter visto a sua cara?

— Crianças impertinentes deviam ser cobertas com seis camadas de goma-laca e expostas em locais públicos como advertência para as outras — fungou tia Felicity. — Dogger, você pode levar a bagagem para o meu quarto.

Mas ele já tinha feito isso.

— Espero que não me tenham posto na mesma ala da casa que aqueles comunistas — resmungou ela.

Mas tinham.

Tinham dado a ela o quarto vizinho a Phyllis Wyvern.

Nem bem tia Felicity havia saído pisando duro para seus aposentos, e a própria Phyllis Wyvern entrou com displicência no foyer, roteiro nas mãos, murmurando palavras como se estivesse memorizando algumas falas especialmente difíceis.

— Meu caro vigário. — Ela sorriu ao avistá-lo espreitando logo ao lado da porta. — Que prazer vê-lo outra vez.

— O prazer é de Bishop’s Lacey — disse o vigário. — Não é sempre que a nossa aldeia isolada é honrada com a visita de alguém de... ahn... de tamanha magnitude estelar. Acredito que a primeira rainha Elizabeth, em 1578, foi a última. Há uma placa de bronze na igreja, você sabe...

Era fácil ver que ele dissera a coisa certa. Phyllis Wyvern ronronou razoavelmente quando respondeu:

— Estive considerando a sua proposta... — disse ela, deixando uma longa pausa, como para sugerir que o vigário pedira a mão dela em casamento.

Ele ficou um pouco rosado e sorriu como um santo feliz.

— ... e decidi que antes cedo do que tarde. O pobre Val está enfrentando algumas dificuldades imprevistas: um produtor ferido, uma câmera desaparecida e agora, me disseram, um gerador paralisado. É provável que não venhamos a filmar nenhuma cena por uns dias. Sei que é terrivelmente em cima da hora, mas você acha que podemos combinar alguma coisa para amanhã?

Uma sombra atravessou o semblante do vigário.

— Meu Deus! — exclamou ele. — Eu não queria parecer mal-agradecido, mas existem algumas dificuldades de... ahn... natureza prática.

— Por exemplo? — perguntou ela de um jeito encantador.

— Bem, para ser bem franco, o WC no salão paroquial está quebrado. O que significa, é claro, que qualquer apresentação pública simplesmente não é possível. O pobre Dick Plews, nosso encanador, caiu de cama com gripe já faz dias e talvez demore algum tempo para ficar em pé. O pobre homem tem oitenta e dois anos, e, embora em geral ele seja animado como um pardal, essa doença cruel...

— Quem sabe alguém da nossa equipe técnica possa...

— Muito gentil de sua parte, sem dúvida, mas receio que isso não seja o pior. A nossa caldeira, também, está mostrando as presas. O Monstro do Porão, é como a chamamos. É uma Deacon & Bromwell, fabricada em 1851 e posta à mostra na Grande Exposição; um enorme polvo de aço com o temperamento de um escorpião. Dick tem um caso de amor com a besta desde quando não era mais que um garoto nos joelhos do pai dele. Ele a mima de maneira ultrajante, mas nos últimos anos foi reduzido a forjar partes sobressalentes com a mão, e, bem, você entende...

Eu ainda não tinha notado, mas o pai tinha saído de seu estúdio e estava em pé, silencioso, ao lado de uma pilha de caixotes.

— Talvez haja uma solução mais à mão — disse ele, vindo para a frente. — Senhorita Wyvern, bem-vinda a Buckshaw. Eu sou Haviland de Luce.

— Coronel De Luce! Que prazer conhecê-lo, afinal! Ouvi falar tanto de você. Estou profundamente endividada por você ter aberto com tanta gentileza seu adorável lar para nós.

Adorável lar? Será que ela estava brincando? Eu não sabia dizer.

— Não há de quê — disse o pai. — Todos nós somos devedores, de um modo ou de outro.

Houve um silêncio constrangedor.

— Eu, por exemplo — prosseguiu ele —, estou devendo ao meu amigo, o vigário, por ter ido buscar minha irmã e eu na estação do trem em Doddingsley. Uma missão muito perigosa, passando por estradas traiçoeiras, e que chegou a uma conclusão feliz graças às suas habilidades notáveis como motorista.

O vigário resmungou alguma coisa sobre pneus de inverno incrementados por correntes para neve e então se acalmou, cedendo ao pai seu tempo sob o holofote com Phyllis Wyvern.

Eles ainda estavam se dando as mãos quando o pai disse:

— Talvez me seja permitido oferecer o uso de Buckshaw para a sua atuação? Afinal, é por apenas uma noite, e tenho certeza de que não iria infringir nosso acordo se o foyer fosse esvaziado e fossem colocadas cadeiras por algumas horas.

— Esplêndido! — interveio o vigário. — Aqui há espaço suficiente para cada alma de Bishop’s Lacey, homem, mulher e criança, com folga de sobra para os cotovelos. Aliás, é ainda mais espaçoso que o salão paroquial. Que estranho eu não ter pensado nisso antes! Já é tarde demais para cartazes e folhetos, mas vou pedir a Cynthia que produza alguns ingressos no mimeógrafo. Mas as coisas mais importantes primeiro. Ela vai precisar organizar as damas do Círculo de Chamadas para ligar para todos na aldeia e convocá-los.

— E eu vou trocar algumas palavras com o nosso diretor — disse Phyllis Wyvern, soltando enfim a mão do pai. — Tenho certeza de que vai dar tudo certo. Val não pode dizer “não” para mim em certas esferas, e cuidaremos para que esta seja uma delas.

Ela sorriu de um jeito encantador, mas notei que tanto o pai como o vigário desviaram os olhos.

— Bom dia, Flavia — disse ela afinal, mas seu reconhecimento de minha presença chegou tarde demais para o meu gosto.

— Bom dia, senhorita Wyvern — eu disse, e saí caminhando friamente para a sala de estar com uma expressão de “Beije o meu traseiro”. Eu ia lhe mostrar uma ou duas coisas sobre como atuar!

Meus olhos devem ter pulado fora das órbitas. Vestindo as sedas verdes que ela usara quando representou o papel de Becky Sharp na produção da Sociedade Dramática de Feira das vaidades, Felinha estava em pé diante de uma pequena mesa redonda, pondo de lado uma carta, pegando-a de novo e pondo-a de lado outra vez.

Ela fez isso com muita delicadeza e, depois, com certa hesitação – e, em seguida, com um ímpeto súbito, como se não pudesse aguentar a visão da coisa em si. Ela estava ensaiando sua participação – ou, pelo menos, a participação de uma de suas mãos – em O grito do corvo.

— Eu estava conversando com Phyllis — eu disse displicentemente, esticando um pouco os fatos. — Ela e Desmond Duncan vão representar uma cena de Romeu e Julieta sábado à noite, aqui no foyer. Para a caridade.

— Ninguém virá — disse Dafi com amargura. — Em primeiro lugar, é perto demais do Natal. Em segundo lugar, é muito em cima da hora. Em terceiro, caso não tenham pensado nisso, ninguém vai a lugar nenhum nesse tempo sem botas de neve e um são bernardo.

— Mas você está errada — eu disse. — Aposto seis pence com você que a aldeia inteira vai aparecer.

— Feito! — disse Dafi, cuspindo na palma da mão e apertando a minha.

Foi o primeiro contato físico que tive com minha irmã desde o dia, meses atrás, em que ela e Felinha me amarraram e me arrastaram para os porões, para uma inquisição à luz de velas.

Dei de ombros e caminhei para a porta. Uma olhada rápida antes de sair me mostrou que a mão de Becky Sharp ainda estava mecanicamente pegando e pondo de lado a carta, como um espectro mecânico.

Embora houvesse algo de patético em seus atos, eu não consegui, pela minha vida, atinar com o que era.

A meio caminho pelo corredor, tomei consciência de vozes iradas no foyer, e, é claro, parei para ouvir. Sou ao mesmo tempo abençoada e amaldiçoada com o agudo senso de audição de Harriet: uma sensibilidade quase sobrenatural para os sons, pela qual eu às vezes já dei graças e às vezes me desesperei. Reconheci de imediato as vozes de Val Lampman e Phyllis Wyvern.

— Eu não dou um maldito de um centavo pelo que você prometeu — dizia ele. — Você simplesmente terá de contar a eles que está cancelado.

— E ficar parecendo uma maldita idiota? Pense nisso, Val. O que vai custar? Algumas horas em momento em que não estamos trabalhando. Estou fazendo isso com o meu próprio tempo, bem como Desmond.

— Isso não é o problema. Já estamos atrasados, e as coisas só vão piorar. Patrick... Bun... e só estamos aqui há um dia. Eu simplesmente não disponho dos recursos para continuar empurrando caixotes de um lado para outro para que você possa causar a sua impressão de Fada Madrinha.

— Seu brutamontes sem coração — disse ela. A voz era fria como gelo.

Val Lampman deu risada.

— O coração de vidro. Página noventa e três, se não estou enganado. Você nunca esquece uma fala, não é, minha velha?

Por incrível que pareça, ela deu risada.

— Vamos, Val, seja homem. Mostre a eles que você tem mais do que carne no seu coração.

— Desculpe, amor — disse ele. — Nada feito dessa vez.

Houve um silêncio, e desejei poder ver a cara deles, mas não podia me mexer sem entregar minha presença.

— Suponha — disse Phyllis Wyvern em não mais que um sussurro — que eu contasse a Desmond sobre aquela sua interessante aventura em Buckinghamshire?

— Você não se atreveria! — sibilou ele. — Pare com isso, Phyllis. Você não se atreveria!

— Não mesmo?

Pude perceber que ela subira de novo nas tamancas.

— Para o diabo, você! — disse ele. — Para o diabo você e para o diabo você!

Houve mais um silêncio — ainda mais longo dessa vez, e então Val Lampman disse de repente:

— Tudo bem, então. Você já deu o seu pequeno espetáculo. Não vai fazer muita diferença para os meus planos.

— Obrigada, Val. Eu sabia que você iria me entender. Você sempre entende. E, agora, vamos subir e nos juntar aos outros? Eles vão começar a ficar impacientes.

Ouvi o som dos passos deles subindo a escada. Esperaria mais alguns segundos, pensei, só para ter certeza de que se foram.

Mas, antes que eu pudesse me mexer, alguém saiu das sombras para o meio do corredor.

Bun Keats!

Ela não tinha me visto. Estava de costas e olhava para o foyer pelo canto. Era evidente que estivera bisbilhotando a conversa que eu acabara de ouvir.

Se ela se voltasse, estaria quase cara a cara comigo.

Prendi a respiração.

Depois do que pareceu uma eternidade, ela saiu andando lentamente para dentro do foyer e sumiu de vista.

Mais uma vez aguardei até ouvir os passos dela sumirem na distância.

— É uma pena, não é — disse uma voz quase junto ao meu ombro —, quando as pessoas não chegam a um acordo?

Eu quase pulei para fora da minha pele.

Virei para trás, e lá estava Marion Trodd, com um meio sorriso cômico – ou seria pesaroso? A despeito de seu elegante traje feito sob medida, os óculos escuros de aro de chifre lhe davam a aparência de uma princesa tribal que acabara de esfregar cinzas em volta dos olhos negros e vazios como preparativo para um sacrifício na selva.

Ela estivera lá o tempo todo. E pensar que eu não a ouvira – nem vira!

Nós duas ficamos imóveis, olhando uma para a outra no corredor escuro, sem saber muito bem o que dizer.

— Me desculpe — eu disse. — Acabei de me lembrar de uma coisa.

Era verdade. O que eu lembrara era isto: embora eu não estivesse nem um pouco com medo dos mortos, havia aqueles entre os vivos que me davam arrepios, e Marion Trodd era um deles.

Me virei e me afastei rapidamente, antes que alguma coisa horrível subisse no tapete e me sugasse para baixo, para dentro da trama.


7

O PAI ESTAVA SENTADO à mesa da cozinha ouvindo tia Felicity. Isso, mais que qualquer outra coisa, deixou claro para mim quanto – e quão rapidamente – o nosso pequeno mundo havia encolhido.

Me insinuei em silêncio, ou assim pensei, para dentro da copa e me servi de um pedaço de bolo de Natal.

— Isso já foi longe demais, Haviland. Já faz dez anos que eu fico assistindo em silêncio enquanto a sua situação piora, esperando que você algum dia volte a si...

Aquilo era uma inverdade risível. Tia Felicity nunca perdia a oportunidade de fazer uma crítica.

— ... mas tudo em vão. Não é saudável que as crianças continuem vivendo sob essas condições barbáricas.

Crianças? Ela acha que somos crianças?

— O momento chegou, Haviland — prosseguiu ela —, de parar com essa depressão incessante e encontrar uma esposa, de preferência rica. É definitivamente indecente que uma tribo de meninas seja criada por um homem. Elas vão se transformar em selvagens. É um fato conhecido que elas não se desenvolverão de maneira adequada.

— Lissy...

— Flavia, você pode aparecer — bradou tia Felicity, e eu me arrastei para dentro da cozinha, um pouco envergonhada por ter sido pega bisbilhotando.

— Está vendo o que quero dizer? — disse ela sinistramente, apontando com um dedo cuja unha estava com um tom vermelho de sangue exaurido.

— Eu estava indo buscar um pedaço do bolo de Natal para Dogger — eu disse, esperando fazê-la se sentir muito mal. — Ele trabalhou tão duro... e muitas vezes não tem o bastante para comer.

Peguei um dos casacos pretos de Dogger atrás da porta e joguei-o por cima dos meus ombros.

— E agora, se vocês me dão licença... — falei, e saí pela porta da cozinha.

O ar frio mordia minhas bochechas, e joelhos, e articulações dos dedos, enquanto eu trotava através dos flocos cadentes. O caminho estreito que alguém abrira a pá já estava se fechando.

Dogger, de macacão, estava na estufa aparando brotos de azevinho e outras plantas ligadas ao Natal.

— Brrrrrr! — eu disse. — Está frio.

Como não estava habituado a reagir a conversa fiada, ele não disse nada.

A árvore de Natal que Dogger nos prometera não estava em lugar nenhum, mas eu lutei contra o meu desapontamento. Ele provavelmente não tivera tempo.

— Trouxe um pouco de bolo para você — eu disse, quebrando metade e entregando-a a ele.

— Obrigado, senhorita Flavia. A chaleira está quase fervendo. Você tomaria um chá comigo?

Com certeza: sobre uma bancada no fundo da estufa, uma chaleira surrada sobre um aquecedor elétrico disparava jatos excitados de vapor da tampa e do bico.

— Vamos acordar Gladys — eu disse.

Enquanto Dogger enchia duas xícaras refrescantemente encardidas, ergui minha fiel bicicleta do canto onde tinha sido guardada e, com cuidado, desenrolei o pano de saco protetor no qual, depois de uma lubrificação completa, Dogger a envolvera para o inverno.

— Você está me parecendo muito em forma — eu disse a ela, fazendo uma pequena piada. Gladys era uma BSA Keep-Fit (o que significa “Mantenha-se em Forma”, em inglês), que outrora pertencera a Harriet.

— Muito em forma — disse Dogger. — A despeito da hibernação.

Escorei Gladys em sua barra de apoio ao nosso lado e dei algumas giradas em sua campainha. Era bom ouvir sua voz alegre no inverno.

Ficamos sentados por algum tempo em um silêncio amigável, e então eu disse:

— Ela é muito bonita, não é? Para a idade dela?

— Gladys? Ou a senhorita Wyvern?

— Bem, as duas, mas eu queria dizer a senhorita Wyvern — disse eu, feliz porque Dogger tinha entendido a mudança de assunto. — Você acha que o pai vai se casar com ela?

Dogger tomou um pequeno gole de chá, pôs sua xícara na mesa e pegou um broto de visco. Ele o segurou pelo caule como se o estivesse sopesando, depois colocou-o de volta.

— Não, se ele não quiser.

— Eu pensei que não teríamos decorações — eu disse. — O diretor não queria ter o trabalho de removê-las quando eles começassem a filmar.

— A senhorita Wyvern decidiu de outra forma. Ela me pediu que providenciasse uma árvore de Natal de tamanho apropriado no foyer para sua apresentação no sábado à noite.

Senti meus olhos se arregalando.

— Para lembrar-lhe as árvores de sua infância. Ela disse que os pais dela sempre providenciavam uma árvore.

— E ela também lhe pediu azevinho? E visco?

— Sim, senhor, sim, senhor, três sacos cheios, senhor. — Dogger sorriu.

Eu abracei a mim mesma, e não só por causa do frio. Até as menores piadas nos lábios de Dogger me aqueciam o coração – talvez me tornassem atrevida demais.

— E os seus pais? — perguntei. — Também providenciavam uma árvores? O azevinho, e a hera, e o visco, e tudo isso?

Dogger não respondeu imediatamente. A mais suave das sombras pareceu passar pelo seu rosto.

— Naquela parte da Índia onde fui uma criança — disse ele afinal —, visco e azevinho não eram fáceis de encontrar. Creio que me lembro de decorar uma mangueira para o Natal.

— Uma mangueira! Índia! Eu não sabia que você morou na Índia!

Dogger ficou em silêncio por um longo tempo.

— Mas isso foi muito tempo atrás — disse ele afinal, como se estivesse acordando de um sonho. — Como você sabe, senhorita Flavia, minha memória já não é o que já foi.

— Não importa, Dogger — eu disse, dando uma palmadinha na mão dele. — Nem a minha. Ora, ontem mesmo eu tive nas mãos algumas gotas de arsênico e as deixei em algum lugar. Não consigo, por mais que tente, me lembrar do que fiz com aquilo.

— Encontrei-as na manteigueira — disse Dogger. — Tomei a liberdade de usar contra os ratos na cocheira.

— Com manteiga e tudo? — perguntei.

— Com manteiga e tudo.

— Mas não a manteigueira.

— Mas não a manteigueira — confirmou Dogger.

Por que não existem mais pessoas como Dogger no mundo?

Lembrando-me das ordens do pai para não interferir com o trabalho em curso, passei o resto do dia no meu laboratório, fazendo ajustes de última hora na consistência do meu poderoso visgo de pegar passarinho. A adição da quantidade exata de óleo mineral o impediria de congelar.

Faltavam só dois dias para a véspera de Natal, e eu precisava estar preparada. Não haveria margem de erro. Eu teria apenas uma chance de capturar Papai Noel – se ele, de fato, existisse.

Por que eu desconfiava tanto das histórias das minhas irmãs sobre mitos e folclore? Seria porque a experiência me ensinara que elas eram ambas mentirosas? Ou seria porque eu realmente queria – talvez até precisasse – acreditar?

Bem, fosse Papai Noel ou não, eu logo estaria escrevendo em meu caderno sobre o Grande Experimento: Objetivo, Hipótese, Método, Resultados, Discussão, Conclusão.

De um modo ou de outro, estava destinado a ser um clássico.

Rabiscada à margem de um dos cadernos do tio Tar, eu encontrara uma citação de Sir Francis Bacon: “Então não precisamos acrescentar asas, mas antes chumbo e lastro, ao entendimento, para impedir que ele salte ou voe”.

Justo o que eu tinha em mente para São Nicolau! Uma dose do velho visgo! Mais tarde, na cama, a cabeça cheia de visões de renas permanentemente grudadas nas chaminés como moscas-varejeiras em papel pega-moscas, me dei conta de que estava sorrindo como uma louca no escuro. Veio o sono afinal, embalado pelo que poderiam ter sido os sons de um gramofone distante.


8

PAREI NO TOPO da escada.

— Não está certo! — resmungava uma voz. — Eles não têm o direito de nos sobrecarregarem com tudo isso.

— Melhor ficar quieto, Latshaw — disse outra voz. — Você sabe o que Lampman nos disse.

— Sim, eu sei o que Sua Eminência disse. A mesma coisa que na última filmagem, e na filmagem antes dessa. Já ouvi aquele discurso dele sobre reclamações tantas vezes que sou capaz de recitá-lo dormindo. “Se você tem alguma reclamação, conte para mim”, e por aí vai.

— McNulty costumava...

— McNulty que se dane! Eu estou encarregado agora, e vale o que eu digo. E tudo o que eu digo agora é isto: eles não têm o direito de nos sobrecarregarem com todo esse trabalho extra só para que Sua Alteza Real possa dar aos caipiras locais alguma coisa para ficarem olhando de boca aberta.

Recuei da escada devagar, depois me reaproximei mais ruidosamente.

— Shhh! Vem vindo alguém.

— Bom dia! — eu disse com alegria, esfregando os olhos e assumindo minha melhor interpretação de idiota da aldeia. Se eu tivesse tido tempo, teria escurecido um dos meus dentes da frente com pó de carvão.

— Bom dia, senhorita — disse o primeiro, e percebi pela sua voz que o outro era Latshaw.

— Nevando um bocado, né?

Eu sabia que isso era um pouco de exagero, mas com algumas pessoas não importa. Eu aprendera por experiência própria que os reclamões são surdos a todas as vozes, menos às suas próprias.

— Ah, que lindo! — exclamei quando cheguei ao fim da escada, juntando as mãos como uma solteirona que acabara de ganhar um anel de noivado de um aristocrata de cara vermelha com um joelho dobrado.

O lado sul do foyer tinha sido transformado da noite para o dia em um pátio italiano ao anoitecer. Paredes de pedras pintadas em lona foram instaladas na frente dos lambris de madeira, e o patamar da escadaria sul se transformara em um balcão em Verona.

Umas poucas árvores artificiais aqui e ali, em potes habilidosamente disfarçados de banquinhos, contribuíam grandemente para o efeito. A coisa toda fora tão bem-feita que quase pude sentir o calor do sol italiano.

Seria ali, eu sabia, que em apenas poucas horas Phyllis Wyvern e Desmond Duncan estariam recriando a cena de Romeu e Julieta — uma produção que uma vez mantivera o West End de Londres acordado até altas horas da madrugada com regendo vibrantes aplausos.

Eu tinha lido a respeito nas revistas bolorentas de cinema e teatro empilhadas por toda parte na biblioteca de Buckshaw, ou que pelo menos estavam empilhadas até serem removidas para fins de filmagem.

— Melhor sair correndo, senhorita. A pintura ainda está úmida. Você não quer ficar toda suja de tinta, quer?

— Não, se ela for à base de chumbo — disparei de volta enquanto me afastava despreocupadamente, lembrando-me com um pequeno arrepio de prazer do caso do artista americano Whistler, que, enquanto pintava seu famoso quadro A menina branca, por causa do alto conteúdo de branco de chumbo no pigmento de sua cor principal, contraiu o que os artistas chamam de “cólica dos pintores”.

Poderia o envenenamento por chumbo sob qualquer outro nome parecer tão doce? Eu sabia que era conhecido o fato de que ratos roíam encanamentos de chumbo por terem pegado gosto pela doçura do material. De fato, eu começara a compilar notas para um panfleto que se chamaria Peculiaridades do plumbismo e estava começando a pensar prazerosamente naquele tópico quando o telefone tocou.

Corri para ele de imediato, antes que desse o segundo toque. Se o pai ouvisse, poderíamos nos preparar para um dia de ira.

— Inferno! — eu disse quando peguei o fone.

— Alô... Flavia? Peguei você em um momento inoportuno?

— Ah, alô, vigário — eu disse. — Desculpe. É só que eu bati o joelho no batente da porta.

Do Livro das Regras de Ouro de Flavia: quando você é pega praguejando, tente obter compaixão.

— Pobre menina — disse ele. — Espero que você esteja bem.

— Vou ficar ótima, vigário, quando a dor diminuir.

— Bem, eu estou ligando para dizer que tudo deste lado vai indo muito bem. Os ingressos já estão praticamente todos vendidos, e o sol mal nasceu. Cynthia e suas guerreiras telefônicas se superaram na noite passada.

— Obrigada, vigário — eu disse. — Vou informar ao pai.

— Ah, e Flavia, diga a ele que Dieter Schrantz, da fazenda Culverhouse, sugeriu, se o seu pai quiser, é claro, que usemos o velho trenó da cocheira dele para transportar o nosso público do salão paroquial até Buckshaw. Ele diz que pode improvisar um engate para arrastá-lo atrás do trator. Só o passeio já deve valer o preço do ingresso, você não acha?

*  *  *

Surpreendentemente, o pai concordou com poucos resmungos, mas também, quando o vigário estava envolvido, ele quase sempre concordava. Havia uma amizade entre eles com um poder e profundidade que eu de fato não entendia. Embora ambos tivessem frequentado Greyminster, eles não estiveram na escola nos mesmos anos, portanto isso não explicaria o fato. O vigário não tinha mais que um interesse cortês em selos de correio, e o pai não tinha mais que um interesse passageiro no Paraíso, portanto a ligação entre os dois continuava sendo um mistério.

Para ser perfeitamente franca, eu tinha um pouco de inveja da camaradagem fácil dos dois e, às vezes, me pegava desejando que fosse tão grande amiga do pai quanto ele era do vigário.

Não que eu não tivesse tentado. Uma vez, enquanto usava uma de suas revistas filatélicas para abanar a chama de um bico de Bunsen preguiçoso, as páginas se abriram um pouco com o movimento, e as palavras “oxigênio nascente” me chamaram a atenção. A substância, ao que parecia, fora produzida adicionando formaldeído ao permanganato de potássio e tinha sido usada pelo Correio para fumigar malotes no Mediterrâneo nos tempos em que a cólera era uma ameaça constante.

Agora, aí estava um fato sobre colecionar selos que era realmente interessante! Uma ponte – por precária que tivesse parecido – entre o mundo do meu pai e o meu.

— Se você um dia precisar desinfetar qualquer um dos seus selos — despejei de repente —, eu ficarei feliz em fazer isso para você. Posso preparar um pouco de oxigênio nascente num piscar de olhos. Não seria problema nenhum.

Como um viajante no tempo que acabara de acordar para descobrir que estava em uma casa estranha em um século inesperado, o pai ergueu os olhos de seus álbuns para me encarar.

— Obrigado, Flavia — disse ele depois de uma pausa enervante. — Terei isso em mente.

*  *  *

Dafi, como sempre, estava disposta por cima de uma poltrona na biblioteca com A casa abandonada sobre os joelhos.

— Você nunca se cansa desse livro? — perguntei.

— Claro que não! — disparou ela. — É tão parecido com a minha própria vida deplorável que não sei a diferença entre ler e não ler.

— Então por que se dar ao trabalho? — perguntei.

— Caia fora! — disse ela. — Vá assombrar outra pessoa.

Decidi tentar uma aproximação diferente.

— Você está com olheiras — eu disse. — Ficou lendo até tarde na noite passada, ou é a sua consciência que não a deixa dormir por causa do modo contemptível com que trata a sua irmãzinha?

“Contemptível” era uma palavra que eu estava morrendo de vontade de usar em uma sentença desde que ouvira Cynthia Richardson usá-la contra a srta. Cool, a agente de correio da aldeia, referindo-se ao Correio Real da Inglaterra.

— Ora, vá se danar! — disse Dafi. — Quem poderia dormir com todo aquele berreiro na casa?

— Eu não ouvi berreiro nenhum.

— É porque a sua proclamada audição sensível queimou um fusível. Provavelmente a surdez hereditária dos De Luce está começando a se manifestar em você. Ela passa da filha mais nova para a filha mais nova e geralmente aparece antes dos doze anos.

— Baboseiras! — disse eu. — Não houve berreiro nenhum. Está tudo na sua cabeça.

O lobo da orelha esquerda de Dafi começou a tremer, como costuma fazer quando ela está perturbada. Pude ver que eu havia atingido um ponto sensível.

— Não está na minha cabeça! — gritou ela, jogando o livro no chão e pondo-se em pé de um pulo. — É aquela maldita mulher, Wyvern. Ela fica passando filmes velhos a noite inteira, de novo, e de novo, até você ter vontade de gritar. Se eu tiver de ouvir a voz dela dizendo “Jamais esquecerei Hawkhover Castle” mais uma vez enquanto aquela música ordinária vai num crescendo, sou capaz de vomitar água de brejo.

— Eu pensei que você gostasse dela. Aquelas revistas...

Maldição! Eu quase me denunciara. Não era para eu saber o que estava no fundo da gaveta de Dafi.

Mas eu não precisava me preocupar. Ela estava agitada demais para perceber o meu deslize.

— Eu gosto dela no papel, não em pessoa. Ela olha para mim como se eu fosse uma espécie de aberração.

— Talvez você seja — ofereci, solícita.

— Vá se ferrar! — disse ela. — Já que você é tão amiguinha da Lady Phyllis, na próxima vez em que a vir pode dizer a ela que abaixe o nariz. Diga-lhe que Buckshaw não é nenhum cinema pulguento de Slough, ou de onde quer que ela tenha vindo.

— Vou fazer isso — disse eu, girando nos calcanhares e saindo da sala. Por alguma razão eu estava começando a sentir pena de Phyllis Wyvern.

No foyer, Dogger estava em cima de uma alta escada de pomar, pendurando um ramo de azevinho em um dos arcos.

— Cuidado com a ilicina! — eu gritei para ele. — Não lamba os dedos.

Era uma piada, é claro. Antigamente se pensava que em alguns punhados de bagos vermelhos havia glicosídeo suficiente para ser fatal, mas manusear as folhas era na verdade tão seguro quanto estar em casa.

Dogger ergueu um cotovelo e olhou para baixo, em minha direção, através da articulação do braço.

— Obrigado, senhorita Flavia — disse ele. — Vou tomar o máximo cuidado.

Embora seja agradável pensar em veneno qualquer que seja a estação do ano, há algo especial em relação ao Natal, e eu me vi sorrindo. Era o que eu estava fazendo quando a campainha da porta soou.

— Eu atendo — eu disse.

Uma rajada de neve atingiu meu rosto quando abri a porta. Enxuguei os olhos, só parcialmente incrédula, pois lá no pátio de acesso estava o ônibus de Cottesmore, com espirais de vapor subindo agourentas da tampa do radiador. O motorista, Ernie, estava plantado na minha frente, cavoucando a dentadura com um palito de latão.

— Desçam! Desçam! Olhem onde pisam! — gritava ele por cima do ombro para a coluna de pessoas que desciam da porta aberta do ônibus. — Os seus atores — acrescentou — chegaram.

Eles passaram marchando e entraram no foyer como turistas invadindo a National Gallery na hora da abertura – devia haver uns trinta ao todo: de casacos, xales, galochas, bagagem de mão e pacotes alegremente embrulhados. Eles iam ficar em Buckshaw, lembrei-me, para o Natal.

Uma última retardatária estava tendo dificuldades com os degraus. Ernie avançou para ajudá-la, mas ela dispensou o braço oferecido por ele.

— Eu posso me arranjar — disse ela bruscamente.

Aquela voz!

— Nialla! — gritei. E de fato era ela.

Nialla Gilfoyle era a assistente de Rupert Porson, o bonequeiro viajante que chegara a um fim um tanto horripilante no salão paroquial de São Tancredo. Eu não a via desde o verão, quando ela partira de Bishop’s Lacey de péssimo humor.

Mas tudo aquilo parecia ter sido esquecido. Ali estava ela nos degraus da entrada de Buckshaw, vestindo um casaco verde e um alegre chapéu enfeitado com frutinhas vermelhas.

— Vamos, me dê um abraço — disse ela, abrindo os braços de lado a lado.

— Você tem cheiro de Natal — eu disse, notando pela primeira vez a grande protuberância que se interpunha entre nós.

— Oito meses! — disse ela, recuando um passo e abrindo seu casaco de inverno. — Dê uma olhada.

— Uma olhada na Mamãe Gansa? — perguntei, e ela riu agradecida. Nialla desempenhara o papel de Mamãe Gansa no espetáculo de marionetes do falecido Rupert, e eu esperei que minha piadinha não despertasse lembranças infelizes.

— Não mais Mamãe Gansa — disse ela. — Apenas a velha e simples Nialla Gilfoyle, senhorita. Atriz independente de comédia, tragédia e pantomima. Solicite meus serviços à agência Withers, Londres. Endereço telegráfico WITHAG.

— Mas o espetáculo de marionetes...

— Vendido — disse ela —, completo, com tudo incluso, a um sujeito simpático de Bournemouth. Me rendeu o bastante para alugar um apartamento, para o bebê ter um teto quando janeiro chegar e ele ou ela finalmente entrar de maneira gloriosa em cena.

— E você está estrelando isto? — perguntei, acenando a mão para incluir todo o alvoroço no foyer.

— Estrelando, dificilmente. Eu assumi o papel menos que desafiador de Anthea Flighting, a filha grávida, de Boaz Hazlewood, que é Desmond Duncan.

— Pensei que ele fosse solteiro. Ele não corteja Phyllis Wyvern?

— Sim, ele é. E ele corteja, mas tem um passado.

— Ah. Entendo. — Embora não entendesse.

— Deixe-me olhar para você — disse ela, segurando meus ombros e afastando a cabeça. — Você cresceu... E está com as bochechas um pouco coradas.

— É o frio — disse eu.

— Falando nisso — disse ela com uma risada —, vamos entrar antes que a bolota do meu umbigo congele e despenque.

— Senhorita Nialla — disse Dogger quando fechei a porta atrás de nós. — É um prazer tê-la de volta em Buckshaw.

— Obrigada, Dogger — disse ela, apertando a mão dele. — Eu nunca esqueci a sua bondade.

— O bebê vai chegar logo — disse ele. — Em janeiro?

— Na mosca, Dogger. Você tem um bom olho. Em vinte e cinco de janeiro, de acordo com o meu médico. Ele disse que não me fará mal nenhum partir para esta aventura, desde que abra mão dos cigarros, durma bastante, coma bem e fique com os pés para cima sempre que não estiver na frente de uma câmera.

Ela me deu uma piscadela.

— Muito bons conselhos — disse Dogger. — Muito bons conselhos, realmente. Espero que tenha viajado com conforto no ônibus.

— Bem, ele sacode um bocado, mas era o único transporte que a Ilium Filmes podia nos oferecer da estação de Doddingsley. Graças a Deus que aquela coisa é um buldogue velho tão grande e pesado. Ele conseguiu se manter na estrada, apesar de toda a neve.

A essa altura, Marion Trodd já tinha pastoreado os outros para os andares superiores, deixando o foyer vazio, a não ser por nós três.

— Vou acompanhá-la até o seu quarto — disse Dogger, e Nialla me deu uma girada de polegares como Laurel e Hardy enquanto ele a levava embora.

Mal eles haviam desaparecido escada acima, a campainha da porta tocou de novo.

Cianeto sofredor! Será que eu teria de passar o resto da minha vida como porteira?

Mais uma rajada de flocos gelados e ar frio.

— Dieter!

— Olá, Flavia. Eu trouxe algumas cadeiras do vigário.

Dieter Schrantz, alto, loiro e belo, como eles dizem no rádio, estava à porta, sorrindo para mim com seus dentes perfeitos. O súbito aparecimento de Dieter era um pouco desconcertante. Era algo como ter o deus Thor entregando móveis pessoalmente.

Como um devoto da literatura inglesa, em especial das irmãs Brontë, Dieter optara por ficar na Inglaterra depois de ser libertado como prisioneiro de guerra, esperando algum dia ensinar O morro dos ventos uivantes e Jane Eyre a estudantes ingleses. Ele também tinha esperanças, eu acho, de se casar com minha irmã Felinha.

Atrás dele, no pátio de acesso, o ônibus de Cottesmore tinha sido substituído por um trator Ferguson cinzento que engasgava quietamente na neve, e atrás dele um trailer com altas pilhas de cadeiras dobráveis, quase de todo cobertas por uma lona.

— Eu seguro a porta para você — ofereci. — Você vem para o espetáculo esta noite?

— É claro! — sorriu Dieter. — O seu William Shakespeare é um escritor quase tão grande quanto Emily Brontë.

— Cai fora — eu disse. — Você está me enrolando.

Era uma expressão que a sra. Mullet usava. Nunca pensei que eu a tomaria emprestada.

De fardo em fardo, cinco ou seis de cada vez, Dieter carregou as cadeiras para dentro da casa até que finalmente todas elas ficaram enfileiradas no foyer, todas de frente para o palco improvisado.

— Venha até a cozinha e tome um pouco do famoso chocolate da senhora Mullet — eu disse. — Ela faz flutuar pequenas ilhas de chantili lá dentro, com ramos de alecrim partidos fingindo de árvores.

— Não, obrigado. É melhor eu voltar. Gordon não gosta quando eu...

Um sorriso largo se espalhou pela face de Dieter.

— Muito bem, então — disse ele — Mas só uma ilha de chantili, nada mais.

— Felinha! — berrei para a sala de estar. — Dieter está aqui!

Não tem sentido gastar um precioso couro de sapato. Além disso, Felinha tinha suas próprias pernas.


9

— MUITO BEM, MUITO BEM, MUITO BEM! — disse a sra. Mullet. — E como vai tudo na fazenda Culverhouse?

— Muito tranquilo — disse Dieter. — Talvez seja a estação do ano.

— Sim — disse ela, embora cada um de nós soubesse que não era bem assim. Seria um Natal amargo para os Ingleby depois dos eventos do último verão.

— E a senhora Ingleby?

— Tão bem quanto se pode esperar, eu acredito — disse Dieter.

— Eu prometi a Dieter uma xícara de chocolate — disse eu. — Espero que não seja trabalho demais...

— Chocolate é a minha especialidade — disse a sra. Mullet —, como você sabe muito bem. Chocolate nunca é trabalho demais em nenhuma casa que é administrada como se deve.

— Melhor fazer três xícaras — eu disse. — Felinha estará aqui em... seis... cinco... quatro... três...

Meus ouvidos já tinham captado o som de seus passos apressados.

Apressados? Ela estava galopando a toda!

— ... dois... um...

Um instante depois a porta da cozinha se abriu devagar, e Felinha entrou andando de lado displicentemente na sala.

— Oh! — disse ela, arregalando os olhos de surpresa. — Oh, Dieter... Eu não sabia que você estava aqui.

O diabo, que não sabia! Eu podia ver através dela como de uma vidraça.

Mas os olhos de Felinha não eram nada em comparação com os de Dieter. Ele praticamente deixou cair o queixo diante de seu vestido de seda verde.

— Ophelia! — disse ele. — Por um momento, pensei que você fosse...

— Emily Brontë — disse ela, deleitada. — Sim, eu sabia que você pensaria isso.

“Se ela não sabia que ele estava aqui, pensei, como poderia saber que ele a confundiria com sua amada Emily?” Mas Dieter, perdidamente apaixonado, não notou.

Tive de admirar minha irmã Felinha. Ela era tão escorregadia quanto um porco ensebado.

Embora eu saiba que isto é impossível em termos científicos, pareceu que a sra. Mullet foi capaz de ferver leite mais depressa que qualquer pessoa no planeta. Com o fogão Aga já tão quente quanto uma fornalha de alquimista e mexendo o tempo todo, ela foi capaz, num piscar de olhos, de conjurar xícaras fumegantes de chocolate, cada qual com sua própria ilha tropical e palmeira de mentira.

— Está muito quente aqui — Felinha sussurrou para Dieter, como se pudesse me impedir de ouvir. — Vamos para a sala de estar.

Quando eu fiz menção de ir atrás, ela me lançou um olhar que queria dizer com clareza: “E se você se atrever a nos seguir, está morta como um pato em estande de tiro”.

Naturalmente, eu fui atrás andando como uma pata-choca.

“Quá-quá-quá!”, pensei.

*  *  *

— Vocês comemoravam o Natal na Alemanha? — perguntei a Dieter. — Antes da guerra, quero dizer?

— É claro — disse ele. — Papai Noel nasceu na Alemanha. Você não sabia?

— Eu sabia — disse eu. — Mas devo ter esquecido.

— “Weihnachten”, é como o chamamos. São Nicolau, a árvore de Natal iluminada... São Nicolau traz doces para as crianças no dia 6 de dezembro, e Weihnachtsmann traz presentes para todos na véspera de Natal.

Ele disse isso olhando provocadoramente para Felinha, que dava uma espiada sorrateira para si mesma no espelho.

— Dois Papais Noéis? — perguntei.

— Mais ou menos isso.

Dei um suspiro interior de alívio. Mesmo que eu conseguisse trazer um deles para baixo e impedi-lo de fazer sua ronda, haveria ainda um de reserva para cumprir o que quer que restasse do trabalho daquela longa noite. Pelo menos na Alemanha.

Felinha esvoaçara até o piano e se acomodara no banquinho como uma borboleta migratória. Ela tocou as teclas tentativamente sem pressioná-las, como se, caso estivesse tocando a combinação errada, fosse fazer o mundo explodir.

— É melhor eu voltar — disse Dieter, esvaziando a xícara até a borra.

— Ah, você não pode ficar? — disse Felinha. — Eu estava esperando que você pudesse traduzir algumas das anotações na minha edição fac-símile de O cravo bem temperado, de Bach.

— Deviam chamar isso de O cravo mal temperado quando você toca — disse eu. — Ela pragueja como o diabo quando erra um acorde — expliquei a Dieter.

Felinha ficou vermelha da cor do tapete. Ela não se atreveu a me estapear na frente da visita.

Com sua cara vermelha e seu vestido verde, ela me lembrou de alguma coisa que eu vira recentemente em algum suplemento em cores. O que seria...?

Ah, sim! Era isto.

— Você parece a bandeira de Portugal — eu disse. — Vou deixar vocês sozinhos, para que possam acenar um “tchau”.

Eu sabia que iria pagar pela minha insolência depois, mas a gargalhada jovial de Dieter valeu o risco.

A casa, geralmente tão fria e silenciosa, transformou-se de súbito em uma colmeia de abelhas. Carpinteiros martelavam, pintores pintavam, e diversas pessoas olhavam para diversas partes do foyer através de molduras improvisadas encostando polegares e esticando os dedos.

Um número espantoso de luzes foi instalado, algumas penduradas por grampos em andaimes esquálidos, outras montadas sobre esguios suportes de chão. Fios e cabos pretos passavam tortuosos por toda parte.

Esticando os braços para me equilibrar, naveguei através da sala, fingindo andar através de um fosso cheio de serpentes adormecidas – serpentes venenosas que poderiam acordar a qualquer momento e...

— Ei! Flavia!

Ergui os olhos e vi a cara vermelha de Gil Crawford, o eletricista da aldeia, sorrindo para mim através da estrutura de um andaime alto que fora montado para passar por cima da grande porta da frente. Gil tinha sido de grande ajuda ao trazer de volta à vida alguns dos dispositivos elétricos mais frankensteinianos do laboratório do tio Tar, e até dedicou algum tempo para me treinar no manuseio seguro de certos instrumentos de alta voltagem.

— Lembre-se sempre — ele me ensinou a recitar:

“O fio marrom é o fio vivo,

O fio azul é o que se liga no neutro,

O verde-amarelo na terra, e assim a eletricidade

Não faz você acordar na eternidade.”

No que diz respeito a fios e eternidade, dizem que Gil é uma espécie de especialista.

— Ele foi um comando durante a guerra! — sussurrara certa vez a sra. Mullet enquanto destripava um coelho na mesa da cozinha. — Eles eram ensinados a “gavotear” as pessoas com uma corda de piano no pescoço. Eeeeeca!

“Garrotear”, ela queria dizer. Fez uma careta medonha, os olhos revirados, a língua pendurada para fora pelo canto da boca a título de ilustração.

— “Rápido como piscar um olho”, diz Alf. No minuto seguinte a vítima se vê sentada em uma nuvem com uma harpa na mão e se perguntando onde diabos o mundo foi parar.

— Senhor Crawford! — eu gritei para Gil lá em cima. — O que está fazendo aqui?

— Mantendo as velhas mãos ocupadas — gritou ele de volta por cima do estrépito das marteladas.

Pus um pé na escada ao lado do andaime e comecei, uma mão acima da outra, a me içar.

No topo, saí para as tábuas largas que formavam um piso improvisado.

— Eu costumava mexer com essa brincadeira de cinema quando era um rapazinho aprendiz. — Ele sorriu, muito orgulhoso. — Dá para manter meus pagamentos em dia, só por garantia. Hoje em dia, nunca se sabe, não é?

— Como está a senhora Crawford? — perguntei.

Sua esposa, Martha, me convidara havia pouco tempo para um chá enquanto ela revirava uma caixa cheia de válvulas descartadas à cata de um obsoleto retificador para tubo fluorescente de radiofrequência – pelo qual ela não aceitou nem um centavo. Era uma dívida que eu, até agora, não conseguira pagar.

— Excelente — disse ele. — Realmente excelente. Ela ficou cuidando da loja para que eu pudesse vir para esta diversão.

Ele continuou trabalhando enquanto falava, prendendo um segundo refletor comprido e focinhudo a uma cruzeta tubular com um par de braçadeiras.

— Também é a época mais atarefada do ano. Já vendi três aparelhos de rádio e três gramofones só esta semana, e ela também, uma torradeira para quatro fatias e um porta-ovo quente. Imagine só!

— Você deve ter uma vista linda das coisas aí de cima — observei.

— E tenho mesmo — disse ele, apertando o último parafuso. — Engraçado você dizer isso. É a mesma coisa que aquele alemão de Culverhouse me disse quando saiu. “Longe da multidão enlouquecedora”, ele gritou para mim. Fala difícil demais, mas apesar de tudo é um bom sujeito.

— Sim, o nome dele é Dieter — disse eu. — Ele estava citando Thomas Hardy.

Gil coçou a cabeça.

— Hardy? Não conheço. Mora aqui por perto?

— É um escritor.

Como qualquer irmã de rato de biblioteca, eu sabia os títulos de um milhão de livros que não tinha lido.

— Ah! — disse ele, como se isso resolvesse o assunto. – Agora é melhor você descer rápido daqui. Se o chefe descobrir você aqui em cima, nós dois vamos ficar em papos de aranha.

— Palpos de aranha — disse eu. — Você quer dizer Latshaw?

— Sim, é isso — disse ele mansamente. — Palpos. — E voltou sua atenção para uma caixa de gelatinas coloridas.

Eu já tinha quase chegado ao fim da escada quando vislumbrei um rosto perto demais para me sentir confortável. Pulei para o chão e fiz meia-volta para descobrir que estava quase pisando nos dedos dos pés de Latshaw.

— Quem mandou você subir lá em cima? — perguntou ele, o bigode avermelhado eriçado.

— Ninguém — disse eu. — Estava trocando uma palavra com o senhor Crawford.

— O senhor Crawford está ganhando cinquenta por cento de extra por um breve período nos feriados — disse ele. — Ele não tem tempo para conversa fiada; tem, senhor Crawford?

Essa última parte ele gritou alto o bastante para que todos ouvissem. Dei um passo atrás e dei uma olhada para Gil lá em cima, que estava lidando com o seu refletor, mas devia ter ouvido.

— Desculpe — eu disse, conscientizando-me do súbito silêncio que caíra sobre o foyer.

— Aceite o meu conselho, mocinha — disse Latshaw —, e fique em seus aposentos. Não temos tempo para perturbações.

Na minha cabeça, Latshaw já estava estrebuchando no chão, a cara inchada, os olhos pulando fora das órbitas, segurando a barriga com as duas mãos, implorando pelo antídoto para envenenamento por cianeto.

“Ajudem-me! Por favor, ajudem-me!”, gritava ele. “Eu farei qualquer coisa! Qualquer coisa!”

“Muito bem então”, eu dizia a ele, entregando-lhe com relutância um béquer no qual eu misturara cuidadosamente proporções calibradas de sulfato ferroso, potassa cáustica e óxido de magnésio em pó, “mas, no futuro, você precisa aprender a se dirigir de modo apropriado aos seus superiores”.

Talvez Latshaw fosse capaz de ler pensamentos, talvez não, mas ele se virou, saiu marchando abruptamente e começou a descarregar toda a sua irritação em cima de um carpinteiro que não estava martelando um prego do jeito certo.

Naquele exato instante, um grito horrível de gelar o sangue ecoou de algum lugar na parte superior da casa.

— Não! Nãããããããoooo! Deixe-me em paz!

Eu o reconheci imediatamente.

Todos os olhos se voltaram para cima quando passei voando pelos trabalhadores e subi a escada. No patamar, uma das atrizes estendeu a mão para me deter, mas eu me livrei dela e continuei minha disparada até o topo e pelos corredores do primeiro andar, e as batidas dos meus pés eram o único som no silêncio espectral que de repente caíra sobre a casa.

Estranhos saíram do caminho para me deixar passar, as mãos na boca, o rosto congelado de... o que era aquilo? Medo?

— Não! Não! Afastem-se! Não encostem em mim! Por favor! Não deixe que eles encostem em mim!

A voz vinha do boudoir de Harriet. Abri a porta bruscamente.

Dogger estava encolhido em um canto, uma de suas mãos trêmulas agarrando o pulso da outra diante do rosto.

— Por favor — gemeu ele.

— Deixem-no em paz! — gritei para seus fantasmas. — Fora daqui, e deixem-no em paz!

E então bati a porta com violência.

Fiquei perfeitamente imóvel, esperei até não poder aguentar mais – cerca de dez segundos, eu acho – e então disse:

— Está tudo bem, Dogger, eles se foram. Eu os mandei embora. Está tudo bem.

Dogger tremia atrás das mãos, o rosto da cor de cinzas, olhando para mim sem ver. Meses haviam se passado – meio ano, talvez – desde que ele sofrera um episódio semelhante, no mais alto grau de terror, e eu sabia que dessa vez iria durar algum tempo.

Caminhei lentamente até a janela e fiquei olhando para fora, através de uma grinalda de geada. À esquerda, no meio da neve que caía sem parar, os caminhões da Ilium Filmes estavam quase escondidos sob o espesso cobertor branco, como se no final do dia, ao escurecer, tivessem se recolhido para um sono hibernal.

Atrás de mim, Dogger soltou um gemido patético.

— Está nevando de novo — eu disse. — Imagine só.

No silêncio, quase dava para ouvir os flocos caindo.

— Não é incrível que, com esse número de flocos de neve, ninguém jamais pensou em escrever um livro chamado A química da neve?

Havia silêncio atrás de mim, mas eu não me voltei.

— Pense só, Dogger, em todos aqueles átomos de hidrogênio e oxigênio dando-se as mãos e dançando em roda para formar um floco de neve com seis lados. Às vezes eles se formam em volta de uma partícula de pó; pelo menos é o que diz a enciclopédia, e por causa disso a forma fica desfigurada. Flocos de neve corcundas. Imagine só!

Ele se agitou um pouco, e então continuei:

— Pense nos bilhões de trilhões de flocos de neve e nos bilhões de trilhões de moléculas de hidrogênio e oxigênio em cada um deles. Faz você se perguntar, não é, quem escreveu as leis para o vento e a chuva, a neve e o orvalho? Já tentei chegar a uma conclusão, mas isso faz minha cabeça girar.

Eu podia ver Dogger três vezes refletido no espelho triplo sobre a penteadeira de Harriet enquanto ele lutava lentamente para se pôr em pé e conseguiu, afinal, com os braços pendendo flácidos ao seu lado.

Voltei-me da janela e, pegando uma das mãos dele, levei--o, arrastando os pés, até a cama de Harriet, amarfanhada e coberta por um dossel.

— Sente-se aqui — eu disse. — Só por um minuto.

Para minha surpresa, Dogger obedeceu e se deixou cair pesadamente na beirada da cama. Eu pensara que ele iria rejeitar a própria ideia de sentar-se no santuário do pai a Harriet, mas o fato de que ele não fez isso talvez se devera à sua confusão mental.

— Ponha os pés para cima — eu lhe disse —, enquanto eu ponho em ordem os meus pensamentos.

Empilhei um monte de travesseiros fofos e brancos como a neve sob as costas dele.

Em uma velocidade glacialmente lenta, Dogger foi relaxando, até que por fim ficou reclinado no que parecia, ao menos, uma posição confortável.

— Água rígida, poderíamos chamá-lo — eu disse. — O livro, quero dizer. Sim, esse nome talvez seria mais atraente. Água rígida, gosto muito disso. Espero que algumas pessoas o comprem pensando que é uma história de detetive, mas tudo bem. Nós não nos importamos, não é?

Mas Dogger já estava adormecido, o peito subindo e descendo em ondas suaves, e se a pequenina ruga no canto de sua boa não era a semente de um sorriso, era, talvez, um alívio para sua agonia.

Eu o cobri até o queixo com uma manta de lã e voltei para a janela. E lá, pelo que poderia ter sido uma eternidade, fiquei olhando para fora, para a escuridão crescente, para o frio, soprando universos de hidrogênio e oxigênio.


10

ÀS CINCO E MEIA O POVO de Bishop’s Lacey começou a chegar. Primeiro, as senhoritas Puddock, Lavinia e Aurelia, proprietárias da Casa de Chá São Nicolau.

Por incrível que pareça, essas duas relíquias tinham caminhado mais de um quilômetro e meio através de profundos acúmulos de neve, e agora suas caras redondas brilhavam como pequenos fornos vermelhos.

— Nós não queríamos chegar atrasadas, então saímos cedo — disse a srta. Lavinia, olhando em volta apreciativamente para o foyer decorado. — Muito, muito presunçoso, não é, Aurelia?

Eu sabia que elas estavam avaliando a situação, farejando as possibilidades de serem solicitadas a se apresentar. As srtas. Puddock tinham conseguido se insinuar em todas as apresentações públicas de Bishop’s Lacey desde sempre, e eu sabia que neste exato momento, convenientemente enfiadas nas profundezas da bolsa da srta. Lavinia, estariam as partituras de “A última batalha de Napoleão”, “Bendemeer’s Stream” e “Annie Laurie”, no mínimo.

— Ainda falta uma hora e meia — eu lhes disse. — Mas vocês já podem sentar. Posso levar seus casacos?

Com Dogger fora de ação, eu decidira assumir os deveres de porteiro. Eu certamente praticara o bastante durante o dia! O pai iria ficar furioso, é claro, mas eu sabia que ele iria me agradecer quando estivesse a par dos fatos. Bem, talvez não me agradecer, mas pelo menos me poupar de um de seus sermões de três horas.

Mas, por ora, o pai não estava visível em lugar algum. Era como se, tendo recebido o pagamento pelo uso de Buckshaw, ele não tivesse mais nenhuma obrigação. Ou, talvez, estivesse com vergonha de mostrar a cara...

A equipe de filmagem dava os toques finais no palco improvisado, ajustando as luzes e colocando altas trombetas de cestaria cheias de flores em posição, uma de cada lado do pátio de faz de conta, quando a campainha da porta tocou.

Apertando bem meu suéter em volta dos ombros, abri a porta e me vi praticamente nariz com nariz com um estranho total. Ele estava envolvido em um sobretudo cáqui sem nenhuma insígnia, o qual, eu tinha absoluta certeza, fora fornecido por algum exército.

Ele era baixo, sardento e mascava goma do mesmo modo que um cavalo masca uma maçã.

— Aqui é Buckshaw? — perguntou ele.

Confirmei que era.

— Eu sou Carl — anunciou ele. — Pode dizer à sua irmã mais velha que estou aqui.

Carl? Irmã mais velha?

É claro! Era Carl de St. Louis, Missouri. Carl, o americano que dera a Felinha a goma de mascar que eu surrupiara de sua gaveta de lingerie – Carl que lhe dissera que ela era a imagem escarrada de Elizabeth Taylor em A mocidade é assim mesmo; Carl que ensinara a ela como soletrar Mississippi.

Havia americanos, lembrei, que tinham compartilhado o aeródromo com um esquadrão de Spitfires em Leathcote, e uns poucos deles, como Dieter, escolheram ficar na Inglaterra no fim da guerra, e Carl devia ser um deles.

Ele segurava um pequeno pacote, quase todo escondido por uma floresta de fitas verdes com pirulitos de bengala vermelha e branca pendurados por todos os lados.

— Camel? — perguntou ele, sacando um maço de cigarros com as pontas dos dedos e destramente abrindo-o ao mesmo tempo com o polegar, como um truque de ilusionista.

— Não, obrigada — eu disse. — O pai não permite fumar dentro da casa.

— Não permite, é? Bem, então acho que vou ter de segurar meu fogo por um tempo. Diga a Ophelia que Carl Pendracka está aqui e está pronto para um boogie-woogie!

Bom Deus!

Carl passou por mim e entrou displicentemente no foyer.

— Ei! — disse ele. — Belo lugar você tem aqui. Parece que estão fazendo um filme, certo? Sabe de uma coisa? Eu vi Clark Gable uma vez em St. Louis. No Spiegel’s. O Spiegel’s é de onde veio isto...

Ele deu uma sacudida no presente.

— Minha mãe foi buscar para mim. Enfiou no meio dos Camels. Clark Gable olhou diretamente para mim naquele dia no Spiegel’s. O que você diz disso?

— Vou dizer à minha irmã que você está aqui — respondi.

— Felinha — eu disse à porta da sala de estar —, Carl Pendracka está aqui, pronto para um boogie-woogie.

O pai ergueu os olhos das páginas de seu London Philatelist.

— Mande-o entrar — disse ele.

O diabinho dentro de mim arreganhou um sorriso e se deu um abraço por antecipação.

Fui apenas até o fim do corredor e acenei para Carl com um indicador dobrado e desdobrado.

Ele veio obedientemente.

— Belo lugar você tem aqui — disse ele, tocando os lambris escuros com apreciação.

Segurei a porta do estúdio aberta, dando o melhor de mim para imitar Dogger em seu papel de lacaio: uma expressão no rosto e uma postura especial que indicavam um ávido interesse e, ao mesmo tempo, um ávido desinteresse.

— Carl Pendracka — anunciei, um tanto comicamente.

Felinha desviou os olhos de seu próprio reflexo para o de Carl no espelho enquanto este avançava com energia para onde o pai estava sentado, agarrava a mão dele e lhe dava um valente apertão.

Embora ele não demonstrasse, pude ver que o pai ficou desconcertado. Até Dafi ergueu os olhos de seu livro diante daquela falta de bons modos.

— A família de Carl pode estar relacionada com os Pendragons do rei Arthur — disse Felinha naquela voz fria e esnobe que ela usa para discussões genealógicas.

O pai não pareceu terrivelmente impressionado.

— Feliz Natal, senhorita Ophelia de Luce — disse Carl, estendendo para ela seu presente. Posso dizer que Felinha ficou dividida entre séculos de boa educação e o impulso de rasgar o presente como um leão rasgaria um cristão.

— Vá em frente; abra — encorajou Carl. — É para você.

O pai logo mergulhou de volta em seu jornal de selos enquanto Dafi, fingindo ter chegado a uma passagem especialmente emocionante em A casa abandonada, espiava de maneira furtiva por baixo de suas sobrancelhas franzidas.

Felinha ficou beliscando os laços e fitas lenta e meticulosamente, como um naturalista dissecando uma borboleta com uma pinça sob o microscópio.

“Rasgue de uma vez!”, tive vontade de gritar. “É para isso que servem os embrulhos!”

— Não quero estragar este lindo papel — disse ela com um sorriso afetado.

Pelos botões do Espírito Santo! Eu poderia tê-la estrangulado com a fita!

Carl, obviamente, sentiu-se do mesmo modo.

— Dê aqui — disse ele, tirando o embrulho das mãos de Felinha e enfiando os polegares através do papel dobrado nas pontas. — Vindo de St. Louis, Missouri.

Um pirulito de bengala caiu ruidosamente na lareira.

— Oh! — disse Felinha quando o embrulho se desfez. — Meias de náilon! Que lindas! Onde você as encontrou?

Até Dafi perdeu o fôlego. Meias de náilon são tão raras quanto fezes de unicórnio: o Santo Graal dos presentes.

O pai pulou de sua poltrona como se tivesse molas. Em um ápice ele atravessou a sala, e as meias de náilon, que ele arrancou das mãos de Felinha, ficaram penduradas em seus pulsos como víboras.

— Isto é ultrajante, meu jovem. Definitivamente indecente. Como se atreve?

Ele empurrou as meias para fora de suas mãos e braços e para dentro da lareira.

Fiquei olhando enquanto as meias de náilon se encolhiam, se retorciam e pretejavam nas chamas, transformadas pelo calor em seus elementos químicos (cloreto de adipoíla, eu sabia, e hexametilenediamina). Senti um pequeno arrepio de prazer quando as meias entregaram a alma em uma última, deliciosa chama tremeluzente. Seu derradeiro alento, um vestígio do gás letalmente venenoso cianeto de hidrogênio, flutuou pela chaminé acima e se foi. Em apenas alguns segundos, o presente de Carl não era mais que uma massa preta grudenta borbulhando sobre a lenha.

— Eu... eu não entendo — disse Carl.

Ele ficou olhando do pai para Felinha, para Dafi e para mim.

— Vocês, ingleses, são loucos de pedra — disse ele. — Simplesmente lunáticos.

— Lunáticos — Carl repetiu para mim no foyer, sacudindo a cabeça, incrédulo. Sacudindo em soluços, Felinha fugira para seu quarto, e o pai, em uma nuvem tempestuosa de dignidade ultrajada, se refugiara em seu estúdio.

— Pegue uma cadeira — eu disse e, quando a campainha tocou de novo, apresentei rapidamente Carl às senhoritas Puddock.

— Carl é de St. Louis, nos Estados Unidos — eu disse a elas e, quando cheguei à porta, os três já tagarelavam como se fossem amigos íntimos de uma vida inteira.

Na soleira da porta, como que para uma inspeção, estava Ned Cropper, de presente na mão e brilhantina no cabelo. Alguns passos atrás estava Mary Stoker.

A não ser por sua compleição avermelhada e um certo estrabismo, Mary poderia bem ser uma Madona na Galeria Nacional ali na soleira da porta, radiante na neve.

“Sem vagas na estalagem”, pensei, impiedosa.

— Ned! Mary! — exclamei um tanto alegremente.

Ned era um serviçal na Treze Patos, a única estalagem em Bishop’s Lacey, e Mary era a filha do dono. Eu sabia sem que ninguém me contasse que Ned trouxera mais um presente para Felinha: mais uma caixa daqueles chocolates Milady cheios de moscas de antes da guerra que ficavam na vitrina da confeitaria da srta. Cool, o conteúdo ligeiramente opaco graças a um bolor que poderia, é claro, se você tivesse um estômago forte o bastante, ser raspado antes de comer.

Os tributos de amor de Ned eram em geral deixados à porta da cozinha sob as sombras da Lua para serem trazidos para dentro repulsivamente pendurados entre o indicador e o polegar da sra. Mullet.

— Aqueles gatos vagabundos estiveram por aqui de novo — resmungava ela.

— Eu gosto do seu cabelo — eu disse a Mary. — Você manda cortar?

— Corto eu mesma, especialmente para o Natal — sussurrou ela. — Você gosta, de verdade?

— Ninguém daria uma segunda olhada para Phyllis Wyvern com você no recinto — eu disse, dando um aperto no braço dela.

— Oh, você! — riu ela, e deu uma palmada na minha mão um pouco mais forte do que pretendia.

— Peguem suas cadeiras — eu lhes pedi. — Vocês chegaram cedo, portanto podem escolher.

Eu sabia que Ned escolheria a primeira fila, e estava certa. Ele queria estar tão perto de Phyllis Wyvern quanto humanamente possível.

Um motor rugindo no pátio da frente anunciou que Dieter chegara com a primeira leva do público. Abri a porta bem no momento em que Fergie deu um solavanco e parou, seus faróis criando cornucópias de luz amarela nevoenta na neve que caía. Atrás do trator, transbordando de passageiros, com um par de aldeões precariamente empoleirados sobre os deslizadores, estava o trenó de Harriet.

Uma sombra passou diante do meu coração.

Como era triste pensar que, em algum lugar, Harriet devia ter morrido embaixo de uma neve como esta. Como pôde uma tragédia dessas acontecer no meio de tanta beleza?

Era assim com os fantasmas, pensei: eles apareciam nos momentos mais estranhos e nos lugares mais peculiares.

Eu não tive muito tempo para trazer à mente o rosto da minha mãe; as pessoas já se despejavam para fora do trenó e vinham para a porta, rindo e falando excitadas.

— Flavia! Haroo, mon vieux! Joyeux Noel!

Era Maximilian Brock, o diminuto pianista de concerto (aposentado) que trocara seu teclado e seu banquinho por uma carreira totalmente nova como a central de mexericos da aldeia. As pessoas sussurravam (mas não eu) que ele escrevera e vendera como ficção às revistas de romances as histórias mal disfarçadas de escândalos que recolhera em Bishop’s Lacey.

“Folhas de luxúria”, foi como Dafi as chamou.

— Você já viu Phyllis Wyvern? — perguntou Max. — Como ela se parece na vida real? As rugas dela parecem valas áridas ou isso é pura maldade da parte do disse-me-disse?

— Olá, Max — disse eu. — Sim, eu a vi, e ela nunca esteve mais adorável.

— E aquelas suas irmãs, ainda crescendo?

— Pergunte a elas você mesmo — falei, um pouco impaciente.

Mas, antes que ele pudesse formular mais uma pergunta, Max já estava aninhado ao lado da barriga substancial de Bunny Spirling, do Nautilus Old Hall, parecendo tanto com o sr. Pickwick que me deu arrepios instantâneos.

Com os polegares firmemente enganchados nos bolsos do colete, Bunny deu palmadinhas na barriga e ergueu suas narinas rosadas para o ar, como se estivesse farejando comida.

— Flavia — disse ele, sem pôr um grande esforço nisso antes de se afastar depressinha em cima de pés curiosamente delicados.

Depois que o trenó se esvaziou, Dieter descreveu um círculo apertado com o trator e o trenó no pátio coberto de neve e, com um aceno, partiu para a aldeia para mais uma carga.

Com Dogger sem condição de trabalhar, fiquei atarefada dando as boas-vindas aos recém-chegados e batendo papo com os velhos conhecidos. Era evidente que mais ninguém da minha família iria aparecer. Eles tinham obviamente decidido que a apresentação da noite era assunto do pessoal da filmagem e que não teriam necessidade de levantar um dedo. Eu estava por minha própria conta.

Não muito tempo antes da hora de começar, o vigário chegou bufando e arquejando ao foyer e batendo os pés.

— A neve está desabando como se todos os anjos e arcanjos estivessem depenando galinhas — disse ele.

Cynthia vacilou, fazendo uma careta diante daquela blasfêmia.

— O chefe de polícia Linnet me disse que todas as estradas entrando e saindo de Bishop’s Lacey estão irremediavelmente bloqueadas — prosseguiu ele —, e talvez continuem assim até que o pessoal das estradas de Hinley desimpeça sua própria área. É o preço que pagamos por ser forasteiros, por assim dizer, mas de qualquer jeito é um maldito inconveniente.

Marion Trodd se aproximou, espremendo-se através do tumulto.

— A senhorita Wyvern está pronta, vigário — disse ela. — Se você fizer a gentileza...

— É claro, minha querida. Diga-lhe que vou fazer um prefácio à sua apresentação com alguns comentários meus sobre o Fundo para o Novo Telhado, et cetera, e então o palco é todo dela. Ah, e do senhor Duncan, é claro. Meu Deus, não podemos esquecer do senhor Duncan.

Enquanto o vigário seguia para a frente, o pai, Felinha e Dafi, liderados por tia Felicity, entraram em fila no foyer lentamente e ocuparam seus assentos na fileira da frente. Como Ned ocupava a cadeira que deveria ser minha, fiquei nos fundos.

Girei os polegares para Nialla, e ela girou de volta, dando palmadinhas na barriga e revirando os olhos comicamente.

— Senhoras e senhores, amigos e vizinhos, e mais qualquer um que eu deixei de fora...

Houve risadinhas polidas para recompensar o vigário por sua gracinha espirituosa.

— Todos nós enfrentamos os elementos trovejantes esta noite para ilustrar o velho dito de que a caridade começa em casa. Se agora nos encontramos aquecidos e confortáveis no lar ancestral da família De Luce, isso se deve inteiramente às generosas graças do coronel Haviland de Luce (Bravo! Bravo!), para que possamos nos encontrar em um tempo tão inclemente para promover o telhado de São Tancredo, por assim dizer. Sem mais cerimônias, tenho o imenso prazer de introduzir a senhorita Phyllis Wyvern e o senhor Desmond Duncan. A senhorita Wyvern, é desnecessário acrescentar, é uma estrela do palco e das telas, que emocionou todos os nossos corações em produções como Whitehall Nellie, O verão secreto, Amor e sangue, O coração de vidro...

Ele parou um instante para puxar um pedaço de papel do bolso, limpar os óculos e então ler o que estava escrito:

— A filha do guarda-chaves, A trincheira na sala de estar, A rainha do amor... ahn... Sadie Thompson (um par de risadinhas nervosas e um assobio claramente provocador) e por fim, mas não menos importante, A esposa do reitor.

Aquilo foi saudado com aplausos gerais, porém estragado por uma única vaia isolada.

Cynthia continuou sentada, olhando diretamente para a frente, os lábios apertados.

— O senhor Duncan foi visto há bem pouco tempo em Artigos de guerra. E assim, sem mais preâmbulos, damos as boas-vindas a Bishop’s Lacey aos dois luminares da tela, a senhorita Phyllis Wyvern, assistida com competência pelo senhor Desmond Duncan, em sua mundialmente famosa interpretação de uma cena de William Shakespeare, Romeu e Julieta.

Não havia cortina para subir, mas, em seu lugar, as luzes foram apagadas, e, por alguns momentos, ficamos sentados no escuro.

Então um refletor perfurou a escuridão, focalizando um pequeno canteiro de limoeiros em vasos. Um letreiro em cima de um tripé de madeira nos informou que aquilo era o pomar dos Capuleto.

Eu me torci o suficiente para ver que o intenso facho de luz branca vinha do topo do andaime acima da porta. E que a figura curvada sobre um dos refletores de focinho comprido era Gil Crawford.

Romeu, na forma de Desmond Duncan, veio passeando para dentro do pomar sob um punhado de aplausos. Vestia uma malha cor de canela, por cima da qual havia um peculiar par de calções vermelhos de veludo que pareciam uma roupa de banho inflada. Usava camisa branca do tipo camponês, cheia de franzidos pomposos no pescoço e nas mangas, e seu berrante chapéu chato era decorado com uma pena de cauda de pavão.

Ele estendeu as mãos abertas para o público e fez uma série de pequenas curvaturas elaboradas antes de pronunciar sua primeira palavra.

“Vamos!” pensei. “Em frente com isso!”

— “Só zomba de cicatrizes quem nunca sofreu ferida.”

Mais uma pausa, mais um pouquinho de aplauso em reconhecimento daquela voz famosa.

— “Mas silêncio! Que luz através daquela janela rompe?”

Algumas palmas esparsas para mostrar que eles estão familiarizados com a fala.

— “É o Oriente, e Julieta é o Sol.

Ergue-te, formoso Sol, e mata a Lua invejosa...”

Outra vez ele pausou, olhando para cima com os olhos vidrados, fixos no balcão de Julieta, que permanecia, além do facho do refletor, na escuridão total.

— Luz! — comandou forte a voz de Phyllis Wyvern de algum lugar acima da cabeça de Romeu.

O momento foi congelado. Parecia se esticar mais e mais.

— “Ergue-te, formoso Sol, e mata a Lua invejosa...” — começou de novo Desmond Duncan, ainda não exatamente Romeu. Dava para ouvir um alfinete caindo na China.

— Refletor, droga! — disparou a voz da doce Julieta de dentro das trevas, e bem detrás de mim veio um estrondo deveras assustador, como se algum objeto de metal tivesse caído do andaime em cima dos ladrilhos do foyer.

— “...a Lua invejosa” — forçou Desmond Duncan.

— “Que já está doente e pálida de pesar,

Porque tu, sua serva, és mais formosa do que ela...”

Houve um súbito farfalhar de sedas quando Phyllis Wyvern desceu ventando do patamar pelos degraus, os pés aparecendo primeiro no perímetro do refletor de Romeu, e depois o vestido.

Seu traje era sem dúvida maravilhoso, uma criação castanho--amarelada, largo na barra, justo como o diabo na cintura e chocantemente baixo no pescoço. As pedras preciosas que orlavam o colo e as mangas rebrilharam faiscantes quando ela passou pelo clarão do refletor de Romeu, e um suspiro partiu do público diante do esplendor desusado que se materializara tão subitamente em seu meio.

Em seu cabelo trançado fora tecida uma grinalda de flores – flores reais, a julgar pela aparência –, e mordi o lábio, admirada. Como ela parecia jovem, linda e atemporal!

A verdadeira Julieta, se é que existiu uma, teria cuspido de inveja.

Ela veio descendo, e descendo, e por fim chegou ao foyer, suas sapatilhas de ponta produzindo um som ameaçador sobre os ladrilhos.

Ned Cropper recuou um pouco quando ela passou por ele a caminho da porta da frente.

“Ela está indo embora!”, pensei. “Ela está saindo!”

Eu me virei na cadeira, lutando para permanecer sentada, enquanto Phyllis Wyvern, depois de chegar ao andaime, segurou a escada de mão que levava a ele, pousou um pé delicadamente calçado com sapatilha sobre o primeiro degrau e começou a subir.

Ela subiu e subiu, e seu vestido elisabetano chispava centelhas de luz como um cometa ascendendo aos céus.

No topo, ela saiu para o liso de tábuas e avançou devagar até o lugar onde Gil Crawford estava observando sua aproximação boquiaberto.

Agarrando-se ao corrimão do andaime com uma das mãos, Phyllis Wyvern virou-se e, com a outra, estapeou com força o rosto de Gil.

O estalo agudo reverberou de um lado para outro pelo foyer, recusando-se a morrer.

A mão de Gil voou para a própria bochecha, e, mesmo na escuridão quase total, vi o brilho súbito de seus olhos aterrorizados.

Ela puxou para cima a barra do vestido e se esquivou de volta para a escada, que conseguiu descer com uma graciosidade surpreendente.

Sem olhar nem para a direita nem para a esquerda, Phyllis Wyvern seguiu como em uma procissão – não existe outro modo de descrever: ela parecia estar caminhando em grande pompa pelo corredor central da abadia de Westminster –; seguiu através do foyer até o pé da escada oeste, pela qual subiu, ainda segurando a saia em uma das mãos até o patamar, onde se voltou e assumiu uma pose junto ao corrimão do balcão de faz de conta de seu quarto.

Depois de uma pausa de parar o coração, um segundo refletor se acendeu com um clack audível, pegando-a em seu facho como se fosse algum tipo de traça exótica.

Ela juntou as mãos no peito, tomou um fôlego estremecido e pronunciou sua primeira fala:

— “Ai de mim!” — disse ela.

— “Ela fala!” — disse Romeu. — “Oh, fala de novo, anjo brilhante!” — prosseguiu ele, muito hesitante.

— “Pois és tão glorioso para esta noite, acima da minha cabeça,

Como um mensageiro alado dos céus

Aos olhos brancos revirados de mortais maravilhados que

voltam atrás para mirá-lo...”

Não pude deixar de pensar nos olhos de Gil Crawford.

— “Oh, Romeu, Romeu! — arrulhou ela. — “Por que és tu, Romeu?”

E assim por diante. O resto da apresentação foi apenas uma porção daquelas coisas de lua-junho-balão – um monte de húmus velho, na verdade —, e eu me vi desejando que eles tivessem escolhido alguma cena mais empolgante da peça, uma daquelas envolvendo toxicologia, por exemplo, que são as únicas partes realmente decentes de Romeu e Julieta.

Minhas irmãs e eu tínhamos sido forçadas a ouvir a peça em sua totalidade em uma das noites de quinta-feira sem rádio compulsórias do pai, durante as quais formei a opinião de que Shakespeare era bom com palavras, mas não sabia coisa nenhuma de venenos.

A diferença entre venenos e narcóticos parece ter-lhe escapado, e ele ficava completamente confuso quando o assunto eram aqueles irritantes vegetais e minerais que agem no cérebro e na medula espinhal.

A despeito de todo aquele abracadabra verborrágico sobre colher ervas à luz da Lua, os sintomas de Julieta indicavam o uso de nada mais misterioso do que o velho e simples cianeto de hidrogênio administrado em água potável.

Para todo o sempre, amém.

A essa altura, Phyllis Wyvern e Desmond Duncan estavam agradecendo os aplausos. Juntando as mãos como João e Maria, eles davam alguns passos na direção do público, depois recuavam e então avançavam de novo, como ondas beijando as areias da praia.

Corados de prazer, ou qualquer coisa assim, ambos transpiravam profusamente; a maquiagem, vista de perto, súbito tornava-se sepulcral à luz dos refletores.

Phyllis Wyvern estava tão perto de Ned que a boca dele se escancarava como a de um linguado na banca do peixeiro, a tal ponto que Mary precisou cutucá-lo nas costelas.

Olhei para cima bem a tempo de captar um vislumbre de uma figura escura desaparecendo nas sombras no topo da escadaria, logo acima do balcão improvisado de Julieta.

Era Dogger, e compreendi com um susto que ele estivera lá o tempo todo.


11

COM AS LUZES DO FOYER acesas de novo, tive minha primeira oportunidade de dar uma olhada na plateia inteira.

Na última fila, com uma cara feliz, estava sentado Dieter. A seu lado, mascando um caramelo de hortelã, estava o dr. Darby e, atrás dele, a sra. Mullet com o marido, Alf.

Cada um deles parecia tomado por algum transe, piscando os olhos num maravilhamento tolo, como se estivessem surpresos por ainda se encontrarem dentro do mesmo velho corpo.

O teatro, imagino, é uma forma de mesmerismo, e, se for esse o caso, Shakespeare, a despeito de suas deficiências químicas, foi certamente um dos maiores hipnotizadores que já viveram.

Eu tinha visto um encantamento sendo tecido perante meus olhos, quebrado por um tapa e, então, tecido de novo tão facilmente como uma vovó cerzindo uma meia. Era maravilhoso – uma maldita maravilha, na verdade – se você pensasse melhor a respeito.

Os atores agora tinham saído para remover a maquiagem, e a equipe de filmagem desaparecera para as partes mais altas da casa, para fazer o que quer que costumam fazer depois de uma apresentação. Eles não tinham ficado para se misturar com o público, mas isso talvez fosse parte do encantamento.

Uma rajada de frio percorreu o foyer de repente. Alguém abrira a porta da frente para tomar um pouco de ar fresco, arquejara violentamente, ouviram-se gritos, e agora todos, incluindo eu, estávamos nos amontoando para dar uma olhada para fora.

Um vento cortante começara a soprar durante a apresentação e juntara um monte de neve até a cintura à porta da frente.

Era muito fácil perceber que, com trator ou sem trator, com trenó ou sem trenó, ninguém iria para casa em Bishop’s Lacey nessa noite.

Ainda assim, Dieter foi valente o bastante para tentar. Enrolando-se em seu casaco pesado e escalando a montanha branca que aparecera tão de repente, ele logo se perdeu de vista na escuridão.

— É melhor telefonar para Tom McGully para trazer seu limpa-neves — disse alguém.

— Não adianta fazer isso — disse uma voz do canto oposto —, já que estou aqui.

Um riso nervoso se ergueu quando Tom veio para a frente e olhou para fora com o resto de nós.

— É neve de montão — disse ele, tornando aquilo, de algum modo, oficial. — Um imenso montão de neve.

As mãos de diversas senhoras procuraram a própria garganta. Os homens trocaram olhares rápidos, os rostos inexpressivos.

Dez minutos depois, Dieter estava de volta, recoberto de neve e sacudindo a cabeça.

— O trator não dá partida — anunciou ele. — A bateria morreu.

O vigário, como de costume, assumiu.

— Telefone para Bert Archer na oficina — disse ele a Cynthia. — Diga-lhe para trazer seu reboque. Se você não conseguir falar com Bert, deixe uma mensagem a Nettie Runciman na central telefônica.

Cynthia assentiu mal-humorada e saiu pisando duro em direção ao telefone.

— Senhora Mullet... Eu a vi em algum lugar... Senhora Mullet, acha que seria possível preparar um pouco de chá, e talvez chocolate, para os pequeninos?

A sra. Mullet saiu para a cozinha, feliz por ser uma das primeiras convocadas. Assim que ela desapareceu no corredor, Cynthia reapareceu.

— A linha está morta — anunciou ela em tom monocórdio.

— Muito bem, então — disse o vigário —, ao que parece estamos aqui pelo tempo que isto durar, então temos de nos arranjar, não é mesmo?

Surpreendentemente, foi decidido com pouca discussão que seria dada preferência às pessoas com crianças, que seriam autorizadas a se alojar, sempre que houvesse espaço suficiente, junto com a equipe de filmagem, à qual já haviam sido designadas acomodações no primeiro andar.

Em algum momento durante o processo, o pai apareceu brevemente e, com um par de dedos apontados e umas poucas palavras ao vigário, mobilizou a operação como se fosse um exercício militar de precisão. Ele então voltou a desaparecer em seu estúdio.

Os que não puderam ser acomodados no andar de cima teriam de dormir no foyer. Travesseiros e cobertores que não eram usados desde quando Harriet estava viva seriam trazidos de seus locais de armazenagem e entregues aos refugiados temporários.

— Vai ser como nos velhos tempos — disse a eles o vigário, esfregando as mãos vigorosamente. — Não muito diferente dos abrigos antibombas durante a guerra. Faremos disso um grande acontecimento, uma grande aventura. Afinal, não é como se já não tivéssemos feito isso antes.

Havia mais que um toque de Winston Churchill em sua voz.

O vigário organizou alguns jogos para as crianças: cabra-cega, esconde-esconde, com prêmios doados pelo dr. Darby – balinhas de hortelã, é claro – para os vencedores.

Os adultos falavam da vida alheia e riam baixinho pelos cantos.

Depois de algum tempo, as atividades mais ruidosas se reduziram a jogos de adivinhação.

Com o passar da noite, a falsa jovialidade foi sossegando. Apareceram bocejos, disfarçados de início, mas que acabaram se tornando abertos – e danem-se as delicadezas.

Crianças começaram a cochilar, e seus pais logo as seguiram. Não se passou muito tempo até que a maioria dos aldeões deslocados de Bishop’s Lacey tivesse caído no sono.

Mais tarde, enquanto eu estava aninhada sob o meu edredom, sozinha na vasta frieza de celeiro da ala leste, pude ouvir, por algum tempo, um murmurar abafado de conversação, como o zumbido de uma colmeia distante.

Depois de mais algum tempo, também isso acabou, e meus ouvidos detectaram apenas uma tosse ocasional.

Tinha sido um dia longo, muito longo, mas a despeito disso não pude dormir. Na minha cabeça, vi corpos amontoados, espalhados a esmo pelo foyer: montes adormecidos embaixo de seus cobertores.

Fiquei me virando na cama de um lado para outro aparentemente por horas a fio, mas não adiantou. Com certeza já estavam todos dormindo a essa altura, e ninguém seria perturbado se eu me arrastasse até o topo da escadaria e desse uma olhada. Com a ameaça muito real do pai perdendo a batalha para o cobrador de impostos, eu agora conscientemente salvava imagens para um tempo em que eu seria uma velha senhora – um tempo em que eu reviraria minhas lembranças de Buckshaw como se viram as páginas de um álbum de fotografias empoeirado.

“Ah, sim”, eu diria em minha voz trêmula de velha senhora, “me lembro daquela vez em que ficamos ilhados pela neve na véspera do Natal. Daquela noite de inverno em que Bishop’s Lacey veio a Buckshaw”.

Saí da cama e vesti minhas roupas geladas.

Me arrastei pelo corredor, parando de vez em quando para ouvir.

Nada.

Parei no topo da escadaria, olhando para baixo, para o abrigo improvisado.

Talvez por estarmos tão perto do Natal, havia algo de estranhamente tocante naquelas formas amontoadas, como se eu fosse um aviador, ou um anjo, ou até Deus, olhando de cima para baixo para todos aqueles humanos indefesos e adormecidos.

De algum lugar muito longe, na ala oeste, veio um som de música distante e de funéreas vozes gravadas.

Tão profundo era o silêncio na casa que fui capaz até de distinguir as palavras:

“Jamais esquecerei o castelo de Hawkhover.”

Phyllis Wyvern estava se assistindo de novo em um filme.

A música cresceu e, em seguida, morreu.

Embaixo, alguém rolou de lado e começou a roncar. De onde eu estava, podia ver Dieter, aconchegado contra o corrimão no patamar. “Esperto o bastante, pensei, para escolher um lugar mais alto para dormir, onde o ar é ligeiramente mais morno e o piso não é tão frio quanto os ladrilhos do foyer.”

No salão abaixo, a sra. Mullet respirava pesado, o braço displicentemente envolvendo Alf, como bebês na floresta.

Devagar, desci a escadaria, tomando um cuidado especial para passar na ponta dos pés pelo Dieter adormecido.

Do outro lado, encostada na parede, estava Cynthia Richardson, dormindo relaxada como um arcanjo de cartão de Natal, seu rosto lembrando Flora na pintura de Botticelli. Desejei ter uma câmera para poder preservar para sempre aquele vislumbre inesperado.

Ao lado dela, o vigário dormia, o cenho profundamente franzido.

— Hannah, por favor! Não! — sussurrou ele, e por um momento pensei que tivesse acordado.

“Quem era Hannah?”, me perguntei, “e por que o atormentava em seu sonho?”

Lá em cima, uma porta se fechou suavemente.

“Phyllis Wyvern”, pensei. “Ela acabou de assistir aos seus filmes por esta noite.”

Uma ideia maravilhosa se insinuou na minha cabeça.

Por que não conferir se ela queria conversar? Talvez, como eu, ela não estivesse conseguindo dormir.

Quem sabe ela estivesse se sentindo sozinha? Poderíamos ter um bom papo sobre assassinatos medonhos. E, sendo tão famosa, isso provavelmente significava que todos os seus amigos estavam só atrás do dinheiro, ou da glória.

Ela não teria ninguém com quem conversar sobre coisas que importam de verdade.

Além disso, seria uma oportunidade única na vida de ter uma estrela de cinema mundialmente famosa só para mim – ainda que por apenas uns poucos minutos.

Mas espere! E se ela estivesse cansada? E se ela ainda não tivesse superado aquela explosão selvagem em que estapeara a cara de Gil Crawford? Faria a mesma coisa comigo? Quase pude sentir a aguilhoada de sua mão na minha face.

Ainda assim, se eu contasse a Felinha que passara uma hora e tanto ociosamente batendo papo com Phyllis Wyvern, ela ficaria doente de ciúme!

Isso decidiu a questão.

Do pé da escadaria, saí na ponta dos pés através do foyer, escolhendo um caminho precário e serpenteante por entre os corpos adormecidos.

Enquanto eu ainda estava no meio do acampamento e a meio caminho da escadaria oeste, ouvi uma descarga de privada.

Congelei.

Um desagradável fato da vida em Buckshaw era que o instável labirinto de tubos que se fazia passar por encanamento já tinha visto dias muito, muito melhores. Já tinha, de fato, passado havia muito de sua vida útil quando a rainha Vitória estava no trono, se é permissível dizer uma coisa dessas.

Uma descarga aqui ou uma torneira aberta ali transmitiam grandes tremeliques e gemidos até os cantos mais remotos da casa, como alguma bizarra sinalização hidráulica de outra era.

Para colocar as coisas de um jeito mais simples, ninguém em Buckshaw tinha segredos – pelo menos no que concerne ao departamento de encanamentos.

Parei de respirar, até que o tremor dos canos se reduzisse a um distante matraquear. Ned, que estava encostado em uma parede com os pés esticados como se fosse uma boneca jogada no lixo, soltou um gemido, e Mary, cuja cabeça estava nos joelhos dele, virou de lado em seu sono.

Contei até cem, só para ter certeza, e comecei de novo a me insinuar por entre os corpos adormecidos.

Segui escadaria acima, um degrau de cada vez, contando-os enquanto subia: dez até o patamar, mais dez até o corredor de cima.

Ciente de que o décimo terceiro degrau a contar de baixo rangia de um jeito alarmante, dei um passo gigante para passar por cima dele em silêncio, me içando agarrada ao corrimão.

Passando o topo da escadaria, o corredor estava às escuras, e tive de apalpar o caminho. A porta forrada de feltro para a frente norte se abriu sem nenhum ruído.

Era a parte da casa que fora designada como alojamento; os lençóis empoeirados que normalmente cobriam os móveis tinham sido removidos, e os muitos quartos haviam sido preparados para a equipe de filmagem visitante.

Eu não tinha ideia de qual quarto tinha sido afinal designado a Phyllis Wyvern, mas o bom senso me disse que seria o maior: o Dormitório Azul – aquele normalmente ocupado por tia Felicity em suas visitas cerimoniais.

Uma réstia de luz embaixo da porta me disse que eu estava certa.

Dentro, algo mecânico estava funcionando: um zumbido, um gemido, pouco mais alto que um sussurro:

Pléf! Pléf! Pléf! Pléf! Pléf!

Que diabos poderia ser aquilo?

Bati de leve à porta, só com uma unha.

Ninguém respondeu.

Dentro do quarto, o ruído continuou:

Pléf! Pléf! Pléf! Pléf! Pléf!

Talvez ela não tivesse me ouvido.

Bati de novo, dessa vez com os nós dos dedos.

— Senhorita Wyvern — sussurrei junto à porta. — Está acordada? Sou eu, Flavia.

Ainda nenhuma resposta.

Ajoelhei e tentei espiar pelo buraco da fechadura, mas alguma coisa bloqueava minha visão. Quase certamente, a chave.

Quando me pus em pé, tropecei no escuro e caí contra a porta que, em um silêncio assustador, se abriu para dentro.

Do outro lado do quarto estava a grande cama com dossel, feita e revirada, mas sem ocupante.

À esquerda, sobre um suporte tubular nas sombras, um projetor de cinema rodava e rodava vazio, seu facho de luz branca e constante iluminando a superfície de uma tela em um tripé do lado oposto do quarto.

Embora o filme já tivesse passado totalmente pela máquina, sua ponta solta, como um chicote, ainda estalava a cada volta do carretel:

Pléf! Pléf! Pléf! Pléf! Pléf!

Phyllis Wyvern estava largada sobre uma bergère, os olhos cegos olhando com atenção para a tela vazia.

Em volta de sua garganta, como um colar de morte, havia um pedaço de filme de cinema, amarrado apertado, em um perfeito e elaborado laço negro.

Ela estava morta, é claro.


12

NOS MEUS ONZE ANOS DE VIDA, já vi uma porção de cadáveres. Cada um deles era interessante de um modo diferente, e esse não era exceção.

Como todos os outros eram homens, Phyllis Wyvern foi o primeiro cadáver feminino que eu vi e, como tal, pensei, merecia atenção especial.

Notei imediatamente o modo como a tela de cinema iluminada se refletia em seus olhos, dando por um momento a ilusão de que ela ainda estava viva, os olhos brilhando. Porém, apesar de os olhos dela ainda não terem começado a se embaçar – “ela não está morta há muito tempo”, pensei –, alguma coisa já começara a suavizar suas feições, como se o rosto estivesse sendo submetido a um jato de areia antes de uma nova pintura.

A pele já estava a caminho de assumir a coloração de massa de vidraceiro, e havia um matiz muito leve, porém nítido, de chumbo do lado de dentro dos lábios, que estavam ligeiramente abertos, revelando as pontas de seus dentes perfeitos. Umas poucas gotas de saliva espumante tinham ficado presas em cada canto da boca.

Ela não estava mais usando a fantasia de Julieta: vestia uma blusa de camponesa do leste europeu elaboradamente bordada, com um xale e uma saia volumosa.

— Senhorita Wyvern — sussurrei, muito embora soubesse que seria inútil.

Ainda assim, sempre existe aquela sensação de que uma pessoa morta está fazendo uma brincadeira de mau gosto e vai pular a qualquer momento e gritar “Buuu!”, para deixar você fora de si com o susto, e os meus nervos, embora fortes, não estão realmente preparados para isso.

Pelo que eu já lera e ouvira, sabia que em casos de morte súbita as autoridades, sejam policiais ou médicas, precisam ser convocadas de imediato, mas não foi o que eu fiz. Cynthia Richardson dissera que o telefone não estava funcionando, portanto a polícia, pelo menos por enquanto, estava fora de questão, e o dr. Darby dormia profundamente no andar de cima; eu o vira em minha passagem pelo foyer.

Não havia dúvida de que Phyllis Wyvern já estava além de qualquer possível ajuda médica, portanto minha decisão foi fácil: eu chamaria Dogger.

Fechando silenciosamente a porta do quarto atrás de mim, refiz meus passos através da casa – na ponta dos pés pelo foyer mais uma vez – até o quartinho de Dogger, no topo da escada da cozinha.

Dei três batidinhas na porta, depois uma pausa... mais duas batidinhas... mais uma pausa... e então duas lentas.

Eu mal tinha terminado quando a porta se abriu sobre as dobradiças silenciosas, e lá estava Dogger, em seu robe de chambre.

— Você está bem? — perguntei.

— Muito bem — disse Dogger depois de uma pausa quase imperceptível. — Obrigado por perguntar.

— Uma coisa horrível aconteceu com Phyllis Wyvern — contei a ele. — No Dormitório Azul.

— Entendo. — Dogger assentiu e desapareceu por um momento nas sombras de seu quarto e, quando voltou, estava usando um par de óculos. Devo ter ofegado um pouco, já que nunca soubera que ele usava óculos.

Nós dois, Dogger e eu, seguimos silenciosamente de volta para cima pelo caminho mais rápido, o foyer, o que envolvia mais uma jornada através dos corpos adormecidos. Se o momento não fosse tão sério, eu teria dado risada vendo as pernas compridas de Dogger procurando onde pisar como uma garça fazendo a travessia entre o estômago distendido de Bunny Spirling e o braço estendido da srta. Aurelia Puddock.

De volta ao Dormitório Azul, fechei a porta atrás de nós. Como minhas impressões digitais já estavam na maçaneta, não faria nenhuma diferença.

O projetor ainda fazia aquele ruído, Pléf! Pléf! Pléf! Pléf! Pléf!, enquanto Dogger andava devagar em volta do corpo de Phyllis Wyvern, agachando-se para olhar dentro de cada uma das orelhas dela e cada um dos olhos. Era óbvio que ele estava deixando o laço de filme em volta do pescoço dela para o final.

— O que você acha? — perguntei finalmente num sussurro.

— Estrangulamento — disse ele. — Veja aqui.

Dogger sacou do bolso um lenço de algodão e o usou para puxar para baixo uma das pálpebras inferiores de Phyllis, revelando diversos pontos vermelhos na superfície interior.

— Hemorragia local — disse ele. — Manchas de Tardieu. Asfixia por rápido estrangulamento. Definitivamente.

Ele então voltou a atenção para o laço negro de filme que envolvia a garganta, e uma carranca perpassou-lhe o rosto.

— O que é isso, Dogger?

— Seria de esperar mais lesões — disse ele. — Isso não ocorre invariavelmente, mas neste caso seria de esperar mais lesões.

Inclinei-me para ver mais de perto e vi que Dogger estava certo. Havia notavelmente pouca descoloração. O filme era preto contra o pescoço pálido de Phyllis Wyvern, a imagem de muitos de seus quadros bem visível: um close da atriz usando uma blusa de camponesa com babados contra um céu dramático com pequenas nuvens.

A percepção me atingiu como um martelo.

— Dogger — sussurrei. — Essa blusa, o xale e a saia são as mesmas roupas que ela estava usando no filme!

Dogger, que olhava pensativamente para o corpo, a mão no queixo, assentiu.

Por alguns momentos, houve um silêncio estranho entre nós. Até então, era como se fôssemos amigos, e eu sentia como se tivéssemos nos tornado colegas – talvez até parceiros.

Possivelmente eu me encorajara com a noite, muito embora pudesse ter sido uma sensação de outra coisa. Uma sensação estranha de atemporalidade pendia sobre o quarto.

— Você já fez isso antes, não fez? — perguntei subitamente.

— Sim, senhorita Flavia — disse Dogger. — Muitas vezes.

Eu sempre sentira que Dogger estava acostumado com cadáveres. Ele, afinal, sobrevivera a mais de dois anos em um campo de prisioneiros japonês, depois do que fora posto para trabalhar durante mais de um ano na notória Ferrovia da Morte na Birmânia, e cada um daqueles dias teria lhe proporcionado mais do que um contato superficial com a morte.

Além das histórias sussurradas pela sra. Mullet na cozinha, eu pouco sabia sobre o serviço militar de Dogger – ou, falando nisso, do meu pai.

Uma vez, enquanto eu observava Dogger aparando as roseiras no Visto, tentei questioná-lo.

“Você e o pai serviram o exército juntos, não é?”, perguntei, de um jeito tão despreocupado e espontâneo que me odiei por estragar tudo ainda antes de começar.

“Sim, senhorita”, disse Dogger. “Mas existem coisas sobre as quais não se deve falar.”

“Nem comigo?”, eu quis perguntar.

Eu queria que ele dissesse “Especialmente com você” ou coisa assim: algo que eu poderia contemplar com prazer nas horas após a meia-noite, mas ele não disse. Ele simplesmente estendeu a mão para o meio dos espinhos e, com um par de tesouradas precisas, decapitou a última rosa agonizante.

Dogger era assim – sua lealdade ao pai podia às vezes ser enfurecedora.

— Eu acho — dizia ele — que seria melhor você descer e acordar o doutor Darby... se não se importa, é claro.

— É claro — disse eu, saindo e seguindo para a escada.

Para minha surpresa, o dr. Darby não estava onde eu o vira na última vez: o lugar onde ele descansava estava vazio, e ele não estava à vista em lugar nenhum.

Enquanto eu pensava no que fazer, o dr. apareceu, saindo de debaixo da escada.

— O telefone não funciona — disse ele, como que consigo mesmo. — Eu queria ligar para Queenie e dizer a ela que ainda estou respirando.

Queenie era a mulher do dr. Darby, cuja terrível artrite a confinara a uma cadeira de rodas.

— Sim, a senhora Richardson tentou usá-lo na noite passada. Não está lembrado?

— É claro que sim — disse ele impaciente. — É só que eu esqueci.

— Dogger perguntou se você não gostaria de vir para cima — disse eu, tomando cuidado para não entregar nenhum detalhe, caso um dos adormecidos estivesse nos ouvindo com os olhos fechados. — Ele gostaria de ouvir o seu conselho.

— Vá na frente, então — disse o dr. Darby, surpreendentemente com pouca relutância.

— “... em meio à obscuridade que nos cerca” — acrescentou ele, extraindo sua primeira bala de hortelã do dia do bolso do colete.

Segui na frente escada acima até o Dormitório Azul, onde Dogger já estava agachado ao lado do corpo.

— Ah, Arthur — disse o dr. Darby. — Novamente o encontro no cenário.

Dogger olhou para cada um de nós com algo como um sorriso nos lábios e, então, se foi.

— É melhor chamar a polícia — disse o dr. Darby, depois de fazer o mesmo exame nos olhos de Phyllis Wyvern que Dogger já fizera.

Ele apalpou um dos pulsos flácidos e aplicou o polegar ao ângulo da mandíbula.

— A vida foi extinta, doutor? — perguntei. Eu ouvira a frase em um programa de rádio sobre Philip Odell, o detetive particular, e achei que soaria muito mais profissional do que “Ela está morta?”.

Eu sabia que estava, é claro, mas sempre gostei de ter minhas observações confirmadas por um profissional.

— Sim — disse o dr. Darby —, ela está morta. É melhor você acordar aquele alemão; Dieter, não é? Parece que ele é bom com esquis.

Quinze minutos depois eu estava na cocheira com Dieter, ajudando-o a prender os esquis em suas botas.

— Eles pertenciam à sua mãe? — perguntou ele.

— Eu não sei — disse eu. — Imagino que sim.

— São esquis muito bons — disse ele. — Madshus. São feitos na Noruega. Alguém cuidou bem deles.

“Deve ter sido o pai”, pensei. Ele vinha aqui de vez em quando, para sentar-se no velho Rolls-Royce de Harriet, como se fosse uma capela de vidro em um conto de fadas.

— Muito bem, então — disse Dieter afinal. — Vamos embora.

Fui atrás dele até o Visto, escalando com minhas botas de borracha um monte de neve após outro. Quando passamos pelo muro da horta da cozinha, vislumbrei por um instante um rosto à janela do motorista de um dos caminhões. Era Latshaw.

Acenei, mas ele não retornou minha saudação.

Quando a neve ficou profunda demais para seguir em frente, parei e fiquei olhando até Dieter se tornar não mais que um pequenino ponto preto nas vastidões nevadas.

Só quando não pude mais vê-lo eu voltei para a cocheira.

Eu precisava pensar.

Subi até o banco de trás do velho Rolls-Royce de Harriet e me envolvi em uma manta de viagem. Palavras como “quente” e “confortável” dançavam na minha cabeça.

Quando acordei, o relógio do Phantom II marcava cinco e quarenta e cinco da manhã.

— Que diabos! — exclamou a sra. Mullet, obviamente surpresa ao me ver entrando pela porta da cozinha. — Você vai congelar até a morte!

Dei de ombros no meu cardigã.

— Não me importo — eu disse, esperando um pouco de compaixão e talvez um adiantamento do pudim de Natal, um dos poucos pratos que ela cozinhava que eu considerava satisfatórios.

A sra. Mullet me ignorou. Ela se agitava atarefadamente de um lado para outro na cozinha, fervendo uma enorme chaleira cheia de pequenas mossas para o chá e fatiando pães recém-assados para as torradas. Era óbvio que o assassinato de Phyllis Wyvern ainda não tinha sido anunciado para o pessoal da casa.

— Ainda bem que eu guardei tanta coisa para o Natal, não é, Alf? Tenho um exército para alimentar, eu tenho. Foram entrando esta manhã como lordes e damas, todos eles, pisando duro ou não. Assim é com a neve: bastam alguns centímetros, e eles ficam todos indefesos.

Alf estava sentado no canto, passando geleia sobre um pedaço de bolo recheado de frutas secas.

— Indefesos — disse ele. — Como você diz.

— O que Papai Noel está trazendo para você este ano? — ele me perguntou de repente. — Talvez uma bonita bonequinha, com roupas diferentes e tudo isso?

Uma bonita bonequinha, realmente! Ele pensava que eu era o quê?

— Na verdade, eu tinha esperança de ganhar um gerador Riggs e um conjunto de frascos Erlenmeyer graduados — disse eu. — Utensílios científicos de vidro nunca são demais.

— Arrr — grunhiu ele, o que quer que isso significasse.

No entanto, o fato de Alf mencionar Papai Noel me lembrou que esta noite seria véspera de Natal.

Antes de dormir mais uma noite, eu iria escalar os telhados e chaminés de Buckshaw para ativar meu experimento químico.

— É Natal, é Natal... fui cantando enquanto saía da cozinha.

Passando a porta da cozinha, o lugar era uma casa de loucos. O foyer, em particular, era como o saguão de um teatro do West End no intervalo – um monte de gente fingindo estar tendo um alegre bate-papo, e todo mundo falando ao mesmo tempo.

O nível de ruído, para alguém com a audição sensível como a minha, era quase intolerável. Eu precisava sair de lá. A polícia provavelmente não chegaria por horas. Ainda havia tempo de sobra para dar os toques finais aos meus planos para a véspera de Natal.

Eu tinha pensado pela primeira vez nos fogos de artifício muito tempo antes de o pai assinar seu acordo com a Ilium Filmes. Meu plano original era dispará-los no telhado de Buckshaw, um espetáculo pirotécnico que poderia ser visto claramente a mais de um quilômetro de distância, em Bishop’s Lacey: meu presente de Natal para a aldeia, por assim dizer – um presente que seria comentado muito tempo depois que Papai Noel voasse de volta à sua casa no Norte congelado.

Eu mandaria para cima chuvas de fogo que envergonhariam a aurora boreal: elaborados guarda-chuvas de fogo quente e frio, de todas as cores conhecidas pelo homem. A química cuidaria disso!

O plano se expandira lentamente no decorrer dos meses, para incluir um esquema de captura do próprio velho elfo barbado e pôr um fim de uma vez por todas ao sarcasmo das bobas das minhas irmãs.

Agora, enquanto eu preparava os ingredientes químicos, subitamente perdera um pouco do entusiasmo. Acabara de me ocorrer que poderia ser desrespeitoso deflagrar uma comemoração tão fantástica com um cadáver na casa. Muito embora fosse provável que os restos mortais de Phyllis Wyvern já tivessem sido removidos quando chegasse a hora de Papai Noel entrar em cena, eu não queria ser acusada de insensível.

— Eureca! — eu disse enquanto arrumava em fileiras perfeitas os vasos de plantas que pegara emprestados na estufa. — Já sei!

A ideia era manufaturar um Rojão de Honra gigante em memória de Phyllis Wyvern! Sim, era isso – um estonteante e ensurdecedor final para o show.

Eu havia encontrado a fórmula engendrada por um senhor de nome incrível, Mr. Bigot, (que significa “sr. Intolerante” em inglês), em um velho livro na biblioteca do tio Tar. Só era necessário adicionar a quantidade certa de antimônio e um punhado de limalha de ferro fundido à receita básica.

Vinte minutos com uma lima e um conveniente radiador de água quente produziram o primeiro daqueles ingredientes – o outro estava em um frasco ao alcance dos meus dedos.

Pedaços de papel parafinado e um tubo oco de papelão fizeram um invólucro admirável, e antes que você pudesse dizer “Cabum!” o rojão estava pronto.

Com a sobremesa pronta, era hora do prato principal. Era a parte perigosa, e eu precisava prestar muita atenção a cada movimento.

Devido ao risco de explosão, o clorato de potássio tinha de ser misturado com um cuidado extraordinário em uma tigela que não produzisse fagulhas.

Afortunadamente, lembrei-me do conjunto de alumínio para salada que tia Felicity dera a Felinha em seu último aniversário.

“Querida menina”, dissera ela, “você já tem dezoito anos. Em poucos anos, quatro ou cinco, se tiver sorte, seus dentes começarão a cair, e você estará olhando os espartilhos na Harrods. As meninas precoces conseguirão os noivos mais vigorosos, e não se esqueça disso. Não fique olhando para o teto com aquele olhar vazio na cara, Ophelia. Estas tigelas de alumínio foram manufaturadas com despojos de aeronaves abatidas. São leves, práticas e agradáveis aos olhos. Quer coisa melhor para começar o seu enxoval”?

Eu encontrara as tigelas escondidas atrás de uma estante alta na copa e as desapropriara em nome da ciência.

Para produzir as explosões azuis, misturei seis partes de nitrato de potássio, duas de enxofre e uma de trissulfeto de antimônio.

Essa era a fórmula usada para os deslumbrantes foguetes de salvamento no mar, e calculei que esses seriam visíveis de Malden Fenwick – talvez até de Hinley e além.

A uma ou duas das porções, adicionei uma pequena quantidade de carvão de carvalho, para dar às explosões a aparência de chuva; a outras, um pouquinho de negro de fumo para produzir esporas de fogo.

Era importante ter em mente o fato de que os fogos de artifício de inverno requerem uma fórmula diferente daqueles projetados para o verão. A ideia básica era esta: menos enxofre e muito mais pólvora.

Eu mesma confeccionara a pólvora, com salitre, enxofre, carvão e um coração feliz. Quando se trabalha com explosivos, descobri que essa atitude é tudo.

Era algo que eu aprendera na época com aquela horrível questão da desafortunada srta. Gurdy, nossa antiga governanta – mas pare! Aquela catástrofe não era mais comentada em Buckshaw. Estava no passado e, graças a Deus, já fora quase esquecida. Pelo menos eu esperava que tivesse sido esquecida, já que era um dos meus poucos fracassos nos experimentos com dualina – uma substância contendo serragem, salitre e nitroglicerina, notória por sua instabilidade.

Suspirei e, expulsando a pobre e chamuscada srta. Gurdy da minha mente, eu a dirigi para pensamentos mais agradáveis.

Antes de enfiar os ingredientes em vasos de barro para plantas que havia tomado emprestados da estufa, eu acrescentara uma certa quantidade de óxido arsenioso (AS4O6), às vezes conhecido como arsênico branco. Embora fosse agradável pensar que um veneno mortal deveria produzir as mais brancas explosões aéreas, essa não foi a minha razão para escolhê-lo.

O que me atraiu, o que de fato acalentou meu coração, foi o pensamento de suspender acima do nosso lar ancestral, mesmo que por uns poucos segundos, um guarda-chuva de fogo venenoso e mortífero que cairia – e então, subitamente, desapareceria, como por mágica, deixando Buckshaw a salvo de qualquer perigo.

Não me importava se isso fazia sentido ou não, mas sim a ideia da coisa, e estava feliz por ter pensado nisso.

Cada um dos vasos precisava agora ser selado, como conservas, com uma tampa de papel vegetal para proteger os produtos químicos contra a umidade. À noite, logo antes da hora de dormir, eu os arrastaria, um de cada vez, pela escada estreita que levava do meu laboratório para o telhado.

E então começaria meu trabalho entre as chaminés.

Estava a meio caminho escada acima, esperando não estar cheirando demais a pólvora, quando a campainha da porta tocou. Dogger apareceu, como sempre, como se tivesse saído de lugar nenhum, e quando cheguei ao último degrau ele abriu a porta.

Lá estava o inspetor Hewitt, da delegacia de Hinley.

Eu não via o inspetor fazia um bom tempo, e nosso último encontro tinha sido daqueles que é melhor não comentar.

Ficamos olhando um para o outro através do foyer como dois lobos que vieram de direções diferentes para uma clareira cheia de carneiros.

Eu esperava que o inspetor Hewitt considerasse que o que passou passou e me dissesse que era bom me encontrar outra vez. Eu, afinal, o ajudara a sair de uma porção de enrascadas no passado, sem nem ao menos uma palmadinha nas costas ou um “honra ao mérito”.

Bem, isso não é exatamente verdade: a mulher dele, Antigone, me convidara para o chá em outubro, mas, quanto menos se falar disso, melhor.

E é por isso que eu estava agora no foyer, fingindo verificar alguma coisa que se alojara entre meus dentes, examinando meu reflexo em um dos pilares lustrosos no fim do corrimão. Bem quando decidi ceder e dar ao inspetor uma inclinada seca de cabeça, ele se virou e, sem olhar para trás, saiu andando na direção do dr. Darby, que aparecera de repente no patamar oeste.

Maldição! Se eu tivesse pensado direito, teria dado as boas-vindas ao inspetor eu mesma – e mostrado o caminho para cima, para a cena do crime.

Mas era tarde demais. Eu me excluíra da Câmara da Morte (que é como chamavam aquilo nos programas de mistério do rádio), e agora era tarde demais para assumir o erro.

Ou será que não era?

— Ah, senhora Mullet — eu disse, irrompendo na cozinha como se tivesse acabado de ouvir as novas. — Aconteceu uma coisa muito horrível. A senhorita Wyvern teve um acidente pavoroso, e o inspetor Hewitt está aqui. Eu achei que, com esse tempo horrível e tudo o mais, ele ficaria grato se ganhasse uma xícara de seu famoso chá.

Um pouco de adulação nunca é demais.

— Se você quer dizer que ela está morta — disse a sra. Mullet —, eu já sabia. Notícias como essa se espalham como cera de abelha. Chocante, com certeza, mas não há como impedir isso, não é, Alf?

Alf sacudiu a cabeça.

— Eu soube assim que vi a cara do doutor Darby. Ele fica todo sério quando se trata de morte. Eu me lembro daquela vez em que a senhora Tarbell foi levada no banho. Ele sempre foi assim e sempre será. Poderia muito bem ter um aviso grudado na testa dizendo “Ela está morta”, não é, Alf?

— Um letreiro — disse Alf. — Na testa dele.

— Eu disse a Alf, não disse, Alf? “Alf”, eu disse, “alguma coisa está errada”, eu disse. “O doutor Darby, que vi no corredor agora mesmo, estava com aquela cara que, se eu não soubesse melhor, diria que há um cadáver na casa.” Foi o que eu disse, não foi, Alf?

— Suas palavras exatas — disse Alf.

*  *  *

Não me dei ao trabalho de bater à porta do Dormitório Azul. Simplesmente entrei, como se tivesse nascido na Scotland Yard.

Dei uma girada na maçaneta e empurrei a porta com o traseiro, manobrando a bandeja através da passagem do modo como a sra. Mullet sempre fazia.

Por um momento pensei que havia irritado o inspetor.

Ele se voltou lentamente do cadáver de olhar fixo de Phyllis Wyvern, concedendo-me nada mais que uma olhadela rápida.

— Obrigado — disse ele. — Você pode deixar em cima da mesa.

Obedeci docilmente – covarde que sou –, na expectativa desesperada de que ele não me mandasse sair. Na minha cabeça, eu me tornara invisível.

— Obrigado — disse o inspetor outra vez. — Muito gentil de sua parte. Por favor, diga à senhora Mullet que agradecemos muito.

“Caia fora”, era o que ele queria dizer.

O dr. Darby não disse nada, mas extraiu ruidosamente uma bala de hortelã do saco sem fundo que era o bolso de seu colete.

Fiquei tão quieta quanto uma cobra no inverno.

— Obrigado, Flavia — disse o inspetor, sem se voltar.

Bem, ao menos ele não esquecera o meu nome.

Houve um silêncio que se tornou mais desconfortável a cada segundo. Decidi preenchê-lo antes que outra pessoa tivesse uma oportunidade.

— Espero que você tenha notado — despejei — que a maquiagem dela foi aplicada depois que ela morreu.


13

PARA MINHA SURPRESA, o inspetor deu uma risadinha.

— Mais uma das suas deduções químicas? — perguntou ele.

— Nada disso — disse eu. — Simplesmente observei que havia maquiagem acima de seu lábio inferior, entrando um pouco na boca. Como ela tinha os dentes superiores um pouco projetados para a frente, teria lambido o excesso em segundos se estivesse viva.

O dr. Darby se inclinou para olhar mais de perto os lábios de Phyllis Wyvern.

— Por Deus! — disse ele. — Ela está certa.

É claro que eu estava certa. As horas sem fim que eu passara ajustando e reajustando meu aparelho dentário na câmara de tortura do dr. Reeki na Rua Farringdo fizeram de mim uma autoridade incontestável em alinhamento maxilar. De fato, houve momentos em que me vi como um quebra-nozes humano. Para mim, o deslocamento mandibular de Phyllis Wyvern tinha sido tão fácil de perceber quanto um cavalo em uma banheira de passarinhos.

— E quando você fez essa observação? — perguntou o inspetor.

Eu tinha de conceder-lhe esse crédito. Para um homem de idade, ele tinha o raciocínio notavelmente rápido.

— Fui eu quem descobriu o corpo — contei a ele. — Procurei Dogger imediatamente.

— Por que você faria isso? — perguntou ele, notando na hora a falha no meu relato. — Afinal, o doutor Darby estava perto, no foyer...

— O doutor Darby veio com Dieter no trenó — eu disse. — Eu o vi chegar e sabia que ele não tinha trazido sua valise médica. E ele também estava muito cansado. Reparei que ele cochilou durante a apresentação.

— E? — disse ele, erguendo uma sobrancelha.

— E... Eu fiquei assustada. Sabia que Dogger provavelmente era a única pessoa acordada na casa inteira; ele às vezes não dorme bem, você sabe. Eu apenas queria alguém para... Desculpe. Eu não estava pensando com clareza.

Era mentira, mas uma mentira muito boa. Na verdade, o meu pensamento estava tão claro quanto um regato na montanha.

Fiz meu lábio inferior tremer só um pouquinho.

— Foi fácil ver que a senhorita Wyvern estava mortinha da silva — acrescentei. — Não era uma questão de salvar a vida dela.

— E você estava lúcida a ponto de reparar que havia maquiagem onde não devia haver maquiagem.

— Sim — disse eu. — Eu reparo em coisas assim. Não posso evitar.

“Por favor, não me agrida”, tive vontade de acrescentar, mas eu sabia que já estava levando as coisas um tanto longe demais.

— Entendo — disse o inspetor. — Foi muito gentil de sua parte chamar a atenção para isso.

Dei-lhe meu melhor sorriso vencedor e saí airosamente.

*  *  *

Fui direto para a sala de estar, louca para contar as novidades a Felinha e Dafi. Encontrei-as com a cabeça curvada em cima de uma pilha de edições antigas de Por trás das telas.

— Não conte nada — disse Dafi, erguendo uma das mãos quando abri a boca. — Nós já sabemos. Phyllis Wyvern foi assassinada no Dormitório Azul, e a polícia está na cena do crime.

— Como...? — comecei.

— Talvez, já que você é a principal suspeita, não devêssemos nem estar falando com você — disse Felinha.

— Eu? — fiquei estupefata. — Onde você foi buscar uma ideia tão estúpida?

— Eu vi você — disse Felinha. — Aquela mulher com seu projetor infernal manteve Dafi e eu acordadas por horas, outra vez. Finalmente decidi dar-lhe uma descompostura e estava a meio caminho pelo corredor quando... adivinhe só quem eu vi saindo sorrateira do Dormitório Azul?

— Eu não estava saindo sorrateiramente — disse eu. — Fui buscar ajuda.

— Talvez haja um pequeno punhado de pessoas no mundo que acreditariam em você, mas eu não estou entre elas.

— Vá contar isso para a vovozinha — acrescentou Dafi.

— Acontece — eu disse altivamente — que estou ajudando a polícia na investigação.

— Baboseiras! — disse Dafi. — Felinha e eu estávamos conversando com o sargento-detetive Graves, e ele estranhou que não viu você por perto.

À simples menção do nome do sargento, Felinha derivou para o espelho e tocou o cabelo, virando a cabeça para um lado e para outro. Embora não fosse o primeiro em sua lista de pretendentes, o sargento não era para ser descartado – pelo menos eu esperava que não fosse.

— O sargento Graves? Ele está aqui? Eu não o vi.

— É porque ele não quer ser visto — disse Dafi. — Você vai vê-lo muito bem quando ele puser as algemas em você.

Algemas? Dafi obviamente andava prestando mais atenção em Philip Odell do que deixava transparecer.

— E o sargento Woolmer? — perguntei. — Ele também está aqui?

— É claro que está — disse Felinha. — Dieter o ajudou a abrir caminho no meio da neve.

— Dieter? Ele voltou?

— Ele está pensando em se candidatar a inspetor de polícia — disse Dafi. — Disseram a ele que não teriam conseguido chegar a Buckshaw sem sua ajuda.

— E Ned? — perguntei, tomada por um pensamento súbito. — E Carl?

Felinha tinha mais apaixonados do que a mulher de Ulisses, Penélope, tinha pretendentes, e todos eles, por algum estranho capricho do destino, tinham agora aparecido em Buckshaw ao mesmo tempo.

Ned... Dieter... Carl... sargento-detetive Graves. Cada um deles, sabe Deus por quê, caíra enfeitiçado feito bobo pela tola da minha irmã.

Quanto tempo se passaria até que eles decidissem acertar suas diferença a socos?

— Ned e Carl se ofereceram para ajudar a limpar o pátio de acesso. O vigário organizou um grupo para remover a neve.

— Mas por quê? — perguntei.

— Porque — ouvi a voz de tia Felicity atrás de mim — é um fato conhecido que mais de dois homens trancados em um espaço fechado por mais de uma hora constituem um risco para a sociedade. Se quisermos evitar situações desagradáveis, eles devem ser forçados a sair e trabalhar duro para dissipar seu espírito animal.

Eu sorri ao pensar em Bunny Spirling e o vigário pegando pás de remover neve para dissipar seus espíritos animais, mas fiquei de boca fechada. Também me perguntei se tia Felicity tinha ouvido sobre Phyllis Wyvern.

— Além disso — acrescentou ela —, um carro fúnebre terá de remover os restos mortais. Dificilmente eles conseguirão levá-la em um trenó puxado por cães.

O que respondia à minha pergunta. E também suscitava outra.

A escada que saía do laboratório era estreita e íngreme. Ninguém estivera lá em cima em muitos anos, a não ser eu.

No topo, uma porta se abria para o telhado – ou, ao menos, supostamente se abria para o telhado. Briguei com o ferrolho até que de repente ele se soltou, beliscando meus dedos. Mas agora era a porta que estava emperrada, talvez impedida do outro lado por um monte de neve. Encostei o ombro contra ela e empurrei.

Com o rangido peculiar que faz a neve quando não quer ser empurrada, a porta se abriu relutantemente cerca de três centímetros.

Eu estava me opondo a milhões de minúsculos cristais, eu sabia, mas a força de sua energia química era enorme. “Se todos nós pudéssemos ser como a neve”, pensei, “como seríamos felizes!”.

Mais um empurrão – mais três lentos centímetros. E então mais um.

Depois do que pareceu uma luta muito longa, fui capaz de me espremer entre a porta e seu batente e sair para o telhado.

Instantaneamente me vi mergulhada na neve até os joelhos.

Tremendo, puxei meu cardigã para cima em volta do queixo e me arrastei até as ameias, minha cabeça ressoando lá no fundo com os avisos terríveis da sra. Mullet sobre pneumonia e manter o peito sempre aquecido.

“Ela não ficou do lado de fora mais do que um minuto”, ela me contara, de olhos arregalados, falando da sra. Milne, a mulher do açougueiro. “Apenas tempo suficiente para pendurar as fraldas do bebê no varal, foi só isso. Às quatro da tarde ela estava com tosse, às sete a cabeça dela estava quente como o deserto árabe e, quando o Sol surgiu, ela estava num caixão, dura como uma tábua. Pneumonia, é o que foi. Não há outra coisa que arrebate uma pessoa como a pneumonia. Ela faz você se afogar em seus próprios fluidos.”

De cima do telhado eu podia olhar para o leste, os campos ondulantes como um vasto, contínuo lençol de neve, deslumbrante em sua brancura. Se houvesse pegadas, eu poderia vê-las de imediato, mas não havia nenhuma.

A despeito da umidade congelante que se acumulava em meus sapatos, me forcei a avançar pesadamente até a frente norte, onde me plantei tremendo muito e olhando para o pátio de acesso lá embaixo.

O trator de Dieter estava, como o velho burrinho Bisonho, coberto de neve – um vulto cinzento aconchegado embaixo de um lençol branco. Ao lado dele estava o Vauxhall azul, que logo reconheci como pertencente ao inspetor Hewitt.

No pátio de acesso, o grupo de voluntários do vigário, de casaco, luvas e galochas, enfrentava valentemente os montes de neve com suas pás, e cada respiração deles era visível no ar frígido. Eles tinham conseguido limpar uma área de estacionamento um pouco menor que uma quadra de tênis, que, com a persistência do vento, já começava a se encher de novo com acúmulos soprados de neve granular em formato de dedos.

Havia também uma passagem estreita no meio da estrada, muito apertada de ambos os lados por camadas de neve. Aqui e ali eram claramente visíveis as marcas de correntes e, no meio do caminho, as impressões de pneus que levavam direto ao Vauxhall. Era fácil deduzir que a polícia havia requisitado um guincho com um removedor de neve acoplado à frente, para abrir caminho desde a aldeia.

Além da fita azul sombria com que se parecia o caminho assim aberto, seguindo sinuosamente para o norte, todos os acessos a Buckshaw eram uma única vasta extensão branca não trilhada.

Com as costas viradas para o vento, a ameia sul era apenas um pouco menos fria que a norte. Abaixo de mim, ao lado da horta da cozinha, as vans e os caminhões drapejados de neve da Ilium Filmes se aglomeravam como um pequeno circo no inverno. Passagens estreitas tinham sido trilhadas entre eles, e fiquei observando enquanto um homem de libré saiu pela porta da cozinha e caminhou precariamente na direção de uma das vans menores. Era Anthony, o chofer de Phyllis Wyvern. Eu tinha me esquecido dele por completo.

Inclinei-me o máximo que pude por cima da ameia, para tentar ver alguma coisa do lado da casa. Sim, lá estava o radiador do Daimler preto, apenas apontando à vista. Parecia estar aconchegado ao lado de um canteiro de flores soterrado. Quando me inclinei para a frente mais alguns centímetros para ver se havia alguém sentado dentro dele, desloquei um aglomerado de neve, que despencou e caiu com um sonoro plóft no teto do Daimler.

— Merda! — eu disse baixinho.

Anthony parou de repente, se virou, olhou para cima e me viu. Seguiu-se um daqueles momentos peculiares em que olhares de dois desconhecidos se encontram, distantes demais para se falarem, porém perto demais para fingirem que nada aconteceu. Eu me perguntava o que seria mais apropriado gritar para ele – condolências ou votos de Natal? –, quando ele se virou e foi claudicando em direção ao trailer.

“Aquelas botas de couro de montar devem ser traiçoeiras na neve”, pensei.

Enquanto caminhava de volta para a porta, levantei os olhos para as imponentes chaminés e os para-raios de Buckshaw, que se erguiam de suas bases reforçadas, fileira após fileira, como tubos de órgão feitos de tijolos, e ferro, e cerâmica, as chaminés da cozinha e das alas norte e oeste lançando para cima farrapos de fumaça rasgados pelo vento, para dentro do céu de chumbo.

Pensei com um delicioso estremecimento – metade prazer e metade medo – que antes de a noite terminar eu estaria escalando aqueles picos dentados para um encontro com Papai Noel – um experimento cujo resultado poderia bem determinar o curso futuro de minha vida.

A química poria um fim ao Natal? Ou, amanhã de manhã, eu encontraria um elfo gordo e furioso preso praguejando entre as chaminés?

Devo admitir que uma parte de mim torcia pela lenda.

Havia momentos em que eu me sentia como se estivesse montada sobre um oceano frio – um pé no Novo Mundo e um pé no Velho. Como eles se separavam lentamente à deriva, eu corria o risco de ser rasgada ao meio.

As hordas no foyer começavam a mostrar seu cansaço. Estavam lá durante a maior parte das últimas vinte e quatro horas, e parecia que a paciência delas escasseava.

Por todos os lados havia olheiras sob olhos cansados, e os alojamentos abarrotados tinham sido tomados por uma atmosfera rançosa.

Eu notara em outras ocasiões que a superpopulação, mesmo em um lugar espaçoso, faz uma pessoa se sentir como alguém diferente. Talvez, pensei, sempre que começamos a respirar o ar dos outros, quando os átomos turbilhonantes de seu corpo começam a se misturar com os nossos, assumimos algo da personalidade deles, como cristais em um floco de neve. Talvez nos transformemos em algo mais, porém menor que nós mesmos.

Vou anotar esta interessante observação em meu caderno na primeira oportunidade.

Aquelas pessoas que tinham dormido diretamente em cima do piso de ladrilhos ainda esfregavam os ossos, olhando com rancor para as felizardas almas que se apropriaram de cantos em que podiam encostar as costas na parede. Maximilian Brock erigira uma parede de livros em volta de seu pequeno território ladrilhado, e não pude deixar de me perguntar onde ele os encontrara. Devia ter assaltado a biblioteca durante as horas de escuridão.

Poderiam os bons aldeões de Bishop’s Lacey, engaiolados aqui em Buckshaw, terem se tornado tão territoriais quanto gatos selvagens? Se ficassem confinados muito mais tempo, logo estariam delimitando lotes de terra e plantando hortas.

Talvez houvesse alguma verdade, afinal, no que tia Felicity dissera. Todos eles, homens e mulheres do mesmo modo, pareciam precisar de uma caminhada enérgica ao ar fresco, e fiquei subitamente contente por ter me aventurado nos telhados, ainda que apenas por uns poucos minutos.

Porém, ao fazer isso, teria eu violado uma ordem oficial?

Embora eu não tivesse ouvido com meus próprios ouvidos, o inspetor Hewitt devia ter dado ordens para que ninguém saísse da casa. Era procedimento-padrão em locais onde houvesse suspeita de assassinato, e a morte de Phyllis Wyvern não fora nem natural nem suicídio – ela tinha sido levada a uma morte violenta.

Mas e Anthony, o chofer? Ele não estava circulando livremente do lado de fora? E o vigário, não estava organizando uma turma em desobediência à lei? De algum modo, parecia improvável. Ele devia ter pedido permissão. Talvez o próprio inspetor tivesse pedido que o pátio de acesso fosse liberado da neve.

Enquanto eu pensava neles, a porta da frente se abriu, e os voluntários entraram batendo os pés e bufando no foyer. Vários minutos se passaram antes que eu percebesse que faltava alguém.

— Dieter — perguntei —, onde está o vigário?

— Foi embora — disse ele, franzindo o cenho. — Ele e Frau Richardson partiram a pé para a aldeia.

“Frau Richardson? Cynthia? Para a aldeia?”, isso ficou ecoando em meus ouvidos.

Mal pude acreditar no que ouvira. Corri os olhos rapidamente pelo foyer e vi que Cynthia Richardson não estava em lugar algum.

— Eles insistiram — disse Dieter. — O serviço da véspera de Natal começa em apenas algumas horas.

— Mas metade da congregação está aqui! — disse eu. — Isso não faz sentido.

— Mas o resto está em Bishop’s Lacey — disse Dieter, jogando as mãos para cima —, e não se prega sentido a um clérigo da Igreja da Inglaterra.

— O inspetor vai ficar uma fera — observei.

— É mesmo? — disse uma voz atrás de mim.

Não preciso dizer que era o inspetor Hewitt. Ao lado dele estava o sargento-detetive Graves.

— E o que é que vai fazer que eu fique, como você diz, uma fera?

Minha cabeça fez uma rápida excursão pelas possibilidades e viu que não havia como sair dessa.

— O vigário — eu disse. — Ele e a esposa saíram para São Tancredo. É véspera de Natal.

Isso não era nada além da verdade, e, como dificilmente podia ser considerado um segredo de estado, eu não poderia ser acusada de indiscrição.

— Há quanto tempo? — perguntou o inspetor.

— Não muito, eu acho. Não mais que cinco minutos, talvez. Dieter pode dizer.

— Eles devem ser trazidos de volta imediatamente — disse o inspetor. — Sargento Graves?

— Sim, senhor?

— Veja se pode alcançá-los. Eles têm um pouco de vantagem, mas você é mais jovem e está em melhor forma, espero.

— Sim, senhor — disse o sargento Graves, e suas covinhas repentinas o fizeram parecer um menininho de escola envergonhado.

— Diga a eles que, embora estejamos fazendo tudo o que está ao nosso alcance para agilizar o processo, minhas ordens não podem ser questionadas.

“Que bem colocado”, pensei. “Compaixão com um ferrão na cauda”.

— E agora, senhorita De Luce — disse ele —, se não se importa, acho que vamos começar com você.

— A testemunha mais jovem primeiro? — perguntei com gentileza.

— Não necessariamente — disse o inspetor Hewitt.


14

PARA MINHA SURPRESA, O inspetor sugeriu que a entrevista fosse conduzida no meu laboratório químico.

— Onde não seremos perturbados — dissera ele.

Não era sua primeira visita ao meu sanctum sanctorum: ele estivera ali na época do caso Horace Bonepenny, quando chamara o laboratório de “extraordinário”.

Dessa vez, com não mais que uma olhada rápida para Yorick, o esqueleto totalmente articulado que fora doado a tio Tar pelo naturalista Frank Buckland, o inspetor sentou-se em uma banqueta alta, pôs um pé no apoio e sacou sua caderneta.

— A que horas você descobriu o corpo da senhorita Wyvern? — perguntou ele, indo direto ao ponto sem quaisquer preliminares agradáveis.

— Não tenho certeza — eu disse. — À meia-noite, talvez, ou quinze minutos depois.

Ele estava sentado com sua esferográfica Biro suspensa acima da página.

— Isto é importante — disse ele. — Crucial, de fato.

— Quanto tempo dura a cena do balcão em Romeu e Julieta? — perguntei.

Ele pareceu um pouco desconcertado.

— No pomar dos Capuleto? Na verdade, não sei. Não mais que dez minutos, eu diria.

— Levou mais do que isso — disse eu. — Eles se atrasaram para começar, e então...

— Sim?

— Bem, houve aquilo com Gil Crawford.

Eu imaginei que a essa altura alguém já devia ter informado o inspetor Hewitt sobre isso, mas, pelo modo como agarrou sua Biro, constatei que não.

— Conte-me em suas próprias palavras — pediu ele, e foi o que fiz: o fato de o refletor não recair sobre Phyllis Wyvern em sua primeira entrada... sua descida do balcão improvisado... sua caminhada pelo corredor até o andaime... sua escalada na escuridão... o tabefe doloroso no rosto de Gil Crawford.

Aquilo tudo saiu aos borbotões, e fiquei surpresa com a indignação que eu havia reprimido. Quando terminei, estava à beira das lágrimas.

— Muito perturbador — disse o inspetor. — Qual foi a sua reação naquele momento?

Minha resposta me chocou.

— Eu tive vontade de matá-la — respondi.

Ficamos lá sentados em silêncio pelo que pareceu ser uma eternidade, mas provavelmente durou, de fato, não mais que dez segundos.

— Você vai pôr isso na sua caderneta? — perguntei afinal.

— Não — disse ele em outra voz, mais suave. — Foi mais uma pergunta pessoal.

Era uma oportunidade boa demais para perder. Eu tinha, afinal, uma chance de aliviar a dor que estivera na minha consciência desde aquele dia terrível em outubro.

— Eu sinto muito! — despejei. — Eu não queria... Antigone... a sua esposa...

Ele fechou sua caderneta.

— Flavia... — começou ele.

— Foi horrível da minha parte — eu lhe disse. — Não pensei antes de falar. Antigone, quero dizer, a senhora Hewitt, deve ter ficado muito desapontada comigo.

Pude ouvir minha própria voz ressoando em meus ouvidos.

“Por que você e o inspetor Hewitt não têm filhos? Decerto vocês podem se permitir, com o salário de um inspetor?”

Minha intenção fora inconsequente, quase uma brincadeira.

Eu estava tão de bom humor com sua presença, sua beleza e, talvez, o excesso de açúcar de tantos pedaços de bolo. Eu tinha sido uma glutona.

Ficara lá sentada olhando para ela triunfantemente jubilosa como algum almofadinha de Londres que acaba de soltar uma piada fantástica e está esperando que todos na sala a entendam.

“Decerto vocês podem se permitir, com o salário de um inspetor?”

Eu quase falei outra vez.

“Nós perdemos três”, dissera Antigone Hewitt com uma tristeza infinita na voz, segurando a mão de seu marido.

“Eu gostaria de ir para casa agora”, eu anunciara abruptamente, como se o poder de pronunciar qualquer palavra na língua inglesa me tivesse sido negado.

O inspetor me levara de volta a Buckshaw em um silêncio de minha própria escolha, e pulei fora de seu carro sem sequer uma palavra de agradecimento.

— Não tanto desapontada quanto triste — disse ele, trazendo-me de volta ao presente. — Não tivemos tanto sucesso quanto alguns outros em lidar com isso.

— Ela deve me odiar.

— Não. Ódio é para os odientos.

Entendi o que ele quis dizer, embora não pudesse ter explicado.

— Como quem quer que seja que matou Phyllis Wyvern — sugeri.

— Exatamente — disse ele e, depois de uma pausa: — Agora, onde estávamos?

— Gil Crawford — lembrei-o. — E depois ela prosseguiu com a peça, como se nada tivesse acontecido.

— Isso teria sido por volta de sete e vinte e cinco?

— Sim.

O inspetor coçou a orelha.

— Parece estranho, não parece? Quero dizer, reunir uma aldeia inteira em um tempo tão inclemente para uma apresentação de dez minutos.

— Phyllis Wyvern era apenas a atração principal — disse eu. — Acho que o vigário deve ter planejado mais. Veja bem: era em benefício ao Fundo para o Telhado. Ele provavelmente estava planejando pedir às irmãs Puddock que se apresentassem e, então, encerrar o espetáculo com uma de suas próprias declamações, como “Albert e o leão”. O vigário deve ter permitido que ela fosse a primeira porque seria falta de respeito fazê-la aguardar por amadores. Mas é só um palpite meu. Você terá de perguntar a ele quando voltar.

— Farei isso — disse o inspetor. — Você bem pode estar certa.

Ele empurrou para trás o punho da camisa com um indicador e deu uma olhada para o seu relógio.

— Só mais algumas perguntas — disse ele —, e então eu gostaria que você me ajudasse com um experimento.

Ah, que alegria! Ser reconhecida afinal como uma igual – ou qualquer coisa assim. O próprio Papai Noel não poderia ter imaginado um presente melhor. (Lembrei-me com uma pontada de prazer do velho cavalheiro com quem eu teria um encontro em algumas horas. Talvez eu pudesse agradecer-lhe pessoalmente.)

— Acho que posso dar um jeito, inspetor — respondi —, embora eu tenha uma porção de coisas para fazer.

“Pare com isso, Flavia!” pensei. “Pare imediatamente, antes que eu morda a sua língua pelo lado de dentro e a cuspa fora em cima do tapete!”

— Muito bem, então — disse ele. — Por que você foi até o Dormitório Azul?

— Eu queria falar com a senhorita Wyvern.

— Sobre o quê?

— Sobre qualquer coisa.

— Por que escolheu aquela hora em particular? Não era um tanto tarde?

— Eu ouvi a trilha sonora do filme dela chegar ao fim. Sabia que ela estava acordada.

No mesmo instante em que as pronunciei, senti o horror frio das minhas palavras. Por que eu não me dera conta antes? Phyllis Wyvern já poderia estar morta.

— Mas talvez — acrescentei —, talvez...

Os olhos do inspetor estavam travados nos meus, esperando que eu falasse mais.

— Um rolo de filme de dezesseis milímetros dura quarenta e cinco minutos — eu disse. — Dois rolos para um longa-metragem.

Este era um fato do qual eu tinha certeza. Eu já havia ficado sentada assistindo a um número suficiente de filmecos nas séries de cinema no salão paroquial para saber com precisão de segundos a duração da minha tortura. Além disso, eu conferira uma vez com o sr. Mitchell.

— O filme terminou logo antes de eu chegar ao Dormitório Azul — prossegui. — Ouvi a fala “Jamais esquecerei Hawkhover Castle” logo antes de começar a descer a escada saindo do meu quarto. Quando encontrei o corpo da senhorita Wyvern, a ponta do filme estava girando solta no carretel. Mas...

— Sim? — Os olhos do inspetor eram penetrantes como os de um furão.

— Mas e se ela já estivesse morta quando o filme começou? E se tiver sido o assassino quem ligou o projetor?

Na minha cabeça, as peças caíram rapidamente no lugar. Se a morte tivesse ocorrido uma hora mais cedo, isso explicaria por que o corpo de Phyllis Wyvern já mostrava descoloração quando o encontrei. Não contei isso ao inspetor. Ele precisava deduzir pelo menos uma parte daquilo sozinho.

— Uma excelente conjetura — disse o inspetor. — Além da ponta do filme girando livre, você ouviu mais alguma coisa?

— Sim. Uma porta se fechou quando eu estava cruzando o foyer. E ouvi uma descarga de privada.

— Antes ou depois do som da porta?

— Depois. A porta se fechou quando eu já estava a meio caminho escada abaixo. A descarga foi quando eu já tinha atravessado metade do foyer.

— Em tão pouco tempo?

— Sim.

— Que estranho — disse o inspetor Hewitt.

Só mais tarde eu me daria conta do que ele queria dizer.

— Entre as pessoas que estavam dormindo no foyer, quem você se lembra claramente de ter visto?

— O vigário. Ele gritou enquanto dormia.

— Gritou? O quê?

Por que eu me sentia como se estivesse traindo uma confiança? Por que me sentia como uma tamanha futriqueira?

— Ele disse, bem baixinho: “Hannah, por favor! Não!”.

— Mais nada?

— Mais nada.

O inspetor escreveu alguma coisa em sua caderneta.

— Prossiga — disse ele. — Quem mais estava dormindo no foyer?

— Cynthia Richardson, a mulher do vigário...

Comecei a contar nos dedos.

— A senhora Mullet... e Alf, marido dela... o doutor Darby... Ned Cropper... Mary Stoker... Bunny Spirling... Max, quero dizer, Maximilian Brock, nosso vizinho. Max tinha construído uma pequena parede de livros em volta dele.

— Mais alguém?

— Estes foram os que notei. Ah, e Dieter, é claro. Ele estava acomodado no patamar. Tive de passar por ele na ponta dos pés.

— Você viu ou ouviu alguém ou alguma coisa a caminho do Dormitório Azul?

— Não. Nada.

— Obrigado — disse o inspetor, fechando a sua caderneta. — Você foi de grande ajuda.

“Teria ele me perdoado”, pensei, “ou estava simplesmente sendo polido?”

— Bem, então... — disse ele. — Como eu tinha dito, gostaria de contar com sua ajuda em um pequeno experimento, mas não terei tempo para isso até mais tarde.

Assenti, compreensiva.

— Você tem um exemplar de Romeu e Julieta na sua biblioteca? Eu ficaria surpreso se não tivesse.

— Há um exemplar das obras completas de Shakespeare que Dafi pega quando quer parecer estudiosa. Serve?

Era verdade, mas eu não tinha a menor ideia de onde encontrá-lo. Eu não me imaginava vasculhando um bilhão de livros na véspera de Natal. Eu tinha, como dizem, peixes maiores para pegar.

— Tenho certeza que sim. Veja se você pode desenterrá-lo, seja uma boa menina.

Se qualquer pessoa com exceção do inspetor Hewitt me dissesse uma coisa dessas, eu pularia em sua garganta, mas ali estava eu, como um cãozinho cocker spaniel aguardando que seu dono jogasse o chinelo.

— É pra já! — eu quase gritei pelas costas dele enquanto ele saía pela porta.

Felinha estava recebendo seus admiradores na sala de estar, e me dói admitir que ela nunca parecera tão linda. Eu podia dizer por seus olhares-relâmpago para o espelho que ela era da mesma opinião. O rosto dela estava radiante como se tivesse instalado uma lâmpada no crânio, e ela batia as pestanas faceiramente para Carl, Dieter e Ned, que se reuniam à sua volta em um círculo de adoração, como se ela fosse a Virgem Maria e eles, os Três Reis Magos: Gaspar, Melchior e Baltasar.

Na verdade, essa não era uma comparação ruim, já que dois dos que eu conhecia, Ned e Carl, vieram trazendo presentes. O de Carl, é claro, tinha sido consignado às chamas pelo pai, mas isso parecia não ter afetado o doador, que se plantou de ombros caídos, sorrindo, apoiado contra a lareira, as mãos nos bolsos, mastigando alegremente sua goma de mascar com uma regularidade mecânica.

Os chocolates pré-históricos de Ned não estavam à vista, tendo sido, mais que provavelmente, postos para descansar com seus predecessores na gaveta de lingerie de Felinha.

O sargento-detetive Graves, que obviamente acabara de interrogar os outros alegres escravos de Felinha, estava sentado em um canto copiando anotações, mas eu podia dizer pelo jeito furtivo como ficava erguendo os olhos de seu trabalho que ele estava de olho em seus rivais românticos.

Só Dieter, pensei, fora suficientemente sensato para dispensar o incenso e a mirra.

Pelo menos era isso que eu estava pensando quando ele enfiou a mão no bolso e tirou uma minúscula caixinha rígida.

Ele a entregou a Felinha sem uma palavra.

“Droga!”, pensei. “Ele vai pedi-la em casamento.”

Felinha, é claro, se aproveitou ao máximo da situação. Ela examinou a caixinha por todos os seis lados, como se cada face tivesse um segredo inscrito em tinta de ouro pelos anjos.

— Dieter! — ofegou ela. — Que lindo!

“É apenas uma caixa, sua baleota estúpida! Vá em frente com isso!”

Felinha abriu a caixa com uma lentidão torturante.

— Ah! — disse ela. — Um anel!

Ned e Carl trocaram olhares boquiabertos.

— Um anel de amizade — acrescentou ela, mas, se ficara desapontada, eu não sei dizer.

Ela o removeu segurando-o com o polegar e o indicador e segurou-o no alto contra a luz. Era largo e de ouro e tinha figuras gravadas naquilo que acredito se chamar filigrana: uma coroa em cima de um coração foi tudo o que pude ver antes que ela se virasse.

— O que significa? — perguntou ela, erguendo os olhos para os de Dieter.

— Significa — disse-lhe Dieter — tudo o que você desejar que signifique.

Perturbada, Felinha enrubesceu e enfiou a caixa no bolso.

— Você não devia — ela conseguiu dizer antes de se virar e ir até o nosso velho piano Broadwood, que ficava defronte à janela.

Felinha ajeitou a saia e sentou-se ao teclado.

Reconheci a melodia antes de as primeiras três notas flutuarem para fora do piano. Era “Für Elise”, de Beethoven – Larry B, como eu gostava de chamá-lo, só para deixar Felinha irritada.

Elise, eu sabia, era o nome da mãe de Dieter, que vivia na distante Berlim. Ele algumas vezes falara dela em uma voz especial, uma voz de deleite expectante, como se ela estivesse na sala ao lado, esperando para pular fora e surpreendê-lo.

Aquela peça musical, eu soube imediatamente, era uma mensagem particular para Dieter: uma mensagem que não poderia ser interceptada por outros ouvidos senão os meus e talvez os de Dafi.

Não era o momento apropriado para soltar um brado de guerra, portanto me contentei em dar um aperto de mão em Dieter.

— Feliz Weihnachten — eu disse.

— Feliz Weihnachten — respondeu ele, com um sorriso da largura do canal da Mancha.

Enquanto Felinha tocava, notei que a mandíbula de Carl mastigava no ritmo da música e Ned o marcava energicamente, batendo um calcanhar no tapete.

Era uma pequena cena doméstica alegre como eu jamais vira em Buckshaw, e a absorvi avidamente com meus olhos, meus ouvidos e até meu nariz.

As achas de lenha crepitavam e fumegavam na lareira, enquanto “Für Elise” lançava seu inevitável encantamento.

“Feliz Natal, Flavia”, pensei, guardando uma lembrança do momento para conforto futuro. “Você merece.”

*  *  *

Dafi estava sozinha na biblioteca, o corpo dobrado de lado como um canivete em uma poltrona.

— Como vão as coisas na Casa abandonada? — perguntei.

Ela ergueu os olhos do livro como se eu fosse um gatuno inepto que acabara de cair dentro da casa através da janela.

— Dieter deu um anel a Felinha — eu disse.

— Bom para ela — disse Dafi. — E agora, se você não se importa...

— Que ruim o que aconteceu com Phyllis Wyvern, não é?

— Flavia...

— Eu acho que poderia realmente chegar a gostar de Shakespeare — eu disse, colocando a isca no meu anzol. — Você sabe qual é a parte de Romeu e Julieta de que mais gostei? É aquela em que Romeu fala sobre os olhos de Julieta trocando de lugar com as duas estrelas mais brilhantes nos céus.

— Mais formosas — disse Dafi.

— Mais formosas — concordei. — De qualquer modo, o jeito como Shakespeare os descreveu, eu simplesmente enxerguei na minha cabeça, aquelas duas estrelas brilhando no rosto de Julieta, e os olhos de Julieta suspensos no céu...

Coloquei o indicador e o mindinho nas minhas pálpebras inferiores e as puxei para baixo mostrando bolsas sangrentas e, ao mesmo tempo, empurrando para cima a ponta do meu focinho com os dedos da outra mão.

— Bóóó-ing! Deve ter pregado um tremendo susto nos horticultores locais.

— Não havia horticultores locais.

— Então por que Romeu diz “Ah, quisera eu ser uma luva naquela mão para poder tocar naquela alface!”?

— Ele disse “face”.

— Ele disse “alface”. Eu estava sentada ali ao lado, Dafi. Eu ouvi.

Dafi pulou para fora da poltrona e marchou para uma das estantes. Ela tirou de lá um volume pesado e o folheou, as páginas voando sob seus dedos como se estivessem sendo sopradas pelo vento.

— Aqui — disse ela depois de alguns momentos. — Olhe. O que está escrito?

Torci a cabeça de lado e olhei para a página pelo máximo de tempo que me atrevi.

— “Para poder tocar naquela face” — eu disse com relutância. — Ainda assim, acho que Desmond Duncan disse “alface”.

Dafi fechou o livro bufando e batendo forte, voltou a dobrar-se sobre sua poltrona e, em segundos, envolveu-se no passado tão facilmente como se ele fosse um velho cobertor.

Furtiva como um rato de biblioteca, peguei o velho Bill Shakespeare de cima da mesa, enfiei-o debaixo do braço e saí displicentemente da sala.

Missão cumprida.


15

O GRITO SAIU DE LUGAR nenhum, reverberando nos painéis de madeira do foyer em uma avalanche de sons.

— Meu Deus! — exclamou Bunny Spirling. — Que diabos foi aquilo?

Todo mundo olhava em volta, em todas as direções, e as senhoritas Puddock se agarraram uma à outra como criaturas desamparadas e totalmente perdidas. Eu estava na escadaria e subi como um foguete. O que quer que tivesse acontecido, eu não iria ser trancada do lado de fora como quem chegou atrasado. Derrapei no canto e parti para o corredor norte. Enquanto eu passava voando, uma das portas se abriu, e um segundo grito cortou os ares. Empurrei uma das mulheres do figurino, e entrei no quarto. Nialla estava metade em cima e metade fora de um divã do século XIX, o rosto branco como pasta.

— O bebê... — gemeu ela.

Marion Trodd, parecendo uma coruja deslumbrada com seus óculos de chifre, saiu de um transe aparente na ponta do divã e deu um passo em minha direção.

— Vá buscar o médico! — disparou ela.

— Vá buscar você — disse eu, pegando a mão de Nialla. — E, ao voltar, peça à senhora Mullet que ferva muitos baldes de água.

— Realmente, Flavia — disse Nialla entre dentes apertados —, você é incorrigível.

Encolhi os ombros.

— Obrigada — eu disse.

Ir buscar água em um parto era, como eu aprendera no cinema e em incontáveis programas de rádio, um ritual que bem poderia ter sido o Décimo Primeiro Mandamento, muito embora a razão por que água fervente era invariavelmente esperada estava além da minha compreensão. Parecia pouco provável que ela pudesse ser usada para suturar a mãe sem o risco de provocar sérias queimaduras, e era simplesmente inacreditável que um recém-nascido pudesse ser imergido em um líquido a uma temperatura de cem graus na escala Celsius – a não ser, é claro, que fosse essa a razão pela qual os bebês recém-nascidos tinham aquela cor de lagosta que eu vira no cinema.

Mas parecia impensável. Absolutamente bárbaro.

Uma coisa estava clara: havia muito que eu precisava aprender sobre os eventos que cercavam o nascimento de um bebê. Era preciso separar os fatos científicos das bobagens. Eu iria tomar nota para examinar isso mais de perto assim que o Natal estivesse fora do caminho.

— Como você está? — perguntei a Nialla, mas aquilo soou muito falso, como se fôssemos duas velhas se encontrando no chá paroquial.

— Shtou muntcho beim, obrrigada — respondeu ela através de dentes apertados, em uma voz de falsete. — E vochê?

— Levando — disse eu. — Simplesmente levando.

Apertei a mão dela, e ela sorriu.

— Hummmm... — disse o dr. Darby atrás de mim, e quando me voltei ele já tinha tirado o casaco e estava arregaçando as mangas. — Feche a porta ao sair — disse ele.

Eu admiro um homem que assume o comando quando uma mulher realmente precisa dele.

Marion Trodd estava em pé no corredor, seu olhar lançando dardos contra mim.

— Desculpe se pareci rude — eu disse. — Nialla é uma velha amiga, e...

— Ora, tudo bem. Nem pense nisso — disparou ela. — Você está desculpada, com certeza. Afinal, já estou muito acostumada a ser pisoteada.

Ela se virou e foi embora.

“Bruxa!”, pensei.

— Não se incomode com Marion — disse alguém, entrando no meu campo de visão como se tivesse surgido das sombras. — Ela está um pouco excitada.

Era Bun Keats.

“Excitada? Está mais para destrambelhada”, tive vontade de dizer, mas guardei a piada para mim mesma.

— Sinto muito pela senhorita Wyvern — eu disse. — Deve ter sido terrível para você.

Embora eu não tivesse planejado isso, tive certeza no instante em que falei que aquela era precisamente a coisa certa a dizer.

— Você não faz ideia — disse Bun, e eu soube que ela estava dizendo a verdade. Eu realmente não tinha ideia, mas pretendia descobrir.

— Você quer um pouco de chá? — eu estava perguntando quando a porta do quarto se abriu e a cabeça do dr. Darby apareceu.

— Diga a Dogger para vir agora — ele falou. — Diga a ele “transverso dorsolateral”. Diga a ele “apresentação da culatra”.

— É pra já — disse eu, e saí, um modelo de eficiência imperturbável.

— Corra! — rugiu o dr. Darby atrás de mim, e disparei a correr.

— Transverso dorsolateral — repeti num sussurro enquanto corria pelo corredor. — Transverso dorsolateral. Apresentação da culatra.

Mas onde encontrar Dogger? Ele podia estar em seu quarto... ou na cozinha. Poderia até estar na estufa... ou na estrebaria.

Eu não precisava ter me preocupado. Assim que desci agitando os braços como um morcego ensandecido pela escadaria oeste, lá estava Dogger, no foyer, ajudando Cynthia e o vigário a tirarem seus casacos. Eles pareciam sobreviventes de uma expedição fracassada à Antártida, como também o sargento Graves, plantado atrás deles.

— Uma tremenda nevasca — dizia o vigário roucamente através de lábios rodeados de gelo. — Teríamos congelado até morrer se o sargento não tivesse nos encontrado.

Cynthia ficou parada tremendo, aparentemente atordoada.

Rude ou não, sussurrei ao ouvido de Dogger:

— O doutor Darby precisa de você no Dormitório Tennyson. Transverso dorsolateral. Apresentação da culatra.

Eu tinha planejado disparar escada acima na frente dele para mostrar o caminho, mas Dogger venceu. Ele subiu os degraus como se subitamente tivesse ganhado asas, e fui deixada para trás, seguindo-o aos tropeços, do melhor jeito que podia.

Dogger parou na frente da porta apenas o tempo suficiente para dizer:

— Obrigado, senhorita Flavia. Esses casos especiais podem acontecer. Às vezes muito de repente. Quando precisar de você, chamarei.

Deixei-me cair em uma cadeira do lado de fora do quarto e fiquei roendo as unhas para passar o tempo. Depois do que me pareceu uma sequência de eternidades, mas provavelmente não levou mais de dez minutos, ouvi Nialla gritar forte três vezes, seguindo-se algo que soou como um balido perplexo.

O que estavam fazendo lá dentro? Por que não me permitiram assistir?

Dafi certa vez me contara como nasce um bebê, mas a história dela era tão ridícula que não dava para acreditar. Eu fiz uma nota mental para perguntar a Dogger, mas de algum modo jamais cheguei a fazer isso. Essa podia ser minha oportunidade de ouro.

O tempo foi se arrastando, e eu estava desenhando círculos concêntricos com as pontas dos meus sapatos quando a porta se abriu e Dogger acenou um dedo para mim.

— Só uma olhada — disse ele. — A senhorita Nialla está muito cansada.

Entrei cautelosamente no quarto, olhando para um lado e para outro, como se algo estivesse prestes a pular fora e me morder, e lá estava Nialla, apoiada na cama por travesseiros e segurando alguma coisa nos braços que, de início, me pareceu ser um grande ratão-do-banhado.

Cheguei mais perto, e, enquanto olhava, a boca dele se abriu e soltou um guincho como o de um brinquedo de borracha.

É difícil descrever como me senti naquele momento. Uma mistura, imagino, de profunda alegria e uma tristeza esmagadora. A alegria, eu entendo; a tristeza, não.

Tinha algo a ver com o fato de que, de repente, eu não era mais o último bebê a chorar em Buckshaw, e me senti como se uma das minhas propriedades mais secretas tivesse sido roubada de mim.

— Como foi? — perguntei, sem saber o que mais dizer.

— Ah, menina — disse ela. — Você não faz ideia.

Que estranho. Não tinham sido essas as palavras que Bun Keats usara quando eu apresentara minhas condolências pela morte de Phyllis Wyvern?

— É um lindo bebê — eu disse, insincera. — Ele se parece com você.

Nialla olhou para a trouxinha em seus braços e começou a soluçar.

— Aaaahhh — disse ela.

E então a mão de Dogger pousou em meu ombro, e fui gentilmente, porém com firmeza, direcionada para a porta.

Voltei devagar para a cadeira do corredor e me sentei. Minha cabeça estava transbordando.

Lá dentro, atrás de uma porta fechada, estava Nialla, com seu bebê recém-nascido. E lá adiante, logo depois no corredor, atrás de sua própria porta fechada, estava a recém-morta — relativamente falando – Phyllis Wyvern.

Haveria algum significado nisso ou seria apenas mais um fato idiota? Será que os corpos vivos voltariam da morte, ou seria isso apenas uma velha superstição?

Dafi me contara sobre uma menina na Índia que alegava ser a reencarnação de uma velha que morrera na aldeia vizinha, mas seria verdade? O dr. Ghandi certamente achava que sim.

Haveria ao menos uma remota possibilidade de que, então, a criatura empapada nos braços de Nialla contivesse a alma de Phyllis Wyvern?

Estremeci só de pensar nisso.

Ainda assim, eu teria de admitir que, dos dois seres, em minha mente o cadáver de Phyllis Wyvern morta era o mais interessante.

Para ser perfeitamente honesta, de longe o mais interessante.

Houve um tempo, não muito depois da última visita de Nialla a Buckshaw, em que eu começara a me preocupar com minha fascinação pela morte.

Depois de algumas noites sem dormir e uma colcha de retalhos de sonhos envolvendo criptas e cadáveres ambulantes, estava decidida a conversar sobre isso com Dogger, que ouvira em silêncio, como sempre faz, inclinando a cabeça só ocasionalmente, enquanto lustrava as botas do pai.

“Está errado”, eu perguntara, “encontrar prazer na morte”?

Dogger tinha cavoucado na lata de graxa preta com a ponta de seu pano.

“Acredito que um homem chamado Aristóteles disse certa vez que nos deleitamos em contemplar corpos mortos, que por si nos causam dor, porque neles experimentamos o prazer de aprender o que pesa mais que a dor.”

“Ele realmente disse isso?”, eu perguntara, abraçando a mim mesma. Esse Aristóteles, quem quer que fosse, era um homem que entendia meu coração, e tomei nota para procurá-lo algum dia.

“É o melhor que posso lembrar”, dissera Dogger, e uma sombra perpassou seu rosto.

Eu estava pensando nisso quando, corredor acima, uma porta do Dormitório Azul se abriu e o montanhoso sargento Woolmer começou a carregar seu pesado equipamento de fotografia para fora do quarto da falecida Phyllis Wyvern.

Ele pareceu tão surpreso ao me ver quanto eu pareci surpresa ao vê-lo.

— Conseguiu as digitais, e essas coisas? — perguntei alegremente. — Fotos da cena do crime?

O sargento olhou fixo para mim por alguns momentos, e então um sorriso se espalhou pelo seu rosto usualmente pétreo.

— Bem, bem — disse ele. — Se não é a senhorita De Luce. Seguindo as pistas, não é?

— Você me conhece, sargento — disse eu com o que esperava fosse um sorriso misterioso. Comecei a andar devagar na direção dele, esperando conseguir por cima de seu ombro ao menos um relance da falecida srta. Wyvern.

Ele fechou rapidamente a porta, deu uma volta na chave e a deixou cair dentro do bolso.

— Hã-hã-hã — disse ele, me interrompendo no meio do pensamento. — E nem pense no molho de chaves da senhora Mullet, senhorita. Sei tão bem quanto você que as casas velhas como esta têm chaves de reserva aos montes. Se você deixar uma impressão digital que seja nesta porta, vou ter de indiciá-la.

Vindo de um especialista em digitais, aquela era uma ameaça séria.

— Que ajuste você usa em sua câmera? — perguntei, tentando distraí-lo. — Cento e vinte e cinco de velocidade com abertura onze?

O sargento coçou a cabeça – quase com prazer, pensei.

— Não adianta, senhorita — disse ele. — Já fomos avisados a seu respeito.

E, com isso, foi embora.

Avisados a meu respeito? Que diabos ele quis dizer com isso?

Eu só podia pensar em uma coisa: o inspetor Hewitt, o traidor, havia doutrinado seus homens contra mim a caminho de Buckshaw. Ele os prevenira especificamente contra a minha engenhosidade, que no passado os deve ter irritado como uma unha raspando uma lousa.

Ele achava que podia me passar a perna?

“Veremos, meu caro inspetor Hewitt”, pensei. “Veremos.”

Eu tinha percebido, enquanto conversava com o sargento Woolmer, uma troca de palavras em voz baixa no quarto adjacente – duas mulheres falando, a julgar pelo som.

Bati firmemente na porta e aguardei.

As vozes silenciaram, e um momento depois a porta se abriu não mais que uma fresta.

— Desculpe incomodar — eu disse para o único olho ligeiramente injetado que apareceu —, mas o senhor Lampman quer vê-la.

A porta se abriu para dentro, e vi o resto do rosto da mulher. Era uma das figurantes no filme.

— Ele quer me ver? — perguntou ela em uma voz surpreendentemente insolente. — Quer ver a mim ou a nós duas?

— O senhor Lampman quer nos ver, Flo! — gritou ela por cima do ombro sem esperar por uma resposta.

Flo limpou a boca e pôs de lado uma tigela da qual estava comendo.

— Vocês duas — eu disse, tentando pôr um toque de severidade na voz. — Acho que ele está lá fora em um dos caminhões — acrescentei —, portanto é melhor vocês se agasalharem.

Esperei pacientemente, encostada no batente da porta, até que elas se acotovelassem para fora rumo à escada, ainda se enfiando em seus pesados casacos de inverno.

Senti-me mais do que um pouco pesarosa por elas. Sabe Deus que fantasias passavam pela cabeça das duas figurantes. Cada uma delas, muito provavelmente, estava rezando para ter sido escolhida para substituir Phyllis Wyvern no papel principal.

Mas era melhor eu pôr mãos à obra. Elas estariam de volta muito em breve – e furiosas com a minha trapaça.

Entrei no quarto delas e girei a chave que, como a maioria das chaves em Buckshaw, fora deixada no lado de dentro da fechadura.

Atravessando o quarto, na parede interna entre a janela e a cômoda, havia uma cortina pendurada – remanescente dos dias em que os quartos de hóspedes eram decorados como haréns turcos. Ela reproduzia um grupo de caçadores com elefantes e um tigre, escondido entre as árvores da selva, preparando-se para saltar.

Empurrei de lado a cortina, espirrando quando uma nuvem de poeira cinzenta invadiu o quarto, revelando uma pequena porta com almofadas de madeira. Inseri a chave e, para minha imensa satisfação, senti o ferrolho deslizar para trás com um muito bem-vindo clique.

Segurei a maçaneta e dei-lhe uma boa torcida. Mais uma vez ouvi sons promissores, mas a porta continuou fechada, firmemente grudada.

Resmunguei alguma coisa entre uma prece e uma praga. Mesmo a inspeção de uma fração de segundo teria revelado que a porta estava presa pela velha pintura.

Com cinco minutos em meu laboratório, eu poderia ter produzido um solvente que teria removido a blindagem de um cruzador enquanto você pronunciava “Rumpelstiltskin”, mas não era o momento.

Uma olhada rápida em volta revelou uma bolsa de mulher jogada descuidadamente sobre a cama, e caí em cima dela como um tigre sobre os Marajás.

Lenço... frasco de perfume... aspirinas... cigarros (menina de maus hábitos!)... e uma bolsinha que, a julgar por seu peso e toque, não continha mais do que seis xelins e seis pence.

Ah! Ali estava – exatamente o que eu estava procurando. Uma lima de unhas. Aço de Sheffield. Perfeito!

Claro que minha prece fora ouvida, e minha praga, esquecida.

Inserindo a lâmina da lima entre o batente e a porta e trabalhando cuidadosamente como uma escoteira abrindo uma grande lata de feijões no acampamento, logo obtive uma satisfatória pilha de raspas de pintura no chão aos meus pés.

E, agora, em frente. Mais uma girada na maçaneta e um chute no painel de baixo, e a porta se abriu de um tranco, com um gemido.

Respirando fundo, entrei na Câmara da Morte.


16

TAMBÉM ESTE QUARTO tinha uma cortina empoeirada cobrindo a porta sem uso, e fui forçada a batalhar minha saída de trás dela antes de prosseguir.

O corpo de Phyllis Wyvern ainda estava jogado na poltrona como eu o encontrara, mas agora estava coberto por um lençol, como se fosse uma estátua cujo escultor tivesse saído para almoçar.

A polícia a essa altura já devia ter terminado sua inspeção e talvez aguardasse a chegada de um veículo apropriado para levar embora o corpo.

Nada de errado, portanto, se eu desse uma espiada.

Ergui lentamente o lençol, tomando cuidado para não mexer nos cabelos, ainda presos com as flores de Julieta, que me pareceram a única vaidade que ela deixara.

Até na morte, no entanto, havia algo de exótico em Phyllis Wyvern, muito embora depois de vinte e quatro horas o corpo tivesse começado sua inevitável dissolução química, assumindo agora uma aparência cinzenta e cérea.

A horrível palidez de sua carne – fora a face maquiada – dava-lhe a aparência de uma estrela dos tempos do cinema mudo, e por um momento tive a mesma sensação horrível que tivera antes: de que ela estava jogando o jogo de estátua, como eu fazia com Felinha e Dafi antes de elas começarem a me odiar; de que em um momento ela iria espirrar ou tragar um gigantesco, ofegante fôlego.

Mas nada disso aconteceu, é claro. Phyllis Wyvern estava tão morta quanto uma mesa.

Comecei minha inspeção do chão para cima. Ergui a barra de sua pesada saia de lã e vi imediatamente que os tornozelos estavam inchados, como balões, por assim dizer, acima de um par de pesadas botas pretas de trabalho.

Botas de trabalho? Não era possível que fossem dela!

Usando meu lenço para evitar deixar impressões digitais, deslizei uma das botas para fora de seu pé... lenta e cuidadosamente, observando em especial o modo como a grossa meia branca estava amarfanhada sob o peito do pé.

Como eu suspeitava, a bota tinha sido enfiada no pé dela depois que já estava morta.

Com grande cuidado, enrolei para baixo a meia até o joelho e a removi. O pé estava inchado, escuro e escoriado com o sangue pisado. As unhas pintadas eram medonhas.

Colocar a bota de volta, no entanto, não foi tão fácil quanto tirá-la, pois os dedos enrijecidos simplesmente se recusavam a voltar para dentro da bota. Seria isso o rigor mortis?

Tirei-a outra vez e enfiei os dedos na abertura. Havia alguma coisa forçando os dedos para baixo – papel, ao que parecia.

Será que alguém tão rica e famosa como Phyllis Wyvern compraria calçados de tamanho tão grande que seria preciso enfiar papel na ponta para servir?

Parecia improvável. Pesquei o bolo de papel com o dedo e o desamassei.

Era um pedaço de papel de carta, com um nome impresso no topo: Hotel Cora, Upper Woburn Place, Londres, WC1.

Rabiscadas através da página em tinta vermelha estavam as palavras:

Devo contar a b?

Maldita caligrafia! (se é que era dela). Será que poderia ser “Devo contar a T?”

O papel estava rasgado diagonalmente cortando a inicial – a letra final poderia ser qualquer coisa.

D de Desmond? D de Duncan? V de Val? ou seria um B de Bun?

Não havia tempo para especular, tampouco para me vangloriar de encontrar alguma coisa que a polícia deixara passar. Enfiei o papel no bolso do meu cardigã para análise posterior.

Batalhei de novo para recolocar a bota, mas, devido ao inchaço nas pernas, era como tentar espremer o pé de um elefante para dentro de uma sapatilha de balé.

Lembrando-me de Flo, ou Maeve, ou qualquer que fosse seu nome, disparei de volta para o quarto adjacente.

Sim! Bem como eu pensara – a atriz deixara meia tigela de pedaços de frutas não consumidas sobre a mesa noturna. Me servi da colher da sobremesa e voltei à srta. Wyvern.

Usando a colher como calçadeira, consegui enfiar a bota de volta no pé morto.

Melhor conferir o outro, alguma coisa me disse, e depressa o puxei para fora. Seria possível que houvesse uma continuação da mensagem no outro pé?

Não tive essa sorte. Para meu desapontamento, a segunda bota estava vazia, e rapidamente a enfiei de volta em seu pé.

E isso é tudo quanto às extremidades inferiores.

O próximo passo era dar-lhe uma boa cheirada. Eu aprendera com a experiência que o veneno pode estar subjacente a todas as causas de morte, e não pretendia correr nenhum risco.

Cheirei os lábios dela (o superior, notei, pintado maior do que realmente era com batom escarlate, talvez para mascarar o leve bigode que só era visível muito, muito de perto), depois as orelhas, o nariz, o decote, as mãos, e o máximo que consegui de suas axilas sem de fato mover o corpo.

Nada. A não ser por estar morta, Phyllis Wyvern cheirava exatamente como alguém que, apenas horas atrás, saíra de um banho com sais aromáticos.

Ela devia ter vindo direto de sua apresentação para o quarto, tirado a fantasia de Julieta (que ainda estava em cima da cama), tomado um banho, e então... o quê?

Usei meu lenço novamente para recolher de sua nuca uma pequena amostra da maquiagem de palco que eu havia notado antes. Borrada no lençol branco, a pintura gordurosa tinha a aparência de tijolo vermelho moído fino.

Dei especial atenção às unhas dela, que tinham sido recobertas por um esmalte escarlate brilhante para combinar com o batom. As cutículas formavam perfeitas meias-luas de branco acinzentado nos pontos onde o esmalte colorido não fora aplicado. Felinha também fazia suas unhas assim, e tive um súbito, porém momentâneo, ataque de arrepios.

“Fique firme, garota”, pensei. “É apenas morte.”

Phyllis Wyvern decerto não estava usando aquelas unhas gritantemente vulgares no palco. Muito pelo contrário: a não ser pelo tabefe, sua interpretação de Julieta tinha sido notável pela simplicidade aldeã. A Julieta da vida real, afinal, não tinha mais do que doze ou treze anos, ou pelo menos é isso o que alega Dafi.

“Se não fosse por gente como você”, dissera ela misteriosamente uma vez, “eu gostaria que Dirk Bogarde escalasse para o meu balcão no momento em que estamos falando”.

Phyllis Wyvern, em comparação, tinha cinquenta e nove anos. Ela mesma me contara isso. Como ela conseguira dispensar mais de quarenta e seis anos sob os refletores era nada menos que um milagre.

Talvez fosse o seu tamanho. Ela na verdade não era muito maior do que eu.

“É melhor eu continuar com isso”, pensei. As atrizes poderiam voltar a qualquer momento de sua busca pelo impossível e começar a esmurrar a porta trancada.

Mas alguma coisa trivial estava me incomodando lá no fundo da minha cabeça – alguma coisa que não estava muito certa. O que poderia ser?

Dei um passo atrás para uma olhada mais geral no corpo.

Em sua saia e blusa de camponesa, Phyllis Wyvern parecia ter acabado de sentar na poltrona para recuperar o fôlego antes de sair para um baile de máscaras.

Seria possível que ela simplesmente tivera um ataque do coração, talvez, ou sofrido um derrame fatal?

É claro que não! Não havia nada impedindo a visão daquele sombrio laço decorativo de filme de cinema enrolado com elegância na garganta dela. E, além disso, Dogger mostrara um hematoma. A mulher tinha sido estrangulada. Isso estava muito claro. Uma parte de minha mente ainda devia estar remoendo aquilo numa tentativa de reduzir o horror do que teve ter sido uma cena violenta.

Dos seus cabelos até...

Seus cabelos! Era isso!

Como estrelinhas coloridas brilhando no céu de inverno, a coroa de flores de Julieta ainda estava entretecida em seus longos cabelos dourados. Dificilmente as flores seriam reais, pensei. Se fossem, já teriam murchado, e no entanto pareciam frescas como se tivessem sido colhidas apenas momentos antes de eu entrar no quarto.

Estendi a mão e arranquei uma primavera que parecia orvalhada.

Difícil dizer pelo tato. Dei uma puxada na coisa e... bom Deus! O cabelo de Phyllis Wyvern, com flores e tudo, desmoronou da cabeça dela e caiu no chão com o som repugnante de um pássaro abatido no céu, caindo morto no chão.

Era uma peruca, é claro, e, sem ela, era calva como um ovo cozido.

Um ovo cozido sarapintado com ainda mais hematomas, ou manchas de Tardieu, como Dogger as chamou.

Fiquei olhando, aparvalhada. Que tipo de pesadelo era esse em que fui cair?

Recolhi a peruca do tapete e a recoloquei na cabeça dela, mas, não importava quanto eu a torcesse de um lado para outro, continuava parecendo ridícula.

Talvez fosse o conhecimento do que jazia abaixo.

Bem, eu não poderia passar o dia inteiro lidando com o penteado dela. Enfim tive de desistir e voltar a atenção para a cômoda, que descobri estar atulhada de um sortimento variado de frascos e latas: cremes de limpeza teatrais, glicerina e água de rosas, fileira após fileira de cremes para limpeza de pele e diversos artigos de toucador por Harriet Hubbard Ayer. Embora o topo da cômoda fosse uma verdadeira loja de boticário, algumas coisas estavam obviamente faltando: uma era a maquiagem teatral vermelha; as outras incluíam o batom e o esmalte de unhas escarlate.

Dei uma rápida revirada na bolsa dela, mas, além de um punhado de lenços de papel, uma carteira contendo seiscentas e vinte e cinco libras e um punhado de trocados, pouca coisa havia que realmente interessasse: um pente de tartaruga, um espelho de bolso e uma lata de balas de hortelã (da qual me servi de uma e meti no bolso um par de extras para ganhar energia rápida, se precisasse depois).

Estava a ponto de fechar a bolsa quando notei o zíper, quase invisível contra o forro, uma camuflagem cuidadosa do fabricante da bolsa.

“Olá!”, pensei. “O que é isto? Um compartimento secreto!”

Para meu desapontamento, havia pouca coisa lá dentro – um molho de chaves e um livreto, pequeno, mas com um ar oficial, consistindo em duas páginas cinzentas com a mesma informação repetida em cada uma.

CONDADO DE LONDRES

Licença para conduzir um Automóvel ou Motocicleta

Phyllida Lampman

“Tenebrae”

3 Collier’s Walk, S.E.

Tinha sido emitida em 13 de maio de 1929.

Phyllida? Lampman?

Poderia ser esse o nome verdadeiro de Phyllis Wyvern? Parecia inacreditável que ela tivesse a licença para conduzir de uma estranha em sua bolsa.

Mas, presumindo que Phyllida era Phyllis ou vice-versa, como eu deveria entender o resto? Ela seria mulher de Val Lampman? Irmã? Cunhada? Prima?

“Prima” e “mulher” eram distintamente possíveis. De fato, ela podia ser ambas as coisas. Harriet, por exemplo, era uma De Luce antes de se casar com o pai, e por isso não precisara abrir mão de seu nome de solteira.

Se Phyllis Wyvern não mentira para mim sobre sua idade – e por que faria isso? –, ela deveria ter... vejamos... 1929 tinha sido vinte e um anos atrás... trinta e oito anos quando a licença foi emitida.

Qual seria a idade de Val Lampman? Difícil dizer. Ele era uma daquelas criaturas parecidas com gnomos, com uma pele lustrosa, esticada, e cabelos pálidos que, com um lenço de seda no pescoço para esconder as rugas, poderia passar por um eterno jovem.

O que foi mesmo que dissera Dafi? Que desde qualquer coisa – que eu era jovem demais para entender – Phyllis Wyvern não trabalhava com nenhum outro diretor.

O que poderia ser aquele “qualquer coisa”? Estava ficando mais claro a cada minuto que, por quaisquer meios que fossem necessários, eu precisava abrir à força a concha pegajosa da minha irmã.

Eu estava dando uma segunda olhada nas unhas de Phyllis Wyvern quando a maçaneta da porta girou!

Quase fui pega!

Felizmente a porta estava trancada.

Soquei a licença de volta na bolsa e fechei o zíper. Recolhi o lençol do chão e, tentando não fazer nenhum ruído, cobri novamente o corpo.

Isso feito, encontrei tateando meu caminho para trás da cortina, que soltou mais uma nuvem de poeira sufocante.

Agarrei minhas narinas e apertei-as bem a tempo de reduzir um grande espirro a um pequenino, porém um tanto rude, ponto de exclamação sonoro:

— Tchim.

“Saúde para mim!”

Tive de ser cuidadosa com a porta estufada pela pintura. Não consegui fechá-la tão perfeitamente atrás de mim como desejava, mas precisei me contentar com alguns cautelosos, porém quase silenciosos, puxões. As cortinas em cada quarto iriam não só abafar o som como talvez até impedir a todos, menos o mais determinado observador, de sequer notar a existência da porta.

Felizmente, a sujeira de lascas de pintura que eu espalhara estava do meu lado da porta, e não pude deixar de me congratular por deixar o Dormitório Azul sem um vestígio sequer da minha passagem.

Pegando a escova de cabelo de Flo – ou de Maeve – da penteadeira (depois de recolocar com cuidado a colher de sobremesa delas na tigela de frutas) e usando a revista Cinema Weekly que estava jogada sobre a cama como uma pá de lixo improvisada, varri as lascas de pintura e as entornei cuidadosamente no bolso do meu cardigã.

Eu me livraria delas depois. Não havia sentido em deixar evidências confusas para distrair a polícia.

Abri uma fresta na porta e espiei para fora. Não havia ninguém à vista, até onde eu podia ver.

Assim que pisei no corredor, uma voz familiar atrás de mim disse:

— Espere aí.

Eu quase pisara no pé do inspetor Hewitt.

— Ah, olá, inspetor — disse eu. — Eu estava só procurando, ahn, Flo.

Pude perceber imediatamente que ele não acreditou.

— Estava mesmo? — perguntou ele. — Por quê?

Raio de homem! Suas perguntas sempre iam direto ao ponto.

— Não é bem verdade — confessei. — De fato, eu estava bisbilhotando no quarto dela.

Não havia necessidade de incluir na minha mentirinha a convocação de Val Lampman.

— Por quê? — persistiu o inspetor.

Às vezes não há nada a fazer senão contar a verdade.

— Bem — eu disse, procurando loucamente pelas palavras certas —, na verdade é um passatempo meu. Eu às vezes fico bisbilhotando as coisas de Dafi e Felinha de um jeito horrível.

Ele olhou para mim com aquilo que alguém uma vez chamou de “aquele olho assustador”.

— Eu achei que os quartos do pessoal de cinema deviam ser mais interessantes...

— Incluindo o da senhorita Wyvern?

Forcei meus olhos a se arregalarem em inocência.

— Eu ouvi você espirrar, Flavia — disse ele.

Desgraçado!

— Esvazie seus bolsos, por favor — disse o inspetor, e não tive escolha senão obedecer.

Lembrando-me das histórias do pai sobre suas proezas quando era um ilusionista quando menino, tentei “empalmar”, como acho que isso se chama, dobrando embaixo do polegar e pressionando para dentro do meu lenço, a bola de papel amarfanhado que eu encontrara na bota de Phyllis Wyvern.

— Obrigado — disse o inspetor, estendendo a mão, e fiquei “zerada”, como diz o vigário quando joga cribbage com o baralho.

Entreguei-lhe o papel.

— O outro bolso, por favor.

— Não tem nada senão bobagens — eu disse a ele. — Só um monte de...

— Eu é que vou decidir isso — interrompeu ele. — Vire para fora.

Travei os olhos nos dele enquanto virava o bolso do avesso, e um pequeno Vesúvio entrou em erupção lançando lascas de pintura a flutuar num silêncio horrendo para o chão.

— Por que você faz isso, Flavia? — perguntou o inspetor em uma voz subitamente diferente, os olhos fixos na sujeira que eu tinha jogado em cima do tapete. Não creio que jamais o tivesse visto tão magoado.

— Isso o quê?

Não pude me conter.

— Mentir — disse ele. — Por que você inventa essas histórias bizarras?

Eu mesma pensara nisso muitas vezes e, embora tivesse uma resposta pronta, não me senti obrigada a entregá-la.

“Bem”, eu queria dizer, “existem aqueles entre nós que criam porque todas as coisas em volta de nós, visíveis e invisíveis, estão se desfazendo. Somos como os construtores da Babilônia, para sempre trabalhando, como está escrito em Jeremias, para sustentar os muros da cidade.”

Eu não disse isso, é claro. O que eu realmente disse foi:

— Eu não sei.

— Como eu posso deixar claro para você... — começou ele, ao mesmo tempo desamassando o papel e dando uma só olhada nele. — Onde você conseguiu isto?

— No sapato de Phyllis Wyvern — eu disse, lembrando-me de não chamar a atenção para o fato de que era, de fato, uma bota. — No pé direito. Você deve ter deixado passar despercebido.

Pude ver o dilema do inspetor: ele não poderia dizer a seus homens – ou a seus superiores – que encontrara aquilo ele mesmo.

— Você sabe, existe uma porta de comunicação — disse eu, solícita. — Eu sabia que você já tinha tirado fotos e tudo isso, então apenas entrei para dar uma olhada rápida em volta.

— Você tocou em mais alguma coisa?

— Não — eu disse, lá plantada claramente visível com meu lenço sujo e amarfanhado na mão.

Por favor, Deus e São Genésio, santo patrono dos atores e dos que foram torturados, não permita que ele me mande entregar.

E funcionou! Todos os louvores para vocês dois!

Eu iria ofertar um sacrifício queimado mais tarde em meu laboratório – uma pequena pirâmide de bicromato de amônia, talvez um chuveiro de fagulhas festivas...

— Você tem certeza? — estava perguntando o inspetor.

— Bem — disse eu, baixando a voz e dando uma olhada pelo corredor nas duas direções, para ver se ninguém nos ouvia. — Eu dei uma olhada rápida na bolsa dela. Você, é claro, notou a licença para dirigir de Phyllida Lampman, não é?

Pensei que o inspetor ia botar um ovo.

— Isso é tudo — disse ele bruscamente, e foi embora.


17

— EU PRECISO DE SEU ACONSELHAMENTO pessoal — eu disse a Dafi. Era uma tática que nunca falhava.

Como sempre, ela estava enrodilhada na biblioteca como um lagostim, ainda mergulhada em seu Dickens.

— Supondo que você quisesse procurar alguém — perguntei —, por onde começaria?

— Somerset House — disse ela.

Minha irmã estava sendo engraçadinha. Eu sabia, bem como qualquer um no reino, que Somerset House, em Londres, era onde todos os registros de todos os nascimentos, mortes e casamentos eram mantidos, juntamente com atestados, testamentos e outros documentos públicos. O pai certa vez nos apontara o local, muito mal-humorado, de dentro de um táxi.

— Além disso, eu quero dizer.

— Eu contrataria um detetive — disse Dafi, de cara azeda. — Agora, por favor, vá embora. Não está vendo que estou ocupada?

— Por favor, Dafi. É importante.

Ela continuou a me ignorar.

— Vou lhe dar metade de tudo o que está na minha conta de poupança do Correio.

Eu não tinha intenção de fazer isso, mas valia a tentativa. Dinheiro, para Dafi, significava livros, e, muito embora a biblioteca de Buckshaw contivesse mais livros do que a Biblioteca Circulante de Bishop’s Lacey, para minha irmã isso não era o suficiente.

“Os livros são como o oxigênio para um mergulhador de águas profundas”, dissera ela uma vez. “Tire-os, e você poderá muito bem começar a contar as bolhas de ar.”

Pude perceber pelo tremor nos cantos de seus lábios que ela ficou interessada na minha oferta.

— Está bem. Dois terços — eu disse. A gente pode sempre aumentar as apostas em segurança quando tem más intenções.

— Se a pessoa fosse alguém — disse ela erguendo os olhos de seu livro — no Burke’s Peerage, um guia histórico das famílias reais e nobres da Inglaterra.

— E se não fosse ninguém? E se fosse simplesmente famosa?

— Quem é quem — disse ela, apontando o dedo para as estantes de livros. — Vai custar três libras, dez xelins e seis pence, se me faz o favor. Assim que as estradas estiverem desimpedidas, vou acompanhá-la pessoalmente ao Correio para me certificar de que você não deixará de honrar sua promessa.

— Obrigada, Dafi — disse eu. — Você é fantástica.

Mas era tarde demais. Ela já tinha começado a descer para as profundezas de Dickens.

Fui seguindo displicentemente pelas estantes. Quem é quem me soara familiar. Embora eu nunca tivesse aberto um daqueles livros, a estante de gordos volumes vermelhos, com datas que iam até um século atrás, era parte da paisagem livresca de Buckshaw.

Mas, quanto mais eu me aproximava, mais meu coração começava a afundar. Um grande vazio à direita da segunda prateleira mostrava que diversos volumes estavam faltando.

— Onde foram parar os de 1930 e 1940? — perguntei.

O silêncio de Dafi me deu a resposta.

— Vamos, Dafi. É importante.

— Quão importante? — perguntou ela sem erguer os olhos.

— Tudo — eu disse.

— Tudo o quê?

— Toda a minha poupança no Correio.

— Toda?

— Toda. Cem por cento. (Vide observação anterior sobre más intenções.)

— Promete?

— Com a mão no coração, juro pela minha vida.

Pus dramaticamente a mão no coração e rezei com todas as minhas forças para viver tanto quanto Tom Parr, cuja sepultura tínhamos visto certa vez na abadia de Westminster e que vivera até a idade madura de cento e cinquenta e dois anos.

Dafi apontou languidamente.

— Embaixo do sofá — disse ela.

Caí de joelhos e estendi a mão por baixo dos babados floridos.

A-há! Quando minha mão reapareceu estava segurando a edição de 1946 de Quem é quem.

Levei o livro para um canto e o abri sobre os joelhos.

Os “eles” só começavam depois de cerca de seiscentas páginas, na metade do livro: LaBrash, Ladbroke, Lamarsh, Lambton... Sim, aqui estava – Lampman, Lorenzo Angenieux, n. 1866, c. Phyllida Grome, 1909, uma f.a Phyllida Veronica, n. 1910, um f.o Waldemar Anton, n. 1911.

Rapidamente deduzi o sistema de abreviaturas: n. era “nascido”, c. era “casado”, fa e fo deviam significar “filha” e “filho”.

Havia muito mais. Aquilo prosseguia mais e mais sobre a educação de Lorenzo Lampman (Bishop Laud), seu serviço militar (Fuzileiros Reais de Gales), seus clubes (Boodles, Carrington’s, Garrick, White’s, Xenophobe) e seus títulos acadêmicos (D.S.C., M.M.). Ele publicara um livro de memórias, Com arco e rifle ao Kalahari, e morrera no naufrágio do Titanic em 1912, apenas um ano depois do nascimento de seu filho, Waldemar Anton.

O jovem Waldemar só podia ser Val Lampman, o que significava que aquele diabrete, a despeito de sua aparência de gnomo, não tinha mais de trinta e nove anos.

Ele e Phyllis Wyvern eram irmão e irmã – e ela tinha quarenta anos, e não cinquenta e nove!

Eu bem que achara que havia algo de suspeito quanto à idade dela.

Virei rapidamente para o fim do livro – os Ws –, apesar de Dafi ter me alertado para o fato de o Quem é quem não ser muito entusiasmado com atores.

Não havia nenhum Wyvern listado, com exceção de um Sir Peregrine, o último de sua linhagem, que morrera em um duelo com seu chapeleiro em 1772.

Dei uma olhada rápida em alguns dos outros volumes, mas eram todos muito parecidos. No mundo das altas esferas, o tempo, ao que parecia, andava mais devagar. No frigir dos ovos, Quem é quem não passava de um catálogo dos mesmos velhotes arrotando sua importância ano após ano, a caminho da sepultura.

— Dafi — eu disse, tomada por uma súbita ideia. — Como você sabia que eu ia perguntar sobre Quem é quem?

Houve um silêncio que foi ficando mais longo a cada momento.

— Pax vobiscum — disse ela de maneira súbita e inesperada.

Pax vobiscum? Era um sinal de trégua muito antigo entre as irmãs De Luce – uma fórmula que era usualmente pronunciada por mim. Tudo o que eu teria de fazer era dar a resposta correta, “Et cum spiritu tuo”. E, durante exatos cinco minutos pelo relógio mais próximo, estaríamos obrigadas pelos laços de sangue a deixar que coisas passadas fossem esquecidas. Sem exceções, sem “mas”, “se” ou mentirosos dedos cruzados atrás das costas. Era um contrato solene.

— Estive pensando... — disse ela, e eu estava obrigada pelas regras a não perguntar: “E doeu muito?”. — Estive pensando — prosseguiu ela — que, como é Natal, seria agradável, apenas esta vez...

— Sim, Dafi?

Havia alguma coisa na postura dela – alguma coisa no modo como ela se portava. Pela duração de um relâmpago, e não mais, ela foi o pai, e então, igualmente rápido, foi Dafi de novo. Ou teria ela, por um milionésimo de segundo, sido a Harriet que eu vislumbrara em tantas velhas fotografias?

Era estranho e assustador. Não, ainda mais que isso – era enervante.

Enquanto Dafi e eu ficamos lá paradas sem olhar uma para a outra, e antes que ela pudesse falar, ouviu-se uma batida leve à porta. Como uma flecha lançada de um arco, Dafi voou em um segundo de volta à sua poltrona exageradamente estofada e, quando a porta se abriu devagar um momento depois, ela já estava acomodada com cuidado, aparentemente mergulhada de novo em A casa abandonada.

— Posso entrar? — perguntou o inspetor Hewitt, mostrando o rosto à porta.

— É claro — disse eu, um tanto inutilmente, pois ele já estava na sala, seguido de perto por Desmond Duncan.

— O senhor Duncan concordou com gentileza em nos ajudar a estabelecer uma linha do tempo razoavelmente precisa para a cena do balcão. Agora, então, Flavia, creio que você me contou que existe um exemplar das obras completas de Shakespeare aqui na biblioteca?

— Existia, mas ela levou — disse Dafi azeda, sem erguer os olhos de seu Dickens.

Houve uma sensação momentânea de ansiedade em meu abdômen, em parte porque Dafi, a despeito de meus melhores esforços, me vira surrupiando o livro, e em parte porque eu não me lembrava do que fizera com a maldita coisa. Com toda aquela agitação em volta de Nialla e seu bebê, eu devia tê-lo deixado em algum lugar sem pensar.

— Vou buscá-lo — eu disse, me dando um chute mental nas costas. Estar fora da sala por alguns minutos significava que eu perderia uma parte importante da investigação do inspetor Hewitt, e cada momento dela, do meu ponto de vista, era precioso.

“Flavia, sua idiota!”, pensei.

— Não faz mal — disse Dafi, escapando de sua poltrona e dirigindo-se às estantes. — Nós provavelmente acumulamos mais do que a nossa cota justa de Shakespeare no decorrer dos anos. Deve haver mais um exemplar.

Ela correu o indicador pela lombada dos livros do modo familiar, como os bibliófilos fazem em qualquer parte.

— Sim, aqui está. Uma edição em volume único de Romeu e Julieta. Em estado um tanto precário, mas vai ter de servir.

Ela o entregou ao inspetor, mas ele sacudiu a cabeça.

— Entregue-a ao senhor Desmond, por favor — disse ele.

“A-há!”, pensei. “Impressões digitais! Ele está colhendo as de Dafi e as de Desmond Duncan de uma só vez. Muito astuto, inspetor”.

Desmond Duncan pegou o livro das mãos de Dafi e o folheou, procurando a página correta.

— Uma impressão muito distinta — disse ele — e uma fonte antiquada.

Ele pescou um par de óculos de aro de chifre de um bolso interno do colete e, com um floreio teatral, assentou-os em seu famoso nariz.

— Não que eu esteja desacostumado a manusear esses textos — prosseguiu ele, voltando para o começo do livro. — É só que não se espera encontrá-los em um lugar tão remoto. De fato, se eu não o conhecesse melhor...

Famoso astro de cinema ou não, eu me enfiei por trás dele para ver melhor enquanto ele estudava a página de rosto.

Isto foi o que eu li:

Uma

EXCELENTEMENTE

conceituada Tragédia

DE Romeu e Julieta (estava escrito)

Conforme foi muitas vezes (com grandes aplausos)

Representada publicamente pelo

Honorável L. Hundon

seus serventes

LONDRES,

Impresso por Iohn Danter.

1597

No topo da página, em tinta vermelha na horizontal e preta na vertical, estava inscrito o monograma:

H

H d L

L

Prendi a respiração quando reconheci imediatamente: as iniciais do pai e de Harriet entrelaçadas – e na caligrafia deles mesmos!

O tempo pareceu parar.

Olhei para o relógio sobre a lareira e vi que a trégua de cinco minutos havia passado. A despeito disso, passei um braço em volta dos ombros de Dafi e dei-lhe um forte, rápido abraço.

— Receio, inspetor — disse Desmond Duncan afinal —, que esta edição em especial não é suficiente para os nossos propósitos. É um texto um pouco diferente daquele com base no qual eu estava acostumado a representar. Teremos de confiar na minha memória.

E, com isso, ele enfiou o livro discretamente no bolso de seu casaco.

— Sim, bem, então — disse o inspetor Hewitt, como se estivesse se sentindo aliviado por superar um momento desconfortável —, talvez possamos trabalhar com a indubitavelmente perfeita lembrança da cena pelo senhor Duncan. Vamos conferi-la depois com o seu exemplar cotidiano do livro. De acordo?

Nos entreolhamos e acenamos com a cabeça em concordância.

— Daphne, você se importaria em fazer a nossa cronometragem? — perguntou o inspetor, removendo seu relógio de pulso e entregando-o a ela.

Pensei que ela iria desmaiar diante de tamanha importância. Sem uma palavra, ela pegou o relógio das mãos dele, subiu em cima da poltrona e se encarrapitou em seu encosto, deixando o relógio pender de seus dedos à distância de um braço.

— Prontos? — perguntou o inspetor.

Dafi e Desmond assentiram secamente, os rostos muito sérios, preparados para a ação.

— Comecem! — disse ele.

E Desmond Duncan falou:

— “Só zomba de cicatrizes quem nunca sofreu ferida.

Mas silêncio! Que luz através daquela janela rompe?

É o Oriente, e Julieta é o Sol.

Ergue-te, formoso sol, e mata a Lua invejosa...

Que já está doente e pálida de pesar,

Porque tu, sua serva, és mais formosa do que ela...”

As palavras saíram fluindo daquela garganta de ouro, parecendo desmoronar uma por cima da outra em seu ímpeto, e, no entanto, cada uma com uma clareza cristalina.

— “Ai de mim!” — Dafi gemeu subitamente de cima de seu poleiro.

— “Ela fala!” — disse Romeu, com uma genuína expressão de assombro no rosto.

— “Oh, fala de novo, anjo brilhante!” — ele a instou. — “Pois és tão glorioso para esta noite, acima da minha cabeça, Como um mensageiro alado dos céus...”

O rosto de Dafi se tornara subitamente radiante como o de um anjo numa pintura de Van Eyck, e Desmond Duncan, como Romeu, parecia ter sido transportado por ele para uma outra esfera.

— “Vê como ela apoia a face sobre a mão!” — prosseguiu Romeu, seus olhos em ávida comunicação com os dela.

— “Ah, quisera eu ser uma luva naquela mão. Para poder tocar naquela face!”

Seria apenas eu, ou a sala estava ficando mais quente?

— “Oh, Romeu, Romeu!” — sussurrou Dafi em uma voz nova e rouca. — “Por que és tu, Romeu?”

Alguma coisa saltara para a vida entre eles; alguma coisa que tinha sido criada do nada; alguma coisa que não estava lá antes.

O mundo ficou embaçado nas bordas. Um tremor sacudiu meus ombros. Eu estava vendo e ouvindo magia.

Dafi tinha treze anos. Uma Julieta perfeita.

E Romeu reagiu.

Eu mal me atrevi a respirar enquanto as palavras de afeto se derramavam entre eles como um velho mel familiar. Era como bisbilhotar um casal de enamorados da aldeia.

O inspetor Hewitt também caíra sob o encantamento deles, e não pude evitar me perguntar se ele estava pensando em sua própria Antigone.

Dafi sabia as falas de cor, como se as tivesse pronunciado por mil e uma noites em um palco do West End para um público embevecido. Poderia aquela bela criatura ser minha tímida irmã?

— “Boa noite, boa noite!” — suspirou ela por fim. — “A separação é tão doce aflição. Que eu diria boa-noite até amanhã.”

E Romeu respondeu:

— “Que o sono recaia sobre teus olhos e a paz em teu peito! Fosse eu sono e paz, para tão doce repousar!”

— Tempo — anunciou Dafi de maneira abrupta, quebrando o encanto. Ela ergueu o relógio para olhar mais de perto. — Dez minutos, trinta e oito segundos. Nada mau.

Desmond Duncan agora olhava fixo para ela, não encarando abertamente, mas não muito longe disso. Ele abriu a boca como se fosse dizer alguma coisa, e então, no último segundo, sua boca decidiu dizer outra coisa.

— Nada mau mesmo, minha jovem dama — foram as palavras que saíram. — De fato, bastante notável.

Dafi deslizou pesadamente para o assento e jogou as pernas por cima do braço da poltrona. Ela voltou sua atenção para um marcador imaginário em A casa abandonada e recomeçou a ler.

— Obrigado a todos vocês — disse o inspetor Hewitt, anotando a cronometragem em sua caderneta. — É o bastante por ora.

Era bom que fosse. Alguma coisa estava pesando muito na minha cabeça.


18

BATI DE LEVE À porta de tia Felicity e, sem esperar resposta, entrei.

A janela estava aberta os três centímetros regulamentares, e tia Felicity estava deitada de costas, agasalhada até o pescoço com uma manta de lã, com pouco mais que o gancho porta-xícaras de seu nariz exposto ao ar frio do quarto.

Inclinei-me para examiná-la. Quando fiz isso, um de seus venerandos olhos de tartaruga se abriu, e depois o outro.

— Pelo amor de Deus, menina! — disse ela, erguendo-se nos cotovelos para uma posição meio sentada. — O que foi? Qual é o problema?

— Nada, tia Felicity — disse eu. — Eu só queria perguntar uma coisa.

— A minha boca estava aberta? — murmurou ela, emergindo rapidamente para a superfície da realidade. — Eu estava falando enquanto dormia?

— Não. Você estava dormindo o sono dos mortos.

Não me dei conta do que estava dizendo até ser tarde demais.

— Phyllis Wyvern! — disse ela, e eu assenti.

— Bem, o que é, menina? — perguntou ela, azeda, mudando de assunto. — Você me pegou cochilando. As necessidades rítmicas de oxigênio de uma mulher idosa precisam ser renovadas em intervalos precisos de doze horas, e os entusiastas da cultura física que se danem. É simplesmente uma questão de hidrostática.

Não era verdade, mas eu não a corrigi.

— Tia Felicity — perguntei, tomando a iniciativa —, você se lembra daquele dia no último verão à margem do lago ornamental? Quando você me disse que eu devia cumprir o meu dever, mesmo que levasse a um assassinato?

Estávamos então falando de Harriet e dos aspectos em que eu era parecida com ela.

A expressão de tia Felicity se suavizou, e a mão dela tocou a minha.

— Estou feliz por você não ter esquecido — disse ela suavemente. — Eu sabia que não se esqueceria.

— Tenho uma confissão a fazer — eu disse a ela.

— Vá em frente — disse ela. — Eu aprecio um bom desabafo de segredos tanto quanto qualquer um.

— Eu invadi o quarto de Phyllis Wyvern — eu disse —, para dar uma olhada em volta.

— Sim?

— Encontrei uma licença para dirigir na bolsa dela. Em 1929 ela era Phyllida Lampman. Phyllida, não Phyllis.

Tia Felicity jogou as pernas pesadamente para fora da cama e foi andando com rigidez até a janela. Por um longo tempo ficou lá parada, olhando para fora, como o pai, para a neve.

— Você a conhecia, não é? — disparei.

— O que faz você pensar isso? — perguntou tia Felicity sem se voltar.

— Bem, quando você chegou, o eletricista, Ted, a cumprimentou como se fosse um velho amigo. Val Lampman usa a mesma equipe em todos os filmes que faz. E o mesmo elenco, incluindo Phyllis Wyvern. Dafi diz que ela não permite que ninguém a dirija, desde que alguma coisa aconteceu. Todo mundo conhece todo mundo. Quando lhe perguntei sobre Ted, você disse que o vira em algum lugar durante a guerra – durante um blecaute. Quando observei que você não poderia ter visto o rosto dele, você disse que eu deveria ser pintada com seis camadas de goma-laca.

Tia Felicity suspirou fundo – o tipo de suspiro de que uma rainha precisa antes de sair com o rei para o balcão do palácio de Buckingham para enfrentar as câmeras dos noticiosos e as multidões.

— Flavia — disse ela —, você precisa me prometer uma coisa.

— Qualquer coisa — disse eu, surpresa ao ver que ela não precisou fingir uma cara solene, que já estava lá.

— O que eu vou contar não deve ser repetido. Nunca, jamais! Nem mesmo para mim.

— Eu prometo — disse eu, pondo a mão no coração.

Ela agarrou meu antebraço, com força suficiente para me fazer recuar. Não acho que ela tivesse consciência de que estava fazendo isso.

— Você precisa entender que havia pessoas entre nós que, durante a guerra, foram solicitadas a assumir tarefas de enorme importância...

— Sim? — perguntei, ansiosa.

— Não posso contar, sem quebrar a Lei dos Segredos Oficiais, o que exigiam essas tarefas, e você não deve me perguntar. Anos depois, a gente se vê cruzando com antigos colegas com uma regularidade monótona que, por lei, temos o dever de não reconhecer.

— Mas Ted a chamou.

— Um erro estúpido e chocante da parte dele. Vou arrancar fora uma divisa dele quando estivermos sozinhos.

— E Phyllis Wyvern?

Tia Felicity suspirou.

— Philly — disse ela mansamente — era uma de nós.

— Uma de... vocês?

— Você jamais deverá mencionar isso — disse ela, apertando meu braço ainda mais forte. — Até o dia de sua morte. Se fizer isso, vou procurá-la no meio da noite com uma faca de açougueiro.

— Mas, tia Felicity, eu prometi!

— Sim, você prometeu — disse ela, aliviando o aperto.

— Phyllis Wyvern era uma de vocês — relembrei.

— E muito valiosa — disse ela. — Sua fama abria portas que estavam fechadas para meros mortais. Phyllis foi forçada a representar um papel mais mortífero que qualquer um que ela representara no palco ou na tela.

— Como você sabe disso? — Não pude deixar de perguntar.

— Sinto muito, querida. Isso eu não posso contar.

— Val Lampman também era um de vocês? Ele poderia bem ter sido, já que era irmão de Phyllis Wyvern.

Alguma coisa subiu na garganta de tia Felicity, e pensei por um momento que ela iria lançar fora os bolinhos de seu chá, mas o que saiu foi mais como o zurrar de um burro. Seus ombros se sacudiram, e seus seios tremeram.

Minha querida velha tia estava rindo!

— Irmão dela? Irmão de Phyllis Wyvern? De onde você tirou essa ideia?

— Da licença para dirigir. Lampman.

— Ah, entendi — disse tia Felicity, enxugando os olhos com a borda de sua manta. — Irmão de Phyllis Wyvern? — disse ela de novo, como se estivesse repetindo o fim de uma piada para alguma outra pessoa no quarto. — Longe disso, querida menina; de fato, muito longe disso. Ela é mãe dele.

Minha boca se abriu como a de um cadáver cuja atadura do queixo tivesse sido removida.

— Mãe dele? Phyllis Wyvern é mãe de Val Lampman?

— Surpreendente, não é? Ela o teve quando era muito jovem, não mais que dezessete anos, acredito, e a idade de Val, com todas as aparências externas, é um tanto... indeterminada.

Então era isso! Val Lampman era o “Waldemar” de Quem é quem, mas ele era filho de Phyllis Wyvern, e não irmão dela, como eu presumira. Eu interpretara erroneamente o verbete de Quem é quem. Tive vontade de corar, mas estava excitada demais.

— Ela já tivera uma filha um ano antes — prosseguiu tia Felicity. — Veronica, acredito, era o nome da menina. Pobre criança. Ocorreu uma grande tragédia da qual nunca se falou. Phyllida, ou Phyllis, como ela gostava de ser chamada, fora casada por algum tempo com o falecido e não imensamente lamentado Lorenzo, que, a despeito de seu sangue azul e da grande diferença de idade, ainda estava ativo como caixeiro-viajante no ramo de vinhos, ou perucas, esqueci qual.

— Perucas, provavelmente — disse eu —, porque ela estava usando uma.

Tia Felicity me lançou um olhar de desaprovação, como se eu tivesse revelado um segredo.

— Ela caiu — expliquei. — Eu estava tentando impedir que a mortalha que a polícia jogara por cima dela desmanchasse seus cabelos.

Seguiu-se um silêncio daqueles tão densos que se poderia fincar nele uma colher.

— Pobre Philly — disse tia Felicity afinal. — Ela sofreu terrivelmente nas mãos dos agentes do Eixo. Produtos químicos, acredito. O cabelo dela era a sua glória. Eles bem poderiam ter cortado fora o seu coração.

Produtos químicos? Tortura?

Dogger também tinha sido torturado, no Extremo Oriente. Era bizarro o modo como aquelas antigas atrocidades pareciam voltar a suas origens na pacífica Bishop’s Lacey.

— O pai sabe a respeito dessas coisas? De Phyllida Lampman, quero dizer?

— Ela foi dirigida por Malinovsky em diversos filmes estrangeiros — prosseguiu tia Felicity, olhando para as próprias mãos como se pertencessem a uma estranha. — De maneira especial, é claro, em Anna das estepes, um papel que a levou, indiretamente, à sua missão e à sua posterior derrocada. Embora ela tivesse escapado com vida, sofreu um colapso total, durante o qual desenvolveu um horror irracional a todos os europeus orientais.

— E foi por isso que ela insistiu em sempre trabalhar com a mesma equipe de filmagem — disse eu.

— Precisamente.

Tínhamos assistido à versão refilmada de Anna das estepes no cinema em Hinley, onde fora exibida – com legendas em inglês – como Vestida para morrer.

Embora de início tivesse parecido ser apenas mais um daqueles filmes maçantes e inacabáveis sobre a Revolução Russa, logo me vi arrebatada pela história, os olhos deslumbrados com as contundentes imagens em preto e branco, como se eu tivesse olhado muito tempo diretamente para o sol.

De fato, a inesquecível cena em que Phyllis Wyvern, como Anna, tendo vestido o traje e calçado as botas pesadas de sua avó russa, penteado os cabelos com cuidado e aplicado o perfume e a maquiagem que lhe haviam sido trazidos de Paris por seu amante Marcel, deita-se com seu bebê de um ano na frente do exército de tratores estrondeantes ainda me causava ocasionais e inexplicáveis pesadelos.

— A senhorita Wyvern deve ter sido uma mulher muito corajosa — eu disse.

Tia Felicity voltou para a janela e olhou para fora, como se a Segunda Guerra Mundial ainda estivesse avançando implacável de algum lugar nos campos a leste de Buckshaw.

— Ela era mais que corajosa — disse ela. — Ela era britânica.

Deixei o silêncio se prolongar até ficar pendurado por um fio. E, então, falei o que viera para dizer:

— Você deve ter ouvido tudo o que aconteceu, estando no quarto ao lado.

Tia Felicity pareceu subitamente cansada, e velha, e impotente.

— Eu devia ter ouvido — disse ela. — Deus sabe que eu devia.

— Você quer dizer que não ouviu?

— Sou uma mulher velha, Flavia. Sofro das vicissitudes da idade. Eu tomei uma pequena dose de rum na hora de dormir, e dormi com o travesseiro enfiado no meu ouvido bom. Aquela pobre alma querida e arruinada passava filmes a noite inteira. Eu sabia o porquê, é claro, mas até a compaixão tem seus limites.

“Tem mesmo?”, me perguntei, “ou estaria tia Felicity simplesmente evitando mais discussões?”.

— Então você não ouviu nada — eu disse por fim.

— Eu não disse que não ouvi nada. Eu disse que não ouvi tudo.

Atravessei o quarto e me plantei ao lado dela junto à janela. Já havia ficado escuro lá fora, e a neve ainda caía pesadamente, como se o mundo estivesse chegando ao seu amargo fim.

— Eu me levantei para usar o banheiro. Ela estava discutindo com alguém. O ruído do filme, você sabe...

— Era um homem ou uma mulher?

— Não dava para ter certeza. Embora eles estivessem mantendo a voz num volume baixo, era evidente que palavras iradas estavam sendo trocadas. Mesmo colando um ouvido à parede (ah, tudo bem, não pareça tão chocada, admito que colei um ouvido à parede), não consegui distinguir o que diziam. Desisti e voltei para a cama, determinada a ter uma palavrinha com ela pela manhã.

— Você não tinha falado com ela antes disso?

— Não — disse tia Felicity. — Não houve oportunidade. Cruzei com ela inesperadamente no corredor, mas, como já contei, nós duas fomos muito bem treinadas na arte de parecer totalmente estranhas.

Minha cabeça pulava de um lado para outro sobre as coisas que tia Felicity me contara. Se, por exemplo, o que ela disse era verdade, Phyllis Wyvern não poderia estar discutindo com alguém quando tia Felicity se levantou para usar o vaso, porque já estava morta. Eu ouvira a descarga e estive na câmara da morte momentos depois. Antes disso, alguém tivera tempo suficiente para estrangular Phyllis Wyvern, vesti-la com roupas diferentes (por alguma razão bizarra) e escapar por uma das três portas: a que dava para o corredor, a que se conectava com o quarto de Flo e Maeva ou – e então dei uma olhada nervosa por cima do ombro – a que se abria para o próprio quarto em que eu estava agora. O quarto de tia Felicity – exatamente o mesmo em que ela me dissera que seria capaz de vir contra mim no escuro com uma faca de açougueiro. Se o que ela disse era verdade – se apenas metade do que insinuou eram os delírios de uma mulher que se tornara de súbito velha no fim da guerra –, ela era capaz de qualquer coisa. Quem sabe que caóticas antigas lealdades e velhos ciúmes poderiam mexer com duas mulheres que outrora foram amigas?

Ou seriam inimigas?

Eu precisava de tempo para pensar. Tempo para ir embora e pensar com clareza.

— Obrigada, tia Felicity — eu disse. — Você deve estar muito cansada.

Eu sempre poderia voltar a ela depois para preencher os vazios.

— Você é uma criança tão atenciosa! — disse ela.

Dei-lhe um sorriso modesto.

O armário embaixo da escada era pouco mais que um triângulo retângulo equipado com uma lâmpada pendurada. Ali, armazenadas seguramente contra os olhos da equipe de filmagem e suas câmeras, estavam as revistas que tinham sido removidas da biblioteca e da sala de estar. Edições antigas da Country Life espremidas como estratos geológicos sobre velhos exemplares do The Illustrated London News. Altas pilhas de exemplares de Behind the Screen e Cinema World estavam amontoadas em torres inclinadas que deviam datar dos tempos do cinema mudo.

Entrei, fechei a porta atrás de mim e, pegando o primeiro punhado de revistas de cinema, comecei minha pesquisa.

Folheei página após página de números atrasados de Ciné Tit-Bits e Silver Cinema World, sorrindo, de início, com as peripécias das chamadas “estrelas de cinema”, a maioria das quais eu nunca ouvira falar.

Festas, bailes de gala, estreias, apresentações de caridade: rostos sorridentes, sorrisos cheios de dentes, cartolas e vestidos de lantejoulas, braços em volta de ombros em automóveis exóticos – que imensa quantidade de tempo essas pessoas gastaram para ser fotografadas!

Não foi difícil encontrar Phyllis Wyvern. Ela estava por toda parte, atravessando os anos sem aparentemente envelhecer nem um dia. Lá estava ela, por exemplo, sentada, pernas cruzadas, em uma cadeira de lona com seu nome impresso nas costas, estudando um roteiro, com um cardigã jogado por cima dos ombros e uma expressão de intensa concentração. Ali estava ela, dançando com um jovem aviador em uma boate escura que parecia estar localizada na cripta de uma igreja. E lá estava ela de novo, no cenário de Anna das estepes, junto com outra atriz, os rostos voltados para o céu, diante de um dos tratores enormes enquanto sua maquiagem era retocada por um homem de bigode e boina.

Seria possível?

Por um momento, pensei que a mulher ao lado de Phyllis Wyvern era Marion Trodd. Uma Marion Trodd muito mais jovem, com certeza, mas ainda assim...

A despeito de minha excitação, eu tinha dificuldade em manter os olhos focalizados na página. O ar dentro do armário tornava-se abafado, a lâmpada exposta liberava uma quantidade surpreendente de calor. Isso e o fato de que eu estava simplesmente exausta faziam minha cabeça girar.

Quanto tempo eu ficara espremida naquele armário? Uma hora? Quem sabe duas? Parecia dias.

Esfreguei os olhos com os punhos fechados, forçando-me a prestar atenção nas letras minúsculas em que as legendas tinham sido impressas.

Talvez, afinal, houvesse alguma coisa na insistência do pai em equipar todas nós com óculos. Eu só usava os meus quando tentava ganhar simpatia ou quando precisava proteger os olhos durante algum experimento químico perigoso. Pensei um instante em correr para cima e buscá-los, mas decidi não o fazer.

Sacudi a cabeça e li a legenda outra vez.

Phyllis Wyvern e Norma Durance se refrescam entre as tomadas. Olhem o passarinho, meninas!

Que decepção. Eu acho que estava enganada. Pensei por um momento que estava prestes a descobrir alguma coisa, mas o nome Norma Durance não significava nada para mim.

A não ser que...

Eu não tinha visto aquele rosto algumas edições atrás? Como a mulher não tinha sido fotografada junto com Phyllis Wyvern, eu não prestara atenção nela.

Voltei algumas edições.

Sim! Ali estava, na Silver Cinema. A atriz está em um curral, jogando um punhado de milho de sua saia puxada para cima para uma multidão de galinhas frenéticas.

A bela Norma Durance assume competentemente o papel de Dorita em A pequena galinha vermelha. Ouvimos dizer que ela não está trabalhando em troca de ração de galinha!

Segurei a revista a favor da luz para ver mais de perto. Enquanto estudava com cuidado as feições da mulher, a parte de cima da capa se encostou por um momento na lâmpada. Em um instante, o papel facilmente inflamável escureceu e depois ficou preto – e, antes que eu pudesse piscar, explodiu em chamas.

É maravilhoso como o cérebro funciona em situações como essa. Lembro-me distintamente de que meu primeiro pensamento foi: “Eis aqui Flavia, suas mãos incendiadas em um armário entupido de combustíveis”.

Era o tipo da coisa de que as matérias de primeira página do Times eram feitas.

Cinzas fumegantes são tudo o que resta da histórica casa de campo. Buckshaw está em ruínas.

E haveria uma foto sinistra, é claro.

Joguei no chão a revista em chamas e sapateei em cima dela, de novo e de novo.

Mas, por causa da solução à prova d’água que Dogger aplicara tão conscienciosamente em nossos calçados – como uma poção de feiticeiras contendo tanto sementes de linho como óleo de castor, bem como verniz de copal –, meus sapatos explodiram em chamas na hora.

Arranquei fora o cardigã e o atirei aos meus pés, sapateando até as chamas se apagarem.

A essa altura, meu coração batia como o motor de um carro de corrida, e me vi ofegando por ar.

Afortunadamente, não me queimei. O fogo fora extinto com presteza, restando poucos vestígios além de algumas cinzas pretas e um pouco de fumaça remanescente.

Examinei a cena rapidamente para ter certeza de que não havia fagulhas alojadas entre as pilhas de papel e, então, saí para o corredor tossindo.

Estava vestindo meu suéter chamuscado e raspando a ponta dos meus sapatos fumegantes nas tábuas do assoalho, quando a porta da cozinha se abriu e Dogger apareceu.

Ele olhou para mim com atenção, sem dizer palavra.

— Reação química inesperada — eu disse.

Uma atmosfera de cansaço se abatera sobre o foyer. Ninguém prestou a menor atenção em mim quando o atravessei. Por toda parte, as pessoas de Bishop’s Lacey estavam sentadas com o olhar vazio fixo no espaço, imersas em seus próprios pensamentos. Em um canto, uma mesa de baralho com duas cadeiras fora colocada como uma central de interrogatórios, e o sargento Graves murmurava sem parar com a srta. Cool, a agente de correio e doceira da aldeia.

“Aturdidos” era a palavra que se aplicava ao resto deles. A atmosfera anterior de compartilhar uma boa e alegre aventura se desvanecera, e todos haviam sucumbido, exaustos afinal, mostrando sua verdadeira face.

Buckshaw tinha sido transformada em um abrigo contra bombas.

No canto mais distante da polícia, o chofer, Anthony, tragava um cigarro que segurava escondido em uma mão semifechada. Ele ergueu os olhos, e seu olhar cruzou com o meu, exatamente como quando eu deslocara a pequena avalanche de neve.

Em que estaria pensando?

Fui caminhando despreocupada para a ala oeste, para dar uma olhada no relógio de pêndulo que ficava no corredor perto do estúdio do pai. Devia estar ficando tarde.

Os ponteiros do vetusto relógio marcavam dez e dezessete! Aonde teria ido o dia?

Mesmo vinte e quatro horas parecem uma eternidade quando se está preso do lado de dentro e os dias são os mais curtos do ano, mas a morte de Phyllis Wyvern sob os telhados de Buckshaw tornara o tempo caótico.

Os telhados de Buckshaw! O meu balde de visgo!

O tempo estava acabando. Se era para eu levar adiante o meu plano – os meus planos! –, era melhor começar a me mexer. O Natal estava quase chegando. O próprio Papai Noel logo estaria aqui.

E também o agente funerário.

Pobre Phyllis Wyvern. Eu ia sentir saudades dela.


19

UMA RÁPIDA EXCURSÃO ao toalete era tudo o que eu precisava. Com isso resolvido, poderia seguir em frente com meus planos.

As instalações sanitárias mais próximas ficavam no alto da escada da cozinha, duas portas adiante do quarto de Dogger. Quando cheguei lá, abri totalmente a porta, e...

Meu coração parou.

Despido da cintura para cima, Val Lampman estava sentado na privada, tentando desajeitadamente enrolar um de seus braços musculosos com uma atadura. Estavam ambos horrivelmente arranhados e dilacerados. Ele ficou tão surpreso quanto eu, e quando olhou para mim, surpreso, seus olhos se tornaram de repente os de um falcão ferido.

— Desculpe — eu disse. — Não sabia que você estava aqui.

Tentei não olhar para as âncoras iguais tatuadas em cada um de seus antebraços.

Teria sido um marinheiro?

— O que você está olhando? — demandou ele em uma voz áspera.

— Nada — disse eu. — Posso ajudar?

— Não — disse ele, momentaneamente desconcertado. — Obrigado. Eu estava tentando ajudar os rapazes a deslocar um trainel em um dos caminhões, e ele caiu em cima de mim. Minha própria culpa, na verdade.

Como se estivesse esperando que eu acreditasse nele! Quem, em seu pleno juízo, estaria mudando cenários com braços e peito nus, na traseira de um caminhão gelado?

— Sinto muito — eu disse, tirando o rolo de atadura de suas mãos e desenrolando um pedaço novo. — Você cortou o peito também. Incline-se para a frente um pouco, e vou enfaixá-lo.

Minha ação prestimosa me permitiu dar uma boa olhada em suas feridas, que já estavam vermelhas em volta e começando a formar uma leve crosta. Não eram frescas, de modo algum, mas também não eram velhas. Tinham sido infligidas, numa estimativa, vinte e quatro horas atrás.

E por unhas, se eu era capaz de julgar.

Muito embora eu tivesse sido expulsa da tropa de escoteiras de São Tancredo por insubordinação, não tinha esquecido seus muitos ensinamentos úteis, incluindo o método mnemônico P-A-C: Pressão, Antisséptico, Curativo.

“Pac! Pac! Pac!”, costumávamos gritar, rolando pelo piso do salão paroquial, espancando umas às outras horrivelmente, envolvendo nossas vítimas e a nós mesmas como gordas múmias brancas, com um sem-fim de rolos de ataduras.

— Você passou iodo nas feridas? — perguntei, sabendo perfeitamente que ele não tinha passado. As manchas reveladoras marrom-avermelhadas da tintura não estavam visíveis em nenhum lugar.

— Sim — mentiu ele, e notei pela primeira vez as ataduras encrostadas de sangue que ele acabara de remover.

— Foi muita gentileza sua ajudar a mover acessórios de cena — disse eu em tom despreocupado. — Eu não imagino que muitos diretores façam isso.

— As coisas não estão fáceis depois que McNulty se feriu — disse ele. — Ainda assim, a gente faz o que pode.

— Hummm — disse eu, tentando soar solidária, esperando que ele me contasse mais.

Mas minha cabeça já estava disparando pelos corredores de Buckshaw, subindo a escadaria de volta ao Dormitório Azul, de volta ao corpo de Phyllis Wyvern, de volta às suas unhas...

Que estavam notavelmente limpas. Não havia fragmentos de carne arrancada embaixo delas, e nenhum sinal de sangue (muito embora seu esmalte escarlate pudesse ter escondido as manchas).

De repente tomei consciência de que os olhos de Val Lampman estavam fixos nos meus, tão atentamente hipnóticos quanto os de um gato que acuou um camundongo. Se ele tivesse uma cauda, estaria se agitando.

Ele estava lendo meus pensamentos. Eu tinha certeza disso.

Tentei não pensar no fato de que a polícia poderia já ter raspado quaisquer fragmentos de evidência que houvesse embaixo das unhas de Phyllis Wyvern; tentei não pensar que quem quer que a tivesse matado teria dedicado o tempo necessário para trocar a roupa dela, pintar suas unhas e, fazendo isso, remover, antes que qualquer um de nós chegasse lá, todo vestígio de material que estivesse alojado embaixo delas.

Tentei não pensar – não pensar –, mas não adiantou.

Os olhos de Lampman estavam cravados nos meus. Com certeza, ele vira alguma coisa.

— É melhor eu ir andando — disse eu de repente. — Prometi ao vigário que o ajudaria com...

Embora eu pudesse sentir o coração batendo forte enquanto bombeava sangue para o meu rosto, não consegui pensar em uma única palavra para completar a mentira.

— ... as coisas — acrescentei debilmente.

Eu já tinha aberto a porta e posto um pé no corredor quando ele agarrou meu braço.

— Espere — pediu ele.

Com o canto do olho, captei um relance de Dogger entrando em seu quarto.

— Está tudo bem, Dogger! — gritei. — Eu estava só mostrando ao senhor Lampman onde fica o banheiro.

Lampman soltou meu braço, e dei um passo atrás.

Ele ficou olhando fixamente, as ataduras em seu peito subindo e descendo a cada respiração.

Fechei a porta na cara dele.

Dogger já tinha desaparecido. Bom e velho Dogger. Seu senso de decoro o impedia de se intrometer, a não ser nas mais extremas emergências. Bem, essa não tinha sido uma emergência.

Ou teria? Eu falaria com Dogger depois, quando tivesse tido tempo de pensar direito nas coisas. Ainda era cedo demais.

Será que eu tinha desmascarado o assassino de Phyllis Wyvern? Bem, talvez sim, talvez não.

Parecia um tanto improvável que alguém de aparência tão plácida como Val Lampman pudesse estrangular a própria mãe, trocar a roupa dela e aplicar maquiagem de palco a fim de deixá-la com sua melhor aparência quando seu corpo fosse descoberto.

E aqueles ferimentos nos braços e no peito dele? Não poderia simplesmente ter tido uma altercação com Latshaw, o mal-humorado chefe da equipe?

Não havia dúvida a respeito. Eu precisava conversar com Dogger.

Sim, era isso – nós nos sentaríamos juntos mais tarde diante de uma chaleira fumegante e um par de xícaras de chá, eu repassaria com agilidade minhas observações e deduções, e Dogger se maravilharia com minhas realizações.

Mas, até lá, eu tinha outras coisas a fazer.

Foi com um coração exuberante que carreguei meu pote de visgo pela escada estreita acima. Foi bom eu ter pensado em trazer uma escova de roupas da copa para limpar a neve das chaminés e um pincel meio duro para papel de parede da salinha das molduras na galeria de quadros, para espalhar o visgo generosamente.

Se a porta tinha sido um problema para abrir antes, agora era uma verdadeira tribulação. Encostei o ombro nela e empurrei, e empurrei, e empurrei de novo até que por fim a neve rangedeira cedeu com relutância, apenas o suficiente para permitir que eu me espremesse para fora, para cima do telhado.

O vento me atingiu de imediato, e eu me encolhi de frio.

Fui seguindo devagar, pesadamente, através do vazio nevado da ala oeste da casa, afundada até os joelhos nos montes de neve arrastada pelo vento. Papai Noel desceria pela chaminé da sala de estar, como sempre fazia. Não havia sentido em desperdiçar precioso calor corporal e visgo para pintar as outras.

Uma vez removida a neve do colarinho das três chaminés, era possível – embora não simples, de modo algum – me içar, escorregando e deslizando, para cima de cada uma das altas torretas de tijolos de cada vez, muito embora eu tenha de admitir que não dei mais que uma atenção superficial aos condutos menores que vinham da lareira dos dormitórios de cima. Papai Noel não se atreveria a descer pela chaminé do pai, e quanto à de Harriet... bem, não havia mais nenhuma necessidade, havia? A não ser por ter de deixar um par de caminhos estreitos livres de visgo para mim mesma, a aplicação do material foi bastante descomplicada.

Quando terminei, me vi congelada por um momento no telhado, pensando, imóvel no frio intenso, como um cata-vento atingido por um raio, apontando para sempre na direção errada.

E então, com a mesma rapidez, meu ânimo foi restaurado. Afinal, não estava eu a umas poucas horas de conseguir escrever “Concluído” sobre o meu grande experimento?

Enquanto enfrentava o caminho de volta através dos ermos nevados, assobiei alguns compassos de O azevinho e a hera, em uma alusão marota à meleca grudenta que acabara de aplicar às chaminés de Buckshaw. Eu até desandei a cantar:

— “O despertar do soo-ol e o galopar dos veados...”

Era hora de voltar minha atenção para o Rojão de Honra.

— O que você está fazendo? — demandou Felinha enquanto eu descia os últimos degraus para dentro do meu laboratório.

Os punhos dela estavam crispados, e seus olhos, como sempre ficam quando ela está zangada, estavam vários tons mais claros do que seu azul normal.

— Quem deixou você entrar? — perguntei. — Você não está autorizada a entrar neste recinto sem uma permissão minha por escrito.

— Ora, pegue a sua permissão por escrito e vá grudar no conduto da chaminé.

Felinha podia ser extraordinariamente rude quando lhe dava na telha.

Ainda assim, “grudar” e “conduto da chaminé” eram termos estranhamente descritivos do que eu acabara de fazer no telhado. “É melhor eu tomar cuidado”, pensei. Talvez Felinha, como Val Lampman, tivesse descoberto um meio de espiar dentro da minha mente.

— O pai me mandou buscar você — disse ela. — Ele quer todo mundo reunido no foyer agora mesmo. Ele tem alguma coisa a dizer, bem como Val Lampman.

Ela se virou e saiu marchando na direção da porta.

— Felinha... — eu disse.

Ela parou e, sem olhar para mim, deu meia-volta.

— Bem?

— Dafi e eu fizemos uma trégua de Natal. Achei que talvez...

— As tréguas expiram em cinco minutos, aconteça o que acontecer, como você sabe muito bem. Não existe uma coisa como trégua de Natal. Não tente me enrolar em um dos seus esqueminhas sórdidos.

Pude sentir meus olhos inchando como se estivessem a ponto de explodir.

— Por que você me odeia? — perguntei de repente. — Será porque eu sou mais parecida com Harriet do que você?

Se a sala já estava fria antes, ela agora se tornara uma caverna de gelo glacial.

— Odiar você, Flavia? — disse ela, a voz trêmula. — Você realmente acredita que eu a odeio? Ah, como eu desejaria que fosse assim! Isso tornaria as coisas muito mais fáceis.

E, com isso, ela se foi.

— Sinto muito por todos nós termos sido aprisionados, por assim dizer — o pai estava dizendo —, mesmo tendo sido aprisionados juntos.

Que raios ele queria dizer? Estava pedindo desculpas pelo mau tempo?

— A despeito da sua... ahn... expedição polar, o vigário e a senhora Richardson têm dado duro para manter os pequeninos ocupados.

Bom Deus! O pai estava fazendo uma piada? Era coisa inaudita!

Teriam o estresse da estação e a chegada do pessoal de cinema finalmente fundido seu cérebro? Teria ele esquecido que Phyllis Wyvern estava deitada – não, deitada não, mas sentada –, morta lá em cima?

Suas palavras foram recebidas com um polido farfalhar de risos das pessoas de Bishop’s Lacey, que se sentavam desgrenhadas, porém atentas, nas cadeiras. Agrupada em um canto, a equipe de filmagem cochichava nervosamente, os rostos parecendo máscaras.

— Tenho certeza — dizia o pai, com uma olhadela para a sra. Mullet, que estava em pé, sorridente, à entrada do corredor para a cozinha — de que conseguiremos juntar uma quantidade suficiente de geleia e pão fresco para durar até sermos libertados do nosso... cativeiro.

Quando ouvi a palavra “cativeiro”, Dogger me veio à mente. Onde estava ele?

Girei nos calcanhares e o avistei imediatamente. Estava em pé, bem afastado para um canto, seu terno escuro tornando-o quase invisível contra os painéis de madeira envernizada. Seus olhos eram poços negros.

Eu me contorci na cadeira, encurvei e desencurvei os ombros como se quisesse aliviar a rigidez e, pondo-me em pé, espreguicei-me de modo extravagante. Fui andando despreocupada até a parede e me encostei nela.

— Dogger — sussurrei excitada —, eles a vestiram para morrer.

A cabeça de Dogger se voltou lentamente para mim, os olhos varrendo o vasto salão, iluminando-se à medida que iam chegando até que, quando encontraram os meus, pareciam o facho de um farol fixo em uma rocha no meio do mar.

— Creio que você está certa, senhorita Flavia — disse ele.

Com Dogger, não havia necessidade de tagarelar. O olhar que trocamos foi além das palavras. Estávamos viajando no mesmo trem de pensamento, e – afora a infeliz morte de Phyllis Wyvern, é claro – estava tudo bem com o mundo.

Dogger, é óbvio, havia notado, assim como eu, que...

Mas não havia tempo para pensar. Eu tinha perdido os comentários finais do pai. Agora Val Lampman estava sob a luz do refletor, uma figura trágica agarrando-se a uma luminária com os nós dos dedos assustadoramente brancos, como que para não desmoronar no chão.

— ... este evento terrível — dizia ele em uma voz titubeante. — Seria impensável prosseguir sem a senhorita Wyvern, e portanto eu, relutantemente, tomei a decisão de encerrar a produção de imediato e retornar a Londres assim que pudermos.

Um suspiro coletivo subiu do canto em que a equipe de filmagem estava reunida, e vi Marion Trodd se inclinar para a frente e sussurrar alguma coisa para Bun Keats.

— Como estamos incapazes de nos comunicar com o estúdio — continuou Val Lampman, tocando a têmpora com dois dedos como se estivesse recebendo uma mensagem do planeta Marte —, tenho certeza de que vocês apreciarão o fato de que esta decisão tem de ser somente minha. Cuidarei para que instruções específicas sejam distribuídas pela manhã. Nesse meio-tempo, senhoras e senhores, sugiro que passemos o que resta desta tão triste véspera de Natal relembrando a senhorita Wyvern e o que ela significou para cada um de nós.

Não foi em Phyllis Wyvern que eu pensei, no entanto, mas em Felinha. Com a filmagem encerrada, sua oportunidade de estrelato estava acabada.

Daqui a muito, muito tempo – em alguma época no futuro nebuloso –, historiadores vasculhando as catacumbas da Ilium Filmes iriam topar com um rolo de filme com imagens de uma carta sendo colocada cuidadosamente, repetidas vezes, sobre uma mesa. “O que eles concluiriam daquilo?”, eu me perguntei.

Era agradável, de um jeito complicado, pensar que aquelas mãos desfocadas, com seus dedos longos e perfeitos, seriam as da minha irmã. Felinha seria tudo o que restara de O grito do corvo, o filme que morreu antes de nascer.

Voltei à realidade com um sobressalto.

O pai estava convocando Dogger com uma única sobrancelha erguida, e aproveitei a oportunidade para escapulir escada acima.

Eu tinha muito o que fazer, e não havia muito tempo sobrando.

E no entanto havia. Quando cheguei em meu quarto, vi que ainda não eram onze horas.

A sra. Mullet sempre me falou que Papai Noel só vinha após a meia-noite ou depois que todos na casa estivessem dormindo – eu tinha esquecido a fórmula exata. De um jeito ou de outro, era de longe cedo demais para verificar minhas armadilhas; com metade da população de Bishop’s Lacey perambulando à solta pela casa, o velho cavalheiro dificilmente se arriscaria a descer pela chaminé da sala de estar.

E então um pensamento me veio à mente: como poderia Papai Noel descer – e subir de volta – tantas chaminés sem ficar com as roupas sujas? Por que nunca houve, na manhã de Natal, uma imunda trilha preta no tapete?

Eu sabia perfeitamente bem por meus próprios experimentos que os produtos carbônicos da combustão eram suficientemente imundos, mesmo nas pequenas quantidades em que eram encontrados no laboratório, mas pensar em um homem adulto descendo por uma chaminé encrostada por décadas de fuligem, usando roupas que eram pouco melhores que uma enorme escova de limpar canos, era simplesmente inacreditável. Por que eu não pensara nisso antes? Por que uma prova científica tão óbvia nunca me ocorrera?

A não ser que houvesse algum elfo invisível que seguia Papai Noel de um lado para outro com uma vassoura e uma pá de lixo – ou uma aspirador de pó sobrenatural –, as coisas estavam parecendo de fato sombrias.

Do lado de fora, um vento ascendente golpeava seguidamente a casa, fazendo trepidar as vidraças em seus velhos caixilhos. Dentro, a temperatura caíra para a de pés de pinguim, e eu tremia.

Eu iria me aconchegar na cama com meu caderno e um lápis. Até que chegasse o momento de me aventurar para cima do telhado, dedicaria minha atenção ao assassinato.

Escrevi no topo de uma página nova Quem matou Phyllis Wyvern? e tracei uma linha embaixo.

Suspeitos (em ordem alfabética)

Anthony, o chofer (não sei o sobrenome dele). - Um tipo de pessoa furtiva com uma expressão envergonhada, que parece estar sempre me observando. PW parecia fria em relação a ele, mas talvez estrelas de cinema sejam assim mesmo com seus choferes. Ele está ressentido? Pareceu vagamente familiar quando apareceu à nossa porta. Europeu oriental? Certamente que não. Tia F disse que PW tinha um horror irracional a europeus orientais e insistia em trabalhar sempre com a mesma equipe de filmagem britânica. Teria Anthony, quem sabe, aparecido em um dos filmes dela? Ou em uma foto de revista? Investigar - talvez até perguntar diretamente a ele.

Crawford, Gil - PW o humilhou na frente da aldeia inteira, esbofeteando-o no rosto. Embora gentil como um cordeiro hoje em dia, é importante lembrar que, como comando, Gil foi treinado para matar em silêncio - por estrangulamento com um pedaço de corda de piano!

Duncan, Desmond - Nenhum motivo óbvio, a não ser o fato de que PW o ofuscava. Ele atuou com ela durante anos, no palco e no cinema. Rivalidade? Ciúme? Algo mais profundo? Investigação adicional necessária.

Keats, Bun - PW a tratava como excremento de cachorro na sola de uma sapatilha de balé. Embora ela devesse estar cheia de ressentimento, parece não estar. Será que existem pessoas que prosperam com maus-tratos? Ou há fogo embaixo das cinzas? Preciso perguntar a Dogger sobre isso.

Lampman, Val (Waldemar) - Filho de PW. (Difícil acreditar, mas tia Felicity alega que assim é.) PW ameaçou contar a DD sobre a “interessante aventura em Buckinghamshire” de Val (por exemplo, a apresentação beneficente de Romeu e Julieta). Seria ele herdeiro dos bens da mãe? Teria ela sacos e mais sacos de dinheiro? Como eu poderia averiguar isso? E seus antebraços horrivelmente arranhados? As feridas não pareciam frescas. Mais um ponto a discutir com Dogger de manhã.

Latshaw, Ben - Parece ser meio encrenqueiro. Mas o que ele ganharia paralisando a produção do filme? Ele tinha sido promovido devido ao ferimento de Patrick McNulty. Poderia ele ter sido contratado por alguém da Ilium Filmes para matar PW longe do estúdio? (Mera especulação de minha parte.)

Trodd, Marion - O mistério de aro de chifre. Fica rondando em silêncio, como o cheiro de um ralo entupido. Ela tem uma forte semelhança com a atriz Norma Durance. Mas aquelas eram fotos antigas. Eu devia ter perguntado a tia Felicity sobre ela. N.B. - fazer isso mais tarde.

Cocei a cabeça com o lápis enquanto revisava minhas notas. Pude ver imediatamente que elas estavam longe de ser satisfatórias.

Na maioria das investigações criminais – tanto no rádio como por minha própria experiência – há sempre mais suspeitos do que você é capaz de apontar, mas neste caso o campo parecia deveras escasso. Muito embora não houvesse escassez de rancores contra Phyllis Wyvern, também não havia ódio declarado: nada que pudesse sequer começar a explicar seu estrangulamento brutal ou o laço de filme de cinema amarrado quase alegremente em volta de seu pescoço.

De fato, eu ainda podia vê-la: aquela fita de celuloide preto na garganta dela, cada um de seus quadros ostentando uma imagem congelada da própria atriz em sua blusa de camponesa, sua face desafiadora brilhando como o sol contra um céu dramaticamente escurecido.

Como poderia eu esquecer quando a vira com tanta frequência em meus sonhos? Era daquela chocante cena final de Anna das estepes, aliás, Vestida para morrer, em que Phyllis Wyvern, como a malfadada Anna Sheristikova, deita-se na frente dos tratores que avançam.

Em minha mente cansada, imaginei que podia ouvir o som dos motores roncando, mas era apenas o vento uivando e golpeando a casa.

Vento... tratores... Dieter... Felinha...

Quando meus olhos se abriram bruscamente, já passavam oito minutos da meia-noite.

De algum lugar na casa vinha o som de vozes cantando.

“Ó pequena cidade de Belém,

Como te vemos tão silente...”

Pude ver em minha cabeça o rosto dos aldeões reverentemente voltados para cima.

Percebi na mesma hora que, a despeito de tudo o que acontecera, o vigário decidira celebrar o Natal. Ele pedira aos homens da aldeia que trouxessem nosso velho piano de cauda Broadwood da sala de estar para o foyer, e Felinha estava agora ao teclado. Eu soube que era Felinha, e não Max Brock, por causa do pequeno soluço vacilante que ela era capaz de extrair do instrumento quando a melodia alçava voo – e depois começava a cair.

Como os restos mortais de Phyllis Wyvern ainda estavam presentes na casa, o vigário só permitia que se cantassem as canções de Natal mais serenas.

Pulei da cama e enfiei um par das meias compridas de algodão cor de barro que o pai insistia que eu usasse do lado de fora no inverno. Embora detestasse apaixonadamente aquelas coisas nojentas, eu sabia como estaria frio no telhado.

Isso feito, agarrei a poderosa lanterna que eu surrupiara da copa e passei o mais silenciosamente que pude para o meu laboratório, onde enfiei um acendedor a pederneira no bolso de meu cardigã.

Com cuidado, peguei o rechonchudo Rojão de Honra, embalando-o em meus braços por alguns momentos e sorrindo para ele amorosamente como numa cena de Natal.

Então me dirigi para a escada estreita.


20

O TELHADO ERA UMA vastidão ululante. Um vento cortante soprava rajadas ardentes de neve de cumeeira a cumeeira, fustigando meu rosto com partículas duras como areia congelada. O tempo havia piorado desde a última vez em que eu estivera ali em cima, e estava claro que a tempestade estava longe de terminar.

Agora era hora do trabalho pesado. Fiz viagem após viagem, ida e volta, para cima e para baixo dos degraus entre o telhado e o laboratório, carregando pote após pote, até que por fim meus fogos de artifício estavam organizados em anéis em volta das chaminés como outras tantas velas apagadas sobre um bolo em camadas.

Embora fosse difícil enxergar no escuro, eu estava relutante em acender a lanterna até que se tornasse absolutamente necessário. Não havia necessidade de atrair atenção indesejada de baixo, pensei, criando um fogo-fátuo itinerante entre as chaminés escuras, que agora assomavam acima de mim – sombras altas, ameaçadoras, contra o céu nevoento. As nuvens escuras, flácidas acima da minha cabeça como dirigíveis meio murchos, estavam tão baixas que quase dava para estender o braço e tocá-las.

Eu acabara de completar minha última viagem, e o Rojão de Honra de Phyllis Wyvern estava aninhado pesadamente em meus braços. Não seria possível carregá-lo comigo por centenas de metros quadrados de telhado enquanto completava meus preparativos, nem poderia largá-lo a céu aberto, onde logo ficaria molhado e inútil.

Não, eu iria pôr a coisa no lado leste de uma das chaminés, onde estaria abrigada das rajadas tempestuosas, pronta para ser lançada quando chegasse a hora.

Caminhei pesadamente através do que pareceram ser quilômetros de neve até o joelho e soltei um suspiro de alívio quando enfim avistei meu destino: os altaneiros condutos das chaminés da ala oeste. Com surpreendentemente poucas dificuldades, instalei o rojão no meio dos meus vasos de plantas dobrando as pernas do tripé de arame que improvisei com um par de cabides de Felinha.

Apenas uma triscada no acendedor, e ZÁS! Lá iria ele pelo céu da noite acima, como um cometa flamejante antes de explodir com um CABUM! que acordaria o próprio São Tancredo, que jazia adormecido embaixo do altar da igreja da aldeia havia mais de quinhentos anos. De fato, eu acrescentara uma medida extra de pólvora à câmara interior do rojão, para assegurar que o modorrento santo não fosse deixado de fora das festividades.

O Rojão de Honra, é claro, seria o grande final do meu espetáculo de pirotecnia química. Primeiro viriam as chuvas de ouro e os botões de fogo vermelho se abrindo, gradualmente dando lugar ao espoucar e ao ribombar das bombardas de Bengala.

Me abracei, em parte por alegria e em parte por causa do frio.

Eu começaria com a Saudação Real, um show aéreo delicado, porém impressionante, cuja receita eu encontrara em um dos cadernos do tio Tar. Tinha sido formulado originalmente pelos famosos irmãos Ruggieri para o rei George II, em 1749, e projetado para acompanhar a música que o sr. Handel havia composto especialmente para o Espetáculo Pirotécnico Real.

Como o grande prédio de madeira construído para abrigar os músicos do rei foi incendiado pelos fogos de artifício e ardeu em chamas, e o mero número de espectadores causara o colapso de um dos vãos da ponte de Londres sob seu peso para dentro do rio Tâmisa, a primeira apresentação não chegou a ser inteiramente bem-sucedida.

Quem poderia dizer? Minha recriação daquelas famosas explosões poderia compensar, nem que fosse só um pouco, pelo que deve ter sido na época algo como um constrangimento nacional.

Que comece o espetáculo!

Removi a neve dos meus vasos de plantas à prova d’água e enfiei a mão no bolso para pegar o acendedor. Se o vento cessasse por alguns segundos que fosse, uma boa fagulha era tudo o que eu precisava – uma única fagulha para detonar um espetáculo de fogos do qual ainda estarão falando quando eu for velha, às gargalhadas estridentes por cima dos meus caldeirões químicos.

Dei um passo atrás para uma última olhada para meus explosivos manufaturados com carinho.

Talvez tenha sido porque meus olhos estavam semicerrados contra os açoites da neve que não reparei logo na segunda trilha de pegadas levando à porta.

“Papai Noel!”, pensei na hora. “Ele estacionou seu trenó, caminhou pelo telhado e entrou na casa pela mesma porta através da qual eu acabara de sair.”

Mas por quê? Por que ele não teria descido imediatamente pela chaminé, como vinha fazendo havia centenas de anos?

É claro! De repente ficou tudo claro como água. Papai Noel era sobrenatural, não era? Ele ficara sabendo do meu visgo e se afastara dele! Mas será que os seres sobrenaturais ao menos deixavam pegadas na neve?

Por que eu não havia pensado nesse pormenor estupidamente simples e economizado todo aquele trabalho?

Mas espere! Eu mesma não tinha estado ali em cima antes, para instalar meus vasos de fogos?

“É claro! Que bobinha você é, Flavia!”

Eu estava olhando para minhas próprias pegadas.

E, no entanto... quase antes de esse pensamento me vir à mente, eu soube que talvez ele não fosse verdadeiro. Horas haviam se passado desde que estivera no telhado da última vez. Com o vento soprando e a neve por ele arrastada da superfície, minhas pegadas anteriores decerto teriam sido preenchidas em minutos. Até minhas pegadas recém-deixadas já estavam perdendo o contorno nitidamente definido.

Um par de saltos me levou até a trilha de pegadas, e pude ver em um relance, bem de perto, que elas se afastavam da porta em vez de se aproximarem.

Alguém além de Flavia e Papai Noel estivera ali em cima no telhado.

E havia pouco tempo, se eu não estava enganada.

Além disso, se eu tivesse lido os sinais corretamente, esse alguém ainda estava lá em cima, se escondendo em algum lugar na vastidão nevoenta.

“Corra, Flavia!”, gritava uma parte ancestral, instintiva do meu cérebro, e no entanto eu ainda estava vacilando – paralisada pelo momento, relutante em me mover um centímetro que fosse – quando uma figura escura saiu silenciosamente de trás do conduto da chaminé do boudoir de Harriet.

Vestia um casaco de aviador de couro, comprido e antiquado, que ia até a metade de suas botas de montaria, o colarinho alto virado para cima em volta das orelhas. Seus olhos estavam cobertos pelas pequenas lentes verdes redondas de um antigo capacete de couro do tipo que Harriet usara em seus tempos de aviadora, e as mãos estavam cobertas por longas e rígidas luvas de couro.

Meu primeiro pensamento, é claro, foi de que aquele espectro era minha mãe, e meu sangue congelou.

Embora eu tivesse ansiado, a vida inteira, por ser reunida com Harriet, não queria que fosse assim. Não mascarada, não em um telhado fustigado pelo vento.

Receio ter choramingado.

— Quem é você? — consegui dizer.

— O seu passado — pareceu que o vulto sussurrou.

Ou teria sido apenas o vento?

— Quem é você? — demandei outra vez.

A figura deu um passo ameaçador em minha direção.

Então, de repente, em algum lugar dentro da minha cabeça, uma voz estava falando tão calmamente quanto o locutor da BBC lendo as previsões de embarque para Rockall, as ilhas Shetland e as Orkneys.

“Não perca a cabeça”, dizia ela. “Você conhece essa pessoa. Você simplesmente ainda não se deu conta!”

E era verdade. Embora eu tivesse todas as informações de que precisava, ainda não havia juntado as partes. Aquele espectro de fato não era mais que alguém que se disfarçara com peças do guarda-roupa do filme – alguém que não queria ser reconhecido.

— Não adianta, senhor Lampman — eu disse, firme na minha posição. — Eu sei que você assassinou sua mãe.

De algum modo, não me pareceu certo chamá-lo de “Val”.

— Você e sua cúmplice a mataram e a vestiram com os trajes que ela usou em Vestida para morrer, a personificação que você prometeu à sua... Como é mesmo que se chama?... sua amante.

Foi quase reconfortante ouvir as palavras daquela antiga fórmula saindo da minha boca – o diálogo final entre um assassino cruel e o investigador que desvendara o caso. Foi preciso aprofundar-me muito nas páginas de Cinema Secrets e Silver Screen para desentranhar aquela pérola de incriminação final. Eu estava orgulhosa de mim.

Mas não por muito tempo.

O vulto investiu subitamente, pegando-me de surpresa e quase me derrubando para trás, no meio de um monte de neve. Só fui capaz de permanecer em pé agitando os braços como um cata-vento e dando um pulo cego e desequilibrado para trás.

Com meu atacante bloqueando a passagem para a escada, não havia sentido em disparar para lá. Melhor encontrar segurança nas alturas, como um gato.

Eu me arrastei, escorregando e deslizando, para subir em uma das chaminés – uma que eu não tinha lambuzado de cola. Lá de cima, eu poderia me segurar com um braço enquanto chutava o assassino no rosto, se houvesse necessidade.

Não levou muito tempo.

Com um silvo como o de uma serpente enfurecida, meu atacante puxou de um dos grandes bolsos do casaco um porrete, que acredito ser chamado pela polícia de cassetete, e desceu aquilo violentamente a apenas alguns centímetros dos meus pés.

Crás!, ele fez, e crás! outra vez, as pancadas chovendo em cima da base de tijolos da chaminé com uma série de ruídos bruscos e revoltantes, como ossos sendo quebrados.

Tive de pular como uma dançarina escocesa para impedir que os dedos dos meus pés fossem pulverizados.

Atrás de mim, lembrei-me, na chaminé da sala de estar, estavam os pavios dos fogos de artifício – a não mais, talvez, que dez metros de distância. Se eu apenas pudesse chegar até eles... encostar o acendedor no pavio... pedir ajuda... o resto estaria nas mãos do destino.

Mas agora as luvas estavam agarrando meus tornozelos, e eu chutava com todas as minhas forças.

Dessa vez fui recompensada com o som e a sensação de sapato de couro contra crânio, e o vulto recuou com um grito rouco de dor, agarrando o rosto.

Aproveitando o momento, dei a volta cautelosamente até o lado oposto da chaminé. De lá, eu esperava poder pular para o telhado sem ser vista.

Eu tinha de arriscar. Não havia outra escolha.

Caí no telhado mais suavemente do que esperava e já estava a meio caminho da chaminé da sala de estar quando meu atacante me avistou e, com um grito de fúria, investiu através do telhado, as botas lançando neve para cima ao se aproximar.

Sem fôlego, me atirei para a chaminé, esta maior que a primeira, e me icei para a segurança, com a mão já mergulhando no bolso para pegar o acendedor.

Agora os pavios estavam logo abaixo de mim, no nível do sapato. Com um pouco de sorte, apenas um clique faria o truque.

Me abaixei e apertei a alavanca da mola.

Clique!

E mais nada.

Tarde demais. Meu atacante já estava agadanhando a borda da chaminé como um animal enlouquecido, tentando içar-se para o meu lado. Se isso acontecesse, eu estaria acabada.

Desferi um golpe com a lanterna contra a cara atrás dos óculos de aviador – e errei!

A lanterna escorregou da minha mão e caiu, como em câmera lenta, rodopiando até o telhado, onde ficou semienterrada em um monte de neve, projetando um facho de luz em um ângulo maluco nos olhos do meu atacante, deixando-o meio cego.

Não perdi um único instante. Agachei-me rapidamente e acionei mais uma vez o acendedor.

Clique!... Clique!... Clique!... Clique!...

Enfurecedor! Eu devia ter revestido os pavios com cera de vela, mas não dá para pensar em tudo. Obviamente, tinham ficado molhados.

As luvas agadanhadoras estavam chegando assustadoramente mais perto. Era apenas uma questão de tempo antes que conseguissem agarrar meu tornozelo e arrastar-me para baixo.

Com esse pensamento perturbador em mente, icei-me um pouco mais no conduto de barro da chaminé, novamente me arrastando enquanto escalava até dar a volta completa para o lado leste da estrutura.

No telhado, meu atacante me acompanhou enquanto eu dava a volta, quem sabe com alguma expectativa de que eu escorregasse e caísse. Bem acima de sua cabeça horrivelmente oculta pelo capacete, cada respiração minha visível no ar frio, eu me agarrei como uma craca na seção superior da chaminé.

Um momento se passou – e, depois, mais um.

Tomei consciência de uma temperatura crescente. Teria o vento amainado? Ou o verão havia chegado de repente? Talvez eu estivesse com febre.

Pensei nas mil advertências da sra. Mullet.

“Friagens repentinas enchem as colinas”, ela nunca se cansava de dizer. “E ‘colinas’ significam aquelas pequenas colinas dos túmulos no pátio da igreja, é claro. Agasalhe-se, querida, se você quer receber uma carta de parabéns do rei no seu centésimo aniversário.”

Segurei a gola do meu cardigã bem fechada embaixo do queixo.

Abaixo de mim, o vulto se virara abruptamente e estava se afastando na direção das ameias da ala oeste. Parecia uma coisa estranha a fazer, mas quase instantaneamente eu vi a razão.

Em um ponto do telhado logo acima da sala de estar, a antena do nosso rádio estava esticada entre um par de delgados mastros de bambu.

Agarrando o mastro mais próximo com suas luvas, meu atacante firmou uma bota contra o encaixe na base e deu um puxão brusco. Talvez mais que tudo por causa do frio, o bambu se partiu facilmente, como se fosse um palito de fósforo. Estava agora preso apenas ao fio de cobre. Uma rápida torção do pulso, e também este se partiu, deixando nas mãos do meu atacante uma vara de bambu com duas pontas viciosamente denteadas. De uma delas, pendia um isolador branco de louça que, de algum modo, continuara preso por uma laçada de fio.

Mais uma vez me vi olhando diretamente para baixo, para a cara do meu atacante voltada para cima. Se eu pudesse ao menos estender a mão e arrancar os óculos de aviador daquela cara... Mas eu não podia.

Aqueles olhos ensandecidos olhavam para mim através dos óculos verdes com uma expressão de ódio frio e letal, e um calafrio me percorreu – um tipo de calafrio que eu nunca sentira antes.

Aqueles olhos, me dei conta com um súbito espasmo nauseante, não estavam emoldurados por seus óculos de chifre usuais. Meu atacante não era Val Lampman.

— Marion Trodd está me matando! — ouvi minha própria voz gritar, e aquela constatação deve tê-la surpreendido tanto quanto a mim.

Poderia ter sido menos assustador se ela dissesse alguma coisa, mas não o fez. Ficou lá plantada no silêncio da neve ao vento, ainda me fitando com aquela expressão de ódio totalmente impessoal.

E então, como que fazendo uma reverência ao fim de uma peça teatral, ergueu os óculos e devagar removeu o capacete de aviador.

— Foi você — eu arquejei. — Você com Val Lampman.

Ela soltou um pequeno silvo de desdém, como o de uma cobra. Sem uma palavra, ela estendeu a vara e, encostando-a no meio do meu peito, deu um empurrão brutal.

Soltei um grito de dor, mas de algum modo consegui torcer o corpo na direção do tranco. Ao mesmo tempo, me arrastei um pouco mais para cima.

Mas eu poderia muito bem ter economizado o esforço. A ponta da vara com seu isolador pendurado agora pairava diretamente diante do meu rosto. Eu simplesmente não podia permitir que ela me furasse os olhos ou pegasse o canto da minha boca com o fio, como um peixe no anzol.

Quase sem pensar, agarrei a ponta da vara e bati-a com força contra a chaminé. Com o choque, Marion deixou escapar a outra ponta, e a vara caiu silenciosamente na neve.

Agora, subitamente enfurecida, como se quisesse me estraçalhar com as próprias mãos, ela lançou-se direto para cima de mim, dessa vez conseguindo segurar-se com firmeza nos tijolos da borda. Ela já tinha se içado a meio caminho de onde eu estava quando pareceu dar uma guinada brusca para o lado e depois parar de súbito em pleno ar, como uma perdiz atingida na asa.

Uma praga abafada chegou aos meus ouvidos.

“O visgo! O visgo! Oh, alegria – o visgo!”

Eu tinha dado uma lambuzada extra do material na borda a sota-vento do conduto da chaminé da sala de estar, baseada na teoria de que Papai Noel escolheria o lado protegido para descer de seu trenó.

Marion Trodd se debatia e puxava selvagemente, tentando arrancar as mãos das luvas grudadas, mas, quanto mais ela lutava, mais presa ficava com suas botas de montaria e seu casaco comprido.

Eu tinha me perguntado, ociosamente, enquanto preparava o visgo, se meu grude seria enfraquecido pelo frio, mas era óbvio que isso não acontecera. Na verdade, ele se tornara mais forte e mais grudento, e a cada minuto ficava mais evidente que só se despindo por completo Marion poderia ter esperanças de escapar.

Aproveitei a oportunidade e me curvei para o pavio de novo.

Clique!... Clique!... Clique!...

Pragas e contrapragas! A maldita coisa se recusava a acender.

No silêncio sinistro que se seguiu, enquanto Marion Trodd tentava em vão se livrar, seus movimentos se tornando cada vez mais restritos, o som de vozes cantando chegou flutuando aos meus ouvidos:

As esperanças e temores do ano inteiro

Se encontram em ti esta noite.

Não sei por quê, mas as palavras corroíam meus ossos.

— Dogger! — gritei, a voz rouca e rachada no ar frio. — Dogger! Me ajude!

Mas eu sabia em meu coração que, com todo mundo cantando sobre Belém, eles não poderiam ter me ouvido. Além disso, o telhado era distante demais do foyer – havia tijolos e vigas de madeira de Buckshaw em demasia entre nós.

O vento arrancara as palavras de minha boca e as fustigara inutilmente para fora e para longe, através dos campos congelados.

E foi então que percebi que não havia nada que me impedisse de escapar. Tudo o que precisava fazer era pular para longe de Marion Trodd e correr para a escada.

Eu tinha quase certeza de que ela deixara a porta aberta. De outra forma, como poderia ela retornar à casa depois de acabar comigo?

Ela mostrou os dentes e fez uma careta quando pulei, mas não conseguiu livrar-se o bastante para me agarrar quando passei voando por cima de seu ombro. Meus joelhos se dobraram quando aterrissei em um monte de neve.

Desejei ter pensado em um nobre e desafiador sarcasmo para lançar contra sua cara furibunda, mas não pensei. O medo e o frio cortante me transformaram em pouco mais que uma trouxa encolhida e trêmula.

E então, num instante, me pus em pé outra vez, correndo através do telhado como se todos os mastins do inferno estivessem nos meus calcanhares.

Estava com sorte. Como havia suposto, a porta para a escada estava aberta. Uma luz amarela se derramava sobre a neve em um retângulo cálido e acolhedor.

“Dois metros para a segurança”, eu disse a mim mesma.

Mas de repente uma silhueta negra encheu a porta de entrada, bloqueando a luz – e a minha fuga.

Reconheci Val Lampman imediatamente.

Escorreguei até parar e tentei voltar atrás, meus pés deslizando e escorregando como se eu estivesse de patins.

Corri de volta através do telhado, não me atrevendo a olhar para trás quando cheguei à chaminé da sala de estar e me icei de volta para a primeira saliência. Se Val Lampman estava me alcançando, eu não sabia o que fazer a respeito.

Talvez eu pudesse atraí-lo para a mesma armadilha que Marion Trodd. Ele ainda não sabia do visgo, e eu é que não ia avisá-lo.

Quando escalei mais alto na chaminé, pude ver que ele caminhava sem pressa através do telhado. Metodicamente – sim, essa era a palavra exata.

Parecia provável que ele tivesse mandado Marion Trodd para lidar comigo. Ela me seguira, se esgueirara para cima do telhado durante uma das minhas subidas e descidas. Mas, quando ela não retornou, Val Lampman subiu para fazer o trabalho sujo ele mesmo.

Ele mal olhou para Marion, que ainda estava presa no visgo, contorcendo-se tão ineficazmente quanto um inseto grudado em papel pega-moscas.

— Val! — gritou ela. — Me tire daqui!

Essas foram as primeiras palavras que ela proferiu desde que subira para o telhado.

Ele virou a cabeça – parou – e deu um passo incerto na direção dela.

Foi então que me dei conta de que o homem estava sendo compelido pela necessidade de vingança de Marion Trodd. Fora a comando dela que havia sido forçado a estrangular a própria mãe.

Se isso era amor, eu não queria ter nada a ver com ele.

Junto à base da chaminé, parecendo não saber de qual de nós cuidar primeiro, ele tropeçou de repente, cambaleou e caiu sobre os cotovelos na neve!

Eu quase aplaudi!

Quando ele se pôs tropegamente em pé, vi que tinha tropeçado na vara de bambu, que jazia invisível na neve.

— Espete-a, Val! — berrou Marion roucamente quando ele pegou a vara. Ela já havia parado de pensar na própria salvação para demandar a minha cabeça numa bandeja.

— Espete-a! Derrube-a! Faça isso agora, Val! Faça isso!

Ele olhou para mim – e para ela –, a cabeça girando para um lado e para outro, incapaz de tomar uma decisão.

Então lentamente, como num transe hipnótico, Val Lampman pegou a vara e seguiu para um ponto diretamente abaixo de onde eu me agarrava com força à chaminé.

Sem se apressar, manobrou a ponta aguçada do bambu lentamente para dentro da gola de meu cardigã, dando uma torcida extra para se assegurar de que estava bem presa.

A espiral pontiaguda de fio de cobre ficou rapidamente enredada na lã do meu suéter. Pude senti-la furando minha pele entre as escápulas.

— Não! — consegui dizer. — Por favor!

Um empurrão violento, e eu estava caindo de cara na neve sufocante, o fôlego soprado para fora de mim.

Quando consegui rolar o corpo para cima, ele já estava me arrastando na direção da beira do telhado. Minhas mãos agarravam inutilmente o ar, mas não havia nada em que me segurar – nenhum meio possível de me salvar.

Tentei me pôr em pé, mas não havia como. Ele estava usando a vara para manter-se longe de minhas mãos, meus pés e meus dentes, arrastando-me pela neve como um bacalhau arpoado.

Val Lampman agora me puxara até o limite das ameias, e seu plano estava perfeitamente claro. Ele ia me empurrar por cima.

Seus pés deslizavam no telhado escorregadio enquanto ele tentava plantá-los com firmeza para aquele toque final do seu ato com a vara.

Como era injusto o modo como resultaram as coisas. Pensando bem, era pura e simplesmente revoltante. Ninguém merecia morrer desse jeito.

E, no entanto, Harriet morrera assim, não é?

Quais teriam sido seus últimos pensamentos naquela montanha invernosa do Tibete? Teria toda a sua vida passado num instante diante de seus olhos, como dizem que acontece?

Teria ela tido tempo de pensar em mim?

“Pare com isso, Flavia!”, disse uma voz dentro de mim, súbita e claramente. “Pare com isso já!”

Fiquei tão surpresa que obedeci.

Mas o que se esperava que eu fizesse?

“Avalie”, disse a voz, um tanto mal-humorada.

Sim! Era isso: avaliar a situação.

Era ridiculamente fácil de fazer. Não me restava nada a perder.

De algum modo, naquele momento, consegui me torcer o bastante para livrar minha gola e agarrar a ponta da vara. De maneira inesperada, ela me deu o apoio de que eu precisava para guinar desajeitadamente para cima, pondo-me em pé.

Agora estávamos bem na beira do precipício, Val Lampman e eu, como dois equilibristas na corda bamba, cada um de nós aferrando-se desesperadamente à vida nos extremos opostos do mesmo mastro de bambu.

Ele deu uma sacudida brusca no bambu, tentando me derrubar, mas ao fazer isso seu pé escorregou na calha de pedra gelada. Deixou escapar a vara, e seus braços se agitaram loucamente no ar enquanto ele lutava para manter o equilíbrio.

Mas isso não foi o suficiente para salvá-lo.

Em silêncio total, caiu para trás e foi engolido pela noite. O bambu caiu preguiçosamente atrás dele, rodopiando sobre si mesmo.

De algum lugar lá embaixo veio o som surdo e nauseante do baque.

Fiquei vacilando na beira inclinada, lutando com desespero para manter o equilíbrio, mas meus pés escorregavam lentamente para o limite do parapeito, agora a apenas centímetros de distância.

Em desespero, me joguei de cara para baixo, tentando cravar os dedos nas pedras geladas.

Não adiantou.

Enquanto meus pés precipitavam-se para o espaço vazio, fiz uma última tentativa frenética de me agarrar a um trecho de calha de chumbo desgastada pelo tempo, tentando enganchar os dedos na borda, mas o material se torceu e se desagregou – quase se desintegrado em meus dedos –, e senti meu corpo deslizando... como um manequim flácido... para o precipício.

E então eu estava caindo... infinitamente... interminavelmente... aparentemente para sempre... para dentro da escuridão.


21

QUANDO POR FIM ABRI os olhos, me vi olhando diretamente para cima, para a neve que caía. Um caleidoscópio de flocos vermelhos e brancos que passavam rodopiando, ficando maiores até pousarem em um horrível silêncio de neve lodosa sobre a máscara congelada que devia ser o meu rosto.

Acima de mim, o borrão sombrio dos parapeitos assomava em um ângulo louco, elevando-se para dentro das nuvens baixas e deslizantes.

Houve um clarão difuso, seguido por um ribombar profundo, como se empregados travessos estivessem rolando barris de vinho vazios em um armazém.

Outro clarão – um clarão que resplandeceu e desvaneceu-se com cada pulsação do meu coração – seguido por um crack! ensurdecedor.

Seguiu-se um silêncio – tão intenso que feriu meus ouvidos. Só gradualmente tomei consciência do crepitar da neve que caía. E então...

Fuuum!

Algo como uma vela vermelha iluminou a noite com um brilho pálido e fantasmagórico.

Fuuum! Fuuumpf!

Agora uma luz verde e uma azul juntaram-se à vermelha, enquanto um cometa da cor de girassóis subiu aos céus e explodiu lá no alto em um deslumbrante chuveiro no meio da neve cadente.

A noite subitamente se transformara em um inferno de fogo gelado, as cores resplandecendo com tamanho esplendor selvagem que trouxe lágrimas duras, vítreas aos meus olhos.

Fuuum! Fuuum! Faruuum!

Aquilo parecia que ia continuar para sempre. Eu estava ficando esgotada demais para assistir.

Em algum lugar, alguém estava acenando para mim – uma convocação à qual eu não podia resistir.

“Quem é você?”, eu quis gritar. “Quem é você?”

Mas não tinha voz. Nada mais parecia importar.

Fechei os olhos diante do esplendor estrelado, então abri de novo quase imediatamente quando um grande cometa verde cúpreo ergueu-se sobre uma cauda de fagulhas amarelas rebrilhantes e, como algum dragão celestial, subiu para o céu e explodiu diretamente acima com um bum ensurdecedor.

O Rojão de Honra, lembro-me de ter pensado, ticando mentalmente os ingredientes em meus dedos imaginários: antimônio... limalha de ferro... clorato de potássio.

Por um instante pensei em Phyllis Wyvern, a receptora do meu tributo, e em como era triste que nada dela restara com vida além de uma série de imagens em rolos de filme preto.

Também pensei em Harriet.

E então adormeci.

Estavam todos reunidos em volta da minha cama, os rostos assomando acima de mim como se estivessem sendo vistos através de uma lente olho de peixe. Carl Pendracka me oferecia um tablete de goma de mascar Sweet Sixteen, enquanto as senhoritas Puddock estendiam xícaras idênticas de chá fumegante. O inspetor Hewitt estava em pé com um braço em volta dos ombros de sua esposa, Antigone, que chorava silenciosamente em um delicado lenço de renda. Ao pé da cama estava o pai, imóvel, flanqueado por minhas irmãs de rosto pálido, Ophelia e Daphne, todos os três parecendo que tinham acabado de ser vomitados pelo inferno.

O dr. Darby conversava em voz baixa com Dogger, que sacudiu a cabeça e desviou o olhar. No canto, o rosto enterrado no ombro de seu marido Alf, a sra. Mullet tremia como uma folha no outono. Atrás deles, tia Felicity manipulava um ou outro objeto retininte nas profundezas de sua bolsa de crocodilo.

O vigário, que estava ao lado da minha cama, deu um passo atrás e sussurrou alguma coisa que soou como “flores” ao ouvido de sua mulher, Cynthia.

Havia outros espreitando nas sombras, mas eu não podia vê-los claramente. O quarto estava quente e abafado. Alguém devia ter aberto a velha lareira e acendido o fogo. O cheiro de fuligem e carvão – e mais alguma coisa – pairava no ar superaquecido.

O que seria? Pólvora? Salitre?

Ou eu estava de volta ao sufocante armário embaixo da escada, inalando os fumos de papel queimado?

Tossi penosamente e comecei a tremer.

“Nastúrcios”, pensei, depois de um tempo muito longo. “Alguém me trouxe nastúrcios.”

Dafi certa vez me contara, em um tom um tanto condescendente, que o nome daquelas flores malcheirosas significava “torcedor de nariz”. Mas, embora eu pudesse ter retrucado que o fedor se devia inteiramente ao fato de que seu óleo volátil consistia, em grande parte, em sulfocianato de alila (C4H6NS), ou óleo de mostarda, eu não fiz isso.

Há ocasiões em que sou humilde.

Estávamos examinando um dos cadernos de esboços em aquarela de Harriet naquele dia e encontramos um agrupamento das lindas flores, suas pétalas delgadas como papel formando um cálido arco-íris de laranja, amarelo, vermelho e rosa.

No pé da página estava escrito de leve a lápis: Nastúrcios, Toronto, 1930, Harriet de Luce.

No topo, obliterando uma das pétalas, estava um pesado carimbo preto de borracha: Academia Feminina de Miss Bodycote. E, em lápis vermelho, B-.

Meu coração quis pular para fora do peito e dar um murro no nariz de alguém. Que professor barbárico se atrevera a dar à minha querida mãe morta um B menos?

Inspirei fundo, ofendida, e engasguei com o nó na minha garganta.

— Calma, querida — disse uma voz cava, reverberante. — Está tudo bem agora.

Abri os olhos, apertando-os contra a forte luz branca, para encontrar a sra. Mullet ao meu lado. Ela dirigiu-se rápido à janela e abaixou a persiana até o sol parar de brilhar diretamente em meus olhos.

Precisei de alguns minutos para me localizar. Eu não estava no meu quarto, mas no divã da sala de estar. Fiz um esforço para me erguer.

— Fique deitada quieta, querida — disse ela. — O doutor Darby aplicou um ótimo ectoplasma de mostarda em você.

— Um o quê?

— Tipo um plastro, se prefere. Você precisa ficar bem quieta.

— Que horas são? — perguntei, ainda deslocada.

— Ora, já passou o Natal, amorzinho — disse ela. — Você apagou e perdeu tudo.

Franzi o nariz para a meleca de mostarda grumosa no meu peito.

— Não toque nisso, querida. Você estava com gestão no peito. O doutor Darby disse para deixar o ectoplasma por meia hora.

— Mas por quê? Eu não estou doente.

— Você caiu do telhado. É a mesma coisa. Ainda bem que eles juntaram toda a neve naquele grande monte, senão você teria atravessado direto até a China.

“Telhado?”

Tudo voltou, precipitando-se como num tsunami.

— Val Lampman! — eu disse. — Marion Trodd! Eles tentaram...

— Vamos, vamos — disse a sra. Mullet. — Você não deve pensar em nada, a não ser em ficar melhor. O doutor Darby acha que você pode ter rachado uma costela e não quer ver você trançando por aí.

Ela afofou meu travesseiro e afastou alguns fios de cabelo molhados dos meus olhos.

— Mas eu posso lhe dizer uma coisa — acrescentou ela com uma fungada. — Eles a levaram embora com algemas nos pulsos. Eles tiveram de soltá-la com um tesourão de cortar lata. Você devia ter visto a cara azeda dela. E ficava grudando em tudo o que tocava, até no policial Linnet, que estava com um uniforme limpo. E depois que a mulher dele tinha acabado de lavar e passar, ele mesmo me contou. Eles muito provavelmente vão pendurá-la pelo pescoço até morrer, mas você não diga que eu contei. Não querem que você fique toda excitada.

— E Val Lampman?

A sra. Mullet assumiu uma expressão séria.

— Caiu, que nem você. Aterrissou direto em cima do automóvel da senhorita Wyvern. Quebrou o pescoço. Mas lembre-se, meus lábios estão selados.

Fiquei em silêncio por um longo tempo, tentando determinar na cabeça como reagir a essa notícia, honestamente não inoportuna. Parecia que a justiça decidira por si só como lidar com Val Lampman.

De súbito minha mente se encheu de uma série de imagens estranhas, desbotadas – de faces distorcidas flutuando para dentro e para fora de uma sala nevoenta na qual eu jazia desamparada.

— A senhora Hewitt — eu disse afinal. — Antigone, a esposa do inspetor... ela ainda está aqui?

A sra. Mullet me lançou um olhar perplexo.

— Nunca esteve. Não que eu saiba.

— Você tem certeza? Ela estava em pé, bem aí onde você está, apenas alguns minutos atrás.

— Então ela deve ter sido um sonho, não é? Não esteve ninguém aqui fora eu e Dogger desde a noite passada. E a senhorita Ophelia. Ela insistiu em ficar sentada com você e enxugar seu rosto. Ah, e o coronel, é claro, quando Dogger encontrou você no banco de neve e a carregou para dentro, mas isso foi na noite passada, não foi? Hoje ele ainda não desceu, pobre alma. Se preocupa horrores, de fato. Acho que vai ter algo a lhe dizer quando voltar a ser você mesma.

— Espero que ele tenha.

Na verdade eu estava bastante ansiosa por isso. O pai e eu aparentemente só falávamos um com o outro nas circunstâncias mais desesperadas.

Sem que eu ouvisse, a porta tinha se aberto, e súbito Dogger estava na sala.

— Ora, ora — disse a sra. Mullet. — Aqui está Dogger. Acho que já posso voltar ao meu carneiro. Eles nos puseram para fora da nossa casa e nosso lar, isso eles fizeram. Não acabava mais, repetiam sem parar.

Ela se apressou para fora da sala assertivamente, dando uma lustrada na maçaneta da porta com o avental ao passar.

Dogger aguardou até a porta fechar atrás dela.

— Você está confortável? — perguntou ele com doçura.

Captei seu olhar e por algum motivo tolo fiquei subitamente à beira das lágrimas.

Assenti com a cabeça, temerosa de pronunciar uma só palavra que fosse.

“Só os estrangeiros choram”, o pai me disse uma vez, e eu não quis embaraçar ninguém caindo na choradeira.

— Foi por muito pouco — disse Dogger. — Eu teria ficado muito angustiado se tivesse acontecido alguma coisa com você.

Maldição! Agora meus olhos escorriam como torneiras. Estendi a mão para um dos lenços de papel que a sra. Mullet deixara ao meu lado e fingi assoar o nariz.

— Sinto muito — consegui dizer. — Eu não tinha intenção de causar problemas. É só que eu... eu estava conduzindo um experimento que envolvia Papai Noel. Ele não veio, veio?

— Veremos — disse Dogger, entregando-me mais um lenço de papel. — Você pode expectorar nisto aqui.

Eu mal notara que estava tossindo.

— Quantos dedos estou mostrando? — perguntou Dogger, com a mão afastada para a direita da minha cabeça.

— Dois — eu disse sem olhar.

— E agora?

— Quatro.

— Qual é o número atômico do arsênico?

— Trinta e três.

— Muito bom. E os alcaloides principais da beladona?

— Essa é fácil. Hioscina e hiosciamina.

— Excelente — disse Dogger.

— Eles estavam juntos nisso, não estavam? Marion Trodd e Val Lampman, quero dizer.

Dogger assentiu.

— Ela não poderia ter subjugado a senhorita Wyvern sozinha. O estrangulamento por filme cinematográfico de nitrato de celulose exigiria mãos e braços excepcionalmente fortes. É uma arma muito escorregadia, mas com uma resistência à tensão excessivamente alta, como você, com seus experimentos químicos, sem dúvida está ciente. Uma arma exclusivamente masculina, eu diria. O motivo, no entanto, permanece obscuro.

— Vingança — disse eu. — E herança. A senhorita Wyvern estava tentando contar a alguém, Desmond ou Bun, ou talvez fosse a tia Felicity. Eu não consegui esclarecer. Ela sabia que estavam planejando matá-la. Como tinha assinaturas pagas da Police Gazette True crime News of the Word e assim por diante, ela conhecia todos os sinais. Phyllis estava anotando seus pensamentos em uma folha de papel quando a interromperam. Ela enfiou o papel dentro de uma bota, a qual eles forçaram no pé dela quando trocaram sua roupa. Um engano infeliz da parte deles.

Dogger coçou a cabeça.

— Eu explico mais tarde — disse eu. — Estou tão sonolenta que mal consigo manter os olhos abertos.

Dogger estendeu uma mão.

— Você pode remover o cataplasma de mostarda — disse ele. — Acredito que já esteja suficientemente aquecida. Pelo menos por enquanto.

Ele estendeu uma bandeja de prata, e eu lhe entreguei aquela coisa fedida.

— Cuidado com a oxidação — eu disse, quase como piada.

Mas era verdade. As emanações sulfurosas atacariam a prata de lei antes que você pudesse dizer vapt-vupt!

— Não tem perigo — disse Dogger. — Esta aqui é folheada por eletrólise.

Lembrei-me subitamente envergonhada que o pai mandara toda a prata da família para um leilão meses atrás, e logo fiquei arrependida do meu comentário impensado.

Sem mais uma palavra, Dogger puxou o edredom para baixo do meu queixo e me aconchegou, depois foi até a janela e fechou as cortinas.

— Ah, e Dogger... — eu disse quando ele já estava a meio caminho para fora da porta. — Mais um detalhe: Phyllis Wyvern era mãe de Val Lampman.

— Não diga! — disse Dogger.


22

— ENTÃO, COMO VÊ, INSPETOR — eu disse —, a ideia deles era acabar com ela no meio do maior número possível de suspeitos, como os assassinos em Amor e sangue. Eles devem ter visto a oportunidade de filmar em Buckshaw como um presente dos céus. Val Lampman escolheu a locação pessoalmente.

— Um pouco como um livro de Agatha Christie — comentou o inspetor Hewitt secamente.

— Exato!

Estávamos agora no quarto dia depois do Natal – em 29 de dezembro, para ser precisa.

Depois de eu ter passado dois dias e duas noites flutuando em um sonho suarento, acordando somente para tossir e sugar uma sopa que me era dada de colher por Felinha, que insistira em ficar de vigília à minha cabeceira dia e noite, o dr. Darby dera uma permissão relutante para que eu fosse interrogada pela força policial de Hinley.

“Mais dois dias de emplastros de mostarda, seguidos por não mais que alguns minutos com os sabujos de Sua Majestade”, dissera ele, como se eu fosse uma travessa de rosbife transpirante – ou uma raposa exausta.

— Eu ficaria muito grato em ouvir seus comentários sobre a troca de roupas da senhorita Wyvern — acrescentou o inspetor. — Puramente como uma questão de interesse pessoal, você entende.

— Ah, essa foi a parte fácil! — eu disse a ele. — Eles trocaram a roupa de Julieta pelos trajes de camponesa que ela usara em Vestida para morrer. Eles até os trouxeram com eles. Premeditação, é como vocês chamam isso, acredito. Eles a vestiram com o traje completo, incluindo a maquiagem original. Marion Trodd queria que fosse assim. Vocês provavelmente já encontraram a maquiagem da senhorita Wyvern, o batom e o esmalte de unhas na bolsa dela. Não foi nada mais que vingança, na verdade.

O inspetor pareceu intrigado.

— Val Lampman prometera originalmente a Marion o papel principal em O grito do corvo, mas foi forçado a tirá-lo dela e entregá-lo à sua mãe. Ele tinha de fazer isso, entenda. Marion não sabia, é claro, que a senhorita Wyvern era a mãe de Val, e ele não estava a fim de lhe contar. Está tudo lá no Quem é quem e nos números atrasados de Behind the Screen e Ciné Tit-Bits. Há toneladas de revistas velhas de cinema no armário embaixo da escada.

Foi somente depois de pronunciar as palavras que me ocorreu pensar em quem as teria comprado, muitos anos atrás.

— Verifique isso, sargento — disse o inspetor ao sargento Woolmer, que fechou seu bloco de notas, ficou um pouco vermelho e saiu pesadamente em direção ao foyer.

— Agora, então, você está sugerindo que Marion Trodd foi outrora uma atriz — disse ele depois que o sargento saiu. — É isso?

— Sim, usando o nome de Norma Durance. O sargento Woolmer vai encontrar isso na Silver Cinema de 1933. A edição de setembro, acredito. Receio que esteja um pouco chamuscada, mas no que restou há uma foto muito boa dela como Dorita em A pequena galinha vermelha.

A esferográfica Biro do inspetor Hewitt decididamente voava em cima da página, mas ele parou por tempo suficiente para me lançar um sorriso surpreso.

A despeito de estar parecendo um balão de barragem contra aviões inimigos na minha camisola de lã e no meu robe tipo tapete, devo ter positivamente me envaidecido.

— Eles estavam tendo um affaire, é claro — acrescentei displicentemente, e os globos oculares do inspetor tiveram um espasmo involuntário. Eu de fato não entendia tudo o que estava envolvido nesse tipo de relacionamento, e também não me importava muito, na verdade. Uma vez, quando perguntei a Dogger o que a frase queria dizer, ele me contou que descrevia duas pessoas que se tornaram as melhores amigas, e aquilo foi bom o bastante para mim.

— É claro — disse o inspetor em uma voz surpreendentemente mansa, escrevinhando sem parar em sua caderneta. — Muito bom.

Muito bom? Tentei não sorrir como uma boba. Aquilo era um alto elogio partindo de um homem que tinha, no nosso primeiro encontro, me mandado embora para arranjar um pouco de chá.

— Você é muito amável — disse eu, ansiosa por fazer durar o momento.

— Eu sou, sem dúvida — disse ele. — Cheguei à conclusão de que ficar exasperado é totalmente inútil.

— Eu também — disse eu, sem saber muito bem o que queria dizer. A despeito disso, soou como uma resposta inteligente.

— Bem, obrigado, Flavia — disse o inspetor, pondo-se em pé. — Isto foi muito instrutivo.

— Fico sempre feliz em ajudar — disse eu, sem um pingo de timidez.

— É claro... eu mesmo já chegara a essa conclusão — acrescentou ele.

Fui subitamente tomada por uma sensação de frio úmido e pegajoso. Ele mesmo chegara a essa conclusão? Como ele pôde? Como ele se atreveu?

— Impressões digitais? — perguntei com frieza.

Eles devem ter encontrado as impressões digitais dos assassinos na sala do crime.

— De maneira alguma — disse ele. — Foi o nó. Ela foi estrangulada com um simples pedaço de filme de cinema ao qual, depois da morte, um laço adicional foi acrescentado. Duas camadas distintas e, acreditamos, por duas pessoas diferentes, uma canhota e a outra destra. O nó interno, aquele que de fato a matou, era um tanto inusitado: um nó não deslizante usado por marinheiros e raramente por outros. O sargento Graves descobriu, reparando nas tatuagens de Val Lampman, que ele havia servido por algum tempo na Marinha Real, um fato que desde então conseguimos confirmar.

Eu também reparara naquilo, é claro, mas não tinha tido tempo de conferir.

— É claro! — eu disse. — O nó externo era puramente decorativo! Marion Trodd deve tê-lo acrescentado como um toque final depois de ter trocado as roupas.

O inspetor fechou a caderneta.

— Existe um nó que é conhecido por floristas, que o amarram com fita em arranjos florais, como “o durance” — disse ele. — É, como você diz, puramente decorativo. Era também a assinatura dela. Eu não tinha percebido a conexão até agora há pouco, quando você foi boa o bastante para prover o elo faltante.

Maestro, algumas trombetas triunfais! Alguma coisa de Handel, por favor! “Música para os Fogos de Artifício Reais”? Sim, isso vai servir lindamente.

— “Vestida para morrer” — eu disse com um toque do velho drama.

— “Vestida para morrer”. — O inspetor Hewitt sorriu.

— Você está supondo — perguntei — que, antes de se transformar na atriz Norma Durance, a senhorita Trodd pode ter sido empregada em uma loja de flores?

— Eu não ficaria surpreso — disse ele. — Parece que, por dois caminhos muito diferentes, nós dois chegamos ao mesmo destino.

Seria esse mais um de seus elogios de dois gumes? Eu não pude realmente dizer, então respondi com um sorriso simplório.

“Flavia, a Esfinge”, ele pensaria. “A inescrutável Flavia de Luce”. Ou qualquer coisa assim.

— É melhor você descansar um pouco — disse ele de repente, dirigindo-se para a porta. — Não quero que o doutor Darby me responsabilize por sua convalescença estendida.

Que homem precioso era ele, o inspetor! “Convalescença estendida”, realmente. Era tão típico dele... Não admira que sua esposa, Antigone, resplandecesse como um holofote quando ele estava ao seu lado. O que me lembrou...

— Inspetor Hewitt — eu disse —, antes de você sair...

Mas ele me interrompeu.

— Não há necessidade — disse ele, fazendo um gesto de dispensa com as mãos. — Nenhuma necessidade mesmo.

Inferno! Será que eu ia ser roubada do meu pedido de desculpas? Mas, antes que eu pudesse dizer outra palavra, ele continuou:

— Ah, a propósito, Antigone me pediu para dar-lhe os parabéns por um espetáculo de fogos de artifício sensacional. A despeito do fato de você aparentemente ter violado quase todas e cada uma das normas das Leis de Explosivos de 1875 e 1923, discussão essa que deixaremos para depois que o chefe de polícia for convencido a descer do teto, ela me disse que o seu pequeno show foi visto e ouvido em Hinley. Apesar da neve.

— Apesar da neve — o pai estava dizendo com o que soava, incrivelmente, como uma certa medida de orgulho na voz. — Uma amiga da senhora Mullet relatou ter visto um nítido brilho vermelho no céu ao sul de East Finching, e alguém contou a Max Brock que as explosões foram ouvidas em locais tão distantes como Malden Fenwick. Àquela altura a nevasca já estava diminuindo, é claro, mas ainda assim, se você parar para pensar nisso... notável mesmo. Um relâmpago durante uma nevasca não é algo completamente inédito, é claro. Telefonei para o meu velho amigo Taffy Codling, que por acaso é agente meteorológico da base aérea de Leathcote. Taffy me disse que, embora seja excepcionalmente raro, o fenômeno foi deveras registrado nas primeiras horas da manhã de Natal, justo por volta do momento do... ahn... contratempo... ahn... de Flavia.

Eu não ouvia o pai pronunciar tantas palavras desde que ele me fizera confidências na época do assassinato de Horace Bonepenny. E o fato de ter usado o telefone para averiguar a respeito do relâmpago! Estaria o mundo saindo dos eixos?

Eu tinha sido arrumada e acomodada no divã da sala de estar como se fosse uma daquelas heroínas vitorianas que estão sempre morrendo de tísica nos romances de Dafi.

Estavam todos reunidos à minha volta em um círculo, como no jogo de Famílias Felizes que arrastamos para fora de um armário certa vez em que estava chovendo havia três semanas e ficamos jogando interminavelmente na mesa da sala de jantar com uma austera e determinada hilaridade.

— Eles acham que um relâmpago deflagrou os seus fogos de artifício — dizia Dafi. — Então você dificilmente poderia ser responsabilizada, não é? Porém, aquilo deixou um enorme buraco no telhado. Dogger teve de organizar um mutirão de aldeões. Que espetáculo bárbaro! Uma pena que você perdeu!

— Daphne! — disse o pai, dando-lhe uma daquelas miradas que ele reserva para linguagem marginal.

— Bem, é verdade — continuou Dafi. — Você devia ter visto todos nós ali em pé, enfiados na neve até o traseiro, boquiabertos como um bando de cantorzinhos de Natal com adenoides!

— Daphne...

O vigário apertou os maxilares, tentando suprimir um sorriso angelicamente tolo. Mas, antes que Dafi pudesse ofender de novo, ouviram-se batidinhas leves à porta, e um nariz hesitante apareceu.

— Posso entrar?

— Nialla! — eu disse.

— Só viemos dizer adeus — sussurrou ela dramaticamente, entrando de vez na sala, com uma trouxa envolvida em fraldas aninhada nos braços. — A equipe de filmagem se foi, e Desmond e eu somos os últimos aqui. Ele ia me levar para casa em seu Bentley, mas parece que o carro congelou. O doutor Darby por acaso está indo a Londres para um jantar com colegas de escola e se ofereceu para deixar o bebê e eu bem na nossa porta da frente.

— Mas não é muito cedo? — perguntou Felinha, falando pela primeira vez. — Você não poderia ficar por algum tempo? Eu mal tive oportunidade de ver o bebê, com todos os incidentes.

Ela franziu o cenho em minha direção ao dizer isso.

— É muita gentileza de sua parte — disse Nialla correndo os olhos pela sala de rosto a rosto. — Foi adorável ver todos vocês outra vez, e Dieter também, mas Bun me pôs em contato com alguém que está trabalhando em uma nova adaptação para cinema de Um conto de Natal. Ah, por favor, não faça essa careta para mim, Daphne; é trabalho, e vai nos manter alimentados até que apareça a coisa certa.

O pai arrastou os pés e olhou cautelosamente para fora, por baixo das sobrancelhas.

— Eu disse à senhorita Gilfoyle que ela é bem-vinda para ficar o tempo que desejar, mas...

— ... mas ela precisa ir andando — Nialla concluiu com vivacidade, sorrindo para a criança em seus braços e limpando alguma coisa imaginária de seu queixo.

— Ele se parece um pouco com Rex Harrison — eu disse. — Especialmente a testa.

Nialla corou graciosamente, dando uma olhada para o vigário, como que pedindo apoio.

— Espero que ele tenha a cabeça do pai — disse ela —, e não a minha.

Houve um daqueles longos e desconfortáveis silêncios durante os quais você reza ardentemente para que ninguém faça algum ruído rude.

— Ah, coronel De Luce, aqui está você — disse a voz mundialmente famosa, e Desmond Duncan fez sua entrada em um passo tão refinado e conspícuo quanto os dados diante de uma câmera de cinema ou um público do West End. — Dogger me disse que eu deveria encontrá-lo aqui. Estive aguardando a oportunidade de lhe transmitir algumas notícias extraordinariamente boas.

Em sua mão estava o exemplar de Romeu e Julieta que ele pegara na biblioteca.

— “Que belos são os pés daqueles que trazem boas novas”, ou assim ao menos falou o apóstolo Paulo, citando Isaías, mas presumivelmente falando de seus próprios pés, em sua epístola aos romanos — observou o vigário para ninguém em particular.

Todos olharam ao mesmo tempo para os sapatos Bond Street de Desmond Duncan, mas, assim que se deram conta de seu erro, todos desviaram o olhar para o teto.

— Este pequeno e despretensioso volume que apareceu na sua biblioteca é, se não estou equivocado, um Shakespeare Primeiro Quarto. Que ele é de imenso valor está fora de questão, e eu seria culpado de uma cruel transgressão se fingisse que não é.

Ele examinou a capa, tirou os óculos, olhou para o pai, recolocou os óculos e abriu o livro na página de rosto.

— John Danter — disse ele em um sussurro lento e reverente, estendendo o livro para inspeção.

— Perdão, mas como disse? — perguntou o pai.

Desmond Duncan respirou fundo.

— A não ser que eu esteja enganado, coronel De Luce, você é o proprietário de um Primeiro Quarto de Romeu e Julieta. Impresso em 1597 por John Danter. No entanto, é uma pena esta inscrição moderna. Você poderia, quem sabe, mandar removê-la profissionalmente.

— Quanto? — demandou abruptamente tia Felicity. — Isso deve valer uma pequena fortuna.

— Quanto? — Desmond Duncan sorriu. — Possivelmente o resgate de um rei. Eu posso dizer que, sem a menor dúvida, se fosse levado hoje a leilão... Um milhão de libras, talvez. Isto é conhecido como um “Mau Quarto” — prosseguiu ele, mal contendo a excitação. — Em certos trechos, o texto é muito diferente do que estamos acostumados a ver representado. Acredita-se que foi criado a partir de atores shakespearianos tendo de recordar seus papéis de memória. Donde a inexatidão.

Como em um transe, Dafi se arrastava lentamente para a frente, a mão estendida para o livro.

— Você está dizendo — perguntou ela — que o próprio Shakespeare pode ter segurado este mesmo volume nas mãos?

— É possível — disse Desmond Duncan. — Ele precisa ser avaliado por um especialista. Olhe aqui: há garranchos ininteligíveis de tinta por toda parte – muito velhos, a julgar pela aparência. Alguém certamente fez anotações.

Os dedos de Dafi, agora a não mais de três centímetros do livro, retraíram-se subitamente, como se ela tivesse sido queimada.

— Eu não posso! — disse ela. — Eu simplesmente não posso!

O pai, que até então estava parado imóvel, estendeu mecanicamente a mão para o livro, o rosto rígido como um atiçador de lareira.

Mas Desmond Duncan não havia terminado.

— Como participei da descoberta, ou ao menos da identificação de tamanho tesouro, eu gostaria de me considerar como merecedor de uma pequena vantagem quando e se você decidir...

A sala mergulhou em silêncio quando o pai tirou o livro das mãos do ator e virou lentamente suas páginas. Ele folheou o Quarto, como a maioria das pessoas faz com um livro, do fim para o começo. Ele chegara agora à página de rosto, que estava aberta em sua mão.

— Como eu disse, esse vandalismo moderno poderia ser facilmente removido por um especialista — prosseguiu Desmond Duncan. — Creio que a Biblioteca Britânica emprega especialistas em restauração que poderiam apagar essas máculas desastrosas sem deixar vestígio. Tenho absoluta certeza de que, no fim das contas, você ficará feliz com o resultado.

Embora a expressão do pai não o demonstrasse, ele estava olhando fixamente para o monograma – suas próprias iniciais e as de Harriet entrelaçadas.

Seu indicador se moveu através da superfície do papel devagar, detendo-se por fim sobre as iniciais em tinta vermelha e preta e retraçando-as cuidadosamente: as de Harriet e, depois, as suas próprias, na forma de uma cruz.

Como se estivesse ouvindo pelo rádio, fui capaz de ler os pensamentos que voavam pela sua cabeça. Ele estava lembrando-se do dia – do momento exato – em que aquelas iniciais tinham sido inscritas, em tinta vermelha por Harriet e em preta por ele mesmo.

Teriam sido escritas, talvez, quando os dois estavam sentados junto a uma ensolarada porta-janela no verão? Ou depois de se abrigarem sem fôlego na estufa enquanto uma súbita chuvarada com sol escorria em rios despercebidos do lado de fora do vidro, lançando sombras fracas e líquidas sobre suas faces jovens e maravilhadas?

Vinte anos se passaram céleres como sombras de nuvens pelo rosto do pai, invisíveis a todos, menos a mim.

E agora ele estava pensando em Buckshaw. O Quarto de Shakespeare, em leilão, renderia o suficiente para pagar suas dívidas e, com um pouco de investimento prudente, nos manteria em circunstâncias modestas porém confortáveis pelo tempo que fosse necessário e – se Deus quisesse – até com umas poucas libras a mais para o pai se permitir um ocasional bloco de selos Penny Black Chapa 1B.

Pude ler isso em seu rosto.

Ele fechou o livro e olhou em volta para todos nós, um por um... Dafi... Felinha... o vigário... Dogger, que acabara de entrar na sala... tia Felicity... Nialla... e eu, como se ele pudesse encontrar escritas em cada rosto as instruções sobre como proceder.

E então, muito mansamente, o pai disse para nenhum de nós:

— “Quantas vezes quando a ponto de morrer

Homens sentiram-se alegres! A que chamam seus cuidadores

De o lampejo que antecede a morte: oh, como poderei

Chamar isso de um lampejo? Oh, meu amor! Minha esposa!

A morte, que sugou todo o mel do teu hálito,

Não teve poder sobre a tua beleza.”

Dafi arfou audivelmente. Felinha estava pálida como a morte, os lábios separados, os olhos no rosto do pai. Reconheci as palavras como as que Romeu pronunciara junto ao túmulo de Julieta.

— “Tu não foste conquistada!” — Prosseguiu o pai, a voz ficando ainda mais abafada, o Quarto apertado em suas mãos.

— “O pendão da beleza ainda

É carmesim em teus lábios e faces

E o pálido estandarte da morte ali não progrediu.”

Ele estava falando com Harriet!

Suas palavras, agora apenas audíveis, eram pouco mais que um sussurro.

— “Devo crer

Que a morte insubstancial se apaixonou,

E que o monstro seco e abominado guarda-te

Aqui nas trevas para ser seu amante?”

Como se ela estivesse na sala...

— “Por medo disso ficarei aqui contigo

E nunca deste palácio da noite sombria

Me afastarei outra vez.”

E então ele se virou e caminhou lentamente para fora da sala, como se estivesse se afastando de um túmulo.

Meu pai não é dado a abraços, mas tive vontade de abraçá-lo. Tive vontade de correr atrás dele e lançar meus braços em volta dele e abraçá-lo até escorrer a calda.

Mas é claro que não fiz isso. Nós, os De Luce, não nos deixamos arrebatar pelas emoções.

E no entanto, talvez, quando chegarem a escrever a história final desta raça insular, haverá um capítulo sobre todas aquelas cenas gloriosas que ocorreram somente em mentes britânicas, e não no mundo material, e, se o fizerem, o pai e eu estaremos lá, se não de mãos dadas, então marchando, ao menos, na mesma parada.


POSLÚDIO

TODO TINHAM SAÍDO EM SILÊNCIO DA SALA atrás do pai. Eles se dissolveram tão indiferentemente quanto os figurantes de um filme depois do grande número de dança, deixando-me sozinha afinal para me espreguiçar com voluptuosidade no sofá, fechar os olhos por um tempo e planejar para o futuro, que, por ora, parecia ter sido dedicado a uma série de emplastros fumegantes de mostarda, baldes de óleo de fígado de bacalhau e alimentação forçada com o revoltante pudim para inválidos da sra. Mullet.

Só de pensar nisso a minha úvula se retraía atrás das amígdalas. A úvula é aquela pequena estalactite carnuda que fica pendurada no fundo de sua garganta, cujo nome, Dogger me contou, vem da palavra latina para “uva”.

“Como ele sabe essas coisas?”, eu me perguntei. Embora tivessem ocorrido inúmeras ocasiões em que o conhecimento de Dogger sobre o corpo humano viera a calhar, eu até bem recentemente achava que isso era devido à sua idade. Decerto alguém que viveu tanto tempo no mundo como Dogger, alguém que sofreu em um campo de prisioneiros de guerra, não poderia deixar de ter adquirido uma certa quantidade de informações práticas.

E no entanto havia mais do que isso. Eu sabia disso instintivamente, e me dei conta com um súbito estremecimento de que uma parte de mim soube o tempo todo.

“Você já fez isso antes, não fez?”, eu lhe perguntara quando estávamos ambos junto ao corpo de Phyllis Wyvern.

“Sim”, respondera Dogger.

Minha cabeça estava fervilhante. Havia tantas coisas que precisavam ser pensadas...

Tia Felicity, por exemplo. O relato dela sobre seu tempo de serviço durante a guerra, embora escasso, me lembrara da correspondência de tio Tar com Winston Churchill, grande parte da qual ainda estava em uma gaveta da escrivaninha em meu laboratório e não tinha sido examinada. Tio Tar estava morto havia mais de vinte anos, mas eu não esquecera que tia Felicity e Harriet tinham passado verões alegres com ele aqui em Buckshaw.

Definitivamente, merecia mais uma olhada.

E havia o Papai Noel. Teria ele, a despeito da multidão, conseguido entrar em segredo na casa? Teria trazido para mim as retortas de vidro e os tubos de ensaio que eu pedira – todos os adoráveis frascos e funis, os béqueres e as pipetas, embalados em palha e acomodados juntos, faces de cristal quase se tocando? Estariam já em cima no meu laboratório, luzidios à luz hibernal, aguardando apenas o toque da minha mão para trazê-los à vida borbulhante?

Ou seria o velho santo, afinal, nada mais que o mito cruel que Dafi e Felinha haviam feito dele?

Eu certamente esperava que não.

E então veio de repente à minha cabeça uma prova especial que começa com a letra P, e não era potássio.

Meus pensamentos foram interrompidos pelo som de risos na sala ao lado, e, um momento depois, Felinha e Dafi entraram com os braços cheios de presentes alegremente embrulhados.

— O pai falou que está tudo bem — disse Dafi. — Você estava inconsciente no Natal, e nós duas estamos morrendo de vontade de ver o que tia Felicity lhe deu.

Ela deixou cair sobre minhas pernas um pacote embrulhado no que parecia suspeitosamente ser papel de Páscoa.

— Vá em frente, abra.

Meus dedos curiosamente enfraquecidos puxaram a fita, rasgando o papel no canto do pacote.

— Me dê aqui — disse Felinha. — Você é desajeitada demais.

Eu já tinha sentido através do papel que o pacote continha alguma coisa macia e o desconsiderara. Todo mundo sabe que os presentes verdadeiramente grandiosos são sempre duros ao toque, e eu podia dizer, mesmo sem abrir, que o de tia Felicity era um fiasco.

Entreguei-o de volta sem dizer palavra.

— Ah, olhe! — disse Felinha com falso entusiasmo, jogando o papel de lado. — Uma camisolinha!

Ela segurou a monstruosidade de seda na altura do peito como se estivesse posando de modelo. Toda bordada em ponto de cruz em um padrão de losangos acolchoados, a coisa parecia um colete salva-vidas descartado de um junco chinês.

— O verde-jade combina lindamente com a sua compleição — disse Dafi. — Quer experimentar?

Virei a cara para as costas do sofá.

— O próximo é do pai — disse Felinha. — Devo abrir?

Estendi a mão e tirei o pequeno embrulho das mãos dela. Na etiqueta estava escrito:

Para: Flavia

De: Pai

Feliz Natal

Havia uma imagem de um pequeno sabiá-laranjeira na neve.

O papel saiu sem dificuldade. Dentro havia um livrinho.

— O que é isso? — demandou Dafi.

— Tinturas de anilina na impressão de selos do Correio Britânico: uma história química — eu li em voz alta.

Velho pai querido. Tive vontade de rir, e ao mesmo tempo de chorar.

Ergui o livro para que Dafi o visse, forçando-me a lembrar quão empolgada ficara quando li pela primeira vez que o grande Friedrich August Kekulé, um dos pais da química orgânica, concebera originalmente o átomo de carbono tetravalente enquanto voltava para casa de Clapham em um ônibus puxado a cavalo. A voz do condutor gritando “Clapham Road!” interrompera o fio de seu pensamento, e ele só foi se lembrar de sua revelação quatro anos depois.

Kekulé tinha sido associado a tintas de impressão, não é? Seu amigo Hugo Müller não tinha sido empregado pelos De La Rue, os impressores dos selos de correio britânicos?

Pus o livro de lado. Eu lidaria com meu emaranhado de emoções depois, quando estivesse sozinha.

— Este é meu — disse Felinha. — Abra agora. Cuidado para não quebrar.

Removi o papel cuidadosamente do embrulho chato, quadrado, sabendo assim que toquei nele que era um disco fonográfico.

E de fato era: “Toccata”, de Pietro Domenico Paradisi, de sua “Sonata em lá maior”, executada pela soberba Eileen Joyce.

Para mim, tratava-se da maior peça musical composta desde quando Adão e Eva estavam acampados no Éden, uma melodia que borbulhava e dançava e deslizava como os alegres átomos de sódio ou magnésio quando são soltos em um béquer de ácido clorídrico.

Felinha tocava ocasionalmente a “Toccata” de Paradisi a meu pedido, mas somente quando não estava zangada, portanto eu não a ouvia com muito frequência.

— Mu... muito obrigada — eu disse, quase sem fala, e pude ver que Felinha ficou contente.

— E agora o meu — disse Dafi. — Não é grande coisa, mas, também, você não merece grande coisa.

Novamente um pacote chato e fino, amarrado com barbante e uma etiqueta: Para F. de D.

Era uma gravura em aço, colada em um pedaço de papelão, de um alquimista trabalhando entre seus frascos e garrafões, seus béqueres e suas retortas.

— Recortei de um livro na Foster’s — disse Dafi. — Eles nunca vão perceber. Os únicos livros que eles abrem são da Biblioteca Badminton. Falcoaria, pesca, caça e assim por diante.

— É adorável — eu disse. — Lindo. Vou pedir a Dogger que me ajude a enquadrar.

— Se eles perceberem que desapareceu — prosseguiu Dafi —, vou dizer que você surrupiou. Afinal, o que eu iria querer com um velho alquimista fedido?

Mostrei a língua para ela.

O seguinte era um pacote da sra. Mullet.

Luvas de lã sem dedos separados.

— Ela disse que você vai precisar, para os seus dedos queimados de frio.

— Os meus dedos estão queimados de frio? — perguntei, abrindo-os com o braço esticado para examinar. — Eles formigam um pouco, mas não me parecem diferentes.

— Ora, você não perde por esperar — disse Felinha. — Mais vinte e quatro horas, e eles vão começar a ficar pretos, e depois vão cair. Você vai precisar mandar adaptar ganchos, não é, Dafi? Cinco ganchinhos em cada mão. O doutor Darby disse que você teve sorte. Eles aperfeiçoaram os ganchos enormemente nos últimos dez anos, e você poderá até conseguir...

— Pare com isso! — gritei. Minhas mãos tremiam diante dos meus olhos.

Minhas irmãs trocaram um olhar cujo significado eu outrora conhecia, mas agora, nem se minha vida dependesse disso, eu não conseguiria me lembrar.

— Vamos deixá-la sozinha — disse Dafi. — Ela não é boa companhia quando está assim.

À porta, elas se viraram para trás, como se estivessem unidas por dobradiças na cintura.

— Feliz Natal — disseram em uníssono, e então se foram.

*  *  *

Fiquei deitada em silêncio por um longo tempo, olhando para o teto.

“Minha vida teria de ser sempre assim?”, me perguntei. “Teria de ir, para sempre, em um instante, de alegria ensolarada para sombras? De pandemônio para solidão? De ira selvagem para um tipo de amor ainda mais selvagem?”

Faltava alguma coisa. Eu tinha certeza disso. Faltava alguma coisa, mas por mais que me esforçasse eu não conseguia imaginar o que era.

Depois de algum tempo, deixei as pernas escorregarem pesadamente para o chão e então me ergui para uma posição sentada. Minúsculos fogos de artifício explodiram atrás dos meus olhos, resultado de passar tantos dias em posição horizontal. Trêmula, me pus em pé, agarrando-me ao encosto do sofá como um insólito apoio.

Fiquei parada um momento, esperando passar a fraqueza; e então, apertando forte o meu robe à minha volta e tentando desesperadamente me manter em silêncio, arrastei os pés devagar para a porta. Se alguém percebesse que eu estava me arrastando pela casa, eu certamente teria de ouvir severas reprimendas.

Mas os corredores estavam vazios. Os aldeões e a equipe de filmagem tinham ido embora.

O foyer estava tomado por seu usual silêncio de verniz escuro. Buckshaw voltara ao normal.

Vindo de algum lugar acima, um raio solitário de sol reluzia sobre o tabuleiro de ladrilhos em xadrez preto e branco, incidindo precisamente ao longo da linha preta pintada tantos anos atrás por Antony e William de Luce para dividir Buckshaw em dois campos armados.

“Que triste”, pensei. “Seu ódio sobreviveu a eles.”

Fui subindo pela escadaria leste, um lento passo de cada vez. No topo parei para descansar, empoleirada por algum tempo no último degrau como um passarinho em um ramo.

Só ali no topo da casa eu me senti libertada, de uma certa forma, do fardo esmagador de ser uma De Luce. Lá, acima daquilo tudo, eu era de algum modo eu mesma.

Simplesmente Flavia.

Flavia Sabina de Luce. Ponto final.

Depois de algum tempo, me forcei a andar de novo e segui vacilante em direção ao meu laboratório. Simplesmente séculos haviam se passado desde que ficara afastada por tanto tempo do meu sanctum sanctorum.

Respirei fundo... abri a porta... e entrei. E o sorriso que se espalhou pelo meu rosto trouxe lágrimas aos meus olhos incrédulos.

— Iuhuuu! — eu bradei, pouco me lixando se alguém ouvisse.

— Yuhuuu!

 

 

                                                    Alan Bradley         

 

 

 

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