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O SEGREDO DE LeBARON - P.2 / Stephen Birmingham
O SEGREDO DE LeBARON - P.2 / Stephen Birmingham

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

O SEGREDO DE LeBARON

Segunda Parte

 

A Tomada de Controle

 

Sari e peter tinham passado os três primeiros verões inteiros após seu casamento - de 1927, 1928, 1929 - no Rancho Bitterroot, a noroeste de Montana, com a sua menininha. A propriedade consistia de 1.200 hectares arborizados em Lake County, dando vista para Flathead Lake, e com montanhas encimadas pela neve em ambas as linhas do horizonte, e que Julius LeBaron adquirira por uma pechincha (25 dólares por hectare) antes da guerra, quando as terras das Rochosas eram encaradas quase como inúteis. Agora, o governo dos EUA gostaria de comprar o Bitterroot para convertê-lo num Parque Nacional, mas Sari e os outros herdeiros de Julius têm resistido às ofertas. A cifra oferecida pelo governo é de quinhentos mil dólares. Investidores particulares também têm revelado interesse em adquirir essas terras.

Bitterroot ficava, e ainda fica, na zona madeireira, mas foi ideia de Peter deixar o vale limpo de árvores para criar ovelhas - merinos australianos eram o que ele tinha em mente. E ele também planejara fazer uma experiência com uma nova raça de gado vacum para engorda que fora desenvolvida no Texas, chamada Santa Gertrudis, conhecida por sua resistência a todos os tipos de clima e o seu crescimento vigoroso e econômico à base de uma alimentação exclusivamente de capim. Este, pelo menos, tinha sido o seu projeto.

As instalações principais de Bitterroot consistiam de uma casa de madeira confortável, com dez cômodos, todos no mesmo nível, edificada num declive aberto acima do lago. Havia várias outras construções: barracões, depósitos de ferramentas e uma casa pequena onde o superintendente do rancho, o sr. Hanratty, morava com sua mulher. Todas as manhãs, após o café, preparado para eles pela sra. Hanratty, Peter saía para abater sua cota diária de árvores. Cada árvore abatida era objeto de anotação num pequeno bloco que ele guardava num dos bolsos de suas calças de trabalho, de sarja. E todas as noites na hora do jantar ele anunciava o que abatera. "Vinte e cinco árvores hoje"... "Trinta e uma hoje", e por aí afora; ao término de cada um daqueles três verões, o corte das árvores vinha a ser totalizado. Os totais eram impressionantes: 450 árvores num verão, 490 no seguinte, e assim por diante, com a abertura de clareiras no bosque parecendo se tornar quase uma obsessão para ele. E Assaria com freqüência ficava se perguntando sobre isso. Parecia ser o único interesse dele, e, no entanto, ela não julgava possível que Peter pudesse ser bem-sucedido em desbastar o terreno que ele tinha em mente numa infinidade de verões, particularmente desde que Peter se negara a receber qualquer ajuda exterior em seu labor, mesmo da parte do sr. Hanratty, quando este se oferecera para ajudá-lo. Peter reiterara que iria fazer tudo aquilo sozinho.

- Então - dizia ele - nós iremos ficar aqui, criar merinos australianos e experimentar o gado Santa Gertrudis. Isto aqui não ficará muito solitário, ficará?

- Esta é a região mais bela do mundo - dizia Sari. - Mas, com o tempo, pode haver mais filhos... netos, talvez.

A isto ele não respondia.

Como se trata um amante que não o é de fato? Como se tenta fazê-lo feliz? Tenta-se a ternura, experimentam-se os parabéns. "Quarenta árvores hoje! Isto é um recorde, não? Que maravilha!" Como se poderia penetrar em seu alheamento, em sua solitária e taciturna paisagem íntima, no seu desencorajamento, desapontamento e determinação de não fazer outra coisa que manejar um machado? Ela tinha sentido isso pairar sobre eles... sentira, mas tentara minimizar o fato, mesmo antes de se casarem. E ela o sentira na Suíça, e procurara levar aquilo na brincadeira. Tristeza, fora como Andréa Badrutt a chamara, e era um termo tão bom para isso como qualquer outro. Uma tristeza infinita, uma tristeza impenetrável, mas o que ele não detectara fora que essa tristeza de Peter de algum modo se encasulara no seu coração e na sua mente, e que Sari, apesar de todas as suas tentativas de promover a alegria, não podia chegar a sensibilizar.

- Você não lamenta isso, lamenta, Peter? - ela lhe diria. - Nós fizemos o que era certo, não foi? - E ele viria a responder:

- Oh, sim, é claro.

E então, às vezes, a despeito de seu empenho em contrário, ela vinha a perder a paciência com ele. E exclamaria:

- Você concordou com isso! Foi o que você disse desejar que fizéssemos!

- Oh, sim - diria ele. - Sim, eu sei.

E ela se descobriria se perguntando: O amor é importante? Será importante estar apaixonada? Talvez não, e talvez o amor não seja nada mais do que observar o homem a quem se ama, o amante que ele não é, abatendo árvores e rejubilando-se ao anunciar o total diário. Volte, ela desejara dizer-lhe. Retorne ao lugar que tínhamos antes, onde fizemos amor, e onde você me disse que eu era adorável, que me amava. Volte, volte. Mas ele não voltaria, e ela continuaria a observá-lo, sem camisa, em sua lenta redução da floresta de pinheiros com seu machado, e com seu sinal marrom lunar entre os finos pêlos logo acima do estômago, que a povoariam de uma ansiedade e uma tristeza que não poderiam ser apagadas nem mesmo no cenário mais elevado e montanhoso do amor, muito menos no amor em seu aspecto mais banal. "Por que o banho de chuveiro não remove tudo apropriadamente?", perguntava-se ela, e com os dedos abaixava e retocava uma pequena mecha escura de seu cabelo, e seus olhos se enchiam de lágrimas.

- O nosso casamento não é convencional - dizia-lhe ele às vezes.

- Mas isso significa que não podemos tentar algo nesse sentido? Eu julgava que fosse o que nós iríamos tentar.

- Bem... - dizia ele então, e mudava de assunto. Joanna, por sua vez, aconselhava:

- Viva a sua vida. Trabalhe bastante. Eis a resposta. Organização. Organize algo.

E, assim, fora isso que ela tentara fazer.

Algumas vezes, naqueles verões em Bitterroot, Sari saía com ele e ficava observando-o trabalhar, nu até a cintura e suando, enquanto ela ficava sentada envolta numa mantilha ou suéter por causa do ar muito frio da montanha. O sol incidia sobre os músculos das costas e os ombros de Peter quando ele manejava o machado, as lascas de madeira flutuando no ar, os sons dos cortes ecoando nas colinas. Era

também esse árduo exercício físico que o mantinha naquela esplêndida forma, mas a vaidade nada tinha a ver com o que o estava incitando.

- Há mais coisas... na tarefa de madeireiro... do que apenas... saber como usar um machado - dizia ele entre as machadadas. - É uma arte muito exata e matemática.

- Realmente?

- Sem dúvida. Por exemplo, antes de se abater uma árvore, temos que decidir exatamente onde se deseja que ela caia. Então se calculam os cortes de acordo. Temos que levar em conta a direção do vento, por exemplo... coisas desse gênero. - Ele enxugava a testa suada com o antebraço. - Veja. Deixe que lhe mostre. Agora suponhamos que você me diga onde quer que esta árvore tombe. Exatamente.

- Vejamos - disse ela, olhando à sua volta. - Que tal ali adiante, no topo daquela pequena rocha lisa! Será uma distância muito pequena?

- Isso é fácil - disse ele, e começou a manejar o machado. Ela observou-o quando ele atacou o tronco do grande pinheiro,

arrancando lascas grossas, no formato de cunhas.

Então o alto tronco da árvore começou a balançar, suas ramagens farfalhando, agitando-se, protestando, como se fizessem uma última súplica por sua vida.

Peter recuou e olhou para a copa da árvore. Observou-a bem, olhou para o sol, a mão esquerda formando uma pala sobre os olhos. Um vento começara a soprar, e o tronco da árvore estalou e suspirou sob o seu efeito, os ramos erguidos e sussurrantes.

- Mais um corte - disse ele. - Este é o decisivo.

Ele atacou o tronco com o machado mais uma vez. Houve um estalo agudo, quase como o som de um disparo, assim que o cerne do tronco rompeu-se. Sari pensa com freqüência que quando o seu coração parar finalmente ela ouvirá aquele mesmo som explosivo. E a árvore começou a cair, devagar a princípio, depois muito rapidamente. Houve um ruído forte, e ali estava ela no chão, e seu galho mais alto, a agulha do pinheiro onde se teria colocado um anjo ou uma estrela se ela tivesse sido uma árvore de Natal, exatamente no centro da pequena rocha lisa.

Assaria correu para ver de perto. E gritou, batendo palmas:

- Bravo!

- Nada demais - disse Peter, ofegante e enxugando a testa suada com o dorso da mão esquerda de novo.

- Deixe que eu vá buscar Melissa. Vamos mostrar-lhe o que o seu papai pode fazer!

- Não. Creio que já fizemos o bastante por hoje. - Retirou seu pequeno bloco espiralado do bolso da calça e fez uma anotação a lápis. - Esta é a trigésima terceira.

- Ela sentiria tanto orgulho de você!

- Talvez em outra ocasião.

- Gostaria que você tentasse passar mais tempo com ela, Peter. Ela necessita de mais carinho paterno, eu creio.

- Bem, eu não posso agir de outro modo.

- Mas tente. Apenas tente. Quero dizer, deixá-la observar você fazer um truque como esse a deixaria emocionada!

- Vou tentar. Mas ele não tentou.

No verão de 1929 eles tinham permanecido em Bitterroot mais tempo do que de costume, até outubro. O clima quente colaborara para isso, a neve tardara a vir, e Peter desejara aproveitar a gratificação que o bom tempo estava proporcionando para abater tantas árvores quanto possível. Numa noite em meados de outubro, eles tinham feito comentários sobre o surpreendente pôr-do-sol. O sol fora morrer, enorme e vermelho, no céu a oeste, e as capas de neve cintilavam com uma cor ígnea tão intensa que por um momento parecera que o mundo inteiro irrompera em chamas. Na manhã seguinte, eles souberam que, num certo sentido, isso ocorrera. Em Nova York, o mercado de ações acusara a sua primeira precipitosa baixa, e os negociantes que haviam comprado com margem não puderam cobrir seus empréstimos, e da noite para o dia trinta bilhões de dólares de capital americano desapareceram no que seria um sorvedouro profundo de dívidas. Julius LeBaron lhes telefonara aquela manhã de São Francisco, e lhes dissera para voltarem para casa imediatamente, onde somente o início dos problemas que teriam que enfrentar, e que vocês já sabem, os aguardava.

Decorreriam mais de doze anos antes que eles voltassem a Bitterroot novamente, e aí então a floresta que Peter LeBaron tentara reduzir já se adensara, com árvores altas e vigorosas, quase tão implacavelmente como antes.

- Você não veio para casa a noite passada - disse-lhe Gabe Pollack. - Eu fiquei muito preocupado, Sari.

- Passei a noite na casa da minha amiga Joanna LeBaron. Eu... acho que foi alguma coisa que comi... mas fiquei um pouco enjoada, e eles me deixaram passar a noite lá.

Ela não dissera a Gabe que dormira vestida sob uma manta do Exército num velho sofá na adega dos LeBarons, que saíra furtivamente daquela casa ao amanhecer, passando pela cozinha e ganhando então a entrada de serviço, com a cumplicidade desaprovadora de MacDonald, o mordomo dos LeBarons, e que ainda sentia uma forte dor de cabeça desde a tarde anterior.

- Os LeBarons? Os vinicultores?

- Sim.

- Bem, você está realmente freqüentando a alta sociedade, hem? Fora uma péssima coisa da parte de Gabe Pollack ter dito isso,

e ele deveria ter pensado bem antes de dizê-la. Ele já trabalhava como um repórter para assuntos gerais para o Chronicle há três anos, escrevendo tanto sobre a vida da alta como da pequena sociedade de Frisco, e deveria ter adquirido uma melhor compreensão da estrutura social da cidade, de algum modo arcaica, tal como Sari a adquiriria na época. Os LeBarons não eram então, e não o são atualmente, membros da alta sociedade de São Francisco. Eram simplesmente ricos, e por volta de 1926 ficara estabelecido que ser meramente rico em São Francisco não era o bastante.

Quero dizer que a sociedade de São Francisco àquela altura poderia não ser muito antiga, mas já se decidira acerca do que era. Tinha tido tempo para isso. Por volta da virada do século, todo mundo sabia que os Crockers, os Tevises, Floods, Haggins e Spreckelses eram ricos, mas isso fazia deles uma sociedade? Se fazia, então como se catalogariam todos os outros? Aquela mulher de casaco de pele e jóias no teatro de Ópera podia ser uma Crocker, ou poderia ser a "madame" de um dono de bordel da Costa Bárbara que acabara de ingressar no setor da especulação imobiliária. A sociedade necessitava de alguém para codificá-la, e felizmente por volta de 1900 alguém aparecera para fazer justamente isso, tomando emprestados, de modo substancial e quase abjetamente, os modelos anteriormente estabelecidos na Costa Leste. Se a sra. Astor necessitara de Ward McAllister para ajudá-la a indicar quais eram os "Quatrocentões" de Nova York, assim também São Francisco escolhera Ned Greenway, um vendedor de champanhe, para fazer uma lista daqueles que tinham relevo e dos que não tinham, e, nesse processo, ensinar aos habitantes de São Francisco como executar figurações de cotillion. Como o seu equivalente da sra. Astor na Costa Oeste, Greenway tinha, por sua vez, indicado a sra. Eleanor Martin, cujo cunhado era o proprietário da companhia de gás.

Mas São Francisco buscou uma orientação social em outros lugares além de Nova York simplesmente. São Francisco também tomou modelos emprestados, com deferência, de cidades do leste mais serenamente estabelecidas, como Filadélfia, Baltimore, Charleston, Savannah e Nova Orleans. A aliança com a sociedade do Velho Sul foi reforçada pelo fato de São Francisco ter-se mostrado vigorosamente a favor dos confederados durante a Guerra Civil. Por volta de 1926, o ano sobre o qual escrevemos agora, conquanto Ned Greenway já tivesse morrido há muito tempo, a composição da alta sociedade de São Francisco já fora fixada, e de modo razoavelmente imutável. Não importava que muitos dos antepassados da elite da cidade tivessem sido

tratantes e rufiões da pior espécie. Não importava que o primitivo James Flood tivesse sido um barman, ou que o velho Crocker houvesse tratado a chicotadas sua força de trabalho chinesa enquanto os coolies construíam a sua estrada Central Pacific, e que lhes pagasse em dinheiro para que não precisasse se incomodar em manter recibos. O que importava é que os filhos e netos desses homens fossem considerados damas e cavalheiros.

A fortuna dos LeBarons era simplesmente muito recente para que eles fossem admitidos no círculo encantado, ou para que fossem encarados como algo mais do que novos-ricos. Eles pairavam em alguma parte em torno da circunferência do círculo, com permissão para penetrar nele num ponto ou outro, mas nunca lhes fora permitido participar dele como membros reconhecidos. Todos sabiam, por exemplo, que Mario Barone, o pai de Julius LeBaron, fora um imigrante italiano que não aprendera a falar ou escrever o inglês da realeza. Todos sabiam que a mãe de Constance LeBaron, apesar de todos os ares de dama de Constance, fora uma camareira de um hotel do centro da cidade e - ou pelo menos se dizia - chegara mesmo a prestar serviços mais íntimos a alguns dos cavalheiros hóspedes do hotel. Depois havia o fato de que os LeBarons eram católicos, numa cidade onde as pessoas de relevo veneravam a Igreja Episcopal. Mas pior de tudo, talvez, era o fato de que os LeBarons, embora vivessem naquela cidade, não eram realmente pessoas da cidade. Eles eram gente do vale, agricultores que tinham obtido sua fortuna com o suor de sua testa e moendo as costas nos vinhedos de Sonoma, Napa, Livermore, Stockton, Lodi e Modesto. Não haviam ingressado em ramos de negócios respeitáveis como o bancário, o do comércio, o das ferrovias, da navegação comercial, ou através de profissões liberais. Eles tinham permanecido essencialmente pessoas rústicas do campo, caipiras. Com a Lei Seca, tinham mudado do cultivo de uvas para o de tomates - mas qual era a diferença existente nisso? Tomates eram simplesmente um outro item do trabalho de cultivo rude. Não, Gabe não deveria ter confundido os LeBarons com a alta sociedade de São Francisco, como a própria Sari viria a aprender no devido tempo.

Eis aqui algumas das coisas que ela ouviria acerca dos LeBarons com o passar dos anos:

Muitos risinhos zombeteiros sobre o nome pomposo então atribuído a Julius; ela ouvira chamarem Julius e seu filho, pelas costas, de sir Julius e lord Peter.

Ela ouviria chamarem-nos os wops e os dagos, termos depreciativos de imigrantes italianos e pessoas de descendência latina nos Estados Unidos.

Ela ouviria alguém comentar: "Qual era o sobrenome anterior de

LeBaron? Creio que era Baroney ou Baloney", aludindo respectivamente a baronia e conversa-fiada.

"Os dagos estão realizando uma espécie de jantar de gala. Mas nós desejamos realmente ir lá?"

"Eles não são D.N.C... isto é, Da Nossa Classe, querida."

"Os LeBarons varões sempre se casam com pessoas de baixa classe, nunca de alta. Bem, o que se poderia esperar de dagos?"

"Comedores de cavalinhas..."

"Os LeBarons? Oh, você fala daqueles vinhateiros do vale..."

"Minha querida, você viu só o que Constance LeBaron fez com aquela casa antiga adorável da Califórnia Street? Todos aqueles enfeites dourados e pelúcia vermelha! Como você a descreveria? Como uma casa de tolerância da Europa...?"

"Ouvi dizer que a moça com quem Peter LeBaron se casou é... judia."

"Eles dizem que Julius LeBaron perdeu absolutamente tudo no crack da Bolsa..."

"Bem, o que se poderia esperar?"

"De esfarrapados a ricaços, e de novo esfarrapados, numa única geração..."

"O que se poderia esperar?"

Com o passar dos anos, Sari viria a ouvir esses comentários. Ela os encararia como picuinhas. De certa forma, de um modo soturno, eles até a divertiam.

Mas naquela noite, quando Gabe fez o comentário acerca dos LeBarons e a alta sociedade, ela ainda desconhecia tudo aquilo, e simplesmente presumiu que o que ele dissera era verdade, e estava principalmente impressionada com o fato de Gabe ter sentido sua falta na noite anterior. De algum modo, ela pensara que ele nem sequer notaria a sua ausência.

- Sinto ter deixado você preocupado - dissera ela.

- Claro que estava preocupado. Tudo poderia ter acontecido. Pensei em sair à sua procura, mas não tinha a menor idéia de onde procurá-la. Fiquei imensamente preocupado, Sari.

- Sinto muito.

- Sei que já é uma mocinha agora, e que pode ir aonde lhe agradar, mas se você passar a noite toda fora, pelo menos me mande um recado. Telefone pelo menos. Se eu não estiver aqui, deixe um recado com a sra. Dodge...

E ela tinha pensado também: Ora, vamos, eu estou aqui. Sozinha com ele neste quarto, e já passou da hora do jantar, e ele está lendo na cama, e o resto do "cenário" cabe a mim criar. Ela fechara a porta às suas costas e dissera:

- Podemos conversar um pouquinho, Gabe?

- Claro.

Ela sentara-se no canto da cama de Gabe, dizendo:

- Eu não pretendia preocupar você, mas algo está me deixando preocupada.

- O que é?

- Estou quase com dezessete anos, e minha formatura será em junho. Minha amiga Joanna está se formando também e fará sua estréia na sociedade este ano quando não fará outra coisa além de ir a festas. Mas eu não posso fazer isso, naturalmente. Assim, o que irei fazer? Joanna continua dizendo que eu deveria ir para Hollywood e me tornar uma estrela de cinema, mas isto requer dinheiro, e eu não tenho o suficiente, assim o que devo fazer? Tenho certeza de que o sr. Moscowitz me deixaria trabalhar em horas extras no Odeon... horário integral, mas e depois?

- Tenho certeza de que você conhecerá um bom rapaz e se casará com ele.

- Sim, estive pensando nisso, também. E creio que já encontrei esse bom companheiro, Gabe.

- Quem? Fale-me sobre ele.

- Você.

- O quê? - ele sorriu. - Oh, não, não...

- Sim - disse ela, inclinando-se sobre ele, esticando a mão para tocá-lo muito de leve no peito. - Eu o amo, Gabe. Quero me casar com você.

- Não, não. - Ele tomou-lhe a mão delicada nas suas, e tentou afastá-la. - Não, você não fala sério.

- Nunca falei tão sério em minha vida! Vamos nos casar, Gabe. Eu serei uma boa esposa para você, prometo! Trabalharei durante algum tempo, e depois, quando tivermos filhos, contaremos com dinheiro bastante para comprar uma casa. Sei que podemos ser felizes, Gabe, porque eu o amo. Eu o amo muito. Por favor, case comigo, Gabe... é a única coisa que desejo.

- Ouça - disse ele então, ainda segurando-lhe a mão, com mais força agora, mas a uma pequena distância de seu corpo. - Ouça bem, eu gosto de você também... mas não desse modo, Sari. Você me entende?

- Não.

Agora ele já se sentara na cama, dizendo:

- Você será sempre minha amiga, Sari... eu espero. Você é como a filha que eu nunca terei. Se você precisar de algo, eu estarei aqui, e se vier a ficar em apuros farei tudo que puder para ajudá-la. Mas... casamento, não, Sari. Tire isso da sua cabeça agora mesmo, entende?

Porque eu não posso dar a uma mulher o que um marido daria à sua esposa ao se casarem. O que mais quer que eu diga? Não posso dizer mais do que isso. Por favor, tente entender.

- Oh, Gabe, por favor! Faça amor comigo, e verá.

- Não. - A voz dele soava muito firme agora. - Não posso dar a você o que deseja. Simplesmente isso. Seria injusto sequer você tentar isso. Deveríamos ser marido e mulher... mas eu não posso ser isso para você. Cheguei a pensar, talvez... mas não. Eu me conheço, Sari, e conheço você. Você encontrará alguém, é claro, mas não eu. - Soltou a mão dela. - Assim, agora vá deitar-se, querida Sari. E procuremos esquecer que esta conversa chegou a acontecer um dia. Boa noite, Sari. Eu a verei pela manhã.

- Oh! - soluçou ela. - Você não me ama nem um pouco! O rosto dele estava tristonho agora.

- Isso nada tem a ver com o amor. Só comigo.

Sari saiu, passando para o seu próprio quarto, e atirou-se na cama, confusa, magoada, intrigada e finalmente zangada. Nunca se sentira tão furiosa, e com tantas coisas e tantas pessoas - zangada com ele, naturalmente, e zangada com Joanna por lhe ter dado indicações e conselhos errados, e finalmente amargamente zangada consigo mesma, envergonhada de si mesma e se detestando por ter se comportado tão tolamente, pensando: Como pude ter sido tão tolamente boba e ingênua? Naturalmente, aquele não era o modo de atrair um homem! Mesmo a tola personagem que ela tencionara ser na peça do colégio fora esperta o bastante para saber disso! Sabrina Van Arsdale não conquistara o seu príncipe russo jogando-se a seus pés, introduzindo-se em seu leito. Ela fugira e o deixara persegui-la através da Europa - até Paris, Capri, por fim ao palácio do doge no Grand Canal. Ela fugiria também, para Hollywood, Nova York, para os confins da terra, para a lua, e então ele veria o quanto ela lhe fazia falta, o quanto se preocuparia a respeito do que lhe poderia ter acontecido. Quantas noites ele passaria insone se perguntando para onde ela teria ido, perambulando pelas ruas à sua procura, aturdido de preocupação, imaginando onde ela estaria... e então... e então..."Sr. Moscowitz, quero que me dê os nomes de todos os produtores mais importantes de Hollywood, todos os figurões!" E então, quando ela já estivesse lá, tendo se convertido numa famosa estrela de cinema, com um Rolls-Royce branco e um motorista e um mordomo seus, e uma mansão no Sunset Boulevard, Gabe veria o nome dela nos anúncios luminosos de todas as marquises, e o seu rosto em todas as revistas de cinema, com seu chapéu na mão, e iria até a mansão para encontrá-la. E o mordomo atenderia à porta - detendo-o, naturalmente, pois Gabe tentaria entrar à força -, dizendo: "Sinto, sr. Pollack, mas a srta. Latham não pode recebê-lo." E a porta seria fechada em seu rosto.

Sari rolou no leito, olhando então fixamente para o teto com os olhos lacrimejantes e se perguntando: O amor será importante? É importante estar apaixonada?

Algum tempo depois ela recordaria um amigo de Gabe, um outro jovem repórter do jornal, David Somebody, com quem Gabe amiúde passava as noites, jantando e jogando cartas, segundo ele dizia, e ela teria que perguntar a si mesma se eles também não fariam outras coisas... mas ela não podia nem sequer pensar sobre isso.

Existe um ponto em que se necessita estar apaixonado, em que se tem de ficar enamorado, a fim de preencher uma espécie de vazio?

Seja como for, três semanas depois nada disso parecia ter importância, pois então ela se apaixonaria por Peter LeBaron.

- Nós estaremos de saída no Baroness C no domingo. Pode se unir a nós? - Era a voz de Joanna LeBaron ao telefone.

- No mar de Bering?

- Não, tolinha. No Baroness C. É o nosso barco. Pode vir conosco?

- Conosco?

- Peter e eu, naturalmente. Levaremos um lanche, e vamos velejar.

- Isso parece maravilhoso.

- Ótimo. Apanhamos você às dez da manhã no domingo.

O Baroness C vinha a ser um iate de nove metros com um casco de mogno reluzente e um resistente convés esmaltado de branco, e que fora projetado e construído pelo grande Nathaniel Herreshof em pessoa, esclareceu Joanna à sua amiga, embora Sari até ali nunca tivesse ouvido falar do famoso construtor de iates de Rhode Island. Da marina junto ao Embarcadero, eles foram levados num bote de remos até onde estava ancorado o Baroness C, e Peter subiu a bordo primeiro, ajudando então as duas jovens a subirem com o pesado cesto de piquenique até o convés balouçante.

- Mamãe pensa que o Baroness C foi assim batizado em sua homenagem - disse Joanna.

- Mas não foi - falou Peter. - Acontece que ele é o terceiro barco a vela que nosso pai adquiriu. O primeiro foi o Baroness A, o segundo foi o Baroness B, e assim por diante.

Enquanto Peter movia-se eficientemente no barco, desatando as amarras e içando as velas, Joanna examinava o conteúdo da cesta de piquenique.

- MacDonald reuniu as guloseimas mais deliciosas para nós. Ovos gelatinosos. Sanduíches de carne de caranguejo. Alcachofras com recheio... Não somos afortunados...

- Por ter um mordomo que podemos chantagear? - atalhou Peter com uma piscadela.

Como Sari começara a observar, era um hábito daqueles dois concluírem as frases um do outro.

Logo eles estavam velejando, deslizando pelas águas da baía sob um céu azul-claro de domingo.

- Nunca tinha estado antes num barco a vela - disse Sari.

- Há somente uma regra: Peter é o capitão, e você e eu temos de fazer tudo que ele nos disser.

Mas com Peter recostado na cana do leme, e o barco deslizando rumo ao norte, as velas enfunadas sob uma boa brisa, parecia haver muito pouco a fazer no momento a não ser admirar a manhã e as distantes e verdes colinas. Não havia nenhuma ponte do outro lado da Golden Gate naquela época, é claro, e os subúrbios do norte do condado de Marin não tinham sido construídos. Sausalito era ainda uma aldeia de pesca modorrenta, e Belvedere e Tiburon estavam praticamente desabitados, acessíveis somente por barcos. Logo a cidade se tornava apenas um esboço no horizonte atrás deles, e a praia da parte alta da baía - a baía San Pablo - era um ermo debruçando-se nas águas.

- Temos que providenciar para que você tenha roupas apropriadas para velejar - disse Peter.

Sari tinha contado com que eles não notassem isso. Tanto Peter como sua irmã estavam usando calções caqui, frouxos, camisas de manga curta e sapatos de lona. E Sari, com a sua blusa de marinheiro e saia, sentira-se um pouco vestida demais para a ocasião.

- Bem, eu não tenho certeza... - começou ela a dizer.

- Livre-se desses sapatos tolos - disse Peter.

Ela fez o que lhe era dito e retirou suas sapatilhas de couro de verniz preto.

- E tire essas meias idiotas.

Obediente, ela abaixou e retirou suas meias compridas, e agora estava descalça.

- Agora retire esse laço tolo dos cabelos - disse ele. Ela retirou o laço e sacudiu os cabelos soltos.

- Agora está mais de acordo - disse Peter.

- Nosso capitão não é sempre assim duro e mandão - disse Joanna.

Mas Peter não estava com ar durão e mandão. Ele estava sorrindo para Sari, e seu sorriso mostrava-se maravilhosamente cordial, e ela lhe sorriu também, um pouco acanhada.

- Jo disse que você deseja entrar para o nosso pequeno clube. O famoso Clube da Adega de Vinhos da Califórnia Street.

- Receio que terei de aprender as normas para isso também.

- A única norma... - começou a dizer Joanna.

- É que não existem normas - concluiu Peter.

Havia algo no modo como ele dissera aquilo que parecia... o quê? Quase desolador, e Sari de repente sentiu a emoção de estar sendo convidada a ingressar num mundo livre e descompromissado, de prazeres sensuais e sem responsabilidades. A naturalidade com que Peter LeBaron se deitara de costas na popa do barco, um dos braços nus repousando sobre a cana do leme, parecia sugerir isso, assim também como a calma e a facilidade com que o Baroness C cortava a água. De sua outra única travessia marítima, Sari recordava a agitação interminável das máquinas embaixo do convés, noite e dia. Mas ali o movimento era executado sem esforço, e macia e quietamente, e os únicos sons eram o suave toque da água no casco do iate, o suspiro do vento e o ocasional estalo produzido pelas velas. Inclinando a cabeça para trás, e deixando seus cabelos soltos esvoaçarem sob a brisa, ela tinha pensado: Eu poderia velejar assim para sempre.

Como se tivesse lido os pensamentos de Sari, Joanna disse:

- Vamos procurar fazer isto todos os domingos no restante do verão.

- Naturalmente, receio que o nosso primeiro encontro não tenha sido muito auspicioso - disse Peter.

- Não. Eu acho que bebi muito champanhe então.

- Por minha culpa - disse Joanna. - Como barman, fracassei.

- E eu acabara de ser chutado de Yale.

- O que aconteceu realmente? - perguntou Sari.

- Um erro grosseiro da justiça - disse Joanna. - Uma decisão ditada pela ira, de fato.

- Um mal-entendido... - começou a dizer Peter.

- Da parte da Universidade de Yale! - Joanna concluiu por ele. - Uma universidade que deveria ser destituída de suas credenciais!

- Bem, está levando a coisa longe demais, Jo.

- Nada disso! Diga a ela! Conte-lhe o que aconteceu. Peter deu de ombros, dizendo:

- Não foi nada realmente, mas o que aconteceu ... - e iniciou uma explicação muito desconexa do que tinha ocorrido em New Haven no início daquela primavera.

Parecia que tudo se resumira num desentendimento entre Peter e o chefe de seu departamento. Ele estava se especializando em química porque, conforme explicou, assim que a Lei Seca fosse revogada - e isso não deveria demorar muito para ocorrer - a família LeBaron provavelmente retornaria à produção de vinhos, e a ciência iria desempenhar um papel importante no futuro do fabrico de vinho na Califórnia. O fabrico de vinhos convertia-se cada vez mais numa ciência, conquanto devesse sempre, também, permanecer como uma arte. De que outro modo explicaria que os mais brilhantes cientistas da U.C. Davis podiam aplicar todos os seus conhecimentos e apresentar um vinho inferior? E por que o agricultor mais ignorante criava um vinho tido como soberbo? Essas eram indagações que nunca poderiam ser respondidas.

- Peter não é inteligente? - interrompia Joanna.

Mas isso nada tinha a ver com o desentendimento entre Peter e a chefia de seu departamento universitário, conforme ele explicou. Três dias por semana, de acordo com o programa de química, havia um período de prática de duas horas no laboratório, e, nesses períodos, para cada aluno era indicado um parceiro no laboratório. O parceiro de Peter era um tal Walters, que vinha a ser um sabe-tudo pedante de quem ninguém gostava.

- Sabe-tudo é uma boa definição para ele - Joanna frisou. - O sujeito é um consumado chato.

Fosse como fosse, naquela experiência que lhes fora designada para fazer, Peter executara todos os procedimentos corretos. E no entanto, por um malfadado motivo, não conseguira apresentar o resultado adequado. E assim, após o encerramento da aula prática, Peter simplesmente abrira a escrivaninha de Walters e copiara os resultados contidos nos papéis deste. O chefe do departamento tinha desconfiado disso. "Você não poderia apresentar esse resultado usando esses procedimentos", dissera o chefe do departamento de química.

- Eles chamaram isso de fraude, mas não foi fraude, foi?

- Absolutamente não - disse Joanna.

- Não quando se extrai nosso resultado da experiência de um sujeito que é nosso parceiro no laboratório, mesmo que ele venha a ser um sabe-tudo. Não se espera que os parceiros ajudem um ao outro?

- Absolutamente sim - disse Joanna.

Fosse como fosse, Peter negara tudo, e assim o chefe do departamento lhe pedira para repetir a experiência na presença de um membro do corpo docente, e Peter não conseguira apresentar um resultado que se adequasse ao processo que usara; assim, eles o expulsaram. E era a isso que tudo se resumira, um mal-entendido.

- Não é a coisa mais ridícula que você já ouviu? - disse Joanna. - Mas, seja como for, quem liga a mínima para uma experiência química antiga e tola?

Aos ouvidos pouco instruídos de Sari, tudo aquilo parecia muito complicado, mas ela também concordara que a coisa soava como uma injustiça.

- E foi injusto, não há dúvida quanto a isso - falou Peter. -

De qualquer maneira, papai está cuidando de me matricular em uma outra universidade, no outono. Provavelmente terminarei o curso na Stanford.

- Que é realmente... - começou a dizer Joanna.

- Uma universidade muito melhor - concluiu Peter.

- Nesse meio tempo, papai mostra-se muito obstinado quanto a isso - disse Joanna - Parece que a Yale chegou a ponto de lhe escrever uma carta idiota. Essa carta foi o que me fez corar de indignação. Toda ela a respeito de como Peter "deixou de encarar as conseqüências de seus atos". Já ouviu algo tão ridículo? Peter... logo ele.

Peter riu.

- Bem, isto são águas passadas agora - disse ele.

- Sim, meu querido, e agora você conta com um mês inteiro extra das férias de verão - disse Joanna.

- Papai quer que eu procure um emprego.

- Isto é ridículo, também. Os pais não são uma chatice, Sari?

- Já faz tanto tempo que os perdi que já me esqueci - retrucou

ela.

- Oh, me desculpe. Eu tinha esquecido. Mas talvez você tenha tido sorte. Os pais podem ser um incômodo terrível às vezes.

Peter ainda se recostava na cana do leme, com uma expressão sonhadora. Então, com a mão livre, ele remexeu no bolso de sua camisa e retirou uma gaita, começando a tocar Quero ser feliz-

- Agora, a coisa mais importante que temos a fazer é descobrir o lugar absolutamente perfeito para o nosso piquenique - disse Joanna, os olhos esquadrinhando a linha da praia. - Ele tem que ser absolutamente perfeito e isolado. - A praia à frente deles estava bem delineada agora, revestida de grandes pedras que desciam numa cascata abrupta na água. - Ali - apontou Joanna. - Há uma pequena faixa de praia entre as rochas. Vamos baixar âncora ali adiante.

Peter aferrou-se mais à cana do leme, movendo-a, e o barco correspondeu. E quando estavam a uns vinte metros talvez da faixa de praia, ele fez descer a âncora e começou a recolher as velas.

- Antes de comer, nademos - disse Joanna.

- Oh, minha querida - disse Sari. - Eu não trouxe maiô.

- E quem precisa disso? Nós nadamos nus em pêlo. É mais saudável, e não há ninguém para nos espiar num raio de muitos quilômetros.

- Você quer dizer que não usaremos... nada?

- Claro. Au naturel. Não me diga que é tímida, ou algo assim!

- Mas Peter está...

- Não seja tola. Peter é meu irmão, e você a minha melhor amiga. Lembre-se de que juramos não ter... segredos.

Peter desceu uma escada de corda de um dos lados do barco, e Joanna e ele passaram a se livrar com naturalidade de suas roupas. E assim, que outra alternativa restava a Sari senão tentar imitar-lhes essa indiferença e começar a retirar a saia e a blusa, deixando-as cair a seus pés, tal como Joanna estava fazendo, amontoando-as num canto do convés? Mas quando Sari se despiu, não pôde ainda ficar à vontade para olhar para eles dois.

- O último a saltar é um bolha! - gritou Peter, e mergulhou nas águas da enseada. Joanna e Sari o imitaram, juntas. - Há uma serpente marinha aqui que suga as garotas debaixo dágua - gritou Peter, e mergulhou, seus pés nus surgindo de relance na superfície, e Sari sentiu a pressão da mão dele em seu tornozelo, puxando-a para baixo. Ela subiu à tona cuspindo e rindo. Ele fez o mesmo a seguir com Joanna, e logo estavam os três fazendo isso um com o outro, e a água, que tinha parecido fria demais de início, começava a parecer quase tépida. Então eles subiram pela escada de cordas e ganharam o convés de novo.

- Nem sequer temos roupas secas para almoçar - disse Joanna, sacudindo os cabelos molhados. - Usamos sarongues como os nativos das ilhas. - Estendeu uma grande toalha de praia para Sari. - E veja só - disse, abrindo o cesto de piquenique. - MacDonald incluiu até uma garrafa de vinho.

- Não somos afortunados... - começou a dizer Peter.

- Por ter um mordomo que podemos chantagear? - completou Joanna.

E, depois do almoço, enquanto os três estavam deitados de bruços na coberta ao sol, que começava a declinar de ponta a ponta da Golden Gate, Sari concluiu que estava se acostumando com aqueles novos amigos ousados, indiferentes e irresponsáveis que viviam rodeados por aquela aura de dinheiro. Peter estava levando à boca sua gaita novamente, tocando trechos de melodias em voga, mas Sari não conseguia ainda se forçar a olhar para ele.

Então, quando chegou o momento de levantar âncora e velejar de volta à baía, houve um problema. A vela mestra não se ajustava apropriadamente em seu ponto de encaixe no mastro. Uma linha achava-se enredada na cabeça do mastro.

- Não há outro jeito, terei de subir no mastro e endireitar aquilo - disse Peter, e, com o canto do olho, Sari o viu subir habilmente no mastro.

Quando Peter alcançou o topo do mastro, ela finalmente permitiu a seus olhos viajarem para o alto, sobre ele, onde estava desenredando a linha. Com a mão esquerda, ela fez uma pala para observá-lo, quando nu e brilhante, ele agarrou-se ao topo do mastro oscilante como uma pantera aferrando-se ao tronco de uma delgada árvore, o sol por trás dele, emoldurando-o com seus raios brilhantes.

Sari percebeu que os olhos de Joanna estavam enfocados na mesma direção. E a ouviu murmurar:

- Peter é realmente uma espécie de gênio. Não tem medo de nada. Ele pode fazer tudo.

Terá sido aí que Sari concluiu que estava apaixonada por ele, aquele indistinto borrão de um corpo balançando ao sol do entardecer? Perguntem a ela. Mas ela não lhes dirá. Eu penso que foi naquele momento.

No domingo seguinte choveu e a segunda excursão no Baroness C teve que ser cancelada, e Sari chutou os degraus da escada e maldisse a chuva em todo o trajeto até seu quarto.

Então as verdadeiras férias de verão começaram. Sari conservava ainda seu emprego no turno da tarde no Odeon, mas agora começara a pensar em procurar um emprego de tempo integral.

- Oh, não faça isso - disse Joanna. - Você não precisa realmente de dinheiro extra, precisa? Desse modo, podemos almoçar juntas... você não precisa estar lá no teatro até as três horas. E todas as suas noites ficarão livres para se divertir, e depois poderá dormir até mais tarde, como as jovens da nossa faixa de idade costumam fazer! - Joanna enunciou rapidamente uma longa relação de coisas que os três fariam naquele verão. - Nós iremos a Stinson Beach e Half Moon Bay. Faremos um piquenique nas Seal Rocks. Talvez cheguemos até Carmel... E Peter está entusiasmadíssimo quanto a levar o Baroness Caté as Farallons. Isso será emocionante... até mesmo um pouco perigoso, você sabe, porque estaremos em mar aberto...

Eles fizeram algumas dessas coisas, como uma trinca, viajando pelos arredores de São Francisco no pequeno e vistoso automóvel Stutz de Peter, que ele pintara de vermelho vivo ("Somos a Juventude Flamejante!" Joanna gostava de gritar para os outros motoristas quando Peter os ultrapassava com o Stutz na rodovia), e quando ele e Joanna deixavam Sari no cine-teatro, algumas vezes era possível para ela fazê-los entrar furtivamente, de graça, para verem qualquer filme que estivesse em exibição. Quando ela conseguia isso - entre os intervalos de sua função de indicar poltronas aos freqüentadores com a sua lanterna -, dava um jeitinho de se sentar junto deles.

Mas, cada vez mais, obstáculos exteriores começaram a interferir com os projetos de verão de Peter e Joanna.

A anunciada viagem às ilhas Farallons, por exemplo, não veio a ser realizada.

- Papai fez o pessoal da marina trancar os velames e apetrechos do Baroness C, e determinou que o levassem para o dique seco - explicou Joanna. - Na verdade, papai está sendo muito duro com o pobre Peter.

- Por que seu pai agiu assim?

- Isso se deve àquele problema com a Yale, é claro. E papai descobriu que Peter tem saído com o iate.

- Mas o barco não é de Peter?

- Claro que é. Mas oficialmente pertence a meu pai.

- E Peter andou usando-o sem permissão?

- Que diferença isso faz? Oh, parece que papai prometera emprestar o iate para seus amigos naquele domingo em que fomos velejar. Os amigos dele chegaram na marina... e cadê o Baroness C? Assim, agora todos estão zangadíssimos, e o pobre Peter tem que arcar com toda a culpa. Isso não é justo.

- Pobre Peter...

- E meu pai diz que se Peter fizer outra coisa igual a essa de novo, tirará o carro dele também. Já imaginou? Nós ficaremos simplesmente plantados aqui. Papai não está sendo rude demais?

- Se eu fosse Peter, começaria a fazer coisas que pudessem agradar a seu pai.

- Peter não o fará. Ele tem muito orgulho, Isso tudo é tão tolo! Não se trata de que meu pai ligue a mínima para velejar. Ele quer apenas ser proprietário de um iate porque velejar é chique. Que grande esnobe!

Logo outros obstáculos que foram surgindo alteraram também os arranjos para os programas do trio.

- Sari minha querida, não posso sair para o nosso almoço hoje. Parece que mamãe marcou para o costureiro vir aqui. Isso tomará o dia todo. Oh, odeio essa história de debutante! Não desejo ser uma debutante em absoluto. Só estou fazendo isso porque mamãe insiste taxativamente.

Sari, muito inocentemente, presumia que um vestido de baile era tudo que se fazia necessário para uma jovem fazer sua estréia na sociedade. Um vestido diferente, pelo jeito, seria exigido para cada uma das funções cumpridas por Joanna durante seu ano de debutante: um vestido para o Baile dos Solteiros, um outro para o cotillion e outros mais para cada uma das cerimônias constantes de uma longa lista: almoços, chás, coquetéis, bailes e pequenos jantares para os quais, inevitavelmente, ela seria convidada... um ano pleno de entretenimentos. Cada um desses trajes requeria muitas horas de consultas e ajustamentos com os costureiros e modistas, e todos os vestidos tinham que ser complementados com sapatos, luvas, bolsas, chapéus e mesmo meias e roupas íntimas, exigindo maior número de horas ainda de compras. Depois vinham as consultas a floristas, cabeleireiros e fornecedores de

bufês, e longas sessões com fotógrafos, maquiadores... Os compromissos na agenda de Joanna pareciam infindáveis.

- Sari querida, eu não posso almoçar com você hoje também. Estou arrasada. Mas há este fotógrafo de Nova York chamado Hal Phyfe, que mamãe diz ser absolutamente especial. Ela afirma ser o máximo, e insiste em que ele me fotografe. Isto me desagrada muito, mas não há meio de escapar quando minha mãe insiste em algo... Mas, ouça, Peter está livre... por que vocês dois não almoçam juntos? Pobre Peter! Está sem ter o que fazer. Todos os seus amigos estão na Europa agora, ou em Tahoe, e papai não o deixará viajar. Papai continua inabalável em sua idéia de que Peter arranje um emprego...

Sari e Peter almoçaram num pequeno restaurante francês em Telegraph Hill.

- Você está procurando emprego? - perguntou ela.

- Não preciso procurar. Já tenho um.

- É mesmo? Que bom. O que está fazendo?

- Trabalho como escrevente para uma firma de advocacia na Montgomery Street.

- Excelente!

- Estou lá ajudando a redigir citações, mandados de busca, documentos sobre imóveis e legados, preparando formulários de processos e documentos de cessões de direitos sobre debêntures, agravos e intimações judiciais e outorgas e suspensões de pensões, e quanto ao mais dando uma ajuda nos trâmites forenses subsidiários da prótese dos querelantes. Estou tendo um bom programa.

- Eu não entendo.

Ele sorriu e tocou os lábios com o dedo indicador, dizendo então:

- Shhh. É o nosso segredo. Isso é o que meu pai pensa que eu estou fazendo. Na realidade, como você pode verificar, estou almoçando e passando a tarde com você.

- Oh - disse Sari, um tanto desapontada. - Então você não tem realmente um emprego.

- Não, mas meu pai pensa o contrário, e isso o tira das minhas costas. Almoçar e passar a tarde com você é muito mais divertido. Você é uma boa companhia. Eu gosto de você.

- Eu gosto de você também - disse ela. Então: - Por que sou uma boa companhia?

- Você é uma boa ouvinte. E isso é uma coisa importante numa mulher. O que faremos depois do almoço? Vamos dar um giro em Muir Woods e contemplar as grandes árvores?

- Tenho que estar no teatro às três.

- Oh. Eu tinha esquecido isso. - E agora era ele quem parecia desapontado.

- Eu poderia ir com você a Muir Woods no domingo.

- No domingo? Oh, bem, eu não sei. Veremos...

Após o almoço, ele a levou ao Odeon no seu carro. Ben-Hur estava em exibição.

- Eu gostaria realmente de ver esse filme - disse Peter.

- Se você quiser, eu dou um jeitinho de você entrar.

- Está bem...

Ela o fez entrar sorrateiramente, fingindo recolher um ingresso dele na entrada da sala de projeção. E quando o cine-teatro estava cheio - aquele filme fazia sucesso de bilheteria -, ela acercou-se e sentou-se ao lado dele no escuro, na única poltrona que restara vaga e que ele guardara para ela. Durante a famosa e emocionante cena da corrida de bigas, Sari alcançou e cobriu a mão dele com a sua. Peter não reagiu. Não tomou a mão da jovem entre as dele, mas não afastou a sua também; simplesmente deixou-a ali, repousando calmamente sobre o braço da poltrona. Estava evidente que não se incomodara que a mão de Sari cobrisse a sua. Seria isso um sinal?

- Querida Sari - dizia Joanna ao telefone -, o diabo anda à solta aqui. Papai descobriu que Peter na verdade não está empregado naquela firma de advocacia, como tinha dito. Papai ligou para os advogados para ter uma confirmação! Não foi a coisa mais suja que se poderia fazer? E para cúmulo de tudo, não posso me encontrar com você hoje, por causa de mais outras fotografias que mamãe quer que tirem de mim. Mas Peter está livre. Veja o que pode fazer para animar o pobrezinho. A pressão sobre ele está forte agora...

Mas então, num repente, essa pressão se desfez de novo. Julius e Constance LeBaron estavam de partida para as ilhas. No Leste, as ilhas significam o Caribe, mas na Califórnia elas querem dizer o Havaí. Julius levava Constance, à beira de um colapso nervoso devido a todas as suas compras, para umas férias de três semanas. Estavam viajando a bordo do Lurline. Os filhos teriam só para si a casa da Califórnia Street. A pressão não apenas amainara, tinha sumido.

- Nós três nos encontraremos às oito horas desta noite na Mural Room no São Francisco - disse Joanna. - Peter fez a reserva da mesa. Após o jantar, resolveremos o que fazer então... mas será algo excitante. A Juventude Flamante. Talvez eu chegue alguns minutos mais tarde, porque há alguma coisa em andamento no Burlingame Country Club. Mas darei um jeito de sair dessa logo. Vejo você mais tarde...

Sari e Peter chegaram primeiro, e Sari ficou impressionada ao ver que o maitre reconhecera Peter, fizera uma curvatura diante dele, e o chamara "sir LeBaron". Eles foram conduzidos a uma das mesas consideradas as melhores, no corredor, na parte da frente do restaurante. Quando eles se sentaram, Peter verteu um pouco de uísque do frasco prateado que trazia no bolso de seu paletó em cada um dos copos de água. Logo Sari soube que todos na América estavam fazendo isso, e que ninguém prestava atenção ao detalhe. Eles tocaram os copos um no outro. E Peter disse:

- Joanna detesta realmente essa história de estréia na sociedade.

- Você acha? Eu não tenho tanta certeza. Creio que ela gosta disso. Afinal... a compra de todos aqueles belos vestidos...

Peter franziu as sobrancelhas e sacudiu a cabeça.

- Não, ela detesta isso. Detesta a coisa toda. Você não deve se deixar iludir pelas aparências das coisas...

- O que quer dizer?

- Jo é uma sereia. Ela tece feitiços. Ela atrai as pessoas para as rochas.

- Sim, eu .tenho observado isso um pouco.

E então, quando algum tempo já se passara e Joanna não aparecia, Peter disse:

- Onde estará ela afinal? Já está atrasada quase meia hora.

- Ela mencionou alguma coisa em Burlingame.

- Sim, foi o que ela disse. - E então, de repente, ele indagou: - Você acha que ela está vendo alguém?

- Vendo alguém?

- Algum homem? Alguém que nós não conhecemos?

- Oh, eu não creio, Peter.

- Bem, eu creio - retrucou ele, e seu olhar tornou-se sombrio e quase irado. - Eu creio muito nisso.

- Tenho certeza de que ela me contaria se houvesse alguém... especial.

- O que a faz ter essa certeza? O que a leva a crer que pode confiar nela? O que a faz ter essa maldita certeza? - E ele derramou mais uísque em seu copo de água.

- Nós prometemos uma à outra que...

- E o que a faz acreditar nas promessas dela?

- Bem, ela mencionou um rapaz chamado Flood.

- Aquele pateta! O que ela veria nele, pelo amor de Deus?! O que poderia ver naquele maldito bobalhão? Tudo que aquele pateta deseja é poder dizer que dormiu com todas as garotas de São Francisco!

Sari hesitou, dizendo então:

- Talvez seja melhor fazermos nossos pedidos. E jantarmos sem esperar por ela.

Peter olhou seu relógio, que guardava no bolso do colete, suspenso por uma corrente de ouro.

- Bem, vamos lhe dar mais quinze minutos.

Mas logo quase meia hora decorria, e Joanna ainda não chegara, quando o garçom se aproximou da mesa, dizendo:

- Sr. LeBaron, sua irmã acaba de telefonar. Diz que ficou inevitavelmente retida e que não poderá vir jantar na sua companhia. Acrescentou que falará com o senhor em casa, mais tarde, esta noite.

Quando o garçom já se afastara, Peter arremessou com força seu guardanapo sobre a mesa.

- Aquela sem-vergonha - disse ele. - Agora tenho certeza. Ela está se encontrando com alguém, e esconde isso de mim, e de você, Sari. Eu quero que você descubra quem é esse safado.

- Bem, vou tentar, mas realmente não creio...

- Quero que você descubra com quem minha irmã está se encontrando. Desejo que descubra tudo que puder sobre esse sujeito. Seu nome, aparência, onde ele mora, que colégio freqüenta, como Joanna o conheceu, o que ela anda fazendo com ele, aonde vão. Tudo.

- Vou tentar. Mas não creio que...

- Droga, por que continua a me contradizer? Eu sei o que digo.

- Sari nunca o vira tão furioso. - Descubra tudo sobre esse safado - repetiu ele. - Quero saber quem está dando em cima da minha irmã.

- Eu disse que vou tentar - retrucou Sari serenamente.

- Bom. - Ele olhou ferozmente para a toalha branca da mesa. Então disse: - Vamos cair fora daqui.

- Por favor, não fique zangado comigo, Peter. Pelo que quer que seja.

- Diacho, eu não estou zangado. Simplesmente disse para sairmos daqui. -E fez sinal para o garçom trazer a conta.

- Aonde nós iremos agora?

- A alguma parte. Qualquer lugar. Não me importa. Então, por alguns minutos, eles seguiram no carro sem capota de

Peter, sem um rumo certo e um tanto estouvadamente pela cidade escura, para cima e para baixo das colinas abruptas - Filmore Street Hill, Powell Street Hill, Lombard Street Hill -, indo muito depressa, e derrapando nas esquinas, saltando sobre as beiradas das calçadas. Peter não estava embriagado, Sari inferiu. Ele estava apenas... o quê? Perturbado devido a alguma coisa.

- O que o perturba tanto, Peter? - acabou ela por indagar. - Quero dizer, afinal, suponhamos que ela esteja se encontrando com alguém? E daí?

- Daí que ela está fazendo isso às escondidas de mim. Ela está mentindo para nós, ocultando-nos o seu pequeno segredo sujo, e isso significa que está fazendo algo de que se envergonha. - Então ele disse: - Voltemos para a minha casa. Nós a surpreenderemos quando ela chegar, pegando-a em flagrante quando entrar, e lhe diremos o que sabemos.

Eles voltaram de carro à Califórnia Street e entraram na casa silenciosa cujos donos estavam a milhares de quilômetros do outro lado do Pacífico. MacDonald, em sua casaca tinha aparecido, perguntando:

- Deseja alguma coisa, sr. Peter?

- Uma garrafa de champanhe - respondeu Peter de mau humor. MacDonald bateu a cabeça e desapareceu pisando macio, com suas

pantufas.

- Ela detesta nossa mãe - disse Peter.

- Realmente, Peter? Por que você diz isso?

- Porque é verdade. Ela a odeia com um sentimento de vingança. Detesta até mesmo permanecer no mesmo aposento com ela. Isto se prende a você, como sabe.

- A mim?

- Claro. Mamãe não considera você... digna de ser amiga de Jo. Jo escolheu você como sua amiga mais chegada como um outro meio de hostilizar mamãe.

Sari refletiu sobre essa idéia indesejável. Sem dúvida, Peter estava ainda com um humor desagradável.

- Bem - disse por fim Sari -, pensei que Joanna gostasse verdadeiramente de mim.

- Oh, ela gosta de você, é certo. Mas a aprecia mais ainda porque mamãe desaprova essa amizade.

MacDonald retornou, agora com uma garrafa de champanhe num recipiente prateado com gelo, e duas taças numa bandeja de prata. Pousou-a na mesa baixa entre eles, deslocando um vaso de flores para abrir espaço.

- Minha mãe é uma alcoólatra - disse Peter. Sari não disse nada, e MacDonald começou a encher as taças. No fundo de cada uma delas estava uma cereja fresca. - Não é verdade, MacDonald? Minha mãe é uma alcoólatra. Diga à srta. Latham que isso é verdade.

MacDonald franziu os lábios.

- Bem, sr. Peter. Deseja alguma coisa mais, senhor?

- Não, obrigado.

MacDonald retirou-se com o mesmo andar silencioso, os pés em pantufas. E agora eles dois estavam a sós novamente na sala forrada de damasco vermelho, aquela casa sossegada e perfeitamente arrumada onde as flores frescas nunca tinham permissão para morrer ou mesmo murchar em seus vasos de cristal, onde as criadas negras lustravam o tampo das mesas de mogno com as palmas das mãos, onde ninguém parecia precisar levantar um dedo até mesmo para dar corda nos relógios, onde tudo parecia tão padronizado, e onde, no entanto, agora,

parecia haver também tanta confusão. Peter lançou um olhar sombrio e mal-humorado para a sua taça de champanhe e sorveu um gole.

- Eu mamo meus drinques. É aí que está a diferença. Eis por que nunca serei um alcoólatra.

- Por que você crê que ela está... desse jeito?

- Porque detesta o meu pai. Todos nesta casa odeiam todo mundo. Esta casa está cheia de ódio. Somente Jo e eu estamos a salvo.

- Mas eu não entendo. Se Joanna detesta tanto sua mãe, por que se sujeita a essa história de debutante, que ela também diz detestar?

- Não se preocupe. Jo tem mamãe bem à sua mercê.

- É mesmo? A mim parece o contrário.

- Jo sempre sabe o que faz.

- Ela passou mais tempo com sua mãe nas últimas semanas do que já passou comigo. Por que isso... se ela a detesta tanto?

- Jo sempre tem algum plano. Tratando-se dela, há sempre um plano.

- Não compreendi ainda.

- Há muita coisa nesta família que é difícil de entender.

A certa distância, no interior da casa, soa de repente o telefone, e Peter inclina-se para a frente bruscamente em sua cadeira, dizendo:

- Deve ser ela. É a Jo ligando pra cá. Espere e saberá. Logo a seguir, MacDonald reaparecia, dizendo:

- Era a srta. Joanna, senhor. Pediu-me para lhe dizer que não voltará para casa esta noite. Vai passá-la com amigos em Burlingame.

- Entendo. Obrigado, MacDonald.

- Há algo mais em que possa servi-lo, senhor?

- Não, obrigado. Boa noite, MacDonald.

Quando o mordomo se retirou, Peter disse quase triunfalmente:

- Então? Você viu? Isto não carece de provas, certo? Ela está dormindo com alguém.

- Alguém"!

- Algum cara. Tem que ser isso! - E a sua expressão se tornou tão feroz e agressiva que quase assustou Sari. Então ela se zangou.

- Ouça - disse ela pousando seu copo de champanhe na mesinha -, eu não sei, e francamente não me importo. O que Joanna faça é assunto dela. Está tarde, e estou cansada. Vai me levar em casa?

Ele ergueu a mão, dizendo:

- Espere, não vá.

- Sei que sou tida como uma boa ouvinte, mas essa conversa me deixa aborrecida. Não ligo para o fato de com quem sua irmã esteja dormindo. Ou se ela está mesmo dormindo com alguém. Leve-me para casa.

- Espere, tive uma idéia. Vamos dormir, você e eu, juntos!

Vamos fazer amor! Isto a desmascararia, não? O fato de que outras pessoas possam representar o seu pequeno jogo. Sari levantou-se, dizendo:

- Isso é uma sugestão idiota, desagradável. Se você não vai me levar em casa, tomarei o bonde.

- Mas espere... pense nisso!

- Eu nem sequer gosto de você, Peter LeBaron! Creio que você é um homem tolo e desagradável! Você pensa que consegue tudo que quer com o seu dinheiro. Pois bem, está errado. Eu o detesto, Peter LeBaron! - Então ela pegou o seu copo de vinho e jogou o conteúdo, com cereja e tudo, no rosto dele. - Isto é o que eu penso de você!

Sari tomou o bonde para casa, esforçando-se para conter as lágrimas, certa de que nunca mais veria aqueles dois irmãos.

Mas na manhã seguinte Peter telefonou para ela.

- Estou ligando para me desculpar. Sinto realmente. Eu tinha bebido muito. Comportei-me como um moleque. Por favor, me perdoe, Sari. Sinto realmente muito, Sari, pelo que houve ontem à noite.

- Você se comportou - disse Sari calmamente - como um rato desprezível, como diria sua irmã.

- Eu sei. E estou lhe pedindo para me perdoar. Pode? Pode me dar apenas uma nova oportunidade... só uma, Sari? Por favor.

- Bem. Talvez.

- Esta noite? No mesmo lugar? O Mural Room? Deixe que eu lhe mostre que eu não sou realmente um tipo desprezível.

- Me dê tempo para pensar nisso.

- Por favor. Sei que não há nenhuma desculpa para o que eu disse e fiz, mas tenho passado por uma fase muito dura ultimamente.

- Eu entendo tudo isso.

- Então... aceita?

- Bem... está certo.

- Estou determinado a fazer o possível para que você me perdoe.

Naquela noite eles se encontraram no Mural Room, e Peter mostrou-se tão jovial e ansioso para agradá-la que a noite passada parecia ter acontecido há anos, e ter envolvido uma pessoa inteiramente diferente. Após alguns minutos, o maitre acercou-se deles, dizendo:

- Seu jantar está servido, sr. LeBaron.

- Obrigado, George.

Então Peter levantou-se da mesa e fez um gesto para Sari acompanhá-lo.

Intrigada, ela também se levantou e o acompanhou do restaurante até o saguão do hotel, na direção dos elevadores.

- Aonde estamos indo?

- Você verá. Sexto andar - disse ele para o ascensorista. No sexto andar, Peter retirou uma chave do bolso e logo a fez entrar numa suíte que dava vista para a Union Square.

- Oh, Peter - exclamou ela.

O quarto parecia estar repleto de flores: rosas, copos-de-leite, aves-do-paraíso. No centro da sala de estar, uma mesa redonda coberta com uma comprida toalha branca estava preparada para duas pessoas, com os pratos sobre descansos de prata, e um candelabro prateado de três braços com as velas acesas.

- Oh, Peter!

- Apenas uma suíte comum de hotel. Eu disse que faria tudo para conseguir que você me perdoasse. Agora, observe. - Ele retirou os sapatos, deu um impulso ao corpo e ficou de pés para o ar, apoiado nas mãos, a cabeça tocando o centro do aposento. - Farei mais do que isso. Caminharei apoiado nas palmas das mãos. - E ele começou a caminhar pelo aposento de cabeça para baixo, os pés só de meias eretos no ar, as pernas das calças balouçando sobre seus tornozelos. Ele estava tão ridículo assim que ela começou a rir. - Farei isto a noite inteira se você assim decidir.

- Há um monstro aqui que coça os pés das pessoas que caminham sobre as suas mãos - disse ela, e esticou o braço e fez cócegas na sola dos pés dele.

- Oh! - gritou ele. - Como soube que sinto cócegas? - E deu um salto de costas voltando a firmar-se sobre os pés de novo. - Não posso resistir a cócegas!

- Sente cócegas aqui? - perguntou ela, rindo e coçando-lhe o peito. - E aqui? - Coçou-o sob os braços.

- Pare, pare - gemeu ele, e de repente, ofegante, ele estava sustentando-a em seus braços. - Oh, Sari, eu desejo... desejo tanto!

- O quê?

- Desejo muito o que não posso ter. O que você deseja, Sari?

- Eu desejo alguém que me ame. Alguém para amar. Eu o amo, Peter...

- Oh... oh - e logo ele estava beijando-a, e ela sentiu com o seu próprio corpo, com a sua concordância, com a sua própria mente, que se tornava lânguida e sem fôlego, apertada contra ele, arqueada e expectante.

- Seus belos seios... eu não pude afastar os olhos deles naquele dia no iate... os pequenos bicos róseos... - E agora ele estava desabotoando-lhe o vestido e beijando-os, primeiro um, depois o outro, rodeando os mamilos com movimentos labiais. - Deixe-me mostrar-lhe o único modo de beber vinho - ele sussurrou. - Deixe-me mostrar-lhe a arte dos peritos em vinhos.

E Sari observou com espanto como Peter pegava a garrafa de

vinho gelado sobre a mesa, enchia um copo e depois mergulhava o seio esquerdo dela, e depois o direito, no copo. Então passava a lamber os bicos dos seios habilmente enquanto um calor excitante irrompia no íntimo de Sari como um vulcão em erupção. Com o seio de Sari entre seus lábios, os olhos dele viajavam para os dela.

- Oh, Peter - soluçou Sari. - Eu o amo tanto. Eu o amo mais... mais do que tudo no mundo. Você me ama, Peter?

Então, num movimento único, ele a ergueu e levou-a para o quarto, onde a colcha estava abaixada e o lençol dobrado de um modo que formava um perfeito triângulo branco.

- Ame-me, Peter!

De início houve uma pequena dor, mas depois, maravilha das maravilhas, ela começou a sentir que desfrutava daquilo um pouco, justo como Joanna lhe antecipara, e quando tudo acabou ela deixou-se ficar lânguida e exaurida nos braços dele, umedecida, exausta e amada. "Toda a minha vida", murmurou ela, e pensou: Agora nos casaremos. O casamento é o que acontecerá a seguir. Estamos apaixonados, nos casaremos e teremos lindos filhos, minha vida. Então ela verificou que havia lágrimas nos olhos dele.

- O que é isso, Peter? O que houve, meu amor? - E correu os dedos por entre os pêlos finos do peito de Peter, e beijou-lhe os olhos, descobrindo que até mesmo o sabor daquelas lágrimas a emocionava.

- Eu fiz uma coisa terrível... uma coisa terrível - disse ele.

- Não, não fez. Foi adorável e maravilhoso, e eu desejava muito isso, Peter.

- Não... você não entende.

- Eu desejo que sejamos felizes. Como na canção.

Sob as cobertas, ela começou a fazer-lhe cosquinhas de novo, e logo Peter estava rindo a contragosto, e então passaram a fazer amor novamente, e para Sari foi melhor que da primeira vez. Depois, ele pareceu adormecer.

Enquanto jazia ao lado dele na grande cama no quarto escurecido, aninhada nele, apaixonadamente, o jantar esfriando na sala de estar sob as campânulas de prata do hotel, ela deixou que apenas um pensamento errasse em sua mente. Deixou esse pensamento adejar, tal como uma brisa ligeiramente fria, e então desaparecer, banido, mas não despercebido. O pensamento era: Se Joanna tinha sempre um plano em mente, aquilo fazia parte dele? Aquilo acontecera porque ela dispusera tudo para que os dois passassem muito tempo juntos? "Ela está nos testando, a mim e a Peter, fazendo uma experiência conosco para ver o que acontece quando dois reagentes são colocados juntos e aquecidos na retorta... que fumaças irão erguer-se, uma explosão irá ocorrer? Isso será parte de algum misterioso plano de Joanna?"

- Não devemos contar isto a Joanna - sussurrou ela. - Prometa. Nunca.

Mas não houve nenhuma resposta, e Sari deixou seus pensamentos seguirem à deriva em meio às nuvens da eternidade e do esquecimento, às quais eles pertenciam: "É simples. Ele me ama. A seguir ele me pedirá em casamento e eu direi sim."

Suas roupas estavam caídas num monte, no chão, perto da cama. Abaixando-se, ela encontrou o paletó de tweed Norfolk de Peter, pegou-o, saltou devagarinho da cama e o vestiu. Ele ia até quase os seus joelhos. Na ponta dos pés, caminhou até a sala de estar da suíte, onde as lâmpadas da mesa baixa estavam acesas, e onde a mesa ainda se achava preparada para o jantar. As velas sobre a mesa tinham derretido. Ela levantou uma das campânulas de prata, descobrindo aspargos frios. Pegou um talo e mordiscou-o. Ergueu uma outra campânula: empadão de batatas. Recolocou a campânula. A terceira, ao ser erguida, deixou à mostra costeletas de carneiro, que seriam excelentes comidas frias. Sentou-se à mesa e escolheu uma costeleta com os dedos.

Sentada ali usando o paletó largo de Peter, observando a praça e a cidade iluminada, as grossas palmeiras que pontilhavam a praça com o alto monumento a Dewey no centro - o tal monumento com uma mulher de vestes diáfanas no topo do seu pedestal -, realizando seu próprio jantar solitário e silencioso, comendo uma costeleta de carneiro novo usando só os dedos; tudo aquilo era de certo modo... Bom, de certo modo, como fazer um piquenique no convés de um iate num canto abrigado, mas aquela noite isso era infinitamente mais gratificante, mais completo e romântico, pensava ela.

Contemplando a praça, pensou: "Eu sou aquela mulher de vestes diáfanas, ela sou eu. Vejam só como ela se ergue segura e eretamente, o queixo projetado para a frente, resoluta, orgulhosa, segura em seu mundo, sem temor do futuro. Vejam como ela parece estar estendendo suas asas, preparando-se para voar, sustentada pelo vento. Ela sou eu mesma. Oh! Ela é como eu."

E voltou a pensar: "É simples. Ele me ama. A seguir, ele me pedirá em casamento. Isto é o que acontece aos amantes. E eu direi sim."

Mas, como alguns de nós sabemos, as coisas não aconteceram desse modo, não de todo, absolutamente.

- Sari, ajeitei tudo para ir a São Francisco na sexta-feira - estava dizendo Joanna. - Irei no vôo das onze horas, assim devo estar aí à uma hora. Ficarei hospedada no Stanford Court.

- Tolice - diz Sari. - Você ficará aqui, é claro. Há muito espaço. Não vou deixar que fique num hotel.

- Bem - disse Joanna com um risinho -, isso é muito gentil

de sua parte, mas acho que devo avisá-la de que estou mais propensa a ficar do lado do Eric nisto... isto é, se chegar o momento de votar. E não desejo me sentir como se viesse a ser assassinada em meu leito!

- Outra tolice. Não há nenhum motivo para que nós duas não possamos nos encontrar e discutir essa coisa como duas criaturas adultas e civilizadas.

- É disso que eu gostaria, Sari. Simplesmente uma boa, adulta e preferencialmente agradável conversa em família sobre a situação. Não uma reunião formal de acionistas. Apenas uma análise dos prós e contras.

- Exatamente.

- E eu creio que Eric deveria estar presente quando fizermos isso. Acho que ele deve poder apresentar sua versão.

- Bem, Eric e eu não estamos falando um com o outro no momento. Assim, receio que isso esteja fora de questão.

- Sari, tenho certeza de que Eric virá, se você lhe pedir. Pelo menos, fale com ele, Sari. Creio ser importante que todos os interessados estejam presentes quando nós os encontrarmos... Eric, Peeper, Melissa, eu e você.

- E quanto a Lance?

- Lance não poderá vir. Mas ele e eu conversamos sobre o assunto, e ele estará de acordo com qualquer coisa que eu decida fazer. O que, estou certa, não é nenhuma surpresa para você, Sari.

- Não - diz Sari um tanto acidamente. - Nenhuma surpresa.

- Então o que vamos programar?

- Um jantar aqui em casa sábado à noite, se isto convém a todos.

- E você tentará falar com Eric.

- Sim.

- E nada de advogados... nada desse gênero, Sari.

- Apenas a família.

- Quem sabe? Poderemos terminar passando todos umas horas agradáveis. Isso não seria bom, para variar?

- E está resolvido: você ficará aqui. Eu cancelarei sua reserva no hotel. E Jo... me dê o número de seu vôo. Vou enviar Thomas ao aeroporto para apanhar você.

- Bem - diz Sari a Thomas um pouco depois -, Melissa recebeu aquela carta?

- Foi junto com o resto de sua correspondência em sua bandeja do café, senhora.

- Então por que afinal eu não ouvi nada a respeito dos lábios dela?

- Quando eu recolhi a bandeja, todas as cartas já não estavam ali.

- Então por que não há nenhuma reação vinda lá de baixo?

- Talvez a senhora devesse...

- O quê?

- Iniciar uma conversa com a srta. Melissa.

- Sobre aquele assunto? Não! Então ela saberia imediatamente que nós abrimos sua carta e a lemos. E estaria em pé de guerra comigo!

- Sim, a senhora tem razão.

- E não temos muito tempo a perder. Iremos tentar uma reunião de família aqui. Sábado à noite.

- Eu sei, senhora. Já convidou a srta. Melissa?

- Não...

- Por que não o faz agora? A senhora poderá obter alguma evidência, pelo tom de voz dela.

E assim, enquanto Thomas observa, Sari pega o telefone interno e disca o número de código de Melissa. E Thomas fica ouvindo quando sua patroa diz:

- Melissa, minha querida, como está você hoje?...Oh, bem, muito bem. Querida, pode subir para jantar aqui sábado à noite? Joanna virá de Nova York, e nós achamos que poderíamos examinar essa proposta de encampação do Eric e do Harry... Sim, todos nós... Você pode vir? Oh, ótimo. Às sete e meia, sem formalidades... E... como vai tudo o mais? Ah... bom.

Sari desliga e diz para Thomas:

- Toda suavidade e doçura. Nem manteiga derreteria em sua boca. Ela adoraria vir! Droga, Thomas, o que estará tramando Melissa, afinal?

- Bem, eu ficarei de olhos e ouvidos bem abertos, senhora. No momento, isto é a única coisa que podemos fazer.

 

Estamos na sexta-feira pela manhã, e Sari e seus advogados estão reunidos no escritório dela, no centro, na Montgomery Street. A firma de advocacia Jacobs & Siller enviara não um, mas dois de seus sócios decanos para abordar a situação teoricamente, talvez, já que duas cabeças pensam melhor do que uma, ou, mais provavelmente, permitiriam duplicar seus honorários. Os nomes dos advogados são Jonathan Baines e Simon Rosenthal. E os srs. Baines e Rosenthal acabam de explicar a Sari, proponente dessa reunião, que há muito pouco na realidade que eles possam fazer. Sari está pensando: Sócios decanos! Ambos parecem não ter mais de dezoito anos, e o sr. Baines usa uma barba à maneira hippie.

- Entenda, sra. LeBaron - explica o sr. Rosenthal -, do modo como o testamento de seu marido foi redigido, a senhora e a sua cunhada controlam cada uma 35 por cento da Baronet Vineyards. De modo claro, seu falecido esposo desejava dividir o restante das ações, proporcionalmente e de modo justo, entre os membros da geração seguinte. Desse modo, dos restantes trinta por cento da companhia acionária, quinze por cento foram legados aos filhos de sua cunhada.

- Eu sei disso - fala Sari com impaciência. - Mas quinze por cento para Lance não me parece justo, quando cada um de meus filhos obteve somente cinco.

- Infelizmente, sua cunhada teve apenas um filho. Mas nós devemos presumir que seu finado esposo pretendia tornar esse testamento justo e eqüitativo, impossibilitando qualquer conflito ou dissensão familiar. O testamento certamente foi redigido com a pressuposição de que Joanna LeBaron viesse a se casar de novo e ter outros filhos.

- Aos 46 anos? Praticamente improvável!

- Bem, seu finado marido elaborou seu testamento em 1945, quando ela devia estar... com 35 ou 36 anos, e quando ele poderia supor ainda, ou ter considerado, a possibilidade de um posterior casamento de sua irmã.

- Bem, o que podemos fazer então? A quem poderemos processar? Podemos anular o testamento?

- Isso é uma possibilidade, claro, sra. LeBaron - diz o sr. Baines -, mas creio ser muito remota. Não concorda, Sir?

- Seu marido faleceu em 1955 - diz o sr. Rosenthal.

- Droga, eu sei muito bem quando ele morreu!

- ...e o seu testamento foi homologado, sem contestação, no final daquele mesmo ano. As cláusulas desse testamento tornaram-se operantes desde então, e não acreditamos como provável que um tribunal encarasse com bons olhos uma tentativa de anulação, como a senhora sugere, de um instrumento cujos dispositivos têm vigorado há quase trinta anos.

- E fundados em que alegações poderíamos tentar invalidar esse testamento, sra. LeBaron? - pergunta Baines.

- Fraude!

- Fraude?

- Fraude, burlas, mentiras.

- Que tipos de mentiras, sra. LeBaron?

- Não interessa. O que quero saber é como poderei ganhar essa questão. Foi para isso que eu os chamei aqui. Eu não vou permitir que eles tirem de mim a minha empresa.

- Infelizmente, sra. LeBaron - diz Rosenthal -, tendo em vista o modo como o seu falecido marido dividiu seus bens entre seus herdeiros per stirpes...

- Não use comigo expressões como per stirpes. Fale de modo claro.

- Infelizmente, do modo como as ações da Baronet foram divididas segundo o testamento de seu marido, se a sua cunhada votar a favor da compra da companhia, tal como a senhora nos adiantou que ela fará, e se seu filho Lance votar com ela, e eles forem liderados pelo seu filho Eric e o sr. Tillinghast, eles contarão com 55% dos votos acionários, sra. LeBaron. Se for este o modo como esses quatro acionistas se comportarão, não há como a senhora possa vencer. Trata-se de uma causa perdida.

- Droga, eu os contrato para me ajudarem a defender minha causa, e vocês começam logo por declarar que a perderão!

- Sra. LeBaron - diz Rosenthal -, isto não é uma causa, e a senhora não é uma ré. Isto é uma oferta de compra, e a senhora é uma das vendedoras propostas. Em termos da Wall Street, isto é uma proposta de encampação, e a sua companhia é o alvo visado.

- Dá tudo no mesmo. Um simples jogo de palavras.

- Tudo que poderíamos fazer - diz Baines -, já que a nossa firma de advocacia serve como curadora oficial dos bens de seu falecido esposo, e caso a oferta da Kern-McKittrick seja colocada em confronto com um voto de acionista, seria estar presente nessa reunião de acionistas. Naturalmente, não teríamos nenhum voto atuante, nem poderíamos de nenhum modo influir na votação. Mas poderíamos assegurar que tudo fosse conduzido legalmente, e os interesses dos acionistas adequadamente protegidos. Na verdade, acho que deveríamos estar nessa reunião, não é assim, Sir?

- Definitivamente. Assegurem-se de que não haja nenhuma trapaça.

- Não creio que tal venha a acontecer - diz Baines. - Parece tratar-se de uma oferta perfeitamente objetiva e correta. Uma licitação limpa, como se costuma dizer.

- Então permitam-me perguntar-lhes uma coisa. E o que acontece se Melissa não for minha filha?

- Hem?

- Ouviu bem o que eu disse. E no caso de Melissa não ser minha filha, o que acontece?

- Não sendo sua filha... Bem... - diz Baines.

- Adotada, ou algo assim.

- Bem - diz Baines, remexendo em alguns papéis contidos na pasta aberta sobre o seu colo -, já que Melissa LeBaron figura no testamento de Peter LeBaron como sua herdeira per stirpes de cinco por cento das ações, não vejo qual a importância que possa ter o fato de essa pessoa ter sido adotada ou não. Ela ainda é uma das herdeiras per stirpes.

- E - acrescenta Rosenthal - o voto de Melissa LeBaron

contará muito pouco nessa oferta de aquisição. Com ou sem o seu voto, a senhora estará em minoria.

- Então estou derrotada. Sem poder. Praticamente perdi o controle acionário.

- O que nos leva a uma recomendação de nossa parte, sra. LeBaron. Sabemos como se sente a respeito desse assunto, mas consideramos também, na qualidade de seus conselheiros, que devemos aconselhá-la a aceitar a oferta da Kern-McKittrick.

- Nunca!

- Circula até um boato de que Harry Tillinghast está disposto a aumentar sua oferta em cinco décimos de um ponto quanto às ações.

- Cinco décimos de um ponto! Bagatelas.

- A senhora dirige unicamente uma firma de propriedade da família no momento, sra. LeBaron. No caso de sua morte, ou da de sua cunhada...

- Estou perfeitamente saudável, obrigada!

- Na eventualidade de sua morte, o governo poderia intervir e se dispor a proceder a qualquer espécie de avaliação que escolhesse a respeito de sua propriedade...

- Irá me falar agora sobre taxações, certo? Bem, eu já ouvi todas essas argumentações.

- Mas seus herdeiros..,

- Eu não planejo ter nenhum herdeiro.

- Todo mundo tem herdeiros, sra. LeBaron.

- Pois serei a primeira a não tê-los.

- Estamos em contato com os advogados de Joanna LeBaron de Cravath, Swaine e Moore, de Nova York. Eles recomendam com vigor que èla aceite a oferta da Kern-McKittrick. Recomendamos que a senhora faça o mesmo.

- Harry Tillinghast está no ramo do petróleo. O que ele conhece a respeito do fabrico de vinhos?

- Tenho certeza de que a senhora poderá exercer uma certa dose de controle.

- Eu desejo ter o controle total! Quero dispor do controle que venho exercendo desde que Peter morreu. Quero conservar a minha empresa. Se não puder, esta reunião está encerrada.

Baines começa a fechar a sua pasta, dizendo:

- Bem, nós lhe demos os melhores conselhos possíveis. Não há mais nada que possamos dizer.

- Os senhores gastaram uma hora de meu tempo só para me dizer que eu nada poderei fazer.

- A única coisa que posso lhe sugerir - diz Baines - é que use de seus poderes de persuasão no tocante dos outros membros de

sua família. Nesse meio tempo, mantenha-nos a par do desenvolvimento do assunto.

Assim que os dois advogados saíram, Sari usou o interfone para dizer a Gloria Martino:

- Veja se pode localizar Eric e ponha-o na linha para mim.

Em Burlingame, Alix LeBaron está agora em sua mesa de massagens, com uma pedicure cuidando da parte inferior de sua anatomia e uma massagista se incumbindo da outra. Como de hábito, ela deixa o telefone tocar cinco ou seis vezes antes de esticar o braço desnudo sob a toalha para atender.

- Bem, belle-mère - diz Alix -, eu não contava ouvir sua voz. Não creio que estivesse disposta a falar com alguém desta casa. Exceto com Kimmie, é claro. Kimmie, de certo modo, é a única pessoa nesta casa que conseguiu escapar à sua ira.

- Desejo saber se poderia falar com Eric - diz Sari.

- Eric está jogando o golfe, belle-mère. - Alix é o tipo de mulher que sempre chama esse esporte de "o golfe". - Posso tomar o recado... para ele? Desculpe-me se a minha voz soa engraçada, mas é que estou praticamente sendo espancada por esta brutamontes. - Ela ergue os olhos e pisca para a massagista sueca de rosto de camponesa, largo. Percebe que Sari não faz a mínima idéia do que ela está falando, mas não liga para isso.

- Estou ligando para saber se vocês dois poderiam jantar comigo amanhã, Alix. Joanna virá até aqui, e achei que um bom e pequeno jantar familiar seria agradável. Muito simples, nada de formalidades.

- Bem, isso é uma reviravolta, não, belle-mère? Num instante a senhora demite o Eric da empresa, e no minuto seguinte nos convida para jantar.

- Eu estava justamente pensando num pequeno e agradável jantar em família, a fim de aplainar algumas das nossas diferenças.

- Entendo. Não posso responder pelo Eric, naturalmente, porque ele está fora jogando o golfe. Mas sei que não temos nenhum compromisso para amanhã.

- Então vocês virão?

- A senhora está... convidando meu pai também? Porque essa coisa de fusão é essencialmente uma idéia do meu pai.

- Bem, na verdade eu não tinha planejado isso.

- Papai é um acionista da Baronet também, belle-mère.

- Eu sei, mas essa não irá ser uma reunião dos acionistas, Alix. Será apenas um pequeno jantar em família.

- E papai não é da família? Ele é meu pai.

- Eu sei disso, mas...

- Creio que Eric estaria muito mais disposto a ir se soubesse que meu pai estaria aí para o jantar.

- Muito bem. Podemos convidar seu pai.

- E mamãe?

- Papai e mamãe. Posso contar com vocês então? Às sete e meia?

- Tenho que consultar Eric. Telefone depois, belle-mère. - Com outro longo esticamento do braço, ela recoloca o telefone no gancho sem dizer até logo.

E logo ela está de volta a seus devaneios. Ser massageada sempre a deixa agradavelmente entorpecida, e da mesa onde está deitada - de bruços agora -, sendo massageada, remexida e cutucada por Helga, ela pode ver as ramagens miúdas da roseira-trepadeira arqueando-se justo acima do peitoril da janela. Essas rosas são vermelhas, as violetas azuis, os anjos no céu não são mesquinhos. O sol está brilhando sobre as rosas. Em São Francisco há uma cerração. Ela soube disso pelo noticiário local da TV naquela manhã. Isto é um motivo pelo qual Alix se sente contente em viver em Burlingame e não no centro da cidade. A neblina, a pesada e saturada neblina úmida. O calor do vale ocasiona isso. O calor procedente do vale suga a névoa fria do oceano através da Golden Gate. Ou algo assim. Ela é sugada através da Golden Gate e ali permanece, enquanto que em Burlingame, apenas doze quilômetros mais ao sul, o sol está brilhante; daí ser possível obter roseiras-trepadeiras ali, e não lá, e também contar com gerânios, limões, verbenas e palmeirinhas e, com sorte, uma bananeira. Alix tinha tido uma manhã particularmente satisfatória.

Houvera, desnecessário dizer-se, um pouco de aborrecimento nos últimos dias, com Eric andando pela casa o dia todo. Eu me casei com você para o melhor e o pior, mas não para tê-lo em casa o tempo todo, dissera-lhe ela. Mas hoje, pelo menos, Eric estava jogando o golfe, e isso era um alívio. E naquela manhã o carteiro trouxera o extrato da conta bancária de Eric; ela abrira o envelope e dera com um cheque de dez mil dólares destinados a Marylou Chin.

Alix imediatamente entrara em seu pequeno Porsche branco e dirigira-se ao centro da cidade, onde tirara uma cópia xerox daquele cheque - verso e anverso, é claro -, e então voltara para casa, colocara o cheque no mesmo envelope com o extrato bancário e o deixara na mesa do marido.

Então telefonara para Marylou Chin.

- Srta. Chin, aqui é Alix LeBaron.

Sim, sra. LeBaron. Como está passando?

- Estou bem. Você tem dormido com meu marido?

Houvera uma curta e incriminadora pausa, então a srta. Chin dissera:

- Certamente que não. Isso é coisa que se diga!?

- Você está mentindo. Eu sei desse relacionamento. Tenho a prova.

- Que espécie de prova?

- Prova suficiente.

- Sra. LeBaron, se não vai me esclarecer sobre o que está falando, gostaria de concluir esta conversa. Bom...

- Trata-se de um cheque de dez mil dólares - retruca Alix, acrescentando: - Entre outras coisas.

- Quando o sr. LeBaron foi forçado a deixar a firma, eu também estava demitida. O sr. LeBaron teve a bondade de me oferecer esse dinheiro para me ajudar a manter-me até eu conseguir um novo emprego. Foi um empréstimo.

- Mas trata-se de uma quantia substancial, não acha, srta. Chin? Para ajudá-la a se manter por uns tempos, como disse.

- Eu tenho uma parenta, minha tia Grace, que se acha numa clínica para idosos. A não ser eu, ela não conta com ninguém mais para ajudá-la.

- Uma história plausívell A tia idosa internada numa clínica geriátrica, um pretexto rotineiro. Você está mentindo, e sabe disso.

- Sra. LeBaron, eu lhe digo a verdade. Se a senhora quiser, eu posso...

- Há quanto tempo você anda fazendo amor com meu marido?

- Sra. LeBaron, não vou continuar a ouvir essas...

- Bem, seria melhor você tomar cuidado, é tudo que posso lhe dizer. Pois eu conto com a prova, e sei que está mentindo para mim, sua prostitutazinha japonesa devassa. - Então Alix desligara o telefone, sentindo-se inteiramente vingada. Prostitutazinha japonesa devassa.

- Helga, trabalhe um pouco mais nessa pequena camada de gordura em volta de minha barriga - diz agora Alix. - Cuide bem dessa parte hoje.

- Não há nenhuma camada de gordura. A senhora está imaginando apenas.

- Não estou imaginando isso! Está ali! Eu a vi no espelho esta manhã.

E assim, naquele outono de 1929, Sari e Peter tinham vindo de Bitterroot para encontrar os negócios de Julius LeBaron arruinados. Que irei fazer?, dissera-lhes Julius numa voz morta, conquanto a resposta já estivesse estampada nos seus rostos pálidos. Ele andara investindo forte no mercado de valores, tinha comprado além da margem de segurança, e se vira obrigado a vender todas as ações para cobrir o rombo.

E agora os credores estavam pressionando-o, e os bancos assediando-o para obter cauções a fim de cobrir os empréstimos que contraíra. A firma de corretagem onde ele realizara a maioria de seus negócios falira, o seu corretor estava na rua, e os bancos - o Crocker, o Wells Fargo, o Anglo-California -, os mesmos bancos cujos presidentes tinham convidado Julius LeBaron para almoços em seus escritórios há seis meses apenas, agora exigiam dele mais dinheiro, o que ele não tinha. O que eu farei?, continuava perguntando Julius LeBaron naquela voz morta, cheia de perplexidade.

- Nós rezaremos - tinha dito Constance LeBaron. - Oraremos à Virgem Maria para que interceda por nós. Nós rezaremos, Julius, faremos uma novena. Ave Maria, gracia plena...

Sari poderia dizer que Constance LeBaron andara bebendo muito. E as orações perderam-se no limbo, nos cristalinos aposentos celestiais, enquanto Constance LeBaron desfiava as contas de seu terço.

- Mãe Abençoada, Mãe Misericordiosa, Mãe dos Milagres e dos Sagrados Mistérios, envie-me uma rosa vermelha para anunciar-me que as minhas preces estão sendo atendidas... - Mas nenhuma rosa vermelha apareceu, e nenhum milagre aconteceu.

Mais tarde - dias, semanas, porquanto o tempo parecia engavetar-se em si mesmo durante o período em que Sari e Peter passavam a maior parte do seu tempo na casa da Washington Street, ainda nova, ainda por pagar, como verificariam mais tarde, e se preocupavam e se perguntavam o que iria acontecer a seguir -, uma mensagem chegou para Sari.

- Sra. LeBaron, o sr. LeBaron pai quer vê-la logo. Ele diz que é urgente.

Ela fora logo à casa da Califórnia Street, que então parecera de repente ter se tornado muito escura, como se mesmo os ornamentos dourados e a pelúcia vermelha tivessem ficado cobertos de uma patina escura devido ao tempo e ao uso. Julius LeBaron estava sentado na penumbra em sua poltrona, olhando a neblina pela janela, e Sari entrara no aposento por trás dele.

- Sari, você é forte? - perguntou-lhe ele. - Você é forte o bastante para sustentar Peter e a garotinha?

- Sustentar Peter?

Por que pairara um clima de irrealidade, de teatralidade, naquele encontro com seu sogro? Era como se a perda de seu dinheiro tivesse mudado completamente Julius LeBaron, convertendo-o num espectro ambulante, vazio, e Sari tivera a estranha sensação de não estar falando com um homem que ela conhecia, mas com um ator num palco.

- Um dos motivos pelos quais aprovei esse casamento, enquanto, como você sabe, minha mulher a ele se opunha energicamente,

foi por acreditar que você era forte. Peter não é forte. De vocês dois, Peter é o vaso mais frágil. Eu sempre soube disso. Você poderá ampará-lo quando eu me for, Sari? Quero dizer, sustentá-lo, ajudá-lo, apoiá-lo, ser seu suporte principal? Como você sabe, Peter não concluiu o curso universitário, não tem nenhuma prática, nem profissão, nem capacidade para o trabalho duro. O que será dele? Você deve ajudá-lo.

- Fisicamente, Peter é muito forte.

- Não me refiro à força física. Não estou falando em abater árvores. Falo da força interior, da coragem, iniciativa, firmeza. Providenciará essas coisas para ele, Sari? Proteção... amparo?

- Eu tentarei, papá Julius.

- É uma promessa?

- Sim, papá Julius.

- Eu sempre procurei manter minhas promessas. Você também, Sari?

- Sim, papá Julius.

- Então deve cumprir essa promessa para mim. Ampare Peter, de algum modo.

- Isto é uma promessa, papá Julius - repetira Sari então. Ele voltara ligeiramente a cabeça na direção de Sari, e esta vira

que havia lágrimas nos seus olhos.

- Você é uma boa moça, Sari. Se ao menos as coisas não tivessem... acontecido como aconteceram, tudo poderia ter sido diferente. Mas não adianta chorar sobre o leite derramado, não é? Isso já é passado. É como a água passando sob a ponte, e nós não podemos mudar o que passou, tanto como o leopardo não pode mudar suas manchas. Mas você foi boa em fazer o que fez, Sari, e quero que saiba que lhe sou grato.

- Obrigada a você, papá Julius. Por favor, não chore. Julius enxugou os olhos com as costas da mão esquerda.

- Creio que Joanna está em seu quarto neste momento. Pode ver se a encontra, Sari, e dizer-lhe para vir falar comigo?

- Joanna é forte também. Nós cumpriremos nossa obrigação uma para com a outra. Nós prometemos.

Mas, uma vez mais, Sari se sentira como se estivesse recitando as frases de um diálogo teatral, escritas para ela por outra pessoa.

Por volta do verão de 1930, após uma curta e ilusória assembléia, os preços na Wall Street tinham sofrido um novo baque, e iniciou-se um longo declínio que duraria anos. Com a produção mundial em baixa, o número de desempregados nos Estados Unidos passando de quatro milhões, e com filas de pão em toda parte, a dura realidade da Grande Depressão incorporara-se aos fatos diários da vida. Ao que parecia,

a cada dia as noticias sobre a situação econômica tornavam-se mais alarmantes, e houve mesmo uma conversa mais perturbadora sobre uma provável revolução. Americanos abastados que tinham emergido do crack financeiro sem nada estavam todos se mudando para a Europa, temendo por suas vidas. Agora, os bancos já eram os donos da casa de Julius LeBaron na Califórnia Street, embora lhe permitissem residir ali até que a mansão fosse vendida. Mas isso poderia nunca se concretizar, já que nenhum comprador aparecera para adquirir a grande casa. E a ameaça mais recente fora a de que os bancos estavam pensando em demoli-la e converter os terrenos num estacionamento.

Todas as manhãs, então, Constance LeBaron ia à missa e comungava, enquanto seu marido permanecia sozinho na casa, taciturno em sua poltrona, pensando Deus sabe em que possibilidades fatalistas.

Constance começara a ter visões. Numa delas, sua própria mãe erguia-se do túmulo e vinha defrontar-se com a filha quando estava sentada à mesa para jantar. A mãe lhe falava numa língua estranha, mas Constance captara a mensagem. A Santa Virgem estava punindo-a, dissera sua mãe, por tocar em suas partes mais íntimas quando criança. Em outra das visões, a Sagrada Virgem Maria aparecera, saída de uma garrafa de gim, segurando uma rosa vermelha bem alto, no ar, e quando Constance tentara pegar a flor, a Virgem Santíssima lhe dissera severamente: "Vá para o Calvário!" Em outra visão ainda, a própria Constance tinha sido transportada corporeamente para o santuário em Lourdes, onde, na gruta, a Virgem Maria aparecera mais uma vez, e lhe transmitira a mesma mensagem. Era difícil interpretar o que qualquer dessas experiências significava.

Algumas vezes, Constance pedia a Sari e Peter que a acompanhassem em suas idas à missa porque Joanna, após seu divórcio, estava em relações delicadas com a Igreja. Sari, é claro, não era uma comungante, embora acompanhasse o ritual apropriado da missa. Antes de se casar com Peter, tinha passado por um curto período de instrução religiosa, mas na realidade entendia muito pouco a respeito das complexidades e mistérios da crença católica. Em troca dessa instrução religiosa, e da promessa de que seus filhos seriam educados como católicos apostólicos romanos, a Igreja concordara com a união de Sari e Peter... mas na sacristia, não na nave. E sua causa fora favorecida pelo fato de que o sacerdote da família LeBaron, o Padre Quinn, acabara de ser nomeado monsenhor.

Numa manhã de sábado do mês de julho de 1930, Constance telefonara e perguntara se Sari e Peter a levariam à igreja para assistir à missa. Quando eles chegaram em casa, Constance explicou que acabara de ter uma nova visão. Sua mãe falecida reaparecera, desta vez no espelho do banheiro, enquanto Constance ajeitava seu cabelo. Mais

ma vez sua mãe a repreendera por ter manipulado suas partes íntimas com a ponta dos dedos quando era uma menininha, mas dessa vez a mensagem fora acrescida de uma nova informação. A mãe de Constance explicara que a causadora da Grande Depressão fora Joanna. O curto casamento de Joanna ocorrido há três anos e o seu divórcio seis meses depois haviam acarretado todo aquele desastre. Nada mais que isso.

- Minha filha é a responsável por todos os pecados do mundo - dissera Constance. - Todos os pecados do mundo. Minha mãe disse isso. Nos céus, minha filha é chamada a Satã, a meretriz da Califórnia Street.

- Ora, sra. LeBaron, eu não levaria nada disso a sério - dissera Sari.

- No céu, minha mãe faz a refeição matinal com a Santíssima Virgem todas as quintas-feiras. Ela tem assento à mão direita de Deus.

Sari poderia dizer que mamãe LeBaron andara bebendo de novo. Sentia-se o cheiro de álcool em seu hálito, e seus cabelos, talvez porque os retoques de seu penteado tivessem sido interrompidos pela visão, estavam desgrenhados. Como era que, ela se perguntara então, numa fase em que parecia não haver dinheiro para nada, ainda havia dinheiro para bebidas? Mas ela não fizera essa pergunta.

Na igreja de Nossa Senhora do Cadillac - como a catedral de São Pedro Mártir era amiúde chamada afetuosamente, já que muitos de seus paroquianos tinham sido, pelo menos em outros tempos, abastados - eles chegaram um pouco cedo. Sari e Constance ajoelharam-se, mãos postas em oração, na fileira de bancos costumeira de Constance. Em suas orações, Sari permitiu também que seus pensamentos voassem na direção do céu em nome daquela inculta família. Oh, Senhor, murmurou ela, se há mesmo um Senhor, permite que as tuas graças misericordiosas recaiam sobre essas infelizes pessoas que, através dos anos, têm tecido tantos louvores a Ti. Senhor, se há um Senhor, permite que um pouco de Tua sabedoria, compaixão e absolvição se revele em relação a eles, Teus humildes servos, em sua provação. Querido Senhor, se há realmente um Senhor Deus, lembra-te da ternura e da devoção deles a Ti, e permite, oh, apenas um pouquinho, que a Tua bondade e devoção recaiam sobre eles, e lhes conceda paz. Senhor, querido Senhor, se existe um Senhor realmente, dá-nos... algo!

Então, de repente, Constance LeBaron começara a gritar:

- Onde está Peter? Aonde ele foi?

- Silêncio, mama LeBaron. Ele está no confessionário.

- Mas por que ele demora tanto no confessionário? O que ele tem para confessar?

- Peter com freqüência faz longas confissões.

- Ele nada tem para confessar! Peter é um santo, e nós estamos

na igreja de São Pedro! Minha filha é que é responsável por todos os pecados deste mundo, ela que é chamada a Satã, a meretriz...

- Mamãe, mamãe, por favor.

Peter acercara-se exatamente da fila de bancos atrás de onde elas estavam, e Sari lançou-lhe um olhar preocupado. E então a missa foi iniciada. O sacerdote colocou-se diante do altar, fez um sinal-da-cruz tão elevado quanto lhe permitiam seus braços, e um grande silêncio ditado pela adoração religiosa recaiu sobre a catedral.

- In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti... - Mas agora Constance LeBaron recomeçara a gritar:

- Onde está a paz para mim? Indulgência... absolvição... existe qualquer vida eterna para mim?

- Agnus Dei, qui tollis peccata mundi... - E os gritos persistiam enquanto os outros fiéis na igreja tentavam resistir à tentação de se voltarem em seus assentos para ver o que estava causando aquele distúrbio, tentando concentrar-se no ritual solene da missa, e na santidade do sacerdote, o mensageiro de Deus na terra, a quem Ele escolhera para celebrá-la. E agora Constance LeBaron estava de pé, já se movendo para o centro da nave, e Sari procurava contê-la segurando-a pela manga do vestido.

- Aonde vai, mamãe? - sussurrou Sari.

- Para o Calvário! Estou indo para o Calvário! É por causa de meus pensamentos impuros! Isto é porque minha filha é conhecida no céu como uma prostituta! Estou a caminho do Calvário para amaldiçoar o Fantasma Sagrado que penetrou em mim e me fez dar à luz uma puta!

O sacerdote interrompeu a missa e ficou olhando fixamente para a sra. LeBaron enquanto ela se aproximava do altar cambaleante.

- Mamãe, por favor! - gritou Sari, começando a segui-la. Sobre o altar, alguém, um paroquiano de coração generoso, colocara um pequeno buquê de rosas rubras artificiais.

- Uma rosa vermelha! - gritou Constance. - A Santíssima Virgem ouviu minhas preces e me enviou uma rosa vermelha. A Virgem Santíssima, que faz a refeição matinal no céu todas as quintas-feiras, e se senta à mão direita de Deus! Dêem-me minha rosa!

Mas, esticando a mão para pegar a flor, Constance tropeçou e caiu sobre o gradil do altar. A seu lado, Sari e Peter ajudaram-na a erguer-se.

- Venha, mamãe - sussurrou gentilmente Sari. - A missa acabou, e é hora de voltarmos para casa.

Enquanto eles caminhavam devagar pela nave, o padre atrás deles ergueu seus braços mais uma vez e abençoou os paroquianos, incluindo os que acabavam de sair, e reiniciou o ofício sagrado.

- In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti... Pacem.

Naquela noite, um pouco depois das dez horas, houve um telefonema lá do rancho Sonoma. Um granjeiro vizinho, tendo observado o velho Packard dos LeBarons estacionado durante horas no pátio e ausência de luz na casa grande do rancho, fora ao vinhedo arruinado, com uma lanterna, para apurar o que teria ocorrido. Então os achara, caídos praticamente ao lado um do outro, cada um com um buraco de bala na têmpora, e entre os corpos, no chão, estava a pistola de Julius LeBaron. As instruções referentes ao sepultamento do casal tinham sido encontradas na mesa de trabalho de Julius, na casa da Califórnia Street.

E assim, após um assassínio e um suicídio, o que os tornava presumivelmente inelegíveis para um sepultamento em solo sagrado, eles tinham escolhido um modo ainda empregado por determinados campônios da Ligúria até então, e tinham pedido para ser trasladados para o trecho sob as nogueiras, no canto do parreiral onde tinham morrido. Rigorismos técnicos da Igreja não lhes permitiriam ingressar no céu juntos. Mas daquele modo, talvez suas almas vagassem em alguma paisagem universal menos explícita de estrelas, árvores e colheitas, e talvez a absolvição, buscando a paz e a redenção e a transfiguração em algum distante Parnaso ou Campos Elíseos, ou nos templos de uma planificação ainda mais indistinta.

- Estamos arruinados - dissera Peter a Sari, olhando desalentado a pilha de documentos de terminologia legal disposta sobre a sua mesa. - Não nos resta nada. Nem mesmo o seguro de vida. Ele contraiu empréstimos usando-o também. Tudo que pudemos encontrar foram duas contas de poupança em nome da mamãe, totalizando cerca de dez mil dólares, a serem divididos entre mim e Joanna. Teremos que vender esta casa.

- Como podemos vendê-la? Nós nem somos seus proprietários ainda. E ninguém deseja adquirir atualmente uma casa como esta.

- O que faremos então?

- Ainda temos as terras, não? Quantos hectares nós possuímos?

- Milhares. Milhares de hectares que ninguém desejará adquirir também. Temos uma terra empobrecida.

- Então o que faremos é ir lá e começar a adubá-la e plantar uvas. A Lei Seca está por terminar. É uma questão de tempo. Só temos que esperar que outros Estados ratifiquem a nova emenda. Iremos para lá e plantaremos uvas, e dentro de alguns anos teremos uma boa colheita. Quando a Lei Seca for extinta, retornaremos ao negócio de vinhos. Nós somos moços, Peter, e fortes, e trabalharemos bastante. E Joanna nos ajudará. Isto é o que faremos. Isto é o que devemos fazer.

- Tudo isso exigirá dinheiro. Vinhas... trabalhadores... tanoaria. De onde virá o dinheiro? Nós não o temos.

- Gabe Pollack nos ajudará. Já lhe prestamos um favor uma vez. Agora ele irá nos ajudar.

Aquilo era exato. Gabe Pollack atualmente é um homem idoso, e não gosta de jactar-se ou de obter louvores além dos que lhe sejam devidos, ou ainda de que se fale muito sobre tais coisas. Mas é verdade que, em 1928, quando a fortuna dos LeBarons parecia ilimitada, Sari e Peter tinham emprestado muito dinheiro a Gabe para que ele adquirisse um pequeno jornal muito combativo em Menlo Park denominado a Península Gazette, quando este se achava à venda.

E tinha agradado a Assaria LeBaron, uma próspera senhora então, esposa de um milionário, desempenhar o papel de Dama Liberal para Gabe Pollack, que, outrora, ela imaginara vir de chapéu na mão à sua mansão de Hollywood, suplicando perdão, implorando por misericórdia, por ter rejeitado seus carinhos de amante? Oh, é mais do que provável. Mas Sari não é na realidade uma pessoa vingativa. Fora Sari quem realmente soubera em primeira mão que aquele jornal estava à venda, e que sugerira que poderia emprestar o dinheiro a Gabe para que este o adquirisse. Como vêem, Sari não esquecera sua dívida com Gabe.

E quanto mais idoso ficava, mais econômico e frugal Gabe se tornava quanto ao seu dinheiro, um colecionador comedido. No verão de 1929, quando ninguém tinha a mínima idéia sobre o desastre econômico iminente, Gabe consultara seus balancetes e concluíra que já tinha o bastante.

- Minhas ações ultrapassaram o triplo de seu valor desde quando as adquiri - dissera ele então. - E isso é o bastante para mim.

E assim ele tinha vendido tudo na alta do mercado à vista. Naturalmente, pode-se argumentar que atos de homens como Gabe ajudaram a ocasionar o crack da Bolsa. É exato. Mas isso não altera o fato de que, quando a depressão se acentuou, Gabe Pollack era um homem razoavelmente rico.

Isso, contudo, não é realmente o ponto principal. Este reside em que, conquanto tivesse sempre suas divergências com Sari no decurso dos anos, ele sempre a amara. E ela sempre o amaria. Este amor proporcionou a essência, o pique de seu relacionamento. Eles sempre procurariam ajudar um ao outro, em meio a todas as calamidades. Não é isso, afinal, a definição mais simples do amor: os pequenos sacrifícios que fazemos um pelo outro dia após dia?

E assim, Gabe emprestara-lhe cem mil dólares. Ou talvez fossem duzentos mil. Gabe não se recorda, não deseja recordar, e isso não importa, porquanto seus empréstimos foram todos saldados no devido tempo, há anos.

 

-Senhora, aqui está o cardápio que a cozinheira sugere para o pequeno jantar de hoje - diz Thomas. - Ela sugere pepino velouté como entrada, acompanhado por turbans de linguado com caranguejo recheado. Depois, carne de pombo, com ervilhas, cogumelos e cebolas, e arroz. Mais uma salada de alface, laranjas e tangerinas, e, como sobremesa, uma dacquoise.

A atual cozinheira de Sari é de certo modo mais fantasiosa e afrancesada do que as outras anteriores.

- Oh, está bem - diz Sari. - Uma dacquoise. O que vem a ser isso afinal?

- Creio que se trata de um bolo leve com camadas de amêndoas e recheio de creme.

- Bem, isso parece ótimo. Na verdade, parece muito elegante.

Lembra quase um daqueles grandes jantares que costumávamos dar antes da morte de Peter. Agora vamos cuidar dos lugares à mesa. Você tem prontos os cartões?

- Perfeitamente, madame.

E Thomas empurra a cadeira de rodas de Sari pelo corredor, até a sala formal de jantar, onde Gloria Martino - que sabe lidar com esses detalhes - já está arrumando as flores.

- A senhora gosta destas tulipas? - diz a srta. Martino. - São as primeiras que vejo no mercado de flores nesta primavera, e acho que são muito bonitas. A meu ver, a decoração deveria ser toda feita na base do branco, amarelo e verde, e então nós poderíamos usar sua porcelana branca, verde e dourada.

- Muito bonito, Gloria.

- Estou prendendo as hastes das tulipas com arame fino. Assim não sairão do lugar.

- Agora, vejamos - diz Sari, observando a mesa da sala de jantar. - Acho que colocarei Joanna à minha direita, já que ela vem de mais longe. E Eric ficará na outra cabeceira da mesa. Isto deverá agradá-lo, não acha?

- Melissa lhe contou que trará um amigo? - pergunta a srta. Martino.

- Não! Claro que não contou. Quem é esse amigo?

- É o sr. Littlefield.

- Littlefield... este nome soa vagamente conhecido. Mas ela não devia fazer isso. Supunha-se que o jantar desta noite fosse exclusivamente familiar.

- Isso ajudará a equilibrar os sexos um pouco melhor, sra. LeBaron. De outro modo, haveria cinco mulheres e somente três homens à mesa.

- Mas nove é um número inconveniente. Bem, presumo que teremos que debitar isso à teimosia de Melissa. Além do mais, temos procurado ser gentis com Melissa nesses últimos dias, não é mesmo?

- Isso também me veio à mente.

- Bem, então deixemos a coisa desse modo. Colocaremos Alix à direita de Joanna, depois o Peeper, então Melissa, que estará sentada à esquerda do Eric. Desse modo usaremos Melissa como uma espécie de pára-choque entre Eric e Peeper. Então - aponta para o outro lado da mesa - colocaremos Mildred Tillinghast à direita de Eric, depois o sr. Littlefield, e por fim Harry Tillinghast, que estará sentado à minha esquerda.

Embora elas tivessem certamente idade suficiente para se conduzir apropriadamente num jantar especial, Sari decidira não convidar suas netas gêmeas. Ela deseja que este seja um jantar reunindo pessoas adultas, e, além disso, não quer que os cavalheiros convidados se sintam superados por membros do sexo oposto.

- Pensa em usar velas brancas ou marfinadas, sra. LeBaron?

- Marfinadas, eu acho melhor, Gloria. Os decoradores inteligentes desta cidade estão fazendo seus clientes usarem velas pretas. Mas eu sou antiquada. Joanna já subiu, Thomas?

- Oh, sim, senhora. E saiu a seguir. Ela foi fazer a refeição matinal na cidade com o sr. Eric.

- Hum. Bem, calculo que temos que permitir que os membros da "equipe" contrária façam suas conferências secretas.

- A senhora acha de bom-tom o damasco verde-limão...?

- Não, Gloria, creio que será melhor o panejamento branco com os monogramas em dourado...

E essa troca de opiniões e consultas tomou o dia todo, enquanto a Bolo de Noiva da Washington Street prepara-se para um entretenimento e uma festividade noturna como há muito não apreciava. Do depósito na adega foi retirada a melhor e mais pesada prataria, as facas com cabo de pistola e os garfos de três pontas, os adornos de mesa da mesma prata, que seriam preenchidos com os arranjos florais, o candelabro de prata usado há várias gerações com as suas velas ajustadas em bobeches, os cálices de vinho de bacará, os cartões indicadores de lugar à mesa esmaltados e seus suportes de prata, os guardanapos brancos adamascados com os monogramas dourados em feitio de leque, "ALLeB", as serifas das letras engenhosamente entrelaçadas, os pratos de serviço de prata, acompanhados pela porcelana Spode. Decidiu-se que Thomas usaria seu smoking nessa noite, em vez de seu costumeiro paletó branco, e que anunciaria os pratos a serem servidos. Isto, naturalmente, visa a impressionar os Tillinghasts. Sari escolhe um vestido de um tom de verde suave.

E agora ali estão eles, todos eles, reunidos na sala de visitas antes do jantar, para tomar uns aperitivos, com todas as lâmpadas acesas, as velas ajustadas nos candelabros de parede, com jarrões de flores frescas em toda a parte, e um cordial resplendor do fogo aceso na lareira com o seu alto consolo de mármore.

De seu posto de comando no centro da sala, Sari observa seus convidados para o jantar. Mildred Tillinghast, como de costume, está usando jóias demais: uma coleira de diamantes, brincos com pendentes de diamantes, um bracelete de diamante, e o seu conhecido diamante solitário de corte esmeraldino, tão pesado que inevitavelmente cai sobre a palma da sua mão e tem que ser torcido para trás numa posição onde possa ser exibido. É Harry, acredita Sari, que gosta de ver sua mulher sair à noite decorada como uma árvore de Natal. Sendo um homem que se fez por si mesmo, ele acredita em exibir o que tem feito.

- Você está muito bonita esta noite, Mildred - diz Sari. - Gosto de seu vestido.

Erguendo uma dobra de sua saia ligeiramente, Mildred diz:

- Modelo de Jimmy Galanos. Sua casa está bela, como sempre, Sari. Você tem realmente bom gosto. Sempre digo isso... Sari tem um bom gosto inato.

Havia algo um tanto condescendente na palavra inato! Não importava.

Melissa está usando um vestido preto, longo e cintado, que a favorece, e também conserva suas jóias simples: dois brincos de azeviche aplicados nas orelhas, nada mais. Melissa tem um bom gosto inato. Mas Sari não sabe o que fazer quanto ao jovem acompanhante de sua filha, o sr. Littlefield. Ele parece muito jovem realmente. Tem-se mesmo a impressão de que sua barba nem começou a despontar, e é uma criatura de aparência desnutrida com uns olhos de expressão assustada, cabelo fino nem comprido nem curto, e um jeitão de quem não parece desejoso de falar. Não é ao menos um pouco atraente, nem um pouquinho sexy, embora Sari tenha sabido por Thomas naquela tarde que ele teria entrado e permanecido algum tempo no apartamento de Melissa. O que Melissa vê nele é algo que Sari não consegue imaginar, e tudo que Melissa dissera a respeito desse rapaz era que ele tinha "um tremendo talento". Talento para o quê? Não para se vestir, certamente, pois o terno azul-escuro que usava, embora desse a impressão de ser novo, parecia ter sido confeccionado para uma pessoa mais cheia de corpo, e seus sapatos pretos de biqueira feito uma asa eram de um estilo que Sari não via mais os homens usarem há anos. Os sapatos pareciam de algum modo familiares e, assim, antigos, como o terno. Melissa tinha vestido aquele rapaz com as roupas antigas de Peter LeBaron! Roupas que haviam sido guardadas desde 1955 no depósito do porão! Conquanto ele esteja um pouco afastado de onde Sari se encontra, ela pode subitamente sentir o cheiro característico de naftalina. Melissa, Melissa, o que você está pretendendo agora?

- Ei, cara - ela ouve o jovem dizer a Peeper -, você parece igualzinho àquele outro cara ali.

- Eric é meu irmão gêmeo - retruca Peeper com um sorriso.

Os gêmeos, elegantes como sempre, não se cumprimentaram ainda, ao que Sari saiba. Na verdade, eles estão de pé em lados opostos da sala, Peeper tagarelando com Littlefield e Melissa, e Eric em conversa com Joanna. E no entanto, olhando para os dois gêmeos, Sari se sente impressionada por uma estranheza que ela sempre percebeu na vida dos dois. Ainda que eles nunca se tivessem vestido de modo igual quando crianças, de certa maneira sempre davam a impressão do contrário - quase como se uma mensagem sartorial extra-sensorial

transitasse entre eles. Se Eric descesse para o café da manhã usando um paletó de tweed marrom, Peeper apareceria alguns minutos depois, vindo de seu quarto, com um paletó de tweed marrom. Nesta noite, embora os dois tivessem se vestido para o jantar distanciados vários quilômetros - Eric em Burlingame e Peter na Russian Hill -, suas gravatas são quase idênticas: vermelho-escuras, com pequenos desenhos mais escuros. Era um enigma que Sari nunca decifraria. Agora ela observava como - ah, ótimo para ele! - Peeper toma a iniciativa, e cruza a sala na direção de seu irmão.

- Ei, Facsi - ela ouve Peeper dizer -, lembra-se de mim, seu velho fac-símile? Não tenho notícias de você há dias. Você não está magoado comigo por alguma coisa, está? - O bom e querido Peeper.

Mas, com desalento, ela observa que Eric rejeita a mão estendida de Peeper, e vê o rosto deste, tão bonito, acolher uma expressão de profunda dor.

- Então está mesmo zangado comigo - diz Peeper.

- Zangado com você, não, seu idiota. Somente surpreso com a sua maldita insensibilidade.

- Por quê? O que eu fiz, Facsi?

- Parece esperar que eu aceite de bom grado que você tenha sido nomeado co-diretor de marketing. Não lhe ocorreu que isso significava retirar metade das minhas responsabilidades no cargo?

- Mas mamãe disse...

- Mamãe disse. Eis o nosso filhinho da mamãe. E presumo que irá ficar do lado dela quanto à proposta de compra da Baronet feita por Harry, certo?

- Eu não faria nada que ela não desejasse.

- Pois bem, eu estou farto de trabalhar para a minha mãe. E você também estaria, se fosse metade de um homem de verdade.

- Eu sou a metade de você, Facsi - Sari ouve Peeper dizer calmamente. - Nós somos uma célula dividida.

- Oh, chega de asneiras - diz Eric. - Se quer a minha opinião, você tem metade de um cérebro.

Neste momento o rosto de Peeper envermelhece.

- Bem, caia fora daqui, Eric! - diz ele incisivamente.

- Rapazes, rapazes! - grita Sari. - Nós não iremos ter esse tipo de conversa em minha casa esta noite. Este será um agradável jantar em família. - Ela acha que a noite está tendo um início de algum modo inoportuno, e faz sinais para Thomas. - Mais bebidas! Mais bebidas para todos.

- Estamos todos, naturalmente, ansiosos em saber o que você acha da proposta do Harry - diz Mildred Tillinghast. É uma pergunta que está na ponta da língua de todos.

Ouvindo isso, Harry diz:

- E talvez tenha sabido que estou disposto a "adoçá-la" um pouco.

- Nada de conversa sobre negócios esta noite - diz Sari com firmeza. - Esta noite será de entretenimento. Apenas uma reunião familiar.

- Você, naturalmente, possui um senso de negócios maravilhoso, Sari. Eu sempre disse que você tem um senso inato para negócios - diz Mildred.

Erguendo sua taça, Sari diz:

- Gostaria de propor um brinde... a Joanna, que veio de Nova York para estar presente a nossa pequena reunião de família esta noite. Seja bem-vinda, Jo.

- Muito bem, muito bem... bem-vinda, tia Jo.

Alix LeBaron, languidamente sentada em um dos compridos sofás defronte da lareira, usando um cafetã tricotado de fina lã e muitas correntinhas e braceletes dourados, dá a impressão de que aguarda ser fotografada para a capa de Town & Country. Ela está também, evidentemente, tentando atrair os olhares de Peeper. Quando este finalmente se volta na sua direção, ela diz:

- Bem, Peeper, está na hora de você me dizer olá.

- Oh, sim, Al - diz ele espontaneamente, e ela o recompensa com um sorriso amuado.

Está evidente para Sari que Alix tenta fazer uma espécie de jogo para cativar Peeper. E diz:

- Alix, como vai indo Sloanie em seu tratamento dentário?

- Oh, é uma coisa muito prolongada, belle-mère.

- Mamãe - diz Peeper -, nesta mesa costumava haver um bonito peso de papéis de bacará millefiorf!

- Sofreu um acidente - explica Sari, cuidando de não olhar na direção de Melissa.

- Oh, que pena - diz Peeper. - Eu adorava aquele pequeno objeto.

- Essas criadas - diz Alix. - Elas quebram tudo.

Entre todas as pessoas vestindo modelos caros e penteadas com capricho, ou usando ternos elegantes - com exceção apenas do sr. Littlefield -, é Joanna a figura mais maravilhosa nesta sala, pensa Sari. Embora seu cabelo louro esteja agora prateado, os famosos olhos azul-escuros ainda cintilam, e os longos cílios escuros, ajudados agora, sem dúvida, pela maquiagem, geram ainda um extraordinário efeito. A pele, para uma mulher da idade de Joanna, apresenta-se ainda notavelmente lisa e clara, e sua voz soa até mesmo mais profunda e mais cheia. Uma mulher realmente bela, pensa às vezes Sari, na

realidade nunca envelhece a ponto de perder sua beleza. Isso tem algo a ver com os ossos faciais, os malares em particular, e, naturalmente, os olhos. Não importa o que Joanna vista - dificilmente se atenta para as suas roupas -, as pessoas prontamente ficam atraídas pelo seu rosto, e pelo modo como suas mãos se movem. Ela é emocionante... sempre conseguindo sensibilizar com apenas um mínimo gesto, um afago, a pessoa com quem esteja falando. Seu modo de sentar também é de uma jovem, as pernas cruzadas nos joelhos, inclinada para a frente, o queixo apoiado na mão, ouvindo com atenção o que seu interlocutor tenha a dizer. Ela não faz nada de miraculoso, Sari é forçada a reconhecer, e a vê tecer seu feitiço agora como sempre fez, fazendo sala com seu conhecido encanto.

- Empurre minha cadeira de rodas mais para perto de Joanna

- sussurra Sari para Peeper, que está mais próximo dela.

- Agora, eu desejo propor um brinde - diz Joanna. - A Sari, minha mais antiga e querida amiga. Sari, quero apenas dizer que seja o que for que resulte de tudo isso, você sempre será minha melhor amiga.

- Bravo, muito bem... a mamãe... a Sari... à belle-mère...

- O velho tonel de vinho na galeria de retratos - diz Joanna

- foi o que me emocionou mais quando entrei nesta casa de novo e o vi ali. O avô o tinha em Sonoma, e papai guardava-o na casa da Califórnia Street, então Peter o trouxe para cá. Ele é um símbolo da continuidade, mas não um monumento. É ainda simples, bem simples, e um exemplo clássico da arte da tanoaria. Quando percorri esta casa ontem, a sua bela casa, Sari, e vi o velho tonel de vinho, pensei por um minuto que irromperia em lágrimas. E tudo mais, os retratos das crianças, todos de nós, os LeBarons, na galeria comprida. Isso conservaria a casa jovem, papai costumava dizer. E conservou, Sari, e naturalmente Peter levou adiante a tradição também. Esta casa se acha tão repleta de recordações para mim... a coleção de cachimbos de meu irmão, os bronzes romanos no vestíbulo, a pata de elefante com todas as bengalas dele, todas as coisas que ele amava, que finalmente me senti em casa de novo. Finalmente senti que algumas coisas não precisam mudar. Isto foi o que você manteve aqui, Sari: uma ilha de continuidade, de permanência e tranqüilidade num mar de mudanças. Mas o velho barril de vinho me fala mais de perto.

Faz-se silêncio, rompido afinal por Eric:

- Adorável. Gostaria de guardar uma cópia desse seu pequeno discurso, tia Jo.

- Mas não é um discurso - insiste Joanna. - Simplesmente é o que eu sinto, e busco traduzir. Você sabe o que quero dizer, não sabe, Sari? - Ela ri. - Ou é a imagem da antiga redatora de anúncios que ressurge em mim? Eu sempre desejei encontrar um modo de usar aquele tonel na publicidade da Baronet, mas nunca fui inteligente o bastante para bolar como o faria. Claro que não cuidamos mais da conta da Baronet.

- Foi você quem renunciou a ela, não se esqueça - diz Sari. - Não foi iniciativa minha.

- Mas não vamos falar de negócios.

Entenderam? Essa é a esperteza de Joanna. Ela sabe que eles não se acham ali para falar de negócios, e no entanto orienta a conversa de algum modo nesse sentido.

- Ainda estou recebendo propostas de agências que desejam ficar com essa conta - diz Eric. - Mas, naturalmente, já que não pertenço mais à empresa, vou transferir todos esses contatos para Peeper.

- Ei, eu estive me perguntando como esses caras conseguiram meu número de telefone fora do catálogo.

- Nada de conversas sobre negócios, lembram-se?

- Mas, Sari - diz Mildred Tillinghast -, o que você acha da proposta do Harry? Não a acha entusiasmante?

- Negócios não...

- Dê-nos apenas uma pequenina- dica sobre o que você pensa a respeito!

- Quanto ao velho tonel de vinho, as pessoas que vêm a esta casa pela primeira vez acham que se trata de uma coisa muito singular para que a guarde aqui... e que o lugar onde ele se encontra é mais curioso ainda!

- A galeria dos retratos...

- Às vezes ele goteja. Em determinadas condições de temperatura.

- E quando eu era uma menininha, Sari, na Califórnia Street, costumava encostar meu ouvido nele, como se ele fosse uma concha, e algumas vezes ouvia sons leves de gorgolejo. O vinho do avô estava tentando falar comigo.

- O vinho se mantém em mutação. Nunca morre.

- Às vezes o barril parece quente ao contato.

- Pense bem, ele tem mais de cem anos.

- Cento e trinta aproximadamente...

- O que descobriríamos, me pergunto, se o abríssemos?

- Em todas as festas, sempre havia alguém desejoso de abrir aquele tonel!

- A rolha do tonel está tão petrificada agora na boca do barril que seria necessário um martelo de forja para retirá-la...

Thomas está se movimentando na sala novamente, atendendo a mais pedidos de bebidas, e uma empregada vai oferecendo hors-doeuvres, chapéus de cogumelos recheados com creme de leite e caviar.

- O que é este troço? - Sari ouve Littlefield perguntar a Melissa.

- Isto é caviar, querido. Ovas de esturjão... ovos de salmão.

- Ovos de peixe!

- Não coma se não o deseja, querido.

- Os retratos - diz Joanna. - Como os seus foram feitos, Sari? Eu me esqueci.

- Seu pai pediu ao pintor que usasse como modelo uma foto minha tirada quando eu representava naquela peça.

- Oh, aquela peça! Foi assim que nos conhecemos, quando você levou a sua peça para o Burkes. Como adorei aquela peça!

- Oh, ela era terrivelmente vulgar.

- Mas você a tornou maravilhosa! Se você não tivesse se casado com Peter, poderia facilmente ter ido para Hollywood e se convertido numa grande estrela de cinema. Isto foi o que sempre pensei.

- Onde fica o mictório? - Sari ouve Littlefield perguntar a Melissa.

- Por aquela porta ali, atravesse o corredor; ele fica à sua direita.

- Pense bem... todos nesta sala estão pendurados naquela galeria dos retratos - diz Joanna, e Sari pensa: Você tem que tê-la ao alcance. Ela tenta manter a conversa borbulhando, ainda que através de remendos titubeantes.

- Bem, eu não figuro ali - diz Alix. - Minhas filhas ali estão, mas eu não, e nem meus pais. Porque nós não somos considerados da família.

- Bem, temos que corrigir isso, não, Sari?

E Athalie não está ali também. Onde está Athalie? Esqueça Athalie, esqueça que ela existiu. Mas ela existiu. Existiu.

Littlefield voltou depois de usar o banheiro, e Sari não pode deixar de observar uma mudança que parece ter ocorrido nele. Seu rosto está corado agora, suas mãos estão torcidas, sua cabeça balança para cima e para baixo em movimentos bruscos estranhos. Ele tenta acender um cigarro e gasta quatro fósforos antes que consiga encostar a chama à ponta do cigarro. Olha para todos ali muito indisposto, e Assaria LeBaron move a cadeira de rodas na sua direção, decidida a descobrir o que esse moço, alegadamente dono de um enorme talento, faz para ganhar a vida, e qual poderá ser seu relacionamento com Melissa.

- Espero que toda essa conversa de família não o aborreça, sr. Littlejohn - diz ela então.

- Littlefield - e com mais balanços bruscos de cabeça, ele acrescenta: - Um bonito lugar a senhora tem aqui. Caramba, esta é uma verdadeira mansão.

- Bem, sim, eu suponho...

- Quero dizer que sou grato por convidar Melissa e a mim para

virmos até aqui. - E então: - Eu tenho que ir ao mictório de novo.

E ele sai pelo corredor mais uma vez, o cigarro apertado entre os dentes, e as mãos enfiadas nos bolsos de seu terno emprestado. Sari acha que na certa ele está doente, e que talvez, entre seus problemas, um tenha a ver com a sua bexiga.

- Chegou a conhecer meu irmão, Harry? - está dizendo Joanna.

- Só ligeiramente. Mas, é claro, todos o conheciam bem de nome.

- Um bom nome, espero.

- Oh, o melhor possível.

- Juntos ele e Sari formavam uma equipe imbatível. - Então, numa voz mais branda, ela diz: - Amanhã, eu gostaria de ir aos vinhedos de Sonoma e visitar os túmulos de mamãe e papai, ver aquelas árvores. Peter sempre achou que aquilo foi algo bárbaro, isto é, o modo como eles desejaram ser sepultados, mas eu sempre achei muito... poético. Alguém gostaria de ir comigo? Sari? Melissa?

E agora Littlefield está de volta do banheiro novamente, e desta vez sua aparência é quase alarmante. Seu rosto está agora muito corado, e seus olhos muito alargados, e o modo como torce as mãos e sacode bruscamente a cabeça tornou-se mais pronunciado. Certamente esse jovem está muito doente, é o que pensa Sari. Melissa notou isso também, pois Sari a vê sussurrar algo ao rapaz, com uma expressão ansiosa. Então Sari observa um novo e extraordinário detalhe. O sr. Littlefield está tendo uma ereção! O tamanho e contorno do pênis são inteiramente óbvios sob a perna da calça do seu terno azul originariamente de Peter LeBaron. Ela se pergunta se outras pessoas na sala já terão notado, ou se, já que agora os outros estão todos de pé, enquanto ela, por necessidade, acha-se sentada e conseqüentemente no nível ocular em relação às pernas do rapaz, tal detalhe terá passado despercebido. Para Thomas, que acaba de lhe trazer uma bebida, ela sussurra:

- O jantar já está pronto? Você sabe que um intervalo longo demais para um coquetel me desagrada.

- Vou falar com a cozinheira, senhora.

- Depois da morte de mamãe e papai, Peter, Sari e eu fomos para o campo - Joanna está dizendo agora a Harry Tillinghast - e, agachados, junto com os trabalhadores agrícolas, trabalhamos duro, começando a plantar vinhas.

- Notável.

Isto é, naturalmente, um dos detalhes aborrecidos acerca de Joanna. Ela tende a dominar e controlar a conversa, o que deveria caber a Sari. Se Sari não tomar cuidado, terá que renunciar à sua condição de anfitriã da reunião, cedendo o cetro à tirania da vivacidade de espírito e beleza de Joanna, mas ela está tão ocupada em evitar que seu olhar deixe de enfocar o estado de ereção de Littlefield que não pode

pensar em nada adequado para dizer. Interrompendo Joanna, ela faz um comentário que a deixa até embaraçada por sua banalidade:

- Bem, eu espero que todos estejam com bom apetite, porquanto planejamos um ótimo jantar. O trabalho da cozinheira foi muito longo e duro... - E se surpreende corando e pensando: Muito longo e duro.

Soa um risinho da parte de Joanna, e Sari sabe que sua cunhada também já notou a situação vivida pelo jovem Littlefield. Joanna sempre observa tudo. Joanna pisca para ela, e então, voltando-se para o rapaz, diz:

- É natural de São Francisco, sr. Littlefield?

Ele a olha fixa e tolamente, como se não entendesse a pergunta. Então repete:

- São Francisco? Melissa diz:

- Maurice, eu acho...

Joanna ri vivamente de novo e diz, sem um traço de sarcasmo:

- Melissa, querida, onde encontrou esse moço tão interessante!

- Maurice é... - começa Melissa, mas é interrompida por Thomas, que entra na sala para dizer:

- O jantar está servido, senhora.

Graças a Deus, pensa Sari, enquanto os convidados passam pelo corredor dos retratos rumo à sala de jantar, Thomas empurrando sua cadeira de rodas. Pelo menos o problema peculiar do sr. Littlefield logo estará oculto sob as dobras da toalha da mesa.

O jantar se inicia tranqüilamente. Sari decorou a disposição dos assentos, e indica a cada convidado seu lugar; Thomas coloca-se ligeiramente atrás da cadeira de rodas da anfitriã, de onde, em seu papel de mordomo, supervisionará o atendimento à mesa. Littlefield pegara um dos guardanapos brancos e estava agora examinando atentamente o pesado bordado dourado.

- O que é isto?

- É o seu guardanapo, Maurice - diz Melissa um tanto áspera.

- Não, eu me refiro a isto. Aqui se lê Alleb. O que significa Alleb!

- É o meu monograma - diz Sari. - A-L-Le-B.

- Velouté de pepinos - diz Thomas, quando chega a sopa. Enquanto a sopa está sendo servida, Sari observa que Littlefield se empenha, com dificuldade, em acender um novo cigarro, e também nota que ele acendeu a ponta com o filtro. E sussurra para Thomas:

- Um cinzeiro para o sr. Littlefield.

A seu lado, à esquerda, Harry Tillinghast está dizendo numa voz baixa para que os outros não possam ouvir:

- Cometeu um sério erro, Sari, ao despedir Eric daquele modo. Eu sempre a admirei como uma mulher de negócios, mas aquilo foi um erro.

- Bem, o que você faria se o seu diretor de marketing resolvesse organizar uma revolução contra você? Espetaria uma medalha no peito dele?

- A meu ver, isso foi um erro de julgamento, Sari, e contraproducente.

- Bem, foi a decisão que tive que tomar. Além disso, não iremos falar sobre...

- Você deixou cair seu guardanapo ou outra coisa, Allie? - Sari ouvira Peeper perguntar a Alix, que está sentada à esquerda dele. E olha para baixo a tempo de ver a mão de Alix recuar rapidamente do ponto onde ela devia estar tocando o joelho de Peeper. Oh, minha cara, pensa ela, o que pode ser feito para evitar que esta noite escape à repentina ameaça de se converter num desastre? Toma sua primeira colherada de sopa, e os outros a imitam, com exceção de Littlefield, que está ainda fumando seu cigarro com a ponta errada acesa. Isso provoca um cheiro acre, como o de borracha queimada, e que se mescla de modo infeliz com o odor de gardênia das velas perfumadas.

- Um brinde - diz Sari um pouco desesperadamente. - A todos nós! A uma vida longa, de paz e felicidade! - E ergue o copo.

- Este é o vinho Baronet? - pergunta Littlefield, e a sala mergulha em silêncio. É uma pergunta que, de certa forma, nunca fora feita à mesa de Assaria LeBaron. - Bem, é? - insiste ele na pergunta.

- Não, na realidade é um Monbousquet, safra de 1979 - diz finalmente Sari. - Francês. Nossos vinhos são baratos e de caneca. Vins òrdinaires.

- Mas, naturalmente, não deveriam sê-lo sempre - diz Harry. - A Baronet possui as vinhas, e a capacidade de produzir vinhos verdadeiramente nobres. Sob um rótulo diferente, é claro. Já chegou a pensar nisso, Sari?

- Sim, pensei e imediatamente descartei a idéia. Conheço o meu mercado consumidor, Harry.

- Mas existe um novo mercado de alto nível que pode ser coberto. O dos jovens profissionais urbanos...

- Eu sei tudo sobre os yupies. Mas também conheço o meu mercado. O que sabe acerca de vinhos, Harry?

- Um bocado, para ser franco. Mandei o pessoal do meu escritório fazer uma pesquisa sobre o assunto. Perfis demográficos...

- Sim. Pesquisas, perfis demográficos. Mas eu aprendi sobre esse negócio no local, como diz Joanna. Lutei para afugentar as cotovias...

- Cotovias e corvos deixaram de ser um problema há anos, Sari. Os pesticidas cuidaram deles.

- Sim, e sabe que sinto falta deles? Eram pássaros bonitos, com um belo canto. Belos e vorazes pássaros.

Voltando-se para Littlefield, à sua direita, Mildred Tillinghast diz:

- Espero que perdoe toda esta conversa sobre negócios de família, sr. Littlefield.

Sari não deixa esse comentário passar em branco. Diz incisivamente:

- Não é um negócio pertinente à sua família, Mildred. - Pelo menos não ainda!

- Mas, Sari, Harry e eu possuímos ações da empresa!

Aos poucos, Sari pode sentir que a noitada que promoveu recai, inelutavelmente, no remoinho amplo da discórdia que ela esperava evitar, e essa queda na voragem parece estar alcançando um ponto que ela não pode mais controlar.

Voltando-se de novo para Littlefield, Mildred pergunta:

- Qual o seu ramo de negócios, sr. Littlefield?

- Negócios?

- Sim. O que o senhor faz?

- Sou um astro de rock.

- Um astro do rock. Como é in...

- Oh, meu Deus! - exclama Sari, porque acaba de entender quem é Maurice Littlefield. - Foi você quem matou a serpente!

- A miserável me mordeu!

Uma vez mais a mesa recai no silêncio pesado.

- Diga-me - fala Sari, tentando, se isso é ainda humanamente possível, salvar a reunião -, como você e Melissa se conheceram?

- Nós não nos conhecemos exatamente - diz Maurice. E então, com o rosto ainda muito corado e os olhos alargados, não tendo ainda pegado a colher de sopa, ele começa: - Ouça, deixe que lhe conte uma história sobre aquela serpente, senhora, uma história que a fará dar pulinhos!- O silêncio à mesa traduz agora um choque causado pela enormidade da gafe cometida por Maurice. Mas, ignorando tê-la cometido, ele a repete, e numa voz muito mais alta: - Eu digo que isto a fará realmente dar pulinhos!

- Maurice - diz Melissa numa voz baixa, de advertência, do outro lado da mesa.

- Espere aí! Me deixe contar a história. O nome da serpente era Sylvia. Sim, ela se chamava assim, e havia uma garota no grupo chamada Marty, penso que em Omaha. E esta tal Marty adorava realmente aquela cobra. Ela costumava enrolá-la em volta do seu corpo, isto é, do seu pescoço... E costumava mesmo enfiá-la debaixo de seu vestido para dar a impressão... sabe, ela tinha aquelas tetas grandes, e costumava atuar com a serpente... uma loucura, gente!... como se realmente a amasse. E era como se a Sylvia amasse na realidade a tal Marty. E Sylvia nunca fez nada para ferir Marty, entende? Assim, eu penso que em Omaha nós tínhamos aquele número, e a tal Marty lá estava no palco, com a Sylvia e eu... Sylvia, que era essa serpente... e Marty estava enrolando a cobra em volta dela, enfiando-a dentro de seu vestido para fazê-la parecer ter essas grandes tetas, sabe? Sabe? Sacou? e...oba! - Littlefield põe-se a gritar então, e atira a cabeça para trás, os tendões de seu pescoço magro sobressaindo. - Epa! Aí vai minha cabeça! Me segura, cara! Me sustenta, Capitão Marvel, porque estou subindo no teto, estou saindo pro alto, pras estrelas. Estou no espaço cara! Oba! Estou subindo nas estrelas, naquelas putas estrelas, cara! Me governa! Me converte num puta p-a-r-a-f-u-s-o! Canta pra mim, Lucius! Canta pra mim, querido! Dança sobre a cabeça do meu pau, Lucius! U-u-u-u-u! Isto é Guerra nas Estrelas, benzinho, e aí vai o...

- Maurice!

- U-u-u-u-u! Estou "viajando", cara! - E de imediato sua cabeça tomba para a frente, seu corpo todo bambeia, e sua cabeça mergulha na sua tigela de sopa, de lado, com um surdo baque.

- Meu vestido! - grita Mildred Tillinghast, quase erguida recolhendo as dobras de sua saia Galanos sobre os joelhos.

- Minha tigela de porcelana Spode! - exclama Sari.

Mas, milagrosamente, a tigela de sopa pertencente ao seu valioso conjunto de porcelana, tão delicada e fina que se poderia ver o esboço de uma patinha de pássaro, permanece intacta sob o peso aparentemente inconseqüente da cabeça de Maurice Littlefield. Nesse meio tempo, todos os homens à mesa estão de pé para ajudar o rapaz a sair de seu velouté de pepinos.

Melissa também já se levantou. E diz numa voz tensa:

- Eu cuido disso. Levante-se, Maurice! - ordena. - Levante-seX Vou levá-lo lá para baixo. - Ela o coloca devagar em pé, enquanto a sopa goteja, descendo de seu rosto para a camisa, paletó e a gravata, e Sari e Thomas trocam olhares de consternação mútua.

- Eu volto logo - diz Melissa, e faz-se silêncio à mesa quando, com a mão segurando firme o cotovelo de Maurice, ela o guia com o passo inseguro para fora da sala de jantar.

- Bem! - diz por fim Sari. E então, decidida a não perder o controle da reunião, diz a Thomas: - Retire simplesmente a cadeira dele, Thomas. Mildred, você e Harry podem chegar um pouco mais para perto um do outro. Eu sei que isto significa pôr o marido próximo da esposa, mas as circunstâncias são um tanto... incomuns, creio que todos vocês concordam. Mildred, seu vestido está em ordem?

- Sim... creio que sim. Terá sido algo que eu disse que o fez fazer aquilo, Sari?

- Duvido muito - retruca Sari. E a seguir: - Agora, eu desejo saber o que cada um de vocês pensa: Claus von Bulow é culpado? Acho que ele é inocente... inocente ou idiota por ter guardado a agulha hipodérmica. Peeper qual é a sua opinião?

- Eu penso que... - E nos momentos seguintes, tudo passa a ser uma forma de tagarelice forçada, como se todos tentassem deixar para trás o incidente relativo a Littlefield.

- Estou disposto a adoçar a minha oferta, Sari - esta ouve Harry Tillinghast, à sua esquerda, dizer-lhe. - Treze ponto dois cinco.

- Eu pensei que treze era pouco algum tempo atrás.

- Estou adoçando o mais que posso, Sari.

- Isso ainda é dinheiro miúdo. As ações da minha companhia estão valendo muito mais do que treze ponto dois cinco.

- Sua companhia, mamãe? - diz Eric.

- Nós não estamos aqui para falar de negócios! Este não é um jantar de negócios. Quantas vezes terei de lhes lembrar isso?

Nesse momento Melissa já está de volta à sala de jantar, reassumindo seu lugar à mesa. E diz:

- Lamento profundamente. A culpa foi inteiramente minha. Estava tentando algo, uma experiência, e ela não deu certo. Trata-se realmente de uma trágica história. Com todos os ingredientes clássicos. Nascido e criado em alguma cidadezinha desagradável do leste do Texas... com uma mãe alcoólatra e um pai que era um espancador de mulheres e um violador de crianças. Ele fugiu de casa quando estava com dez anos. Mergulhou em drogas. Mas sob toda a sordidez, existe na realidade um talento musical inato notável. É isso que eu espero salvar de algum modo. Mas o problema é a timidez... uma terrível timidez. Ela o afeta diante das platéias. Então ele toma um estimulante para se sentir melhor, e depois outra droga para voltar à sobriedade, a seguir um pouco de cocaína para vibrar de novo, ou um pouco de nitrato de amila. Estou tentando reabilitá-lo, eis tudo, por causa do talento muito autêntico presente nele... procurando deixar que ele aflua. Pensei que se ele pudesse se unir a uma família normal para um pequeno e informal jantar...

Uma família normal, pensa Sari.

Como se lesse os pensamentos de Sari, Melissa acrescenta:

- Seja como for, uma família supostamente normal. Mas evidentemente ele não estava preparado para tal. Eu cheguei até a desencavar um antigo terno de meu pai para que ele o vestisse, ganhando assim uma aparência um tanto decente. Mas ele não estava preparado. Simplesmente não estava à altura. Seja como for - prossegue ela,

olhando em torno para obter uma reafirmação -, ele é meu pequeno projeto no momento... quer dizer, tentar reabilitá-lo, tentar afastá-lo das drogas. E isso somente por causa do talento musical inato e realmente extraordinário que ele possui, um talento que seria uma pena ver desperdiçado. Continuarei a tentar. Não irei desistir ainda. Mas essa experiência de hoje foi um erro, e lhes peço desculpas.

Dos outros à mesa, ela só recolhe olhares que expressam variados graus de ceticismo.

- Esse garoto foi maltratado e prejudicado a vida toda - diz Melissa. - Eu não posso evitar, mas meu coração sempre se confrange com a visão das crianças maltratadas deste mundo! - Faz-se silêncio enquanto todos à mesa pensam, cada um a seu próprio jeito, sobre a infância perturbada de Melissa. - Elas necessitam de tanta coisa, e recebem tão pouco! - diz ela agora. - Tudo que pedem é um pouco de amor, fé, bondade, reafirmação e compreensão. Seja como for, é isto que tento proporcionar a esse infeliz e perdido rapaz. - Então, quase desafiante, ela acrescenta: - E não ligo a mínima para o que qualquer um de vocês pensa!

Finalmente Joanna diz:

- Melissa e seus pequenos projetos-. Você sempre os alimentou, não é, querida? Bem, por mim eu creio que isso é muito cristão de sua parte. Eu a aplaudo, Melissa.

- Seja como for - diz Sari com um desnecessário entusiasmo para preencher o silêncio que se seguira -, não deixemos que isso estrague o nosso jantar.

- Turbantes de linguado, com recheio de caranguejo - diz Thomas calmamente, anunciando o próximo prato.

Na ocasião em que a sobremesa fora servida, tornara-se quase possível para Sari acreditar que a pacífica e agradável reunião que ela imaginara estava acontecendo. Mas então Harry Tillinghast - o Harry que não deixa escapar um assunto até que tenha se engalfinhado com ele - sente que deve retornar ao seu tópico favorito. Atentando para a doçura do creme de leite que se encontra na sobremesa, ele descobre uma ocasião para fazer um mau trocadilho acerca do adoçamento da sua oferta das ações. E diz:

- Todos nós sabemos como Sari se sente a respeito disso, mas e quanto a vocês?

- Pessoalmente, acho sua oferta muito generosa - diz Joanna.

- Diacho - diz Sari rispidamente -, minha companhia não está à venda!

- Sua companhia, mamãe? - diz Eric novamente. Inclinando-se para a frente em sua cadeira, Joanna diz:

- Querida Sari, diga-me apenas uma coisa, e então prometo que não tocaremos mais no assunto. Diga-me simplesmente por que você se importa tanto com tudo isso. Creio ser uma coisa que nenhum de nós entende plenamente.

- Por que me importo? Você se mostra muito sutil ao me indagar isso! Como se sentiria se alguém tentasse tirar sua agência de publicidade de suas mãos?

- Na realidade, eu planejo me aposentar dentro de mais dois anos. Estou realmente considerando essa perspectiva, e já escolhi até o meu sucessor.

- Você. Você, é claro... mas seu caso é diferente. Você nasceu em berço de ouro, mas eu não. Eu costumava percorrer a pé doze quarteirões até a escola para poupar o níquel da passagem do bonde! Eu me incomodo, sim, porque essa companhia é a única coisa que já possuí.

- Mas você não acha que está sendo um tanto melodramática, Sari? Quero dizer, afinal você possui outras coisas. Tem filhos, netos, todo o dinheiro do mundo, uma bela casa...

- Filhos são um dever e uma responsabilidade. Assim também o dinheiro, e a casa. Todas essas coisas precisam ser alimentadas e cuidadas. Mas o trabalho... o trabalho é de onde a alimentação provém. É o que nos mantém vivos enquanto se cuida de outras coisas. Vocês... vocês todos contaram com sua fé cristã que eu nunca cheguei a entender realmente, mas que sei que os ajudou nas épocas ruins. Esta companhia tem sido como uma crença para mim, um apoio espiritual, um consolo em meio a todos os desapontamentos e desastres... as cotovias... - E agora algumas lágrimas, reais ou fingidas, quem pode asseverar, tratando-se de Sari?, despontam em seus olhos, e ela as enxuga com a ponta de seu guardanapo monogramado. - Eu lhe dei o seu nome, vocês sabem. Eu a denominei Baronet. Quando as cotovias destruíram nossa primeira colheita em 1933, Peter me disse: "Nós a perdemos. Ela se foi. Estamos liquidados." E eu lhe disse: "Nós não estamos liquidados! As uvas se perderam, mas não os vinhedos! Nós tentaremos novamente, nós arriscaremos. Tudo na agricultura é um jogo: a chuva, o sol, os elementos naturais, as aves. Tudo isso é um risco, mas se você quer ser um jogador, tem que permanecer no jogo para ganhar. Nós ganharemos. Espere e verá. Vamos criar um novo nome para nós. Vamos chamar isto de... Vinhedos Baronet! Baronet! Tem um som auspicioso. Com um novo nome, talvez tenhamos sorte." E nós o fizemos. E vencemos. Eles me chamavam de uma velha mulher durona, já ouvi isso por aí, mas foi somente uma vida de trabalho que me fez durona. Como pode ainda me perguntar por que eu me importo com isso? Como pode me pedir para desistir de tudo sem lutar?

Sari LeBaron baixa o rosto entre as mãos em feitio de concha. E diz:

- Entendam, tudo o que estou pedindo é que me seja permitido morrer em plena atividade.

Enquanto ela estava falando, Peeper erguera-se da mesa e se movera para se colocar atrás da cadeira de sua mãe. Ele coloca as mãos sobre os ombros de Sari, e os comprime com firmeza.

Sari cobre a mão esquerda dele com a sua mão direita, e sussurra:

- Obrigada, Peeper.

Unicamente o que a senhora puder conseguir com seu poder de persuasão, tinham lhe dito seus advogados, Baines e Rosenthal. Eric é o primeiro a falar. Limpa a garganta, então diz:

- Harry, acho que devíamos encerrar o assunto. Simplesmente não vale a pena, Harry. Não compensa o que seria feito a minha mãe. Vamos cancelar isso.

Faz-se um curto silêncio, então Alix LeBaron exclama em voz estridente:

- Cancelar! Quer dizer que você mudou de opinião? Quer dizer que está voltando atrás! Faça isso, seu filho da mãe, e eu providencio um processo de desquite com separação de bens tão depressa que você não saberá o que o atingiu!

- Ora vamos, Botão-de-Ouro... - começa a dizer Harry Tillinghast.

- Eu falo sério! Providenciarei um processo de manutenção em separado tão depressa que ele nem se dará conta! Pois eu sei o que ele pretende! Ele está tendo um caso com aquela sua secretária, sustentando aquela putinha japonesa!

- Isso é uma grossa mentira, Alix!

- Não é! Eu tenho a prova! Um cheque carimbado no valor de dez mil dólares!

- Isso foi para...

- A tia Grace internada numa clínica geriátrica? Eu sei tudo sobre isso também... o pretexto já batido da parenta internada!

- Alix, você está acabando com a minha festa - diz Sari.

- Fique fora disso, belle-mère! O caso é entre Eric e eu.

- E você pare de me chamar de belle-mère enquanto estiver fazendo acusações torpes ao meu filho! Percebo agora que não é seu pai quem está por trás desse plano de encampação... é você!

- Nada disso é verdade, Alix - diz Eric.

Mas Sari pode observar que a pequena cicatriz deixada pelo forceps na têmpora esquerda de Eric começou a se avermelhar, o que só acontece quando ele está zangado ou perturbado. Ou assustado.

- É verdade! Ela admitiu para mim! Eu revelei àquela putinha japonesa o que sabia, e ela admitiu!

- Não acredito em você - diz Eric, mas a cicatriz está agora inteiramente rubra, e suas pestanas estão contraídas.

- Diga isso ao juiz! - grita Alix.

- Alix, eu vou levá-la para casa - diz Eric.

- Não! - Ela se põe a soluçar. - Não quero ir para casa com você! Eu quero ir para casa com mamãe e papai! Mamãe... papai, por favor, levem-me para casa!

- Ora vamos, Botão-de-Ouro... - diz Harry Tillinghast, quando ele e Mildred amparam sua chorosa filha e a acompanham rumo à porta.

Depois que eles já se foram, Peeper volta-se para Sari e diz:

- Eu não me preocuparia muito com o que ela disse, mamãe. Essas questões de adultério são muito difíceis de provar. Quero dizer, a menos que ela conte com fotos ou algo assim. Alix não tem fotografias ou algo parecido, tem?

- Maldição - diz Eric, atirando seu guardanapo sobre a mesa. - Então você acredita nela também! - Empurra sua cadeira para trás e se levanta com rapidez. - Vou sair deste maldito ninho de ratos!

E ele também se vai.

Agora o número de convivas à mesa está reduzido a quatro: Sari e Joanna numa extremidade, e Peeper e Melissa na outra, com cadeiras vazias separando-os. A sobremesa não foi provada, nem o será, e a cozinheira atual de Sari jamais imaginará o que havia de ruim nela, nem jamais irá prepará-la de novo para alguém.

Thomas, que ficara à espera no vestíbulo justo atrás da porta da cozinha - aguardando um momento de paz para se acercar da mesa da anfitriã -, aparece agora para dizer:

- O café está servido na sala de estar, senhora.

- Obrigada, Thomas. - E quando ele se retira, ela diz para ninguém em particular: - Bem, um novo e pequeno embaraço foi acrescentado ao nosso problema.

Peeper fixa o olhar por um momento em sua sobremesa não tocada, e então murmura:

- Bem, já vou indo também. Amanhã cedo tenho uma partida de golfe.

- Claro - diz Sari. - Boa noite, Peeper. Dê-me um beijo.

Então, quando as três mulheres se encaminham para a sala de estar, e a promessa de um café e um último drinque - de que Sari de repente sente necessitar muito -, Joanna, procurando ainda salvar algo das ruínas daquela noitada, diz:

- Oh, ótimo. Uma reunião de senhoras! Agora podemos realmente tagarelar. - Mas no íntimo ela está claramente longe de aderir a essa sugestão, pois logo acrescenta: - Continuo a me perguntar: se Peter fosse vivo ainda, seria capaz de impedir tudo isso? Ele sempre foi um magnífico... pacificador. Nunca entenderei por que Peter fez o que fez.

Na sala onde estão entrando no momento, exatamente defronte da lareira de mármore, encontra-se a pequena mesa Regency de jogos, com um tampo que se move sobre um suporte giratório deixando à mostra toda espécie de pequenos compartimentos secretos onde se pode ocultar as fichas de alguém, tal como cartas escondidas na manga, um instrumento do início do século XIX para trapaceiros, charlatães e velhacos. E Sari poderia girar o tampo da mesa para revelar o lugar onde um retângulo de papel mata-borrão verde se encontra... E ali, também, de repente - não há nenhuma correlação - está a visão de Peter comendo seu rocambole no café da manhã acima das quadras de tênis em Saint Moritz, fazendo sua refeição entorpecida e automaticamente, uma espécie de ato passivo de comer, como se nada restasse de importante no mundo para fazer. Peter, tentando enfrentar as conseqüências de seus atos, mas incapaz de consegui-lo, e reagindo somente com um vazio emocional, a vida sendo sugada dele, um vácuo cujas profundezas Sari continuara tentando explorar, e preencher de algum modo, mas sempre - quase sempre - sem sucesso.

Peter, o pacificador! Bem, seria difícil, a menos que, com a paz, se assuma a derrota. O rei Creso, da Lídia, consultou o oráculo de Delfos, e a sacerdotisa lhe disse: "Você cruzará um rio, e uma grande nação será derrotada." E assim, quando os vizinhos persas estavam lhe causando problemas, Creso atravessou o rio na Pérsia, onde seus exércitos foram totalmente arrasados pelo inimigo. Quando ele retornou à presença do oráculo para pedir uma explicação, ouviu o seguinte: "Eu não disse qual a grande nação que seria derrotada quando você cruzasse o rio."

Na sala de estar, após uns goles de café, Joanna diz:

- Se você se aposentasse, poderia viajar, Sari. Poderia fazer um cruzeiro. Você costumava dizer que desejava ir à China. Pois poderia realizar tudo isso agora, as coisas que nunca fez porque Peter detestava viajar...

Sari não diz nada. Melissa nada diz. Thomas aparece para recolher o serviço de café, e para colocar um balde de gelo fresco no carrinho de bebidas. Melissa se serve de um drinque.

- Prepare um para mim também - diz Sari. - Uísque. Mais forte, de preferência.

- Haverá necessidade de algo mais esta noite, senhora? - pergunta Thomas.

- Não, creio que não.

- Oh, Thomas - diz Joanna, quando ele está prestes a deixar

a sala -, sabe como sou apegada a detalhes. Pode lembrar à cozinheira que eu gostaria que os ovos de meu café da manhã fossem cozidos exatamente durante três minutos e meio?

Thomas olha rapidamente para a sua patroa, e seus olhos se encontram e se prendem ligeiramente, e então eles olham - muito brevemente - para Melissa antes que o mordomo decida ser esse o momento de assentir ao pedido de Joanna e de se retirar.

Melissa recosta-se no pequeno sofá Império, as pernas cruzadas sob o vestido negro justo. Uma nesga de tornozelo fica à mostra. Com o copo na mão esquerda, ela pesca com a direita um cigarro na cigarreira de prata e o acende com um pequeno isqueiro cloisonné. Expelindo um fino fluxo de fumaça, ela diz:

- Tia Joanna. Ou devo chamá-la sra. Mary Brown? Ou deveria chamá-la mamãe?

Joanna ergue-se de um salto, gritando para Sari:

- Você rompeu sua promessa! Você rompeu seu juramento solene! Eu nunca deveria ter confiado em você!

- Eu não a rompi! - diz Sari. - Melissa, diga-lhe que eu não lhe contei isso!

- Ela não me contou - diz Melissa. - Eu descobri. Com a ajuda de um homem que se lembra de quando eu nasci, lá na Suíça. E, de acordo com as cláusulas do testamento, creio que isto significa que tenho direito a metade das ações de Lance... não apenas cinco por cento, mas sete e meio por cento mais, ou doze e meio por cento do total. "Quinze por cento das ditas ações da mencionada empresa serão divididos igualmente entre quaisquer de todos os descendentes vivos de minha supracitada irmã, Joanna", é o que reza o testamento. E assim, Joanna, você, Lance, Eric e Harry não controlam 55 por cento dos votos acionários certo? Você controla somente 47,5 por cento. O voto decisivo pertence a mim, certo? De que modo deverei votar, eu me pergunto. A favor de uma de vocês, duas putas? Naturalmente, terei que perguntar a mim mesma, como meu pai teria desejado que eu votasse?

As duas outras mulheres ficaram caladas.

 

Joanna ansiara pela sua estréia na sociedade. Era uma simples realidade. Para Sari, ela fingira fazer pouco daquilo tudo, simulara que carecia de importância, fizera de conta que estava simplesmente se deixando levar na onda para agradar a seus pais. Mas tinha desejado aquilo. Joanna ansiara pelo cotillion e o Baile dos Solteiros. Ela desejara chamar a atenção, ter sua foto nos jornais, e desejara também as companhias e o preenchimento dos carnês de baile e as festas - as danças, os almoços, os chás e os bailes que se desenrolariam por toda aquela temporada de 1926-1927. Ela ansiara por cada parcela daquilo tudo.

Por volta da primavera de 1926, ela encomendara - da Tiffanys em Nova York! - o papel de carta especial, gravado, em branco sobre azul, que se destinava a responder a convites e escrever bilhetes de agradecimentos. Em julho, ela recebera seu calendário especial de compromissos, encadernado em couro azul, com as palavras gravadas em juro na capa: "Minha Temporada - Joanna LeBaron." A agenda de compromissos viera da Tiffanys também. ("Muito mais chique do que alguma coisa da Shreves, você não acha?", tinha ela dito a Sari. "Todos estão usando a da Shreves.") Na ocasião em que os convites gravados começassem a circular, ela estaria preparada para iniciar as anotações nas páginas daquele diário com a sua letra arredondada, precisa, de aluna de pensionato. Ela estaria preparada para escrever "aceito" ou "sinto muito" no canto de cada convite, e preparada, sem dúvida, para prender todos os convites - aceitos ou não - em volta da moldura do espelho sobre a sua penteadeira na casa da Califórnia Street, sendo cada um dos convites uma pequenina conquista particular e uma pequena batalha vencida. Mas, naturalmente, na ocasião em que os convites normalmente começaram a chegar, Joanna estava envolvida de modo diferente em outra parte do mundo.

Recordando aquela época, é fácil ver que ela mal podia conter sua emoção a respeito de tudo aquilo, ainda que fingisse depreciá-lo, dizendo coisas como: "Naturalmente, isso tudo é um monte de tolices, não? É tudo uma baboseira. Só estou fazendo isso porque mamãe assim deseja - ela é completamente esnobe." Mas Joanna tinha desejado aquilo voluntariamente, o guarda-roupa cheio de vestidos de festa, conjuntos e trajes de noite que toda debutante tinha que ter, e as flores chegadas de Podesta & Baldocchi, e os moços das reuniões sociais de solteiros dizendo: "Posso dançar com você?" Ainda que, no fim, por causa do que acontecera, não lhe fosse possível ter tudo, tinha desejado desfrutar o máximo de todo o ritual... se não de todo, pelo menos da metade.

Ela perdera o Baile dos Solteiros, e também o cotillion, os dois eventos para os quais seus vestidos mais importantes tinham sido destinados, os bailes que sua mãe tinha planejado durante anos, mourejando em todos os comitês legais, providenciando para que seu marido se dedicasse às causas respeitáveis - todo aquele dinheiro e empenho tinha sido gasto em vão. Mas ela extraíra o máximo do que restara: as festas menores na cidade e na Península, durante a primavera e o início do verão. E, em junho, seus pais tinham organizado um grande jantar dançante para ela no Burlingame Country Club, sob um grande toldo de listras azuis e brancas.

Numa retrospectiva, isso tudo se torna muito irônico porquanto agora que Joanna LeBaron é o que é, a Megera da Madison Avenue, a Medéia da terra da Mídia, certamente não admitirá ter sido uma debutante. Se ela começasse a falar sobre a sua estréia na sociedade com algum dos homens ou mulheres influentes com quem lida agora, pensa Sari às vezes, seria alvo de riso no exterior do Graybar Building. São as blagues que a vida arma para uma pessoa. "Por que você não é sincera comigo?", deveria lhe ter dito Sari. "Por que não diz que tudo que você desejava era o seu período de debutante?" Oh, mas Joanna tinha ansiado ainda mais que isso.

Agora é meia-noite, e Sari LeBaron está sozinha. Joanna retirara-se muito zangada para dormir, dizendo que iria tomar o primeiro avião de volta para Nova York pela manhã, negando-se a crer que não fora Sari quem revelara a Melissa o seu segredo ("Eu sabia que nunca deveria ter confiado em você!"). E, sem dizer mais nada, Melissa descera para o seu apartamento. Para atender, talvez, a Littlefield.

Já passa da meia-noite, e Sari permanece sozinha em sua casa silenciosa, tentando pôr em ordem seus pensamentos tumultuados. O que acontecerá agora?, pergunta-se ela. É inútil. Ela não consegue pensar. Poderia, se assim resolvesse, chamar Thomas para que este lhe fizesse companhia - para consolo e, talvez, conselhos. Ele sairia da cama e desceria para estar com ela. Tudo de que Sari necessita é apertar um botão, tocar uma sineta, e ele aparecerá. Mas ela não fará isso. Não seria justo para com ele. Thomas e todos os outros tinham trabalhado muito nessa noite... e para isso.

E isso não era problema de Thomas, era? Era seu. Haja o que houver, pensa ela, será meu último hurra.

Fazendo girar sua cadeira de rodas, ela atravessa os aposentos vazios de sua casa. Ah, está tudo tão bonito, flores por toda a parte, e ainda tão frescas! Na sala de estar, as cortinas de cetim estão cerradas, e ali está todo o seu mobiliário francês e o tapete de intrincado petit-point, feito a mão por um visconde irlandês, e aquela dama ali no retrato sobre o sofá de cor creme era uma cortesã de um certo rei francês, e fora pintado por Jean-Marc Nattier, muito valioso, lhe tinham dito. As bainhas dos cortinados de cetim varrem o piso, e entre aquelas duas janelas está uma escrivaninha Luís XIV, muito rara, e com rendilhado dourado, e contra a parede oposta está o biombo coromandel do século XVII, quatorze painéis dobrados. O piano de pau-rosa no canto sul do aposento é de Bõsendorfer, e possui 92 teclas em vez das costumeiras oitenta e oito, um piano fabricado para o palco de concertos austríaco. Ali, sobre a cômoda Luís XVI, está a coleção de peças de jade: caixas, animais e bibelôs.

Na sala de jantar, as almofadas de parede de pau-rosa servem como uma tela de fundo para a mesa Biedermeier de mogno que, estendida, poderá ser ocupada por 32 pessoas, e as cadeiras Biedermeier acham-se cobertas por um tecido mohair cor de ameixa. Sobre o consolo da lareira da sala de jantar está um par de vasos amarelos da dinastia Ming, de preço incalculável. E então na galeria de retratos:

Melissa... As rodas da cadeira de Sari movem-se silenciosamente pelo parquete encerado. Haveres - os castiçais de Sèvres, as tapeçarias de Flandres, o semidomo de vidro chumbado acima da caixa do elevador, o par de cômodas do Segundo Império -, somente bens o dinheiro compra, e logo as posses nos possuirão; não se pode renunciar a elas. Os LeBarons a tinham comprado, e agora ela os possuía, ou pelo menos parte deles. E isso era, naturalmente, uma outra parte do segredo de Joanna. Ela desejava possuir coisas, e possuir pessoas também. Olhando a seu redor, Sari pensa: Oh, a grandeza de meus haveres! Oh, a grandeza desta casa! E como posso ser infeliz no meio de todas estas coisas, de todo este luxo, quando tudo que tenho que fazer é apertar um botão, tocar uma sineta, e o que desejo aparecerá como se por um milagre? Gabe Pollack, seu padrinho de casamento, lhe dissera então: "Isto quase que parece um milagre. Mas estamos na América, onde tudo é possível. Somente na América isto poderia acontecer."

"MacDonald traz damas da noite para dentro de casa." Isto é Joanna quem diz. "Às vezes, duas de uma vez! Uma delas morreu aqui, e ele ficou em grandes apuros para removê-la. Peter descobriu isso, e eis por que MacDonald nos permite manter nossa adega secreta..." Seria isso verdade? Ou fora tudo uma fantasia? Quaisquer dessas coisas terão acontecido realmente?

Quero ser feliz! Era a canção executada no fonógrafo na adega de vinhos dos LeBarons, e a mesma canção que Peter tocara em sua gaita de boca no convés do Baroness C. Fora a canção que ela amiúde o ouvia assobiar quando eles estavam juntos, mas aquelas não eram as palavras que ela desejara ouvi-lo dizer. Desejara que ele dissesse: "Eu a amo, Sari. Eu a amo com toda a minha alma, meu espírito, meu coração e meu corpo. Eu quero ir à China com você, e caminhar ao longo da Grande Muralha com você. Desejo passar minha vida com você, estar sempre a seu lado, fazê-la feliz. Eu desejo amá-la sempre, compartilhar de tudo com você. Eu a amo tanto que desejo anunciar isso do alto dos telhados, e dizer ao mundo o quanto eu a quero. Eu quero me casar com você... você se casará comigo?"

Mas ele não dissera essas coisas, nem mesmo antes, sequer depois de terem consumado o ato amoroso. Ele permanecera espirituoso e jovial - oh, algumas vezes melancólico, é claro, quando se queixava de quão severo seu pai estava agindo a seu respeito -, mas ao mesmo tempo desligado, evasivo e de algum modo inatingível. "Esta é Sari Latham", diria ele, ao apresentá-la a um de seus amigos. "A amiga da minha irmã Joanna. Isso era tudo que ela significava para ele? A amiga de sua irmã?

Oh, às vezes ele lhe lançava uma piscadela maliciosa, particular, dando a entender que ele e ela partilhavam de um pequeno segredo de Joanna, mas era uma piscadela o bastante?

- O que você quer fazer da sua vida, Peter? - perguntara-lhe

ela.

- Oh, eu quero ser feliz, é claro. Desejo uma boa vida, junto com um bom emprego... certamente no ramo de negócios da família. Tenho, primeiro, que concluir o curso universitário, naturalmente...

E o amor? Ele não falara em amor.

Uma noite, quando Joanna estava ausente, em uma de suas festas de debutante - festas de "guris", ela as chamava assim -, ele a levara de carro até Half Moon Bay, e tinham escalado as dunas e descido à praia. E Peter desdobrara uma manta para eles, e tocara seus brilhantes acordes em sua gaita. Eles tinham tido a praia só para si, e Sari começara a lhe fazer cócegas novamente, e ele rira, contorcendo-se sob os dedos insistentes dela, e logo tinham se descoberto fazendo amor de novo, sob as estrelas, com as ondas rebentando atrás deles. Mas esse era o modo como aquilo parecia sempre acontecer. O amor era algo que eles se pegavam fazendo. Era um amor não programado, um amor sem encontros secretos ansiosos em lugares cuidadosamente planejados. Era algo que ele apreciava fazer, assim parecia, quando o tempo e as circunstâncias eram adequadas, mas também desfrutava de velejar, tocar sua gaita e guiar velozmente seu carro vermelho. Todos os homens fazem amor dessa maneira descompromissada? Sari na realidade não sabe a resposta. Todos os amantes seriam assim? Ela não tinha nenhum para poder comparar com aquele homem ocioso, bonito, viril e descompromissado que ela encontrara.

- Eu te amo, Peter - sussurrara-lhe ela quando o ato amoroso terminara. - Demais.

- Você é muito doce - dissera ele.

- Nós nos casaremos, não pensa assim?

- Casar? Hum. Bem, quem sabe? Talvez. Mas primeiro tenho que concluir o curso. E meu pai chegou mesmo a ameaçar não me deixar retornar à universidade se eu não arrumar um emprego neste verão.

- Você está procurando um emprego?

- Bem, não posso simplesmente pegar qualquer um, certo? Eu não posso pegar um emprego de garagista. Pode imaginar isso? Peter LeBaron enchendo um tanque de gasolina? Minha vida anda realmente um tanto confusa ultimamente...

E eles passaram de novo para um outro assunto.

E então, certo dia, numa outra praia - a de Stinson desta vez -, eles três tinham se dado as mãos, corrido pela praia e mergulhado. Enquanto seus pés em movimento chapinhavam na rebentação, Sari pensara: Este é o momento. Ele soltará a mão de Joanna agora, me tomará nos braços e gritará: "Jo, Sari e eu nos amamos! Estou apaixonado por Sari! Nós queremos que você seja a primeira a saber!"

Mas isso não acontecera. E suas mãos permaneceram unidas quando eles três mergulharam juntos no mar. E Peter permanecera como aquele vulto brilhante, como um borrão dourado lá no topo do mastro, seu perfil indefinido contra o sol por trás dele. E Sari era ainda a mulher de vestes diáfanas no topo do Monumento a Dewey, ereta, pronta para voar, o queixo erguido, na ponta dos pés, esperando ser beijada.

- É a sua amiga Joanna quem lhe interessa tanto assim na família LeBaron? - perguntara-lhe Gabe certa vez. - Ou é o irmão dela? Eu ouvi dizer que ele é bem-apessoado.

- Gabe! Jo é minha melhor amiga - mentira ela para Gabe.

- Você está andando com uma companhia muito curiosa. Mas isto é a América. Na América, não há quaisquer barreiras sociais entre o rico e o pobre...

No início de julho daquele ano - 1926 -, Sari e Joanna encontraram-se no seu lugar favorito, o Japanese Tea Garden, no Golden Gate Park, e Joanna fora logo dizendo:

- Tenho uma coisa muito séria para lhe contar, Sari. - E pela expressão assumida pela amiga, Sari soube de imediato que era algo realmente sério.

Por um momento angustiante ela chegou a pensar que, de algum modo, Joanna soubera de seu caso com Peter. Mas como poderia ter sabido? A menos que ele...

- O que é?

- Eu... eu me descuidei e fiquei grávida - disse Joanna com um risinho forçado.

- Grávida?

- Sim. Engravidei.

- Oh, meu Deus! - sussurrara Sari. - Quem?...

- Enceinte.

- Quantas regras você perdeu?

- Quatro. Como a desta semana.

- Oh, meu Deus, Jo!

- Isto praticamente faz de meu ano de debutante um fiasco, não? Não que eu ligue pra isso, é claro. Só que... - Mas havia lágrimas em seus olhos então, e o leve som de um soluço saiu involuntariamente de sua garganta. - Oh, Sari, o que é que eu vou fazer?

- Quem é o rapaz, Jo?

- Eu não posso lhe dizer. Não direi.

- Pensei que nunca haveria quaisquer segredos entre nós - dissera então Sari, ciente, mesmo ao dizê-lo, de que já quebrara também sua promessa.

- Isto é diferente. Eu não posso lhe dizer.

- Foi o tal Flood?

- Não! Já lhe falei que não direi quem ele é!

- Por que não? Ele terá que se casar com você.

- Não. Ele não o fará. Não pode. Aí está o meu problema. Terei que resolver o caso de outro modo.

- Você quer dizer que ele já é casado?

- Não! Pare de me fazer essas perguntas! Eu lhe disse que não posso casar com ele, não quero me unir a ele, não irei casar com ele.

- Bem, então me diga se ele sabe.

- Sim. Não. Eu não sei. Talvez desconfie, mas isso não importa, porque não posso me casar com ele.

- Mas ele terá que se casar com você, se...

- Pare de falar sobre casamento! Eu lhe disse que não posso me casar com ele!

- Se você lhe contou, então o que ele sugeriu que se fizesse?

- Nada.

- Nada?

- Não, porque eu não lhe contei, não exatamente. Mas, como eu disse, talvez ele desconfie.

- Então deve dizer a ele, perguntar-lhe o que...

- Eu não posso dizer a ele!

- Por que não! .

- Porque não posso, só isso!

- Então o que... o que irá fazer, Jo?

- Eu não sei! - e soluçou. Apertou as mãos e as comprimiu com força contra os olhos. - Oh, Sari, me ajude, por favor... Eu não sei... eu tentei... não pensei que umas poucas vezes... não pensei... E depois, julguei que, afinal, estava tomando cuidado, com as duchas e tudo mais... Dizem para se usar duchas com vinagre, pois é o que supõe que se faça, não?

Sari nunca ouvira falar nisso e sentiu uma onda de medo acometê-la devido à sua própria situação. Vinagre?

- Oh, Sari. Diga-me apenas que me ajudará. Por favor, diga que me ajudará. Estou tão assustada, Sari!

Sari passou o braço em volta dos ombros trêmulos de sua amiga.

- Claro que a ajudarei, Jo. De qualquer modo que eu possa. Mas como...?

- Meu ano de estréia na sociedade. Esperava-se que se iniciasse logo após o Dia do Trabalho. Isto é uma piada agora, hem? Dia do Trabalho!

- Diga-me o seguinte. Você já contou para os seus pais?

- Sim.

- E o que eles disseram?

- Ficaram feito loucos! Querem me mandar para longe, e que eu desista do bebê. Mas eu não farei isso! Oh, Sari, diga apenas que irá me ajudar. Nós fizemos um pacto solene... um pacto de sangue! Deixe-me simplesmente ouvi-la dizer que me ajudará, Sari!

- Eu já disse que o farei, Jo - retrucou Sari calmamente. - Eu a ajudarei de qualquer modo possível. Agora me conte tudo que os seus pais disseram.

Joanna cometera o erro de falar primeiro com a sua mãe, e esta de imediato ficara histérica. Monsenhor Quinn fora chamado à residência dos LeBarons e Julius fora avisado em seu escritório.

- Foi o Jimmy Flood? - perguntou Julius. - Se foi ele, ligarei neste instante para sua casa, falarei com seu pai e...

- Oh, não! - exclamara Constance LeBaron, soluçante. - Os Floods, não... pai, por favor! Não seremos mais capazes de pôr os pés na rua nesta cidade. Oh, por favor, não faça isso!

- Não foi Jimmy Flood! - gritara Joanna.

- A idéia de um aborto pode ter passado pela sua mente - dissera então o monsenhor Quinn. - Mas não deve levá-la adiante. Isto é contra a lei escrita de Deus e da Santa Igreja, e está fora de questão.

- Eu não quero abortar! Monsenhor Quinn persignou-se e repetiu:

- Isso está fora de cogitação. Não pronuncie sequer essa palavra, Joanna.

- Diga-nos quem é o pai! - exigiu Julius.

- Não direi!

- Por favor, diga-nos, Joanna - disse monsenhor Quinn. - É o único meio pelo qual qualquer um de nós poderá ajudá-la. Queremos ajudar.

- Não.

- Ela deve se afastar daqui - dissera então Constance LeBaron. - Deve viajar tão logo quanto possível, e para o mais longe possível. Ela terá o bebê e providenciaremos para que seja adotado. As Irmãs do Bom Pastor poderão nos ajudar, Quinn?

- Eu não deixarei que meu bebê seja adotado! - disse Joanna.

- Você fará o que nós lhe dissermos, jovem senhora! - bradara seu pai então. - Você é menor, e nós somos seus pais, assim fará o que nós lhe dissermos!

- Não farei!

- Você fará - dissera seu pai, erguendo o braço como se prestes a bater-lhe.

- E a sua temporada de debutante - soluçara Constance LeBaron.

- Se vocês tentarem me forçar a renunciar ao meu bebê, percorrerei a cidade inteira... agora mesmo, e direi a todo mundo que estou grávida de um filho ilegítimo! Como vocês botarão o pé na rua depois disso? Eu lhes direi que estou grávida por obra da Imaculada Conceição!

Monsenhor Quinn persignou-se novamente.

- Você não nos faria isso! - exclamara Constance.

- Não faria? Espere só e verá!

- Oh, pai, pai - soluçara então Constance LeBaron, e não ficara claro se ela estava falando com seu marido (a quem chamava assim), ao Pai Celestial, ou ao padre Quinn, que fora sagrado monsenhor recentemente. - O que vamos fazer?

- Antes de tudo, oremos - dissera então monsenhor Quinn, erguendo a mão para ofertar a benção. - In nominepatri...

- Creio que os pais de Joanna lhe deram o melhor conselho viável - dissera Gabe Pollack quando Sari lhe contara o caso. - Sua crença proíbe o aborto, e, seja como for, abortos são muito perigosos... particularmente, ao que sei, nessa última fase da gravidez. Creio que você deveria tentar convencê-la a fazer o que seus pais sugerem.

- Mas ela diz que não renunciará ao bebê. Que ele irá ser um LeBaron, e que será criado como um LeBaron.

- O que ela deseja ser... úma mãezinha ou uma debutante? Ela não pode conseguir obter duas vantagens a um só tempo.

- Joanna é muito teimosa - retrucara Sari.

- Acho que seus pais têm razão - dissera Sari quando elas se encontraram no dia seguinte. - Creio que você devia viajar, ter o bebê e então encaminhá-lo para adoção...

- Não - retrucara Joanna, sacudindo a cabeça. - Eu não farei isso. Já tomei uma decisão.

- Eu simplesmente não vejo qualquer outra solução, Jo.

- Mas eu vejo. Tenho um outro plano.

- Qual é ele?

- Concordarei em parte com o plano deles. Ficarei ausente por algum tempo. E você irá comigo.

- eu?

- Sim. Você e Peter.

- Eu... e Peter...

- Sim. Você podia se casar com Peter. Por que não? Ele está louco por você, posso garantir. Então vocês partiriam para a sua lua-de-mel, em algum lugar distante... na Europa, talvez. Uma semana ou um pouco mais tarde, eu me reuniria a vocês, onde quer que fosse, e lá teria meu bebê. Ele é esperado para dezembro. Assim que ele nascesse, eu poderia voltar para casa. Perderia a primeira parte da temporada de debutante, mas estaria aqui de volta para a segunda parte. Você e Peter poderiam ficar na Europa por mais alguns meses... o tempo suficiente para dar a impressão de que o bebê poderia ser seu e de Peter, concebido e nascido durante a sua longa lua-de-mel.

- É uma idéia louca, Jo!

- É mesmo? Não creio. Você criaria meu bebê como se fosse seu. Ele estaria ainda na família, sendo criado pelas duas pessoas que mais amo, você e Peter. Eu não gostaria de ceder meu filho para estranhos, o que, seja como for, não farei.

- Casar-me com Peter...

- Ele está louquinho por você. Posso jurar.

- Oh, não, Jo.

- Você prometeu me ajudar. Mudou de idéia?

- Mas... alguém falou com Peter sobre isso?

- Sim, eu falei.

- E o que ele diz?

- Ele concorda. Peter fará tudo para assegurar a minha felicidade.

- Bem - concordou Sari, quase com zanga -, se Peter quer casar comigo, poderia ao menos me pedir em casamento!

- Ele fará isso. Tão logo tenha certeza de que você aceitará.

- E quanto aos seus pais?

- Eles concordarão. Eu os convencerei. Concordarão, se eu lhes disser que você aceitou.

- Deixe-me pensar um pouco - sussurrara então Sari. - Deixe-me pensar...

Joanna estendera a mão, cobrindo a da sua amiga e dizendo:

- Entenda, eu desejo manter meu bebê perto de mim, mesmo que ele nunca saiba quem eu sou. É tão estranho assim, Sari, querer conservar esse novo ser que está crescendo dentro de meu ventre perto de mim, sempre, embora ele nunca venha a saber que sou a sua mãe? Mas eu saberei, e você e Peter saberão... eis tudo. Esse será o nosso segredo, Sari, o nosso maravilhoso pequeno segredo. Um bebezinho que pertencerá a nós três. Ninguém mais saberá.

- Mas os seus pais...

- Eles saberão, é claro, mas nunca o revelarão a ninguém.

- Não, suponho que não o farão.

- Ajude-me, Sari. Você me prometeu. Ajude-me agora.

- Deixe-me pensar.

- Sim, mas não há muito tempo a perder. Por favor.

Bem, diabos me levem se entendi isso - disse Gabe quando Sari lhe explicou a sugestão feita por Joanna. - Ela quer conseguir duas vantagens ao mesmo tempo! Essa jovem é mais esperta do que eu supunha. Ela consegue manter o bebê, mais ou menos, e ao mesmo tempo faz a sua estréia na sociedade!

- Mas o que pensa sobre a proposta em si, Gabe?

- É uma situação típica de compensação, não? Você lhe faz esse favor e, em troca, consegue se casar com um dos jovens mais ricos e atraentes de São Francisco. É quase como um contrato de negócios, hem? Mas, afinal de contas, esta é a América, a terra dos negócios.

- Mas o que você acha, Gabe?

- Creio que... - começou ele. Era característico nele, Sari pudera observar, tentar intelectualizar uma situação, procurar encará-la de outro ângulo. - Penso que ela está pedindo muito a você. Está lhe pedindo para ser sua substituta em uma parte de sua vida. Ela lhe pede para você pagar por um de seus erros. Em troca, oferece seu irmão como uma recompensa. Mas porque há dinheiro em jogo, creio que você sempre pensará que tem com ela uma grande dívida. Você o ama, Sari?

Sari hesitou então, sem jeito de confessar a Gabe a profundidade de seus sentimentos. Seu caso amoroso parecia ainda muito unilateral para ser abordado às claras com Gabe.

- Eu o considero muito... atraente - acabou dizendo ela.

- Isso é tudo?

- Ele é muito bacana.

- E rico.

- Sim.

- Você crê que ele a ama?

- Não sei. Sei que gosta de mim. Mas o amor é importante, Gabe? É importante estar apaixonada?

Gabe meneou a cabeça, retrucando:

- Não posso responder isso por você. Mas há um ditado que afirma que quem se casa por dinheiro tem uma vida difícil. Assim espero que haja mais do que dinheiro envolvido nisso.

- Eu acho que há. Finalmente, Gabe disse:

- Não posso aconselhá-la a respeito disso, Sari. Não posso lhe dizer o que deve ou não deve fazer. Creio que se trata de algo que vocês terão que examinar, você e Peter LeBaron.

- Sim - disse ela, e então: - Naturalmente, eu costumava pensar que algum dia me casaria com você.

- Eu conversei com o padre Quinn - disse Joanna a seus pais -, e ele acha ser essa uma excelente solução.

- Quinn - disse Julius LeBaron - sempre se põe a favor de qualquer solução que seja rápida e cômoda, e que mantenha limpas as mãos da Igreja.

- Eu contava com algo muito melhor para Peter - disse então Constance LeBaron. - Há tantas moças atraentes... de boa família, em São Francisco. Peter poderia ter feito sua escolha.

- Eu gosto de Sari - retrucou Julius. - E pode haver de fato uma vantagem por ela não pertencer ao nosso grupo social.

- E qual seria essa vantagem, pode me explicar?

- Pense nisso um pouco, Constance. Sari pode se achar numa posição social inferior, como dizem. Quando ela e Peter voltarem a São Francisco com o bebê, e as pessoas começarem a contar nos dedos, como costumam fazer... bem, de certo modo é mais compreensível, mais aceitável um moço de boa família ter relações íntimas com uma mulher de costumes livres do que uma...

Joanna sorriu, completando:

- Do que uma moça de família ser uma mulher de costumes livres. Eu estava imaginando quanto tempo levaria para que alguém fizesse esse comentário.

Julius LeBaron enrubesceu, retrucando:

- Bem, você sabe como as pessoas falam.

- Diga o que eu devo fazer, Peter - suplicara-lhe ela então. Estavam no escritório de Julius LeBaron na casa da Califórnia Street, e essa reunião fora combinada por eles, para tomarem sua decisão final.

Peter não estava olhando, mas sim fixando os olhos lastimosamente no espaço vazio com uma expressão de profundo abatimento. Por algum motivo, intuiu Sari, ele parecia mais arrasado pelo que estava acontecendo do que os outros.

- Fazer? - disse ele por fim numa voz fraca. - Fazer? Nós temos que fazer o que torne minha irmã feliz. Eis tudo.

- Você me ama, Peter?

- Se amo você?

- Sim. O simples fato de ter se deitado comigo não quer dizer que me ame. Eu sei disso.

- Nós temos que ajudar Jo. Como tudo isso foi acontecer, Sari? Há uma semana, eu pensava ser o homem mais feliz deste mundo. Mas agora... agora, simplesmente não sei.

- Bem, estamos aqui para decidir se devemos ou não levar adiante o que ela propôs.

- Eu tenho que ajudá-la. Tenho que cumprir meu dever. Ela é

minha irmã... - Havia lágrimas em seus olhos, e ele fechara a mão direita e pressionara com força os nós dos dedos contra seus dentes.

- Peter - disse Sari e, então, quase em desespero, inclinando-se para ele, prosseguiu: - Eu te amo, Peter. Eu te amo muito. Você é o único homem com quem já me deitei e fiz amor, e isto significa muito, não? Eu o amo bastante por nós dois, Peter, tenho certeza disso, e também sei que posso fazê-lo feliz. Farei com que você me ame, Peter... Espere e verá. Vai deixar que eu tente? Estou disposta a tentar, Peter, se você também está, e se me deixar. Eu tentarei. Tentarei com afinco. Vai deixar?

- Sim.

- Bem, então me diga o que quer que eu faça?

- Case-se comigo - disse ele por fim. E então: - Em nome da minha irmã.

- E para a nossa própria felicidade também! - gritara ela. - Nós dois temos que ser felizes também, não temos? Não merecemos igualmente ser felizes? Não merecemos pelo menos uma oportunidade... uma chance de tentar?

- Sim. Eu tentarei.

E assim, na semana seguinte, uma nota aparecia nas colunas sociais do San Francisco Chronicle:

peter powell lebaron desposa a ex-senhorita latham

Numa pequena cerimônia assistida apenas pelos familiares e amigos íntimos, o sr. Peter Powell LeBaron casou-se com a srta. Assaria Latham, de Terre Haute, Indiana, na capela da catedral de S. Pedro Mártir, em São Francisco.

O noivo, há muito considerado um dos melhores partidos da cidade, é filho do sr. e sra. LeBaron da Califórnia Street, 1.023. O sr. Julius LeBaron é o presidente da LeBaron Vinners, Inc., produtores de vinho nos vales de Napa, Colusa e Sonoma até a decretação da Lei Seca. Os pais da noiva são falecidos. Ela se acha sob a tutela legal do sr. Gabriel Pollack de São Francisco. A noiva usava um vestido usado há gerações pelos LeBarons, branco com rendas valencianas, e segurava uma Bíblia engrinaldada com orquídeas brancas. A srta. Joanna LeBaron, a irmã do noivo, foi a sua única dama de honra.

Após uma pequena recepção na casa dos LeBarons, o noivo e a noiva partiram para uma longa lua-de-mel na Europa. No fim deste mês, a srta. Joanna LeBaron irá reunir-se ao jovem casal. Ela empreenderá uma viagem de vários meses estudando a história e a arte de países europeus.

Agora já é uma hora da madrugada na Bolo de Noiva que foi construída para o jovem casal enquanto Sari, Peter e Joanna aguardavam o nascimento de Melissa em Saint Moritz, e Sari ainda não foi se deitar. Ela deseja, desesperadamente, falar com Melissa, mas não pode. A presença de Littlefield no apartamento de Melissa impede isso. Talvez, ainda agora, os dois estejam fazendo amor... por que não? Sari não teria nada a dizer contra isso. E assim, ela escreve um bilhete para Melissa:

Caríssima Melissa,

Sei que você está pensando que há muitas explicações a serem feitas, e eu estou preparada para lhe contar tudo que você precisa saber. Telefone-me, por favor, assim que receber este bilhete.

Com muito amor, A.L.LeB.

Sari fará com que Thomas coloque o bilhete por baixo da porta dos aposentos de Melissa, no andar debaixo, de manhã.

Seguramente, uma vez que as circunstâncias especiais que cercaram seu nascimento lhe sejam explicadas, Melissa se mostrará razoável, porque agora, mais do que nunca, Sari necessita de Melissa do seu lado. "Você será sensata, não, Melissa?", diz ela no momento para o retrato de Melissa. "Você votará a favor da mulher que se sacrificou tanto para educá-la, e não a favor da mãe que renunciou a você... certo?" Mas o retrato enigmaticamente sorridente não apresenta nenhuma resposta. "Você me ajudará a vencer esta luta, não é mesmo, Melissa?"

Movendo-se em sua cadeira de rodas, Sari diz a si mesma: Eu vou vencer. Vencerei, murmura, porque fui forte o bastante para fazer um homem me amar, um homem que estava receoso de me querer, forte o bastante para fazer dele o amante que não era. Eu ganharei porque tenho a energia, porque possuo a fé, porque tenho a vontade.

Observando-a, a casa parece suspirar.

Somos a sua casa, diz a mansão. Sem você, Sari, não existiríamos. Fomos o seu presente de núpcias.

- Não que eu a tivesse pedido, ou necessitado de você! - diz Sari. Mas sem nós, Sari, você não existiria - diz a casa.

 

BARONET VINEYARDS, INC. MONTgOMERY STREET, 934 SÃO FRANCISCO

NOTICIA SOBRE REUNIÃO ESPECIAL DE ACIONISTAS

Uma reunião especial de acionistas da Baronet Vineyards, Inc., será realizada na suíte 617-619 do Hotel Fairmont, São Francisco, Califórnia, na segunda-feira, 30 de abril de 1984, às nove horas da manhã, para os seguintes objetivos:

  1. Analisar a oferta de compra da Baronet feita por Kern-McKittrick, Inc., na base de 13,25 (treze e vinte e cinco) ações da Kern-McKittrick por cada uma (1) ação da Baronet Vineyards.
  2. Efetuar a votação de cada acionista referente à oferta supracitada.
  3. Levar a cabo quaisquer outras transações que possam ser aventadas antes da reunião.

Acionistas registrados durante o fechamento dos negócios a 4 de março de 1984 estão autorizados a participar e votar nessa reunião ou, se esta for adiada, na seguinte.

15 de março de 1984

Por Determinação do Conselho de Diretores,

William C. Whitney Secretário

É importante que suas ações estejam representadas na reunião. Mesmo que pretenda comparecer, ASSINE E DEVOL VA PRONTAMENTE, POR FA VOR, SUA PROCURAÇÃO.

- Bem, as castanhas estão no fogo! - diz Sari a Gabe Pollack. - Aí está! Vamos nós!

Seu tom é quase jubiloso, e Gabe sabe que agora que a luta está realmente à vista, com data, local e hora para pôr as cartas na mesa, a mente de Sari foi reativada. Tudo que fora feito até então não passara de poeira nos lábios. Mas agora que os lutadores se acham realmente no ringue, já trocaram o superficial aperto de mãos enluvadas, e se acham em seus cantos para iniciar o combate, Sari está em seu elemento.

- Tome mais café - diz ela a Gabe. É segunda-feira pela manhã, e eles estão na sala de estar de Sari, tomando café e desfrutando de um prato de rocamboles, como nos velhos tempos. - Ainda que perca, Gabe, e posso perder, perderei lutando. Há um espírito de luta da antiga jovem em mim, Polly, e disponho de uma ou duas peças de munição pesada que não usei ainda. Resta uma luta a travar, e mesmo que eu não vença, haverá baixas, espere só e verá. E não ocorrerão no nosso lado.

- Qual é a sua arma secreta? - pergunta Gabe com um leve sorriso.

- Não vem ao caso! - diz ela com um piscar de olhos. - Se dissermos qual é a nossa arma secreta, ela deixa de ser um segredo, mas eu disponho de uma, e que será uma verdadeira dispersadora de multidões, que converterá essa pequena reunião deles numa debandada! Advogados irão recorrer a seus arquivos... mas não interessa. Seja o que for que ocorra, isso será meu último hurra.

- Bem, eu lhe desejo sorte.

- Não. Não me deseje sorte. Eu não quero sorte. Eu quero o sucesso. Deseje-me sucesso, se assim quer... sucesso com o meu último hurra!

Gabe ergue sua xícara de café e diz:

- Ao sucesso então.

- E agora, como coroamento de tudo isso, dê uma olhada nesse novo desdobramento do caso, Polly - diz Sari, estendendo-Ihe um outro documento chegado naquela manhã pelo correio. Gabe pega o papel e lê:

Escritório de Advocacia BARTLESS, MATHER, BROOKS e KLINE Embarcadero Center 2

Assaria L. LeBaron, Esq. Washington Street, 2.040 S. Francisco, Califórnia 94.109

Ref.: Bens de Peter Powell LeBaron, Falecido

Cara sra. LeBaron:

Esta firma foi contratada como conselheira por sua sobrinha, srta Melissa LeBaron, numa reivindicação que ela está fazendo quanto aos bens de raiz de seu falecido esposo, Peter Powell LeBaron, baseada na recente revelação feita pela nossa cliente de que ela é filha natural da irmã do falecido sr. LeBaron, a sra. Joanna LeBaron da cidade de Nova York.

Como tenho certeza de que a senhora está ciente, de acordo com as cláusulas do testamento de seu falecido marido, nossa cliente herdou especificamente cinco por cento (5%) de todas as importantes ações da Baronet Vineyards, e uma percentagem adicional de quinze por cento (15%) destinada a ser dividida igualmente entre todos os descendentes vivos de Joanna LeBaron. Daí, faz parte da reivindicação da nossa cliente que ela está perfeitamente autorizada a receber sete e meio por cento extras (7,5%) das ditas ações da Baronet na época da morte do sr. Peter LeBaron.

Além disso, fará parte da alegação que a nossa cliente está habilitada a receber todos e quaisquer dividendos pagos sobre os referidos sete e meio por cento das ações e que até o presente têm sido pagos ilegitimamente ao seu meio-irmão, sr. Lance LeBaron de Peapack, Nova Jersey. A esse respeito, seria útil contarmos da parte de seu escritório com um registro contábil completo dos dividendos pagos, quer em moeda sonante ou ações, aos seus acionistas registrados desde 10 de outubro de 1955, data em que a nossa cliente se tornou uma beneficiária dos bens.

Permita-me acrescentar que a nossa cliente está plenamente cônscia de que esta é uma situação familiar de alguma delicadeza. Assim sendo, é do seu desejo, e nosso, que todas as ações e dividendos a ela devidos lhe sejam entregues prontamente in specie, a fim de que o litígio possa ser evitado. Nesse ínterim, até que esta questão seja resolvida, para a satisfação de nossa cliente, nós a temos aconselhado no sentido de evitar a comunicação direta com outros membros de sua família.

Atenciosamente, J. William Kline, Jr.

- Quando eu consegui ser uma "Esq."? - pergunta Sari.

- Isto é uma fórmula cerimoniosa que todos os advogados parecem usar atualmente - retruca Gabe, devolvendo-lhe a carta. - Bem, esta é uma notificação terrível, Sari.

- Não é mesmo? - diz Sari, os olhos cintilando. - Não é uma beleza? Que grande tola eu tenho sido, Gabe! Por que eu não pensei nisso antes?

- Não estou entendendo.

- Não percebe? Tenho andado tão ocupada pensando nos votos acionários que nem sequer pensei nos dividendos. Veja o que Melissa está pleiteando... metade dos dividendos de Lance durante os últimos trinta anos, metade de sua renda inteira! Percebe o quanto isso somaria, Gabe? Milhões! Milhões e milhões! Mais os juros! Se ela for esperta, exigirá os juros desses trinta anos para coroar tudo! Lance não pode pagar, é claro, ninguém poderia, e não há modo algum de que ela possa tentar obter essa espécie de dinheiro de mim. Ela terá que processar Lance, e se vencer a questão pode enviar Lance LeBaron direto para um albergue. Então Lance poderia certamente processar Joanna. Depois Joanna poderia tentar me processar, embora eu não saiba em que ela fundamentaria o caso. Revelação omitida? Ela é que omitiu essa revelação. Não percebe, Gabe? Essa empresa ficará tão obstruída por processos e demandas que não se poderá ver o céu devido às pilhas de documentos, e ninguém quererá ter contato conosco até que esse assunto seja solucionado, e isso pode durar anos! Oh, chego quase a desejar que Harry Tillinghast vença nessa licitação de compra da Baronet. Então ele herdaria essa lata inteira de vermes. Mas o fato é que até isto ser resolvido ninguém irá querer essa companhia, exceto eu...e«!

- Entendo o que quer dizer.

- Gabe, isso é simplesmente a melhor coisa que poderia me acontecer a esta altura. E o maldito detalhe é este: por que não pensei nisso antes? Dividendos! - Sari agita a carta segura em sua mão. - E isto é apenas o começo. Pegue aquilo para mim - acrescenta ela, apontando para uma calculadora de bolso colocada sobre uma mesa. Gabe a estende para ela. - Vejamos - diz Sari -, calculemos quanto Melissa pretende recolher. Digamos, em números redondos, que Lance vem recebendo seiscentos mil anuais, e Melissa quer metade disso... isto é, trezentas mil vezes trinta anos. Isto dá nove milhões! Mais juros, juros cumulativos...

- Na carta não se mencionam juros.

- Se eles são espertos, pedirão. Assim, vejamos... - E Sari começa a calcar mais números em sua calculadora.

Observar Sari assim, manejando ansiosamente a pequena calculadora, somando cifras e alcançando totais que seguramente nunca mudarão de mãos, não é, acha Gabe, vê-la pelo seu ângulo mais atraente. Na verdade, enquanto está sentado ali bebericando seu café frio, há quase que uma pequena dose de depressão no ar, e ele pode recordar uma jovem bonita, corada por causa de seu primeiro êxito num palco, com quem é difícil conciliar agora essa mulher idosa que se senta no lado oposto ao seu, lambendo os lábios quando milhões são adicionados a mais outros milhões de dólares. Sim, nessa manhã Sari de repente parece envelhecida, envelhecida e desesperada, e mesmo feia em sua sede de poder. Gabe consulta seu relógio e decide que deve pensar em alguma desculpa para se retirar.

- Lance ficará liquidado! -- exclama ela alegremente. - Liquidado! São pelo menos doze milhões, com os juros... talvez mais!

- Eu me pergunto o que Peter teria dito.

- Quem sabe? - diz Sari despreocupadamente. - Mas não é curioso, até irônico, que Peter viesse... a morrer justamente quando nossa empresa começara a ingressar numa fase realmente boa em 1955? Foi naquele ano que o dinheiro realmente grosso começou a fluir de novo.

Gabe Pollack muda de posição em sua cadeira, dizendo:

- Bem, ao que parece você tem a sua arma secreta.

- Oh, eu tenho uma ou duas setas mais em minha aljava - retruca Sari com uma nova piscadela. - Mas uma coisa eu lhe digo... nunca me senti mais certa de ganhar esse caso do que neste momento. E a imprensa! Pense no dia cheio que eles terão com isto! A filha ilegítima, o pai misterioso, a filha que processa o homem que resulta ser seu meio-irmão! Depois esse meio-irmão processa sua própria mãe! Talvez haja algum modo para que eles possam ser liquidados, Gabe.

- Bem, isso seria bonito - diz ele um pouco secamente -, ver ambos liquidados. Mas falando em jornais, Archie McPherson já está soltando pequenas dicas sobre essa história. Ele sabe que algo se acha em andamento, e se ele sabe, então outros descobrirão também. Quando posso contar com a minha história em primeira mão, Sari?

- Dê-me apenas mais alguns dias, e eu lhe prometo que a terá. Sim, você a terá, e com exclusividade. Seu nome figurará, também, em todos os jornais! Agora me diga, Gabe, quando eu responder à carta desse advogado, devo incluir a questão dos juros, que eles podem ter negligenciado?

- Se eu fosse você, deixaria Melissa tratar com seus advogados. Na realidade não vejo por que você precisa responder a essa carta. Você constitui uma companhia de propriedade da família. Não tem que revelar quaisquer cifras a advogados de fora.

- Você quer dizer que devo esperar para citá-los? Mas você não

entendeu, eu desejo que eles obtenham essas cifras. Quero que saibam o montante do que está em jogo. Quero conseguir que esses processos comecem... já!

- Bem, faça o que desejar. Foi o que sempre fez. - Levanta-se, um pouco rígido. - Eu tenho que ir agora.

- Eu certamente mencionarei a questão dos juros ao conversar com Melissa.

- Presume-se que você não deva se comunicar com Melissa.

- Oh, tolices! É só conversa fiada, Pollywog!

- Bem - diz Gabe um tanto claudicante -, fique em contato comigo.

- Dê-me um beijo - diz Sari, e ele roça os lábios na face de sua amiga. - Querido Pollywog - diz ela. E então quando ele já se aproxima da porta, ela o chama. - Não se mostre taciturno! Sei que está preocupado com o fato de que eu possa usar minha arma secreta final. Não se preocupe... parece que, por enquanto, não terei de usá-la!

Imediatamente, ao ficar sozinha, Sari pega a caneta e uma folha de papel de carta e escreve outro bilhete para Melissa. Este agora é contra as instruções dos advogados, é claro, mas ela não liga a mínima. Sari não tem nenhuma intenção de obedecer a advogados aos quais não está pagando. Caríssimq Melissa,

Considero a sua manobra legal absolutamente brilhante! Eu poderia até dar um chute em mim mesma por não ter pensado nisso, mas tenho andado tão preocupada com a proposta do Tillinghast que não penso com a devida clareza.

Se você for adiante com essa questão dos dividendos de Lance, assegure-se de requerer os juros cumulativos. Você irá se tornar mais rica do que Gordon Getty!

Nesse meio tempo, tenho uma proposta para você. O que acha de dirigir a Baronet... comigo, como uma equipe? Podemos fazer isso, você sabe, com o que nós sabemos agora que você controla. Eu estaria preparada para lhe oferecer um posto muito importante e poderoso na empresa.

Pense nisso, e me informe.

A.L.LeB.

P.S. Sei que não devemos manter uma "comunicação direta". Que tal dar uma pancadinha nos canos do aquecedor se você estiver interessada, e duas se não estiver? Sinais de fumaça, receio

eu, fariam as sirenes do corpo de bombeiros soar estridentemente na Washington Street!

Então ela acrescenta, numa reflexão tardia calculada: Lembre-se de que sempre a amei como se você fosse minha própria filha.

Agora é noite novamente, e a grande casa está silenciosa. Não houve as pancadinhas nos canos, nem sinais de fumaça, nenhuma palavra vinda lá debaixo. Tudo que Thomas pode relatar é que não viu Melissa sair, e que o sr. Littlefield aparentemente ainda está ali. Ele usara a piscina, sozinho, por pouco tempo, naquela tarde. Estando Melissa no apartamento, é difícil para Thomas entrar ali e buscar indícios do que os dois estão pretendendo. Tudo que Thomas pode fazer é deixar na manhã seguinte duas bandejas com o pequeno almoço do lado de dentro da porta dos aposentos de Melissa e recolhê-las, do lado de fora, quando os dois tiverem comido um pouco mais tarde. Sari tentara telefonar para Melissa diversas vezes, mas Cora, a criada de Melissa, que atendera, dissera somente que Melissa estava "ocupada", ou "tirando um cochilo", ou "no outro telefone". O que estariam eles fazendo, planejando lá embaixo? Sari tenta imaginá-los numa orgia de drogas ilícitas e sexo, mas este não é o estilo de Melissa.

É noite e seu jantar está terminado, e os guardas do outro lado da rua, no consulado da Rússia, já fizeram a rendição, trocando rígidas continências. As cortinas do lado da casa que dá para a Washington Street foram cerradas, e somente as da ala norte, de frente para a baía, foram deixadas abertas para proporcionar a famosa vista. Sari está sozinha agora, e se sentindo um pouco solitária. Ela gostaria de uma companhia, mas subitamente não há nenhuma. Gabe, ela tem a nítida impressão, mostrara-se mais do que um tanto desaprovador dos novos estratagemas por ela esboçados pela manhã. Ela pensa por vezes que Gabe nunca a entendeu realmente. Ninguém a entendeu. Gabe não pode compreender, por exemplo, como uma mulher que possui tanto, tem tantos bens, pode se sentir só... desesperadamente só.

Como companhia, agora, só há Thomas, mas este, quando não tem nenhuma novidade para comunicar, pode se tornar mais do que um tanto maçante.

Sua arma secreta... Ela se move agora, em sua cadeira de rodas motorizada, até a galeria dos retratos onde repousa o segredo de sua arma secreta. Em dezembro de 1941, o mundo se achara de repente em conflito de novo, e Peter tentara se alistar na Marinha. Ele estava somente com 36 anos, mas fora dispensado por causa de sua pressão alta, que só então viera a constatar e que mal acreditara que tivesse. E aquele fora o ano e o mês do décimo quinto aniversário de Melissa, e ela posara para o retrato, dentro da tradição da família LeBaron.

Graças a Deus o pintor convencera Melissa a posar sem aqueles óculos infernais, e a fresca e autêntica beleza de seu rosto e olhos fora capturada e brilhava sem os estorvos óticos.

- Quando ela conseguiu ser uma beleza? - sussurrara Peter quando o retrato fora entregue, e Sari replicara:

- Ora, ela sempre foi bela, seu tolo. Você simplesmente andava muito ocupado para notar. Ela tem a expressão do rosto dos LeBarons.

Sari tinha sugerido pendurar o retrato entre os de Peter e Joanna - os dois membros da geração mais recente -, mas de repente, e com muita irritação, Peter dissera que não o desejava ali.

- Por que não? Há uma semelhança agradável com vocês dois.

- Eu disse que não o quero ali! Quero que seja colocado na parede oposta. Faça como eu digo, Sari.

- Bem - dissera ela então calmamente -, não me importa realmente onde ele seja colocado. Nós o penduraremos onde você deseje, Peter.

E assim ele fora colocado na parede oposta. Mas havia algo no comportamento de Peter que intrigava Sari, perturbando-a e aborrecendo-a. Uma das coisas que a entristeciam era que Peter e Melissa nunca parecessem capazes de se intimizar, e que Peter nunca fosse capaz de aceitá-la como sua filha. Qual seria a razão disso? Seria essa causa misteriosa que o levara a querer a imagem de Melissa tão distante quanto possível de seu retrato? Essa indagação a incomodara pelo resto daquele dia.

Naquela noite, após o incidente do retrato, eles haviam combinado jantar com Joanna no velho Mural Room - atualmente desaparecido, substituído agora por uma loja de roupas femininas - do Hotel São Francisco na Union Square. Para Peter seria uma noite desconfortável, sob quaisquer circunstâncias. Bastava olhar em volta do restaurante do hotel para se verificar que ele era um dos raros moços ali. Já então, São Francisco estava se convertendo numa cidade de mulheres, de viúvas e esposas à espera, de agitados recrutas de passagem por ali em seu caminho para o Pacífico, e os moços em traje civil eram encarados com desconfiança e desagrado, como se pudessem ser espiões alemães. E ali estava o elegante Peter Powell LeBaron, de aparência saudável, que se recusava a crer que pudesse sofrer de pressão alta, jantando com sua irmã e sua mulher.

Esperava-se que aquele fosse de certo modo um jantar comercial, e que eles desejassem debater qual o rumo que a firma poderia tomar, agora que a América estava na guerra. Fora acertado que pouca coisa poderia ser resolvida até se saber qual a direção que o conflito tomaria

e, nesse meio tempo, providenciar para que o suprimento de vinhos Baronet fosse embarcado para os clubes de oficiais e recrutas no país todo.

- Nós produzimos vinho para os trabalhadores - disse então Joanna. - E quem está trabalhando mais duro agora do que os nossos rapazes recrutados? Você pode sugerir isso ao seu pessoal da publicidade, Sari.

- Não é má idéia, Jo. Sim, nada má.

Depois disso, Sari procurara manter a conversa amena e inconseqüente, já que observara que várias mulheres na sala tinham lançado olhares desaprovadores a Peter, e este tinha uma expressão pesarosa. Uma nova revista musical chamada Lady in the Dark, que fora um tremendo sucesso na Broadway e que abordara com um humor suave a esfera da psicanálise, estava sendo encenada em São Francisco. Deveriam tentar comprar ingresso para ver a revista? Qual seria o papel da Rússia soviética na guerra? O orçamento previsto pelo presidente Roosevelt para a Defesa fora de onze bilhões... seguramente esses onze bilhões de dólares seriam suficientes "para vencer a guerra. Que papel desempenharia a Hungria? E a Iugoslávia? E os países escandinavos?

Então Joanna mencionou que recebera naquela manhã uma carta de Rod Kiley, o jovem médico com quem ela se casara por pouco tempo, em 1927, logo após a sua temporada de debutante. Ele lhe escrevera para contar que se alistara no Corpo Médico do Exército, e que recebera uma comissão com a patente de capitão. Estava sendo enviado para o exterior, embora não pudesse precisar onde exatamente, e lhe escrevera para explicar por que seu filho, Lance, poderia ficar sem notícias dele por algum tempo. (Quatro anos depois, Rod morreria de ferimentos causados por estilhaços de granada durante a batalha de Okinawa.)

- Nunca entendi por que não continuou casada com ele, Jo - disse Peter. - Ele parecia ser...

- Um bom sujeito, sim - disse Joanna, concluindo a frase pelo irmão. - Oh, ele era certamente amável. Apenas terrivelmente antiquado. Vocês sabem, um tipo de ianque puritano da Nova Inglaterra, com idéias sobre o casamento que remontavam à era vitoriana, ou mesmo antes. Por exemplo, acreditem se quiserem, ele não podia omitir o fato de que não se casara com uma moça virgem. Para ele eu era uma espécie de mercadoria danificada.

- Mas como ele poderia saber disso? - perguntara Peter então.

- Bem, era muito evidente.

- Mas como? Não é tão fácil...

- Tratando-se de algumas mulheres, talvez não. Mas no meu caso foi.

- Como?

Joanna fez uma curta pausa, olhando diretamente para ele.

- Você não sabe?

- Não.

Joanna baixou os olhos, dizendo:

- A cicatriz da minha cesariana.

Peter de repente retesara-se - por quê? - por algum motivo, e sua mão atingira o copo de vinho, derrubando-o e quebrando-o. E o vinho tinto espalhara-se ao longo da toalha da mesa como sangue.

- Oh, querido! - exclamou Sari, pegando um guardanapo. Mas Joanna não disse nada, não fez nada. Simplesmente permaneceu sentada ali, com um leve, estranho e curioso sorriso de satisfação nos lábios.

E então, num repente, a resposta ocorreu à mente de Sari... a resposta que fez com que todas as peças do quebra-cabeça se ajustassem no devido lugar de imediato. Claro, claro, Peter era o pai de Melissa, naturalmente, Melissa era filha de Peter e Joanna. "Cócegas... " "Eu fiz uma coisa terrível..." "Eu não desejo que o retrato dela seja pendurado ali... Faça o que eu digo..." E isso a impressionou com tanta brusquidão e rapidez que ela perdeu o fôlego, e o que se parecia com um assomo de febre percorreu de súbito suas faces e a testa, indo se alojar em seus olhos, quando fitou primeiro Peter, depois Joanna. Garçons apareceram vindos de todas as direções, enxugando o vinho escorrido com guardanapos, recolhendo os fragmentos do copo partido e pegando a toalha manchada pelas pontas para trocá-la. Sari desculpou-se e foi ao toalete de senhoras.

Ali ela lavou as mãos e o rosto, retocou a maquilagem e passou várias vezes a escova em seu cabelo vermelho-escuro. Então observou sua imagem no espelho, pensando: Eu não mudei nada, mas agora tudo está diferente. "Peter não encara as conseqüências de seus atos", escrevera o reitor da Yale ao pai dele anos atrás. Mas eu amo Peter. Muito embora ele nunca tenha me amado. Tudo que sempre desejei foi que alguém me amasse. "Madame deseja alguma coisa mais?" "Não, obrigada." Quando ela deixou o toalete, entregou à zeladora uma gorjeta extravagantemente alta: vinte dólares. Quando retornou à mesa, seus companheiros estavam prontos para ir embora. Joanna ia a uma reunião teatral.

No carro, de volta a casa, Sari esticou o braço e fechou a janelinha colocada entre o assento traseiro, onde ela e Peter estavam acomodados, e o motorista. Ela estava usando o novo casaco de mink primaveril que Peter lhe dera no Natal, e no toalete do restaurante aspergira bastante o pescoço e os ombros com o perfume My Sin - o preferido de Peter, e que era o perfume de Joanna! -, e a parte traseira do carro estava impregnada do odor daquele perfume e da pele de mink nova.

- Eu sei - disse ela em voz baixa. - Conheço o segredo agora. Você é o pai de Melissa.

- Pare!

- Não. Quero que você ouça o que tenho a dizer.

- Pare! - E Peter fez menção de segurar a alça da porta do carro, mas ela segurou-lhe o cotovelo.

- Pare você - disse Sari. - O que vai fazer... atirar-se de um carro em movimento na Powell Street? Aja como homem, pelo amor de Deus! Se pensou que era homem bastante para tentar se alistar e combater no front, pode ser homem bastante para ouvir o que tenho para dizer.

- Não... não - gemeu ele.

- Diga-me apenas uma coisa. Você ainda a ama?

- Amor... ela é minha irmã. - Deixou-se cair no assento. - Não... não, mas eu a magoei terrivelmente.

- Vocês magoaram um ao outro. Mas me parece que ela o feriu mais do que você a ela.

- Não...

- Sim! Não percebeu o que ela fez esta noite? Não viu como ela o manipula? Não vê como Joanna ainda deseja ter você, mantê-lo obcecado e carregado de culpa? Sua cicatriz da cesariana! Poderia ter sido mais evidente para você do que nesta noite essa espécie de jogo de gato-e-rato que ela tem jogado com você todos esses anos? Peter, eu não me importo com o que aconteceu anos atrás. Vocês dois eram muito jovens, crianças realmente, e aquilo aconteceu em 1920, quando todo mundo estava experimentando certas coisas, provando, arriscando...

- Aquilo aconteceu somente quando nós tínhamos bebido muito. Não sabíamos o que estávamos fazendo.

- Não estou interessada em suas justificativas. - Estava ainda segurando com força o cotovelo dele, e as palavras transbordavam em seus lábios. - Você e eu nos arriscamos também. Nunca pensamos nas conseqüências, e nem você e ela. Não digo que o perdôo, porque não há nada a perdoar. Eu pensei bastante nesta meia hora, Peter, e estou falando do que está acontecendo agora... não do que ocorreu há quinze anos. Aquilo está preso ao passado, água que correu sob a ponte, e eu entendo tudo isso, aceito-o. Mas o que está acontecendo agora é o que nós vimos esta noite; como Joanna utiliza um antigo erro para possuir você, para manter sua reivindicação quanto a você, para conservá-lo para todo o sempre pertencente a ela, e nunca a mim ou a outra pessoa, nem sequer a você mesmo! Não percebe? Aí está por que ela não renunciou ao seu bebê. Ela queria conservar a prova

- a evidência de seu amor - e poder continuar a lançar isso em seu rosto, dia após dia, ano após ano. Que espécie de amor é esse? Isso não é amor. É tortura.

- Não a odeie - disse Peter, cobrindo os olhos com a mão.

- Claro que não a odeio. Mas agora você pode ver - agora nós dois podemos ver - como ela usa aquele erro antigo para manter você em seu poder, como uma espécie de escravo. Hoje à noite ela finalmente se traiu e perdeu a partida.

Naquela mesma noite, em seu quarto, Sari vestira um longo penhoar de seda branca e voltara a borrifar-se com o perfume My Sin. Então acercara-se do móvel-bar, preparara bebidas para si e para Peter, e levara os copos para o quarto dele. Peter estava deitado em sua cama usando seu pijama Sulka, com ar doentio e exausto. Ela estendeu-lhe o copo e sentou-se na beirada da cama.

- Simplesmente não posso acreditar que ela tenha lhe contado isso - disse ele.-

- Ela não contou. Eu adivinhei. Esta noite, quando ela fez você derramar o vinho.

- Nós éramos crianças então. Nunca pensamos que...

- Cale-se. Eu lhe disse que o passado não interessa.

- Foi minha a culpa? Foi? Eu era um rapaz amável, não?

- Isso também não importa. O que importa é que você e eu estamos casados, e era o que ela queria. Nós criamos Melissa, para o melhor ou para o pior, que era o que ela desejava. Parece-me que nós pagamos além da conta qualquer antiga dívida que você possa ter contraído com ela.

- Foi na adega. Nós tínhamos bebido muito. Bebíamos demais naqueles dias, talvez. E então...

- Lá vem você de novo com o passado. O que importa é o presente e o futuro, o nosso futuro. Acontece que somos marido e mulher, e acontece que temos a sua filha.

- Eu não acreditava que Melissa viesse a nascer. Estava certo de que alguma coisa aconteceria, e que ela não nasceria.

- Mas ela nasceu.

- Não acha que seria hora de devolvermos Melissa a ela? Sari rira então baixinho, dizendo:

- Creio que não. Acho que Melissa tem problemas demais agora para que ainda venha a saber que tem uma nova mãe. Você e eu firmamos um compromisso com Jo, e creio que temos de mantê-lo, Peter. Além disso, Jo não deseja ter Melissa de volta. Ela quer você. Foi isto que se tornou muito claro para mim esta noite. Sabe, eu perguntei a ela um dia por que o nosso casamento era tão... desapaixonado. Eu perguntei a Jo se ela podia explicar o... seu distanciamento.

Quartos separados. Eu lhe perguntei se achava que você tinha uma amante, e a sua resposta foi ambígua, insinuando que você tinha uma, implicando que ela sabia algo que eu ignorava... e que, naturalmente, ela sabia. Como vê, eis aí o modo como Jo gosta de se imaginar, como sua amante, Peter. Para sempre. A sua mulher oculta. E você é o seu amante secreto. Que tipo de amor é esse? Amantes reservas, é o que me parece.

- Eu juro que nunca a toquei de novo! Não após... Sari levou os dedos aos lábios. E disse:

- Isso não me interessa. Não agora.

Peter apertou os punhos e voltou a cabeça contra o travesseiro.

- Foi aquela maldita adega de vinhos! Aquela maldita adega, e aquele maldito MacDonald nos permitindo passar ali todo aquele tempo juntos! Ele deveria saber...

- O que me interessa - prosseguiu Sari - é saber por que não somos marido e mulher de fato juntos. Isto é o que tem me intrigado até agora. Hoje eu creio que começo a entender talvez um pouquinho. O segredo de vocês estava no caminho. Eu sou sua mulher, Peter, e uma mulher que o ama. Comecei a amá-lo naquela noite em que você providenciou para que o nosso jantar fosse servido na suíte do hotel São Francisco, e quando fizemos amor. Não é curioso? No mesmo hotel onde jantamos esta noite. Posso até recordar o número da suíte... era a suíte 609-611. Depois que nos amamos, e você adormeceu, eu vesti o seu paletó folgado Norfolk, fiquei sentada contemplando a Union Square, comi uma costeleta de carneiro, e me apaixonei.

- Eu me lembro de ter pedido costeletas de carneiro. E aspargos...

- E batatas coradas. E eu passei a amar você cada vez mais com o passar dos anos, Peter. Eu o amei ainda mais sabendo que algo estava terrivelmente errado, e desconhecendo o que era ou o que poderia fazer para ajudá-lo... buscando meios de ajudá-lo, e nunca os encontrando, procurando um caminho que nos conduzisse... a algum lugar além de nossos quartos separados. Mas o caminho estava sempre bloqueado. Por quem ou por que, isso eu não conseguia saber. A parte essa frustração, eu me vi amando-o ainda mais... desesperadamente. Essa ameaça que ela mantém sobre você tem sido uma espécie de chantagem, não é assim? Mas agora que o segredo vazou, a chantagista não pode nos atingir mais, pode? Estamos livres. Estamos livres para amarmos um ao outro de novo, Peter, e podemos consegui-lo se o desejarmos. Eu desejo que você tenha uma esposa de verdade, uma mulher que o ame, não apenas uma amante que o chantageie. Quero que você tenha o amor que merece, não o segundo melhor.

Peter estendeu a mão, cobrindo-lhe os dedos pendentes.

- É uma espécie de emoção excitante, não é? - disse Sari. -

É como dar início a uma vida inteiramente nova! É como se nos casássemos de novo, sem nenhum segredo para nos conter!

Seria agradável podermos dizer que a velha paixão se reacendera naquela noite, e que o casamento de Sari e Peter se tornara completo, mas a verdade é de algum modo diferente, ainda que - como dizem os advogados - ele retornasse ao leito conjugal naquela noite. Sua união não se tornou completa porque Peter não era mais completo, se é que um dia o fora. Uma nuvem, uma sombra, uma distração, continuaria a pairar sobre ele às vezes, mesmo durante o ato amoroso, e seus olhos ficariam semi-cerrados, e ele estaria a quilômetros de distância. Era como se o dano feito a ele tivesse sido muito profundo, e as cicatrizes não viessem a sarar.

Peter estivera realmente apaixonado por Joanna? Sari nunca fez essa pergunta. Ele estivera realmente apaixonado por alguém? Certamente que Sari nunca se decidira a perguntar isso a Peter. E o que ele tinha feito para satisfazer seus próprios anseios físicos, sexuais, se fora o caso, durante aqueles longos anos... os anos aos quais Sari às vezes se refere como os anos áridos, secos, de seu casamento? Que encontros apressados, penosos, ilícitos poderiam ter ocorrido em quartos sórdidos de hotel, ou em carros estacionados, ou nas últimas filas de cinemas, ou mesmo nos boudoirs dourados da famosa casa de madame Sally Stanford em São Francisco, onde toda a espécie de prazeres exóticos era servida aos luxuriosos descendentes da elite da cidade? Quem poderia saber? Sari nunca lhe perguntou, e não desejava saber. Ela já lidara com segredos demais de família, e não desejava descobrir outros.

O que aconteceu foi que Peter começou a se distanciar cada vez mais das transações cotidianas da Baronet, e transferia a maior parte destas para a responsabilidade de Sari, embora mantivesse o título de presidente da companhia.

E o que ocorreu também foi que Sari fazia o possível para distraí-lo quando via aquelas nuvens surgirem nos olhos dele, e uma de suas sombrias disposições de ânimo despontar. Ela o encontrou, por exemplo, numa manhã, sozinho em seu escritório limpando sua pistola.

- O que está fazendo? - perguntara ela então.

- Simplesmente limpando minha arma.

- Para quê?

- Ela necessita de limpeza.

- Isto parece uma coisa sombria para se fazer numa bela manhã de domingo! Estive pensando... vamos fazer alguma coisa que não fazemos há anos. Vamos de carro até as Seal Rocks, fazer um piquenique e observar as focas.

Eles fizeram isso.

Não distante das Seal Rocks, encontra-se um parque de diversões com uma roda-gigante, à beira-mar - a maior roda-gigante do mundo, dizia-se, quando ela foi ali instalada. Após o almoço no alto das rochas, eles tinham ido ao parque de diversões e adquirido ingressos para a roda-gigante. Para cima e para baixo, eles tinham sido conduzidos pela roda-gigante, gritando de excitação junto com todos os outros "passageiros" quando a roda girava mais depressa, e gemendo quando ela parava para que todos desembarcassem, e a sua pequena cadeira restasse suspensa, balançando para lá e para acolá, no alto.

Mas mesmo então, conquanto os segredos tivessem sido ventilados, os espíritos exorcizados, os fantasmas derrubados, aquela nuvem, aquela sombra, aquele ar de distração aturdida, incidiria no rosto de Peter LeBaron - até mesmo ali, no alto da roda-gigante, dando vista para um mar azul Delft, isso ocorreria. Ela nunca veria mais aquela imagem brilhante do rapaz balançando no topo de um mastro. Nunca mais.

- Isto não é maravilhoso? - exclamara ela então, segurando a mão dele.

Se pelo menos Joanna se mudasse para uma cidade distante, começara a pensar então Sari, talvez as coisas melhorassem. Como veio a acontecer, tal oportunidade não estava longe de se avizinhar.

Deixem que lhes diga algo sobre Peter Powell LeBaron que talvez lhes esclareça a sua personalidade, pois eu também o conheci bem. Talvez tenham sabido, através de bisbilhotices em São Francisco, que Peter LeBaron, apesar de todo o seu encanto infantil, a aparência quase igual à de Valentino e o ar de uma dourada promessa, não era inteligente. Faço aqui uma ressalva. Ele certamente não era dado à leitura, não era um intelectual, e como já sabemos não concluíra o curso universitário, mas estava longe de ser ignorante. Por outro lado, possuía qualidades negativas que podiam ser exasperantes, como a história a seguir exemplifica.

Essa é uma história que duvido que Sari conheça, já que não se achava presente na ocasião. Mas talvez não se incomode que eu a relate a esta altura, pois ela revela algo sobre o caráter e o temperamento de seu marido. Isso aconteceu no final da década de 20 - 1928 ou 1929 -, antes do crack da Bolsa. Peter, com uma amiga, dirigia o seu Stutz vermelho - em alta velocidade, naturalmente - por El Camino rumo a um lugar onde se realizaria uma festa. Eles não deviam estar atrasados. Justo nos limites de Rodwood City, um cãozinho collie Border saiu repentinamente de umas moitas e surgiu na estrada. Não havia tempo de frear o carro, e as rodas da frente atingiram o animal. Peter prosseguiu na marcha veloz.

- Não devíamos ter parado? Para ver se ele está ferido? Tentar localizar o seu dono? - perguntou a companheira de Peter.

- É um vira-lata perdido - retrucou Peter, guiando velozmente.

- Era um collie Border bonito. Pode ter uma coleira com...

- Não, é apenas um cão sem dono.

O cachorro poderia ter morrido, ou ficado apenas ferido ligeiramente. Poderia na realidade ser um cão vadio, ou então, com maior probabilidade, o cãozinho de estimação de alguma família. Nós nunca saberemos.

Assim era Peter LeBaron. De visão acanhada, irresponsável e mimado. Um moço envelhecido.

Sari fizera apenas uma alusão a Joanna do que tinha descoberto, e isto somente anos depois, após o nascimento de Athalie, e dos gêmeos, e aí então certamente Joanna já sabia que Sari estava a par de seu segredo e que tinha vencido. A conversa aconteceu no cemitério, após o sepultamento de Peter. E Joanna se comportara muito mal, muito melodramaticamente, chorando em demasia. O sacerdote erguera a mão fazendo o sinal-da-cruz assim que a primeira pá de terra fora lançada na sepultura, e Joanna, soluçando, de repente pendera para a frente, como se prestes a se lançar sobre o ataúde de seu irmão. Isto ocorreu após o acidente sofrido por Sari, é claro, e agora ela se achava numa cadeira de rodas. Mas, não obstante, ela estendera o braço e agarrara o braço de Joanna firmemente, sussurrando:

- Pare com isso. Se eu posso ser corajosa, você também pode.

- Eu o perdi, eu. o perdi! - exclamara Joanna entre soluços. Quando mais pás de terra caíram sobre o caixão, e o sacerdote

recitou as palavras derradeiras da oração fúnebre, outros acompanhantes da cerimônia, com Gabe Pollack próximo de Joanna então, conduziram as duas mulheres até a saída do cemitério.

- Você o perdeu há muito tempo - sussurrou Sari duramente. E então, erguendo os olhos para ela, disse: - Diga-me apenas uma coisa, Jo. Sua mãe chegou a saber?

Joanna fitou Sari de relance, e seus olhos úmidos acusaram uma expressão assustada, como a de um animal acuado. Então ela abaixou suas pestanas e retrucou:

- As mães sempre sabem de tudo.

E agora, sozinha na casa, esta começa a ranger e suspirar. Uma tempestade, trazendo chuva e neblina, está soprando ao longo das montanhas de Marin através da Golden Gate. Uma a uma, as fileiras de luzes ambarinas e balouçantes da ponte começam a sumir de vista quando desce a cerração. A mansão suspira como se fantasmas estivessem dela se apossando. Existem fantasmas ali, naturalmente, e os espectros e seus segredos estão pendurados na galeria dos retratos.

 

Receio que perdemos o bebê, sra. LeBaron - disse o médico. - Sinto muito.

- Perdido? - murmurou Sari, ainda entorpecida devido aos efeitos da anestesia.

- Seus pulmões estavam cheios de fluido, sra. LeBaron. Ela não chegou a respirar. Na realidade, afogou-se.

- Afogada... Athalie.

Se nascesse uma menina, iriam chamá-la Athalie. Se fosse um menino, chamar-se-ia Peter Jr. Estávamos então em 1943.

- Eu posso vê-la, por favor?

- Seu marido está aqui - disse o médico. - Ele gostaria de falar com a senhora.

- Bem - disse Sari, tentando imprimir em seu rosto uma

expressão tão corajosa quanto possível quando ele entrou no quarto do hospital -, nós tentamos, não? Fizemos o melhor possível. Ele beijou-a na testa.

- Peça-lhes para trazê-la para mim. Desejo apenas olhá-la. Só uma vez.

- Não, Sari.

- Por que não? - disse ela, erguendo-se a meio apoiada nos cotovelos. - Eu sei que ela está morta, mas quero apenas olhá-la uma vez. Quero apenas dizer adeus.

- Não, você não vai querer isso.

- Eu quero! Por que não posso? Por que não posso dizer adeus ao meu bebê?

- Havia muito mais problemas com ela do que o médico lhe disse. Seu coração...

- O quê? Ele disse que o fluido... Seu coração...

- Eu determinei que o ataúde fosse lacrado. Mais tarde, quando você estiver se sentindo melhor, teremos um pequeno serviço fúnebre para ela.

- Seu coração - disse ela, deixando-se cair de novo nas almofadas. Fora o coração que ela tinha sentido com seus dedos, batendo no interior de si mesma. - Athalie...

- Esqueça Athalie. Esqueça que ela um dia existiu. É o melhor que tem a fazer.

- Mas ela existiu! Ela viveu dentro do meu corpo durante nove meses.

- Esqueça...

- Mas nós tentaremos novamente, não? Diga-me que voltaremos a tentar.

- Voltaremos a tentar.

Joanna tinha vindo vê-la no hospital. Sari, particularmente, não desejara a sua visita. Ela começara a encarar Joanna sob um ângulo diferente. Não confiava mais em Joanna, com pacto de sangue ou não. Todas aquelas pequenas sugestões sobre como deveria educar Melissa durante a atribulada infância desta não lhe pareciam mais úteis, solícitas e carinhosas. Pareciam-lhe uma simples interferência.

- Não é nada senão um acesso temperamental - diria ela a Joanna. - Ignore-a, deixe-a em paz.

- Mas você não pode ignorar a menina, Sari querida, não tem noção de como se deve educar uma criança? Suas crises temperamentais são gritos de socorro. Sari, minha querida, creio realmente que um psiquiatra infantil...

- Jo, de uma vez por todas, vai permitir que eu eduque essa menina ou não?

- Mas, Sari, lembre-se de que você contraiu uma grande dívida para comigo.

- Dívida? Que dívida é essa?

- Peter.

- E você, Jo, também tem para comigo uma dívida muito grande... lembra-se? Melissa. As dívidas não estão igualadas?

- Sari, nós fizemos um pacto. Um pacto de sangue. O de nos ajudarmos sempre uma à outra. Não devíamos estar falando sobre dívidas.

- Não, não devíamos.

Mas agora, em vez de usar aquele tipo de argumento informe, inútil, Sari certamente lhe teria dito simplesmente: "Cale-se! Meta-se com os seus próprios assuntos! Saia da minha casa! Sempre querendo matar dois coelhos de uma só cajadada!"

Naquele momento, parada perto da cama do hospital, Joanna dissera:

- Sari, querida, eu sinto muito pelo seu bebê. Mas de certo modo foi uma bênção, certo? Ela nunca poderia levar uma vida normal.

- Ela tinha um nome. Seu nome era Athalie LeBaron.

- A melhor coisa a fazer é esquecer Athalie. Esqueça que ela existiu.

Sari desviara o olhar de Joanna, o rosto encostado no travesseiro.

- Foi esse o seu conselho para Peter? - dissera ela. - Athalie existiu. - Mas ela estava se sentindo muito fraca para discutir.

No final daquela semana, voltando do hospital para casa, Sari - motivada por um instinto quase esquecido ou impulso - cobrira o espelho sobre a sua penteadeira com uma echarpe a fim de que Malchemuvis, o Anjo da Morte, não visse o seu belo reflexo no vidro e ficasse tentado a visitar aquela casa de novo.

Então, na primavera de 1945, os gêmeos nasceram... dois meninos felizes, saudáveis e bonitos, Eric e Peter.

Joanna veio ver os recém-nascidos, e de imediato tomou-os em seus braços com o que pareceu a Sari quase um ar de possessividade e proteção.

- Este é o pequeno Peter? - disse ela para a pequena e calva cabeça então aninhada junto ao seu ombro esquerdo.

- Sim.

Peter deixou escapar um pequeno e queixoso grito.

- Oh, ele grita, o pequenino Peter, tal como um sapinho xereta - exclamou Joanna. - Seu nome deve ser Peter ou Peeper, o que você acha?

- Meu filho não é um sapo - disse Sari.

Mas de algum modo Joanna conseguiu fazer o apelido pegar. E assim Joanna conseguira alcunhar um dos filhos de Sari.

Assim, o nascimento de dois belos filhos gêmeos deveria propiciar à nossa história um final feliz, um feliz e obstétrico desfecho. Mas a nossa história não termina aí. Diariamente, bem diante de nossos olhos, debaixo de nossos narizes, acidentes acontecem, erros são cometidos. Os jornais estão cheios dessas histórias. Elas preenchem os fichários dos psicólogos. Anos atrás, numa obscura cidadezinha usineira no norte de Ohio, um trabalhador de uma usina de aço é dispensado de seu emprego por causa da crise econômica. Para ocupar seus dias, ele prepara um tosco bodoque, colocando uma tira de borracha resistente recortada de uma velha câmara de ar, e o dá de presente aos dois jovens filhos, mostrando-lhes como podem usá-lo para acertar nas latas de cerveja vazias alinhadas no gradil de uma cerca no quintal, quase do mesmo modo como seu pai os ensinara a nadar no rio Cuyahoga e lhes ensinara a lançar de ricochete pedrinhas lisas na superfície de um tanque. Os dois irmãos são muito apegados um ao outro, mas também são muito novos e impulsivos, e três dias depois o mais velho faz mira com o bodoque, brincalhão, no seu irmão mais novo. Nenhum dano fora visado, mas um dos olhos do irmão mais moço é afetado irremediavelmente. E a imagem daquele globo ocular sangrento, pendente da cabeça de seu irmão preso somente pelo mais tênue filamento de tecido muscular, a sua expressão de pura surpresa, de início, nunca se apagará e haverá de reaparecer para sempre nos sonhos e pesadelos do irmão mais velho. O irmão parcialmente cego torna-se um sacerdote, atendendo aos doentes e idosos. E é essa culpa pelo desfiguramento de seu irmão, aquela imagem do globo ocular pendente que nunca será apagada, que leva o irmão mais velho a se tornar um corredor de motos, experimentando uma proeza temerária após outra até que, inevitavelmente, é cuspido de sua moto sobre um muro de contenção de concreto próximo de um dique na Califórnia, e aí seu próprio rosto fica brutalmente marcado, com a maior parte de seu maxilar inferior dilacerado? A imagem dele após o acidente faz a sua mulher desviar os olhos permanentemente. Será por isso que, sentado sozinho uma noite num cine drive-in no Texas em 1972, durante uma exibição de Deliverance - para sermos exatos, durante a famosa cena de sodomia -, ele calmamente pega o rifle automático no assento traseiro a seu lado e começa a atirar nos espectadores em seus carros? Antes de ter terminado de atirar, cinco pessoas jaziam mortas - duas mulheres, um homem e dois adolescentes em seu primeiro encontro - e quatro outras ficavam feridas. Será por isso que o irmão mais velho está agora aguardando no Corredor da Morte, enquanto o irmão quase cego, mais moço, foi colocado à testa de uma importante paróquia em Detroit? Onde, nessa reação em cadeia, repousa a culpa? Quem deve responder por essa carnificina física e emocional? A esposa que não permitiria a seu marido tocá-la, o pai que fizera o

estilingue para seus belos e amados filhos, o proprietário da usina que despedira aquele pai de família, os produtores de filmes como Deliverance, que povoam nossas telas de cinema com tanto sexo explícito e violência, as nossas leis frouxas sobre porte de armas, ou a nossa sociedade cada vez mais despersonalizada? Digam-me vocês.

Durante a gravidez de Sari da qual resultariam os dois gêmeos, Melissa mostrou-se mais perturbada ainda do que de costume acerca do que estava se passando. E perguntara novamente:

- Você tem que ter esse bebê, mamãe?

- Tenho que ter? Bem, o fato é que irei tê-lo - respondera então Sari.

Embora Melissa estivesse então com dezoito anos, Sari fora alertada pelos médicos e outros especialistas consultados de que aquilo parecia ser um caso clássico de rivalidade de parentesco, embora inapropriado, tratando-se de uma jovem da idade de Melissa. "Seu lugar e a sua posição, como o bebê da família, estão sendo ameaçados de usurpação pelo novo bebê", dissera um daqueles especialistas.

- Tem que tê-lo, mamãe?

- Estou muito contente com isso. Não acha que será divertido ter um novo bebê como irmão ou irmã?

("Procure assegurar-lhe que, como primogênita, ela ocupará sempre uma posição especial no seio da família", aconselhara o mesmo especialista.)

- Você será sempre especial, Melissa. Foi nossa primeira filha, na verdade, estou contando com você para me dar uma grande ajuda quanto a esse bebê.

- Eu não quero que você o tenha!

- Por que não?

- Estou assustada, mãe.

- Mas o que a deixa assustada afinal? O médico diz que sou perfeitamente saudável.

- Você não é a minha mãe verdadeira, é?

- Melissa, já repisamos isso centenas de vezes. Claro que sou.

- Eu fui adotada, não fui?

- Não, você não é filha adotiva. Por favor, chega dessa conversa tola.

- Então por que eu sou diferente?

- Diferente? Cada pessoa é diferente de outra.

- Eu custei a nascer, mamãe? Uma pausa.

- Você era um bebê lindo - disse por fim Sari. E a seguir: - Dar à luz um filho nunca é exatamente fácil.

- Eu nunca poderei saber disso, certo? Se eu quiser ter um bebê, terei que adotar um. Do modo como você me adotou. Pessoas adotadas só podem ter bebês adotados, porque seu sangue é ruim. Eu li isso.

- Bem, isso é um rematado absurdo, Melissa. Agora, por favor, vamos...

- Não tenha esse bebê, mamãe. Eu estou assustada. As Sutter Buttes...

- O que têm as Sutter Buttes com isso?

- Tenho medo de que esse bebê seja um monstro. Como aquele que eu vi nas Sutter Buttes.

- As Sutter Buttes nada mais são do que um punhado de velhas colinas cinzentas.

("Eu recomendaria, sra. LeBaron, que a senhora ficasse muito atenta quando o bebê estiver na presença de Melissa", dissera o especialista. "Não devem permitir-lhe ficar a sós com o bebê. Há uma possibilidade de que ela possa tentar feri-lo." E então: "Creio que detectei duas batidas cardíacas.")

Mas depois, quando os gêmeos nasceram, ficou provado que o especialista errara inteiramente. Melissa ficou jubilosa com os bebês, tão contente como se fossem seus. Logo passara a ajudar a alimentá-los e mudar-lhes as fraldas, levando-os a passeio em seu berço geminado, colocando-os e retirando-os de seus berços e cercadinhos, e esbanjando tanto amor evidente e atenções com eles que todas as apreensões de Sari rapidamente se esfumaram. Na realidade, os gêmeos pareciam tornar Melissa mais feliz e mais calma do que já estivera até então. "É um milagre", pensou Sari, quando dali a seis meses Melissa afirmou que não precisaria mais dos vários medicamentos tranqüilizantes que lhe tinham sido receitados durante anos pelos seus especialistas. Por si mesma, graças ao nascimento dos gêmeos, Melissa pareceu por fim ter amadurecido.

Os únicos sintomas que restaram daquilo que fora uma vez diagnosticado como "neurastenia" são uma certa tensão de gestos, uma carência de mais moderação, uma tendência a acalentar entusiasmos repentinos, breves e algumas vezes inapropriados, e um problema de alcoolismo periódico.

Então, pouco antes do Natal de 1945, Peter telefonara para Sari no escritório da Montgomery Street.

- Uma coisa terrível aconteceu - disse ele numa voz sufocada.

- O que há?

- Joanna. Ela acaba de ser levada às pressas pra o Hospital Mercy.

- O que houve com ela?

- Sua empregada a encontrou. Eles acham que ela tentou... tentou cometer...

- Oh, meu Deus. Como está ela?

- Os médicos dizem... dizem que ela vai sobreviver.

- Graças a Deus. Você devia estar lá nesse momento, Peter.

- Eu não posso... não posso enfrentar isso, Sari.

- Então eu irei - disse ela rapidamente, e desligou.

- Eu sou a cunhada dela - disse Sari à enfermeira na recepção da Unidade de Tratamento Intensivo. - Como está ela?

- Nós enfrentamos uma emergência crítica. Mas iremos superá-la. Bombeamos seu estômago, fazendo uma lavagem estomacal. Soporíferos...

- Acha que foi intencional, ou um acidente?

- Não sabemos. Disseram-nos que não foi encontrado nenhum bilhete. Ela está acordada agora. Se desejar, pode entrar para vê-la.

- Sim.

- Mas apenas por alguns minutos. Estamos um pouco atarefados.

- Querida Joanna - disse Sari numa voz tão terna quanto pôde assumir. - Sou eu.

- Oh, Sari - disse Joanna, voltando a cabeça na direção da outra. O rosto ainda belo de Joanna estava cinzento, havia círculos escuros sob seus olhos, e seu cabelo estava úmido e emaranhado sobre a testa. - Eu sinto tanto!

- O que aconteceu, Jo?

- Eu estava muito desencorajada e deprimida. Parecia que nada mais me restava para querer viver.

- Jo, não diga isso. Você tem tudo.

- Não. É você quem tem tudo. Você tem Peter...

- Tolice. Você também tem Peter, e tem a mim. Nós a amamos.

- Você tem a companhia. Anos atrás, quando costumávamos ir aos vinhedos e trabalhar junto com os lavradores, eu me sentia parte das coisas, uma parte de suas vidas, uma parte do negócio. Mas agora estamos todos ficando ricos de novo, e não há nada para eu fazer. Lance está num colégio no Leste, completando sua educação. Eu estou sozinha, transformando-me numa pessoa rica de meia-idade, entediada, inútil. Você tem seu emprego. Você tem seus dois bebês gêmeos adoráveis... Eu não tenho nada. Até mesmo a nossa amizade não parece ser mais o que era.

Meus dois filhinhos gêmeos adoráveis, pensou Sari. Haverá possivelmente uma ligação entre eles e isso? Segundo os planos de Joanna, talvez não se esperasse que eu tivesse filhos gêmeos adoráveis. Mas em vez de dar voz a seus pensamentos, Sari disse:

- Você desejaria fazer algo para a companhia, Jo?

- O que eu poderia fazer? Não tenho nenhum talento. Não tenho nada.

- Talvez pudéssemos pensar em algo.

- No colégio, minhas professoras costumavam dizer que eu era criativa...

- Se estiver interessada, nós pensaremos em alguma coisa. Joanna fechou os olhos.

- E Peter... por que ele não veio?

- Ele está em Sonoma hoje - mentiu Sari. - Estamos ainda tentando nos comunicar com ele.

De olhos ainda cerrados, Joanna esboçou um sorriso fraco. E disse:

- Eu tenho o nome de uma santa. Estou destinada a ser martirizada.

Naquela tarde, Sari ditou um memorando interno para o seu marido. Afinal de contas, ele era o presidente da Baronet, e o que ela estava sugerindo era um assunto de negócios da empresa.

Para P.P.LeB. De A.L.LeB.

Passei uns momentos com a sua irmã no hospital esta manhã.

Uma das coisas que parecem incomodar sua mente é a impressão de estar "por fora" no tocante à Baronet, ao contrário da década de 30, quando trabalhamos juntos nos vinhedos etc. Joanna acha que, agora que seu filho está crescido, estudando longe daqui, corre o risco de se tornar uma mulher indolente, entediada, e manifestou interesse de que lhe fosse conseguido algo para fazer.

Você deve se lembrar de que há vários anos sua irmã fez uma arguta sugestão acerca de como poderíamos promover nossos vinhos junto aos recrutas durante o período da guerra. Essa sugestão não foi posta em prática, mas era boa. E eu creio que você concordará comigo que Joanna tem um espírito criativo apurado.

Você sabe também que nós dois temos revelado insatisfação quanto à nossa atual agência de publicidade de Nova York, e que aquele pessoal da Madison Avenue às vezes parece não ter nenhuma noção do que se passa em nossos vinhedos e vinhaterias da Califórnia. Por sua vez, Joanna, que cresceu lidando com o negócio de vinhos, conhece bem aquilo tudo.

Minha sugestão é a seguinte: Joanna pode ser colocada à testa de nossas atividades promocionais durante pelo menos dois anos, numa base experimental, sendo-lhe reservados fundos para que ela abra sua própria agência de propaganda em Nova York, tendo a Baronet como a sua principal conta. Isto exigiria, é claro, sua mudança para Nova York, mas esse detalhe não deve representar nenhum problema. Eu creio que isso daria à sua irmã a "injeção de ânimo" de que ela parece necessitar tanto a essa altura de sua vida. E eu acredito que ela desempenhará bem suas funções. Uma vantagem a mais desse arranjo estaria em que, enquanto as agências de publicidade cobram comissões de 15% dos faturamentos, Joanna poderia ser persuadida, como uma "pessoa da família", ou uma agência "em casa", a cobrar um percentual mais reduzido.

Informe-me, por gentileza, o que acha dessa sugestão, e se devemos fazer a proposta a Joanna assim que ela se recuperar de sua enfermidade momentânea.

E foi assim que Joanna LeBaron veio a se converter na Expert da Mídia de Manhattan.

- Melissa descobriu tudo - Joanna está agora explicando a Eric pelo telefone de Nova York. - Isto era exatamente o que eu temia que acontecesse.

- Como Melissa reagiu?

- Furiosa e amargamente. Áspera comigo, com sua mãe.

- Quem contou a ela?

- Sua mãe, Eric. Quem mais poderia ser?

- Isso foi uma coisa suja que ela fez.

- Sim. Suja. Mas característica de Sari. Ela nega, é claro, mas evidentemente julgou que nada teria a perder revelando os fatos a Melissa... e tudo a ganhar. E aí está.

- Bem, agora que ela está a par dos fatos, o que irá fazer com

eles?

- Sua indagação é a mesma que eu me faço, Eric. Andei tentando telefonar para ela durante os dois últimos dias. Evidentemente, ela desligou o telefone.

- É evidente.

- Acredita que possa ter melhor sorte em se comunicar com ela, Eric?

- Quando Melissa está numa de suas crises de mau humor, isso fica difícil.

- Mas vai tentar? Seria útil sabermos como Melissa pretende votar na reunião dos acionistas.

- Eu tentarei, tia Jo. Só que não estou muito esperançoso.

- Se não der certo, imagino que teremos simplesmente que ir à nossa reunião do dia trinta e esperar para ver o que acontece.

- Sim.

- E, francamente, não estou nada otimista quanto ao resultado, Eric, agora que isso foi acontecer. A menos que você consiga convencer Melissa a agir de outro modo, temo bastante que ela fique ao lado de Sari.

- O que a faz pensar assim, tia Jo?

- Sari LeBaron tem tentado envenenar a mente de Melissa contra mim há anos - diz Joanna.

Essa observação, sobre o envenenamento da mente de Melissa, é uma rematada mentira, e Joanna sabe disso. Mas, pensa Sari às vezes, desde que se convertera na Medusa da Madison Avenue, na década da Propaganda, Joanna passara a construir uma carreira muito lucrativa baseada na mentira - no exagero e na supervalorização dos méritos dos produtos de seus clientes, denegrindo e ridicularizando os anúncios dos competidores de seus clientes: "Nove entre dez hematologistas recomendam Bonzo para a higiene bucal..." "Vocês ainda estão usando o antiquado Grippo para combater sintomas de gripe, quando poderiam estar dançando sob o luar de Miami após uma dose de FluGo, recomendada pelo seu médico?" Mentiras. Refugo. Mentiras são o estoque de Joanna em seu negócio. Pelo menos na propaganda da Baronet, Sari nunca pretendeu que seu vinho fosse outra coisa do que aquilo que eles eram: comuns, antiquados, vinhos sem sofisticação para trabalhadores. E quando ocorre a Joanna dizer que Sari tentava envenenar o espírito de Melissa contra ela, a verdade é bem outra. Um exemplo deve bastar.

Aconteceu durante o verão de 1955, quando os gêmeos estavam com dez anos e passavam o mês de julho num acampamento de férias de meninos no Maine. Logo eles estariam a caminho de Bitterroot, onde a família inteira passaria o mês de agosto. E Melissa - tão mudada, tão melhorada - estava ajudando Sari a organizar uma festinha de boas-vindas para Eric e Peeper. Melissa estava então com 28 anos, e Sari começara a se perguntar se ela chegaria um dia a se casar. Ao mesmo tempo, no entanto, ela se acostumara com a presença de Melissa no lar, e desfrutava de sua companhia. Aquela manhã no rancho de Montana tinha sido clara e ensolarada. O sol se refletia em semicírculos prateados no lago, e enquanto Peter trabalhava lá fora derrubando suas árvores, a disposição de ânimo das duas mulheres na casa grande era jovial e expectante ao planejarem a pequena festa familiar.

- Fico imaginando se eles terão mudado muito após um mês no acampamento - disse Melissa. E Sari observou:

- Eles certamente estão com o rosto vermelhinho como cerejas, e devem ter crescido mais uma polegada ou duas - disse Sari. Então, de repente, riu e perguntou: - Melissa, lembra-se de anos atrás, quando eu descobri que estava grávida novamente e você ficou tão perturbada com isso?

- Claro que me lembro.

- Por que foi aquilo, posso saber?

- Eu estava assustada, mamãe. Naturalmente, quando os gêmeos nasceram, e tudo estava bem, eu percebi que não devia ter ficado nervosa, mas na ocasião eu me sentia terrivelmente assustada.

- Assustada quanto a quê, Melissa?

- Tinha medo de que o bebê nascesse como um... monstro. Deformado. E temi que você fosse morrer.

- O que pôs tal idéia na sua cabeça?

- Foi algo que tia Joanna tinha dito.

- Joanna?

- Ela me disse que se você tivesse um outro bebê, ele nasceria deformado. Que se você tivesse outro filho, isto provavelmente a mataria. Eu costumava ter pesadelos sobre isso.

- Mas por que afinal Joanna diria uma coisa dessas?

- Ela disse que você já estava velha. Que você já ultrapassara sua fase de ter filhos. Que seria parecido com o caso de Athalie. Mas ainda pior.

- Eu estava então com apenas 35 anos... - mas de repente ela ficara tão indignada que nem podia mais-falar, e a sua raiva ganhara uma tonalidade forte - escarlate - que parecia ter brotado da bainha de uma espada desde o seu baixo-ventre até o teto de seu cérebro. Finalmente, conseguira dizer: - Vou sair a fim de colher umas flores silvestres para decorar a mesa.

Sari se orientara então pelo som dos golpes de machado de Peter até ir encontrá-lo onde ele estava trabalhando para clarear o bosque. E parou a uma curta distância dele para contemplá-lo: nu até a cintura, alto, musculoso e delgado ainda. As gotas de suor escorriam da sua testa e ombros no mesmo formato de arcos das lascas peroladas do alto pinheiro que ele estava abatendo. Um pensamento flutuou em sua mente. Peter estava então com cinqüenta anos. Desde o início de 1930 até após o fim da guerra eles não tinham vindo àquele rancho nenhuma vez, e durante aqueles anos grande parte do terreno que ele anteriormente desmatara convertera-se novamente numa floresta. E a partir de então ele conseguira desmatar sete hectares, talvez, dos 160 que planejara para a sua criação de ovelhas, juntamente com os novos arbustos que brotavam inexoravelmente ano após ano. Ele sempre insistira em trabalhar sozinho, recusando a ajuda do sr. Hanratty, o superintendente do rancho. Ainda que já idoso, Hanratty era um excelente lenhador. "Eu desejo ter a sensação de uma realização pessoal", explicara-lhe Peter. "E preciso de exercício." Mas naquele momento, enquanto o observava, ela intuiu que nunca haveria ali uma criação de ovelhas, que Peter possivelmente não viveria para concluir o projeto que idealizara, nem se lhe acontecesse viver cem anos. Ela via isso tudo como a grande ilusão dele, sua obsessão, uma outra forma de autopunição, e via tudo isso como algo de certo modo ligado a Joanna. Deu alguns passos na direção dele e disse:

- Peter, como pretende chegar a terminar isso, a menos que tenha outras pessoas para ajudá-lo?

A pergunta pareceu irritá-lo, e ele parou, franzindo a testa, apoiando-se no machado, e enxugou o rosto com um lenço vermelho axadrezado. Devia ser uma pergunta que ele já começara a fazer a si mesmo, e Sari sabia que não deveria tê-la formulado.

- Isto está progredindo - disse ele finalmente, e retomou sua tarefa.

A meia distância, o sr. Hanratty passou pela clareira, para ir cuidar de alguma tarefa, e Sari sorriu e lhe acenou, mas Hanratty não lhe ocupava a mente no momento. Ela estava tentando resolver como contar a Peter o que Melissa acabara de lhe dizer, ou se, de fato, lhe contaria realmente.

Mas, como se tivesse lido os pensamentos de Sari, ele disse, ofegando, entre duas machadadas:

- Recebi um telefonema de... Joanna, esta manhã.

- Ah, sim? O que ela deseja?

- Quer que... Lance venha passar aqui o resto das férias de verão.

- É mesmo? Por quê?

Ele fez mais uma pausa e enxugou a testa de novo com o lenço.

- Lance está de férias, e tem ficado na companhia de Joanna. Mas parece que ela tem de ir ao Japão a negócios e deseja dar folga de um mês aos empregados, mantendo fechado seu apartamento. Ela queria saber se nós ficaríamos com Lance.

- Bem, não podemos.

- Não? E por quê?

- Porque eu não quero Lance aqui. Se ela queria enviar Lance para cá, devia ter me pedido.

- Eu achei que os gêmeos gostariam. Falo de terem um companheiro mais velho aqui... alguém mais próximo da idade deles do que você ou eu.

- Pois não o queremos aqui. Ele não pode vir.

- Bem, na verdade eu já disse a ela que ficaríamos contentes em recebê-lo aqui. - E Peter retomou sua tarefa com o machado.

- O quê? - gritou então Sari. - Você lhe disse que ele poderia vir sem me consultar? Pois eu telefonarei agora mesmo para ela e lhe direi que ele não pode vir. Que não é bem-vindo, que eu não o desejo aqui.

- Ah, você não faria isso, Sari.

- Certamente que faria, e vou fazer. Como é que aquela puta tem a coragem...

- Não seja tão dura com Jo, Sari. Não tem sido fácil para ela educar aquele rapaz sem um pai.

- E quanto a mim? Estou farta de fazer tudo o que Joanna deseja! Eu criei a sua filha, certo? Já fiz muito pelos seus malditos filhos. Estou farta de consertar as embrulhadas sujas de sua irmã. Sua irmã nada mais é que uma mulher intrigante, conivente, que deseja criar desavenças entre nós. Primeiro foi Melissa sendo descarregada sobre mim. Agora é Lance. Bem, eu não o aceitarei, Peter.

- Ora vamos, Sari, você não fala a sério. - Ele estava contornando a árvore agora, observando-a com atenção, apreciando os cortes que já fizera, calculando os próximos. - Jo é sua melhor amiga.

- Eu falo realmente a sério. E com uma amiga como essa, não preciso de inimigos. Tudo que ela deseja é introduzir outra cunha entre nós dois. Não percebe? É tudo o que ela sempre quis.

Um novo golpe é desferido com o machado, e o alto do pinheiro estremece, seus ramos erguendo-se e suspirando ao vento, suas agulhas sussurrando numa espécie de protesto. E Peter diz:

- Eu disse a Joanna que a ajudaríamos a sair dessa dificuldade.

- Por quê! Por que temos que ajudá-la? Já não a ajudamos o bastante? É... - começou ela quando o machado era brandido de novo - é porque você acha que ela é melhor na cama do que eu? É isso? É porque ela faz sexo melhor? - Estava gritando para ele agora, assim que o machado foi movido de novo. - Ou é por que Lance é seu filho também!

A árvore começou a tombar, e Sari a viu inclinar-se na sua direção; tentou correr, então tropeçou e caiu, quando o pinheiro se abateu sobre ela.

- Oh, meu Deus! - Ela ouviu Peter gritar. - Oh, meu Deus,

Sari!

O sr. Hanratty, que ouvira os gritos, veio correndo. E os dois homens tentaram erguer a pesada árvore que caíra sobre as pernas de Sari. E tudo que ela pôde ouvir foi Peter soluçando:

- Oh, meu Deus! Sari!

Mais tarde, no que reconheceu vagamente ser um quarto de hospital, Sari abriu os olhos e viu o rosto de Peter se inclinar sobre o seu. Ele estava dizendo:

- Oh, meu Deus, sinto muito, Sari. O vento mudou de direção, e então você correu... justo no ponto onde a árvore tombava...

- Não, não foi o vento. A culpa foi minha. Eu não devia ter dito aquilo. A culpa foi toda minha.

- Não diga isso. Foi um acidente, Sari... Eu lhe juro que foi! Ela fechou os olhos. Não, pensou, talvez a culpa não fosse sua

ou dele.

A culpa era de Joanna.

 

Extraído da primeira página da Península Gazette:

A FUSÃO PROPOSTA PELA KERN-McKITTRICK ACENDE UMA RIXA FAMILIAR

São Francisco, 28 de março. Um drama complicado de negócios de família está se desenrolando nas juntas administrativas de duas das mais prestigiosas companhias da Califórnia, e nas salas de visitas de duas das mais abastadas famílias da Área da Baía de Frisco. Além disso, colocados um contra o outro, estão dois dos mais duros lutadores da Bolsa de Valores, o magnata do petróleo Harry Boyd Tillinghast e Assaria Latham LeBaron, presidente e diretora executiva oficial da Baronet Vineyards, Inc., e viúva e detentora dos bens do clã dos vinhos dos LeBarons. Ao que parece, a Kern-McKittrick Corp., de Tillinghast, gostaria de entrar no ramo dos vinhos, e fez, para provar isso, uma oferta de compra de US$56 milhões em ações aos acionistas da Baronet.

A questão está complicada, porém, devido a dois fatores. Para começar, a filha de Harry Tillinghast, Alix, é casada com Eric, filho de Assaria LeBaron, de 39 anos e de Hillsborough. E Assaria LeBaron rejeitou taxativamente a oferta de Tillinghast classificando-a de "dinheiro miúdo"... isto é, 56 milhões, acreditem.

Fatores Relacionados

Faíscas começaram a irromper no seio da família LeBaron em fevereiro, quando a agência de publicidade da Baronet em Nova York, a LeBaron & Murdock, Inc., renunciou à conta da Baronet, alegando "divergências nas filosofias de propaganda". A LeBaron & Murdock é de propriedade de um outro membro da família, a sra. Joanna LeBaron Kiley, cunhada de Assaria LeBaron, conhecida profissionalmente como Joanna LeBaron.

Os íntimos, contudo, afirmam que as divergências foram mais do que filosóficas, e que o motivo verdadeiro para a cisão foi a recusa da Baronet de pagar comissões integrais sobre os anúncios obtidos através da agência de publicidade, além da controvérsia da Baronet quanto ao que é designado como "preços de família".

Mas essa disputa intrafamiliar pode também ser muito acesa devido à declaração anterior de Assaria LeBaron dè que seu filho Peter P. LeBaron, Jr., seria nomeado co-diretor de publicidade e marketing da companhia, junto com o seu irmão gêmeo Eric. Diz-se que Eric ficou descontente com essa disposição, que sua mãe defendeu como algo que "trará energia nova para o Departamento de Publicidade e Marketing".

O descontentamento de Eric LeBaron, segundo se afirma, explica seu apoio à oferta de compra feita por Tillinghast, que é também apoiada por Joanna LeBaron Kiley, uma outra acionista importante da Baronet. Assim, duas cunhadas estão lançadas uma contra a outra pelo controle da companhia, e a mãe se confronta com seu filho. Eric LeBaron foi demitido da empresa. Seu irmão Peter ali permanece, e presumivelmente, apoiará sua mãe nessa luta.

Segredo de Família A Baronet Vineyards, a maior abastecedora de vinhos de caneca baratos do país, tem sido há muito tempo uma companhia de propriedade integral de uma família, e seu ativo é um segredo de família muito bem resguardado. Inúmeras ofertas de compra e fusão não obtiveram êxito no passado. Contudo, quando a organização de Tillinghast conseguiu adquirir no ano passado 2 mil ações da Baronet, a Kern-McKittrick pôde, tal como Assaria LeBaron descreveu, "pôr seus dedos dos pés na porta... uns pés muito pouco atraentes, a propósito. Petróleo e água não se misturam, e nem o óleo e o vinho". A Kern-McKittrick opera com campos de petróleo, em Kern, Tulare e condados de Fresno.

Devido ao sigilo tradicional da companhia vinhateira, torna-se difícil atribuir um valor exato ao seu estoque de ações, que nunca tinham sido negociadas no mercado de valores. Contudo, a oferta de Tillinghast é de 13,25 ações ao preço corrente da Kern-McKittrick por cada ação comum da Baronet. E já que a Kern-McKittrick está negociando atualmente no N.Y.S.E. em torno de US$ 50 por ação (elas alcançaram o alto patamar, de US$ 56 em recentes semanas, assim que circularam rumores em Wall Street sobre a fusão), é possível imaginar-se que Harry Tillinghast calcula que o estoque da Baronet valha aproximadamente US$ 662 por ação.

Isto, insiste Assaria LeBaron, é um valor muito baixo. As ações da companhia, diz ela, valem no mínimo mil dólares cada, com o que Harry Tillinghast teria que subir sua oferta para, no mínimo, oitenta milhões em ações do estoque da Kern-McKittrick. "Será que ele me toma por uma tola", disse a sra. LeBaron à reportagem da Gazette ontem. "Quando lhe foi permitido comprar ações nossas, ele pagou US$ 700 por cada uma. E agora oferece 660. Acredita ele que houve uma queda de valor?" A sra. LeBaron acusa o sr. Tillinghast de agir de má-fé.

A questão presumivelmente será resolvida numa reunião de acionistas marcada para 30 de abril.

Complicações Inesperadas

Até o presente, a Baronet Vineyards é de apenas sete acionistas. Assaria LeBaron, ao que se diz, controla cerca de 28 mil ações, e, ao que se sabe, sua cunhada detém igual quantidade. Umas 12 mil ações adicionais são detidas pelo filho de Joanna LeBaron, o sr. Lance, de 55 anos, de Peapack, Nova Jersey, um desportista e criador de cavalos. Peter LeBaron Filho, ao que se afirma, possui 4 mil ações; seu irmão Eric detém 2 mil ações, e Harry Tillinghast detém presentemente 2 mil ações. Contudo, uma complicação inesperada surgiu envolvendo a posse de ações da srta. Melissa LeBaron, uma colunável e benfeitora das artes.

A srta. LeBaron foi educada em São Francisco como filha da sra. Assaria LeBaron. Mas no decorrer da avaliação e classificação dos títulos e ações dos LeBarons nos preparativos para a batalha da encampação, revelou-se que a srta. LeBaron é, na verdade, filha de Joanna LeBaron Kiley, fruto de um casamento anterior. De acordo com as disposições do testamento de seu pai, Melissa LeBaron herdou 4 mil ações do estoque total da Baronet. Mas o testamento estipula também que as 12 mil ações ora detidas por Lance LeBaron seriam divididas igualmente entre os filhos de Joanna Kiley. Melissa LeBaron está agora reclamando que isso não foi feito, e que ela tem direito legal a 6 mil ações adicionais dos bens de seu pai. Com 10 mil ações sob seu controle, Melissa LeBaron pode perfeitamente formular o "voto decisivo" na atual disputa. A srta. LeBaron negou-se a ser entrevistada para o presente artigo, e todas as perguntas foram endereçadas aos seus advogados, que alegaram não ter comentários a fazer.

As complicações legais suscitadas por essa recente revelação familiar podem facilmente bloquear o andamento da operação visada pela Kern-McKittrick.

"Vai Ficar Como Está" "Esta tem sido sempre uma companhia dirigida por uma família durante quatro gerações, e vai ficar como está", disse à Gazette Assaria LeBaron. "Se qualquer um deles tiver bom senso, entenderá o meu ponto de vista, e conservará a Baronet tal como ela é. Nesse meio tempo, tudo isso veio a se tornar ridículo. Ninguém da família está falando com ninguém. Uma vez eu tenha ganho essa questão, e deixe tudo isso para trás, gostaria de retornar ao meu verdadeiro negócio, que é fabricar e vender vinho."

A sra. LeBaron, uma septuagenária, é uma filantropa desta cidade muito conhecida. Foi ela quem financiou na maior parte a restauração do Teatro Odeon, e se dedica ativamente aos projetos de reurbanização da área sul da Market Street. Ela é também a "Vovó Voadora" que no último inverno esteve nas manchetes quando, embora sem ter licença de piloto, assumiu os controles do Boeing 727 da sua empresa e conduziu o aparelho sob o vão central da ponte Golden Gate.

A sra. LeBaron é também a proprietária do time de beisebol São Francisco Condors, presentemente realizando seus treinamentos da primavera no Candlestick Park.

A Baronet Vineyards foi fundada pelo avô do falecido esposo de Assaria LeBaron, Marc LeBaron, um imigrante francês, em 1857. Seu marido, Peter Powel LeBaron, faleceu vitimado por um acidente de caça no rancho da família em Montana, em 1955. Desde a morte do seu marido, a sra. LeBaron tem dirigido a Baronet praticamente sozinha, e vem merecendo o mais profundo respeito como uma negociante durona e uma astuta mas honesta lutadora na comunidade de negócios desta cidade.

- Gostei disto, Gabe! - diz Sari. - Está perfeito. Todas as citações me são creditadas devidamente, e eu não me importo em ser chamada de negociante durona ou uma lutadora. Também gosto dessa parte, "astuta mas honesta". Na verdade, creio que a coisa toda é muito a meu favor, não?

- Não era isso que você desejava?

- E obtivemos até uma promoção para os Condors! Eles vão adorar isso! E tornamos os LeBarons franceses, em vez de wops. O velho Julius teria adorado isso... embora ele viesse a preferir que se dissesse "aristocrata francês". Quando este jornal foi para as bancas?

- Às seis horas desta manhã.

- Ah! Já recebemos telefonemas do Time e da Business Week, indagando quem foi o primeiro marido de Joanna. Eles não encontraram nenhum registro sobre isso. Ah! Eu disse a verdade. Disse-lhes que não sabia. E falei que perguntassem a Joanna. Ah! Assim eu rebati a bola de volta à sua quadra, bem no alvo.

- Fico contente que tenha gostado do artigo, Sari.

- Eu gostei. Dê os parabéns ao Archie em meu nome.

- Tenho certeza de que ele gostará de saber que ainda pode ser útil a você - retruca Gabe sem um vestígio de sarcasmo.

- Ora, Gabe. Você sabe que, de início, pensei que a melhor coisa a se fazer seria destruir a credibilidade de Melissa. Então mudei de idéia, e resolvi que precisaria dela na minha equipe. Mudar de idéia é uma prerrogativa feminina, não é mesmo?

- Certamente, Sari.

- Agora, mesmo que não me telefone nem responda às minhas cartas, Melissa lerá isso e certamente enxergará claro... exatamente na primeira página do jornal! Você deu um furo de reportagem para o país inteiro, Gabe. De repente, eu me sinto muito otimista.

- Ótimo.

- A srta. Martino já atendeu a ligações das redes de notícias. O que você acha, Gabe? Devo aparecer na TV com isso? Devo aparecer no Good Morning America, e no Today?

- Isso seria apropriado para você, Sari.

- Se há uma coisa que sempre fui capaz de fazer, é apresentar-me diante do público. Creio que o que direi a todos é que tudo que consinto fazer será um segmento do programa Sixty Minutes. Acho que Sixty Minutes conta com mais credibilidade do que esses noticiários pingados matinais, você não pensa assim? E eles vão à casa dos entrevistados para gravar e filmar. No caso dos outros, eu teria que ir a Nova York. O que eu deveria vestir para aparecer no Sixty Minutes? Algo simples, eu creio, simples e comercial. E acho que gostaria de ser apresentada por Harry Reasoner, e não por um desses outros paspalhos. Definitivamente não participarei do programa se o entrevistador for Mike Wallace...

Gabe Pollack sorri. Sari é uma estrela novamente.

Após o sepultamento de Peter, Sari tinha se mostrado uma estrela também, a principal figura enlutada, a destinatária principal das cartas e telegramas de pêsames - dos líderes da indústria, do prefeito de São Francisco, do governador, do presidente do Supremo Tribunal, Earl Warren -, todos os quais seriam por ela respondidos em papel de carta gravado e monogramado com as bordas negras. E depois que todos os convidados haviam ido embora, e os apertos de mão, beijos e frases de condolências e conforto se esvaíram, ela e Gabe tinham ficado a sós finalmente na grande casa da Washington Street. A Bolo de Noiva parecera de repente muito vazia, e Sari se descobrira com uma forte sensação de desalento. Ela cobrira o espelho da sala de visitas com o seu véu negro de luto.

- Malchemuvis - murmurara.

- Sim.

- Você o amava, não, Sari?

- Sim. Não. De quando em quando. A intervalos, Gabe. Ele era um homem difícil... difícil de se conhecer. Durante muito tempo, foi como viver com um estranho, uma sombra, ou um fantasma, e eu não conseguia descobrir o que o estava atormentando, assediando-nos. Então eu descobri, e isso me ajudou a trazê-lo de volta à vida... numa pequena parte pelo menos. De tempos em tempos. Mas o fantasma realmente nunca desapareceu. Continuou a retornar para nos atormentar com o que sabia. Joanna. Você a viu junto ao túmulo? Que mulher ridícula.

- Uma mulher maligna, é isso que você acha?

- Não, maligna não. Ridícula apenas. Ridícula, mas muito eficaz.

- Eu não entendi ainda aquilo.

- O quê?

- O acidente de caça. Ele não caçava, não é?

- Não. Peter derrubava árvores. Nos idos de 1930, ele costumava portar uma pistola, mas isso se destinava apenas a manter o moral diante dos trabalhadores das vinhas quando havia problemas trabalhistas - ameaças de greves, piquetes de grevistas, os fura-greves, esse tipo de coisa. Ele nunca a usou. Eu costumava carregar uma arma também, por iguais motivos, e cheguei a usá-la mais do que ele, mas nunca contra um ser humano.

- Então como aquilo aconteceu?

- Naquela manhã, Peter parecia perfeitamente normal. Um pouco mais reservado do que de hábito, talvez. Meu acidente o perturbara muito. Ele se responsabilizava por isso. Disse ao sr. Hanratty que iria caçar uns coelhos. Coelhos! Coelhos não eram nunca um problema no rancho, pelo menos que eu soubesse. Quando eles o encontraram, a impressão foi de que ele teria tropeçado num tronco abatido e a pistola disparado acidentalmente, atingindo-o no peito. Ele estava caído de bruços, do outro lado do tronco caído. Aquilo não foi um acidente.

- Por que afirma isso?

- Eu encontrei isto - diz Sari, e move sua cadeira de rodas até a mesa de jogos Regency; faz girar o tampo e retira um pedaço de papel mata-borrão de um dos escaninhos secretos do móvel. E diz: - Segure-o diante do espelho e poderá ler o que aí está.

Gabe acerca-se do espelho e, cautelosamente, ergue uma das pontas do véu escuro de Sari, deixando à mostra um pequeno triângulo de vidro. Ergue o papel junto ao espelho e lê: Eu não posso mais enfrentar esta vida.

- A letra é dele. Eu encontrei esse papel em sua mesa. Até hoje não o mostrara a ninguém. Ele deve ter começado a escrever um bilhete, então mudou de idéia.

- Nenhum bilhete foi encontrado.

- Não. Somente isso. Não está nem sequer endereçado a alguém.

- Ele destruiu o bilhete.

- Sim. Talvez o tenha queimado. Quem sabe? Mas mudou de idéia, e não o terminou.

- Eu me pergunto por quê.

- Talvez porque não quisesse colocar a culpa em alguém. O que seria um gesto bonito. Mas eu creio ser mais provável que Peter se lembrasse de que, como suicida, não poderia ser sepultado em terreno consagrado, como o foi hoje. Ele se lembrou de sua mãe e do seu pai.

- Mas por que Peter desejaria tirar a própria vida? Isto é o que não consigo entender.

- Oh, Gabe - diz Sari então num tom quase desesperado -, não sei. Às vezes penso que nada sei. Hoje, na igreja, achei que não sabia nem sequer quem eu era. Senti que não tinha nenhum direito de participar do que estava se desenrolando, e não pude entender nem um pouco daquilo tudo. Senti que estava completamente só ali, perdida em algum terrível limbo, com um nome que me deram tirado de duas cidadezinhas de Kansas que eu nunca vi. Deus noster refugium... mas nós somos judeus, não somos, Gabe? Os romanos nos perseguiram, certo? Nós somos judeus, errantes, auslanders, estranhos numa terra estranha, certo? E eu pensei: "Como vim a fazer parte disso? Eu não pertenço a este lugar. Pertenço a alguma terra diferente de laticínios e mel, laranjais, ciprestes e cedros-do-líbano, mas também nada conheço dessa terra. Mas por que estou aqui, e não lá, e como cheguei até onde me encontro? Como perdi tudo, minha fé e minhas raízes? Não tenho nenhum assunto a partilhar nessa Missa de Réquiem Solene de hoje, ajoelhando-me diante de uma imagem do Cristo crucificado." Eu não tinha do que participar ali, e no entanto ali estava eu. A minha vida inteira terá sido uma fraude e uma hipocrisia? Como me converti em nada - nada absolutamente -, despojada de sentimentos e sem nada para crer, descrendo até de mim mesma? Estará Peter no céu agora? E Athalie? E Julius e Constance? Para onde eu irei? Eu não sei. Quem sou eu? Quem é ela? Sari ouvira essa indagação ser sussurrada, e Gabe também, particularmente nos primeiros meses após ela e Peter terem retornado de sua muito longa viagem de núpcias à Europa, com um novo bebê. De onde ela veio? De Terre Haute, dizem. TerreHau-te! E que estranho nome: Assaria! E quem é mesmo esse homem que era seu tutor, Gabe Pollack? Um judeu, dizem eles. E ela é uma judia? É difícil dizer. Pela sua aparência, pode ser ou não. Você acha que ela e Gabe Pollack eram amantes? É difícil dizer, mas ele não é... um pouco "fresco", como se costuma dizer? E quem é ela? E quinze meses para uma lua-de-mel, e um bebê! E esse bebê... parece um bocado mais velho do que os LeBarons dizem que é! Qual é a idade que lhe dão mesmo? Quatro meses? Se eu entendo de bebês, aquele está mais próximo dos oito meses. Isso quer dizer, naturalmente, que ela estava grávida quando se casou com ele... e toda vestida de branco! Ele teve que se casar com ela, é claro. Os LeBarons sempre fazem casamentos inferiores. Vejam o caso de Julius e Constance, que, com todos os seus ares, finge ser uma legítima O'Brien, quando todo mundo sabe que... Bem, afinal, o que se espera? Eles eram gente do vale. Comedores de cavalinhas. Dagos. Wops. Bem, uma coisa eu posso afirmar sobre ela. Ela fisgou um ricaço. Pegou-o direitinho. Deixou-o louco por ela.

Isto era o que o pessoal de São Francisco murmurava quando Sari e Peter chegaram em casa pela primeira vez com Melissa. O passado se desenvolve em silêncio. Ele não desaparece.

- Quem sou eu, Gabe?

- Bem, eu sou um membro da minha própria e pequena minoria perseguida.

- O que quer dizer? Oh, você se refere a... aquilo. Pelo menos você pode se considerar parte de um grupo. Eu não sou nada.

- Numa análise derradeira, todo mundo é uma minoria de um. Tal como Deus disse a Moisés: "Eu sou o que sou."

- Mas o que Deus quis dizer com isso? A menos que fosse um enigma. Isto é o que acho que sou... apenas um enigma.

- Você amava muito Peter, não?

- Costumava achar que o amava.

- Mas você amou Peter, Sari. Eu desejo ouvi-la dizer isso. É importante para mim.

Sari sorriu um pouco alheada.

- Oh, nós tivemos nossos momentos de paixão. O amor é importante? É importante estar apaixonada? Quantas vezes tenho me feito essa pergunta.

- A resposta, creio eu, é sim.

- Gabe, sinto-me um tanto assustada por ficar sozinha nesta casa esta noite. Você passará a noite comigo? Não terá de haver nada mais que isso. Simplesmente passe a noite aqui, para que nós dois, proscritos e órfãos, possamos sê-lo juntos.

 

E agora, por fim, o dia chegou. Estamos a 30 de abril, e os acionistas da Baronet Vineyards acham-se reunidos numa suíte do sexto andar do Fairmont a fim de decidirem sobre a transação à vista. A gerência do hotel prestimosamente providenciou a retirada da mobília de quarto daquela suíte, e a substituiu por uma mesa comprida de reuniões e cadeiras giratórias confortáveis, umas doze ao todo, e em cada lugar à mesa foi colocado um bloco novo de papel ofício amarelo para assuntos legais, junto com uma caneta esferográfica nova, copos e garrafas para água gelada individuais. Na sala de estar contígua foram colocadas cafeteiras e bules de chá, com xícaras, pires e travessas com pastéis frescos dinamarqueses, croissants e pãezinhos doces com passas. No que tinha sido um dormitório, o clima é todo de negócios. Do lado de fora, na sala de estar, pensa Sari, há uma atmosfera de reunião

quase festiva. O hotel chegou mesmo a enviar flores frescas para a sala, e uma grande cesta com frutas frescas repousa num ninho de celofane verde cortado em tiras. Lá fora, do outro lado da rua, numa diagonal, Sari pode ver a fachada berrante do posto da Standard que ocupa o lugar na Califórnia Street onde outrora se erguia a velha casa dos LeBarons.

Todos esses pequenos enfeites supérfluos e toques especiais foram, naturalmente, providenciados pelo pessoal do escritório de Sari, pois essa não será nenhuma reunião comum de acionistas. Normalmente, as reuniões de acionistas tinham sido até então despretensiosas, os assuntos informais tratados na sala da diretoria antiquada da Baronet, com todos sentados ao redor bebendo Coca-Cola em copos plásticos. Mas Sari escolheu o Fairmont porque deseja que a reunião de agora seja mantida em território neutro. Ela escolheu aquela suíte porque é mais bonita e mais íntima do que alguns dos recintos padronizados de reunião. Não que se espere que essa vá ser uma pequena reunião aconchegante de velhos amigos. Parece-se mais com um conselho de guerra.

Assaria LeBaron está deliberadamente evitando um contato visual com quaisquer das outras pessoas na sala. Que eles imaginem, pensa Sari, o que ela fará primeiramente. Ela observa como a estenógrafa negra do tribunal, que fora convocada para registrar as atas para a posteridade, habilmente remove a sua pequena máquina de sua incrivelmente pequena valise negra, desdobra suas hastes delgadas e a assenta sobre o tripé. Com esse pequeno instrumento, com o seu punhado de pequenos símbolos, ela registrará cada sílaba que seja pronunciada e então, magicamente, transformará seus símbolos em palavras escritas. Um pequeno pacote de fita branca de estenografia aparece, dobrado de acordo com a moda, e, com ele, a máquina é alimentada pelos dedos eficientes, com esmalte de unhas escarlate, da jovem estenógrafa. Um tape que cedo será preenchido com símbolos impossíveis de decifrar... isto é, impossíveis para todos que não ela.

Essa moça negra é uma beleza realmente, com uma cútis que tem quase uma nuança purpurina, um pescoço aristocrático, e o perfil de Nefertite. Sua postura é a de uma aristocrata além da aristocracia, uma princesa etíope, e sua perícia, consumada. Essa princesa-sacerdotisa exibe seu cabelo negro como azeviche puxado firmemente para trás e preso num coque na nuca. Seu cabelo tem o brilho acetinado de uma nogueira negra envernizada, e um hábil toque de pintura propiciando uma ilusão visual não pode ser ignorado. Suas maçãs salientes foram tingidas parcimoniosamente com uma cor rósea. No interior dessa cabeça perfeitamente esculpida estão encapsuladas todas as espécies de poderes e ciências antigas traduzidas. Ela franze desdenhosamente a testa diante da sua máquina, então suas narinas se alargam imperiosamente

quando ela se senta defronte da mesma e pousa seus dedos longos e delgados sobre o teclado. E diz:

- Por gentileza, posso saber os nomes e postos de todos nesta reunião, começando pelo senhor sentado à cabeceira da mesa, e depois seguindo-se da direita para a esquerda? - E seus dedos estão prontos para registrar as respostas.

- William C. Whitney - diz Bill Whitney, o pequeno e afetado secretário do conselho da Baronet. - Secretário da Junta de Diretores, da Baronet Vineyards, Inc.

- Harry Boyd Tillinghast - diz Harry, sentado à esquerda de Bill Whitney. - Acionista registrado da Baronet.

- Eric O'Brien LeBaron, acionista - diz Eric, que é o próximo à mesa.

- Eldridge R. Nugent, representando a sra. Joanna LeBaron Kiley, advogado da firma de Cravath, Swaine e Moore, localizada em Manhattan Plaza, Nova York - diz o advogado de Joanna. E os dedos da jovem estenógrafa movem-se sem ruído sobre o seu teclado, o rosto inexpressivo.

- Joanna LeBaron Kiley - diz Joanna. - E creio dever acrescentar que sou conhecida profissionalmente como sra. Joanna LeBaron. Eu também sou uma acionista registrada. E gostaria de deixar registrado aqui que, embora meu filho, Lance LeBaron, não possa estar presente a esta reunião devido à pressão de compromissos de negócios, disponho dos poderes de procuradora e executora das suas instruções. Em qualquer votação que venha a ocorrer nesta reunião, estarei votando em nome das ações detidas por meu filho.

- Anotado - diz Bill Whitney.

Típico de Joanna, pensa Sari. Não pode dar simplesmente seu nome, posição e número de série como os demais. Tem que fazer um pequeno discurso.

- Jonathan Baines - diz o primeiro dos advogados de Sari, que está sentado à sua direita. - Sou advogado na firma de Jacobes e Sil-ler, São Francisco, e represento a sra. Assaria LeBaron.

As respostas agora contornam um canto da mesa, e chega a vez de Sari, sentada do lado oposto ao de Billy Whitney. Ela diz numa voz clara:

- Assaria Latham LeBaron, presidenta e diretora executiva oficial da Baronet Vineyards, e acionista.

À sua esquerda, seu segundo advogado diz:

- Simon Rosenthal, advogado, também da firma de Jacobs e Siller, e representando também Assaria LeBaron.

Conto com dois advogados para um de Joanna, pensa Sari. Isto deve conceder-me, pelo menos, uma vantagem psicológica.

- Peter Powell LeBaron, filho - diz Peeper. - Vice-presidente de publicidade e marketing da Baronet Vineyards, e acionista.

Agora as respostas alcançam uma cadeira vazia. Ninguém deixara de notar que Melissa não aparecera. A reunião estava marcada para as nove horas, e já passa desta hora no momento. E assim o rolo da fita estenográfica acusa um salto quanto ao lugar de Melissa, e move-se para o homem seguinte à mesa, o advogado de Melissa, o sr. Kline, que está brincando com um lápis e fazendo o melhor possível para não parecer preocupado com a situação. Ele diz:

- Sou J. William Kline, Jr., um advogado da firma de Bartless, Mather, Brooks e Kline. Nossa firma representa a srta. Melissa LeBaron, acionista, que deve estar aqui a qualquer momento.

- Tem procuração de Melissa LeBaron, sr. Kline? - perguntou Bill Whitney.

- Não, não tenho. Mas quando falei ontem à noite com a minha cliente, ela me assegurou que estaria aqui hoje. Eu desconfio que...

- O trânsito está congestionado - diz Sari. - Há um engarrafamento na ponte. Ouvi pelo rádio esta manhã.

- Que ponte? - diz Eric com irritação. - De onde ela está vindo, afinal de contas? Ela não vem de Pacific Heights?

- Bem...

- Nesse meio tempo - diz Bill Whitney com sua voz afetada, ajustando os óculos no alto de seu nariz com a mão esquerda rosada -, enquanto aguardamos a chegada da srta. LeBaron, tenho uma sugestão a fazer aos aqui reunidos. Como tenho certeza de que todos nós estamos cientes, a reunião de hoje envolve determinadas... bem... divergências em relação aos nossos procedimentos normais. Será particularmente importante hoje a contagem dos votos por ações...

Você pode repetir isso de novo, pensa Sari. Nas reuniões no passado, ninguém prestava muita atenção ao número de votos por ações que cada acionista tinha, porquanto votavam simplesmente para apoiar suas políticas.

- Sugiro - prossegue Bill Whitney - que a cada acionista seja outorgado um voto por cada grupo de mil ações que ele detenha. Assim, ao portador de duas mil ações seriam atribuídos dois votos, um detentor de quatro mil ações teria direito a quatro votos, e assim por diante. Creio que isso simplificaria as coisas. Têm quaisquer objeções a essa sugestão?

Ninguém se pronunciou.

- Muito bem - diz Whitney -, então será esse o modo como procederemos. Isto é, assim que Melissa LeBaron chegar.

- Posso sugerir - diz Harry Tillinghast - que esta reunião não fique pendente indefinidamente da chegada da srta. Melissa LeBaron?

- Certo - diz Bill Whitney. - Mas creio que podemos ser um pouco flexíveis, sr. Tillinghast.

- Obrigado - diz Kline. - Eu lhes asseguro que a minha cliente estará aqui a qualquer minuto.

- E nesse meio tempo - diz Sari - eu tenho uma proposta a apresentar a este tribunal.

- Isto não é um tribunal, mamãe - diz Eric incisivamente. - Esta é uma reunião de acionistas.

- Bem, tribunal, tribunal ilegal ou irregular, seja o que você queira que o chamemos.

- Sari, minha querida - diz Joanna do outro lado da mesa -, por favor, não faça brincadeiras. Estamos aqui para discutir negócios a sério.

- Qual é a sua proposta, sra. LeBaron? - pergunta Bill Whitney.

- Bem, como todos aqui sabem, Melissa está no momento pleiteando o direito a seis mil ações adicionais da Baronet segundo as disposições do testamento de seu pai, além das quatro mil ações que já possui. Estou sendo exata, sr. Kline?

- Sim.

- Muito bem. Essas ações adicionais não foram entregues à custódia de Melissa, e faz parte de sua alegação que elas se acham ainda incorretamente detidas por Lance LeBaron. Correto?

- Correto.

- Muito bem, então. Já que pode decorrer algum tempo antes que a reivindicação de Melissa seja resolvida, e como pode haver um demorado litígio até esse ponto, parece-me não caber dúvidas de que o assunto será decidido a favor de Melissa. Afinal, o testamento de meu marido era bem específico, e não há nele nenhuma ambigüidade. Quatro mil ações foram legadas de modo inequívoco a Melissa. Doze mil ações seriam divididas igualmente entre os filhos de Joanna LeBaron. Melissa e Lance são ambos filhos de Joanna LeBaron. Portanto, Melissa tem direito legal à metade dessas doze mil ações. Correto?

- Essa é a nossa posição no caso, sra. LeBaron - diz Kline.

- Assim sendo, e à luz do resultado evidente dessa questão, eu proponho que, para os fins desta reunião, seja concedido a Melissa LeBaron o direito de votar em nome das dez mil ações que numa data futura ela irá possuir, e que a Lance LeBaron seja permitido votar em nome somente das seis mil ações às quais ele eventualmente tem direito.

Consultas em tom sussurrado ocorrem entre Joanna e seu advogado, e rabiscos apressados são feitos nos blocos de papel ofício amarelo.

- Está colocando isso na forma de uma moção, sra. LeBaron? - perguntou Bill Whitney.

- Sim. Faço uma moção.

- E eu apoio a moção - diz Peeper.

- Feita e apoiada - diz Bill Whitney. - Muito bem. Votaremos na mesma ordem, da esquerda para a direita. Lembrem-se, um voto por mil ações detidas. Sr. Tillinghast, como votará?

- Contra a moção.

- Eric?

- Contra.

- Sra. Kiley?

- Contra.

- A favor - diz Sari.

- A favor - diz Peeper.

- Sra. Kiley - diz Whitney -, como votaria por procuração o sr. Lance LeBaron?

- Lance LeBaron - diz cautelosamente Joanna - se abstém de votar sobre essa questão, já que ela envolve o número de ações com as quais está autorizado a votar. Um voto de meu filho sobre essa moção não seria apropriado. Na verdade, parece-me que seria inteiramente inadequado.

- Concordo - diz Bill Whitney. - Contudo, isto nos deixa numa situação de empate na votação. - Consulta seu bloco de anotações amarelo. - Trinta e dois votos a favor, e trinta e dois contra.

- Contudo - diz Joanna -, eu creio que em qualquer situação como esta, um voto em suspenso é registrado como um voto contra a moção. Melissa LeBaron deixou de vir votar. Assim sendo, como uma acionista de posse oficial de quatro mil ações, seu voto deve ser registrado como quatro votos contra.

Kline bate na mesa violentamente com seu punho, mas não diz nada.

- A senhora tem razão, é claro - diz Bill Whitney tocando de novo o aro de seus óculos com a ponta de um dos dedos. - Foi um lapso meu. Portanto, a moção é rejeitada por 36 a 32. - Dirige um olhar desapontado a Sari e diz: - Sinto muito.

- E agora - diz Joanna -, eu gostaria de fazer uma moção. - Consulta seu relógio. - Esta reunião foi convocada para as nove horas. São agora 9:25. Melissa já está com um atraso de quase meia hora. Sugiro que a adiemos por exatamente quinze minutos, findos os quais, caso Melissa não tenha aparecido, prosseguiremos sem a sua presença.

- Isso parece razoável - diz Bill Whitney. - Devemos votar pelo levantamento de mãos? Sim? Todos a favor, ergam a mão.

Todas as mãos foram erguidas, exceto a de Sari, e quando ela vê que a mão de Peeper também está erguida, tenta fazê-lo abaixá-la, mas já é muito tarde. Endereça-lhe um olhar rancoroso.

- A moção está aprovada por 36 a 32 - diz Bill Whitney, e dirige a Sari um novo olhar tristonho. Ele, pelo menos, está a seu lado, embora não tenha direito a votar. Se Eric e Joanna chegarem ao poder, assarão o seu infeliz traseiro, e ele sabe disso. Com Sari à frente da Baronet, ele pelo menos sabe que conta com um emprego. Um emprego ingrato, mas um emprego.

O sr. Kline também está com uma expressão infeliz.

- Deixar de votar significa um voto contra! - exclama Sari. - O voto de Melissa tem que ser computado contra essa moção!

- Receio já tê-lo computado - diz Bill Whitney com a mesma expressão desculposa. - Os votos contrários foram os seus 28 mais os 4 de Melissa.

- São agora 9:32 - diz Joanna. - Melissa terá que estar aqui exatamente às 9:47.

O pequeno grupo desloca-se para a sala de estar da suíte, onde estão as cafeteiras e pasteizinhos, mas ninguém parece ter apetite para isso.

- Bem, Sari querida - diz Joanna -, calculo que você possa dizer que eu ganhei o primeiro e o segundo rounds, não é mesmo?

- Você é uma mulher miserável, conivente, furtiva - diz Sari.

- Você é uma mexeriqueira egoísta e desumana, Não sei por que levei tantos anos para vê-la como realmente é. Quando voltarmos àquela sala, deverei mencionar o que se passou entre você e Peter? Deverei deixar que aquela deusa de ébano calque as teclas de sua pequena máquina e faça o registro devido? Então, o que diz?

Joanna gira nos calcanhares e cruza a sala para se juntar a Eric e Harry no lado oposto, e, naturalmente - pois não é uma mulher tola -, Sari sabe que não devia ter dito aquilo, nunca, absolutamente. Estou perdendo meu controle, pensa. Não, pensa a seguir, já o perdi. Voltando-se para Kline, ela diz:

- O senhor tentou telefonar para ela?

- O telefone não responde em seu apartamento.

Estou morrendo por polegadas, pensa Sari. Estou morrendo por polegadas, mas já vivi por quilômetros.

- Pegue uma carta, qualquer uma - diz Melissa.

Ele retira uma carta do baralho e a observa.

- Não a mostre para mim. Recoloque-a no maço. Agora, vamos embaralhá-las... - O telefone que estivera soando quase toda a manhã deixou de se fazer ouvir de novo.

- Você nunca atende ao telefone? - observa ele.

- Hoje não estou atendendo. - E ela embaralha as cartas, depois as espalha sobre a mesa, as figuras para cima. - Eis sua carta Era o sete de ouros.

- Puxa, como você fez isso? É um truque legal, Melissa!

- Uma vez que se saiba como fazer uma coisa corretamente, fica fácil. Mas isto é um jogo infantil. Vamos tentar um mais adulto. Uma simples mão de drawpoker. - Ela junta as cartas, embaralha de novo, então distribui cinco cartas para cada um. Pega suas cartas e as observa. - Vou ficar com a mão que tenho aqui - diz. - Mas você pode descartar e pegar mais três cartas, se assim preferir.

Ele se desfaz de três cartas, trocando-as por outras três. Melissa coloca uma nota de um dólar na mesa.

- Eu a acompanho nisso - diz ele, e cobre a nota de dólar de Melissa com outra, sua.

- Aumento para cinco - diz Melissa, e acrescenta cinco dólares ao cacife.

- Ótimo - retruca ele, e pesca uma nota de cinco dólares em sua carteira.

- Aumento para cem - diz Melissa, e retira de sua bolsa uma cédula nova de cem dólares, colocando-a sobre o pequeno monte.

Ele hesita, observando-lhe o rosto.

- Vai me acompanhar nisso? Ele exibe seu jogo, dizendo:

- Três duques.

- Três valetes - diz Melissa mostrando suas cartas. - Sinto, Maurice, mas você perdeu. Também perdeu literalmente falando.

- O que quer dizer?

- Quero dizer que está acabado. O trem de luxo, a "sopa", chegou ao fim da linha. Sei que sou uma mulher rica, mas meus recursos não são o poço sem fundo que você parece supor. Eu estou desperdiçando um bom dinheiro inutilmente. Eu lhe dei dinheiro e o vi torrá-lo em toda espécie de drogas. Tentei dar-lhe o que pensei que você necessitava: uma nova oportunidade. Não deu certo. Você a desperdiçou, Maurice. Estou farta de você. Vou dar-lhe 24 horas para arrumar suas coisas e deixar a minha casa.

Os olhos de Maurice se estreitaram.

- E se eu não quiser ir?

Melissa recolhe da mesa as cartas e o dinheiro, dizendo:

- Você é um desocupado e filante, Maurice. Se não sair daqui, eu chamo a polícia e você será retirado à força. Ou você sai em paz, ou eu chamo a polícia. Escolha o rumo que preferir. O carteador escolhe.

Na suíte do Fairmont, Joanna LeBaron diz:

- Bem, concederemos a ela mais cinco minutos de tolerância... fundados na hipótese de que está regulando seu relógio pelo da

Central Standard? Estou disposta a tanto, se todos os outros estão. Mas, na verdade, isto é ridículo. Ela está querendo justamente gastar o tempo de todos aqui. Se nós pudemos chegar na hora certa para esta reunião, por que ela não pôde? Eu vim de Nova York para isto, e contava pegar o avião de volta às três horas. Se tiver que aguardar o vôo das sete, só irei chegar em casa depois de meia-noite. E tenho uma reunião de negócios importante amanhã de manhã.

Característico de Joanna, pensa Sari. Sempre bancando a prima-dona. A dama executiva de mil e um afazeres. Suas reuniões de negócios são sempre mais importantes do que as de qualquer outra pessoa. Naturalmente. Sempre.

- Concordo que já aguardamos bastante - diz Bill Whitney, e o pequeno grupo em fila retorna à sala de reunião.

Quando todos já se sentaram, Bill Whitney toma a palavra de novo:

- Agora abordaremos o principal assunto em pauta. O sr. Harry Tillinghast apresentou uma oferta de compra da nossa empresa aos seus acionistas. Como todos aqui já foram notificados, essa oferta consiste de 13,25 ações do estoque comum da Kern-McKittrick Corporation por cada simples ação comum da Baronet Vineyards. Entendo agora que surgiu um problema envolvendo o número de ações a que tem direito Melissa LeBaron e seu primo, ou deveria dizer meio-irmão, Lance LeBaron. Mas já me foi dado a entender que essa disputa logo será resolvida de uma maneira serena e amigável entre a srta. LeBaron e o sr. LeBaron. Estou sendo exato, sr. Kline?

- Isso é correto.

- Creio, portanto, que podemos deixar de lado essa disputa no tocante aos objetivos da nossa reunião de hoje. Para fazê-lo, sugiro que consideremos Melissa LeBaron, para os fins da reunião de hoje, como detentora de somente quatro mil ações a que ela tem direito inquestionavelmente, e sobre as quais não paira nenhuma disputa. Quanto às doze mil ações que Lance LeBaron presentemente detém, seis mil delas são mantidas por ele de modo inquestionável, e sem disputa legal. Estou sendo exato, sr. Kline?

- Sim. Acerca da posse dessas ações, não há nenhuma dúvida e nenhuma disputa entre minha cliente e Lance LeBaron.

- Sendo assim, sugiro que para os propósitos desta reunião limitemos o direito do sr. Lance LeBaron a apenas essas seis mil ações indiscutíveis para efeito de votação. Sua cliente aceitará essa disposição, sr. Kline?

- Minha cliente aceita. Ela me indicou isso numa carta datada de nove de abril.

O que é isso? pensa Sari. De onde terá vindo essa carta? E pergunta:

- Posso ver essa carta?

- Certamente - diz Kline.

Ele pega a sua valise, abre-a e retira uma carta que passa a Sari debaixo da mesa. Sari relanceia um breve olhar pelo papel, agita a mão e a devolve para o advogado.

- Portanto - continua Bill Whitney -, uma proposta é feita no sentido de que, em qualquer escrutínio que possa ocorrer hoje, o sr. Lance LeBaron tenha direito a seis votos por procuração. Alguém vota nesse sentido?

- Eu voto - diz Sari.

A moção é aprovada por unanimidade, e Sari pensa: Bom! Isto representa seis votos a menos para o lado deles.

- Acho - diz Bill Whitney - que, mantendo fora da votação de hoje a posse dessas ações em litígio, podemos acelerar e simplificar o assunto, deixando que a disputa em questão seja dirimida em data posterior.

- De acordo.

A ganância, pensa Sari. Ela pode perceber uma voraz ganância nos olhos de todos à mesa. Não é isso, pergunta-se, em que toda essa efervescência resulta... uma ganância?

- Haverá, portanto, um total de 74 votos acionários computados hoje. Uma maioria simples de 38 votos será necessária para a aprovação ou não de qualquer moção destinada a aceitar ou rejeitar a oferta do sr. Tillinghast. Estamos prontos para iniciar a votação? Terei ouvido alguma sugestão?

- Eu requeiro... - começa a dizer Joanna.

- Desculpem-me - diz Harry Tillinghast, empurrando para trás sua cadeira. Ele se ergue e pigarreia com ar autoritário. - Eu tenho algo a dizer, antes que comecemos a votar. Desejo consignar que estou aumentando a minha oferta para quinze ações comuns da Kern-McKittrick por cada ação comum da Baronet. - E se senta bruscamente.

Faz-se um silêncio polido na sala de reunião. Eric, sentado com os dedos erguidos, parece contente consigo mesmo. Obviamente, essa "proposta surpresa" fora bem ensaiada de antemão. Então, ele diz:

- Eu voto pela aceitação da proposta.

- Vinte e oito votos de não aceitação - diz Sari.

- Quatro votos de não aceitação - apoia Peeper, obedientemente.

- Senhoras e senhores - diz a Rainha Nefertite na sua voz real -, eu não posso registrar com exatidão o andamento desta reunião com todos aqui falando ao mesmo tempo. Por favor. Um de cada vez.

- Dois votos de aceitação - diz Harry Tillinghast com um tom

ressonante, embora todos na sala estejam chocados por ele estar votando por sua própria proposta.

- Ausência de uma votante representa um voto negativo - diz Sari novamente. - Isto representa mais quatro votos de rejeição da parte de Melissa.

- Por favor... por favor - repete Bill Whitney, consultando seu bloco de anotações legais -, esta pobre moça aqui - indica Nefertite - está tentando registrar tudo isso. Agora, até aqui... - Nefertite volta a manejar seu teclado.

- Negativo da parte de Melissa!

- Até aqui - diz Whitney - eu registrei 36 votos contra a proposta: os da sra. LeBaron, os do sr. Peter LeBaron e, é claro, os de Melissa. Ouvi somente quatro votos a favor, de Eric LeBaron e do sr. Tillinghast. Joanna LeBaron Kiley, como votará a senhora? Uma maioria simples de 38 votos é necessária para aprovar ou rejeitar essa moção.

Joanna suspira, deixa de lado a caneta com a qual estivera rabiscando e dirige um longo olhar a Sari. O ar entre as duas torna-se carregado de eletricidade quando Sari lhe devolve o olhar duramente do outro lado da mesa, e então, silenciosamente, permite que seus lábios esmeradamente formem as palavras: Peter e você.

- Por favor, registrem-se meus 28 votos contra a proposta - diz Joanna por fim. - E meu filho Lance, votando por procuração, também coloca seus seis votos contra.

Com uma expressão quase de alívio, Bill Whitney diz:

- Então a proposta foi derrotada por setenta votos contra quatro.

Eric arranca as folhas de papel amarelo do bloco nas quais estivera tomando anotações, faz uma bola com elas, irritado, e a joga na direção de Joanna do outro lado da mesa, dizendo:

- Muito obrigado, tia Jo. Chega de lealdade. Basta de promessas. Dane-se, tia Jo. Danem-se todos vocês. Eu já estou farto da porra dessa família, e já me enchi dessa maldita firma. - Ele arreda sua cadeira bruscamente e inicia um movimento como se fosse retirar-se.

- Espere, Eric - diz Joanna, estendendo a mão ao longo da mesa rapidamente para alcançar a dele. - Não percebe por que eu tive que fazer isso? Seja ela o que for, sua mãe é a minha mais antiga amiga. Eu não poderia tomar partido e deixar que isso lhe acontecesse. Não percebe o que essa coisa toda fez a ela? Sari ficou quase transtornada por causa disso. - Sua voz gutural está cheia de pequenos assomos histriônicos agora. - Eu não poderia simplesmente tomar partido... e testemunhar a destruição de sua mãe.

Sari pensa: "O que está acontecendo?" Não está ainda refeita da surpreendente verificação de que vencera a batalha, e por uma maioria esmagadora de votos. Mas agora o que está acontecendo? Esse deveria ser o seu último hurra, e agora subitamente se converteu no de Joanna! Ali está Joanna, falando sobre mente transtornada e destruição! Sari não pode permitir isso! Ela não pode deixar que Joanna faça esse gesto final, grande, magnânimo e piedoso. Mais uma vez, Joanna lhe roubou a cena.

- Joanna... - começa ela a dizer.

- Reaproxime-se de sua mãe, Eric - diz Joanna naquela sua famosa voz rouca. - Faça as pazes com ela. Sari o ama muito, e está ficando velha. Se nós ganhássemos, a família estaria dividida para sempre. O que aconteça a essa empresa não importa. O que importa é que sejamos uma família de novo, e que nos amemos uns aos outros novamente.

Ah, pensa Sari. Agora ela está tentando me matar com sua bondade. O amor é importante? Não! É o poder de sua personalidade!

- Volte para ela, Eric. Vá para o lado de sua mãe. Faça-o agora. Eric não se moveu, mas Sari percebe que a sua cicatriz do fórceps se avermelhou completamente. E ela diz:

- Obrigada, Joanna. Obrigada pela sua preocupação com a minha saúde mental, e com a minha idade... que não difere da sua, naturalmente... e obrigada por ter votado a meu lado nisto. Eric... é claro que o amo. Diacho, eu sempre pensei nisso simplesmente como um desacordo comercial entre nós. Só que isso sempre foi um negócio da família, e eu desejava vê-lo permanecer desse modo, pelo menos enquanto eu viver. Depois que eu me for, não importa o que qualquer um de vocês venha a fazer, porquanto não estarei mais aqui para saber. Agora tenho algo a anunciar a vocês todos. - Seus olhos viajam pela sala. - Sei que existe uma discordância acerca do modo como a Baronet vem sendo dirigida, e sei que há um desacordo sobre qual o rumo que deveríamos estar seguindo. Também sei que já não sou mais jovem, e que exerço o presente cargo há longo tempo. Assim sendo, gostaria de anunciar minha renúncia como presidente e diretora executiva oficial da Baronet Vineyards a efetivar-se a 1 de junho deste ano. Gostaria de nomear para o meu lugar meu filho Eric. E gostaria de nomear meu filho Peter vice-presidente executivo, um cargo até então inexistente na companhia. Eric e Peeper, espero que vocês possam trabalhar juntos nesses cargos como sócios, como uma equipe, e como irmãos. Do modo como, no colégio, costumavam fazer os trabalhos escolares um do outro, e fazer provas um pelo outro... para a permanente confusão de seus pobres mestres! Eles não sabiam que eu estava a par disso, mas estava. E eles passaram nos exames com louvor. E dirigirão a Baronet com méritos também. Rapazes, que Deus os abençoe... e sucesso!

Os olhos de Sari cruzam a mesa buscando Eric, mas os olhos

dele estão baixados, fixando o retângulo do tampo da mesa à sua frente.

Percebem? Não há um olho enxuto na sala. Nem mesmo o de Sari. Joanna não é a única que pode fazer uma jogada espetacular.

E uma frase antes que o pano de boca desça:

- Quanto a mim - diz Sari -, não pretendo morrer fora de atividade. Assumirei o posto de presidente do conselho da companhia.

Mas, naturalmente, nenhum pano de boca cai de fato, e o silêncio que se segue somente é quebrado pelo farfalhar de papéis sendo dobrados e o ruído das valises dos advogados sendo abertas e fechadas.

Finalmente, Bill Whitney diz:

- Que me dizem de uma moção no sentido de suspender a sessão?

- Eu voto a favor - diz Joanna.

- Apoiado.

- Todos a favor...?

E Nefertite começa a desarmar e guardar sua pequena máquina estenográfica.

Harry Tillinghast é o primeiro a se erguer. E diz para Sari:

- Bem, você venceu. Eu não diria que não estou desapontado com o resultado disto. Mas direi que, promovendo-se para livrar-se de alguém, acho que você fez o melhor em seguida.

- Isso fará sua pequena Botão-de-Ouro feliz? - espeta Sari. - O fato de seu marido se tornar o novo presidente da Baronet? Eu sei que era ela quem estava por trás dessa história toda desde o começo.

- Isso não é verdade. A idéia foi estritamente do Eric e minha. Se está planejando vingança, Sari, deixe minha filha fora disso. - Então ele inclinou-se ligeiramente. - Senhoras e senhores... bom-dia.

E agora que os quatro advogados, Nefertite e Bill Whitney já se foram, somente permanecem na sala Sari, Joanna e os gêmeos. Somente a família.

- Bem - diz Sari -, a companhia Baronet é sua agora, Eric e Peeper. E eu imagino saber o que devo esperar. Após um período conveniente de "luto" pelo presidente renunciante, ouvirei dizer que a conta da Baronet voltou para a agência de publicidade de Joanna. Correto?

- Isso está sendo discutido.

- E a próxima novidade é que verei anúncios de seu novo rótulo fantasioso de vinhos para o consumidor de alto nível... o Château Baronet... em revistas como a Vogue e o The New Yorker, e que estarei lendo a respeito do vinho em que se pode confiar, e do vinho que se pode "bancar". Certo?

- É uma das coisas que gostaríamos de experimentar - diz Eric.

- Bem, eu lhes desejo sorte. Como presidenta do conselho, terei muito a dizer sobre essas operações, não? Assim, vocês podem perfeitamente ir em frente e começar a fazer o que desejam de imediato.

- Nós ainda gostaríamos de poder consultá-la, mamãe. Gostaríamos que você participasse do processo de tomada de decisões.

Sari dá um risinho, dizendo:

- Tomada de decisões! Bem, eu não me fiaria nisso. Você tramou contra mim, Eric. Você, Harry e Joanna tramaram contra mim. Por que deveria eu acreditar em tudo que você diz agora sobre tomada de decisões?

- Você está sendo melodramática agora, Sari - murmura Joanna.

- Bem, para começar - diz Eric -, quando você me privou de metade das minhas atribuições na empresa para confiá-la a Peeper, eu fiquei fulo da vida. Como pensou que eu me sentiria quando você fez aquilo?

- Eu estava muito aborrecida com você. Por ter deixado Harry pôr seus pés grandes na nossa companhia. Sem me consultar antes. Achei que você devia ser...

- Castigado? Bem, eu simplesmente decidi não deixar minha punição me abater. Para variar.

- Você chegou até a atrair Melissa para o seu complô?

- Bem, quando tia Jo me relatou os fatos verdadeiros sobre Melissa...

- Sua tia Jo contou a você... o quê!

- Quando tia Jo me contou que Melissa era sua filha, não da senhora, aí então, naturalmente...

Sari, agora, deliberadamente, não está olhando para Joanna. E

diz:

- Então sua tia Jo lhe contou isso.

- Naturalmente, se Melissa descobrisse que tinha muito mais ações para votar, seu voto teria uma grande importância. Era algo que simplesmente tínhamos que levar em conta. Sabíamos que se você contasse a verdade a Melissa sobre a sua verdadeira mãe - o que você fez -, isso lançaria uma luz inteiramente diversa sobre a situação.

- Eu não contei nada a Melissa - diz Sari tranqüilamente.

- Oh, Sari, pare de mentir - diz Joanna. - Claro que você contou. Nada tinha a perder lhe contando, e tudo a perder se não o fizesse. Se Melissa tivesse sido mantida na ignorância quanto a esse fato importante, nossa facção poderia reivindicar 45 por cento do estoque de ações, e você teria sido voto vencido. Você tinha que arriscar... contando a ela.

Sari olha para Joanna agora, dizendo:

- Mas não foi esse o motivo pelo qual você mudou de lado no último minuto, hem?

- Eu já expliquei por que mudei de lado.

- Ouçam - diz Peeper -, a luta já terminou, certo? A meu ver, os dois lados ganharam um pouco, e ambos perderam um pouco. Não chegamos quase a um empate? Assim, por que estamos nós lutando? Não podemos todos trocar um aperto de mãos agora e sair do ringue?

- Eu não tenho certeza de que a luta acabou - diz Sari. - Há uma coisa que ainda me preocupa, Eric. É a madame Botão-de-Ouro. Ela ainda está ameaçando partir para um processo de desquite com separação de bens contra você tão rápido que você nem saberá o que o atingiu, como ela descreveu outra noite?

- Bem - diz Eric, espalmando as mãos -, não constitui segredo que as coisas não têm andado bem ultimamente entre Alix e eu.

- Um processo de desquite poderia lançar uma espécie de pano mortuário sobre o novo presidente da companhia. Há ainda uma dama oriental em cena?

- Não. Aquilo foi um erro. Está encerrado.

- Ótimo. Eu nunca simulei gostar particularmente de Alix. Mas gosto muito das meninas, especialmente Kimmie. Vejo nela um pouquinho de mim mesma. Gosto de pensar que na próxima geração, talvez, será Kimmie quem estará assumindo as rédeas do negócio. Seria uma pena que Alix tentasse afastar Kimmie de nós.

- Alix e eu estamos tentando consertar as coisas - diz Eric.

- Bom. Creio também que Alix é uma mulher que fará o que seu pai lhe diga para fazer. E acho que Harry irá dizer-lhe para não iniciar processos de separação litigiosa contra ninguém. Não agora, quando ela irá ser a esposa do presidente da Baronet. Agora, como líder da Baronet que se aposenta... e como sua mãe, Eric, tenho uma sugestão final a fazer. Por que você e Peeper não se abraçam e fazem as pazes? Por que não dão uma saída agora e compram algo para beber e começam a calcular como irão dividir as responsabilidades na direção da Baronet? Por que não saem e se divertem agradavelmente juntos?

Peeper, sempre o de índole mais afável do par de gêmeos, é o primeiro a se erguer. Acerca-se de Eric e pousa sua mão no ombro dele. Dizendo:

- Estou no jogo. O que você diz, Facsi? Como nos velhos tempos, todos por um e um por todos? O que me diz?

Eric sorri meio envergonhado, levanta-se e aceita a mão estendida de seu irmão. E, por alguns segundos, os dois irmãos se dão suaves pancadas no ombro um do outro. Observando-os, Sari se sente muito feliz de repente. Ela sente que está no controle novamente. Então os dois irmãos saem e Sari e Joanna ficam a sós.

- Eu sei que você vai pegar um avião dentro em pouco. Não quero retê-la.

- Oh, eu tenho tempo de sobra - diz Joanna, olhando o relógio de relance. - Não é nem meio-dia ainda.

- Já fez as malas?

- Sim. Você me conhece. Organização.

- Sim.

- Bem.

- Bem. - Então Sari diz: - Por que você quebrou sua promessa e contou a Eric sobre Melissa? Isso devia ser o nosso segredo. Seu, meu e de Peter. Nós fizemos um pacto solene.

- E por que você rompeu sua promessa e contou a Melissa sobre mim? No cômputo das promessas rompidas, eu diria que empatamos.

- Joanna, pela última vez, eu não contei nada a Melissa.

- Sari, por favor, não minta mais. Claro que você lhe contou tudo. Como Melissa poderia afinal descobrir?

- É muito simples. Ela descobriu por si mesma.

- Como assim?

- No inverno passado, quando ela estava em Paris, parece que também foi a Saint Moritz. No Palace Hotel, ela fez amizade com Andréa Badrutt, o filho daquele homem que èra dono do hotel quando nós estivemos lá. Ela mostrou-lhe então uma fotografia minha de quando era moça, e lhe perguntou se aquela era a mulher que tivera um bebê ali. Depois, por carta, ele lhe assegurou que não fora a mulher da foto mas sim uma moça loura de nome Mary Brown quem tivera o bebê, e que ela gostava de ovos pela manhã cozidos exatamente durante três minutos e meio.

Joanna nada diz, mas levanta-se e se aproxima da janela.

- Portanto, foi você quem quebrou a promessa, não eu - diz

Sari.

- E no entanto, esta manhã você ameaçou revelar nosso segredo a todos.

Sari ri suavemente, retrucando:

- Bem, eu estava disposta a lançar mão da minha última peça de munição pesada. Mas não tive de usá-la. Você captou a mensagem e hasteou a bandeira branca. Você se rendeu, e modificou seu voto.

Agora é Joanna quem ri.

- Sari, Sari, pensa realmente que foi por isso que votei daquele modo?

- Naturalmente. Eu a deixei apavorada.

- Sari, por que uma coisa dessas me deixaria assustada?

- O escândalo. A sua reputação. A palavra exata, creio eu, é incesto.

- Oh, querida Sari, você realmente é muito tola. Você nunca poderia provar qualquer uma dessas... suas alegações. Certamente sabe disso.

- Eu poderia ter fornecido isso aos jornais... deixá-los publicar a história, permitir que arruinassem seu bom nome.

- Querida Sari. Estou atônita com a sua ingenuidade. Acredita mesmo que qualquer jornal do país publicaria uma alegação não provada e improvável como essa que você está fazendo? Se o fizessem, eu poderia processá-los, e processar você por difamação de caráter, e ganharia a questão! Eu poderia tirar de você a Baronet inteira. Na realidade, o que você diz é de fazer rir. Não, querida, sua tola e histérica pequena ameaça nada teve a ver com o modo como eu votei, eu lhe asseguro.

- Se não foi esse o motivo, qual foi então?

- Sari, sabe que eu a conheço muito bem. Sei como você manipula as pessoas, e aprendi como manipular você. A realidade é que eu nunca desejei me envolver em algo com Harry Tillinghast. Esse homem me desagrada, e eu certamente não necessito do dinheiro dele. Por outro lado, eu desejava ver Eric dirigir esta companhia há muito tempo. Imaginei que se eu executasse um lance de surpresa, e fingisse faltar ao compromisso de solidariedade e interesse por você, você ficaria inteiramente de guarda aberta, desprevenida. Teria que fazer alguma coisa para salvar as aparências. A única coisa que poderia fazer no caso seria renunciar. Bem, você não fez isso inteiramente, mas agora Eric está onde deveria estar desde o princípio.

Sari aperta os punhos sobre os braços de sua cadeira. Joanna está tentando roubar-lhe a cena novamente. Sari diz:

- Eu não acredito em você! Você fez aquilo porque teve medo que eu desse com a língua nos dentes. E revelasse o seu pequeno e sujo segredo!

Joanna dá de ombros, dizendo:

- Pense o que quiser. Não importa. Eu consegui o que queria. - E então, como se estivesse lendo os pensamentos de Sari, acrescenta: - Eu conheço você, e sei que uma coisa que não consegue suportar é que lhe roubem o papel principal. Particularmente eu.

- Isso é uma nova mentira! Eu não preciso de você para nada!

- A Suíça - diz Joanna tranqüilamente. - Nós três juntos lá. Meu amado irmão, minha melhor amiga e eu. Agora olhe para nós.

- A melhor amiga e a mais antiga inimiga!

- Quando eu estava para ter o bebê, e os trabalhos de parto se tornaram muito difíceis, e eu quase morri, vocês dois lá estavam. Eu sofri uma hemorragia, e vocês me doaram sangue. Seu sangue estava em mim, o sangue que me salvou a vida. Isso fez com que eu me sentisse tão incrivelmente íntima de...

- Você está incidindo num novo equívoco - diz Sari. - Peter e eu não lhe doamos sangue. Nós nos oferecemos como voluntários, é claro, mas nosso sangue não era do tipo certo. O sangue procedeu da Cruz Vermelha suíça.

- Peter disse que me doara sangue.

- Bem, se ele o disse, mentiu para você.

- Peter nunca mentiria para mim!

- Bem, suponho que você poderá voltar lá e consultar os registros, se não acredita em mim, mas lhe garanto que nenhum de nós lhe doou sangue.

Há preocupação no olhar de Joanna agora.

- Seja como for, o fato é que me senti incrivelmente próxima de vocês dois naquele inverno na Suíça. E agora olhe para nós... prontas para nos esganarmos uma à outra.

- E então você imaginava que iríamos seguir pela vida afora juntos... um feliz e pequeno trio, vagueando ao pôr-do-sol! Bem, o problema foi que, quando firmamos aquela barganha, você não foi franca comigo. Você não me disse quem era o pai do bebê. Anos depois, quando eu descobri, percebi como você fizera o fiel da balança daquele trato inclinar-se a seu favor. Supunha-se então que, se eu criasse sua filha, eu obteria Peter LeBaron como a minha recompensa. Você não me disse que o motivo verdadeiro de querer conservar a criança era o seu desejo de usá-la para manter Peter para você mesma. Mantê-lo com um sentimento de culpa, envergonhado e seu devedor para sempre... dependendo de você para manter seu segredo, o segredo da coisa terrível que ele fizera a você!

- A coisa terrível que ele fizera a mim - diz Joanna. - Nosso pequeno e sujo segredo, como você o chamou. Mas, entenda, eu nunca encarei isso desse modo. Eu amava Peter, Sari. Estava apaixonada por ele. Chame isso de amor anormal se assim deseja, mas eu estava apaixonada por ele. Tentei, depois, substituí-lo. Tentei isso com Rod Kiley. Não deu certo. Nada jamais poderia substituir Peter para mim. Nada jamais funcionou nesse sentido. E ele me amava. Naturalmente que ele sabia ser o pai daquela criança, porquanto sabia que jamais existira outro homem para mim a não ser ele, e que se houvesse algum, eu lhe teria contado. E a recíproca é verdadeira. Nós éramos muito íntimos.

Sari olha fixamente para essa mulher que de repente parece uma estranha. E diz por fim:

- Acho que uma bebida me faria bem agora. Providenciei para

que a gerência do hotel reservasse um estoque de bebidas para a nossa reunião naquele armário ali. Pode me preparar um drinque, Jo? Lembra-se de como eu gostava de preparar um martíni?

- Certamente. - Ela se aproxima do armário. - Um bar completo. Isto foi sem dúvida a mais fantasiosa das reuniões de acionistas da Baronet a que comparecemos...

Joanna volta com dois copos e entrega um a Sari, dizendo:

- Bem, um brinde aos velhos tempos. De um gole só. Sari não retruca, e bebe um gole. Diz então:

- Assim, nunca houve outra mulher para ele a não ser você.

- Nenhuma. Nunca houve outra a não ser eu. Ele nunca tocou... com amor em outra mulher. Se o tivesse feito, teria me contado.

- Entendo. Naturalmente, eu dei um jeito de produzir três filhos para o seu irmão. Como você supõe que isso aconteceu? Por obra e graça da Imaculada Conceição?

- Eu disse "tocou com amor". Você me contou uma vez que o seu casamento era carente de sexo. E me perguntou se eu achava que Peter tinha uma amante. Eu sabia qual era a resposta, mas é claro que não poderia dá-la a você então. A resposta era que ele sempre me amara. Não se esqueça, querida, que você foi introduzida em nossa família por conveniência... para ajudar Peter e a mim a sair de uma situação um tanto embaraçosa. Se pensou que se tratava de uma questão de Peter amar você... bem, queridinha, há um tolo nascendo a cada minuto neste mundo. A única que ele algum dia tocou com amor fui eu.

- Então como... como você explica Athalie e os gêmeos?

- Muito simples. Peter queria um herdeiro varão. Perpetuar a família foi sempre muito importante para Peter e para mim.

- E quando ambos descobriram que você acidentalmente iniciara uma pequena família por sua conta, eu fui convidada a salvá-la de um apuro. Eu lhe servi de pára-quedas...

- Bem, isso é um modo grosseiro de descrever a coisa, querida. Mas, sim, foi isso.

Segurando seu copo, Joanna acerca-se de novo da janela, espiando a rua, o Pacific Union Club do outro lado e a catedral mais adiante.

- Creio que o que você e Peter fizeram juntos destruiu sua capacidade de amar - diz Sari. - Ele nunca se recuperou do choque do que acontecera.

- Oh, Sari, Sari - diz Joanna, rindo baixinho. - Sua compreensão é tão fraca. Peter e eu fizemos aquilo uma vez apenas. O nosso amor era realmente platônico... amor num plano mais elevado.

- Só uma vez? Peter me disse que você e ele tinham tido... relações íntimas numerosas vezes. Ele disse que isso acontecia quando vocês dois estavam bêbados. Ele responsabilizava MacDonald por deixá-los sozinhos com tanta freqüência. Joanna ri novamente.

- O mordomo fazia isso? Peter contou isso a você? Bem, talvez tenha acontecido... duas vezes. Eu na verdade não me lembro, foi há muito tempo. Era o que nós chamávamos "toque de amor", e foi quando ele me prometeu que nunca tocaria em uma outra mulher com amor novamente. O nosso amor era puro, entenda.

- Puro! Depois do nascimento de Athalie, por que você tentou impedir que os gêmeos viessem a nascer, induzindo Melissa... dizendo-lhe que se eu tivesse outro bebê ele seria um monstro, pior do que Athalie?

- Eu estava preocupada com a sua saúde, querida. A saúde da minha melhor amiga.

- Tolice. Você estava era preocupada com que eu finalmente afastasse Peter de você. Isto foi tudo com que você se preocupou! Você estava simplesmente com ciúmes... porque eu iria ter um outro filho dele.

- Bem, talvez eu estivesse enciumada... um pouco. Afinal, sou apenas humana. O que eu desejava principalmente era que Peter fosse plenamente feliz.

- Humana! Acho que você é um monstro, Jo! Ou louca... se realmente acredita em todas essas coisas que está me dizendo.

- Não, Sari. Entenda, você ainda não entendeu. Não sabe o quanto Peter e eu éramos íntimos. Nós éramos como uma só alma.

- Uma só alma! O que me diria se eu lhe dissesse que durante aquela primavera e o verão, enquanto você se preparava para sua estréia na sociedade, Peter e eu estávamos tendo um caso de amor muito apaixonante?

- Eu não acreditaria em você. Isso não é verdade.

- Bem, o fato é que é. Enquanto você estava lá no Burlingame Country Club saracoteando e fazendo compras com sua mãe, às vol tas com bolsas, chapéus, luvas, vestidos de baile enfeitados de contas e sapatinhos de baile de cetim prateado, Peter LeBaron e eu estávamos tendo um caso de amor!

- Isso não é verdade. Eu dei um jeito deliberadamente para que você e Peter ficassem juntos a sós... para testá-lo. Para ver se algo aconteceria. Cheguei até a dar um jeitinho para que vocês vissem um ao outro nus... lembra-se? Para testá-lo. Mas nada aconteceu... ele me disse. Peter passou nos testes.

- Pois eu receio que ele tenha sido reprovado nesses testes e que lhe tenha contado um monte de mentiras descaradas!

- Peter nunca mentiu.

- Enquanto vocês estavam ocupados em ser uma só alma, Peter e eu fazíamos amor... numa suíte do Hotel São Francisco. E na praia da Half Moon Bay. Em qualquer lugar que encontrássemos!

- Está mentindo agora, Sari, querida. Sei que está, porque eu perguntei a Peter, e ele jurou para mim que não houvera nada entre vocês.

- Bem, já chega de evocar a palavra de honra de Peter, porquanto o que estou dizendo a você é verdade.

- Você está procurando apenas me perturbar. Mas não pode. Eu conhecia Peter muito bem. Ele não poderia ter me enganado. Eu teria enxergado a verdade se ele o tivesse tentado.

- Não estou tentando confundir você. Procuro simplesmente fazê-la encarar a verdade sobre Peter LeBaron.

- Eu não acredito em você. Entenda, Sari, isso tem sido sempre um de seus problemas. Você não consegue acreditar que Peter nunca esteve apaixonado por ninguém a não ser eu. Nunca. Você não é capaz de encarar o fato de que ele nunca a amou. Querida Sari, eu sinto muito, mas chegou a hora de você aceitar isso.

- Ele pode não ter se apaixonado por mim, mas nós certamente nos tocamos com amor, como você definiu, inúmeras vezes... muito antes de que aquela sugestão de casamento viesse à baila. Enquanto você e ele estavam ocupados em ser uma só alma.

- Não. Isso não é verdade. Ele teria me contado. Entenda, havia pequenas coisas secretas que nós fazíamos. O champanhe...

- Refere-se a ele ter imergido seu seio numa taça de champanhe? Joanna volta-se bruscamente na janela na direção de Sari, emitindo um pequeno grito, enquanto suas mãos voam para a boca.

- Como você soube disso?

- Porque ele fez a mesma coisa comigo. Ele disse que isso era a nossa pequena e secreta coisa especial.

Joanna fica olhando-a fixamente, com uma expressão de horror. Então deixa-se cair rapidamente em uma das cadeiras do hotel forradas de chintz, a cabeça entre as mãos. Durante vários minutos, nenhuma das duas diz nada, e o único som na sala é o dos ruídos do bonde na Powell Street em seu caminho colina acima com uma carga de turistas eufóricos pendurados nos estribos. Enquanto observa Joanna ali, encolhida na cadeira sob o sol forte do final da manhã, numa atitude de desespero e desalento que parece imensamente profunda, Sari não consegue evitar sentir pena da velha amiga. E de repente os anos parecem desaparecer despercebidamente, e elas duas são meninas de novo, dando risadinhas espremidas no Japanese Tea Garden no Golden Gate Park. Eu, Assaria Latham, juro solenemente que a partir de agora, e até o final dos tempos, estarei empenhada em amizade com Joanna LeBaron...

Eu fiquei grávida...

E que, na enfermidade e na saúde, recorreremos uma à outra por ajuda, conforto e assistência, e seja o que for que possa nos acontecer neste mundo, seremos fiéis uma à outra para sempre...

Ela fora a jovem mais bela que Sari já tinha visto.

Talvez seu compromisso com Peter e a lembrança deste pudessem ser perdoados como uma forma de doença. Talvez a lealdade a um antigo juramento e a uma velha amiga importasse mais do que o despedaçamento de suas ilusões desesperadas.

Finalmente, Sari diz:

- Eu sinto muito, Jo. Mas nunca menti para você. Talvez seja hora de que nós duas aceitemos o fato de que ambas amamos Peter. E que ele foi infiel a nós duas. E que nenhuma de nós o possuiu.

- Oh, Sari, Sari - diz Joanna por fim, com os punhos apertados estreitamente contra os olhos. - Há somente uma coisa que eu posso dizer a você.

- E qual é?

- Você... você é especial.

- Acho que estou pronta para um novo drinque. Penso que nós duas devíamos ficar extraordinariamente bêbadas.

 

-A srta. melissa está à sua espera para lhe falar na sala de estar da ala sul, madame - sussurra Thomas para Sari enquanto a ajuda a sair do elevador.

- Ah.

Thomas empurra a cadeira de rodas até onde Melissa se acha sentada, de pernas cruzadas, numa das cadeiras Belter, uma revista no colo. Thomas pára a cadeira de rodas de Sari e se retira apressadamente.

- Bem, Melissa. Posso saber que espécie de jogadas você está tentando fazer?

O sorriso de Melissa é fraco.

- Jogadas? - repete ela.

- Onde você esteve durante a reunião? Um assunto muito importante estava em jogo: o futuro de nossa empresa, eis tudo.

- Eu decidi não comparecer.

- Entendo. Você decidiu. Sabia que nós a aguardamos por aproximadamente uma hora? Incluindo a estenógrafa do tribunal, que é paga sabe Deus a quanto por hora? Seu advogado estava muito nervoso, e eu idem.

- Advogados são pagos para se preocuparem.

- Essa é uma atitude desabrida, mas típica. O fato é que o assunto em pauta foi levado a cabo numa questão de minutos... depois de todos nós termos sido obrigados a esperar de pé por quase uma hora pela sua chegada.

- Eu sei. Eric ligou para mim e me contou o que aconteceu.

- Entendo. Você atendeu aos telefonemas de Eric, mas não aos meus, e nem mesmo respondeu às minhas cartas. Posso depreender daí o que me convém no que diz respeito à srta. Melissa.

- Sinto muito, mamãe. Eu tinha certeza de que haveria muita sordidez naquela reunião, e simplesmente não desejei ficar envolvida naquilo.

- Bem, isso são águas passadas agora. Noto que você me chama ainda de mamãe.

- Força do hábito.

- Entendo. Bem, vamos ao seu assunto. Tenho um dia atarefado pela frente. Passar as rédeas, para Eric não será uma questão simples. O que posso fazer por você? Se é de cuidados maternais que necessita, lembre-se de que agora você tem uma nova mãe.

Melissa descruza as pernas, dizendo:

- Sim. Tal como eu já desconfiava há anos. Há muito tempo que eu desconfiava que ela era minha mãe.

- O que a deixou tão desconfiada, posso saber?

- Oh, pequenas coisas. A semelhança nos retratos, para começar. O modo como Joanna costumava tentar assumir o papel maternal comigo, em seu lugar, quando eu era menina. Pequenas indicações e palpites. O modo como ela às vezes costumava me olhar, por exemplo.

- Entendo.

- Agora, naturalmente, eu gostaria de saber quem era meu pai. Você sabe?

Sari hesita, acabando por dizer:

- Joanna não me disse. - Num sentido literal, isto é a verdade.

- Eu sei que havia um rapaz da família Flood com quem ela costumava se encontrar... Jimmy Flood. Mas ele já morreu. Poderia ter sido ele?

- Joanna nunca me diria. Esse é um assunto que você deve discutir com ela. Mas se ela não me disse, duvido que o diga a você.

- Eu pensei então que poderia ser o pai de Lance. Mas depois

verifiquei que ela não chegara a ter contato com ele até após meu nascimento.

- Isso é exato. Ele era de Pasadena.

- Talvez eu nunca venha a saber.

- Talvez... não - diz Sari.

- Claro que ela mesma pode não saber ao certo. Se estava tendo relações com mais de um homem na mesma época, como iria ter certeza?

- Se foi esse o caso, certamente não poderia. Melissa suspira.

- Bem, se você não sabe, talvez ninguém mais saiba.

- Talvez não.

- Bem, a outra coisa que eu queria lhe dizer é que estou de mudança.

- Mudança?

Desta vez, trata-se de algo para o qual Sari se acha totalmente despreparada, e de início não tem certeza de ter ouvido Melissa falar com clareza. E pergunta:

- Vai se mudar de onde?

- Daqui. Desta casa. Do meu apartamento lá de baixo.

- Mas... por quê? Aquele lugar é seu para o resto de sua vida. Está especificado no meu testamento. Aconteça o que acontecer a esta casa após a minha morte, aquele apartamento é seu pelo tempo que você quiser.

- Eu não desejo morar aqui mais. Afinal, nós nem sequer nos relacionamos mais como parentes.

- Isso não é verdade. Você é... - mas se interrompe de repente. - Está pretendendo ir morar com Joanna... é isso? Eu estou certa de que Joanna não aceitará gentilmente uma filha solteirona de meia-idade morando com ela, não importa o que sua condição legal...

- Não estou planejando ir morar com Joanna. Encontrei um apartamento adorável em Telegraph Hill... com vista para a baía e as duas pontes, os terraços... Michael Taylor está providenciando-o para mim.

- Mas você sempre morou aqui comigo, Melissa! Por que está fazendo isto comigo agora? Por quê?

- Não estou fazendo nada contra você, mamãe. Estou fazendo isso por mim mesma. É hora...

- Hora de quê?

- Hora de mudança para mim. Estar no que é meu. Minha vida está com mais da metade encerrada, e é o momento em que imaginarei o que irei fazer do resto dela. A primeira coisa que farei será ter uma casa própria.

- Esses projetos têm algo a ver com o jovem sr. Littlejohn?

- Não. Maurice Littlefield era uma causa perdida, eu acho. Ele deixará São Francisco amanhã.

- Então por quê? Eu não entendo.

- Trata-se simplesmente de algo que tenho que fazer.

- Algo que você tem que fazer - repete Sari. - Isso não é um motivo. Terá sido alguma coisa que eu fiz ou disse que perturbou você? Nunca poderia encontrar um aluguel tão barato como o que paga aqui - cem dólares por mês - em qualquer parte desta cidade. Onde mais você poderia...

- Isso nada tem a ver com dinheiro. Eu tenho muito dinheiro. E quando obtiver minha parte das ações de Lance...

- Sabe que poderá ter que processá-lo para obter isso!

- Não, não terei que processá-lo. Lance e eu conversamos, e ele deseja fazer a coisa certa. Não há nenhum desacordo entre nós. Trata-se apenas de uma questão de transferir ações de uma conta para a outra.

- E quanto aos dividendos relativos a todos aqueles anos? Dividendos a partir de 1955. Você tem direito a eles também, sabe disso! Além dos juros.

- Eu sei. Mas não vou exigi-los.

- Ora, isso é tolice! Você está jogando fora milhões e milhões de dólares! Seus advogados são idiotas se a deixam agir assim!

- Eu não desejo enviar Lance para o albergue dos indigentes, mamãe.

- Por que não? Para o inferno com Lance! Trata-se do seu dinheiro, Melissa. Você tem direito a metade desses dividendos desde 1955, mais os juros.

- Bem, eu não desejo nada disso. Para dizer a verdade, gosto muito de Lance.

- Gosto muito! Demais, se quer a minha opinião... se você se recorda ainda de um certo episódio há muitos anos.

- Oh, mamãe - diz Melissa aborrecida. - Trata-se de uma outra coisa, um outro motivo. Estou cansada de tudo isso.

- Cansada do quê?

- Cansada de ter Thomas me espionando e relatando depois a você cada movimento meu. Farta de que minhas cartas sejam abertas com vapor e lidas.

- Eu não sei do que você está falando!

- Não, mesmo? Um envelope aberto sob o vapor e depois fechado de novo parece um pouco diferente de outro que não tenha sido aberto. Vi envelopes com cartas minhas assim com freqüência bastante para saber o que estava se passando aqui.

- Isso é ridículo! Se Thomas tem feito algo assim, eu falarei com ele e darei um basta nisso.

- E me cansei de ver pessoas como Archie McPherson serem enviadas para me fazer sondagens, para descobrir o quanto eu sei a respeito disso ou daquilo. Estou farta de tudo isso, mãe. Farta e disposta a levar minha própria vida.

- Acontece apenas que você foi sempre uma criança especial, Melissa. Nós sempre achamos que necessitava ser tratada com especial atenção. Por favor, não vá embora, Melissa...

Mas vocês poderão indagar: o que está se passando aqui? Com o decorrer dos anos, Assaria LeBaron - para amigos íntimos e confidentes como Gabe Pollack e Thomas - tem procurado transmitir a impressão de que ter Melissa morando sob o mesmo teto com ela tem sido algo como uma carga, uma cruz pessoal que tinha de suportar. Vocês podem achar que Assaria LeBaron emitiria um grande suspiro de alívio por Melissa querer se mudar, e no entanto ei-la começando a suplicar para que Melissa fique. É possível tornar-se dependente das responsabilidades por alguém? Esta é uma pergunta difícil, mas a resposta é sim.

- Especial -- diz Melissa. - Durante anos eu soube que era especial, mas ignorava por quê. Eu não sabia quem era, e ninguém me dizia. Agora que sei quem sou, desejo ter a minha própria vida. É simples de entender.

- Não vai dar certo. Eu a conheço, Melissa. Você se sentirá terrivelmente só. Antes que se dê conta, vai querer voltar. Em apenas algumas semanas, começará a sentir saudades desta casa e quererá voltar. Espere e verá.

Melissa sorri.

- Veremos. Mas nesse meio tempo eu não estarei tão distante assim.

- Então por que ir embora afinal! Se sabe que certamente irá voltar?

- Eu não estou pensando em voltar, mamãe.

Agora Sari hesita novamente. Está esgotando os argumentos com essa "criança" difícil. Finalmente, diz:

- Esta casa deseja que você fique. Ela foi construída para você, sabe disso... construída para criar você aqui. - Mas sobre essa questão, a Bolo de Noiva, que algumas vezes parece falar com Sari, permanece evasiva, ambivalente. Então Sari diz: - Mas, e quanto a mim? Eu ficarei completamente só, vagueando solitária por esta grande casa, sem ninguém com quem falar, sem nada para fazer... nem mesmo a um escritório eu irei mais. Inteiramente só, envelhecendo, muito solitária...

- Minha companhia é tão divertida assim, mãe? Toda vez que estamos juntas, parece que terminamos por brigar.

- Terá sempre que ser assim?

- É como um mau hábito que não pode ser rompido. Nós duas somos como cargas elétricas positiva e negativa.

- Mas temos que ser assim? Não poderíamos tentar ser amigas uma da outra?

- Talvez um pequeno distanciamento entre nós seja útil.

- Oh, por favor, não se vá. Eu estou acostumada com você, Melissa.

- Acostumada com a pobre, difícil e temperamental Melissa? Eu pensei que você ficaria contente em me ver partir.

- Não estou contente. Estou arrasada.

- Eu sei que não sou uma flor com que se lidar. E sei que fui uma criança excepcionalmente difícil.

- Não. Nem sempre. Algumas vezes, talvez. Mas não sempre.

- E sei por que eu era assim. Gostaria que eu lhe contasse?

- Sim!

- Após as consultas durante anos com psiquiatras, creio que finalmente aprendi algo. Sei exatamente o que estava por trás daquela menina rixenta, desalmada, aquele monstrinho que insistia em usar óculos cômicos, que fingia estar apavorada com as Sutter Buttes, que não queria comer...

- Alguém disse que você carecia de amor-próprio.

- Não era isso. Tudo era por causa de você e papai. Eu sempre soube que havia algo terrivelmente errado entre você e papai. Mas não sabia o que era. Agora, é claro, eu sei. Mas costumava pensar comigo mesma: se Melissa LeBaron é uma garotinha boa, faz tudo que se espera que ela faça, e é sempre a Pequena Miss Raio de Sol Feliz, não haverá nenhum motivo para mamãe e papai permanecerem juntos, haverá? Se Melissa não for um problema, será fácil para eles continuarem distanciados um do outro, se divorciarem, e então eu virei a perdê-los e ficarei inteiramente só... sendo enviada para um lar de adoção ou um orfanato. Agora, se Melissa for uma menininha má, se Melissa for uma menina horrível, a preocupação deles acerca desse horror os manterá unidos como uma espécie de grude.

- Quando você era pequena e me pedia para lhe contar uma história, eu sempre dizia: "Tenho duas histórias... uma sobre uma menininha boa e outra sobre uma menininha má." E você sempre queria ouvir aquela sobre a menininha má.

- Eu me saí muito bem como uma menininha má, não foi? Eu costumava pensar: se eles tencionam se separar por causa do que haja de errado entre os dois, um deles dirá ao outro: "Mas o que faremos com Melissa? Ela é um tal problema para si mesma que não pode ser deixada sozinha." E assim, eu fiz de mim mesma o problema, o insolúvel problema, que forçaria vocês dois a permanecerem juntos, e no instante em que um problema fosse resolvido, eu logo pensaria em forjar um outro. E isso parecia dar certo. E todo o tempo eu me dizia: se Melissa for uma menininha boa, eles dirão para si mesmos: "Nós podemos nos separar, podemos nos divorciar, porquanto Melissa não é um problema."

Sari estende a mão agora e toca as de Melissa, que se acham dobradas sobre o colo. E diz:

- Agora, ouça, Melissa, nós não estamos brigando agora. Estamos conversando como duas pessoas adultas sensatas sobre coisas que devíamos ter abordado há anos. Estamos conversando como duas amigas. Assim, não se mude daqui. Fique comigo. Eu preciso de você.

- E depois você sofreu aquele acidente, e eu pensei: "Bom, agora ele não pode abandoná-la. Ele é o responsável pelo que aconteceu a ela, e a sua culpa o fará permanecer aqui. Ela estará muito dependente dele agora... ele terá que ficar a seu lado." Compreenda, era ele que eu temia que partisse e nos abandonasse. Eu amava muito... aquele pai que, pelo que ficou revelado, não era o meu pai de fato. Talvez tenha sido por isso que ele nunca deu a impressão de retribuir meu afeto. Quem era eu? Nada a não ser a filha ilegítima de sua irmã, que você e ele tinham sido forçados a criar.

- Eu creio que Peter gostava muito de você - diz Sari.

- E depois ele se matou.

- Sofreu um acidente de caça... foi o laudo do médico-legista.

- Tolice. Ele nunca caçava. Na verdade, acho que eu o matei.

- O que afinal a leva a dizer tal coisa, Melissa?

- Creio que o matei tão seguramente como se eu mesma tivesse puxado o gatilho. Lembra-se de como ele não parecia gostar de me olhar? Lembra-se de como ele parecia não desejar falar comigo? Ele dava a impressão de me tratar como se eu fosse uma espécie de erro terrível de família... e eu creio que o era. Minha presença parecia quase embaraçá-lo. Naquele verão de 1955 nós estávamos todos em Bitterroot, e os gêmeos retornavam à casa do acampamento de férias no Leste, assim estávamos animados... pelo menos eu estava. Foi somente duas semanas após o seu acidente, mamãe, e os médicos estavam dizendo ainda que você voltaria a andar de novo. Todos procuravam se mostrar otimistas... por que eu escolhi aquele momento para ser odiosa? Eu era uma mulher adulta, então, e deveria saber muito bem o que fazia, mas talvez minha perversidade tivesse se convertido num hábito. Ele estava de saída naquela manhã, para abater mais algumas de suas árvores, eu supunha, e então eu lhe disse: "Papai, está emocionado com o fato de os gêmeos estarem de volta?" Sem me olhar, ele disse algo assim: "Claro que estou." E então eu lhe disse qualquer coisa como: "Por que você está sempre tão contente e animado em ver os gêmeos, mas nunca fica feliz e emocionado em me ver?" Ele não disse nada. Não me respondeu e nem me olhou. Então eu fiz a mesma pergunta de novo, e ele voltou a ficar calado. Aí eu fiquei zangada de repente, perdi a calma e lhe disse: "Que espécie de pai o senhor é afinal? Você tentou matá-la, não tentou? Mesmo que ela não seja a minha mãe de verdade, você tentou matá-la. Que espécie de pai tentaria matar uma pessoa? Eu o odeio." E foi naquele dia que ele fez aquilo.

Sari não diz nada. Há, é claro, um pedaço de papel mata-borrão verde oculto na mesa de jogos Regency, e que ela poderia mostrar a Melissa; que contém algo escrito a mão tão apagado que chega a ser quase ilegível. Mas Sari resolve manter esse segredo para si mesma.

- É uma ironia, não? - diz Melissa. - Eu mesma terminei por destruir o pai que tanto desejava manter conosco.

Talvez nós três devamos partilhar a responsabilidade por aquilo, pensa Sari, se foi o que realmente aconteceu: Melissa, Joanna e eu mesma. As três mulheres que o amavam. Se foi isso o que aconteceu.

- Seja como for - diz Melissa com um pequeno sorriso; a beleza de Melissa ainda brilha quando ela sorri, a beleza de Peter, a de Joanna, e estamos nos referindo aqui somente à beleza física -, durante esses últimos meses eu empreendi uma pequena viagem de auto-descoberta. Assim, talvez você possa entender por que estou ansiosa para iniciar a próxima etapa da viagem por minha conta.

- Bem, pelo menos me diga uma coisa. Se você tivesse comparecido à reunião desta manhã, a favor de que lado teria votado?

- Bem, eu certamente não votaria a favor de uma mulher que se desfez de mim, que não me reconheceu, uma mulher que não quis ser minha mãe de fato, que me entregou a uma outra mulher para criar. Eis aí um motivo pelo qual não fui lá esta manhã. Eu não queria olhar para ela.

- Bem, é bom saber que você teria votado a meu favor.

- Não. Eu não teria procedido assim também. Não poderia votar a favor de uma mulher que me esterilizou.

- Isso foi feito a conselho de especialistas!

- Especialistas! Não viveu o bastante ainda para saber que não existem entendidos? Somente sabe-tudo, charlatães e maníacos, e pessoas que descobrem um meio de tirar proveito de tudo.

- O dr. Obermark! Você fora pilhada numa... situação envolvendo sexo com Lance, seu meio-irmão...

- Não tente responsabilizar o dr. Obermark. Foi você quem deu permissão para aquela cirurgia. Foi você quem me contou a mentira. Eu já tinha idade suficiente para entender, se você tivesse me contado, mas você não o fez. Aí está por que eu não votaria a seu favor hoje.

- E no entanto, foi isso que você acabou fazendo... sabia disso? Seu não comparecimento para votar foi computado como um voto contra a compra da empresa. Aí está!

- Sim, aí está. Eu sei de tudo isso. Mas agora isso não importa mais. E, francamente, mamãe, esse foi o motivo derradeiro pelo qual não fui à reunião desta manhã. Eu não ligava a mínima se a Kern-McKittrick comprasse ou não a Baronet. E ainda não ligo.

- Como pode ser tão ingrata? Sabe que o único motivo pelo qual você está aqui sou eu?

- Nenhum de nós pediu para nascer.

- Eles queriam entregar você a um lar de adoção. Isto é o que teria acontecido se não fosse eu. Eu concordei em ficar com você para criá-la quando ninguém mais o desejava. Se não fosse eu, você teria crescido num orfanato ou num lar de adoção. Se não fosse eu, você não teria nenhum dinheiro de seu. Tudo que você tem deve a mim, incluindo esse anel com a esmeralda em seu dedo!

Melissa levanta-se.

- Viu só? Aqui estamos nós discutindo de novo. Como sempre. Eu tenho que ir embora.

- Não a deixarei partir! - Sari está gritando agora, e mesmo Thomas, que aguarda no vestíbulo atrás de uma porta fechada, pode ouvi-la, e podemos imaginar Thomas estremecendo devido às coisas terríveis que estão sendo ditas. Mas não é função de Thomas interferir. - Você é uma mulher alcoólatra, irresponsável e imoral! Se for embora, eu lhe digo o que acontecerá depois. Você se embriagará e se descobrirá na cama com algum homem inadequado, algum gigolô que irá querer casar com você por causa de seu dinheiro. Dentro de dois meses... eu prevejo isto, Melissa... você voltará rastejando para mim, implorando-me para acolhê-la aqui!

Melissa acerca-se de Sari. Com a mão direita, torce e retira devagar o anel com a esmeralda solitária de seu dedo mínimo da mão esquerda, deixando-o cair no colo de Sari. E diz:

- Isto é para ressarci-la por tudo que fez por mim. Sari olha de relance para o anel.

- Você é uma filha miserável e ingrata, e eu espero que seu gigolô caçador de fortunas lhe tome tudo que você merece perder! Você é uma mulher bêbada, dissoluta!

- Adeus, mãe.

- Se você for embora, eu a deixarei sem um centavo no meu testamento. Não lhe deixarei nem um mísero níquel! Por que deveria? Você não é minha parenta... seja de que grau for!

- De que tem medo, Assaria LeBaron? - pergunta Melissa agora. - Tem medo de que os velhos fantasmas da galeria de retratos saiam de suas molduras de repente para atormentá-la? É disso que você tem medo? Do fantasma do meu pai? Do espectro de meu avô? Do espectro de Athalie?

- Eu a proíbo de deixar esta casa!

À porta, já com a mão na maçaneta, Melissa retruca:

- Você não pode proibir mais nada. Não se esqueça de que não está mais no comando.

- Saia! -- grita Sari. - Fora daqui!

 

- E aqui estou eu - diz Sari a Gabe -, sem nada. Tenho um novo título decorativo, sem quaisquer deveres específicos, e, para completar, nenhuma filha. Fui abandonada por todos. Meu telefone dificilmente toca, e não recebo praticamente nenhum memorando do escritório. Passei o meu antigo escritório para Eric, e Alix resolveu redecorá-lo, e estão pintando-o de verde-escuro. A srta. Martino queixa-se de que nada tem para fazer, e já me pediu permissão para procurar um outro emprego. A nova vassoura deve varrer firme... e varrer-me a mim também para baixo do tapete. Tal como o jornal de ontem, jogado fora com o lixo. Sozinha e desamparada, e com 79 anos.

- Sari, você tem 74 anos - corrige Gabe.

- É como se fossem 84, quando se está solitária e inútil, após uma vida inteira de trabalho intenso. Os produtores de Sixty Minutes não querem mais me entrevistar. Ninguém me quer. Sou a notícia de ontem. Sou obsoleta, definitivamente inútil, Gabe.

- Você entregou o bastão voluntariamente. Não tinha que fazê-lo, sabe disso.

- Eu sei. E podia recriminar a mim mesma por tê-lo feito. Quis fazer isso para que Joanna não tivesse a última e decisiva palavra. Mas agora já é tarde demais, e não restou nada absolutamente.

- Bem, se você espera que eu fique sentado aqui sentindo pena de você, está enganada. Você é uma das mulheres mais ricas da Califórnia. Pode se permitir fazer tudo que deseje.

- Fazer? Fazer o quê?

- Bem, posso pensar em muitas coisas.

- O quê, por exemplo?

- Bem, os Condors jogam em Detroit no sábado. Eles esperam que você esteja ali, na arquibancada, torcendo por eles.

- Oh, eu estarei lá. Mas isso não é um trabalho.

- Que me diz de um novo projeto de restauração, como o do Odeon? Há ainda um bocado de prédios antigos na área sul da Market Street aguardando remodelação e utilização.

- Oh, você está falando sobre essa coisa de boas obras, típico da Dama Generosa. Isto não é como um trabalho. Não esqueça de que está falando com uma mulher que trabalha desde os dez anos de idade.

- Treze - corrige Gabe novamente.

- Estou cansada dessa história de senhora magnânima. Restaurar velhos edifícios não é algo que se faça sozinha, por si mesma. Contratam-se os serviços de empreitada. Não é como dirigir uma companhia... a sua própria companhia.

- Por que não tira a sua licença de piloto comercial e inicia seu próprio serviço de frete aéreo? - diz Gabe meio a sério apenas.

Mas ela o leva realmente a sério.

- Não posso. Sou tida como uma pessoa fisicamente incapacitada.

- Eu estava somente...

- Está vendo? Não há nada absolutamente para mim... uma mulher idosa, no fim de sua vida, à qual nada mais resta senão gastar seus últimos anos girando os polegares e aguardando a morte. Inteiramente só.

- Pobre, pobre Sari. Pobre garotinha rica. Sua história é mais triste que a de Barbara Hutton.

- O dinheiro nada é. Eu nunca o desejei. Sem algo para fazer, o dinheiro é apenas poeira na boca. Peter me ensinou isso... a importância de nos mantermos ocupados. Mesmo se se tratasse apenas de abater árvores.

- Você fez as pazes com Eric?

- O que quer dizer com fazer as pazes?

- Bem, houve um certo clima tempestuoso entre vocês dois nessas últimas semanas, muitas coisas rudes foram ditas. Você e ele já firmaram a paz?

- Ele conta agora com a presidência da companhia! O que mais ele deseja de mim?

- Talvez uma ou duas palavras amáveis, quem sabe?

- Na realidade, fiquei orgulhosa de Eric ter me enfrentado do modo como o fez. Isto revelou que ele é um bom lutador, e gosto dessa faceta. Ficou demonstrado que Eric tem energia e iniciativa. Eric sabe distinguir as coisas. Ele me combateu, mas de modo justo, e foi uma boa luta.

- Seria bom se você lhe dissesse isso.

- Bem, não tinha pensado nisso, mas talvez o faça. Naturalmente que não é nenhum segredo que, dos dois gêmeos, Eric foi sempre o meu predileto. Ele é inteligente, enérgico e trabalha com empenho. Será um bom presidente da companhia, espere e verá. Mas Peeper... Peeper é justamente o oposto, todo efervescente, muito encantador na superfície, mas haverá algo de sólido por baixo? Peeper é um seguidor, Eric é um líder. Imagino que gosto mais de Eric porque ele é mais parecido comigo. Peeper é mais parecido com Peter... o velho e querido Peter. Você se lembra do velho Peter, Gabe? Amante de divertimentos, jovial, encantador, desassossegado, sem medo de nada. Naturalmente, era assim antes...

- Sim.

- Naturalmente, Eric irá necessitar de alguma supervisão... e providenciarei para que a obtenha, Gabe. Mas, e Peeper? Receio ter pela frente na realidade uma dura tarefa no caso de Peeper. Se ele quiser ser um executivo decente, por exemplo, terei realmente que dar um aperto nele. Eric está quase pronto para assumir a chefia, mas quanto a Peeper, terei que mantê-lo sob rédeas curtas por enquanto.

- Está vendo? Já está começando a parecer que você tem muito trabalho para ocupá-la, Sari.

- Oh, eu não pretendo perder a prática, não se preocupe com isso. Não tenciono ficar apenas sentada no desvio e observar esses dois fazerem uma mixórdia do que representou o trabalho árduo de três gerações. Afinal, sou ainda uma acionista majoritária, Gabe, e isto me concede uma certa soma de...

- Poder.

- Certo! Eles não irão pisar em uma acionista majoritária... não se preocupe quanto a isso. Eles terão ainda de me prestar atenção.

- Você manterá esses rapazes na linha, Sari.

- Certo!

- Então... está se sentindo um pouco melhor agora acerca da situação?

- Bem, talvez. Um pouco, talvez. Exceto por... Melissa. Sinto falta dela, Gabe. Aqueles grandes aposentos aí embaixo... completamente vazios agora. Eu desejaria que houvesse algum meio de fazê-la voltar.

- Tenho certeza de que ela virá para visitá-la.

- Você pensa assim? Eu não sei. A nossa última briga foi... bem ruim. Você sabe o que ela me disse? "Nós duas nem sequer somos parentas." Mas isso não é verdade, é? Melissa é minha enteada; isto não nos torna aparentadas de certo modo? Mas, naturalmente, ela não sabe disso. O que significa...

De repente, Sari faz sua cadeira de rodas girar num semicírculo, afastando seu olhar do amigo. Para Gabe, isto é um sinal. Um sinal de que Assaria LeBaron acaba de ter alguma nova idéia. E ele pergunta:

- O que está querendo dizer?

- Eu conheço o segredo de quem era seu pai, que ela gostaria muito de saber. Estou a par desse segredo, e sou a única que poderia revelá-lo a ela. Isto me concede uma certa dose de... controle sobre ela, não? Se eu lhe disser que conheço esse segredo, isso poderia trazê-la de volta. Não poderá? Ela voltará... uma vez que saiba que eu sei!

- Tem certeza de que quer contar isso a ela, Sari? Sou a única outra pessoa a quem você revelou isso.

- Não tenho certeza. Decidirei isso mais tarde. O certo é que eu sei. - Inesperadamente, ela ri. - Isto é como o segredo do que se acha no velho tonel de vinho do avô LeBaron, não acha? Nós nunca saberemos o que está no seu interior até que alguém o destampe, e tudo que sabemos é que há algo ali, alguma coisa viva, respirando. E veja como esse velho barril de vinho tem dominado nossas vidas, o modo como ele domina a galeria dos retratos! Pense sobre isso, Gabe. Eu conheço o segredo! Nós costumávamos dizer que Melissa era a peça solta da família. Agora sou eu a peça solta, não sou?

Gabe sacode a cabeça, maravilhado com ela. E diz:

- Nesse meio tempo, Archie McPherson está dando os toques finais na reportagem sobre o fracasso da oferta de compra feita pela Kern-McKittrick. Nela, você surge como uma espécie de heroína do dia. Isto deve deixá-la ainda mais feliz.

- Ah, sim, Archie. O seu favorito. Bem, ele ainda pode nos ser útil, presumo.

- Ele é moço e tem talento. Mas devo avisá-la, Sari. Ele está com aquela idéia fixa de escrever a história completa da família LeBaron.

- Não o deixe escrevê-la, Gabe. Sei que ele é talentoso, mas

não confio nele. Quem faz um serviço para mim enquanto está trabalhando para você também não é confiável. Além disso, ele não faria isso direito. Faria de Peter um personagem central, ou algo assim, e Peter não era um ser extraordinário. Era simplesmente um homem comum ao qual aconteceu ficar marcado pelo amor. O amor no caso dele foi como uma mordida de serpente da qual ele nunca se recuperou, não importando o empenho com que todos nós tentamos ajudá-lo. Gabe... eu acabei de ter uma idéia magnífica! Por que você não escreve a nossa história? Sim, você é pessoa que deveria escrevê-la, Gabe. É você quem eu desejo que a escreva. Eu o ajudarei. Oh, faça isso, Gabe. Você é o único a par do que aconteceu realmente, e que conhece todos os fatos, todos os segredos da família, todas as mentiras, ilusões e camuflagens. Você conhece a verdade e poderá escrevê-la com toda a franqueza. Faça de mim a personagem tida como o vilão, porque algumas pessoas podem dizer que o fui, mas lembre-se de que mantive minha promessa para eles, e nunca revelei a ninguém seu segredo. Fiz um trato e o sustentei. Escreva a nossa história. Você pode inserir uma pequena promoção para os Condors. Eles irão precisar de todo e qualquer pequeno incentivo que possam obter nesta temporada. E depois que o livro estiver pronto, depois que tivermos contado tudo... então decidiremos quanto à sua publicação ou não, e se deixaremos Melissa lê-lo. Se Melissa puder ler o livro e conhecer a verdade sobre todos os sacrifícios que eu fiz por ela, todos os sofrimentos por que passamos por sua causa, talvez venha a perdoar-me e volte para cá! Não sorria, Gabe... eu realmente creio que ela possa voltar. Não acredita que ela volte, se souber o quanto a amo e como sinto saudades enormes dela? Creio que ela poderia voltar, Gabe. Pois eu sinto muito sua falta. Chego a sentir falta de nossas discussões, e nós as tivemos às dúzias. E como eu poderia deixar de querê-la tanto, se a criei desde que era um bebezinho? Acredita que poderia escrever a nossa história de um modo que trouxesse Melissa de volta?

Gabe acerca-se da janela e está agora olhando para a Washington Street. Uma neblina ao entardecer está vindo desde a Golden Gate, e, do outro lado da rua, no consulado russo, os guardas fazem a rendição.

- Eu acho que você vai ter uma visita - diz ele.

- Quem? - Ela se move na cadeira de rodas, acerca-se da janela e afasta um pouco a cortina. - Veja! - exclama. - É Eric... Eric vindo para se desculpar por todas as dores de cabeça e preocupação que me causou! Isso não é emocionante? É Eric, que vem para pedir desculpas! - Mas então, quando a figura na calçada perto da entrada da casa se aproxima mais para logo desaparecer no alpendre, ela baixa a ponta da cortina e diz: - Não é Eric. É apenas Peeper. O que você acredita que ele deseja de mim?

- Sari, Sari, você nunca irá mudar.

- Mas depressa... antes que Peeper entre, prometa-me que escreverá a nossa história. Faça dela uma história de amor, Gabe, pois é isso que ela foi: uma história de amor sobre três mulheres apaixonadas pelo mesmo homem, cada uma a seu modo. E mesmo essas três mulheres da história amaram uma à outra, outrora. Escreva-a, por favor, Gabe. Mas prometa escrevê-la como um tipo muito especial de história romântica, e tente fazê-lo com amor. Fará isso, Gabe?

E nós aguardamos ali na sua grande casa Bolo de Noiva naquela tarde, esperando por Peeper e pelo que fosse que ele queria, e a casa e todos os seus pertences pareceram dizer: Você nos possui. Mas nós também a possuímos. Somos as suas lembranças.

- Escreva sobre um homem amável e simples que desejou amar-nos tanto como o amávamos - disse Sari. - Mas ele não podia, e morreu de pesar. Coloque isso na história também. Prometa-me.

E foi isso que lhe prometi fazer, porque eu a amava também a meu próprio modo, embora às vezes fique imaginando se ela algum dia entendeu realmente esse meu modo de amar, e isto foi o que eu procurei fazer, e aí está a história.

 

Posfácio

Transcrito do San Francisco Chronicle:

COLISÃO FATAL NA AUTO-ESTRADA DE BAYSHORE PROVOCADA APARENTEMENTE POR UM PEDESTRE

Uma colisão fatal ocorrida hoje na auto-estrada de Bayshore, envolvendo seis automóveis e uma carreta de 24 rodas, foi provocada aparentemente por um pedestre que atravessou a rodovia.

O pedestre, um homem branco, ultrapassou a divisória medial de 90cm de altura existente na pista para o sul, a aproximadamente 300m da rampa de saída da Bay Bridge, durante a hora do mais intenso movimento matinal, segundo Gary Costello, o motorista da carreta. Costello, tendo freado para evitar atropelar o pedestre, fez com que seu caminhão dobrasse ao meio e capotasse, obstruindo todas as três pistas. O automóvel que vinha logo atrás, um Ford Pinto 1980, colidiu com o flanco do veículo de Costello e imediatamente incendiou-se. Sua motorista, uma mulher não identificada, ficou irreconhecível sob o efeito das chamas. Cinco outros carros, derrapando na tentativa de evitar o carro incendiado, chocaram-se uns com os outros e, na divisória medial, um deles saltou sobre ela e foi aterrar na pista do norte. Seu motorista, David Rust, 40 anos, de Petaluma, foi removido para o Hospital Shriner com fraturas múltiplas das costelas e possíveis ferimentos internos. Seu estado foi descrito pelos funcionários do hospital como "inspirando cuidados". Outras pessoas envolvidas no acidente foram medicadas, vítimas de ferimentos leves, e logo a seguir liberadas.

A polícia interditou imediatamente um trecho de 4km da rodovia entre as Saídas 9 e 11, e o tráfego para o sul foi desviado por Daly City. Duas pistas na direção norte permaneceram desimpedidas, mas o tráfego tornou-se muito lento porquanto motoristas curiosos paravam para observar as conseqüências da séria batida. Em resumo, o engarrafamento de tráfego de oito horas e meia foi o pior da história de São Francisco.

Após a colisão, o pedestre, aparentemente alheio à morte e à destruição que deixara para trás, continuou a caminhar rumo ao sul ao longo da auto-estrada. Costello, que conseguira escapar da cabine de seu caminhão sem ferimentos, ficou de pé, no meio da rodovia, os olhos chorosos, brandindo o punho fechado e gritando: "Ele é quem deveria estar morto agora!" para a figura que se afastara.

A polícia rodoviária deteve o pedestre a cerca de um quilômetro e meio do local do acidente, conduzindo-o para o distrito policial, onde ele ficou preso aguardando ser identificado.

A polícia recusou-se também a divulgar o número da licença do Ford Pinto, ficando pendentes a identificação da motorista morta e a notificação a ser feita a seus parentes próximos.

Extraído do mesmo jornal, no dia seguinte:

REVELADA A IDENTIDADE DO PEDESTRE QUE CAUSOU A COLISÃO FATAL NA BAYSHORE

A identidade do pedestre que provocou a colisão de carros fatal na hora do rush, ontem, na auto-estrada de Bayshore, foi revelada. Trata-se de Maurice Littlefield, de 23 anos, que deu como seu endereço o Motel Marriot Motor, localizado perto do aeroporto. O gerente do Marriot, Bill Oakley, confirmou que Littlefield se hospedara em seu motel no início do presente ano, mas que não fora visto mais desde 24 de fevereiro, quando partira sem pagar sua conta. Littlefield não pôde fornecer à polícia informações claras sobre as suas andanças durante os dois meses a partir daquela data.

No início deste ano, Littlefield, um guitarrista de rock que usa o nome artístico de "Luscious Lucius", apresentou-se com um grupo que se intitula "The Dildos" no remodelado Teatro Odeon, na Market Street. Foi esse mesmo Littlefield quem deixou chocada a platéia juvenil daquele teatro ao matar, a pancadas, no palco, uma serpente que ele usava em seu número. O conjunto de rock de Littlefield desde então dispersou-se, e não se tinha notícia de que Littlefield houvesse permanecido nesta cidade.

Foi também descoberta a identidade da jovem senhora morta queimada no acidente, que resultou da tentativa de Littlefield de atravessar a auto-estrada movimentada. Trata-se da sra. Martha Tennant, de 34 anos, mãe de três crianças, uma professora primária na escola de San Mateo, residente na cidade do mesmo nome.

Após ser detido para interrogatório acerca do acidente, Littlefield foi multado em 28 dólares, a multa máxima permitida por obstrução do tráfego numa rodovia interestadual. Entre os pertences de Littlefield, a polícia descobriu um filhote de crocodilo que ele levava consigo numa sacola de plástico. Littlefield explicou que usa com freqüência animais exóticos em seus shows, a exemplo da serpente que ele matou a pancadas no palco do Odeon após ter sido mordido por ela no braço. Littlefield acrescentou que o filhote de crocodilo fará parte de seu novo número.

Littlefield explicou que estivera ontem na Bayshore tentando pegar uma carona para atravessar a Bay Bridge em seu caminho para Nova York. Não tendo sorte em obter uma carona naquela direção, ele resolvera mudar seus planos e atravessara a rodovia na esperança de conseguir uma carona até Los Angeles...

 

                                                                                Stephen Birmingham  

 

                      

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