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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SEGREDO DE LORDE BESTA / Dama Beltrán
O SEGREDO DE LORDE BESTA / Dama Beltrán

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Porto da Villa Liverpool, Inglaterra, 7 de janeiro de 1808.
A manhã não estava saindo como esperava...
Depois da chegada de um navio, as tabernas, os bordéis e os mercados adjacentes ao porto se abarrotavam de tripulantes, viajantes e cidadãos ansiosos para comprar as melhores sedas, satisfazer seus apetites carnais ou encher os estômagos com o melhor rum que pudessem pagar. Sem dúvida, aqueles dias eram os melhores para ele porque, graças aos ganhos obtidos nas lutas clandestinas, poderia sobreviver até a chegada do próximo navio. Embora temesse que desta vez não teria tanta sorte.
A embarcação que atracou no porto antes do amanhecer parecia um navio fantasma. Não havia movimento nem de entrada nem de saída. Também não se encontravam agentes vigiando a área, cargueiros à procura de mão-de-obra ou prostitutas fora de seus bordéis. Na verdade, a única pessoa que perambulava por ali era ele. Lionel olhou para o céu e amaldiçoou em voz alta. Não tinha dúvidas de que o culpado de todo aquele desastre era o tempo. Devido à quantidade de nuvens brancas no céu, a rápida queda na temperatura e a brisa vinda do norte logo começaria a nevar, e ninguém em sã consciência desejaria estar ao ar livre quando isso acontecesse. Porém, ele não tinha medo do frio, mas sim de que o dia terminasse sem obter lucro suficiente para comprar algo para colocar em sua boca.
Lentamente, enfiou a mão direita no bolso de seu casaco velho e gasto, tirou os dois centavos restantes e olhou-os com preocupação. Toda a sua fortuna, todas as suas miseráveis economias cabiam na palma da sua mão. Com o que sobreviveria nas próximas semanas?
Irritado com a sua maré de azar, que começou logo depois de deixar Royalhouse, colocou-os de volta no bolso e cravou o olhar no Papagaio Berrante, uma taberna localizada no final da rua. Era sua única alternativa. Lá poderia encontrar um bucaneiro, um ladrão ou um fora da lei que, orgulhoso de sua força e habilidade na arte da luta, gostaria de enfrentar um bêbado. Claro que, com a quantia que guardava no bolso, o estalajadeiro não lhe ofereceria mais do que meio copo de sua pior bebida, mas essa informação seria mantida em segredo do resto dos clientes. A única coisa que deviam pensar, quando o vissem cambalear de um lado a outro, e gritar alguma bobagem, seria na oportunidade de exaltar seus velhos egos masculinos ao enfrentar um jovem corpulento como ele. Embora qualquer esperança de ganhar desapareceria no mesmo instante em que um de seus punhos tocasse o rosto de seu adversário.
Levantou o colarinho do casaco, depois esfregou as mãos e tentou aquecê-las com seu próprio hálito. Apesar de seus esforços, não conseguiu que a temperatura aumentasse. As pontas dos dedos, aqueles que as luvas gastas não cobriam, começaram a adquirir uma coloração arroxeada devido à dormência. Com raiva, caminhou com urgência pelo longo beco estreito. Quanto mais cedo o plano fosse concluído, mais cedo poderia voltar para o galpão que chamava de lar e se proteger do frio.
No entanto, esse plano mudou em décimos de segundo...

 


 


Não havia percorrido nem a metade do trajeto, quando ouviu o som de passos às suas costas. Abrandou o ritmo de seu caminhar e levou a mão direita para a adaga que escondia na faixa da calça. Não era a primeira vez que o atacavam traiçoeiramente. Muitos de seus antigos oponentes, aqueles que se sentiram ofendidos após perder um combate frente a uma escandalosa multidão, buscavam vingança tempos depois; embora só conseguissem outra humilhante derrota. Agarrou o cabo da adaga com força, apertou os olhos e espiou por cima do ombro esquerdo para descobrir o tamanho e a robustez de seu próximo oponente.

No momento em que seus olhos azuis descobriram a silhueta da pessoa que caminhava atrás dele, a mão que segurava a adaga se abriu e rapidamente abandonou-a.

—Por favor, ajude-me. Eu imploro —disse a estranha logo antes de cair desmaiada no chão.

Não pensou duas vezes. Movido por um enorme sentimento altruísta e de cavalheirismo, Lionel se virou e correu até a mulher. Uma vez que se aproximou, olhou para ambos os lados do beco para confirmar que ainda estavam sozinhos. Ajoelhou-se, estendeu o braço esquerdo sob o pescoço da mulher e levantou-lhe lentamente a cabeça.

—Senhora, consegue me ouvir? —Perguntou impacientemente. —Pode me ouvir? —Insistiu.

Como não houve resposta, Lionel sacudiu-a para acordá-la do atordoamento. Mas a jovem não reagiu, permanecia inconsciente. Preocupado com este estranho desmaio, moveu a cabeça para a direita para verificar se a mulher tinha algum tornozelo inchado por causa do tropeço. Mas quando descobriu que o vestido, as luvas, as meias e os sapatos estavam cobertos de sangue, gritou horrorizado: —Por Cristo!

Ajustou ainda mais o braço sob sua nuca, fazendo com que o queixo macio se levantasse tal como o faria uma amante pedindo um beijo. Naquele movimento agitado, seus dedos se enredaram entre os laços finos que prendiam a cabeleira acobreada. Ao querer se desembaraçar destes, as fitas caíram no chão e o cabelo ficou estendido como a forma de um leque aberto. Lionel a observou durante um segundo. Era uma mulher muito bonita, embora não gostasse da cor do seu cabelo, se fosse morena, seria tão perfeita quanto um diamante. Prendeu a respiração e se inclinou para frente para ouvir se ainda respirava. Aquele ato ingênuo foi um erro grave, pois quando respirou novamente, seu nariz capturou e pendeu o perfume que exalava, causando uma tensão muito semelhante à de uma corda de violino afinada. Aturdido, afastou-se rapidamente do rosto dela e a observou de cima abaixo. Quantos anos poderia ter? Pela maciez de sua pele, deduziu que teria cerca de vinte. E o que diabos uma jovem como essa fazia naquele lugar? Estreitou os olhos e estudou as roupas da mulher cuidadosamente: um vestido de veludo azul, com um laço branco envolvendo o decote ousado, um colar de pérolas, combinando com os brincos e pulseira, meias de seda e sapatos novos. Sem dúvida alguma usava os trajes próprios de uma dama.

Confuso, esforçou-se em não pensar o motivo pelo qual se encontrava ferida em uma rua tão problemática do porto. Mas esse esforço foi inútil. Sua mente analítica, herdada, conforme explicou sua mãe, de seu pai, lhe ofereceu uma dúzia de possibilidades. Embora acabasse por reduzi-las a duas: ou a tinham sequestrado, e ela conseguiu escapar não sem antes sair ferida, ou tratava-se de uma amante que decidiu chantagear o seu rico protetor e este quis pôr fim ao desafortunado affaire.

Qualquer que fosse a causa, aquele que perderia nessa encruzilhada não resolvida seria ele, porque se fosse encontrado com ela nos braços, ninguém hesitaria em apontá-lo como o agressor. Não era assim que a Besta deveria agir?

—Senhora... —insistiu em acordá-la dando-lhe um leve tapa no rosto com as costas da mão direita. —Abra os olhos.

—Não... que... —ela balbuciou girando a cabeça de um lado para o outro muito lentamente.

—Consegue se mexer? —Perguntou Lionel satisfeito ao fazê-la voltar a si.

—O... eu... —a mulher continuou falando.

—Senhora, preciso que me ajude. Quero levá-la até aquele lado da rua —apontou com o queixo para frente. —Lá poderei escondê-la até que encontre um médico.

—Não sinto meu corpo. Também não posso... —murmurou tão baixo que Lionel teve que se aproximar de novo para ouvi-la.

—Então, não se esforce. Vou tirá-la daqui —disse depois de aceitar que se não agisse rapidamente morreria.

Com sua atenção voltada para a jovem, estendeu a mão direita por baixo de suas pernas e afastou o tecido que encontrou em seu caminho. Quando o corpo da moça ficou encaixado em seus braços, para levantá-la e transportá-la para a taverna, sentiu um forte golpe na cabeça. Antes que tudo ao seu redor se tornasse negro, e que seu corpo caísse sobre ela, Lionel contemplou os olhos verdes mais bonitos que tinha visto em sua vida e o rosto mais branco que o cal.

—Tirem este fedorento de cima de mim! —Sabrina gritou, mais irritada pelas emoções que surgiram quando abriu os olhos e o encontrou tão perto, do que pela dor de suas bochechas após as bofetadas. —Afastem-no de minha vista! Como lhe ocorreu me chamar de senhora? E, por que me esbofeteou? Esse bruto não sabe o que significa a palavra delicadeza? —continuou a gritar enquanto procurava a forma de apagar de sua mente o conforto que sentiu em seus braços. —Se não fosse porque o queria vivo e sem um único arranhão, teria arrancado seu pomo-de-adão com uma mão —murmurou.

Uma vez que os dois contratados se aproximaram, se inclinaram sobre o corpo de Lionel, o levantaram pelos braços e o afastaram dela. Quando Sabrina se sentiu livre, rolou para o lado esquerdo, se levantou de um salto e olhou com repulsão o corpo de quem lhe havia provocado tal ansiedade.

—Este rapaz pesa como dois cavalos mortos! —reclamou um dos contratados quando o arrastaram até a carroça em que deveriam colocá-lo.

—Que me lembre, não são pagos para que eu escute suas reclamações absurdas —resmungou enquanto desabotoava os botões do vestido. —Então calem a boca e comecem a trabalhar. Se amam suas vidas, devem trancá-lo no porão antes que acorde.

—É tão perigoso assim? —O outro homem perguntou enquanto o pegavam pelos pés para colocá-lo na carroça.

—Eles o chamam de Besta. Isso não te diz nada? —Respondeu seu companheiro com uma voz sufocada devido o esforço.

Enquanto os homens conseguiam esconder a enorme figura masculina com cobertores sujos, Sabrina despiu-se e lançou a roupa manchada com sangue de animal no chão. Em seguida, caminhou vestindo uma anágua e espartilho até o final da rua, onde sua carruagem a esperava. Mas, ao passar pela carroça, parou e o observou em silêncio. Agora entendia o verdadeiro motivo pelo qual Arlington não queria confiar-lhe aquela missão e, para seu grande pesar, tinha razão. Aquele homem era muito perigoso para ela...

—Se esses lacaios não o encontraram durante todo este tempo, por que pensa que eu o encontrarei?

—Porque confio no seu instinto —Theodore respondeu sentando-se.

Por um segundo, ela pensou que Arlington havia esquecido o que aconteceu seis anos atrás. Mas isso não era possível, os quatro sempre recordariam o que aconteceu antes, durante e depois de sua escapada a Paris com Pierre.

—E? —Persistiu em saber enquanto cruzava os braços.

—E é minha última esperança —disse com resignação. —Esse jovem colocou-se em perigo no momento em que deixou Royalhouse. Ainda acho difícil acreditar que foi embora sem ninguém descobrir.

—Terá adquirido a habilidade de seu pai. Aquela que lhe permite sair e entrar dos aposentos sem despertar ninguém salvo suas amantes —comentou com ironia, pois odiava a ideia de que o próximo rei da Inglaterra fosse um galante sem escrúpulos.

—Sabrina! Não fale assim de um filho do príncipe! —Repreendeu-a.

—Filho bastardo —corrigiu-o enquanto descruzava os braços. —Essa concepção ilegítima o priva de todo tratamento cortês —esclareceu com sarcasmo.

—Não quer aceitar esta missão? —Theodore retrucou, recostando-se na cadeira enquanto juntava as mãos como se fosse rezar.

—Antes de responder, gostaria de saber o motivo pelo qual não incluiu o seu nome na lista que me passou. —Ela respondeu.

—Pensei que quinze seriam suficientes para você. Além disso, a tarefa de encontrar este é mais complicada. Como bem disse, durante vários anos não conseguiram encontrar seu paradeiro —explicou.

«Então, este não é o bastardo número dezesseis, mas o um», Sabrina concluiu.

—E decidiu me afastar desta tarefa porque requeria um esforço maior —apontou com reprovação.

—Esse não foi o motivo! —declarou o marquês depois de bater na mesa. —Eu lhe confiaria minha vida se esta estivesse em perigo —acrescentou solene.

—Desde o que aconteceu em Paris, questiono tudo o que vejo e ouço —ela afirmou.

—Me questiona também? —perguntou Theodore levantando-se da cadeira.

—Não —respondeu olhando-o nos olhos.

—Então, a que vêm suas dúvidas? —insistiu em saber.

—Só quero saber a verdade —sussurrou.

—A verdade não é outra senão que o filho de lady Gable fugiu de Royalhouse faz cinco anos e que ninguém, desde aquele dia, sabe onde se encontra. Como não temos certeza de que continua vivo, não quis que perdesse o tempo —esclareceu.

Durante alguns minutos, Sabrina refletiu sobre as palavras do marquês. Nunca havia desconfiado dele. Nunca o faria! Como poderia duvidar do homem que sempre agiu como um pai para ela?

—Se não acredita que continua vivo, por que me pede que aceite o trabalho? —quis saber.

—Porque é a única capaz de descobrir a verdade.

—Imaginemos que continue vivo, que o encontre e o traga. O que devo exigir à ordem desta vez? —Perguntou olhando-o nos olhos.

—Eu lhes pedirei a liberdade que me pediu há seis anos —lhe garantiu.

A liberdade que pediu e que ele não lhe deu...

Naquela época, estava com dezoito anos e só ouviu o seu coração. Uma decisão que a levou diretamente ao inferno. Agora, aos 24 anos, não queria se afastar dos três homens que tinham se tornado a sua única família.

—Antes de sair do navio, amarre o lenço azul que te dei no alto da armação —Sabrina ordenou enquanto retomava o passo.

—Sim, senhorita —responderam ao mesmo tempo.

Quando Babier lhe abriu a porta, notou o frescor dos primeiros flocos de neve sobre as partes nuas de sua pele. Lentamente, levantou o rosto, olhou para o céu e sorriu ao sentir o frio dos cristais de gelo nas bochechas. Houve um momento em sua vida em que pensou em todas as coisas que não veria ou sentiria ao morrer. Mas graças a Arlington, Petey e Babier, continuava vendo e apreciando a beleza que a vida lhe oferecia.

—Para onde vamos agora, senhorita Ormond? —Perguntou Babier.

—Devemos voltar a Londres para indagar sobre as últimas pistas que encontramos do Khar. Quando o fizermos, partiremos para Bibury e descansaremos uma longa temporada —respondeu antes de tirar a peruca e jogá-la no ar.

—Parece-me uma ideia excelente —comentou seu homem de confiança, fechando a portinhola quando ela entrou.

Sabrina acomodou-se no assento, cobriu o corpo com uma manta grossa e olhou pela vidraça enquanto a neve cobria as ruas de branco.


I


—Eu juro pela minha vida que vou matar a pessoa que me colocou neste buraco! —Lionel trovejou ao acordar para descobrir que havia sido preso no porão de um navio.

Era incapaz de nomear seu raptor, nem sabia o que pretendiam fazer com ele. A única coisa que deduziu, em meio a um turbilhão de ódio, chutando os barris ao seu redor e jorrando mil blasfêmias, foi que a pessoa que o prendeu não era muito inteligente, pois ainda estava de posse de sua adaga. Enfurecido, furioso e desesperado para sair dali, empunhou-a e começou a atravessar com esta a única porta que havia no porão.

—Senhor, peço-lhe encarecidamente que relaxe. Não poderemos ter uma conversa respeitosa se continuar agindo com semelhante violência —lhe respondeu a voz que vinha escutando desde que acordou e exigiu saber o que estava acontecendo.

—Conversa respeitosa? —vociferou Lionel sem parar de apunhalar a porta. —Abra e prometo que a manteremos! —resmungou.

—Milorde, creio que não é o momento adequado para conversar com esse moço. Talvez possa perder um pouco da resistência nos próximos quatro dias. Enquanto isso, poderíamos pensar em como acorrentá-lo sem correr nenhum risco —Petey sugeriu a seu senhor e amigo, que manteve uma atitude fria e calma, apesar do fato de que sua vida estaria em perigo se aquela Besta não apaziguasse sua raiva.

—Que todo mundo saia daqui! —ordenou Theodore à tripulação. —Vou soltá-lo.

—Corre! Saia daqui! —se ouviu os marinheiros gritando da proa à popa. —O capitão vai soltar a Besta!

—Tem certeza? —insistiu o homenzinho assustado. —Não tem necessidade de se apressar. Pode adiar o encontro até chegarmos à ilha. Se não me falha a memória, depois de ouvir tantos insultos ao mesmo tempo, esta tem uma área de mais de trezentos e cinquenta e cinco quilômetros de terreno sólido no qual podemos fugir...

—É minha última palavra —garantiu com firmeza. —Vou tirá-lo daí agora mesmo. Lembre-se, Abraham, que ele não é um prisioneiro, mas meu protegido. Por acaso esqueceu quem é o pai daquele rapaz? Que opinião terá de mim se descobrir que permiti que o trate como um criminoso?

—Nesse caso, devo dizer que foi uma grande honra trabalhar para o senhor durante tantos anos —declarou antes de correr como tinha feito o resto da tripulação.

—O que está acontecendo aí fora? —rugiu Lionel. —Por que estão correndo? Não me deixem aqui! Aniquilarei todos! —acrescentou fora de si.

Quando Theodore Wallas, quarto marquês de Arlington e capitão do navio em que viajavam, confirmou que seus empregados não corriam nenhum risco, parou na frente da porta e destrancou. A partir daquele momento, tudo aconteceu tão rápido que ele não teve tempo de reagir. Sentiu um forte golpe no peito, fazendo-o retroceder vários passos, uma sombra escura se lançou sobre ele com a mesma agilidade e rapidez que a de um felino. Antes que pudesse piscar novamente, a dita sombra se posicionou atrás dele, agarrou sua mão esquerda, torceu-a para trás e colocou uma adaga em seu pescoço.

—Quem é você? —murmurou Lionel. — Onde estou? Por que me sequestraram? —exigiu saber.

Impaciente, deu uma rápida olhada ao redor e grunhiu ao confirmar sua hipótese: estava em um navio e estavam navegando mar adentro.

—Sou Theodore Wallas, Marquês de Arlington. Está no meu barco e não é nenhum prisioneiro, mas meu protegido —respondeu com tranquilidade.

—Protegido? De quem diabos têm que me proteger e por quê? —continuou a perguntar sem afastar a faca da garganta.

—Dos Terinthians —declarou sem hesitar.

Lionel ficou tão imóvel, que não sabia se ainda respirava. Tinha ouvido direito? Aquela pessoa tinha falado o nome dos Terinthians? Quem era e por que conhecia a existência daquela organização secreta? Teria sido enviado por algum conhecido de sua falecida mãe? Enquanto tentava acalmar as batidas aceleradas de seu coração, procurou uma maneira de sair bem da situação sem ter que revelar tudo o que sabia sobre aquela ordem clandestina.

—Acho que se confundiu de pessoa porque jamais ouvi essa palavra —murmurou sem soltá-lo.

—Por favor, não insulte minha inteligência. É Lionel Krauss, filho de Eugene Krauss, neto de Liam Krauss, último conde de Gable e filho do príncipe —indicou o marquês com segurança.

Era sobre isso...

—Se fosse, por que deveria me proteger? Eu não conheço os Terinthians, nem tive nenhum contato com eles —Mentiu com tanta habilidade que até ele mesmo acreditou.

—Juro que não estou te enganando quando digo que buscam sua morte assim como procuraram a dos outros bastardos do príncipe. Em minha opinião, sua decisão de ficar longe da Royalhouse foi apropriada —Theodore explicou calmamente ao sentir a tensão do rapaz diminuir.

—Não o fiz para me manter seguro, mas porque não suportava viver naquela prisão dourada —Lionel declarou admitindo que era a pessoa que procuravam.

—Valeu a pena? Gostou de sobreviver com os ganhos que obteve nas lutas bárbaras? —o marquês quis saber.

—Valeu a pena porque desfrutei da minha liberdade. Algo que muito poucas pessoas sabem em que consiste —respondeu afrouxando a pressão da adaga sobre a garganta.

—Isso tem que mudar —apontou Arlington com prudência.

—Por quê?

—Porque é um filho do príncipe e este pediu para levá-lo para a corte para protegê-lo. Sua mãe devia ter avisado que...

—Minha mãe fazia questão de me afastar de tudo para que pudesse encontrar a minha felicidade sem ter que olhar o sangue que corre nas minhas veias —murmurou.

—Entendo... E entre aquelas reflexões maternas, não mencionou o acordo que fez com seu pai?

—Pensa que ela insistiu para que partisse para receber algo em troca? Morreu sozinha e desprotegida! —rosnou. —Presume que um filho deseja isso para a mulher que o cuidou e amou? —acrescentou, pressionando a adaga em seu pescoço novamente.

—A obrigação de Eugene era ficar em Royalhouse até que vários guardas da corte te custodiassem até o palácio. Mas ela decidiu encontrar outra maneira de ganhar seu sustento —Arlington afirmou sem hesitação.

—Mentira! —insistiu irritado.

—Não minto. Eu juro que minha história é verdadeira —Theodore lhe garantiu.

—Se quiser continuar respirando, conte essa versão —disse Lionel empurrando o homem com tanta força, que este teve que se agarrar ao mastro para não cair.

—Me ouvirá? —perguntou o marquês quando recuperou o equilíbrio.

—Sim —respondeu.

Por alguns minutos, nada foi ouvido no navio, exceto a respiração pesada de todos os que testemunharam a cena. Então o marquês se aproximou dele e começou a falar.

—Quando sua mãe engravidou, o príncipe assumiu a responsabilidade de protegê-la. Por esse motivo, a enviou para a Royalhouse junto com um pequeno séquito de soldados. Assim que nasceu, um médico amigo de seu avô Liam cuidou de ambos.

—Essa parte da minha vida já sei —Lionel disse sarcasticamente cruzando os braços.

—Eugene fez um pacto com o príncipe. Quando completasse dezesseis anos, viajaria para Londres para estudar junto com os de sua linhagem. Mas o ministro cometeu o erro de informá-la, na carta que enviou, que seu subsídio anual seria cortado pela metade. Deve ter sido muito difícil para ela... —acrescentou com amargura.

—Isso não é verdade! —Lionel o repreendeu.

Pena que sua mãe o fez prometer que nunca diria a verdade, porque se pudesse confessar o segredo, não só engoliria suas palavras, mas seus olhos expressariam medo ao descobrir quem haviam sequestrado.

—Juro-lhe que sua excelência jamais mentiria em um tema tão sério como o amor de uma mãe —comentou um homem às suas costas. —Mas garanto que tudo aconteceu exatamente como ele diz.

Lionel lentamente se virou para a pessoa cuja voz tinha ouvido durante suas horas de cativeiro. Seu ódio, ao ouvir a falsa versão dos acontecimentos, aumentou tanto que seus olhos ficaram vermelhos de fúria. O que lhe havia dito antes que abrissem a porta? Ah, sim, que desejava uma conversa pacífica. Pois lhe ensinaria o que significavam para ele essas duas palavras quando os punhos atingissem seu rosto. Não obstante, a raiva que percorria seu corpo e lhe fazia ferver o sangue ao escutar tais blasfêmias sobre sua mãe, esfumou-se ao encontrar um homem, não mais alto que um pônei, escondido atrás do mastro principal, como se isso fosse suficiente para protegê-lo de sua ira.

—Peço-lhe que me escute. Quando lhe explicar o motivo pelo qual viajamos para a Ilha de Man —declarou Lorde Arlington enquanto caminhava novamente para o rapaz.

—Não têm nada para me explicar —Lionel afirmou, mantendo a adaga na faixa, já que não corria perigo ao lado daqueles dois. —E não me levarão a nenhuma ilha —alegou olhando a ambos com a testa franzida. —Quero voltar a Villa Liverpool e continuar com a vida calma que tive até que apareceram.

—Calma? Acho que em sua última luta o acertaram com força na cabeça se é capaz de declarar tremenda desfaçatez —apontou com sarcasmo o senhor Petey.

—Não foi na minha última luta, mas numa emboscada —resmungou Lionel.

—Sinto muito se a senhorita Ormond lhe causou algum dano. Juro que coloquei muita ênfase que não deveria machucá-lo muito. Tampouco ordenei que o colocasse no porão do navio ou o tratasse com tanto desprezo —Lorde Arlington afirmou depois de tomar fôlego.

—Senhorita Ormond... —Lionel resmungou tocando sua cabeça, bem na área onde alguém o havia atingido.

—Preciso de toda a sua atenção. Os Terinthians anseiam ganhar o favor dos jacobinos e descobriram que a melhor maneira de consolidar essa relação é aniquilar aqueles que logo poderão lutar a favor da coroa—Theodore insistiu em dizer-lhe.

—Não me interessam as questões políticas —Lionel continuou na sua posição.

—Questões políticas? —Petey soltou chocado. —Como pode ser tão obtuso? Não entendeu nada?

—Se não quer ouvir tudo que posso lhe dizer, talvez ouça da boca do seu pai quando conhecê-lo —o marquês rapidamente interveio, olhando o rapaz nos olhos. —Segundo a carta que recebi, ele nos encontrará em oito meses em Londres. Espero que seja tempo suficiente para transformá-lo em um jovem refinado e sofisticado...

—Educado, galante, inteligente e menos selvagem —acrescentou Abraham observando o jovem com os olhos apertados.

—Por que vou ter que ouvir uma pessoa que nunca vi na minha vida? —Lionel soltou cruzando os braços.

—Acho que o golpe foi maior do que pensamos se não é capaz de entender nada do que lhe explicamos —Abraham refletiu em voz alta.

—Lionel Krauss, sabe quem é seu pai? —o marquês interveio novamente.

—Sim.

—Tem alguma ideia a respeito do que ele espera para sua vida? —insistiu Arlington.

—Não.

—Quer reconhecer seus filhos para lhes outorgar um título nobiliário. Uma vez que pertença à aristocracia, poderá ser membro da organização que o rei vigente fundou —explicou Abraham.

—Por que acreditam que me tornarei o que dizem? —rosnou Lionel.

—Porque além de se tornar um homem rico, nos ajudará a conhecer a verdadeira identidade do Khar e lhe daremos um fim —interveio o marquês.

Por alguns segundos, Lionel quase rejeitou a proposta, mas ao ouvir que estava procurando o homem que matou sua mãe, a recusa desapareceu de sua boca. Era o momento de se comportar como um verdadeiro filho e vingar a morte da mulher mais terna e carinhosa que tinha conhecido.

—Está bem —finalmente admitiu. —O que querem que eu faça?

—Parece apropriado que agora tenhamos uma conversa serena e privada em minha cabine? —Lorde Arlington sugeriu antes de iniciar a caminhada para essa área do navio.

—Juro-lhe que se isto for outra farsa para me deixar inconsciente e me trancar no porão de novo, sairei dele e mancharei o convés deste navio com o sangue de ambos —Lionel prometeu.

—Tem que controlar essa violência —Abraham repreendeu-o quando passou ao seu lado. —Suponho que os cinco anos que viveu selvagemente nas ruas destruíram a educação requintada que seus professores lhe deram.

—Pensa que é quem para falar assim comigo? —Lionel trovejou ofendido.

—A pessoa que vai lhe ensinar boas maneiras —declarou esboçando um sorriso enorme.


I I


Perto de Peel, Ilha de Man. 10 de janeiro de 1808.

Lionel saiu do camarote que lhe designaram e caminhou lentamente pelo convés do navio. Assim que chegou a proa, colocou a sola da bota direita na amurada, agarrou com a mão esquerda uma das grossas cordas do gurupés e com a outra acariciou o queixo. Ao notar uma estranha suavidade no rosto, emitiu um grunhido.

Lorde Arlington lhe garantiu que sua vida mudaria, mas nunca imaginou que o senhor Petey iniciaria essa transformação pela sua aparência. Sem consultá-lo nem pedir opinião, mandou que o criado do marquês aparecesse em seu camarote para cortar seus cabelos e barbear sua espessa e longa barba negra. Não contente com isso, forçou-o a ficar dentro de uma banheira até que sua pele enrugasse. Enquanto tentavam não deixar uma única mancha de sujeira em seu corpo, cortaram suas unhas e esfregaram suas orelhas. Depois dessa provação, e sem lhe dar o tempo necessário para cobrir suas partes nobres, um alfaiate apareceu para tirar as medidas. Enquanto isso, o senhor Petey aproveitou a proximidade entre eles para corrigir atitudes, movimentos involuntários e até repreendê-lo como se fosse uma criança por usar expressões verbais inadequadas. Uma tortura! O resumo perfeito para explicar o que havia acontecido com ele durante os três dias no navio, era aquela palavra e não outra.

Lionel olhou para o céu e bufou. No dia em que fugiu de casa estava tão assustado, que não foi capaz de dormir durante os três dias seguintes. Pensou que ao deixar tudo aquilo que sua mãe lhe proporcionou desde menino, terminaria morto em algum lugar desconhecido. Mas não foi assim. Com o tempo aprendeu a sobreviver e a valorizar algo que nunca tinha tido: liberdade. É verdade que para sustentá-la passou fome, não encontrou um teto fixo para se abrigar e precisou aprender a lutar para se proteger daqueles que queriam machucá-lo. No entanto, enfrentar todas essas desgraças só o transformaram na pessoa que era. Durante seus anos na rua, se tornou forte, não só fisicamente, mas também mentalmente. Na verdade, se pensasse bem, não sobrou nada do menino que um dia foi. Com o passar dos dias, se transformou na besta de que todos falavam. E, embora para o resto do mundo aquela denominação fosse horrenda, a ele encantava, porque graças a ela conseguiria vingar a sua mãe.

Tirou do bolso direito da calça preta o anel que Lorde Arlington lhe ofereceu durante o primeiro encontro que tiveram no camarote e o observou em silêncio. Aquele anel de ouro com o escudo real era a chave para voltar ao mundo do qual fugiu. Qualquer homem em sua situação não desperdiçaria a oportunidade de sentir de novo o poder em suas mãos. Entretanto, ele não era esse homem...

—Se planeja pular, este é o melhor momento. O mar está calmo —comentou Theodore nas costas do jovem.

—Não seria a primeira vez que me livro de uma situação perigosa a nado —respondeu ironicamente quando tirou o pé da beirada e fez um leve aceno de cabeça em saudação.

—Perigosa? Considera o futuro que te ofereço perigoso? —insistiu o marquês enquanto ficava ao lado do rapaz. Uma vez que descobriu o que o jovem contemplava para que não o ouvisse chegar, pôs as mãos atrás das costas, levantou o queixo e olhou para o céu. —Cada descendente do príncipe que encontramos tem um.

—Refere-se ao anel? —Lionel o apontou voltando a observá-lo.

—De fato —disse sem desviar o olhar. —Por que não o colocou?

—Porque não sei se vou aceitá-lo —garantiu guardando-o de volta no bolso.

—Imagino que seu estado mental está extremamente caótico —apontou com serenidade.

—Sim. Realmente está —respondeu enquanto imitava a pose solene do marquês.

Apesar de Arlington ter quase cinquenta anos, mantinha uma figura atlética. Seu cabelo grisalho lhe dava uma imagem louvável, íntegra e mesurada. Os trajes caros e impecáveis que usava destacavam não só seu poder aquisitivo, mas também sua eminência.

—Sabe que se aceitar terá que assumir a responsabilidade que isso implica —explicou voltando-se para Lionel. —Não lhe parece adequado? Se considera muito jovem para enfrentar esse compromisso? Quantos anos tem?

—Sou uma pessoa bastante responsável —salientou com aspereza—e tenho idade suficiente para assumir certas obrigações.

—Estas tarefas incluem servir a coroa?

—Não é isso que um aristocrata inglês deveria fazer? —resmungou.

—Em teoria sim —respondeu rapidamente. —Mas há muitos que, por diversos motivos, se tornaram inimigos desta e conspiram contra ela.

—Como os Terinthians —Lionel afirmou com algum ressentimento em suas palavras.

—Exatamente —admitiu o marquês antes de dar vários passos à frente e deixá-lo para trás.

—Sabem suas identidades? —Lionel perguntou, esperando ouvir um nome familiar, um que queria encontrar no futuro e destruir com as próprias mãos.

—Se soubéssemos, teriam desaparecido faz tempo —comentou franzindo a testa.

—Por que acha que decidiram se aliar com os jacobinos? —libertou a dúvida que teve por muitos anos.

—Porque procuram alcançar aquilo com o que sonharam —respondeu.

—Que é... —insistiu em saber.

—Supremacia —disse olhando-o nos olhos. —Conceberam a terrível ideia de que essa união lhes fará mais fortes e poderosos.

—Conseguirão?

—Se eu puder evitar, não —garantiu sem hesitar. —Mas neste momento não me interessa descobrir o motivo pelo qual há tantos inimigos da Inglaterra, mas sim o que te aconteceu há cinco anos. Por que deixou Royalhouse?

—Já expliquei. Minha mãe sugeriu que...

—A verdade —o interrompeu. —Não quero ouvir essa comovente história novamente sobre a bondade de sua mãe e a incrível lição de vida que lhe deu ao encorajá-lo a buscar seu próprio destino. Custa-me acreditar que um jovem que tem tudo o que deseja simplesmente pedindo por isso, desistiria desse conforto para sofrer uma miséria sem fim.

—Talvez não tenha sido agradável viver esse conforto —resmungou Lionel.

—Te pedi sinceridade —reiterou Theodore com voz autoritária. —Se lhe falo com franqueza, espero receber o mesmo em troca...

Lionel tirou as mãos das costas e deu dois passos à frente, entretanto, considerou as opções que tinha naquele momento. O marquês pediu-lhe sinceridade e ele desejou dar-lhe, mas não podia fazê-lo sem revelar um segredo que jurou levar para o túmulo.

—Estou esperando uma resposta, senhor Krauss —insistiu Arlington.

—Alguém me contou uma vez que nem tudo se consegue pedindo —confessou no fim.

—Quem lhe disse isso e o que há no mundo que não possa ser alcançado com riqueza e poder? —perseverou.

—Um jovem que me acompanhou durante uma semana em minha viagem para Villa Liverpool. E ninguém pode comprar a resposta sobre o que acontecerá no futuro —respondeu olhando para o mar.

—Ele encontrou?

—Aquele jovem? —Arlington assentiu. —Sim. Encontrou-o, mas não era o futuro que esperava. Morreu antes de poder chegar ao seu destino —respondeu tristemente. Porque só teve essa companhia nos cinco anos em que esteve longe de Royalhouse. Pensou que encontraria nele um companheiro com quem compartilhar tristezas e alegrias. No entanto, a amizade durou pouco. Depois de lhe oferecer as poucas moedas que possuía para que pudesse se alimentar em uma pousada, sua doença piorou. No dia seguinte, quando tentou acordá-lo, havia morrido. Foi ele quem se encarregou de enterrar seu corpo no meio de um prado e orar por sua alma.

—E o encontrou? Descobriu no meio dessas misérias e de suas contínuas lutas o futuro que deseja ter? —perguntou, percebendo como o jovem enrijeceu o corpo como se tivessem cravado um punhal pelas costas.

—Confirmei que não fui feito para viver submetido a normas absurdas —apontou voltando-se para o marquês. —Odeio ouvir o tempo todo o que fazer, como agir ou o que dizer —novamente evitou responder com sinceridade. A verdadeira razão pela qual fugiu de Royalhouse? Viver. Por que não tinha retornado? Porque prometeu a sua mãe.

—O senhor Petey quer...

—Não se trata só do senhor Petey, milorde, mas de tudo o que este anel implica —alegou pressionando o anel sobre o tecido. —Se aceitá-lo, deixarei de ser eu mesmo e me converterei na pessoa que rechacei. Gosto de me sentir livre, mesmo que isso signifique ter que enfrentar uma infinidade de contratempos. Também não quero que as pessoas me observem e murmurem que sou o filho bastardo de alguém importante. Preciso ser eu: Lionel Krauss. Uma pessoa que adora enfrentar a vida com seus punhos e que aceita cada golpe que lhe oferece —comentou solenemente.

—E se te propor a vida de ação que deseja? —perguntou Theodore sem retirar as mãos de suas costas.

—Reconsideraria a proposta.

—Bom... —assegurou o marquês antes de se virar e caminhar lentamente pelo convés.

—Bom? —Lionel disparou, seguindo-o. —O que quer dizer com bom?

—Se repensar o assunto do anel, posso te oferecer, durante algum tempo, a atividade que requer sua juventude —garantiu com firmeza.

—Por que faria tal coisa?

—Porque meu instinto me diz que foi feito para um propósito maior do que se tornar um aristocrata chato. —Respondeu esboçando um enorme sorriso. —No entanto, para atingir esse objetivo, deve aceitar certas regras das quais não gostará —disse começando andar de novo.

—Que regras? O que quer me oferecer, milorde?

—Algo que só uma pessoa alcançou até o momento —declarou antes de abrir a porta que conduzia aos camarotes.


Havia retornado...

Depois de dois longos meses, finalmente podia observar as fundações de sua pequena casa atrás do bosque. Sabrina pressionou o nariz contra o vidro da janela e sorriu feliz. Ninguém qualificaria uma edificação de uma só planta e rodeada de um jardim natural como ostentosa ou adequada para viver com decência. Mas para ela era um paraíso. Não trocaria por nada suas manhãs de passeio escutando o canto dos pássaros ou o murmúrio que fazia a água ao percorrer o rio. Aquilo era a paz necessária depois de realizar uma missão.

Inclinou-se para trás, fechou os olhos e pensou no acordo ao qual chegou com Arlington. Felizmente para ela, no final desistiu de lhe dar a liberdade que tinha desejado alcançar no passado. A mudança não tinha sido tão boa, mas lhe bastava saber que seguiria perto do marquês e de seu querido senhor Petey. Como estariam? A Besta os trataria bem? Se não o fizesse, procuraria a maneira de fazê-lo pagar. Não tinha mais medo dos homens, nem grandes, nem baixos, nem corpulentos, nem magros. Só lhes bastava olhar para degolá-los enquanto esboçava um enorme sorriso.

Ao pensar em homens, o nome de Lionel Krauss voltou a ocupar o primeiro lugar em seus pensamentos. A pergunta que fez a Arlington ainda estava presa em sua mente. Quinze! Ele lhe pediu que encontrasse 15 bastardos confirmados pelo príncipe. Entretanto, manteve o décimo sexto em segredo até assumir que os rastreadores não iriam descobrir seu paradeiro. O que o levou a fazer isso? Teria mentido sobre a complexidade da missão?

Com os olhos fechados, e enquanto a carruagem continuava seu trajeto, analisou todos os dados que obteve para localizar o moço, tentando conseguir alguma resposta para suas dúvidas. Não encontrou nenhuma, ao contrário, surgiram outras. Quantos anos o marquês disse que tinha? Ouviu bem quando se referiu a vinte? Alguém se equivocava. Um corpo como aquele não poderia ser alcançado em uma idade tão jovem, a menos que desde o nascimento carregasse sacos de pedras nos ombros e isso não aconteceu. Nas informações que Arlington lhe deu, explicou que o menino nasceu em Royalhouse, uma residência de campo muito próxima de Luton, e que gozava de alguns privilégios por ser filho do príncipe, apesar de ser mais um bastardo. Era guardado por três soldados reais, cuidado por cinco criados, foi instruído por dois dos melhores professores de inglês e tinha até um médico residindo em uma ala da casa. Durante os dezesseis anos em que esteve lá, não pôde levantar uma xícara de chá, porque alguém já estava cuidando disso. Como, então, desenvolveu aquela corpulência em apenas cinco anos? Ela poderia confiar que as dificuldades que enfrentou durante esse período causaram esse incrível desenvolvimento físico? Os olhos de Sabrina estavam bem abertos quando se lembrou da história contada pelo proprietário da pousada onde o rapaz se hospedou durante sua estadia em Crewe.

—Estava pálido e seu corpo mal tinha um quilo de carne. Minha esposa colocou um prato de sopa quente e a tomou sem usar a colher.

—Disse-lhe para onde ia? Ou como chegou aqui? —perguntou-lhe enquanto depositava quatro moedas de prata sobre a mesa.

—Ninguém se interessou por ele, senhorita. Tenha em mente que neste lugar aparecem diariamente muitos jovens procurando uma vida diferente. Mas posso lhe garantir que falo do mesmo rapaz porque nos tratou com muitíssima educação e ao partir não tentou nos roubar.

—E sobre o lugar que iria?

—Tudo o que posso dizer é que falou da Villa de Liverpool. Mas também não tenho muita certeza de que foi para esse lugar. Como o faria nessas condições?

Naquele momento, concentrou-se apenas em encontrá-lo, sem se perguntar como havia viajado metade do país ou por que estava indo para aquela parte da Inglaterra. Mas agora, quando o interesse pela história havia desaparecido, a questão que continuava atormentando sua mente era: como um menino magro e doente se transformou na besta de que todos falavam no porto? O que tinha acontecido desde sua permanência em Crewe até o dia em que o encontrou? Intrigada em saber mais sobre a estranha vida do filho de Lady Gable, abriu a bolsa e tirou um pequeno caderno. Nele anotou tudo o que lhe pareceu importante: abandonou Royalhouse em doze de outubro de mil oitocentos e quatro, partiu em uma carruagem alugada por sua própria mãe. Este se dirigiu para Milton Keynes, onde alugou outra. Depois continuou a viagem até Coventry. O que aconteceu naquele trajeto era um mistério. Assim como sabia como chegar até Crewe e Villa Liverpool. Para um jovem de dezesseis anos, sem experiência de vida real, seria uma odisseia sobreviver sem ajuda. No entanto, atingiu seu objetivo e sobreviveu. Quem o ajudou? Quem teve pena do rapaz? Porque tinha certeza de que alguém deveria sentir pena de um menino imberbe e de aparência doente. Rapidamente uma palavra surgiu em sua cabeça: mulher. Sim, apenas uma mulher de bom coração poderia mostrar um grande ato de caridade. Embora, até o momento, sempre havia comentado que o jovem viajava sozinho.

Irritada, fechou o pequeno caderno e o colocou de novo na bolsa. Tinha de resolver o assunto e se concentrar no que realmente lhe importava: um merecido descanso. Mas essa sua mente hiperativa não a deixaria em paz até que conseguisse descobrir todos os enigmas que rodeavam o misterioso jovem Krauss.

—Por Cristo! —gritou quando a carruagem parou bruscamente.

Uma vez que se recompôs da sacudida inesperada, olhou pela janela e se surpreendeu ao descobrir que ainda não tinham atravessado o caminho. Exatamente quando tinha posto a mão direita sobre a maçaneta para abrir a porta, ela se abriu de repente.

—Temos problemas —disse Babier com o tom que usava cada vez que a morte lhe rondava.

Sem levantar a saia do vestido, Sabrina saltou ao chão, caminhou em direção ao tronco da árvore que estava à sua direita e observou dali o lugar que ela chamava de paraíso.

—Quantos acha que são? —perguntou em um sussurro.

—Por enquanto só consigo ver três cavalos, mas se der a volta na casa, poderei confirmar se há mais pastando perto do rio —ele explicou sem desviar o olhar da entrada.

—Não! —clamou em voz baixa. —Eu farei!

—Não vou permitir que faça uma loucura —rosnou agarrando-a pelo braço. —Não sabemos quem são nem que motivo os trouxe até aqui.

—É a minha casa! —respondeu libertando-se daquele aperto.

—Eu sei e juro que a compreendo. Mas não vou permitir que algo lhe aconteça —declarou com solenidade.

—E o que sugere? Que simplesmente vá embora? —soltou um pouco mais relaxada, pois Babier só queria protegê-la do perigo.

—Não. Proponho que elaboremos um plano para descobrir a razão pela qual apareceram. Talvez sejam ladrões miseráveis que entraram na casa ao descobrir que não estava habitada. Lembre-se que estamos fora desde que Arlington a chamou e, se não perdi a noção do tempo, isso faz um pouco mais de dois meses.

—Se é por isso que invadiram a minha propriedade, não ficará ninguém vivo antes do amanhecer —garantiu virando-se para a carruagem.

—E eu vou ajudá-la a esconder os corpos —alegou Babier andando atrás dela.


III


A raiva não diminuiu apesar de terem passado seis horas desde que descobriu que a sua casa estava sendo assaltada. Ao contrário, durante esse tempo, planejou mais de oito maneiras possíveis de invadir sua casa e matar os intrusos. No entanto, e para a sorte dela, Babier a acalmou o suficiente para traçar um plano menos perigoso para os dois.

Sabrina revisou sua roupa novamente. Não gostava de ter que se vestir de homem, porque isso tornava difícil para ela esconder várias armas. Quando vestia um de seus vestidos, guardava nas ligas uma pistola e uma adaga, no espartilho um estojo pequeno com pó de Dover, um veneno muito eficaz, e no penteado sempre usava um abridor de cartas de prata para os casos de emergência. Na roupa que usava, apenas a faixa era útil. Sem contar que era negra e mostrava uma imagem horrenda, pois uma mulher com cabelos tão escuros como o carvão tinha que ser terminantemente proibida vestir calças, faixa e camisa dessa mesma cor, salvo que estivesse de luto. Até as baratas pareciam flores ao seu lado! Mas a opção de usar um de seus elegantes vestidos, e ter que lidar com o desconforto que lhe causava essa peça de vestuário para entrar por uma janela, estava descartada.

—Entrará pela parte de trás enquanto eu apareço com o uísque. Eu imagino que não terá muito tempo para fazer isso. Se em algum momento notar que está se colocando em risco, retire-se imediatamente —estabeleceu Babier enquanto colocava a caixa com a bebida dentro da carruagem e escondia quatro pistolas carregadas debaixo das garrafas.

—Lembra-se de sua promessa de me proteger? —ela perguntou enquanto prendia o cabelo em um coque.

—Sim—ele respondeu fechando a porta. —Não há um dia que a esqueça.

—Bem, sabe o que tem que fazer se tentarem me levar presa.

—Não acho...

—Babier, atire na minha testa —pediu enquanto ajustava firmemente o laço de cabelo.

—Não vão pegá-la e não vai precisar desse tiro —comentou olhando-a fixamente nos olhos.

—Que Deus te ouça —disse pouco antes de seguir o caminho para o rio.

Por alguns segundos, Babier a observou partir. Continuava sem entender como possuía tanta coragem depois de ter estado a ponto de morrer. Talvez essa fosse a razão de sua força e temia que, até conseguir matar o Khar, continuaria a viver em risco contínuo.

—Vamos lá! —ele disse subindo na carruagem. Pegou as rédeas e incitou os cavalos para a entrada da casa.

Sabrina foi se escondendo entre as árvores até que alcançou o rio. Uma vez lá, saltou de pedra em pedra para chegar à outra margem. Quase na ponta dos pés, atravessou o jardim traseiro de sua casa. Naqueles momentos, agradecia por ter decidido comprar uma casa térrea, pois não gostaria da ideia de ter que escalar para poder entrar. Colou as costas na parede e esperou ouvir os sons que a aldrava emitia. Tinha pensado mil vezes em trocá-la por uma menor e mais fina, mas agora lhe era de grande ajuda aquele terrível ruído que provocava cada vez que batiam à porta. Olhou para o rio e suspirou de tristeza. Seria a última vez que contemplaria aquele paraíso? E se fosse assim, encontraria outro lugar no mundo que lhe trouxesse tanta paz? Se Babier estivesse certo, teriam que tirar os ladrões de lá e deixar bem claro que a residência tinha uma dona e que esta lutaria até morrer para recuperá-la. Mas algo dentro dela dizia que aqueles que haviam invadido sua propriedade não estavam procurando um teto para se abrigar, mas a ela.

—Magnífico! —exclamou ao ouvir os golpes.

Lentamente se dirigiu para a janela da cozinha, tirou da cintura os dois alfinetes de cabelo que havia usado durante a tarde e virou-os para transformá-los em uma pequena micha. Então, aquela ferramenta improvisada foi inserida sob o pino de trava e movida até ouvir um pequeno clique. Com um sorriso que cruzou seu rosto, devido à sua satisfação, subiu a janela tão devagar que os dois segundos que levou para levantá-la o suficiente para poder deslizar seu corpo pareceram uma eternidade. Já do lado de dentro, moveu a cabeça de um lado a outro, observando ao seu redor. Ao não encontrar vestígios na poeira dos móveis, deduziu que não estavam há muito tempo em sua casa, caso contrário, teriam ido à cozinha em busca de comida. Essa conclusão a levou a fazer uma pergunta: sabiam o dia de sua chegada? E se isso fosse verdade, por que não foi assaltada no caminho? «Porque não querem fazer um escândalo», deduziu enquanto abria a gaveta dos talheres. Se a queriam morta, a melhor forma de não chamar a atenção era assaltando-a em sua própria casa. Qualquer juiz, ao encontrar seu corpo, declararia um simples roubo e não pensaria em outra causa.

Irritada ainda mais por descobrir que a hipótese de Babier não era a correta, pegou o punhal com o qual costumava cortar a carapaça das aves, duas facas de trinchar carne e um garfo. Colocou tudo em volta de sua faixa, como se fosse um cinto de armas de soldado. Depois de se certificar de que nada cairia no chão, alterando o plano que haviam traçado, caminhou furtivamente em direção à porta.

—Quem disse que te enviou? —Ouviu a voz de um homem.

—Meu chefe, senhor —respondeu Babier. —A senhora desta casa pede-lhe todos os meses uma caixa com quatro garrafas do seu melhor uísque.

«Quatro», Sabrina repetiu mentalmente. Como parecia, na casa havia quatro estranhos a quem deviam dar fim.

—Disse uísque? —perguntou outro.

—Por que uma mulher solitária pediria quatro garrafas de bebida alcoólica? —apontou outro.

«O líder», deduziu. Só o chefe de uma quadrilha podia ter a capacidade de duvidar sobre tudo o que vê, ouve ou sente. Por isso que recebiam a posição mais importante.

—Se me permite opinar —continuou Babier com surpreendente tranquilidade. —Penso que a senhora entorna uns copos com bastante frequência. Há dois meses nos encomendou seis garrafas e o dono da cantina teve que nos vender as que faltavam.

—Há dois meses? —exigiu saber o suposto chefe.

—Sim. E, acho que, dois dias depois abandonou a casa —Babier continuou com a história.

—Sabe mais alguma coisa sobre a dona desta casa? —o líder perguntou novamente.

—Não muito, senhor. A única coisa que posso dizer são os rumores que circulam na aldeia —respondeu levantando a caixa para que entendessem que pesava muito e que precisava soltá-la de uma vez.

Tendo a aceitação do líder do bando, Babier caminhou calmamente em direção à sala, que ficava logo na porta à direita. Quando todos o seguissem, como esperava que fizessem, Sabrina poderia sair da cozinha sem dificuldade e continuar com o plano.

—Que rumores? —outro dos homens persistiu em saber desses rumores.

—Sabem que não é viúva e que também não é conhecida por ser uma amante? Por esta razão, as pessoas pensam que assume sua miséria bebendo. Mas é normal, quem iria querer dormir na cama de uma mulher tão horrível?

Depois dessa declaração, três deles começaram a rir e Babier se concentrou naquele que estava olhando para ele com os olhos apertados: o primeiro que devia cair no chão.

—Falam algo mais sobre essa desgraçada? —lhe pediu um dos que riam.

—Sim. Alguns trovadores cantam que a dona desta casa é a filha de uma bruxa irlandesa, que dentro de seu corpo não tem sangue, mas rum e que para continuar vivendo precisa tomar grandes quantidades de uísque.

—Quando disse que encomendou essas garrafas? —perguntou o chefe. —Porque, segundo o que diz, foi há dois meses.

—Espere —Babier pediu retirando a tampa da caixa. —Tenho a última nota da senhora aqui. Nela anotou a quantidade e o dia que devíamos servi-la.

—Mova-se devagar ou vou colocar uma bala na sua cabeça —comentou o chefe apontando uma arma para sua nuca.

—Senhor... eu... —Babier gaguejou, puxando uma folha de papel de dentro. —Só...

—Deixe a caixa e saia daqui —lhe ordenou apontando com o cano da pistola a porta de saída.

—Vai me pagar? Não posso voltar para a loja sem que a venda seja quitada. Meu chefe me dará uma surra se aparecer de mãos vazias —disse olhando o homem enquanto observava a figura de Sabrina na porta.

—Alguém terá que evitar essa surra, não acham? —ela comentou com diversão.

Nesse momento, os quatro homens se viraram rapidamente para a mulher. Babier aproveitou o descuido para pegar duas das pistolas que tinha escondidas dentro da caixa. Empunhou-as e atirou primeiro na garganta do chefe e no coração de um dos que tinham rido. Enquanto isso, Sabrina jogou para frente as duas facas de trinchar. Estas terminaram cravados nos olhos de um dos homens que continuavam em pé. Antes que pudesse gritar de dor, ela pegou a adaga e a atirou na testa com tanta força que o homem ferido caiu para trás.

—Ainda temos um —comentou com o último sobrevivente.

—Senhora, por favor, não faça nada comigo —implorou jogando a espada à frente.

—Tudo depende de como se portar —respondeu caminhando para ele. Mas mudou de direção ao ouvir os grunhidos do homem que havia atacado. —Babier! —gritou ao mesmo tempo que estendia a mão direita para receber uma arma carregada. Quando a pegou, colocou o dedo no gatilho e atirou no coração. —Não gosto que as pessoas sofram —esclareceu deixando cair a arma no chão.

—Tenha piedade —o homem ajoelhado soluçou.

—Quem são? Por que querem me matar? —Sabrina perguntou depois de ficar na frente dele. —Como descobriram minha casa? Quando chegaram aqui?

—Me deixará com vida se lhe confessar tudo o que sei? —perguntou com os olhos pregados no chão.

—Se ficar satisfeita com as respostas, talvez considere essa proposta —garantiu cruzando os braços.

—Sou apenas um empregado, senhora. Me escolheram porque tenho uma família para alimentar e...

—Essas são suas respostas? —Sabrina gritou com raiva. —Acha que isso te livrará da morte?

—Não, senhora.

—Pois fala de uma vez! —gritou Babier antes de lhe dar um forte pontapé nas costelas.

Sabrina virou-se para o seu guarda-costas e olhou-o com ódio. Não gostava da ideia de ter que bancar o captor benevolente, mas seu amigo não deixou escolha quando desferiu o primeiro golpe.

—Esses dois e eu recebemos uma oferta de trabalho bem pago e sem esforço —começou a explicar enquanto se recuperava da dor.

—Quem os recrutou? —perguntou Sabrina.

—Ele —respondeu apontando para o chefe. —Nos disse que só tínhamos que protegê-lo, mas depois de dois dias de viagem, aparecemos aqui. Juro que não sei mais nada. Aceitei o emprego porque meus filhos precisam comer. Minha esposa morreu e eu sou o único que pode levar... —O prisioneiro parou de falar quando Sabrina levantou a mão e ordenou que ficasse quieto.

—Vasculhe entre as roupas desse. Talvez tenhamos um pouco de sorte e possamos descobrir quem os enviou —indicou impaciente.

Enquanto Babier obedecia rapidamente à ordem, observava o prisioneiro e sentiu seu sangue ferver enquanto ele continuava a mostrar uma atitude dócil e prestativa. Uma atuação muito humilhante para continuar vivendo, mas a única que tinha para sair andando dali. Entretanto, como ele teria agido se fosse ela quem lhe suplicasse clemência? Essa pergunta fez com que sua mente a transferisse para o buraco onde permaneceu durante uma semana. Quantas vezes implorou por sua vida? Quantas lágrimas derramou enquanto Pierre observava a tortura que aqueles homens a submetiam? Quantas vezes mordeu a pele dos pulsos para alcançar as veias com os dentes e arrancá-las na raiz?

—Não há nada —Babier apontou após a busca exaustiva.

—Merda! —Sabrina trovejou ainda mais furiosa e virando as costas para o prisioneiro.

Descuidou-se e o cativo aproveitou o momento para se levantar, passar um braço pelo pescoço de Sabrina e pressioná-lo.

—Não se mova ou a mato —declarou esboçando um sorriso triunfante.

—Senhorita... —conseguiu expressar Babier, que estava tão assombrado com a falta de jeito da jovem que nem mesmo conseguiu reagir. Mas o leve sorriso que lhe deu indicava que não tinha sido um descuido, mas um plano.

—Faça o que ele te pedir —ordenou com aparente dificuldade.

—Todas as vadias são iguais —começou a dizer enquanto a puxava para a porta. —Isso é o que te torna uma presa fácil.

—Quem? Quem? —tentou perguntar enquanto seus pés deslizavam no chão por arrastá-la.

—Quem nos enviou? —perguntou o atacante com voz jocosa. —Quer saber quem deseja vê-la morta?

—Sim —Sabrina respondeu como pôde.

—Nosso adorado Khar. Foi ele quem... puta desgraçada! —ele gritou, soltando-a rapidamente quando sentiu uma dor terrível na coxa direita. Quando pegou o objeto que o havia cravado, o observou enfurecido. Logo fixou a vista em Sabrina e lhe gritou: —Pretendia me matar com um garfo?

—Não seja estúpido. Eu não poderia fazer uma coisa dessas com um simples utensílio de cozinha. Só queria distraí-lo para que ele pegasse a última arma que escondemos na caixa e o acertasse —disse apontando para Babier com o queixo.

Tal como explicou, antes que pudesse olhar o atirador, uma bala saiu disparada e lhe atravessou o peito. Quando o agressor caiu e começou a agonizar, ela arrumou as madeixas do cabelo, que se soltaram do coque, andou até a caixa do uísque, tirou uma garrafa, arrancou a cortiça com os dentes, cuspiu-a e deu um longo gole.

—Como diabos os Terinthians descobriram onde vivo? Sempre fomos muito cautelosos. Até temos traçados dez percursos diferentes para chegar até aqui —questionou antes de beber novamente.

—O importante não é averiguar como descobriram onde vive, mas por que a querem morta. O que aconteceu desta vez? Que diferença existe entre a última missão e as anteriores? —perguntou Babier enquanto pegava outra garrafa e se sentava.

—Nada —Sabrina garantiu pensativa. —Só encontramos outra lebre para a toca real —adicionou com tom depreciativo.

—Nesse caso, devemos analisar todos os passos que executamos desde o momento em que se reuniu com lorde Arlington —lhe sugeriu antes de tomar um gole tão longo, que quase bebe todo o licor da garrafa de uma vez.

—Tenho muito medo de que a única desigualdade que podemos encontrar é que os quinze bastardos que encontramos não os interessavam —Ela se manifestou estreitando os olhos e olhando para os quatro cadáveres que jaziam no chão de sua sala. —Percebi por esta visita inesperada que o filho de Lady Gable é diferente de todos os outros. Talvez seja por isso que Arlington não o adicionou à lista. Talvez estivesse ciente do perigo que o cercava e evitou me expor a ele.

—Tem certeza dessa teoria?

—Bastante —respondeu rapidamente.

—E como devemos agir agora?

—Temos que nos encontrar com o marquês. Preciso descobrir por que aquele príncipe bastardo é tão importante que os Terinthians desejem me matar de novo —Sabrina comentou derramando o resto do licor que estava na garrafa ao seu redor.

—No que se baseia para deduzir que a causa da agressão foi a descoberta daquele último rapaz? —insistiu em descobrir enquanto procurava um fósforo para acender o fogo que incendiaria a casa e queimaria os corpos. —Talvez tenham se cansado desses bastardos. Se for verdade que o futuro rei lhes concederá títulos de nobreza, a coroa terá incrível apoio aristocrático para lutar contra a França.

—Essa hipótese é bastante aceitável. Eu reconheço. No entanto, tenho um palpite. Na verdade, tenho desde que encontramos aquele rapaz... homem —expressou. Porque para ela, a Besta era um homem muito viril para ser confundido com um menino imberbe.

—Um palpite? —Babier deixou escapar horrorizado.

—Sim, foi o que eu disse —murmurou Sabrina. —Recordo-lhe que o Marquês não me ofereceu a busca desse filho até que não tivesse outra opção. Por que não adicionou seu nome à lista dos outros quinze? E, por que queria pedir aos Larnes minha liberdade? —perguntou antes de quebrar a garrafa vazia no chão.

—Não estará pensando que o marquês...? —tentou terminar a frase, mas Babier foi incapaz de fazê-lo porque essa opção era inviável.

—Não. Ele nunca me colocaria em perigo —declarou caminhando para a porta. —Mas deve admitir que o enigma em torno do filho de Lady Gable é bastante interessante e opressor. —Alegou após observar o rosto de seu guarda-costas.

—Foi capaz de encontrar alguma resposta para todas as questões que seu cérebro criou? —disse com sarcasmo.

—Sim —garantiu encolhendo os ombros.

—Qual?

—Se os Terinthians descobriram onde vivo, não demorarão muito em encontrar o marquês e, segundo nos confessou, zarparia para Peel com Krauss —explicou calmamente.

—Quer que viajemos à ilha para informá-lo de que talvez sua vida e a desse jovem estejam em perigo? —apontou com ironia ao mesmo tempo que lhe oferecia um fósforo aceso.

—Perderíamos muito tempo na viagem. Isso sem contar com a possibilidade de que nos sigam. A ideia mais acertada neste momento é nos refugiarmos durante uma longa temporada no Pleasure. Quando nos instalarmos, enviarei uma carta a Arlington explicando tudo o que descobrimos e que se afastem de lá o mais rápido possível. Só espero que seu próximo destino seja mais seguro —manifestou pegando o fósforo aceso com a ponta de dois dedos.

—Quer voltar para o clube? —Babier queria confirmar.

—As putas, como aquele infeliz me chamou, se escondem muito bem entre os membros de sua própria espécie —afirmou antes de jogar o fósforo no chão.


I V


Castelo de Peel. Ilha de Man. 7 de maio de 1808.

—Abaixe! Salte! Proteja-se! Vire à direita! Ataque direto! Atrás! Vire à esquerda! Contra-ataque! —O instrutor ordenou a Lionel que empunhasse a espada com a mesma rapidez com que falava.

Lorde Arlington contemplava expectante a cena pela janela de seu escritório. Incapaz de apagar o sorriso dos lábios ou fazer que seu peito se esvaziasse devido ao orgulho que sentia nesse momento. Aquele jovem era tão hábil na luta que poderia converter-se no melhor soldado da Inglaterra. No entanto, não podia dizer o mesmo sobre seu talento musical.

Petey lhe rogou que não voltasse a se aproximar de um piano. Literalmente, lhe disse que «qualquer lenhador com um machado amarrado aos dedos poderia tocar mil vezes melhor que o jovem». Também não acertaram com a segunda escolha: o violino. Abraham explodiu em cólera quando Lionel rompeu as cordas do terceiro instrumento que tentou fazer soar. No final teve que desistir de lhe proporcionar uma habilidade musical, tão comum entre a aristocracia, e aceitar a conclusão de seu amigo: mantê-lo afastado de qualquer objeto melódico salvo que quisesse usá-lo como arma defensiva. Felizmente, não houve tantos infortúnios no domínio da dança. Lionel movia os pés com a mesma agilidade que mostrava nos treinamentos militares. «Foi minha mãe quem me ensinou a dançar desde muito pequeno. Gostava tanto, que sonhou em se tornar uma reconhecida bailarina», confessou à cozinheira depois que esta declarou que a fez flutuar. Aquele detalhe tão íntimo de Eugine, e que muito poucas pessoas conheciam, de repente destruiu uma hipótese que havia sido considerada desde a conversa que tiveram no navio: que o rapaz que mencionou fosse o verdadeiro filho de lady Gable, e que tenha lhe contado, antes de morrer, quem era seu pai, e que esse jovem que protegia fosse, na realidade, um impostor.

No entanto, depois daquela confissão, refletiu um pouco mais e admitiu que não tinha reparado em várias perguntas: se tivesse suplantado a identidade para obter uma vida cômoda por que não viajou a Londres para reclamá-la? E por que não mostrou satisfação ao dar-lhe o anel? No dia em que o entregou, observou-o com indiferença. Depois desse frio comportamento, colocou-o no bolso e só voltou a olhá-lo na noite em que conversaram. Nem o colocou quando chegou ao castelo. Segundo Abraham, o deixou sobre a lareira da sala, onde ainda estava.

Apesar de todos os esclarecimentos, ainda tinha mais duas incógnitas para as quais não encontrou resposta: o físico e sua habilidade em combate. Depois de comer da maneira certa e exercitar seu corpo com o treinamento diário, Krauss dobrou o tamanho de seus músculos e se tornou um lutador feroz. Evoluiu tão favoravelmente que tomou como certa a reflexão que Petey fez dois meses antes: «temos um gladiador romano em um castelo inglês».

De onde provinha essa perícia militar? E sua compleição física? De seus pais, evidentemente não. O príncipe não se destacava por uma compleição atlética, devido aos excessos de bebida e comida, mas por sua mente analítica. Também não gostava de segurar um florete na mão salvo quando se encontrava em alguma exibição real. Por outro lado, Lady Gable descendia de uma família covarde. Claro exemplo disso foi seu pai, que preferiu viver seus últimos anos mergulhado em uma terrível miséria a lutar contra quem lhe roubou sua fortuna. Essa foi a razão pela qual Eugine procurou uma maneira de chegar à rainha e que a acolhesse como dama de companhia. Precisava de um salva-vidas e, dado que não foi capaz de encontrar um marido que a mantivesse, aproveitou sua juventude e encanto para seduzir o príncipe.

Como não podia responder a essas perguntas por si mesmo, entrou em contato com um dos rastreadores que trabalhavam na organização. Mandou-o viajar até Luton, seguindo o caminho que Sabrina traçou, e que conseguisse toda a informação possível sobre o rapaz. Cinco semanas depois, recebeu uma resposta. Dentro do envelope, encontrou um longo relato do rastreador, que correspondia a de Ormond, e uma carta escrita pelo próprio Sr. Wayner, o médico que tratou do menino em Royalhouse.

Estive ausente apenas quatro meses porque tive que me apresentar em Londres para examinar os alunos do último ano. Ao retornar, o jovem Krauss não exibia um desenvolvimento físico correspondente ao de uma criança de dez anos, mas sim ao de um de quinze. Tinha crescido mais de dez polegadas, engordou uns cinco quilos e lhe havia saído uma barba grossa. Meu sobrinho, que ocupou meu lugar e é uma pessoa de minha total confiança, explicou-me que durante esse tempo o rapaz sofreu umas terríveis febres que o obrigaram a manter-se prostrado no leito. Até acharam que morreria! Mas não aconteceu. Essas febres foram o precedente do que aconteceria.

Compreendo sua preocupação, milorde, mas garanto-lhe que tudo aconteceu como indiquei. Cheguei à conclusão de que o jovem sofreu na infância de uma doença chamada gigantismo. Embora as razões que causam isso ainda não sejam conhecidas, seus efeitos nas pessoas são apreciados. Para ser sincero, estou muito feliz que tenha sofrido uma doença tão grave, pois garanto que, desde o seu nascimento, pensei que não chegaria vivo à puberdade. De qualquer forma, escrevo-lhe uma extensa descrição física sobre o rapaz. Espero que com ela possa resolver a incerteza sobre...

Ao lê-la, ficou com raiva por não ter prestado atenção a esses detalhes físicos. Como o médico explicou, Krauss tinha muitas coisas em comum com sua mãe: cabelo escuro e ondulado, nariz pontudo e tinha duas pequenas covinhas nas bochechas, que só eram apreciadas quando sorria. Desde aquele momento, deixou de questionar tudo que se referisse ao menino e assumiu que os filhos nem sempre deviam possuir traços ou atitudes semelhantes aos de seus pais.

Justamente quando decidiu se afastar da janela e continuar lendo os documentos que havia colocado em sua mesa, percebeu que o instrutor colocava o jovem numa situação bastante difícil. Como sairia vitorioso desta vez?

—Meu senhor, é urgente que lhe fale sobre um assunto que diz respeito a... —Petey tentou dizer depois de entrar no escritório do marquês.

—Não me distraia agora, Abraham. Quero saber como o rapaz sairá desta encruzilhada —Theodore comentou sem desviar os olhos do exterior.

—Onde se encontra hoje? —perguntou enquanto caminhava até o marquês.

Parado em frente à janela, lentamente empurrou os óculos pela ponte do nariz e proferiu um palavrão silencioso quando o encontrou com o peito nu como se fosse um pirata vulgar. Quantas vezes ele repetiu que um futuro aristocrata não poderia se comportar de forma tão selvagem? Quantas vezes explicou que um dia se tornaria um lorde distinto?

—Não importa onde esteja. O importante é descobrir como resolver a situação antes que seja tarde demais —Arlington disse com tranquilidade. —Para onde acha que irá?

—Não sei. O assunto está complicado.

—Isso que pensa? —cutucou divertido.

—Claro! —garantiu Abraham. —O muro que tem atrás de si o impede de afastar-se de seu oponente. Não pode andar para a direita porque as duas carroças de feno bloqueiam seu caminho. Para frente seria um suicídio. Então só tem a opção de ir para a direita.

—E pôr em perigo a vida dessas pessoas? —perguntou Theodore sem parar de sorrir.

—Perdoe-me por discordar, milorde, mas não há ninguém lá, apenas pedras empilhadas —se opôs Petey.

—Para ele, aquelas colunas de pedras que colocaram antes do treino são pessoas que deve proteger —garantiu Arlington.

—Nesse caso, o melhor é que se renda —concluiu com resignação.

Sem tirar as mãos das costas ou apagar o sorriso do rosto, Theodore observou enquanto Krauss examinava rapidamente todas as possibilidades de fuga ao seu redor. Depois de franzir a testa, olhando para as pedras, agarrou o cabo da espada e deu dois passos à frente para atacar o professor. Ele se esquivou da investida severa se virando para a direita. Naquele momento, os lábios do jovem se abriram formando um sorriso cheio de alegria e orgulho. Em seguida, lançou a espada para cima, fazendo com que o seu adversário fixasse o olhar nela, voltou-se para uma das carruagens, saltou sobre o feno e depois de agarrar com a mão direita a espada, que voltava a grande velocidade, saltou dali para o muro.

—Isso não me impedirá! —exclamou o professor com orgulho.

—Eu sei —respondeu Lionel antes de dar um passo para trás, estender os braços e se deixar cair.

—Santo Cristo! —gritou Petey, que, testemunhando essa loucura, se aproximou da janela tão rapidamente que bateu com a testa no vidro.

—Calma. —Arlington o tranquilizou.

Com grande expectativa, Theodore e Abraham ficaram parados e em silêncio esperando o próximo passo. Então perceberam que o instrutor se aproximou do muro. Apoiou as duas mãos sobre ele e olhou para o lugar onde o rapaz havia caído.

Theodore soltou uma tremenda gargalhada quando o observou sair do esconderijo, saltar de novo na carruagem e voltar ao chão, tão rápido que não conseguiu aproveitar aquele ardil de guerra.

—Como bem disse, isso não me impedirá —disse Lionel quando pressionou com a ponta de sua espada as costas do homem.

—Touché —respondeu o instrutor, liberando o florete.

—Foi só um golpe de sorte —Petey resmungou depois de limpar a névoa que apareceu em seus óculos.

—Eu chamo de perícia —elogiou o marquês afastando-se da janela.

—Já vi mágicos que fazem esse tipo de truques com maior destreza —Abraham continuou com ironia.

—Posso saber o motivo de sua raiva? Não está satisfeito em confirmar que seu pupilo progride todos os dias? —retrucou franzindo a testa.

—Meu pupilo... —Abraham soltou um longo suspiro. —Não, milorde. Aquele menino do inferno não é meu pupilo. Se fosse, escutaria com atenção minhas lições; e, como bem sabe, não o faz. Percebeu que está seminu, que não se barbeia há vários dias e que evita cortar o cabelo desde que chegamos?

—Essas são as razões da sua raiva? —Perguntou em um tom suave, mas firme. —Porque considero esses atos muito típicos de sua juventude. Te garanto que durante a minha eu fui muito mais rebelde do que ele.

—Entendo, milorde. Mas asseguro-lhe que minha consideração por aquele jovem, que duvido muito que se torne um lorde, não é a causa de minha raiva, mas de frustração. Isso me preocupa porque, até agora, exceto por correspondência real, não tinha recebido outras notícias —alegou tirando uma carta do bolso interno de sua jaqueta e colocando-a sobre a mesa.

Quando Theodore observou a cor da cera que selava o envelope, ficou tão pasmado que se esqueceu de respirar. Como diabos tinha feito chegar uma carta de Bibury?

—Me entregaram há pouco, milorde —Petey começou a explicar. —A sobrinha da senhora Khaligan recebeu-a na barraca de verduras que tem no povoado.

—Quem deu a ela? —Theodore perguntou, sentando-se e observando a caligrafia cuidadosa e caprichada com que Babier escreveu seu nome.

—O primo de um segundo tio da esposa do terceiro marido de sua irmã —disse lentamente, para não se confundir com a explicação que lhe deu a jovem ao chegar.

—Maldição, Sabrina! O que aconteceu com você? —o marquês trovejou, rasgando o envelope com os dedos ao entender o código que havia sido enviado a ele através da verdureira.

—Deseja que me retire, milorde? —quis saber Abraham dando um passo para trás.

—Não tenho segredos com você e muito menos dela. Peço que fique ao meu lado até descobrir o que aconteceu. Porque se descobrir que está morta, não sei como reagirei —perguntou com medo.

No entanto, ao ver que a escrita era dela, suspirou e eliminou a pressão que sentia no peito. Em seguida, leu o conteúdo da carta bem devagar, porque a moça usava um código tão indecifrável que até ele tinha dificuldade para descobrir o que tentava lhe dizer. Mas desta vez Sabrina se esforçara para que compreendesse de primeira. Não só pelo seu bem, mas também pelo dele. Depois de terminar a leitura, bateu forte na mesa, levantou-se e estendeu as páginas a Abraham para que pudesse lê-las.

—Sua preocupação foi confirmada —indicou antes de caminhar para o decantador de brandy. Encheu meio copo e o bebeu de um gole.

—O que diz? É muito grave? —perguntou Petey olhando para ele sem piscar.

—Confira você mesmo —respondeu antes de se servir de outra bebida.

—Meu querido lorde Arlington —Abraham começou a ler em voz alta, —lhe envio esta carta para informá-lo de que as quatro vacas que tenho em minha propriedade, finalmente, seguem sem ficar prenhas. O granjeiro que recomendou me ofereceu seu melhor macho, mas me enganou. Esse touro não é um garanhão, mas um covarde. O mentiroso ficou com o valor que nós concordamos e não quer me receber para ouvir minhas reclamações. Se demorar muito em atender meu pedido, terminarei por colocar fogo em sua granja. Também aviso que... —Afastou o olhar da folha e fixou os olhos no lorde. —Vacas prenhas? Fogo? Desde quando Sabrina virou uma camponesa? É por isso que lhe pediu que considerasse a aldeia de Bibury? Que desperdício!

—Ela não se tornou uma camponesa —Theodore respondeu andando até ele. —Esta é uma mensagem codificada —alegou.

—E o que quis dizer com todo esse absurdo? —retrucou enquanto prosseguia com a leitura.

Mas não compreendia nada. Depois das vacas falava sobre coelhos e que estes se mantinham a salvo na toca. Mas que o último coelho, o décimo sexto, ainda estava no campo e que uma matilha de lobos estava procurando-o.

—Sinto muito, milorde. Não entendo nada do que escreveu —admitiu depositando as folhas sobre a mesa.

—Ela me comunica que foi atacada em sua casa e que o Khar tentou matá-la porque procura o filho de lady Gable —explicou com preocupação.

—Realmente conta tudo isso fazendo referência aos animais que normalmente existem em uma fazenda? —soltou incrédulo Abraham.

—Como bem disse uma vez, ela é a espiã mais astuta e corajosa que já tivemos. —Afirmou Theodore voltando para a janela novamente.

—E, isso explica mais alguma coisa? Porque tenho muito medo que a fábula da camponesa seja bastante extensa —admitiu olhando as folhas.

—Sim. Me informa que tanto ela como Babier se escondem no Pleasure e me avisa que devemos ir daqui o quanto antes. Como deduziu, já não estamos seguros.

—E o que pretende fazer, milorde?

—Como compreenderá, seguirei suas indicações e retornaremos a Londres —respondeu categórico.

—Quer que todos nós apareçamos lá? —perguntou arregalando os olhos. —Milorde, perdoe-me pelo que vou lhe dizer, mas deve estar consciente de que o jovem Krauss não está preparado para apresentar-se em sociedade como um distinto aristocrata nem para enfrentar os Terinthians —expressou Abraham bastante preocupado.

—Nós faremos tudo o que estiver em nossas mãos durante a viagem de volta. Uma vez lá, falarei com a Sabrina para que, entre nós dois, possamos traçar um plano adequado às necessidades do jovem. —Declarou sem desviar o olhar de Lionel, que lavava o rosto com a água do balde em que os cavalos bebiam.

—Talvez possa transformá-lo em seu filho e que Sabrina faça o papel de esposa apaixonada. Desse modo, a sociedade silenciará os rumores que sempre se espalharam sobre a vida ou a morte de seu verdadeiro filho e o menino será protegido e guardado por vinte e quatro horas. —Abraham apontou sarcasticamente.

—Excelente ideia! —Theodore afirmou antes de se sentar e escrever uma carta a Sabrina para informá-la que, quando chegassem a Londres, o jovem Krauss se chamaria Lionel Wallas, barão de Riseway, e que ela se tornaria sua amada noiva.

Petey quase teve um ataque cardíaco.


V


Pool, Londres. 25 de maio de 1808.

Lionel correu até a frente do navio. Queria confirmar a conversa que Arlington teve com o contramestre. E era verdade. O porto de Pool se encontrava tão perto que, apesar de ser noite, podia observar a fumaça das chaminés das fábricas vizinhas. Se agarrando a uma das cordas que prendiam o mastro, manteve o olhar fixo naquele lugar por muito tempo. Segundo informações do Marquês, desembarcariam em Pool: um porto localizado ao sul de Londres, onde os navios de carga atracavam para que sua carga fosse registrada e inspecionada. No entanto, ninguém iria anotar no diário de bordo que a Newlife chegaria naquele dia. O Sr. Petey já havia assumido a responsabilidade de pagar aos funcionários para guardarem segredo.

—Milorde, tenha cuidado. Estamos a ponto de alcançar o cais e, devido à forte ondulação, é perigoso que se coloque na parte mais afastada da proa —foi informado pelo único oficial da ponte que o marquês contratou.

—Eu terei —respondeu sem tirar os olhos da cidade.

«Milorde», foi assim que o chamaram durante a viagem. O Sr. Petey relatou à nova tripulação que o marquês e seu filho, o Barão de Riseway, estavam voltando a Londres para o jovem se casar com a filha de um rico burguês. Um plano terrível que ele descobriu na primeira sexta-feira do mês, depois de um treino intenso.

Era estranho para ele que Arlington o convocasse para seu escritório sem lhe dar tempo para se arrumar, e essa estranheza aumentou quando entrou e viu o rosto angustiado de seu protetor.

—O que aconteceu? —Perguntou enquanto se aproximava da mesa.

—Temos que adiantar a viagem a Londres. Partimos em duas semanas —anunciou ao estender a carta que Sabrina lhe enviou. —Recebi notícias de uma pessoa em quem confio plenamente, explicando que os Terinthians estão à sua procura e que estão dispostos a fazer qualquer coisa para encontrá-lo.

—Me disse que aqui estaríamos seguros —rosnou enquanto pegava as folhas que lhe oferecia.

—Eu sei e juro por Deus que acreditei. No entanto, refletindo sobre o conteúdo dessa carta, tenho muito medo de que logo descubram onde estamos e venham atrás de nós. —Explicou sem desviar o olhar do jovem.

—Não estou pronto ainda —afirmou olhando as folhas e admirando a bela caligrafia.

—Está —afirmou Theodore com rapidez.

A segurança que Arlington expressou não o acalmou, pelo contrário. Sua inquietação aumentou a ponto de perceber como gotas de suor escorriam de sua testa. Por muito que o marquês tentasse convencê-lo de que tinha adquirido, durante esses quatro meses, a habilidade suficiente para enfrentar o homem que ceifou a vida de sua mãe, ele duvidava disso. Aquele desconhecido para todos menos para ele, lutava como um bárbaro e carecia de piedade.

—O que diabos esta carta diz? —perguntou depois de ler. —Se baseou em ocorrências sobre vacas, coelhos e patos para concluir que estamos em perigo? —Acrescentou perplexo e se sentando.

—As vacas são os agressores —Theodore começou a explicar. —O fato de não terem ficado prenhas significa que não atingiram seu objetivo.

—Que era...

—Matá-la —esclareceu com angústia. —O touro a que se refere é o Khar. E quando explica que foi enganado pelo granjeiro que eu mesmo lhe recomendei, comunica-me que, possivelmente, sabem onde nos encontrar —continuou decifrando a narrativa enquanto se levantava da cadeira. Então parou em frente à janela, colocou as mãos atrás das costas e olhou para a bela paisagem costeira que os cercava. —Os coelhos são a descendência do príncipe. Na verdade, os quinze que encontrou anteriormente estão protegidos, mas o décimo sexto, ou seja, você, não. A matilha são os Terinthians.

—E os dois patos? —perguntou com desdém.

—São Babier e ela —esclareceu com um longo suspiro. —Se esconderam no Pleasure e permanecerão ali até que nos reunamos com eles.

—O que é o Pleasure?

—Um clube de cavalheiros muito exclusivo de Londres —esclareceu o marquês.

—Essa mulher refugiou-se dos Terinthians em um bordel? —soltou atônito. —É uma loucura! Acaso não está consciente de que cedo ou tarde aparecerão nesse antro?

—Sim —afirmou esboçando um sorriso. —É por isso que o fez. Não há melhor lugar para descobrir o que uma organização secreta está tramando do que o Pleasure. Para sua informação, jovem Krauss, direi que um homem com o estômago transbordando de álcool e rodeado de mulheres dispostas a lhe dar prazer, faz e diz tudo o que elas pedem sem questionar por um único segundo.

Por um momento ele quis refutar essa afirmação, mas então considerou porque sabia que no fundo ele estava certo. Um homem, ávido por prazeres carnais, poderia pegar a lua se a cortesã pedisse em troca de passar uma noite inesquecível.

—Posso saber o que tem tramado? Porque deduzo que traçou um plano e por isso me chamou com tanta urgência —manifestou deixando as folhas sobre a mesa.

—De fato. Eu tenho um plano infalível —respondeu voltando-se para ele.

—E em que consiste? —insistiu em descobrir.

—De agora em diante se chamará Lionel Wallas, Barão de Riseway, meu filho —garantiu com firmeza.

—O que disse? —perguntou levantando-se de um salto da cadeira. —O plano que elaborou baseia-se em me fazer passar por seu filho? —adicionou confuso.

—Isso mesmo —declarou caminhando até o rapaz. —Sou um homem muito bem considerado na Inglaterra. Estou certo de que graças a isso ninguém duvidará de minha palavra e o aceitarão na sociedade com rapidez.

—Não pensa com coerência, milorde! —replicou. —Ponderou a possibilidade de que quem o conheça se perguntem de onde diabos saí? —falou apressadamente.

—As pessoas a quem faz referência, também conheceram a minha esposa e sabem que fomos a Colchester para que nosso filho nascesse ali. Foram, em seu tempo, informados de que Lizbeth morreu no parto, mas jamais falei sobre o menino que carregava em seu ventre —declarou com tristeza. —Há milhares de conjecturas sobre ele, é claro. Mas isso nunca foi um inconveniente para mim. O importante, neste momento, é que pode substituir o posto desse filho que não sobreviveu. Por alguma estranha razão médica, sua masculinidade não é a que se esperaria de um jovem de vinte anos, mas sim a de um homem de vinte e cinco, a idade que teria o menino.

—Impossível! —exclamou Lionel, esfregando o rosto desesperadamente.

—Por que considera isso impossível? —Arlington ficou furioso ao acreditar que o jovem desprezava seu sobrenome.

—Porque não parou para pensar em outro ponto, milorde —declarou acariciando sua nova barba.

—Qual?

—Não será estranho que apresente seu filho vinte e cinco anos depois? —expressou com avidez.

—Isso não é nenhum problema —garantiu, fazendo sua raiva desaparecer rapidamente. —Duas das características mais importantes dos aristocratas são a imoralidade e a falsidade. Utilizam-nas assiduamente para continuar ostentando a popularidade que almejam. Por esse motivo, vou espalhar que, após a morte de minha esposa, o culpei pela morte dela e decidi mandá-lo embora de Londres para que parentes pudessem cuidar de sua educação e crescimento.

Por alguns minutos, Lionel refletiu sobre as palavras do marquês. Não estava errado. Ele próprio era um produto daquela imoralidade a que se referia e seu nascimento estava cercado de mentiras. No entanto, aquela ansiedade que se instalou em seu peito disse-lhe que os problemas não seriam resolvidos mudando o sobrenome. «Te procurará e te encontrará», lembrou as palavras de sua mãe. Irritado, virou-se em silêncio para a direita, caminhou a grandes passos para o decantador, serviu-se uma taça e tomou-a em um gole.

—Imaginemos que, tal como diz, a sociedade aceite que sou seu filho e que, por despeito, me exilou de Londres. Não se perguntarão o motivo pelo qual apareci depois de tanto tempo?

—Essa é a segunda parte da nossa invenção —manifestou um pouco mais calmo ao descobrir que Lionel começava a aceitar seu novo futuro. —Um pai deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que o futuro do seu filho e o futuro da família sejam favoráveis e felizes. Por esse motivo, ninguém questionará que seu retorno foi motivado pela aceitação de um contrato de casamento com...

—Por Cristo! Tem a intenção de divulgar não só o aparecimento de um filho falso, mas também a de um compromisso? Essa é a sua ideia de ter um plano infalível? —rugiu.

—É a melhor opção. Como expliquei, a aristocracia luta para se manter na alta sociedade e fazem tudo o que esteja em suas mãos para consegui-lo. Daí que os acordos matrimoniais sejam tão recorrentes —perseverou.

—Mas continua sem apreciar certos pontos fracos desse plano tão engenhoso —murmurou irônico.

—A que se refere desta vez? —espetou o marquês cansado de ouvir tantas objeções a um plano que, desde o início, lhe pareceu sumamente simples e perfeito.

—A mulher! —exclamou revirando os olhos. —Onde encontrará uma noiva que não se iluda com o casamento? —o repreendeu com raiva. —Por acaso sabe o nome de alguma dama que deseje arruinar sua imaculada reputação? —alegou irritado, pois sua mãe se encontrou nessa situação e sofreu as consequências de amar um homem que não a correspondia.

—Sua soberba masculina me diverte, mas também admito que me agrada saber que tem algo de bondade em seu coração —Theodore comentou sarcasticamente.

—Jamais machucarei uma dama intencionalmente! —exclamou Lionel olhando-o com raiva.

—Não vai machucá-la, garanto-lhe. Sabrina estará ciente, a todo o momento, que é uma farsa e não se iludirá com dito compromisso —anunciou com diversão.

—Está falando da mulher que se esconde na casa de prazer? —trovejou com ironia.

—Sim, a mesma. Durante seus oito anos como espiã, foi capaz de inventar mais de cem vidas diferentes e tenho certeza de que eram mais perigosas do que a de uma noiva apaixonada.

—Me nego a fingir um cortejo com uma mulher que tem a habilidade de me degolar se algo não lhe agrada! —disse amargamente.

—Não terá que cortejar Sabrina, pois ela já se mostrará apaixonada —indicou sem poder apagar o sorriso de seu rosto.

—Certo! —disse com mordacidade. —Imagino que nas próximas semanas enviará uma carta explicando esse enredo e ela trabalhará em sua nova faceta. Certamente que dedicará esse tempo a armazenar todo o veneno que possa para cuspir em mim assim que nos conhecermos.

—Cuspir? Por que acha que faria tal coisa?

—Porque cheguei à conclusão que as espiãs são como as cobras. Enquanto têm a sua presa frente a elas, lhe cospem à cara esse veneno que guardaram —murmurou quando se lembrou da única mulher que havia pedido ajuda e o fez cair em uma armadilha.

—Garanto que a senhorita Ormond não precisa cuspir veneno para matar seus oponentes. Durante esses anos a meu serviço, ela aprendeu muitas maneiras de sair ilesa de uma situação perigosa. —Theodor expos com orgulho paterno.

—Senhorita Ormond? —clamou arregalando os olhos. —Refere-se à mulher que me enganou?

O plano estava ficando cada vez mais interessante...

—A mesma —Arlington assegurou com um grande sorriso.

—Quer que ande pelas ruas de Londres com essa serpente agarrada pelo braço? —continuou em voz alta.

—E será uma serpente encantadora e apaixonada por seu noivo, te garanto isso —declarou Teodoro satisfeito.

—Não podemos procurar outra mulher? —soltou desesperado.

—Não. Ela é a única em quem confio —declarou solenemente.

Depois disso, Lionel voltou ao decantador, pegou uma garrafa e bebeu desta como se fosse um sedento vagando sem rumo pelo Saara.

Como lhe havia ocorrido uma loucura semelhante? Realmente não havia mais opções? Como iria sorrir para a mulher que ordenou que fosse atingido na cabeça, sequestrado e colocado no porão como se fosse um ladrão comum? E ele teria que fingir um cortejo! Será que o marquês tinha esquecido o que significava vingança pela honra? Porque tinha certeza de que não haveria um único momento entre eles em que não parasse de procurar uma forma de fazê-la pagar pelo engano.

—Lionel —Disse Theodore nas suas costas.

—Sim, pai? —respondeu com sarcasmo, pois continuava sem se acostumar a usar essa palavra.

—Quero informar que, finalmente, seguirá sozinho em direção ao Pleasure —comentou colocando-se a seu lado. —Tenho que me reunir com meu advogado o mais rápido possível para lhe falar de você.

—Tem certeza de que não fará perguntas inesperadas? —retrucou olhando-o com inquietação.

—Tenho certeza. Prometo que não serei o primeiro nem o último aristocrata que reconhece um filho legítimo depois de tanto tempo. Mas lembre-se que esses documentos não são válidos e serão destruídos quando a missão terminar —assegurou Theodore pondo uma mão sobre o ombro do rapaz para acalmar seu nervosismo.

—E se não vem comigo. Como chegarei até esse dito lugar? Acha que o senhor Petey poderia me acompanhar? —sugeriu desesperado.

—Abraham em um bordel? —perguntou antes de soltar uma alta gargalhada. —Nem em seus pesadelos pisaria em um lugar assim? —alegou.

—Então, como chegarei? O cocheiro sabe o endereço? Podemos confiar nele? —perguntou mal respirando.

—Babier te espera no porto. Ele te protegerá até que se encontre com Sabrina —esclareceu.

—Minha noiva apaixonada não queria deixar seu esconderijo para cuidar de mim ela mesma? Que motivo a terá retido? —continuou mordaz.

—Guarde esse sarcasmo se não quer que Sabrina corte sua língua —Theodore sugeriu divertido.

—Já me encarregarei de me manter afastado dessa bruxa de cabelo cor de cobre —resmungou.

—Cor de cobre? —Arlington estalou com olhos estreitos.

Ao concluir que a garota usou uma de suas perucas no dia que lhe armou a emboscada, voltou a soltar outra tremenda risada. «Pobre rapaz, a cobra o envenenará assim que o veja», pensou o marquês antes de afastar-se de Lionel e deixá-lo mergulhado em seus pensamentos.


V I


—Prometa-me que aconteça o que acontecer, nunca aparecerá em Londres —lhe pediu enquanto o abraçava.

—Eu te prometo, mãe —respondeu com firmeza.

Desde que o cocheiro pôs em marcha a carruagem, não afastou o olhar da janela. Era a primeira vez que se apresentava em Londres e sua necessidade por descobrir como era a cidade que sua mãe lhe proibiu de visitar, começava a diminuir. Não lhe pareceu tão bonita como a Villa Liverpool, pelo contrário. As ruas por onde passavam estavam repletas de pobreza, sujeira e gente vasculhando entre os lixos por algo com o que se alimentar. Uma contradição. Sim, isso mesmo concluiu depois de um tempo contemplando-a. Não entendia como podiam declará-la uma cidade rica e próspera, quando a maioria de seus cidadãos morria de fome. Ali não coexistiam sete classes sociais, como lhe explicou o senhor Petey, mas duas: os ricos e os pobres.

Irritado e bastante desiludido com tudo o que via, recostou-se sobre o assento para olhar de lado a seu acompanhante, que permaneceu em silêncio desde que fechou a porta da carruagem. O fiel protetor de Sabrina, pois assim o nomeou Arlington ao apresentá-lo, não se vestia como um lacaio, mas como um homem da alta sociedade: calças compridas, sobrecasaca e um lenço branco amarrado sobre o colarinho alto de uma camisa de linho. Ele até usava uma cartola! Isso o fez pensar que a senhorita Ormond se importava e mimava seus empregados. Talvez não fosse a bruxa que ele viu naquele dia. Ainda assim, sua raiva não podia desaparecer depois de descobrir que a mulher mostrava compaixão com seus empregados, pois com ele não tinha tido nenhuma.

—Quer me perguntar alguma coisa? —Babier quebrou o silêncio constrangedor ao se sentir observado.

—Há quanto tempo conhece a senhorita Ormond? —Começou seu longo questionário por essa pergunta.

—Dezesseis anos. Desde que lorde Arlington a tirou do orfanato com oito —respondeu sinceramente.

—Como conseguiu me encontrar? —prosseguiu com a segunda. Se lhe respondesse, teria ganhado um de seus propósitos.

—Não posso revelar os métodos que usou para descobrir seu paradeiro. Se está tão interessado em saber como o encontrou, é melhor perguntar a ela —Babier assegurou franzindo a testa.

—O farei —murmurou.

«Fidelidade», pensou Lionel. Um afeto muito apreciado nos últimos tempos e que pouquíssimas pessoas podiam obter de seus servos. No entanto, ela não só contava com a fidelidade de seu guarda-costas, como também a apoiavam Arlington e o senhor Petey. Cada vez que falavam dela, seus olhos expressavam orgulho, devoção e respeito. O que teria feito para obtê-lo? Porque não lhe cabia nenhuma dúvida de que os três eram capazes de morrer para salvá-la, o que o fez deduzir que não era uma mulher que amasse uma vida sem sobressaltos ou perigos.

—Pode me contar algo sobre minha noiva? —pediu ao Sr. Petey duas noites antes do embarque.

—Para quê? —lhe respondeu este subindo os óculos com um dedo.

—Gostaria de saber de que coisas gosta. Se tenho que programar um cortejo, não quero dar-lhe motivos para que me mate —comentou depois de deixar o guardanapo sobre a mesa com o máximo cuidado.

Então pegou o copo de vinho e, sob o olhar atento de seu professor, deu um leve gole. Então, suportando o estalo usual da língua ao saborear um licor delicioso, ele o colocou de volta no lugar sem fazer barulho. Se havia uma maneira de obter informações do senhor Petey era essa: mostrando que tinha aprendido tudo o que lhe ensinara.

—O que pensou em fazer? —respondeu Abraham engenhosamente para não confessar tudo o que desejava saber.

—Entendo que as noivas são respeitosamente solicitadas a caminhar nos momentos apropriados no parque em Londres. Também ouvi dizer que gostam de presentes como flores, chocolates ou joias.

—Além disso, terá que levá-las de braço dado nas festas que aceite ir —afirmou sem deixar de observá-lo atentamente, pois lhe parecia um milagre que se comportasse com tanta delicadeza. —É uma pena que Sabrina ofereça uma imagem tão insípida. Ela não merece ter seu intelecto depreciado dessa forma. Por outro lado, espero que adquira paciência suficiente para suportar os olhares reprováveis das damas.

—Por que a olharão assim? —estalou interessado.

—Se apresentará como o filho do marquês de Arlington e todo mundo tem especulado sobre o poder aquisitivo de sua senhoria. Que opinião terão dela as mães com filhas no mercado de casamento que não terão a oportunidade de caçá-lo?

—Acha que a senhorita Ormond não será capaz de seguir o plano?

—Sim, claro que sim! —exclamou indignado. —Mas também sei que mais de uma dama terá que abandonar a festa apressadamente depois de conversar com sua noiva —declarou Petey antes de soltar uma grande risada.

Aquela breve palestra confirmou o que já sabia: sua devoção à moça. Isso só agravou sua vontade de vê-la outra vez e descobrir, por ele mesmo, que tipo de encantamento havia lançado a todos os homens para que a protegessem com tanta cautela.

—Falta muito para chegarmos? —decidiu perguntar depois de outro horrível silêncio, durante o qual deduziu que tampouco obteria mais informação sobre sua noiva misteriosa.

—Não —respondeu.

E justo naquele momento, a carruagem parou.

—Percebo —Lionel murmurou ao encontrar um sorriso largo no rosto de seu acompanhante.

Assim que o cocheiro abriu a porta, Babier saiu primeiro. Quando tentou fazer o mesmo, encontrou uma grande mão impedindo-o de passar.

—Espere aqui —ordenou.

Lionel não estava disposto a obedecer a uma ordem. Porém, depois de perceber que o homem estava verificando os arredores como se sua vida dependesse disso, entendeu que estava apenas obedecendo ao último comando de Arlington: mantê-lo a salvo. Depois de bufar, pois ele não era a pessoa indefesa que todos pensavam, esperou com impaciência o seu guardião.

—Desça! —voltou a ordenar com tom autoritário.

Quando pôs os pés no chão, a primeira coisa que fez foi observar o beco onde tinham estacionado. Lá encontrou mais escuridão, mais miséria e mais mendigos jogados no chão.

—Não pare. Tem que entrar por essa porta o mais rápido possível —Babier insistiu em encaminhá-lo.

Não respondeu. Para que? As palavras que sua boca expressasse não seriam ouvidas. Por acaso ele não tinha nada a dizer? Não, respondeu-se com rapidez. Desde que a bruxa de cabelo ruivo tirou a liberdade que desfrutou por cinco anos maravilhosos, não foi capaz de ter o quê, quando e como fazer algo que o agradasse. Mas aquela tortura estava com os dias contados. Assim que atingisse seu verdadeiro objetivo, sairia de lá e ganharia a independência que tanto desejava e sentia falta. Ao entrar no local pela porta dos fundos, se viu dentro de uma enorme cozinha, iluminada por dez velas e a luz de uma lareira. Na lareira havia um enorme caldeirão e sobre a mesa retangular, situada no centro, encontrou oito serviços e quatro jarras de vinho dispersas por esta. Lionel considerou que as mulheres, depois de realizar seus serviços, vinham ali para saciar o apetite que a atividade sexual lhes causava.

—Boa noite —foram recebidos por uma mulher bastante robusta. Ela enxugou as mãos no avental e deu um sorriso trêmulo.

—Boa noite —lhe respondeu Lionel com um tom tão cortês, que apreciou certo rubor nela. —Isso que cheiro, a senhora o preparou?

—Sim, senhor. Com estas mãos —ela disse mostrando-as.

—Mãos de deusa, se o gosto estiver tão bom quanto o cheiro —insistiu em elogiá-la.

—A senhorita continua em seus aposentos? —Babier interrompeu essa conversa depois de colocar o chapéu em um canto da mesa.

—Sim, senhor. Ainda está lá desde que saiu —informou.

—Vamos continuar com o plano —Disse a Lionel, que acenou para a cozinheira como despedida. —Nem tente —resmungou quando saíram dali.

—O quê?

—Encantar todas as mulheres que encontre para tirar informação sobre a senhorita Ormond —respondeu grosseiro.

—Estou sendo tão evidente? —retrucou brincalhão.

—Sim —afirmou Babier estreitando os olhos. —Ninguém sabe o que faz e só conhecem aquilo que lhes diz respeito.

—Que é... —Lionel insistiu em descobrir.

—Que ela é a dona do bordel onde trabalham e quem paga seus bons honorários —afirmou abrindo outra porta.

A surpresa que sentiu ao ouvir aquela declaração reveladora foi esquecida quando observou o imenso salão. Naquele momento entendeu porque o chamavam de Pleasure, porque sem dúvida aquele lugar era um verdadeiro prazer para qualquer homem. Luxúria, pecado, libertinagem, devassidão ou lascívia estavam disponíveis para qualquer pessoa. Sem contar a elegância e riqueza dos ornamentos que circundavam a sala. Mas Lionel não deu atenção às cortinas de seda, aos quadros de pintores famosos ou aos dois lustres com velas pendurados no teto, como uma abóbada gótica. Ele ficou olhando para as vinte mulheres bonitas vestindo lingerie. Estas caminhavam pelo salão com sensualidade e exibiam seus atributos aos clientes. A maior parte deles estavam sentados em confortáveis poltronas de veludo vermelho e, como ele, não eram capazes de piscar.

—O que têm em volta do pescoço? —perguntou curioso a Babier em um sussurro.

—Echarpes de penas. Ela os comprou para suas meninas em sua última viagem à Europa. Segundo dizem, exaltam os movimentos sensuais das moças.

E, oh, elas faziam! Ele não conseguia tirar os olhos daqueles enfeites. Qual seria a sensação das penas ao percorrer a pele de uma pessoa? Aumentaria ou diminuiria o desejo?

—Quando o adquiriu? —prosseguiu seu interrogatório enquanto caminhavam pela área direita, onde podiam observar sem serem descobertos.

—O Pleasure? —quis confirmar Babier.

—Sim.

—Há quatro anos. A senhorita Ormond soube que seu anterior proprietário queria vendê-lo, pois não lhe trazia a rentabilidade que desejava. Ela aproveitou esse momento para comprá-lo a um bom preço. Assim que obteve os documentos que a credenciavam como proprietária, ela o reformou e o transformou no local que está contemplando no momento.

—Muito boa aquisição —disse, finalmente admirando a elegância daquele lugar.

—Nasceu com uma habilidade incrível de saber onde investir sua fortuna.

—E multiplicá-la —afirmou com espanto.

Como Arlington garantiu, a mulher era inteligente e ousada. Seus olhos confirmavam a prova disso. Poucos homens, não mulheres, teriam sido capazes de criar um bordel com tanta elegância e cuidado. Um lugar confortável onde passar o tempo desfrutando de mil imoralidades contínuas.

—Vamos subir —Babier continuou a dar ordens enquanto os dois ficavam ao pé de uma escada de madeira. —Espere lá em cima —esclareceu.

—Solte-a! É minha! —gritou um dos clientes, causando um grande alvoroço na sala.

—Venha comigo, boneca! Pagarei o dobro! —chiou outra voz.

—Merda! —Babier amaldiçoou girando nos calcanhares.

—Quer que lhe acompanhe? Tenho certeza que poderei ser de grande ajuda —comentou Lionel esboçando um sorriso enorme e perverso.

—Você não existe, portanto, nunca esteve aqui —lembrou-lhe.

—E o que deseja que faça? Espero com os braços cruzados? —retrucou zombeteiramente.

—Não. Seria muito perigoso. Se a discussão se transforma em um combate, os clientes fugirão para este lugar do clube para se protegerem. Então a melhor opção agora é mantê-lo seguro —disse olhando para o salão. —Suba até o segundo andar e pegue o primeiro corredor à direita. Encontrará o quarto da senhorita Ormond no fundo deste —adicionou antes de correr para resolver a discussão.

Quando ficou sozinho, olhou na direção indicada e sorriu. A sorte estava do seu lado e não tinha intenção de desperdiçá-la. No dia em que se conheceram, estava em desvantagem e desprevenido, mas os papéis haviam mudado. Ainda pensando em fazê-la pagar pelo engano, ele subiu as escadas e correu pelo corredor até ficar na frente da porta do quarto. Nunca pensou que assustar uma mulher o faria se sentir tão feliz e vivo...

Com o coração batendo forte, alcançou a maçaneta da porta, agarrou-a com força e girou-a lentamente para não fazer barulho. Antes de entrar no quarto, deu uma rápida olhada ao redor e confirmou que estariam sozinhos, que ninguém viria rapidamente se a ouvisse gritar. Quanto mais a tortura durasse, mais satisfação a vingança traria. Com um sorriso cruzando seu rosto, gentilmente abriu, entrou e fechou atrás de si. O que planejou fazer o levaria diretamente para o inferno, pois Deus nunca o perdoaria pela atrocidade que estava prestes a cometer. Mas a senhorita Ormond merecia por tê-lo enganado. Virou-se sobre as solas de seus sapatos, avançou vários passos para o interior do quarto e.... levou um terrível sobressalto.

Ali não estava a mulher que queria encontrar, mas uma moça de cabelos escuros que percebeu sua chegada através da imagem refletida em seu espelho.

—Quem diabos é? —perguntou.


V II


Enquanto Babier se dirigia ao porto para pegar o marquês e seu falso filho, aproveitou o tempo para desfrutar de um banho relaxante. Se tudo saísse como planejado, em apenas umas horas deixaria aquele lugar e madame Chanteau, nome que utilizava durante suas aparições no clube, empreenderia uma nova viagem para conseguir lingerie bonita às meninas. Essa era a desculpa que as meninas ofereciam a quem perguntava por ela. Felizmente, essa lista de admiradores era muito pequena, embora bastante considerável para todos. Em uma das primeiras conversas que teve com Arlington, ele recomendou que estudasse as pessoas com quem se relacionava para descobrir como poderia usá-las. Logicamente, ela converteu esse conselho no primeiro objetivo de tudo aquilo que se propunha. Por esse motivo, quando celebrou a reabertura do clube, estudou a vida de todos os clientes que o visitaram, logo selecionou os que mais lhe interessaram e recusou a entrada a quem não contribuiria com nada. No final, o Pleasure se tornou o clube mais seleto da cidade e os cavalheiros mais poderosos e influentes de Londres velavam pela segurança do local durante sua ausência. Como recompensa a essa proteção, estes recebiam um tratamento considerado e especial.

Depois do longo banho, saiu da banheira, cobriu seu corpo com uma bata de seda lilás e caminhou até a cama. Enquanto secava o cabelo com uma toalha de linho, observou o vestido que encontrou sobre a colcha. Edwina fez a escolha certa. O traje esplêndido, mas decoroso, a ajudaria nessa noite a mostrar a imagem de dama distinta que pretendia oferecer nas próximas semanas. Virou-se em frente ao colchão, sentou-se sobre este e suspirou profundamente ao pensar na nova missão.

Ainda não entendia porque voltaram a Londres depois do que aconteceu em sua casa com os quatro Terinthians. O certo teria sido Arlington encontrar um lugar onde escondê-lo até descobrir o que queriam dele, porque só assim poderiam antecipar os seus ataques. Sabrina repassou mentalmente todos os dados que recolheu do jovem Krauss e concluiu que não havia nada importante em sua vida exceto o fato de ser outro filho ilegítimo do príncipe. Durante sua infância levou uma vida muito tranquila longe da agitação da cidade e permaneceu ao lado de sua mãe até que decidiu deixar Royalhouse. Ninguém sabia para onde tinha ido. Até o deram por morto! No entanto, apesar da sua pouca idade, sobreviveu. Também não entendia como chegou a Villa Liverpool sem proteção e por que decidiu ficar naquele lugar. Pensaria que era o melhor lugar para viver depois de seu desaparecimento? Pois errou! Porque um rapaz com aquele físico, e com a diversão que ofereciam as lutas clandestinas nas quais participava, era bastante famoso entre os aldeões. Depois de perguntar por ele, ouviu todo tipo de comentários. Logicamente eliminou os que lhe eram absurdos, restando apenas o fato de que um menino muito magrinho chegou há cinco anos e que, com o passar do tempo, se tornou um gigante. Também soube que rondava pelo porto quando um navio atracava e que fugia das mulheres com cabelos negros como se fossem a peste. Portanto, no dia da emboscada, decidiu usar uma peruca ruiva.

«O que esconde, Lionel Krauss?», se perguntou enquanto vestia suas pernas com meias pretas e ligas da mesma cor. Ao terminar, estendeu a mão direita pela colcha, pegou a bainha de couro onde esconderia uma adaga pequena e a amarrou ao redor da coxa direita. Depois, fez o mesmo com a esquerda, embora nesta estaria um coldre que esconderia uma pistola pequena, com a qual só mataria uma pessoa se disparasse na cabeça. Depois de embainhar as armas, levantou-se e dirigiu-se para a penteadeira. Enquanto esperava Edwina, a jovem que a ajudaria a se vestir, começou ela mesma a escovar o cabelo. Naquela tarde, decidiu passear pelo local com uma peruca empoada e a deixou tão crespa que demoraria uma eternidade para desembaraçá-la.

Depois de pegar a escova, ela se olhou no espelho e sorriu. Como Krauss reagiria quando lhe informasse da rápida mudança de planos? Esperava que este não fosse tão significativo para destruir a missão. Não, não era, se obrigou a pensar. Aquela mudança era uma coisa muito insignificante. Que relevância teria nos planos de Arlington que a apresentasse como a esposa de seu filho em vez de como noiva deste? Se a memória não falhava, a sua principal tarefa consistia em permanecer ao seu lado. Como faria isso, era irrelevante.

«Os homens —continuou refletindo enquanto continuava escovando, —não reparam nesse tipo de detalhes».

E não se enganava.

Em nenhuma das seis páginas que Arlington lhe escreveu, indicou que deveria se preparar para sobreviver a uma vida social. «Graças a Deus estou aqui», pensou naquele dia enquanto observava as folhas daquela carta queimar. Entendia que ele jamais se detinha a pensar naquela visão da vida, pois se tornou um viúvo taciturno. Embora devesse considerá-la com atenção. Por sorte ou infelizmente, os cavalheiros mais importantes da cidade estavam casados. Em algum momento das vinte e quatro horas que dura um dia, se veriam na obrigação de falar com suas esposas. Se o assunto a tratar entre eles consistia em levantar dúvidas sobre a inesperada aparição do filho do marquês de Arlington, cedo ou tarde, indagariam sobre a verdade e teriam um problema. Não obstante, se essas esposas descobrissem que o marquês e seu filho chegavam acompanhados de uma mulher, a esposa do futuro marquês de Arlington, procurariam uma maneira de concentrar todas suas atenções e maldades nela.

Por esse motivo, dois dias depois de receber a carta, se disfarçou de donzela e apareceu no mercado. Enquanto comprava tudo o que precisava para o clube, foi falando sobre a surpreendente chegada do marquês de Arlington, de seu filho e da belíssima esposa deste. A partir desse momento, o rumor sobre os três se espalhou rapidamente pelas ruas de Londres. Todo mundo comentou brevemente sobre esse filho inesperado. No entanto, cavalheiros e senhoras, se concentraram em uma questão: quem era a jovem que havia conseguido pegar um dos solteiros mais cobiçados da cidade.

Sem parar para desembaraçar o cabelo, ela olhou para o convite em cima da penteadeira. Babier lhe entregou nessa mesma manhã, depois de confirmar que o serviço, a quem ela própria contratou se fazendo passar pela governanta do jovem casal Riseway, terminava os trabalhos de limpeza. O sorriso que seu fiel companheiro lhe deu ao lhe oferecer a correspondência, já a avisava que seu plano havia sido colocado em pratica. O conteúdo do cartão que encontrou dentro corroborou a suspeita. Nele, os Viscondes de Hasherby os convidavam para a festa que ofereceriam na próxima sexta-feira. O que Arlington pensaria de sua conquista? Pareceria perfeito e lhe agradeceria por cuidar desse tipo de detalhe. Para não os alarmar, comentaria que não lhe importava o que os outros pensavam sobre ele. Mas essa posição era inconcebível. Durante as próximas semanas os três teriam uma vida social bastante ocupada. Talvez Arlington pudesse se desculpar por ser viúvo. No entanto, o jovem casal não conseguiria escapar de nada. Teriam que ir a festas, dar longos passeios pelo Hyde Park e comprar coisas desnecessárias nos comércios mais famosos da cidade. Era que dia de junho? Poderia conseguir um voucher para entrar no Almack's? Quem fazia parte do comitê de matronas? Se descobrisse, faria todo o possível para que lhes admitissem. Aquele clube era o mais seleto da cidade. Ali encontrariam os cavalheiros e as damas mais influentes da aristocracia e, tal como lhe disse Arlington, sempre devia se cercar de amizades poderosas.

E isso mesmo faria!

Uma vez que Krauss e ela dançassem na frente dessas pessoas tão populares, poderiam desaparecer no meio da velada para descobrir algo mais sobre os Terinthians. Enquanto isso, aqueles com quem haviam conversado pensariam que o jovem casal estaria em alguma sala se beijando e se acariciando.

Essa reflexão fez com que seu corpo ficasse tão rígido como uma espada.

Até aquele momento não tinha pensado no assunto em questão e era algo que não deveria ser encarado levianamente, pois um mau gesto, uma infeliz rejeição, destruiria o plano. Como ela reagiria quando a beijasse ou tocasse? O que aconteceria ao vê-lo de novo? Sentiria essa estranha emoção que se criou em seu estômago no momento em que lhe golpearam a cabeça? Seria capaz de assumir que houve uma ligeira atração naquele instante ou o negaria até a saciedade? Um arrepio repentino tomou conta dela e, sem saber, agarrou o cabo da escova com mais força. Não tinha por que se preocupar por ter se sentido atraída por um homem. Não estava com um desde o que aconteceu com Pierre e em novembro faria seis anos. Logicamente, seu corpo lhe pedia aquilo que tinha conhecido e que ansiava. Mas não deveria dar ouvidos a seus pedidos. Era importante ficar firme, respirar e gastar toda aquela energia que corria em suas veias com alguns treinos pesados. Dessa forma, toda vez que tivessem que mostrar certos gestos românticos em público, não se incomodaria.

Sua mente estava focada em todas as situações possíveis nas quais poderia se encontrar em apuros por mentir, quando ouviu alguém girar a maçaneta para abrir a porta. Lentamente, ela colocou a escova na penteadeira e pegou o abridor de cartas de prata que usava como enfeite em seus penteados. Escondeu-o sob a manga direita do roupão e olhou o espelho tentando descobrir, através da imagem que se projetava nele, quem invadia sua intimidade. Quando soube quem tinha chegado, pensou que o destino lhe atirava a pior piada de sua vida.

Sua atração por ele aumentou tanto, que ficou paralisada. Aquele homem expressava masculinidade e perigo por cada poro de sua pele. Também não podia ignorar seu porte, sua elegância e como ficava naquele traje.

A missão ia ser uma verdadeira loucura para ela.

—Quem diabos é? —Lionel perguntou impaciente.

Sabrina tentou recuperar a compostura enquanto se concentrava em outras questões a considerar: o que estava fazendo ali e onde estava Babier?

Não lhe respondeu. Em silêncio, se levantou do banquinho, amarrou o laço do roupão e começou a dar pequenos passos até ele. Embora temia que, em algum momento, a força de suas pernas se desvaneceria.

Perdeu-a ao apreciar com mais clareza a sua transformação física, embora a tenha recuperado ao recordar o que aconteceu da última vez que se deixou levar pelo que o seu coração lhe pedia.

Além de usar um terno limpo e novo, o tamanho de suas costas e peito tinha dobrado. Não se tratava de obesidade devido aos excessos de alimento e vinho, como acontecia com o príncipe, mas de fortaleza. Aquele Titan de olhos cor índigo, apesar de seu elegante traje, continuava exibindo a terrível figura de um espartano. Quantas horas diárias teriam durado seus treinamentos? Tinha certeza que sabia a resposta. Se Arlington o tratasse da mesma maneira que a tratou, ele teria caído tão cansado na cama que teria adormecido antes de apontar para a parte de seu corpo que mais doía.

—Está procurando quem? —perguntou, parando imediatamente sua caminhada.

Assim que a luz das velas iluminou melhor seu rosto, Sabrina percebeu como seu coração batia tão rápido que ela podia sentir as palpitações na garganta. Na outra vez, ele era tão bonito assim ou o fato de não ter aquela barba escura nojenta escondendo suas bochechas o favorecia? Inquieta, pois era a primeira vez em seis anos que não via um homem como futuro cadáver, ela cruzou os braços e adotou uma postura distante e defensiva.

—À dona deste quarto: a senhorita Ormond —Lionel a informou depois de pigarrear levemente.

Odiava-a. Sim, embora não se conhecessem, embora não soubesse nem como se chamava, já a odiava por ser tão bonita. O que fazia ali? Por que o destino era tão perverso? Tinha chegado com a intenção de executar uma vingança e agora sua mente se distraía contando quantos passos devia retroceder para partir o mais rápido possível.

Lionel tentou não notar o nariz arrebitado ou a suavidade daquelas bochechas. Também não quis observar até onde chegava sua maravilhosa cabeleira e comprovar se era tão escura como parecia. Não queria nada, a não ser fugir de lá! Entretanto, seu corpo havia ficado tão imóvel que não atendia a nenhuma das ordens que ditava em sua cabeça.

«Maldição!», exclamou para si mesmo.

—Por que a procura? —Tentou se concentrar em descobrir a causa pela qual tinha aparecido ali sem a companhia de Babier. Mas seus olhos traiçoeiros continuavam fixos no físico imponente.

Desde quando se tornou uma mulher normal?

—Tenho que resolver um assunto que tenho pendente com ela —resmungou ao se lembrar da bruxa. Mas toda a raiva que sentia naquele instante pela senhorita Ormond desapareceu quando ela, involuntariamente, moveu com suavidade os lábios para umedecê-los.

—Esse assunto... era muito importante? —insistiu em saber.

—De vital importância para mim —respondeu mantendo a calma.

—Entendo —ela respondeu acariciando com o dedo a ponta de seu abridor de cartas. —Queria matá-la? —soltou Sabrina à queima-roupa.

—Não! —exclamou Lionel com rapidez. —Queria fazê-la pagar uma dívida que temos pendente, mas jamais lhe faria mal —acrescentou com voz tranquila.

—Não queria matá-la... —ela começou a refletir.

—Não.

—Não queria machucá-la... —continuou.

—Não.

—Queria fazê-la pagar uma dívida, certo? —Lionel assentiu. —E como pretendia fazer isso? —Ele continuou em silêncio. —Está mentindo —disse sem demonstrar raiva em seu tom, mas diversão. —Pretende evitar a palavra vingança para me convencer de que ela não correrá nenhum perigo.

E se tentasse, seu abridor de cartas terminaria cravado em alguma parte daquele peito imponente.

—Não! —continuou negando.

Sabrina olhou para o rosto assombrado de Krauss e riu alto. O menino ou homem tinha muito a aprender se realmente quisesse agir como um espião. Não aprendeu, depois de cair em sua armadilha, que não devia confiar nas mulheres que mostravam uma delicadeza exagerada? Eram as piores...

—Nesse caso, confessarei que visito este clube durante longas temporadas —Sabrina deixou claro enquanto deslizava suavemente o abridor de cartas sob a manga até que este foi colocado no antebraço sem fazer nenhum dano.

—Desculpe —garantiu dando um passo para trás.

—Pelo que se desculpa? —se apressou em perguntar.

—Entendo que a senhorita Ormond lhe sugeriu que pagaria sua estadia neste lugar se me agradasse, estou certo? —Ao não responder e ela arregalar os olhos, deduziu que isso era uma afirmação. —Pois não se preocupe, não me aproveitarei dessa situação.

E os rumores que ouviu em Villa Liverpool sobre o tratamento correto que ele dispensava às prostitutas eram verdadeiros. Este homem, que podia estrangular uma pessoa com uma mão ou destruir um exército inteiro sem ajuda, era cortês e afetuoso com as mulheres.

Essa reflexão fez o coração dela bater agitado novamente.

—Se estiver certo, poderia me dizer se gostou da oferta de paz? —Ao ver como Lionel arqueava uma sobrancelha, ela acrescentou: —Caso a senhorita Ormond me pergunte sobre este encontro.

—Diga-lhe que me pareceu incrivelmente bela —disse depois de engolir saliva.

Tanto aquela bruxa descobriu sobre ele? Sim, claro. Só isso já explicaria por que ela conseguiu o que os Terinthians não conseguiam há cinco anos: pegá-lo. No entanto, a mentirosa de cabelos cor de fogo o havia estudado tanto que até encontrou seu ponto fraco: uma linda mulher com cabelos negros e olhos verdes. Mas lutaria para ganhar essa batalha. Depois de ouvir os elogios de Petey e Arlington sobre ela, ele também conhecia certas fraquezas da senhorita Ormond.

«Mantenha-se firme. Mantenha-se firme», os dois pensaram em silêncio.

—Obrigada —Sabrina respondeu agitando os cílios de forma sedutora.

—Também pode acrescentar a essa explicação que desfrutei tanto de seus beijos, que meus lábios eram incapazes de afastar-se dos seus.

—Quer que eu minta para a dona do clube? —espetou com voz entrecortada ao imaginar o impacto que teria nela o toque daquela boca sobre a sua.

Depois de tanto tempo. Depois de não desejar que nenhum homem a tocasse. Depois de suportar a tortura da pessoa por quem se apaixonou...

—Quer fazer isso? —ele insistiu, observando o brilho das gotas de água escorrendo em sua bochecha.

—Quer me beijar? —lhe perguntou depois de levantar o queixo e se encontrar com o olhar ardente de seus olhos.

—Quer que eu a beije? —persistiu em obter uma resposta conclusiva.

«Que não queira, que não queira», pensou Sabrina.

Porque se a beijasse, ela podia sentir ódio ou rancor. Ou talvez sua mente lhe oferecesse durante o beijo mil imagens das humilhações que sofreu nas mãos de Pierre. Também não queria que Arlington se irritasse com ela depois de encontrar o 16º bastardo do príncipe degolado no quarto de seu clube. O melhor para os dois era manter a distância adequada.

—Se tivesse uma fortuna, lhe daria para me dizer o que pensa —Lionel disse com preocupação, pois havia ficado muito tempo em silêncio.

—Acho que não deveria me beijar.

—Por quê?

—Para sua segurança e a minha. Tenho certeza que lá embaixo encontrará mais de uma mulher que pode satisfazer seu desejo...

Sabrina ficou em silêncio ao observar Lionel atravessar o quarto em apenas dois passos. Quando esteve perto, agarrou-a pela cintura e puxou-a até que seus corpos ficaram encaixados um no outro. Então a olhou e a beijou com tanta paixão que o que acontecera em Paris ficou guardado em algum lugar distante de seu cérebro e trancado a sete chaves.


VI II


Uma vez que tocou seus lábios, o desejo de vingança e a raiva que o conduziram até ali desapareceram de sua mente. A mulher, que beijava como uma mocinha ingênua, transportava-o, com sua aparente candidez, a um mundo de sons harmoniosos. Ele se sentiu tão bem em tê-la em seus braços que nem pensou no motivo de sua presença em Londres.

A despreocupação que o envolvia era tão estranha que suas pernas tremeram.

Com os olhos fechados e as mãos em volta da cintura, virou a cabeça para o lado esquerdo para prolongar o beijo. Sua língua, ansiosa para entrar no interior da boca deliciosa, tocou levemente os lábios, encorajando-os a se separarem. No entanto, ela não deve ter entendido o seu propósito ou apenas se recusou a oferecer-lhe o que ele almejava. Confuso por essa reação, esteve a ponto de parar o beijo e perguntar-lhe o que acontecia. Que mulher experiente na arte da sedução não permitia transformar um casto beijo em outro repleto de desejo? Pelo que pode deduzir, no meio dessa neblina passional, só ela. Obrigou-se a não pensar em coisas que o distraíam e a continuar desfrutando do pouco que lhe dedicava. Respirou fundo e seus pelos se arrepiaram quando sentiu o aroma que saia de seu corpo: uma combinação de sabão e perfume feminino bastante peculiar. Por um segundo, acreditou que essa essência tão singular já tinha identificado em outro momento de sua vida. Mas isso era impossível. Eles não se conheciam. Se o tivessem feito, nenhum dos dois estaria naquele clube.

Ao perceber que sua respiração se tornava agitada, como se lutasse para se afastar dele, seus braços a rodearam com força e a aproximou mais de seu corpo. Embora o beijo ainda fosse bastante decente, e parecia que haviam se tornado dois amantes inexperientes, não queria que o momento acabasse.

Sabrina não estava consciente de que seu medo, causado pela dúvida de não saber como agiria quando a beijasse, tinha desaparecido até que foi muito tarde. Um mar de sensações explodiu no mais profundo de seu ventre e, para maior espanto, também em certas partes de seu corpo que pensou serem inertes. Atordoada, porque não entendia o motivo pelo qual sua pele ardia tanto que podia sofrer uma combustão espontânea, abriu os olhos lentamente e o observou. Prazer. Essa era a expressão do rosto do homem que tomou sua boca e a segurou com tanta força que os dois torsos se encaixaram como duas peças de um quebra-cabeça. Tentou ativar sua mente para que esta lhe fornecesse respostas lógicas ao bem-estar que sentia. Mas não as encontrou. Só pôde concluir que ficar presa nos braços daquele homem lhe trazia uma rara e incrível sensação de paz. Embora parecesse improvável, Krauss, com o beijo e o delicado toque de suas mãos, a fez esquecer onde se encontrava e por que tinham se reunido.

Enfeitiçada por esse efeito tão prazeroso e viciante voltou a fechar os olhos e respirou fundo. Ao fazê-lo, seu nariz captou a mistura de perfume que ele devia usar e o cheiro de mar: o que exalava qualquer passageiro depois de vários dias navegando.

Por que não se retirava? Por que sua mente havia ficado tão relaxada que não podia pensar em nada ruim sobre ele? Por que não era capaz nem de se lembrar o que Pierre lhe fez?

Decidiu não interromper alguns instantes tão maravilhosos com perguntas carentes de respostas. Fazia muito tempo que não se sentia uma mulher tão especial e... adorada. Já voltaria à dura realidade e teria que assumir com pesar o que estava acontecendo entre os dois. Justo quando decidiu abrir a boca para sucumbir à paixão e levantar os braços para envolvê-los sobre aquele forte pescoço, alguém bateu à porta.

—Senhorita Ormond, posso entrar? —Babier perguntou.

A neblina passional e ardente que os envolvia, desapareceu de maneira fulminante.

Lionel se virou tão rapidamente e com tanta agilidade para a porta, que Sabrina continuava de olhos fechados quando este lhe deu as costas.

—Fora daqui! A senhorita Ormond não está neste quarto! —ele gritou.

Graças a esse grito, Sabrina acordou do devaneio e voltou à fria verdade. Humilhação, decepção, impotência, raiva, desconforto e morte. Essa seria a única coisa que encontraria agora em seus olhos quando descobrisse que havia mentido novamente. Sua raiva e ressentimento seriam tão acentuados que a hostilidade entre eles seria insuperável.

Foi assim que ela se sentiu depois de ouvir a verdade sobre o homem que amava...

Muito lentamente, e buscando a integridade que a caracterizava, baixou o braço direito e deslizou suavemente o abridor por sua pele até que a ponta deste tocou a palma de sua mão. Depois, deu vários passos para trás e respondeu à chamada.

—Adiante. Pode entrar —disse depois de respirar fundo.

—Espero não ter perdido nada interessante —comentou enquanto fechava a porta e entrava no quarto. —Esse cliente sempre nos causa problemas. Acho que deveria lhe negar a entrada de uma vez por todas —prosseguiu com o monólogo até que observou o rosto desencantado de Krauss. —O que aconteceu aqui? —perguntou olhando para os dois com expectativa.

—Bastarda mentirosa! —Lionel gritou, virando-se para Sabrina tão rapidamente que as costas de sua jaqueta se levantaram como se quisesse tocar o teto.

—Nem pense em se mexer senão farei um buraco tão grande no seu pescoço que poderei ver a porta através dele —ela o avisou, colocando a ponta do abridor de cartas em sua garganta.

Quando seus olhares se encontraram, não encontrou raiva ou ódio naqueles olhos azuis, mas decepção e tristeza. Esses sentimentos a confundiram tanto que a mão que segurava o abridor de cartas começou a tremer.

—Faça-o! —Lionel insistiu, agarrando inesperadamente seu pulso para que ela não se afastasse. —Acabe comigo de uma vez!

—Tire sua mão dela senhor. Porque lhe garanto que não hesitará em fazê-lo se não parar de tocá-la —lhe recomendou Babier caminhando muito lentamente até eles.

Quando estava suficientemente perto de ambos, observou-os com interesse, e o desejo de descobrir o que tinha acontecido, aumentou. Nunca tinha visto Sabrina tão pálida, mas tampouco parecia muito habitual que o semblante rude daquele homem exibisse angústia e frustração.

—Tocá-la? —Lionel cuspiu enquanto abria a mão e a soltava. —Prefiro que me atravesse o pescoço com essa arma!

—Se não fosse porque temos uma missão a cumprir, garanto-lhe, senhor Krauss, que ficaria encantada em satisfazer seu desejo —disse mostrando em seu tom de voz um temperamento que realmente não possuía.

Depois de suas palavras, se virou abruptamente e caminhou em direção à penteadeira. Uma vez lá, soltou todo o ar que ainda guardavam seus pulmões. Tinha cometido o maior erro da sua vida. Que explicação tinha para isso? Nenhuma, exceto o de admitir que quando o viu entrar daquela forma, descobriu que sua primeira impressão foi correta: não seria capaz de rejeitá-lo porque lhe atraía. Agora, ao saber como seu corpo reagia diante sua proximidade, ansiava por mais. Zangada, largou o abridor de cartas e respirou fundo. Pretendia se virar para ele e gritar que saísse de seu quarto, mas um formigamento estranho na nuca a avisou para não fazê-lo. Ao levantar o olhar observou, através do espelho, que ele continuava olhando-a. Isso fez com que seu estômago se retorcesse de novo.

—Está tudo pronto —ao se estabelecer um silêncio bastante incômodo no ambiente, Babier intercedeu. —Desde que a senhorita Ormond recebeu a carta do marquês, preparamos e organizamos tudo.

—Há certo aspecto do plano que me vejo na obrigação de mudar, dado os últimos acontecimentos —declarou Lionel mantendo o olhar nas costas de Sabrina.

—O que deseja mudar, senhor? —o guarda-costas interveio de novo.

—Não há necessidade de que ela —disse esta última palavra com uma raiva extremamente marcada —intervenha na missão.

—Eu não estou tão segura disso —apontou Sabrina olhando-o pelo espelho.

—Se eu lhe digo que seus serviços são desnecessários, eles são —assegurou Lionel com firmeza.

—Desculpe contradizê-lo —insistiu em fazê-lo voltar à razão enquanto pegava o cartão. —Mas antes que nossa inimizade o torne um tolo, devo esclarecer que as pessoas mais importantes de Londres estão ansiosas para nos conhecer. —Expressou dando passos lentos em direção a ele. No meio do caminho, revisou o conteúdo deste.

Tentaria matá-la quando a lesse? Claro que faria! Se lançaria sobre ela, Babier saltaria para protegê-la e, no meio de gritos e socos, não teria escolha a não ser usar as armas que mantinha. Quando tudo se acalmasse, Krauss iria embora para sempre.

Pensando em como seria sua vida uma vez que ele desaparecesse dela, avançou pelo quarto sem reparar nos movimentos incômodos de Lionel. Também não percebeu que os olhos dele já não transmitiam ódio, porque os seus estavam cravados no maldito cartão. Só os afastou ao ouvir Babier tossir. Nesse momento, levantou o rosto e o dirigiu até seu amigo que ergueu as sobrancelhas e as direcionou indicando seu corpo. Ela se olhou e, quando descobriu o que queria dizer com sinais, jogou o cartão no ar, agarrou as extremidades do cinto e voltou a amarrá-lo tão forte, que notou certa dor em seu estômago.

—O que diabos é isso? —Lionel rosnou ao perceber que, apesar de tudo, ela exercia um grande poder de atração sobre ele.

Quantas mulheres viu em roupa intima? Todas com as quais se deitou. Mas quantas o fizeram babar como se fosse um cão admirando um osso? Só ela...

—Um cartão de convite —Sabrina respondeu com raiva cruzando os braços.

—A Srta. Ormond achou que seria uma ótima ideia se tornar o centro das atenções da sociedade. Desta forma, você e Lorde Arlington cumprirão seus deveres sem interrupção ou perigo. —Babier explicou enquanto Krauss se esforçava para ler o que havia escrito.

Mas demorou bastante para descobrir o conteúdo desta porque sua mente era incapaz de apagar a imagem dela em lingerie e com os dois coldres de couro em ambas as pernas.

—Aqui diz que será uma honra para eles que o barão e a baronesa Riseway estejam na festa que darão nesta sexta-feira —Lionel disse enfurecido quando finalmente a leu. —Por que convidam o casal? —acrescentou, lançando o cartãozinho ao ar. —O que diabos fez?!

—Como Babier lhe explicou —começou a dizer sem eliminar a postura distante e aparentemente serena, —criei um plano infalível para alcançar o seu objetivo sem que ninguém lhes cause problemas.

—Fingindo ser uma esposa?! Minha esposa?! —trovejou desesperado.

—Conforme descobrimos —prosseguiu Babier para relaxar aquela tensão, —uma vez que os três se apresentem em sociedade, muitos aristocratas se perguntarão o motivo pelo qual o marquês não falou de seu filho durante tantos anos.

—A aristocracia é tola e pode pensar o que quiser! —exclamou Lionel fora de si.

—Não raciocina claramente —Sabrina comentou olhando para Babier.

—Que não raciocino...? E a senhorita quem não tem cérebro dentro dessa cabeça! —Lionel respondeu com raiva. —Minha esposa? Depois do que fez? Antes prefiro uma castração dolorosa!

—Pense nisso por um momento, Sr. Krauss —Babier falou de novo para acalmar os ânimos. —Se for apresentado em sociedade como o filho solteiro do Marquês, as mães com filhas casáveis o atacarão impiedosamente e sua mente não estará focada em obter informações sobre os Terinthians, mas em escapar de todas as situações comprometedoras que encontrará no dia a dia. Mas se aparecer com uma esposa pelo braço, não terá esse tipo de inconveniente e poderá, junto ao marquês, se concentrar no propósito que o trouxe aqui.

Sua cabeça estava soltando fumaça. Sabrina podia ver como a mente de Lionel ardia ao analisar todas as vantagens e desvantagens dessa ideia. Muito lentamente, acariciou o queixo e franziu a testa. Então desviou o olhar dela e olhou para Babier.

—Alguém comentou que aparência física tem minha esposa? —soltou sem olhá-la.

A pergunta estranha deixou Sabrina congelada. Não pretenderia fazer o que estava imaginando, certo?

—Falou sobre isso, senhorita Ormond? —Babier perguntou.

—Sim —mentiu.

—E como a descreveu? —Lionel exigiu saber se virando para ela. —Ruiva? Loira? Ou talvez gostasse de usar uma peruca castanha?

Bem, não era tão burro quanto pensava. Ele sozinho deduziu que a primeira vez que se encontraram usou uma peruca. No entanto, nesta ocasião, e por algum estranho motivo, decidiu ser ela mesma.

—Morena —respondeu levantando o queixo.

—Entendo... —murmurou antes de respirar fundo. —Quantas mulheres morenas trabalham neste clube? —Embora a pergunta a direcionasse para o homem, não deixou de olhar para ela.

—Acho que, se contarmos com as que chegaram...

—Não pode escolher nenhuma das minhas meninas! —Sabrina exclamou interrompendo a inoportuna explicação de Babier.

—Porque não? —perguntou Lionel estreitando os olhos. —Tenho certeza que uma morena ficará encantada, depois de me conhecer, em se tornar minha esposa nas próximas semanas. —Adicionou com aborrecimento.

—Não deve pôr a missão em perigo por uma decisão tão inadequada —Sabrina murmurou e apertou os punhos com tanta força que suas unhas se cravaram na palma.

—Por quê? Não trabalham para você? Não são de sua confiança? —insistiu Lionel.

—A Srta. Ormond decidiu ocupar essa posição porque tem experiência suficiente para se adiantar e resolver qualquer situação comprometedora. Tenho certeza de que afastará qualquer raciocínio negativo da cabeça e se concentrará em desempenhar seu papel. —explicou Babier.

—Não tenho dúvidas de que poderia fazer isso sem cometer um único erro. Até o momento, representou o papel de mulher ferida e de prostituta tão bem, que acreditei em ambas as ocasiões —murmurou. Depois de lhe dar um olhar cheio de ressentimento, se voltou para Babier. —A questão é se eu serei capaz de desempenhar o papel de um marido amoroso e complacente.

Porque sempre estaria pensando em encontrar a maneira certa de se vingar. Porque sempre estaria procurando a oportunidade para se aproximar e... Lionel esboçou um pequeno sorriso ao refletir sobre o que aconteceria entre os dois durante tanto tempo juntos.

«Talvez não seja tão má ideia depois de tudo», pensou.

—Se tentar me machucar, eu o mato —Sabrina murmurou ao deduzir o que estava pensando.

—E se tentar beijá-la? —perguntou depois de se virar para ela.

Pela expressão em seu rosto, Lionel sabia que também sairia ferido. Mas morrer dessa forma parecia-lhe até doce se conseguisse lhe dar uma lição.

O pigarrear de Babier tirou os dois de seus pensamentos distantes.

—Depois disso, eu acho que a decisão de procurar uma menina é muito acertada. Tenho certeza que vai encontrar uma que... —Babier tentou dizer.

—Não —Lionel o cortou rapidamente. —A senhorita Ormond fará um excelente papel como baronesa de Riseway, como minha esposa —expressou estas últimas palavras com um halo de mistério.

Sabrina ficou tão rígida como uma tábua e notou como a pele se arrepiava. O que estaria pensando em fazer?

—Tem certeza? —Babier perguntou estreitando os olhos.

—Muita certeza! —respondeu esboçando um largo sorriso. —Além do mais, temos que começar esta noite com a farsa. O que acha querida? —acrescentou.

Sabrina quis sacar sua pistola e lhe dar um tiro na testa para apagar esse rosto fanfarrão. Teve que pensar no quanto adorava Arlington e Petey para não fazê-lo.

—Melhor amanhã —respondeu depois de apertar as mãos para que estas não se colocassem diretamente sobre suas armas.

—Não —Lionel negou categoricamente. —Esta mesma noite se falará da chegada do casal Riseway. Poderá me ajudar com esse angustioso trabalho?

—O de espalhar o rumor? —perguntou Babier para ter certeza do que lhe pedia.

—Sim —afirmou.

—Não haverá nenhum problema, senhor. Esta mesma noite percorrerei alguns clubes da cidade e conversarei sobre a surpreendente chegada do marquês de Arlington, de seu filho e da formosa esposa deste —garantiu.

Sabrina bufou diante da cumplicidade absurda entre eles.

—Ótimo —apontou Lionel. Depois de sorrir ao ouvi-la bufar, ele olhou para o vestido na cama. —Imagino que precisará de algum tempo para se preparar.

—Sim —concordou orgulhosamente levantando o queixo.

—Eu te dou quinze minutos. Nem um a mais, nem um a menos —disse depois de tirar o relógio de bolso.

—Caso não tenha notado, também tenho que pentear meu cabelo —Sabrina respondeu indignada.

—Quinze minutos —repetiu guardando o relógio no bolso direito de seu colete. Em seguida, virou-se para Babier e disse-lhe: —Confio em sua habilidade como protetor para que nada lhe aconteça durante minha breve ausência. Não gostaria de aparecer em sociedade com uma esposa aleijada, manca ou com uma terrível pancada na cabeça.

Babier conteve uma risada, pois tinha certeza de que ela faria algo assim quando ele saísse do quarto.

—Eu prometo —disse este finalmente.

A resposta de Lionel foi um leve aceno como sinal de agradecimento. Sem olhá-la, se dirigiu para a saída. Uma vez que se situou em frente à porta, agarrou a maçaneta, olhou-a e disse-lhe: —Espero vê-la junto à carruagem em quinze minutos. Se não aparecer, subirei para buscá-la Depois disto, fechou a porta ao sair.


IX


Enquanto Edwina a ajudava a colocar o espartilho, desejou matá-lo...

Enquanto observava como o vestido realçava sua figura, desejou matá-lo...

Enquanto recolhia o cabelo numa longa trança, desejou matá-lo...

E naquele momento, justo quando atravessava a cozinha e tinha ao seu alcance todo tipo de utensílios afiliados, sua mente maquiavélica lhe ofereceu mais de mil maneiras de realizar seu desejo. Como se livraria do cadáver? De uma forma muito simples. Primeiro colocaria seu corpo em um enorme tonel com sal e não o tiraria dali até que o sangue de suas veias desaparecesse. Então, rígido e salgado, o cortaria em seis ou sete grandes pedaços, os envolveria em lençóis gastos, os transportaria em uma carruagem alugada e os jogaria ao mar quando ninguém pudesse vê-la.

O sorriso que sua boca esboçou desapareceu de maneira fulminante ao concluir que o plano sugestivo teria um enorme, “mas”: Arlington. Tinha certeza de que, depois de ter investido bastante tempo e fortuna em instruí-lo, não lhe agradaria saber que seu pupilo tinha se transformado em alimento para peixes.

Só porque queria ao marquês como se devia amar a um bom pai, esqueceria a ideia de eliminá-lo... por enquanto.

Ao sair do clube, o ar da rua não só esfriou suas bochechas, mas também apaziguou um pouco seu mau humor. Fechou os olhos e respirou fundo. Não havia como voltar atrás, pensou, devia continuar com o plano. Um que, de certa forma, ela havia determinado. Se tivesse aprovado a opção de ser substituída por uma das garotas, a relação entre eles teria terminado nessa mesma noite. Mas seu orgulho brotou e foi incapaz de aceitar o tremendo insulto. Como consequência dessa atitude presunçosa, agora não lhe restava mais remédio que fazer o papel de esposa apaixonada e rezar para que logo descobrissem a identidade do Khar e saber o motivo pelo qual estavam tão interessados em Krauss.

O relinchar de um cavalo a fez abrir os olhos e olhar para a carruagem. O coração deu um salto e ela prendeu a respiração ao vê-lo de costas, tendo uma conversa agradável com o cocheiro. Continuava descrevendo-o como um homem grande e perigoso. Porém, naquele momento, encontrando-o tão relaxado, apoiando a sola do pé direito no eixo da roda dianteira e apoiando as mãos largas no joelho, toda aquela periculosidade parecia irreal. Que assunto na conversa o teria tão absorvido que nem percebeu sua chegada? Qualquer cavalheiro a esperaria na frente da porta da carruagem para ajudá-la a entrar. Mas deveria se lembrar que ele não era esse tipo de homem. Estava se referindo à Besta e, embora daquele momento em diante se tornasse um lorde, tinha certeza de que ele não se comportaria como tal. «Lorde Besta», pensou. E aquela maneira de se dirigir a ele era tão engraçada que sem querer soltou uma risada.

O som daquele riso fez os dois homens finalmente olharem para ela. Sabrina não reparou em como o cocheiro a contemplou, mas em como ele o fez. Ele parecia... surpreso? Talvez ele achasse que não apareceria a tempo, ou talvez não esperasse vê-la tão respeitável. Qualquer que fosse o motivo de seus olhos azuis se arregalarem, ela ergueu o rosto com orgulho e caminhou para frente.

—Pensei que me daria o prazer de busca-la —comentou em tom divertido ao se colocar a seu lado.

«Foi a primeira opção, é claro», ela concluiu.

—A última coisa que quero agora é dar-lhe prazer —resmungou olhando-o nos olhos para que compreendesse que se defenderia de qualquer comentário ofensivo que lhe dirigisse.

Mas não houve palavras, apenas silêncio.

Lionel se inclinou em sua direção até que seus rostos roçaram as faces opostas. Então, inspirou sobre seu pescoço como se não tivesse respirado desde que saiu do quarto.

—O que...? O que está fazendo? —gaguejou, tentando acalmar o batimento cardíaco acelerado.

—Um bom marido tem que saber como é o cheiro de sua mulher —sussurrou perto de seu ouvido.

—Para quê? —perguntou, soltando lentamente o ar que mantinha em seus pulmões.

—Para se recordar quando não estiver ao seu lado —declarou com um tom sedutor enquanto acariciava seu queixo com a ponta do nariz.

Sabrina quase soltou um Oh! Mas emudeceu ao perceber a pressão de grandes mãos nas áreas do vestido onde escondia as armas. De maneira automática, saltou para trás e olhou-o zangada.

—Não pretendia me exceder, se é isso que pensa. Só precisava confirmar minhas suspeitas —manifestou como explicação ao gesto atrevido. —Por que não deixou suas armas no quarto? —perguntou irritado.

—Porque preciso delas —gemeu sufocada.

—Para quê? —insistiu, estreitando os olhos ferozmente.

—Para me defender.

—Enquanto estiver comigo, não vai se expor ao perigo. Mas, no caso hipotético de que estivesse, eu mesmo a protegerei —argumentou com firmeza, pois não queria deixar transparecer em seu tom de voz a tristeza que sentia ao entender que ela não o via capaz de protegê-la. —Além disso, devo esclarecer que as esposas dos aristocratas não têm por costume esconder artefatos mortais em suas ligas —adicionou mordaz.

—Mas eu não serei uma dama comum —expôs sarcasticamente. —Caso não tenha notado, vejo-me na obrigação de desempenhar o papel mais perigoso da minha vida.

—Qual? —rosnou ao supor que mencionaria a relação entre eles.

—O da esposa de Lorde Besta —esclareceu.

—Lorde Besta? —ele rosnou de novo.

—Sim, lorde Besta —repetiu com diversão. —A partir desta noite todos o verão como um lorde, mas para mim sempre será a besta que eu enganei duas vezes —afirmou antes de caminhar com altivez para a porta.

Ao compreender que seu comentário ofensivo o pegou tão desprevenido que o deixou petrificado, ela mesma abriu a porta e subiu sem ajuda. Assim que se acomodou, ajeitou a saia do vestido enquanto esperava que ele se recuperasse do golpe de suas palavras e se sentasse.

—Para Riseway! —Lionel indicou ao cocheiro antes de entrar e bater à porta.

Com os braços cruzados, e sentado o mais longe que pôde dela, pensou sobre a tortura que suportaria durante as próximas semanas. O ódio pela mulher travaria uma árdua batalha contra sua admiração. Porque, muito a seu pesar, estava ciente de que o tinha fascinado. Ninguém com um pingo de bom senso o provocou dessa maneira. Qualquer pessoa que o observasse com atenção se manteria distante dele. No entanto, Sabrina era, como Petey havia dito em mais de uma ocasião, uma mulher com atitudes inesperadas. Sorriu de lado quando a ouviu rosnar. Ela também estava desconfortável ou o espaço parecia muito pequeno para os dois? Estava chateado, certo, mas com certeza seu motivo era diferente do dela. Irritava-o que seu corpo não reagisse tal como desejava. Porque este, vergonhosamente, só ansiava seu contato. Nem parecia saudável respirar seu perfume com tanta frequência, pois este desapareceria antes de chegar à residência. Como não lhe parecia benéfico que sua mente lhe mostrasse mais de uma centena de maneiras possíveis para atraí-la e beijá-la novamente.

Excitado, cruzou as pernas, se agarrou ainda mais à porta da carruagem, como se pudesse colocar mais distância entre eles, e bufou com cansaço. Seu calvário terminaria logo. Assim que tudo acabasse, iria embora e tentaria apagar de sua cabeça tudo o que vivenciariam nas próximas semanas. Isso não envolveria nenhum esforço, já que não seria a primeira vez que se separaria de uma pessoa que amava ou odiava. De repente, a lembrança da morte de sua mãe bateu em sua cabeça, causando-lhe tanta angústia que as emoções estranhas em relação à mulher desapareceram de repente. Tinha aparecido em Londres para encontrar o seu assassino e esse era o único assunto em que devia se concentrar.

—Arlington nos encontrará em Riseway? —Sabrina perguntou quebrando aquele silêncio constrangedor entre eles.

—Suponho que sim —respondeu sem olhá-la.

—Bom.

Essa foi a única conversa que tiveram até a carruagem estacionar no jardim da residência. O cocheiro abriu a porta, desdobrou a escada e estendeu a mão para ajudá-la a descer. Então aconteceu algo que o deixou tão surpreso que não conseguiu pensar. Sabrina aceitou essa ajuda e falou com o empregado em tom afetuoso. Isso o enfureceu de tal maneira que apertou a mandíbula até o ponto de desencaixá-la. Por que falava com o lacaio com tanta amabilidade e a ele só oferecia dardos envenenados? E por que isso o incomodava? Não era o momento nem o lugar para parar e buscar uma resposta tão incompreensível. Havia muitas coisas importantes em sua vida que não tinham solução e o comportamento afetuoso que dirigia para os outros era outra.

Quando colocou os pés no chão e alisou as rugas da saia, Lionel saltou rapidamente para o lado dela, ofereceu-lhe o braço e começou a caminhar em direção à porta da frente.

—O que está fazendo? —protestou Sabrina mediante um sussurro ao sentir o contato repentino.

—O que deve fazer qualquer homem com sua amada esposa quando ambos chegam ao lar conjugal: acompanhá-la.

—Posso andar sem ajuda —ela respondeu irritada.

—Tenho certeza que o faria perfeitamente —disse exibindo um amplo sorriso, como se tivesse comentado algo bastante engraçado. —Mas já parou para pensar que podem nos vigiar? O que dirão de nós aquelas pessoas que, escondidas atrás das cortinas, observam nosso comportamento frio? Não foi você quem comentou que devíamos mostrar certo respeito e amor em público?

«Touché!».

Não respondeu. Sabrina moveu a cabeça lentamente para os dois lados da rua procurando uma figura humana. Ele estava certo. Aceitou com amargura depois de encontrar não só uma pessoa atrás da janela senão a várias. A expectativa que ela mesma criou com os rumores começava a dar frutos e seu papel de esposa carinhosa havia começado. Para seu pesar, e com um esforço titânico, ela lhe deu um sorriso sedutor e apoiou o rosto levemente em seu ombro.

—Muito melhor —comentou Lionel antes de desviar o olhar dela e fixá-lo na porta.

Um novo mordomo abriu, deu as boas-vindas e afastou-se para que entrassem. Sabrina olhou para Lionel, imaginando como agiria com ela na frente dos criados. A resposta foi imediata. Ele lentamente soltou sua mão e pousou a palma na parte inferior de suas costas, encorajando-a a entrar primeiro.

—Meu pai chegou? —perguntou Lionel enquanto estendia as luvas de ambos.

—Sim, milorde. O espera na sala —Vanther informou sem tirar os olhos dela.

Entendia a expressão daquele homem, embora desejasse lhe dar um soco para que retirasse o olhar de Sabrina. Mas se o próprio criado havia ficado embasbacado ao observar sua beleza selvagem, o que aconteceria quando aparecesse na sociedade? Quantos cavalheiros desafiaria para um duelo? Quantos deles ficariam sem poder mover corretamente suas mandíbulas? Ele respirou fundo e, sentindo a fragrância dela tão perto, se acalmou, pois isso o lembrou de que Sabrina seria sua até que a missão terminasse. Depois desse tempo, a preocupação com os outros desapareceria.

—Meu amor —ele disse depois de beijá-la na bochecha. Fato que a deixou sem fôlego. —Se quiser subir ao nosso quarto para relaxar com um banho, pode fazê-lo. Prometo que não vou censurá-la por esse leve abandono. Estou ciente de que a viagem foi angustiante —acrescentou olhando-a nos olhos, que se fecharam até apresentarem duas linhas finas, como as pupilas de um gato ao sol.

—Obrigado por se preocupar com meu bem estar, querido —respondeu ao ataque apertando a mandíbula. —Mas devo informar que não estou cansada. Ao contrário. A viagem foi tão curta que poderia ficar acordada a noite toda —expôs sem apagar o falso sorriso.

—Nesse caso —Ele respondeu, pegando-a novamente pelo braço com mais vigor do que o necessário —me acompanhe até a sala. Tenho certeza que meu pai ficará agradavelmente surpreso em nos ver aparecer juntos —adicionou mordaz.

—Não tenho dúvidas de que ficará—murmurou Sabrina.

O mordomo se colocou em frente a eles e caminhou lentamente até a sala onde se encontrava o marquês. Enquanto o silêncio do lugar se quebrava com os passos dos três, Sabrina observou ao seu redor. Os criados tinham feito um excelente trabalho contribuindo para aquele lugar um ambiente acolhedor e familiar. Encontrou flores frescas nos vasos do corredor, quadros sem poeira, cortinas de seda, tapetes limpos e brilho no chão. Segundo Babier, a residência esteve desocupada durante os últimos 17 anos. Os mesmos que Arlington esteve viajando de uma cidade a outra em busca do Khar. Antes disso, a figura principal dos Terinthians era apenas um fantasma.

Ninguém conhecia sua verdadeira identidade e muitos falavam dele como se não fosse real. Até acreditaram que se tratava de uma invenção! No entanto, o marquês teve a oportunidade de falar com um membro da organização antes que esse morresse. E apenas confirmou sua existência, porque no momento que ia revelar o nome, a morte se apiedou dele e o levou. Desde aquele dia, a única obsessão de Arlington foi encontrá-lo. Embora todos os seus esforços não deram os resultados que esperava. No entanto, agora tinha uma nova oportunidade. Ela suspeitava que o homem que a agarrava pelo braço era a chave para isso.

—Excelência —Começou a dizer o mordomo depois de bater na porta e ouvir a voz de Arlington, —seu filho com sua esposa chegaram.

—Sua... o quê? —espetou o marquês desviando os olhos dos documentos que tinha sobre a mesa.

Antes que pudesse continuar falando, e que cometesse um terrível erro sem querer, Sabrina se soltou do braço de Lionel e ficou na entrada. Ao vê-lo, caminhou lentamente, com a elegância própria de uma dama aristocrática.

—Sabrina! —exclamou feliz. —Mas o que está fazendo aqui?

—Decidi acompanhar meu marido —explicou assim que o mordomo terminou sua reverência e fechou a porta.

Quando o marquês confirmou que estavam sozinhos, se levantou de sua cadeira e foi até ela. Sabrina fez uma genuflexão perfeita e depois, sem lhe dar tempo de falar, atirou-se nos seus braços como se fosse uma criança cumprimentando o querido pai.

Lionel, que encostou as costas na porta para que ninguém tentasse entrar, contemplou a cena com grande expectativa. O carinho que tinham um pelo outro era evidente. Parecia um pai recebendo sua única filha depois de um longo tempo sem se ver.

—Minha querida Sabrina —disse o marquês, enxugando com os polegares as lágrimas que ela não conteve. Logo, deu-lhe um beijo na testa, se afastou para observá-la de novo e prosseguiu: —Como está? Porque Vanther a anunciou como esposa de Lionel? A que se deve essa mudança no plano? Te atacaram novamente? Tem armas? Posso te dar mais algumas?

Lionel bufou ao ouvir como o marquês a animava que continuasse escondendo mais pistolas, punhais ou inclusive abridor de cartas por todo seu corpo. Por acaso não percebeu que era uma assassina bastante perigosa? Só faltava esconder veneno em algum esconderijo do vestido para que o mundo tremesse ao vê-la chegar.

—Por enquanto, tenho um grande arsenal guardado. De qualquer forma, no próximo mês Wother chegará da Europa com novo carregamento. Talvez... —calou-se quando viu a carranca de Lionel. Isso a fez voltar ao assunto atual. —Sobre a mudança de papel nesta missão, é uma longa história —Sabrina expôs retirando-se lentamente.

—Tenho todo o tempo do mundo para te ouvir —Arlington garantiu trazendo-lhe uma cadeira.

—Bem, se estiver tudo bem, começarei com o evento mais importante que tive desde a última vez que nos vimos —ela disse depois de se sentar.

Lionel cruzou os braços e evitou gemer em voz alta ao vê-la se acomodar na cadeira. Aquela bruxa de língua viperina estaria ansiosa para descrever o encontro em seu quarto e orgulhosamente declarar que ela o enganou duas vezes. No entanto, ao ouvir as primeiras frases de sua história, toda a irritabilidade que sentia se transformou em raiva.

Quatro pessoas estranhas entraram em sua casa para matá-la e teriam conseguido se não tivesse a ajuda de Babier. Apesar disso, correu perigo. Quando chegou na parte em que detalhou como o único sobrevivente a pegou por trás e machucou seu pescoço, seus punhos estavam tão cerrados que sentiu uma dor profunda nos nós dos dedos.

Porque foram atrás de Sabrina? Pensou que descobriria seu novo paradeiro através dela? Pois não lhe fazia falta matar alguém para encontrá-lo! Ele já estava em Londres e contava as horas para encontrá-lo cara a cara.

—Por isso espalhei o rumor de que seu filho estava casado. Acho que quanto mais tempo ficar ao seu lado, mais cedo vou descobrir como conseguiram averiguar onde vivia —expôs como conclusão a sua extensa história.

—Não entendo... —Arlington murmurou levantando-se da cadeira.

Dirigiu-se para o decantador de brandy, serviu dois copos e ofereceu um à Sabrina. Bem quando Lionel estava prestes a comentar o quão forte aquele licor era para ela, Sabrina o engoliu de um só gole e ele teve que sufocar as palavras na garganta.

—Eu também não —apontou depois de estalar a língua. Se inclinou para frente e colocou o copo vazio na mesa. —Até pensei que estava me procurando desde minha última viagem a Paris. Possivelmente não gostou de saber que continuava viva —acrescentou enrugando a testa.

—Sim, isso seria muito lógico —Arlington refletiu lentamente. —Mas como descobriram seu paradeiro?

—Continuo investigando a resposta, milorde —Sabrina confessou, movendo-se desconfortavelmente na cadeira porque era a primeira vez que ela não havia dado uma resposta clara. —Mas tenho que encontrá-la o mais rápido possível ou da próxima vez que acontecer talvez não tenha a mesma sorte.

—Um amante? —Lionel soltou finalmente intervindo na conversa. A raiva, a fúria, a exasperação e tudo aquilo que sentia correr por suas veias depois de ouvi-la, levaram-no a pensar nessa possibilidade. Não pensou, nem por um momento, que podia estar equivocado. O ciúme, aquele sentimento inesperado, misturado com outras emoções nublou sua mente e visão. Afastou-se da porta, caminhou lentamente até eles, serviu-se de um copo e virou-se bruscamente para Sabrina. —Não ponderou essa possibilidade?

—Não existe essa possibilidade —ela rosnou olhando para ele como se quisesse arrancar sua cabeça com uma mordida.

—Não? —persistiu. —Pois deveria levá-la em consideração. Uma mulher como você, com a experiência de viver por longos períodos em um bordel, não será difícil manter relações com...

—Basta! —Arlington intercedeu, pulando de sua cadeira. —Essa maneira de se dirigir a ela é inadequada! Peça desculpas agora!

—Eu só forneci outra possível resposta... —tentou dizer. Mas depois de observar a palidez que mostrava o rosto da mulher e a cólera que apresentava o marquês, soube que passara dos limites: —Peço que me desculpe se a ofendi. Embora ache que deva considerar essa alternativa.

—A única pessoa que entrou em minha casa, além de Babier, foi uma criada doméstica que empreguei há alguns anos. —explicou olhando para Arlington. —Mas ela não sabia quem era a dona da casa porque a contratei através do pároco —continuou falando.

—Então, vamos procurar outra suposição —indicou Lionel apesar de que nenhum dos dois o olhara ou pedira sua opinião a respeito.

—Qual? —perguntou o marquês, estreitando os olhos, ameaçando-o com aquele olhar.

—Que, como ela diz, os Terinthians a sigam. Talvez suas mudanças na aparência não tenham sido suficientes para enganá-los —garantiu olhando-a.

—Ou talvez —Sabrina afirmou, levantando-se suavemente da cadeira, —o motivo não seja eu, mas você —acrescentou apontando o dedo para ele. —Escondi meu refúgio muito bem até que apareceu em minha vida. Então pode me explicar porque te procuram? Quem é realmente e o que está escondendo de nós? Por que seu corpo não corresponde à idade que diz ter?

Lionel bufou quando ouviu aquele comentário depreciativo sobre seu tamanho físico novamente, mas também ficou nervoso ao ouvir suas perguntas. Sabrina era inteligente, muito inteligente. Felizmente o marquês não prestou tanta atenção quanto ele.

—Essa última pergunta tem uma explicação médica —Arlington concordou, tirando de uma gaveta a carta enviada pelo médico.

—E que explicação é? —Sabrina perguntou ansiosa, porque era algo que queria descobrir desde que o conheceu.

—Lionel sofre de uma doença chamada gigantismo —comentou o marquês oferecendo-lhe a carta. —Parece que essa malformação está se tornando bastante comum em homens nascidos na Inglaterra.

—Sim, assim como o retardo mental é —Sabrina murmurou pegando a carta.

Enquanto Lionel a observava ler, cruzou as pernas na altura do joelho e os braços sobre o peito e esperou por um pedido de desculpas. Mas... realmente pensou que lhe daria depois de insultá-la? Tal como concluiu, uma vez que terminou a leitura, jogou a folha sobre a mesa e se virou para ele com reprovação.

—Qualquer mãe, preocupada em salvar sua honra, poderia pagar um médico para diagnosticar em seu único filho uma doença rara —declarou sem pensar na atrocidade que estava dizendo. Porque a tinha ofendido tanto que a única coisa que desejava era fazê-lo sofrer.

Lionel podia perdoar qualquer comentário ofensivo a sua pessoa, mas jamais a desculparia por fazer menção à dignidade de sua mãe. Ela foi a mulher mais importante em sua vida e se tornou intocável ao saber que a haviam assassinado por sua culpa.

Disparando ódio pelos olhos, percorreu em duas longas passadas a distância que os separava, agarrou-o com força pelos ombros e a sacudiu.

—Juro pela alma de minha mãe que te arrancarei a língua se voltar a se referir a ela desse modo!

Arlington, assombrado, agiu com rapidez. Se levantou, deu a volta na mesa, ficou na frente deles e o forçou a se afastar dela.

—Damos por finalizada a conversa. Estamos todos muito cansados e não refletimos de forma coerente. Com certeza amanhã, após um longo descanso e um copioso café da manhã, encontraremos mais lucidez em nossas mentes —o marquês afirmou olhando primeiro para ele e depois para ela.

Antes de ouvir uma única palavra dos dois, a porta da sala se abriu e o senhor Petey apareceu.

—Sabrina! —exclamou surpreso ao vê-la. —O que faz aqui a estas horas tão inapropriadas? —Se aproximou dela e, depois que os dois se cumprimentaram conforme ditado pelas regras de decoro, ele a apertou em seus braços. —E esse vestido? Está planejando comparecer em uma festa? —acrescentou dando um passo para trás para olhá-la de cima a baixo.

—Senhor Petey, realmente gostou? Edwina se encarregou de escolher este e todos os que guardo no baú —falou como se não se sentisse terrivelmente mal por ter mencionado daquela maneira tão cruel à mãe de Lionel.

Talvez tenha se enganado, não só na sua horrível alusão a Lady Gable, mas também a ele. Que tipo de filho defenderia a honra de sua mãe apesar de que esta estava morta vários anos?

«Um filho que a amou e chorou por ela», pensou.

—Parece uma dama respeitável —Petey disse divertido.

—Tem que mostrar essa imagem durante as próximas semanas —Lionel resmungou antes de encher outro copo de conhaque.

—Por quê? —perguntou Abraham olhando para os três com expectativa.

—Porque, a partir de hoje, Sabrina será a Baronesa de Riseway —Arlington terminou de anunciar.


X


Durante pouco mais de meia hora, explicou detalhadamente as razões pelas quais decidiu se apresentar em sociedade convertida em esposa. No início, tanto Arlington quanto Petey se opuseram a essa ideia porque, depois do que aconteceu em sua casa, não queriam expô-la a riscos desnecessários. Embora deixaram de recusar quando ouviram que os viscondes de Hasherby celebravam nessa mesma sexta-feira uma festa e contavam com a presença do jovem casal.

—Visto que é essencial que compareçam a esse evento para consolidar sua farsa. —Theodore disse se levantando da cadeira, —será melhor que adiante suas apresentações sociais —acrescentou olhando para Lionel.

Antes que os quatro se retirassem para seus quartos, o marquês reorganizou todos os assuntos planejados para os próximos dias.

Quando Sabrina desceu para o café da manhã na manhã seguinte, os homens haviam partido. O mordomo anunciou que os três cavalheiros deixaram a residência mais cedo e que seu marido havia deixado um bilhete para ela. Foi incapaz de articular uma palavra depois de lê-lo. Por que lhe dedicava palavras tão afetuosas? Desejava confundi-la? As bochechas de Sabrina queimaram de raiva. Mas ao afastar o olhar do papel e observar o rosto de Vanther, entendeu o motivo da mensagem.

—Vanther...

—Sim, milady?

—O marquês ou meu marido comentaram quando voltarão?

—Não, senhora. Mas temo que permanecerão fora por bastante tempo.

—O que quis dizer com bastante tempo? —perguntou depois de colocar a xícara de café no prato de porcelana branco e mostrar cansaço, pois era isso que expressavam os rostos das esposas quando falavam com os criados.

—Lorde Arlington teve a consideração de me explicar que, depois de visitar a fábrica e ir ao administrador, marcou uma reunião com vários conhecidos seus com o fim de lhes apresentar lorde Riseway.

—Estarão aqui na hora do chá? —insistiu.

—Milady, não sei como devem ter sido as reuniões masculinas na sua cidade, mas aqui em Londres, elas começam com um almoço no salão do Hotel Brinston e terminam no clube de cavalheiros White's.

—Entendo... —apontou com falso pesar. —O senhor Petey, saiu com eles?

—Não. O marquês pediu que conduzisse certos negócios em seu nome.

—Obrigada pelos esclarecimentos, Vanther —comentou pegando a xícara novamente.

—Ao seu serviço, milady —disse antes de lhe fazer uma ligeira inclinação com a cabeça e deixá-la sozinha.

Lionel foi muito perspicaz ao deduzir que os criados estariam atentos a todas as atividades que fizessem durante sua estada, e isso incluía o relacionamento entre eles. «Maldição!», exclamou com raiva por não perceber uma coisa tão óbvia. Mas depois de uma noite sem dormir, sua mente ainda não estava funcionando claramente. Como dormiria sabendo que ele estava no quarto ao lado? Tampouco se acalmou quando o encontrou sob o dintel da porta que os separava. Nem quando ele fechou de repente e trancou. E nem mesmo quando se lembrou do olhar de ressentimento que lhe deu antes que a espessa lâmina de madeira o fizesse desaparecer de sua vista. A única coisa em que pensou, durante as suas longas horas de insônia, foi na mudança tão brusca que encontrou em seus olhos. No quarto do clube, apreciou naquele olhar azul um desejo que chegou a incomodá-la. No entanto, na sala do marquês, quando fez referência a sua mãe, aqueles olhos se tornaram vermelhos pela fúria.

Não devia ter chamado Lady Gable de forma tão desonesta, mas não se conteve ao ouvi-lo insinuar que usava a sua pacífica casa como bordel. Naquele momento só queria que pagasse por suas palavras e, logicamente, atingiu seu objetivo. No entanto, não sentiu a satisfação que deveria ao magoá-lo. Ao contrário, a magoou ainda mais, pois compreendeu que sob aquela aparência bruta escondia um enorme coração.

Enquanto observava o resto do café que havia na xícara, pensou em como teria sido a vida dele depois de deixar Royalhouse e como enfrentou sozinho a notícia do assassinato de sua mãe. Se culparia pela morte? Se ela estivesse no seu lugar, sim, e procuraria até a exaustão a pessoa que a matou para fazê-la pagar.

Sabrina desviou o olhar do café e fixou-o na porta da frente ao ouvir os criados andando de um lado para o outro da residência. Essas presenças próximas a ela recordaram-lhe que os servos de Lady Gable, confessaram aos agentes e ao juiz, que apareceram na casa para confirmar a morte da mulher, que ela mesma lhes ordenou que tirassem o dia livre e que nenhum se opôs a deixá-la sozinha, nem mesmo o mordomo principal. Afinal, se o bastardo do príncipe havia ido para o palácio, como a própria Lady Gable os informou, por que não fazer uma pausa depois de tantos anos a seu serviço? Mas ela mentiu quando lhes disse que Lionel estava com o pai. O então jovem Krauss tinha ido embora e ninguém sabia seu paradeiro.

«Deus santo!», exclamou se levantando da cadeira. «Ela sabia o que ia acontecer!», concluiu alarmada. Se essa hipótese fosse verdade, Lady Gable conhecia não apenas o assassino, mas também o dia em que ele planejava aparecer em sua casa. Como descobriu? E por que não evitou sua própria morte?

Deixou a xícara sobre a mesa, afastou-se dela e vagou pela sala, esfregando as mãos. Se for verdade que a mãe de Lionel o forçou a deixar Royalhouse, como Arlington explicou, não foi por despeito, mas por amor. Uma infinidade de ideias sobre a vida de Lady Gable fluíra por sua mente agitada: a relação com o príncipe, o desejo de afastar seu único filho dela, o cuidado que teve para que os lacaios não se convertessem em testemunhas e possíveis objetivos do assassino, os Terinthians...

Tudo o que cercava a mãe e o filho era um mistério ainda não resolvido. Para fazer isso, precisava saber o que aconteceu lá e por que tinha a impressão de que nada do que foi dito sobre Lady Gable era real. Um filho não podia amar uma mãe frívola, distante e egoísta, como a descreveram. Uma mãe com esse tipo de comportamento teria abandonado seu filho logo após nascer, como a sua fez.

Não, Lady Gable não era uma má pessoa. Ao contrário, foi tão bondosa que protegeu a quem amava.

Sabrina parou de repente seu andar perturbado, olhou as mãos trêmulas e notou como os batimentos de seu coração aceleravam. Por acaso não entendia o que lhe indicava seu corpo? Sim, claro que entendia. Ele exigia saber a verdade dessa história. Como poderia permanecer impassível após seu raciocínio? Lady Gable não merecia que todos soubessem quem ela realmente era? Claro que merecia. E era isso mesmo que faria.

Quando estava prestes a dar o primeiro passo em direção à porta, outra ideia surgiu em sua cabeça com tal intensidade que seus joelhos enfraqueceram. Lionel, aquele filho que perdeu seu único ente querido, que sofreu miséria, que encontrou abrigo na Villa Liverpool, que viveu como um selvagem e que permaneceu escondido por cinco anos, aceitou a proposta de comparecer a Londres sem contradizer o marquês. Porque não apareceu antes? Porque agora?

—Não! —exclamou correndo desesperadamente para a porta.

Não ia permitir que ele procurasse o assassino de sua mãe porque o desejo de vingança destruiria a missão. Ela investigaria sobre a vida de Lady Gable, procuraria a pessoa que a matou e se adiantaria aos planos de Lionel.

—Vanther! Onde diabos está? —gritou ao sair da sala tão rápido que várias mechas se soltaram do penteado.

—Aqui, milady! —respondeu espantado e confuso por aquela expressão tão inapropriada para uma dama.

—Alguém prepare uma carruagem. Quero-a pronto em cinco minutos —exigiu, caminhando rapidamente para o pé da escada principal.

—Planejando sair?

—Não pergunte bobagem, Vanther. Bem, claro que vou sair! Acha que pretendo usar a carruagem para dar voltas na casa? —alegou antes de levantar, até os tornozelos, as saias de seu vestido bege, pisar os degraus com as pontas das botas e esquecer que seu comportamento não era o apropriado para uma baronesa.


«Que o diabo leve minha alma agora mesmo!», pensou Lionel ao sair da banheira.

Nunca imaginou que fazer o papel de aristocrata seria tão irritante. E para continuar a aumentar a sua exasperação, nessa mesma noite devia comparecer à maldita festa dos malditos viscondes de Hasherby e acompanhado da sua maldita esposa falsa.

Nu e molhado, andou pelo quarto até chegar à porta que separava ambos os dormitórios e fez o que vinha fazendo desde o primeiro dia: segurar a respiração, apoiar a orelha sobre a porta e ficar silêncio para captar a voz de Sabrina. Na maioria das vezes não ouvia nada, embora estivesse consciente de que ela se encontrava lá dentro. Entretanto, naquele momento ouviu como conversava com a donzela. Confuso, porque não entendia o motivo pelo qual seu coração recuperava vida depois de escutá-la, afastou-se da porta e caminhou até a janela para que a entrada de ar o refrescasse.

Durante os dias anteriores, não teve a oportunidade de permanecer a sós com ela nem um miserável minuto. Quando regressava dos afazeres programados por Arlington, Vanther lhe dava uma nota escrita por sua esposa. Nesta, Sabrina lhe comunicava que tinha saído novamente para as compras ou um chá com uma dama que conhecera há alguns dias. Ao final da breve explicação, como fez da primeira vez, acrescentou que também sentia muita falta dele, mas que entendia qual era o seu dever naquele momento.

Encostou o ombro direito no batente da janela, cruzou os braços e olhou para fora. Devia odiá-la pela acusação que dirigiu a sua mãe ou por despertar-lhe o caráter bruto que guardava dentro de si. No entanto, era incapaz de fazer uma coisa dessas. Naquela discussão só mostrou o que todo mundo admitia: que estava diante de uma mulher inteligente e intuitiva, duas peculiaridades importantes para uma espiã. Como Petey lhe disse em inúmeras ocasiões, Sabrina era a melhor em seu campo e, só pelo respeito que merecia uma mulher que tinha sobrevivido a incontáveis situações perigosas, lhe devia uma desculpa.

Tentou fazê-lo na primeira noite, quando ambos entraram em seus quartos. Enquanto esperava por sua chegada, ponderou sobre como iniciar a conversa. Mas não realizou nada do que pensou depois de observá-la. O rosto de Sabrina mostrava tanta tristeza que desejou morrer naquele momento. Por que não foi capaz de controlar sua raiva? Será que pensava que se aproveitaria daquele breve momento íntimo para feri-la novamente? Essa foi a razão pela qual bateu a porta e a trancou. Precisava que Sabrina compreendesse que não se aproximaria dela para magoá-la, mas para respeitá-la tal como merecia.

Mas não tiveram a chance de conversar...

Era como se o destino estivesse pregando uma peça nele. Ou talvez não fosse o destino, mas ela. Talvez o evitasse, talvez não quisesse ter nenhum contato com ele exceto o que deviam representar quando aparecessem em público. Bem, esta noite teria que comparecer à festa e reservar um tempo para conversar e...

Lionel rosnou com raiva. Não de Sabrina, mas de si mesmo. Novamente, seus pensamentos se voltavam para a mulher em vez de em encontrar uma maneira de achar a pessoa pela qual estava em Londres. Onde teria se metido? Arlington apresentou-lhe mais de cinquenta aristocratas. Mas nenhum deles era ele. Estaria em Londres? Teria descoberto sobre sua chegada? Aposto que tinha essa informação. Aquele homem possuía meia centena de olhos e ouvidos pela Inglaterra e já estaria ciente de sua presença na cidade. Então, o que esperava? Estaria estudando-o para confirmar aquilo que já sabia?

Esfregou a barba desesperado. A angústia para vê-lo e enfrentá-lo se tornava cada vez mais insuportável. Precisava fazê-lo pagar todo o calvário que sua mãe sofreu e que a alma desta finalmente descansasse em paz.

Com os nervos à flor da pele, percorreu o quarto em apenas três passos. Sabrina não lhe contara que a festa dos viscondes era a mais importante da temporada? Bem, se estivesse certo, ele teria que comparecer. Um lorde de sua índole não poderia se esconder em um ato tão significativo para a aristocracia. Além disso, todos os lordes da Câmara se encontrariam naquela festa e ele, se não lhe falhava a memória, ocupava uma cadeira bastante poderosa.

Abalado pela reflexão, fixou os olhos no cordão da cama, estendeu a mão e puxou-o para chamar seu valete. Não podia perder mais tempo, nem pensar em coisas tão absurdas como encontrar um momento para se desculpar com Sabrina. Quando tudo acabasse, quando ele executasse seu plano, os dois teriam a chance de conversar e se explicarem. Enquanto isso, não haveria nenhum presente para eles.

—Me chamou, milorde? —perguntou o valete quando apareceu no quarto.

—Quero que me ajude a me vestir —respondeu quase com um grunhido.

—Agora mesmo, milorde.


X I


Lionel colocou as mãos atrás das costas e percorreu o hall de um lado a outro. A donzela de Sabrina entrou no quarto desta meia hora antes que seu valete aparecesse no dele e, apesar desse tempo, ainda não tinha descido. O que estaria fazendo? Por que não aparecia de uma vez? Sua ansiedade crescia a cada segundo que passava. Tinha que chegar o mais rápido possível à festa e descobrir se ele se encontrava entre os convidados. Como reagiria ao vê-lo? Seria capaz de se manter tranquilo? Não. Ele não faria isso. Jamais agiria impassível na frente do assassino de sua mãe. Se tivesse a oportunidade, o mataria ali mesmo.

—Está pronto?

A pergunta de Arlington o tirou de seus pensamentos. Alguns que o fizeram apertar a mandíbula, cerrar os punhos e franzir a testa.

—Esperando minha esposa —resmungou.

—Mulheres! —Theodore exclamou com diversão. —Lembro-me de quando Lizbeth passava horas na frente da penteadeira. Mas tenho certeza que a espera valerá a pena —adicionou com um tom nostálgico.

—Se Sabrina não aparecer em breve, eu mesmo a tirarei do quarto —continuou com raiva.

—Não seja grosseiro, Lionel. As mulheres precisam de mais tempo do que nós para se arrumar. Não consigo explicar como são capazes de usar esse tipo de roupa e caminhar como se não usassem nada.

—Se ela sabia que demoraria tanto, por que não foi para o quarto depois do chá? —perguntou ousadamente, pois tinha conhecimento de que ela não estava em casa a essa hora.

—Sabrina tinha certos assuntos para resolver —o marquês apontou, estreitando os olhos.

—Que assuntos? Encomendou a ela uma missão paralela para encontrar o Khar? —insistiu alterado. Pois a única coisa que lhe faltava para aumentar sua infelicidade era que Sabrina se intrometesse em seus outros propósitos.

—Sabrina já tem uma missão importante: agir como uma esposa. E é isso que está fazendo —manifestou olhando para o andar de cima ao escutar o suave barulho dos saltos. —E falando de baronesas e esposas...

Quando Lionel desviou o olhar de Arlington para se fixar no topo da escada, o ar em seus pulmões disparou e ficou de queixo caído. Que termo poderia usar para descrever uma mulher como ela? Sua mente não lhe deu, pois tinha congelado ao vê-la. Estava linda com um vestido lilás. Uma cor que devia gostar muito porque o roupão de seda com que o recebeu no clube, também era lilás. Embora o vestido se colasse muito mais a seu corpo, realçando a figura esbelta. Logo fixou seus olhos no decote e amaldiçoou em silêncio. Era tão generoso, que qualquer cavalheiro que se aproximasse para cumprimentá-la poderia observar sem esforço o seu busto. Murmurando mais de uma dúzia de blasfêmias, desviou o olhar daquela parte tão erótica e o fixou no penteado de seu cabelo. Não eram cachos pendurados em ambos os lados de seu rosto, mas sim como ondas negras que batiam na areia do mar em dias de tempestade. Como podia ser tão bonita? Por que o deixava tão perplexo? Era possível que tivesse seu abridor de cartas de novo no penteado?

Após outro rápido olhar, seus olhares acabaram se encontrando e sua boca esboçou um leve sorriso enquanto Sabrina silenciosamente pedia sua aprovação. Precisava? Não estava ciente de sua beleza? Se o que queria era que todos a notassem, conseguiria. Naquela noite, a falsa Baronesa de Riseway seria o tema principal de todas as conversas...

—Eu disse que a espera valeria a pena —ouviu o marquês sussurrar.

—Boa noite, cavalheiros. Lamento o atraso, mas queria estar perfeita na minha primeira apresentação social —comentou descendo as escadas com distinção e elegância.

O coração de Lionel bateu ao ritmo dos movimentos sensuais de seus quadris.

—Estávamos falando sobre isso —indicou Arlington dando um passo à frente para recebê-la. —Lionel se mostrava impaciente e pensava subir...

—Não acha que esse vestido é inapropriado para uma esposa? —Lionel falou interrompendo o marquês. —Lembre-se que a festa será realizada na residência dos Hasherby, não no Pleasure.

—Segundo a costureira, trata-se de um modelo exclusivo que causará alvoroço entre as damas —apontou sem se ofender, pois já havia dado por certo que seu trato com ela, depois do ocorrido, não seria agradável.

«E mais agitação entre os cavalheiros», pensou Lionel.

—Enquanto for minha esposa, está proibida de adquirir mais roupas dessa charlatã, a menos que precise de alguns vestidos para as meninas que trabalham em seu clube —ele ordenou enquanto estendia a mão para ela.

«O que?!», Sabrina se perguntou.

Embora tivesse vontade de lhe explicar que seu vestido era um adiantamento da próxima moda feminina e que sua costureira era famosa e reconhecida até pelo próprio Beau Brummell, manteve-se em silêncio. Não era o momento de discutir um assunto tão absurdo. Isso faria Arlington duvidar de sua decisão de não os acompanhar e, se mudasse de ideia, seria impossível falar com o homem que poderia lhe dar algumas informações sobre Lady Gable. Ela respirou fundo, olhou primeiro para o marquês, que se retirara para dar lugar a Lionel, e depois fixou o olhar no marido fictício. Elegante. Assim ela descreveu a aparência física do Lionel. A sobrecasaca azul marinho, com colete cinza, lenço e gravata borboleta, ofereceu-lhe uma postura digna de um aristocrata e realçou, se possível, sua figura e masculinidade. Sem dúvida, o valete tinha escolhido tão bem quanto sua costureira, apesar da opinião dele.

Uma vez que pisou no último degrau, estendeu a mão direita para que a pegasse. Justo nesse momento, quando ambos estiveram tão próximos, descobriu com tristeza que os olhos de Lionel expressavam inquietação. Tanto lhe preocupava sua aparência? Ou tentava camuflar seu ódio através da opinião para o vestido? E se não fosse capaz de controlar essa raiva em público? Como ia esperar que aquela besta se comportasse como um marido apaixonado?

Temia que a noite não terminasse como haviam planejado...

—Evite problemas —Arlington apontou, olhando com expectativa para a cena silenciosa, —e lembrem-se que o Khar pode estar na festa. Abram bem os olhos e estejam atentos —acrescentou.

As palavras do marquês tiveram um efeito semelhante ao que seu corpo sentia ao entrar em uma banheira de água gelada. Novamente, aquela mulher o deixava tão absorto que o fazia esquecer quem era e o motivo pelo qual estava na cidade.

—Vou procurá-lo —disse antes de agarrar firmemente o braço de Sabrina e direcioná-la para a saída.

—Por que me leva assim? Não posso andar tão rápido! —repreendeu-o quando o marquês parou de observá-los.

—Podia ter escolhido outro vestido —respondeu sem diminuir o passo.

—Podia ter escolhido outro marido —afirmou puxando o braço com tanta força que a luva branca daquela mão caiu no chão.

Pegou-a com rapidez e tentou colocá-la sem que Lionel notasse as cicatrizes de seu pulso. Quando o enfrentou com o olhar, pensou que tinha conseguido. Mas não foi assim.

—Deveria esquecer esse lado selvagem que continua vivendo em seu interior. Lembre-se de se comportar como um aristocrata —o acusou.

—Não sou nenhum bárbaro, Sabrina. Provocou essa minha atitude ao se demorar tanto. Lembro que a festa começou às nove horas e por sua causa chegaremos uma hora depois —insistiu, embora seu tom de voz não fosse severo, mas calmo.

—A aristocracia sempre se atrasa —comentou olhando de um lado para o outro como se tivesse perdido algo.

—Arlington deixou muito claro quais são nossos objetivos e devemos alcançá-los antes que a festa tenha terminado —Lionel apontou tentando encontrar um tema recorrente para não pensar na marca branca que viu na pele de Sabrina. O que teria acontecido? Por que a escondia?

—Nunca desobedeci a uma ordem e sempre consegui tudo o que me propus —murmurou em frente à porta da carruagem, esperando que alguém lhe abrisse a porta.

—Eu sei —afirmou enquanto sua mente lhe oferecia mil situações perigosas nas quais ela poderia se machucar.

«Sempre agiu com muita prudência», lembrou um comentário de Arlington sobre ela, «mas somos humanos e nossas emoções nos traem...». Sabrina confiou na pessoa errada? Quem foi? Que emoção pôde sentir?

De repente, a escuridão da noite ficou mais negra e tenebrosa...

—Qual é o seu problema? Por que se move como se tivesse percevejos no cabelo? —perguntou ao observá-la tão inquieta.

—Porque não me deixou pegar meu redingote e a retícula —resmungou indignada. Logo se virou para a porta da carruagem e gritou: —Alguém vai abrir a porta ou eu mesmo faço isso?

Quando o criado se aproximou para fazê-lo, por ter ficado afastado ao ouvi-los discutir, Lionel levantou a mão para impedi-lo.

—Aproxime-se do hall e peça a Vanther o redingote de minha esposa e sua retícula —lhe ordenou enquanto ele abria a porta.

—Sim, milorde —o cocheiro respondeu.

Com os olhos arregalados, Sabrina observou a mesma pessoa que chamou seu vestido de impróprio para uma esposa, ajudando-a a evitar que manchasse ou rasgasse. E fez isso com tanto cuidado que não sentiu as pontas dos dedos deslizarem pela roupa.

Uma vez que ambos se acomodaram, Lionel a olhou de relance enquanto amaldiçoava o fato de que estivessem de novo tão próximos. No entanto, o movimento que ela fez com uma mão para garantir que a luva não escapasse de novo, voltou seus pensamentos para a marca.

A única coisa que deduziu foi que Sabrina se apaixonou e foi traída. Se estivesse certo, o que aconteceu? Como conseguiu aquela cicatriz? Que tipo de engano e dor a submeteram? Por isso sempre levava armas escondidas em suas roupas? Não confiava em ninguém?

Centenas de perguntas surgiram sem que pudesse detê-las e só provocavam algo que não sabia definir... ainda.

—Temos que inventar uma história —ela apontou se sentindo ignorada desde que o cocheiro trouxe seus acessórios e conduziu os cavalos.

—Que história? —deixou escapar mais duramente do que pretendia.

—Sobre nosso romance —esclareceu desconfortável. —Tenho pensado que é melhor inventarmos algo juntos para que nossas respostas sejam o mais próximas possível.

—Os cavalheiros não me perguntarão sobre esse assunto tão pessoal —apontou com tom cansado.

—Mas suas esposas sim e estas, como avisei, vão conversar com seus maridos e se encontrarem incongruências na história, vão suspeitar de nós e...

—O que lhes dirá? —interrompeu-a fechando os olhos, como se a conversa lhe aborrecesse terrivelmente.

Só que não se tratava de aborrecimento, mas de controle. Seria mais fácil controlar seus instintos masculinos se tudo ao seu redor se transformasse em escuridão. Dessa forma, pensaria que estavam longe um do outro, que não poderia segurá-la para sussurrar que sentia sua falta e que se preocupava com sua segurança, que sentia falta do aroma de seu perfume, e que não estenderia sua mão para tirar aquela luva e perguntar o que diabos havia acontecido com ela antes de conhecê-la.

—Eu opto pela alternativa romântica —finalmente disse. —Todas as mulheres vão gostar de ouvir a história encantadora de como nos apaixonamos na primeira vez que nos conhecemos, que naquele mesmo dia juramos amor eterno e que meu pai não permitiu que estivéssemos juntos porque concordou em meu casamento com um duque quarenta anos mais velho que eu. Logicamente, não desistiu e planejou nossa fuga para Gretna Green. Então quando me pediu em casamento, me joguei em seus braços chorando e foi a primeira vez que me disse...

—Eu concordo com essa história —cortou-a rapidamente depois de remover o nó na garganta.

—Bem. Nesse caso, só me resta lembrá-lo que deve mostrar certos gestos românticos enquanto permanecermos em público —acrescentou depois de clarear a voz.

—Gestos românticos... —sussurrou abrindo os olhos de repente. —A que se refere? —alegou estreitando os olhos.

—Sabe. Seria bom que me olhasse com desejo —começou depois de engolir saliva. —Tem que encontrar a oportunidade de colocar sua mão na minha cintura de forma possessiva. Devemos dançar, e inclusive seria bom que saíssemos à varanda para ter um momento a sós. —Silêncio, silêncio. —Logicamente, aproveitaremos essa intimidade para trocar informações —acrescentou.

Pelo horror que ele expressava em seu olhar, entendeu que não tinha sido boa ideia se apresentar como baronesa, mas já era demasiado tarde para mudar o plano. O que devia fazer para melhorar a situação? Era o momento certo para se desculpar? E seu orgulho? Não se tratava de perdê-lo, mas de encontrar um ponto de união entre os dois. Isso poderia ser alcançado se lhe confessasse que havia cometido um erro ao falar sobre sua mãe. Logicamente, manteria em segredo que indagava sobre o que havia acontecido com lady Gable desde sua segunda temporada social até o dia de sua morte.

—Lionel... —tentou falar.

—Entendi Sabrina —comentou cruzando os braços, mostrando uma atitude distante. —Não se preocupe, minha querida. Certamente posso colocar minha mão em suas costas para que todos os cavalheiros saibam e entendam que é minha mulher —disse severamente. —Te pedirei uma dança. Não. Duas danças! Porque minha esposa tem que me agradar em tudo o que deseje e, quando me agradar, te levarei à varanda para que possamos conversar, enquanto os convidados pensam que estou tão apaixonado, que não posso ficar nem um minuto sem colocar as minhas mãos em seu corpo ou os meus lábios na sua boca. Considera apropriado? —soltou antes de virar o rosto para a janela.

Depois de ouvi-lo, e de apreciar seu tom de voz, confirmou que continuava magoado. Se não remediasse a animosidade existente entre os dois, a noite seria um fracasso tanto para ela como para ele. Deslizou lentamente pelo assento, até que pôde se colocar em frente. Ele rosnou ao flexionar mais os joelhos, mas continuava com o rosto virado. Sabrina respirou fundo antes de colocar uma mão em uma perna de Lionel.

—O que está acontecendo? —ele rugiu ao seu toque.

—Lionel, sei que está bravo pela maneira como falei sobre sua mãe. Peço desculpas por isso. —Ele abriu a boca para falar, mas ela colocou um dedo de sua outra mão sobre seus lábios e o fez emudecer no ato. —Estava ferida porque insinuou que levei amantes para minha casa. Garanto-lhe que não estive com um homem durante quase seis anos e como compreenderá, depois da sua acusação, fiquei furiosa. Juro por minha honra que minhas palavras não refletiram meus verdadeiros pensamentos. Não pelo menos até entender, depois de reconsiderar, que um filho não defende sua mãe, como fez, se esta fosse uma pessoa má. Pelo que percebi, Eugine era uma mulher gentil e terna. Juro que, se pudesse voltar àquele momento, morderia minha língua até que sangrasse.

O assombro de Lionel foi tão grande, que não soube o instante exato em que o mundo parou de girar ao redor do sol. Ele sentiu a pressão de sua respiração em seu colete e sentiu o batimento arrítmico de seu coração em sua garganta. Não sabia o que o perturbava mais, saber que há seis anos não se entregava a um homem ou que era a primeira pessoa a falar bem de sua mãe? Instintivamente, jogou a cabeça para trás, sentindo um estranho calafrio nos lábios, descruzou os braços, pôs a mão na de Sabrina e, quando encontrou forças para agradecer e pedir desculpas, a carruagem estacionou no amplo jardim de Clovelly, a residência dos Hasherbys.

—Não deve se preocupar com as aparências —disse, retirando a mão rapidamente. —Desempenharei corretamente o papel de marido. Teria feito, mesmo se não tivesse me pedido perdão —acrescentou depois de pensar que o melhor para os dois era continuar distante.

Quando o cocheiro abriu a porta, ele saltou para fora como se tivesse prendido a respiração toda a sua vida.


XI I


Manteve a sua promessa...

Ao sair da carruagem, estendeu-lhe a mão e ambos seguiram pelo pequeno caminho que havia no jardim. Então subiram os degraus de pedra clara e esperaram pacientemente que lhes atendessem. Tal como explicou antes de deixar a residência, os convidados mais célebres chegaram uma hora depois do início. Quando o mordomo principal dos Hasherby os recebeu, Lionel a ajudou a tirar o redingote. O fato de que não aproveitasse esse momento para roçar a pele com a ponta dos dedos preocupou a Sabrina, porque esse distanciamento lhe indicou que seguia irritado apesar de sua desculpa. Entendia. Realmente o entendia. Mas ele devia estar ciente de que, naquele momento, não eram Lionel e Sabrina, mas os barões de Riseway e seriam observados e estudados por mais de sessenta pessoas.

Uma vez colocados na entrada do salão, e um criado anunciou sua presença, Lionel colocou a mão direita sobre a parte inferior das suas costas e a conduziu até os viscondes, que os receberam com entusiasmo caloroso.

—Agradeço que tenham aceitado nosso convite —comentou lady Hasherby. —Devo confessar que rapidamente os coloquei na lista de convidados assim que soube que estariam em Londres —acrescentou observando Lionel como se fosse o último homem vivo da Terra.

Não podia recriminar a anfitriã por mostrar esse descaramento, nem por ser incapaz de desviar o olhar dele desde que entraram no salão. Tinha presumido que um homem com seu porte e galanteria se tornasse o centro das atenções de todos os olhares femininos. Só esperava que não se esquecesse de que ela estava por perto e que, apesar de não gostar, aos olhos dos demais era sua esposa.

—Somos nós que devemos agradecer por nos ter em consideração, milady —Lionel respondeu com uma voz harmoniosa e sedutora enquanto lhe beijava os nós dos dedos da mão enluvada.

—Bem —Sabrina interveio. —Foi uma agradável surpresa descobrir que solicitavam nossa presença no evento mais importante da temporada —alegou sutilmente apoiando a mão sobre o braço esquerdo de Lionel.

Esse simples gesto fez com que sua grande figura se enervasse tanto que seu corpo parecia maior do que já era.

—Acredite em mim quando digo que sou uma pessoa modesta —continuou Lady Hasherby, os olhos fixos em Lionel, —mas odeio mentiras e devo confessar que é verdade que entre os nossos convidados se encontram os membros mais importantes da sociedade. No ano passado tivemos a grande sorte de contar com a presença do príncipe durante pouco mais de uma hora —expôs orgulhosa.

—Porque o resto da noite esteve em um quarto do meu clube com três das minhas melhores meninas —Sabrina murmurou em um sussurro.

—Um momento inesquecível —Lionel interveio com rapidez ao ouvi-la.

—E foi —disse a Viscondessa antes de sorrir e mover o leque com delicadeza.

—Querida, deveria apresentar lady Riseway as nossas convidadas —o visconde interveio. —Tenho certeza que todas elas estarão ansiosas para conhecê-la.

—E imagino que fará o mesmo com o barão —respondeu com um sorriso apático.

—Garanto-lhe que nossas conversas serão terrivelmente aborrecidas —Lionel aceitou. —Por esse motivo, depois de um tempo, alegaremos qualquer desculpa para procurá-las.

«O que?!», Sabrina se perguntou, tentando conter qualquer expressão de espanto ao ouvir tal absurdo.

—Sendo assim —a viscondessa concordou. —Daremos um motivo para sentirem nossa falta —acrescentou olhando para Sabrina.

Enfim descobriu que estava ao seu lado!

—Sim, será o melhor —ela apontou, dando um leve sorriso para Lady Hasherby.

Assim que deu o primeiro passo à frente, para seguir a direção que a anfitriã estava tomando, sentiu a pressão e o calor de uma mão em suas costas. Ao se virar, seu rosto se encontrou tão próximo ao de Lionel que a respiração deste acariciou seus lábios e o perfume de sabão de barbear alcançou suas entranhas. Sua mente analisou rapidamente a situação, como sempre fazia quando estava em perigo. Mas... que tipo de ameaça estava enfrentando? Desviou o olhar de seus lábios. Não percebeu que o mantinha lá até que se esforçou para fixá-lo em seus olhos. Quando ambos os olhares se cruzaram, observou um brilho muito estranho naquelas intensas íris azuis. Respirou, porque também não sabia que tinha parado de fazê-lo até que sentiu falta de ar. Lionel se inclinou com suavidade para sua esquerda... queria fugir de lá. Levantar o vestido e correr até que ele desaparecesse de sua vida. Por que não o fazia? Por que seu corpo estava paralisado? De repente os ouvidos começaram a zumbir e seu peito subia e baixava agitado.

—Se não quer que eu aja como Lorde Besta, informe todos os cavalheiros que desejem dançar contigo que não o concederá a não ser que falem primeiro com o teu marido —sussurrou-lhe ao ouvido. Em seguida, retirou-se tão lentamente, que Sabrina notou o toque da ponta do nariz no lóbulo da orelha.

Nesse momento, a mulher frágil desapareceu e voltou a guerreira...

As bochechas ardiam, suas mãos começavam a tremer e a fraqueza nas pernas não lhe permitiram andar. Por que lhe exigia essa loucura? Queria ridicularizá-la? Não estava ciente da catástrofe social que aconteceria se ela se recusasse a dançar? Maldito seja ele e seus pensamentos inadequados! Sem dúvida agiria como se não o tivesse escutado e faria tudo o que lhe parecesse correto para conseguir seu objetivo. Se quisesse beber, beberia. Se quisesse conversar com um cavalheiro, conversaria e se este lhe pedisse uma dança... ela mesma o conduziria até o centro do salão!

—Tem muita sorte, Lady Riseway —a viscondessa comentou dando tapinhas em sua mão para apaziguar seu estupor.

—Por? —perguntou, estreitando os olhos ligeiramente.

—Porque não há muitos maridos que mostrem gestos tão afetuosos em público para suas esposas. Deve considerar-se uma mulher muito afortunada —indicou com um toque de inveja.

—Suponho que tenha razão —respondeu depois de respirar fundo para se acalmar.

—Tenho —garantiu sem hesitar um segundo. —E não me engano ao declarar que neste momento todas as damas deste salão estão ardendo de desejo de descobrir o que o barão sussurrou para deixá-la tão alterada e acalorada. —Alegou com imprudência.

—Felizmente para elas, nunca saberão —simplesmente afirmou.

Para o inferno com a descarada Lady Hasherby!


Não houve um único instante, durante a próxima hora, em que deixou de observá-la. Era como se seus olhos tivessem sido arrancados de seu rosto para desempenhar uma função diferente daquela que haviam programado. Enquanto bebia a segunda taça de champanhe, observou a viscondessa apresentá-la ao quarto e último grupo de damas. Todas a saudaram com evidente expectativa exceto uma. A mulher de cabelos loiros e vestido preto aproximou-se de Sabrina e deu-lhe um beijo na bochecha. Se conheciam? De onde? Seria a amiga de quem lhe falou em suas notas?

Assim que tivesse a oportunidade, resolveria suas dúvidas.

—Riseway?

—Desculpe-me, estava distraído —disse virando-se para o cavalheiro que chamou a sua atenção.

—Expressava minha surpresa ao saber a notícia de que Arlington visitava Londres acompanhado de um filho de quem ninguém sabia de sua existência.

«Os homens não falam desse tipo de assuntos...». «Se me apresentar como esposa serei o centro das atenções...», Lionel lembrou-se daquelas palavras e admitiu que Sabrina estava certa. Sua presença apoiaria a história de Arlington.

—Como bem sabem, minha mãe morreu depois do parto. Apesar do médico ter insistido em fazer meu pai entender que não tive culpa, ele não ouviu. —Respirou fundo, olhou para os cavalheiros com tranquilidade e continuou: —Odiei-o tanto por esse desapego que ele também deixou de existir para mim. Durante muito tempo, meus tios foram minha única família. —Bebeu um gole de champanhe, pois sua garganta tinha ficado seca e continuou: —Os anos passaram rapidamente. Cresci, fui a Ethon, depois a Oxford e um dia... —Olhou para a Sabrina. —Conheci minha esposa.

—E? —o visconde o interrompeu.

—E, no preciso instante em que meus olhos a descobriram, entendi a razão de meu pai ter agido daquela forma. Deve ter sido muito difícil para ele continuar com sua vida sem a pessoa amada. —Concluiu a mentira.

—É um filho muito compreensivo —comentou um dos cavalheiros. —Nem todos os descendentes são capazes de perdoar uma atitude tão horrível como a ignorância de seu progenitor.

—Não a chamo horrível, e sim desesperada —Lionel respondeu sem olhar para ninguém em particular. —Amar e precisar de uma pessoa, nos torna fracos e fortes. Por esse motivo posso assegurar-lhes que, se algo acontecesse a minha esposa, me comportaria muito pior que meu pai, pois nada, nem ninguém poderia acalmar a besta que brotaria de minha alma.

—Uma esposa pode ser substituída... —outro cavalheiro tentou dizer.

—Tenho certeza de que muito poucos cavalheiros, dos aqui presentes, amam suas esposas como meu pai amou a minha mãe ou eu amo a minha porque, do contrário, jamais pensariam em substituí-la por outra mulher.

Silêncio. Exceto por alguns leves pigarros, os homens ficaram em silêncio total, como se Lionel tivesse elaborado e exposto uma hipótese irrevogável. Até ele se convenceu de suas palavras e pensou que estava tão apaixonado por Sabrina que podia arrancar a cabeça dos cavaleiros que a olhassem com desprezo. Sentindo-se vitorioso, tomou o resto do champanhe que tinha na sua taça, colocou-a sobre uma mesinha que havia a suas costas e lhes disse: —Se me dão licença, tenho que dançar com a minha esposa.

—Obviamente —falou o visconde de Hasherby em voz alta para que todos os presentes o ouvissem —e lhe diga para me reservar uma. —Enquanto Lionel o olhava com os olhos estreitos, o anfitrião sorriu e acrescentou: —Apesar de seu sussurro, ouvi como lhe ordenava que não dançasse com ninguém sem sua permissão. Não o reprovo. Se estivesse em sua pele, faria o mesmo.

—Ela reservará —admitiu antes de caminhar até ela.


Sabrina olhou para o grupo em que Lionel permaneceu durante todo o tempo e ficou surpresa ao não vê-lo. Onde teria se metido? Estaria seguindo os passos de uma possível pista? Mas quem ele estava procurando, o Khar ou o assassino de sua mãe? Respirou fundo e se concentrou em sua conversa com Lady Menderly, a viúva que conheceu na loja da costureira.

No início, como não parava de olhá-la, mostrou-se relutante em ter qualquer contato com ela. Embora minutos depois descobrisse que a única coisa que interessava à pobre viúva eram as texturas dos tecidos e suas cores. Depois de relaxar, pois sua cabeça vasculhou centenas de lugares e momentos onde poderiam ter se conhecido, Sabrina pediu sua opinião sobre a combinação de algumas roupas e a mulher deu-lhe encantada. A partir desse instante as duas começaram a falar sem parar da tosca moda feminina e do escândalo que protagonizariam quando as afetadas esposas as observassem chegar à festa dos viscondes.

—Desde que fiquei viúva, minha vida se tornou um escândalo contínuo —apontou a divertida Lady Menderly. —E como tenho dez anos de experiência, aconselho que passe despercebida no primeiro dia em que se apresentar em sociedade. Além disso, não acho que seu marido goste de ouvir o que os outros pensam a seu respeito.

—Meu marido é muito compreensivo e tenho certeza que vamos terminar a noite rindo desses comentários maliciosos —Sabrina declarou muito segura de suas palavras.

Então aproveitou o momento de confidências para pedir que lhe contasse sobre os convidados dos Hasherbys. Quando a viúva perguntou por que queria saber todas as fofocas da alta sociedade, ela respondeu que gostaria de ter uma boa defesa contra um possível ataque. Essa atitude desafiadora e corajosa agradou tanto lady Kimberly que ela a convidou para tomar um chá em sua casa para falar com calma e tranquilidade. Durante mais de uma hora, aquilo que lhe contou foi irrelevante para Sabrina. No entanto, quando ouviu falar de Eugine Krauss, teve que agarrar com força a xícara de chá para que esta não saísse disparada de suas mãos.

—E ele apareceu de braço dado com ela —a viúva continuou explicando. —Ambas as famílias tinham como certo que finalmente celebrariam o casamento que tanto esperavam. Mas não foi assim... —Kimberly pegou a xícara de chá, despejou dois torrões de açúcar, e mexeu o líquido quente bem devagar com a colher. —O coração não ouve a razão —comentou com tristeza —e Eugine se apaixonou pelo homem errado.

—Lorde Haydeen não a amava? Não chegaram a ficar noivos? —insistiu em descobrir.

—Não. Todos acreditaram que o anúncio seria feito na festa dos Grinches, mas não foi assim.

—Algo grave aconteceu antes desse momento... —Sabrina insistiu, tão inquieta que estava a ponto de afastar a xícara de chá e pedir que lhe servissem um copo do melhor porto que guardavam na adega.

—O que aconteceu durante a segunda temporada de Eugine sempre foi um mistério. Alguns dizem que se apaixonou por um homem casado. Outros, de um jovem que tinha acabado de ficar noivo. E então, quando o romance com o príncipe ficou conhecido, presumiram que haviam mantido um idílio secreto desde aquele ano. Mas são todas suposições. A única certeza nessa história eram as palavras que o próprio Richard declarou na época em que deveriam anunciar o noivado.

—O que disse? —a pressionou com ansiedade.

Podia sentir o coração bater em sua garganta, perceber o suor de suas mãos e inclusive notava uma ligeira dor de cabeça ao apertar a mandíbula. As palavras do possível noivo de Eugine desvendariam a verdade ou só encontraria a reprovação de um amor não correspondido?

—Jamais me casarei com uma mulher cujo coração pertence a outro homem —Kimberly repetiu as palavras exatas de Richard.

E, a partir daquele momento, Lorde Haydeen tornou-se o seu único alvo.

—Tem visitado Tattersalls? —perguntou Lady Menderly, tirando-a de suas reflexões.

—Sim. Tal como me disse, esta mesma manhã me disfarcei de jockey e verifiquei os estábulos.

—Se interessou por algum cavalo? —perguntou-lhe a viúva.

—Sim. Um Frísio negro chamado Tornado. Segundo informações, o dono do cavalo é Lorde Thawson. Um vilão que o tratou cruelmente —explicou.

—E?

—Vão leiloá-lo na segunda-feira. Perguntei a lorde Arlington se posso comprá-lo e me disse que sim —concluiu emocionada.

—Maravilhoso! —exclamou Kimberly divertida. —Seu marido terá uma surpresa incrível quando...

—O que acontece? —Sabrina perguntou, percebendo como o rosto da amiga empalidecia por um momento.

Se virou lentamente em direção ao lugar para onde ela estava olhando e bufou com raiva ao descobrir quem a tinha deixado sem palavras.

—Sabrina, esse é...? É...? —tentou dizer.

—Sim, lady Kimberly —comentou desviando o olhar de Lionel. —Esse cavalheiro tão bonito é meu marido —lhe confirmou encolhendo de ombros.

—Deus santo! —exclamou lady Menderly com mais espanto do que desejou expressar ao contemplar o físico do barão de Riseway.


XIII


—Querido, não o esperava tão cedo —Sabrina comentou quando Lionel ficou ao seu lado. —Há algo errado? —perguntou curiosa.

—Nada interessante até agora. Só vim pedir minha dança e informar que o visconde quer que reserve uma para ele. —respondeu sem tirar os olhos da mulher que estava ao lado dela.

Por que estava olhando-o como se eles se conhecessem? Seu rosto não lhe parecia familiar... então a dama em questão abriu o leque e o moveu lentamente. Lionel não percebeu aquele acessório feminino, mas sim o anel que ela usava em um dedo.

—Permita-me apresentá-lo a Lady Menderly. Ela é a mulher de quem falei nas minhas notas —Sabrina explicou um pouco mais calmamente, embora sua raiva não diminuísse quando percebeu que o rosto de Kimberly ainda expressava espanto.

—Encantado em conhecê-la, lady Menderly. —Cumprimentou-a segurando com suavidade a mão que a viúva lhe estendia. Justamente a que queria ver. Por tê-la tão perto, confirmou sua suspeita. —Estava ansioso por descobrir quem era a pessoa que tem afastado a minha esposa de mim desde que chegamos a Londres —acrescentou sem afastar o olhar da inicial gravada no selo de ouro e rubis. —Felizmente, comprovei que suas palavras eram verdadeiras e que só procurava a companhia de uma amiga em vez dos braços de outro homem —acrescentou colocando sua mão direita na parte lombar de Sabrina.

Ela, ao sentir seu contato, deu um pequeno passo para se separar. Mas Lionel não lhe permitiu essa distância. Voltou a colocar a mão em suas costas e apertou as pontas dos dedos no vestido como sinal de aviso.

—Não lhe dê ouvidos, lady Kimberly. Meu marido é muito brincalhão —apontou, escondendo o melhor que podia sua surpresa, preocupação e o desejo de se virar para censurá-lo por seu comportamento ousado em público.

As damas achariam romântico que ele agisse daquela maneira tão dominante e protetora, mas deixava-a nervosa. Porque, cada vez que a tocava, sua mente ficava em branco...

—Pode ficar tranquilo, lorde Riseway. Tanto sua esposa como eu temos sido muito discretas e ninguém falará de nossas reuniões —lhe garantiu a viúva levantando o queixo em atitude altiva.

—Vejo que a princípio nos entendemos —Lionel admitiu, estreitando os olhos ligeiramente.

—É claro, milorde. O fato de eu ficar viúva logo depois de me casar nunca me impediu de decifrar as palavras de um marido apaixonado —explicou Kimberly focando-se na discreta chamada de atenção do barão e em como tocava a sua amiga.

—Obrigado —respondeu ele expressando uma cortesia que não desejava ter.

—Não tem que me agradecer. E agora, se me der licença, sairei para que possa aproveitar sua dança —apontou antes de se curvar para os dois.

Sabrina não sabia o que pensar ao contemplar a atitude dos dois. Por um lado, sua amiga parecia desconcertada e inquieta diante da chegada de Lionel e este não se dirigiu a ela com a educação e o respeito que mostrou à Viscondessa de Hasherby. E falou com Kimberly em um tom intimidante e cortante. Por quê? Não gostava que mantivesse uma amizade com uma jovem viúva? Pois, que apodreça no inferno se pretendia separá-las!

—No que está pensando? —lhe perguntou segurando uma mão para conduzi-la até o centro do salão.

Os músicos procuravam rapidamente por uma nova partitura, como se um convidado tivesse pedido uma peça específica.

—Em nada —respondeu asperamente, apreciando sua nova ousadia. Não tinha entendido que os aristocratas não deveriam mostrar esse tipo de afeto por suas esposas? O que pensariam deles?

—Está mentindo —disse tocando com suavidade o pulso com o dedo polegar. —Apesar de que usa luvas, posso sentir seu pulso acelerado —acrescentou levando a mão para os lábios para lhe dar um suave beijo, como se esse gesto pudesse acalmar sua inquietação.

Sua ousadia não tinha fim...

Sabrina rezou para que uma catástrofe acontecesse naquele momento. Precisava de uma distração e ignorar o conforto que o leve toque em sua cicatriz proporcionou. No entanto, nada aconteceu. A repulsa que sempre demonstrou por aquela área terrível de seu corpo nem surgiu. Era como se a carícia fraca e desavergonhada a fizesse esquecer que a marca ainda estava em sua pele.

—Os espiões são instruídos a ficarem alertas durante uma missão. Caso não se lembre, estamos em uma e, logicamente, meu corpo me avisa que minha vida pode estar em perigo —soltou irritada por não conseguir controlar esse tipo de resposta física.

—Não sou perigoso. Pelo menos não sou para você... —declarou com tal determinação que a mente de Sabrina foi incapaz de encontrar uma réplica.

Em silêncio, colocaram-se um à frente do outro. Outros quatro casais ocuparam o seu lugar. Lionel olhou para os músicos e fez um pequeno movimento de cabeça. Nesse momento, os primeiros acordes começaram a tocar.

—Foi você quem pediu um minueto? —perguntou surpresa.

—Sim —respondeu esboçando um largo sorriso.

—Sabe como dançar? —continuou chocada.

—Quando terminarmos, você mesma poderá responder —disse antes de lhe fazer a reverência com a qual se iniciava a dança.

A pele de Sabrina permaneceu arrepiada o tempo que durou aquela dança. Em cada giro ou cada vez que suas mãos se uniam, algo nela se estilhaçava. Tinha a sensação de que Lionel arrancava uma a uma as pedras do muro que protegiam seu coração desde o ocorrido em Paris. Mais de uma vez quis quebrar a magia que os envolvia e fugir daquela festa. Mas quando seus olhares se cruzavam, ele a fazia mudar de ideia. Mostrava-se tão seguro, tão firme, tão forte que seu corpo adquiria uma estranha segurança e vitalidade. Em seus braços, com sua presença, deixava de ser Sabrina Ormond, a espiã que agia sob as ordens de uma congregação e se transformava sem poder evitar na baronesa de Riseway, que desfrutava de uma bela dança com seu marido.

Engoliu em seco e respirou fundo, admitindo que, apesar de tudo, também o achava atraente. Mas o que aconteceria quando a farsa terminasse? Por que não desejava pensar nisso? Franziu a testa ao procurar as respostas e notou como Lionel lhe voltava a acariciar o pulso com o polegar para sentir seus batimentos cardíacos. Não se importou que confirmasse que estes seguiam acelerados. Não poderia esconder por mais tempo esse estranho sentimento que despertava nela. A única coisa que tinha que fazer, para continuar a se proteger de qualquer emoção inadequada, era fugir de seu lado o mais rápido possível porque se ficasse, terminaria apaixonando-se e ela sabia que o amor não era o companheiro adequado para uma mulher com um passado como o seu.

No entanto, a preocupação em descobrir o que aconteceu com Lady Gable estava ficando cada vez mais intensa. Como ia partir sem conhecer a verdade? E o que aconteceria com a missão? Sabrina descobriu com espanto que não podia respirar. Um nó na garganta a impedia. Até o momento, nunca deixou uma tarefa inacabada. Mas desta vez era diferente. Estava em jogo seus sentimentos, sua liberdade, sua sanidade e tinha a certeza de que, se continuasse se comportando daquela maneira, a relação entre eles mudaria e já não haveria como voltar atrás.

O que aconteceria quando as pessoas descobrissem que não estava na cidade ou quando lady Kimberly perguntasse a Lionel o motivo de sua partida? Arlington se ocuparia de resolver esse problema. Sempre soube o que fazer e dizer quando ela desaparecia sem dar explicações...

—Então? —lhe perguntou quando a dança terminou.

—Nada mal —respondeu depois de aceitar o braço que lhe estendia.

Oprimida pelas incontáveis sensações, olhou para a sua amiga à procura de alguma serenidade. No entanto, quando ela apontou com o olhar o cavalheiro que tinha à sua direita, sua inquietação triplicou. Quem era aquele homem? Por que os olhos de sua amiga brilhavam de emoção?

—Deseja se reunir com a viúva ou com a anfitriã? —soltou irritado.

—Neste momento, prefiro sair daqui. Mas temo que não seria conveniente —explicou com sinceridade.

—Tanto te incomodou dançar comigo? —comentou com aspereza, como se essa indiferença tivesse se transformado num punhal que lhe atravessava o peito.

—Não. Esse é o problema —disse sem mais esclarecimentos. —Se importaria de me levar para o lugar onde lady Kimberly está, por favor?

—Se é isso o que deseja.

Respeitou sua decisão. Lionel a conduziu até Lady Menderly em silêncio. Embora não precisasse usar muitas palavras para saber o que estava pensando. Deduziu ao observar a retidão de seu corpo e sua forma de andar. Durante um décimo de segundo quis parar, olhá-lo e confessar-lhe que sua mudança de atitude se devia às sensações que ele tinha lhe transmitido durante a dança: que fez com que se sentisse uma mulher especial, única e tão desejada que ansiou aquilo que seus olhos azuis expressavam e garantiam. Mas o que conseguiria com essa declaração? Nada de bom para os dois...

—Uma dança maravilhosa —comentou a viúva quando pararam em frente a ela. —Posso lhe garantir que foram o único casal que soube expressar a beleza e a emoção de um verdadeiro minueto. O senhor pediu, lorde Riseway?

—Sim.

—Uma escolha muito elegante —interveio o cavalheiro desconhecido. —Durante minha juventude, muito poucos casais sabiam dançar com tanto esplendor —alegou olhando para os recém-chegados.

—Obrigado, lorde... —disse Lionel com astúcia.

—Desculpe minha falta de jeito! —Kimberly exclamou um tanto envergonhada. —Lorde Haydeen, apresento ao Barão de Riseway e sua adorável esposa.

«Maldição!», pensou Lionel.

«Ótimo!», pensou Sabrina.

—É uma honra finalmente conhecer o filho de Lorde Arlington —Richard comentou estendendo a mão em sua direção. —Espero que a visita dure vários dias porque quero falar com seu pai sobre um assunto que temos pendentes.

—Eu aviso-o assim que o vir —respondeu aceitando a cordial saudação.

—Lady Riseway —disse olhando-a com tal admiração, que Lionel quis arrancar-lhe os olhos.

—Lorde Haydeen —Sabrina respondeu fazendo uma pequena genuflexão.

—Está cansada? Porque se seu marido achar apropriado, gostaria de ser o próximo cavalheiro a quem concederá uma dança.

—Está —Lionel rosnou.

—Claro que concedo! —ela respondeu com rapidez. —Querido, não faça esse tipo de brincadeira na frente de desconhecidos porque vão pensar que só respiro quando me permite —ela o repreendeu sorrindo.

«Respirar? O que desejo agora mesmo é tirá-la daqui!», ele concluiu.

—Lorde Riseway? —insistiu Richard.

—Como bem disse minha esposa, gosto muito de brincar e não o faço no momento adequado. Pode respirar e dançar quando lhe parecer conveniente. Embora tenha que lembrar que o visconde lhe pediu uma dança e não me agradaria ter que desculpá-la devido a um cansaço repentino.

—Então —apontou oferecendo a Sabrina seu braço direito. —Encontra-se com forças para dançar a seguinte contradança?

—Estou ansiosa para saber como o faz —disse aceitando com entusiasmo a companhia de lorde Haydeen.

—Aviso-a, milady, que fui um excelente dançarino durante a minha juventude. Embora seja verdade que nem todas as damas souberam...

Enquanto se afastavam, Lionel foi incapaz de respirar e sua mente se encheu de perguntas às quais não encontrou respostas. Por que Lady Menderly planejou o encontro entre o ex-noivo de sua mãe e Sabrina? Teria o reconhecido? Era verdade que tinha herdado muitos traços de sua mãe, mas segundo ela, ele e seu pai eram a mesma pessoa. Olhou-a de canto de olho e franziu a testa ao descobrir o enorme sorriso que seus lábios esboçavam. O que a bendita viúva estava fazendo?

—Gostaria de dançar? —Kimberly perguntou ao ficar sozinha com ele.

—Não sei que diabos está tramando, mas lhe aviso que, a partir de agora, vigiarei cada passo que dê —Ele afirmou antes de dar-lhe a reverência obrigatória e se dirigir ao corredor direito do salão. Uma vez que ficou atrás de uma coluna, fixou o olhar no casal e não afastou até que a contradança terminou.

Mas não foi a única pessoa que os observou. Kimberly não desviou o olhar dos três enquanto saboreava o licor de sua taça e calculava a quantia que pediria desta vez pela informação.


Arlington reclinou-se no sofá e olhou para os dois homens que estavam sentados do outro lado da mesa. Desde que Sabrina e Lionel foram para a festa dos viscondes, se reuniram para falar da estranha atitude do Khar. Presumiram, depois do que aconteceu na casa da jovem, que sairia do esconderijo assim que soubesse que o rapaz estava em Londres. Mas nada aconteceu. As ruas da cidade apresentavam o silêncio de uma pré-guerra.

—Não entendo —Arlington disse se levantando do sofá. —Por que continua escondido? O que está esperando para agir? —Colocou suas mãos atrás das costas e caminhou pela sala tentando encontrar uma resposta coerente.

—E se estivermos errados? —Petey interrompeu suas divagações. —E se o rapaz não lhe interessa? —acrescentou.

—O que quer dizer? —voltando-se para ele, o marquês perguntou intrigado.

—E se o verdadeiro alvo do Khar for Sabrina? Nunca consideramos essa possibilidade. Lembre-se que alguns anos atrás, esteve prestes a descobrir quem ele era, em duas ocasiões —apontou com um halo de tristeza.

—Mas não conseguiu —Arlington murmurou.

—Porque cometeu o erro de confiar em quem não devia —Babier interveio apertando seus punhos.

Durante alguns segundos, Theodore considerou essa alternativa. No entanto, algo lhe dizia que não era ela o importante, e sim o rapaz. Mas o raciocínio de Abraham tinha sua lógica.

—Puseram vigilância no Pleasure? —Arlington perguntou.

—Sim, milorde. Três de meus homens vigiam o clube —informou Babier.

—E outro segue os passos da Sabrina —Petey revelou.

—E?

—Nestes dias visitou várias vezes uma costureira, tomou chá com a viúva do Duque de Menderly e esta manhã visitou Tattersalls. Parece que se interessou por um frísio —Babier declarou.

—Sim, eu sei. Me pediu conselho sobre seu vendedor. Mas não me interessa a compra de um cavalo, mas sim todo o resto. Tem algo a dizer sobre Lady Menderly? —perguntou com urgência o marquês olhando a Petey, pois ele era o perito em conhecer todos os meandros da aristocracia.

—Não, excelência. Essa mulher ficou viúva poucos meses depois de se casar e sua vida tem sido bastante tranquila. A única coisa que desperta certo interesse entre a sociedade é saber como foi capaz de sobreviver durante dez anos à pobreza que lhe deixou o duque —Abraham afirmou.

—Que uma viúva use seu corpo para conseguir a proteção de um amante é irrelevante para este caso —Theodore murmurou.

—Durante todo esse tempo? —interveio Babier, pois ele tinha o pressentimento de que a viúva, que mostrava um rosto misericordioso, não era tanto assim.

—O meu terceiro irmão construiu uma casa para a amante ao lado da residência onde vive com a mulher e os filhos —apontou Arlington com desagrado.

—Nunca entenderei essas atitudes tão lascivas e desonestas —Babier resmungou.

—Vamos nos concentrar no importante! —clamou o marquês desesperado. —Quais são as opções? Quem pode ser o próximo alvo dos Terinthians: Lionel ou Sabrina?

—Se o Khar pensa que Sabrina está na cidade à procura dele, pode esperar pelo momento certo para atacá-la —Abraham expressou. —Mas se for o rapaz, devemos descobrir duas coisas: o que lhe interessa nele e por quê?

—Temo que o filho de Eugine Krauss nunca tenha sido seu interesse —refletiu Arlington com pesar porque, se estavam certos, havia posto Sabrina de novo em perigo.

Pôde ser salva a primeira vez graças à rápida intervenção de Babier, no entanto, correria agora o mesmo destino? Não. O Khar não dava segundas oportunidades.

—Então, concluímos que Sabrina é o alvo? —Abraham perguntou olhando para ambos os homens.

—Vamos agir como se fosse —determinou Theodore se sentando. —Encontre uma maneira de monitorá-la sem levantar suspeitas —ordenou a Babier. —Não quero que descubra nada do que falamos ou enfrentará sozinha a esse bárbaro.

—Só quer protegê-lo, como você fez ao tirá-la do orfanato —Petey apontou com perspicácia.

—Não quero minha proteção, mas a dela! —exclamou Arlington com o desespero próprio de um pai.

—Não se preocupe, milorde. Esta noite deixarei um bilhete debaixo do seu travesseiro para que possa me encontrar na estufa. Tenho certeza que não resistirá algumas horas de treino —expôs Babier acariciando o cabo de sua adaga.

—Na adega encontrará o melhor arsenal que disponho, pegue as armas que precisar e tire-as com discrição. Mesmo que os servos tenham sido contratados por Sabrina, duvido muito de sua lealdade —lhe indicou o marquês com serenidade.

—Assim será —disse Babier levantando-se do sofá. Fez uma inclinação para o marquês, olhou para Petey e os deixou sozinhos.

—Continua duvidando? —perguntou Abraham quando ouviu a porta fechar.

—Do homem que conseguiu manter sua identidade por mais de duas décadas, desconfio até mesmo de sua própria existência —Arlington afirmou.


XIV


Desde que conheceu Lorde Haydeen, Lionel adotou a atitude de cão de guarda. Não tirou a mão direita de suas costas salvo quando dançou com aqueles cavalheiros que se aproximaram de seu falso marido para pedir-lhe permissão. Ainda assim, sentia como seus olhos azuis seguiam cravados nela. Os únicos momentos que aquela figura hercúlea relaxou foram os minutos que durou a quadrilha com a Viscondessa de Hasherby, que reclamou aos músicos por não ter lhe dado o prazer de tocar um minueto. Devido a esse comportamento opressor, quando perguntou se queria voltar para Riseway, ela sorriu de orelha a orelha, colocou a mão em seu braço e conduziu-o decididamente até os anfitriões para se despedir.

Pensou, tolamente, que sua atitude mudaria uma vez que abandonasse a festa, mas se equivocou. Dentro da carruagem havia mais silêncio do que durante um funeral. Nos primeiros dez minutos de viagem, para quebrar a atmosfera desconfortável que os rodeava, queria perguntar se havia descoberto algo sobre o Khar, mas acalmou seu desejo. Ela mesma deduziu que não havia obtido nenhuma informação ou então a teria deixado sozinha para investigar.

Olhou-o de relance e percebeu que continuava chateado. Os braços cruzados no peito, o olhar perdido e a distância que manteve entre eles eram sinais inequívocos de seu mau humor. Abriu a boca para expressar alguma banalidade sobre os convidados ou sobre a decoração barroca do salão onde se celebrou a velada, mas a fechou ao supor que só obteria um grunhido. Estaria irritado por dançar com o antigo pretendente de sua mãe? Talvez não fosse raiva, mas preocupação ou intriga. Temia que ele perguntasse por que Kimberly o apresentou ao dito cavalheiro. Mas sua amiga só quis ajudá-la a esclarecer o que havia acontecido com lady Gable e, assim que teve a oportunidade, lhe deu.

Para sua grande tristeza, o homem não esclareceu nada, exceto que na noite em que fariam o anúncio do noivado, Eugine disse-lhe que não podia lhe fazer mal, que o amava como a um irmão e que tinha entendido que o amor era muito diferente do carinho. Por quem se apaixonou? E porque deixou Londres no dia seguinte? Continuava sem decifrar essas incógnitas sobre a mulher. Também não lhe revelou nada a breve história que Richard lhe contou sobre o avô de Lionel: que se casou com a idade avançada de quarenta anos, que sua esposa só lhe deu uma filha, que o título de conde voltou à coroa por não ter família, nem descendentes do sexo masculino e que, apesar de toda fortuna que fez antes de se casar, isso desapareceu devido a um mau investimento.

—Se Eugine tivesse se casado comigo, seguiria sendo uma dama honrada e jamais teria passado necessidades. Não entendo como, depois de todo este tempo, continuam a chamá-la lady Gable. Como bem sabe, desde que seu pai morreu, deveriam chamá-la senhorita Krauss ou senhora... —lhe disse com bastante maldade.

Aquelas palavras a aborreceram muitíssimo por várias razões: a primeira foi que ninguém devia questionar a honorabilidade de Eugine e por esse motivo sempre a chamaram lady Gable. A segunda razão foi que nunca teve necessidades porque viveu sob a proteção do príncipe até morrer. Por sorte para ela, não tinha casado com aquele insípido.

—Graças a Deus! —exclamou sem conseguir evitar quando a carruagem parou em frente à residência.

Lionel semicerrou os olhos para ela até que o cocheiro abriu a porta. Em seguida, ajudou-a a descer e acompanhou-a até à entrada sem dizer uma só palavra.

—Onde está o meu pai? —Perguntou ao mordomo sem olhar para ela.

—Em seu escritório —respondeu.

Sem sequer lhe desejar boa noite, caminhou a passos largos para o escritório.

Sabrina, enquanto oferecia os acessórios para Vanther, o viu partir. Por que procurava Arlington há essas horas? Falaria sobre sua dança com lorde Haydeen ou talvez tivesse alguma informação sobre o Khar que não compartilhou com ela? Intrigada, desejou se apresentar no escritório e saber que resposta era a correta, mas admitiu que o melhor para eles era permanecer um tempo separados. Além disso, qualquer que fosse o motivo pelo qual precisava falar com o marquês, não era da sua conta. Ela estaria o resto da noite ocupada fazendo conjecturas sobre quem poderia ser o homem por quem Eugine se apaixonou, por que motivo deixou Londres e o mais intrigante da história, onde se escondeu e o que tinha sido dela até que apareceu na corte.

—Minha donzela está acordada? —perguntou olhando para o andar superior.

—Sim, milady.

—Que venha para o meu quarto o mais rápido possível —pediu antes de levantar o vestido até os tornozelos e subir as escadas.


Theodore não saiu da janela até que os dois desceram da carruagem e confirmou que estavam bem. Deduziu, pela atitude que mantinham, que a noite não tinha saído tal como esperavam. Não se importou. Depois da conversa com Abraham e Babier, a única coisa que o interessava era confirmar que Sabrina estava voltando para Riseway em segurança. Enquanto caminhava para o sofá, ele ponderou a conclusão a que chegaram. Se esta era verdadeira, a missão terminaria nessa mesma noite. Não podia permitir que Sabrina caísse nas mãos do Khar novamente porque tinha certeza de que desta vez ela não sobreviveria.

Antes de se sentar, encheu seu copo de licor e tomou um longo gole. Cada vez que se lembrava de como Babier a encontrou e as orações que ele realizou ao pé de sua cama para que Deus a salvasse da morte, sentia uma pressão muito forte no peito. Não era sua filha, certo, mas a amava como tal desde a primeira vez que o olhou. Nunca imaginou que a pirralha que se apresentou no escritório do diretor do orfanato, com uma aparência lamentável depois de brigar com um menino muito mais velho que ela, se tornaria a pessoa mais importante para ele.

Assim que se sentou, ouviu Lionel falar. Sua voz não expressava calma, mas fúria. O que teria acontecido na festa? Sua ideia de uma noite tranquila seria errada? Ele só esperava que o motivo daquela raiva não tivesse nada a ver com algum ato ou decisão imprudente de Sabrina...

—Arlington —disse abrindo a porta sem bater.

—Lionel! —respondeu levantando-se. —O que aconteceu?

—Que gostaria de saber —ele murmurou, entrando na sala em apenas cinco passos.

—Tem informações sobre o Khar? Já se apresentou na festa? —perguntou intrigado.

—Não deu nenhum sinal de vida —expressou quando se aproximou. Observou que havia um copo meio vazio na mesa do marquês. Sem perguntar, pegou a garrafa de conhaque, encheu-o e, em seguida, serviu-se de um. —Lorde Haydeen estava na festa —comentou depois de tomar um longo gole.

—Essa é a razão da sua raiva? —Theodore recebeu um grunhido em resposta. Mais tranquilo, voltou a sentar-se, aceitou a taça, com a conversa que essa aprovação acarretaria, e olhou para Lionel. —Como Sabrina disse, a festa dos Hasherby é a mais importante da temporada e ninguém quer perder, incluindo Haydeen.

—Lady Menderly apresentou-nos e, depois de me dizer que precisava falar contigo, pediu à Sabrina para dançar e ela aceitou —murmurou pouco antes de tomar a decisão de beber o licor de um gole e continuar a beber até ficar bêbado.

Era mais adequado, para todos, que sua mente deixasse de pensar nas mil desculpas que encontrou para retornar à residência dos Hasherby e fazê-lo pagar as calúnias que estendeu sobre sua mãe e a ousadia de tocar em Sabrina.

—Imagino que não gostou de conhecê-lo —deduziu com calma o marquês.

—O que teria feito no meu lugar? Caso não saiba, minha mãe foi forçada a deixar Londres pelo discurso idiota que fez —disse apertando a mandíbula e a haste da taça ao mesmo tempo.

—Era verdade? —Arlington perguntou sem se alterar.

—O que? —afirmou Lionel estreitando os olhos.

—Que sua mãe se apaixonou por outro homem?

—Minha mãe era uma mulher muito inteligente —declarou depois de respirar fundo, —E soube desde o primeiro momento que este homem não era o certo para ela.

—Nenhum era até o príncipe aparecer —Theodore insistiu.

—Nunca se contentou com qualquer um —respondeu evitando a intenção perspicaz deste.

—Boa resposta —Arlington declarou levantando o copo.

—Sou um bom filho —Lionel disse aceitando o brinde.

—Como dançou? —perguntou o marquês após provar o licor e observar o estado de inquietação de Lionel.

—Esse homem não sabe dar dois passos seguidos sem tropeçar. Não entendo como minha mãe suportou sua presença —comentou com repulsa.

—Não me refiro a esse patife, mas a Sabrina. Se comportou corretamente?

—Não tenho nada para reclamar —afirmou, enchendo seu copo novamente. —Mas é verdade que passei a noite inteira cuidando da sua relação com aquela Lady Menderly —indicou irritado. —Não entendo por que teve a ideia absurda de nos apresentar a Haydeen.

—Tenho certeza que aquela pobre mulher não teve escolha. Assim que Richard fosse informado de que meu filho estava entre os convidados, ele daria um jeito de se aproximar de você —Arlington declarou recostando-se no sofá.

—Sim. Como lhe disse, deixou muito claro que deseja vê-lo —explicou. —Por que precisa falar com você?

—Quer que façamos um acordo entre sua fábrica de algodão e a minha. Mas jamais aceitarei. Não confio nos seus propósitos —Theodore esclareceu.

Aquelas palavras foram um calmante para Lionel. Passou a noite inteira odiando Sabrina, presumindo que ela estivesse perguntando sobre o passado da mãe e que tivesse pedido à viúva que a apresentasse a Haydeen. Agora, depois de ouvir o marquês, entendeu que tudo tinha sido uma estratégia deste e que lady Menderly olhou para Sabrina daquela forma, para lhe pedir desculpa pelo que ia fazer.

Maldita cabeça ruim! Tinha perdido a oportunidade perfeita para descobrir quem era realmente Sabrina Ormond e desfrutar de sua companhia.

—No que está pensando? —Arlington perguntou depois de observar Lionel ponderar silenciosamente por um pouco mais de cinco minutos.

—O que sabe sobre Lady Menderly? —Desviou rapidamente o assunto.

—Ela era uma jovem muito bonita. Durante a temporada social de mil setecentos e noventa e oito muitos cavalheiros tentaram conquistar seu coração, mas ela não estava procurando por amor, mas fortuna. —Respirou fundo, forçou sua mente a se lembrar daquele tempo distante e continuou. —Basile apareceu no final da temporada. Sua chegada causou polêmica entre as mães de filhas casadouras, pois havia rumores de que os bens do duque eram incontáveis. Obviamente, Kimberly procurou uma maneira de chegar até ele. Mas a verdadeira história do duque de Menderly surgiu quando se casou.

—Estava arruinado? —Lionel concluiu.

—Completamente —Arlington disse com um grande sorriso ao confirmar que Lionel estava muito desconfiado. —O dote que recebeu quando se casou não pagou suas dívidas.

—Quando morreu? —perguntou enquanto enchia seu copo, embora desta vez ele não bebesse tão rapidamente.

—Três meses após a noite de núpcias. Pelo que entendi, nas últimas duas semanas ele esteve na cama. O médico nada pôde fazer para salvar sua vida e Lady Menderly ficou viúva. A partir daí, não sei nada sobre ela. Embora deduza que sobreviveu todos estes anos graças à proteção de seus amantes. Como já te disse, muitos cavalheiros a desejavam e continuam desejando.

—Entendo... —murmurou. Pelo menos ele sabia a identidade de um deles. No entanto, estava preocupado em não saber quanto tempo durou essa relação ou se ainda perdurava.

—Te preocupa sua amizade com Sabrina? —o marquês quis saber.

—Antes de ouvi-lo, sim, porque tive o pressentimento de que estava tentando descobrir sobre o passado da minha mãe —foi sincero.

—Com que motivo faria uma coisa assim? —Arlington perguntou se levantando do sofá.

—Para saber mais sobre mim? —Lionel respondeu estreitando os olhos.

—Sabrina não está interessada em nenhum homem, exceto no Khar —apontado com sinais óbvios de preocupação.

—Como todos —resmungou.

—Sim, mas ela tem um motivo diferente do nosso —alegou se colocando na frente de Lionel. Cruzou os braços, se apoiou na borda da mesa e olhou para ele. —Abraham te falou alguma vez sobre a viagem que Sabrina fez a Paris?

—Essa história responderia às marcas que ela esconde em seus pulsos? —perguntou, se mexendo desconfortavelmente no sofá.

—Sim —respondeu com um longo suspiro.

—Sabe como e quem fez isso? —insistiu.

—Sim —Theodore afirmou novamente.

—Deveria exigir que me contasse a história e me revelasse a identidade da pessoa que a feriu?

—Só se estiver interessado em conhecer a mulher que finge ser sua esposa —Arlington manifestou sem deixar de olhá-lo.

Queria ouvir? Queria descobrir o que lhe tinha acontecido antes de aparecer em sua vida e entender o motivo de sua obsessão por capturar o Khar?

Observou durante alguns segundos o marquês e depois desviou o olhar para a garrafa de licor. Se descobrisse o que havia acontecido com ela, não tinha dúvidas de que seu ódio pelo Khar aumentaria. Só de lembrar que alguns capangas apareceram em sua casa e a atacaram, fazia com que a besta que tinha dentro rugisse.

«Lorde Besta», lembrou-se do nome que lhe tinha chamado. E não se enganava. Ele era um lorde, apesar do fato de seu avô não poder lhe conceder o título que merecia, e uma besta, porque aquele era seu sangue. Se confirmasse que tinha machucado Sabrina, que as marcas que ela escondia foram feitas por ele, ninguém poderia impedir seu desejo de fazê-lo pagar por sua dor. Porque Sabrina, apesar de tudo o que fazia para evitá-lo, ocupava seus pensamentos desde o dia em que a conheceu.

Mas tinha alguma chance de conquistar seu coração frio? Não. Nenhuma. Cada vez que se aproximava, ela se afastava. Cada vez que colocava a mão em suas costas, seu corpo ficava tenso. Seus lábios tremiam ao olhá-lo e seu pulso acelerava ao tocá-lo. Esses sinais não lhe bastavam para assumir que não lhe agradava e que sentia repulsa por sua pessoa?

«Uma mulher que sofreu por amor nunca se recupera. A única coisa que deve fazer o homem que a ama é ser paciente», lembrou as palavras de sua mãe.

Lionel se levantou, serviu-se de outra bebida e disse por fim: —Conte-me.

—Tem certeza?

—Totalmente—declarou com firmeza.


XV


«Conheceu Pierre Dupont aqui em Londres. A história que ele espalhou sobre sua vida era bem plausível: um jovem francês que herdou dois navios de seu pai e estava procurando contatos ingleses para fazer fortuna. Mesmo assim, ordenei a ela que o investigasse e, para poder fazer seu trabalho, teve que conhecê-lo. Não sei se os sentimentos de Dupont eram sinceros antes de descobrir quem ela era, mas se propôs a conquistar seu coração e conseguiu. Sabrina se apaixonou ao ponto de me pedir para libertá-la do acordo com a organização. Mantivemos uma discussão acalorada porque me neguei a dar-lhe a liberdade que exigia. Pode me chamar de egoísta se quiser, mas desde a primeira vez que senti o toque de sua mãozinha na minha, prometi que cuidaria dela como se fosse minha filha. Logicamente, agiu como tal. Vários dias depois, fugiu com Pierre. Pensou que se afastando do meu lado conseguiria a vida da qual tanto lhe falou. Graças a Deus, Babier viajou com ela e me manteve informado de tudo. Viveram um mês de sonho. Até o próprio Babier pensou que o amor entre eles fosse real. Mas essa ideia desapareceu quando uma noite começou a se sentir indisposto. Deram-lhe tanto láudano que quase morreu. Ainda se pergunta como fizeram isso sem que desconfiasse de nada ou de ninguém. Seja como for, aqueles que decidiram assassiná-lo não conseguiram. Só passou dois dias dormindo. Ao acordar e temendo o pior, entrou no dormitório que ambos compartilhavam e confirmou sua suspeita: ela não estava. Perguntou ao escasso serviço que Dupont deixou na casa e estes lhe explicaram que o casal tinha decidido voltar a Londres. Ele sabia que essa versão era mentira e que Sabrina continuava na cidade. Procurou-a sem descanso durante uma semana. A angústia aumentava e a esperança de encontrá-la com vida diminuía. Ainda assim, não desistiu. Disfarçado de mendigo, percorreu as ruas mais pobres e perigosas da cidade. Tinha o pressentimento de que nelas encontraria uma pista que o conduziria até a moça. Assim foi. Na porta dos fundos de um bordel, ele ouviu uma madame recusar a encomenda de enviar seis de suas melhores mulheres para um castelo fora de Paris. Não pensou duas vezes e, depois de pegar todas as armas que guardava, apareceu naquele lugar. Estudou a área e entrou na troca de turno. Depois de matar todos, entrou na masmorra escura. Ficou horrorizado ao vê-la e pude entendê-lo, porque quando chegaram a Londres, sete dias depois de libertá-la, ainda não acreditava que aquele rosto e aquele corpo fossem da minha doce Sabrina».

Naquele momento, Arlington parou de falar. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Ele piscou, tomou um longo gole de sua quarta taça e continuou.

«Depois de confirmar que respirava, cortou as cordas que seguravam seus pulsos e ficou petrificado ao ver que ela tentou alcançar suas veias com a única arma que possuía: seus dentes. Enquanto a tirava de lá, Sabrina só pôde sussurrar-lhe quatro palavras: desejo matá-lo eu mesma. Mas não era hora de realizar sua vingança. A prioridade era salvá-la. Durante a viagem de carruagem para Calais, onde embarcariam em um navio da ordem, ele lavou e cuidou de suas feridas. Mas a febre das infecções estava cada vez mais grave. Quando apareceram em minha casa, fiquei paralisado ao vê-la nos braços de Babier... Foi Abraham quem ordenou aos criados que preparassem seu quarto e que chamassem o senhor Levy, o médico que trabalha para nós. Andei atrás deles em silêncio e confuso, porque a última notícia que recebi dela só mencionava que estava feliz. Ao conhecer a verdade, despertei do choque. Meu ódio por Dupont superou minha sanidade e desejei me vingar. Mas Babier me falou sobre a promessa que fez a Sabrina e desisti. Cada dia que ficou na cama, me encarreguei de lembrá-la que não devia se render à morte, que não só tinha que lutar para sobreviver, mas também para matar o homem que a traiu. Enquanto isso, Abraham organizou uma busca para descobrir a verdade sobre Dupont. Descobrimos que era um espião enviado pelos jacobinos e cuja única missão era levar o Khar diante deles. Logicamente, avisei a organização do ocorrido e estes tomaram as medidas correspondentes para se protegerem. Embora os dias passassem e não acontecia nada estranho. Isso nos confirmou que, apesar de tudo o que sofreu, ela não nos delatou.

No dia em que Sabrina abriu os olhos e pôde falar, contou-nos tudo o que tinha acontecido antes da tortura. A única diferença entre a sua história e a nossa, foi que ela pensou que Pierre era inocente, que o Khar o obrigou a trabalhar com ele e, deixando-se levar pelo que lhe ditava o seu coração apaixonado, contou-lhe quem ela era. A partir desse momento, Pierre planejou matar Babier e torturá-la até que lhe desse a informação que os Terinthians tanto desejavam. Mas ela não lhes disse nada...

Quando conseguiu se levantar da cama sem se curvar com a dor dos ferimentos, exigiu que Babier a treinasse como se fosse um soldado. Até esse dia, não tinha muita perícia com as armas, talvez porque me encarreguei de não exigir-lhe missões perigosas. Dez meses depois, tornou-se a assassina que agora conhece e foi procurá-lo...».

Lionel levou as mãos à cabeça e as passou pelo cabelo com fúria. Tinha deduzido, por tudo o que escutara anteriormente, que a história não lhe agradaria, mas jamais pensou que esta lhe provocasse tanto ódio e dor. Felizmente para Pierre, tinha morrido nas mãos de Sabrina, ou naquela mesma noite o teria adicionado à lista de seus próximos objetivos para eliminar.

Levantou-se da cama e perambulou pelo quarto inquieto, recordando as últimas frases de Arlington: «Ela nunca nos explicou o que lhe fizeram, mas Levy contou-nos, horrorizado, que as feridas que encontrou no abdômen a deixariam estéril». Que diabos lhe tinham feito? Que tipo de tortura a submeteram? Apertou o punho de sua mão direita e golpeou uma das paredes de seu quarto. Aquele bastardo não sabia o que era a piedade e, desde aquele instante, ele tampouco. Se tanto ansiava por seu sangue, o teria.

Deu vários passos para trás, olhou a porta que separava os quartos e caminhou decidido até lá. Precisava vê-la, falar com ela e que sua voz acalmasse esse estado de loucura que sentia percorrer seu corpo. Caso contrário, sairia de lá para procurá-la e temia que essa forma irracional de agir não o ajudaria a conseguir seu objetivo.

—Sabrina, está vestida? Posso entrar? —perguntou ao deslizar os pinos dos ferrolhos. — Desejo conversar contigo sobre minha atitude durante a festa. Não fui o melhor acompanhante que podia desejar —alegou apoiando a testa na porta. — Não quero que pense que me comportei dessa forma porque continuo irritado pelo comentário que fez sobre minha mãe. Entendo que não a conheceu e aceito suas desculpas.

Mas não ouviu nada. Só havia silêncio. Estaria dormindo? Muito lentamente, girou a maçaneta e entreabriu a porta. Ao entrar, sua fragrância doce e fresca o recebeu. Fechou os olhos e ficou ali, parado alguns segundos, notando como uma estranha paz acalmava os batimentos agitados de seu coração. Depois de abri-los, olhou ao seu redor. Aquilo não se parecia em nada com o quarto do clube. Era muito rude para uma mulher e apenas encontrou objetos femininos, como se nunca tivesse sido ocupado. Mas ele confirmou, cada noite, que ela permanecia nesse quarto.

Duas velas acesas, meio gastas, iluminavam o ambiente. Olhou para a cama, esperando encontrar um pequeno vulto debaixo dos lençóis. Mas não havia nada. Ela não estava lá. Onde tinha se metido? Nervoso, porque pensou que tinha recolhido todas as suas coisas e tinha ido embora, examinou tudo o que encontrou: o vestido que usou na festa estava sobre o biombo e sua lingerie dobrada sobre uma cadeira. Andou até a penteadeira e olhou para o abridor de cartas de prata. Sabrina não saía sem ele... não parou de inspecionar o quarto até que descobriu uma nota dentro da gaveta de uma mesinha. Ao pegá-la, percebeu o forte tremor de suas mãos. Ela a teria escrito? Explicaria a razão pela qual não se encontrava ali? Sua arrogância a teria assustado? Rapidamente, ele a desdobrou. Se dissesse para onde ia, teria tempo para sair e procurá-la. No entanto, quando descobriu quem era o autor dessa nota, a serenidade voltou até ele. Embora jamais compreendesse o motivo pelo qual se comunicavam daquela forma tão estranha, entendeu que Babier lhe pedia que se reunisse com ele na estufa. Claro que ela aceitou.

Dobrou de novo a nota, deixou-a em seu lugar, voltou a seu quarto e se vestiu para uma ocasião tão especial.

«Não existe um cortejo único. Cada pessoa anseia por coisas diferentes. Por isso deve descobrir o que a mulher que te interessa gosta. Quando descobrir, dê a ela. Certamente que cairá em seus braços».


Enquanto esperava que a donzela fosse ao seu quarto para ajudá-la a se despir, sentou-se sobre a cama e pensou em lady Gable. Em seguida, Eugine foi relegada pelo seu filho e este passou a ser o primeiro e único pensamento. Parecia que todo o seu mundo havia sofrido um antes e depois de conhecê-lo... um pequeno sorriso apareceu em seus lábios quando se lembrou do dia em que lhe armou a emboscada.

Até o último momento, duvidou de sua reação. O homem que chamavam de Besta, que machucava os nós dos dedos para ganhar um prato de comida, não podia ser tão cavalheiro. Mas foi assim e ficou tão surpresa, que não soube reagir. Para lutar contra essa atração repentina se concentrou em seu cheiro fedorento, em como a sacudiu para despertá-la do atordoamento e tentou esquecer que uma mão lhe acariciou o pescoço e que seu hálito, quente e menos malcheiroso que suas roupas, tocaram suas bochechas. Resistiu a um grito quando tentou levantá-la nos braços. Felizmente, os homens que contratou agiram a tempo. No entanto, quando abriu os olhos para confirmar que o tinham nocauteado, sentiu uma sensação inexplicável. Teve a impressão de que tinha permanecido em um quarto às escuras durante muito tempo e que no instante em que seus olhares se cruzaram, a luz voltou a sua vida, aos seus olhos, ao seu mundo. Seria possível que seu próprio corpo já indicasse que ele a tiraria da escuridão? Como conseguiria?

—Milady, posso entrar? —perguntou a donzela ao bater à porta.

—Entre —respondeu Sabrina tentando não expressar em seu tom de voz o desconcerto que sofria depois de suas reflexões.

Uma vez que a moça entrou, fez uma genuflexão e a ajudou a se despir. Pressentia que seria uma longa noite, cheia de dúvidas sem resolver. No entanto, quando ficou sozinha, descobriu sob uma almofada uma nota. Antes de abri-la se perguntou quem a havia deixado ali e o motivo. Embora ao lê-la, essas incógnitas ficaram resolvidas.

«Dois pássaros negros voam sobre meu jardim. Que pena que não tenha flores dentro da estufa!».

Guardou a nota na gaveta de uma mesinha, tirou a camisola e buscou as roupas pretas de homem que usava para treinar. A proposta de Babier era perfeita. Algumas horas de treinamento fariam desaparecer toda a energia que guardava dentro de si desde que Arlington lhe pediu que se tornasse a baronesa de Riseway. Certamente que, quando não lhe ficassem forças nem para respirar, deixaria de pensar nele e suas emoções desapareceriam para sempre.

Mas se equivocou...

Era a primeira vez em muito tempo que não prestava atenção aos conselhos e movimentos que Babier lhe indicava. Talvez porque sua mente divagava sobre quando seria a próxima vez que a Besta se aproximaria dela e que emoções confirmaria ao vê-lo.

—Perdeu as forças desde que se tornou lady Riseway... —Babier afirmou esquivando-se da investida que ela lhe dirigiu. — Ou desapareceram ao tornar-se uma esposa? —perseverou.

—Sou a mesma! —ela gritou, sufocada pelo esforço.

—Acha? Porque não compartilho sua opinião. Diante dos meus olhos vejo uma mulher frágil, delicada e até bastante confortável no papel de baronesa. Gostou de fazer compras usando sua verdadeira aparência? Como vai sua nova amizade? Lady Menderly lhe disse como sobreviveu após a morte do conde? —insistiu em exaltá-la.

Irritada, se abaixou, estendeu a perna direita e o golpeou em um joelho, fazendo que este se dobrasse levemente para frente. Uma vez que Babier se inclinou, lhe deu um soco no rosto.

—A melhor defesa é mostrar fraqueza —comentou orgulhosa.

—Mas certifique-se de que seu oponente não conheça essa premissa... —ele declarou, agarrando seu pulso para torcê-lo e jogá-la no chão.

Não conseguiu, Sabrina se virou sobre si mesma como se dançasse, agarrou com firmeza o punho de sua espada e o apontou com a ponta desta nas costas.

—Touché, velho amigo —expôs com um sorriso que lhe cruzou o rosto.

—Não foi ruim. Embora eu ache que as reviravoltas têm sido... —Lionel tentou comentar no momento em que pôs os pés dentro da estufa.

De maneira automática, Sabrina tirou a adaga que guardava na cinta de sua calça e a jogou. Uma vez que soube quem tinha entrado, soltou um grito.

—Jesus Cristo! —exclamou Lionel atirando-se ao chão para que a arma não impactasse em seu peito. Cobrindo a cabeça com as mãos, ouviu muito de perto o zumbido que a arma causou ao passar voando sobre ele. Quando o silêncio voltou, levantou-se e observou o cabo da adaga subir e descer depois de se cravar na porta.

—Não devia entrar sem avisar —Sabrina o repreendeu depois de recuperar o fôlego. — Poderia machucá-lo.

—Ou matá-lo —apontou Babier com diversão.

—Estava com vontade de um pouco de ação. Não me acostumo com a vida aborrecida que tenho que levar como aristocrata —observou Lionel tirando o pó de suas roupas. Logo, fixou o olhar na roupa dela e sorriu.

Claro que não iria usar um de seus vestidos caros e decotados, nem tinha o cabelo preso em um árduo penteado, nem exalava sua fragrância fresca e suave ao passar. No entanto, ela era a mulher mais sexy e erótica do mundo.

—Com certeza encontrará mais de mil maneiras de se divertir —ela murmurou ao passar por ele.

Embora não quisesse olhá-lo, olhou e percebeu como seu coração deu um salto no peito ao observar que não havia fechado o colarinho da camisa e que havia enrolado as mangas, expondo não apenas uma boa área do tórax, mas também a força dos músculos do braço. Zangada por ter apreciado e desfrutado daquela visão sensual, arrancou a adaga da porta, colocou-a de novo na faixa da cintura e ficou ali parada.

—Possivelmente, mas em nenhuma delas encontraria a minha esposa —respondeu com tranquilidade. Depois de ouvir Sabrina bufar furiosa ao ouvi-lo, dirigiu-se a Babier, estendeu a mão para cumprimentá-lo e disse-lhe: —Boa noite, tudo bem?

—Tudo bem —respondeu não só à pergunta que expressou sua boca, mas também à que lhe transmitiam seus olhos.

—Nesse caso, podem continuar com o treinamento —afirmou cruzando os braços. — Como eu disse, preciso matar o terrível tédio que sofro —adicionou zombando.

—Tínhamos terminado —Sabrina afirmou cortante.

—Pena! Pensei que teria a ocasião de admirar essa destreza de que tanto se orgulha o marquês. Embora, pensando bem, é melhor que não o faça na minha presença. Talvez deva lhe informar que não é tão...

—Dê a ele uma espada! —gritou indignada a Babier.

—Quer fazer isso? —Ele perguntou ao Lionel.

Não precisava ouvir a resposta, o sorriso triunfante que exibiu foi mais do que suficiente. Babier caminhou até o baú que transportou para a estufa, escolheu uma espada com cabo grande, para que sua mão se encaixasse corretamente, virou-se e jogou-a.

—Algum conselho a considerar? —perguntou Lionel.

—Que não lhe alcance —Babier afirmou com zombaria.

As regras básicas para sair vitoriosa de um combate eram muito simples: manter a calma para poder estudar o adversário, dar um golpe mortal quando tivesse a oportunidade, jamais expressar dor ou confusão e, sobretudo, evitar qualquer tipo de distração. Até agora, sempre as cumpriu sem esforço, mas lutar com Lionel era muito diferente.

Era incapaz de relaxar, porque só procurava o momento de feri-lo e dar por finalizada aquela situação tão insana. No entanto, a ponta de sua espada não conseguia alcançá-lo.

Cada vez que esteve a ponto de fazê-lo, os lábios de Lionel desenhavam um sorriso tão sedutor que a paralisava. Então, aproveitava essa confusão para realizar um giro rápido e se colocar-atrás dela. Quando isso acontecia, desaparecia a guerreira que a instigava a ganhar. Escutava sua respiração agitada, a mesma que produziam dois amantes entregues à paixão mais intensa de suas vidas. Fechava os olhos, acreditando que ele reclamaria sua vitória e que o suplício terminaria. No entanto, jamais sentiu a picada da ponta de sua espada senão o calor que transmitiam as pontas de seus dedos ao passar perto de seu pescoço, suas costas, seu cabelo ou seus ombros. Mas nunca chegou a tocá-la e sua pele desejou aqueles toques. Durante os segundos que duraram essas carícias inexistentes, imaginou como agiriam na intimidade sem roupas que impedissem o contato de sua pele.

Que diabos estava acontecendo? Excitava-se com aquela situação? Como era possível que a seduzisse ver como seu corpo brilhava pelo suor? E por que seus olhos ficavam cravados nos músculos de seus braços?

O sangue ferveu em suas veias, sua temperatura corporal subiu e várias vezes ouviu sua boca soltar um suspiro interminável...

Lionel bateu o pé enquanto as espadas se cruzaram na frente de seus rostos. Ela desviou o olhar para baixo para descobrir o motivo pelo qual tinha feito isso. Ao confirmar que só queria distraí-la, levantou o rosto para gritar que era um trapaceiro, mas as palavras não saíram de sua boca. Aqueles lábios, que cada vez que sorriam lhe causavam enjoo, estavam tão perto dos seus que podia tocá-los apenas inclinando-se suavemente a eles.

Por Cristo! Que tipo de feitiço usava para fazê-la tremer? Sentindo-se desprotegida, zangada e temerosa de seus próprios desejos, tirou a adaga de sua cintura e lhe apontou no abdome.

—Jogo com desvantagem, querida. Babier só me entregou uma espada —disse com voz entrecortada pelo esforço e a excitação.

Babier? Onde estava? Quando saiu? E... por que?

—Cada um usa as armas que consideram adequadas para vencer. —Concentrou-se na resposta e fez desaparecer o medo que a invadiu ao descobrir que estavam sozinhos. Apertou levemente a ponta da adaga e foi deslizando-a para cima até que esta deixou de perfurar o tecido da camisa e alcançou sua pele.

—Qual é a minha, Sabrina? —disse sem refletir sobre a arma ou como a mão que a segurava tremia. Só se concentrou em não desviar o olhar de seus olhos, seu nariz, suas bochechas...

Sabrina não estava ciente do quão sedutora parecia naquele momento? Porque ele estava tão excitado que só buscava a oportunidade de beijá-la, de aproximar o corpo dela ao seu, levantá-la, sentir a pressão de suas pernas ao redor da cintura e levá-la para o quarto para fazer amor durante o resto de suas vidas. Mas, lembrando-se das palavras de sua mãe, sua ereção diminuiu.

—Traição —Sabrina finalmente respondeu.

—Olhe para mim e explique-me se vir em meu rosto um mínimo sinal do que diz —falou com tanta ternura que sua ordem soou como um apelo.

Sabrina observou as gotas de suor escorrendo por sua testa. O rubor de suas bochechas pelo esforço, o cabelo revolto pelos giros acrobáticos e, sobretudo observou em como a olhava. Aqueles grandes e intensos olhos azuis expressavam com franqueza que a desejava. Mas seria suficiente? Pierre a tinha olhado dessa maneira na intimidade até que soube a que se dedicava e depois disso... é verdade que havia segredos entre eles e que, ao serem revelados, só a morte aplacava o ressentimento em que seu amor se transformava. No entanto, ela e Lionel eram diferentes. Ambos viviam uma mentira e sabiam quem realmente eram. Ainda assim, não podia confiar em ninguém exceto nos três homens que impediram que morresse.

—Faça —disse para quebrar o silêncio. — Se deseja me machucar, não a impedirei. —Continuou imóvel, muda e isso o enfureceu.

Precisava que ela recuperasse a esperança que perdeu. Queria vê-la sorrir, chorar, ouvi-la gritar... E se desejasse atravessar seu peito com a adaga, que o fizesse. Arlington se encarregaria de mantê-lo com vida.

Deu um passo para trás, tirou a camisa pela cabeça, atirou-a ao chão e aproximou-se de novo dela.

—Seu cretino! —gritou.

Quando ela tentou puxar a mão, ele a agarrou pela manga e fez com que a ponta da arma pressionasse sua pele novamente.

—Por que está fazendo isso comigo? —A voz de Sabrina tremeu.

—Porque quero deixar claro que tem o controle da minha vida —admitiu sem hesitar um só segundo.


XVI


Sabrina afastou o lençol e se levantou da cama. A luta que teve com o Lionel na noite anterior lhe causou tanta confusão e excitação que mal conseguiu dormir. Também não a ajudou a conciliar o sono chegar em seu quarto e descobrir que a porta que os separava permanecia aberta. O que pretendia? Se a resposta fosse atordoá-la a ponto de não conseguir pensar em mais nada além dele, havia conseguido. Durante suas longas horas de insônia, se lembrava de tudo o que havia acontecido na estufa e seu corpo protestava contra as carícias que não recebeu. O que lhe acontecia? Realmente precisava de um homem? Sempre pensou que não voltaria a sentir esse tipo de necessidades. Há seis anos que não desejava ser tocada, beijada ou mesmo... não. Esses desejos eram irreais e devia afastá-los de sua cabeça porque só lhe causariam problemas.

Não se lembrava para onde a levou aquele absurdo amor?

Apesar de suas negativas, apesar do esforço que realizou para reviver aquele tempo, sua mente ficou em branco. Como se nunca tivesse existido, como se aquele esquecimento a incentivasse a se dar outra oportunidade.

Amaldiçoou em voz baixa, caminhou com decisão até a porta que ambos compartilhavam e a abriu com o propósito de gritar-lhe que não voltasse a lhe dizer que sua vida dependia dela. No entanto, quando o viu deitado sobre o leito, com os braços estendidos ao longo do colchão e cobrindo-se da cintura para baixo com a fina colcha, seu desejo por ele se intensificou. Deu um passo para trás e se escondeu atrás da moldura da porta para seguir observando-o em silêncio. Entendia o motivo pelo qual seu corpo o desejava. Lionel era um homem muito bonito, sedutor e terrivelmente perigoso. Cada poro de sua pele exalava paixão e risco. Por esse motivo, qualquer mulher cairia a seus pés.

Mas ela não podia ser essa mulher...

Relutantemente, desviou o olhar de Lionel e o fixou na janela. Logo amanheceria e ambos adotariam de novo o papel de lorde e lady Riseway. Que planos teriam para hoje? Não conversaram sobre isso. Na verdade, mal tiveram tempo para falar sobre esse assunto. Os poucos momentos que permaneceram sozinhos, exceto na estufa, sempre discutiram. Talvez tivesse chegado a hora de descobrir algo mais sobre aquele homem. Talvez pudesse lhe tirar alguma informação sobre sua mãe e esclarecer algumas incógnitas. Olhou pensativa para Lionel. Gostaria de dar um passeio com ela por Hyde Park? Pedir-lhe não seria estranho. Muitos casais faziam isso e eles eram um, enquanto durasse a farsa. Um sorriso travesso apareceu em seus lábios ao ver um vaso sobre a cômoda. Não lhe disse que ela era a dona da sua vida? Bem, levaria suas palavras muito a sério.

Decidida, percorreu o interior do quarto sem fazer barulho até ficar diante da grande jarra de porcelana. Seu sorriso se ampliou ao descobrir que estava cheia de água. Agarrou-a com as duas mãos, dirigiu-se para a cama e justo no momento que pretendia derramar todo o conteúdo sobre ele, Lionel abriu os olhos, virou-se com rapidez sobre o colchão e pôs-se frente a ela.

—Bom dia esposa. Não acha que é um pouco cedo para meu banho? —perguntou com diversão.

Não foi capaz de contar os segundos que passou imóvel, observando-o enquanto segurava o vaso nas mãos. Mas imaginou que foram muitos porque teve tempo de admirar a sombra de sua barba crescente, a força de seus ombros, a tensão dos músculos de seus braços, o perfil de seus lábios e os perfeitos arcos das sobrancelhas. Quando seus olhos passaram por ele, como se fosse o próximo alvo, se fixaram no olhar azul, que expressava não apenas satisfação por ter interrompido sua travessura, mas também desejo quando a olhou em sua camisola e seus cabelos soltos. Atordoada por como seu corpo reagia, pois seus pelos se arrepiavam tentando tocá-lo e senti-lo, se virou sobre os pés descalços e andou até o dormitório. No entanto, não conseguiu alcançar a porta. Lionel pulou da cama, a seguiu e se colocou atrás dela. Sabrina fechou os olhos e pressionou o vaso com força contra o peito, sentindo sua presença, ouvindo sua respiração, sendo consciente de que seu hálito quente acariciava seus cabelos. O que queria fazer? O que seria correto?

—Sabrina —ele disse em um sussurro rouco.

Ela franziu a testa, como se ouvir seu nome lhe causasse muita dor. Respirou fundo e tentou dar um passo à frente, mas não conseguiu. Continuava imóvel. Seu corpo e mente forçavam-na a permanecer ali, como se sua vida dependesse dessa proximidade. Não a de Lionel, mas a sua.

—Me diga o que quer de mim —continuou a lhe falar em voz baixa e suave, para não afastá-la.

Não respondeu, porque nem ela mesma sabia o que responder. A batalha que lutava não tinha um vencedor. Desejo e indiferença ficaram em tabelas para que ela escolhesse a opção correta. Separou lentamente os lábios para dizer que não queria nada dele, mas juntou-os novamente quando Lionel colocou as mãos abertas perto de seus braços. Como fez na estufa, estas a percorreram sem tocá-la.

A agonia aumentava, a loucura, o desejo e a necessidade, também.

Abriu os olhos e encontrou apenas névoa ao seu redor. A paixão começava a cegá-la para que não fosse ciente do que podia acontecer. Quando pretendeu se virar, percebeu o calor que radiavam as grandes palmas em suas coxas. Continuava sem tocá-la, embora ela notasse essas carícias atravessando o tecido da camisola. Seu estômago se contraiu, como se fosse vomitar. Por que era tudo tão difícil?

—Saia agora mesmo, por favor —lhe pediu depois de colocar a testa sobre seu cabelo. — Afaste-se antes que o meu controle desapareça —acrescentou com voz entrecortada pelo desejo.

Sabrina notou seu batimento cardíaco na garganta. Um forte tremor a invadiu. Suas mãos começaram a suar e a força em suas pernas estava diminuindo. Era ela quem perdia o controle, não ele. Deu três passos em frente, acreditando que ao se distanciar recuperaria a serenidade. Não foi assim. Seu tormento aumentou ao deixá-lo para trás, ao não ouvi-lo respirar, ao não poder notar suas mãos percorrendo sua pele. Virou-se para comentar alguma tolice que rompesse esse magnetismo. Entretanto, quando seus olhares se encontraram, decidiu que sentimento ganhava a batalha.

Abriu lentamente as mãos, o vaso escorregou, caiu no chão e a água dentro se espalhou. Não baixou o olhar para verificar o alcance do desastre. Estava tão absorta na paixão que expressavam os olhos azuis, que não podia olhar para nenhum outro lado.

—Sabrina —Ele repetiu como uma súplica.

—Lionel! —exclamou ao saltar para ele.

Seus fortes braços a receberam enquanto suas bocas se beijavam com voracidade. Mostraram-se desesperados e descontrolados. Lionel ergueu-a, tal como desejou fazer na noite anterior na estufa, e seu prazer aumentou ao sentir a pressão das pernas ao redor da cintura e o calor que emitia seu centro. Caminhou com ela pelo quarto sem parar de beijá-la até que se aproximou da cama. O que tinha que fazer para que Sabrina não fugisse aterrorizada? Finalmente, descartou a ideia de colocá-la no colchão. Apoiou-a em um dos dosséis da cama e a manteve lá até que constatou como o desejo se tornou tão forte que seu corpo enfraqueceu. Estaria preparada? Confiaria nele o suficiente para se mostrar sem medo?

Embora não quisesse que o maravilhoso momento terminasse, devia agir tal como ela necessitava. Não poderia suportar seu olhar de reprovação se ambos tomassem o caminho errado ou, no pior dos casos, acordar um dia e descobrir que tinha partido.

Muito devagar e odiando-se pela decisão que tomou, deslizou-a lentamente por seu corpo até que seus pés tocaram o chão, aconchegou com ambas as mãos seu rosto e a incentivou a olhá-lo.

Seus olhos...

Aqueles lindos olhos verdes brilhavam devido à paixão que o beijo despertou e se avivaram pelas carícias que lhe ofereceu. Nunca pensou que a sua pele queimasse, mas sob o toque das mãos da Sabrina, o seu corpo transformou-se em fogo.

—Só farei o que me pedir —disse sem saber muito bem em que idioma o expressou.

Sabrina recuperou pouco a pouco o fôlego e a calma, mas seu desejo continuava latente. Este se empenhava em não desaparecer e inclusive a animava a terminar aquilo que tinham começado. O que desejava? Naquele instante só procurava a forma de apaziguar essa necessidade que percorria sua pele. Olhou-o suplicante, pedindo-lhe, em silêncio, que ele respondesse a sua pergunta.

—Diga-me —Sussurrou-lhe depois de colocar sua testa sobre a dela —e farei.

Hesitou. Embora essa indecisão apenas durasse só um segundo, foi tempo suficiente para analisar os prós e os contras do que aconteceria depois de estarem juntos. Não podia, nem queria sair ferida daquela situação. Seu coração não resistiria outra ruptura. E se o protegesse? E se só saciasse essa fome carnal que ele lhe despertou? Uma vez que a missão terminasse, não voltaria a vê-lo e qualquer sentimento desapareceria com o passar dos dias. Fossem muitos ou poucos...

—Quero que me toque e que apague o desejo que tem despertado em mim —declarou olhando em seus olhos.

—Tem certeza? —insistiu em confirmar.

—Sim.

Seu corpo recuperou a temperatura ao sentir os braços em volta dela e sua boca o sabor perdido durante a breve conversa. Ali, de pé junto à cama, Lionel a beijou com veemência e a acariciou com ardor. Ela fez o mesmo.

Em uma guerra, os combatentes lutam até a morte para ganhar. O mesmo lhes aconteceu. O quarto tornou-se a terra de ninguém e eles os soldados que unidos desejam alcançar a vitória.

As mãos de Sabrina se entrelaçaram entre as mechas do cabelo de Lionel enquanto ele percorria seu corpo com urgência. Continuava a beijá-la, continuavam acariciando o interior dessas bocas como se fosse o único propósito na vida. No entanto, quando ela sentiu a bainha da camisola tocar suas nádegas, interrompeu o beijo, parando bruscamente essa sensação de plenitude.

—Tudo o que tenho diante dos meus olhos parece-me perfeito —ele sussurrou depois de lhe beijar o pescoço, tentando apaziguar essa repentina intranquilidade. — Nada a seu respeito é feio, Sabrina.

Ela fechou os olhos. Não queria observar o horror que seu rosto mostraria ao ver as marcas em sua pele. Se ela fazia isso toda vez que se olhava no espelho, como poderia esperar que ele não? Tentou se afastar, correr até seu quarto, fechar a porta e esquecer o que havia acontecido. Mas a mulher apaixonada que vivia nela desejava ficar ali e não perder a sensação tão maravilhosa que lhe causavam aqueles lábios ao percorrer seu pescoço, seus ombros, seus lábios...

—Levante os braços, querida —pediu em um sussurro rouco. — Quero te ver. Quero te desejar mais do que te desejo agora—alegou beijando-lhe as bochechas e os lábios com ternura.

Podia recusar? Devia pedir-lhe que a tomasse com a camisola? Muitos casais faziam isso e não diminuía a paixão. Mas ao abrir os olhos e encontrar aquele olhar azul que a deixava sem fôlego, decidiu que nada importava, que aquilo não podia ser considerado uma relação e que terminaria logo. O que aconteceria se ela mostrasse suas horríveis cicatrizes? Consideraria apenas se, em um futuro, talvez muito distante, seria ou não apropriado despir-se na frente de outro amante.

Aceitou sua proposta.

Muito lentamente, como se seus braços tivessem se tornado dois blocos de chumbo pesado, levantou-os. Sua testa enrugou quando ela sentiu o tecido subir e revelar cada centímetro de sua pele. Prendeu a respiração para ouvir o que sussurraria ao vê-la. No entanto, não ouviu nada, exceto os fortes batimentos do seu próprio coração e as inspirações agitadas de Lionel. No momento em que tirou a roupa pela cabeça e sentiu o açoite de seu cabelo nas costas, quis se cobrir com as mãos. Estava nervosa, confusa, desesperada e até envergonhada.

Lionel deu um passo para trás e a observou. Quando Sabrina moveu suas mãos para cobrir a ferida de seu abdômen, agarrou-as com suavidade e as afastou. Não havia repulsão em seus olhos, nem sinais de horror em seu rosto. Ao contrário, a olhava como se fosse a mulher mais linda do mundo.

Constrangida e confusa com a reação de Lionel, Sabrina corou.

—É perfeita —disse acariciando os ombros muito lentamente. — Terrivelmente perfeita para mim —acrescentou antes de aproximar sua boca à dela e tomá-la com tal paixão, que os joelhos de Sabrina se flexionaram de fraqueza.

Não só percorreu cada cicatriz com as pontas dos dedos, mas também com a boca. Nada nela ficou sem tocar, sem acariciar ou beijar. Embriagada pelo frenesi, se deixou levar e permitiu, depois de tanto tempo, que a amassem. Porque Lionel assim se mostrou em todo momento. Cada vez que ele a virava e ficava atrás, suas mãos percorriam seu busto, seu abdômen e confirmava que não deixaria nenhuma parte de sua pele intocada até que alcançasse seu sexo. Quando isso aconteceu, o amante apaixonado e perigoso lhe causou tanto prazer que ela acabou chorando de alegria.

—Seus gemidos me deixam louco —sussurrou em seu ouvido enquanto a levava novamente ao clímax. — Tem noção de como estou excitado?

Tinha. Notava sua ereção nas costas desde o instante em que a abraçou por trás. Assim como estava consciente do propósito pelo qual a acariciava dessa forma. No início não gostou de ver-se refletida no espelho situado frente a eles. Mas acabou por satisfazê-la e excitá-la porque só refletia uma mulher levada ao êxtase e o rosto do homem que, através de seus beijos e carícias, lhe oferecia sem pedir nada em troca.

—Farei amor contigo na frente do espelho toda vez que aparecer neste quarto. Quero deixar claro o quanto te desejo e a luxúria que seu corpo desperta em mim —acrescentou beijando-lhe o pescoço enquanto as pontas de seus dedos percorriam lentamente os lábios úmidos de seu sexo. Antes que pudesse falar, ele alcançou o clitóris e o estimulou até fazê-la gritar e encolher-se. — Tão apaixonada como pensei —sussurrou enquanto ela recuperava o fôlego. — Bem-vinda à minha vida, Lady Besta.

Ao ouvir aquelas palavras. Sabrina abriu os olhos e observou a imagem que se refletia no espelho. Onde estava a vergonha e o horror que pensou ter? Seu corpo, seu rosto e seu próprio olhar não expressavam horror, mas prazer. Tal como lhe disse, ali só estava lady Besta com seu amado lorde. Com expectativa, observou como os dedos de Lionel subiram por seu abdome até ficar cravados em seus seios. Massageou-os e puxou lentamente os mamilos. Aquela leve dor intensificou seu prazer até o ponto de apoiar-se nos dedos dos pés. Logo, sentiu frio no peito e foi sua cintura que queimou. Lionel colocou as mãos lá para fazê-la se virar. Quando os dois rostos estavam de frente um para o outro, ele tomou sua boca.

Não foi um beijo suave, mas tão desesperado e tórrido que não ficou nem uma só parte de seu corpo sem umedecer.

Decidida, tirou as mãos de seus ombros e as baixou pelas costas até que estas tocaram suas nádegas por cima do tecido da calça. Apesar de não sentir sua pele, Sabrina ofegou.

—Certo, querida —disse antes de dar um passo para trás para tirar a roupa. — Hoje eu joguei com vantagem.

Absolutamente tudo nele era grande, duro e perigoso.

Mas isso não a assustou. Uma vez que voltou a se aproximar dela, suas mãos se acoplaram ao redor do firme membro para acariciá-lo. Lionel inclinou a cabeça para trás e de sua boca saiu um grunhido de prazer tão forte, que até os cidadãos que residiam em Mayfair o teriam escutado. Isso a fez sentir forte, enérgica, valente e poderosa. Qualidades que tinha perdido há seis anos.

—Não! —gritou ele quando ela acelerou os ritmos de suas carícias. — Por favor.

E Sansão se rendeu a Dalila...

Sabrina retirou as mãos, colocou-as ao redor do pescoço, aproximou sua boca e o beijou, transmitindo-lhe nesse gesto a vitalidade que ele lhe havia dado. Segundo a mitologia grega, a fênix tinha que morrer para que a próxima renascesse das chamas com mais força e esplendor. Pierre matou a fênix anterior, mas Lionel se tornou o fogo que a fez ressuscitar.

Deixou de sentir o chão nas solas de seus pés para notar a suavidade dos lençóis sobre suas costas. Seu lorde Besta a havia colocado ali sem que ela fosse consciente de que a movia. Ao abrir os olhos e descobri-lo em cima dela, um clique soou em seu cérebro. Esse fugaz som mental a fez franzir a testa.

—Te desejo... —lhe disse beijando o pescoço, os ombros, o busto e inclusive seus lábios tocaram a enorme cicatriz de seu ventre. — Preciso tanto de você —acrescentou antes de levantar a cabeça e direcioná-la, sem que ela pudesse evitá-lo, para o pulso direito.

Quando Sabrina sentiu a umidade da língua correr sobre a cicatriz, sua mente ficou em branco e seu corpo se ergueu, formando um pequeno arco. Como podia estar tão excitada? Como era capaz de definir aquele gesto como o mais erótico de sua vida? Tentou lhe comentar algo sobre a razão da marca, mas de sua boca não saíram palavras, apenas suspiros, soluços e gemidos. Estes continuaram a quebrar o silêncio do quarto ao sentir sua língua pousar no outro pulso.

—Estou tão excitado que não sei se poderei segurar o peso do meu corpo com as mãos —comentou com palavras aparentemente certas. Mas ele estava mentindo porque percebeu, quando se colocou momentos atrás sobre ela, que o brilho de seus olhos estava desaparecendo. — Quer assumir o controle da situação? —insistiu.

—Sim —ela sussurrou antes de levantar a cabeça e beijá-lo novamente.

Não estavam conscientes de quanto tempo ficaram sentados sobre a cama, beijando-se e acariciando-se. Que importância têm os minutos, as horas, as semanas e inclusive os meses quando se encontra a pessoa que compreende seus desejos ou necessidades inclusive na cama?

Assim que Lionel se deitou, Sabrina se colocou sobre ele. Acomodou seu sexo no dele e o deixou invadi-la pouco a pouco.

—Mova-se para mim, querida. Faça nossas bestas gritarem de prazer em harmonia—lhe pediu ao pôr suas mãos na cintura.

Ela fez. No princípio seus movimentos foram lentos e inclusive um pouco desajeitados, mas ao perceber a sensação das fricções em seu interior, despertou de novo nela a lady Besta. Colocou suas mãos abertas sobre o torso de Lionel, inclinou a cabeça para frente e moveu seus quadris ao ritmo que demandava seu corpo. Em nenhum momento desviaram os olhares e em várias ocasiões Lionel se levantou para beijá-la. Jamais deixaram de se acariciar. Suas arremetidas, sua posse, seus suspiros e os arrepios de seus corpos não diminuíram nem um só segundo. Tal como lhe pediu, as duas bestas se entregavam a uma paixão sobrenatural. Sabrina não soube em que momento ele apertou com as mãos seus seios, acariciou-lhe o abdômen ou agarrou-lhe os pulsos para estender-lhe os braços e que seus quadris encaixassem ainda mais. Também não o ouviu gritar ao chegar ao clímax. Talvez porque nesse instante ela também o alcançava e gritava.

Dois monstros unidos, liberando a pressão que obscurecia suas almas.

Sabrina respirava entrecortada e suas mãos continuaram tremendo, assim como o resto de toda ela. Ficou quieta, observando-o em silêncio, embriagando-se desse cheiro de sexo que não só eles exalavam, mas também o quarto. Seus lábios esboçaram um leve sorriso ao apreciar como brilhava o corpo de Lionel e o rubor de suas bochechas devido ao esforço. Na realidade, se entregaram com tanta paixão que não tinha forças nem para falar. A expressão «morrer por causa do sexo», aquela que as meninas do clube utilizavam com frequência, agora fazia sentido.

—Venha aqui! —ele disse ao pegá-la pela mão e puxá-la.

Assim que caiu sobre ele, ouviu as batidas estridentes de ambos os corações. Fechou os olhos para encontrar um pouco de calma, mas não o encontrou quando percebeu como sua pele foi acariciada novamente.

—Me prometa que todas as manhãs me acordará assim —sussurrou depois de afastar alguns fios úmidos que cobriam seu lindo rosto.

—Com um vaso cheio de água? —ela respondeu ainda sem fôlego.

—Não, nua e em meus braços —disse antes de levantar com suavidade o queixo e lhe dar um terno beijo na boca.

Depois da paixão, Lady e Lorde Besta abraçaram-se e adormeceram.


XVII


Nunca teve que se esforçar tanto para fingir uma emoção contrária à que sentia diante das pessoas. Até o momento, era considerado um intérprete insuperável. Podia falar com diplomatas ou com temíveis criminosos sem que lhe tremesse a voz. Mas aqueles que o olhavam com suspeita não eram pessoas alheias a ele senão aqueles a quem prometeu fidelidade e adoração. No entanto, não devia explicar-lhes o que tinha acontecido no quarto de Lionel. Isso era um segredo que levaria ao túmulo.

—Portanto, acha que é bastante apropriado que os vejam passeando juntos? —Petey perguntou calmamente enquanto olhava intrigado para os dois jovens.

—É muito conveniente sim —ela respondeu depois de limpar os lábios com o guardanapo. —Ontem, durante a nossa primeira dança, todos entenderam o quanto nos amamos. Por isso, não tenho dúvidas de que se perguntarão por que o casal mais importante do momento não dá um passeio pelo Hyde Park.

—Tinha outros planos para nós —Arlington afirmou, dirigindo-se a Lionel, que estoicamente não estava rindo da situação.

—Descobriram algo sobre o Khar? —Sabrina interveio novamente para que todos os olhos estivessem focados nela e longe do rosto divertido de Lionel.

—Não. Ainda está desaparecido e não sabemos como tirá-lo do esconderijo —expressou o marquês. — No entanto, temos um palpite.

—Qual? —Lionel perguntou se concentrando finalmente na conversa.

—Sabrina, precisa se arrumar para esse passeio? Este seria o melhor momento para fazê-lo. Chame sua donzela para que te ajude a escolher um dos muitos vestidos que comprou durante estes dias —disse Theodore com tranquilidade.

Não conseguiu esconder o espanto que se apoderou dela naquele momento ao sentir-se despachada. Suas pupilas se transformaram em duas finíssimas linhas, enrugou a testa, esboçou uma careta de desagrado em seus lábios e suas bochechas se matizaram de uma suave cor vermelha. O que estava acontecendo? Quando decidiram afastá-la da missão? Teriam intuído que indagava sobre o passado de Eugine e queriam avisar Lionel? Ainda que, no momento, não deviam se alarmar porque não havia conseguido grandes conquistas.

—Tem razão, milorde —falou com tanta mordacidade que os quatro homens ficaram tensos ao ouvi-la. — Tenho que me arrumar para esse magnífico, maravilhoso, prazeroso, longo e romântico passeio.

Ela se levantou da cadeira depois de jogar o guardanapo furiosamente na mesa, empurrou a cadeira com as panturrilhas e dirigiu-se com retidão e orgulho até a porta. No entanto, quando passou por Lionel, ele agarrou sua mão e a forçou a parar.

—Imploro, querida esposa, não use um vestido decotado demais. Faz muito frio lá fora e morreria de pena se adoecesse. —Depois disso, piscou-lhe um olho e soltou-a.

Na sala de jantar, até que fechou a porta, apenas seus bufos furiosos eram ouvidos. Em seguida, Lionel levantou-se, confirmou que não estava escutando, dirigiu-se para o lugar que ela ocupou antes de sair e olhou intrigado para Arlington.

—O que acontece?

—Acreditamos que é o objetivo principal do Khar —o marquês declarou com firmeza.

—Sabrina? —soltou com espanto olhando para a porta. — Por que chegaram a essa conclusão?

—Por vários motivos —continuou após se apoiar levemente na cadeira. — Como expliquei ontem, ela ouviu a voz dele na casa de Pierre.

—Também a ouviu durante a tortura —acrescentou Babier. — Pensamos que o Khar apareceu no castelo para confirmar a sua morte.

—Ou para descobrir sua identidade —sugeriu Lionel.

—Essa opção também se encaixa —Arlington apontou reflexivamente, pois ele não havia considerado tal alternativa. Então, a teoria sobre sua busca se consolidou e o medo se apoderou dele. Se Sabrina permanecesse em Londres por mais tempo, o Khar a descobriria e ordenaria que a seguissem. Isso levaria os Terinthians diretamente até eles. — Se sim, deve partir imediatamente —afirmou com determinação.

—Não! —Lionel trovejou levantando-se de sua cadeira. — Ela não vai a lugar nenhum!

Petey, Arlington e Babier se entreolharam e silenciosamente confirmaram suas suspeitas: algo tinha acontecido entre eles após o treinamento na estufa. O que quer que fosse, o jovem tinha que presumir que na vida havia coisas inatingíveis e Sabrina era uma delas.

—Tem que fazê-lo —insistiu Petey. — Se ficar, não só ela correrá perigo, mas nós também.

—Se Sabrina for embora, eu vou com ela —Lionel declarou apertando os punhos.

—Seu dever é ficar conosco e receber o título que seu pai...

—Meu pai? —Lionel o interrompeu. — Fala do príncipe? —acrescentou com um sorriso que lhe cruzou o rosto.

—Certamente —Arlington respondeu estreitando os olhos. — De quem mais falaria?

Por um momento, quis contar sua verdadeira história. Mas não o fez. Essa confissão não só frustraria seu desejo de vingança, mas a ordem, a qual Arlington pertencia, o utilizaria para chegar até o Khar. Além disso, o que aconteceria com Sabrina quando descobrisse? A resposta foi tão dolorosa que lhe oprimiu o peito ao pensar nisso. Afrouxou os punhos, olhou o marquês e disse: —Meu pai aceitará minha decisão.

—Seu pai precisa de apoio e só o conseguirá outorgando aos seus bastardos um título e uma boa posição econômica —Theodore expressou com firmeza.

—Certo, mas jamais aceitarei sua imposição —expressou tirando do bolso da jaqueta o anel que o marquês lhe deu ao conhecê-lo. —Se quiser mesmo o meu apoio, terá, mas só se me devolver o título que o meu avô usou. Uma vez que o recupere, não importa se estou em Londres ou em Luton. A coroa gozará de minha fidelidade.

—Quer se tornar o próximo Conde de Gable? —perguntou Petey bastante surpreso.

—Esse título sempre foi meu. E, quando consegui-lo, não só continuarei o legado de minha verdadeira família, mas honrarei a memória da mulher que me deu a vida e cuidou de mim até sua morte —manifestou ao jogar o anel sobre a mesa. —Agora, se não têm mais nada para me dizer, vou sair. Tenho que dar um passeio com minha esposa e protegê-la tal como lhe prometi —garantiu.

Ao ver que ninguém disse nada, inclinou a cabeça para frente e saiu do refeitório como costumava fazer cada vez que tinha pressa: a passos largos.

—Se apaixonou por Sabrina! —exclamou Arlington horrorizado.

—E ela por ele —Babier disse satisfeito em ser o primeiro a descobri-lo.

—Que tragédia! —Petey concluiu.


Sua raiva não diminuiu, apesar de sentir o conforto e o calor da mão de Sabrina em seu braço. Eles se equivocavam. Não entendia como chegaram a essa absurda conclusão, mas não era certa. O objetivo do Khar devia ser ele, salvo que não duvidasse sobre a mentira que divulgaram. Talvez não deveriam tê-lo apresentado como o filho de Arlington. Talvez tivesse sido melhor que todo mundo soubesse sua verdadeira identidade.

—Imagino que a conversa não foi de seu agrado —ao se manter tanto tempo em silêncio e tenso, Sabrina comentou.

—Algumas vezes não sou capaz de entender o raciocínio das pessoas —respondeu olhando para ela com carinho.

Não, ela não podia estar em perigo porque se estivesse, antes de chegar à noite, ele teria encontrado o covil do Khar e o mataria com suas próprias mãos.

—Se me disser do que falaram, poderei resolver suas dúvidas —disse com suspeita.

—Se te contar o que falamos, não seria um segredo —respondeu com diversão.

Sabrina bufou e ele sorriu pela primeira vez desde que saiu da sala de refeições.

—Já te disseram que é uma mulher muito teimosa? —lhe perguntou ao ouvido.

—Em meus vinte e quatro anos de idade me chamaram de tantas maneiras que não me lembro de todas —respondeu com censura ao compreender que não obteria a informação que desejava.

—Não fique brava comigo, Sabrina. Prometo que, se eu pudesse te contar algo sobre o assunto que conversamos, faria.

—Mas?

—Mas como estão errados, não desperdiçarei este precioso tempo entre nós dois mencionando tolices —disse antes de lhe dar um beijo na bochecha.

Confiava nele. Embora lhe fosse estranho e difícil de acreditar, fazia-o. Não era capaz de compreender o motivo pelo qual ao seu lado se sentia protegida, segura e confiante. Talvez essa maneira de vê-lo se devia ao que aconteceu entre eles. Ao se lembrar do que aconteceu em seu quarto, corou.

—Se tivesse uma fortuna, te daria só para saber o que está pensando —declarou parando no caminho.

Vários casais passaram próximos. Os homens tocaram a aba de seus chapéus em saudação e as mulheres curvaram suas cabeças para frente. Mas nenhuma parou para conversar com eles. Sabrina olhou de relance para Lionel e sorriu. Vestindo um terno preto não era apropriado para ele. Talvez seu valete não estivesse ciente do terror que uma imagem tão sombria causaria? Por sorte, toda essa sinistralidade desaparecia quando sorria e mostrava, com aquele leve gesto no rosto, o homem sedutor que realmente era.

—Na noite em que apareceu no quarto do clube, me disse essas mesmas palavras —respondeu desviando o olhar das duas mulheres que passaram nesse mesmo momento a seu lado e que, ao se afastarem, sorriram e murmuraram sedutoramente. — Por acaso não obteve a herança de seu avô? —perguntou sem desviar o olhar dele.

Ao confirmar que não se vangloriava, nem lhe interessavam os sussurros das damas sobre seu belo físico, relaxou e se sentiu a mulher mais afortunada de Hyde Park.

—Não —respondeu retomando o passeio para o lago Serpentine.

—Por quê? —insistiu deixando-se levar.

—Porque foi enganado e morreu na miséria —declarou irritado ao ter que lhe mentir.

Lionel olhou para frente e observou com curiosidade os casais que navegavam sobre o lago. Ela gostaria ou seria repugnante? Mal a conhecia para saber o que lhe agradava ou desgostava. Entretanto, a dúvida desapareceu de sua cabeça ao olhá-la. Seus olhos permaneciam tão abertos de emoção que pôde ver com nitidez sua bela íris verde. Não pensou nisso. Decidido, pegou-lhe numa mão e a fez correr pelo caminho até chegar à margem.

—Lionel! —exclamou Sabrina sem parar de sorrir. Colocou sua mão esquerda sobre seu chapeuzinho e ficou nas pontas dos pés para que, ao correr, suas pernas não se enredassem na saia de seu vestido azul.

Pareciam duas crianças descendo a ladeira de uma montanha. Livres, sorridentes e felizes. Continuaram correndo e sorrindo, não importando como as pessoas os observavam ou os comentários que seus comportamentos despreocupados causavam. Naquele momento era um casal realmente apaixonado.

Assim que Lionel falou com o barqueiro, voltou ao seu lado, escolheu o maior barco, ajudou-a a subir e, após fazê-lo, começou a remar.

—Este traje não é adequado para este tipo de exercício físico —Sabrina comentou após retirar o leque da retícula e se abanar.

—Na próxima vez que decidirmos dar um passeio, pedirei ao meu criado pessoal para pedir sua opinião sobre a roupa que devo usar. —respondeu brincalhão.

—Pode se vestir como quiser —disse com desdém.

—Bem, a senhora não —garantiu enquanto olhava seu decote sem dissimulação e sorrindo.

Sabrina tentou ficar com raiva do comentário, mas seus lábios não podiam eliminar o sorriso ao se sentir tão feliz. Afastou o olhar do peito do Lionel, porque só a excitava observar a pressão dos músculos sobre as roupas ao remar com tanta destreza, e se concentrou ao seu redor. Três barcos navegavam em círculos porque os cavalheiros que os conduziam eram desajeitados demais para descobrir onde estavam a direita e a esquerda. A seguir, soltou uma grande gargalhada ao perceber que, na embarcação mais afastada, era a mulher quem remava enquanto o homem que a acompanhava segurava a sombrinha.

—Está se divertindo? —perguntou Lionel, colocando os remos dentro do barco para que a corrente suave os balançasse.

—Sim.

—Fico feliz em saber —apontou satisfeito enquanto desabotoava dois botões de sua jaqueta.

—Tinha remado em outra ocasião? —quis saber.

—Muitas. Desde que completei os doze anos, minha mãe me levava a cada sábado a um lago pequeno que tínhamos perto de Royalhouse. Dizia-me que um cavalheiro devia saber remar para poder dar longos passeios de barco com a mulher a quem desejava cortejar —contou enquanto estendia as mãos para segurar as dela.

—Lady Gable era uma boa mulher, não era?

—Sim —respondeu com um longo suspiro.

Confirmava que Lionel ainda amava a mãe e que ela tinha que ter sido muito gentil, terna, compassiva e piedosa para que ainda sentisse tanto a falta dela.

—Tenho certeza que foi uma mãe amorosa, terna e forte —insistiu para que pudesse continuar falando sobre Eugine.

—Tinha muitas qualidades e entre elas as que mencionou —comentou com nostalgia.

—Como superou a difícil situação a qual seu avô a deixou? —se atreveu a perguntar.

Imediatamente, Lionel lembrou-se do dia do seu nascimento e ficou tenso. Ele não queria mentir para Sabrina. Ela não merecia ouvir uma história cheia de enganos e mistérios. O melhor para ambos era mudar o assunto da conversa. Mas de que assunto poderiam falar com sinceridade?

—Como você teria superado: com valentia —manifestou tocando-lhe com as pontas dos dedos as marcas de seus pulsos. — Quando Arlington te encontrou? Desde quando trabalha para a ordem?

—Muito habilidoso —ela apontou tentando mostrar raiva com a facilidade com que Lionel mudou de assunto. Mas estava tão confortável e relaxada, sentindo aquelas carícias gentis, que decidiu aproveitar o momento mágico.

Eles fariam mais passeios onde poderiam falar sobre Eugine.

—Vou tomar isso como um elogio —respondeu retirando lentamente as luvas. Sentindo Sabrina ficar tensa ao mostrar suas marcas à luz do dia, levou as mãos à boca e beijou-as suavemente. — Como foi sua vida, Sabrina?

—Não vou te aborrecer? —ela perguntou espantada por não tremer diante daquele contato íntimo e terno. Quando lhe perguntaria por elas? Ou... já sabia? No final, a espiã tinha sido espionada.

—Nada a seu respeito pode me aborrecer —respondeu inclinando-se para ela para beijar seus lábios.

Esse movimento fez com que o barco se agitasse perigosamente. Sabrina rapidamente retirou as mãos de Lionel e as colocou em ambos os lados do assento. Quando o barco estabilizou, os dois começaram a rir.

Não estavam mais no lago Serpentine, nem sentiam novamente os olhares recriminatórios daqueles casais que não podiam expressar tanta felicidade. Lionel e Sabrina haviam esquecido como deveriam ser e estavam se comportando como realmente eram: duas pessoas que, apesar do passado, eram felizes por estarem juntas.

—É melhor voltarmos para a margem. Esta pequena barcaça pode nos fazer uma brincadeira de mau gosto —comentou Lionel pegando de volta os remos.

—Não culpe o pequeno barco, Lionel —comentou divertida enquanto voltava a colocar as luvas.

—Então, quem devo culpar? Água do lago? Ao barqueiro? O ar de Londres? —continuou alegre ao mesmo tempo em que ouviu o primeiro respingo da água ao remar.

—A seu pai. Porque herdou sua corpulência. Embora tenho certeza de que se cuidará mais que ele —Sabrina continuou espirituosa.

Mas Lionel não gostou do comentário. Ao contrário, seu rosto se petrificou e não foi capaz de dizer nem uma só palavra até que chegaram à margem.


XVIII


Sabrina olhou para Lionel de relance e confirmou sua suspeita: se mantinha distante e pensativo desde que mencionou seu pai. Não entendia essa atitude, já que só fez referência à descuidada aparência deste. Na verdade, não tinham muito em comum. Enquanto o príncipe possuía uma altura muito convencional, Lionel era o homem mais alto que tinha visto até o momento. O tom de seu cabelo também não combinava, já que o do filho era muito preto.

Ela continuou a observá-lo em silêncio e continuou a encontrar mais diferenças do que semelhanças: o nariz pontudo, o contorno dos lábios, o formato da mandíbula e aquelas lindas covinhas que aparecia ao sorrir. Chegou à conclusão que seu temor estava infundado, já que seu aspecto físico ao envelhecer não se equipararia. Além disso, tinha certeza de que todos esses traços foram herdados de sua mãe e que por essa razão era tão atraente. Não havia razão para pensar que chegaria um dia em que se convertesse em um ser tão desproporcionado. E se ele não queria se parecer com o pai, só tinha que ficar em forma e cuidar de sua alimentação.

Suspirou profundamente, olhou para frente e considerou o que dizer para quebrar o silêncio constrangedor. Que assunto acharia interessante? Do que falaram antes da afirmação inapropriada? Ao se lembrar, voltou a olhá-lo e esperou que ele o fizesse.

—Ainda está interessado em descobrir como conheci Arlington?

—Sim —respondeu, expressando no monossílabo um halo de esperança e tranquilidade.

Por um pequeno lapso de tempo, ela se forçou a voltar mentalmente no tempo para lembrar a parte de sua história que não tinha contado a ninguém. Só esperava que a confiança e cumplicidade que se criaria entre os dois lhe ajudasse a se acalmar.

—Sei que nasci em algum lugar da Inglaterra no ano mil setecentos e oitenta e quatro. Imagino que foi minha mãe quem me deixou na porta da igreja de Santo Agostinho, em Kilburn, em um dia de agosto. A única coisa que posso te dizer dessa época, é que uma boa mulher me encontrou e que esta cuidou de mim até que se viu obrigada a me abandonar em Blending. Como pode ver, o início da minha vida é muito semelhante ao que muitas crianças inglesas vivem. —Desviou o olhar de Lionel e olhou para frente. —Nunca me irritei com a decisão de quem cuidou de mim nos primeiros seis anos de vida, mas nunca vou perdoar a mulher que me carregou no ventre por nove meses e que, após o parto, me esqueceu. Essa frieza me fez pensar que não só pôde fazê-lo comigo, mas também com outros de seus filhos. Talvez tenha irmãos sofrendo miséria por sua culpa... —Encolheu os ombros levemente e esboçou um sorriso amargo. —A vida em um orfanato não é fácil. Se adotar um comportamento submisso, pode sobreviver até os quinze anos. Se a isso se pode chamar de uma existência digna —resmungou. — Como pôde comprovar, nunca fui capaz de ser dócil e nunca suportei injustiças. —Esperou um comentário de sua parte. Ao não o obter, continuou. — Arlington não foi o primeiro cavalheiro a aparecer no orfanato para comprar uma criança. Todos os dias, entre cinco e dez pessoas passavam pela sala da diretoria em busca de criadas jovens para trabalhar em suas casas ou campos. Logicamente, os cuidadores se encarregavam de nos explicar tudo o que devíamos fazer para mostrar nossos melhores sorrisos ou aspectos. Como todos desejávamos ter uma oportunidade para abandonar as penúrias em que vivíamos, seguimos suas normas sem protestar. Três dias antes da chegada de Arlington, um de nossos tutores quis me levar ao porão para me fazer pagar todas as minhas travessuras.

—Para o porão? —Lionel perguntou inquieto, pois já imaginava o que ouviria em seguida.

—Como eu disse, a única atitude favorável que podia mostrar para não sofrer castigos era a submissão —lembrou-o.

—Diga-me agora mesmo o nome desse bastardo! —ele gritou tão alto que os casais que passaram próximo se assustaram e murmuraram sobre sua atitude impetuosa.

—Não chegou a me tocar. —Sorriu ao observá-lo tão irritado e preocupado. — Apesar de só ter oito anos, ouvi o suficiente para estar atenta ao que me cercava. Por essa razão, a primeira vez que me enviaram ao escritório do diretor para ouvir um de seus chatos discursos sobre o duvidoso futuro que nos esperava, aproveitei um momento de distração para lhe roubar o abridor de cartas que havia sobre a mesa.

—O mesmo que usa no cabelo? —perguntou interessado.

—De modo algum! —respondeu com diversão. — Aquele não era de prata, mas de ferro de baixa qualidade e muito oxidado pelo mau uso. Mas me serviu...

O sorriso que esboçou em seu rosto e o brilho de seu olhar, deixaram Lionel congelado. Quantos anos disse que tinha? Oito? O que ele fazia nessa idade? Sentia os calorosos abraços de sua mãe, dançava com ela, brincava com espadas de madeira, protestava cada vez que o obrigavam a estudar e desfrutava da proteção da rainha.

—Pode ignorar esse momento? Porque te juro que tenho vontade de procurar esse homem e arrancar-lhe a pele com as minhas próprias mãos —resmungou.

—Não seja bobo. Garanto que me defendi muito bem —respondeu com uma mistura de diversão e orgulho. — Sabe o que a ferrugem faz quando entra no corpo humano?

—Prefiro ouvir sua resposta —Lionel continuou com raiva.

—No começo acha que a ferida não foi grave. O que um pequeno arranhão no rosto pode fazer? No entanto, com o passar das horas, seu corpo age estranhamente. Leves espasmos aparecem nos músculos da mandíbula e depois passam para o pescoço, tórax, pernas... finalmente, decide se deitar sobre um colchão para suportar os tremores produzidos pela febre. Mas nada te acalma e percebe como a vida está irremediavelmente desaparecendo. Sabe o que acontece no final?

—Não —ele disse com apenas um sussurro.

—O corpo desenha um arco e não pode se mover devido à rigidez. —Sabrina ficou calada vários segundos, recordando aquele tempo. — Durante o último dia de vida, suporta todo o seu peso com a parte de trás da cabeça e os calcanhares. É, até o momento, a forma de morrer mais horrenda que já presenciei.

—Pelo amor de Deus! Por que testemunhou essa atrocidade?

—O diretor pensou que a única forma de me dar uma boa lição seria me colocando em uma gaiola e colocando-a no quarto da minha vítima. Então minha existência dependia da caridade desse bastardo —afirmou calmamente. — Mas não podia me dar de comer ou me tirar de lá porque ele estava muito ocupado tentando não morrer. Apesar dos seus esforços, ele morreu. Os cuidadores que o encontraram daquela forma tão estranha, acreditaram que eu tivesse feito algum tipo de magia negra para assassiná-lo. Assim, em menos de um minuto, passei de um animal selvagem a uma perigosa bruxa medieval. —Sorriu enquanto movia sua mão direita com desdém. —Temendo por minha vida, aproveitei o momento em que abriram a porta para escapar. Corri sem parar até chegar ao escritório do diretor. Arlington estava lá. Abri lentamente a porta e quando nos olhamos soube que minha vida acabava de mudar.

—Te comprou?

—Me deram! —exclamou antes de esboçar outra gargalhada sonora. — O diretor não lhe pediu nem um só xelim. Quando Arlington lhe perguntou por mim, contou-lhe que provinha de Kilburn e que, apesar de estar há dois anos no orfanato, não tinha me adaptado. Também explicou que era um pouco problemática e que minha aparência desalinhada se devia a uma briga que tinha tido com um menino maior que eu. Logicamente, garantiram que sob seus cuidados me tornaria uma mulher muito prestativa —continuou em tom divertido, pois o diretor pensou que o marquês a escolheu para convertê-la em sua jovem amante.

—O que aconteceu quando chegou a Riseway? —quis saber.

—Não me trouxeram aqui, Lionel. Arlington decidiu me educar em Colchester, a residência preferida de sua esposa. Disse que voltaríamos para Londres quando estivesse preparada.

—Preparada para que? —insistiu.

—Para começar minha vida como uma espiã... —declarou com uma mistura de diversão e mistério. Ao ver que ele não sorria, acrescentou. — Demorei muito tempo para estar. Em primeiro lugar, meu cabelo tinha que crescer para apresentar uma imagem mais feminina...

—Cortaram no orfanato como castigo? —interrompeu.

—Não, uma donzela o fez seguindo as instruções do senhor Petey. Ele decidiu que a melhor maneira de acabar com os piolhos era deixar minha cabeça tão rapada como uma pedra de talco. Quando confirmou que não tinha bichos nem sujeira em meu corpo, começou com suas lições.

—E Babier te mostrou a arte da luta —comentou com astúcia para descobrir até que ponto Sabrina lhe contava a verdade.

—Não —respondeu olhando-o com os olhos entreabertos. — Até que não me recuperei das feridas que viu em minha pele, Arlington não quis que me instruísse. Sempre me ofereceu missões muito simples e próximas a Londres. Imagino que o carinho que ambos sentimos o impede de me colocar em perigo e me afastar de seu lado.

—Tem sido um homem muito atencioso contigo —comentou, apertando a mão carinhosamente, para que tivesse consciência de que poderia contar com seu apoio e por descobrir que não havia lhe mentido.

—Todos os três foram. Cada um à sua maneira, cuidaram de mim desde que deixei aquele orfanato segurando a mão do marquês —assegurou antes de olhar para frente e descobrir que lady Kimberly estava caminhando em direção a eles. — Acho que Lady Menderly está vindo em nossa direção. Imagino que queira confirmar se nossa amizade dura depois da aspereza que mostrou ontem com ela —alegou um pouco irritada com a interrupção inesperada.

—Pela primeira e última vez, confesso que estou feliz em vê-la —disse ao inclinar sua cabeça para lhe dar um beijo na bochecha.

—Quando me contará o que espero saber? —perguntou, parando no meio do caminho para se virar para ele.

—Em breve —respondeu antes que a presença da viúva os obrigasse a assumir o papel de lady e lorde Riseway.


Kimberly suspirou de felicidade e acelerou o passo ao reconhecer quem era o casal que andava ao final do caminho.

Passou a noite toda pensando em lorde Riseway e buscando uma forma de se aproximar dele sem despertar suspeitas. Só depois do amanhecer, enquanto tomava uma xícara de chá no terraço de sua casa, a encontrou olhando para o céu. «Hoje será um dia maravilhoso para dar um longo passeio», pensou. Então ela se lembrou de que Sabrina havia mencionado à viscondessa de Hasherby algo sobre a felicidade que sentiria ao caminhar pelo Hyde Park com o marido. Indubitavelmente era o dia mais apropriado para fazê-lo, pois não se anunciava chuva. Depois de ponderar bem a ideia, chamou a donzela e saiu cedo de casa.

Durante a primeira hora, percorreu apressada o parque. Ela os procurava em todos os cantos, até caminhava por áreas que eram bastante perigosas para uma mulher cuja escolta era uma criada com mais de cinquenta anos. Mas não importava o risco que corria se com isso conseguisse seu propósito. Estava a ponto de perder a esperança quando os viu se afastando do pequeno embarcadouro. Nesse instante, abrandou o passo e foi se escondendo entre as árvores cada vez que lorde Riseway olhava para frente. Não queria que a visse antes de sua esposa e decidisse mudar de direção para evitá-la. Quando conseguiu tê-los próximo, sorriu.

—Bom dia, Kimberly —Sabrina a cumprimentou ao vê-la chegar.

—Bom dia, Sabrina. Lorde Riseway... —acrescentou olhando-o fixamente.

—Lady Menderly —Lionel respondeu com um breve aceno de cabeça enquanto colocava as mãos atrás das costas.

—Uma bela manhã para um longo passeio, não acham? —disse a viúva de maneira casual, esperando ansiosa o educado convite de sua amiga.

—Concordo. Na verdade, falei sobre esse assunto com a minha esposa. É, sem dúvida, uma manhã perfeita para passear com a pessoa amada. No entanto, não sei o motivo porque uma viúva solitária como milady o tem feito. Nos procurava, lady Menderly? Esteve nos seguindo? —acrescentou com um amplo sorriso.

Ao terminar seu comentário, Sabrina virou-se para ele com os olhos arregalados. Seu rosto empalideceu e seus lábios tremeram. Que diabos havia de errado com aquela mulher?

—Não sei o motivo que terão o resto das viúvas, mas o meu é o aborrecimento —Kimberly comentou sem se sentir magoada ou intimidada. — Odeio passar meus dias trancada em minha casa. Sinto-me sufocada e uma forte pressão no meu peito. Portanto, quando vi que hoje não haveria chuva, não hesitei e vim ao parque. Adoro ver jovens casais navegarem em um pequeno barco e fazerem longas caminhadas enquanto irradiam amor. Lembra-me o tempo de cortejo que vivi com meu marido.

—Quer falar sobre essa época, Milady? —insistiu Lionel desafiando-a com o olhar. — Certamente encontraremos muitas diferenças entre a aristocracia antiga e a atual. Embora sempre haverá semelhanças, como o mau hábito de mentir, me equivoco?

Quando Sabrina deduziu que estava se referindo ao embuste que o duque de Menderly cometeu para se casar com ela e receber seu dote, ficou terrivelmente irritada. Porque estava sendo tão cruel com Kimberly? Por acaso as pessoas não podiam se equivocar e pagar as consequências desse erro? Suas bochechas arderam ao se sentir indignada com Lionel. Durante o amanhecer percorreu seu corpo com beijos para eliminar as consequências de seu equívoco e, naquele momento, machucava sua amiga pelo seu. Que diferença existia entre elas? Nenhuma!

—Creio que a memória dos defuntos deve ser respeitada —Sabrina interveio rapidamente.

—Obviamente que lady Menderly não criticará seu falecido marido, certo? Conforme descobri, depois de dez anos, não quis se casar de novo porque continua de luto —apontou com sarcasmo.

—Lionel, pare! —Sabrina finalmente gritou olhando para ele desesperada. Depois se virou para sua amiga e disse-lhe. — Peço desculpas, Kimberly. Apareceu em um momento bastante tenso entre nós.

—Desculpe, não quis... não pretendia... —começou a dizer lady Menderly com fingida consternação.

—Não precisa se desculpar, Lady Menderly. Sou eu que tenho que fazer isso pela minha grosseria —Lionel declarou ao entender que esse incidente separaria Sabrina dele e não queria que, depois de criarem tanta cumplicidade entre eles, terminassem o dia com raiva por causa da viúva. — Como minha esposa explicou bem, nos encontrou em pleno debate.

—Obrigada —a ouviu sussurrar.

—Não se preocupe, Lorde Riseway. Deveria ter pensado nisso antes de me aproximar. Mas me senti tão feliz ao ver sua esposa, que esqueci os bons modos. Confesso que desde que fiquei viúva, nunca tive uma verdadeira amiga. Todas as damas que se definiram como tal, desapareceram ao me casar com o duque e descobrir que estava arruinado.

—Sinto muito, Kimberly —Sabrina disse segurando sua mão. —Não queria falar com meu marido sobre esse assunto. Acho que é muito íntimo para expô-lo com tanta facilidade.

—Lorde Riseway —comentou a duquesa viúva levantando o queixo com orgulho —, desde que fiquei sozinha, tive que sobreviver com a única coisa que tive e, claro, não me arrependo de fazê-lo. Graças a isso, cada dia tenho um prato de comida quente sobre minha mesa.

—Mais uma vez, peço mil desculpas —declarou Lionel amaldiçoando seu comportamento grosseiro. Ele entendia muito bem essa atitude porque graças a uma decisão parecida ele continuava vivo.

—Eu as aceito —respondeu esboçando um sorriso tímido. — Agora, se me desculpam, continuarei o passeio.

—Não! —Sabrina respondeu com rapidez.

—Lady Menderly, não vá. Prometo que não a incomodarei mais —ele interveio rapidamente.

—Sim, Kimberly, não vá. Gostaria que me acompanhasse porque meu marido tem que ir —lhe disse enroscando um braço em um da viúva. — Esse era o motivo de nossa discussão. Ele tem que voltar para a residência para resolver vários assuntos importantes com seu pai e eu quero continuar passeando.

—Exatamente —Lionel resmungou olhando para Kimberly.

—Nesse caso, ficarei encantada —a viúva afirmou.

—Nos veremos quando voltar para casa —disse Sabrina a Lionel.

—O faremos —respondeu este depois de dar um leve aceno.

Em seguida, afastou-se delas. Mas não saiu tão rápido. Lionel permaneceu escondido até que a viúva acompanhou Sabrina a sua casa.


XIX


De novo viveu uma situação tensa...

Ao voltar do passeio, Lionel a esperava frente à porta da entrada, com os braços cruzados e mostrando uma atitude rígida. Ela passou do seu lado sem lhe dirigir a palavra ou olhá-lo. Deu a Vanther seu casaco e caminhou diretamente para seu quarto. Durante vários minutos, pensou que Lionel entraria gritando e soltando mil injúrias, mas não o fez. Depois de se arrumar e ser informada de que os quatro homens a esperavam para almoçar na sala de refeições, desceu com tranquilidade.

—Foi um final de passeio agradável? —lhe perguntou Abraham fazendo referência à última companhia com quem permaneceu.

—Lady Menderly é uma mulher muito inteligente e ousada. Conseguiu sobreviver depois do desastre que sofreu sem ajuda familiar —explicou para defendê-la de todas as opiniões e suspeitas que os quatro tinham dela.

—Claro! —Lionel interveio enquanto cortava com força o pedaço de carne do prato. — Ofereceu seu corpo em troca de umas miseráveis moedas. Se descobrisse que é boa no ofício, poderia lhe falar do clube. Talvez lhe interesse...

—Basta! —Sabrina gritou cansada de tanto comentário mordaz. — Como se atreve a falar de Kimberly dessa forma tão repulsiva? Por acaso sua mãe não fez algo parecido com o príncipe?

Todos ficaram em silêncio. Nem sequer se ouviam respirar. Sabrina rapidamente se arrependeu do comentário e Lionel apenas olhou para ela com olhos estreitados enquanto se recostava no assento.

—Cada um pode agir com liberdade quando assim se determine —interveio o marquês para acalmar a tensão. — Como bem diz, ninguém está livre de pecado e nenhum de nós é Deus para julgar o comportamento das pessoas.

—Ainda assim, seria aconselhável que a vigiássemos —Babier sugeriu. — Talvez descubramos algo que nos interesse.

Comentário que obteve o olhar raivoso de Sabrina.

—Querem saber sobre a vida de Kimberly porque ela se tornou minha amiga? —soltou irritada.

—Todo o cuidado... —Petey tentou dizer.

—Eu mesma contarei! —continuou furiosa. Apaixonou-se pelo duque e se entregou a ele pensando que seu amor era de verdade. Duas semanas depois de se casar, descobriu que estava grávida e isso a entristeceu até o ponto de não querer viver. Antes de completarem um mês de casamento, Kimberly perdeu o bebê, e sabem o que fazia o duque enquanto sua esposa sofria na cama? Desperdiçava todo o dote que conseguiu! Mas Deus foi justo e este adoeceu.

—Algumas pessoas acreditam que ela o envenenou —Petey apontou com prudência.

—E? —perguntou Sabrina levantando-se abruptamente da cadeira.

—E nesse caso, está lidando com uma assassina —afirmou Arlington calmamente.

O sorriso que esboçou em seu rosto, os deixou petrificados.

—Acho que não deveria lhes importar muito se ela matou ou não o duque —disse removendo a cadeira indevidamente. — Porque, ainda que fosse assim, das duas, sou eu quem matou mais de cinquenta homens sem piscar —alegou antes de caminhar ereta para a saída.

Quando Lionel se levantou para fazê-la parar, ela o olhou com uma mistura de dor e decepção.

—Se me tocar, será a última vez que o fará —o ameaçou.

Não o fez. Lionel baixou lentamente a mão direita e deixou que ela abandonasse a sala de refeições.

—Por que se comportou dessa forma com lady Menderly? —perguntou o marquês.

—Porque tenho certeza que está mentindo para nós —declarou olhando para a porta.


O resto da tarde passou trancada em seu quarto. Estava tão nervosa que ia enlouquecer. Deitou-se na cama, saiu desta, caminhou pelo quarto e pediu a sua criada que lhe preparassem uma banheira, pensando que a água quente lhe aliviaria. Tomou banho, penteou-se, jantou e, apesar de tudo, a ira perdurava. Esta também não se acalmou quando ouviu Lionel entrar em seu quarto e se deparar com a porta fechada. Pelo contrário, aumentou com o passar do tempo e não ouvir uma desculpa de sua parte. Tinha pensado em lhe dar uma lição com aquela decisão, precisava lhe deixar claro que havia assuntos nos quais não podia interceder. No entanto, aquele distanciamento entre eles, só lhe causou confusão e tristeza.

Depois de várias horas sentada no colchão, esperando que ele aparecesse, decidiu se deitar e pensar sobre o que aconteceu enquanto olhava o teto. Não encontrou nada que chamasse sua atenção. A vida de Kimberly foi muito simples. Desde que o duque morreu, procurou a maneira de sobreviver e a encontrou graças à proteção de um considerado amante. Estava com ele há dez anos e nunca lhe tinha pedido nada que ela não desejasse lhe dar.

—O que poderia fazer? —disse. — Eu estava sozinha e com centenas de dívidas para pagar. Depois de ouvir o testamento, chorei desesperada. Pedi ajuda à minha família, mas eles se desentenderam e me afastaram de suas vidas como se padecesse da peste. A humilhação pública que suportaram ao me casar com um pobre os impediu seguir se relacionando comigo. Chegou um momento em que me encontrei sozinha, desolada e totalmente abandonada. Nem aquelas pessoas que considerei uma vez amigas, desejavam ter contato comigo. Eu me tornei uma pária social. Então Spencer apareceu e me perguntou se queria me tornar sua amante, pois sua esposa estava há muitos anos vivendo em Bath. Aceitei sem hesitar um só segundo e, embora todos discordem sobre a decisão que tomei, juro que foi a melhor coisa que fiz em minha vida. Graças a sua misericórdia, paguei todas as dívidas e economizei o suficiente para sobreviver dignamente.

—Por que não procurou outro marido? Por que continua de luto? —ela queria saber.

—Porque não quero mais traição, Sabrina. Visto o preto porque assim lembro quem sou e a liberdade que consegui. Logicamente, não vou eliminá-la para me tornar a esposa de ninguém. Além disso, quem poderia amar uma mulher da minha idade? Todos os cavalheiros procuram uma jovem que lhes proporcione filhos.

—É muito jovem.

—Tenho 29 anos, não sou mais —garantiu com um sorriso amargo.

Quando abriu os olhos, tudo estava escuro. As duas velas na penteadeira tinham se desgastado em algum momento da noite. Afastou o lençol e se dirigiu em silêncio para a porta. Queria verificar se Lionel estava no quarto. Talvez, depois de tantas horas sozinho, tenha reconsiderado sua atitude. Abriu muito devagar, como na manhã anterior. No entanto, quando olhou para a cama, observou que os lençóis se encontravam aos pés da cama, mas não havia sinais de seu grande corpo. Decepcionada, abriu completamente e entrou procurando por ele. Não o encontrou, tinha ido embora sem tentar resolver a situação entre os dois. Talvez ela não fosse tão importante para ele como esperava; possivelmente seus sentimentos eram mais intensos que os de Lionel.

Levou as mãos ao rosto e o escondeu durante uns minutos. Não queria chorar. Não devia fazê-lo. No entanto, ela chorou e não parou de chorar até ouvir um cavalo relinchar do lado de fora. Caminhou rapidamente até a janela, abriu a cortina e observou os quatro homens mais importantes de sua vida saírem de casa para entrar em uma das carruagens do marquês. Para onde iriam? Falaram sobre o Khar durante a tarde? Teriam saído em sua busca?

Intrigada, ela voltou ao seu quarto, foi até a janela e abriu as cortinas. Em seguida, caminhou para o cordão localizado perto da cabeceira da cama e puxou este para chamar sua donzela. Precisava descobrir o que tinha acontecido durante sua ausência e por que saíam de Riseway sem avisá-la.

—Bom dia, milady —Acenou para a criada.

—Bom dia —lhe respondeu ela enquanto se lavava com rapidez o rosto para que esta não descobrisse que tinha chorado. Quando terminou, olhou para a mulher e se surpreendeu de que continuasse em frente à porta. — O que está acontecendo?

—O senhor Vanther me ordenou que lhe entregue isto —comentou lhe estendendo duas cartas. — Quer que a deixe uns minutos a sós?

—Sim —respondeu depois de ler os nomes escritos em cada um.

—Esperarei no corredor sua chamada, milady —explicou antes de sair.

Sabrina caminhou até a penteadeira, colocou as cartas nesta e as olhou curiosa. Qual devia abrir primeiro, a de Arlington ou a de Kimberly? Porque não havia uma de Lionel? Com o coração batendo forte, pegou a do marquês, sentou-se e abriu-a. Não explicava muito. Só informava que tinham saído para se reunir com os oficiais superiores da ordem e falar sobre a estranha ausência do Khar. Acrescentava também que Lionel desejou acompanhá-los para esclarecer certos assuntos que tinha pendente com eles. «Não espere por nós e faça o que quiser, desde que aja com prudência», escreveu antes de assinar. Deixou o envelope e a carta junto à escova e pegou a da Kimberly. Uma vez que a teve nas mãos, percebeu que esta pesava um pouco. Curiosa para saber o que havia dentro, abriu inquieta e deu um grande sorriso ao descobrir os dois vouchers que havia obtido para o baile do Almack´s. Tinha comentado que um de seus propósitos era aparecer no baile social com seu esposo durante a próxima quarta-feira, mas que entendia que não seria possível porque as matronas ainda não os conheciam. No entanto, ela os conseguiu. A mulher, que não agradava aos quatro homens mais importantes de sua vida, havia lhe dado um presente de valor incalculável. Depois de tirar os convites, notou que havia uma pequena folha bem dobrada dentro. O que seria? Contaria a ela como conseguiu? Tirou-a lentamente, como se seu corpo lhe advertisse que logo se encontraria em uma situação perigosa. Se obrigou a se acalmar, a esquecer todos os comentários horríveis que ouvira sobre Kimberly.

«Minha querida amiga, preciso lhe falar o quanto antes. Trata-se de um assunto muito importante. Durante o passeio de ontem quis expô-lo, mas descobri que lorde Riseway nos seguia e desejei evitar que tivessem um novo confronto. Juro que pensei muito sobre este assunto, mas devido à gratidão que encontrei de sua parte, vejo-me na obrigação de desvendar algo que diz respeito a seu marido.

Estarei o dia todo em minha casa, esperando sua chegada.

Atenciosamente, lady Menderly».

«Diz respeito ao seu marido». Foi a única coisa em que sua mente se concentrou. Explicaria aquele assunto o motivo pelo que Lionel a odiava tanto? Teriam se conhecido no passado como pensou inicialmente? Teria descoberto que Lady Gable era sua verdadeira mãe? Mais uma vez, mais mistérios sobre a vida de Lionel a assaltaram. Alguns que precisava esclarecer antes de descobrir o que aconteceria no futuro entre eles.

Levantou-se, escondeu a carta de Kimberly debaixo do colchão e chamou apressada a donzela.

—Milady?

—Encontre um vestido de passeio e informe Vanther que vou ficar fora de casa durante o resto do dia —comentou tirando rapidamente a camisola.

—Como quiser —a donzela respondeu.


XX


Kimberly estava olhando para o jardim de sua casa, quando observou a chegada de uma carruagem. Prendeu a respiração até que confirmou que era Sabrina quem estava saindo de dentro desta. Durante várias horas teve suas dúvidas. O que aconteceria se lorde Riseway encontrasse a carta? Rasgaria ou apareceria no lugar de sua esposa? No entanto, o mordomo da jovem agiu exatamente como ela disse: com discrição.

Caminhou lentamente até a porta do salão e a esperou de pé. Continuava sem ter certeza do que ia fazer, mas seu instinto feminino insistia em dizer-lhe que era o correto. E devia ser, porque desde que lhe escreveu a carta, sentia-se muito melhor com ela mesma. Nunca desejou, nem desejava, ferir ninguém, e muito menos se fosse da esposa de alguém. Ela tinha estado na situação de cônjuge traída e foi o pior momento de sua vida. Por esse motivo simpatizou tanto com Sabrina. Assim que contasse a verdade, a moça poderia decidir ir embora. Nesse caso, iria ajudá-la. Ou poderia aceitar essa parte da história da vida do marido. Também a compreenderia, pois não havia dúvidas do amor profundo que sentia por ele. Só esperava que não escolhesse a terceira opção, porque não gostaria de perder sua amizade por algo que não lhes dizia respeito.

—Milady, Lady Riseway chegou —anunciou uma de suas criadas.

—Faça-a entrar —respondeu sem se mover.

—Bom dia, Kimberly —comentou ao encontrá-la parada perto da entrada, exibindo um de seus elegantes vestidos pretos.

—Bom dia, Sabrina —respondeu caminhando para ela com as mãos estendidas. — Como passou a noite? Gostou do meu presente? —Quando a olhou desconcertada, lady Menderly moveu a cabeça para a direita e disse: —Sirva-nos o chá.

—Sim, milady —a criada argumentou antes de fechar a porta.

—Como está se sentindo? —Kimberly lhe perguntou ao notar um ligeiro tremor em suas mãos.

—Perplexa, impaciente e confusa —declarou com sinceridade. — O que está acontecendo? O que quer me contar sobre meu marido? O que sabe dele?

—Me faz muitas perguntas de uma vez —a viúva respondeu enquanto a conduzia para a mesa baixa localizada na área mais distante da sala. — Vamos sentar e conversar com calma, porque o que vou contar não lhe agradará.

—Sinto meu coração bater na garganta de angústia —Disse Sabrina colocando a mão naquela parte do corpo.

—Entendo, mas deve ser paciente. Os criados que trabalham nesta casa estão ao meu serviço há muitos anos. Entretanto, eu mesma descobri que a fidelidade destes tem um preço.

—Serei —disse sem conseguir se acalmar.

Quando se sentaram, bateram na porta novamente. A criada entrou carregando uma bandeja nas mãos. Nela havia um bule de porcelana com duas xícaras de chá combinando, um açucareiro e várias colheres de prata. Ao colocá-la sobre a mesa, serviu-lhes corretamente. Então ficou parada esperando a próxima ordem da viúva.

—Informe a cozinheira que Lady Riseway ficará para o almoço —Kimberly declarou olhando para a jovem como se tivessem discutido esse assunto enquanto se acomodavam. — Gosta de perdiz?

—É meu prato favorito —respondeu acompanhando suas palavras com um grande sorriso.

—Mais alguma coisa, Milady? —quis saber a criada.

—Não, pode ir —despachou-a com toda a serenidade que pôde.

—Chá preto? —perguntou Sabrina ao descobrir o cheiro e a cor do líquido que lhe tinham servido.

—Tem um sabor muito amargo, mas é a opção mais adequada para evitar o hálito a licor —comentou levantando-se. Sob o olhar atento de Sabrina, Kimberly se dirigiu a uma das três cristaleiras na sala de estar, abriu as portas de madeira maciça, pegou dois copos de vidro e uma garrafa de bourbon. — Tenho certeza que este líquido âmbar nos agradará mais —alegou divertida.

—Não duvido —afirmou. Afastou a xícara aromática e se acomodou na poltrona.

Ao retornar, Kimberly colocou os copos na mesa, encheu-os e colocou a garrafa nas proximidades.

—Como já te disse, há dez anos sou amante de um conde —começou a dizer depois de se sentar e tomar o primeiro gole.

—Sim, de Spencer —apontou para que compreendesse que sempre a tinha escutado.

—Exato. Nossa relação é um tanto peculiar. Não só nos damos prazer, mas também trabalho para ele. —Ao observar como a jovem abria os olhos devido ao assombro, prosseguiu. — Spencer não gosta de sair de casa. Sempre que o faz, viaja para fora da Inglaterra. Acho que o escândalo que causou seu casamento anos atrás, o incentivou a ficar longe da sociedade. No entanto, gosta de estar sempre a par de todas as novidades que surgem. Por esse motivo, me paga por todas as informações sociais relevantes que obtenho.

—Informação social? —Sabrina repetiu, lembrando-se da suspeita de Babier, da raiva de Lionel, das investigações de Petey e do bom coração de Arlington. Teriam razão? Esperava que a história de Kimberly a ajudasse a entender mais sobre o trabalho secreto da viúva ou sofreria uma verdadeira agonia quando a entregasse à ordem.

—Me tornei sua espiã. Sabe o que essa palavra significa?

—Eu tenho uma ideia —respondeu antes de tomar um longo gole de sua bebida.

—Minha última ordem é vigiar o Marquês de Arlington e seu filho. A princípio não sabia o motivo, mas depois de conhecer seu marido na festa dos viscondes, descobri a verdade —apontou com mistério. — Sabe se a esposa do marquês teve um caso com outro cavalheiro antes de sair de Londres? Seu marido comentou algo a respeito? Há segredos que os filhos acabam descobrindo com o passar dos anos.

—Durante os quatro meses que estamos casados, não falamos sobre segredos familiares —respondeu relaxada.

—Já temia isso... —Kimberly refletiu.

Sabrina se obrigou a não mostrar nenhum sinal que despertasse interesse ou suspeita à viúva. Manteve-se relaxada, calma e tranquila, embora a espiã dentro dela surgiu com a mesma rapidez que uma truta saltava sobre o fluxo de um rio quente.

—Acha que não é o filho de Arlington? —finalmente perguntou.

—Não é. Garanto-te que é idêntico a seu pai —declarou depois de dar um bom gole. —Embora não entenda como Spencer se relacionou com a esposa do marquês.

—Está me dizendo que...? Fala do seu conde? —soltou tão espantada, que as palavras brotaram de sua boca mediante um grito.

—Sei que isto deve ser muito difícil, Sabrina. Mas lembre-se que a paternidade de seu marido não deve interferir em sua relação. Caso não saiba, muitos filhos nascidos em um casamento são bastardos. Romance entre casais é muito comum na aristocracia —explicou para se acalmar.

Sabrina não conseguia se acalmar. Kimberly não tinha ideia do que estava dizendo. Se sua conjectura fosse verdadeira, o caso de Spencer não era com a esposa de Arlington, mas com Lady Gable. Seria verdade? Eugine deixou Londres grávida? Por que o conde não se casou com ela? O romance aconteceu em sua segunda temporada? Onde estava o filho que teve com o príncipe? Tantas perguntas surgiram em sua mente que se sentiu tonta. Um calafrio percorreu seu corpo, colocando em risco o copo que segurava em uma das mãos. Foi Kimberly quem o tirou e colocou sobre a mesa. Então pegou as mãos dela e apertou-as com ternura.

—Imagino que a marquesa, depois de saber de sua condição, pediu a Arlington para se afastarem de Londres. Eu não a julgo. Talvez procurasse um homem que lhe desse aquilo que seu marido não podia lhe oferecer porque, segundo sei, durante mais de dois anos, ela não ficou grávida.

Sabrina a olhou perplexa. Essa versão não era real. Lizbeth teve vários abortos. Por esse motivo, o médico da ordem aconselhou-a a se afastar da agitada vida londrina e a viver no campo. No entanto, mãe e filho morreram no parto. Mas o importante não era saber o passado da marquesa, mas obter respostas sobre o de Eugine.

—Tem certeza que meu marido é idêntico a Spencer? —perguntou ao levantar.

—Sim. Não há dúvida sobre isso. Ele herdou sua compleição física e a cor de seus olhos —afirmou olhando-a sem piscar.

Sabrina caminhou de um lado para outro, esfregando as mãos desesperadas. Lionel saberia o nome do seu verdadeiro pai? Spencer sabia que era seu filho? E se fosse assim, por que não o procurou antes? De repente, parou o passo e virou-se bruscamente para Kimberly, que a observava com medo. Seria verdadeira a última suspeita que tinha em sua mente? Porque se não estivesse errada, acabara de encontrar o assassino de Eugine.

—O que sabe sobre Spencer? —disse sem se mover.

—Posso dizer que durante sua juventude, mesmo depois de casado, foi um libertino. Não houve uma viúva ou uma solteira imoral que não quisesse viver um romance com ele. Com certeza está consciente da sedução que desperta lorde Riseway entre as damas.

—Sim, estou ciente disso—murmurou.

—Spencer sempre conseguiu todas as mulheres que sempre quis. Há rumores sobre quem esteve em seus braços, mas só foram isso, fofocas —explicou finalmente se levantando. — Ele se casou com Lady Bourton quando ela foi apresentada à sua primeira temporada social. É a segunda filha do duque de Richmont. Ele não a escolheu por sua beleza, mas porque a duquesa Mãe levou a bom termo dez gravidezes. Como pode ver, só procurava uma esposa fértil que lhe desse bastante descendência. No entanto, o destino deu-lhe um revés quando ela ficou estéril após a sua única gravidez.

—Não tem filhos? —Kimberly negou com a cabeça. — E acha que está atrás do meu marido porque sabe que é dele?

—Sim. Durante muito tempo me ordenou que investigasse lady Gable. Achei que Eugine sabia de algo que poderia colocá-lo em perigo. Mas depois de se tornar a dama de companhia da rainha e gerar um bastardo, a obsessão de Spencer por ela diminuiu.

—Entendi...

E era verdade que a entendia. Se Lionel era filho de Spencer, por algum motivo lady Gable quis guardar segredo. Talvez, nem existisse um filho do infante. Possivelmente o inventou para salvar seu filho. Mas... de que? Não queria que seu verdadeiro pai o reconhecesse? O que tinha descoberto deste para se afastar dele até morrer? « Santo Deus!», exclamou mentalmente.

—Já se sentiu em perigo enquanto estava ao seu lado? —insistiu em averiguar depois de chegar à conclusão.

—Não, nunca tive medo. Por que pergunta? —disse caminhando para ela.

—Porque acho que acabou de me dizer quem matou Eugine Krauss —declarou enquanto levava a mão direita para seu penteado e apalpava com a ponta dos dedos o cabo de seu abridor de cartas. Sentia muito, demais para que alguma vez esquecesse qual era seu dever. Mas a ordem estava em perigo e a identidade de todas as pessoas que amava.

—Acha que Spencer matou Lady Gable? Por que faria isso?

—Porque Lionel não é filho da marquesa de Arlington, mas de Eugine —revelou.

—Deus meu! —soltou tão horrorizada que as pernas perderam a força e caiu de joelhos.

—Kimberly! —exclamou Sabrina correndo para ela.

—Dizia que... houve um tempo em que... talvez tenha sido por isso que ele me pediu... —tentou falar, mas o pranto da decepção e a surpresa a impediram. — Tem certeza do que está dizendo?

—Se tivesse, em que posição ficaria, Kimberly? A favor do conde ou contra? —perguntou, pegando suas mãos enquanto a viúva as segurava minutos antes para acalmar sua inquietação. Talvez houvesse uma possibilidade para ela. Talvez pudessem resolver aquele assunto sem ter que incluir a ordem...

—Contra —manifestou olhando-a nos olhos. — Se aquele homem matou uma mulher porque se recusou a lhe dar o filho que ele deve ter rejeitado, merece punição.

—Estaria disposta a fazer tudo o que estivesse em suas mãos para pegá-lo? —Sabrina insistiu.

—Me diga o que tenho que fazer e o farei —Lady Menderly respondeu sem hesitar enquanto colocava as solas dos sapatos de volta no chão.

—Kimberly, sabe o que significa a palavra espiã? —perguntou ajudando-a a levantar.

—Sim —respondeu arregalando os olhos.

—Pois é isso mesmo o que sou —Sabrina afirmou.


Apareceu em Riseway depois das dez da noite. Durante todo o caminho, rezou para que os homens não tivessem voltado antes dela. Não era o momento de dar explicações porque nem ela mesma sabia o que dizer.

Saiu da carruagem lentamente, pois seu estado de embriaguez a deixava um tanto desajeitada. «Uma excelente desculpa», disse a si mesma enquanto caminhava em direção à entrada. Se Lionel ou Arlington perguntassem onde estava, poderia contar uma parte de tudo o que aconteceu durante as oito horas que passou com Kimberly. Claro que quando sentissem o cheiro de seu hálito, não duvidariam de sua história.

Com um grande sorriso bateu na porta com insistência.

—Lady Riseway? —Vanther perguntou como saudação ao recebê-la.

—Boa noite, Vanther. Não me pergunte onde estive, porque agora não me lembro —falou exagerando sua embriaguez. — Os senhores da casa chegaram? —perguntou enquanto lhe oferecia o casaco.

—Não, milady. A última coisa que ouvi de suas excelências é que todos estavam no White's —explicou com olhos arregalados.

—Obrigada, Vanther —disse recuperando a compostura.

—De nada, milady —respondeu sem mostrar qualquer expressão de espanto no rosto quando mudou de atitude.

—Falo a verdade, obrigado por tudo o que tem feito por mim —insistiu apoiando levemente a mão direita sobre o ombro do mordomo.

—Não me agradeça, milady. Sou eu quem devo agradecer-lhe que me tenha oferecido este trabalho —declarou com ternura.

Sabrina o olhou perplexa. O que queria lhe dizer? Descobriu que foi ela quem o entrevistou para o trabalho? Que peruca ela estava usando naquele dia? Pelo menos essas dúvidas se resolveram ao observar o sorriso cúmplice no rosto do homem. Sim, havia a reconhecido desde o início. Por esse motivo ficou olhando-a a noite que entrou de braço dado com Lionel. Podia delatá-la, mas não fez isso. Também escondeu a carta de Kimberly e ficou em silêncio o tempo todo. Lady Menderly havia dito algo sobre a fidelidade dos servos? Ela estava segura de que tinha a daquele homem.

—Era o mais bonito de todos os que se apresentaram —Sussurrou-lhe ao ouvido depois de se aproximar.

O mordomo ficou vermelho.

—Deseja que chame a donzela para que a ajude a se despir? —lhe perguntou depois de recuperar-se do sufoco que lhe produziu o elogio.

—Não, eu me arranjarei sozinha. É melhor nos mantermos a salvo da ira do meu marido. Se descobrir que escondeu minha ausência, cabeças rolarão —alegou divertida. — Até amanhã, Vanther.

—Até amanhã, lady Riseway.

Ela ergueu o vestido até os tornozelos e, sem conseguir apagar o sorriso causado pela conversa com o astuto criado, subiu as escadas. Então, correu pelo longo corredor até chegar ao seu quarto. Uma vez lá, fechou a porta ao entrar e suspirou. Não tinha tempo a perder. Devia se preparar antes que todos aparecessem. Já que tinha se saído bem de sua escapada, mais valia continuar com sua maré de sorte. Caminhou até o biombo e se despiu com rapidez. Logo se dirigiu para a bacia e refrescou o rosto.

Tinha que sair tudo bem. O plano que tinha elaborado com Kimberly era muito simples para não seguir em frente. Lady Menderly falaria nessa mesma noite com o conde e confirmaria a teoria. Ela não saberia até o dia seguinte, porque concordaram que lhe enviaria um laço negro se a resposta fosse afirmativa. Caso contrário, um vermelho. Mas, se era tão simples, por que seu corpo permanecia tão inquieto? Vestiu a camisola, escovou o cabelo e foi para a porta do quarto do Lionel. Talvez o motivo pelo qual se encontrasse tão agitada fosse ele. Em poucas horas descobriria não só o assassino de Lady Gable, mas também a identidade do seu pai. Ele estaria ciente do plano que Eugine idealizou para afastá-lo do conde? Algo dentro de si lhe dizia que sim e que esse era um dos motivos pelo qual aceitou o trato de Arlington. Entretanto, em todo este tempo, Lionel nunca mencionou o sobrenome do conde. Por quê?

Com mil dúvidas na cabeça, abriu a porta e entrou no quarto de Lionel. Curiosa, revistou tudo o que encontrou em seu caminho e não achou nada que o delatasse. Talvez Eugine não lhe contasse a verdade para mantê-lo seguro. Mas o que podia temer? Não esteve apaixonada por Bourton? Não lhe agradou o fato de este querer reconhecê-lo? Então se lembrou da história da esposa de Spencer. Talvez Eugine quisesse evitar outro escândalo envolvendo seu filho e por isso o protegeu. Tinha que ter sido muito duro para ela se sentir um desperdício social por ter tido um filho que, como tinha provado, amou até sua morte. Ao recordar essa parte da história de Eugine, apertou os punhos e se dirigiu ao seu quarto. Por que a matou? Ou talvez não fosse ele... Talvez enviou uma pessoa e esta entendeu mal sua ordem.

Mais confusa do que desejava estar, caminhou até sua cama, afastou os lençóis e se deitou. Queria saber a verdade de uma vez por todas. Precisava, não só por ela, mas por Lionel e por Arlington. Quando descobrissem quem era o verdadeiro pai de lorde Riseway, a aristocracia falaria disso e a missão terminaria de imediato. Por esse motivo, a melhor opção era permanecer em silêncio até que ela e Kimberly confirmassem o que aconteceu, por que aconteceu e com que propósito Lady Gable escondeu seu filho.

—Logo saberei seu segredo, Eugine —ela disse antes de fechar os olhos e adormecer.


XXI


—Entre —respondeu à chamada da porta sem desviar o olhar dos papéis que tinha sobre a mesa.

—Milorde, tem uma visita —explicou o mordomo ao entrar.

—A esta hora? —perguntou ao confirmar no relógio de parede que eram mais de meia-noite. —Quem é?

—Lady Menderly —Jace anunciou.

Não respondeu imediatamente. Demorou alguns segundos para a alegria de sua chegada desaparecer antes que a viúva entrasse no escritório. Quanto menos satisfação demonstrasse em seu rosto, menor seria o valor que teria que pagar pela informação. Embora reconhecesse que estava ansioso por saber o que tinha acontecido com Arlington e o suposto filho. Em várias ocasiões quis averiguar por ele mesmo, mas essa decisão só lhe causaria problemas. Porque aquele homem, já que não podia considerá-lo um menino, sabia quem ele realmente era.

—Que entre —disse de repente.

—Sim, excelência —Jace respondeu ao sair.

Claro, antes que ele se levantasse da cadeira para cumprimentá-la, ela já estava parada na porta tirando as luvas pretas.

Sua arrogância juvenil causou o maior erro que uma dama poderia sofrer. No entanto, devia admitir a seu favor que ninguém conhecia as dívidas do duque exceto ele. Era um jogador inveterado, nunca saciava sua necessidade de perder. Por isso mesmo gastou o dote que obteve ao se casar em pouco menos de três meses. Ficaram na ruína. Mas o duque não sofreu tal miséria porque morreu, depois de passar duas semanas na cama, de uma estranha doença. Ou talvez não fosse tão rara, porque a única que não mostrou tristeza no rosto durante o funeral foi sua viúva. Mesmo sabendo o perigo que a mulher representava, apareceu em sua residência para oferecer-lhe ajuda. Kimberly pensou que queria torná-la sua amante e ele não a contradisse. Apesar do constrangimento que ela sofreu durante a conversa, não demorou muito para responder. Afirmou que, após conhecer o conteúdo do testamento, saiu correndo do escritório do advogado e rumou para sua residência. Seja como for, em cinco dias ele teve a mulher mais desejada de Londres em sua cama.

Durante os primeiros seis meses, a relação entre eles só permaneceu no quarto. Enquanto a viúva se divertia com seu corpo e dormia em seus braços, ele a observava e calculava sua atitude como confidente. Sempre acertou em suas decisões e Kimberly confirmou que também não se enganou desta vez. Depois do sexo, não parava de falar sobre os novos acontecimentos na alta sociedade. Nunca ouviu uma mulher explicar com tanta clareza e detalhes assuntos tão banais. Por isso, passou a lhe dar dinheiro em troca de informações mais específicas. No início ficou desconcertada, mas depois, após refletir, fez o que melhor sabia fazer: aceitar.

Daquele dia em diante, Kimberly se tornou seus olhos e ouvidos em Londres. Não tinha necessidade de aparecer pela cidade para averiguar os acontecimentos mais relevantes desta. Graças à sua astúcia feminina, soube que Eugine se tornou dama de companhia da rainha. Também descobriu que teve um romance com o príncipe e que ficou grávida. Logicamente, para que não se descobrisse o nascimento desse filho, Prinny a enviou a uma de suas residências secretas. Depois disso, ninguém mencionou Eugine até quinze anos mais tarde.

Não se lembrava do que era felicidade até que Kimberly lhe disse que um jovem médico veio à cidade e que, para atrair clientes, ele explicou que serviu Lady Gable e seu filho por vários meses. Certamente não demorou muito para encontrá-lo. Após uma intensa conversa, da qual o rapaz não saiu vivo, este lhe confessou tudo o que queria saber. Naquele momento, duas emoções brotaram de suas entranhas: ódio e necessidade. Ódio à mulher que o enganou durante vinte anos e a necessidade de agir e ocupar o lugar que lhe foi negado. Antes de o médico respirar pela última vez, ele já tinha um plano.

Mas Eugine descobriu, ainda sem saber como, que logo viajaria para levar seu filho. Por esse motivo, implorou ao rapaz que fosse embora.

Quando apareceu numa terça-feira à noite em Royalhouse, ela o esperava sentada no salão principal em frente à lareira. Ele deveria ter percebido sua solidão e prestado atenção ao silêncio da casa. No entanto, naquele momento, a única coisa que pensou foi em encontrá-lo.

—Te esperava... —lhe disse ao levantar o queixo e encontrá-lo frente a ela.

—Então, vamos deixar de conversas absurdas e entregue o que me pertence.

—Ele não te pertence —respondeu, se levantando rapidamente do sofá. —Não é seu.

—O que não é meu? —gritou antes de soltar uma gargalhada. —Parece que não herdou só o meu sangue, mas também o meu físico —murmurou orgulhoso.

Durante alguns segundos, olhou-a de cima a baixo e sorriu ao ver que ainda usava o anel que a presenteou na noite em que geraram seu filho. Havia muitas coisas na vida que não entendia e entre elas se encontravam alguns raciocínios femininos. Se o odiava tanto, por que não deixou de lado as duas únicas coisas que o ligavam a ele?

—O que pensou quando o tiraram de suas entranhas e descobriu que teria que me ver refletido nele cada dia de sua vida? Porque é meu filho —insistiu.

—Não é! —exclamou desafiando-o com o olhar.

—Não me tome por imbecil, Eugine —avisou.

—Imbecil? —Agora era ela quem ria dele. —Eu não te definiria de forma tão simples, Bourton.

Ao perceber a repulsa em seu tom de voz, se enfureceu. Podia perdoar sua traição, por seu fruto, mas jamais permitiria que se referisse ao seu título, a sua honra e ao legado de dois séculos com desprezo. Deu um passo para frente, levantou a mão direita, agarrou sua garganta e apertou-a.

—Diga-me agora onde escondeu meu filho! —berrou.

—Não! —gritou—. Lionel não é seu filho!

—Pode negar quantas vezes quiser, mas te aviso que suas confissões não têm nenhum valor para mim —resmungou apertando a garganta com mais força.

—Pensa isso? —perguntou sem tirar o sorriso de seu rosto frágil. —Por acaso não ouviu que fui a amante do príncipe? —desafiou-o. —Quem pode confirmar que é seu filho? Não pensou que o seu poderia morrer?

—Nunca houve um bastardo do príncipe. Inventou essa fraude para que continuasse pensando que Lionel não existia —comentou calmamente.

Eugine congelou. Como descobriu? Quem o informou?

—Só vou perguntar mais uma vez, onde está o meu filho? —rosnou.

—Nunca chegará perto dele! —gritou, apesar de sentir a forte pressão na laringe.

—Sou o pai dele! —berrou.

—Pai? Se chama de pai? —cuspiu. —Não pode chamar um violador de pai!

—Não a violei. Só te seduzi —ele zombou, movendo os dedos lentamente pelo longo pescoço de Eugine. —Veio até mim.

—Com mentiras! —Se defendeu. —Me manchou Bourton! E depois me abandou a minha própria sorte! O que achou que ia fazer, ficar com a prova de uma desonra?

O sorriso que sua boca desenhou e a forma de olhá-la deixaram Eugine sem respiração.

—Onde está? —Limitou-se a perguntar sem retirar a mão do pescoço.

—Ele não é seu! Ele não é seu! —repetiu desesperada umas dez vezes mais.

Irritado, empurrou-a para trás. Para sua consternação e horror, Eugine escorregou e bateu com a cabeça na borda da lareira. Correu ao seu encontro, não por piedade, mas por desespero. Queria saber onde seu filho estava. O único que teve apesar de ter casado com uma mulher jovem. Mas Deus o castigou por todas as maldades que tinha feito e que faria durante sua vida ao transformar sua esposa, depois da primeira e única gravidez, em uma mulher estéril.

No momento em que confirmou a morte de Eugine, pegou sua mão direita e retirou o anel.

Depois daquela fatalidade, a única esperança que tinha de encontrar seu filho era Kimberly. Por essa razão, a relação entre eles tornou-se um compromisso. Ele não apenas pagou pela informação ou a tomou como sua única amante, mas comprou para ela tudo o que pediu, incluindo uma residência no campo em uma cidade irlandesa.

Sua fiel confidente não o decepcionou.

O dia que apareceu em sua casa falando sem parar sobre os problemas que havia na corte, quis arrancar-lhe a língua. Mas mudou de ideia ao ouvir que o príncipe, devido aos contínuos atos revolucionários dos jacobinos e dos Terinthians, decidiu reunir seus bastardos reconhecidos e outorgar-lhes um título aristocrático para que apoiassem a coroa. Foi quando ele pegou Kimberly, a beijou e fez amor tantas vezes que ela ficou vários dias trancada no quarto. Assim que reuniu vinte dos seus melhores homens, ordenou-lhes que vigiassem as entradas do palácio e que descobrissem os nomes dos bastardos que apareciam nele. A desilusão voltou ao não ouvir o sobrenome do pai de Eugine. Teria morrido tal como suspeitava? Que outra opção lhe restava depois de tudo o que tinha feito para encontrá-lo?

Mas teve outro golpe de sorte quando uma noite, afundado pela tristeza, decidiu sair de sua segunda residência e embebedar-se no lugar onde os cavalheiros como ele o faziam: White´s. Não prestou atenção em nenhuma conversa de quem o cercou até que ouviu que Arlington tinha conseguido encontrar o último bastardo do príncipe: o filho de Eugine Krauss. Olhou seu copo, sorriu, se levantou e saiu dali sem se despedir de ninguém. Em poucos minutos, colocou-se em frente à porta de Riseway e investigou-o. O que descobriu não lhe agradou e deduziu que a conversa foi falsa. No entanto, alguns dias depois, Kimberly alimentou suas esperanças ao anunciar que o último filho do príncipe foi encontrado em Vila Liverpool. Ele mesmo queria viajar para lá, mas devido a sua súbita fuga do White's teve que ir várias vezes ao teatro e até aceitar alguns convites para que não fofocassem sobre seu estado mental. Enquanto isso, seus homens apareceram na pequena cidade.

Não o encontraram. Lionel não estava mais lá. Mas os seus rapazes informaram-no que um vagabundo testemunhou o que aconteceu à Besta. Duvidou sobre a veracidade da história até que lhe explicaram que dois homens, após deixá-lo inconsciente, o transportaram em uma carroça até o navio que atracou nessa mesma manhã. Quando lhe descreveram o escudo que este tinha selado na carcaça, sorriu, pois era o emblema de Arlington. No entanto, ninguém pôde esclarecer para onde o levaram. A única coisa que descobriu foi que a mulher que lhe armou a emboscada falou sobre Bibury antes de sair em uma carruagem. Quis enviar vários homens à aldeia imediatamente, mas teve que ausentar-se de Londres durante dois meses porque sua identidade estava em perigo. Aquela maldita espiã continuava pisando em seus calcanhares. Ordenou a Pierre mil vezes que a matasse, mas ele engrandecia seu orgulho torturando-a. Infelizmente, a mulher conseguiu escapar e, depois de se recuperar, regressou a Paris para assassinar o seu torturador. Ele mesmo pensou que o perigo havia passado após a morte de seu melhor comandante, mas se equivocou. A sede de vingança da espiã não tinha fim.

Quando retornou a sua casa, continuou com a tarefa de procurar a mulher que armou a emboscada para seu filho e, para tal missão, enviou seus quatro melhores capangas a Bibury. A ordem era muito simples: encontrá-la e trazê-la diante dele para que lhe explicasse onde estava Lionel. No entanto, e passados mais de um mês e meio sem saber nada deles, enviou mais dois homens para que averiguassem que diabos lhes tinha acontecido. Estes últimos sim retornaram e contaram-lhe que só encontraram uma casa transformada em cinzas depois de um incêndio. Outra vez perdeu a esperança de encontrá-lo, mas esta renasceu ao escutar que Arlington aparecia em Londres acompanhado de seu surpreendente filho.

—Boa noite, Spencer. Desculpe aparecer a estas horas tão inapropriadas —disse Kimberly com falsidade.

—Sua visita sempre será bem recebida, não importa a hora em que decida fazê-lo —comentou segurando a mão que lhe estendia. Beijou-lhe os nós dos dedos e, depois de confirmar que nenhum dos criados os observava, puxou-a e a colou ao seu corpo. —Espero que as informações que traz sejam interessantes —sussurrou em seu ouvido antes de beijar lentamente seu pescoço.

—Questiona isso? Depois de tantos anos, acha que colocaria em risco minha integridade por uma tolice? —repreendeu-o.

—Não, é claro que não cometeria uma estupidez dessas —respondeu sarcasticamente logo após fechar a porta com o pé. Ele se afastou dela, se virou e a olhou com expectativa. —Quanto me custará desta vez?

—Algo simbólico —respondeu fazendo um gesto de desdém com a mão.

—Quanto? —ele insistiu, cruzando os braços.

—Pensei que mil libras seria uma quantia razoável —falou enquanto caminhava para a mesa balançando os quadris com sensualidade.

Observar o movimento erótico de seu caminhar, ouvir o farfalhar de seu vestido e respirar seu perfume, o excitava terrivelmente. Mas naquele momento, percebendo que tinha informações importantes sobre Lionel, porque senão não estaria lá em um domingo depois da meia-noite, só queria que lhe falasse uma vez.

—Por que essa quantia?

—Porque considero que é o valor justo para esta notícia —explicou enquanto enchia dois copos. Então se virou para ele e os levantou.

—Do que se trata? —ele perguntou caminhando em direção a ela.

—Não gostaria de conversar enquanto tomamos uma bebida? Assim não terei a impressão de que só me quer por interesse —respondeu alongando o suspense.

Kimberly olhou para ele com tranquilidade. Devia agir como sempre se quisesse levar a cabo o plano que idealizou com Sabrina. Ainda tinha suas dúvidas, mas a garota havia feito tanto por ela que devia lhe pagar de algum modo sua gratidão.

—E bem? —ele disse enquanto pegava o copo que lhe oferecia. Então ele continuou caminhando até que se sentou na poltrona atrás de sua mesa.

—Fiz o que me pediu: investigar Arlington e seu filho —apontou enquanto ela também se sentava. Então, sem tirar os olhos do conde, tomou um pequeno gole de sua bebida e continuou —: A princípio, achei seu interesse por Arlington um absurdo, porque, pelo que sei, sua vida social sempre foi muito branda. No entanto, mudei de ideia ao conhecer Lorde Riseway. —Voltou a beber e Bourton observou em silêncio como ela movia a garganta ao engolir. —Desde quando sabe que é seu filho? —soltou enquanto colava as costas ao encosto da cadeira.

—Desde quando acha que eu sei? —o conde respondeu, olhando-a com admiração e orgulho.

—Se me disser sua verdadeira idade, descobrirei a resposta. —Contemplando-o sem piscar, voltou a levar o copo para seus lábios, embora nesta ocasião não tomasse nenhum trago. Ficou atenta, esperando a resposta. Se admitisse que fosse o pai, Sabrina teria razão e se encontraria frente ao homem que lady Gable amou e quem a assassinou.

—Está prestes a fazer vinte e seis anos —disse depois de considerar se devia lhe responder com sinceridade. Mas... que perigo implicava falar com Kimberly sobre isso?

—Foi o que pensei... —declarou calmamente. —Pode estar muito orgulhoso, Spencer, o rapaz herdou seu porte, seu galanteio e o azul de seus olhos. Qualquer um que os veja juntos, não hesitará sobre sua paternidade —acrescentou.

—Sim, foi o que me disseram. —Sorriu, porque não havia nada no mundo que o orgulhasse mais que saber que seu filho, seu único filho, se parecia com ele fisicamente. Só esperava confirmar que o sangue que corria por suas veias fosse Bourton e não Gable.

—Quando lhe contará a verdade? —perguntou ao vê-lo tão calado.

—Até agora, não me disse nada surpreendente —mudou de assunto.

Spencer se levantou, rodeou a escrivaninha, apoiou o quadril na ponta desta e, enquanto cruzava os braços, não deixou de observá-la.

—Está muito bonito com esse novo colete. É de seda natural? Essa cor realça a tonalidade de sua pele. Mas sabe que eu acho muito excitante vê-lo com as mangas da camisa dobrada. Nenhum homem tão poderoso deveria esconder seu corpo com jaquetas austeras. —Kimberly também desviou a conversa.

—Mil libras? —ele perguntou sem apagar o sorriso.

—Exato.

—Terá antes que saia deste escritório —lhe garantiu estendendo a mão. Uma vez que Kimberly estendeu a sua para selar o pacto, Spencer puxou-a até levantá-la e colocá-la de frente para ele. —Que informação me traz? —perguntou enquanto lhe beijava lentamente o queixo.

—Seu filho tem uma esposa —declarou.

—Talvez não seja. Talvez esteja interpretando esse papel como ele realiza o de lorde Riseway —murmurou antes de lhe passar a língua pela clavícula.

—Está errado. Eles realmente se amam. Eu vi nos olhos do seu filho.

—O que viu... nos olhos do meu filho? —Não foi o tom de voz que Kimberly usou o motivo pelo qual se excitou tanto, mas sim ouvir como finalmente uma pessoa que não era ele nomeava Lionel tal como deveriam fazê-lo desde seu nascimento: Lionel Cheiton, visconde de Quinston, futuro conde de Bourton e filho de Spencer, o Khar do Terinthians. O que ele pensaria sobre a organização que havia criado anos atrás? Seria a favor da coroa inglesa e contra Napoleão?

«Tudo ao seu tempo...», disse a si mesmo.

—Vi paixão. —A Kimberly pôs as palmas das mãos no peito firme de Spencer e percorreu-o lentamente. —Ciúme... Sim, seu filho é muito ciumento e protege ferozmente o que lhe pertence.

—O que ele fez para que o definisse dessa forma? —quis saber.

—Várias atitudes, na verdade. A primeira foi na festa dos Viscondes de Hasherby, onde o conheci. Enquanto sua esposa dançava uma quadrilha com Haydeen, ele permaneceu escondido atrás de um pilar o tempo todo, observando-a. —sussurrou, mostrando em seu tom de voz e nas feições de seu rosto uma excitação irreal.

—Haydeen? —perguntou antes de soltar uma risada. —A suposta Lady Riseway dançou com o quase noivo de Eugine? De sua mãe? —acrescentou com diversão.

E isso confirmou tudo.

Sabrina estava certa, mas estar ciente da verdade não a assustou. Pelo contrário, se sentiu forte ao descobrir que a queda daquele monstro estava em suas mãos.

—Vivi uma situação muito tensa porque fui eu que os apresentei —explicou enquanto Spencer continuava a rir.

—Que pena que perdi aquele momento! —continuou divertido.

—Não foi engraçado, te garanto. Desde esse instante, seu filho ficou atento a todos meus movimentos e cada vez que tentava me aproximar dela, ele me resmungava como um cão.

—Se sua premissa for verdadeira... —Spencer tentou dizer.

—É. Lembre-se que sou capaz de descobrir o amor nos outros, embora nunca o tenha sentido —censurou-o.

—Está bem. Então, como é uma mulher muito observadora e conhece quando as pessoas se apaixonam, devo admitir com orgulho que meu filho não só herdou meu porte, mas também adquiriu a determinação dos Bourton para com as mulheres que nos pertencem —comentou segurando-lhe a mão direita para beijar o anel que ela continuava a usar. —O que mais apreciou?

—Seus olhos. Sempre que a olha se tornam negros devido ao desejo que sente por sua... por essa jovem —esclareceu antes de retirar lentamente a mão que ele continuava a segurar.

—E o que quer me dizer com esta explicação tão precisa? — Insistiu em ter um resumo e ouvir sua conclusão.

—Que só poderá chegar ao seu filho através dela —finalmente declarou.

Que Deus as ajudasse a conseguir o que tinham se proposto e que tudo saísse conforme o planejado.

—E como vou me aproximar dessa mulher se meu filho está sempre perto dela? Assim que me ver aparecer, certamente tentará me matar —Spencer comentou bastante confuso com a sugestão.

—Soube que a jovem caminha sozinha pelo Hyde Park antes do amanhecer. Talvez deva aproveitar esse momento para conhecê-la e pedir que interceda entre os dois. Certamente irá ajudá-lo a se reconciliarem —propôs.

—Boa opção —Bourton disse colocando suas grandes mãos nos ombros de Kimberly. —Amanhã, tentarei...

—Amanhã não a encontrará —informou.

—Por quê? — Retrucou arqueando as sobrancelhas.

—Porque ambos visitarão Tattersalls para comprar um cavalo —explicou calmamente.

—Nesse caso, adiarei o encontro para terça-feira. Parece-lhe adequado, Lady Menderly? —ele perguntou, aproximando sua boca para a dela.

—Parece perfeito —respondeu antes de ser beijada.


XXI I


Lionel estava com ela...

Podia ouvir sua respiração calma, sentir o calor que irradiava seu corpo e perceber a inclinação do colchão para o seu lado. Quando subiu na sua cama? Por que não acordou ao notar sua presença? Sabrina se virou para ele muito lentamente e o observou. Dormia de costas, os braços cruzados sob a cabeça e as pernas estendidas. Levantou-se um pouco, o suficiente para vê-lo melhor, e sorriu ao apreciar que as solas dos pés ficavam fora do colchão. Era uma cama muito pequena ou ele um homem muito grande.

«Gigantismo...», pensou enquanto se deitava novamente. Como ocorreu ao médico que lhes atendia declarar solene estupidez? Lionel não era um gigante, mas um homem de sua idade e sua herança paterna. Kimberly lhe garantiu e ela o confirmaria quando lhe chegasse o laço negro. Porque tinha certeza da cor que lhe enviaria. Seus instintos lhe diziam que a narrativa de sua amiga lhe daria todas as respostas às perguntas que tinha sobre Eugine e que finalmente descobriria a verdade sobre o homem que roubou não só seu coração, mas também sua alma. O que aconteceria depois? Continuariam juntos? O que aconteceria quando Arlington descobrisse que não era filho do príncipe? Talvez suspeitasse. Talvez tenha sido por isso que não o adicionou à lista.

Sabrina tentou se lembrar da conversa que tiveram no dia em que lhe ofereceu o emprego e não achou nada de estranho. Segundo o marquês, não anotou porque estava desaparecido e seria uma tarefa muito difícil para ela. Mas não foi tão complicado. Possivelmente o destino quis que o encontrasse... Lembrou-se das notas que escreveu no caderno quando foi procurá-lo e, com exceção do estalajadeiro, todos os outros não falavam de um menino enorme, mas de um homem que chamavam de Besta por seu jeito de lutar. E era...

Levantou a mão direita e percorreu com a ponta dos dedos, sem tocar, o perfil de seu rosto, o pescoço e seu peito firme. Embora não tenha havido contato, podia sentir sua pele queimando. O que tinha de especial para que se sentisse daquela forma? Continuava sem compreender como tinha sido capaz de lhe devolver a vontade de sonhar, de lutar por um futuro ou de amar... Quis desviar a mão, para apagar o forte desejo que havia se apoderado dela, mas esta ficou estendida no ar quando ele a agarrou com rapidez.

—Bom dia, esposa. Se divertiu ontem? —lhe perguntou se virando para ela.

—Bom dia, marido. Eu tentei —respondeu com um enorme sorriso.

Sabrina adorou olhar seu rosto sonolento, observar seu cabelo despenteado, descobrir a sombra de sua crescente barba e gostou de apreciar a careta de diversão que seus bonitos lábios esboçavam ao pegá-la daquela forma tão carinhosa.

—Onde esteve? —insistiu em descobrir enquanto seus dedos se entrelaçavam com os dela.

—Com Kimberly.

Lionel bufou e seu rosto mostrou raiva por um segundo. Então relaxou, pois não queria iniciar outra discussão com Sabrina sobre a amizade inadequada com a viúva. Ela iria querer uma resposta sincera e ele não poderia dar-lhe sem revelar certos segredos que ainda deviam ser mantidos escondidos.

—Sobre o que conversaram? —Colocou a mão dela sobre seu peito nu e a sua percorreu seu corpo por cima do tecido da camisola.

—Do Tornado —mentiu e ao fazê-lo sentiu-se a mulher mais horrível do mundo. Mas não era o momento de se referir à verdade. Se o plano fosse seguir adiante, em breve poderiam falar com absoluta franqueza. Só esperava que essa sinceridade não os afastasse para sempre.

—Quem é Tornado? —perguntou ao se aproximar mais dela.

A proximidade, o calor tão intenso que sua pele desprendia e o aroma que brotava dela, causaram em Sabrina uma névoa mental. Já não sabia quem ou o que era Tornado e onde o encontraria ao se levantar.

—Quem é Tornado? —repetiu ao não ouvir a resposta.

—É um frísio que quero comprar. Vão leiloar esta manhã em Tattersalls —explicou depois de forçar o seu cérebro a se manter concentrado. —Gosta de cavalos? —perguntou olhando-o nos olhos.

—Me encantam —sussurrou em seu ouvido.

O tremor que a percorreu anunciou-lhe que não apenas ela estava excitada, mas que aquele olhar azul declarava que o desejo era mútuo. Teria sentido falta dela na noite anterior? Queria entrar em seu quarto? Se pensou e não apareceu, foi porque respeitou a sua vontade. Essa conjectura provocou uma aceleração nos batimentos do seu coração, porque lhe indicou que jamais faria algo que ela não quisesse, e se excitou tanto que suas bochechas queimaram. Muitos amantes se contentavam em saciar a paixão que ambos despertavam, mas ela necessitava algo mais de um homem para sentir-se atraída. Necessidades que, por mais estranhas que pareçam, Lionel provia com atos silenciosos.

—Quer que a acompanhe? —lhe perguntou ao colocar sua mão nas costas e atraí-la para ele até que ambos os corpos se encaixaram perfeitamente.

—Não tem planos com Arlington? —disse colocando sua perna direita sobre ele, para que não saísse fugindo, para que entendesse que ela tampouco queria escapar de seu lado e para deixar claro que seu desejo era correspondido.

—Tenho certeza que entenderá minha decisão —respondeu afastando gentilmente os longos cachos negros de seu rosto.

—Que decisão? —Sabrina continuou acariciando lentamente o maxilar dele.

Sua pergunta brotou em forma de suspiro? Porque ela a ouviu dessa forma.

—O de vigiar a minha esposa —alegou antes de tomar sua boca.

Tinha sentido sua falta assim como ela sentia falta de seu toque e seus beijos.

Lionel a colocou sobre ele sem parar de beijá-la ou acariciar cada canto de seu corpo. Livraram-se da camisola e da calça com mais desejo que da vez anterior. Estava ansioso por sentir o contacto da sua pele e ela opinava o mesmo. Não houve ternura naquele ato de amor porque não eram dois amantes quaisquer, mas duas bestas libertas e famintas. Riram quando ouviram o ranger da cama, e inclusive ambos fecharam os olhos ao pensar que terminariam no chão. Mas quando descobriram que tudo continuava igual, continuaram amando-se até ficarem exaustos.

Lorde Besta encontrou a sua mulher e ela a sua besta...


Depois de consumir a paixão ardente e ansiosa, dormiram até depois das onze. Quando Sabrina descobriu que era tarde, saltou da cama e fez Lionel ir para o seu quarto. Depois de fechar a porta, abrir as cortinas, a janela e lançar os lençóis aos pés da cama, chamou a donzela.

—Bom dia, milady —a cumprimentou quando entrou. Então, caminhou até o banheiro, tirou algo do bolso e o colocou junto ao pente.

—Preciso de um vestido de tarde, meias de seda brancas, um chemise curto, ligas azuis e botas confortáveis. Não me escolha um chapéu de aba muito larga porque hoje preciso ver além da ponta dos meus pés. Que temperatura faz lá fora? Se não estiver muito frio, poderia usar o xale de cashmere cinza em vez do casaco —falou depressa enquanto esfregava o rosto com água fria.

—Parece-lhe bem o vestido esmeralda de meia manga, o chapeuzinho claro e as botas marrons? —perguntou.

—Sim. Acho que é excelente —assinalou limpando-se com um pano de linho enquanto caminhava para o toucador. Quando se colocou em frente ao espelho, observou o laço negro. Pegou-o e olhou para a donzela.

—O senhor Vanther pensou que devia trazê-lo quando me chamasse —apontou em voz baixa.

—Obrigada —respondeu guardando-o rapidamente na gaveta direita da cômoda.

—Então, escolhe o verde? —insistiu em saber a criada.

—Sim.

Enquanto a jovem procurava o vestido, Sabrina sentou-se e suspirou. Estava fazendo a coisa certa? Ela não ia trair Lionel, mas descobrir quem era o seu pai e encontrar o assassino do Eugine. E se esses eram seus únicos motivos, por que sentia uma forte pontada de dor no peito?

—Milady? —Disse a criada ao entrar.

—Prossigamos! —exclamou afastando todas as suas dúvidas para se concentrar no próximo passo: procurar as desculpas perfeitas para explicar por que Lionel queria acompanhá-la a Tattersalls.

Estranhamente, não teve que revelar nada do que pensou.

Desta vez, não ouviu nenhuma resposta de Arlington, uma insinuação estranha de Petey e Babier permaneceu em silêncio quando o próprio Lionel os informou o que pretendiam fazer durante a manhã. O que tinha acontecido entre eles no dia anterior? Por que não alegaram nada? Sabrina estava tão ansiosa para sair de Riseway que não quis descobrir. Tudo o que queria era adquirir Tornado e aproveitar o resto do dia com a pessoa que amava.

Sim, achava isso difícil de aceitar, porque há seis anos jurou que nunca mais se apaixonaria por outro homem e que, se o fizesse, Babier teria de espetar uma adaga em seu coração. Entretanto, Lionel não só destruiu a blindagem que havia criado ao seu redor, como também o conquistou e arrancou.

—De todos estes, qual é o Tornado? —lhe perguntou Lionel quando percorreram as quadras do Tattersalls.

—Eu disse que era um frísio —lembrou-lhe nervosa.

Não o encontrou dentro dos estábulos. Onde o tinham levado? Teriam leiloado antes de aparecer? O homem com quem falou disse-lhe que não devia se preocupar, que o guardaria até que a visse chegar. Mas naquele dia foi disfarçada de jóquei, não de dama. Sua preocupação aumentou, assim como seu nervosismo.

—Negro? —quis saber.

—Sim —respondeu e se voltou tão rápido para ele, que levantou o feno do chão com a barra do vestido. —Viu ele?

—Não será esse aí fora, certo? —declarou apontando com o dedo para o cavalo que restava no meio da praça em poder do leiloeiro.

—Tornado! —clamou correndo para o cavalo.

—Sabrina! —gritou Lionel correndo atrás dela.

O leilão tornou-se uma odisseia. O cavalo despertou muito interesse entre os participantes e fizeram ofertas por ele. O desespero se apoderou de Sabrina até o ponto de tirar o chapéu e apertá-lo entre suas mãos. Lionel suspeitou, pelas vezes que tocou o cabo do abridor que escondia em seu cabelo, que desejou atirá-lo a quem dava lance depois dela. Felizmente, quando o valor de venda ultrapassou as 50 libras, todos os interessados se retiraram menos um: um cavalheiro de meia-idade vestindo um terno escuro e que permanecia escondido entre a multidão.

—Gosta assim tanto daquele animal? —lhe perguntou Lionel ao ouvido. Não lhe fez falta escutar com palavras a resposta. Quando observou o brilho de seus olhos e a expressão de angústia em seu rosto, soube o que devia fazer. —Continue dando lances e não desista. Já volto —lhe pediu antes de se afastar de seu lado.

—Me deixa sozinha? Neste momento tão horrível? Por quê? —falou inquieta.

Mas não ouviu o que Lionel lhe disse devido ao escândalo formado pelas conversas próximas a ela, os relinchos dos cavalos, o grasnar dos patos, o balido das ovelhas e os gritos do leiloeiro. Embora soubesse imediatamente para onde se dirigia: para o cavalheiro que a impedia de conseguir o Tornado.

—Senhor, que não o mate diante de tantas testemunhas —suplicou esboçando um enorme sorriso.

—Sessenta e cinco? —o leiloeiro gritou para se fazer ouvir diante de tanto barulho.

—Eu! —ela gritou levantando a mão novamente.

Se Sabrina queria o animal, ela o teria...

Enquanto caminhava até o cavalheiro, o examinou como se este tivesse se tornado em seu feroz adversário de guerra: observou o acabamento gasto de seu traje, a deterioração que o lenço branco emaranhado em seu pescoço mostrava, os punhos da jaqueta. Em seguida, notou como tocava a ponte do nariz quando o leiloeiro olhava para ele e como torcia a ponta direita do seu bigode grisalho cada vez que Sabrina aumentava o valor. Estava manipulando. Tinha testemunhado leilões suficientes em Villa Liverpool para duvidar por um único segundo. Era uma artimanha bastante utilizada pelos comerciantes desesperados. Combinavam com os leiloeiros um valor e davam lances até que o alcançassem. Desta forma, todos se beneficiaram, exceto o comprador, que adquiria a peça por um valor exorbitante. No caso de sua esposa, Tornado. Um frísio preto muito bonito e com aparência nobre. Talvez por isso desejassem leiloá-lo. Qualquer que fosse a razão de seu dono querer se livrar do animal, não iria permitir que se aproveitassem da esperança de Sabrina. O assunto, a licitação e o engano seriam resolvidos em breve. Quantos minutos seriam necessários para obtê-lo?

—Um cavalo magnífico —comentou quando se aproximou do seu alvo. —Sua crina é brilhante, seu pescoço é áspero, sua cabeça é bastante comprida e suas orelhas são relativamente pequenas. Ele é holandês ou espanhol? —alegou colocar as mãos atrás das costas sem tirar os olhos do animal.

—Seus pais são da Frísia, mas ele nasceu no condado de Sussex —respondeu esquivo o homem depois de observar a enorme figura que se posicionou à sua esquerda. —O dono teve que vender a residência campestre e quer fazer o mesmo com os animais que havia nela.

—Mas não acha que é uma oferta muito alta para um cavalo doméstico? —Lionel perguntou com calma virando-se lentamente para o homem.

—Se está tentando me afastar do leilão, não conseguirá —expressou o cavaleiro com falso orgulho.

—Vou ser claro, senhor...

—Lorde Thawson, Visconde de Hillgrey —manifestou com orgulho—. Setenta e dois! —gritou ao ouvir a última cifra que Sabrina ofereceu. —E não quero que me fale sobre nada, quero esse cavalo —continuou com tom soberbo.

—A dama contra quem está dando lance é minha esposa. Está tão entusiasmada por levar Tornado para a nossa futura casa, que pretende pagar mais do que realmente custa. Mas eu, seu marido, não quero que a cifra seja superior a setenta e cinco libras porque teria que questionar o bom nome do Tattersalls, e não creio que gostarão de ouvir minhas dúvidas a todos que hoje se aproximaram de adquirir uma boa mercadoria.

—O que está insinuando? —perguntou arregalando os olhos. —Quem acha que é para falar comigo de uma forma tão vulgar?

—Eu sou Lionel Krauss, neto do conde de Gable —comentou tão orgulhoso de finalmente ser capaz de expressar sua verdadeira identidade que seu peito inchou a ponto de ouvir o estalar dos botões do colete. —Quero avisá-lo que, se não abandonar agora mesmo este embuste, encontrará amanhã no noticiário social uma ampla coluna falando sobre sua decadência econômica. —Quando o cavalheiro o olhou com suspeita, Lionel acrescentou —: Eu deduzi isso observando o desgaste de seu terno, os arranhões nos seus calçados e como o tecido de seu lenço está amassado. Embora também possa acrescentar que acabei de sentir o cheiro do sabão que as prostitutas de rua usam para seus clientes. Não lhes dê ouvidos, Lorde Thawson, por mais que insistam que o tenham guardado para o senhor, é mentira. Também o usam para se assear depois de realizar um serviço —Sussurrou no seu ouvido com zombaria.

—Sabe o que está fazendo, senhor Krauss? —soltou com as bochechas vermelhas como tomates.

—Sim. Evitando que minha esposa seja enganada por um cavalheiro que, devido a suas más gestões ou vícios, pensou que conseguiria a fortuna que perdeu enganando damas iludidas —afirmou dando um passo em sua direção.

Então tirou as mãos das costas e as deixou cair de cada lado do corpo. Não entendia o motivo, mas algo lhe dizia que logo teria que usá-las. Arlington não comentou que a aristocracia amava a aparência social? Bem, tinha acabado de chutar a bunda do cavalheiro e, claro, não iria sair ileso.

Mas ele nunca esperou ouvir aquilo.

—Deduzo por seu sobrenome que é o filho de Eugine Krauss. Se estou certo, não deveria me falar de honra, pois seu sangue não possui nem uma gota de moralidade. Todos os cavalheiros souberam que... —tentou dizer, mas não continuou falando porque sentiu uma pressão estranha no abdômen. Olhando para baixo, ele descobriu que a ponta de uma adaga estava começando a perfurar o tecido de suas roupas usadas.

—Se não fosse por minha esposa querer esse cavalo, agora mesmo observaria como suas vísceras saem do estômago. Por isso, se não quer que mude de ideia, acabe logo com esta mentira, pegue o dinheiro que será pago pelo animal e saia de Londres —Lionel murmurou mostrando toda a raiva que sentia através do seu olhar.

—Oitenta? Eu ouvi oitenta? —perguntou o leiloeiro olhando o cavalheiro. —Não? —O visconde negou com a cabeça. —Vendido para a Dama por setenta e cinco libras!

—Bem! É meu! —Sabrina gritou. Jogou o chapéu para o céu e correu para o cavalo.

—Decisão certa —Lionel comentou escondendo a pequena adaga no bolso interno de sua jaqueta. —Foi um prazer conhecê-lo, Lorde Thawson.

—Não posso dizer o mesmo, senhor Krauss —expressou antes de levantar o queixo e se afastar de lá.

Lionel olhou para Sabrina e sorriu ao vê-la abraçada ao pescoço do animal. Então olhou para Lorde Thawson, e o sorriso dobrou de tamanho quando descobriu que estava indo para o estábulo da esquerda. Por acaso não sabia que tipo de perigos encontraria ali? Ele, pelo menos, conhecia um... Lionel Krauss, filho de uma mulher imoral e, segundo Sabrina, Lorde Besta.

—Não posso acreditar! —Sabrina exclamou tocando a pele do animal. —Já é meu, Tornado. Porque não vou mudar seu nome —alegou sem deixar de lhe acariciar o pescoço, as orelhas, a crina. —Eu prometo que vai se sentir feliz ao meu lado. Ninguém vai te bater novamente. Gosta de correr? Porque o lugar onde viveremos será muito grande e poderemos dar longos passeios. Agora mesmo, um servo irá levá-lo para Riseway. Paguei a ele para tratá-lo como merece. Certamente encontrará... —Ficou calada ao notar a presença de Lionel atrás dela. Estava tão perto, que podia escutar sua agitada respiração. —Não sei como conseguiu que aquele homem parasse de dar lances, mas... —Ficou calada quando se virou para ele. —O que aconteceu? O que fez? O matou? —perguntou ao vê-lo abotoar com rapidez os botões da jaqueta e sacudir o pó da calça.

—Não, mas talvez abra os olhos para um novo amanhecer —respondeu esboçando um enorme sorriso.

Outra mulher teria ficado chocada ao vê-lo chegar coberto de sujeira, teria até mesmo pensado que ele tinha tido um encontro no estábulo com uma amante enquanto ela mimava seu novo cavalo. Mas Sabrina não tinha nada a ver com esse tipo de mulheres. Ela o ajudou a remover as rugas de sua jaqueta, tirar o feno de seus ombros e ajeitar seus cabelos despenteados depois da luta.

—Me sinto eufórica, Lionel —comentou, sacudindo as lapelas da jaqueta. —Acho que desde que te conheço, sei o que significa ser uma mulher feliz.

—Está feliz porque esse homem continua vivo? —perguntou com sarcasmo levantando a sobrancelha esquerda.

—Não, por me ajudar a conseguir Tornado —mentiu corando ao declarar algo tão íntimo e confidencial. Deu dois passos para trás, para que as pessoas não falassem do comportamento tão inapropriado de lorde e lady Riseway. —Por um momento, pensei que o perderia —alegou para que Lionel não duvidasse sobre o motivo de sua felicidade. Embora temesse que a única pessoa a quem enganasse seria a ela mesma.

Avançou para ela os dois passos que colocou de distância.

—O que minha esposa queira, terá —respondeu depois de lhe levantar com suavidade o queixo para que o olhasse. —Minha missão nesta vida será sempre cuidá-la, protegê-la, amá-la e fazê-la feliz por toda a vida —acrescentou antes de beijá-la diante de todos aqueles que, ao vê-los, ficaram em silêncio.

Só os patos, as ovelhas e os cavalos continuaram emitindo ruídos...


XXII I


Sabrina deslizou pela cama muito lentamente. Uma vez que saiu desta sem acordar Lionel, caminhou nas pontas dos pés até seu quarto.

Devia se apressar ou chegaria tarde. Tinha adormecido novamente. O calor que o corpo de Lionel exalava lhe provocava um estado de bem-estar tão maravilhoso que agia como um forte relaxante. Sem poder apagar o sorriso do rosto, devido a sua felicidade, ajoelhou-se frente a sua cama, estendeu a mão e agarrou com a ponta dos dedos o tecido do vestido marrom que guardou na tarde anterior. Ao tirá-lo, o sacudiu e o colocou sobre o biombo. Enquanto colocava as meias, a camisola e as ligas, pensava na tarde que tinham passado juntos.

Se houvesse uma palavra que pudesse resumi-la seria extraordinária...

Ao abandonar Tattersalls, Lionel lhe pediu para passear e conversar. Durante a caminhada, de forma voluntária, falou-lhe de Eugine, de como foi sua infância e inclusive de seu avô Liam. Explicou que foi ele quem lhe deu o nome depois que nasceu e que se lembrava de como era bom em esculpir madeira. No entanto, não mencionou seu verdadeiro pai. Parecia que não existia para ele. Talvez Eugine não tivesse lhe contado a verdade...

Quando retornaram a Riseway, visitaram Tornado e Lionel perguntou-lhe onde gostaria de morar quando terminassem a missão. Ela respondeu que tinha prometido ao cavalo um lugar amplo para poder correr.

—Royalhouse é o melhor lugar para viver —lhe respondeu com um halo de saudade. —Passei lá os melhores anos da minha vida.

Não se atreveu a perguntar-lhe em que outros lugares tinha permanecido para defini-lo daquela forma. Já teria tempo, uma vez que se descobrisse a verdade, de falar com tranquilidade sobre aquela parte de sua vida. Finalmente, passaram a noite junto com os outros. Houve momentos em que suspeitou que todos sabiam algo e que a tinham excluído, mas não quis alterar o ambiente familiar que se respirava. Petey tocou piano enquanto ela dançava com Lionel, com Arlington e, finalmente, com o desastrado do Babier. Então jogaram cartas e às onze horas todos começaram a se retirar para seus quartos. Quando ficaram sozinhos, Lionel pegou sua mão e a conduziu escada acima tão rápido que ela não tocou na maioria dos degraus. Queria tê-la novamente em seus braços, em sua cama e que ambos se tornassem um único ser. No entanto, durante certos momentos da noite, ela percebeu que havia algo diferente nele. Talvez fosse o tom de voz que usou ao chamá-la esposa, ou a forma de acariciá-la, de beijá-la ou de possuí-la. Mas tinha o pressentimento de que algo havia mudado entre eles.

Ela prendeu o cabelo em um coque baixo e caminhou até a penteadeira. Por alguns segundos hesitou sobre a ideia de levar o abridor de cartas ou deixá-lo ali, já que o encontro com o conde não representaria nenhum perigo para ela. Foi só um contato para descobrir se Kimberly estava certa. Se não tivesse se confundido, voltaria e falaria com todos. Como Lionel reagiria? Ele a odiaria? Talvez não, porque se conseguisse encontrar uma prova que acusasse o conde da morte de Eugine, estava segura de que a perdoaria. Ela foi até a janela, puxou a cortina, abriu-a e, assim que puxou uma perna para fora, colocou-a de volta, voltou para a penteadeira e colocou o abridor de cartas no cabelo. Ela o usava como enfeite há tantos anos que não conseguia mais sair sem ele. Com um sorriso cruzando seu rosto, passou as duas pernas e saltou pela janela. Depois de se levantar, sacudiu a poeira do vestido e retocou o penteado com as mãos. Olhou para os dois lados e confirmou que não havia ninguém ao seu redor. Em seguida, foi para o pequeno estábulo onde Arlington mantinha os cavalos que puxavam suas duas carruagens.

—Bom dia, Tornado, como passou a noite? Conseguiu descansar? —Falou com o animal enquanto abria o portão. —Hoje daremos nosso primeiro passeio e descobriremos se somos compatíveis. Sabe que muitos cavalos não se acostumam com seus cavaleiros? —continuou a tagarelar nervosa, porque era assim que ela se sentia apesar de tentar acalmar-se.

Não usou a sela. Não queria perder tempo procurando a adequada. Colocou o arreio no Tornado e assim que ele se adaptou, subiu e cavalgou sem parar até o Hyde Park. Onde Kimberly disse que se encontrariam? No lago, ao lado do embarcadouro? Sua mente estava tão alterada que não lhe oferecia a resposta. Embora tenha se concentrado em pensar no que aconteceria quando Lionel acordasse e não a encontrasse ao seu lado. Ele a procuraria ou esperaria seu retorno em frente à porta da entrada como fez depois de chegar do passeio com Kimberly?

Esperava chegar antes. Esperava que não se zangasse. Esperava que sua história de amor não terminasse nesse mesmo dia...

Desceu do cavalo de um salto, amarrou frouxamente as rédeas em um galho de uma árvore e, após respirar fundo, caminhou lentamente pelos arredores do lago. Tudo estava muito calmo e silencioso. Assemelhava-se muito ao momento anterior do início de uma batalha campal. Aquele em que os soldados rezavam para continuar vivos ou para alcançar a paz de suas almas. Pôs as mãos atrás das costas e continuou seu passeio até que ouviu um ruído próximo. Ao virar-se, levou ambas as mãos ao peito. Deus bendito! Eram idênticos! Kimberly estava certa! Lionel era o filho do conde! Até mostravam a mesma aparência tenebrosa ao se vestir de preto. A altura, o cabelo, o contorno da mandíbula, o contorno dos lábios, a largura dos ombros e o olhar... De repente, o assombro provocado pela descoberta transformou-se em inquietação. Por que a olhava daquela maneira? Por que seu sorriso expressava prazer?

—Bom dia, lorde Bourton —disse para romper aquela tensa situação. —Sou...

—Por todos os diabos! —exclamou o conde sem parar de rir. —Mas o que temos aqui? É a esposa do meu filho? Inacreditável! Nunca pensei que Kimberly realizaria um milagre semelhante.

Ao ouvir sua voz, ela soube que jamais voltaria a sentir a presença do homem que amava, nem tomaria a mão tranquilizadora de Arlington ou escutaria os conselhos de Petey. Também não podia contar a Babier que ele havia se tornado um irmão para ela e que quebraria a promessa que fizera a Tornado. No entanto, não mostrou tristeza ou temor em seu rosto, não lhe daria essa satisfação. Orgulhosamente levantou o queixo e deu um passo em frente.

—Khar!

—O mesmo, senhorita Ormond. Não tem ideia do prazer que sinto em vê-la novamente. Está muito recuperada, praticamente não mostra nenhum sinal do passado. Quantos anos faz desde aquela linda viagem a Paris? Seis? O tempo passa muito rápido...

—É um homem morto! —exclamou e depois lhe cuspiu na cara.

—Eu não teria tanta certeza disso... —respondeu limpando o rosto com um lenço cinza. Em seguida, deu um passo para trás, levantou a mão e cinco homens se colocaram ao redor dela. —Meu filho sabe o que faz?

—Não! Ele não sabe de nada! —clamou desesperada—. Lionel pensa que estamos casados!

—Amor por um ente querido é tão lindo... —apontou divertido—. Eugine gritou com o mesmo desespero quando fui procurá-lo. Insistiu que não era meu filho e, aparentemente, é idêntico a mim.

—Mas lhe garanto que por suas veias não corre sangue Bourton, mas Krauss —afirmou Sabrina levantando o queixo. Comentário que, ao não satisfazer o conde, obteve como resposta uma bofetada tão forte que lhe partiu o lábio.

—Não volte a pronunciar o sangue dessa desgraçada —resmungou, agarrando-a pelo pescoço enquanto os seus homens lhe amarravam as mãos atrás das costas.

—Eugene teve honra —continuou com orgulho. —Não sabe o que isso significa.

—E a senhorita sim? É o mesmo que teve nas mãos de Pierre? —Sorriu com malicia—. Meu filho viu as marcas nas suas costas ou nos seus pulsos? Explicou que passou horas mordendo a pele como se fosse um rato asqueroso? Disse-lhe que nos distraíamos muitíssimo contigo? Não? Lástima! Acho que tenho de lhe contar essa parte divertida da tua vida —continuou mordaz.

—Ele me procurará e o matará —Sabrina garantiu depois de cuspir no chão o sangue que entrou em sua boca.

—Estou certo de que te procurará, mas não creio que queira me matar depois da oferta que farei —comentou tocando sua bochecha, pescoço e decote com a ponta de seus dedos. —Pensa que a deixará viver em troca da sua lealdade?

—Bastardo! —gritou.

—Maldita puta! —disse dando-lhe outro bofetão. Embora desta vez fosse tão forte que Sabrina caiu inconsciente no chão. —Retornamos! —ordenou aos seus homens enquanto se afastava. —Não deixe nenhuma evidência que informe a sua presença ou a nossa —acrescentou.

—Senhor, o cavalo da mulher escapou. Nós o seguimos?

—Aquele animal não me preocupa —adicionou esboçando um grande sorriso.


Estendeu a mão direita para o lado da cama de Sabrina. Mas não a encontrou. Seus dedos só tocaram os lençóis frios e vazios. Abriu os olhos de repente, sentou-se e olhou ao seu redor. Onde estaria?

—Sabrina, está aqui? —perguntou depois de colocar as solas dos pés no chão. Ele se levantou, afastou o cabelo do rosto com as duas mãos e foi até a janela. Tinha amanhecido, verificou depois de abrir as cortinas e ver a luz do novo dia. Virou-se para o quarto e procurou com o olhar a calça. —Se não me responder, entrarei em seu quarto sem pedir sua permissão. Embora não seria a primeira vez que o fizesse —acrescentou esboçando um sorriso malicioso enquanto ajustava o cós do calção em seus quadris.

Ao não ouvir sua voz, desejou entrar. Mas se obrigou a permanecer em seu quarto para não encontrá-la em uma situação comprometedora. Devia evitar qualquer briga entre eles para levar a cabo seu plano. Quis fazê-lo no dia anterior, no entanto, eliminou-o rapidamente ao descobrir que ela tinha outras coisas importantes na cabeça.

Enquanto esperava que Sabrina retornasse a seu lado, sentou-se sobre o colchão e pensou na reunião que manteve com os membros da ordem. Estes, após sua longa explicação, rejeitaram seu pedido. Não acharam conveniente que depois de se apresentar como o filho de Arlington, revelasse sua identidade até averiguar o paradeiro do Khar. Mas essa recusa não o desanimou e ele lutou para convencê-los até que a figura da pessoa escondida nas sombras no canto da sala se levantou e caminhou em sua direção.

Houve silêncio.

—Por que acha que devemos considerar sua solicitação? —lhe perguntou o príncipe ao se colocar a seu lado.

—Boa tarde, alteza —lhe respondeu inclinando suavemente a cabeça para frente.

—Boa tarde, senhor Krauss —disse depois de pôr as mãos atrás das costas e olhá-lo com interesse.

Lionel soube de imediato o que procurava: encontrar as semelhanças que o definiam como seu filho. Embora temesse que não as encontrasse. Qualquer um que notasse os dois físicos deduziria a verdade.

—Então? —insistiu Prinny.

—Não sei se lorde Arlington lhe informou sobre o incidente que houve há alguns meses na casa da mulher que se apresentou como minha esposa. —O príncipe assentiu—. Foi atacada porque o Khar quer me encontrar.

—Qual o motivo? O que tem de diferente dos outros? —perseverou em saber.

—Meu avô —respondeu calmamente. —Como sabem, morreu na miséria, mas todos acreditavam que foi devido à má gestão de sua fortuna. Não foi assim. Caso não se lembrem, antes de se casar, ele triplicou suas riquezas. —Lionel fez uma pausa, esperando ouvir algum comentário a respeito. Ao não ouvi-lo, prosseguiu. —Na noite em que Lorde Haydeen anunciou que não haveria noivado com minha mãe, se concentrou em explicar razões absurdas sobre coração partido. No entanto, ignorou a razão mais importante da rejeição.

—Qual? —perguntou um dos cavalheiros.

—Ela testemunhou um assassinato e quis protegê-lo —revelou olhando para quem fez a pergunta.

—Como sabe isso? —Arlington interveio.

—Ela mesma me contou quando tive a idade apropriada —Lionel declarou.

—Quem mataram? Quem foi o assassino? —alguém disse.

—Nunca soube suas identidades —mentiu, porque essa parte da história ainda não lhe interessava revelá-la —, mas informou o meu avô do que aconteceu. Por esse motivo, ela partiu no dia seguinte de Londres e se escondeu durante tanto tempo.

—O que seu avô fez para perder sua fortuna? —Prinny perguntou com interesse.

—Assim que encontrou o lugar perfeito para abrigar minha mãe, investiu toda a sua fortuna para saber o que tinha acontecido naquela noite. No entanto, não descobriu até vários dias antes de morrer.

—O que descobriu? —Arlington perguntou novamente.

—Que naquela noite, o Khar esteve na festa e pactuou a aliança entre os Terinthians e os jacobinos —afirmou.

—Deus santo! —alguns cavalheiros exclamaram.

—É por isso que o Khar me procura. Pensa que ele nos revelou o nome —acrescentou com calma.

—E é verdade? —perguntou o príncipe.

—Não. Meu avô pensou que minha mãe estaria segura se a mantivesse fora de tudo —respondeu depois de ponderar a resposta. Não deviam conhecer a verdade se queria chegar até ele, se queria fazê-lo pagar todo o sofrimento que causou a sua mãe e vingar sua morte. —Mas o Khar não sabe essa parte da história. Por esse motivo apareceu em Royalhouse. Queria eliminá-los para preservar seu segredo. No entanto, minha mãe foi informada de sua chegada iminente e decidiu me afastar dali. Ela não escutou minha súplica e me prometeu que não lhe aconteceria nada, que estaria a salvo se eu não ficasse ao seu lado. Logicamente, mentiu para me salvar —expressou através de um longo suspiro. —Foi por isso que parti —disse esta última frase olhando para Arlington.

—Suspeita que o Khar a matou? —quis confirmar Petey. Pois já lhe falou sobre isso quando se conheceram e não obteve uma resposta clara do moço.

—Não suspeito, eu afirmo —declarou solenemente.

Durante vários minutos se ouviu o murmúrio que os cavaleiros fizeram ao falar. Enquanto isso, o príncipe e ele ficaram no centro da sala se olhando. Finalmente, este se afastou e tomou assento.

—O que propõe? —perguntou.

—Acho que é conveniente que todo mundo saiba quem sou realmente. Suspeito que quando o Khar descobrir onde estou, virá em minha busca. Mas estaremos preparados para esse momento —explicou.

—Quer se tornar a isca? —Arlington disse.

—Esse sempre foi meu papel desde que nasci —Lionel garantiu.

—O que pede em troca? —Prinny interveio novamente.

—Se conseguir sobreviver depois de pegá-lo, desejo que me devolva o título que detinha meu avô. Merece essa pequena homenagem depois de passar seus últimos anos buscando a maneira de ajudar a coroa —declarou solenemente.

—Nunca menosprezarei a educação que sua mãe lhe ofereceu —comentou o príncipe acariciando o queixo —, mas devo confessar que não só herdou minha postura, mas também minha audácia e determinação —acrescentou piscando um olho.

—Assim é —respondeu Lionel sem mostrar em seu rosto a diversão que sentia ao ouvi-lo declarar tremenda idiotice.

—Será dado o que pede —concluiu o príncipe após pensar por alguns segundos. —Arlington continuará a protegê-lo até o fim da missão. Quando isso acontecer, não apenas se tornará o novo conde de Gable, mas também cuidarei para que obtenha as riquezas que seu avô perdeu.

—Não quero que me ofereça uma boa situação financeira, Vossa Alteza. Se quiser acrescentar algo a este compromisso, gostaria que me concedesse Royalhouse como presente de casamento.

—Presente de casamento? —Prinny perguntou levantando uma sobrancelha.

—Vou pedir a senhorita Ormond que se case comigo —indicou.

Lionel levantou-se do colchão e caminhou decidido para o quarto de Sabrina. Tinha tido tempo de sobra para terminar aquilo que a mantinha afastada dele. Além disso, ele estava ansioso para ver a cara que faria ao pedir-lhe em casamento e ouvir sua resposta. Esperava que não o recusasse ou a pegaria nos ombros e a levaria a força até Gretna Green para que qualquer ferreiro os casasse.

—Vou entrar —disse ao tocar com a ponta dos dedos de sua mão direita a porta que separava os dois quartos. —Sabrina? —insistiu abrindo-a devagar.

Mas não havia ninguém lá. De repente, notou como os batimentos de seu coração aceleravam e como seu corpo começava a tremer devido ao desespero que o embargou ao não encontrá-la. Entrou e olhou em volta. Sua angústia aumentou até limites insuspeitos ao descobrir que o abridor de cartas não estava sobre a penteadeira e que a janela permanecia aberta.

—Sabrina! Onde está Sabrina? Alguém a viu? —gritou percorrendo o corredor e batendo em todas as portas que encontrou em seu caminho. —Levantem! Acordem! — Adicionou exasperado.

—O que está acontecendo? —Arlington perguntou, amarrando seu robe de seda ao sair de seu quarto. —Porque essa gritaria?

—Sabrina não está. Acho que se foi —respondeu Lionel esfregando o rosto.

—Falou com ela? Pediu-lhe que se case contigo? —interveio Babier ao reunir-se com eles.

—Não tive tempo. Tinha a intenção de pedir-lhe esta manhã. Mas quando acordei, ela não estava ao meu lado. Pensei que tinha se retirado para seu quarto para se lavar. No entanto... —Indicou alterado, porque não conseguia pensar que Sabrina tinha partido, que ela não queria saber nada sobre ele, que intuíra a sua proposta e que essa era a forma de lhe recusar.

—No entanto? —o marquês insistiu.

—A janela do seu quarto está aberta e eu não encontrei o abridor de cartas na penteadeira —declarou quase sem fôlego, porque não era capaz nem de respirar devido à angústia.

—Onde estará? Que diabos terá tramado? Alguém sabe alguma coisa? —Petey perguntou aos criados quando estes se apresentaram diante deles. —Se assim for, prometemos que não serão punidos. Só precisamos saber para onde Lady Riseway pode ter ido.

—O cavalo da senhora! —gritou Vanther da porta de entrada. —Voltou sem Lady Riseway! —adicionou horrorizado.

—Maldição! —Babier gritou descendo as escadas ao lado de Lionel.

—Não tem sela —Arlington comentou depois de sair e ver Tornado andando em círculos, inquieto como todos eles estavam.

—Ela saiu para procurar por algo ou alguém —declarou Petey do corredor.

—Quem ou o quê? —perguntou Lionel voltando-se para ele.

—Verifiquem o quarto da senhora! —ordenou Babier aos criados. —Que não fique nem um só canto desse quarto sem revistar!

—Milorde —apontou Vanther abaixando o olhar enquanto esfregava as mãos. —Sei quem é a pessoa que sabe o paradeiro da senhora.

—Quem?! —Lionel, Babier, Arlington e Petey gritaram ao mesmo tempo.

—Lady Menderly.


XXI V


Kimberly saiu do quarto quando ouviu vozes alteradas dentro de sua casa. Seria Sabrina? Por que estava tão zangada? Amarrou o laço da bata preta e desembaraçou o longo cabelo loiro com os dedos. Caminhando descalça pelo corredor, não deixou de pensar nos possíveis motivos pelos quais sua amiga aparecia daquela forma tão escandalosa. Sempre tinha sido muito discreta ao visitá-la. Especialmente depois do aviso silencioso de Lionel. Kimberly se lembrou do momento em que se conheceram e descobriu que o rosto do falso Lorde Riseway mudou de gentil para rude quando olhou para o anel que Spencer lhe havia dado. Levantou lentamente a mão direita e o olhou. Reconheceria o escudo? Se fosse verdade, isso confirmaria sua teoria sobre o conhecimento do nome de seu verdadeiro pai. Talvez Eugine tenha tido um semelhante quando estava com Spencer.

—É uma joia única. Não há outra igual. Achei que tivesse perdido, mas não, aqui está em minhas mãos de novo e agora é seu, Kimberly.

A cada passo, sentia seu peito se contrair e respirava pesadamente. Quando Spencer lhe deu? Quantos anos se passaram desde que Eugine morreu? Parou novamente, apoiou a mão esquerda na parede e tentou se tranquilizar ao concluir que, possivelmente, o anel pertenceu a Eugine. Talvez o tenha tirado no dia em que a matou.

—Deus meu! —clamou deslizando com pressa a joia por seu dedo. Ao tirá-la, jogou-a no chão como se a queimasse.

—Chame-a! Ou juro por Deus que vou buscá-la! —alguém gritou com muita raiva.

Kimberly se afastou da parede e caminhou lentamente pelo corredor até chegar ao pé da escada. Estava tão tonta que não distinguiu as figuras de quem estava na entrada de sua casa. Para ela eram manchas borradas de cores irreconhecíveis...

—Maldita! —gritou Lionel enquanto olhava para cima para encontrar a viúva. —Onde está Sabrina?

—Agarre-o, Babier! Não se aproxime dela! —Arlington ordenou. Então se virou para Kimberly e disse —: Perdoe-nos, Lady Menderly, mas tem de nos dizer onde está Sabrina. Pelo que entendi, é a única pessoa que sabe.

«Lionel Krauss e lorde Arlington», pensou Kimberly antes de estender uma mão para o corrimão de madeira para se segurar.

Ela não era uma pessoa má. Ela havia pagado com acréscimo pelo erro de sua juventude. Viu-se na obrigação de se tornar a amante de um homem para sobreviver. Tinha dado informações em troca de... para que Spencer usou a informação? O que fez com esta? Percebendo que nada de bom, um arrepio percorreu seu corpo. Se Spencer era um criminoso, ela também seria julgada e acusada de cúmplice. Haveria um julgamento, iria para a prisão... depois disso, um nome apareceu em sua cabeça: Sabrina. Por que não tinha chegado? Onde estava? Por que o filho de Spencer estava gritando dentro de sua casa? Fechou os olhos ao se sentir fraca, ao não conseguir se segurar por mais tempo. Quis atirar-se pelas escadas e pagar por suas más ações. Entretanto, quando seu corpo deveria ter notado os danos que os degraus duros causariam, sentiu o calor de um braço ao redor de sua cintura e o aperto em sua mão esquerda.

—Se acalme. Prometo que nada lhe acontecerá —Arlington sussurrou—. Ele não a tocará.

—Eu já estou morta, milorde —respondeu olhando-o nos olhos.

—Se segure em mim, lady Menderly. Juntos desceremos sem tropeçar —Theodore disse.

Muito devagar, e tal como lhe disse, desceram as escadas de madeira sem escorregar. Quando seus pés descalços sentiram a frieza do mármore, olhou para cima e descobriu que diante dela estava a besta a que sua amiga se referia.

—Fale de uma vez! —Lionel gritou ao tê-la tão perto—. Me diga onde está minha esposa!

O corpo de Kimberly tremeu quando viu a raiva em seus olhos, mas também encontrou neles desespero e temor. Sabrina confessou-lhe que o amava, mas não fazia ideia do quanto ele a amava.

—Podemos nos retirar para um lugar mais privado —Theodore ofereceu sem soltá-la.

—Acho que sabe muito bem com quem está —ela finalmente disse—. Em vez de aparecer em minha casa para me perguntar aonde foi, deveria ter contado a verdade àqueles que o receberam desde que o encontraram em Villa Liverpool.

—Como sabe...? —Arlington tentou dizer, mas ficou calado quando ela voltou a olhá-lo com seus tristes olhos negros.

—Sabrina me contou tudo —afirmou—. Sei que ele é filho de Lady Gable, mas duvido que saibam a verdade sobre o rapaz que estão protegendo. Se tivesse a coragem de ser sincero, estariam indo em outra direção: a correta —disse a Lionel desafiando-o com os olhos.

—Como foi capaz de lhe fazer isso? Ela sempre a defendeu! Pensa que é sua amiga! —Lionel trovejou tentando se livrar das garras de Babier.

—Magoou-a! —Kimberly respondeu—. Eu não lhe menti! Ela sempre soube quem eu era! —acrescentou.

—A que se refere, Lionel? —perguntou Arlington se virando para ele. —O que mais nos escondeu sobre o seu passado? —Em seu tom de voz não só mostrou impaciência, mas também decepção. A mesma que sentiu ao ouvi-lo falar diante dos membros da ordem. Embora durante o retorno ele se desculpou alegando que havia passado muitos anos sem saber quem eram os bons e quem os maus, a decepção não tinha desaparecido.

—Lorde Bourton —Kimberly respondeu diante do seu silencio—. Ele é filho de Spencer Cheiton, Conde de Bourton —adicionou altiva.

—A mandou para a morte! —gritou Lionel com tanta força que cuspiu ao fazê-lo. —A mandou para a morte! —repetiu com lágrimas nos olhos.

—Não vai matá-la —Kimberly o corrigiu—. Sabrina é astuta o suficiente para esconder o verdadeiro motivo pelo qual queria conhecê-lo.

—Qual é essa razão, Lady Menderly? —Arlington perguntou depois de se colocar entre ela e o rapaz enfurecido.

—Queria saber se Spencer assassinou Eugene —confessou.

—Santo Deus! —gritou o marquês voltando-se para Lionel. —Isso é verdade? Lorde Bourton é o Khar?

—Sim —Lionel disse abaixando a cabeça. —É. Por isso não queria contar a verdade. Eu mesmo queria encontrar seu paradeiro e mantê-los longe dela. A ordem procura o homem que luta contra a coroa. Eu preciso encontrar quem matou as pessoas que mais amei.

—Desde quando sabe? —Arlington insistiu em descobrir.

—O nome do meu verdadeiro pai? Desde sempre. Minha mãe nunca me escondeu isso. Mas confirmei a outra versão da história quando me contaram sobre ele no navio. Até esse momento pensei que era uma invenção dela para me manter afastado dele.

—O que disse? —Kimberly interveio assustada—. A que história se refere? Que identidade Spencer esconde? Por que o chamaram de Khar?

—Lady Menderly, sabe para onde lorde Bourton pode ter levado Sabrina? —perguntou o marquês, tomando-a lentamente pelos braços.

—Se encontrariam no Hyde Park. Devem continuar ali —respondeu.

—Não está! Seu cavalo voltou sem minha esposa! —Lionel trovejou dando um passo em sua direção, mas foi recebido pelo corpo de Arlington e seu olhar desafiador.

—Meu Deus! —Kimberly chiou—. É verdade o que diz? —Theodore se virou para ela novamente e assentiu. —Então a levou para sua residência —apontou.

—Acha que pode estar em Krallan? —disse o marquês.

—Não, está em Cornmat. Desde que o conheço, faz dez anos, sempre viveu naquele lugar afastado —declarou a viúva.

—Preparem as armas e os homens! Não há tempo a perder! —Arlington ordenou a Babier.

—Se a machucou, te matarei —Lionel declarou antes de sair de lá.

—O que deseja fazer comigo, Lorde Arlington? —Kimberly perguntou confusa.

Theodore esperou até ficar sozinho com a viúva para falar com ela. Uma vez que a casa recuperou a calma e o silêncio, tomou-lhe as mãos e disse-lhe: —Em primeiro lugar, tem que sair daqui. Esse homem é muito perigoso e não tenho a menor dúvida do que terá decidido lhe fazer.

—Quer dizer...? Está tentando me avisar que...? —A voz e os lábios tremeram ao tentar terminar suas perguntas.

—Recolha tudo o que precise e que um servo de sua total confiança a leve de carruagem até Riseway. Lá a manterei protegida até que tudo isto se resolva —explicou.

—Talvez deva aceitar o futuro que Spencer decidiu para mim. Depois de tantos anos ao seu serviço, sou tão culpada como ele... —soluçou.

—Não! —disse Theodore levantando-lhe o queixo com suavidade—. Kimberly, me escute. Faça o que te peço, por favor. Preciso confirmar que ficará bem —adicionou antes de soltar as mãos e dar um passo para trás.

—Prometo-lhe que, se me proteger, me tornarei sua melhor confidente. Posso lhe falar de...

—Sua identidade e o vínculo que a uniu a esse homem não sairá desta casa, assim como não se revelará quem é o verdadeiro pai de Lionel, entendido?

—Sim, lorde Arlington —respondeu com uma mistura de surpresa e confusão.

—Theodore —disse ao virar-se para a porta. —Pode me chamar pelo meu primeiro nome se desejar —acrescentou antes de sair.


A morte seria mais doce que a vida que suportava...

Lionel desceu de Tornado e olhou para a entrada da residência. A edificação era muito parecida com a que encontrou no castelo de Peel. Tinha certeza de que ambas teriam sido construídas para o mesmo objetivo: a proteção de guerreiros.

Andou até Arlington, agachou-se na vegetação rasteira e ficou em silêncio.

—Há quatro acima —Babier começou a explicar. —Talvez quinze no interior e cinco vigiam os arredores. Nos estábulos contei vinte cavalos, seis carruagens com diferentes emblemas e encontrei um galpão de armamento.

—Não será uma emboscada? —Lionel perguntou.

—Sim —Babier respondeu sem pensar por um único momento. —Ele sabe o quanto lhe é importante e que virá por ela. Também tem certeza de que iremos acompanhá-lo.

—Obrigado por... —Lionel tentou dizer.

—Faço por ela —Babier resolveu o assunto antes de se afastar.

Arlington observou enquanto o guerreiro começava a dar ordens aos seus homens. Estes carregavam em suas mãos e cintos todas as armas que o príncipe lhes havia dado ao ser informado da identidade do Khar e do ataque iminente.

—Quantos homens conseguimos? —perguntou Lionel depois de um breve silêncio que lhe pareceu eterno.

—Com o médico e nós, quarenta e um —respondeu o marquês. Percebendo que a inquietação do jovem aumentou depois de entender que haviam chamado o médico da organização para curar as possíveis feridas de Sabrina, colocou uma mão no ombro e lhe disse—: Tem que manter a calma, Lionel. Não pode entrar aí gritando seu nome para que te responda.

—Não pensava fazê-lo —resmungou.

—Deve seguir o plano. Entrarão os da primeira fila, depois os situados na segunda e por último, nós —esclareceu com calma—. Lembra-se do que o instrutor disse no primeiro dia que quebrou uma espada?

—Sim. É melhor ser um bom estrategista do que um soldado bárbaro —respondeu.

—De fato. O estrategista sempre encontrará a forma de sair vitorioso e o guerreiro utilizará sua força para conseguir o mesmo fim.

—Lembro —expressou com uma mistura de confusão e angústia.

—Não procure cinco alvos para derrubar. Atenha-se a um e termine o que começou. Sei que agora só quer correr até encontrá-la, mas não adiantará de nada morrer no meio do caminho.

—Não pretendo morrer —continuou com tom cortante.

—Talvez tenha nos escondido seu verdadeiro passado porque duvidou sobre o sangue que corre em suas veias —continuou olhando-o—. Não o faça mais, porque é um Gable e seu avô estaria muito orgulhoso de saber no homem que se transformou.

—Este não é o momento para falar de minha família —resmungou.

—Eu sei, mas preciso que se concentre neles, porque talvez deva mantê-los em mente.

—Por quê? —olhou para ele estreitando os olhos.

—As memórias podem aliviar a dor que sentirá se descobrir que Sabrina não está viva. —Declarou com tristeza.

—Ela está —murmurou.

—Eu também acho, mas existe a possibilidade de ter tentado escapar e não ter conseguido. —Pensando nisso, ele também ficou impaciente. —Deve agir com frieza. Não se deixe levar pelos sentimentos, eles nos fazem fracos —alegou.

—A única coisa que desejo é vê-la —assegurou antes de fixar o olhar na entrada.

O silêncio voltou para eles. Lionel manteve-se atento aos sinais que fazia Babier à distância. Observou enquanto o primeiro grupo de homens se aproximava e cercava a residência. Então o segundo.

—Que Deus tenha misericórdia de nossas almas —Arlington afirmou antes de se levantar e caminhar ao lado de Lionel.

Nunca tinha presenciado uma luta semelhante. Os treinamentos jamais lhe mostraram a crueldade de uma verdadeira guerra. Com uma espada agarrada na mão, teve que andar sobre corpos, sangue e escutar os lamentos daqueles que caíram feridos. Manteve-se frio, severo, distante de tudo o que acontecia ao seu redor. Obrigou-se a pensar em Sabrina, onde estaria ou no que lhe teriam feito. Lembrou-se das marcas que tinha na sua pele, a dor que sofreu durante o seu sequestro, as torturas...

Isso piorou sua inquietação. Não parou em sua passagem pela casa. Sua espada perfurou o peito, abdômen e até mesmo o coração daqueles que queriam lutar contra ele. Não havia fim, nem calma para a besta que rugia dentro dele, que fazia seu coração bater e desejava ver sua mulher.

—Avançar! —ouviu a voz de Arlington perto.

Talvez nunca tenha se separado do seu lado. Mas também não tinha certeza, já que sua atenção estava focada apenas em encontrá-la e confirmar que ainda estava viva. Sim, porque estava. Essa união que se formou entre eles, apesar de ter ocorrido em pouco tempo, era tão forte que o impelia a continuar sem se cansar.

—À direita!

Nesta ocasião foi Babier quem gritou enquanto arrebatava a vida de seu último rival. Não quis olhá-lo. Seus olhos ainda estavam fixos em frente. Ouviu um barulho atrás dele, se virou e descobriu que um dos adversários havia tentado matá-lo com desonra, mas o marquês evitou seu objetivo. Prosseguiu o caminho. Embora já não se sentisse sozinho. Os dois homens que Sabrina adorava tinham se colocado ao seu lado.

—Dentro! —disse Babier ao ficar em frente a uma enorme porta de madeira envelhecida. Era tão parecida com a da entrada, que pensou que tinha saído e entrado de novo.

—Tem de estar aí —comentou Arlington.

Não pensou. Se Sabrina estava lá, tinha que saber. Adiantou-se a eles. Seu propósito não era se tornar o único guerreiro daquela maldita batalha, senão em ser o primeiro a que ela visse aparecer. Seu rosto deveria expressar a angústia que havia sofrido ao saber que estava em perigo.

—Bem-vindo ao seu verdadeiro lar, filho. Finalmente nos encontramos —Spencer disse quando Lionel abriu a porta.


XXV


Sabrina olhou para a porta quando esta se abriu e emitiu um leve soluço ao vê-lo. Tal como lhe avisou ao conde, Lionel foi por ela. Embora nunca pensasse que apareceria antes que Babier. Mas ali estava, com os olhos fixos na adaga que seu pai mantinha colada ao seu pescoço. Ficou surpresa e confusa ao não ver nenhum sinal de espanto no rosto de Lionel ao encontrar seu pai e confirmar o quanto eles eram parecidos. A única coisa que fez foi olhá-la de cima abaixo, procurando marcas que lhe explicassem o que tinha acontecido desde que a raptaram. Não se importava com seu pai, mas sim com ela. Quando percebeu como sua raiva aumentava ao descobrir que tinha um lábio cortado e que sua bochecha permanecia vermelha devido a um golpe forte, falou.

—Estou bem, Lionel —disse para tranquilizá-lo—. Não me fez nada importante.

—Por enquanto —comentou o conde sem desviar o olhar de seu filho. —Embora o destino dela dependa de sua decisão.

—Sabe que farei tudo o que puder para te salvar, certo? —perguntou a Sabrina dando um passo à frente.

—Não —ela respondeu ao compreender que havia tomado a decisão errada.

—Solte a espada se não quiser vê-la sangrar e perder a vida diante de seus olhos —Bourton ordenou.

Não pensou. Lionel abriu a mão e sentiu o punho deslizar em sua palma, por entre os dedos. Quando ouviu o som que a arma fez ao cair sobre o chão, deu outro passo.

—Aqui estou —apontou abrindo os braços. —É a mim que quer. Solte-a.

—Se o fizer, não terei nada de valor para te reter —expressou o conde estreitando os olhos.

—Não o terá de todas formas. Lá fora há mais de trinta homens esperando sua saída. Embora tema que não saia dessa situação andando —ameaçou.

—Não me disse que seu sangue era Gable? —Spencer soltou divertido—. Pois errou. Ele é meu em todos os aspectos —prosseguiu.

—Deixe-a —Lionel insistiu—. Ela não está incluída nesta guerra.

—Guerra? Aqui não há nenhuma guerra, filho. Só há uma decisão: tem que estar ao meu lado.

—Estarei se soltá-la.

Lionel compreendeu que não ia fazê-lo. Aquele homem, a quem tanto se parecia fisicamente, não pretendia libertá-la, mas utilizá-la para convertê-lo em seu escravo. No entanto, essa opção estava descartada, pois Arlington lhe informou e esclareceu o que aconteceria depois de salvá-la. Fariam tudo o que estivesse ao seu alcance para matá-lo e se houvesse vítimas durante a missão, só lhes restava rezar por suas almas. Mas ele não estava disposto que Sabrina fosse uma vítima. Ela devia escapar.

Sorriu quando viu que o abridor de cartas ainda estava emaranhado em seu cabelo. Devia provocar a situação certa para que pudesse se afastar dele e lhe permitir agir. Mas como o conseguiria? «Saber quando intervir, o que dizer e se manter firme são regras básicas para distrair o seu adversário», lembrou as palavras do instrutor durante os treinamentos na Ilha de Man. Como devia intervir? O que devia fazer? E, como permaneceria firme se Sabrina corria perigo? Observou com rapidez a sala onde se encontravam. Logo, a olhou.

—Tornado está na porta, te esperando. Não entendo como pôde montar sem a sela —começou a dizer.

—Não havia tempo a perder —ela respondeu com atenção.

—Esqueceu também suas ligas?

—Sim —respondeu com um longo suspiro, porque não queria saber se estava realmente usando aquela roupa íntima, mas sim as armas que ela costumava esconder debaixo do vestido antes de lhe pedir que não o fizesse.

—Mas aposto que não se esqueceu da ferrugem, certo? —insistiu.

Sabrina arregalou os olhos. Estava declarando que faria qualquer coisa para afastá-la do conde? Avisava-a de que teria que pegar com rapidez o abridor de cartas que tinha no cabelo? Por quê? O que tinha pensado fazer? A resposta foi imediata. Lionel correu para a cadeira à direita, agarrou-a e jogou-a sobre eles. Naquele momento, o conde tentou segurá-la com mais força, mas ambos quiseram evitar o impacto e acabaram se movendo. A oportunidade se apresentou com urgência. Escorregou, se virou e finalmente foi capaz de escapar de seu sequestrador. Correu para o lado esquerdo da sala, colocou a mão direita no cabelo e pegou o abridor de cartas. No entanto, quando olhou novamente para Lionel, ele tinha se aproximado de seu pai e tinha iniciado um terrível combate.

Aqueles dois titãs lutavam como bestas e ela soube de imediato que só um deles sairia vivo.

—Corre aqui! —gritou Babier da porta. —Saia agora!

Ela ignorou. Não queria deixá-lo sozinho com aquele monstro. Embora possuísse a agilidade de sua idade, o conde mostrava a serenidade e a dureza de um lutador experiente. Sabrina fechou os olhos no instante em que Bourton bateu no rosto do filho. Ao abri-los, descobriu que ambos estavam no chão. Tentou dar um passo à frente para saltar sobre o corpo de Spencer e puxá-lo para longe de Lionel. Não conseguiu. Babier se aproximou dela e puxou a mão que não segurava o abridor de cartas em direção à saída.

—Não! —lhe disse olhando-o com tanta raiva, que seu fiel amigo ficou petrificado. —Ajude-o! —ordenou.

Babier balançou a cabeça, insinuando que não deveria interferir naquela disputa. Era o momento de Lionel, o que tanto havia esperado. Precisava vingar a morte de sua mãe e a dor que todos padeceram pela maldade do conde.

—É meu filho! É minha réplica! Carrega meu sangue! —gritou Bourton assim que Lionel o afastou dele.

—Nunca fui e nunca serei! —respondeu tentando acertá-lo com o punho direito.

Mas não conseguiu. Spencer se afastou no instante certo e foi Lionel quem recebeu aquele tremendo soco. Se moveram pelo interior da sala, arrastando tudo o que encontraram a seu caminho. Havia quadros no chão, vidros das garrafas que se quebraram ao cair. Mais cadeiras voando, a mesa também se moveu do seu lugar. Papeis e sangue... O rosto de Lionel estava coberto de sangue. O golpe que recebeu no nariz o fez sangrar. Sabrina ficou tonta. Era a primeira vez que via aquele líquido vermelho. Tinha matado mais de cinquenta homens, tinha visto como estes sangravam e jamais pensou nisso nem se sentiu tão aturdida. Mas não se tratava do sangue de qualquer pessoa, mas do homem que amava. Olhou rapidamente para a porta e pediu ajuda a Arlington. Este também a negou com um leve movimento de cabeça. Todos estavam de acordo em deixar que aquela briga terminasse. Ela não...

Apertou com força o punho de seu abridor de cartas e tentou se concentrar. Tinha que encontrar o segundo exato para lançá-lo. Quantas vezes o tinha feito? Centenas e em nenhuma lhe tremeu o pulso nem duvidou. Mas ao levantar a mão, observou que esta vibrava, assustada por sua própria capacidade.

—Se não é meu, não será de ninguém —Spencer disse enquanto encurralava seu filho contra a parede.

Sabrina rapidamente voltou os olhos para aquela área da sala. Ouviu um grito. Embora não tenha percebido que ela o tinha dado quando confirmou ser incapaz de atirar seu abridor de cartas. Então observou enquanto o conde tentava inserir na barriga de Lionel a adaga que pegara segundos antes. «Um descuido é mais do que suficiente para saber como uma situação termina», lembrou a frase que Babier lhe disse no primeiro dia que começaram seu treinamento. O que teria distraído Lionel? Soube ao olhar nos olhos dele. Ela. O grito que deu lhe fez virar a cabeça para descobrir o que lhe havia acontecido. Ela se sentiu miserável, culpada por tê-lo levado a uma situação difícil de resolver.

—Seu abridor de cartas! Lance-o! —gritou para acordá-la do choque em que se encontrava.

Sabrina agarrou firmemente o cabo, tomou ar e o lançou no momento em que Lionel afastou seu pai com todas as forças que possuía. Foi um segundo, embora tenha sido uma eternidade. Observou em silêncio como o abridor de cartas voava pela sala até que impactou sobre o coração do conde. Ficou cravado, firme.

—Morrerei sabendo que virá comigo —Disse Bourton antes que seus lábios esboçassem um último sorriso e caísse para trás.

Ouviu a cabeça bater no chão. Um som assustador que anunciava a passagem da vida à morte. Sabrina olhou para Lionel. Talvez nunca tirasse os olhos dele, mas não tinha certeza. Não tinha certeza de nada. Correu ao seu encontro, feliz porque tudo tinha acabado. No entanto, não foi assim. Lionel foi deslizando pela parede até que ficou sentado no chão. Suas grandes mãos pressionavam seu abdômen. Tinha-o ferido?

—Sabrina —Sussurrou ao vê-la ao seu lado. —Minha esposa... —acrescentou quase sem ar, quase sem vida.

De repente, Sabrina se encheu de ódio. Odiava a si mesma por cair na armadilha, ao conde por tê-la sequestrado, Arlington por não se mover da porta, Babier por tentar afastá-la dali, e inclusive odiou Eugine por ter se apaixonado por aquele monstro.

—Lionel, por favor —disse chorando—. Fique comigo, não me abandone também...

—Segure minha mão, Sabrina. Segure-a para que não pegue o caminho errado —lhe pediu enquanto fechava lentamente os olhos. —Quero estar contigo... quero viver...—adicionou antes de desmaiar.

—Lionel! Acorde! Também quero estar contigo! Me escuta? Te amo! Te amo muito! —gritou agarrando-lhe uma mão enquanto com a outra pressionava com força a ferida para que deixasse de sangrar. —Não vá, eu imploro. Não me deixe sozinha. Fique ao meu lado, eu preciso de você...

—Alguém chame o médico! —Arlington gritou.

—Sabrina, deixe-me pressionar a ferida —Babier sugeriu, de repente se tornando aquele irmão que ela sempre amou e adorou. —Minha força...

—Não! —gritou desesperada.

Ao olhar para ele, mal conseguia vê-lo com nitidez, as lágrimas a impediam de ver claramente tudo o que estava ao seu redor.

—Sabrina —Arlington disse colocando uma mão em seu ombro. —Tem que deixá-lo ir. Ele decidiu dar sua vida para salvá-la...

—Não! —repetiu com tanta força que lhe doeu a garganta. —Ele tem que ficar comigo, lady Besta não poderá viver sem seu lorde!

—O médico! —alguém anunciou.

—Por favor, não o deixe morrer —Sabrina implorou ao doutor quando este se colocou a seu lado. —Salve a vida do homem que amo...


Epílogo


Oito meses depois...

Sabrina olhou para o túmulo e enxugou as lágrimas do rosto. Em seguida, ela levantou a saia do vestido preto com a mão direita, ajoelhou-se e colocou cuidadosamente o buquê de flores brancas sobre a terra. Todas as manhãs, desde que chegou a Luton, ela cavalgava com Tornado para fora da residência e passava um momento a sós com a mãe do homem que a salvou das trevas. Isso a fazia se sentir melhor, embora seu coração ainda não tivesse se recuperado totalmente. Por mais que o tempo que passasse, sua dor jamais desapareceria. Depois de sua habitual oração, colocou a mão direita sobre a lápide e suspirou.

—Acho que já lhe disse um milhão de vezes, Eugine, mas gosto de lhe dizer o quão orgulhosa deve estar do seu filho. Por suas veias sempre correu sangue Gable e não Bourton. —Respirou fundo e continuou com o monólogo. —Também quero algum dia esclarecer e descobrir como soube o momento em que o conde apareceria. Procurei até a exaustão os poucos pertences que os servos mantinham em Royalhouse e não encontrei nada neles. Mas não vou desistir. Este enigma não deve ficar no passado e, como bem sabe, tenho o péssimo hábito de buscar respostas para todas as minhas perguntas. —Sorriu—. Seu filho uma vez chamou isso de teimosia e Arlington de capricho. Entretanto, ambas sabemos que é a qualidade que mais nos define, mulheres inteligentes. No meu entendimento, a senhora era, muito. Não só planejou uma maneira de salvar seu filho das garras daquele monstro, mas também protegeu seus criados. —Suspirou lentamente e inspirou da mesma maneira. —Quero confessar que Lionel conquistou meu coração desde o primeiro dia em que nossos olhos se encontram e que o amarei por toda a minha vida. Confirmei, durante todo esse tempo, que só existe um amor verdadeiro na vida. O meu é para o seu filho. Tenho certeza que me entende, porque ele nunca deixou de amá-la, apesar de sua morte. —Seus olhos se encheram novamente de lágrimas. Sabrina levou a mão ao peito e notou como seu coração batia com força. Com lentidão, levantou-se, sacudiu a terra do vestido, inclinou-se para a lápide e lhe deu um beijo. —Voltarei amanhã se nada ou ninguém me impedir —lhe disse a modo de despedida.

Uma vez que montou sobre o animal, olhou a tumba e agitou as rédeas. O cavalo, em resposta a seu pedido, levantou as patas dianteiras, moveu-as e quando as colocou sobre o chão, correu veloz pelo prado até chegar à residência. Ao terminar a intensa corrida, Sabrina se inclinou para frente e deu leves palmadas no pescoço do animal.

—Muito bom, Tornado. E o cavalo mais rápido do mundo —lhe disse como recompensa.

Depois de ouvi-lo relinchar em resposta ao seu mimo, ela desmontou antes que o cavalariço se aproximasse para ajudá-la. Em seguida, levantou a saia do vestido até os tornozelos e correu para a entrada. Seu passeio não tinha durado muito, mas tinha certeza de que ele já estaria acordado e gritando mil injúrias sobre as terríveis atitudes de sua esposa. Mas devia fazê-lo entender que uma mulher espiã nascia, vivia e morria ansiando pelo perigo.

—Bom dia, milady —cumprimentou-a Vanther ao recebê-la na entrada.

—Bom dia —respondeu enquanto lhe oferecia as luvas, o chapéu e o casaco. —Aconteceu algo importante durante minha breve ausência? —Olhou-o com um sorriso de cumplicidade.

—Se por importante se refere a ouvir os gritos que deu sua excelência ao acordar e não encontrá-la a seu lado, sim —respondeu o mordomo.

—Foram muito barulhentos desta vez? —insistiu com diversão.

—Terríveis —afirmou com aparente desespero. —Eu os comparei com os rugidos que tem que soltar uma besta furiosa.

—Sim, é o meu marido —admitiu inchando seu peito de felicidade e orgulho. —Onde o encontrarei esta manhã?

—Em seu escritório. Embora tenha cuidado, já sabe que ali guarda as espadas que lhe confiscou na semana passada.

—Não se preocupe, tenho algumas debaixo do colchão do quarto de hóspedes, outras no galpão e, se as descobrir, Arlington me trará mais quando nos visitar com Kimberly da próxima vez —explicou divertida.

—Acho que fiquei surdo durante uns segundos, Milady, porque não ouvi nada.

Sabrina soltou uma risada ao observar o rosto de espanto de Vanther. Apesar de que ambos costumavam treinar no jardim e que todos os criados apostavam em algum dos dois, aquele homem continuava horrorizado cada vez que lhe falava de armas.

—Depois desses terríveis gritos, tomou café da manhã? —quis saber.

—Ninguém queria perguntar sobre o café da manhã porque, quando desceu, ordenou ao jovem Flenty que fosse até a casa do ferreiro para trazer as correntes mais grossas e fortes que forjou. Temo que tenha a intenção de acorrentá-la à cama —informou-o espirituosamente.

—Não acho que ele consiga —disse com um sorriso que lhe cruzava o rosto.

—Deseja algo mais, Lady Gable?

—Traga o café da manhã para o nosso quarto e prepare a grande banheira com água quente —respondeu antes de caminhar para o lugar onde encontraria o homem que se apoderou de seu coração.

—Assim será feito —respondeu o mordomo olhando a mulher com devoção.

Havia merecido. Não apenas a sua, mas a do restante dos criados, ao passar seus dias e noites sentada junto à cama do Lorde. Embora pudesse adoecer de exaustão e tristeza, não saiu do quarto até que Lorde Gable caminhou sem ajuda. Mas a admiração pela jovem mulher aumentou quando uma noite reuniu os criados na sala de jantar da residência Riseway e lhes disse quem realmente eram. Deu-lhes uma chance de partir. Entretanto, ninguém o fez e a seguiram até Luton. Lady Gable cuidou deles como se fossem membros de sua própria família. Não lhes faltava nada em nenhum momento, e embora nunca lhes pedisse nada em troca, tinha a lealdade de todos. Para onde quer que fosse, eles iriam com ela....

—Senhora Clarisse, devo informá-la que o café da manhã de suas excelências deve ser servido no quarto e preciso que chame três criadas para que preparem a banheira que foi comprada da última vez com água quente —pediu Vanther ao chegar na cozinha.

—A senhora voltou? —perguntou Clarisse inquieta.

—Acaba de fazê-lo —o mordomo informou.

—Graças a Deus! —exclamou fazendo o sinal da cruz.

—Não vai acontecer nada —comentou Vanther colocando uma mão no ombro para acalmar sua inquietação. —Embora ela pense que vai sozinha, o senhor pediu a Jonny e Carl que a vigiassem em todo momento.

—Então rezarei para que esses meninos voltem sãos e salvos todos os dias.

Vanther soltou uma gargalhada alta.

Sabrina prendeu a respiração ao parar na frente da porta do escritório. Embora apenas ousasse abri-la um pouco, foi mais do que suficiente para descobrir onde Lionel estava. Se estivesse muito furioso, a melhor opção, para acalmar a besta, era pedir a um criado que o informasse de sua chegada e avisasse que estava esperando-o no quarto. Quando a encontrasse nua, deitada na cama e olhando para ele com desejo, a raiva desapareceria instantaneamente. No entanto, dentro do escritório não ouviu nada, nem o encontrou sentado atrás da mesa. Onde estava? Intrigada, ela abriu e congelou quando não o viu. Deu vários passos para a frente e encolheu os ombros ao ouvir a porta fechar-se de repente.

—Por que saiu sozinha? —lhe perguntou Lionel. Apoiou as costas na porta e se cruzou de braços.

—Bom dia, meu amor. Te amo, sabe? —perguntou sem se mover.

—Não —afirmou.

—Bem... também não acordou de bom humor hoje? —continuou falando em um tom inocente enquanto se virava para ele. Alguma vez disse a ele o quão sedutor ficava quando o encontrava com raiva e com as mangas da camisa arregaçada? Sim, todas as manhãs que tinha saído de casa às escondidas.

—Bom humor? —rosnou. Descruzou os braços e caminhou lentamente até ela. —Me levantaria assim se conseguisse que minha esposa ficasse ao meu lado até o amanhecer. Mas... impossível! Ela tem que colocar esse vestido preto horrível e sair para cavalgar para que o marido, ou seja, eu, não saia do quarto sorrindo —alegou fingindo raiva.

—Gosto de cavalgar muito cedo, assim como gosto de visitar Eugine e lhe contar todas as conquistas que seu filho alcançou. Posso assegurar-lhe que sua alma se encheu de alegria quando o informei que o príncipe devolveu seu título e que agora se tornou o novo conde de Gable. —disse dando pequenos passos para trás. Estes cessaram quando suas nádegas tocaram a borda da mesa. —Não te agrada que entre sua mãe e eu exista tanta cumplicidade?

Lionel bufou e não parou de caminhar até ficar tão perto dela que teria que atravessá-lo se quisesse escapar da situação. Não estava zangado, mas preocupado, porque cada vez que abria os olhos e não conseguia encontrá-la, revivia aquele momento em que seu pai a sequestrou. Ainda que mais tarde se acalmasse, lembrando-se de que tudo estava sob controle. Mesmo assim, enquanto não aparecia, seu coração era incapaz de bater tranquilamente.

—Suponho que hoje não tenha descoberto como minha mãe sabia o dia em que meu pai apareceria aqui em Royalhouse, certo? —apontou tranquilamente. Muito lentamente, colocou as mãos sobre a mesa, prendendo-a entre seus braços e seu corpo.

—Não! Sabe como foi? Sabe como descobriu? —Lionel negou com um suave movimento de cabeça. —Pois eu não pararei até saber a resposta.

—Existem perguntas para as quais nunca se obtêm respostas —sussurrou trazendo sua boca perto da dela.

—Como quais?

—Como concretizar o momento exato em que perdi a razão e me apaixonei pela senhora —declarou enquanto tirava as mãos da mesa para colocá-las em suas bochechas vermelhas.

—Essa sim tem uma resposta clara e firme —garantiu com diversão.

—Sim? —perguntou levantando uma sobrancelha. —Qual?

—Apaixonou-se por mim em Villa Liverpool, bem quando um dos homens que contratei bateu na sua cabeça —disse antes de se colocar nas pontas dos pés e envolver os braços em volta do seu pescoço: —Te amo, lorde Besta.

—Eu te amo mais, lady Besta —garantiu antes de beijá-la apaixonadamente.

(continue lendo...)


Esclarecimentos do romance.

Imagino que esteja com certas perguntas em mente. Bem, tentarei responder a algumas delas para que você não tenha que sair à sua procura.

—O que aconteceu com Arlington? Como já leu quase no final da história, Theodore protegeu Kimberly da cólera de Lionel. A partir desse momento, o marquês não pôde, nem quis, deixá-la sozinha. Com o passar do tempo, essa relação de amizade transformou-se em amor. E sim, se casaram. Viveram felizes e comeram perdizes? Bem, eu não sei se comeram isso, mas ficaram tão felizes que Kimberly engravidou e Arlington, depois de passar algumas horas infernais, se tornou o pai do próximo Marquês de Arlington.

—O que aconteceu com Abraham Petey? O que você acha? Bem, continuou com Arlington para se tornar o instrutor do futuro Marquês. Encontrou o amor? É claro! Ele se casou com a viúva de um médico. Ok, eu conto. Ele ficou doente e chamou o novo médico. Ele ficou doente e chamou o novo médico. Um jovem apareceu em sua casa, cujo pai também havia sido médico, acompanhado de sua mãe viúva e... tacharam! Petey se recuperou imediatamente! Até fez vários agachamentos para que ela não duvidasse de sua força. Isso sim, lhes esclareço que a senhora Petey deixou de usar calçado alto porque, se não o fizesse, teria a cabeça de seu esposo todo o tempo roçando-lhe o ombro.

—O que aconteceu com Babier? A mesma coisa que Sabrina disse sobre espiões, um guerreiro também nascia, vivia e morria ansiando pelo risco. Sem dúvida, não suportou a vida sedentária e pediu a Arlington que o ajudasse a sair do tédio. Babier deixou de ser o protetor de Sabrina para se tornar um verdadeiro espião. Foi enviado para a França, onde lutou contra Napoleão. Quando tudo parecia resolvido, os últimos jacobinos armaram para ele. Ferido e dado como morto, andou pelas ruas de Calais até perder as forças. Ao abrir os olhos, encontrou um anjo de pele branca, cabelos cor de cobre e íris de cores diferentes. A partir daquele momento, passou a idolatrar o sedentarismo, amou apenas uma mulher e se tornou pai de três lindas meninas. As mesmas que não o deixaram dormir até que as casou com bons maridos. É claro que, antes de aceitar esses compromissos, a ordem enviou-lhe informações detalhadas sobre cada pretendente.

—O que aconteceu com a lady e lorde Besta? Muitas coisas... em primeiro lugar, como Sabrina esclarece, Lionel recuperou o título de seu avô. Foi o combinado com o príncipe, assim como lhes cedeu Royalhouse como presente de casamento. O futuro que tiveram? Continuaram mais oito anos trabalhando para a ordem. Até que um dia decidiram voltar a Luton porque Sabrina ficou grávida. Milagre? Para Lionel, não. Como explicava a todos, com orgulho exaltado, conseguiu graças ao amor e desejo que sentia por sua esposa. Foram meses terríveis e alegres, pois o médico da ordem ainda não confirmava se a gravidez terminaria bem. Quando chegou o dia do nascimento, Lionel não deixou Sabrina nem por um segundo. A parteira e o médico, mais de uma vez, pensaram que era ele quem estava em trabalho de parto. Mas nasceram bebês, gêmeos: menino e menina. E naquele momento, o titânico Lorde Gable expulsou todo o medo que guardava dentro de sim em forma de lágrimas. Claro que a menina se chamava Eugine e o menino Liam. Sabrina não tinha o calor dos pais verdadeiros, mas a família que formou com o marido e com todas as pessoas que cuidaram dela desde pequena, mostrou-lhe que não era preciso ter o mesmo sangue para saber em que consistia o amor familiar.

—E por último, como diabos Eugine sabia quando Spencer apareceria no Royalhouse? Se quer saber, continue lendo...


O segredo de Eugine.

Luton, 12 de outubro de 1804.

Eugine afastou-se da janela ao confirmar que o mensageiro descia do cavalo e se dirigia para a entrada de sua casa. Esfregou as mãos, caminhou até a lareira e tentou apaziguar a ansiedade que sentia cada vez que recebiam correspondência. Enquanto não confirmasse que não havia nenhuma carta de Jace, seu estômago continuava perturbado, seu coração latejava e seu corpo sofria de severos calafrios. Logo, tudo passava e a normalidade voltava até sexta-feira da semana seguinte.

Respirou fundo, apoiou a ponta da bota do pé direito sobre a borda da lareira e se concentrou em seguir com o olhar os movimentos que faziam as chamas sobre os troncos ardendo. Essas oscilações rítmicas a lembravam dos bailes aos quais compareceu em sua primeira e segunda temporada social. Mais de uma vez usou vestidos da mesma cor do fogo. Mas, depois de ser seduzida por Spencer, não sentiu falta daquela época repugnante.

Estendeu a mão para trás para tocar a cadeira que tinha às costas sem afastar o olhar do fogo. Uma vez que se sentou, lembrou-se de todos os belos momentos que a vida lhe deu desde que Lionel nasceu.

Era verdade que se odiou quando descobriu que um ser estava crescendo dentro dela e que se sentiu morrendo quando Spencer a ignorou, mas todos os sentimentos ruins desapareceram quando o segurou pela primeira vez em seus braços.

Ao nascer, não quis nem olhá-lo. O doutor Wayner, um tio distante de sua mãe, o colocou, após confirmar que estava são, sobre o berço de madeira que o futuro avô construiu. Quando Liam apareceu no quarto, beijou-a na testa e aproximou-se do bebê. Naquele instante estava ciente do milagre que tinha realizado. Ficou em silêncio, observando atônita o primeiro contato entre o neto e o avô.

Jamais esqueceria aquele dia.

—Obrigado por me dar o prazer de conhecer o próximo conde de Gable. Se não se importa, gostaria que se chamasse Lionel, como meu tataravô, o primeiro conde da família. —Olhou-a com os olhos tão cheios de emoção que ela não pôde negar essa súplica —. Meu amado Lionel Krauss, sei que ainda é muito pequeno, mas se tornará um homem forte, inteligente e tão sedutor, que as mães de filhas solteiras não largarão seu braço para o apresentar. Embora te recomendo que seja esperto e escolha muito bem a mulher que se tornará a futura Lady Gable. Sua avó foi perfeita, assim como sua bisavó ou sua tataravó...

Esperava mil reprovações por seu comportamento imoral. Mas nunca os ouviu da boca de seu pai. Amava tanto o menino que, nos primeiros três anos de vida, não se separou dele. Indubitavelmente, a calma desapareceu quando lhe chegaram notícias sobre a esposa de Spencer. Esta, segundo lhe contaram, sofreu tanto no parto que o bebê morreu e ela adoeceu. Durante seis meses, as únicas notícias que chegavam sobre Bourton foi que, enquanto a esposa continuava moribunda em seu quarto, ele viajava de Londres a França. Ninguém explicava a razão pela qual não ficara cuidando de sua esposa. Por esse motivo, também não estranharam que o casamento terminasse. Enquanto a condessa se instalou em Bath, ele continuava viajando.

Ela sabia o fim dessas viagens...

No dia vinte e nove de março de mil setecentos e oitenta e seis, quando Lionel tinha três anos, seu avô trouxe-lhe uma enorme caixa. Dentro estava um cavalo de madeira preto que ele esculpiu e pintou. Quando se aproximou para recebê-lo, Liam se afastou do menino e a olhou horrorizado. Então, compreendeu que seu pesadelo acabava de começar.

—Falei com Wayner e me confirmou que a esposa de Bourton não poderá ter mais filhos.

—Santo Deus! —exclamou levando as mãos ao peito.

—Sabe o que isto significa para o Lionel, não sabe? —lembrou-lhe.

—Sim, Spencer vai procurá-lo e o arrancará dos meus braços —disse cerrando os punhos.

—Eugene, me escute. Tem que decidir de uma vez por todas o que vai fazer com a criança. Não poderá escondê-lo durante muito tempo. Mais cedo ou mais tarde, a verdade será conhecida e Spencer não ficará impassível agora que não pode ter filhos.

—Não é isso que me assusta pai —comentou com raiva.

—Talvez, aquilo que viu e ouviu não foi real.

—Foi! —gritou desesperada—. Vi como matavam aquele homem e como Spencer jurava lutar contra a coroa!

Ela testemunhou a cena. Depois que Spencer negou a paternidade de seu filho, saiu correndo da casa, mas se encontrava tão fraca, que ficou sentada em um banco do jardim. Quando se levantou para ir embora, ouviu vozes. A curiosidade de saber o que acontecia, porque se seu amado estava em perigo ela o salvaria e, deste modo, reconsideraria sua resposta, a fez caminhar até elas. No entanto, Spencer não corria risco, mas sim o outro homem. Levou as mãos à boca para não gritar quando a pessoa que lhe roubou o coração atravessou com uma adaga o do prisioneiro.

—Se for verdade... —Liam deixou de fazer conjecturas quando o olhou com raiva —. Bem, nesse caso terá que se refugiar no mosteiro de Skipton. Partirá dentro de dois dias com o Lionel. Amanhã receberá alguns documentos que meu advogado escreverá hoje mesmo. Quero que os mantenha dentro do cavalo até que chegue a hora certa.

—O que esses documentos explicam? —perguntou inquieta.

—Neles reconhecerei a Lionel como meu filho. Deste modo, quando morrer, ele ficará com tudo.

—Tem certeza do que vai fazer?

—Sim.

Essa foi a última vez que viu seu pai. Durante os seis meses seguintes, só recebeu três cartas dele. Na última, explicou que havia enviado uma jovem ao mosteiro para servi-la e ajudá-la. Efetivamente, Frida apareceu dez dias depois da chegada dessa carta. O que ela não sabia era que a jovem não só cuidaria dos dois, mas também os manteria afastados de Spencer, pois graças a um primo seu, que havia começado a trabalhar como mordomo do conde, estaria informada de tudo.

Passou um momento de silêncio, porém, o início do fim veio antes do esperado. Uma noite pegou fogo no mosteiro. Logicamente, tentaram apagá-lo, mas ao descobrir que ele havia sido gerado nos estábulos, Eugine correu para ele desesperadamente. Ela chorou horas ajoelhada diante das cinzas do cavalo do filho, que sempre o deixava ali para descansar. Nunca tirou os documentos daquele esconderijo para mantê-los protegidos e, em um piscar de olhos, o bom futuro do filho se foi.

—Lady Gable, não chore. Alguns de nós podem esculpir outro cavalo para o menino —lhe disse um monge para consolá-la.

—Obrigada —respondeu, embora essas palavras não a consolaram.

Enquanto ajudava na reconstrução, Lionel estudava com os monges. Felizmente para ela, havia herdado seu interesse em aprender, sua facilidade para fazê-lo e, para seu pesar, a mente analítica de Spencer. Logo começou a se destacar em várias matérias, mas também na arte da milícia. Cada vez que tinha uma espada de madeira, fazia os irmãos correrem. Era um menino feliz, apesar de tudo.

No dia 16 de fevereiro de mil setecentos e oitenta e sete chegou a pior notícia da sua vida. Naquele dia soube o que significava morrer de dor. Nada podia acalmar a angústia que a invadiu naquele momento. Seu pai, o homem mais benevolente e compreensivo de sua vida, havia morrido. Frida escreveu a Jace perguntando se podiam ir a Londres e este lhes respondeu que não era aconselhável porque todo mundo falava sobre a repentina morte de lorde Gable e a miséria em que viveu.

Um mês depois, soube por que se falava disso...

Seu pai gastou toda a sua fortuna procurando a organização secreta à qual Spencer pertencia. Embora, felizmente, enviou-lhe antes de morrer uma bolsa com todas as joias da família. Estas ajudaram-na a conseguir duas coisas: dinheiro e reuniões com a rainha.

Todo mundo pensou que tinha se tornado sua dama de companhia, mas não foi assim. Uma vez que pôde falar com ela, contou-lhe o que aconteceu com lorde Bourton e teve piedade deles. Claro, em suas conversas não se referiu ao pacto que Spencer estabeleceu com os jacobinos. Se descobrissem, não só colocaria em risco a vida daquele monstro, mas também a de seu filho.

Chegou a um acordo com a rainha devido à amizade que teve com sua mãe, pois foram muito amigas durante a infância. Mas esse pacto continha duas condições. A primeira era que só cuidaria de Lionel se corresse o boato de que era um filho bastardo do príncipe. A segunda consistia em chamá-lo, quando o considerasse, para torná-lo um fiel aliado da coroa.

Não lhe agradou nenhum requisito, mas os aceitou para salvá-lo.

Durante duas semanas, visitou o quarto de Prinny. Depois, anunciou-lhe que estava grávida. Este falou com a rainha, temendo por sua reação ao conhecer a amizade entre elas. Tal como previu a soberana, seu filho a enviou a Royalhouse para que se mantivesse afastada de Londres e que ninguém soltasse rumores sobre o sucedido. Embora tenha sido a própria rainha quem se encarregou de divulgar o caso entre eles e as repercussões deste.

No início, se sentiu humilhada, enganada e ultrajada, mas com o tempo descobriu que foi a melhor opção. Ela já havia caído em desgraça uma vez, que diferença faria uma segunda se salvasse a vida de Lionel?

Era isso ou perdê-lo...

—Milady? —disse Frida ao abrir a porta.

Eugine se levantou com rapidez do sofá e empalideceu ao observar o rosto de sua amiga. Tentou falar, perguntar o que havia de errado, mas as palavras não saíram.

—Chegaram duas cartas —a criada disse ao ver sua reação.

—De... quem são? —pôde finalmente falar.

—Uma tem o selo real e o outro é do meu primo Jace. —Houve um longo silêncio no qual só se ouviu como estralavam os troncos ao queimar —. Quer que eu as leia?

—Não! —clamou caminhando para ela —. É melhor que não saiba o conteúdo destas para que ninguém tente te machucar em um futuro.

—Como desejar —respondeu Frida colocando os envelopes sobre uma mesa. Em seguida, caminhou lentamente até a porta, olhou com tristeza e fechou ao sair.

Durante pouco mais de meia hora, Eugine ficou ali de pé, observando-as com medo. O que a rainha queria? O que Jace dizia? Qual das duas deve abrir primeiro? Finalmente, optou por aquela que a soberana enviou. Teve que se sentar enquanto descobria que o príncipe chamava seu filho para começar com os estudos próprios de sua linhagem. Não se lembrava de que, para ele, Lionel tinha acabado de fazer dezesseis anos, embora a realidade fosse que ele estava prestes a fazer vinte e um. Ela e o senhor Wayner mentiram tanto sobre sua idade, que houve anos em que lhe celebrou dois aniversários. Mas qualquer um que o observasse com um pouco de interesse, saberia a verdade. Como ele poderia sofrer de gigantismo? A única coisa que acontecia nele era que havia herdado o porte alto e forte de seu pai.

Deixou essa carta na mesa e pegou a outra. Sem abri-la, caminhou de novo até a cadeira que havia frente à lareira e a abriu depois de respirar fundo. Assim que leu a informação de Jace, tudo começou a dar voltas. Como descobriu? Quem, de todas as pessoas que trabalhavam ou trabalharam para ela, revelou a verdade? O terror se apoderou de seu corpo até o ponto de não controlar a tremedeira involuntária de suas mãos. Lionel, seu amado filho, estava em perigo de novo. Mas sabia que desta vez não poderia fazer nada se continuasse a seu lado. Haviam falado mil vezes sobre o que aconteceria quando seu verdadeiro pai descobrisse a verdade, embora jamais pusessem uma data a esse terrível momento.

Eugine se levantou da cadeira, jogou no fogo a prova que a relacionava com o mordomo de Spencer. Em seguida, chamou Frida.

—Sim, milady?

—Chegou o dia —disse enquanto observava como o papel se transformava em cinzas —. Que a cozinheira sirva esta noite primeiro prato uma sopa quente. Segundo o senhor Wayner, é a melhor forma de que todos tomem a bebida que preparou sem que o descubram. Pode se encarregar de despejá-lo na panela?

—Sim, senhora.

—Bem, nesse caso, só me resta falar com meu filho.

 

 

                                                                  Dama Beltrán

 

 

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