Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O SEGREDO DE LUCINDA
EM QUE muitas coisas viram do avesso
Jared Grace tirou uma camisa vermelha, virou-a do avesso e a vestiu de trás para a frente. Tentou fazer a mesma coisa com suas calças jeans, mas não conseguiu. O guia de campo de Artur Spiderwick para o mundo fantástico ao nosso redor ficou em cima do travesseiro, aberto na página das dicas de proteção. Jared tinha consultado o livro cuidadosamente, sem muita certeza de que ele o ajudaria muito.
Desde a manhã em que os irmãos Grace voltaram com o grifo, Tibério começara a perseguir Jared. Muitas vezes ele conseguia ouvir o pequeno gnomo na parede. Em outras ocasiões, Jared achava que o avistara com o canto do olho. Geralmente, Jared acabava sendo vítima de alguma brincadeira nova. Até aquele momento, seus cílios tinham sido cortados, os sapatos foram encontrados cheios de lama e algo tinha urinado no travesseiro dele. Sua mãe achava que o novo gatinho de Simon tinha feito o xixi, mas Jared sabia da verdade.
Mallory foi totalmente indiferente.
— Agora você está vendo como é — ficava ela dizendo.
Só Simon demonstrava preocupação. E ele realmente precisava preocupar-se. Se Jared não tivesse forçado Tibério a desistir da pedra da visão, Simon teria virado churrasquinho em um acampamento de goblin.
Jared amarrou o cadarço de seu sapato cheio de lama e o calçou sobre uma meia do avesso. Ele queria dar um jeito de pedir desculpas a Tibério. Tentara devolver-lhe a pedra, mas o gnomo não a quis. O problema era que ele sabia que se tudo acontecesse de novo, faria exatamente o que tinha feito. Só de imaginar Simon preso pelos goblins — enquanto Tibério ficava ao lado falando por meio de enigmas —, Jared ficava com tanta raiva que quase arrebentava os cadarços na hora de dar o nó.
— Jared — gritou Mallory do andar de baixo. — Jared, venha cá um minutinho.
Ele se levantou, enfiou o Guia debaixo do braço e deu um passo em direção às escadas. Caiu imediatamente, batendo a mão e o joelho no assoalho de madeira. De algum modo, as pontas do cadarço dos sapatos de Jared tinham sido amarradas.
No andar de baixo Mallory estava parada, de pé, na cozinha, levantando um copo contra a janela para que a água refletisse a luz do sol e produzisse um arco-íris na parede. Simon sentou-se perto dela. Os dois irmãos de Jared pareciam hipnotizados.
— O que foi? — perguntou Jared. Ele estava irritado e o joelho doía. Se só queriam lhe mostrar como aquele copo estúpido estava lindo, ele ia arrebentar alguma coisa.
— Tome um gole — disse Mallory, entregando-lhe o copo.
Jared olhou para o copo desconfiado. Será que eles tinham cuspido dentro dele? Por que será que Mallory queria que ele bebesse a água?
— Anda, Jared — disse Simon —, nós já experimentamos.
O forno microondas apitou e Simon levantou-se para retirar um bolo enorme de carne moída de dentro dele. A parte de cima estava com uma cor acinzentada e esquisita, mas o resto da carne ainda parecia congelada.
— O que é isso? — perguntou Jared, espiando a carne.
— É para o Byron — disse Simon, despejando a carne numa vasilha grande e acrescentando cereais. — Ele deve estar melhorando. Está sempre com fome.
Jared sorriu. Qualquer outra pessoa estaria cautelosa ao ajudar um grifo semi-esfomeado que se recuperava na casinha da carruagem. Menos o Simon.
— Anda — disse Mallory. — Beba a água.
Jared tomou um gole e engasgou. O líquido queimou sua boca e ele cuspiu metade no chão de ladrilhos. O restante escorreu por sua garganta, queimando feito fogo.
— Vocês ficaram loucos? — gritou ele no meio de um acesso de tosse. — O que é isso?
— Água da torneira — disse Mallory. — Está com esse gosto.
— Então, por que vocês me fizeram beber essa água? — perguntou Jared.
Mallory cruzou os braços.
— Por que você acha que essas coisas todas estão acontecendo?
— O que você quer dizer? — perguntou Jared.
— Quero dizer que as coisas esquisitas começaram a acontecer depois que encontramos aquele livro, e não vão parar enquanto não nos livrarmos dele.
— Muita coisa esquisita já estava acontecendo antes! — protestou Jared.
— Não interessa — disse Mallory. — Aqueles goblins queriam o Guia. Eu acho que devíamos entregá-lo a eles.
A sala ficou em silêncio por alguns minutos. Finalmente, Jared conseguiu sussurrar:
— O quê?
— Nós devíamos nos livrar desse livro estúpido — repetiu Mallory — antes que alguém se machuque... ou coisa pior.
— Nós nem sabemos o que essa água tem de errado. — Jared olhou para a pia, a ira se enroscando no seu estômago.
— E daí? — disse Mallory. — Lembram daquilo que o Tibério nos disse? Que o Guia de campo de Artur é perigoso demais!
Jared não queria pensar em Tibério.
— Precisamos do Guia — disse ele. — Nós não teríamos descoberto que havia um gnomo na casa sem ele. Nós não saberíamos sobre o troll ou os goblins, nem nada.
— E eles não saberiam sobre nós — disse Mallory.
— O livro é meu — disse Jared.
— Pare de ser tão egoísta! — gritou Mallory.
Jared cerrou os dentes. Como ela se atrevia a chamá-lo de egoísta? Era medrosa demais para guardar o Guia.
— Sou eu quem decide o que vai acontecer com este livro e ponto final!
— Eu vou te mostrar o que é ponto final. — Mallory deu um passo na direção dele. — Se não fosse por mim, você estaria morto!
— E daí? — disse Jared. — Se não fosse por mim, você estaria morta antes.
Mallory respirou fundo. Jared quase conseguia imaginar a fumaça saindo das narinas dela.
— É isso mesmo. Todos nós teríamos morrido por causa do tal do livro — disse ela.
Os três olharam para o “tal do livro” que balançava na mão esquerda de Jared. Ele se virou para Simon, furioso:
— Imagino que você concorde com ela.
Simon ergueu os ombros, desconfortável.
— O Guia realmente nos ajudou a descobrir a verdade sobre o Tibério e sobre a pedra que permite enxergar os seres fantásticos.
Jared sorriu triunfante.
— Mas — continuou Simon e a expressão de Jared mudou — e se houver mais goblins por aí? Eu não sei se conseguiríamos detê-los. E se eles entrarem na casa? E se eles pegarem nossa mãe?
Jared fez que não com a cabeça. Se Mallory e Simon destruíssem o Guia, então teriam feito tudo a troco de nada!
— E se devolvermos o Guia e mesmo assim eles continuarem a nos perseguir?
— Por que eles fariam uma coisa dessas? — perguntou Mallory.
— Porque nós ainda saberíamos da existência do livro — disse Jared. — E continuaríamos sabendo que os seres fantásticos são reais. Eles poderiam achar que nós escreveríamos outro Guia.
— Eu daria um jeito para que isso não acontecesse — disse Mallory.
Jared virou-se para Simon, que estava enfiando uma colher de pau dentro da meleca de carne semicongelada misturada com cereais:
— E o grifo? Os goblins queriam o Byron, não é? Nós vamos devolvê-lo também?
— Não — disse Simon, entreabrindo as cortinas desbotadas para olhar o jardim. — Não podemos permitir que o Byron vá embora. Ele ainda não se recuperou totalmente.
— Ninguém está procurando o Byron — disse Mallory. — Isso não é a mesma coisa, de jeito nenhum.
Jared tentou pensar num argumento que os convencesse, algo que provasse o quanto eles precisavam do Guia. Ele não compreendia os seres fantásticos mais do que Simon ou Mallory. Nem sequer sabia por que os seres queriam o Guia, já que ele só falava deles mesmos. Será que os seres fantásticos não queriam que as pessoas os enxergassem? A única pessoa que poderia saber a resposta era Artur e ele já tinha morrido há muito tempo. Jared parou para pensar nisso.
— Existe alguém que poderíamos perguntar, alguém que realmente sabe o que precisamos fazer — disse Jared.
— Quem? — perguntaram Simon e Mallory ao mesmo tempo.
Jared tinha vencido. O livro estava salvo — pelo menos por enquanto. Ele sorriu.
— Lucinda Spiderwick, a nossa tia Lúcia. Afinal, ela é filha do Artur.
EM QUE muitas pessoas estão loucas
– É muito gentil da parte de vocês, meninos, decidirem visitar sua tia-avó — disse a mãe deles, sorrindo para Jared e Simon pelo espelho retrovisor. — Eu sei que ela vai adorar os biscoitos que vocês prepararam.
Do lado de fora da janela do carro fileiras de árvores passavam, manchas de folhas amarelas e vermelhas entre os galhos nus.
— Eles não fizeram nada — disse Mallory. — Só espalharam a massa pronta numa assadeira.
Jared deu um chute forte por baixo do assento.
— Ei — disse Mallory, virando-se para tentar agarrar seus irmãos. Jared e Simon se desviaram dela. Ela não conseguia alcançá-los porque usava o cinto de segurança.
— Bem, isso é muito mais do que o que você fez — disse a mãe deles. — Você ainda está de castigo, mocinha. Aliás, todos os três. Ainda falta uma semana inteira.
— Eu estava treinando esgrima — disse Mallory, afundando no assento e revirando os olhos. Jared não tinha certeza, mas parece que tinha algo estranho no jeito que as orelhas dela ficaram vermelhas quando disse isso.
Jared tocou sua mochila, distraído, sentindo o contorno do Guia de campo, bem guardado, embrulhado numa toalha. Contanto que ele o mantivesse por perto, Mallory não conseguiria livrar-se do Guia e os seres fantásticos não o roubariam de jeito nenhum. Além disso, talvez tia Lucinda soubesse do Guia. Talvez ela fosse a pessoa que o trancara no fundo falso do baú, deixando-o lá para que fosse encontrado. Se isso fosse verdade, talvez ela conseguisse convencer seu irmão e sua irmã de que era muito importante guardar o Guia.
O hospital onde morava sua tia-avó era enorme. Parecia mais uma mansão que um sanatório, com muros maciços, de tijolos à vista, dezenas de janelas, um gramado muito bem cuidado. Um caminho largo, de pedregulhos brancos, ladeado por crisântemos bordos e dourados, conduzia a um portal de pedra. Havia pelo menos dez chaminés saindo do telhado preto.
— Uau, esse lugar parece ser mais antigo do que a nossa casa — disse Simon.
— Pode ser mais velho — disse Mallory —, mas está menos detonado.
— Mallory! — repreendeu a mãe deles.
O cascalho rangeu sob os pneus do carro quando entraram no estacionamento. A mãe deles escolheu um canto perto de um carro verde batido e desligou o motor.
— A tia Lúcia sabe que viríamos? — perguntou Simon.
— Telefonei antes — disse a sra. Grace enquanto abria a porta do carro e procurava pela bolsa. — Eu não sei até que ponto eles lhe falam as coisas, portanto, não fiquem decepcionados se ela não estiver nos esperando.
— Aposto que somos as primeiras visitas que ela recebe em muito tempo — disse Jared.
Sua mãe o olhou feio.
— Em primeiro lugar, isso não é coisa que se diga, em segundo, por que você está usando a camisa do lado do avesso?
Jared olhou para baixo e levantou os ombros.
— A vovó visita a tia Lúcia, não é? — perguntou Mallory.
A mãe assentiu com a cabeça
— Ela visita, mas é duro para ela.
Lúcia era mais como uma irmã do que uma prima. E então quando ela começou a... deteriorar-se... Foi a vovó que teve que tomar conta de tudo.
Jared sentiu vontade de perguntar o que ela queria dizer, mas algo
o fez hesitar.
Eles caminharam atravessando as portas da instituição, amplas, de madeira castanha. Havia uma escrivaninha no vestíbulo, onde um homem de uniforme estava sentado lendo um jornal. Ele os viu e estendeu a mão para apanhar o telefone amarelado ao lado.
— Assinem aqui, por favor. — Ele apontou com a cabeça em direção a um livro aberto. — Quem vocês vieram visitar?
— Lucinda Spiderwick. — A mãe deles inclinou-se e escreveu os nomes.
Ao ouvir o nome de Lucinda, o homem fez uma cara de desprezo. Jared decidiu, imediatamente, que não gostava nem um pouco daquele sujeito.
Em poucos minutos, apareceu uma enfermeira com uma camisa cor-de-rosa estampada de bolinhas brancas. Ela os conduziu ao longo de um labirinto de corredores brancos, o ar parado cheirava levemente a iodo. Eles passaram por um quarto vazio com uma televisão que piscava, e de algum lugar por perto vinha o som de uma risada esquisita. Jared começou a pensar nos sanatórios dos filmes e imaginou pessoas de olhos arregalados, mordendo as faixas das camisas de força. Olhou pelas portas envidraçadas enquanto passavam.
Num quarto, um jovem de roupão ria lendo um livro de cabeça para baixo, enquanto em outro uma mulher soluçava perto de uma janela.
Jared tentou afastar os olhos da próxima porta, mas ouviu alguém dizer:
— Minha parceira de dança chegou!
Espiando pela fresta, ele viu um homem descabelado apertar o rosto contra a janela.
— Sr. Byrne! — A enfermeira entrou afastando Jared da porta.
— É tudo culpa sua — disse o homem, exibindo os dentes amarelados.
— Você está bem? — perguntou Mallory.
Jared fez que sim com a cabeça, tentando fingir que não tremia.
— Isso sempre acontece? — perguntou a sra. Grace.
— Não — respondeu a enfermeira.
— Sinto muito. Geralmente ele é bem tranqüilo.
Antes que Jared pudesse decidir se fazer essa visita tinha sido uma boa idéia, a enfermeira parou diante de uma porta fechada, bateu duas vezes e a abriu sem aguardar por uma resposta.
O quarto era pequeno com a mesma cor quase branca do corredor. No centro havia uma cama hospitalar com a cabeceira de metal e, sentada nela, com uma manta sobre as pernas, estava uma das mulheres mais velhas que Jared já tinha visto. O cabelo era longo, branco feito açúcar. A pele também era pálida, quase transparente. As costas eram corcundas e tortas para um lado. Um suporte de metal ao lado da cama mantinha uma bolsa cheia com um líquido claro e um tubo comprido preso ao braço dela. Mas os olhos, quando se fixaram em Jared, eram brilhantes e alertas.
— Por que não fecha aquela janela, sra. S.? — perguntou a enfermeira, passando por uma mesinha-de-cabeceira repleta de fotos antigas e quinquilharias. — A senhora vai pegar gripe.
— Não! — gritou Lucinda, e a enfermeira parou no meio do caminho. Então numa voz mais suave a tia-avó continuou: — Deixe como está. Preciso tomar ar puro.
— Olá, tia Lúcia — disse a mãe deles hesitante. — A senhora se lembra de mim? Sou a Helen.
A velha senhora fez que sim com a cabeça, parecendo recuperar a compostura.
— Claro, você é a filha da Melvina. Meu Deus! Você está bem mais velha desde a última vez em que a vi.
Jared reparou que sua mãe não gostou muito da observação.
— Estes são meus filhos, Jared e Simon — disse ela. — E esta é minha filha, Mallory. Estamos hospedados em sua casa e as crianças queriam conhecê-la.
Tia Lúcia franziu a testa.
— A casa? Não é um lugar seguro para vocês.
— Nós já mandamos consertá-la — disse a mãe deles. — E veja, as crianças trouxeram biscoitos para a senhora.
— Que beleza! — A velha senhora olhou para o prato como se ele estivesse cheio de baratas.
Jared, Simon e Mallory trocaram olhares.
A enfermeira bufou.
— Não há nada a fazer — disse ela à sra. Grace, sem se importar se tia Lúcia a ouvia. — Ela não come nada na frente de ninguém.
Tia Lúcia apertou os olhos.
— Eu não sou surda, você sabe.
— Quer provar um biscoito? — perguntou a mãe deles, oferecendo o prato de doces à tia Lucinda.
— Acho que não — disse a velha senhora. — Estou bem satisfeita.
— Talvez possamos conversar no corredor — sussurrou a mãe à enfermeira. — Eu não fazia a menor idéia que as coisas ainda estavam tão mal. — Com uma cara preocupada, ela colocou o prato ao lado da cama e saiu do quarto acompanhada da enfermeira.
Jared sorriu para Simon. Isso era melhor do que ele esperava. Agora eles teriam a garantia de pelo menos alguns minutos a sós com sua tia.
— Tia Lúcia — disse Mallory, falando rápido. — Quando a senhora disse para mamãe que a casa era perigosa, a senhora não estava falando da construção, não é?
— A senhora estava falando dos seres fantásticos
— disse Simon.
— Tudo bem contar pra gente. Nós já os vimos — acrescentou Jared.
A tia sorriu, mas era um sorriso triste.
— Era justamente dos seres fantásticos que eu falava — disse ela, batendo a mão na cama. — Venham. Sentem-se aqui, os três. Contem-me o que está acontecendo.
EM QUE histórias são contadas e um roubo é descoberto
–Nós já vimos goblins, um troll e um grifo — contou-lhe Jared ansiosamente enquanto todos se acomodavam no pé da cama hospitalar. Era um alívio tão grande ter alguém que acreditasse no que contavam. Agora se ela lhes explicasse qual era a importância do Guia, tudo ficaria bem.
— E o Tibério — acrescentou Mallory, apanhando um biscoito e dando uma mordida. — Nós já o vimos, embora a gente não saiba se ele conta como gnomo ou diabrete.
— Certo — disse Jared. — Mas precisamos lhe perguntar uma coisa importante.
— Tibério? — perguntou a tia Lucinda, dando tapinhas suaves na mão de Mallory. — Eu não o vejo há séculos. Como ele está? O mesmo, eu espero. Eles sempre estão do mesmo jeito, não é?
— Eu... eu não sei — disse Mallory.
Tia Lúcia abriu a gaveta do criado-mudo ao lado da cama e tirou dela uma bolsinha velha, verde, bordada com estrelas.
— Tibério adorava isso.
Jared apanhou a bolsa e olhou dentro dela. Várias pedrinhas e bolas brilhavam dentro da bolsinha.
— Elas são dele?
— Ah, não — disse ela. — São minhas, ou eram, quando eu era jovem o suficiente para brincar com essas coisas. Só quero dá-las de presente a ele. O coitadinho fica sozinho naquela casa velha. Ele deve ter se sentido feliz com a chegada de vocês.
Jared não achava que o Tibério tinha ficado de todo contente com isso, mas não disse nada.
— Artur era seu pai? — perguntou Simon.
— Era. Sim, ele era — disse ela suspirando. — Vocês viram as pinturas dele na casa?
Os três fizeram que sim com a cabeça.
— Ele era um artista maravilhoso. Ilustrava comercial de refrigerante e meias femininas de seda. Fazia bonecas de papel para a Melvina e eu. Nós tínhamos uma coleção delas, com vestidinhos diferentes para cada ocasião. Fico pensando o que aconteceu com elas.
Jared deu de ombros.
— Talvez elas estejam no sótão.
— Não interessa. Já faz tanto tempo que ele morreu. Eu nem sei se quero vê-las, de qualquer modo.
— Por que não? — perguntou Simon.
— Elas me trazem lembranças. Meu pai nos abandonou, você sabe. — Lucinda olhou para as suas mãos finas. Elas tremiam. — Papai saiu para dar uma caminhada e nunca mais voltou. Minha mãe disse que já sabia que ele ia partir havia muito tempo.
Jared ficou surpreso. Ele nunca tinha parado para pensar em como seria o tio Artur. Pensou no rosto sério, de óculos, no quadro da biblioteca. Ele queria gostar do tio-bisavô, que desenhava e enxergava os seres fantásticos. Mas se aquilo que Lucinda lhe contava era verdade, então não ia gostar nem um pouco de Artur.
— Nosso pai também nos abandonou — disse Jared.
— Eu só queria saber o porquê. — Tia Lúcia virou para o lado a cabeça, mas Jared pensou ter visto o brilho de lágrimas nos seus olhos. Ela apertou as mãos para impedir que continuassem a tremer.
— Talvez ele tenha se mudado por causa do trabalho — sugeriu Simon. — Como nosso pai.
— Ah, vai, Simon — disse Jared. — Você não acredita nessa besteirada toda.
— Calem a boca, seus estúpidos — gritou Mallory. — Tia Lúcia, por que é que a senhora está neste hospital? Quer dizer, a senhora não é louca.
Jared estremeceu, certo de que tia Lúcia ficaria brava, mas ela só deu risada. A raiva dele diminuiu.
—- Depois que meu pai partiu, minha mãe e eu mudamos para outra cidade, para morar com o irmão dela. Eu cresci ao lado de minha prima Melvina, a avó de vocês. Eu lhe contei do Tibério e das pequenas ninfas, mas eu acho que ela nunca realmente acreditou em mim.
“Mamãe morreu quando eu tinha só dezesseis anos. Um ano depois, voltei para a casa. Tentei usar o pouco dinheiro que tinha para consertá-la. Tibério ainda estava lá, claro, mas havia outras coisas também. Às vezes, eu via formas esgueirando-se no escuro. Até que um dia elas pararam de se esconder. Pensaram que eu estava com o livro do meu pai. Elas me beliscavam, pinicavam e insistiam para que eu lhes entregasse o livro. Mas eu não o tinha. Papai o havia levado. Ele nunca deixaria o Guia para trás.”
Jared começou a falar, mas sua tia estava perdida em suas memórias e não reparou nisso.
— Certa noite, os seres fantásticos me trouxeram um pedaço de fruta, uma coisinha, do tamanho de uma uva e vermelha como uma rosa. Eles prometeram que não me machucariam mais. Como eu era uma menina estúpida, comi a fruta e selei o meu destino.
— Era venenosa? — perguntou Jared, pensando na história da Branca de Neve e os sete anões.
— De certo modo, sim — disse ela com um sorriso estranho. — Seu gosto era mais delicioso do que qualquer comida que eu já tenha sonhado. Tinha o mesmo gosto que eu achava que flores teriam. Era um gosto de música, de uma canção cujo nome a gente nunca consegue lembrar muito bem. Depois disso, a comida dos humanos, a comida normal, ficou com gosto de cinza e areia. Eu não conseguia mais comê-la. Eu podia ter morrido de fome.
— Mas a senhora não morreu de fome — disse Mallory.
— Graças às ninfas que brincavam comigo desde que eu era bem pequenina. Elas me alimentaram e me salvaram. — Tia Lúcia deu um sorriso abençoado e estendeu uma mão. — Deixe que eu lhes apresente as ninfas. Venham, minhas queridas, venham conhecer minha sobrinha e meus sobrinhos.
Um zumbido veio do lado de fora da janela aberta e uma nuvem que parecia uma poeira iluminada pelo sol repentinamente se transformou em criaturas do tamanho de nozes, que batiam asas fulgurantes. Elas cercaram a velha senhora, brincando com seus cabelos brancos e pousando na cabeceira da cama.
— Elas não são lindas? — perguntou a tia. — Minhas amiguinhas queridas.
Jared sabia o que elas eram — ninfas, como as da floresta —, mas isso não impedia que fosse espantoso vê-las voando em volta de sua tia. Já Simon parecia totalmente hipnotizado.
Mallory falou, quebrando o silêncio que se espalhara entre eles.
— Eu ainda não entendi quem foi que trouxe a senhora para cá.
— Ah, sim, o hospital — disse tia Lúcia. — Sua avó Melvina convenceu-se de que eu não andava bem. Primeiro ela reparou nos hematomas e minha falta de apetite. Depois aconteceu uma coisa. Eu não quero assustá-los, não, não é bem verdade. Eu quero assustá-los, sim. Eu quero que vocês entendam como é importante que vocês saiam daquela casa.
“Estão vendo essas marcas?” A velha senhora mostrou o braço fino. As cicatrizes na pele eram fundas. Simon prendeu a respiração. “Certa noite, bem tarde, os monstros chegaram. Umas coisas pequeninas, verdes, com dentes horríveis. Eles me prenderam enquanto um gigante me interrogava. Eu lutei, e as garras deles arranharam meus braços e minhas pernas. Eu lhes disse que não havia livro nenhum, que meu pai tinha levado embora, mas nada do que eu dissesse fazia qualquer diferença. Antes daquela noite, minhas costas eram retas. Desde então, fiquei corcunda.”
“As marcas foram a gota d’água para Melvina. Ela pensou que eu estivesse me cortando. Ela não conseguia entender... então me trouxe para cá.”
Um dos seres fantásticos, vestindo só um galhinho de alfazema, voou para perto dela e derrubou um pedaço de fruta no cobertor, ao lado de Simon. Jared piscou — ele estivera tão envolvido na história que quase se esquecera das ninfas. A fruta tinha o aroma de grama fresca, mel, estava embrulhada num papel fininho, mas Jared conseguia ver sua polpa vermelha. Tia Lúcia olhou para a frutinha e seus lábios começaram a tremer.
— É para você — disseram as pequenas ninfas em coro. Simon apanhou a fruta e a segurou com os dedos.
— Você não vai comê-la, não é? — perguntou Jared. Só de olhá-la, dava água na boca.
— Claro que não — disse Simon, mas seus lhos brilhavam tamanha era sua vontade.
— Não coma — disse Mallory.
Simon trouxe a fruta mágica para perto da boca, enquanto ainda a virava nos dedos.
— Um pedacinho, só uma mordida pequena não vai fazer mal — disse ele baixinho.
A mão de tia Lúcia esticou-se e arrancou a fruta dos dedos de Simon. Ela a enfiou na boca e fechou os olhos.
— Ei — disse Simon indignado, dando um salto. Depois olhou ao seu redor, desorientado. — O que foi que aconteceu?
Jared olhou para sua tia-avó. As mãos dela tremiam, mesmo quando as mantinha fechadas sobre o colo.
— Elas não fazem por mal — disse a tia. — Elas só não compreendem o desejo que despertam. Para elas, essas frutas são como a comida normal.
Jared olhou para as pequenas ninfas. Ele não tinha certeza do que elas sabiam ou deixavam de saber.
— Mas agora vocês compreendem por que minha casa é perigosa demais, meninos. Vocês têm de fazer com que sua mãe entenda que precisa ir embora. Se as criaturas souberem que vocês estão lá, pensarão que vocês estão com o Guia e nunca os deixarão em paz.
— Mas nós estamos com o Guia — disse Jared. — Foi por isso que viemos falar com a senhora.
Tia Lúcia perdeu o fôlego
— Não é possível...
— Nós seguimos as pistas da biblioteca — explicou Jared.
— Está vendo, ela quer que a gente se livre dele! — disse Mallory.
— Na biblioteca? Isso quer dizer... — Tia Lúcia olhou para ele com mais pavor. — Se você tem o Guia, então precisa sair daquela casa imediatamente! Você está entendendo?
— O Guia está bem aqui. — Jared abriu o zíper da mochila e tirou dela um livro coberto por uma toalha. Mas, quando o desembrulhou, o Guia de campo não estava mais ali. Todos ficaram olhando para um livro velho de culinária, A magia do microondas.
Jared virou-se para Mallory:
— Foi você! Você o roubou! — Ele deixou cair a mochila e correu para cima dela aos socos.
EM QUE os imãos Grace procuram por um amigo
Jared apertou o rosto contra a janela do carro e tentou fingir que não estava chorando. As lágrimas caíam, quentes, em sua face. Deixou que escorressem pelo vidro frio.
Ele não tinha realmente atingido Mallory com os socos. Simon agarrou seus braços enquanto Mallory continuava insistindo que não tinha apanhado o Guia. Aquela gritaria toda chamou a mãe deles de volta ao quarto. Ela os arrancou para fora, pedindo muitas desculpas à enfermeira e até mesmo à tia Lúcia, que teve que ser sedada. A caminho do carro a mãe deles disse a Jared que ele teve sorte de não ter sido internado no sanatório também.
— Jared — sussurrou Simon, colocando a mão nas costas de seu irmão gêmeo.
— O quê? — murmurou Jared sem se virar.
— E se o Tibério pegou o Guia?
Jared mexeu-se no assento. Seu corpo inteiro ficou tenso. Na hora em que ele ouviu isso, percebeu que tinha que ser verdade. Seria a última brincadeira de Tibério e também sua maior vingança.
Ele sentiu como se tivesse levado um balde de água fria. Por que ele mesmo não tinha pensado nisso? Às vezes ele ficava tão bravo que isso o assustava. Era como se desse um branco em sua mente e seu corpo assumisse o controle da situação.
Quando chegaram em casa, em vez de entrar com sua mãe, ele escorregou para fora do carro e sentou-se nas escadas do fundo. Mallory sentou-se ao seu lado.
— Eu não peguei o livro — disse ela. — Lembra quando acreditamos em você? Agora você precisa acreditar em mim.
— Eu sei — respondeu Jared, olhando para baixo. — Eu acho que foi o Tibério. Me... me desculpa.
— Você acha que o Tibério roubou o Guia? — perguntou ela.
— Foi o Simon que percebeu isso — disse Jared. — Faz sentido. Tibério vive pregando peças em mim. Esta foi a pior de todas.
Simon sentou-se ao lado de Jared, nas escadas.
— Vai dar tudo certo. A gente vai encontrar o livro.
— Olhem — disse Mallory, mostrando a barra do suéter de onde um fio tinha escapado. — Provavelmente foi melhor assim.
— Não foi, não — disse Jared. — Até você devia perceber isso. Não podemos devolver uma coisa que não temos! Os seres fantásticos não acreditaram na tia Lucinda quando ela lhes disse que não estava com o livro... Por que acreditariam em nós?
Mallory bufou e não respondeu.
— Eu estava pensando — disse Simon. — Tia Lúcia disse que o pai dela abandonou a família, certo? Mas se o Guia de campo ainda estava escondido na casa, talvez ele não o tenha deixado lá de propósito. Ela disse que ele nunca partiria sem levar o livro.
— Então como é que o livro ainda estava escondido? — perguntou Jared. — Se os seres fantásticos o capturaram, ele lhes teria dito onde estava escondido o Guia.
— Talvez ele tenha fugido antes que os seres o prendessem — disse Mallory. — Deixando tia Lúcia sozinha para enfrentá-los. Talvez ele soubesse da existência do gigante.
— Artur não faria isso — disse Jared. E assim que ele disse isso, ficou imaginando se era verdade.
— Vamos — disse Simon. — Nunca descobriremos isso. Vamos visitar o Byron. É provável que ele esteja com fome de novo e assim a gente pára de pensar um pouco no Guia.
Mallory bufou.
— É, visitar um grifo que vive no estábulo realmente vai nos ajudar a esquecer um livro sobre criaturas sobrenaturais.
Jared sorriu vagamente. Ele não conseguia parar de pensar no livro, na tia Lúcia e no Artur, nele mesmo e Mallory, e na raiva que sentia sem saber o que fazer com ela.
Jared olhou para Mallory.
— Desculpe porque tentei bater em você.
Mallory arrumou o cabelo e levantou-se.
— De qualquer jeito, você bateu feito uma mulherzinha.
— Eu não bati não — disse Jared, mas ele se levantou e seguiu Mallory e Simon com um sorriso.
Uma folha de papel amarelada, velha, estava em cima da mesa da cozinha. Jared deu um passo em sua direção. Um poema estava rabiscado no papel.
— Tibério — disse Jared.
Menino malcriado que se acha espertinho.
Está preocupado com seu livro incrível?
Talvez eu o pique inteirinho
ou o esconda num lugar impossível.
— Uau, o cara está zangado! — disse Simon.
Jared ficou dividido entre o alívio e o horror. O livro estava com Tibério, mas o que será que ele tinha feito dele? Será que o livro tinha sido destruído?
— Ei, eu sei! — sugeriu Mallory esperançosa. — Lembram do saquinho de bola de gude da tia Lúcia? Nós poderíamos deixá-lo de presente para o Tibério.
— Eu escrevo um bilhete. — Simon virou a folha e rabiscou algumas palavras.
— O que você escreveu? — perguntou Mallory.
— Nós pedimos desculpas — leu Simon. Jared olhou o bilhete, cético.
— Não sei se a nota e um monte de brinquedo velho serão suficientes.
Simon deu de ombros.
— Ele não pode ficar zangado para sempre. Jared temia que isso realmente acontecesse.
Byron estava dormindo quando eles foram vê-lo, as asas moviam-se cada vez que ele inspirava. Os olhos reviravam sob as pálpebras fechadas. Simon disse que eles provavelmente não deveriam acordá-lo, então deixaram outro prato de carne perto de seu bico e voltaram para casa. Mallory sugeriu um jogo, mas Jared estava nervoso demais para fazer qualquer coisa além de ficar imaginando onde o Tibério teria escondido o Guia. Ele caminhava pela sala de estar tentando pensar.
Talvez fosse uma charada e houvesse um jeito de desvendá-la. Ele pensou no bilhete de novo, examinando as palavras em busca de pistas.
— O Guia não pode estar dentro das paredes. — Mallory sentou-se de pernas cruzadas no sofá. — É grande demais. Como é que ele conseguiria enfiá-lo ali?
— Há muitos quartos nos quais ainda não entramos — disse Simon, sentando-se ao lado dela. — Muitos lugares que não examinamos.
Jared parou no meio de um passo.
— Esperem. E se ele estiver bem na nossa cara?
— O quê? — perguntou Simon.
— Na biblioteca do Artur! Existem tantos livros lá que nós nunca iríamos reparar.
— Ei, isso é verdade! — disse Mallory.
— É isso — disse Simon. — E mesmo se o Guia não estiver lá, sabe-se lá o que mais poderíamos encontrar.
Os três subiram até o andar superior e abriram a porta do armário. Engatinhando, Jared passou pela passagem secreta debaixo da prateleira mais baixa de livros e entrou na biblioteca de Artur. As paredes estavam cobertas de prateleiras, exceto uma onde ficava uma pintura enorme de seu tio-avô. Apesar de todas as visitas que tinham feito à biblioteca, a poeira cobria a maioria das prateleiras, atestando como tinham sido poucos os títulos examinados de perto.
Mallory e Simon espremeram-se atrás dele.
— Por onde começamos? — perguntou Simon, olhando ao seu redor.
— Você começa pela escrivaninha — disse Mallory. — Jared, pegue essa prateleira, e eu fico com essa outra aqui.
Jared concordou com a cabeça e tentou espanar um pouco da poeira na primeira prateleira. Os livros eram tão estranhos quanto os que ele se lembrava em suas idas anteriores à biblioteca: A fisiologia das asas, O impacto das escalas na musculatura, Venenos de todo o mundo e Detalhes de dragonite. Da primeira vez em que Jared os viu, sentiu um espanto que agora tinha desaparecido. Ele se sentia entorpecido. O livro desaparecera, Tibério o odiava e Artur não fora a pessoa que ele tinha imaginado. Era tudo truque — toda aquela magia. Ela parecia tão grandiosa, mas, por baixo de tudo, era tão decepcionante quanto todo o resto.
Jared lançou um olhar para o quadro de Artur na parede. Ele nem parecia ser legal. O Artur na parede tinha os lábios finos e um sulco entre as sobrancelhas que agora Jared atribuía a uma irritação. Provavelmente ele já estava pensando em abandonar a família.
A vista de Jared ficou turva e os olhos queimaram. Era estúpido chorar por causa de uma pessoa que ele nunca tinha encontrado, mas não dava para evitar.
— Foi você que desenhou isso? — perguntou Simon da escrivaninha.
Jared limpou o rosto com a manga, esperando que o irmão não tivesse reparado em suas lágrimas.
— Jogue fora.
— Não — disse Simon. — Está bom. Parece mesmo com o papai.
Aprender a desenhar tinha sido outra idéia estúpida. Só tinha feito com que ele se desse mal na escola porque ficava rabiscando no lugar de estudar. Jared caminhou até a escrivaninha e rasgou o desenho no meio, amassando o papel.
— Jogue fora, eu disse!
— Meninos — disse Mallory. — Venham aqui.
Mallory estava segurando vários rolos de papel e dois tubos longos de metal.
— Olhem! — Ela se ajoelhou e começou a desenrolar as páginas no chão.
Os meninos se agacharam ao lado dela. Nas folhas, desenhado a lápis e pintado com aquarela, estava o mapa da vizinhança. Alguns lugares não pareciam certos — havia mais casas e mais estradas agora —, mas há via muitos lugares que eles ainda reconheciam. Mas as observações foram uma surpresa.
Havia um leve círculo em volta do desenho da floresta atrás da casa, contendo letras que diziam:
— TERRITÓRIO DE CAÇA DOS TROLLS — leu Simon.
Mallory grunhiu.
— Se nós tivéssemos descoberto este mapa antes!
Ao longo de uma estrada perto de uma velha mina estava marcado
ANÕES?, enquanto numa árvore não muito longe da casa estava escrito NINFAS. Mas a coisa mais estranha de todas era uma observação na beira das colinas, perto da casa deles. Parecia que ela tinha sido escrita com muita pressa, e a letra estava ruim. Ela dizia: “14 de setembro. Cinco horas. Traga o resto do livro.”
— O que será que isso quer dizer? — perguntou Simon.
— Será que “o livro” quer dizer Guia de campo? — disse Jared, pensando em voz alta.
Mallory balançou a cabeça.
— Pode ser, mas o Guia ainda estava aqui.
Eles se entreolharam por um momento em silêncio.
Quando foi que Artur desapareceu? — perguntou Jared finalmente.
Simon deu de ombros.
— Provavelmente, só tia Lúcia consegue se lembrar disso.
— Ou ele foi a essa reunião e nunca voltou ou ele foi embora e nunca apareceu nessa reunião — disse Mallory.
— Precisamos mostrar isto para a tia Lucinda! — disse Jared.
Sua irmã fez que não com a cabeça.
— Isso não prova nada. Só vai deixá-la mais triste.
— Mas talvez ele não tivesse a intenção de ir embora — disse Jared bravo. — Você não acha que ela merece saber disso?
— Vamos até lá ver, nós mesmos — disse Simon. — Podemos seguir o mapa e ver para onde ele nos leva. Talvez exista uma pista sobre o que realmente aconteceu.
Jared hesitou. Ele queria ir. Estava quase sugerindo isso quando Simon falou. Mas agora ele não conseguia parar de pensar se isso não seria uma espécie de armadilha.
— Seguir este mapa seria uma coisa realmente idiota — disse Mallory. — Especialmente se pensamos que algo aconteceu com ele por lá.
— Este mapa é velho demais, Mallory — disse Simon. — O que poderia acontecer?
— E essas foram as famosas últimas palavras — disse Mallory, mas ela traçou as colinas do mapa cuidadosamente com os dedos.
— É a única maneira de um dia descobrirmos alguma coisa — disse Jared.
Mallory suspirou.
— Eu acho que poderíamos dar uma olhada. Contanto que seja durante o dia. Mas na primeira coisa esquisita que encontrarmos, voltamos. Concordam?
— Concordo — disse Jared com um sorriso.
Simon começou a enrolar o mapa.
— Concordo — disse ele.
EM QUE surgem muitos enigmas e poucas soluções
Para surpresa de Jared, a mãe deles concordou em deixá-los sair para caminhar um pouco. Ela achava que as brigas constantes aconteciam porque seus filhos estavam se sentindo muito presos dentro de casa. Mas, olhando firme para Jared, fez com que os três lhe prometessem voltar antes do anoitecer. Mallory apanhou sua espada de esgrima, Jared, a mochila e um novo caderno, Simon levou consigo a rede de apanhar borboletas que estava na biblioteca.
— Para que isso? — perguntou Mallory quando atravessavam a Estrada Dulac, seguindo o mapa.
— Para capturar coisas — disse Simon, desviando o olhar dela.
— Que tipo de coisas? Você já não tem bichos demais?
Simon deu de ombros.
— Se você trouxer para casa outra criatura nova eu dou para o Byron comer.
— Ei — disse Jared, interrompendo a conversa. — Qual é a direção certa?
Simon estudou o mapa, depois apontou.
Simon, Mallory e Jared subiram pela encosta da colina. As árvores eram raras, os troncos cresciam inclinados entre os trechos de grama e seixos. Eles ficaram subindo por um longo tempo, quase sem conversar. Jared pensou que um dia seria legal trazer seu caderno de desenhos para esse lugar — mas então se lembrou de que tinha desistido de desenhar.
Perto do topo da colina o solo nivelava e as árvores cresciam mais próximas umas das outras. Simon virou-se repentinamente e começou a levá-los colina abaixo.
— Para onde estamos indo? — perguntou Jared.
Simon balançou o mapa diante dele.
— O caminho é esse — disse ele.
Mallory concordou com a cabeça embora não achasse que fosse estranho o fato de estarem percorrendo o mesmo trajeto outra vez.
— Você tem certeza? — perguntou Jared. — Eu acho que não.
— Tenho certeza — disse Simon.
Foi então que uma brisa soprou na colina e Jared achou que ouviu risadas vindo de baixo da terra. Ele tropeçou e quase caiu.
— Você ouviu isso?
— O quê? — perguntou Simon, olhando ao seu redor, nervoso.
Jared deu de ombros. Ele tinha certeza de que ouvira algo, mas agora só restava um silêncio.
Um pouco mais abaixo Simon mudou de direção novamente. Ele começou a caminhar para cima e para a direita. Mallory o seguiu, de boa vontade.
— Para onde vamos agora? — perguntou Jared.
Eles estavam subindo de novo, indo em direção ao topo da primeira colina, e isso era bom — mas estavam se deslocando de um jeito tão estranho que Jared não achava que estivessem se aproximando do local assinalado no mapa.
— Eu sei o que estou fazendo — disse Simon.
Mallory seguiu sem perguntas, o que irritou Jared tanto quanto as voltas que Simon estava dando. Ele desejava ter o Guia em mãos. Tentou percorrer as páginas mentalmente, procurando encontrar alguma explicação. Ele se lembrou de algo sobre pessoas que se perdem pelo caminho, mesmo quando estão muito perto de casa...
Jared começou a arrancar a grama em que pisava com seus sapatos. Um fio comprido escapou para o lado.
— Grama movediça! — Ele pensou no verbete do Guia. De repente, fez sentido o fato de apenas ele perceber que estavam caminhando na direção errada. — Mallory! Simon! Virem sua camisa do avesso como eu.
— Não — disse Simon. — Eu conheço o caminho. Por que você sempre tem que ficar mandando em mim?
— É um truque dos seres fantásticos! — gritou Jared.
— Esqueça. Siga-me, só pra variar.
— Simplesmente faça isso, Simon!
— Não! Você não me ouviu? Não!
Jared lançou-se contra o irmão e ambos caíram no chão. Jared tentou arrancar o suéter do irmão, mas Simon o prendeu pelos braços.
— Parem com isso, vocês dois!
Mallory os separou. Depois, para a surpresa de Jared, ela se sentou em cima de Simon e arrancou-lhe o suéter.
Ele reparou, imediatamente, que ela já tinha virado sua camisa do lado do avesso.
Uma expressão estranha cobriu o rosto de Simon quando seu suéter ao avesso foi emfiado pela cabeça dele.
— Uau! Onde é que nós estamos?
O som de uma risada veio de cima.
— A maioria das pessoas não chega tão longe... ou tão perto, depende — disse uma criatura empoleirada na árvore. Ela tinha corpo de macaco com pêlo curto, malhado em tons de marrom, e uma longa cauda que se enrolava no galho no qual estava sentada. Trazia um colar de pêlos espessos no pescoço, mas o focinho parecia de coelho, as orelhas eram compridas, bem como os bigodes.
— Depende do quê? — perguntou Jared. Ele não tinha certeza se era para rir ou tremer de medo.
De repente, a criatura virou-se de cabeça para baixo de modo que as orelhas encostaram-se na sua barriga e o queixo ficou apontando para o céu.
— Quem sabe, sabe.
Jared deu um salto.
Mallory ergueu a espada.
— Fique onde está!
— Meu deus, uma fera com uma espada! — disse a criatura, sibilando. Ela balançou a cabeça para voltar à posição anterior, piscou os olhos duas vezes. — Será que a fera é louca? As espadas saíram de moda há tanto tempo!
— Não somos feras — disse Jared, na defensiva.
— Então, o que são? — perguntou a criatura.
— Sou um menino — disse Jared. — E, bem, esta é minha irmã. Uma menina.
— Isso não é menina. Cadê o vestido dela?
— Os vestidos já saíram de moda há tanto tempo — disse Mallory com ironia.
— Nós respondemos às suas perguntas — disse Jared. — Agora queremos as suas respostas. O que é você?
— O Cão Negro da Noite — declarou a criatura com orgulho e, antes que a cabeça dela virasse de novo, ela os encarou com um olho só. — Uma tola ou talvez simplesmente uma ninfa.
— O que isso quer dizer? — perguntou Mallory — É tudo bobagem.
— Eu acho que você é um phooka! — disse Jared. — Sim, agora me lembro. Eles mudam de forma.
— Eles são perigosos? — perguntou Simon.
— Muito! — disse o phooka, balançando a cabeça vigorosamente.
— Não tenho certeza disso — disse Jared, sem fôlego. Depois, limpando a garganta, ele dirigiu-se à criatura. — Estamos procurando por pistas que revelem o paradeiro do meu tio-avô.
— Vocês perderam o seu tio! Que gente descuidada!
Jared suspirou e tentou decidir se o phooka era realmente tão louco como parecia ser.
— Bem, na verdade, ele já sumiu há muito tempo. Há quase setenta anos. Estamos tentando descobrir o que foi que lhe aconteceu.
— Qualquer um pode viver tanto tempo assim; é só não morrer. Mas eu entendo que os humanos vivem mais tempo quando estão em cativeiro do que quando estão soltos.
— O quê? — perguntou Jared.
— Quando se procura por alguma coisa — disse o phooka —, é preciso ter certeza de querer encontrá-la.
— Ah, deixa pra lá! — disse Mallory. — Vamos continuar a andar.
— Vamos pelo menos perguntar ao phooka o que encontraremos no vale à frente — disse Simon.
Mallory revirou os olhos.
— Ah, é, como se o phooka fosse começar a fazer algum sentido.
Simon a ignorou.
— Por favor, o senhor pode nos dizer o que nos espera no caminho? Estávamos seguindo o mapa e depois nos perdemos por causa da grama movediça.
— Se a grama se move — disse o phooka —, então um garoto pode acabar enraizado num lugar só.
— Por favor, por favor, parem de dar atenção ao phooka! — disse Mallory.
— Elfos — disse o phooka encarando Mallory como se estivesse ofendido. — Será que preciso ser direto quando os dirijo diretamente para o caminho dos elfos?
— O que é que eles querem? — perguntou Jared.
— Eles têm o que vocês querem e eles querem o que vocês têm — disse o phooka.
Mallory soltou um gemido alto.
— Nós combinamos que voltaríamos para casa se as coisas ficassem muito esquisitas. — Mallory apontou para o phooka com a espada. — E essa coisa aí é totalmente esquisita.
— Mas não é má. — Jared olhou em direção às colinas. — Vamos andar um pouco mais adiante.
— Eu não sei, não — disse Mallory. — E aquela conversa de grama movediça e da gente se perder?
— O phooka disse que os elfos têm o que queremos!
Simon concordou com a cabeça.
— Estamos chegando bem pertinho, Mal.
Mallory suspirou.
— Não gosto disso. Gostaria que nós estivéssemos espiando os elfos e não o contrário.
Eles começaram a descer pela colina, afastando-se da estrada.
— Esperem! Voltem aqui! — gritou o phooka. — Preciso lhes dizer uma coisa.
Eles se viraram.
— O que é? — perguntou Jared.
— Nonono nonono — disse o phooka com precisão.
— É isso que você queria nos dizer?
— Não, de jeito nenhum — disse o phooka.
— Então, o que é? — perguntou Jared.
— Tudo o que um autor desconhece poderia encher um livro inteiro — disse o phooka. Depois disso, seu corpo subiu para o alto da árvore e sumiu.
As três crianças desceram lentamente o outro lado da colina. À medida que árvores novamente formavam uma floresta fechada, eles reparavam como o silêncio se espalhava. Os pássaros não cantavam naquelas árvores. Parecia que só havia o ruído de seus passos na grama e nos galhos.
Eles pararam numa clareira cercada de árvores. No meio dela, havia uma única árvore, alta, cheia de espinhos, rodeada de cogumelos imensos, vermelhos e brancos.
— Uh! — disse Jared.
— Certo. É esquisito. Vamos embora daqui — disse Mallory.
Mas, quando se viraram, as árvores se entrelaçaram, os galhos entraram dentro de outros galhos, formando uma cerca de folhagem que cobria o chão inteiro da clareira.
— Ai caramba — disse Mallory.
EM QUE Jared cumpre a profecia do phooka
Do outro lado do bosque, os galhos se abriram e três seres saíram de dentro das árvores. Eles eram do tamanho de Mallory, com uma pele sardenta e bronzeada. O primeiro era uma mulher com olhos verde-maçã e um brilho esverdeado nos ombros e têmporas. Folhas se misturavam aos seus cabelos longos. O segundo era um homem que tinha algo que se parecia com pequenos chifres que saíam da testa. A pele dele tinha um tom de verde mais escuro do que a tez da mulher e ele segurava um bastão retorcido. O terceiro elfo tinha cabelos ruivos, espessos, trançados com amoras-vermelhas, e uma coroa feita com duas vagens grossas. A pele era marrom, salpicada de vermelho na altura da garganta.
— Eles são elfos? — perguntou Simon.
— Ninguém percorre esse caminho há muito tempo — disse a elfa de olhos verdes como se ninguém tivesse dito nada. Ela ergueu a cabeça, como se estivesse habituada a ser obedecida. — Todos aqueles que por acaso entraram na floresta se perderam. Mas vocês chegaram até aqui. Que coisa curiosa.
— A grama — sussurrou Jared ao irmão.
— Eles devem estar com o Guia — declarou o elfo ruivo aos companheiros. — De que outro modo teriam caminhado nesta direção? De que outro modo conseguiriam descobrir como prosseguir no caminho? — Ele se voltou para os três irmãos. — Sou Lorengorm. Queremos fazer uma troca com vocês.
— Para quê? — perguntou Jared, esperando que sua voz não tremesse. Os elfos eram lindos, mas a única emoção que ele conseguia ver em seus rostos era uma cobiça estranha que o enervava.
— Vocês desejam libertar-se — disse o elfo que tinha algo que se pa-
recia com chifres.
Jared percebeu que não eram chifres, mas folhas.
— E nós queremos o livro de Artur.
— Nós queremos nos libertar do quê? — perguntou Mallory.
O elfo de chifre-folha apontou para a cerca formada pelas árvores e deu um sorriso frio.
— Nós abrigaremos vocês até que se cansem de nossa hospitalidade.
— Se Artur não lhes deu o livro, por que deveríamos entregá-lo a vocês? — Jared esperava que não percebessem que ele estava blefando.
O elfo de chifre-folha fungou.
— Há muito tempo sabemos que a humanidade é brutal. Antes, pelo menos, os seres humanos eram ignorantes. Agora precisamos manter segredo sobre nossa existência para nos protegermos. Vocês não são confiáveis. Vocês destroem nossas florestas.
Lorengorm fez uma cara horrível, seus olhos faiscaram.
— Os humanos envenenam os rios, caçam os grifos dos céus e as serpentes dos mares. Imagine o que vocês fariam se descobrissem nossas fragilidades.
— Mas nós nunca fizemos nada! — disse Simon.
— E ninguém nem acredita mais em seres fantásticos — disse Jared. Ele pensou em Lucinda. — Pelo menos, não em sã consciência.
A risada de Lorengorm soou cínica.
— Ainda restam seres fantásticos em número suficiente. Estão ocultos nas poucas florestas que sobraram. Logo esses também vão desaparecer.
A elfa de olhos verdes ergueu uma mão na direção da cerca de arvores trançadas.
— Vou mostrar tudo a vocês.
Jared reparou em todos os tipos de seres fantásticos, sentados no círculo de árvores, espiando pelos buracos entre os troncos. Seus olhos negros brilhavam, as asas zumbiam e as bocas se mexiam, mas nenhum deles entrava no bosque. Era como se estivessem num tribunal, com os elfos atuando tanto como juízes quanto como júris. Então, alguns galhos se abriram e surgiu outra criatura.
Era branca, do tamanho de uma gazela. O pêlo era prateado e a longa crina caía em trancas. De sua testa saía um chifre torcido cuja ponta parecia afiada. A criatura ergueu o focinho úmido e farejou o ar. Á medida que ela se aproximava deles, um silêncio se espalhava no vale. Até mesmo os passos da criatura eram silenciosos. Ela não parecia nada mansa.
Mallory deu um passo adiante, virando a cabeça levemente, e estendeu a mão.
— Mallory — alertou Jared. — Não...
Mas ela não conseguia mais ouvi-lo e já esticava os dedos para acariciar o flanco da criatura. O ser ficou totalmente imóvel, e Jared sentiu medo de respirar enquanto Mallory acariciava o dorso do unicórnio, depois enfiava a mão dentro de sua crina. Quando a garota fez esse gesto, o chifre de osso tocou sua cabeça e os olhos dela se fecharam. Em seguida seu corpo inteiro começou a tremer.
— Mallory! — disse Jared.
Sob as pálpebras fechadas, os olhos de Mallory reviravam, como se ela estivesse sonhando. Depois ela caiu de joelhos.
Jared correu para agarrá-la. Simon veio logo depois. Quando Jared tocou Mallory, penetrou em sua visão.
Tudo era silêncio.
Nódulos de arbusto de amoras-pretas. Homens a cavalo. Cães esbeltos de línguas vermelhas. Um brilho alvo, e um unicórnio surge na clareira, as pernas já sujas de lama. Flechas voam, cravando-se na carne branca. 0 unicórnio grita e cai dobre uma montanha de folhas. Dentes de cães arrebentam-lhe o couro. Um homem com uma faca arranca o chifre de sua testa enquanto o unicórnio ainda se move.
As imagens vinham cada vez mais rapidamente, mais desconexas.
Uma garota com um vestido desbotado, perseguida por caçadores, atrai o unicórnio para si. Uma flecha perdida a lança contra o solo. Ela cai, o pálido braço sobre o pálido flanco. Ambos ficam imóveis. Então, centenas de chifres sangrentos, no formato de cálices, esmagados em poções mágicas e pós encantados. Retalhos de couro branco manchado de sangue, amontoados numa pilha repleta de moscas.
Jared libertou-se do sonho, com o estômago embrulhado. Para sua surpresa, Mallory chorava, as lágrimas escureciam a pelagem alva do unicórnio. Simon colocou a mão no dorso da criatura, timidamente.
O unicórnio levantou a cabeça, farejou os cabelos de Mallory.
— Ele realmente gosta de você — disse Simon. Ele parecia um pouco aborrecido. Os animais geralmente o preferiam.
Mallory deu de ombros.
— Sou uma garota.
— Nós sabemos o que foi que você viu — disse o elfo de chifre-folha. — Entreguem-nos o Guia. Ele precisa ser destruído.
— E quanto aos goblins? — perguntou Jared.
— O que há com eles? Os goblins amam o mundo de vocês — disse Lorengorm. — Suas máquinas e venenos são um paraíso para a espécie deles.
— Vocês pareciam muito tranqüilos quando os usaram para tentar tirar o livro de nós — disse Jared.
— Nós? — perguntou a elfa arregalando os olhos verdes e abrindo a boca. — Vocês acham que enviaríamos esses mensageiros? É Mulgarath quem os comanda.
— Quem é Mulgarath? — Mallory levantou-se, a mão ainda acariciando o unicórnio, distraidamente.
— Um ogro — disse Lorengorm. — Ele vem reunindo goblins à sua volta e fazendo pactos com os anões. Nós achamos que ele quer o Guia de Artur Spiderwick para si.
— Por quê? — perguntou Jared. — Vocês já não sabem tudo o que ele contém?
Os elfos trocaram olhares, inquietos. Finalmente, o elfo de chifre-folha falou:
— Nós fazemos arte. Não sentimos necessidade de cortar as coisas ao meio para ver do que são feitas. Aquilo que Artur Spiderwick fez nenhum de nós jamais faria.
A elfa de olhos verdes colocou uma mão no ombro do outro elfo.
— Ele quer dizer que podem existir coisas naquele Guia que desconhecemos.
Jared parou um pouco para pensar.
— Então vocês não estão realmente preocupados com a possibilidade dos seres humanos pegarem o Guia de campo de Artur. Vocês não querem é que o Mulgarath o tenha!
— O livro é perigoso nas mãos de qualquer um — disse a elfa de olhos verdes. — Muitas informações foram registradas nele. Entregue-nos o livro. Ele será destruído e vocês serão recompensados.
Jared levantou a mão.
— Nós não estamos com o Guia — disse ele. — Mesmo que quiséssemos entregá-lo a vocês, não poderíamos.
O elfo de chifre-folha balançou a cabeça e bateu a bengala no chão.
— É mentira!
— Nós não estamos com o Guia — disse Mallory. — Verdade.
Lorengorm ergueu uma única sobrancelha avermelhada.
— Então, onde é que ele está?
— Nós achamos que o gnomo da nossa casa está com ele — acrescentou Simon. — Mas não temos certeza.
— Vocês o perderam? — disse a elfa de olhos verdes, boquiaberta.
— É provável que ele esteja com o Tibério — disse Jared, em voz baixa.
— Nós tentamos ser razoáveis — disse o elfo de chifre-folha. — Os humanos não têm palavra.
— Não têm palavra? — repetiu Jared. — Como podemos saber se dá para confiar em vocês? — Ele arrancou o mapa de Simon e o ergueu para que os elfos pudessem vê-lo. — Nós encontramos isto. Era de Artur. Parece que ele veio até aqui e eu imagino que os conheceu. Quero saber o que foi que fizeram com ele.
— Nós conversamos com Artur — disse o elfo de chifre-folha. — Ele pensou que podia nos enganar. Ele jurou que destruiria o Guia e saiu de nossa reunião com uma sacola cheia de papel queimado e cinzas. Mas ele mentiu. Ele tinha queimado outro livro. O Guia continuou ileso.
— Nós honramos nossa palavra — disse a elfa de olhos verdes. — Embora seja difícil, nós cumprimos nossas promessas. Não gostamos de quem nos engana.
— O que foi que vocês fizeram? — perguntou Jared.
— Nós o impedimos de cometer mais erros no futuro — disse a elfa.
— Agora apareceram vocês — disse o elfo de chifre-folha. — E vocês nos trarão o Guia.
Lorengorm balançou a mão e raízes brancas saíram da terra. Jared gritou, mas sua voz se perdeu no ruído de galhos quebrando e folhas se movendo. As árvores desentrelaçaram os galhos e seus troncos voltaram à sua forma natural. Mas as raízes sujas, felpudas, enroscaram-se nas pernas de Jared e o aprisionaram.
— Tragam-nos o Guia ou seu irmão ficará preso para sempre em nosso mundo encantado — disse o elfo de chifre-folha.
Jared não duvidou da palavra dele.
EM QUE Jared finalmente está feliz por ter um irmão gêmeo
Mallory saltou adiante, brandindo sua espada. Simon também levantou a rede, numa imitação bem desajeitada. O unicórnio balançou a cabeça, a crina esvoaçando enquanto ele galopava silenciosamente nas profundezas da floresta.
— Ah, não! — disse o elfo de chifre-folha. — Agora vemos o verdadeiro caráter dos seres humanos!
— Soltem meu irmão! — berrou Mallory.
Jared repentinamente teve uma idéia.
— Jared, socorro! —gritou Jared, esperando que Simon e Mallory entendessem a dica.
Simon ficou só olhando para ele, confuso.
— Jared — disse Jared. — Você precisa me ajudar.
Então Simon sorriu para ele, os olhos iluminando-se com a compreensão.
— Simon, você está bem?
— Estou ótimo, Jared. — Jared puxou a perna para arrancá-la das raízes com toda a força. — Mas eu não consigo me mexer.
— Nós voltaremos com o Guia, Simon — disse Simon —, e então eles terão que libertar você.
— Não — disse Jared. — Se vocês voltarem, eles prenderão todos nós. Vocês precisam obrigá-los a fazer uma promessa!
— Nós honramos a nossa palavra — sussurrou a elfa de olhos verdes.
— Mas vocês ainda não nos deram a sua palavra — disse Mallory, que olhava para os irmãos cada vez mais preocupada.
— Prometam que Jared e Mallory podem sair do bosque em segurança e que, quando voltarem, não ficarão presos contra sua vontade — disse Jared.
Mallory parecia pronta para protestar, mas ficou calada.
Os elfos olharam para os irmãos com certa hesitação. Finalmente, Lorengorm concordou.
— Que assim seja. Jared e Mallory podem sair do bosque. Eles não serão mantidos aqui contra sua vontade nem agora, nem mais tarde. Se eles não nos trouxerem o Guia, prenderemos seu irmão Simon, para todo o sempre. Ele ficará aqui, conosco, sem envelhecer, debaixo da colina, por centenas e centenas de anos. E se tentar fugir, assim que pisar no chão, envelhecerá todos os anos que passou conosco de uma só vez.
O verdadeiro Simon estremeceu e aproximou-se de Mallory.
— Andem logo — disse o elfo.
Mallory olhou para Jared cuidadosamente. A ponta da espada dela tinha entortado, mas ela ainda a mantinha à sua frente e não fazia nenhum movimento para sair do bosque. Jared tentou sorrir para encorajá-la, mas ele estava apavorado e sabia que seu rosto denunciava o medo.
Balançando a cabeça, Mallory seguiu Simon. Depois de alguns passos eles se viraram e o avistaram, em seguida começaram a subir pela colina íngreme. Em poucos minutos, sumiram no meio das folhagens. Jared disse:
— Você precisa deixar que eu vá.
— E por que isso? — perguntou o elfo de chifre-folha. — Você ouviu nossa promessa. Nós só o libertaremos depois que seus irmãos nos entregarem o Guia.
Jared balançou a cabeça.
— Você disse que não libertaria o Simon. Eu sou o Jared.
— O quê? — perguntou Lorengorm.
O elfo de coroa deu um passo na direção de Jared, as mãos curvadas como se fossem garras.
Jared engoliu em seco.
— Você deu a sua palavra. Agora precisa me libertar.
— Preciso de uma prova, menino — disse a elfa de olhos verdes. Os lábios apertados.
— Olhem aqui. — Jared tirou a mochila das costas com as mãos trêmulas. No alto, três letras formavam um monograma impresso na lona vermelha: JEG. — Vejam. Jared Evan Grace.
— Vá — disse o elfo de chifre-folha, pronunciando a palavra como se fosse uma maldição. — Aproveite bem essa sua liberdade até nosso próximo encontro, com você ou com seus dois irmãos sem coração.
Diante disso, as raízes se soltaram das pernas de Jared. Ele saiu correndo para fora do bosque o mais rápido possível. Nem sequer olhou para trás.
Quando alcançou o alto da colina, ele ouviu uma risada.
Olhou para as árvores nas proximidades, mas não havia nem sinal do phooka. Mesmo assim, Jared ficou só um pouco surpreso quando ouviu aquela voz que agora lhe era bem familiar.
— Já vi que vocês não encontraram o seu tio. Que pena. Se vocês fossem um pouco menos inteligentes, talvez tivessem mais sucesso.
Jared balançou os ombros e desceu correndo do outro lado da colina; ele corria tanto que mal conseguiu parar quando chegou ao meio da estrada. Atravessou a rua e os portões de ferro entrando em seu jardim, sem fôlego.
Mallory e Simon o esperavam na escada. Sua irmã não disse nada, mas o abraçou de um jeito muito diferente e pouco típico dela. Jared deixou que ela o abraçasse.
— Eu não tinha a menor idéia do que você ia fazer — disse Simon dando risadas. — Esse truque foi demais!
— Obrigado por entrar na jogada — disse Jared com um sorriso. — O phooka me disse uma coisa no caminho de volta.
— Alguma coisa que fizesse sentido? — perguntou Mallory.
— Bem, eu estava pensando — disse Jared. — Lembram de como os elfos me disseram que me manteriam no mundo das fadas?
— Que eles manteriam você? — perguntou Simon. — Eles disseram Simon.
— É, mas pense no que eles iam fazer. Eles iam me manter preso para sempre. Sem envelhecer, lembra? Para sempre.
— Então, você acha... — a voz de Mallory sumiu.
— Quando eu estava fugindo, o phooka disse que se eu tivesse sido menos inteligente, teria tido mais sucesso para encontrar o meu tio.
— Quer dizer que Artur pode ter sido preso pelos elfos? — perguntou Simon enquanto subia os degraus da casa.
— Eu acho que sim — disse Jared.
— Então, ele ainda está vivo — disse Mallory.
Jared abriu a porta detrás e entrou no quarto dos fundos. Ele ainda tremia por causa de seu encontro com os elfos, mas o sorriso em seu rosto aumentava. Talvez Artur não tivesse abandonado a família. Talvez ele fosse prisioneiro dos elfos. E talvez — se Jared foi inteligente o suficiente — Artur fosse resgatado.
Enquanto imaginava como seria o resgate, Jared mal percebeu o brilho prateado aos seus pés antes de cair. Uma coisa pontuda apertou a coxa de Jared e espetou a mão que ele estendeu para tocá-la. Simon também tropeçou, batendo em Jared e Mallory, que vinham logo atrás, e despencou em cima dos dois.
— Droga! — gritou Jared, olhando ao seu redor. O chão estava coberto de pedrinhas e bolinhas de gude.
— Uau! — disse Simon, tentando sair de baixo do irmão. — Me tire daqui, Mal.
— Uau pra você — disse Mallory, levantando-se. — Eu vou matar aquele microdiabrete. — Ela fez uma pausa. — Quer saber de uma coisa, Jared? Se nós encontrarmos o Guia de campo de Artur, eu acho que devemos guardá-lo.
Jared olhou para ela.
— Você acha?
Ela fez que sim com a cabeça.
— Eu não sei o que vocês acham, mas eu já não agüento mais ficar obedecendo a esses seres fantásticos.
Tony Diterlizzi
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