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O SEGREDO DO OURO QUE CRESCE / Bram Stoker
O SEGREDO DO OURO QUE CRESCE / Bram Stoker

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O SEGREDO DO OURO QUE CRESCE

 

Quando Margaret Delandre foi instalar-se em Brent's Rock, toda a vizinhança se animou, alegrada pela perspectiva de um novo escândalo. Os escândalos provocados pela família Delandre ou pelos Brent de Brent's Rock, não eram raros; e se a história secreta do condado tivesse sido inteiramente escrita, teríamos encontrado os dois nomes bem representados. É verdade que as posições das duas famílias eram tão diversas que elas teriam podido pertencer a continentes diferentes - porque até então as suas órbitas nunca se haviam cruzado. Os Brent tinham-se visto reconhecer, por toda esta parte do condado, uma posição social dominante particular e continuavam a ser mantidos acima da classe dos pequenos proprietários rurais à qual pertencia Margaret Delandre - como um fhidalgo de Espanha se mantém acima dos seus caseiros.

A árvore genealógica dos Delandre vinha de longe, e estavam tão orgulhosos disso a seu modo como os Brent o estavam da sua. Mas a família nunca se elevara acima da linha dos pequenos proprietários; e embora hajam sido prósperos numa certa época, nos bons velhos tempos das guerras estrangeiras e do proteccionismo, a sua fortuna havia-se derretido debaixo do sol abrasador da livre-troca e nos “tempos de paz melodiosos”. Como costumavam dizer os seus membros mais velhos, tinham-se "agarrado às suas terras" com o resultado de aí ganharem raízes o corpo e a alma. Na verdade, tendo optado por uma vida “de legumes”, haviam-se expandido como faz a vegetação: tinham crescido e prosperado na boa estação, e sofrido durante a má. As suas terras, Dander's Croft, pareciam estar esgotadas, típicas da família que as habitara. Esta família tinha declinado de geração para geração, fazendo crescer de vez em quando alguns rebentos que abortavam sob a forma de um soldado ou de um marinheiro, e que tinham alcançado com dificuldade graus subalternos no serviço armado, e por aqui se quedaram, com a coragem quebrada pela raiz na acção, ou então sob o efeito da causa destruidora específica dos homens sem nascimento ou sem educação - a consciência de uma posição superior à sua e à qual não se achavam à altura de aceder. Assim, pouco a pouco, a família declinara, tornando-se os homens sombrios e insatisfeitos, cavando as sepulturas com a garrafa, gastando-se as mulheres em tarefas caseiras, ou então fazendo casamentos desiguais - ou pior ainda. Com o tempo, todos tinham desaparecido, apenas restavam, em Croft, Wykham Delandre e a sua irmã Margaret. O homem e a mulher, respectivamente, pareciam ter herdado, sob os aspectos masculino e feminino, as más tendências da sua raça, partilhando em comum - se bem que manifestando-se de várias maneiras - uma mesma paixão secreta pela volúpia e pela indolência.

A história da família Brent fora algo de semelhante, mas as causas da decadência mostravam-se sob uma forma mais aristocrática do que plebeia. Também eles tinham mandado os seus rebentos para as guerras; mas a sua posição fora diferente, e tinham merecido muitas vezes distinções porque, sem excepção, se haviam mostrado corajosos, e as suas proezas guerreiras tinham sido realizadas antes de o egoísmo da natureza dissipada que os caracterizava lhes ter minado o vigor.

O chefe actual da família - se é que se pode falar de família quando só restava um herdeiro em linha recta - era Geoffrey Brent. Era quase o representante típico de um fim de raça, exibindo em certos casos qualidades brilhantes, noutros a degradação mais total. Poder-se-ia compará-lo com equidade a um daqueles nobres italianos da Antiguidade que os pintores nos conservaram e cuja coragem, ausência de escrúpulos, requinte na luxúria e crueldade fazem deles voluptuosos verdadeiros e demónios potenciais. Era seguramente belo, com aquela beleza sombria, de raça autoritária, que as mulheres, em geral, reconhecem como dominadora. Com os homens mostrava-se distante e frio; mas um tal comportamento nunca dissuade o género feminino. As leis insondáveis do belo sexo são tais que uma mulher tímida não receia um homem feroz e altivo. Assim se explica que não houvesse uma mulher, ou quase, fosse qual fosse a sua condição e que vivesse nos arredores de Brents Rock, que não alimentasse uma espécie de admiração secreta por tão belo libertino. Esta categoria era vasta porque Brent's Rock se elevava abruptamente no meio de uma região plana e ao longo de uma extensão de cem milhas que se perdia no horizonte, com as suas altas e velhas torres, e os seus telhados a cortarem a linha uniforme da floresta e da aldeia, e solares espalhados ao longe.

Durante todo o tempo que Geoffrey Brent reservara para as suas dissipações em Londres, Paris e Viena, longe de todos os olhares e do rumor da sua casa, a opinião tornara-se silenciosa. É fácil escutar ecos longínquos sem sentir emoção, e podemos tratá-los com incredulidade ou ainda com desprezo e desdém - ou com uma qualquer atitude de frieza. Mas quando o escândalo se aproximou, o caso mudou de figura; e os sentimentos de independência e de integridade que se encontram no seio de todas as comunidades que não se acham por completo apodrecidas afirmaram-se e exigiram que fosse exprimida uma condenação. Apesar disso, ainda existia uma certa reticência em cada um e não se tomava mais nota dos factos existentes do que fosse absolutamente necessário. Margaret Delandre agira de um modo tão pouco timorato e tão aberto - considerava como justificada a sua posição de companheira de Geoffrey - e de um modo tão natural que as pessoas, que haviam acabado por acreditar que ela o desposara secretamente, julgaram prudente conservar tacto na língua com medo de que o tempo lhes desse razão e fizesse também dela um sério adversário.

A única pessoa que, pela sua ingerência, teria podido levantar a dúvida, foi impedida pelas circunstâncias de interferir no caso. Wykham Delandre tinha discutido com a irmã - ou, talvez, fosse ela quem discutira com ele - e não só uma espécie de neutralidade na defensiva, mas um ódio amargo alimentava as suas relações. A disputa tinha precedido a partida de Margaret para Brent's Rock. Ela e Wykham quase tinham batido um no outro. Houve, certamente, ameaças de ambos os lados; e, no fim, Wykham, dominado pelo furor, ordenara à irmã que abandonasse a casa. Ela pusera-se imediatamente de pé, e sem sequer perder tempo a meter numa mala os seus pertences pessoais, transpusera o portão da casa. Na soleira, detivera-se um instante para lançar a Wykham uma ameaça repleta de amargura: ele haveria de arrepender-se, no meio da vergonha e do desespero, até à derradeira hora de vida, do seu acto daquele dia.

Algumas semanas tinham decorrido; dizia-se nas vizinhanças que Margaret fora para Londres, quando, bruscamente, ela apareceu a passear de caleça com Geoffrey Brent, e toda a gente dos arredores soube, antes do cair da noite, que se tinha instalado em Brent's Rock. Ninguém ficara surpreendido com o regresso inopinado de Brent porque era assim o seu hábito. Mesmo as próprias criadas nunca sabiam quando aguardá-lo, porque existia uma entrada privada para o castelo da qual só ele possuía a chave, e por ali entrava uma vez por outra, sem que ninguém na casa soubesse que estava lá. Tornara-se para ele uma espécie de hábito aparecer após uma longa ausência.

Wykham Delandre ficara furioso com estas notícias. Jurou vingar-se e, para avivar no espírito a violência do seu furor, bebeu mais do que nunca. Tentou por diversas vezes falar com a irmã, mas ela recusava-se com desprezo a encontrar-se com ele. Tentou ter uma conversa com Brent que lhe foi recusada também. Depois procurou interceptar Brent na estrada, mas sem êxito, porque Geoffrey não era homem para ser parado contra vontade. Os dois cruzaram-se efectivamente por diversas vezes e muitos outros encontros estiveram prestes a acontecer e foram evitados. Com o tempo, Wykham Delandre permaneceu numa aceitação triste e vingativa da situação.

Nem Margaret nem Geoffrey possuíam um temperamento pacífico, e muito depressa rebentaram querelas entre ambos. Um pretexto podia puxar outro e o vinho corria em torrente em Brent's Rock. De vez em quando, as disputas envenenavam-se e eram trocadas ameaças numa linguagem que deixava estupefactos os criados. Mas tais querelas, habitualmente, terminavam, como todas as altercações domésticas, na reconciliação e no respeito recíproco da energia aplicada conforme a sua importância. Bater-se por bater-se é considerado em si em certas classes da sociedade, no mundo inteiro, como possuindo um interesse absorvente, e não existem motivos para pensar que as condições domésticas lhes reduzam a intensidade. Geoffrey e Margaret ausentavam-se de vez em quando de Brent' Rock e em cada uma destas ausências Wykham Delandre partia também. Mas, em geral, sabia destas ausências muito tardiamente para delas colher utilidade, e regressava a casa de cada vez num estado de espírito mais sombrio e mais descontente do que na vez precedente.

Chegou, por fim, um dia em que Brent's Rock ficou deserto por mais tempo do que no passado. Poucos dias antes desta partida, havia rebentado uma querela, a qual ultrapassara em violência todas quantas a tinham precedido; mas mais uma vez fora seguida de reconciliação, e uma viagem ao continente foi mencionada na frente dos criados. Alguns dias depois, Wykham Delandre partiu também e só voltou decorridas algumas semanas. Notaram que exibia uma segurança nova; satisfação, exaltação - era difícil dizer. Dirigiu-se imediatamente para Brents Rock, exigiu falar a Geoífrey Brent e, quando soube que este ainda não voltara, declarou num tom severo que os criados notaram:

- Voltarei. As minhas notícias são seguras e podem esperar!

E afastou-se. As semanas passaram, depois os meses, depois espalhou-se o boato, certificado mais tarde, de que sucedera um acidente no vale de Zermatt. Quando atravessava uma passagem perigosa, a carruagem onde seguiam uma dama inglesa e o cocheiro caíra num precipício, tendo o cavalheiro do grupo, Mr. Geoffrey Brent, saído miraculosamente ileso porque seguia pela estrada a pé a fim de aliviar os cavalos. Deu informações e foram empreendidas pesquisas. A lingueta partida, a estrada deteriorada, as marcas dos cavalos que tinham lutado na berma antes de caírem finalmente no precipício da torrente, tudo confirmou a triste notícia. Era uma estação húmida e tinha havido muita neve nesse Inverno, a tal ponto que o ribeiro transbordara muito acima do seu volume habitual, e os turbilhões da corrente estavam pejados de blocos de gelo. Todas as buscas realizáveis foram empreendidas e finalmente o destroço da carruagem e o corpo de um cavalo foram encontrados nos turbilhões do ribeiro. Mais tarde, o corpo do cocheiro foi descoberto numa praia arenosa que a corrente tinha levado, próximo de Tasch; mas o corpo da dama assim como o do outro cavalo tinham desaparecido e sem dúvida rodopiavam - pelo menos o que deles restava naquele momento - nos turbilhões do Ródano, que abre o seu caminho até ao lago de Genebra.

Wykham Delandre fez todas as pesquisas possíveis, mas não conseguiu localizar nenhum vestígio da mulher. Apesar disso, encontrou nos registos de diversos hotéis o nome de “Mr. e Mrs. Geoffrey Brent”. E mandou erigir uma estrela, em Zermatt, em memória da irmã, com o seu nome de esposa, e mandou suspender um ex-voto numa das paredes da igreja de Brette, paróquia onde Brent s Rock e Danders Croft ficavam situados.

Quase um ano tinha-se escoado depois de os vaivéns do caso se terem embotado, e nas vizinhanças os hábitos haviam sido retomados. Brent encontrava-se de novo ausente e Delandre mais ébrio, mais taciturno e mais vindicativo do que nunca.

Depois houve uma nova emoção. Estavam a ornamentar Brents Rock para uma nova castelã. Isto foi anunciado oficialmente pelo próprio Geoffrey numa carta para o cura; tinha desposado, havia alguns meses, uma dama italiana e estavam nesse momento no caminho do regresso. Depois, um exército de artesãos invadiu a casa; ouvia-se o barulho do martelo e da plaina, um cheiro a cola e a pintura espalhou-se no ar. Uma ala da velha casa, a ala sul, foi inteiramente refeita, depois toda a equipa dos operários tornou a partir, apenas deixando os materiais necessários à decoração do velho vestíbulo que seria feita quando Geoffrey Brent estivesse de regresso, porque ordenara que fosse efectuada sob a sua presença. Tinha trazido consigo desenhos precisos do vestíbulo da casa do pai da esposa, com o intuito de reproduzir para ela o lugar a que estava habituada. Como todos os moldes deviam ser refeitos, foram instalados alguns andaimes e tábuas e alinhados num dos lados do grande vestíbulo, assim como uma enorme tina de madeira destinada a misturar a cal contida nos sacos pousados ali próximo. Quando chegou a nova castelã de Brents Rock, os sinos da igreja tocaram a rebate e houve um júbilo geral; era uma bela criatura, repleta da poesia, do fogo e da paixão do Sul; e as raras palavras inglesas que tinha aprendido eram ditas de um modo tão defeituoso, mas tão meigo e lindo, que ganhou os corações das pessoas quase tanto com a música da sua voz como com a beleza límpida dos seus olhos escuros.

Geoffrey mostrava-se mais feliz do que parecera até então; mas o seu semblante adquirira uma expressão sombria e ansiosa, ainda desconhecida dos seus familiares e acontecia-lhe sobressaltar-se por momentos devido a ruídos que só ele escutava.

Assim passaram os meses e constava que, enfim, Brents Rock teria um herdeiro. Geoffrey mostrava-se muito carinhoso para com a mulher e o novo laço que os unia parecia suavizá-lo. Tomou um interesse mais vivo pela vida dos caseiros e pelas suas necessidades, como antes nunca sucedera; e não deixava de praticar actos de caridade, tal como a sua jovem e meiga esposa. Dir-se-ia ter depositado todas as suas esperanças na criança que vinha a caminho e, olhando para o longínquo futuro, a sombra negra que lhe cobria o rosto parecia dissipar-se lentamente.

Durante todo este tempo, Wykham Delandre meditava a sua vingança. Um desejo de vingança tinha-lhe germinado no fundo do coração, que apenas aguardava a ocasião de cristalizar-se e de assumir uma forma definitiva. A sua ideia vaga era dirigida, de uma forma ou de outra, contra a mulher de Brent, porque sabia que poderia atingi-lo melhor através do ser amado, e o tempo que se aproximava parecia fornecer-lhe a ocasião que tanto desejava. Uma noite, encontrava-se ele sentado sozinho no salão da sua casa; no seu género fora em tempos uma bela divisão, mas o tempo e o abandono haviam operado, e agora não valia mais do que uma ruína, privada de toda a dignidade e de todo o pitoresco. Estava a beber copo após copo há já um bom momento, e achava-se mais do que meio embrutecido, quando julgou ouvir um ruído, como se alguém batesse à porta; levantou a cabeça. Gritou quase selvaticamente que entrassem, mas não houve resposta. Murmurando uma praga, serviu-se de novo. Então esqueceu tudo quanto o rodeava e mergulhou no entorpecimento, mas bruscamente despertou para ver, de pé à sua frente, um ser, uma coisa, que era como um duplo deteriorado e fantamasgórico da irmã. Durante alguns momentos, uma espécie de temor invadiu-o. A mulher à sua frente, com as feições deformadas e os olhos ardentes, mal parecia humana; a única coisa que fazia lembrar a irmã tal como ela fora era a abundância dos cabelos dourados, agora estriados de cinzento. Encarava o irmão com um prolongado olhar frio; e ele também, enquanto a olhava e começava a tomar consciência da realidade da sua presença, sentiu o ódio que ela nutrira outrora por ele elevar-se de novo no seu coração. A fúria sombria do ano precedente pareceu reencontrar a mesma voz quando a interrogou:

- Por que estás tu aqui? Estás morta e enterrada.

- Estou aqui, Wykham Delandre, não por amor por ti, mas porque odeio um outro homem, mais ainda do que tu próprio o odeias.

Uma cólera imensa irradiava dos seus olhos.

- Ele? - perguntou o irmão num sussurro tão feroz que mesmo a mulher estremeceu um instante até conseguir recuperar a calma.

- Sim, ele - respondeu -, mas não te deixes iludir, porque eu é que me vou vingar. Só preciso de ti para me ajudares a realizar a minha vingança.

Wykham Delandre perguntou bruscamente:

- Ele chegou a casar contigo?

O rosto deformado da mulher alargou-se como um espectro que quer sorrir. Dir-se-ia uma espécie de zombaria hedionda, porque as feições desfeitas e as cicatrizes marcadas com pontos de sutura assumiram estranhas formas e estranhas cores, e linhas brancas bizarras apareceram quando os músculos tensos comprimiram as velhas cicatrizes.

- A-, tu gostarias de saber! Lisonjearia o teu orgulho pensar que a tua irmã está realmente casada. Ora bem, não o saberás! É a minha vingança sobre ti e não tenciono modificá-la um cabelo que seja. Vim aqui esta noite simplesmente para que saibas que estou viva, para que, se exercerem violência sobre mim, haja uma testemunha.

- Onde vais? - insistiu o irmão.

- Isso é comigo, e não tenho a mínima intenção de dá-lo a saber.

Wykham levantou-se mas, cheio de bebida, cambaleou e caiu. Estendido por terra, anunciou a sua intenção de acompanhar a irmã e, numa explosão de humor bilioso, disse-lhe que a seguiria durante a noite, guiado pela luz dos seus cabelos e pela sua beleza.

- Tal como ele fará - ciciou ela -, porque os meus cabelos permanecem, embora a minha beleza esteja destruída. Quando ele retirou a lingueta do eixo das rodas e nos precipitou na torrente, não se ralava com a minha beleza. Talvez a beleza dele tivesse sido destruída como a minha se tivesse rodopiado como eu no meio dos rochedos da Visp e tivesse sido apanhado entre os blocos de gelo na corrente do ribeiro. Mas que se acautele! A sua hora está a chegar!

E com um gesto feroz, abriu bruscamente a porta e desapareceu na noite.

Mais tarde, nessa mesma noite, Mrs. Brent, que apenas estava meio adormecida, despertou bruscamente e disse ao marido:

- Geoffrey, não ouvi o estalido de um fecho, ali por cima da nossa janela?

Mas Geoffrey - embora ela pensasse que também se sobressaltara devido ao barulho - parecia totalmente adormecido e respirava profundamente. Mrs. Brent tornou a adormecer; mas desta vez acordou para dar com o marido levantado e parcialmente vestido. Estava pálido como a morte, e quando a luz do candeeiro que levava na mão lhe iluminou a face, ficou apavorada com o clarão dos seus olhos.

- Que se passa, Geoffrey? Que andas a fazer? - perguntou.

- Silêncio, minha querida! - respondeu ele numa voz estranha e rouca. - Dorme. Estou enervado porque quero terminar um trabalho que deixei suspenso.

- Trá-lo para aqui, meu querido - disse ela. - Sinto-me sozinha e tenho medo quando não estás junto de mim.

À guisa de resposta, ele contentou-se em beijá-la e saiu, fechando a porta atrás de si. Permaneceu acordada um momento, depois a natureza retomou os seus direitos e ela tornou a adormecer.

De súbito sobressaltou-se, completamente acordada, tendo nos ouvidos a lembrança de um grito abafado e proveniente de uma sala próxima. Saltou da cama, correu para a porta e escutou, mas não havia qualquer ruído. Começava a ficar com medo por causa do marido e gritou:

- Geoffrey!

Após alguns instantes, abriu-se a porta do grande vestíbulo e Geoffrey apareceu, mas sem o candeeiro.

- Fica calada - disse ele numa espécie de sussurro, e a sua voz era dura e severa. - Fica calada. Volta para a cama. Estou a trabalhar e não quero ser incomodado. Dorme e não acordes a casa.

De coração gelado, porque a dureza da voz do marido era uma novidade, regressou à cama e aí permaneceu, trémula, com medo de mais para chorar, e espiou cada ruído da casa. Houve um longo momento de silêncio, depois o barulho de um qualquer instrumento de ferro a desferir pancadas secas. Sucedeu-lhe a ressonância de uma pedra pesada que caía, seguida de uma praga abafada. Depois o som de um objecto qualquer arrastado por terra, e depois novamente o ruído de uma pedra a embater numa pedra. Permaneceu todo este tempo morta de medo e o coração batia-lhe desenfreadamente. Ouviu o que parecia uma curiosa raspadela e seguiu-se o silêncio. Então a porta abriu-se devagarinho e Geoffrey apareceu. A mulher fingiu estar a dormir; mas através das pestanas, viu-o a tirar das mãos algo branco que se assemelhava a cal.

De manhã, ele não fez nenhuma alusão à noite anterior e ela receou fazer-lhe a mínima pergunta.

A partir deste dia, uma sombra pareceu flutuar sobre Geoffrey Brent. Não comia nem dormia como habitualmente, recuperou a velha mania de voltar-se subitamente como se alguém lhe dirigisse a palavra. Parecia ter uma espécie de fascínio pelo grande vestíbulo. Ia lá por diversas vezes durante o dia, mas impacientava-se se alguém, mesmo a mulher, ali entrava. Quando o encarregado das obras veio saber do andamento dos trabalhos, Geoffrey tinha saído em passeio; o homem entrou no vestíbulo e quando Geoffrey regressou, o criado advertiu-o da presença do encarregado e disse-lhe onde podia encontrá-lo. Com uma praga aterradora, Geoffrey afastou o criado e precipitou-se para o velho vestíbulo. O homem estava perto da porta; como Geoffrey ia a entrar na sala, esbarrou nele. Este desculpou-se.

- Peço-lhe que me desculpe, senhor, mas ia a sair para me informar. Tinha mandado que pusessem aqui doze sacos de cal e só estou a ver dez.

- Que vão para o diabo os dez sacos, e os doze também!

Tal foi a resposta brusca e incompreensível.

O encarregado pareceu surpreendido e procurou mudar de conversa.

- Acabo de ver, senhor, que o nosso pessoal causou um pequeno estrago, mas o patrão, claro, tratará de que tudo seja reparado à sua custa.

- Que quer dizer?

- Esta pedra da lareira, senhor; houve um idiota que lhe assentou em cima um aquecedor e partiu-a no sentido do comprimento; ela é, porém, tão espessa que poderia pensar-se que resistiu.

Geoffrey ficou silencioso um bom momento, depois disse numa voz constrangida e de um modo muito mais suave:

- Diga ao seu pessoal que, por agora, não acabem as obras no grande vestíbulo. Quero deixá-lo ficar tal como está ainda por mais algum tempo.

- Muito bem, senhor. Mandarei algum dos nossos homens para retirarem o andaime e os sacos de cal, e para lavarem um pouco este local.

- Não, não! - disse Geoffrey. - Deixe-os lá ficar quietos. Mandarei avisá-lo de quando deverá prosseguir as obras.

Partiu assim o encarregado e fez este comentário ao patrão:

- Vou mandar a factura, senhor, porque as obras se acham quase terminadas. Parece-me que está a faltar por lá um pouco o dinheiro.

Delandre procurou uma ou duas vezes parar Brent na estrada e, compreendendo enfim que não conseguiria alcançar o seu objectivo, seguiu a carruagem enquanto gritava:

- Que aconteceu à minha irmã, sua mulher?

Geoffrey fustigou os cavalos a galope e Delandre, ao ver-lhe a cara pálida e a mulher quase desfalecida, prestes a desmaiar, compreendeu que tinha alcançado o seu objectivo. Por isso afastou-se com um ar descontente e um sorriso.

Nessa noite, no momento em que Geoffrey entrava no vestíbulo e passava próximo da lareira, recuou bruscamente com um grito abafado. Depois, com dificuldade, recompôs-se, afastou-se e voltou com um candeeiro. Debruçou-se sobre a pedra da lareira partida para ver se o luar coado pela janela superior o havia ludibriado. Com um grito de angústia, caiu de joelhos.

Na verdade, através da fenda da pedra partida, saía um feixe de cabelos dourados levemente salpicados de cinzento.

Foi incomodado pelo ranger de uma porta e, virando-se, viu a sua mulher de pé sob o enquadramento. Num sobressalto de desespero, para procurar esconder a descoberta, acendeu um fósforo no candeeiro, inclinou-se e queimou os cabelos que saíam pela pedra partida. Depois, levantando-se com o ar mais natural que lhe foi possível, fingiu a surpresa de ver a mulher junto dele.

Na semana seguinte, viveu um pavor atroz. Coincidência ou não, nunca conseguia ficar sozinho no vestíbulo por muito tempo. Em cada uma das suas visitas, os cabelos cresciam através da fenda e era forçado a vigiá-los continuamente para que o seu terrível segredo não fosse descoberto.

Pôs-se à procura de uma caixa no parque para lá meter o corpo da mulher assassinada, mas era sempre interrompido nas suas buscas. Um dia em que saía pela passagem privada, a mulher encontrou-o e pôs-se a interrogá-lo, espantada por não ter tido conhecimento da chave que ele lhe mostrava agora com desagrado. Geoffrey amava apaixonadamente a mulher e, por isso, a possibilidade de que ela pudesse descobrir o seu terrível segredo, ou sequer que alimentasse a seu respeito alguma suspeita, encheu-o de angústia. Dois dias mais tarde, não pôde impedir-se de concluir que, pelo menos, ela suspeitava de qualquer coisa.

Nessa noite, ao regressar do seu passeio, ela entrou no vestíbulo e encontrou-o sentado, taciturno, próximo da chaminé abandonada. Disse-lhe logo:

- Geoffrey, esse indivíduo, Delandre, falou comigo e contou coisas horríveis. Disse que há uma semana a irmã voltou a casa, que não passa de um destroço e da ruína do que era, que só conservou os cabelos dourados como no passado, e que lhe anunciou a sua intenção de vingar-se. Perguntou-me onde ela se encontra e o- Geoffrey, está morta, está morta! Como pode então ter voltado? O-, estou apavorada e não sei a quem me hei-de dirigir.

Como única resposta, Geoffrey expandiu-se numa torrente de blasfémias que a fizeram tremer. Amaldiçoou Delandre e a irmã, e toda a sua raça, e largou uma porção de palavrões contra os cabelos dourados.

- Caluda! Caluda! Cala-te! - disse a mulher e depois ela mesma se calou, com receio do marido quando viu o efeito da notícia sobre o seu humor.

Geoffrey, na violência da cólera, levantou-se e afastou-se da chaminé; mas subitamente deteve-se, quando viu a expressão de terror nos olhos da mulher. Seguiu-lhe o olhar e também ele estremeceu, porque sobre a pedra da lareira partida se espalhara uma faixa dourada de cabelos cujas pontas se erguiam através da fenda.

- Olha! Olha! - berrou ela. - É o fantasma da morta! Partamos!

E agarrando o marido pelo pulso, com a agitação de uma louca, arrastou-o para fora da sala.

Nessa noite foi atacada por uma forte febre, o médico do condado acorreu imediatamente à sua cabeceira e reclamou logo por telégrafo uma ajuda de Londres. Geoffrey estava desesperado e, na angústia do perigo que a sua jovem mulher corria, quase esqueceu o seu próprio crime e as suas consequências. Durante a noite, o médico teve de partir para tratar de outros doentes, e deixou Geoffrey ocupar-se da mulher. As suas últimas palavras foram:

- Não se esqueça! Faça tudo o que ela lhe peça até ao meu regresso amanhã de manhã ou até que outro médico tome conta dela. O que é de recear é outra comoção. Faça com que permaneça aquecida, não há mais nada a fazer.

Ia já muito avançada a noite quando todos na casa se foram deitar. Mrs. Brent levantou-se da cama e chamou o marido.

- Vem - disse ela -, vamos para o velho vestíbulo. Sei qual é a origem do ouro. Quero vê-lo crescer.

Geoffrey pensou em impedi-la mas, temendo pela sua vida ou pela sua razão, temendo também que ela se pusesse a gritar a sua horrível suspeita, e vendo que era inútil tentar detê-la, envolveu-a num cobertor quente e acompanhou-a até ao velho vestíbulo. Quando entraram, ela voltou-se, fechou a porta e correu o ferrolho.

- Não queremos estranhos no meio de nós os três esta noite - sussurrou com um sorriso pálido.

- Nós os três! Mas somos só dois! - disse Geoffrey estremecendo, mas com medo de dizer mais.

- Senta-te aqui - disse a mulher ao mesmo tempo que apagava a luz -, senta-te aqui, ao lado da lareira, e olha como o ouro cresce. O luar prateado está cheio de inveja! Olha como o ouro avança, o nosso ouro.

Geoffrey, enquanto olhava com um pavor crescente, apercebeu-se de que durante as horas passadas, os cabelos dourados haviam crescido mais à frente através da pedra da lareira partida. Tentou escondê-los pondo os pés em cima da fenda; a mulher, que colocara uma cadeira junto dele, inclinou-se e pousou a cabeça no seu ombro.

- Agora, não te mexas, meu querido - sussurrou. - Não nos mexamos e olhemos. Assim descobriremos o segredo do ouro que cresce.

Ele rodeou-a com o braço e manteve-se silencioso; e enquanto o luar progredia no solo, ela mergulhou no sono.

Geoffrey receava acordá-la; por isso, ficou sentado, silencioso e infeliz, enquanto as horas passavam.

Perante os seus olhos horrorizados, os cabelos dourados da pedra partida cresciam e cresciam; e à medida que cresciam, o seu coração arrefecia cada vez mais, até que, por fim, deixou de ter forças para se mexer, ficando sentado, os olhos cheios de pavor, a fixar o seu destino.

De manhã, quando o médico de Londres chegou, não encontraram nem Geoffrey nem a mulher. Foram empreendidas buscas em todas as divisões do solar, mas sem êxito. Por fim, a grande porta do velho vestíbulo foi arrombada e então ofereceu-se à vista um espectáculo sinistro e consternador.

Ali, junto da lareira, jaziam sentados Geoffrey Brent e a sua jovem mulher, frios, brancos e mortos. O rosto da jovem estava tranquilo e os olhos fechados pelo sono; mas o rosto dele tinha uma expressão que fez estremecer todos quantos a viram, porque, nesse rosto, havia um ar de terror indescritível. Os olhos estavam abertos e vítreos, fixando os pés, à volta dos quais se enrolavam tranças de cabelos dourados, salpicados de cinzento, que saíam da pedra da lareira partida.

 

                                                                                Bram Stoker  

 

                      

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