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O SEGREDO DO PADRE BROWN / G. K. Chesterton
O SEGREDO DO PADRE BROWN / G. K. Chesterton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Flambeau, outrora o mais célebre criminoso da França e mais tarde um detective muito particular em Inglaterra, há muito que abandonara ambas as profissões. A carreira do crime tornara-o, segundo alguns, demasiado escrupuloso para se dedicar à investigação. Fosse como fosse, após uma vida de fugas românticas e estratagemas de evasão, acabara por se instalar num sítio que muitos considerariam o lugar apropriado: um castelo em Espanha. Embora relativamente pequeno era um edifício sólido, e a mancha escura da vinha, juntamente com as leiras verdejantes da horta ocupavam uma extensão razoável na vertente acastanhada da colina. Na verdade, Flambeau, depois das suas numerosas e violentas peripécias, ainda possuía o que é comum a muitos latinos mas que falta, por exemplo, a um grande número de americanos: a energia para se aposentar. Encontramos essa característica em muitos proprietários de grandes hotéis, cuja única ambição é serem pequenos agricultores. Encontramo-la também em muitos comerciantes franceses da província, que fazem uma pausa no momento em que estavam prestes a tornar-se detestáveis milionários e a comprar uma rua inteira de lojas, para se dedicarem calma e confortavelmente aos assuntos domésticos e ao dominó. Flambeau apaixonara-se, por acaso e de uma forma quase abrupta, por uma dama espanhola, casara-se e criara uma família numerosa numa herdade castelhana, sem mostrar qualquer desejo de voltar a transpor os seus limites. Mas uma certa manhã a família achou-o particularmente irrequieto e excitado: escapou-se aos filhos numa corrida e desceu quase até ao fundo da longa encosta, para ir ao encontro do visitante que atravessava o vale, apesar de aquele não passar ainda de um ponto negro ao longe.
A figura foi aumentando gradualmente de tamanho, sem no entanto apresentar grande alteração na forma, pois, a bem dizer, continuava arredondado e preto. As negras vestes sacerdotais, não eram coisa desconhecida naquelas paragens. No entanto, esta indumentária, embora clerical, tinha à primeira vista um ar vulgar e quase airoso comparada com a sotaina e indicava que quem a vestia era oriundo das ilhas do noroeste, tão certo como se exibisse um rótulo com a indicação de Claphan Junction. Vinha munido de um guarda-chuva curto e resistente, com um castão que parecia uma moca, à vista do qual o seu amigo latino quase verteu lágrimas de comoção, pois esse objecto participara em muitas aventuras que ambos haviam partilhado em tempos. Tratava-se do seu amigo inglês, o padre Brown, que lhe retribuía uma visita há muito desejada, mas que demorara a concretizar. Embora trocassem correspondência com assiduidade, não se viam há anos.
O padre Brown não tardou a integrar-se no seio da família, tão numerosa que dava ideia de se tratar de uma companhia ou de uma colectividade. Foi apresentado às grandes imagens dos três Reis Magos, esculpidos em madeira pintada, que levam os presentes às crianças no Natal, pois a Espanha é um país onde os assuntos que dizem respeito aos miúdos representam um papel muito importante na vida doméstica. Teve ocasião de conhecer o cão e o gato, além do gado da quinta. Foi também apresentado a um vizinho que, tal como ele, trouxera até àquele vale a maneira de vestir e os modos próprios de terras distantes.
Na terceira noite da sua estada no pequeno château, o padre teve o ensejo de observar um sujeito de aspecto imponente cumprimentando o dono da casa com reverências que nenhum fidalgo espanhol conseguiria imitar. Era um cavalheiro alto, magro, de cabelo grisalho, com uma elegância verdadeiramente espantosa. No entanto, o rosto comprido não apresentava aquela languidez vulgarmente associada aos punhos altos e às mãos tratadas das caricaturas inglesas. A sua expressão era viva e mordaz e os olhos tinham uma intensidade inocente e curiosa que raramente condiz com os cabelos grisalhos. Só isso bastaria para indicar a nacionalidade do homem, além do tom nasalado da voz, da sua maneira distinta de falar e do deslumbramento perante a antiguidade incomensurável de todas as coisas europeias que o rodeavam. Tratava-se, na verdade, de Mr. Grandison Chace, de Boston, um viajante americano que decidira fazer uma pausa nas suas andanças, alugando a propriedade vizinha, um castelo algo semelhante àquele, situado numa colina quase igual. Sentia-se encantado no seu velho castelo e considerava o seu amável vizinho uma antiguidade local do mesmo tipo. É que, como já dissemos, Flambeau conseguira apresentar um aspecto de homem aposentado, como se tivesse criado raízes naquele lugar. Dir-se-ia que crescera ali desde sempre com a sua vinha e a sua figueira. Retomara o seu verdadeiro apelido Duroc, pois o outro, "The Torch" (1), não passava de um nom de guerre, que um homem como ele usaria para combater

(1) "A Tocha", "O Archote". (N. da T.)

a sociedade. Gostava muito da mulher e dos filhos e nunca se afastava de casa mais que o tempo necessário para uma curta caçada. Aos olhos do globe trotter americano, ele era a personificação desse culto de uma respeitabilidade feliz e de um luxo comedido, características que o viajante sabia ver e apreciar nos povos mediterrânicos. O viajante inveterado do Oeste sentia-se feliz por poder repousar durante algum tempo naquele rochedo do Sul onde se acumulara tanto musgo. Mas Mr. Chace ouvira falar do padre Brown e, ao dirigir-se-lhe, alterou ligeiramente o tom de voz, como quem se dirige a uma celebridade. O seu instinto inquisitório despertou, subtil mas tenso. E se agiu com o padre Brown como se ele fosse um dente que pretendemos arrancar, fê-lo com a extrema habilidade e ausência de dor da melhor odontologia americana. Estavam sentados numa espécie de pátio exterior parcialmente descoberto, desses que vulgarmente constituem a entrada das casas espanholas. O crepúsculo ia dando lugar à escuridão e, como o ar da montanha arrefece de repente depois do pôr do Sol, havia um pequeno fogão sobre as lages, com os seus olhos cintilantes e rubros de demónio, pintando no chão formas vermelhas. No entanto, os raios luminosos mal chegavam aos tijolos inferiores do grande muro castanho e nu que se erguia acima deles, desaparecendo na noite escura. O vulto de Flambeau, de ombros largos e bigode de pontas aceradas como sabres, distinguia-se vagamente na penumbra, mexendo-se de um lado para o outro, servindo o vinho escuro que ia tirando de uma grande pipa. No seu canto, na penumbra, o padre parecia muito pequeno e encolhido, como se estivesse debruçado sobre o fogão, enquanto o visitante americano, inclinado para a frente com elegância, apoiava o cotovelo no joelho, apresentando à luz o rosto fino e alongado, onde os olhos lhe brilhavam com inteligência curiosa.
- Posso garantir-lhe - disse ele -, que consideramos a sua participação no caso do "Homicídio ao Luar" o mais notável triunfo conseguido na história da investigação policial.
O padre Brown murmurou qualquer coisa que podia muito bem confundir-se com um gemido.
- Todos nós estamos a par - prosseguiu com firmeza -, das pretensas façanhas de Dupin e de outros que tal, como Lecocq, Sherlock Holmes, Nicholas Cárter e outras figuras imaginárias. Mas constatamos que existe uma diferença notável, em muitos aspectos, entre o seu método de investigação e o desses pensadores, sejam eles fictícios ou reais. Tem-se especulado sobre se essa diferença de método não será antes uma ausência de método.
O padre Brown manteve-se calado por instantes. De súbito estremeceu, como se tivesse estado a cabecear sobre o lume, e disse:
- Desculpe... sim... ausência de método. E ausência por distracção, receio bem.
- Eu diria que se trata de um método científico rigorosamente estabelecido - prosseguiu o outro. - Edgar Poe improvisa uma série de pequenos ensaios em forma de diálogo para explicar o método de Dupin com os seus admiráveis elos de lógica. O Dr. Watson teve de ouvir diversas exposições do método de Holmes com a respectiva observação de detalhes materiais. No entanto, parece que ninguém ainda apresentou uma descrição do seu método, padre Brown, e, segundo me disseram, o senhor recusou uma proposta no sentido de fazer uma série de palestras nos Estados Unidos sobre este tema.
- Sim, recusei a proposta - concordou o sacerdote olhando para o lume e franzindo o sobrolho.
- A sua recusa deu lugar a comentários deveras interessantes - observou Chace. - Posso afirmar que alguns dos meus compatriotas são de opinião que a sua ciência não pode ser divulgada, visto tratar-se de algo mais que uma simples ciência natural. Dizem até que o seu segredo não pode ser divulgado, por ser de natureza oculta.
- Por ser o quê? - perguntou o padre Brown num tom brusco.
- Ora, de natureza esotérica - replicou o outro. - Posso garantir-lhe que as pessoas ficaram extraordinariamente impressionadas com o assassínio de Gallup, com o de Stein, depois com o do velho Merton e ultimamente com o do juiz Gwynne e com o duplo homicídio de Dalmon, que era um homem muito conhecido nos Estados Unidos. E lá estava o senhor, em cima do acontecimento, sempre no momento exacto, pronto a explicar a toda a gente o que tinha acontecido, sem no entanto revelar como o descobrira. Daí haver quem pensasse que o senhor sabia as coisas sem precisar de vê-las, digamos assim. Carlotta Brownson até proferiu uma conferência sobre "Formas de Pensamento", indo buscar exemplos a esses seus casos. A Irmandade da Segunda Visão, de Indianópolis...
O padre Brown, de olhos postos no fogão, observou em voz alta, como se não tivesse consciência de que o estavam a ouvir:
- Pois é, isto não pode continuar.
- Não sei bem como é que irá evitá-lo - replicou Mr. Chace de bom humor. - A irmandade da Segunda Visão gosta de ir ao fundo das coisas. Aúnicaforma que eu vejo de o senhor acabar com isto é revelar-nos o segredo.
O padre Brown resmungou qualquer coisa e em seguida deixou-se ficar em silêncio, com a cabeça apoiada nas mãos, como se tivesse sido assaltado por um turbilhão de ideias. Finalmente ergueu a cabeça e declarou num tom grave:
- Muito bem, tenho de revelar o segredo.
Deixou correr o olhar em volta, pelo cenário mergulhado na sombra, passando das cintilações rubras do pequeno fogão à rígi-
da extensão do velho muro, acima do qual sobressaíam cada vez mais brilhantes as estrelas do sul de intensa luminosidade.
- O segredo - declarou - é o seguinte. - Dito isto calou-se, como se não fosse capaz de continuar. Depois retomou a palavra e concluiu: - Fiquem sabendo que fui eu que matei essas pessoas.
- O quê? - perguntou o outro em surdina, no meio de um silêncio profundo.
- Fui eu próprio que os assassinei - explicou o padre Brown com toda a paciência. - Por isso consegui explicar tão bem como as coisas se passaram.
Grandison Chace erguera-se em toda a sua imponência, como se uma lenta explosão o houvesse impelido em direcção ao tecto. Fitando atónito o seu interlocutor, repetiu mais uma vez a incrédula pergunta.
- Planeei cuidadosamente cada um dos crimes - prosseguiu o padre Brown. - Pensei com exactidão como executar uma coisa daquelas e qual o estilo ou o estado de espírito necessário para se poder levar a cabo uma tal tarefa. E quando me senti na pele do criminoso, estava em condições de saber quem ele era.
Chace libertou gradualmente uma espécie de débil suspiro.
- Sim senhor, conseguiu assustar-me! - observou. - Por momentos pensei que estaria a falar a sério quando disse que era o assassino. Já estava mesmo a imaginar a notícia impressa em todos os jornais dos Estados Unidos: "O Piedoso Detective Revelou-se Um Assassino: Os Crimes do Padre Brown." Mas claro se se trata apenas de uma figura de retórica para nos explicar a forma como tentou reconstituir a psicologia...
O padre Brown bateu secamente no fogão com o cachimbo curto que se preparava para encher. Um dos seus raros espasmos de enfado contraiu-lhe o rosto.
- Não, não, não - insistiu, quase zangado. - Não se trata apenas de uma figura de retórica. É isto que acontece quando uma pessoa tenta falar de assuntos profundos... Mas afinal para que servem as palavras? Quando alguém resolve referir-se a uma verdade meramente moral, todos pensam que se trata de uma metáfora. Um homem vivo, real, com duas pernas, confessou-meuma vez: "Só acredito no Espírito Santo num sentido espiritual." E claro que respondi: "Em que outro sentido poderia acreditar?" E foi então que ele se convenceu de que, na minha opinião, ele não precisava de acreditar em nada, a não ser na evolução, na fraternidade ética ou noutra treta qualquer... O que eu quis dizer foi que imaginei o meu próprio eu, real, a cometer esses crimes. Não matei os homens servindo-me de bens materiais, mas não é essa a questão. Qualquer tijolo ou outro instrumento podia tê-los morto. Quero com isto dizer que pensei e tornei a pensar em como é que um homem se pode tornar num homicida, até chegar à conclusão de que eu era realmente assim em tudo, excepto no que diz respeito ao desfecho final da acção. Isso foi-me sugerido uma vez por um amigo, como sendo umaespécie de exercício religioso. Julgo que ele se inspirou no papa Leão XIII, que, aliás, foi um dos meus heróis.
- Receio bem que tenha de me explicar muita coisa para eu conseguir compreender o que me diz - observou com cepticismo o americano, sem desviar os olhos do padre, como se este fosse um animal selvagem. - A ciência da detecção...
O padre Brown deu um estalo com os dedos, mantendo o mesmo ar contrariado.
- É isso mesmo - exclamou. - É precisamente aí que nós divergimos. A ciência é algo extraordinário quando conseguimos apreendê-la. Na sua verdadeira acepção, é uma das palavras mais admiráveis do mundo. Mas, nove vezes em dez, que quererão dizer as pessoas quando a utilizam hoje em dia? Quando afirmam que a detecção é uma ciência? Quando garantem que a criminologia é uma ciência? Entendem que ela consiste em estudar exteriormente um homem como quem estuda um insecto gigantesco, de uma forma que consideram crua e imparcial e que eu apelidaria de morta e desumanizada. Entendem que é permanecer muito longe dele como se de um monstro pré-histórico se tratasse, observar o formato do seu "crânio de criminoso", qual fantástica excrescência, semelhante ao chifre no focinho do rinoceronte. Quando o cientista se refere a um tipo, nunca está a pensar em si próprio, mas sim no seu semelhante, provavelmente no seu semelhante mais pobre. Não nego que a luz crua possa por vezes oferecer vantagens, embora seja, num certo sentido, exactamente o reverso da ciência. Longe de se tratar de conhecimento, é de facto a supressão daquilo que sabemos. Equivale a tratar um amigo como um estranho e simular que uma coisa familiar é na verdade remota e misteriosa. É como afirmar que um homem tem uma tromba entre os olhos ou que mergulha numa crise de insensibilidade uma vez em cada vinte e quatro horas. Ora bem, aquilo a que chama "o segredo" é precisamente o contrário. Eu não tento colocar-me fora do homem. Procuro entrar dentro do assassino... De facto é muito mais que isso, não vê? Eu estou dentro dele. Estou sempre dentro de um homem que mexe os braços e as pernas, mas aguardo até saber que me encontro dentro de um assassino, cogitando os seus pensamentos e lutando com as suas paixões, até me adaptar à sua forma do estar, sempre à espreita e dominado pelo ódio, até conseguir observar o mundo com os seus olhos congestionados e vesgos, perscrutando através dos antolhos da sua concentração alucinada, em busca da hipótese mais fácil e directa de encontrar o caminho que conduza directamennte a um mar de sangue. Até me tornar realmente um assassino.
- Oh! - exclamou Mr. Chace, observando-o com uma expressão grave e austera, e acrescentando: - E o senhor chama a isso um exercício religioso.
- Sim - retorquiu o padre Brown.- É precisamente a isto que chamo um exercício religioso.
Após uns momentos em silêncio, prosseguiu:
- E é-o de tal forma que mais valia não ter dito nada sobre isto. Mas não podia consentir de modo algum que andasse por aí a dizer aos seus compatriotas que eu utilizo uma magia secreta relacionada com formas de pensamento, pois não? Talvez não me tivesse explicado bem, mas é verdade. Um homem só pode considerar-se realmente bom quando descobrir até que ponto é mau ou poderá vir a sê-lo, até perceber exactamente que direito é que tem de se mostrar arrogante e desdenhoso e de se referir aos "criminosos" como se fossem gorilas, numa floresta a dez mil quilómetros de distância, até se libertar do infame convencimento com que fala de tipos de baixo nível e mentes débeis, até espremer da sua alma a última gota do óleo dos fariseus, até a sua única esperança consistir em ter capturado um criminoso, conservando-o são e salvo, sob a sua alçada.
Flambeau aproximou-se, encheu uma grande taça de vinho espanhol e colocou-a diante do amigo, tal como já fizera em relação ao outro visitante. Em seguida, falou pela primeira vez:
- Creio que o padre Brown se tem visto a braços nestes últimos tempos com uma nova série de mistérios. Ainda um destes dias estivemos a falar nisso. Suponho tem lidado com pessoas bem estranhas desde o nosso último encontro.
- Na verdade tenho uma vaga ideia dessas histórias, mas desconheço os pormenores das investigações - declarou Chace, erguendo o copo pensativamente. - É capaz de me falar de alguns exemplos? Estou cá a pensar se... diga-me uma coisa, utilizou esse seu método introspectivo nestes últimos casos?
O padre Brown também ergueu o seu copo e o brilho do fogo tornou o vinho tinto transparente, fazendo lembrar o glorioso vermelho sangue do vitral representando um mártir. A chama rubra parecia prender o olhar do sacerdote e absorvê-lo, levando-o a mergulhar cada vez mais fundo, como se aquela simples taça encerrasse um mar vermelho de sangue de todos os homens e a sua alma fosse um mergulhador, penetrando numa humildade sombria e imaginação invertida, mais fundo que os monstros mais infames e os Iodos mais antigos. Nessa taça, como num espelho encarnado, via muitas coisas: os acontecimentos dos últimos dias, num movimento de sombras carmesim; os exemplos que os outros lhe haviam solicitado, voltavam num bailado de figuras simbólicas e assim desfilaram diante dos seus olhos todas as histórias que aqui serão contadas. O vinho luminoso era como um enorme pôr do Sol rubro sobre as areias de um tom vermelho escuro, onde se erguiam vultos negros de homens - um estava caído e outro corria para ele. Em seguida, o pôr do Sol pareceu romper-se em fragmentos: lanternas vermelhas balouçando-se nas árvores de um jardim e um lago com reflexos do mesmo tom. E então a cor voltou a unificar-se, transformando-se numa grande rosa de cristal vermelho, uma jóia que iluminava o mundo como um sol rubro, à excepção de um vulto de grandes dimensões, de turbante, qual sacerdote pré-histórico, para depois voltar a desaparecer até não restar mais que um fogacho de barba hirsuta e ruiva, arrastado pelo vento por sobre um pântano agreste e soturno. Todas estas coisas, que mais tarde poderão ser observadas sob outra perspectiva e em estados de espírito que não o seu, lhe vieram à memória na altura em que o assunto foi trazido à baila, passando a tomar a forma de histórias e de enredos.
- Sim - disse o sacerdote, levando lentamente o copo de vinho aos lábios. - Lembro-me perfeitamente...

 

 


 

 


CAPÍTULO I
O ESPELHO DO MAGISTRADO

James Bagshaw e Wilfred Underhill eram velhos amigos e gostavam muito de vaguear à noite pelas ruas, numa conversa interminável, dobrando esquina após esquina, naquele labirinto silencioso e aparentemente sem vida do enorme subúrbio onde viviam. O primeiro, um sujeito grande, moreno e bem humorado, de bigodinho preto, era detective de profissão e trabalhava na polícia. O outro, um gentleman de rosto afilado, olhar arguto e cabelos loiros era um amador interessado na detecção. Poderão ficar chocados os leitores dos melhores romances científicos se eu lhes disser que era o polícia que falava, enquanto o amador o escutava, evidenciando mesmo um certo respeito.
- O nosso ofício é o único em que se considera que o profissional está sempre errado - dizia Bagshaw. -Afinal de contas, ninguém escreve histórias em que os barbeiros não sabem cortar o cabelo e têm de pedir ajuda a um cliente, ou em que o motorista de táxi não sabe conduzir até que um passageiro lhe explique como conduzir. Apesar de tudo isso, nunca neguei a tendência que temos muitas vezes de entrar na rotina. Ou, por outras palavras, as desvantagens de seguirmos um sistema de regras.
- Decerto! Sherlock Holmes diria que se guiava pelas regras da lógica - observou Underhill.
- E provavelmente tinha razão - retorquiu o outro -, mas eu referia-me a um regulamento colectivo. É como o trabalho administrativo de um exército. Encarregamo-nos de recolher informações.
- E acha que os romances policiais não tomam isso em consideração? - indagou o amigo.
- Bom, vejamos como exemplo qualquer um dos casos imaginários de Sherlock Holmes e Lestrade, o detective oficial. Sherlock Holmes, digamos, consegue deduzir que um sujeito completamente desconhecido que vai a atravessar a rua é estrangeiro, apenas pelo facto de ele olhar primeiro para a esquerda e depois para a direita. Estou pronto a admitir que Holmes é capaz de o deduzir e Lestrade não. No entanto, excluem uma hipótese: embora incapaz de fazer tal raciocínio, o polícia provavelmente já estava a par desse facto. Com efeito, Lestrade podia saber que se tratava de alguém de fora, uma vez que o seu departamento tinha obrigação de vigiar todos os estrangeiros. Aqui, poderia acrescentar-se que essa vigilância deveria estender-se a todos os cidadãos nacionais. Como polícia alegra-me que a instituição onde trabalho esteja tão bem informada, pois qualquer pessoa gosta de desempenhar convenientemente as suas funções. Mas, como cidadão, às vezes pergunto-me se a informação não é excessiva.
- Não me diga que está a falar a sério! - exclamou Underhill. incrédulo. - Quer dizer que sabe tudo acerca de toda a gente diurna qualquer rua desconhecida? Se um homem saísse agora da quela casa, você saberia tudo a seu respeito?
- Certamente, se se tratasse do locatário - respondeu Bags haw. - Aquela casa está alugada a um escritor de origem anglo -romena que vive normalmente em Paris, mas que se encontra actualmente no nosso país por causa da apresentação de uma obra da sua autoria. Chama-se Osric Orm e pertence à nova vaga de poetas, muito difícil de ler, aliás, segundo consta.
- E quanto aos outros moradores da rua? -indagou o outro. - Estava a pensar em como tudo me parece estranho, novo e anónimo, com estes muros altos e nus, estas casas perdidas no meio de jardins enormes. É impossível que os conheça a todos.
- Conheço alguns - respondeu Bagshaw. - Este muro, poi exemplo, aolongo do qual caminhamos, limita a propriedade de Sir Humphrey Gwynne, mais conhecido por juiz Gwynne, o velho magistrado responsável por toda aquela polémica que houve durante a guerra em torno da espionagem. A casa a seguir pertence a um rico negociante de charutos, que veio da América Latina. É um sujeito bastante moreno e com ar de espanhol, mas usa um nome muito inglês: Buller. A casa que fica por detrás dessa... ouviu aquele barulho?
- Sim, pareceu-me ouvir qualquer coisa, mas não faço ideia do que seja - disse Underhill.
- Pois eu sei - replicou o detective -, foram dois tiros de revólver de grande calibre, seguidos de um grito de socorro. Os sons vieram direitinhos do jardim que fica por detrás da casa do juiz Gwynne, esse paraíso de paz e de legalidade.
Olhou rapidamente para ambos os sentidos da rua e acrescentou:
- E o único portão das traseiras fica a cerca de uns oitocentos metros daqui, do outro lado do muro. Gostaria que este muro fosse um pouco mais baixo ou eu um pouco mais leve, mas é preciso tentar.
- Ali adiante não é tão alto - observou Underhill -, e há uma árvore que talvez possa servir de ajuda.
Caminharam apressadamente ao longo do muro até chegarem a um ponto onde a parede parecia inclinar-se de repente, como se tivesse sido parcialmente tragada pela terra; aí, uma árvore de jardim, flamejante, com os seus ramos cobertos de flores, emergia do recinto escuro, embelezada pela luz de um candeeiro solitário. Bagshaw agarrou-se ao ramo torcido e passou uma perna por cima do muro baixo. Dali a pouco achavam-se os dois do outro lado, submersos até ao joelho no meio do elegante arranjo de flores de um canteiro.
O jardim do juiz Gwynne constituía um espectáculo invulgar visto à noite. Ocupava uma vasta área e situava-se na orla desabitada do subúrbio, à sombra de uma casa alta e escura, a última daquela rua. A casa estava literalmente às escuras, de janelas cerradas e sem luz, pelo menos do lado sobranceiro ao jardim. Mas este, situado à sombra do edifício e que, por isso mesmo, deveria estar mergulhado na mais absoluta escuridão, ostentava um brilho despropositado, como o de um fogo de artifício que se extingue. Era como se um foguete gigante se tivesse despenhado entre as árvores. A medida que foram avançando, perceberam que se tratava da luz proveniente de diversas lanternas coloridas, que pendiam das árvores como os frutos preciosos de Aladino. Amais forte provinha de um pequeno lago redondo, iluminado com cores pálidas, como se tivessem acendido um foco sob as águas.
- Será que é uma festa? - indagou Underhill. - O jardim parece tão iluminado...
- Não - retorquiu Bagshaw. - Este é o passatempo do juiz. E, segundo creio, prefere fazer isto quando está sozinho. Gosta de brincar com a instalação eléctrica, cujos comandos se encontram ali, naquela cabana onde ele costuma trabalhar e guardar as papeladas. Buller, que o conhece muito bem, diz que as lâmpadas coloridas são o sinal que ele costuma usar quando não quer ser incomodado.
- Uma espécie de sinais vermelhos de perigo - sugeriu o outro.
- Santo Deus! Receio bem que sejam mesmo sinais de perigo! - e, de súbito, desatou a correr.
Pouco depois Underhill viu o que o companheiro descobrira. O anel opalescente de luz, semelhante ao halo que rodeia a lua, em volta das margens do lago estava cortado por duas faixas negras, imediatamente identificadas como sendo as longas pernas de um homem que se encontrava caído, com a cabeça enfiada no lago.
- Venha cá - gritou o detective -, parece-me que... Tinha perdido a voz, enquanto corria através do extenso relvado, ligeiramente iluminado pela luz artificial, seguindo em linha recta em direcção ao lago e ao vulto caído. Underhill seguia o mesmo trajecto num passo rápido e firme, quando algo na atitude do amigo lhe provocou um sobressalto. Bagshaw, que corria rápido como uma bala para o corpo caído junto ao lago iluminado, fez um súbito desvio e começou a correr ainda mais depressa em direcção à casa. Underhill não fazia ideia do motivo que o levara a mudança de trajecto. Dali a pouco, já o detective havia desaparecido no escuro, e ouviu-se, vindo dessa zona, um barulho de briga e alguén a praguejar após o que Bagshaw apareceu, arrastando consigo un homenzinho ruivo que se debatia, tentando libertar-se. O cativo havia-se obviamente escapado, procurando abrigar-se junto do edifício, mas o ouvido apurado do detective detectara a restolhada que ele fazia entre os arbustos.
- Underhill, agradecia-lhe que fosse depressa até ao lago ver o que se passa - pediu o detective. - E agora diga-me lá, que: é você? - perguntou ao desconhecido. - Como é que se chama
- Michael Flood - respondeu o homem com despacho. Era um sujeito baixo e anormalmente magro, de nariz adunco e demasiado largo para o tamanho do rosto, tinha uma pele sem cor, que fazia lembrar pergaminho, em contraste com o tom avermelhado do cabelo. - Eu cá não tenho nada a ver com isto. Encontrei-o ali morto e fiquei assustado. Só aqui vim com a ideia de o entrevistar para um jornal.
- Quando vai entrevistar celebridades costuma trepar pelo muro do jardim? - indagou Bagshaw, apontando com um ar solene para as pegadas que se viam no chão, em sentidos opostos, na direcção do canteiro.
O homem que atribuíra a si próprio o nome de Flood fez uma expressão igualmente solene.
- É muito possível que o entrevistador por vezes se veja obrigado a saltar os muros - retorquiu ele. - Toquei à porta e ninguém me atendeu. O empregado tinha saído.
- Como é que sabe? - perguntou o detective, desconfiado.
- Sei, porque não sou a única pessoa que salta os muros do jardim. Tudo me leva a crer que o senhor também o fez - replicou Flood com uma calma quase irreal. - Mas, seja como for, o certo é que o empregado saltou mesmo o muro, pois vi-o fazer isso junto do portão, do outro lado do jardim.
- E por que é que ele não se serviu do portão? - perguntou inquiridor.
- Sei lá. Se calhar porque estava fechado. Mas o melhor será perguntar-lhe a ele. Olhe, ei-lo precisamente neste momento aproximar-se da casa.
Com efeito, começou a avistar-se um outro vulto, através do clarão. Era uma figura atarracada e de cabeça quadrada, que usava um colete encarnado, peça que sobressaía do resto da indumentária, uma libré bastante coçada. O homem parecia dirigir-se com uma certa pressa para uma porta lateral da casa, quando Bagshaw o chamou, obrigando-o a parar. Aproximou-se então deles com uma certa relutância, revelando um rosto amarelo, de expressão marcada, onde se notavam uns certos traços asiáticos que condiziam com o negro azulado do cabelo.
Bagshaw voltou-se bruscamente para o homem chamado Flood.
- Haverá alguém na casa que possa confirmar a sua identidade?
- Duvido que haja sequer muitas pessoas neste país que me conheçam - resmungou Flood.-Acabo de chegar da Irlanda. A única pessoa que conheço nas redondezas é o padre da igreja de St. Dominic, o padre Brown.
- Nenhum dos senhores tem licença de sair daqui - declarou Bagshaw. E, dirigindo-se ao empregado, acrescentou: - No entanto, você pode ir dentro de casa e telefonar para o presbitério de St. Dominic a pedir se o padre Brown não se importa de vir até cá imediatamente. Mas nada de truques, ouviu?
Enquanto o dinâmico detective tomava conta dos potenciais fugitivos, o seu companheiro, de acordo com as suas directrizes, acudira prontamente à verdadeira cena da tragédia. Tratava-se, com efeito, de uma cena bem estranha e, se não fosse o aspecto trágico do acontecimento, poderia ser considerado algo de verdadeiramente fantástico. O morto - o mais sumário dos exames confirmou tal facto -jazia no chão, com a cabeça mergulhada no lago, enquanto o brilho da iluminação artificial a rodeava, provocando um efeito semelhante a um halo enorme. O rosto apresentava-se esquálido e assaz lúgubre, e, na cabeça, calva na parte anterior, os caracóis de um grisalho ainda escuro, pareciam anéis de ferro. Apesar dos estragos produzidos pela bala, que lhe atingira uma têmpora, Underhill não teve dificuldade em reconhecer as feições reproduzidas nos muitos retratos de Sir Humphrey Gwynne que já tivera ocasião de ver. O morto envergava trajo de noite e as suas longas pernas com calças pretas, tão finas como as de uma aranha, estendiam-se em ângulos diferentes sobre o declive inclinado da margem onde caíra. Como por capricho do destino, de arabesco diabólico, o sangue brotava muito lentamente, desenhando na água luminosa um serpentear de círculos de um tom vermelho transparente que lembrava o colorido das nuvens ao pôr do Sol.
Underhill não sabia ao certo quanto tempo estivera a observar esta macabra figura quando, ao levantar a cabeça, avistou um grupo de quatro pessoas que conversavam um pouco mais longe. Reconheceu Bagshaw e o seu prisioneiro irlandês e não teve dificuldade em adivinhar o estatuto do empregado, com o seu colete vermelho. No entanto, a quarta figura apresentava uma espécie de solenidade grotesca que, curiosamente, parecia estar adequada àquela incongruência. Tratava-se de uma figura baixa e atarracada, de rosto redondo e um chapéu de aba larga que mais parecia um halo preto. Percebeu então que se tratava de um padre. Contudo, havia algo nele que lhe fazia lembrar uma estranha imagem preta esculpida em madeira e representada na Dança da Morte. Ouviu Bagshaw dizer ao sacerdote:
- Estou satisfeito por ver que conhece este indivíduo, mas tem de compreender que até certo ponto ele constitui um suspeito. E claro que pode estar inocente; no entanto, entrou no jardim de uma forma irregular.
- Bom, eu também estou convencido de que ele está inocente - observou o padre num tom inexpressivo. - Mas é evidente que me posso ter enganado.
- Que é que o leva a considerá-lo inocente?
- O facto de ele ter entrado no jardim de forma irregular - retorquiu o sacerdote. - Como sabe, eu entrei aqui de uma maneira normal, mas pelo que vejo fui o único. Parece que hoje em dia, qualquer pessoa que se preze prefere saltar os muros.
- Que é que entende por maneira normal? -indagou o detective.
- Bom - retorquiu o padre Brown, fitando-o com um ar circunspecto -, entrei pela porta da frente. Geralmente é assim que faço.
- Desculpe -interveio Bagshaw -, mas acha que é assim tão importante a forma como entrou aqui? A não ser que queira confessar o crime.
- Pois quanto a mim, acho que isso interessa - tornou o padre, com brandura. - A verdade é que quando vinha a entrar aper cebi-me de algo que penso ter escapado a todos vocês e que eu considero importante neste caso.
- Que é que viu?
- Uma grande confusão - declarou o padre Brown, no mesmo tom calmo. - Um enorme espelho partido, uma pequena palmeira tombada e o vaso feito em cacos no meio do chão. Pareceu-me que alguma coisa se passou ali.
- Tem razão - retorquiu Bagshaw. - Realmente dá ideia de que isso estará relacionado com o caso.
- Ora, precisamente se assim for, há uma pessoa que nada tem a ver com isto, segundo me parece - disse o sacerdote. - Trata -se de Mr. Michael Flood, que entrou aqui de uma forma irregular, saltando por cima do muro, e que depois tentou sair pelo mesmo processo. É exactamente essa irregularidade que me leva a crer na sua inocência.
- Vamos para dentro de casa - disse Bagshaw subitamente Ao entrarem por uma porta lateral, guiados pelo empregado
Bagshaw deixou-se ficar um pouco para trás e dirigiu-se ao amigo.
- Há qualquer coisa de estranho em relação ao criado - observou.
- Diz que se chama Green, mas não me parece. No entanto, tudo indica que se trata realmente do criado de Gwynne, o único que ele tinha. Mas o mais esquisito é que ele negou que o patrão estivesse no jardim, morto ou vivo. Declarou que o juiz tinha ido a um banquete, facto que ele aproveitou para se escapar de casa, uma vez que o patrão iria estar ausente durante algumas horas.
- E ele apresentou alguma desculpa por ter entrado em casa daquela maneira tão estranha? - indagou Underhill.
- Não, não explicou nada de jeito. Não consigo percebê-lo. Parece estar assustado com qualquer coisa.
Ao transporem a porta lateral, encontraram-se na extremidade do corredor que se estendia ao longo da casa até à entrada principal, cuja porta ostentava uma bandeira antiquada e lúgubre. Uma luminosidade ténue, desmaiada, começava agora a sobrepor-se à escuridão, como um pálido raiar de aurora. No entanto, a única luz ali existente provinha de um candeeiro, também ele de um modelo antigo, assente num suporte, a um canto do vestíbulo. Essa luz permitiu a Bagshaw observar os estragos a que o padre Brown se referira. Uma palmeira alta de longas folhas encontrava-se caída no chão e o vaso vermelho quebrado em pedaços. Os cacos espalhavam-se pelo tapete juntamente com os de um espelho, cuja moldura, quase vazia, pendia da parede ao fundo do vestíbulo. A direita da porta principal da casa e do lado oposto àquela por onde tinham entrado, havia uma outra passagem semelhante, que conduzia ao resto da habitação e no extremo da qual se via o telefone de que o criado se servira para chamar o padre e ainda uma porta entreaberta, através de cuja fresta se avistavam fileiras cerradas de grandes livros com encadernações em pele, indicando ser ali o escritório do juiz.
Bagshaw ficou a olhar para o vaso caído e para os cacos espalhados a seus pés.
- Tem toda a razão - disse para o padre -, houve aqui luta. E foi sem dúvida entre Gwynne e o assassino.
- Realmente pareceu-me que tinha acontecido aqui qualquer coisa - observou modestamente o sacerdote.
- É bem claro o que aqui se passou - afirmou, peremptório, o detective. - O criminoso entrou pela porta principal e deparou-se com Gwynne, que, provavelmente, o deixou entrar. Houve luta renhida e talvez um tiro ocasional que atingiu o espelho, embora também o possam ter quebrado na confusão da luta. Gwynne conseguiu escapar-se e fugir para o jardim, tendo sido perseguido pelo assassino que finalmente o alvejou a tiro à beira do lago. Parece-me ser esta a história do crime. No entanto, preciso de inspeccionar o resto da casa.
Os outros aposentos, porém, pouco revelaram de interessante, embora Bagshaw tivesse considerado significativa a descoberta de uma pistola automática carregada, que encontrou numa gaveta da secretária da biblioteca.
- Dá a impressão de que ele estava à espera que isto acontecesse - observou o detective. - Mas também é estranho não ter levado a arma quando foi abrir a porta.
O grupo regressou ao vestíbulo e encaminhou-se para a porta de entrada, enquanto o padre Brown olhava em volta, muito pensativo. Nos dois corredores, monótonos, forrados com o mesmo papel cinzento desbotado, sobressaíam o pó e a sujidade a cobrir os escassos ornamentos vitorianos, o verdete que devorava o bronze do candeeiro e o dourado baço da moldura do espelho partido.
- Dizem que partir espelhos dá azar - observou. - Parece a casa da má sorte. Até a própria mobília...
- É estranho - atalhou Bagshaw. - Pensei que a porta da entrada estivesse fechada à chave, mas afinal está apenas no trinco.
Ninguém fez qualquer comentário e saíram para o jardim que ficava em frente da casa. Era também um espaço florido, embora fosse mais reduzido e estivesse arranjado de uma maneira mais formal. Numa das extremidades deste recinto, via-se uma sebe aparada de forma curiosa, com uma abertura, como umagruta verde, sob cuja sombra se vislumbravam alguns degraus partidos.
O padre Brown encaminhou-se para lá e enfiou primeiro a cabeça e depois o corpo. Dali a pouco, depois de ele ter desaparecido completamente, ficaram surpreendidos ao ouvi-lo falar calmamente por cima das suas cabeças, como se estivesse empoleirado numa árvore a conversar com alguém. O detective resolveu imitá-lo e descobriu que os estranhos degraus conduziam a uma espécie de ponte em ruínas que se elevava acima da zona mais escura e erma do jardim. Contornava a esquina da casa até ao ponto de onde se avistava o campo de luzes, que se estendia lá em baixo um pouco mais adiante. Tratava-se, provavelmente, da relíquia de algum capricho arquitectónico entretanto abandonado, de fazer uma espécie de terraço assente em arcadas, a atravessar o relvado. Bagshaw achou que era um sítio bem estranho, aquele cul de sac (1), para encontrar alguém àquelas horas mortas, entre a noite e o dia - de qualquer forma não seria a altura adequada para se reparar em pormenores desse tipo. O que interessava era o sujeito que ali encontrara e para quem estava agora a olhar.

(1) Cul de sac - beco sem saída. (N. da T.)

De costas voltadas, baixa estatura, e envergando um fato cinzento claro, o único pormenor que sobressaía naquele indivíduo era a sua formidável cabeleira, tão loira e deslumbrante como um enorme dente-de-leão. Parecia-se de tal maneira com um halo que essa associação fez com que o resto, ao voltar-se lentamente, provocasse neles um choque por contraste. Essa auréola devia envolver um rosto arredondado e angelical, mas aquele, pelo contrário, era velho e desagradável, de maxilares fortes e nariz curto, fazendo de certo modo lembrar o dos pugilistas.
- Este senhor, se não me engano, é Mr. Orm, o consagrado poeta - disse o padre Brown com a calma de quem está a apresentar duas pessoas numa sala de visitas.
- Seja quem for, terá de me acompanhar e de responder a umas perguntas - declarou Bagshaw.
Mr. Osric Orm, o poeta, não se mostrou propriamente um modelo de loquacidade quando chegou o momento de responder às tais perguntas. Ali, naquele canto do velho jardim, enquanto o crepúsculo cinzento que antecede a manhã começava a trepar por detrás das sebes e da ponte em ruínas, e após toda uma série de circunstâncias e etapas da investigação policial, cada vez mais ameaçadoras, recusou-se a dizer fosse o que fosse, afirmando apenas que tencionava visitar Sir Humphrey Gwynne, mas não conseguira, uma vez que ninguém viera atender à porta. Quando lhe foi dito que a porta se encontrava praticamente aberta, resmungou qualquer coisa. Quando alguém sugeriu que era um bocado tarde para fazer visitas, limitou-se a rosnar. O pouco que disse não foi muito claro, ou por falar mal inglês ou por achar que era o melhor que tinha a fazer. As suas opiniões pareciam ser do tipo niilista e destrutivo, tal como o era a sua poesia para aqueles que a conseguiam entender. E podia pôr-se a hipótese de que o assunto que tinha a tratar com o juiz, ou o pomo da discórdia entre ambos, tivesse algo a ver com a anarquia. Gwynne era conhecido pela mania que em tempos tivera dos espiões alemães. De qualquer modo, deu-se uma estranha coincidência, momentos após a captura de Orm, que levou Bagshaw a confirmar a impressão que tinha de que aquele caso devia ser tomado muito a sério. Quando iam a sair do portão principal, cruzaram-se com outro vizinho, Buller, o negociante de charutos que vivia na casa ao lado, com um ar todo respeitável, de rosto moreno, expressão viva e orquídea na botoeira - era afamado neste ramo da horticultura. Para grande surpresa de todos, cumprimentou o vizinho poeta com toda a naturalidade, como se estivesse à espera de o encontrar ali.
- Olá. Cá estamos nós outra vez - disse ele. - Então, conversou muito com o velho juiz?
- Sir Humphrey Gwynne morreu-informou Bagshaw. - Estou a investigar o caso e gostaria que me explicasse o que acabou de dizer.
Buller ficou hirto como o candeeiro que se achava ao seu lado, possivelmente devido à surpresa. Aponta incandescente do charuto ora se avivava ora esmorecia, num ritmo regular, enquanto o seu rosto permanecia na sombra. Quando retomou a palavra, o tom de voz alterara-se.
- A única coisa que eu queria dizer é que há duas horas atrás, quando por aqui passei, Mr. Orm ia a entrar para falar com Sir Humphrey.
- Ele afirma que não chegou a vê-lo - observou Bagshaw - e que nem sequer entrou em casa.
- Convenhamos que é muito tempo para se ficar assim à entrada da porta - tornou Buller.
- Sim - comentou o padre Brown -, e também é muito tempo para se ficar assim na rua.
- Eu entretanto fui a casa - atalhou o negociante de charutos. - Estive a escrever cartas e agora voltei a sair para as ir pôr no correio.
- Mais tarde terá de explicar tudo isso - declarou Bagshaw.- Boa noite... ou bom dia.
O julgamento de Osric Orm, acusado de ter assassinado Sir Humphrey Gwynne, assunto que encheu as páginas dos jornais durante semanas a fio, girou em torno desse ponto crucial, tal como acontecera na conversa àluz do candeeiro da rua, quando a madrugada cinzenta esverdeada rompia, envolvendo as ruas escuras e os jardins. Tudo ia desembocar no enigma dessas duas horas vazias entre o momento em que Buller vira Orm a transpor o portão e aquele em que o padre Brown fora dar com ele, aparentemente a vaguear pelo jardim. Durante esse espaço de tempo tinha tido oportunidade de cometer meia dúzia de assassinatos e talvez o fizesse apenas para se entreter, pois não foi capaz de apresentar nenhuma explicação coerente do que andava a fazer. A acusação argumentou que também tivera oportunidade de cometer o crime, uma vez que a porta principal apenas estava encostada e a porta lateral se encontrava aberta. O tribunal seguiu com bastante interesse a reconstrução que Bagshaw apresentou da luta que se travara no vestíbulo, cujos traços eram tão evidentes; é claro que a polícia tinha logo encontrado a bala que partira o espelho. Finalmente, o buraco na sebe através do qual o suspeito fora seguido tinha, segundo ele, todo o aspecto de um esconderijo. Por outro lado, Sir Matthew Blake, notável advogado, encarregado da defesa, utilizou este último argumento de uma outra maneira: perguntando por que razão um homem se iria encurralar a si próprio num lugar de onde provavelmente não poderia sair, quando seria muito mais fácil esgueirar-se para a rua. Sir Matthew Blake invocou também o mistério que continuava a envolver o motivo do crime. É óbvio que em relação a isto, a troca de palavras entre Sir Matthew Blake e Sir Arthur Travers, um não menos brilhante advogado, encarregado da acusação, favoreceram bastante o réu. Sir Arthur apenas conseguiu apresentar sugestões relacionadas com uma conspiração bolchevique, que não encontraram qualquer eco. Mas quando chegou a altura de investigar os factos relacionados com o misterioso comportamento de Orm naquela noite, revelou-se muito mais eficiente.
O réu tomou assento no banco das testemunhas, sobretudo porque o seu astuto advogado de defesa imaginou que se ele o não fizesse iria causar má impressão. Mas Orm mostrou-se tão reservado em relação à defesa como à acusação. Sir Arthur Travers fez todos os possíveis para vencer o seu silêncio mas os seus esforços foram em vão.
Este advogado era um indivíduo alto e magro, de rosto cadavérico, em contraste com Sir Matthew Blake, de aspecto vigoroso e olhar inteligente e vivo. Se este, todo seguro de si, fazialembrar um pardal espertalhão, o outro podia ser comparado a um grou ou a uma cegonha e quando se inclinava sobre oréu, espicaçando-o com perguntas, porque o seu longo nariz parecia um bico aguçado.
- Mas quer convencer o júri de que não chegou a entrar para se avistar com a vítima? - perguntou ele num tom esganiçado de incredulidade.
- É verdade - respondeu Orm com firmeza.
- Queria vê-lo, segundo penso. Devia estar muito ansioso por se encontrar com ele. Não é verdade que esperou duas horas a pé firme à entrada da porta?
- Sim - retorquiu o outro.
- E no entanto nem reparou que a porta estava aberta.
- Não.
- Mas afinal, que diabo esteve você a fazer durante duas horas naquele jardim? - insistiu o advogado. - É claro que fez alguma coisa enquanto ali esteve.
- Sim.
- É um mistério - disse Sir Arthur num tom jocoso.
- Para si é - retorquiu o poeta.
Foi baseado nesta sugestão de se tratar de um mistério que Sir Arthur resolveu desenvolver a sua linha de argumentação contra o réu. Com um arrojo que alguns consideraram destituído de escrúpulos, converteu o mistério do móbil, que constituía a parte mais sólida da defesa, num argumento a seu favor. Considerou-o o primeiro indício de uma conspiração que vinha sendo planeada há muito tempo, na qual um patriota havia perecido, como se tivesse sido apanhado pelos tentáculos de um polvo.
- Sim - gritou ele com a voz vibrante -, o meu ilustre colega tem toda a razão! Desconhecemos o motivo pelo qual este respeitável servidor público foi assassinado. Nem tão pouco conhecemos o motivo pelo qual o próximo servidor público será morto. Se o meu prezado amigo vier a tornar-se uma vítima da sua eminência, se aqueles que zelam pela Lei passarem a constituir um alvo de ódio das forças maléficas da destruição, ele irá perecer, ignorando o motivo. Muitos dos respeitáveis cidadãos que aqui se encontram serão barbaramente assassinados nas suas camas e nós ficaremos sem saber porquê. Nunca viremos a conhecer o motivo da chacina, nem tão pouco conseguiremos pôr fim ao massacre, que assim irá despovoando o nosso país, enquanto for permitido à defesa impedir toda a acção legal, sempre a bater na mesma tecla do "motivo", quando todos os outros factos, todas as incogruèncias, todos os silêncios flagrantes nos indicam que estamos na presença de Caim.
- Nunca vi Sir Arthur tão empolgado - observava Bagshaw dali a pouco, dirigindo-se ao grupo que o acompanhava. - Ouvi comentar por aí que ele tinha excedido os limites habituais e que a acusação, num caso de homicídio, não se devia mostrar tão rancorosa. No entanto, devo reconhecer que há qualquer coisa de repugnante naquele gnomo de trunfa loira; aquele homem não engana ninguém. Veio-me por várias vezes à ideia uma coisa que De Quincey disse acerca de Mr. Williams, esse horrível criminoso, que chacinou duas famílias inteiras sem ninguém dar por isso. Se não me engano, dizia ele que Williams tinha uma cabeleira de um amarelo vivo artificial e estava convencido de que a havia pintado segundo uma técnica que aprendera na índia, onde era costume pintarem os cavalos de verde ou de azul. Depois, há aquele estranho silêncio em que se fechou, como um troglodita. Não nego que tudo isso teve influência em mim, levando-me a considerá-lo uma espécie de monstro. Se foi apenas devido à eloquência de Sir Arthur, então ele teve certamente uma grande responsabilidade, ao falar com tanta paixão.
- De facto era amigo do pobre Gwynne - informou Underhill, baixando a voz. - Um sujeito meu conhecido viu-os a conversar amigavelmente a seguir a um banquete, há uns dias atrás. Eu diria que foi essa razão que o levou a empenhar-se tanto neste caso. Ponho até em dúvida se, numa situação destas, um homem se deve deixar dominar por sentimentos pessoais.
- Mas ele não faria uma coisa dessas - retorquiu Bagshaw. - Tenho a certeza de que Sir Arthur Travers não se deixaria levar pelos sentimentos, por muito fortes que eles fossem. Ele tem uma noção muito rígida do papel profissional que desempenha. É um daqueles indivíduos que continuam ambiciosos mesmo depois de já terem satisfeito as suas ambições. Não conheço ninguém que se preocupe tanto em manter a sua posição. Não, Underhill, você extraiu amoral errada do meu estrondoso sermão. Se ele se entusiasmou daquela maneira é porque está convencido de que irá obter a
condenação e pretende encabeçar um movimento político contra a conspiração a que se referiu. Deve ter alguma razão de peso para querer condenar Orm e acredita que o conseguirá. Isto significa que os factos o apoiarão. A sua confiança não parece ser favorável ao réu. -De súbito, apercebeu-se de uma figura insignificante no meio do grupo. - Então, padre Brown, que pensa deste caso? - perguntou, sorridente.
- Bom - replicou o sacerdote, algo distraído-, o que mais me impressionou foi verificar como os homens ficam diferentes com cabeleiras postiças. Têm estado aqui a falar de forma extraordinária como o advogado de acusação tem actuado, mas tive ocasião de vê-lo, por escassos momentos, sem a cabeleira, e não imaginam como ele é diferente. Reparei, por exemplo, que é bastante calvo.
- Não me parece que isso o impeça de ser brilhante no seu discurso - observou Bagshaw. - Suponho que não pretende basear a defesa no facto de o advogado de acusação ser calvo, pois não?
- Não se trata bem disso - retorquiu o padre Brown, bem humorado. - Para lhe dizer a verdade, estava a pensar no pouco que certos tipos de pessoas sabem a respeito de outros tipos. Imagine que eu me encontrava entre um povo qualquer que nunca tinha ouvido falar de Inglaterra. Suponha que eu lhes dizia que existia um homem na minha terra que não colocava uma questão de vida ou de morte, sem primeiro colocar na cabeça uma excrescência feita de crina de cavalo, com umas tranças na parte de trás e caracóis esbranquiçados de um lado e do outro, como uma velha da época vitoriana. Eles iriam pensar que esse indivíduo devia ser bastante excêntrico, mas não se trata de uma excentricidade e sim de uma convenção. E por que razão é que eles iriam pensar isso? Porque nada sabem acerca dos advogados ingleses, nem fazem ideia do que será um advogado. Pois bem, este advogado não sabe o que é um poeta. Não percebe que as excentricidades de um poeta não pareceriam excêntricas aos olhos de outro poeta. Sir Arthur considera estranho o facto de Orm ter ficado num belo jardim durante duas horas, sem nada que fazer. Santo Deus! Um poeta não iria achar nada de extraordinário em percorrer o mesmo pátio durante duas horas, se estivesse embrenhado na criação de um poema. O advogado de defesa também não deve nada à inteligência. Nunca lhe ocorreu fazer a pergunta óbvia ao réu.
- A que pergunta se está a referir?- inquiriu o outro.
- Sobre o poema que ele estava a criar, é claro - replicou o padre Brown num tom impaciente. - Em que verso é que ele ficara emperrado, qual o adjectivo que procurava, que clímace tentava ele elaborar, por exemplo. Se houvesse alguém culto neste tribunal, que soubesse o que é a literatura, perceberia perfeitamente se ele tinha estado ou não a fazer alguma coisa em especial. Qualquer pessoa se lembraria de perguntar a um industrial qual o modo de funcionamento da sua fábrica, e, no entanto, ninguém se mostra preocupado em saber as condições em que a poesia é fabricada. Ela faz-se não fazendo nada.
- Isso está tudo muito certo, mas por que é que ele se escondeu? - perguntou o detective. - Que o terá levado a trepar pelas escadas em ruínas e a parar ali? Aquela passagem não conduzia a lado nenhum.
- Precisamente por isso, por não levar a lado nenhum - respondeu irritado o padre Brown. - Qualquer pessoa que olhasse com atenção para aquele recanto entre o céu e a terra iria perceber que se tratava do lugar ideal para um artista, tal como para uma criança.
Calou-se por momentos, a pestanejar, e prosseguiu em tom de desculpa:
- Que me perdoem, mas acho tão estranho que nenhum deles compreenda estas coisas! E há ainda outro pormenor. Não sabem que para um artista tudo tem um aspecto ou um ângulo exactamente perfeito? Uma árvore, uma vaca e uma nuvem, em determinada relação, só têm um significado, tal como três letras, numa certa ordem, representam uma palavra. Ora bem, a visão do jardim iluminado que se desfrutava da ponte em ruínas era a visão perfeita daquele local. Tão única como a quarta dimensão. Tratava-se de uma espécie de recanto de fadas; era como se fosse o céu visto de cima, com todas aquelas estrelas a nascer dos ramos das árvores e o lago luminoso como uma lua caída no relvado, numa bela história de encantar. Orm podia ter ficado ali para sempre em contemplação. Se lhe dissessem que aquele caminho não conduzia a lugar nenhum, ele responderia que o tinha levado ao país do fim do mundo. Mas julgam que ele se atreveria a dizer uma coisa destas em pleno tribunal? Que diriam dele se o fizesse? Diz-se que qualquer pessoa tem direito a um júri constituído pelos seus pares. Por que não arranjar, neste caso, um júri formado por poetas?
- O senhor fala como se também fosse poeta - observou Bagshaw.
- Agradeça à sua boa estrela o facto de não o ser e ainda o facto de um padre ter de ser mais caridoso que um poeta. Que o Senhor tenha piedade de nós. Se soubessem a raiva, o ódio que ele tem por todos vocês, iriam sentir-se como se estivessem sob as cataratas do Niagara.
- Admito que o senhor saiba mais acerca do temperamento dos artistas que eu - disse Bagshaw -, mas, afinal de contas, a explicação é simples. O senhor pode demonstrar que ele podia fazer o que fez sem ter cometido o crime, mas também é verdade que ele podia tê-lo cometido. E quem mais podia ter sido?
- Já pensou na hipótese de ter sido Green, o empregado? - perguntou o sacerdote. - A história que ele nos contou é bastante esquisita.
- Ah! -exclamou Bagshaw. - Então acha que foi ele?
- Tenho quase a certeza de que não foi ele - retorquiu o padre Brown. - Limitei-me apenas a perguntar-lhe seja tinha pensado na tal história que ele contou. Saiu por um motivo qualquer sem importância, para beber um copo, encontrar-se com alguém ou outra coisa assim do género. No entanto saiu pela entrada principal e no regresso saltou o muro. Por outras palavras, deixou o portão aberto, mas quando regressou encontrou-o fechado. Porquê? Porque alguém saíra por ali.
- O assassino - murmurou o detective pouco convencido. - Sabe de quem se trata?
- Sei como ele erae nada mais - respondeu calmamente o padre Brown. - Quase consigo vê-lo no momento em que entrou pela porta principal iluminada pela luz do candeeiro do vestíbulo; a sua figura, a indumentária e até o resto!
- E então?
- Parecia Sir Humphrey Gwynne.
- Mas que diabo está para aí a dizer? - indagou Bagshaw. - Gwynne estava morto ao pé do lago.
- É claro.
Dali a pouco prosseguiu:
- Mas voltemos a essa sua teoria, que era muito boa, embora eu não esteja de acordo com ela. Parece-lhe que o assassino entrou pela porta da frente, deu de caras com o juiz que se encontrava no vestíbulo, lutou com ele e foi então que o espelho se partiu. O juiz foge para o jardim e é então morto a tiro. Seja como for, não considero isto natural. Admitindo que ele tenha fugido pelo corredor, há duas portas ao fundo, uma para o jardim e outra para o interior da casa. Ora, dá a impressão de que ele devia ter optado pela segunda, pois era ali que se encontrava a arma, o telefone e, tanto quanto ele pensava, o criado. Até os vizinhos mais próximos se situavam nessa direcção. Por que razão é que ele iria optar pela porta do jardim e fugir para a área mais deserta?
- Mas disso estamos nós certos: ele saiu realmente de casa - retorquiu o outro, confundido. - Nós sabemos que ele saiu lá para fora, pois foi encontrado no jardim.
- Ele nunca saiu de casa, porque nunca aí esteve - replicou o padre Brown. - Nessa noite, quero eu dizer. Estava no banga-ló. Li essa mensagem no escuro, logo de início, nas estrelas vermelhas e douradas espalhadas pelo jardim. As luzes eram comandadas da cabana e se o juiz ali não tivesse estado, elas não estariam acesas. O assassino matou-o quando ele ia a correr em direcção à casa e ao telefone.
- Então e o vaso caído, a palmeira e o espelho partido? - perguntou Bagshaw, irritado. - Foi o senhor mesmo que os encontrou
e que insinuou ter havido luta no vestíbulo.
- Fui? - O sacerdote pestanejou, como se vivesse um momento difícil. - Eu não disse isso, nem nunca tal me passou pela cabeça. O que eu disse foi que alguma coisa tinha acontecido ali. E isso é um facto. Mas luta é que não houve.
- Então e que nos diz do vidro partido? - perguntou Bagshaw.
- Foi uma bala - respondeu o padre Brown -, uma bala disparada pelo assassino. Os pedaços de espelho que caíram eram suficientemente grandes para virarem o vaso e a palmeira.
- E contra quem é que o assassino disparou? Não foi contra Gwynne?
- Isso é uma questão metafísica delicada - retorquiu o sacerdote com um ar sonhador. - Digamos que ele estaria de facto a disparar contra o juiz; no entanto, Gwynne não se encontrava ali. A única pessoa que estava no vestíbulo era o criminoso.
Ficou calado durante uns instantes e depois prosseguiu:
- Imaginem o espelho, ao fundo do corredor, antes de se partir, e a palmeira inclinada sobre ele. A média luz, reflectida nas paredes pálidas, devia parecer o final da passagem. Um homem ali reflectido daria a impressão de alguém vindo do interior da casa. Pareceria o dono da casa... se a imagem fosse parecida com ele.
- Espere aí - atalhou Bagshaw. - Creio que começo a...
- Já começa a compreender por que razão todos os suspeitos neste caso se encontram inocentes. Nenhum deles podia ter confundido a sua imagem reflectida no espelho com o juiz Gwynne. Orm, por exemplo, teria visto imediatamente que a sua cabeleira loira não era uma cabeça calva. Flood teria logo conhecido a sua cabeça ruiva e Green a sua libré encarnada. Além disso, todos eles são baixos e deselegantes; nenhum desses homens iria confundir a sua própria imagem com um senhor alto, magro e de fato de cerimónia. Precisamos de outra pessoa, um indivíduo também alto e magro, tal como o juiz. Era a isso que eu me referia quando disse há pouco que sabia qual o aspecto do assassino.
- E que pretende concluir de tudo isso? - indagou Bagshaw. O padre soltou uma espécie de risada aguda numa atitude muito diferente da forma moderada como habitualmente se exprimia. - Pretendo concluir precisamente aquilo que o senhor disse ser tão absurdo e impossível.
- Que quer dizer com isso?
- Vou basear a defesa no facto de o advogado de acusação ser calvo.
- Oh, meu Deus! - exclamou o detective, espantado, pondo-se de pé.
O padre Brown prosseguiu a sua explicação com toda a calma
- A polícia tem vindo a seguir os movimentos de muita gente, neste caso. Tem-se interessado muitíssimo, por exemplo, pelos do poeta, do criado e do irlandês. Ora, o homem cujos movimentos têm sido um pouco esquecidos, é precisamente a própria vítima. O seu criado mostrou-se sinceramente espantado ao ver que o patrão já havia regressado. O juiz Gwynne tinha ido a um banquete onde iam estar presentes os principais magistrados. No entanto, saíra bruscamente da reunião e voltara para casa. Não se sentia mal, pois não pediu assistência a ninguém; discutira certamente com algum dos seus colegas. Devíamos ter começado por procurar o inimigo entre o grupo desses magistrados. Regressou então a casa e fechou-se nobangaló, onde guardava os seus documentos particulares referentes a actividades subversivas. Mas o líder da Ordem, sabendo que existiam provas contra si entre esses documentos, lembrou-se de seguir o juiz. Também ele trajava fato de cerimónia e levava um revólver no bolso. Foi assim que as coisas se passaram e ninguém iria suspeitar se não se tivesse dado o incidente com o espelho.
Pareceu olhar no vazio por instantes e depois prosseguiu:
- O espelho é um objecto bem estranho: uma moldura rodeando centenas de imagens diferentes, todas elas reais e para sempre extintas. E, no entanto, havia algo de especialmente estranho naquele espelho pendurado ao fundo do corredor cinzento, junto da palmeira. É como se de um espelho mágico se tratasse, com um destino diferente dos outros espelhos. Digamos que a sua imagem podia, de certo modo, sobreviver ao próprio espelho, suspensa no ar, como um espectro, naquela casa sombria. Ou, pelo menos, como um diagrama abstracto, a estrutura de um argumento. Podíamos em todo o caso evocar do vazio essa coisa que Sir Arthur Travers viu. A propósito, você disse uma grande verdade acerca dele.
- Muito me alegra ouvi-lo dizer isso-observou Bagshaw, sorridente. - E que foi?
- Afirmou que Sir Arthur devia ter uma razão muito forte para querer levar Orm à forca.
Uns dias depois, o padre Brown encontrou o detective e soube por ele que as autoridades já haviam iniciado as investigações de acordo com a nova pista, tendo sido obrigados ainterrompê-las devido a um acontecimento sensacional.
- Sir Arthur Travers... - começou o padre Brown.
- Sir Arthur Travers morreu - informou Bagshaw secamente.
- Ah! - fez o sacerdote, com alguma comoção -, quer dizer que ele...
- Sim, voltou a atirar sobre o mesmo homem, só que desta vez não foi num espelho.

CAPÍTULO II
O HOMEM COM DUAS BARBAS

Esta história foi contada pelo padre Brown ao professor Crake, o famoso criminologista, depois de jantarem num clube, onde foram apresentados um ao outro como partilhando ambos um inofensivo passatempo relacionado com homicídios e roubos. No entanto, como a versão relatada pelo sacerdote minimiza o seu papel no desenrolar dos acontecimentos, faremos aqui a sua apresentação de uma forma mais imparcial. Tudo surgiu de uma amigável troca de palavras em que o professor se mostrou muito científico e o padre bastante céptico.
- Mas, meu caro senhor - dizia o professor num tom de protesto -, não considera a criminologia uma ciência?
- Não estou bem certo disso - replicou o padre Brown. - E o senhor, acha que a hagiologia é uma ciência?
- Que é isso? - indagou o outro.
- Não tem nada a ver com o estudo da feitiçaria nem com a caça às bruxas - respondeu o sacerdote, sorridente. - Trata-se do estudo das coisas sagradas, dos santos e dos assuntos relacionados com o tema. A Idade das Trevas tentou criar uma ciência acerca das pessoas que praticavam o bem. Em contrapartida, a nossa era, tão humanitária e esclarecida, só se mostra interessada numa ciência relativa àqueles que se dedicam ao mal. No entanto, penso que a experiência nos ensina que todas as espécies concebíveis de homens têm sido santos e desconfio que irá igualmente verificar que todas as espécies concebíveis de homens têm sido assassinos.
- Estamos convencidos de que os assassinos podem ser classificados com bastante exactidão - observou Crake. - A lista afigura-se-me longa e monótona, mas penso que é exaustiva. Em primeiro lugar, podemos dividir os homicídios em racionais e irracionais. Consideremos estes últimos em primeiro lugar, visto serem em muito menor número. Existe uma coisa chamada mania homicida ou amor à carnificina, no sentido abstracto. Há ainda a antipatia irracional, embora raramente conduza ao homicídio. Em seguida, temos os verdadeiros motivos: de todos eles, alguns são menos racionais, atendendo à sua natureza meramente romântica e retrospectiva. Os actos de pura vingança são fruto de desespero. Assim, um apaixonado mata um rival que nunca iria suplantar, ou um rebelde assassina um tirano uma vez consumada a conquista. Mas a maioria das vezes até mesmo estes actos têm uma probabilidade racional. São assassinos movidos pela esperança, que poderemos incluir na secção mais vasta do segundo grupo a que chamaremos crimes prudentes. Estes, por sua vez, subdividem-se em duas espécies, que passarei a descrever. Um homem mata outro para lhe roubar o que ele possui, por roubo ou herança, ou para o impedir de cometer determinado acto, como no caso do assassinato de um chantagista ou de adversário político ou, em relação a um obstáculo mais passivo, um marido ou uma esposa cuja existência interfere noutras coisas. Pensamos que esta classificação é muito completa e, se for devidamente aplicada, abarca a totalidade dos assassinatos. Mas receio que isto se esteja a tornar fastidioso. Espero não estar a maçá-lo com a conversa.
- De maneira nenhuma - replicou o padre Brown. - Peço desculpa se me mostrei um pouco ausente, mas a verdade é que me estava a lembrar de um indivíduo que em tempos conheci. Era um assassino, mas não estou a ver onde encaixá-lo no seu museu de homicidas. Não se tratava de um louco mas gostava de matar. Nem tão pouco odiava o homem que matou: mal o conhecia e, certamente, nada tinha contra ele. A vítima não possuía nada que lhe pudesse interessar, nem o seu procedimento era de molde a que o assassino lhe quisesse pôr cobro. Também não se achava em condições de o prejudicar, nem de magoá-lo. Não foi por causa de uma mulher nem por questões políticas. O homem em causa matou um indivíduo que praticamente desconhecia e isso aconteceu por uma razão muito estranha, possivelmente única na História da humanidade.
E assim contou a história no seu tom mais coloquial. O caso poderia perfeitamente ter tido início num cenário assaz respeitável, à mesa do pequeno-almoço de uma família suburbana, de apelido Bankes, onde o comentário habitual sobre as notícias do jornal havia dado lugar a uma conversa em torno de um mistério ocorrido ali perto. Por vezes, embora estas pessoas sejam acusadas de maledicência em relação aos vizinhos, revelam-se, nesse aspecto, inocentes, de uma forma quase inumana. Os aldeões rústicos contam histórias acerca da vizinhança, umas verdadeiras, outras falsas, mas a cultura dos modernos subúrbios acredita em tudo o que figura nos jornais sobre a perversidade do papa ou o martírio do rei das ilhas Canibais e, com a excitação provocada por estes temas sensacionalistas, nunca sabe o que se passa ao pé da porta. Neste caso, porém, as duas formas de interesse eram de facto coincidentes, num conjunto de intensidade emocionante. Até a própria zona onde viviam vinha referida no seu jornal preferido. Quando viram o nome impresso, sentiram-se perante uma nova prova da sua existência, como se antes tivessem permanecido inconscientes, e invisíveis. Agora eram reais como o rei das ilhas Canibais.
Afirmava-se no jornal que um criminoso outrora célebre, conhecido por Michael Moonshine, e por muitos outros nomes, que presumivelmente não seriam os seus, fora solto recentemente, após um longo período de prisão, por numerosos asssaltos. O seu paradeiro era mantido em segredo; no entanto, corria o boato de que se havia instalado no subúrbio em causa, a que chamaremos, por uma questão de conveniência, Chisham. A notícia incluía um resumo de algumas das suas célebres e ousadas façanhas e evasões, pois tratava-se de um tipo de imprensa destinada àquela espécie de público cujos leitores são desprovidos de memória. Enquanto um camponês se recorda durante séculos dos fora-da-lei, como Robin Hood ou Rob Roy, um empregado de escritório mal se lembrará do nome do criminoso sobre o qual travou uma discussão acesa dois anos atrás.
No entanto, Michael Moonshine dera provas dessa patifaria heróica própria de um Rob Roy ou de um Robin Hood, pelo que merecia ser convertido numa lenda e não figurar apenas em notícias de jornal. Era um ladrão demasiado competente para ser considerado um assassino. No entanto, a sua força terrível e a facilidade com que deitava abaixo os polícias como se estes fossem paulitos do jogo do fito, a forma como dominava as suas vítimas e as atava e amordaçava, conferia uma espécie de toque final de medo ou mistério à circunstância de nunca as matar. Na verdade, as pessoas chegavam a considerar que seria mais humano se ele o fizesse.
Mr. Simon Bankes, o pai, era simultaneamente mais letrado e mais antiquado que o resto da família. Era um indivíduo alto e forte, de barbicha grisalha e fronte sulcada de rugas. Tinha propensão para contar histórias e velhas recordações e lembrava-se perfeitamente desses tempos em que os londrinos passavam a noite acordados, à espera de ouvirem os passos de Mike Moonshine, tal como faziam em relação a Jack, esse de quem se dizia ter molas nos tacões dos sapatos. Havia depois a mulher de Bankes, uma senhora morena e magra. Notava-se nela uma espécie de elegância azeda, pois a sua família tinha muito mais dinheiro que a do marido, embora menos cultura. Possuía até um valioso colar de esmeraldas, que estava guardado no andar de cima, e que lhe conferia o direito à superioridade naquela discussão acerca de ladrões. Seguia-se a filha, Opal, magra e m orena como a mãe e, segundo constava, dotada de poderes de vidente - pelo menos no seu entender, uma vez que a família não a encorajava nesse sentido. Os espíritos de tendência ardentemente astral ficarão avisados quanto às desvantagens de se materializarem como membros de famílias grandes. Havia ainda o irmão, John, um jovem corpulento, particularmente exuberante na indiferença que ostentava perante as tendências espíritas da irmã; para além disso, só se distinguia no interesse pelos automóveis. Parecia estar sempre envolvido na venda de um carro e na compra de outro e, graças a um processo que os economistas dificilmente entenderiam, era-lhe sempre possível adquirir um artigo muito melhor, com a venda de um outro danificado ou sem valor comercial. O irmão Philip, um rapaz de cabelo preto e encaracolado, caracterizava-se pela atenção que dedicava à indumentária, o que sem dúvida constitui parte da tarefa de um escriturário de corretor da bolsa, embora não a sua totalidade, como o patrão lhe costumava dizer. Por fim, encontrava-se presente naquele cenário familiar um amigo da casa, Daniel Devine, também moreno, que vestia com requinte, mas com uma barba de corte invulgar, de um estilo estrangeiro e, por isso mesmo, um tanto ameaçadora para muitas pessoas.
Foi Devine que começou por falar no tema referido na notícia, usando assim todo o seu tacto, ao conseguir distraí-los, com eficácia, do que parecia ser o início de uma discussão familiar. A menina vidente começara a descrever uma visão que tivera de uma série de rostos a pairar no vazio da noite, do lado de fora da janela, e John Bankes procurava, aos berros, sobrepor-se a esta revelação, própria de um estado de espírito superior, com uma veemência que ultrapassava a habitual.
No entanto, a referência do jornal ao novo e talvez alarmante vizinho não tardou a silenciar os dois contendores.
- Mas que coisa assustadora - exclamou Mrs. Bankes. - Deve ser alguém recém-chegado, mas quem poderá ser?
- Não conheço ninguém que se tenha vindo instalar há pouco por estes lados, a não ser Sir Leopold Pulman, de Beachwood Hou-se - observou o marido.
- Que ideia tão absurda, querido... Sir Leopold, vejam só! - tornou a mulher, acrescentando depois de uma breve pausa: - Se sugerisses o secretário dele... aquele sujeito de patilhas. Eu sempre disse, desde que ele ficou com o lugar que devia ser para Philip...
- Nada feito - comentou o filho em questão, languidamente, prestando assim a sua única contribuição para a conversa. - Não era suficientemente bom para mim.
- O único recém-chegado que conheço - observou Devine -, é aquele sujeito chamado Carver que se instalou na quinta de Smith. Leva uma vida muito pacata, mas é um fulano muito interessante. Julgo que John tem negócios com ele.
- É um tipo entendido em automóveis - admitiu John. - Mas ainda vai ficar a saber mais quando experimentar o meu novo carro.
Devine fez um ligeiro sorriso, pois já toda a gente tinha sido ameaçada com a hospitalidade do novo automóvel de John. Depois acrescentou, pensativo:
- É isso que eu penso dele. Percebe muito de motores e é um homem viajado, mas agora passa o tempo em casa, de volta das colmeias de Smith. Dizem que só se interessa por apicultura e que por isso se instalou na quinta. Parece-me um passatempo muito calmo para um homem da sua espécie, mas estou certo de que o carro de John vai provocar-lhe alguma agitação.
Ao fim da tarde, quando partiu, Devine ia pensativo. As suas reflexões talvez merecessem a nossa atenção, mesmo nesta fase inicial dos acontecimentos. No entanto, bastará aqui referir que o resultado prático foi a decisão de ir imediatamente a casa de Mr. Smith visitar Mr. Carver. Quando se dirigia para lá, encontrou Barnard, o secretário de Beechwood House, com aquela sua figura característica, algo magro e com aquelas patilhas farfalhudas que ofendiam Mrs. Bankes de uma forma muito especial. Conheciam-se vagamente e, por isso mesmo, a troca de palavras entre eles foi breve; no entanto, Devine colheu naquele encontro matéria suficiente para posteriores cogitações.
- Diga-me uma coisa - indagou ele com brusquidão -, desculpe perguntar, mas é verdade que Lady Pulman tem em casa jóias de muito valor? Não sou propriamente um ladrão profissional, mas ouvi dizer que anda por aí um a rondar.
- Hei-de dizer-lhe para ter cuidado - respondeu o secretário. - Na verdade eu próprio já a avisei, espero que ela me tenha dado ouvidos.
Enquanto assim falavam, ouviu-se o som estridente de uma buzina e John Bankes parou junto deles, todo satisfeito, sentado ao volante do seu automóvel. Quando soube o destino de Devine, anunciou que também para ali se dirigia, embora o tom em que o disse denunciasse uma satisfação invulgar em oferecer boleia às pessoas. Durante a viagem não se cansou de fazer elogios ao automóvel, referindo-se, desta feita, à capacidade de adaptação do mesmo às condições atmosféricas.
- É hermético como um cofre - dizia ele - e abre-se com tanta facilidade como o senhor abre a boca.
No entanto a boca de Devine é que não se abriu assim tão facilmente, tendo chegado à herdade de Smith ao som de um solilóquio. Mal transpôs o portão, Devine encontrou o homem que procurava sem precisar de entrar em casa, pois ele andava a passear no jardim de mãos nos bolsos e grande chapéu de palha na cabeça. Era um sujeito de rosto comprido e queixo quadrado. A aba larga do chapéu projectava-lhe uma faixa de sombra na parte superior do rosto, dando ideia de uma máscara. Por detrás dele via-se uma fila de colmeias, ao longo da qual caminhava um homem mais velho,
provavelmente Mr. Smith, acompanhado por um outro indivíduo baixote e de aspecto vulgar, vestido com um fato preto de amanuense.
- Sabe uma coisa? Trouxe o meu carro para levar o senhor a dar um passeio - declarou o indomável John, antes sequer de Devine ter tido tempo de cumprimentar o sujeito. - Vai ver que é mais veloz que um raio.
Mr. Carver esboçou um sorriso que, embora tentasse ser afável, não conseguiu disfarçar a sua má disposição.
- Receio estar demasiado ocupado para poder dedicar-me a diversões - retorquiu.
- Como as atarefadas abelhinhas - observou Devine num tom enigmático. - As suas abelhas devem trabalhar muito para o manterem ocupado até de noite. Estava a pensar...
- Em quê?-indagou Carver, mostrando-se um tanto desconfiado.
- Diz-se que devemos ceifar o trigo enquanto brilha o Sol - tornou Devine. - Tavez se deva preparar o mel ao luar (1).
Na sombra da aba do chapéu de Carver brilhou um clarão: eram os seus olhos a chispar.
- Talvez o luar tenha um papel importante nesse processo - comentou -, no entanto, aviso-o de que as minhas abelhas para além de fabricarem mel também picam.
- Vem ou não vem dar uma volta no meu carro? - insistiu John.
Embora tivesse abandonado por momentos o ar sinistro com que antes lhe respondera, manteve-se firme na sua recusa, falando, contudo, num tom educado.
- Provavelmente não poderei ir. Tenho umas cartas para escrever - respondeu. - De qualquer modo, se está realmente interessado em companhia, talvez não se importe de levar a passear estes meus amigos, Mr. Smith e o padre Brown.
- Com certeza. Eles que venham - concordou Bankes entusiasmado.
- Muito obrigado - agradeceu o sacerdote -, mas lamento não poder aceitar. Daqui a poucos minutos tenho de ir dar a bênção do Santíssimo.
- Então Mr. Smith é o homem que procura - declarou Carver, deixando transparecer uma certa impaciência na voz. - Estou certo de que Smith está desejoso por ir dar um passeio de automóvel.

1 Jogo de palavras com o nome Moonshine (luar), apelido do célebre ladrão, personagem implicada na história. (N. da T.)

O sujeito em causa, exibindo um sorriso rasgado, não dava, no entanto, mostras de desejar o que quer que fosse. Tratava-se de um homenzinho activo, já de certa idade, com uma dessas perucas tão pouco naturais como um chapéu, e de um tom amarelado que não condizia nada com a sua tez.
- Lembro-me de ter feito esta estrada numa maquineta dessas há dez anos atrás - disse ele, meneando a cabeça com firmeza. - Tinha ido visitar a minha irmã. Desde então nunca mais voltei a percorrer este caminho de carro. Mas garanto-lhe que foi uma viagem difícil.
- Há dez anos! - observou John Bankes desdenhoso. - Há dois mil as pessoas andavam de carro de bois. Pensa que os automóveis não mudaram em dez anos? E as estradas? No meu carro nem se dá pelo girar das rodas, até parece que vamos a voar.
- Tenho a certeza de que Smith há-de gostar disso - atalhou Carver. - O sonho da vida dele é voar. Vá, Smith, vá até Holmga-te visitar a sua irmã. Lembre-se que até precisa de ir vê-la. Se quiser pode lá ficar esta noite.
- Bem, como eu geralmente vou a pé, acabo por passar lá a noite - disse o velho Smith. - Não é preciso estar a incomodar este senhor.
- Mas lembre-se como a sua irmã se havia de divertir ao vê-lo chegar de automóvel! - insistiu Carver. - Eu acho que você devia ir. Não seja tão tímido.
- Pois é, não seja tímido - apoiou Bankes com benevolência. - Olhe que não lhe acontece nada. Está com medo, é?
- Bem, não pretendo ser tímido, nem estou com medo - disse Mr. Smith pestanejando -, e já que põe as coisas nesses termos, então vou mesmo consigo.
E lá partiram os dois no meio de muitos acenos que, de certo modo, pareciam dar àquele pequeno grupo a aparência de uma multidão que se despedia. No entanto, Devine e o padre participaram apenas por mera cortesia, convencidos de que era o gesto dominante do seu anfitrião que lhe conferia o ar de um adeus, pormenor que lhes transmitiu uma curiosa sensação da força persuasiva da personalidade daquele homem.
No momento em que o carro desapareceu ao longe, o dono da casa voltou-se para eles como quem se desculpa e exclamou:
- Que alívio!
Disse isto com aquele tipo de franqueza que constitui o reverso da hospitalidade. Esta excassa jovialidade levou-os a pensar que ele estava a mandá-los embora, e Devine apressou-se então a fazer as despedidas:
- Bom, tenho de me ir embora. Não devemos interromper o trabalho das abelhas. Percebo muito pouco de abelhas, nem sequer consigo distingui-las das vespas.
- Também já tenho apanhado vespas - observou o misterioso Mr. Carver.
Quando já tinha percorrido alguns metros, Devine, que caminhava pela estrada abaixo acompanhado do padre Brown, voltou-se impulsivamente para o seu companheiro e observou:
- Que cena tão esquisita, não acha?
- Sim, realmente foi. E que lhe pareceu a si tudo isto? - indagou o padre.
Devine olhou para o homenzinho vestido de negro e houve algo na forma como o outro o fitava com os seus grandes olhos cinzentos que lhe deu nova coragem.
- Pareceu-me que Carver estava ansioso por ficar sozinho em casa esta noite. Não sei se também ficou com essa impressão.
- Eu cá tenho as minhas suspeitas - replicou o padre -, no entanto, não tenho a certeza se serão as mesmas do senhor.
Nessa noite, quando o crepúsculo deu lugar à escuridão, que ia envolvendo os jardins da família, Opal Bankes vagueava pelos quartos vazios e soturnos com um ar ainda mais ausente do que era habitual, e quem a olhasse de perto havia de notar que a sua palidez parecia mais acentuada. Apesar do luxo burguês com que estava decorada, a casa apresentava, no seu todo, um aspecto geral de melancolia. Tudo ali deixava transparecer aquela espécie de tristeza que normalmente se desprende dos objectos que são mais velhos que antigos. Podia dizer-se que a sua decoração era de um estilo ultrapassado sem, no entanto, ter direito a pertencer à história, com objectos demasiado recentes para poderem ser reconhecidos como mortos. Aqui e ali viam-se vidraças coloridas, características do primeiro período victoriano, por onde se escoava a luz crepuscular. Os tectos altos faziam que os quartos compridos parecessem ainda mais estreitos. No extremo do compartimento onde Opal se encontrava via-se uma daquelas janelas redondas, que é vulgar encontrar nas casas dessa época. Quando se aproximou do meio do aposento estacou e, em seguida, vacilou ligeiramente, como se uma mão invisível lhe tivesse dado uma bofetada.
Dali a pouco ouviu-se bater na entrada principal da casa, sendo o barulho das pancadas abafado pelas diversas portas fechadas. Opal sabia que os outros habitantes da casa se encontravam nos andares superiores, mas não conseguiu analisar o motivo que a levou a encaminhar-se para a porta da entrada. Ao abri-la deparou-se com uma figura baixa e atarracada, toda vestida de preto, que imediatamente reconheceu como sendo o padre católico romano chamado Brown. Conhecia-o apenas vagamente, mas gostava dele. Ele não encorajava as suas visões sobrenaturais; pelo contrário, desencorajava-as, mas fazia-o como se elas tivessem de facto importância e não como se se tratasse de meras banalidades. Não era uma questão de se mostrar indiferente às suas opiniões, pois até a ouvia, só que não concordava com ela. Tudo isto se lhe apresentava ao espírito de uma forma caótica quando, antes sequer de cumprimentar o sacerdote ou de lhe dar tempo a dizer ao que vinha, lhe declarou;
- Ainda bem que aqui está. Acabei de ver um fantasma.
- Não se preocupe - respondeu o padre Brown. - Isso acontece com frequência. A maior parte deles não são fantasmas e os poucos que o são não lhe farão mal nenhum. Mas era algum fantasma em particular?
- Não - admitiu a rapariga, dando mostras de um vago sentimento de alívio -, não foi propriamente a coisa em si, mas o ar de decadência horrível, uma espécie de ruína. Era um rosto. Um rosto na janela, pálido e de olhos arregalados. Parecia a cara de Judas.
- Bom, há pessoas assim - observou o padre -, e por vezes espreitam pelas janelas. Posso entrar para ver onde é que isso aconteceu?
Quando ela voltou à sala com o visitante, já ali se encontravam outros membros da família, e alguém de entre eles, menos dado a fenómenos sobrenaturais, tinha-se lembrado entretanto de acender as luzes. Ao ver-se na presença de Mrs. Bankes, o padre Brown assumiu um ar mais convencional e pediu desculpas pela sua intromissão.
- Receio estar a cometer um certo abuso em relação à sua casa, Mrs. Bankes - disse o sacerdote. - No entanto tentarei explicar-lhe até que ponto este assunto tem a ver consigo. Estava eu em casa dos Pulman quando me telefonaram a pedir que viesse até cá, para me encontrar com um indivíduo que aqui virá também para lhes comunicar algo do vosso interesse. Não me teria integrado no grupo se tal não me tivesse sido pedido, uma vez que testemunhei o que aconteceu em Beechwood. Na verdade, fui eu que dei o alarme.
- Mas que aconteceu? - indagou Mrs. Bankes.
- Houve um assalto - respondeu o padre Brown com ar grave. - E o pior é que as jóias de Lady Pulman desapareceram e o seu infeliz secretário, Mr. Barnard, foi encontrado no jardim, abatido a tiro pelo ladrão em fuga.
- Esse homem - exclamou a dona de casa -, e eu a pensar que ele era... - preparava-se para concluir a frase, mas o seu olhar cruzou-se com o do sacerdote e não acabou de dizer o que queria, sem, no entanto, saber o motivo que a levara a calar-se.
- Comuniquei o facto à polícia - continuou o padre - e a outras autoridades interessadas no assunto, e todos são unânimes em considerar que mesmo um exame superficial revela que tanto as pegadas como as impressões digitais pertencem a um conhecido criminoso.
Nesta altura, a conversa foi interrompida pela entrada de John Bankes que regressava da sua gorada expedição de carro. Ao que parecia, afinal de contas o velho Smith revelara-se um fracasso na qualidade de passageiro.
- Acabou por desistir à última da hora - anunciou com evidente desagrado. - Pôs-se a andar enquanto eu verificava se tinha um furo num - pneu. Foi a última vez que levei um labrego no meu carro...
Porém, as suas queixas pouca atenção receberam no meio da excitação provocada pelas novas trazidas pelo padre Brown.
- Há uma pessoa que irá chegar, não tarda, e que me irá aliviar desta responsabilidade - prosseguiu o sacerdote com o mesmo ar reservado. -Depois de o apresentar a todos, darei por cumprida a minha tarefa como testemunha neste caso tão grave. Só me resta dizer que uma das criadas da mansão Beechwood afirmou ter visto um rosto através da janela...
- Eu também vi uma cara a espreitar numa janela cá de casa
- declarou Opal.
- Mas tu estás sempre a ver caras por todo o lado - resmungou John.
- É o mesmo que ver factos, embora se trate apenas de rostos
- disse o padre Brown. - E creio que o rosto que viu...
O barulho das pancadas na porta ressoou por toda a casa e dali a pouco surgiu na sala um novo visitante. Devine quase saltou da cadeira ao vê-lo.
Tratava-se de um indivíduo alto e muito direito, de rosto longo e cadavérico e queixo largo. Tinha uma fronte bastante calva e uns olhos muito azuis e brilhantes, olhos esses que da última vez que Devine os vira, se achavam obscurecidos pela sombra da aba larga de um chapéu de palha.
- Por favor, não se incomodem, deixem-se estar - pediu o sujeito de nome Carver, com cortesia. Mas para o espírito conturbado de Devine, aquela delicadeza apresentava uma semelhança extraordinária com a atitude de um meliante que domina um grupo de pessoas, apontando-lhes uma pistola.
- Faça o favor de se sentar, Mr. Devine - disse Carver. - E se Mr. Bankes me dá licença seguirei o seu exemplo. A minha presença aqui necessita de uma explicação. Quase apostaria que todos vós suspeitáveis de mim, como sendo um famoso ladrão.
- De facto assim pensava - admitiu Devine.
- Como o senhor mesmo afirmou - lembrou Carver -, nem sempre é fácil distinguir uma vespa de uma abelha. - E depois de uma pausa prosseguiu: - Quanto a mim, posso afirmar que sou um dos insectos mais úteis que existem, embora bastante incómodos. Sou detective e fui encarregado de investigar o suposto reacender das actividades de um conhecido criminoso que dá pelo nome de Michael Moonshine. A sua especialidade era o furto de jóias. Ora deu-se justamente um roubo na mansão Beech wood, o qual se provou, graças aos testes técnicos levados a efeito, ter sido obra desse homem. As impressões digitais coincidem e, além disso, há a questão do disfarce. Como provavelmente devem saber, no momento em que foi preso ele usava um disfarce - uma barba postiça ruiva e um par de óculos de grandes aros de osso.
Opal Bankes, que o ouvia com toda a atenção, exclamou muito excitada:
- É isso. Foi um rosto assim que eu vi através dos vidros. Tinha uns óculos enormes e uma barba ruiva, como Judas. Até pensei que era um fantasma.
- Foi o mesmo fantasma que a criada da mansão viu - concluiu Carver. Colocou alguns papéis e pacotes em cima da mesa e começou a desembrulhá-los cuidadosamente. - Como já disse, fui encarregado de fazer alguns inquéritos acerca dos planos criminosos desse tal Moonshine. Foi por essa razão que me mostrei interessado pela apicultura e me fui instalar na casa de Mr. Smith.
Fez-se silêncio e dali a pouco Devine observou:
- Não está com certeza a insinuar que aquele velhote tão simpático...
- Francamente, Mr. Devine - interveio Carver com um sorriso -, quer dizer que aquele sítio era um bom esconderijo para mim, no caso de ser eu o criminoso, mas não para ele.
Devine acenou com a cabeça e o detective regressou aos seus papéis.
- Como eu suspeitava de Smith, queria afastá-lo do caminho, para poder fazer uma busca entre os seus pertences. Por isso aproveitei a gentileza de Mr. Bankes ao oferecer-se para ir dar um passeio de automóvel com ele. Durante essa busca que fiz em sua casa encontrei alguns objectos curiosos, que não é frequente encontrar-se entre as coisas de um inocente criador de abelhas. Eis um desses objectos.
Dizendo isto, tirou de dentro de um embrulho uma longa barba postiça de cor escarlate, do género das que são usadas no teatro. Junto dela encontrava-se um par de óculos de pesados aros de osso.
- Mas ainda encontrei outra coisa - prosseguiu Carver - trata-se de algo que diz mais directamente respeito a esta casa e que constitui o motivo da minha presença aqui. Encontrei um memorando com algumas notas e o registo do presumível valor de diversas peças de joalheria que se encontravam nas casas da vizinhança. Logo a seguir à referência à tiara de Lady Pulman, era mencionado o colar de esmeraldas pertencente a Mrs. Bankes.
A senhora em causa, que encarara a invasão da sua casa com um ar confuso e altivo, mostrou-se, de súbito, muito atenta às palavras do detective. O seu rosto parecia dez anos mais velho e a expressão tornou-se-lhe mais inteligente. Mas antes de conseguir pronunciar o que quer que fosse, já John se erguera de um salto, fazendo grande espalhafato.
- A tiara já se foi - rosnou ele -, e agora o colar... o melhor é eu ir ver se ele ainda lá está!
- Não é má ideia - observou Carver, enquanto o rapaz se precipitava para fora da sala -, apesar de termos estado de olhos bem abertos desde que aqui nos encontramos reunidos. Demorei um certo tempo a traduzir o memorando, que se encontrava escrito em código. O telefonema do padre Brown com a notícia do roubo chegou quando eu estava quase a chegar ao fim. Pedi-lhe então que viesse até cá o mais depressa possível para vos dar conta do que se passara e disse-lhe que eu próprio viria logo que pudesse. Sendo assim...
O seu discurso foi então interrompido por um grito. Opal estava agora de pé e apontava para a janela redonda.
- Ali está ele outra vez! - gritava ela.
E durante um breve instante todos viram algo - o suficiente para ilibar a jovem das acusações de ser mentirosa e histérica de que frequentemente era vítima. Em contraste com o vazio da escuridão nocturna, o rosto apresentava uma palidez muito acentuada ou talvez parecesse ainda mais branco por estar comprimido contra a vidraça. Os olhos grandes e desmesuradamente abertos, cercados pelos aros dos óculos, tornavam aquela cara semelhante a um peixe a espreitar pela vigia de um navio. Mas, neste caso, as barbatanas do peixe eram de um tom vermelho acobreado - tratava-se, na verdade, de umas patilhas ruivas e da parte superior de uma barba da mesma cor. O rosto não tardou a desaparecer.
Quando Devine acabava de dar um passo na direcção da janela ouviu-se um grito estridente que ressoou por toda a casa e pareceu abaná-la nos seus alicerces. Embora fosse demasiado ensurdecedor para se distinguirem as palavras, foi o suficiente para que o detective estacasse, consciente do que acontecera.
- O colar desapareceu! - bradou John Bankes, surgindo de rompante à porta da sala, para desaparecer de imediato, como um cão de caça no encalço da presa.
- O ladrão ainda agora ali estava a espreitar! - exclamou o detective, correndo para a porta, atrás de John, que entretanto já se encontrava no jardim.
- Cuidado - avisou a dona da casa -, eles costumam andar armados.
- Eu também estou armado - respondeu a voz do impetuoso John no meio da escuridão do jardim.
De facto, Devine reparara que o jovem brandia um revólver em ar de desafio e fazia votos para que não fosse obrigado a usá-lo. No momento em que isso lhe veio à ideia ouviu dois estampidos, como se um fosse a resposta ao outro, provocando uma série de ecos em cadeia que se propagaram através daquele jardim calmo de subúrbio. Depois estabeleceu-se um profundo silêncio.
- John morreu? - perguntou Opal com voz trémula.
O padre Brown, que se embrenhara na escuridão, e que, de costas voltadas para os outros, olhava para qualquer coisa no chão, respondeu-lhe:
- Não, foi o outro.
Carver aproximou-se dele e durante uns momentos os dois vultos, o alto e o baixo, impediram o resto do grupo de observar aquilo que a lua caprichosa lhes permitia ver. Depois, afastaram-se para o lado e os outros tiveram ocasião de observar a figura pequena e magra contorcida no chão, como se tivesse ficado assim depois de travar a sua derradeira luta. A barba falsa estava espetada para o ar como que a desafiar os céus e a luz do luar reflectia-se nos óculos daquele homem que dava pelo nome de Moonshine (1).
- Mas que morte - murmurou o detective. - Depois de tantas aventuras quem havia de dizer que iria ser morto quase por acidente por um escriturário num jardim de uma casa de subúrbio.
O escriturário encarava o seu próprio triunfo de uma forma mais solene, mas com algum nervosismo.
- Fui obrigado a atirar - alegou, ofegante. - Lamento o que aconteceu, mas ele disparou sobre mim.
- É claro que terá de se proceder a um inquérito - observou Carver. - Mas penso que não precisa de se preocupar com isso. Há um revólver onde falta uma bala, caído ao lado dele e com certeza que não disparou depois de você o ter alvejado.
Nesta altura já se encontravam todos de novo na sala e o detective reunia os seus papéis, preparando-se para se ir embora. O padre Brown estava de pé em frente dele e olhava para a mesa numa atitude de grande concentração. De súbito, declarou:
- Mr. Carver, não há dúvida de que o senhor resolveu um caso assaz complicado de uma forma magistral. Sempre suspeitei da sua verdadeira profissão; no entanto, nunca imaginei que fosse capaz de ligar as coisas assim tão depressa... as abelhas, a barba, os óculos, o código, o colar e todas essas coisas.
- É sempre uma satisfação chegar vitorioso ao fim de mais um caso - desabafou o detective.
- Sim - concordou o padre Brown, sempre de olhos fitos na mesa. -Admiro muito isso. - E depois acrescentou, numa atitude de modéstia que quase parecia timidez: - No entanto sinto-me

1 Luar em português. (N. da T.)

na obrigação de ser honesto para consigo e de lhe confessar que não acredito numa palavra daquilo que disse.
Devine dobrou-se sobre a mesa numa atitude de súbito interesse.
- Não acredita então que foi Moonshine quem roubou?
- Eu sei que ele era ladrão, mas desta vez não foi ele o autor do roubo - declarou o padre Brown. - Tenho a certeza de que não veio cá nem foi à mansão no intuito de roubar, e também sei que não foi alvejado quando ia a fugir com as jóias. Onde é que elas estão, afinal?
- Devem estar onde é costume em casos destes - retorquiu Carver. - Ou as escondeu algures ou asentregou a um cúmplice. Isto não foi trabalho de um só homem. É claro que o meu pessoal já anda a passar uma busca ao jardim e a fazer avisos por toda a região.
- Talvez o cúmplice tenha roubado o colar enquanto Moonshine espreitava pela janela - sugeriu Mrs. Bankes.
- E por que razão é que Moonshine terá espreitado pela janela? -indagou o sacerdote. - Por que motivo é que ele quereria espreitar pela janela?
- E qual é a sua opinião? - perguntou John muito animado.
- Eu acho que ele nunca quis espreitar.
- Então por que é que o fez? - inquiriu Carver. - Parece-me que estas conjecturas não nos levam a nada. E afinal todos nós assistimos ao que se passou.
- Tenho presenciado muitas coisas nas quais não acreditava - replicou o padre Brown. - E você também, quer no palco, quer fora dele.
- Diga-nos uma coisa, padre Brown - pediu Devine num tom respeitoso -, por que razão é que não acredita no que os seus olhos vêem?
- Bom, vou tentar explicar-lhes - disse o padre. E prosseguiu: - Sabem quem eu sou e todos nós nos conhecemos. Não nos incomodamos uns aos outros e esforçamo-nos por ser amigos de todos os vizinhos. Mas não pensem que andamos cegos, que não sabemos nada. Preocupamo-nos com aquilo que nos diz respeito, mas conhecemos aqueles que nos rodeiam. Eu conhecia muito bem este homem que agora está morto. Era seu confessor e seu grande amigo e sabia, dentro da medida do possível, o que lhe ia no espírito quandoele hoje saiu daquele jardim. A sua mente assemelhava-se a um cortiço de vidro cheio de abelhas douradas. Posso garantir que o seu desejo de se reformar era sincero. Pertencia a esse grupo dos grandes penitentes que conseguem extrair mais frutos da penitência do que outras pessoas da virtude. Já vos disse que era seu confessor; no entanto era eu que ia ter com ele para me confortar. Fez-me bem conviver com um homem tão bom. E quando o vi ali, estendido no chão, sem vida, foi como se estranhas palavras pronunciadas outrora a seu respeito se repetissem aos meus ouvidos. E havia motivo para tal, pois se alguma vez um homem seguiu directamente para o céu, pode ter sido ele.
- Mas repare - interveio John Bankes com nervosismo - não nos podemos esquecer de que ele era um ladrão declarado.
- Claro, e só um homem como ele é que um dia ouviu a promessa: "Esta noite estarás comigo no Paraíso."
Ninguém parecia ser capaz de quebrar o silêncio que se seguiu àquelas palavras, até que Levine acabou, finalmente, por perguntar:
- Então como é que consegue explicar o que aconteceu? O sacerdote abanou a cabeça.
- De momento não consigo explicar nada - confessou. - Vislumbro uma ou duas coisas estranhas, mas não as entendo. Por enquanto, não tenho quai squer elementos que provem a inocência do homem, a não ser o próprio homem. Mas tenho a certeza de que estou dentro da razão.
Suspirou e estendeu a mão para o seu enorme chapéu preto. Nesse instante, ficou a olhar para a mesa com uma expressão diferente e a cabeça inclinada, como se um animal estranho tivesse saído de dentro da copa, num truque de ilusionismo. Os outros, porém, se olhassem para a mesa, apenas veriam os documentos do detective, juntamente com os óculos e a barba postiça.
- Valha-nos Deus - murmurou o sacerdote. - Mas ele jaz lá fora com a barba e os óculos! -rodou bruscamente sobre os calcanhares e dirigiu-se a Devine: - Aqui tem um enigma para desvendar. Por que razão é que ele tinha duas barbas?
E, dizendo isto, encaminhou-se a toda a pressa para a saída, mas Devine, agora roído de curiosidade, seguiu-o até ao jardim.
- Por enquanto nada lhe poderei dizer - declarou o padre Brown. - Não tenho a certeza e estou preocupado com aquilo que devo fazer. Apareça amanhã, e talvez já lhe possa contar tudo. É possível que o caso esteja esclarecido nessa altura e... ouviu aquele barulho?
- Era um automóvel a arrancar - observou Devine.
- Parecia o carro de Mr. John Bankes. Creio que anda muito depressa.
- É o que ele diz - disse Devine com um sorriso.
- Irá longe e depressa, esta noite - declarou o padre.
- Que quer dizer com isso?
- Quero dizer que não voltará - retorquiu o sacerdote.-John Bankes suspeitou de que eu sabia alguma coisa. Partiu e levou consigo as esmeraldas e as outras jóias.
No dia seguinte, Devine foi encontrar o padre Brown a andar de um lado para o outro em frente das colmeias. Tinha um ar triste. mas sereno.
- Estive a contar às abelhas o que aconteceu - declarou.
Alguém tinha de lhes dizer! A "Obreiras sibilantes erguendo telhados de ouro." Que frase admirável! -e prosseguiu, num tom mais abrupto: - Ele gostaria que alguém ficasse a tomar conta destas abelhas.
- E penso que não será desejo dele descurar os seres humanos, quando até o próprio enxame arde de curiosidade - observou o jovem. - Tinha toda a razão ontem à noite quando afirmou que Bankes tinha partido com as jóias; no entanto, não faço ideia como é que descobriu isso, nem o que havia para descobrir.
O padre Brown olhou com ar benevolente para as colmeias e começou:
- Uma pessoa tropeça nas coisas, digamos assim, e houve uma logo ao princípio. Fiquei perplexo com a morte do pobre Barnard, em Beechwood House. Mesmo quando se achava no auge da sua carreira, Michael tinha um ponto de honra, que o enchia de vaidade: nunca precisara de matar ninguém. Parecia-me, pois, extraordinário que quando se tornara uma espécie de santo, decidisse sair do seu caminho para cometer um pecado que sempre condenara no tempo em que fora um pecador. O resto do caso intrigou-me até ao último pormenor: nada fazia sentido para mim, a não ser o facto de que tudo aquilo era falso. Por fim tive um rasgo de inteligência quando me deparei com aqueles óculos e a barba postiça em cima da mesa e me lembrei de que o ladrão estava disfarçado com os mesmos adereços. Claro que ele podia ter duplicados, mas parecia-me pelo menos coincidência o facto de não usar os antigos, quando estes se achavam em bom estado. No entanto também se podia pôr a hipótese de ter saído sem eles e ter sido por isso obrigado a arranjar outros óculos e outra barba. No entanto, isso não me parecia muito viável. Por outro lado, nada o obrigava a ir passear de automóvel com Bankes, e se na realidade tencionava praticar algum roubo podia facilmente levar os disfarces no bolso. Além disso, não se encontram barbas postiças por aí aos pontapés, pelo que lhe teria sido difícil obter essas coisas de um momento para o outro.
- Quanto mais pensava no assunto, mais estranha achava essa história de disfarces duplos. E, de repente, a verdade começou a surgir no meu espírito e obtive a certeza daquilo que já sabia por mero instinto. Quando saiu de carro com Bankes, Moonshine não tinha qualquer intenção de se disfarçar. Não utilizou sequer esses acessórios. Houve, sim, alguém que os conseguiu arranjar e depois lhos colocou.
- Lhos colocou, como? - indagou Devine. - Como é que isso é possível?
- Voltemos atrás e vejamos as coisas através de uma outra janela. A janela através da qual a jovem viu um fantasma - sugeriu o padre Brown.
- O fantasma! - exclamou o outro com um ligeiro estremecimento.
- Foi assim que ela lhe chamou - replicou o sacerdote. - E se calhar não estava muito longe da verdade. De facto ela é aquilo a que chamam vidente e o seu único erro é pensar que ser vidente é ser espiritual. Há animais que também possuem este dom. De qualquer modo, ela é sensível e estava certa quando pressentiu que aquele rosto na janela tinha uma espécie de halo horrível que lembrava a morte.
- Quer dizer...? - adiantou Devine.
- Quero dizer que se tratava realmente de um homem morto, esse que foi visto a espreitar pelas janelas das casas. É tétrico, não é? No entanto tratava-se, de certo modo, do inverso de um fantasma, pois não era a alma liberta de um corpo, mas sim o corpo liberto da alma.
Brown olhou de novo para os cortiços e prosseguiu:
- Em todo o caso, penso que a explicação mais simples consiste em expor os factos do ponto de vista do culpado. Conhece-o sem dúvida: é John Bankes.
- Era a última pessoa de quem eu suspeitaria - confessou Devine.
- Pois foi ele o primeiro de quem suspeitei, tanto quanto me era permitido suspeitar de alguém. Não há tipos nem actividades sociais que possamos considerar bons ou maus, meu caro. Qualquer pessoa se pode tornar num assassino como John; qualquer indivíduo, até o mesmo homem, pode ser um santo, como o pobre do Michael. No entanto, há um tipo de indivíduos que, em certas ocasiões, tendem a mostrar-se mais ímpios que outros: são os homens de negócios. Estes seres desumanos não possuem ideais sociais e muito menos religião, além de não terem as tradições do verdadeiro gentleman nem a consciência de classe que caracteriza os sindicalistas. O alarde que John fazia, vangloriando-se de ter conseguido bons negócios, era afinal a confissão de que enganara alguém. A forma como troçava das pobres tentativas de misticismo da irmã era detestável. Embora o misticismo da rapariga fosse um disparate, o que ele odiava era o espiritualismo, apenas por se tratar de espiritualidade. De qualquer modo, não restam dúvidas de que foi ele o mau da fita e o único interesse que o dominava reside num aspecto original de vilania. O motivo do crime pode considerar-se novo e único. Consistia em utilizar o cadáver como um elemento do cenário, uma espécie de boneco ou fantoche hediondo. Inicialmente concebeu um plano para matar Michael no carro e depois levá-lo para casa e fingir que o eliminara no jardim. Mas todos os retoques de fantasia surgiram com naturalidade a partir do facto fundamental: ter à sua disposição, num carro fechado, à noite, o cadáver de um ladrão reconhecido e reconhecível. Podia utilizar as suas impressões digitais e a marca das suas pegadas, podia encostar aquele rosto familiar às vidraças e fazê-lo desaparecer. Lembre-se de que Moonshine apareceu ostensivamente à janela e voltou a desaparecer no momento em que Bankes se ausentara da sala com o pretexto de ir procurar o colar de esmeraldas.
- Finalmente, só lhe restava colocar o cadáver no relvado e disparar um tiro de cada pistola. Talvez nunca viesse a ser desmascarado, se não fosse a questão das duas barbas.
- E por que razão é que o seu amigo Michael terá conservado a antiga barba postiça? Não é estranho? - indagou Devine, pensativo.
- Para mim, que o conhecia bem, não me faz qualquer espécie - replicou o padre Brown. - Toda a sua atitude se assemelhava a essa barba. Não tinha qualquer intenção de usá-la como disfarce. Já não ia precisar desse acessório; no entanto, tinha medo dele. Considerava uma falsidade destruir a sua barba falsa: era como se estivesse a esconder-se, e ele não pretendia isso. Moonshine não andava a esconder-se nem de Deus, nem de si próprio. Vivia em plena luz do dia e mesmo que voltassem a encerrá-lo na prisão continuaria a sentir-se feliz. Não tinha sido caiado de branco por fora, mas totalmente purificado. Havia nele algo de muito estranho, quase tão estranho como a grotesca dança da morte para a qual o arrastaram depois de morrer. Quando se movia de um lado para o outro, a sorrir, por entre os cortiços, já não vivia, achava-se isento em relação à possibilidade de ser julgado neste mundo.
Fez-se silêncio, até que Devine encolheu os ombros e observou:
- Voltamos àquela questão da semelhança entre as abelhas e as vespas deste mundo, não é verdade?

CAPÍTULO III
A CANÇÃO DOS PEIXES VOADORES

A alma de Mr. Peregrine pairava como uma mosca, rondando em torno de um gracejo e de um objecto que lhe pertencia. Podia considerar-se uma piada sem graça, pois consistia apenas em perguntar às pessoas se já conheciam os seus peixinhos dourados. Também poderíamos dizer que se tratava de uma piada cara, mas não se sabe se ele não estaria secretamente mais ligado à piada que ao preço que ela custava. Quando conversava com os vizinhos que moravam no pequeno bairro de casas novas que se haviam erguido em torno do relvado da velha aldeia, não perdia tempo em conduzir a conversa para o seu tema preferido. Com o Dr. Burdock, um eminente biólogo de queixo largo e cabelo cortado em escova, como um alemão, Mr. Smart não tinha dificuldade em abordar o assunto:
- A propósito, uma vez que se interessa por história natural, não gostaria de ver os meus peixinhos dourados?
Para um evolucionista ortodoxo como o Dr. Burdock, era indubitável que a natureza constituía um todo indiscutivelmente digno de interesse, mas assim, à primeira vista, não estava a perceber qual o elo de ligação entre uma coisa e outra, visto ser um especialista que se dedicara inteiramente ao estudo da ascendência primitiva da girafa.
Em relação ao padre Brown, pároco de uma igreja da cidade mais próxima, seguiu um fio de pensamento ao longo do qual abordou os temas de "Roma; S. Pedro; o pescador; os peixes; os peixinhos dourados." Conversando com Mr. Imlack Smith, o gerente do banco, um indivíduo magro e pálido, que vestia comn elegância e tinha modos discretos, puxou a conversa de uma forma abrupta, fazendo referência ao padrão ouro, o que distava apenas um passo do tema dos peixinhos dourados. Ao falar com o brilhante erudito e viajante oriental, o conde Yves De Lara (o título era francês e a aparência russa, para não dizer tártara), o versátil conversador revelou um interesse profundo e inteligente pelo Ganges e pelo
oceano Índico, o que conduziu naturalmente à possível hipótese da existência de peixinhos dourados naquelas águas. Quanto a Mr. Harry Hartopp, cavalheiro muito rico e não menos tímido e calado, que ali chegara recentemente vindo de Londres, conseguiu extorquir a informação de que este jovem inibido não se interessava pela pesca e apressou-se a perguntar:
- E por faiar em pesca, já viu os meus peixinhos dourados?
O pormenor peculiar destes peixes era o facto de serem de ouro. Faziam parte de um brinquedo excêntrico e caro, que havia sido mandado fazer, ao que constava, por um príncipe qualquer do Oriente e que Mr. Smart arranjara num leilão ou numa dessas lojas de bric-à-brac que costumava visitar, com o objectivo de encher a sua casa de peças raras e inúteis. Visto da outra extremidade da sala, o tal brinquedo fazia lembrar uma taça de grandes dimensões, contendo vários peixes vivos igualmente grandes. No entanto, uma inspecção mais minuciosa revelava um enorme globo de vidro veneziano, muito fino e iridiscente, matizado com delicados tons, em cujo crepúsculo colorido pairavam vários peixinhos dourados de grandes olhos de rubis. O objecto, no seu conjunto, era sem dúvida bastante valioso, não só pelo material de que era feito, mas também graças às ondas de loucura que costumam varrer o mundo dos coleccionadores. O novo secretário de Mr. Smart, um jovem de nome Francis Boyle, embora irlandês e, como tal, pouco preocupado em tomar medidas de precaução, ficou surpreendido ao ouvi-lo falar abertamente das jóias da sua colecção ao grupo de indivíduos, por assim dizer pessoas estranhas, que haviam assentado arraiais na vizinhança de uma forma algo nómada, atendendo sobretudo ao facto de os coleccionadores serem geralmente vigilantes e até reservados. Ao iniciar as suas novas funções, Mr. Boyle apercebeu-se de que não era o único a pensar assim e que os sentimentos dos outros em relação a isso iam desde o pasmo relativo até à atitude de profunda desaprovação.
- Admiro-me por ainda não lhe terem cortado o pescoço - observou Harris, o criado de Mr. Smart, deixando transparecer uma hipotética satisfação, como se tivesse dito num sentido puramente artístico: "Que pena!"
- É extraordinário como ele se mostra desleixado com as coisas - observou Jameson, chefe da contabilidade de Mr. Smart, que se deslocara do escritório para prestar assistência ao novo secretário -, e é que ninguém o convence a pôr essas malditas trancas na porta.
- Em relação ao padre Brown e ao médico não há problema - disse a governanta de Mr. Smart, com a energia que lhe era habitual, sempre que expressava uma opinião -, mas quando se trata de pessoas estranhas acho que se está a tentar a providência. Não me refiro só ao conde. Aquele sujeito do banco, quanto a mim, tem uma pele muito amarela para ser inglês.
- Bem, o jovem Hartopp é suficientemente inglês, a ponto de nada ter a dizer a seu favor - observou Boyle, trocista.
- Mais tempo tem para pensar - sentenciou a governanta. - Pode não ser estrangeiro, mas não deve ser tão tolo como parece. Cá para mim os estrangeiros não merecem confiança - concluiu com ar grave.
A sua opinião reforçar-se-ia se tivesse escutado a conversa que tivera lugar na sala no patrão naquela tarde e cujo tema versava os peixinhos dourados, embora o ofensivo estrangeiro tendesse cada vez mais a tornar-se na figura central. Não é que falasse muito, mas até nos seus silêncios havia algo de positivo. Apresentava um aspecto mais imponente do que o habitual, talvez por se encontrar sentado em cima de um monte de almofadas e, visto assim, ao crepúsculo cada vez mais acentuado, o seu rosto de mongol, parecia brilhar como uma grande lua. Talvez o cenário contribuísse para lhe conferir ao semblante e ao aspecto geral um ar asiático, pois a sala era um amontoado de curiosidades de todos os preços, entre as quais se contava um sem número de armas orientais de lâminas curvas e cores quentes, cachimbos e recipientes, instrumentos musicais e manuscritos enfeitados com iluminuras, tudo proveniente dessas regiões asiáticas. À medida que a conversa avançava, mais semelhanças Boyle encontrava entre o homem sentado nas almofadas, visto à luz crepuscular e os contornos de uma estátua de Buda.
A conversa generalizara-se, pois estava ali presente o pequeno grupo habitual. Tinham criado o hábito de se visitarem mutuamente e nesta altura já constituíam uma espécie de clube, formado pelas pessoas que viviam nas quatro ou cinco casas situadas em redor do campo relvado da aldeia. De todas as moradias, a mais antiga era a de Peregrine Smart, para além de ser a maior e a mais pitoresca. Ocupava praticamente um dos lados da praça, deixando apenas espaço suficiente para uma pequena vivenda, habitada por um coronel reformado de nome Varney, inválido, segundo constava, que nunca saía à rua. Em ângulo recto com elas havia duas ou três lojas, que satisfaziam as necessidades mais simples dos habitantes do povoado, e à esquina ficava a estalagem do Dragão Azul, onde Mr. Hartopp, o forasteiro de Londres, estava hospedado. Do lado oposto ficavam três casas, uma arrendada pelo conde De Lara, outra pelo Dr. Burdock, encontrando-se a terceira desabitada. No quarto lado da praça situava-se o Banco, com uma casa de habitação anexa para o gerente e ainda uma cerca que rodeava um terreno destinado à construção. Tratava-se, pois, de um grupo muito limitado, e o vazio relativo dos campos em redor da aldeia atraía os seus membros para um convívio cada vez mais estreito. Nessa tarde, porém, um forasteiro viera quebrar o círculo mágico. Tratava-se de um sujeito de rosto duro, sobrancelhas e bigode hirsutos e andrajosamente vestido que devia ser um milionário ou um duque se viera, como afirmava, para negociar com o velho coleccionador. Todavia, pelo menos na estalagem do Dragão Azul, era conhecido por Mr. Harmer.
Como não podia deixar de ser, já lhe haviam falado das glórias dos peixinhos dourados e já ouvira as críticas relativamente à falta de cuidado com que aqueles eram guardados.
- Toda a gente me diz que eu devia guardá-los melhor - observou Mr. Smart, olhando por cima do ombro para o empregado que lhe viera trazer uns papéis do escritório. Smart era um velho baixo e gordo, de rosto redondo, fazendo lembrar um papagaio de cabeça depenada.
- Jameson, Harris e os outros empregados passam a vida a dizer-me que ponha trancas nas portas, como se isto fosse alguma fortaleza medieval. Se bem que essas barras de ferro ferrugento sejam de facto suficientemente medievais para impedir seja quem for de entrar. Cá por mim, prefiro confiar na sorte e na polícia local.
- As trancas mais fortes nem sempre impedem as pessoas de entrar - observou o conde. - Tudo depende de quem pretende fazê-lo. Havia um antigo ermita hindu que vivia nu numa caverna e conseguiu passar através de três exércitos que cercavam o rei, para roubar o rubi que enfeitava o turbante do tirano, tendo-se depois esgueirado como uma sombra, sem niguém dar por ele. Quis assim ensinar aos poderosos quão frágeis são as leis do espaço e do tempo.
- Ao estudarmos as leis de espaço e de tempo - resmungou o Dr. Burdock -, normalmente descobrimos como se fazem esses truques. A ciência ocidental conseguiu explicar uma grande parte da magia do Oriente. É evidente que muitas dessas coisas se devem ao hipnotismo e ao poder de sugestão, para não falar da prestidigitação.
- O rubi não se encontrava na tenda real - observou o conde, com o ar sonhador que lhe era habitual -, teve de o descobrir entre cem tendas.
- Mas isso não poderá ser explicado pela telepatia? - indagou o médico, em tom incisivo.
A pergunta pareceu ainda mais seca devido ao silêncio pesado que se lhe seguiu, como se o distinto viajante das terras do Oriente, num gesto indelicado, tivesse adormecido.
- Queiram desculpar - disse ele, levantando-se com um sorriso.- Esqueci-me de que estávamos a falar por meio de palavras. No Oriente comunicamos através do pensamento e por isso nunca há mal-entendidos. É estranho como todos vocês adoram palavras e se satisfazem com elas. Que diferença fará um facto a que agora chamam telepatia e dantes chamavam parvoíce? Se um homem trepa ao céu por uma mangueira, que diferença fará afirmar que se trata de levitação em lugar de se dizer que não passa de uma aldrabice? Se uma feiticeira medieval agitasse uma varinha e me transformasse num babuíno azul, diria que se tratava de um simples atavismo.
O médico fez uma expressão como se estivesse a preparar-se para declarar que a mudança não teria sido assim tão grande, mas antes de conseguir expressar a sua irritação, dessa ou de outra forma, o homem chamado Harmer interveio bruscamente:
- É verdade que estes prestidigitadores indianos conseguem fazer coisas estranhas, mas tenho verificado que apenas o conseguem na índia. Talvez graças aos seus acólitos ou então devido a um fenómeno de psicologia colectiva. Não creio que esses truques tenham sido alguma vez tentados numa aldeia inglesa e julgo poder afirmar que os peixes dourados do nosso amigo não correm qualquer perigo.
- Vou contar-lhes uma história - anunciou De Lara no seu tom de voz indolente - que não ocorreu na índia, mas junto de um quartel inglês, na zona mais moderna do Cairo. Estava uma sentinela no interior do recinto da parada a olhar para a rua por entre as grades. Foi então que surgiu do lado de fora um mendigo andrajoso e de pés descalços, que lhe pediu num inglês correctíssimo, que o deixasse ir buscar um documento oficial que se achava guardado no cofre. O soldado respondeu-lhe, é claro, que não o podia deixar entrar lá dentro e o outro perguntou-lhe a rir: "Que é estar do lado de dentro e do lado de fora?"
O soldado sorria ainda com ar trocista, quando se apercebeu de que, embora não se tivesse mexido do sítio onde estava, se encontrava agora na rua a olhar para a parada do quartel, onde o mendigo se achava imóvel e sorridente. Depois, ao ver o mendigo voltar as costas e dirigir-se para o edifício, a sentinela despertou e gritou para os companheiros que se encontravam no interior, avisando-os que o prendessem. "Não vais conseguir sair daí de dentro", ameaçou ele, vingativo, e o mendigo respondeu-lhe com a sua voz metálica: "Que é estar do lado de dentro e do lado de fora?" E o soldado, sempre a olhar através das mesmas barras, voltou a reparar que estas o separavam novamente da rua, onde o mendigo, agora livre e sorridente, o olhava, ostentando um papel na mão.
Mr. Imlack Smith, o gerente do banco, de cabeça baixa, fitava o tapete, quando falou pela primeira vez:
- E aconteceu alguma coisa ao documento? - inquiriu.
- Os seus instintos profissionais estão correctos, meu caro - observou o conde, com afabilidade. -Tratava-se de um documento de considerável importância financeira e as consequências que daí advieram repercutiram-se a nível internacional.
- Espero que tais ocorrências não sejam frequentes - disse o jovem Hartopp.
- Não estou a referir-me ao aspecto político da questão - explicou o conde, - mas sim ao aspecto filosófico. O que acabo de contar ilustra como os homens sábios conseguem dominar o espaço e o tempo e accionar as alavancas de comando, por assim dizer, de tal forma que o mundo inteiro se inverte perante os nossos olhos. Mas, afinal, é tão difícil para todos vós acreditar que o poder espiritual é muito superior ao material.
- Bem, de facto não me considero uma autoridade em matéria de poderes espirituais - observou Smart, prazenteiro. - E que pensa disto, padre Brown?
- A única coisa que me faz confusão - retorquiu o sacerdote - é que todos os actos sobrenaturais de que até agora se tem falado parecem dizer respeito a roubos. Ora, roubar por meios espirituais é, quanto a mim, o mesmo que fazê-lo por meios materiais.
- O padre Brown é um filisteu - comentou Smith, sorridente.
- Tenho simpatia pela tribo - admitiu o sacerdote. - Um filisteu é apenas um homem que tem razão sem saber porquê.
- Tudo isto é demasiado subtil para mim - declarou Hartopp, animado.
- Talvez preferisse falar sem palavras, como o conde há pouco sugeriu - aventou o padre Brown sorridente. - Ele começaria por não dizer nada de concreto e você responder-lhe-ia com um acesso de mutismo.
- Há coisas que podem ser resolvidas através da música - murmurou o conde, sonhador. - Seria bem melhor que todas essas palavras.
- Sim, por música já eu compreendia - assentiu o jovem em voz baixa.
Boyle seguira o fio da conversa com atenção e curiosidade, pois notou algo significativo e até estranho na atitude de alguns dos interlocutores. Quando a conversa enveredou pela música, com especial agrado do elegante gerente bancário (que era um músico amador de certo mérito), o jovem secretário lembrou-se subitamente das suas obrigações profissionais e lembrou ao patrão que o chefe da contabilidade continuava a aguardar pacientemente, com os documentos na mão.
- Deixe lá isso agora Jameson - disse Smart com precipitação. - Apenas uma coisa sobre a minha conta, mas falarei mais tarde com Mr. Smith. Dizia que o violoncelo, Mr. Smith...
No entanto, a aragem fria dos negócios bastara para dispersar os fumos da conversa transcendental e os convidados começaram gradualmente a despedir-se. Só Mr. Imlack Smith, o gerente do banco e músico, permaneceu até ao fim. Depois, quando os outros partiram, ele e o seu anfitrião dirigiram-se à sala interior, onde estavam guardados os peixinhos dourados, e fecharam a porta.
A casa era longa e estreita, com uma varanda coberta que se estendia ao longo do primeiro andar, o qual consistia fundamentalmente num conjunto de aposentos utilizados pelo próprio dono da casa-oquarto de dormir, um quarto de vestir e uma sala interior onde o seu tesouro mais valioso era muitas vezes guardado durante a noite em vez de ficar no rés-do-chão. A varanda e a porta principal da casa (insuficientemente seguras) eram motivo de preocupação, quer para a governanta, quer para o chefe dos empregados e os outros que lamentavam o descuido do coleccionador. No entanto, aquele velho senhor era mais prudente do que parecia. Não tinha muita confiança nas antiquadas trancas da casa, que a governanta, cheia de pena, ia vendo encherem-se de ferrugem; no entanto, concentrava a sua atenção em pontos estratégicos que considerava mais importantes. Durante a noite, guardava sempre os seus queridos peixes dourados na sala interior que ficava junto do quarto onde dormia, nunca se esquecendo da pistola que conservava debaixo do travesseiro. E quando Boyle e Jameson, que entretanto aguardavam que ele terminasse o seu tête à tête, viram finalmente a porta abrir-se e o patrão aparecer, verificaram que este segurava a enorme esfera de vidro tão cautelosamente como se se tratasse da relíquia de um santo.
Lá fora, os últimos raios de sol poente ainda incidiam nos cantos da praça relvada, mas dentro de casa já haviam acendido as luzes e, assim, sob aquela luminosidade proveniente do Sol e das lâmpadas, o globo colorido cintilava como uma jóia monstruosa, enquanto os fantásticos contornos dos peixes pareciam conferir ao conjunto da peça o aspecto misterioso de um talismã, lembrando estranhas sombras vistas por um vidente na sua bola de cristal. Por cima do ombro do velho coleccionador, o rosto cor de azeitona de Imlack Smith ostentava uma expressão esfíngica.
- Parto esta noite para Londres, Mr. Boyle - declarou Mr. Smart com um ar mais grave do que era habitual. Eu e Mr. Smith iremos no comboio das seis e quarenta e cinco. Preferia que você dormisse esta noite no meu quarto, Jameson. Se puser a taça no quarto interior, como é costume, não haverá problema. Não é que eu esteja com receio que aconteça alguma coisa.
- Tudo pode acontecer de um momento para o outro e seja onde for-observou Mr. Smith sorridente. - Creio que costuma dormir com um revólver ao seu lado. O melhor é deixá-lo cá ficar.
Peregrine Smart não respondeu e saiu para a rua que contornava a praça, acompanhado pelo visitante.
De acordo com as ordens recebidas, o secretário e Jameson dormiram nessa noite no quarto do patrão. Para ser mais preciso, Jameson deitou-se no quarto de vestir, mas deixou ficar a porta de ligação aberta, transformando assim os aposentos praticamente num só. No quarto de dormir havia uma porta envidraçada que se abria para a varanda e uma outra, do lado oposto, que dava para
o quarto interior onde a taça dos peixes dourados havia sido colocada para maior segurança. Boyle arrastou a cama de forma a barricar esta última porta, meteu o revólver debaixo do travesseiro, despiu-se e deitou-se, convencido de que tinha tomado todas as precauções contra um impossível ou improvável evento. Não lhe parecia que houvesse perigo de um assalto normal, e quanto ao roubo de natureza espiritual, das histórias do conde De Lara, se dele se lembrou no momento em que estava prestes a adormecer era porque tudo isso era feito da mesma massa dos sonhos. E, com efeito, tais pensamentos não tardaram a converter-se em sonhos intercalados com alguns períodos de um leve torpor. O velho empregado da casa mostrava-se mais desperto que o habitual, mas depois de ter cirandado um pouco pelo quarto, sempre a repetir as mesmas lástimas e os mesmos avisos, acabou por se deitar e adormecer. Alua brilhou e tornou a desaparecer por cima da praça relvada e das casas cinzentas, envolvendo tudo em silêncio e solidão; e foi no momento que os primeiros alvores da madrugada rompiam por entre o céu carregado, que tudo aconteceu.
Sendo o mais novo dos dois, Boyle tinha o sono mais pesado. Embora fosse uma pessoa activa quando acordado, experimentava sempre uma grande dificuldade em despertar. Além disso, os seus sonhos eram do tipo pegajoso, que se fixavam na mente como os tentáculos de um polvo. Eram uma mistura de muitas coisas, incluindo a última visão que tivera do alto da varanda, das quatro estradas e do relvado da praça sobre a qual iam dar. No entanto, as imagens iam-se alterando e deslocando ao som de um estranho ranger, que mais parecia um barulho de um rio subterrâneo e que afinal poderia ser apenas Jameson a ressonar. No entanto, no espírito do sonhador todos aqueles murmúrios e movimentos se achavam vagamente relacionados com as palavras do conde De Lara acerca dessa tal sabedoria capaz de accionar as alavancas do espaço e do tempo, a ponto de subverter o mundo. E, de facto, no sonho era como se um mecanismo gigantesco e murmurante, colocado debaixo do chão, fosse capaz de mover toda a paisagem, fazendo aparecer os confins da Terra num simples jardim ou transportasse esse mesmo jardim até ao outro lado do mar.
As primeiras impressões de que teve consciência foram as palavras de uma canção acompanhada de uma música de sons agudos e metálicos. A voz que a cantava tinha um sotaque estrangeiro e parecia-lhe simultaneamente estranha e vagamente familiar. Também não tinha a certeza se não seria ele próprio que estava a criar aquele poema durante o sono.

Vinde peixes de ouro,
Voai sem parar,
Por cima da terra,
Através do mar. Não é deste mundo A minha canção Que os vai despertar. Mas...
Pôs-se de pé de um salto e viu que o seu companheiro já estava levantado; Jameson espreitava através da porta envidraçada que dava para a varanda, dirigindo-se em altos brados a alguém que presumivelmente se encontrava na rua.
- Mas que vem a ser isto? Que é que quer daqui? - e, dando mostras de grande agitação, voltou-se para Boyle, anunciando-lhe: - Está alguém lá fora a rondar. Eu bem dizia que isto não era seguro. Mesmo que digam que não serve de nada, vou lá abaixo trancar a porta.
Correu pela escada que levava ao rés-do-chão, e Boyle ouviu-o colocar as trancas na porta principal; dirigiu-se então para a varanda, e, olhando para a rua, julgou estar a sonhar.
Na estrada cinzenta que atravessava a zona pantanosa e conduzia à pequena aldeia, via-se uma criatura que parecia ali ter chegado vinda directamente da selva ou de um bazar oriental. Lembrava exactamente uma personagem de As Mil e Uma Noites. O crepúsculo cinzento e fantasmagórico que começava a definir e, simultaneamente, a descolorir tudo no momento em que a luz deixara de se localizar apenas a nascente, levantava-se com lentidão, como um véu de gaze, deixando a descoberto uma estranha figura envolta em vestes exóticas. Um grande e volumoso lenço azul marinho envolvia-lhe a cabeça como um turbante e depois o queixo, fazendo lembrar um autêntico capuz; o seu rosto parecia uma máscara. Uma das pontas do lenço tombava-lhe sobre a cara à laia de véu, e a cabeça inclinava-se sobre um estranho instrumento musical feito de prata ou de aço e com a forma de um violino torcido. Para o tocar, servia-se de uma espécie de pente de metal e os sons que dele se desprendiam eram curiosamente finos e penetrantes. Antes de Boyle ter conseguido abrir a boca, a mesma voz de sotaque estrangeiro voltou a brotar da sombra daquele estranho ser:
Assim como as aves de ouro Aos seus ramos irão dar, Vão os peixinhos dourados Aos meus braços regressar. Vinde...
- Não tem nada que estar aí - gritou Boyle exasperado, embora não percebesse nada do que o outro dizia.
- Ai isso é que tenho. Os peixes dourados são meus - respondeu o forasteiro num tom mais próprio do rei Salomão que de um beduíno andrajoso e de pé descalço. - E vão voltar para mim! Vinde!
Disse estas palavras ao mesmo tempo que começava a tanger o estranho violino, de onde se desprendeu um som de tal modo agudo que parecia perfurar a mente. Logo a seguir ouviu-se um outro, desta vez mais ténue, apenas um murmúrio, como que uma resposta ao primeiro, mas desta vez proveniente do quarto interior onde se encontrava a taça com os peixes de ouro.
Boyle voltou-se naquela direcção e, ao fazê-lo, percebeu que o eco ouvido no quarto interior se transformava num tinir prolongado, semelhante ao som de uma campainha eléctrica, logo seguido de um vago estilhaçar. Tinham decorrido apenas escassos segundos desde que ele interpelara o homem da varanda; no entanto, o velho empregado já vinha outra vez a chegar ao cimo das escadas, um pouco ofegante, visto tratar-se de um homem de idade.
- Bom, a porta já está trancada - declarou.
- Depois da casa roubada... (1) - observou Boyle, falando do quarto interior.
Jameson foi ter com ele, encontrando o secretário a olhar, muito espantado, para o chão onde se viam inúmeros bocados de vidro colorido, que mais pareciam bocados de arco-íris.
- Que quer dizer com isso? - indagou Jameson.
- Quero dizer que a casa já foi roubada - replicou Boyle. - Os peixinhos bateram as asas ao som dos assobios daquele tipo árabe, como verdadeiros cãezinhos amestrados.
- Mas como é que ele fez isso? - explodiu o velhote, indignado com tal acto.
- Como vê, eles desapareceram. O globo de vidro está feito em cacos e os peixes não estão cá. Não faço ideia como é que isto aconteceu, mas penso que devíamos perguntar ao nosso amigo.
- Estamos aqui a perder tempo - declarou Jameson. - O melhor é irmos já no seu encalço.
- Eu acho preferível telefonar à polícia - sugeriu Boyle. - Eles têm outros meios de o apanharem, bem mais rápidos que se formos nós atrás dele pela aldeia, assim, no meio da noite. No entanto, estou convencido de que há coisas que nem mesmo a polícia, com os carros e os rádios, vai conseguir resolver.

1 Referências ao ditado popular, segundo o qual: Casa roubada, trancas à porta. (N. da T.)

Enquanto Jameson ligava para a esquadra, falando num tom agitado, Boyle voltou a espreitar da varanda, perscrutando o horizonte envolto na luz cinzenta do amanhecer. Não se vislumbrava qualquer vestígio do homem de turbante, nem outros sinais de vida, para além de um ligeiro barulho, que um especialista identificaria como proveniente da estalagem do Dragão Azul. Naquele momento, Boyle reparou, pela primeira vez, de uma forma consciente, num pormenor que já antes notara inconscientemente. Foi como se um facto, submerso na mente, lutasse pelo direito ao seu significado. Na verdade, o cenário cinzento nunca fora inteiramente dessa cor - havia um ponto dourado, uma lâmpada acesa numa das casas que ficavam do lado oposto da praça. Algo, talvez irracional, lhe dizia que estivera acesa toda a noite, tornando-se agora mais ténue, com o raiar da alvorada. Contou as casas e, através dos seus cálculos, chegou a um resultado que lhe parecia condizer com qualquer coisa, não sabia bem o quê. De qualquer forma, tratava-se aparentemente da casa do conde Yvon De Lara.
O inspector Pinner chegara, acompanhado de vários homens, apressando-se a levar a efeito diversas diligências, de uma forma resoluta, consciente de que o elevado valor dos objectos desaparecidos justificaria uma grande projecção do caso nos jornais. Tendo medido e examinado tudo pormenorizadamente, registou os depoimentos, recolheu as impressões digitais de toda a gente, virou a casa de pernas para o ar e no fim viu-se perante um facto inacreditável: um árabe do deserto viera pela estrada fora até à residência de Mr. Peregrine Smart, onde se achava guardado um aquário com peixes artificiais de ouro. Ao chegar ali, cantara ou recitara um pequeno poema e a taça de vidro explodira, como uma bomba, tendo os peixes desaparecido como que por magia. Mas nem sequer a explicação dada pelo conde estrangeiro, numa voz suave e ronronada, segundo a qual os limites da experiência estavam a ser alargados, satisfez o inspector.
Na verdade, cada um dos membros do pequeno grupo reagiu à sua maneira. Peregrine Smart chegou de Londres na manhã seguinte, altura em que teve notícia da perda que sofrera. Naturalmente ficou abalado, mas era típico da sua personalidade, enérgica e prática, que lhe conferia ao rosto aquele aspecto de pássaro, mostrar-se mais interessado na investigação dos acontecimentos que deixar-se deprimir. O homem que dava pelo nome de Harmer e que viera até ali com o objectivo de comprar os peixes de ouro, tinha desculpa de se mostrar um pouco irritado ao perceber que eles não estavam à venda, pelo menos de momento. Mas, na verdade, o seu bigode, aliás bastante agressivo, e o seu franzir de sobrolho deixavam transparecer algo mais que o simples desapontamento, e os olhos, muito atentos às reacções do grupo, mostravam-se de tal modo vigilantes que quase era motivo para suspeita. O rosto
descorado do gerente do banco, que também viera de Londres, embora noutro comboio, parecia atrair cada vez mais o olhar do outro, como um íman. Ao contrário dos restantes membros do grupo, o padre Brown permanecia silencioso quando não se lhe dirigiam e Hartopp, confuso, mantinha-se calado, mesmo nos momentos em que devia falar.
No entanto, o conde não era pessoa para deixar passar o que quer que fosse, desde que isso lhe pudesse oferecer alguma vantagem em relação aos seus pontos de vista. Sorriu para o médico, seu rival racionalista, como quem sabe que é possível irritar com modos insinuantes.
- O doutor há-de concordar - dizia ele -, que pelo menos algumas das histórias que o senhor considera tão inverosímeis parecem ser hoje mais prováveis do que pareciam ontem. Quando um maltrapilho qualquer, do género daqueles que eu descrevi, é capaz de com uma simples palavra estilhaçar um sólido recipiente que se encontra fechado dentro de quatro paredes, estando ele lá fora, podemos afirmar que nos achamos perante um exemplo daquilo que eu tive ocasião de afirmar acerca dos poderes espirituais e das barreiras materiais.
- E também poderá servir de exemplo para o que eu disse sobre o facto de um pouco de conhecimento científico ser suficiente para mostrar como esses truques se fazem - retorquiu o médico.
- Acha que é mesmo capaz de lançar alguma luz científica sobre todo este mistério? - perguntou Smart, excitado.
- Sou capaz de lançar um pouco de luz sobre aquilo a que o conde chama um mistério, pois não se trata de mistério algum - afirmou o médico. - Parte da história até é muito fácil de explicar. Um som não é mais que uma onda de vibração e algumas vibrações conseguem partir vidro, desde que um e outro reúnam as características adequadas. O homem não se limitou a ficar ali na rua a pensar, como o conde nos pretende fazer crer. Pôs-se a cantar em voz bem alta e fez vibrar uma determinada nota no instrumento. E isto assemelha-se a inúmeras experiências por meio das quais foi possível partir vidro de uma composição especial.
- Tal como aconteceu com a experiência por meio da qual diversos peixes de ouro maciço deixaram subitamente de existir -
concluiu o conde.
- Mas aqui vem o inspector Pinner - interveio Boyle. - Creio que ele consideraria a explicação racional do doutor tão inadmissível como a versão sobrenatural do conde. Mr. Pinner é uma pessoa muito céptica, sobretudo em relação à minha pessoa. Estou convencido de que ele suspeita de mim.
- Julgo que todos nós somos suspeitos - atalhou o conde. Foi precisamente a existência desta suspeita que levou Boyle a
pedir a opinião do padre Brown. Passeavam ambos em redor da praça da aldeia, nesse mesmo dia, quando o sacerdote, que olhava pensativo para o chão enquanto escutava, estacou de repente.
- Já viu isto? - perguntou. -Alguém esteve a lavar esta parte do passeio... este bocado aqui, mesmo junto da casa do coronel Varney. Gostava de saber se teria sido ontem.
O padre Brown olhou para a casa que era alta, estreita e com estores pintados de cores garridas, embora já desbotadas. Os espaços através dos quais se podia ver o interior da residência eram muito escuros, quase pretos, em contraste com a fachada de tons dourados, vista à luz intensa daquela manhã.
- Esta é a casa do coronel Varney, não é verdade? - indagou o sacerdote. - Também veio do Oriente, segundo creio. Que espécie de homem é ele?
- Nunca o vi - respondeu Boyle. - Julgo que ninguém o conhece, a não ser o Dr. Burdock, e penso que mesmo ele só o vê o indispensável.
- Bom, vou fazer-lhe uma pequena visita - declarou o padre Brown.
A grande porta de entrada abriu-se e engoliu a pequena figura do padre, enquanto o seu amigo ficou a olhá-lo, espantado, de uma forma quase irracional, como se não acreditasse que ela se abrisse de novo. No entanto, dali a poucos minutos o padre Brown voltou a surgir à entrada da residência, com um sorriso nos lábios, e continuou o seu passeio lento em redor da praça. Por vezes, parecia esquecido do assunto que estava a ser tratado, pois tecia comentários acerca de assuntos históricos ou sociais ou então referia-se às perspectivas de desenvolvimento da região. Falou do terreno usado pelo banco para a construção de uma nova estrada e olhou para o outro lado da praça com uma expressão vaga no olhar.
- Terra baldia. Eu acho que as pessoas deviam pôr ali os gansos e os porcos a pastar. Assim, ta] como está, é que só serve para alimentar os cardos e as urtigas. É pena que uma terra que parecia ser um grande prado se tenha transformado num terreno baldio. A casa do Dr. Burdock é aquela, ali em frente, não é?
- É - respondeu Boyle, sobressaltado com a brusca mudança de assunto.
- Muito bem. Nesse caso parece que vou voltar para dentro. Quando abriram a porta da casa de Smart e enquanto subiam
as escadas, Boyle repetiu para o seu companheiro muitos dos pormenores do drama que ali tivera lugar ao nascer do dia.
- Penso que não voltou a adormecer, pois não? - indagou o padre. - De forma a dar tempo a que alguém pudesse escalar a varanda enquanto Jameson descia ao rés-do-chão para trancar a porta.
- De maneira nenhuma. Tenho a certeza. Acordei quando ouvi Jameson a falar lá de cima com o desconhecido. Depois ouvi-o correr pela escada abaixo e colocar as trancas, após o que me precipitei para a varanda.
- Ou será que ele se esgueirou lá para dentro sem darem por isso? Há outras entradas para a casa sem ser pela porta da frente?
- Parece que não - respondeu Boyle com um ar grave.
- Mas o melhor é certificarmo-nos, não acha? - perguntou o padre Brown em ar de desculpa, começando de novo a descer as escadas. Boyle ficou no quarto da frente a olhar desconfiado para ele. Dali a pouco, o rosto redondo e rústico reapareceu ao cimo das escadas, com um largo sorriso estampado no rosto e uma expressão que lembrava a de um nabo fantasmagórico.
- Bom, a questão das entradas já está resolvida - declarou ele todo satisfeito. - E agora posso afirmar que reuni tudo numa caixa hermeticamente fechada, por assim dizer. Podemos, pois, analisar o material de que dispomos. É, de facto, um caso bastante curioso.
- Acha que o conde, o coronel ou qualquer desses viajantes do Oriente terá alguma coisa a ver com esta história? - indagou Boyle. - Na sua opinião tratar-se-á de um assunto... sobrenatural?
- Garanto-lhe que se o conde, o coronel ou qualquer dos outros vizinhos se tivesse mascarado de árabe e trepado pela varanda no meio da escuridão da noite... então sim, isso seria algo sobrenatural.
- Não estou a perceber. Então mas porquê?
- Porque o tal árabe não deixou marcas de pegadas - respondeu o padre Brown. - Os vizinhos mais próximos são o gerente do banco de um lado e o coronel do outro. Entre esta casa e o edifício do banco fica um espaço baldio de terra barrenta, onde as marcas dos pés descalços ficariam de certo assinaladas como se fossem moldes de gelo, além de que os pés deixariam sinais da sua passagem por todo o lado. Tive de afrontar o mau humor do coronel para conseguir obter a informação de que o pavimento em frente da casa dele foi lavado ontem e não hoje e, nesse caso, estaria suficientemente molhado na altura para produzir pegadas ao longo da rua. Ora, se por hipótese o visitante fosse o conde ou o médico que vivem nas casas do outro lado da praça, teria, com certeza, de atravessar toda essa zona para chegar até aqui. No entanto, essa caminhada tornar-se-ia extremamente incómoda para quem estivesse descalço, pois o terreno está, como verifiquei, cheio de silvas, urtigas e cardos. A pessoa que atravessasse a praça ter-se-ia picado e havia de deixar marcas da sua passagem. A não ser, é claro, que se tratasse, como você disse, de um ser sobrenatural.
Boyle fitou demoradamente o rosto grave e indecifrável do seu amigo e, por fim, perguntou:
- E acha que era mesmo?
- Há uma verdade que não devemos esquecer - advertiu o sacerdote. - Por vezes há coisas que estão tão perto de nós que nem sequer damos por elas. Como aquela história do homem que tinha uma mosca dentro do olho no momento em que estava a espreitar por um telescópio e declarou imediatamente que havia um dragão enorme na lua. E, segundo ouvi dizer, se ouvirmos a reprodução exacta da nossa própria voz, ela soa-nos como se pertencesse a um estranho. Da mesma forma, se algo acontece mesmo à frente do nosso nariz, por vezes nem damos por isso e se dermos achamos estranhíssimo. Ora, se essa coisa passar do primeiro plano para um pouco mais longe, imaginamos logo que ela veio de um lugar remoto. Experimente sair outra vez para a rua. Quero mostrar-lhe como é que são as coisas se as observarmos de outro ângulo.
Enquanto desciam a escada continuou a fazer as suas observações, falando de uma maneira hesitante, como se estivesse a pensar em voz alta.
- O conde e a atmosfera asiática tiveram grande influência, pois num caso como este tudo depende da preparação da mente. Qualquer pessoa pode atingir uma condição tal, que um tijolo que lhe caia sobre a cabeça assume para ela a forma de um tijolo da Babilónia, coberto de caracteres cuneiformes, que tenha caído dos Jardins Suspensos, e nem sequer se dará ao trabalho de o observar e ver que afinal é um tijolo vulgar, igual aos das paredes da sua casa. Assim, nesta questão também...
- Mas o que é isto?-interrompeu Boyle, apontando para a entrada. - A porta está outra vez trancada.
Olhava espantado para a porta por onde tinha entrado momentos antes e que agora se achava novamente trancada com as grandes barras de ferro ferrugento que, segundo ele, tinham sido colocadas tarde de mais nessa mesma noite. Havia algo de sinistro e de irónico nessas velhas trancas que se haviam fechado nas suas costas e que agora os impediam de sair.
- Ah, isso! - apontou o padre Brown com um ar displicente. - Fui eu próprio que as coloquei há bocado. Não ouviu o barulho?
- Não - respondeu Boyle muito espantado. - Não ouvi absolutamente nada.
- Também me pareceu isso. De facto, não havia razão para se ouvir lá em cima o barulho das trancas a serem colocadas. Há aqui um gancho que encaixa exactamente numa espécie de cavidade. O único som é um pequeno clique, e esse só é ouvido por quem estiver muito perto. A única coisa que faz mesmo barulho a pontos de se ouvir no primeiro andar é isto.
O padre Brown levantou a barra de ferro e soltou-a, deixando-a cair com grande estrondo.
- Ao destrancarmos a porta é que fazemos barulho - disse o sacerdote com ar grave -, mesmo que procuremos ter cuidado.
- Quer então dizer...
. - O que eu quero dizer é que o barulho que ouviu lá em cima ontem à noite não foi o de Jameson a trancar a porta, mas sim a abri-la. E agora vamos até lá fora.
Quando já se encontravam na rua, por debaixo da varanda, o padre retomou a sua anterior explicação num tom tão frio como se estivesse a dar uma aula de química.
- Dizia eu há pouco que uma pessoa pode estar na disposição de ver algo de uma forma muito distante e não se aperceber de que se trata de uma coisa muito próxima e talvez até muito semelhante a si próprio. O que você viu ao olhar lá de cima foi um ser estranho e já pensou no que é que ele terá visto ao olhar para a varanda?
Boyle, de olhos postos na fachada da casa, não respondeu, e o padre acrescentou:
- Com certeza achou extraordinário e maravilhoso que um árabe pudesse vir até aqui, à Inglaterra civilizada, com os seus pés descalços, não é verdade? Não se lembrou de que também você naquele momento estava descalço.
Finalmente Boyle conseguiu encontrar palavras e as que proferiu foram uma repetição do que já havia dito.
- Jameson abriu a porta - disse mecanicamente.
- Sim - assentiu o sacerdote. - Jameson abriu a porta e saiu para a rua com os seus trajes nocturnos, tal com você, quando foi à varanda. Além disso, ele serviu-se ainda de duas coisas que você estava farto de conhecer: uma velha cortina azul, na qual se enrolou e um instrumento musical vindo do Oriente, que você tantas vezes viu entre as curiosidades pertencentes ao seu patrão. O resto não passou de uma questão de ambiente e de representação, aliás uma representação impecável, pois Jameson é, sem dúvida, um grande artista do crime.
-Jameson! -exclamou Boyle incrédulo. - Mas ele era um pobre diabo. Ninguém dava por ele.
- Precisamente por isso é que ele era um artista. Se conseguiu representar o papel de um mágico ou de um trovador durante seis minutos, não acha que também era capaz de representar o papel de empregado durante seis semanas?
- Continuo sem saber muito bem qual seria o seu objectivo - confessou Boyle.
- O seu objectivo foi atingido - replicou o padre Brown -, ou quase. Já se apoderou dos peixes de ouro, é claro, e tinha tido imensas oportunidades de o conseguir. Mas se ele os tivesse simplesmente roubado, toda a gente ia achar que havia muitas hipóteses de ter sido ele. Ao criar um mágico misterioso vindo dos confins da Terra, levou toda a gente a pensar na Arábia e na índia, a ponto de você próprio ter dificuldade em acreditar que a chave do problema estava afinal aqui tão perto. Achava-se demasiado perto para ser vista.
- Se isso for verdade, temos de concordar que ele correu um risco muito grande - observou Boyle. - Devo confessar que realmente não ouvi o homem que estava na rua proferir uma única palavra, enquanto Jameson se lhe dirigia, por isso suponho que se tratava de uma farsa. E creio que ele teve tempo suficiente para sair de casa antes de eu conseguir despertar completamente e ir à varanda.
- Todos os crimes dependem precisamente do facto de as pessoas não acordarem a tempo - observou o padre Brown. - E, deixe-me dizer-lhe, que muitos de nós acordamos tarde de mais. Comigo, por exemplo, aconteceu isso, pois julgo que ele já se pôs a andar pouco antes ou logo a seguir a terem-lhe tirado as impressões digitais.
- De qualquer modo acordou antes de qualquer outra pessoa -observou Boyle -, ao passo que eu nunca iria acordar. Jameson era uma pessoa tão correcta e que passava tão despercebida que nunca me iria lembrar dele.
- É precisamente dessas pessoas que é preciso desconfiar, daquelas que esquecemos com facilidade - avisou o amigo -, são precisamente elas que nos colocam em desvantagem. Mas eu também não suspeitei dele até ao momento em que você me disse que o tinha ouvido a trancar a porta.
- De qualquer modo, devemos-lhe a si o desvendar de todo este mistério.
- Devem-no a Mrs. Robinson - retorquiu o padre Brown sorrindo.
- A Mrs. Robinson? - indagou, perplexo, o secretário. - Refere-se à governanta?
- Cuidado com as mulheres de quem nos esquecemos. Este homem era um criminoso de alta categoria, pois além de bom actor era também um óptimo psicólogo. Um homem como o conde nunca escuta senão a sua própria voz; no entanto, um homem como este conseguia ouvir quando todos se tinham esquecido da sua presença e recolher o material necessário para construir a sua história e fazer vibrar a nota exacta para nos despistar. No entanto, cometeu um erro grave em relação à psicologia de Mrs. Robinson.
- Não estou a entender. Mas afinal que tem ela a ver com isto tudo?
- Jameson não contava que a porta estivesse trancada - declarou o padre Brown. - Ele sabia que há muitos homens descuidados, como você ou como o seu patrão, que passam a vida a dizer que se deve fazer determinada coisa, sem no entanto tomarem medidas nesse sentido. No entanto, se disser a uma mulher que há algo a fazer, há sempre o perigo de ela vir a fazê-lo quando menos se espera.

CAPÍTULO IV
O ACTOR E O ALIBI

O director teatral Mr. Mundon Manderville percorria apressadamente os corredores que se escondiam por detrás do cenário, ou melhor, por debaixo dele. O seu traje era elegante e festivo, talvez até de mais; era festiva a flor que ostentava na botoeira, bem como o polimento das botas, mas não a expressão do rosto. Manderville era um sujeito de elevada estatura, pescoço forte e cara de poucos amigos. Naquele momento parecia ainda mais carrancudo que habitualmente. Dominava-o, como era natural, um sem número de problemas inerentes a uma pessoa na sua posição, desde as questões da maior importância aos assuntos mais comezinhos, uns recentes, outros antigos. Aborrecia-o atravessar as passagens onde se encontravam armazenados os cenários das velhas pantominas, pois fora com esse género popular de espectáculo que iniciara com êxito a sua carreira profissional, e desde então sentira-se tentado a arriscar no drama clássico mais sério, onde investira bastante dinheiro. Assim, a visão dos portões cor de safira do palácio do Barba Azul ou alguns fragmentos do bosque encantado da história das Três Laranjas de Oiro, encostados à parede e abandonados à invasão das teias de aranha e aos ninhos de ratos, não lhe proporcionou aquela sensação agradável de retorno à simplicidade que todos nós devemos experimentar quando deparamos com um vislumbre desse mundo encantado da infância. Nem teve tempo de verter uma lágrima ali, onde gastara tanto dinheiro, nem sequer de sonhar com o Paraíso do Peter Pan, pois fora chamado com urgência para resolver um problema prático, não do passado, mas do presente. Tratava-se de um daqueles problemas que surgem por vezes nesse estranho mundo dos bastidores; desta feita era algo suficientemente importante para poder ser considerado um caso sério. Miss Maroni, a jovem e talentosa actriz de ascendência italiana, que aceitara representar um papel importante na peça que iria ser estreada nessa noite, e cujo ensaio-geral deveria ter lugar nessa mesma tarde, resolvera subitamente, e com certa violéncia, recusar levar a cabo a sua tarefa. Manderville ainda não estivera com a irritante senhora e, pelo menos de momento, tal não parecia ser possível, uma vez que ela se trancara no camarim, de onde se recusava a sair, desafiando toda a gente do outro lado da porta fechada. Mr. Mundon Manderville era suficientemente britânico para explicar o sucedido, murmurando que os estrangeiros eram malucos. No entanto, o facto de ter a sorte de viver na única ilha do planeta onde havia gente sã, consolou-o tanto como a recordação da Florestra Encantada. Tudo isto e muitas outras coisas eram para ele motivo de preocupação e, no entanto, um observador que o conhecesse bem suspeitaria de que algo de mais grave o preocupava.
Se é possível um homem forte e saudável parecer macilento, diremos que era esse o aspecto de Mr. Mundon Manderville. Tinha os olhos encovados e a boca torcida, como se estivesse permanentemente a tentar morder o bigode, aliás demasiado curto para conseguir fazê-lo. Podia tratar-se de um indivíduo que começara a tomar drogas, mas se isso fosse verdade havia algo que sugeria uma possível razão para o fazer - não sendo, pois, a droga a causa da tragédia, mas sim a tragédia a causa da droga. Fosse qual fosse o seu segredo, este parecia habitar aquela extremidade escura do longo corredor onde ficava a entrada do seu pequeno escritório e, à medida que ia caminhando, lançava de vez em quando um olhar nervoso para trás.
No entanto, negócios são negócios e lá prosseguiu em direcção ao extremo oposto da passagem, onde a porta verde do camarim de Miss Maroni desafiava o mundo e junto da qual um grupo de actores e outras pessoas envolvidas no assunto discutiam a questão e punham até a hipótese de forçar a entrada. Entre os presentes via-se, pelo menos, um elemento suficientemente conhecido, cujo retrato pendia de muitas paredes e cujo autógrafo se encontrava em inúmeros álbuns. Na verdade, embora Norman Knight estivesse a representar o papel de herói num teatro considerado um pouco provinciano e fora de moda, onde provavelmente era considerado o primeiro actor secundário, estava, sem dúvida, a caminho de triunfos mais notáveis. Tratava-se de um indivíduo bem parecido, de queixo voluntarioso e cabelos louros e fartos, que lhe conferiam um aspecto de Nero, o que não correspondia em nada aos seus gestos impulsivos. O grupo incluía ainda Ralph Randall, que costumava interpretar papéis de personagens mais idosas e apresentava um rosto bem humorado e coberto de base para disfarçar a barba. Via-se ainda o segundo actor secundário, Aubrey Vernon, um jovem de cabelo preto encaracolado, de perfil judaico, que seguia a tradição, ainda não totalmente desaparecida, de Charles Friend.
Para além dos já referidos, também ali se encontrava a assistente da mulher de Mr. Mundon Manderville, uma mulher de aspecto possante, cabelos ruivos e expressão impassível. Resta mencionar a presença casual da mulher de Manderville, uma senhora discreta, de rosto pálido e paciente, o qual conservava uma simetria clássica e uma certa severidade, e que parecia ainda mais pálido devido ao tom claro dos olhos e aos cabelos muito loiros, meticulosamente separados em dois bandós, e que lhe conferia o aspecto de uma Madona arcaica. Nem todos sabiam que ela fora ou-trora uma famosa intérprete das peças de Ibsen e de dramas intelectuais. Todavia, o marido nunca se interessara por obras desse género e naquele momento estava com certeza mais preocupado em tirar uma actriz estrangeira do interior de um camarim fechado à chave, uma nova versão do conhecido truque de ilusionismo da Dama Desaparecida.
-Ainda continua fechada? - perguntou ele, dirigindo-se à assistente da esposa e não a esta última.
- Ainda não - informou a mulher, conhecida por Mrs. Sands, falando num tom grave.
- Estamos a ficar um bocado preocupados - declarou o velho Randall. - Ela parecia desvairada e receamos que tenha feito algum disparate.
- Raios! - exclamou Manderville com a secura habitual. - Precisamos de publicidade, mas não deste tipo. Há aqui alguém que se dê bem com ela, alguém que a consiga convencer?
-Jarvis acha que a única pessoa capaz de o fazer é o padre, que aliás vive aqui perto - disse Randall -, e, de facto, no caso de ela tentar cometer algum acto desesperado, pensei que era melhor ele estar aqui. Jarvis foi chamá-lo... Ah, aí vem ele.
Surgiram mais duas figuras na passagem subterrânea por debaixo do palco: a primeira era Ashton Jarvis, um sujeito jovial que costumava representar o papel de vilão, mas que de momento renunciara a essa vocação em favor do jovem de cabelo encaracolado e nariz grande. A outra figura, baixa e atarracada, toda vestida de preto, era o padre Brown, da igreja mais próxima.
O sacerdote considerou natural que o tivessem chamado para intervir na conduta singular de um membro do seu rebanho, quer se tratasse de uma ovelha negra, quer de um inocente cordeiro. No entanto, a hipótese de suicídio não lhe pareceu aceitável.
- Deve haver um motivo forte que a levou a descontrolar-se - disse o padre. - Alguém sabe, por acaso, o que se terá passado?
- Provavelmente sentia-se insatisfeita com o seu papel - sugeriu o actor mais velho.
- Estão sempre - resmungou Mr. Mundon Manderville. - E eu a pensar que a minha mulher tomara as providências necessárias nesse sentido!
- A única coisa que eu posso dizer - replicou Mrs. Manderville -, é que lhe atribuí o papel que me pareceu ser o melhor para ela. Julgo que é isso que todas as jovens actrizes em princípio de carreira gostam de representar, o papel da bela heroína que se casa com o herói dos seus sonhos sob uma chuva de flores e aplausos, não é verdade? As mulheres da minha idade naturalmente têm de se limitar aos papéis de respeitáveis matronas. Ora eu tive o cuidado de reservar isso para mim.
- De qualquer forma seria impensável alterar os papéis numa altura destas - comentou Randall.
- Nem pensar nisso - declarou Norman Knight com firmeza. -Eu teria imensa dificuldade em fazê-lo e... além disso é tarde de mais.
O padre Brown afastara-se e encontrava-se agora a escutar junto da porta.
- Ouve alguma coisa? - indagou o director, ansioso. E acrescentou em voz mais baixa: -Acha que se suicidou?
- Parece-me que estou a ouvir qualquer coisa - retorquiu o padre calmamente. - Pelo barulho, dá ideia de que está a partir uma janela ou um espelho, provavelmente com os pés. Não, não creio que haja o perigo de se suicidar. Partir espelhos com os pés é um prelúdio invulgar de suicídio. Se se tratasse de uma alemã que se tivesse fechado aqui para pensar calmamente na metafísica e nâweltschmerz (1), seria o primeiro a aconselhar que se arrombasse a porta, mas estes italianos não morrem assim com tanta facilidade, nem têm tendência para se destruirem a si próprios num acesso de raiva. Se fosse outra pessoa, sim... talvez isso fosse possível... É melhor tomarmos as precauções necessárias, no caso de ela resolver sair daí de dentro num rompante.
- Então acha que não devemos forçar a entrada? - perguntou Manderville.
- Se quer que ela entre na peça é melhor não o tentar - replicou o padre Brown. - Se o fizer ela vai deitar a casa abaixo com barulho e recusará o papel que lhe atribuíram, mas se a deixarmos sozinha provavelmente acabará por sair por uma questão de curiosidade. Se eu estivesse no seu lugar deixaria aqui apenas alguém a tomar conta da porta e dar-lhe-ia cerca de uma ou duas horas.
- Neste caso - retorquiu Manderville -, só poderemos ensaiar as partes em que ela não intervém. A minha mulher encarregar-se-á do que for necessário para que possam entrar já em cena. Afinal o quarto acto é a parte principal. É melhor começarem já.
- Não é preciso usar o guarda-roupa para este ensaio-geral - anunciou a mulher de Manderville, dirigindo-se ao resto do elenco.

1 Em alemão no original: tédio; desengano da vida. (N. da T.)

- Óptimo - disse Knight. - Quem me dera que as roupas do período infernal não fossem tão complicadas.
- Que peça é? - perguntou o sacerdote com uma ponta de curiosidade.
- Escola de Escândalos - respondeu Manderville. -A minha mulher aprecia aquilo a que ela chama comédias clássicas. Quanto a mim, muito mais clássicas que cómicas.
Nesse momento, o velho porteiro conhecido por Sam, o habitante solitário do teatro durante as horas mortas, aproximou-se do director, a quem entregou um cartão de visita, informando-o de que Lady Miriam Marden desejava falar-lhe. Afastou-se, mas o padre Brown continuou a olhar durante alguns segundos na direcção da mulher de Manderville e reparou que o seu rosto descorado exibia um sorriso. No entanto, não se tratava de uma expressão de alegria.
O padre Brown retirou-se na companhia do indivíduo que o fora chamar. Era seu amigo e uma pessoa dotada de grande poder de persuasão, o que é vulgar acontecer em relação aos actores. Porém, enquanto se afastava, ouviu Mrs. Manderville dar algumas instruções a meia voz a Mrs. Sands, no sentido de ficar de guarda à porta.
- Mrs. Manderville parece ser uma pessoa inteligente - observou o padre. - No entanto, faz tanta questão de se manter em segundo plano.
- Noutros tempos foi uma mulher muito intelectual - retorquiu Jarvis, contristado. - Há quem diga que foi uma pena ter-se casado com um aldrabão como Manderville. Tem ideias muito elevadas sobre o drama mas, é claro, nem sempre consegue que o seu amo e senhor veja as coisas pelo mesmo prisma. Sabe que ele pretendia que uma mulher daquela categoria representasse em espectáculos de pantomina? Admitia que ela era uma grande actriz, no entanto as pantominas davam mais dinheiro. Por aqui já pode fazer uma ideia da maneira de pensar e da sensibilidade deste homem. Mas ela nunca se queixou. Como me confidenciou uma vez "Os lamentos regressam a nós como um eco vindo dos confins do mundo, enquanto o silêncio nos dá força." Se esta mulher se tivesse casado com alguém que entendesse as suas ideias, poderia ter sido uma das grandes actrizes do nosso tempo. E claro que os bons críticos continuam a sentir um grande apreço por ela. Mas o que acontece é que foi com este que se casou.
E apontou para a figura corpulenta e vestida de negro de Manderville que, de costas voltadas para eles, conversava com as senhoras que o haviam chamado ao vestíbulo. Lady Miriam era uma dama elegante, alta e de ar lânguido, vestida de acordo com uma moda recente que, tudo levava a crer, fora inspirada nas múmias do Egipto. O seu cabelo escuro apresentava um corte de linhas direitas, como uma espécie de capacete, e os lábios, muito pintados, conferiam-lhe uma permanente expressão de desdém. A sua companheira era uma senhora muito viva, com um rosto feio mas atractivo, e cabelo salpicado de branco. Tratava-se de Miss Theresa Talbot, sempre muito faladora, em contraste com a amiga que parecia demasiado fatigada para dizer o que quer que fosse. No entanto, precisamente no momento em que os dois homens iam a passar junto delas, Lady Miriam encontrou energia suficiente para dizer:
- As peças costumam ser muito maçadoras, mas nunca vi um ensaio-geral em que os actores envergassem as suas roupas normais. Deve ter a sua graça. De facto, hoje em dia uma pessoa já espera ver tudo.
- E agora, Mr. Manderville - disse Miss Talbot, dando-lhe uma pancadinha no braço com animada persistência -, a única coisa que tem a fazer é deixar-nos assistir ao ensaio. Esta noite não podemos vir, nem queremos. Agrada-nos a ideia de vermos essa gente toda com as roupas trocadas.
- É claro que lhes posso ceder um camarote - apressou-se Manderville a oferecer. - Queiram fazer o favor de vir por aqui -
e, dizendo isto, conduziu-as por outro corredor.
- Pergunto a mim mesmo se Manderville não gostará mais deste tipo de mulher - observou Jarvis com um ar meditativo.
- E tem alguma razão para pensar que Manderville prefere realmente uma mulher assim? - perguntou o padre Brown.
Jarvis fitou-o por momentos antes de responder.
- Aquele homem é um mistério - observou. - Reconheço que tem o aspecto mais normal deste mundo; no entanto, continuo a considerá-lo enigmático. Parece haver qualquer coisa a pesar-lhe na consciência. Há uma sombra na sua vida. Pergunto a mim próprio se isso estará apenas relacionado com aventuras extraconjugais ou com a mulher. E, se estiver, então há algo entre eles que nos escapa. Na verdade, sei mais acerca disso que qualquer outra pessoa e, apesar de tudo, não me considero esclarecido. Para mim, continua a ser tudo um mistério.
Olhou em volta para se certificar de que estavam sozinhos e acrescentou, baixando a voz:
- A si não me importo de contar, pois sei que é um poço sem fundo no que respeita aos segredos que lhe são confiados. Só lhe digo que um destes dias sucedeu uma coisa que me deixou abismado e que se tem repetido desde então. Como sabe, Manderville costuma trabalhar naquele quartinho ao fundo do corredor, mesmo por debaixo do palco. Ora bem, já me aconteceu por duas vezes passar por lá quando todos pensavam que ele estaria sozinho e, mais ainda, quando eu próprio sabia que todas as mulheres que integram a companhia se achavam ausentes ou ocupadas nos seus postos de trabalho.
- Todas elas? - perguntou o padre Brown.
- Estava uma mulher com ele - declarou Jarvis quase num murmúrio. - Há uma senhora que o visita constantemente e é alguém que nenhum de nós conhece. Nem sei como é que ela faz para ali entrar, uma vez que não utiliza o corredor. No entanto, lembro-me de ter visto uma vez um vulto encapuçado ao anoitecer, a sair pelas traseiras do teatro. Parecia um fantasma! Mas isso não é possível. Por outro lado, também não creio que se trate de uma coisa normal. Não me parece que seja um caso de amor; deve ser antes uma questão de chantagem.
- E qual a razão que o leva a pensar isso?
- Porque uma vez percebi que estavam a discutir e depois ouvi uma mulher dizendo o seguinte: "Eu sou a tua mulher."
- Acusou-o então de bigamia - observou o padre, pensativo. - Bom, a bigamia e a chantagem por vezes andam ligadas, é claro. Mas, por outro lado, ela podia estar a fazer bluff. Provavelmente é louca. Com esta gente de teatro nunca se sabe: encontra-se cada maluco! Pode ser que tenha razão, mas eu não me arriscava a tirar conclusões precipitadas... E por falar em gente de teatro, o ensaio não vai começar? E você não é uma das personagens?
- Não entro nesta cena - esclareceu Jarvis a sorrir. - Eles só vão ensaiar um acto, enquanto a sua amiga italiana não se decide.
- A propósito da minha amiga italiana - observou o padre Brown -, gostava de saber o que se passa com ela.
- Podemos ir lá ver, se quiser - sugeriu Jarvis. E desceram os dois de novo até ao corredor da cave, numa extremidade do qual ficava o escritório de Manderville e na outra a porta trancada do camarim da signora Maroni. A porta parecia continuar fechada e Mrs. Sands permanecia do lado de fora, com um ar carrancudo e tão imóvel como um ídolo esculpido em madeira.
Ao fundo do corredor viram alguns actores a subir a escada que conduzia ao palco. Vernon e o velho Randall seguiam à frente do grupo, num passo apressado, enquanto Mrs. Manderville caminhava um pouco mais devagar, com a sua calma e dignidade habituais. Norman Knight atrasou o passo para falar com ela e, por mero acaso, algumas palavras chegaram-lhes aos ouvidos quando iam a passar.
- Garanto-lhe que há uma mulher que costuma visitá-lo- dizia Knight, intempestivo.
- Shiu!:- fez ela com a sua voz de prata que, no entanto, tinha algo de aço. - Não deve falar dele nesses termos. Não se esqueça que se trata do meu marido.
- Quem me dera conseguir esquecer-me disso - tornou Knight. E subiu as escadas apressadamente.
Mrs. Manderville seguiu-o, calma e pálida.
- Parece que há mais alguém a par do assunto - observou o sacerdote -, mas duvido que seja um assunto que nos diga respeito.
- Sim - resmungou Jarvis -, creio que toda a gente sabe do caso mas ninguém consegue explicar o que se trata.
Prosseguiram até ao outro extremo do corredor, onde a mulher se encontrava rigidamente de guarda à porta da italiana.
- Não, ainda não saiu de lá de dentro - informou a empregada, taciturna -, mas também não está morta, porque de vez em quando ouço barulho. Não faço ideia do que estará ela a preparar.
- E sabe dizer-me onde estará Mr. Manderville neste momento, minha senhora? - indagou o padre Brown num súbito acesso de gentileza.
- Sim - respondeu ela com prontidão. - Vi-o entrar no escritório ao fundo do corredor há um minuto ou dois, momentos antes de o director de cena ter feito a chamada e de terem subido a cortina. Ainda lá deve estar, uma vez que não o vi sair.
- Quer então dizer que não há outra porta de acesso ao escritório - concluiu o sacerdote com uma certa indiferença. - Bom, creio que o ensaio já está a decorrer.
- Sim - confirmou jarvis, após uma curta pausa. - Estou a ouvir daqui as vozes lá em cima no palco. O velho Randall tem uma voz explêndida.
Ficaram ambos à escuta por momentos, até conseguirem ouvir a voz do actor, cujo som tonitruante ecoava através do corredor, vinda lá de cima do palco. Antes de retomarem o diálogo, os seus ouvidos foram de súbito assaltados por outro som. Era um barulho pesado, vindo do outro lado da porta fechada do escritório de Mundon Manderville.
O padre Brown desatou a correr como uma seta naquela direcção e já estava às voltas com a maçaneta da porta quando finalmente Jarvis recuperou do choque e, com um estremeção, se preparou para seguir o sacerdote.
- A porta está trancada por dentro - observou o padre, que agora apresentava uma certa palidez no rosto. - Estou tentado a arrombá-la.
- Acha que o visitante desconhecido voltou a entrar lá dentro?
- perguntou Jarvis com um ar assustado. - O caso será grave?
- E dali a pouco acrescentou: - Talvez eu consiga abrir o trinco. Ajoelhou-se e, pegando num canivete com um acessório de aço
comprido e pontiagudo, manipulou-o durante uns instantes até a porta se abrir. Uma das primeiras coisas em que repararam foi que não havia ali outra porta nem janelas, vendo-se em cima da secretária um grande candeeiro a iluminar o compartimento. Mas não foi este o primeiro pormenor que lhes chamou a atenção, pois antes disso viram que Manderville se encontrava deitado no chão, com o rosto voltado para baixo, no meio do quarto, e que o sangue lhe escorria do rosto, formando desenhos no chão que faziam lembrar sinistras cobras escarlate a cintilar sob aquela luz artificial. É difícil dizer quanto tempo estiveram especados a olhar um para o outro, até que, finalmente, Jarvis deixou escapar uma observação, como se a tivesse retido até ali juntamente com o fôlego:
- Se a desconhecida conseguiu entrar também conseguiu fugir da mesma maneira.
- Talvez estejamos a pensar de mais nessa tal desconhecida- replicou o padre Brown. - Há tantas coisas esquisitas neste teatro que até acabamos por nos esquecer de algumas delas.
- A que coisas é que se refere? - indagou o outro.
- Há muitas. A outra porta, por exemplo.
- Mas está fechada à chave.
- De qualquer modo, esqueceu-se dela - lembrou o sacerdote. E, dali a pouco, observou, pensativo: - Aquela Mrs. Sands é uma criatura tão carrancuda e mal humorada.
- Que quer dizer com isso? - indagou o outro, baixando o tom de voz. - Acha que ela está a mentir e que a italiana afinal já saiu do camarim?
- Não - replicou o padre calmamente. - Estava apenas a referir-me a uma forma possível de avaliar a maneira de ser das pessoas.
- Não estará, por acaso, a insinuar que foi Mrs. Sands a autora disto? - perguntou Jarvis alarmado.
- Limitei-me a apontar uma das hipóteses que existem de analisar as pessoas, mas não me referia a Mrs. Sands.
Enquanto trocavam entre si estas palavras, o padre Brown ajoelhou-se junto do corpo e certificou-se de que ele já estava morto. Ao lado do cadáver, embora não fosse imediatamente visível para quem entrasse no compartimento, via-se um punhal, do género dos que se utilizam no teatro, como se tivesse caído da ferida ou da mão do assassino. De acordo com Jarvis, que identificou logo o objecto, nada de importante conseguiriam dali deduzir, a não ser que os peritos viessem a descobrir algumas impressões digitais. Tratava-se de um adereço do teatro, que ali existia há já muito tempo e que poderia ter sido usado por qualquer pessoa. Em seguida, o padre levantou-se e olhou em volta com ar grave.
- Temos de chamar a polícia e o médico, embora este já venha tarde de mais... a propósito, olhando em volta, não percebo como conseguiu a nossa amiga italiana fazer isto.
- A italiana? Será possível? Pensei que ela tinha um alibi. São dois compartimentos separados, ambos fechados à chave, situados em extremos opostos do corredor e ainda por cima com uma testemunha presente.
- Não, a única dificuldade que eu encontro é saber como é que ela conseguiu chegar até esta extremidade do corredor, pois creio que poderia sair do camarim.
- E porquê?
- Disse-lhe que me pareceu ouvi-la a partir vidros, espelhos ou janelas, lembra-se? E, estupidamente, esqueci-me de uma coisa importantíssima e que tinha obrigação de saber: ela é muito supersticiosa. Não creio que tivesse quebrado um espelho: estava, sim, a partir o vidro da janela. Isto fica numa cave, é um facto, mas pode haver por aí uma clarabóia ou uma janela que vá dar a um pátio. No entanto, não creio que haja qualquer coisa do género. - E ficou a olhar para o tecto durante um bocado com um ar absorto.
De repente, pareceu voltar a si.
- Temos de ir depressa lá acima telefonar à polícia e avisar toda a gente. Vai ser bem doloroso... Meu Deus, está a ouvi-los no palco a representar? O ensaio prossegue. É afinal a isto que se chama uma ironia trágica.
Quando chegou o momento em que o teatro se transformou em local de luto, todos os actores tiveram oportunidade de mostrar muitas das reais virtudes da sua profissão. Comportaram-se como cavalheiros - cavalheiros de primeira categoria. Nem todos gostavam de Manderville, nem sequer confiavam nele. No entanto, souberam exactamente o que dizer a seu respeito e mostraram não só simpatia, como também delicadeza para com a viúva. Esta tornara-se, num sentido novo e muito diferente, uma rainha da tragédia, cuja palavra mais insignificante era lei e, enquanto se movia de um lado para o outro, desolada, iam-lhe apresentando as suas mensagens de condolências.
- Sempre teve uma personalidade muito forte - declarou o velho Randall com voz rouca. - E é a mais inteligente de todos nós. E claro que o pobre Manderville nunca esteve à altura dela, quer no aspecto cultural quer noutros, mas esta mulher sempre desempenhou o seu papel de forma irrepreensível. Era quase patética a maneira como ela muitas vezes expressava o seu desejo de levar uma vida mais intelectual. Mas Manderville... bom, nil nisi bonum, como se costuma dizer. - E o velhote afastou-se, abanando a cabeça com uma expressão de tristeza.
- NU nisi bonum, é uma verdade - concordou Jarvis. - Não me parece que Randall tenha ouvido falar da história da visitante misteriosa. A propósito, não terá sido ela a autora do crime?
- Depende - retorquiu o padre -, do que você entende por visitante misteriosa.
- Não me refiro à italiana, é claro - apressou-se Jarvis a dizer. - Embora o senhor também tivesse razão acerca dela. Quando entraram no camarim verificaram que a clarabóia estava partida e o compartimento vazio. Mas tanto quanto a polícia conseguiu apurar, ela limitou-se a ir para casa da forma mais inofensiva possível. A outra a quem me refiro é a mulher que eu ouvi a falar com ele, a que lhe disse que era mulher dele. Acha que ela seria mesmo casada com ele?
- É possível - admitiu o padre Brown, olhando o vazio.
- Isso levar-nos-ia a pensar num móbil: os ciúmes resultantes do seu casamento posterior, pois o corpo não apresenta quaisquer sinais de roubo. Não há, pois, necessidade de suspeitarmos de criados ladrões ou até de actores com falta de dinheiro. Mas é claro que certamente se apercebeu de um pormenor peculiar relativamente a este caso!
- Apercebi-me de vários - retorquiu o padre Brown. - Mas a qual deles é que se refere concretamente?
- O alibi colectivo - respondeu Jarvis, circunspecto. - Não é frequente um grupo inteiro possuir um alibi público como aconteceu neste caso: um alibi num palco iluminado em que todos se observavam mutuamente. E, além disso, foi uma sorte aqui para os nossos amigos o facto de Manderville ter cedido um camarote àquelas duas tontinhas da alta sociedade para assistirem ao ensaio. Assim, ambas poderão testemunhar que o acto decorreu sem qualquer incidente e com a presença em palco de todos os actores. Começaram a representar muito antes de Manderville ter sido visto a entrar para o escritório e assim continuaram até cerca de dez minutos depois de termos descoberto o cadáver. E, por feliz coincidência, no momento em que ouvimos cair o corpo, todos os actores se achavam no palco.
- Sim, de facto isso é muito importante e simplifica as coisas - concordou o padre Brown. - Vamos lá ver quantas pessoas são abarcadas pelo alibi. Temos Randall, que devia odiar Manderville, embora neste momento esteja a disfarçar muito bem os seus sentimentos. Mas esse está fora de questão, pois ouvimos-lhe a voz retumbante quando se encontrava no palco. Segue-se o nosso jeune premier (1), Mr. Knight. Tenho bons motivos para crer que ele estava apaixonado pela mulher de Manderville, sentimento esse que, de resto, nem sequer dissimulava. Mas esse também não conta, por se achar no palco na mesma altura. Quanto ao amável judeu que dá pelo nome de Aubrey Vernon e a Mrs. Manderville, estão igualmente postos de parte. O seu alibi colectivo, como disse, depende sobretudo de Lady Miriam e da sua amiga, Miss Talbot. Tem a certeza de que são dignas de confiança?
- Refere-se a Lady Miriam? - perguntou Jarvis surpreendido. - É claro... está a pensar naquele aspecto de vamp, não é verdade? Mas nem faz ideia da forma como se apresentam hoje em dia

Em francês no original: galã. (N.da T)

as senhoras das melhores famílias. E, além disso, tem algum motivo particular para duvidar do testemunho delas?
- Apenas o facto de que isto não nos leva a nada. Não vê que este alibi colectivo abrange praticamente a totalidade das pessoas? Esses quatro actores eram os únicos que estavam a trabalhar nessa altura no teatro. Quanto a criados, quase não os havia, à excepção, é claro, do velho Sam, que toma conta da entrada principal e da mulher que estava a vigiar a porta do camarim de Miss Maroni. Além das pessoas que acabei de referir só restamos nós. É evidente que podemos ser acusados do crime, sobretudo pelo facto de termos sido nós a descobrir o corpo. Parece não haver mais ninguém susceptível de ser incriminado. Por acaso não foi você que o matou quando eu estava distraído, pois não?
Jarvis levantou a cabeça com um ligeiro sobressalto e, por momentos, arregalou os olhos de espanto, mas depois fez um grande sorriso e abanou a cabeça.
- Você não foi - disse o padre Brown -, e vamos partir do princípio de que eu também não. Ora, se excluirmos as pessoas que se encontravam no palco, só nos restam a Signora, que se achava encerrada no camarim, a sentinela que estava à porta e o velho Sam. Ou está a pensar ainda nas duas senhoras que assistiam ao ensaio no camarote? É claro que podiam ter-se esgueirado de lá sem ninguém dar por isso.
- Não, estou a pensar na desconhecida que veio fazer uma visita a Manderville e lhe disse que era mulher dele.
- E talvez fosse - disse o padre, e nesta altura houve uma inflexão na sua voz que levou o companheiro a debruçar-se mais sobre a mesa.
- Dissemos há pouco que a primeira mulher talvez tenha tido ciúmes da segunda - lembrou ele, falando em voz mais baixa e num tom ansioso.
- Não, talvez tivesse ciúmes da rapariga italiana ou até de Lady Miriam Marden, mas da outra mulher, não.
- E por que não?
- Porque não havia outra mulher - declarou o padre Brown. - Mr. Manderville, quanto a mim, nada tinha de bígamo; era, pelo contrário, um homem totalmente monógamo. A mulher, digamos que até estava demasiado ligada a ele; de tal forma, que todos supunham tratar-se de uma outra mulher. Mas não consigo imaginar como é que ela podia estar com o marido quando foi morto, pois todos sabemos que se encontrava no palco naquele momento, à vista de toda a gente, a representar um papel importante...
- Quer dizer que a desconhecida que o perseguia como um fantasma era afinal a Mr s. Manderville que todos conhecemos? - perguntou Jarvis, incrédulo. No entanto não obteve resposta, pois o padre Brown olhava agora para o vazio, com um ar inexpressivo,
quase idiota. Sempre assim fora: quando parecia mais idiota era sinal de que estava a ser mais inteligente.
De repente, pôs-se de pé, visivelmente perturbado.
- Mas é horrível - disse. - Não sei mesmo se este não será o pior caso de toda a minha vida, mas seja como for não posso parar. Não se importa de dizer a Mrs. Manderville que preciso de falar com ela em particular?
- Com certeza. Mas que é que se passa?
-Tenho sido um autêntico pateta - confessou o padre Brown. - Aliás é um lamento bem comum neste vale de lágrimas. Fui tão estúpido que me esqueci por completo que a peça era Escola de Escândalos.
Pôs-se a andar de um lado para o outro até que Jarvis reapareceu muito alarmado.
- Não consigo encontrá-la - declarou. - Ninguém sabe onde se terá metido.
- Também não sabem onde está Norman Knight, pois não? - indagou o sacerdote. - Bom, assim já não serei obrigado a fazer
a entrevista mais penosa da minha vida. Só Deus sabe o medo que tenho dessa mulher. Mas ela também estava com medo de mim. Parecia demasiado assustada com qualquer coisa que eu vi ou disse. Knight passava a vida a insistir para que ela fugisse com ele e agora que ela o fez, não consigo deixar de ter pena dele.
- Pena dele?
- Bom, não deve ser lá muito agradável fugir com uma assassina mas, na verdade, ela é bem pior que isso.
- O quê, então?
- É uma egoísta - respondeu o padre Brown. - Trata-se daquele tipo de pessoa capaz de olhar para o espelho antes de olhar pelajanela, o que constitui a pior calamidade que existe. É evidente que o espelho não lhe trouxe sorte, mas só porque não estava partido.
- Não percebo nada do que está a dizer - confessou Jarvis. - Toda a gente a considerava uma pessoa com ideais elevados, que se movia numa esfera superior à nossa.
-Ela própria se via assim e sabia hipnotizar os outros para que a encarassem dessa forma. Talvez eu não tenha convivido com ela o suficiente para me deixar influenciar. No entanto vi perfeitamente quem era cinco minutos depois de a ter conhecido.
- Não me diga! O comportamento dela para com a italiana foi admirável.
- O seu comportamento era sempre admirável - retorquiu o sacerdote. - Toda a gente aqui me falou das suas qualidades e da sua subtileza de espírito, ao que constava, muito superiores às do marido. Mas, quanto a mim, esses dotes que lhe eram atribuídos resumiam-se, afinal, ao simples facto de ser uma senhora e ele não ser um cavalheiro. No entanto, duvido que S. Pedro se contente com esse teste para lhe permitir a entrada no céu.
- Quanto ao resto - prosseguiu o padre, com animação crescente -, ao ouvi-la pronunciar as primeiras palavras, apercebi-me imediatamente de que não estava a ser sincera em relação à pobre italiana, com aqueles ares de magnanimidade frígida e, mais tarde, tive a confirmação disso ao saber que a peça era Escola de Escândalos.
- Está a ir depressa de mais para a minha cabeça - confessou Jarvis, atrapalhado. - Que é que a peça tem a ver com isto?
- Bem, ela afirmou que tinha distribuído à rapariga o papel da bela heroína, contentando-se com um papel secundário, o de uma matrona mais velha. Ora, isso poderá aplicar-se a quase todas as peças. No entanto, neste caso particular, deturpa os factos. Ela queria dizer que dera à outra actriz o papel de Maria, que é, afinal, uma personagem sem relevo algum. E a matrona, segundo ela, apagada e obscura, era certamente Lady Teazle, o único papel que agradaria a uma actriz. Sendo a italiana uma profissional de primeira categoria, a quem fora prometido um papel importante, havia, de facto, uma desculpa, ou pelo menos um motivo para a sua fúria. De um modo geral, há sempre um motivo para as fúrias dos italianos. Os latinos guiam-se pela lógica e não se enfurecem sem razão. Foi esse pormenor que me ajudou a compreender o significado de uma tal magnanimidade por parte de Mrs. Manderville. E houve ainda outra coisa. Você riu-se quando eu, a propósito do ar de Mrs. Sands, afirmei que através do aspecto se podia avaliar a maneira de ser das pessoas, embora não me estivesse a referir a ela. E isso é verdade. Se quiser conhecer uma senhora não se fie no que vê com o olhar, pois ela pode ser esperta de mais para si. Não olhe para os homens que a rodeiam porque podem andar todos embeiçados por ela. Mas olhe para outra mulher que costume estar perto da visada, sobretudo se se encontrar numa posição subalterna. É através desse espelho que verá o seu verdadeiro rosto e, neste caso, o rosto que nos aparecia através de Mrs. Sands era muito feio.
"E quanto às outras impressões, em que consistiam? Ouvi inúmeros comentários acerca dos defeitos do pobre Manderville e todos eles se referiam ao mesmo: o facto de não ser merecedor dela. Ora, tenho a certeza de que essa opinião provinha indirectamente da própria Mrs. Manderville. E o certo é que esses comentários acabavam por traí-la. De acordo com aquilo que todos os homens diziam, tinha sido ela própria que confessara o sentimento de solidão intelectual que a dominava. Você mesmo afirmou que ela nunca se queixava e logo a seguir citou palavras dela ao referir a forma como o seu silêncio lhe fortalecia a alma. É precisamente esse o toque exacto, o estilo inconfundível. As pessoas que se lamentam não passam de uns pobres diabos que nos incomodam. Com essas não se preocupe. Mas as que se queixam de nunca se lamentarem, essas são o diabo. O culto byroniano de satã não se baseava precisamente nessa presunção de estoicismo? Ouvi todos esses comentários, mas, sinceramente, não vi nada que pudesse constituir motivo para os seus lamentos. Não constava que o marido bebesse, ou a tratasse mal, ou não lhe desse dinheiro, ou lhe fosse infiel, até começarem a surgir rumores de que tinha encontros secretos, que não passavam, afinal, do hábito melodramático que ela tinha de o importunar com as suas queixas, quando ele se encontrava no escritório. Se alguém quisesse ver os factos ignorando a impressão constante do martírio que ela pretendia transmitir, veria que eles apontavam no sentido oposto. Manderville deixou de ganhar dinheiro com as pantominas só para lhe agradar, e começou a ter elevados prejuízos com o teatro clássico só para a satisfazer. Era ela que arranjava os cenários e a mobília como queria. Se pretendia levar à cena uma peça de Sheridan, conseguia-a; se desejava representar o papel de Lady Teazle, o papel era dela; se lhe passasse pela cabeça fazer um ensaio sem guarda-roupa a uma determinada hora, o ensaio fazia-se. É de notar o facto curioso de ter insistido nisso.
- Mas qual a finalidade de toda essa tirada? - indagou o actor que nunca tivera ocasião de ouvir o seu amigo sacerdote fazer um discurso tão longo. - Com essas considerações de carácter psicológico acabou por se afastar muito do assunto em causa: o homicídio. Ela pode ter fugido com Knight, pode-me ter aldrabado também a mim, mas não foi ela com certeza quem matou o marido, pois sabemos perfeitamente que se manteve no palco durante todo o ensaio. Pode ser uma malvada, no entanto não é bruxa.
- Bom, eu não me atreveria a afirmar tanto - disse o padre Brown sorrindo. - Mas também não era necessário recorrer a um acto de bruxaria. Neste momento posso afirmar que ela o matou e fê-lo de uma forma muito simples.
- Como é que pode estar tão certo disso?
- Porque a peça era Escola de Escândalos e, em particular, por causa desse acto - replicou o padre. - Gostaria ainda de lhe lembrar o que ainda há pouco tive ocasião de referir; o facto de ser ela a dispor a mobília como muito bem entendia. Não se esqueça também de que este palco foi construído e utilizado para pantominas, pelo que devem ali existir uma série de portas falsas, alçapões e outros truques desse género. E quando me diz que as testemunhas podem confirmar a presença de todos os actores no palco durante o acto, gostaria de lhe lembrar que na cena principal de Escola de Escândalos um dos principais actores permanece durante todo o tempo no palco, mas não é visto pela assistência. Tecnicamente pode considerar-se que está em palco, mas em termos práticos pode estar ausente. O biombo de Lady Teazle é o alibi de Mrs. Manderville.
Fez-se um silêncio e depois o actor perguntou admirado:
- Acha que ela se escapuliu através de um alçapão por detrás do biombo, que conduzia directamente ao escritório de Manderville?
- Pelo menos arranjou forma de se escapar e parece-me ter sido essa a mais provável - respondeu o padre -, pois aproveitou assim a oportunidade de estar num ensaio em que não era necessário trocar de roupa, além de que foi ela própria que sugeriu isso. Trata-se apenas de uma suposição; no entanto, estou convencido de que se fosse um ensaio com o guarda-roupa apropriado, teria sido bem mais difícil passar através do alçapão com a complicada imdumentária do século XVIII. É claro que se deparou com outras dificuldades, mas essas seriam mais fáceis de resolver.
- Há uma coisa que eu não consigo entender - observou Jarvis, apoiando a cabeça nas mãos e soltando uma espécie de grunhido. - Não consigo convencer-me que uma criatura como ela, tão encantadora e tão serena, tenha perdido o equilíbrio mental dessa maneira, para já não referir o aspecto moral. Será que existia algum motivo que a tivesse levado a proceder assim? Estaria ela loucamente apaixonada por Knight?
- Oxalá fosse assim, pois nesse caso sempre teria alguma desculpa. No entanto, lamento dizer que tenho as minhas dúvidas. Ela queria ver-se livre do marido, que além de ser um velho provinciano e conservador, nem sequer tinha muito dinheiro para ela poder seguir a carreira brilhante a que teria acesso como esposa de um actor em rápida ascensão. Mas não desejava actuar nesse sentido em Escola de Escândalos. Só fugiria com um homem em última instância. Não a dominava uma paixão, mas uma espécie de respeitabilidade infernal. Passava o tempo a massacrar o marido em segredo, insistindo com ele para que lhe concedesse o divórcio ou desaparecesse do seu caminho. E afinal Manderville acabou por pagar bem cara a sua recusa. E ainda há outra coisa. Você fala muito desses intelectuais, detentores de uma arte superior e protagonistas de um drama ainda mais filosófico, mas repare no tipo de filosofia em questão! Veja o
comportamento que eles têm. Falam muito do Desejo do Poder, do Direito à Vida, do Direito à Experiência... disparates sem sentido e, mais que isso, disparates que podem trazer consequências deploráveis.
O padre Brown franziu o sobrolho, o que raramente acontecia, e o seu olhar denotava ainda preocupação quando pôs o chapéu na cabeça e saiu, embrenhando-se na escuridão da noite.

CAPÍTULO V
O DESAPARECIMENTO DE VAUDREY

Sir Arthur Vaudrey, de fato de Verão cinzento claro e exibindo um chapéu branco sobre a cabeça grisalha, caminhou num passo miúdo pela estrada que seguia ao longo do rio, desde a mansão onde vivia até ao pequeno grupo de casas que eram praticamente dependências da sua, entrou na aldeola e desapareceu por completo, como se tivesse sido levado por fadas.
Tal desaparecimento parecia ainda mais absoluto e súbito, em virtude da familiaridade do cenário e da extraordinária simplicidade das condições em que o facto ocorreu. O lugarejo nem sequer podia ser considerado uma aldeia. Com efeito, era pouco mais que uma ruela curiosamente isolada, no meio de vastos campos, um simples conjunto de quatro ou cinco lojas alinhadas, indispensáveis aos habitantes locais, ou seja, alguns agricultores e a família que vivia na casa grande. Havia um talho à esquina, onde, segundo constava, Sir Arthur tinha sido visto pela última vez. Quem o afirmava eram dois indivíduos ainda jovens que viviam em casa dele: Evan Smith, que exercia as funções de secretário, e John Dalmon, noivo da jovem de quem Sir Arthur era tutor. A seguir ao talho havia uma pequena loja que reunia um grande número de funções, tal como acontece em muitas aldeias, onde uma velhinha vendia goluseimas, bengalas, bolas de golfe, goma, novelos de lã e papel de carta. Depois havia uma tabacaria onde os dois jovens se encontravam quando avistaram o seu anfitrião pela última vez à porta do talho, a seguir existia uma loja de modista mantida por duas senhoras e ainda, a completar o bloco de construções, uma modesta pastelaria que oferecia aos que por ali passavam grandes copos de limonada. A única pousada razoável que existia nas redondezas ficava um pouco mais adiante, junto da estrada principal. Entre a pousada e a povoação havia um cruzamento no qual se encontravam um polícia e um funcionário de um clube automobilístico local, tendo ambos afirmado que Sir Arthur não passara por ali.
Às primeiras horas de um radioso dia de Verão, o velho senhor partira pela estrada fora, segurando a bengala com uma das mãos e agitando as luvas amarelas com a outra. Era um indivíduo todo janota e, apesar da idade, apresentava uma força e uma energia dignas de espanto. O seu vigor físico e a sua actividade eram realmente notáveis, podendo o cabelo branco confundir-se com um loiro muito claro. O rosto bem escanhoado era agradável, e tinha um nariz aquilino parecido com o do duque de Wellington. No entanto, o pormenor mais importante dizia respeito aos olhos. Não se podiam considerar apenas notáveis, metaforicamente falando, pois havia neles algo de proeminente e quase protuberante, o que constituía talvez a única desproporção da sua fisionomia, mas os lábios eram firmes e sensíveis, como se tal se devesse a um acto de vontade. Era o dono de toda aquela região, o que incluía o pequeno aglomerado de habitações. Ora, num meio como esse, para além de se conhecerem todos uns aos outros, toda a gente sabe onde cada um se encontra em dado momento. O normal seria Sir Arthur dirigir-se até à aldeia para dizer o que lhe aprouvesse ao carniceiro ou a outra pessoa qualquer e depois regressar a casa, gastando com tudo isso cerca de meia hora, tal como acontecera em relação aos dois rapazes quando foram comprar cigarros. No entanto, ninguém se cruzou com eles na estrada e a única pessoa que viram foi o outro hóspede da casa, um tal Dr. Abbott, que estava sentado à beira do rio, de costas voltadas para o caminho, entretido a pescar.
Quando os três convidados se reuniram à mesa do pequeno-almoço não se mostraram preocupados com a ausência de Sir Arthur, mas à medida que o dia ia avançando, sem que ele aparecesse para as refeições, começaram, naturalmente, a ficar preocupados e Sybil Rye, a senhora da casa, parecia seriamente alarmada. Efectuaram-se então expedições de pesquisa até à aldeia, sem contudo se descobrir qualquer pista e, quando a noite desceu, o medo instalou-se na casa. Sybil mandara chamar o padre Brown que, além de ser seu amigo, já lhe prestara ajuda anteriormente numa dificuldade que tivera, tendo o sacerdote, dada a gravidade da situação, aceitado permanecer na casa para investigar o assunto.
Quando o novo dia amanheceu sem que houvessem notícias do desaparecido, o padre Brown levantou-se cedo e resolveu iniciar as suas investigações. Podia observar-se o seu vulto negro e atarracado a caminhar no jardim, ao longo do rio, enquanto esquadrinhava o cenário com um olhar míope e espantado.
De súbito, apercebeu-se da presença de um outro vulto que caminhava sem descanso ao longo da margem e saudou-o. Tratava-se, com efeito, de Evan Smith, o secretário de Sir Arthur.
Evan Smith era um jovem alto de cabelo loiro e expressão apreensiva, o que era justificável naquele momento de angústia. No entanto, era esse ar preocupado que normalmente exibia, mesmo noutras ocasiões. Talvez esta sua faceta se tornasse mais no-
tada devido ao seu porte atlético, à espécie de juba leonina e ao bigode que costumam acompanhar, pelo menos nos romances, a atitude franca e jovial do "jovem inglês". E, no seu caso, havia ainda umas olheiras profundas e um ar perturbado, que em contraste com a figura alta e convencional e o cabelo loiro, característicos das personagens de romance, lhe conferia algo de sinistro. O padre Brown sorriu-lhe amavelmente e depois observou, num tom grave:,
- É um assunto preocupante.
- Sobretudo para Miss Rye - acrescentou o jovem, apreensivo. - E não sei por que razão hei-de dissimular que o facto me toca bem de perto, embora ela esteja noiva de Dalmon. Também se sente chocado, suponho?
O padre, no entanto, não pareceu muito chocado. Já era habitual nele mostrar-se inexpressivo e limitou-se a responder:
- Naturalmente todos nós compreendemos a ansiedade dela. Julgo que você nada sabe do caso nem faz ideia do que se terá passado...?
- Não tenho propriamente novidades, pelo menos do exterior. Quanto à minha opinião... - E Evan Smith calou-se.
- Gostaria muito de ouvir as suas opiniões - insistiu o padre, franzindo os olhos.
- Sim, tem razão - disse o outro, por fim. - Creio que é melhor abrir-me com alguém. E o senhor parece ser a pessoa mais indicada.
- Sabe alguma coisa sobre o que aconteceu a Sir Arthur? - indagou o sacerdote num tom calmo, como se se tratasse do assunto mais natural deste mundo.
- Sim - respondeu o secretário. - Julgo saber o que lhe aconteceu.
- Está uma bela manhã - proferiu uma voz branda, mesmo atrás deles. - Uma manhã tão linda para um encontro tão triste.
Desta vez o secretário deu um salto como se o tivessem alvejado a tiro, enquanto a sombra do Dr. Abbott se lhe atravessava no caminho. O médico ainda se encontrava de roupão - um sumptuoso roupão oriental com flores e dragões estampados, que fazia lembrar um canteiro de flores. Trazia os chinelos calçados, razão por que conseguira aproximar-se deles sem ser ouvido. Seria a última pessoa de quem se esperaria uma aproximação tão suave e silenciosa, visto tratar-se de um homem alto e corpulento. Tinha um rosto muito bronzeado, com uma expressão benevolente, emoldurado por patilhas grisalhas, um tanto fora de moda, e uma barba pontiaguda e abundante, tal como os caracóis longos e prateados da sua venerável cabeça. Os olhos semi-cerrados conferiam-lhe um ar ensonado e, de facto, era muito cedo para um homem de idade avançada como ele se encontrar já levantado. No entanto, o seu aspecto era ao mesmo tempo robusto e de pele curtida, fazendo lembrar um velho agricultor ou um marinheiro habituado a suportar as intempéries. Era o único antigo colega contemporâneo de Sir Arthur que se encontrava entre os membros do grupo reunido naquela altura na mansão.
- É verdadeiramente extraordinário - observou ele, abanando a cabeça. - Aquelas casinhas parecem de boneca, sempre de portas abertas, à frente e nas traseiras, aparentemente sem haver ali sítio para se esconder uma pessoa, no caso de o terem querido fazer, o que eu duvido. Dalmon e eu examinámo-las todas ontem e interrogámos os habitantes. As mulheres têm um ar inofensivo e parecem incapazes de fazer mal a uma mosca. Quanto aos homens, estão ausentes a maior parte do tempo, a trabalhar nos campos, à excepção do carniceiro. E não podia ter acontecido nada no caminho que segue à beira do rio, pois passei ali o dia a pescar. Voltou-se para Smith e desta vez o seu olhar não parecia ensonado, mas malicioso.
-Julgo que você e Dalmon poderão testemunhar que me viram sentado à beira do rio quando foram à povoação e voltaram.
- Claro - respondeu Smith secamente, mostrando-se contrariado com uma tão longa interrupção.
- A única coisa que não me sai da cabeça - prosseguiu o Dr. Abbott com lentidão, mas as suas palavras foram, por sua vez, interrompidas. Uma figura, simultaneamente ágil e vigorosa atravessou apressadamente o relvado, por entre os canteiros, dirigindo-se para junto deles. Era Jonh Dalmon, e trazia um papel na mão. Vinha vestido impecavelmente, a sua tez era morena e o rosto quadrangular, de traços napoleónicos, e tinha uma expressão muito triste - os seus olhos eram tão tristes que pareciam mortiços. Tinha aspecto de ser ainda jovem, mas o cabelo preto tornara-se prematuramente grisalho nas têmporas.
- Acabo de receber este telegrama da polícia - anunciou. - Contactei-a a noite passada e dizem que vão mandar para cá um
homem imediatamente. Sabe-me dizer com quem mais deverei contactar, Dr. Abbott? Familiares, pessoas amigas, etc.
- O sobrinho, Vernon Vaudrey, é claro - respondeu o velhote. - Se quiser vir comigo, dar-lhe-ei a morada dele e... quero também revelar-lhe uma coisa especial acerca desse rapaz.
O Dr. Abbott e Dalmon afastaram-se na direcção da casa e, quando já iam a uma certa distância, o padre Brown, como se entretanto não tivesse havido qualquer interrupção, limitou-se a dizer:
- Estava então a contar-me...
- Admiro a sua calma - observou o secretário. - Deve ser do hábito de escutar as confissões. Sinto-me como se me fosse confessar. Provavelmente, muita gente iria sentir-se desencorajada a fazer confidências depois da chegada imtempestiva daquele velho paquiderme rastejante como uma cobra. Mas acho que o melhor é ir direito ao assunto, embora não se trate propriamente da minha confissão, mas sim da de outra pessoa. - Calou-se por instantes, enquanto cofiava o bigode, e acrescentou bruscamente: - Penso que Sir Arthur se pôs a andar e julgo saber porquê.
Fez-se novo silêncio e depois recomeçou novamente a falar:
- Estou numa posição muito ingrata e a maior parte das pessoas dirão que estou a proceder mal. Vou apresentar-me na pele de uma cobra, de um canalha, mas estou ciente de que é esse o meu dever.
- Só você o poderá determinar - observou o sacerdote. - De que se trata?
- Vejo-me na ingrata situação de ter de falar contra um rival, e para mais de um rival bem sucedido - declarou o jovem com amargura. - No entanto, não sei que outra coisa poderei eu fazer. Perguntou-me há pouco qual a explicação para o desaparecimento de Vaudrey. Estou absolutamente convencido de que a explicação reside na pessoa de Dalmon.
- Quer dizer que Dalmon matou Sir Arthur? - perguntou o padre Brown sem pestanejar.
- Não! - protestou Smith, de uma forma intempestiva. - Nem pensar! Fez outras coisas, mas matá-lo, isso não. Dalmon possui o melhor dos alibis: o testemunho de um homem que o detesta. Posso jurar em qualquer tribunal que ele ontem não molestou o velhote. Dalmon e eu passámos o dia juntos, pelo menos essa parte do dia, e garanto-lhe que ele se limitou a comprar cigarros na aldeia e enquanto aqui esteve levou o tempo a fumá-los e a ler na biblioteca. Penso que é um criminoso, mas não matou Vaudrey. Posso mesmo acrescentar que ele não o matou precisamente porque é um criminoso.
- Ah sim? E que é que isso quer dizer? - indagou o padre.
- Quer dizer que ele é um criminoso que comete outro crime, o que só acontece se Vaudrey continuar vivo.
- Compreendo - observou o sacerdote.
- Conheço muito bem Sybil Rye, cujo carácter desempenha um papel muito importante em toda esta história. É um carácter excelente nos dois sentidos, isto é, possui nobres qualidades e uma constituição particularmente delicada. É uma dessas pessoas terrivelmente conscienciosas e ao mesmo tempo sem defesas, constituídas pelo hábito e pelo senso comum que muitas das criaturas como ela possuem. É uma rapariga de uma sensibilidade doentia e, ao mesmo tempo, bastante altruísta. A história da sua vida é muito curiosa: foi abandonada praticamente sem dinheiro, como uma enjeitada, e Sir Arthur levou-a para casa e tratou-a com consideração, para espanto de muita gente, pois, sem menosprezar o velhote, tal atitude não estava muito de acordo com ele. Mas quando ia fazer 17 anos, veio a saber a chocante explicação - o seu tutor pediu-a em casamento. E agora chegamos à parte mais curiosa da história. De uma forma ou de outra, Sybil ouviu contar a alguém -desconfio que foi ao velho Abbott - que Sir Aubrey Vaudrey, durante os anos fogosos da juventude, cometera um crime ou, pelo menos, prejudicara alguém, o que lhe causara então grandes problemas. Não sei do que se tratou, mas isso constituía um grande pesadelo para a rapariga, sobretudo numa idade tão sentimental, o que a levou a considerá-lo um monstro ou, pelo menos, um homem destituído das qualidades que ela desejaria num marido. O que ela fez então é típico da sua maneira de ser. Com um terror imenso e uma grande dose de coragem contou-lhe a verdade com os lábios a tremer. Admitiu que a sua repulsa poderia ser mórbida e confessou esse sentimento como se de uma secreta loucura se tratasse. Ora, para seu alívio e surpresa, Sir Arthur aceitou tudo com calma e não voltou a abordar o assunto, tendo o reconhecimento por parte dela da genorosidade do seu tutor aumentado ainda mais, graças ao que a seguir lhe vou contar. Um dia, a vida solitária de Sybil veio a sofrer a influência de um homem não menos solitário, que vivia acampado numa das ilhotas do rio e aí vivia como um ermitão. Sou levado a crer que o mistério que o envolvia era um atractivo para ela, embora eu o considere um homem já de si bastante atraente. Trata-se, na verdade, de um cavalheiro muito arguto, embora melancólico, o que contribuiu, julgo eu, para conduzir ao romance. Refiro-me, como deve calcular, a Dalmon e ainda hoje não estou bem certo até que ponto ela o aceitou realmente, mas a situação chegou, pelo menos, à fase de ele conseguir licença para se avistar com o tutor. Imagino a angústia e o terror com que ela aguardou essa entrevista, sem saber como é que o anterior pretendente aceitaria a presença de um rival. Ora, também neste caso concluiu, mais uma vez, que cometera uma injustiça, pois Sir Arthur recebeu o jovem de forma hospitaleira e pareceu encantado com os projectos do jovem casal. Passaram a ir à caça e à pesca juntos e não tardaram a tornar-se bons amigos até ao dia em que Sybil voltou a sofrer novo choque, quando Dalmon deixou escapar uma frase ao acaso, no meio da conversa: "não mudou muito em trinta anos", e a verdade acerca dessa estranha e antiga intimidade entre eles irrompeu dentro do seu espírito. Aquele primeiro contacto entre ambos e a forma como Sir Arthur recebera Dalmon não haviam passado afinal de uma farsa: era óbvio que os dois já se conheciam antes. Fora esse o motivo da vinda do jovem para aquelas paragens, rodeado de segredo. E aí estava a razão pela qual o homem mais velho se mostrara tão disposto a aceitar o casamento. Não sei o que pensa disto, reverendo...
- Mas eu sei o que você pensa - disse o padre Brown, sorrindo -, e parece-me perfeitamente lógico. Temos Vaudrey com uma história feia no seu passado: um misterioso desconhecido aparece um dia, no intuito de conseguir extorquir-lhe qualquer coisa. Por outras palavras, pensa que Dalmon é um chantagista.
- Penso - admitiu o outro -, por muito que isso me custe. O padre Brown ficou a pensar por momentos e acabou por declarar:
- Penso que é altura de ir ter uma conversa com o Dr. Abbott.
Quando voltou a sair de casa, uma hora ou duas depois, embora tivesse estado a conversar com o médico, não foi na companhia dele que apareceu, mas sim na de Sybil Rye, umajovem pálida, de cabelo arruivado e um perfil de contornos delicados, quase trémulos. Ao vê-la era fácil compreender a história do secretário acerca da sua candura. Lembrava Lady Godiva e algumas histórias de virgens mártires - só as pessoas tímidas podem ser tão sinceras de forma a conseguirem estar em paz com a sua consciência. Smith foi ao encontro deles e deixaram-se ficar por alguns momentos no relvado, a conversar. O dia, que se mantivera radioso desde o amanhecer, começava agora a toldar-se e no céu surgiam nuvens ameaçadoras, mas o padre Brown trazia consigo o seu guarda chuva e, além disso, com a roupa que vestia vinha preparado para enfrentar a intempérie. No entanto, talvez não passasse de um efeito inconsciente de uma atitude e não existisse o perigo de uma tempestade, pelo menos material.
- O que mais detesto - dizia Sybil, falando em voz baixa-são os comentários que começam a surgir: as suspeitas em relação a toda a gente. John e Evan poderão responder um pelo outro, penso eu, mas o Dr. Abbott fez uma cena horrível com o carniceiro, que, ao sentir-se acusado, desatou por seu lado a lançar acusações sobre o médico.
Evan Smith mostrava-se muito incomodado e acabou por conseguir dizer:
- Ouça, Sybil, embora eu nada saiba estou convencido de que nada disso se justifica. Tudo isto é extremamente desagradável, mas não cremos que tenha havido... violência.
- Quer dizer que já têm alguma teoria sobre o caso? - indagou a rapariga, de olhos fitos no sacerdote.
- Ouvi uma teoria que me parece bastante convincente - explicou o padre Brown.
O sacerdote ficou a olhar para o rio com um ar sonhador, enquanto Smith e Sybil falavam em voz baixa. Em seguida, o sacerdote caminhou ao longo da margem e embrenhou-se num pequeno bosque de árvores de troncos finos, numa zona em que o terreno descia em declive até ao rio. O sol forte incidia sobre o fino véu das pequenas folhas ondulantes transformando-as em verdes línguas de fogo e todos os pássaros cantavam, como se as árvores dispusessem de um coro de vozes. Dali a um minuto ou dois, Evan Smith ouviu chamar pelo seu próprio nome do meio do arvoredo. Encaminhou-se rapidamente nessa direcção e deparou-se com o padre Brown que, entretanto, já vinha ao seu encontro e se lhe dirigiu em voz baixa:
- Não deixe a senhora vir para este lado. Não seria possível afastá-la daqui? Peça-lhe que vá telefonar ou arranje outra desculpa qualquer e depois venha aqui ter.
Evan Smith voltou as costas com um ar preocupado e aproximou-se da rapariga. No entanto, ela não era daquelas pessoas que mostram relutância em fazer pequenos favores aos outros e, por isso, não tardou a desaparecer dentro de casa. Entretanto Smith preparou-se para ir ao encontro do padre Brown que voltara a embrenhar-se no bosque. Mesmo por detrás do arvoredo havia uma ligeira cova onde a relva cedera até ao nível da areia, à beira do rio. O padre Brown encontrava-se junto desta depressão e olhava para baixo mas, por casualidade ou intencionalmente, tinha o chapéu na mão apesar da intensidade do Sol.
- O melhor é vir ver isto com os seus próprios olhos para poder servir de testemunha. Mas prepare-se para o que o espera.
- Preparar-me para quê? - perguntou Smith.
- Para observar a coisa mais horrível que eu já vi em toda a minha vida - respondeu o padre Brown.
Evan Smith deu um passo na direcção da margem e foi com dificuldade que conseguiu reprimir um grito de pavor.
Sir Arthur Vaudrey olhava os dois observadores com os dentes arreganhados. Tinha o rosto voltado para cima, de tal modo que poderia tê-lo pisado se não estivesse de sobreaviso. Tinha a cabeça inclinada para trás com o cabelo de um branco amarelado voltado para ele, de tal modo que lhe via a cara na posição invertida. Tudo isto conferia ao quadro uma nota de pesadelo, como se um homem fosse a caminhar com a cabeça posta ao contrário. Que estaria ele a fazer? Seria possível que Vaudrey se encontrasse realmente ali, de gatas, escondido entre a vegetação, a espreitá-los naquela estranha postura? O resto do corpo parecia curvado e torcido, como se o tivessem estropiado ou deformado. No entanto, olhando mais de perto, via-se que eram apenas os membros encolhidos, sem vida. Teria enlouquecido? Quanto mais Smith olhava, mais rígida lhe parecia a posição.
- Daí não pode ver - observou o padre Brown -, mas cortaram-lhe o pescoço.
- Acredito que isto seja a coisa mais horrível que viu em toda a sua vida - observou o secretário, estremecendo. - Creio que é por estar a ver a cara de cima para baixo. Durante dez anos tive ocasião de observar este rosto todos os dias ao pequeno-almoço e ao jantar e sempre me pareceu agradável e simpático. Agora, visto ao contrário, lembra a expressão de um demónio.
- Dá impressão de que se está a rir - observou o padre Brown - o que talvez não constitua o aspecto menos importante do enigma. Não é vulgar as pessoas estarem a rir enquanto lhes cortam a garganta, nem mesmo nos casos em que são elas próprias a fazê-lo. Esse sorriso, associado aos olhos salientes, basta para explicar o efeito da expressão. Mas, de facto, é bem verdade que as coisas parecem diferentes quando as vemos de pernas para o ar. Muitas vezes os pintores invertem a posição dos seus desenhos a fim de verificar a sua perfeição. Se, por acaso, for difícil inverter os objectos, como por exemplo no caso de Matterhorn, fazem o pino ou, pelo menos, observam a obra espreitando por entre as pernas.
O padre, que dizia isto com ar irreverente, para tentar descontrair o outro, concluiu, falando agora num tom mais sério:
- Percebo perfeitamente como se deve sentir alterado com tudo isto. Infelizmente houve outras coisas que também ficaram alteradas.
- Que quer dizer?
- É que assim a nossa teoria deixa de fazer sentido - replicou o outro. E começou a descer o declive em direcção à pequena faixa de areia junto à água.
- Talvez se suicidasse - sugeriu Smith. - Afinal de contas era essa a melhor forma que ele tinha de escapar e coincide perfeitamente com a nossa teoria. Procurou um lugar sossegado e escolheu este para se suicidar.
- Ele não veio para aqui - observou o padre Brown. - Pelo menos enquanto estava vivo, e muito menos por terra. Não foi morto aqui, pois não há vestígios de sangue em quantidades que o justifique. O Sol já secou o cabelo e as roupas, mas ainda se vêem dois sulcos na areia com água. Neste ponto, a maré que vem do mar faz um remoinho que arrastou o corpo para a margem. No entanto, o cadáver deve ter sido trazido pela corrente, provavelmente desde a aldeia até aqui, uma vez que o rio passa mesmo por detrás da fila de casas e lojas. O pobre do Vaudrey morreu algures na aldeia e não acredito que se tenha suicidado. No entanto, o problema que se me põe é o de saber quem é que o poderia ter morto.
Começou a fazer desenhos toscos na areia com a ponta do guarda-chuva e prosseguiu:
- Vejamos a localização das lojas na aldeia. Em primeiro lugar temos o talho, e é claro que o carniceiro seria o protagonista ideal, com o seu enorme facalhão, mas você viu Vaudrey sair de lá e não estou a imaginar o carniceiro a dizer-lhe do outro lado do balcão: "Bom dia. Dá-me licença que lhe corte as goelas? Obrigado! E que mais deseja?" E também não me parece que Sir Arthur fosse homem para se deixar ali ficar a ouvir aquilo, com um sorriso nos lábios. Era um sujeito cheio de força e com um temperamento violento. Ora, quem mais poderia ter sido, além do carniceiro? A seguir fica uma loja, cuja dona é uma velhota, depois é a tabacaria, cujo proprietário é um homem, mas bastante tímido, segundo me disseram. Há ainda a loja de roupas gerida por duas solteironas e, finalmente, temos a pastelaria pertencente a um sujeito que se encontra hospitalizado, tendo ficado a mulher a substituí-lo. Trabalham aí dois ou três garotos da aldeia que costumam fazer recados, mas que na altura se encontravam ausentes. Esta loja é a última da rua e a seguir não há mais nada, a não ser a estalagem, que fica depois da encruzilhada onde costuma estar o polícia.
Fez um furo no chão com a ponta do guarda-chuva para indicar o polícia e depois deixou-se ficar a contemplar o rio. Dali a pouco fez um gesto com a mão e, num movimento apressado, ajoelhou-se junto ao cadáver..
- Ah! - exclamou, endireitando-se e respirando fundo. - A tabacaria! Mas por que é que eu não me lembrei disso antes?
- Mas que é que se passa? - indagou Smith, um tanto exasperado, ao ver o padre Brown a revirar os olhos e a murmurar a meia voz, tendo pronunciado a palavra "tabacaria" como se fosse um vocábulo maldito.
- Reparou, por acaso, num aspecto curioso do rosto? - perguntou o sacerdote.
- Curioso? Santo Deus! - observou Evan. - Se é ao corte no pescoço que se refere...
- Eu falei no rosto - insistiu o sacerdote. - Além disso, não viu, com certeza, que ele se feriu na mão e tem uma ligadura a protegê-la.
- Oh, mas isso não tem nada a ver com o assunto - explicou o outro de imediato. - Foi um acidente, cortou-se num tinteiro que estava partido quando estávamos a trabalhar juntos.
- Mas de qualquer forma tem a ver com este assunto - insistiu o padre.
Seguiu-se um prolongado silêncio, enquanto o padre Brown caminhava, pensativo, pelo areal, arrastando o guarda-chuva e murmurando a palavra "tabacaria" repetidas vezes, a ponto de o seu amigo sentir arrepios de medo só de ouvi-lo. De repente, levantou o guarda-chuva e apontou para um barracão destinado a guardar barcos.
- Aquele é o barco da casa? - indagou. - Gostava que me transportasse pelo rio acima. Quero dar uma vista de olhos às traseiras das casas e não há tempo a perder. Pode ser que entretanto mais alguém venha a descobrir o corpo, mas temos de arriscar.
Smith apressou-se a empurrar o barco para a água, e lá seguiram os dois rumo à povoação.
- É verdade, consegui que Abbott me contasse a tal história do passado de Vaudrey. Trata-se de um episódio curioso passado com um oficial egípcio que o insultou, afirmando que qualquer muçulmano que se prezasse devia evitar os porcos e os ingleses, mas que dos dois preferiam os primeiros. Segundo parece a questão voltou à baila alguns anos depois, numa ocasião em que o tal egípcio veio a Inglaterra e Vaudrey, com o seu temperamento irascível, arrastou o homem para uma pocilga que havia na quinta e atirou com ele lá para dentro, partindo-lhe um braço e uma perna e deixando-o ali ficar até ao dia seguinte. Houve grande falatório em torno desta questão, como seria de esperar, mas muita gente admiti u que ele agira sob a influência de um acesso de patriotismo desculpável. De qualquer modo não me parece que isto fosse motivo para um homem se ter submetido a chantagem durante tantos anos.
- Então acha que essa história não tem nada a ver com o que agora se passou!? - inquiriu Evan.
- Pelo contrário, neste momento estou convencido de que tem muito a ver com aquilo que eu penso que se passou.
Naquele momento iam a deslizar ao longo do muro baixo que limitava as pequenas faixas de terra cultivada, situadas nas traseiras das casas. O padre Brown contou-as cuidadosamente, apontando com o guarda-chuva e quando chegaram à terceira, voltou a pronunciar a mesma palavra:
-Atabacaria! Por acaso a tabacaria...? Não, acho que me vou deixar guiar pela intuição até ter a certeza. Mas agora vou-lhe dizer o que me pareceu esquisito em relação ao rosto de Sir Arthur.
- E que foi? - perguntou Smith, imobilizando os remos por instantes.
-Ele tinha muito cuidado com a sua apresentação - observou o sacerdote -, mas no entanto só tinha metade da cara barbeada ... Não se importa de parar aqui? Podíamos prender o barco a este poste.
Dali a pouco já tinham galgado o muro e subiam pelo carreiro íngreme da pequena horta, com os seus canteiros regulares onde cresciam legumes e flores.
-Vê? O homem da tabacaria cultiva batatas - observou o padre Brown. - E tem muitas sacas delas. Esta gente da aldeia não perdeu os hábitos camponeses e continuam a ter duas ou três ocupações ao mesmo tempo. E os donos das tabacarias da província muitas vezes exercem uma outra profissão de que eu não me tinha lembrado até ao momento em que vi o queixo de Vaudrey. A maior parte das vezes chamamos tabacaria a um estabelecimento que é também barbearia. Como se tinha ferido na mão, não podia fazer a barba e por isso veio aqui. Isso sugere-lhe alguma coisa?
- Sem dúvida, mas a si deve sugerir muito mais - observou Smith.
-Não lhe sugere, por exemplo, a única situação em que um sujeito forte e com um temperamento irrascível poderia estar a sorrir no momento em que lhe cortam as goelas?
Nesse momento transpuseram uma passagem escura nas traseiras da casa e entraram na sala que ficava no fundo da loja, apenas iluminada pela luz fraca que vinha do outro compartimento e se reflectia num velho espelho partido. Contudo, havia luz suficiente para se poder ver os utensílios indispensáveis numa barbearia e o rosto pálido e aterrorizado de um barbeiro.
Os olhos do padre Brown percorreram a sala, que parecia ter sido limpa recentemente, até se imobilizarem num recanto poeirento atrás da porta, onde se via pendurado um chapéu branco, bem conhecido de todos os habitantes daquela aldeola. Contudo, apesar do aspecto respeitável que sempre apresentara na rua, constituía agora um pormenor insignificante, daqueles que passam completamente despercebidos a quem se preocupa, sobretudo, em lavar o chão e em fazer desaparecer os tapetes manchados.
- Creio que Sir Arthur Vaudrey esteve aqui ontem a fazer a barba - observou o padre Brown.
Para o barbeiro, um sujeito de óculos, baixote e careca, chamado Wicks, a súbita entrada daqueles dois indivíduos pela porta das traseiras era como que uma aparição de duas almas penadas que se tivessem erguido de súbito das suas tumbas. No entanto, não tardou a perceber que havia outros motivos para se preocupar, bem mais importantes, aliás, que um simples acesso de superstição. Encolheu-se num canto da sala mergulhada na penumbra e tudo nele pareceu diminuir de tamanho, à excepção dos seus óculos de duende.
- Diga-me uma coisa - pediu o sacerdote. - Tinha algum motivo especial para o odiar?
O homem murmurou qualquer coisa lá do canto, que Smith não conseguiu perceber, mas Brown acenou com a cabeça.
-Eu sei que tinha-declarou.-Detestava-o eé por isso mesmo que eu sei não ter sido você o autor do assassinato. Vai então contar-nos como as coisas se passaram ou conto eu.
Fez-se silêncio, apenas quebrado pelo tiquetaque do relógio da cozinha, e dali a pouco o sacerdote prosseguiu:
- O que aconteceu foi o seguinte: Mr. Dalmon entrou na sua loja e pediu uns cigarros que estavam na vitrina. Você saiu para a rua por breves instantes para se certificar do artigo que o cliente pretendia, como tantas vezes acontece com os lojistas. Nesse momento ele apercebeu-se da navalha que você pousara na sala das traseiras e viu a cabeça branca de Sir Arthur apoiada no encosto da cadeira de barbeiro. Bastou-lhe apenas um breve lapso de tempo para pegar na navalha, degolá-lo e voltar rapidamente para junto do balcão. A vítima nem sequer se deve ter alarmado ao ver a mão a segurar na navalha. Morreu a sorrir dos seus próprios pensamentos. E que pensamentos! Quanto a Dalmon, creio que também não entrou em pânico. Fez aquilo com tanta rapidez e serenidade que Mr. Smith, aqui presente, juraria em tribunal que não se tinham separado um só momento. No entanto, houve alguém que ficou bastante alarmado e tinha razão para tal; foi você. Tinha estado precisamente a discutir com Sir Arthur, o seu senhorio, por causa de uns atrasos no pagamento da renda e quando voltou para dentro deparou-se-lhe o seu inimigo assassinado com a sua própria navalha. Não é de admirar que se mostrasse preocupado em tentar ilibar-se e preferisse fazer desaparecer os vestígios do crime. Assim, apressou-se a lavar o chão e atirou o corpo ao rio durante a noite, depois de o ter metido num saco de batatas mal atado. A sua sorte foi haver um horário de encerramento da sua barbearia, pois assim teve tempo suficiente para limpar tudo. Lembrou-se de todos os pormenores, excepto do chapéu... Mas não se preocupe, pois eu esquecerei tudo, incluindo o próprio chapéu. E, dizendo isto, atravessou calmamente aloja e saiu para a rua, seguido pelo estupefacto Smith e deixando o barbeiro atordoado de espanto.
- Como vê - declarou o padre Brown, dirigindo-se ao companheiro -, tratou-se de um daqueles casos em que o móbil é demasiado inconsistente para condenar uma pessoa, sendo, por outro lado, suficientemente forte para a ilibar. Um sujeito nervoso como este, seria a última pessoa capaz de matar um homem vigoroso como Vaudrey, por causa de uma questão relativa a dinheiro. Mas seria a primeira a temer que o acusassem de o ter feito ... Havia de facto, uma diferença enorme no móbil de quem matou Sir Arthur. - Em seguida voltou a mergulhar em profunda reflexão, de olhos fitos no vazio.
- Mas isso é horrível - murmurou Evan Smith. - Há uma hora atrás não hesitei em acusar Dalmon de fazer chantagem e, contudo, não consigo deixar de ficar abalado ao saber que foi ele o autor do crime.
O padre parecia continuar imerso numa espécie de transe. Por fim, os seus lábios moveram-se e, como se fosse mais uma prece que uma imprecação, proferiu:
- Que vingança horrível, meu Deus!
O amigo fez-lhe uma pergunta, mas ele prosseguiu, como se estivesse a falar sozinho:
- Que ódios terríveis! Que vingança de um verme mortal para com outro! Será que conseguiremos algum dia penetrar no enigmático coração humano onde se albergam imaginações tão abomináveis? Que Deus nos livre do orgulho. É-me impossível conceber uma imagem de ódio e de vingança como esta.
- De facto, não consigo imaginar por que terá ele morto Vaudrey. Se Dalmon era um chantagista pareceria mais natural que fosse Vaudrey a matá-lo. Como diz, reverendo, a degolação foi horrível, mas...
O padre Brown estremeceu e piscou os olhos como se tivesse acabado de despertar.
- Ah, isso! Não estou a pensar na degolação. Não me estava a referir ao homicídio na barbearia quando... quando falei de vingança horrível. Estava a pensar numa história ainda pior, embora este acto tivesse sido repugnante. Todavia era muito mais compreensível; qualquer pessoa o podia ter feito. De facto, tratou-se de um caso que pode ser considerado de legítima defesa.
- O quê? - exclamou smith, incrédulo. - Um homem aproxima-se sorrateiramente de outro e corta-lhe o pescoço, enquanto ele está calmamente sentado numa cadeira de barbeiro e chama a isto legítima defesa?
- Eu não disse que se tratava de um acto justificável de legítima defesa - replicou o outro. - O que eu quero dizer é que muita gente o teria feito para se defender de uma calamidade terrível... que era igualmente um crime terrível. Era precisamente a esse outro crime que eu me estava a referir. Para começar responderei à questão que ainda há pouco me apresentou: por que haveria o chantagista de ser o assassino. Ora bem, existem muitas confusões e erros convencionais a esse respeito - fez uma pausa, como se estivesse a ordenar as ideias após recente transe de horror e prosseguiu no tom de voz habitual: - Temos dois homens, um mais velho que o outro, que discutem um projecto matrimonial, acabando por chegar a um acordo. No entanto, a origem da sua intimidade é antiga e dissimulada. Um é rico e o outro pobre e logo você é levado a pensar em chantagem. Até aí tudo bem, pelo menos nesse sentido. Onde você se engana é ao tentar imaginar o papel de cada um deles. Partiu do princípio que o homem pobre exercia chantagem sobre o rico. De facto, passava-se o contrário: o homem rico é que exercia chantagem sobre o pobre.
- Mas essa história parece um disparate - objectou o secretário.
- É bem pior que isso, embora não seja assim tão invulgar - replicou o sacerdote. - Grande parte da política actual consiste numa chantagem exercida pelos ricos sobre as outras pessoas. A ideia que você faz de disparate assenta em duas ilusões, ambas disparatadas. Uma é a de imaginar que os homens ricos não pretendem ser ainda mais ricos e a outra é a de achar que uma pessoa só pode ser vítima de chantagem por dinheiro. E a segunda que está aqui em causa. Sir Arthur Vaudrey não agia por avareza, mas por vingança. E planeou a vingança mais hedionda que se pode imaginar.
- Mas por que razão é que ele planeava vingar-se de Jonh Dalmon? - inquiriu Smith.
- Não era de Dalmon que ele pretendia vingar-se - corrigiu o sacerdote, com um ar grave.
Fez-se silêncio, e quando Brown retomou a palavra parecia ter enveredado por um assunto completamente diferente.
- Quando encontrámos o corpo lembra-se, com certeza, de ter dito que o rosto dele, visto de cima para baixo, parecia a cara de um patife. Já lhe ocorreu que o assassino também viu aquele rosto naquela posição quando entrou na barbearia?
- Mas tudo isso é uma fantasia perfeitamente mórbida - replicou Smith. - Eu estava habituado a ver aquela cara na posição normal.
- Provavelmente nunca o viu na posição normal - aventou o padre Brown. -Já tive ocasião de lhe dizer que os pintores costumam voltar as suas obras ao contrário para verificarem se estão na posição correcta. Talvez você se tivesse habituado àquele rosto de patife ao longo das refeições que tomavam juntos.
- Mas onde raio é que pretende chegar? - indagou Smith, impaciente.
- Estou a falar por metáforas - explicou o padre, taciturno. - É claro que Sir Arthur não era um patife, mas um homem que possuía um carácter, formado com base num determinado temperamento, que poderia ter sido orientado para o bem. Mas aqueles olhos esbugalhados e cheios de desconfiança, aquela boca de lábios apertados tê-lo-iam esclarecido se você não estivesse tão habituado a eles. Como sabe, há corpos físicos em que as feridas não saram. Sir Arthur possuía uma mente desse género. Agia como se lhe faltasse a protecção da pele; possuía um sentido de vigilância febril, fruto da vaidade, e os seus olhos estavam permanentemente abertos numa insónia de egoísmo. A sensibilidade não tem de ser forçosamente de natureza egoísta. Sybil Rye, por exemplo, tem a mesma pele sensível e, no entanto, consegue ser uma espécie de santa. Vaudrey, pelo contrário, convertera tudo isso em orgulho venenoso; um orgulho que nem sequer era seguro nem compensador. Qualquer arranhão na superfície do seu ego infectava. E é aí precisamente que reside a explicação dessa velha história, quando ele atirou o homem para a pocilga. Se o tivesse feito imediatamente após ter sido insultado, era desculpável, podendo tal atitude atribuir-se a um acesso de mau génio. Mas como na altura não dispunha de uma pocilga, conservou na memória durante anos aquele insulto, até conseguir apanhar o outro sujeito oriental nas imediações de uma pocilga e então exerceu aquilo que considerava uma vingança artística adequada... Santo Deus! E se ele gostava de vinganças adequadas e artísticas!
Smith olhou para o padre Brown com uma expressão curiosa.
- Não me diga que está a pensar nessa história da pocilga - observou.
- Não. Estava a pensar numa outra - dominou o tremor na voz e continuou: - Ao pensarmos neste caso, em que ele teve a paciência de engendrar um plano fantástico para que a vingança se adequasse ao crime, devemos considerar uma outra questão. Haveria mais alguém que tivesse insultado Vaudrey ou agido de forma que ele pudesse tomar como um insulto mortal? Sim. Uma mulher.
Evan fez um ar horrorizado, enquanto o ouvia atentamente.
- Uma rapariga, pouco mais que uma criança, recusou-se a casar com ele por outrora ele ter agido como um criminoso. De facto, chegara até a estar preso durante um certo espaço de tempo por ultrage ao egípcio. E foi então que aquele louco decidiu, no fundo do seu demoníaco íntimo: "Ela há-de casar-se com um criminoso."
Seguiram o caminho que conduzia à mansão e durante algum tempo permaneceram em silêncio, antes que o sacerdote retomasse a explicação.
- Vaudrey estava em posição de exercer chantagem sobre Dalmon, que cometera um homicídio há uns anos atrás. Provavelmente estava a par de diversos delitos praticados pelos seus rebeldes companheiros de juventude. Talvez se tratasse até de um crime com algumas atenuantes. Dalmon parece ser um homem que conhece o remorso, mesmo em relação ao homicídio de Vaudrey. No entanto encontrava-se nas mãos dele e, no meio, achava-se a rapariga que, desse modo, foi apanhada numa armadilha, ficando assim envolvida num compromisso estabelecido entre eles. O pretendente tentaria a sua sorte; quanto ao outro, Sir Arthur, cabia-lhe encorajar a ligação. Mas o próprio Dalmon não sabia, nem ninguém a não ser o próprio, o que estava, de facto, na mente do velho.
"Alguns dias depois, Dalmon fez uma descoberta assustadora. Afinal obedecera contra vontade, não passando de um simples instrumento que depois de usado seria deitado fora. Encontrou uns apontamentos de Vaudrey na biblioteca que, embora disfarçados, referiam os preparativos para o denunciar à polícia. Compreendeu a trama e ficou tão abismado como eu próprio quando me apercebi da história. Logo após o casamento, o noivo seria preso e enforcado. A exigente dama, que rejeitara um homem por este ter estado preso, passaria a ter um marido morto no patíbulo. Era isto que Sir Arthur Vaudrey considerava um desfecho artístico para a história.
Evan Smith, pálido de morte, permaneceu silencioso e um pouco mais longe viram surgir a figura imponente do Dr. Abbott, com o seu chapéu de aba larga, caminhando ao encontro deles. Apesar da distância notava-se nele uma certa agitação. No entanto, ainda estavam ambos muito perturbados com o seu apocalipse particular.
- Como diz o reverendo, odiar é um sentimento odioso - observou Evan por fim. - Mas há uma coisa que me traz um certo alívio. Toda a aversão que sentia por Dalmon se desvaneceu. Agora já percebo por que razão o considerou um duplo assassino.
Foi em profundo silêncio que percorreram o resto do caminho até se encontrarem com o médico, que agitava as mãos enluvadas num gesto de desespero, enquanto a longa barba era fustigada pelo vento.
- Tenho notícias horríveis - declarou. - Foi encontrado o corpo de Arthur. Parece ter morrido aqui mesmo, no seu jardim.
- Santo Deus! - exclamou o padre Brown quase mecanicamente. - Que horror!
- Mas há mais - gritou o médico, quase sem fôlego. - Jonh Dalmon saiu para ir ter com Vernon Vaudrey, o sobrinho de Arthur, mas este diz não saber nada dele. Tudo leva a crer que desapareceu sem deixar rasto.
- Mas que estranho - observou o padre Brown.

CAPÍTULO VI
O PIOR CRIME DO MUNDO

O padre Brown vagueava por uma galeria de pintura com uma expressão que sugeria não ter ido ali para admirar as telas expostas. Com efeito, não era isso que ele pretendia, embora gostasse bastante de pintura. Não é que houvesse algo de imoral ou de impróprio nas obras pictóricas altamente modernas que ali figuravam. Poderia dar-se o caso de possuir um temperamento excitável que o levasse a sentir-se incomodado perante um conjunto de espirais interrompidas, cones invertidos e cilindros cortados com que a arte do futuro inspirava ou ameaçava a humanidade. Mas a verdade é que o padre Brown andava à procura de uma jovem sua amiga que marcara aquele local de encontro, algo incongruente, por ter uma inclinação pelo futurismo. A jovem amiga era também um dos poucos parentes que Brown tinha. O seu nome era Elizabeth Fane, Betty para os amigos, filha de uma irmã do sacerdote, que casara com um membro de uma família distinta, mas de fracos recursos. Como esse senhor distinto e pobre morrera, o padre Brown exercia agora o cargo de tutor da rapariga, acumulando assim as funções de padre, tio e protector. Naquele momento, circulava por entre as pessoas, de olhos franzidos, sem conseguir descortinar os cabelos castanhos e o rosto simpático da sobrinha. Entretanto, ia vendo algumas pessoas suas conhecidas e outras que nunca vira, incluindo aquelas que, por uma questão de gosto pessoal, não tinha grande vontade de conhecer.
Entre os que o padre desconhecia e que, no entanto, lhe despertavam o interesse, contava-se um rapaz ágil e vivo, vestido com elegância e com aspecto de estrangeiro, talvez devido à barbicha pontiaguda como a dos antigos espanhóis e ao cabelo escuro cortado tão rente que mais parecia um barrete preto colado à cabeça. Das pessoas em que o padre não estava particularmente interessado em conhecer havia uma senhora, de aspecto imponente, vestida de escarlate e com uma abundante cabeleira loira comprida e solta. Tinha um rosto largo de um tom pálido e doentio, e quando
olhava para alguém exercia o fascínio de um basilisco (1). Trazia a reboque um sujeito baixo, de rosto largo, barba espessa e olhos semi-cerrados. A sua expressão era viva e benevolente, embora parecesse apenas parcialmente acordado. No entanto, o seu pescoço taurino, visto de trás, apresentava um aspecto de certo modo brutal.
O padre Brown fitou a senhora e sentiu que a chegada da sobrinha constituiria um agradável contraste. Não obstante, continuou a olhá-la até chegar ao ponto de experimentar a sensação de que a chegada, fosse de quem fosse, seria um agradável contraste. Foi então que, com um certo alívio e algum sobressalto, como se alguém o tivesse vindo despertar, se voltou ao ouvir pronunciar o seu nome, deparando-se com um rosto seu conhecido.
Tratava-se de um advogado de nome Granby, que o olhava com uma expressão perspicaz e simpática e cujo cabelo apresentava zonas grisalhas, que podiam ser manchas de uma peruca empoada, de tal modo se revelavam desajustadas em relação à energia juvenil que se desprendia do indivíduo. Era um daqueles funcionários da City que passam a vida a entrar e a sair dos seus gabinetes como garotos da escola. Mas agora, na galeria de arte, não podia comportar-se dessa maneira, embora parecesse estar cheio de vontade de o fazer, tal era a forma agitada como voltava a cabeça de um lado para o outro, à procura de caras conhecidas.
- Não sabia que você era apreciador da Nova Arte - observou o padre Brown a sorrir.
- O mesmo direi em relação ao reverendo - retorquiu o outro. - Vim apenas para me encontrar com uma pessoa.
- Desejo-lhe boa sorte - respondeu o padre. - Pois também estou aqui pela mesma razão.
- Disse-me que viria de passagem ao Continente - resmungou o solicitador -, e que o poderia encontrar neste excêntrico lugar. - Calou-se por momentos, e de repente prosseguiu: - Como sei que é capaz de guardar um segredo, vou contar-lhe uma coisa. Conhece Sir John Musgrave?
- Não - respondeu o sacerdote -, mas não me passaria pela cabeça que ele pudesse ser considerado um segredo, embora digam que vive escondido num castelo. Não é sobre ele que contam aquelas histórias todas? Dizem que habita numa torre, com grades de ferro e ponte levadiça, recusando-se a sair da Idade Média. É seu cliente?
- Não - replicou Granby. - O filho dele, o capitão Musgrave, é que veio ter connosco. Mas o velho representa um papel importante no caso e eu não o conheço. O problema é esse. Como já disse,

1 Lagarto fabuloso a que se atribuía o poder de matar com o olhar. (N.da T.)

trata-se de um assunto confidencial; no entanto, sei que posso confiar em si.
E, dizendo isso, conduziu o amigo para uma zona mais isolada da galeria, onde se viam representações de diversos objectos reais e que se encontrava relativamente despovoada.
- Esse tal jovem Musgrave - continuou -, quer obter de nós um empréstimo de uma quantia elevada sobre um post obit do pai em Northumberland. O velhote já ultrapassou há muito os 70 anos e provavelmente irá morrer em breve, isto quanto ao obit. Mas em relação ao post, como será? Que irá acontecer ao seu dinheiro, aos castelos, às pontes levadiças e a tudo isso? É, sem dúvida, uma propriedade muito antiga e valiosa, mas, por estranho que pareça, não figura no testamento. Compreende, pois, a nossa situação. Agora a questão é saber, como dizia Dickens: será que o velhote é uma pessoa afável?
- Se o for em relação ao filho, também será em relação a vocês - observou o padre Brown. - De facto, lamento não poder ajudar. Não conheço Sir John Musgrave e, segundo creio, haverá hoje em dia pouca gente que o conheça. No entanto, parece-me que vocês têm todo o direito de obter um esclarecimento sobre esse assunto antes de concederem o empréstimo a esse cavalheiro. Ele é do género que a família costuma deserdar?
- Não tenho a certeza. É um sujeito muito popular, brilhante e uma figura conhecida na sociedade, mas passa muito tempo no estrangeiro, e tem trabalhado como jornalista.
- Bom, mas isso não é um crime. Pelo menos, nem sempre é - observou o padre Brown.
- Que disparate! Sabe muito bem o que eu quero dizer... trata-se de um tipo com uma vida um bocado incerta. Já foi jornalista, leitor, actor e outras coisas mais. Preciso de saber bem com o que podemos contar... Olhe aí está ele.
E o advogado, que até ali se movera de um lado para o outro na zona menos concorrida da galeria, voltou-se de repente e precipitou-se para a outra sala, em direcção ao jovem alto e bem vestido, de cabelo curto, barbicha e com aspecto de estrangeiro.
Afastaram-se os dois enquanto conversavam e o padre Brown seguiu-os durante um bocado com os olhos míopes. No entanto, foi obrigado a desviar o olhar e a voltar a cabeça, devido à chegada ofegante e impetuosa da sua sobrinha Betty, que para surpresa dele o arrastou para a parte mais calma da galeria, obrigando-o a sentar-se num banco que lhe pareceu uma ilha naquele mar de chão.
- Tenho uma coisa para lhe dizer - declarou a rapariga. - É uma coisa tão disparatada que mais ninguém irá compreender.
- Estou a ficar assustado. Tem a ver com aquilo de que a tua mãe me falou vagamente? Compromissos de casamento e essas coisas?
- Ela quer que eu fique oficialmente noiva do capitão Musgrave.
- Não sabia - disse o sacerdote, fazendo um ar resignado - mas pelo que vejo, o capitão Musgrave parece estar muito na moda.
- E claro que nós não temos dinheiro e seria falso dizer que isso não faz diferença.
- Tu queres casar com ele? - indagou o padre, fitando-a através dos olhos semicerrados.
Betty baixou a cabeça e foi em voz muito baixa que lhe respondeu:
- Estava convencida de que queria. Pelo menos era essa a minha ideia, mas acabo de sofrer um choque.
- Então conta-me lá o que se passa.
- Ouvi-o rir - respondeu ela.
- É um excelente dote social - observou o tio.
- O tio não está a perceber - replicou a jovem. - Não era uma manifestação social, o problema é esse.
Calou-se por momentos e depois prosseguiu:
- Cheguei aqui bastante cedo e vi-o sentado no meio da galeria, que na altura estava praticamente vazia. Ele não fazia ideia que estivesse alguém por perto, muito menos eu. Vi-o ali sentado sozinho a rir-se às gargalhadas.
- Bom, não admira - observou o sacerdote. - Não sou propriamente um crítico de arte, mas o aspecto geral destes quadros, se os tomarmos como um todo...
- Oh, não está a compreender - tornou ela, quase zangada. - Não foi nada disso. Ele não estava a olhar para as pinturas. Tinha os olhos postos no tecto, mas parecia que estava a olhar para dentro e riu-se de uma maneira tão estranha, que o sangue gelou-se-me nas veias.
O padre entretanto levantara-se e caminhava pela sala com as mãos atrás das costas.
- Não te deves precipitar - começou ele. - Há dois tipos de homens... mas agora não é altura para falarmos porque ele vem ali.
O capitão Musgrave aproximava-se com uma expressão sorridente. Granby, o advogado, caminhava atrás dele, apresentando agora um ar aliviado e satisfeito.
- Tenho de retirar tudo o que disse acerca do capitão - declarou ele ao padre Brown, quando ambos se encaminhavam para a saída. É um sujeito bastante sensível e percebeu perfeitamente o problema. Foi ele próprio a sugerir que me deslocasse ao Norte a fim de falar com o pai. Assim, poderei ouvir da boca do próprio o que pensa acerca da herança. Parece-me que ele não poderia ter feito mais que isto, não acha? E está tão desejoso de ver o assunto resolvido, que se ofereceu para me levar no seu carro até Musgrave
Moss. É esse o nome da propriedade. Combinámos então ir juntos e ficou decidido que partiríamos amanhã de manhã.
Enquanto conversavam, Betty e o capitão transpunham a porta da sala principal da galeria, ficando assim emoldurados como um quadro, que algumas pessoas mais sentimentais talvez preferissem às imagens representando cones e cilindros. Além de outras afinidades que porventura houvesse entre eles, eram ambos muito atraentes e o advogado preparava-se para fazer um comentário a esse respeito, quando bruscamente o conjunto se desfez.
O capitão Musgrave olhara para a sala, deparando aí com algo que lhe alterou por completo a expressão risonha e triunfante que antes exibia. O padre Brown, por seu turno, olhou em volta, como levado por um impulso premonitório, reparando imediatamente no rosto quase lívido da mulher vestida de escarlate, sob a imponente juba loira. Mantinha sempre a cabeça um pouco inclinada para a frente, como um toiro antes de investir e a expressão da sua face macilenta era tão opressiva e hipnótica que o homenzinho de barba hirsuta que a acompanhava quase passava despercebido.
Musgrave avançou até ao meio da sala em direcção a ela, como um boneco primorosamente vestido a quem tivessem dado corda. Disse-lhe algumas palavras que mais ninguém ouviu. Ela não respondeu, mas afastaram-se juntos ao longo da galeria como se travassem uma discussão, enquanto o sujeitinho de pescoço muscu-lado e barba espessa fechava o cortejo, qual grotesco pagem do reino dos duendes.
- Meu Deus! - resmungou o padre Brown, franzindo o sobrolho. - Mas quem será esta mulher?
- Das minhas relações é que ela não é, felizmente - apressou -se a declarar o advogado num tom irreverente.-Tenho a impressão de que um namorico com ela poderia levar a um final trágico.
- Mas não me parece que aquele esteja a namoriscá-la - atalhou o padre.
Enquanto dizia isto, o grupo em questão, chegando ao fundo da sala, desfez-se e o capitão apressou-se a vir ter com eles.
- Peço imensa desculpa - disse, procurando falar com naturalidade, embora fosse visível a mudança de cor do seu rosto.-Lamento muito, Mr. Granby, mas afinal é-me impossível ir consigo amanhã. É claro que pode servir-se à mesma do meu automóvel. Esteja à vontade, pois não irei precisar dele. Tenho de ficar em Londres durante uns dias. Se quiser, leve um amigo para lhe fazer companhia.
- Aqui o meu amigo, o padre Brown... -ia a dizer o advogado. -Já que o capitão é tão amável - atalhou o padre Brown num
tom grave -, posso dizer-lhe que estou de certo modo interessado nas investigações de Mr. Granby e convinha-me, por esse motivo, acompanhá-lo na viagem.
E foi assim que um elegante automóvel, conduzido por um não menos elegante motorista, rumou no dia seguinte em direcção ao norte, através da região pantanosa do Yorkshire, transportando os dois estranhos passageiros - um padre, que mais parecia uma trouxa de roupa preta e um advogado que estava mais habituado aandar sobre os seus próprios pés que sobre quatro rodas, que ainda por cima não lhe pertenciam.
Fizeram uma agradável pausa na viagem num dos grandes vales de West Riding. Depois de terem jantado e dormido numa confortável estalagem da zona partiram no outro dia de manhã cedo, tomando a estrada que seguia ao longo da costa, até chegarem a uma região à beira-mar, de dunas e de prados, no coração da qual ficava o velho castelo de fronteira que se conservava como monumento único no género, embora pouco conhecido, a lembrar as velhas guerras de fronteira. Finalmente conseguiram descobri-lo depois de terem percorrido um caminho junto a um braço de mar, que entrava pela costa e se transformava numa espécie de canal, indo dar ao fosso do castelo. Tratava-se realmente de um castelo a sério, construído segundo o plano adoptado pelos Normandos, que os haviam deixado por toda a parte, desde a Galileia aos montes Grampianos. Possuía, com efeito, uma grade na porta e uma ponte levadiça, facto que de modo nenhum passou despercebido aos visitantes, devido a um incidente que lhes atrasou a entrada no recinto.
Avançaram com dificuldade por entre a erva alta e as silvas até aborda do fosso, que se estendia como uma faixa negra, coberto de folhas mortas e espuma, como se fosse uma superfície de ébano com embutidos dourados. Cerca de um ou dois metros para além dessa faixa negra, erguia-se a outra margem verdejante e as enormes colunas de pedra da entrada do castelo. No entanto, devia ser tão raro haver contactos entre aquela praça forte e o exterior, que quando o impaciente Granby gritou para os vultos imprecisos que se viam por detrás das grades, a anunciar a chegada dos visitantes, foi com grande dificuldade que conseguiram accionar o enferrujado mecanismo da ponte. Finalmente começou a funcionar, descendo sobre eles como uma torre gigantesca a desabar, mas entretanto imobilizou-se a meio do percurso, num ângulo ameaçador. Granby, ansioso, agitava-se na margem do fosso e acabou por dizer ao companheiro:
-Detesto estes impasses! Se calhar dá menos trabalho saltar.
E, com a impetuosidade que lhe era característica, saltou mesmo, indo aterrar com segurança do outro lado. As pernas curtas do sacerdote não estavam habituadas a saltar, no entanto o seu temperamento adaptava-se melhor que o da maioria das pessoas a cair na água lamacenta, embora a prontidão com que o companheiro lhe acudiu evitasse consequências mais desastrosas. Quando estava a ser içado para terra firme, deteve-se a observar atentamente, com a cabeça inclinada, um ponto determinado do declive coberto de relva.
-Está interessado em botânica? - indagou Granby, irritado. - Olhe que não há tempo para essas fantasias. Primeiro tentou ir explorar as maravilhas das profundezas marinhas e agora prepara-se para coleccionar plantas raras. Ande lá, cobertos de lama ou não temos de nos apresentar ao baronete.
Quando entraram no castelo foram recebidos cerimoniosamente por um velho criado, o único que conseguiram vislumbrar e, depois de terem anunciado ao que vinham, foram conduzidos a uma sala revestida de painéis de carvalho e com janelas gradeadas de um estilo muito antigo. Das paredes escuras pendiam diversas armas de diferentes épocas, e ao lado da ampla lareira via-se uma armadura completa do século XIV em posição de sentinela. Numa outra sala de grandes dimensões podiam ver-se através da porta entreaberta as cores sombrias das filas de retratos de família.
- Sinto-me como se tivesse entrado num romance e não numa casa - observou o advogado. - Não fazia ideia de que alguém pudesse ter conservado desta maneira os Mistérios de Udolfo.
- Realmente este velho fidalgo alimenta a sua paixão pelo passado histórico de uma forma consistente - observou o padre Brown. - E tudo isto é verdadeiro, não há aqui imitações. Vê-se que isto não foi arranjado por uma pessoa para quem os povos medievais viveram todos ao mesmo tempo. Há quem reconstitua armaduras com bocados de diferentes épocas. Esta, no entanto, protegia o corpo de um homem e fazia-o com bastante eficiência. Vê, trata-se do género mais recente de armadura articulada.
-Estou a ver que ele é daqueles anfitriões que demoram a aparecer, se é que chega a fazê-lo - resmungou Granby. - Está a fazer-nos esperar muito tempo.
- Num sítio destes é natural que tudo decorra com mais lentidão - lembrou o sacerdote. -Acho que já é muito amável da parte dele aceitar receber dois estranhos que aparecem assim, de repente, para lhe porem questões de carácter pessoal.
E, é claro, quando o dono da casa apareceu não tiveram qualquer razão de queixa em relação à forma como aquele os recebeu. Pelo contrário, aperceberam-se de algo genuíno nas tradições de educação e comportamento, que o haviam levado a conservar a sua dignidade, apesar da solidão em que vivia e após longos anos passados num ambiente rústico e triste. O baronete não pareceu surpreendido nem incomodado com os visitantes, e embora suspeitassem de que há muito tempo não entrava um estranho no castelo, comportou-se como se tivesse acabado de estar com duques e duquesas. Não mostrou retraimento nem impaciência quando eles afloraram o assunto que ali os levara e, após uma breve reflexão
sobre o caso, acabou por compreender a curiosidade dos visitantes, o que aliás considerou justificável, atendendo às circunstâncias. Era um sujeito de idade, magro, com ar de homem astuto, de sobrancelhas negras e queixo comprido e embora o cabelo cuidadosamente encaracolado não fosse natural, tivera o cuidado e a sensatez de escolher uma peruca grisalha, própria para a sua idade.
- No que diz respeito à questão que tem directamente a ver consigo, a resposta é muito simples. De facto, posso garantir-lhe que faço tenção de legar tudo o que me pertence ao meu filho, tal como o meu pai fez comigo. E não haverá nada, mas absolutamente nada, repito, que me leve a mudar de ideias.
- Sinto-me muito grato pela informação - observou o advogado. - Mas a sua amabilidade encoraja-me a fazer referência ao modo veemente como apresenta a sua decisão. Não me atrevo sequer a sugerir que o seu filho viesse a praticar qualquer acto que pusesse em causa a sua habilitação à herança. No entanto ele podia...
- Claro que podia, isso é óbvio - declarou Sir John Musgrave num tom seco. - Queiram ter a amabilidade de me acompanhar.
Conduziu-os à galeria, que já tinham visto de relance, e deteve-se diante de uma das séries de retratos.
- Este é Sir Roger Musgrave - declarou, indicando a figura de um indivíduo de rosto comprido e negra cabeleira postiça. - Foi um dos homens mais infames e mentirosos da terrível época de Guilherme de Orange, capaz de trair dois reis e de assassinar duas esposas. Aquele é o pai de Sir Robert, um cavaleiro digno e honesto. Esse é o filho, Sir Jones, um dos mais nobres mártires jacobitas e um dos primeiros indivíduos que se preocupou em indemnizar a Igreja e os pobres. Será assim tão importante o facto de a Casa Musgrave, com o seu poder, a sua honra e a sua autoridade, ter passado de um homem digno para outro homem digno, havendo no meio um patife? Eduardo I governou bem a Inglaterra, Eduardo III cobriu-a de glória e entre eles encontramos o infame e imbecil Eduardo II, que adulava Gaveston e fugiu de Bruce. Acredite, Mr. Granby, que a grandeza de uma casa ilustre, assim como a sua história, não se limita a esses indivíduos acidentais que a fazem continuar, embora não a honrem. A nossa herança tem sido transmitida de pais para filhos e assim continuará. Podem ficar certos e assegurar a meu filho que não deixarei o meu dinheiro a um lar de gatos abandonados. Os Musgrave continuarão a ser fiéis aos seus até ao fim dos tempos.
- Sim - murmurou o padre Brown. - Compreendo a sua posição.
- E pode crer que ficamos muito satisfeitos por podermos transmitir essa boa nova ao seu filho - declarou o advogado.
- Podem transmitir-lhe essa certeza - tornou o fidalgo fazendo um ar circunspecto. - Receberá, sem dúvida, o castelo, o título, as terras e o dinheiro. Há apenas um pequeno pormenor de carácter pessoal a acrescentar a esta decisão. Seja em que circunstâncias for, não voltarei a falar-lhe enquanto viver.
O advogado manteve a sua atitude respeitosa, embora agora arregalasse os olhos de espanto.
- Mas... mas que é que ele...
- Sou um cavalheiro e o depositário de uma grande herança - declarou Musgrave. - Meu filho cometeu um acto tão infame que deixou de ser... não direi apenas um cavalheiro, mas um ser humano. Cometeu o pior crime do mundo. Lembra-se do que Douglas disse quando Marmion, o seu hóspede, lhe quis apertar a mão?
- Sim - respondeu o padre Brown.
- "Os meus castelos pertencem apenas ao meu rei, desde a terra às fundações. A mão de Douglas é propriedade sua" - dizendo isto, Musgrave encaminhou-se para a outra sala, acompanhado pelos dois visitantes, que se mostravam um pouco confusos.
-Espero que tomem alguma coisa-ofereceu ele, sem alterar o tom de voz. - Se não quiserem seguir viagem hoje, terei muito gosto em oferecer-lhes hospedagem no castelo.
- Ficamos-lhe imensamente gratos, Sir John, mas acho preferível partirmos já hoje - retorquiu o padre.
- Vou então providenciar para que baixem a ponte - anun ciou o fidalgo e, dali a pouco, ouviu-se por todo o castelo o ranger da pesada e obsoleta engrenagem. Embora ferrugenta, desta vez conseguiu funcionar e os dois visitantes não tardaram a regressar de novo à margem verdejante, do lado exterior do fosso.
Granby foi subitamente acometido de um estremecimento.
- Mas que raio é que o filho terá feito? - inquiriu.
O sacerdote não respondeu, mas quando entraram de novo no carro e prosseguiram viagem até Graystones, a aldeia mais próxima, onde pararam na estalagem das Sete Estrelas, foi com alguma surpresa que o advogado se apercebeu da intenção do padre de ficar por ali e não ir mais longe. Por outras palavras, decidira permanecer nas imediações do castelo.
- Não estou disposto a deixar as coisas neste pé - declarou. -Vou dizer ao motorista que pode seguir viagem e você, é claro, poderá ir com ele. A sua questão está resolvida, uma vez que só pretendia saber se a sua firma podia ou não emprestar dinheiro ao jovem Musgrave. Mas o que me trouxe aqui continua sem resposta... ainda não sei se ele é ou não o marido indicado para a minha sobrinha Elizabeth. Preciso de descobrir se ele cometeu realmente um delito muito grave ou se aquilo não será apenas fruto do delírio de um lunático.
- Mas se é isso que pretende saber, por que razão é que não fala directamente com o capitão, em vez de ficar aqui neste buraco onde ele provavelmente nunca virá? - indagou o advogado.
- E de que serviria eu falar com ele, não me dirá? Não fazia sentido nenhum abordá-lo na rua, sem mais nem menos, e perguntar-lhe... "Desculpe lá, mas por acaso cometeu algum crime abominável?" Se ele foi capaz de o ter feito, também seria homem para o negar. Além disso, nem sabemos afinal do que se trata. Não, só existe uma pessoa que sabe epode revelar o seu segredo, no meio de um possível acesso de excentricidade. O melhor será manter-me por perto.
E, com efeito, o padre Brown manteve-se perto do excêntrico baronete, chegando a encontrar-se com ele por mais de uma vez, dando ambos mostras de uma grande cordialidade. O baronete, apesar da idade, era um homem vigoroso e grande apreciador de caminhadas, podendo ser visto com frequência na aldeia e nos campos circundantes. No dia imediatamente a seguir à chegada, o padre Brown, quando ia a sair da estalagem, que dava para a praça onde se realizava o mercado, viu passar o inconfundível vulto negro em direcção aos Correios. Trajava de preto e o seu rosto, visto assim à luz do Sol, atraía mais a atenção. Com a sua cabeleira prateada, as sobrancelhas negras e espessas e o queixo alongado, fazia lembrar Henry Irving ou qualquer outro desses actores famosos. Apesar do cabelo grisalho, o porte e o rosto sugeriam força e a bengala que agarrava na mão parecia mais um cajado ou uma arma, que propriamente um objecto de apoio. Saudou o padre e dirigiu-se-lhe com o mesmo ar destemido com que no dia anterior apresentara as suas importantes revelações.
- Se ainda estiver interessado no meu filho - declarou, num tom de gélida indiferença -, vai ter dificuldade em encontrá-lo. Devo dizer, aqui entre nós, que ele fugiu do país.
- Não me diga - observou o sacerdote, mostrando-se estupefacto com a notícia.
- Umas pessoas de quem nunca ou vira falar, e que dão pelo nome de Grunov, têm insistido junto de mim para que lhes revele o paradeiro do meu filho-declarou Sir John. - Vim agora mandar-lhes um telegrama, dizendo-lhes que poderão contactar com ele através da posta restante de Riga. Tentei fazê-lo ontem, mas cheguei cinco minutos atrasado e encontrei o Correio já fechado. Vai ficar muito tempo por cá? Espero que volte a dar-me o prazer da sua visita.
Quando o padre contou ao advogado a breve conversa que travara com Musgrave, aquele mostrou-se confuso e interessado.
- Por que razão é que o capitão se terá posto a andar? Quem serão esses fulanos que andam atrás dele? Mas quem diabo serão esses Grunov?
-Se quer que lhe diga, quanto à primeira pergunta, não sei - respondeu o sacerdote. - Provavelmente o seu odioso crime veio a saber-se. Segundo, se calhar essas pessoas têm andado a exercer chantagem sobre ele. Em relação à sua terceira dúvida, julgo que sou capaz de lhe dar uma resposta. Aquela mulher horrorosa de cabeleira loira, que estava na galeria de arte chama-se Madame Grunov e o sujeitinho consta que é o marido.
No dia seguinte, o padre Brown regressou do seu passeio com um ar cansado, largando o guarda-chuva preto como um peregrino faz com a trouxa, depois de uma longa caminhada. Parecia deprimido, mas no entanto isso era frequente acontecer durante as suas investigações criminais.
- É muito chocante, mas eu devia ter adivinhado - observou.
- Eu devia ter adivinhado logo que entrei e vi aquela coisa à minha frente.
- Quando viu o quê? - indagou Granby impaciente.
- Quando vi que só havia uma armadura na sala.
Fez-se um grande silêncio, durante o qual o advogado fitou o amigo com um ar muito espantado. Até que o sacerdote prosseguiu:
- No outro dia dizia eu à minha sobrinha que há dois tipos de homens capazes de se rirem quando estão sozinhos. Os que estão a contar uma piada a Deus ou ao Diabo. Mas, seja como for, tanto um como outro, ambos têm vida interior. Ora bem, existe aquele tipo de homem que conta ao Diabo o motivo do riso, sendo-lhe indiferente que os outros não achem piada ou não possam sequer conhecer a razão por que ri. Basta-lhe a piada em si, desde que seja suficientemente sinistra e maligna.
- Mas que é que quer dizer com isso? - perguntou Granby. - De quem está a falar? Qual deles? Quem é essa criatura que contou uma piada sinistra a sua Satânica Majestade?
-Aí é que está a graça - respondeu o sacerdote fitando-o com um ar grave.
Fez-se novo silêncio, desta vez, porém, incómodo e opressivo, parecendo querer instalar-se entre eles como o crepúsculo que ia lentamente dando lugar à escuridão. O sacerdote retomou então a palavra, sem levantar a voz, enquanto apoiava os cotovelos sobre a mesa.
- Tenho procurado observar a família Musgrave - declarou. - Pelo que me foi dado ver, são todos eles fortes e com tendência para a longevidade, por isso dá-me ideia de que você irá ter de esperar bastante tempo pelo seu dinheiro.
-Estamos preparados para situações dessas - retorquiu o solicitador. - De qualquer modo isto não vai demorar indefinidamente: o velhote já tem quase 80 anos, embora ainda esteja cheio de força e as pessoas aqui digam que é eterno.
O padre Brown ergueu-se da cadeira, com um daqueles seus
movimentos súbitos, embora raros, mantendo, contudo, as mãos apoiadas na mesa, enquanto fitava intensamente o seu companheiro.,
- E isso mesmo! - exclamou, excitado, embora sem elevar o tom de voz. - E esse o único problema. É aí que reside a principal dificuldade. Como é que ele pode morrer? Como é que ele há-de poder morrer?
- Que quer dizer com isso?
-O que eu quero dizer - respondeu a voz do sacerdote nomeio da penumbra em que se achava envolvida a sala -, é que já descobri o crime que James Musgrave cometeu.
A voz do padre soou de tal forma que Granby não foi capaz de dominar um calafrio, acabando por murmurar uma última pergunta.
- De facto, cometeu o pior crime do mundo - observou o padre Brown. - Pelo menos, assim tem sido considerado por muitos povos e civilizações ao longo da História. Desde os tempos mais remotos que tem sido punido nas tribos e nas aldeias com os castigos mais severos. Enfim, já sei que crime cometeu o jovem Musgrave e por que razão o fez.
- E afinal qual foi esse crime? - perguntou o advogado.
- Matou o próprio pai.
Desta vez foi o advogado que deu um salto na cadeira.
- Mas o pai está no castelo - replicou com voz esganiçada.
- O pai encontra-se no fundo do fosso - emendou o padre -, e eu fui um estúpido em não ter percebido isso quando senti que havia algo naquela armadura que me intrigava. Lembra-se do aspecto da sala? Reparou na forma cuidadosa como tudo aquilo estava arranjado e decorado? Havia dois pares de achas de armas cruzadas de cada um dos lados da lareira, bem como dois escudos redondos, e quanto a armaduras, só havia uma. É-me difícil acreditar que uma pessoa, tendo arranjado a sala com uma preocupação tão exagerada de simetria, se tivesse esquecido da segunda armadura. Quase de certeza que ela deveria ter existido primitivamente. Que lhe teria então acontecido?
Fez uma curta pausa e prosseguiu:
- Se pensarmos bem, trata-se de um excelente plano para cometer um homicídio, ficando assim resolvido o habitual problema do destino a dar ao corpo. Com efeito, poderia ser escondido ali dentro durante umas horas ou até uns dias, sem que os criados dessem por isso. Depois, o assassino não tinha mais que arrastá-lo pela calada da noite e atirar com ele ao fosso, sem ter de atravessar a ponte. E mais ainda! Depois de imerso na água estagnada, não tardaria a decompor-se, restando apenas um simples esqueleto dentro de uma armadura do século XIV, o que não seria de espantar no fosso de um velho castelo de fronteira. Não seria muito provável que alguém se lembrasse de ir procurar ali alguma coisa, mas se tal acontecesse encontraria apenas isso. E, na verdade, obtive uma confirmação do que acabo de afirmar. Foi quando você insinuou que eu estava a observar uma planta rara e, de facto, tratava-se de uma planta, em muitos sentidos, se me permite o gracejo. O que me chamara a atenção tinham sido as marcas de dois pés, tão fundas que logo depreendi tratar-se ou de uma pessoa muito pesada ou de alguém que carregava um grande fardo. Além disso, há outra moral a extrair do pequeno incidente de que fui vítima quando dei aquele salto gracioso.
- Já tenho a cabeça tonta de pensar, mas começo a perceber qualquer coisa de todo este pesadelo. Que é isso agora do seu salto gracioso?
- Hoje de manhã, nos Correios, confirmei o que o baronete me tinha dito ontem acerca de se ter ali deslocado há dois dias, já depois da hora do encerramento, isto é, no momento preciso em que nós chegámos ao castelo. Não percebe qual o alcance disto? Significa que no momento em que o fomos visitar ele não estava efectivamente em casa, só voltou muito depois. Foi por essa razão que tivemos de esperar tanto tempo por ele. Ora, quando descobri isso, compreendi toda esta história.
- Vá, continue - pediu Granby, impaciente.
- É evidente que um homem com 80 anos é capaz de caminhar - continuou o padre Brown. - Consegue até fazer grandes caminhadas por esses campos fora. No entanto, não tem pernas para saltar. Se o tentasse, revelar-se-ia um saltador ainda menos gracioso que eu. Ora, se o baronete regressou ao castelo quando nós já ali estávamos à sua espera, teve de entrar, assim como nós entrámos, saltando por cima do fosso, uma vez que a ponte levadiça só pôde ser accionada mais tarde. Desconfio até que foi ele próprio que avariou o mecanismo de propósito para atrasar a entrada de visitantes indesejáveis, a julgar pela rapidez com que foi reparada. Mas isso agora não interessa. Quando imaginei aquela figura vestida de negro e de cabelo branco a dar um salto por cima do fosso, percebi imediatamente que se tratava de um jovem disfarçado de velho. E aí tem a chave do mistério.
- Quer então dizer que aquele simpático rapaz matou o pai, escondeu o cadáver dentro da armadura, atirando com ela para dentro do fosso, para depois se disfarçar?
- Acontece que eram ambos muito parecidos. Aliás, teve ocasião de observar, através de retratos de família, a forte semelhança que existe entre todos eles. Referiu o facto de ele se ter disfarçado. Ora, a maneira como as pessoas se arranjam é, de certo modo, um disfarce. O velho disfarçava-se, usando uma peruca e o rapaz, uma barba de corte invulgar, pouco usual entre nós. Depois de escanhoado e de colocar a peruca do pai ficou exactamente igual
a ele, bastando-lhe apenas dar uns retoques com um pouco de maquilhagem. Já está agora a perceber por que razão é que ele se mostrou tão solícito ao emprestar-lhe o carro. Com efeito, o que ele queria era vir de comboio nessa mesma noite. Desse modo antecipou-se a nós, cometeu o crime, teve tempo para se disfarçar, e quando chegámos estava pronto para tratar do negócio.
- Sim - fez Granby, pensativo -, para tratar do negócio! Acha então que se tivesse sido o pai dele a tratar do assunto, teria conduzido o negócio de outra maneira.
- Ter-lhe-ia dito, com certeza, que o filho nunca havia de ver um tostão - respondeu o padre Brown. - Este estratagema, por muito estranho que lhe pareça, era, de facto, a única forma que ele tinha de evitar isso. O plano de James Musgrave satisfazia vários desígnios ao mesmo tempo. Andava a ser vítima de chantagem por parte daqueles russos, não sei por que motivo; desconfio que talvez se trate de algum caso de traição que cometeu durante a guerra. Graças a este golpe conseguiu escapar-lhes, induzindo-os em erro e levando-os, provavelmente, a irem para Riga à sua procura. Mas o pormenor mais sofisticado de todos foi a teoria que ele próprio enunciou, reconhecendo o filho como herdeiro, mas negando-lhe o estatuto de ser humano. Como vê, ao mesmo tempo que garantia opost obit, fornecia uma resposta àquilo que em breve se tornaria na maior dificuldade de todas.
- Quanto a mim, vejo várias dificuldades - observou Granby. - A qual delas se refere?
- Se o filho nem sequer ia ser deserdado, era estranho que os dois nunca se encontrassem. A teoria de um repúdio de ordem pessoal seria uma possível resposta para esse facto. Sendo assim, só restava uma dificuldade, como eu dizia, que neste momento muito deve preocupar o nosso homem. Como morrerá o velho?
- Eu sei como ele devia morrer - observou Granby.
O padre fez uma expressão divertida e prosseguiu, com um ar um tanto absorto:
- E além do mais há ainda outra coisa. Havia algo nesta história que lhe agradava de uma forma muito especial... digamos, no aspecto teórico. Deu-lhe um prazer enorme afirmar, na pele de uma personagem, que ele próprio cometera o crime na pele de outra... quando isso realmente tinha acontecido. É isto que eu considero uma ironia infernal, uma ironia partilhada com o Diabo. Quer que lhe conte uma coisa muito semelhante àquilo a que chamam um paradoxo? Por vezes, mesmo nas profundezas do Inferno, é uma alegria poder contar a verdade. E, sobretudo, poder contá-la de forma que ninguém perceba. Era por isso que ele gostava tanto de se fazer passar por outra pessoa, descrevendo-se em seguida a si próprio com as cores mais negras... no fundo, como ele era. Foi por essa razão que a minha sobrinha o ouviu a rir sozinho na galeria de arte.
Granby estremeceu como se acabasse subitamente de despertar para a realidade.
- É verdade, a sua sobrinha! - exclamou. - A mãe não queria que ela casasse com Musgrave? Devia sentir-se atraída pela sua fortuna e posição.
- Exactamente - concordou o padre Brown num tom brusco. - A mãe era a favor de um casamento seguro.

CAPÍTULO VII
A LUA VERMELHA DE MERU

Todos estavam de acordo em como o bazar de Mallowood Abbey, (por amável cedência de Lady Mounteagle) obtivera um tremendo êxito: havia jogos infantis, baloiços e outras atracções que as pessoas muito apreciavam; refiro-me ainda à Caridade, que era o principal objectivo dessas actividades, se é que qualquer das pessoas presentes poderia dizer em que consistia.
Contudo, só nos interessam aqui algumas dessas pessoas; especialmente três delas, uma dama e dois cavalheiros, que passaram no meio de duas das principais barracas ou pavilhões, discutindo em voz alta. A direita deles, ficava a tenda do Mestre da Montanha, o mundialmente famoso adivinho que actuava por meio de bolas de cristal e quiromancia; era uma tenda sumptuosa, cor de púrpura, coberta de desenhos a preto e dourado, representando as silhuetas de deuses asiáticos a acenarem, quais polvos, com os seus numerosos braços. Talvez pretendessem simbolizar a prontidão com que eles prestavam o seu auxílio divino; ou então queriam dizer que o ideal de um piedoso quiromante seria ter o maior número de mãos possível. Do lado oposto ficava a tenda, esta mais discreta, do Frenologista Phroso, decorada com um gosto mais austero, com desenhos das cabeças de Sócrates e de Shakespeare, as quais, pelos vistos, apresentavam bastantes bossas. Esses desenhos, porém, eram a preto e branco, acompanhados de números e anotações, como convinha à rígida dignidade de uma ciência puramente racionalista. A tenda cor de púrpura tinha uma abertura semelhante a uma caverna escura e lá dentro tudo era silêncio. Pelo contrário, o Frenologista Phroso, um sujeito magro, esquálido, queimado do Sol, com um incrível bigode negro e atrevido e suíças da mesma cor, encontrava-se junto à porta do seu templo, a gritar a plenos pulmões. Não se dirigia a ninguém em particular, explicando que a cabeça de qualquer dos visitantes poderia revelar-se, depois de examinada, muito semelhante, em matéria de bossas, à de Shakespeare. De facto, no momento em que Lady Mounteagle in
passava por entre as tendas, o atento frenologista prontificou-se, com vénias exuberantes, a apalpar as suas bossas cranianas.
A dama recusou com uma delicadeza que se parecia muito com a má educação. Mas devemos dar-lhe o desconto, uma vez que, nesse momento, estava no meio de uma discussão. Também devemos desculpá-la pois, de qualquer modo, estaria sempre desculpada pelo facto de ser Lady Mounteagle. O certo é que não se tratava de uma pessoa anónima sob nenhum aspecto: era de uma beleza pálida, com uns olhos profundos, negros e ávidos e um sorriso um tanto cruel. O seu vestuário era excêntrico para a época, pois passava-se antes de a Grande Guerra nos ter deixado a actual preferência pelas recordações antigas. De facto, o vestido dela apresentava certas semelhanças com a tenda cor de púrpura; era de estilo semi-oriental, coberto de emblemas exóticos e esotéricos. De resto ninguém ignorava que os Mounteagles eram loucos, o que equivalia a dizer que, tanto ela como o marido se interessavam pelas crenças e culturas orientais.
A excentricidade da dama formava um enorme contraste com o convencionalismo dos dois cavalheiros. Estes vinham vestidos e abotoados de cima abaixo segundo o gosto rígido dessa época remota, desde as pontas das luvas até aos reluzentes chapéus altos. No entanto, mesmo entre eles havia uma certa diferença: James Hardcastle conseguia mostrar-se ao mesmo tempo correcto e distinto, ao passo que Tommy Hunter era apenas um cavalheiro correcto e vulgar. Hardcastle era um político com uma carreira prometedora e, quando em sociedade, revelava interesse por tudo menos pela política. Poderão responder-me cepticamente que qualquer político é, por definição, um político com uma carreira prometedora. Diga-se, porém, em abono da verdade, que ele se exibia por vezes como um político bastante activo. Contudo, naquele bazar, não havia nenhuma tenda em que pudesse exibir as suas actividades.
- Quanto a mim - daclarou, colocando o monóculo, que era a única coisa que brilhava no seu rosto duro e vulgar -, penso que devemos esgotar todas as hipóteses de hipnotismo antes de falarmos de magia. Existem, sem dúvida, notáveis poderes psicológicos mesmo entre povos aparentemente atrasados. Houve casos maravilhosos levados a efeito por faquires.
- Você quer dizer aldrabões (1) ? - perguntou o outro com fingida inocência.
- Tommy, você está a ser parvo - observou a senhora. - Porque é que discute coisas que não entende? Lembra-me um garoto a

1 Na versão inglesa verifica-se um trocadilho entre as palavras fakir, mágico, efaker, aldrabão. (N.da T.)

berrar que sabe como se excuta determinado passe de magia. Esse cepticismo de adolescente já não se usa. Quanto ao hipnotismo, duvido que consiga considerá-lo como...
Nesta altura parece que Lady Mounteagle avistara alguém que lhe interessava; tratava-se de um sujeito baixote que se achava de pé, junto a uma barraca onde as crianças atiravam arcos procurando acertar em objectos decorativos de péssimo gosto. A dama correu para ele, exclamando:
- Padre Brown! Andava à sua procura. Queria perguntar-lhe uma coisa. Acredita em adivinhações?
A pessoa a quem ela se dirigia olhou um pouco atrapalhada para o arco que tinha na mão e respondeu por fim:
- Não sei em que sentido a senhora usa a palavra "acredita". Claro que se for tudo uma aldrabice...
- Õh, mas o Mestre da Montanha não tem nada de aldrabão - exclamou ela. - Ele não é um adivinho nem um mágico vulgar. Para ele, é uma grande honra vir ler as sinas às minhas reuniões; no seu país, ele é um grande chefe religioso, um Profeta, um Vidente. Mesmo as suas profecias não são vulgares adivinhações. Ele revela-nos grandes verdades espirituais em relação a nós próprios e aos nossos ideais.
- Não duvido - tornou o padre Brown. - É quanto a isso que eu levanto as minhas objecções. Eu ia dizer, precisamente que a coisa não tem importância quando é tudo uma aldrabice. Quando é tudo tão falso como a maior parte das coisas que há nos bazares. De certo modo não passa de uma intrujice. Mas quando toma foros de religião e pretende revelar verdades espirituais, então devemos fugir disso como da peste.
- Mas o que o senhor diz é uma espécie de paradoxo - observou Hardcastle a sorrir.
- Não sei bem o que seja um paradoxo - murmurou o padre, pensativo. - Amim a coisa afigura-se-me evidente. Suponho que não viriamal para ninguém se uma pessoa vestida como um espião viesse declarar que tinha contado toda a espécie de mentiras aos alemães. Porém, se um sujeito for negociar a verdade com os alemães, aí... Bom, eu penso se um adivinho irá negociar uma verdade como essa...
- O senhor acha, realmente...
- Sim - respondeu o outro. - Acho que ele está a negociar com o inimigo.
Tommy Hunter deu uma gargalhada.
- Bem, se o padre Brown acha que os mágicos são bons desde que sejam aldrabões, com certeza considera este profeta mulato um verdadeiro santo.
- Este meu primo Tom é incorrigível - declarou Lady Mounteagle. -Anda sempre a querer desmascarar os mestres, como ele lhes chama. Só veio aqui, de corrida, quando soube que o Senhor da Montanha cá estava. Acho que seria capaz de pretender desmascarar Buda e Moisés.
- Pensei que precisavas de alguém que te defendesse - respondeu o jovem com um sorriso a iluminar-lhe a cara redonda. - Por isso vim por aí abaixo. Não me agrada ver esse macaco negro nas vizinhanças.
-Lá estás tu! - exclamou Lady Mounteagle.-Aqui há anos, quando eu estava na índia, todos tínhamos essa espécie de preconceito contra as pessoas de raça negra. Mas agora que conheço alguma coisa acerca dos seus maravilhosos poderes espirituais, tenho satisfação em dizer que mudei de ideias.
- Os nossos preconceitos têm raízes opostas - declarou o padre Brown. - A senhora desculpa o facto de ele ser negro porque é um brâmane; eu desculpo-lhe ser brâmane porque é negro. Francamente, não me interesso pessoalmente pelos poderes espirituais. O que não compreendo é que haja alguém que seja contra um homem pela simples razão de ele ser da cor do cobre, do café, da cerveja ou dessas belas plantas aquáticas do Norte. Mas a verdade -
acrescentou, olhando fixamente a dama - é que eu tenho uma predilecção por tudo quanto é de cor...
- Ora vamos! - exclamou Lady Mounteagle num tom triunfante. - Bem me parecia que o senhor estava a brincar!
- Bem - disse, ofendido, o rapaz da cara redonda. - Quando alguém fala a sério, a senhora diz que é cepticismo de adolescente. Mas quando começa essa consulta da bola de cristal?
- Logo que os senhores quiserem - respondeu ela. - Na realidade, não vamos consultar a bola de cristal. Trata-se antes de quiromancia; se calhar para vocês tudo isso são disparates.
- Acho que existe uma via média entre o bom senso e o disparate - observou Hardcastle sorrindo. - Há explicações que são naturais e nada têm de disparatadas; e no entanto os resultados são surpreendentes. Vocês querem sujeitar-se à experiência? Por mim confesso que morro de curiosidade.
- Oh, eu cá não tenho pachorra para essas tolices! - resmungou o céptico, cujo rosto gorducho se tornara vermelho com o calor do seu desdém e incredulidade. - Deixo-vos a perder tempo com o vosso mulato charlatão. Por mim, prefiro ir atirar aos cocos.
O frenologista, que continuava ali por perto, aproveitou a ocasião:
- São cabeças, meu caro senhor - declarou. - Os crânios humanos apresentam um contorno muito mais subtil que os cocos. Nenhum coco se pode comparar com o nosso mais...
Hardcastle penetrara já na entrada escura da tenda cor púrpura e lá dentro ouvia-se um surdo murmúrio de vozes. Enquanto isso, Tom Hunter voltava-se para dar ao frenologista
uma resposta impaciente em que demonstrava um lamentável desdém pela diferença existente entre as ciências naturais e sobrenaturais, e a dama preparava-se para prosseguir a conversa com o padre. Mas nisto interrompeu-se, surpreendida.
James Hardcastle voltara a sair da tenda e, no seu rosto grave onde brilhava o monóculo, a surpresa era ainda mais visível.
- Ele não está lá dentro - declarou bruscamente o político. - O negro velhote que, pelos vistos, é o ajudante, resmungou qualquer coisa a explicar que o Mestre tinha preferido ir embora e não revelar os segredos sagrados a troco de dinheiro.
Lady Mounteagle voltou-se triunfante para os companheiros, exclamando:
- Eu bem dizia que ele era de um nível muito superior a tudo o que vocês imaginavam! Ele detesta estar no meio da turba. Preferiu regressar à sua solidão.
- Peço desculpa - murmurou gravemente o padre Brown. ¦- Devo ter sido injusto para com ele. Sabem para onde foi?
- Julgo saber - respondeu a dona da casa igualmente séria. - Quando ele quer estar só, costuma retirar-se para os claustros, ao fundo da ala esquerda, a seguir ao escritório e ao museu particular do meu marido. Talvez não saibam que esta casa foi outrora um convento.
- Ouvi qualquer coisa a esse respeito - respondeu o padre, sorrindo.
- Se quiserem vamos até lá - propôs vivamente a dama. - Acho que deviam gostar de ver a colecção do meu marido; ou, pelo menos, a Lua Vermelha. Já ouviram falar na Lua Vermelha de Meru? É um rubi, sim.
- Eu gostaria imenso de ver a colecção - declarou calmamente Hardcastle. - Incluindo o Mestre da Montanha, se é que o profeta também está em exposição no museu.
E todos se dirigiram para o atalho que conduzia à casa.
- De qualquer modo - resmungou Tom, desconfiado-, sempre gostava de saber o que veio cá fazer esse escuro animal, se não foi para nos ler a sina.
Enquanto se afastava, o persistente Phroso correu mais uma vez em sua perseguição, quase a puxar-lhe pelas abas do casaco.
- A bossa - começou ele.
- Qual bossa?... - retorquiu o rapaz. - A bossa é um galo. E a mim dá-me galo ver o Mounteagle. - Com isto, girou nos calcanhares para se ver livre do homem de ciência.
A caminho do claustro, os visitantes tinham de atravessar o comprido salão que Lord Mounteagle transformara no seu notável museu particular de amuletos e mascotes asiáticas. Pela porta aberta ao fundo da parede em frente avistavam-se os arcos góticos através dos quais brilhava a luz do dia, formando um espaço quadrado em volta do pátio coberto, onde os frades outrora passeavam. Ali, tinham de passar em frente de uma figura que, à primeira vista, se revelava mais estranha que o fantasma de um monge.
Tratava-se de um cavalheiro idoso, vestido de branco da cabeça aos pés e com um turbante verde-claro. No entanto, a sua pele era branca e rosada como a de um inglês e ostentava os bigodes sedosos e brancos de um simpático coronel das índias. Era Lord Mounteagle, que assumira os seus gostos orientais de um modo mais soturno, ou, pelo menos, mais sério que a sua mulher. Não conseguia falar de outras coisas senão da religião e da filosofia orientais e chegara ao ponto de achar necessário vestir-se como um eremita do Oriente. Sempre que mostrava com prazer os seus tesouros, dava a impressão que os apreciava muito mais em função das verdades que se dizia significarem que pelo seu valor como colecção e menos ainda pelo seu valor monetário. Até mesmo quando apresentava o enorme rubi, provavelmente a única coisa de grande valor que havia no museu, em termos financeiros, parecia muito mais interessado no seu nome que no seu tamanho e, menos ainda, no seu preço.
Os visitantes contemplaram todos aquela enorme pedra rubra, que parecia brilhar como uma fogueira através de uma cortina de sangue. Entretanto, Lord Mounteagle fazia-a rebolar na palma da mão sem olhar para ela, de olhos fitos no tecto, enquanto ia desfiando uma longa história acerca do carácter lendário do Monte Meru e no lugar que ele ocupava na mitologia gnóstica, como sede de forças primitivas e ignoradas.
A certa altura da palestra acerca do Demiúrgo dos Gnósticos (sem esquecer a sua relação com o conceito paralelo de Maniqueus), o próprio Mr. Hardcastle, com todo o seu tacto, achou que era tempo de criar uma diversão e pediu licença para observar a pedra. Uma vez que a tarde ia avançada e a sala comprida com a sua única porta começava a ficar escura, saiu para o claustro, a fim de examinar melhor o rubi. Foi então que todos repararam pela primeira vez na presença um pouco assustadora e silenciosa do Mestre da Montanha.
O claustro ficava no mesmo plano da sala; no entanto, a fila de arcadas do claustro que formavam o quadrado estavam ligadas entre si por um muro baixo, que chegava à cintura e transformava os arcos em janelas, cada qual com um largo parapeito de pedra. Esta alteração provinha sem dúvida de longa data. No entanto, havia outras mais recentes que demonstravam bem as ideias estranhas de Lord e de Lady Mounteagle. Entre os pilares pendiam cortinas transparentes, ou antes, véus, formados por contas ou caniços finos, de um estilo continental ou setentrional. Também nestas se podiam distinguir os desenhos e as cores dos dragões e ídolos asiáticos, em contraste com a moldura cinzenta dos arcos góticos dos
quais pendiam. Isto, porém, apesar de diminuir ainda mais a escassa luz do recinto, representava a menor das incongruências que, nos visitantes, iam provocando reacções diversas.
No espaço livre que rodeava os claustros corria um caminho circular pavimentado de pedras de tons claros, rodeadas por uma cercadura de esmalte verde a imitar relva. No centro deste espaço, erguia-se uma fonte ou lago mais elevado, de cor verde-escura, no qual flutuavam nenúfares e nadavam peixes dourados; lá no alto, recortada na luz que se esbatia, encontrava-se uma enorme imagem verde. Estava de costas, com o rosto totalmente invisível, numa posição curvada, de modo que a estátua parecia não ter cabeça. No entanto, apesar da penumbra que ali reinava, alguns dos presentes puderam aperceber-se de que não se tratava de uma estátua cristã.
A poucos metros de distância, no atalho circular, em frente do enorme deus verde, encontrava-se o homem chamado o Mestre da Montanha. As suas feições delicadas e pontiagudas pareciam moldadas por algum hábil escultor numa máscara de cobre. Formando contraste com elas, a barba de um cinzento-escuro reflectia um tom azulado, a começar num estreito tufo sobre o queixo para depois se abrir em leque como a cauda de um pássaro. O homem usava uma túnica azul pavão e na cabeça calva ostentava um turbante de um feitio estranho que nenhum dos presentes jamais vira. Lembrava mais o género egípcio que o indiano. Mantinha-se de pé, de olhar fixo. Os seus olhos estavam muito abertos, como os de um peixe, tão imóveis que lembravam os olhos de uma múmia pintados num sarcófago. No entanto, apesar de ser bastante estranha a figura do Mestre da Montanha, não era para ela que se dirigiam os olhares de alguns dos circunstantes, incluindo o padre Brown: continuavam a fitar o enorme ídolo verde-escuro, para o qual o Mestre olhava também.
- Que coisa esquisita para se colocar no meio de um antigo claustro de convento! - murmurou Hardcastle de sobrolho franzido.
- Não me digas que estás a ficar parvo - exclamou Lady Mounteagle. - Foi precisamente essa a nossa ideia; juntar as grandes religiões do Oriente e do Ocidente; Buda e Jesus Cristo. Compreendes, sem dúvida, que todas as religiões, no fundo, são iguais.
- Se assim é - observou suavemente o padre Brown -, parece desnecessário ir-se buscar uma ao coração da Ásia.
- Lady Mounteagle quer dizer que elas representam diversos aspectos ou facetas da mesma coisa, tal como se observa nesta pedra - começou Hardcastle. E, começando a interessar-se pelo assunto, pousou o enorme rubi no parapeito de pedra por debaixo de
um dos arcos góticos. - Isto não significa que se possam misturar esses aspectos no mesmo estilo artístico. Podemos juntar a Cristandade com o Islão, mas nunca o Gótico com o Sarraceno, para não falarmos do verdadeiro estilo Hindu...
Enquanto falava, o Mestre da Montanha pareceu voltar a si, como quem regressa do estado cataléptico. Deu gravemente uma volta de quarto de círculo e foi colocar-se fora da fila das arcadas, de costas para o grupo e a olhar para a parte de trás do ídolo. Tornava-se evidente que andava a dar a volta ao claustro, por etapas, como o ponteiro de um relógio, fazendo pausas, de quando em quando, para contemplação.
- Qual é a religião dele? - quis saber Hardcastle com um leve tom de impaciência.
- Ele afirma que a sua religião é mais antiga que o Bramanismo e mais pura que o Budismo - explicou reverentemente Lord Mounteagle.
-Oh! - exclamou Hardcastle, continuando a observá-lo através do monóculo, de mãos enfiadas nos bolsos.
- Diz-se - prosseguiu o dono da casa na sua voz suave e didáctica - que esta divindade que eles chamam Deus se encontra esculpida numa estátua colossal na caverna do Monte Meru...
Nesta altura, a serenidade professoral de sua senhoria foi quebrada por uma voz que soava atrás das suas costas. Provinha da escuridão do museu donde tinham saído havia pouco para entrarem no claustro. Ao escutá-la, os dois jovens voltaram-se, a princípio incrédulos, depois furiosos, acabando por desatar a rir:
- Espero não vir incomodar - dizia a voz sedutora e delicado do professor Phroso, o incansável paladino da verdade -, mas lembrei-me de que algum de vós poderia querer dedicar alguns minutos a esta ciência tão desprezada das Bossas, que...
- Ouça lá! - exclamou o impetuoso Tommy Hunter. - Eu cá não tenho bossas, mas garanto que quem vai ficar com algumas bossas é o senhor, se...
Hardcastle empurrou-o suavemente para a porta por onde ele acabava de entrar e o grupo voltou a sua atenção para o compartimento interior.
Foi nesse momento que se deu o incidente. O primeiro a mover -se foi, ainda desta vez, o impetuoso Tommy e agora com mais êxito. Antes que alguém desse por isso, no momento em que Hardcastle se recordava, com um sobressalto, de ter deixado o rubi pousado no muro, já Tommy se precipitava com a agilidade de um gato, curvando a cabeça e os ombros para o intervalo entre duas colunas, a gritar com uma voz que ressoava por todo o claustro:
- Apanhei-o!
Nesse mesmo instante, quando todos se voltavam e antes de ouvirem aquele brado, tiveram tempo de ver o que estava acontecendo: Num dos ângulos das arcadas surgira, para logo desaparecer, uma mão morena, ou antes, cor de bronze, da cor do ouro velho, tal como já haviam observado antes. A mão agira com a rapidez de uma cobra ou da comprida língua de um papa-formigas. Fora essa mão que arrebatara a jóia. O parapeito do muro estava vazio.
- Agarrei-o! - berrava Tommy Hunter - Mas ele debate-se com força. Corram a cercá-lo pela frente. Ele não pode ter-se desfeito dela!
Os outros obedeceram, uns correndo pelo claustro adiante, outros saltando o muro baixo. Como resultado disto, não tardou que um pequeno grupo, composto por Hardcastle, Lord Mounteagle, o padre Brown e até o inevitável Mr. Phroso das bossas, rodeasse o cativo. Este, que era o Mestre da Montanha, estava a ser violentamente sacudido por Hunter que o segurava pelo colarinho de um modo muito pouco respeitoso para a dignidade do Profeta.
- Ele aqui está! - declarou Hunter, largando-o com um suspiro. - Agora revistem-no. A pedra deve aí estar!
Três quartos de hora mais tarde, Hunter e Hardcastle, com os chapéus, as gravatas, as luvas, os sapatos e os polainitos em mísero estado, em virtude das suas recentes actividades, achavam-se frente a frente no claustro.
- Então? - perguntava Hardcastle em voz baixa. - Tens alguma ideia acerca deste mistério?
- Cos di abos - replicou Hunter -, não podemos chamar a isto um mistério. Todos nós o vimos agarrar na pedra, caramba!
- Sim, mas nenhum de nós o viu largá-la - replicou o outro. - E o mistério é o seguinte: onde é que ele a meteu, já que a não conseguimos encontrar?
- Tem de estar algures - tornou Hunter. - Viste bem na fonte e junto a esse maldito deus?
- Não fui ao ponto de dissecar os peixes - replicou Hardcastle, erguendo o monóculo para olhar o companheiro.-Estás a pensar no anel de Policrates?
Mas, ao que parece, a observação daquele rosto redondo através do monóculo convenceu o observador de que o companheiro estava muito longe de pensar em lendas gregas, pois este respondeu subitamente:
- Não o tem consigo, concordo, a não ser que o tenha engolido. - Queres então dissecar também o Profeta? - perguntou o outro sorrindo. - Mas aí vem o nosso anfitrião.
- Isto é uma tragédia - exclamou Lord Mounteagle a torcer os bigodes brancos com os dedos trémulos de nervoso.-É uma tragédia sabermos que temos um ladrão em casa, mas pior ainda tratando-se do Profeta. No entanto, confesso que não percebo patavina do que ele está a dizer. Gostava que vocês viessem cá dentro e me dissessem o que pensam.
Lá foram todos, ficando Ilunter para trás a falar com o padre Brown que andava por ali a passear no claustro.
- O senhor deve ter muita força - observou o padre em tom de gracejo. - Segurou-o só com uma mão; e ele parecia bastante vigoroso, a debater-se, mesmo depois de agarrado como um desses deuses indianos.
Deram ambos uma ou duas voltas ao claustro, sempre a conversar, e depois entraram também para a sala onde o Mestre da Montanha se encontrava sentado num banco, na situação de prisioneiro, mas com a pose de um rei.
Tal como observara Lord Mounteagle, o ar dele e o seu tom ao falar eram difíceis de compreender. Falava com um ar sereno de quem possui uma força oculta. Parecia divertido com as sugestões dos presentes quanto ao lugar onde poderia encontrar-se a pedra preciosa. E também não revelava qualquer ressentimento. Era como se estivesse a rir muito à socapa dos esforços que todos faziam para encontrar o rasto de uma coisa de que toda a gente o tinha visto a apoderar-se.
-Vocês começam a aprender alguma coisa - disse ele com insolente amabilidade - acerca das leis do tempo e do espaço, dos quais a vossa ciência mais recente está atrasada mil anos em relação à nossa religião mais antiga. Vocês nem sequer sabem o que significa esconder uma coisa. Ná, meus pobres amigos. Vocês ignoram mesmo o que significa ver uma coisa, senão vê-la-iam tão claramente como eu a estou a ver...
- Quer o senhor dizer com isso que ela está aqui? - perguntou secamente Hardcastle.
-Aqui é uma palavra que também tem muitos significados - replicou o místico. - Porém, eu não disse que ela estava aqui, apenas disse que a via.
Seguiu-se um silêncio irritado e o homem prosseguiu num tom sonolento:
-Se vocês se mantivessem num silêncio total e rigoroso acham que conseguiriam ouvir um grito vindo do outro lado do mundo? O grito de um adorador dos deuses, perdido nas montanhas onde se encontra a imagem original, que é ela própria, uma espécie de montanha. Diz-se que até os judeus e os muçulmanos seriam capazes de adorar essa imagem porque ela não foi feita pela mão do homem. Escutem: ouvem o grito com que ela ergue a cabeça e olha. do alto do seu pedestal de pedra, muda há tantos anos, aquela lua vermelha e irada que é o olho da montanha?
- O senhor quer realmente insinuar - exclamou Lord Mounteagle um pouco abalado -, que era capaz de a fazer passar daqui para o Monte Meru? Eu sempre acreditei que o senhor possuía enormes poderes espirituais, mas...
- Talvez - retorquiu o Mestre - eu tenha poderes maiores que aqueles que o senhor jamais imaginou.
Hardcastle ergueu-se com impaciência e começou a passear pela sala, de mãos nos bolsos.
- Eu nunca acreditei tanto como o senhor, mas admito que certos poderes consigam... Santo Deus...
A sua voz áspera e sonora calou-se a meio da frase e o monóculo caiu-lhe do olho. Todos se voltaram na mesma direcção e nos rostos dos outros estampou-se igual surpresa.
A Lua Vermelha de Meru encontrava-se sobre o muro de pedra, no lugar exacto onde tinha sido visto pela última vez. Dir-se-ia uma faúlha trazida pelo vento, ou a pétala de uma rosa vermelha; mas achava-se no lugar exacto onde Hardcastle imprudentemente a pousara.
Desta vez, Hardcastle não fez menção de lhe pegar. No entanto, a sua atitude era digna de nota: voltou-se lentamente e começou a passear de novo pela sala, agora, porém, com movimentos mais decididos, quando até ali apenas denotavam inquietação. Deteve-se por fim em frente do Mestre que continuava sentado e curvou-se com um sorriso de certo modo sardónico, dizendo:
-Mestre, todos nós lhe devemos pedir desculpa. E o que é mais importante, o senhor deu-nos hoje uma lição. Acredite que nos deu uma lição, mas também nos pregou uma partida. Lembrar-me-ei sempre do extraordinário poder que o senhor realmente possui e da maneira delicada como faz uso dele. Lady Mounteagle - prosseguiu, voltando-se para ela -, peço que me perdoe ter-me dirigido ao Mestre em primeiro lugar, mas a si eu já tinha dado esta explicação. Pode dizer-se que eu explicara tudo antes de acontecer. Eu disse que a maior parte destas coisas pode ser interpretada através de uma certa espécie de hipnotismo. Muitos acreditam que é esta a explicação para todas aquelas histórias indianas acerca da árvore das mangas e do rapaz que trepa por uma corda que se eleva no ar. Nada disso acontece na realidade; os espectadores é que estão hipnotizados e julgam que aconteceu. Assim estávamos nós todos, hipnotizados, ao imaginarmos que tinha havido roubo. Aquela mão que apareceu no parapeito de pedra e que arrebatou a pedra preciosa foi uma ilusão momentânea, apenas um sonho. Acontece que, tendo visto a pedra desaparecer, nunca mais a procurámos onde a tínhamos visto antes. Vasculhámos o lago e voltámos do avesso todas as folhas dos nenúfares. Quase chegámos a dar um vomitório aos peixes dourados. Mas a verdade é que o rubi nunca saíra do mesmo sítio.
Dizendo isto, Hardcastle fitava os olhos opalescentes e a boca barbuda e sorridente do Mestre, cujo sorriso se acentuara levemente. Essa expressão levou os outros a descontraírem-se soltando um suspiro de alívio.
- Isto foi a nossa salvação - murmurou Lord Mounteagle ainda um pouco nervoso. -Não há a menor dúvida de que tudo se passou tal como você acaba de dizer. Foi um incidente lamentável e não sei como pedir desculpas...
- Não guardo ressentimento - declarou o Mestre da Montanha sempre a sorrir. - Isto em nada me atingiu.
Enquanto os outros continuavam a manifestar o seu regozijo, sendo Hardcastle o herói da festa, o frenologista das suíças regressou à sua estranha barraca. Ao voltar-se, teve a surpresa de ver atrás de si o padre Brown.
- Deseja que apalpe as suas bossas? - inquiriu o perito no seu tom levemente sarcástico.
-Não me parece que o senhor tenha ainda vontade de apalpar - retorquiu o padre com bonomia. - Você é detective, não é?
- Sou. Lady Mounteagle contratou-me para vigiar o Mestre, porque, apesar de todo aquele misticismo, ela não é tola. Assim, mal ele saiu da tenda, fui logo atrás, fazendo-me passar por chato ou maníaco. Se alguém tivesse vindo à minha tenda eu não teria outro remédio senão ir estudar na Enciclopédia o que lá diz acerca de "Bossas".
- O senhor fez bem o seu papel de chato que persegue as pessoas nos bazares.
- Que caso estranho este, não foi? - observou o falso frenologista. - Que coisa esquisita a pedra ter estado sempre ali!
- Muito estranho - repetiu o padre.
Qualquer coisa no seu tom de voz fez que o outro olhasse:
- Oiça lá! - exclamou - Que é que lhe deu? Por que está com esse ar? Não acredita que a pedra tivesse estado lá sempre?
O padre Brown piscou os olhos como se tivesse recebido uma bofetada. Depois proferiu lentamente, com hesitação:
- Não... o caso é que... não posso... não consigo acreditar.
- Bem, o senhor não é daqueles que são capazes de dizer isso sem uma razão - observou o outro, desconfiado. - Por que julga então que o rubi não esteve sempre lá?
- Porque fui eu que o voltei a pôr lá - confessou o padre Brown.
O homem ficou pregado ao chão, como se tivesse os cabelos em pé. Abriu a boca, mas não conseguiu falar.
- Ou melhor - prosseguiu o padre -, eu é que convenci o ladrão a deixar que eu a pusesse lá. Disse-lhe que tinha adivinhado tudo e mostrei-lhe que ainda era tempo de se arrepender. Não tenho escrúpulos de lhe dizer isto como confidência entre profissionais. Além disso, não me parece que os Mounteagles apresentem queixa, uma vez que conseguiram reaver o objecto furtado e tendo em conta quem foi o ladrão.
- Refere-se ao Mestre...? - inquiriu o falso Phroso.
- Não-informou o padre Brown -, não foi o Mestre que roubou.
- Mas então não percebo - objectou o outro. - Ninguém estava do outro lado do muro senão o Mestre; e a mão, não há dúvida, vinha de lá...
- A mão veio lá de fora, mas o ladrão estava cá dentro - explicou o padre Brown.
- Parece que estamos outra vez a cair na conversa dos místicos. Escute lá. Eu sou um homem prático. O que me interessa saber é se agora está tudo bem em relação à pedra...
- Antes de saber da existência do rubi já eu sabia que estava tudo mal - declarou o padre.
E depois de uma pausa começou num tom pensativo:
- Logo que os vi a discutir, junto das tendas, percebi que alguma coisa não estava certa. Há quem diga que as teorias não interessam e que a lógica e a filosofia não são coisas práticas. Não acredite nisso. A Razão vem de Deus, e quando as coisas estão fora da razão por algum motivo é. Vejamos neste caso quais eram as teorias. Hardcastle mostrava-se superior e afirmava que tudo era possível; mas sempre através do hipnotismo e da vidência, nomes estes com que se designam habitualmente os enigmas filosóficos dessa espécie. Hunter, pelo contrário, achava essas coisas uma pura aldrabice e queria desmascarar tudo. De acordo com o testemunho de Lady Mounteagle, ele não só costumava desmascarar adivinhos como tinha vindo aqui especialmente para desmascarar este. Era raro ele vir cá. Não se dava bem com Lord Mounteagle a quem pedia constantemente dinheiro emprestado porque era um esbanjador; mas quando soube que o Mestre estava cá, veio logo. Muito bem. Ora, apesar disto, quem se dispôs a consultar o bruxo foi Hardcastle e Hunter recusou-se. Declarou que não perdia tempo com tais disparates; isto, depois de haver passado parte da vida a provar que aquilo eram patranhas. Parece que não faz sentido. Ele pensava que, neste caso, se tratava de consultar a bola de cristal, mas descobriu que era através da leitura da mão.
- Quer dizer que isso foi uma desculpa? - perguntou o outro, intrigado.
- Assim pensei, de inicio, mas sei agora que não foi uma desculpa, mas sim uma razão. Ele ficou desorientado quando soube que se tratava de ler na palma da mão porque...
- Porquê? - perguntou o outro com impaciência.
- Porque não queria descalçar a luva - explicou o padre Brown.
- Descalçar a luva? - repetiu o outro.
- Se o fizesse - prosseguiu suavemente o padre, - veríamos todos que tinha a mão pintada de castanho claro... oh, sim, ele veio especialmente por saber que estava cá o Mestre. E vinha preparado.
- Quer o senhor dizer que foi a mão de Hunter-exclamou Phroso - que vimos sair da arcada? Mas ele estava junto de nós...
- Vá experimentar lá no sítio e verá se não é possível - disse o padre. - Hunter deu um salto e debruçou-se para fora; num abrir e fechar de olhos conseguiu descalçar a luva, arregaçar a manga e dar a volta ao pilar com o braço; ao mesmo tempo, deitou a outra mão ao indiano e gritou que apanhara o ladrão. Nesse momento, observei que ele o agarrava só com uma das mãos, quando qualquer pessoa dejuizo utilizaria as duas. Com a outra estava ele a meter o rubi no bolso das calças!
Seguiu-se uma longa pausa até que o ex-frenologista murmurou lentamente:
- Bem, isto é espantoso. Mas há uma coisa que continua a intrigar-me. Para já, nada explica a estranha atitude do velho mágico. Se ele está totalmente inocente, por que raio não o disse logo? Por que é que não se mostrou indignado quando o acusaram e lhe passaram revista? Por que é que continuou a sorrir daquela maneira, dando a entender com o seu ar astuto que consegue fazer coisas incríveis e maravilhosas?
- Ah - exclamou o padre Brown, agora numa voz mais agitada -, aí é que bate o ponto: aí está tudo o que as pessoas não entendem nem querem entender! As religiões são todas iguais, afirma Lady Mounteagle. Mas serão, caramba? Garanto-lhe que algumas são de tal modo diferentes que o melhor adepto de uma crença pode ser um malandrim, ao passo que o pior de outra delas pode até ser um sujeito sensível. Eu disse que não gostava do poder espiritual, porque a expressão acentua a palavra "poder". Não quero dizer que o Mestre seja capaz de roubar um rubi porque provavelmente não é esse o caso. Até porque vale a pena achar que não vale a pena. Decerto que não se sente especialmente tentado pelas jóias; o que o tenta, isso sim, é conquistar a fama de fazer milagres, fama esta que lhe não pertence, tal como o rubi. Foi nessa espécie de tentação que ele caiu hoje, nessa espécie de roubo. Ele quis que acreditássemos no seu maravilhoso poder mental, que é capaz de fazer que um objecto material se desloque através do espaço. Muito embora não o tenha conseguido, fez que acreditassem nisso. O caso da propriedade privada não lhe ocorreu como a coisa mais importante. A questão não se pôs, para ele, da seguinte forma: "Serei eu capaz de roubar o rubi?" Mas sim desta outra: "Serei eu capaz de fazer desaparecer esta pedra e fazê-la aparecer numa montanha distante?" A quem pertencia a pedra foi coisa que para ele não tinha importância. É a isto que me refiro quando falo nas diferenças que existem entre as religiões. O homem sente-se muito orgulhoso por possuir aquilo a que chama poderes espirituais. Mas o que ele designa por espirituais não corresponde ao que nós chamamos morais. Significa antes mentais: o poder da mente sobre a matéria; o mágico a controlar os elementos. Ora nós não somos isso. Mesmo quando somos piores. Nós, que, pelo menos, somos filhos de pais cristãos, que crescemos debaixo daquelas arcadas medievais, muito embora as tenhamos adornado com todos os demónios da Ásia, temos ambições e conceitos opostos. Estaríamos todos ansiosos que ninguém suspeitasse que tinha sido um de nós a roubar a pedra. Ele estava de facto desejoso de que todos julgassem que tinha sido ele, muito embora não fosse. Estava a roubar a fama de ladrão. Ao passo que todos nós repelíamos a tal ideia de crime como se se tratasse de uma serpente, ele atraía-a a si como um encantador de serpentes. Porém, neste país as serpentes não são consideradas animais de estimação. As tradições do Cristianismo revelam-se imediatamente num caso destes. Veja só Lorde Mounteagle, por exemplo! Por muito oriental e esotérico que se pretenda mostrar, com o seu turbante e a sua túnica, rodeado de mensagens de Mahatmas, quando lhe roubam de sua casa uma pedra preciosa e os amigos são todos suspeitos, não tardamos a ver nele um vulgar cavalheiro inglês todo atrapalhado. O autor da proeza também não desejaria que soubéssemos que tinha sido ele, porque é um cavalheiro inglês. E, além disso, há outra coisa muito mais importante: é um larápio cristão. E espero bem que seja um larápio arrependido.
- Portanto, no seu entender - disse, rindo, o companheiro -, o larápio cristão e o criminoso pagão representam dois conceitos opostos. O primeiro lamentava ter cometido o delito, o segundo lamentava não o ter cometido.
- Não devemos ser severos para qualquer deles - declarou o padre Brown. - Outros cavalheiros ingleses também roubaram antes e beneficiaram de protecção legal; o Ocidente tem as suas maneiras de proteger a ladroeira com sofismas. Afinal de contas, este rubi não foi a única pedra preciosa do mundo a mudar de dono. O mesmo tem sucedido a outras gemas, algumas esculpidas como camafeus e coloridas como as flores.
O outro olhou para o padre com ar intrigado e este explicou, apontando com o dedo para o contorno gótico da velha abadia:
- Esta enorme pedra esculpida também foi roubada.

CAPÍTULO VIII
O INCONSOLÁVEL MARQUÊS DE MARNE

O clarão de um relâmpago iluminou subitamente os bosques escuros, revelando toda a folhagem até à mais pequenina folha enrolada, como se cada pormenor fosse bordado ou esculpido em prata maciça. O mesmo estranho efeito de luz que parecia registar milhões de pormenores num só instante, iluminou tudo, desde o elegante serviço de loiça do piquenique, espalhado no chão, debaixo daquela árvore frondosa, até aos brancos confins da estrada sinuosa ao fundo da qual estava estacionado um carro branco. Lá longe, a triste mansão com as suas quatro torres, à semelhança de um castelo que, na penumbra da tarde e à distância, não passava de um amontoado de paredes que se confundiam com as nuvens, foi como se brotasse do chão e se erguesse com todos os seus telhados pontiagudos e as suas janelas desertas. E, pelo menos neste sentido, a luz desempenhava o papel de uma revelação. Porque, para algumas das pessoas reunidas debaixo da árvore, aquele castelo era, na verdade, uma coisa quase esquecida que iria surgir de novo no cenário das suas vidas.
A luz do relâmpago envolveu também, por um instante, no mesmo esplendor prateado uma figura humana que se achava tão imóvel como qualquer das torres. Tratava-se de um homem alto, de pé sobre uma elevação do terreno, acima dos outros circunstantes, na sua maioria sentados na relva ou curvados a recolher a canastra e as loiças. Envergava um casaco curto, fechado por um colchete, e uma corrente de prata, que brilhou como uma estrela ao reflectir o relâmpago. Havia qualquer coisa de metálico na sua figura imóvel, reforçada pelo facto de o seu cabelo cortado rente ser daquele amarelo brilhante a que se pode realmente chamar cor de ouro. A sua figura parecia mais jovem que o rosto. Este era belo, no seu tipo aquilino. Porém, observado com uma luz forte, parecia um pouco enrugado e gasto, efeito talvez da caracterização constante, uma vez que Hugo Romaine era o actor mais famoso da sua época. Naquele instante de iluminação, os caracóis dourados, a máscara de marfim e o enfeite de prata fizeram brilhar aquela fi-
gura como se se tratasse de um cavaleiro com armadura. No instante seguinte, voltou a ser uma silhueta escura ou mesmo negra sobre o pano cinzento e triste do crepúsculo chuvoso.
Havia, porém, qualquer coisa na sua imobilidade que o distinguia do grupo de pessoas que se encontravam a seus pés. Todas aquelas figuras tinham feito o mesmo movimento involuntário sob o inesperado choque da luz; é que, embora o céu estivesse carregado, era aquele o primeiro relâmpago da trovoada. A única senhora presente, cujo jeito de ostentar graciosamente a cabeleira branca a revelava como sendo americana, fechou com naturalidade os olhos, soltando um pequeno grito. O marido, o general Outram, inglês, oficial das índias, empertigado e careca, com umas suíças e um bigode preto à moda antiga, limitou-se a erguer os olhos num gesto vivo e voltou à sua tarefa de arrumar as coisas. Um jovem de nome Mallow, muito alto e tímido, com uns olhos castanhos e caninos, deixou cair uma chávena e pediu desculpas, muito atrapalhado. Um terceiro homem, bem vestido e com uma cabeça enérgica como a de um fox terrier, com uma cabeleira grisalha penteada para trás, era nem mais nem menos que o grande proprietário e editor de jornais, Sir John Cockspur; praguejava abundantemente, mas nunca no idioma ou com o sotaque inglês, pois nascera em Toronto. Entretanto, o sujeito alto de capa curta continuava literalmente imóvel como uma estátua no crepúsculo; o seu rosto de águia sob o clarão deslumbrante lembrava o busto de um imperador romano, pois nem sequer pestanejava.
Logo a seguir, na abóbada escura rebentou o trovão e a estátua pareceu voltar à vida. Virou a cabeça e disse, por cima do ombro, num tom indiferente:
- Cerca de minuto e meio entre a luz e o ruído, mas creio que se vai aproximar. Uma árvore não é decerto o melhor abrigo quando troveja, mas em breve vai ser-nos preciosa como guarda-chuva. Vem aí um dilúvio.
O jovem olhou para a senhora com uma certa ansiedade e murmurou:
- Não poderíamos abrigar-nos noutro sítio? Parece que há ali uma casa.
- Há ali uma casa - observou o general, carrancudo -, mas não o que se poderá considerar um hotel hospitaleiro.
- É estranho - respondeu tristemente a mulher, - sermos apanhados por uma trovoada logo aqui, onde a única casa que vemos é precisamente aquela...
Qualquer coisa no tom em que ela falara impressionou o rapaz que era sensívwel e compreensivo. Porém, o homem de Toronto não deu por nada.
- Que é que tem a casa? - inquiriu. - Parece que está em ruínas.
- Aquela casa-informou secamente o general - pertence ao marquês do Marne.
-; Ena! - exclamou Sir John Cockspur - Já ouvi falar nessa ave. É um tipo esquisito. No ano passado figurou como tema de primeira página de mistérios do Comet: "O fidalgo que ninguém conhece."
- Sim, também já ouvi falar deles - murmurou o jovem Mar-low em voz baixa. - Contam-se histórias incríveis acerca do motivo de ele se esconder desta maneira. Uns dizem que usa uma máscara porque é leproso. Mas alguém me afirmou como certo que existe uma maldição na família: uma criança teria nascido com uma deformidade horrível e eles têm-na escondida num quarto escuro.
- O marquês do Marne tem três cabeças - declarou Romaine com um ar muito grave. - De três em três séculos a árvore genealógica deles é adornada com um nobre que nasce com três cabeças. Nenhum ser humano se atreve a aproximar-se daquela casa maldita a não ser um cortejo de chapeleiros que ali vai em silêncio fornecer uma reserva anormal de chapéus. Mas acontece, meus caros amigos - e aqui a voz de Romaine assumiu um daqueles tons profundos e terríveis que causavam calafrios no teatro -, que esses chapéus têm uma forma humana.
A dama americana olhou para ele de sobrolho franzido como se aquele tom teatral a tivesse impressionado mesmo contra sua vontade.
- Não aprecio as suas brincadeiras de mau gosto - declarou - e preferia que não gracejasse com este assunto.
- Oiço e obedeço - replicou o actor -, mas será que eu, tal como a Brigada Ligeira, não tenho sequer licença para perguntar porquê?
- A razão disso - começou ela - é que esse sujeito não é de modo algum o fidalgo que ninguém conhece. Eu conheço-o ou, pelo menos, conheci-o há trinta anos, quando todos éramos novos e ele estava como adido na nossa Embaixada em Washington. Nesse tempo, não usava máscara, isto é, nunca a usou na minha frente. Nem era leproso, embora fosse já um solitário. Também só tinha uma cabeça e um só coração, e esse estava destroçado.
- Um caso de amores infelizes, claro - disse Cockspur. - Gostaria de saber esse caso para o Comet.
- Penso que isso significa da sua parte um cumprimento para nós, mulheres. Acha que o coração dos homens só pode ser destroçado por uma mulher. Mas existem outras espécies de amor e de desgosto. Nunca leu In Memorian? Nunca leu a história de David e de Jónatas? O que acabou com o pobre do Marne foi a morte de um irmão; na realidade, eram só primos direitos, mas tinham sido criados juntos e eram muito unidos, mais que alguns irmãos
de verdade. James Mair, que era o nome do marquês quando eu o conheci, era o mais velho dos dois, mas era ele o devoto, ao passo que o outro estava no lugar do deus. E, na opinião do primo, Maurice Mair era de facto maravilhoso. James não era nada parvo; desempenhava mesmo muito bem o seu lugar político, mas parece que Maurice fazia isso mesmo e muito mais. Era um artista brilhante, actor e músico e tudo o mais. James também era muito bem parecido, alto, forte, enérgico, com um nariz direito; embora eu ache que ele devia parecer estranho à gente nova, com aquela barba separada em duas suíças à moda vitoriana. Maurice, pelo contrário, usava a cara rapada e, pelos retratos que me mostraram, devia ser mesmo bonito, embora lembrasse mais um tenor de ópera que um cavaleiro. James passava a vida a perguntar-me se eu não achava o primo uma maravilha, capaz de apaixonar qualquer mulher, etc. Isto a ponto de se tornar enfadonho, até que tudo deu em tragédia. A vida dele estava centrada naquela idolatria, até que um dia o ídolo caiu e quebrou-se como uma boneca de loiça. Apanhou um resfriado na praia e pronto!
- E foi depois disso - perguntou o rapaz -, que ele se fechou em casa?
- A princípio foi para o estrangeiro - respondeu ela. - Para a Ásia e para as ilhas Canibais... sabe-se lá por onde andou. Estes golpes profundos afectam as pessoas de diferentes maneiras. A este, levou-o a cortar com tudo, até com a tradição e, tanto quanto possível, com as recordações. Não admitia qualquer referência a essa ligação com o passado. Nem um retrato, nem uma história, nem sequer uma associação de ideias. Não conseguiu aguentar a cerimónia de um grande funeral público. Só queria desaparecer. Esteve ausente dez anos. Ouvi uns boatos de que ele recomeçara a viver um pouco no fim do exílio; mas quando voltou à sua casa, retirou-se completamente de tudo. Fechou-se numa melancolia religiosa que é praticamente loucura.
- Diz-se que foram os padres que tomaram conta dele - resmungou o velho general. - Sei que ofereceu milhares de libras para a fundação de um mosteiro e que ele próprio vive como um monge, ou melhor, um ermita. Não sei que bem eles julgam que possa vir daí...
- Superstições estúpidas - rosnou Cockspur. - Essas coisas deviam ser denunciadas. Aí está um homem que podia ser útil ao Império e ao mundo e esses vampiros sugam-no até aos ossos. Aposto que foram eles, com as suas manias anti-naturais, que nem sequer o deixaram casar...
- Não, ele nunca se casou - informou a dama. - De facto, quando o conheci estava noivo, mas penso que não era isso que mais o interessava e desistiu de se casar, como de tudo o resto... Tal como Hamlet e Ofélia, perdeu o gosto pelo amor porque perdeu o gosto pela vida. Eu conheci a rapariga. De facto ainda me dou com ela. Aqui para nós, era Viola Grayson, a filha do velho almirante. Também ela nunca se casou.
- É infame! É infernal! - saltou de lá Sir John. - Não se trata apenas de uma tragédia, mas sim de um crime. Tenho deveres para com o público e faço tenção de denunciar essse estúpi do caso... Francamente, no século XX...
Quase sufocava com a violência do protesto. Depois de um silêncio, o velho militar declarou:
- Bem, não me gabo de saber grande coisa acerca destes assuntos, mas penso que esses senhores deviam estudar um texto que diz assim: "Deixemos os mortos enterrarem os seus mortos."
- Só que, infelizmente, parece que é isso mesmo que se passa
- murmurou, suspirando, a mulher. - É como a história arrepiante de um morto a enterrar outro morto ano após ano, sem nunca acabar.
- A trovoada passou - observou Romaine com um sorriso enigmático. - Afinal a senhora já não tem de visitar aquela casa inóspita.
Ela estremeceu:
- Oh, não voltarei lá nunca mais! Mallow olhou para ela, espantado:
- Porquê? Já tentou lá entrar? - exclamou.
- Sim. Uma vez - declarou ela com um leve tom de desafio.
- Mas não vale a pena falar nisso. Já não chove e é melhor irmos andando até ao carro.
Quando seguiam em procissão, com Mallow e o general a fechar o cortejo, este disse de repente, baixando a voz:
- Não quero que esse malandrete do Cockspur nos ouça, mas uma vez que você perguntou, sempre lhe digo. Há uma coisa que não posso perdoar ao Marne, mas penso que foram os frades que lhe deram a volta à cabeça. A minha mulher, que era a melhor amiga que ele tinha quando estava na América, foi, de facto, um dia lá a casa. Ele andava a passear no jardim. Trazia os olhos fixos no chão como os frades e andava todo tapado com um capuz negro, ridículo como um fato de carnaval. Ela tinha-lhe mandado entregar o seu cartão de visita e estava ali no jardim à espera dele. O sujeito passou por ela sem uma palavra, sem sequer a olhar, como se ela fosse uma estátua de pedra. Não parecia um ser humano: era como um autómato medonho. Ela bem pode afirmar que ele está morto.
- Isso é muito estranho - murmurou vagamente o rapaz. - Não é nada... nada do que eu esperava.
O jovem Mr. Mallow, no fim daquele tristonho piquenique foi, muito preocupado, procurar um amigo. Não conhecia nenhum frade, mas apenas um padre e estava ansioso por o pôr ao facto das curiosas revelações que lhe haviam sido feitas naquela tarde. Tinha
muito empenho em ser esclarecido acerca das cruéis superstições que pairavam sobre a casa de Marne, semelhantes às negras nuvens de trovoada que haviam ensombrado o passeio. Depois de o procurar de um lado para o outro, acabou por localizá-lo em casa de outro amigo, também católico, que tinha uma família numerosa. Ao entrar de rompante foi encontrar o padre Brown sentado no chão, com o seu ar mais sério, a tentar enfiar na cabeça de um urso de peluche um chapéu todo florido que pertencia a uma boneca. Mallow ficou um pouco atrapalhado, mas estava demasiado obcecado pelo seu problema para adiar a conversa. Sentia-se abalado devido a um processo que há tempos trazia no seu subconsciente. Referiu, pois, imediatamente toda a história que ouvira da boca da mulher do general e ainda os comentários deste e do proprietário do jornal.
O padre Brown, que nunca tratava de saber se as suas atitudes eram ou não ridículas nem se importava com isso, continuou sentado no chão, o que, em virtude da sua grande cabeça e pernas curtas, ofazia parecer-se com um bebé entretido com os seus brinquedos. Porém, nos seus olhos grandes e cinzentos surgira uma expressão que muitas vezes se tem observado ao longo de dezanove séculos nos olhos de muitos homens. Só que, em geral, esses homens não estão sentados no chão, mas em mesas conciliares, em cadeiras de capítulo, em tronos de bispos ou cardeais; um olhar distante, preocupado, cheiram humildade de quem se sente investido de um cargo demasiado grande para o ser humano. Um olhar que, em certa medida, se observa nos marinheiros e naqueles que, através de muitas tempestades, continuam a governar a barca de S. Pedro.
- Foi muito simpático da sua parte ter vindo contar-me isto - disse ele. - Fico-lhe muitíssimo grato, porque temos de tomar providências a esse respeito. Se se tratasse apenas de pessoas como você e o general, seria apenas um caso particular; mas se Sir John Cockspur vai transformar isso num escândalo, nos jornais... bem, ele é de Toronto e pertence a uma seita protestante ferrenha, não nos podemos esquecer disso.
- Mas que me diz o senhor acerca deste caso? - inquiriu ansiosamente Mallow.
- O que eu digo, para começar, é que, tal como você mo descreveu, o caso me parece inverosímil. Suponhamos, é uma hipótese, que nós somos todos vampiros terríveis que destruímos toda a felicidade humana. Suponhamos que eu sou um desses vampiros. -
Coçou o nariz com o urso de peluche, reparou na estranheza do gesto e pousou o brinquedo no chão. - Suponhamos que destruímos todos os laços humanos e familiares. Por que é que havíamos de ir amordaçar um homem num antigo laço de família quando ele estava precisamente a dar sinais de começar a libertar-se dele?
Não é lógico acusarem-nos de esmagar tais afectos e, ao mesmo tempo, de alimentarmos essa paixão doentia. Não admito que haja qualquer religioso maníaco capaz de encorajar semelhante obsessão, ou que exista uma religião qualquer que assuma tal atitude sem oferecer um mínimo de esperança. - E, depois de uma pausa, acrescentou: - Tenho de ir falar com esse general!
- A mulher dele é que me contou a história - disse Mallow.
- Sim - tornou o padre -, mas eu estou mais interessado em saber aquilo que o marido não lhe contou que aquilo que ela lhe disse.
- Acha então que ele sabe mais que a senhora?
- Penso que ele sabe mais que o que ela diz - respondeu o padre Brown. - Você repetiu uma frase em que ele diz perdoar tudo menos ele ter sido malcriado para a mulher. Então que haveria mais para perdoar?
O padre Brown já se tinha levantado. Sacudiu as roupas informes e olhou para o rapaz com os seus olhos penetrantes e inquiridores. A seguir voltou-se e, pegando no guarda-chuva igualmente informe e no grande chapéu velho foi-se embora, rua abaixo.
Percorreu praças e avenidas até ir parar junto a uma vivenda de estilo antigo, no West End. Aí, perguntou à criada se poderia falar com o general Outram. Após uma curta troca de palavras foi introduzido num escritório onde se viam mais mapas e globos que livros. Deparou com o antigo militar das índias sentado a fumar um charuto comprido e fino enquanto se entretinha a espetar alfinetes num mapa.
- Desculpe a invasão - começou o padre -, tanto mais que não posso deixar de encarar isto como um atrevimento. Queria falar-lhe de um assunto particular, mas só com a condição de ele ficar entre nós. Infelizmente, há quem o queira tornar público. Meu General, julgo que o senhor conhece Sir John Cockspur...
O matagal dos bigodes e das suíças negras servia para ocultar a parte inferior do rosto do general. Tornava-se difícil ver quando ele sorria. Os seus olhos, porém, piscaram de malícia quando respondeu:
- Toda a gente o conhece. Por mim não o conheço lá muito bem.
- Ora o senhor bem sabe que tudo aquilo que ele sabe, toda a gente o fica a saber, desde que ele ache por bem publicá-lo - retorquiu, sorrindo, o padre Brown. - Fiquei a saber através do meu amigo Mallow, que, pelos vistos, o senhor também conhece, que Sir John tenciona publicar uma série de artigos fortemente anti-clericais baseados no que poderemos chamar o Mistério Marne. "Frades Enlouquecem Marquês", etc...
- Se assim é - retorquiu o general -, não vejo por que razão o senhor me vem falar nisso. Devo dizer-lhe que sou Protestante convicto.
- Aprecio muito os protestantes convictos - tornou o padre grown. - Vim ter com o senhor porque tenho a certeza de que outro tanto não fará Sir John Cockspur.
Os olhos castanhos do general piscaram de novo, mas ele nada acrescentou.
-Meu General- começou o padre Brown -, suponhamos que Cockspur ou outro da sua laia começava por aí a espalhar calúnias contra o nosso país e os seus valores. Suponhamos que ele afirmava que o seu regimento recuara na batalha, ou que os seus comandantes estavam a soldo do inimigo. O senhor seria capaz de ficar quieto e não revelar factos que desfizessem tais mentiras? Não iria procurar revelar a verdade, doesse a quem doesse? Ora bem, eu tenho o meu regimento e pertenço a um exército que está a ser desacreditado por aquilo que considero uma história falsa. Alguém me pode censurar por querer tirar o caso a limpo?
O general ficou calado e o padre prosseguiu:
- Ouvi a história que contaram ontem a Mallow, onde se diz que Marne ficou destroçado com a morte de um irmão muito querido. Estou certo de que aí deve haver mais qualquer coisa e vim perguntar-lhe se sabe o que é.
- Não - respondeu o general -, não lhe posso dizer mais nada.
- Meu General - tornou o padre com um sorriso -, se fosse eu a dar essa resposta o senhor chamava-me jesuíta...
O outro riu ruidosamente e depois tornou, num tom mais hostil:
- Pois então respondo que não quero dizer. E agora?
- E agora - respondeu suavemente o padre -, serei eu que terei de dizer mais qualquer coisa.
Os olhos castanhos do outro continuavam a fitá-lo, mas já sem o brilho malicioso.
- O senhor obriga-me a afirmar, mais cruamente que se fosse o senhor a fazê-lo, porque razão se torna evidente que há qualquer coisa estranha em toda essa história. Estou plenamente convencido de que o marquês tem outras razões para a sua tristeza e afastamento, além do facto de ter perdido o irmão. Duvido que os padres tenham alguma coisa a ver com isso; ignoro mesmo se ele se converteu ou se apenas tenta confortar a sua consciência praticando a caridade; porém, estou certo de que ele é outra coisa mais que um irmão inconsolável. Já que insiste, dir-lhe-ei uma ou duas coisas que me levaram a pensar assim.
"Primeiro disse que James Mair estava para se casar mas que se desinteressou do casamento após a morte de Maurice Mair. Ora por que motivo é que um cavalheiro respeitável quebra o seu compromisso simplesmente porque ficou deprimido após a morte de uma terceira pessoa? Seria mais provável que se casasse em busca de consolação; de qualquer modo, porém, por uma questão de decência, devia ter levado por diante a sua promessa.
O general mordia o bigode e os seus olhos escuros tinham tomado uma expressão atenta ou até menos ansiosa, mas não respondeu.
- Segundo ponto - prosseguiu o padre, de olhos fixos na mesa. - James Mair perguntava constantemente à sua amiga se não achava o irmão fascinante, capaz de suscitar a admiração de qualquer mulher. Não sei se alguma vez teria ocorrido a essa amiga que a pergunta poderia ter outro significado.
O general pôs-se de pé e começou a passear de um lado para o outro, ou melhor, a bater com os pés no chão.
- Oh, diabo levem tudo isto - exclamou, mas sem qualquer tom de animosidade.
- O terceiro ponto - continuou o padre Brown -, é a maneira estranha de James Mair manifestar o seu conceito de luto: destruindo todas as recordações, escondendo todos os retratos, etc Admito que isso, por vezes, aconteça e pode significar desgosto afectivo, mas também pode significar outra coisa.
- Diabos o levem! - exclamou o outro. - Por quanto tempo vai o senhor continuar com isso?
- O quarto e o quinto pontos são bem conclusivos - tornou o padre calmamente -, sobretudo se os considerarmos em conjunto. Primeiro, Maurice Mair não me parece ter tido um enterro especial, atendendo a que era o filho mais novo de uma família ilustre. Deve ter sido enterrado à pressa, talvez mesmo secretamente. E o último ponto é que James Mair desapareceu logo para o estrangeiro. Fugiu, de facto, para os confins da Terra. E assim - prosseguiu ele, sempre com a mesma voz suave - quando os senhores procuram denegrir a minha religião com o objectivo de em polar o perfeito amor entre dois irmãos, quer-me parecer...
- Cale-se! - gritou Outram num tom de voz que mais parecia um tiro de pistola. -Vou contar-lhe algumas coisas senão o senhor ainda vai pensar o pior. Para já, deixe que lhe diga uma coisa. Foi um combate leal!
- Ah! - exclamou o padre Brown como quem exala um longo suspiro.
- Foi um duelo - prosseguiu o outro. - Provavelmente o último duelo que se travou em Inglaterra, já lá vão bastantes anos.
- Foi melhor assim - murmurou o padre Brown. - Graças a Deus! Foi muito melhor!
- Melhor que todas essas coisas horrendas que o senhor já estava a imaginar, não? - resmungou o general. - Pois bem, pode torcer o nariz em face deste puro e perfeito afecto, mas ele era bem verdadeiro. James Mair era realmente muito dedicado a este seu primo direito que fora criado junto dele como um irmão. Os irmãos
mais velhos dedicam-se assim, muitas vezes, a outro mais novo, sobretudo quando este é uma espécie de fenómeno. Porém, James Mair era o tipo de pessoa simples em que o próprio ódio não é, por assim dizer, egoísta. Quero referir que mesmo quando a sua ternura se transforma em raiva, mesmo assim é objectiva, fica alheia ao objecto dela; permanece inconsciente. Ora o pobre Maurice Mair era precisamente o tipo oposto. Tinha um feitio muito mais alegre e popular; porém, os seus êxitos faziam-no viver numa sala de espelhos. Era ele sempre o primeiro em toda a espécie de desportos e actividades artísticas. Ganhava quase sempre e aceitava alegremente o triunfo. Mas se, por acaso, perdia, vinha logo à superfície o seu aspecto menos amável. Ficava um pouco invejoso. Não é necessário explicar até que ponto ele tinha ciúmes do noivado do primo. A sua eterna vaidade não podia deixar de interferir. Devo dizer que uma das coisas em que James Mair o ultrapassava era, sem dúvida, no tiro ao "alvo com pistola e foi esse o fim da tragédia.
- O senhor quer dizer o princípio - replicou o padre. - A tragédia do sobrevivente. Logo pensei que não eram precisos os monges vampiros para o tornar infeliz...
- No meu entender ele não tinha motivos para se sentir tão desgraçado - afirmou o general. - Como já disse, foi uma tragédia horrível, mas leal. E o James foi muito provocado.
- Como é que o senhor sabe tudo isso? - inquiriu o padre.
- Sei porque assisti - respondeu Outram, carrancudo. - Fui testemunha de James Mair e vi Maurice cair morto em cima da areia, mesmo à minha frente.
- Gostaria que o senhor me falasse mais deste caso - pediu o padre Brown com ar pensativo. - Quem foi a testemunha de Maurice Mair?
- O acompanhante dele era uma pessoa muito mais distinta que eu - respondeu o general com um ar sombrio. - Era o Hugo Romaine. O grande actor, compreende? Maurice adorava representar e ligara-se de amizade com Romaine, que era então um jovem já prometedor mas ainda longe do triunfo. Pagava-lhe as aventuras em troca de lições de representação visto ser esse um dos seus passatempos favoritos. Penso que Romaine estava, nessa altura, na total dependência do amigo; se bem que hoje se tenha tornado mais rico que qualquer aristocrata. Por isso, não podemos inferir, do facto de se haver prestado a servir de testemunha, qual seria a sua opinião acerca do duelo. O duelo era à maneira inglesa: cada um deles só levava uma testemunha. Eu quis que, ao menos, estivesse presente um médico, mas Maurice recusou com a maior arrogância, alegando que "quanto menos pessoas tivessem conhecimento da coisa, melhor" e que, caso fosse necessário, podíamos pedir auxílio rapidamente. "Há um médico na aldeia que fica amenos de meia milha de distância", declarou ele. "Eu conheço-o.
Tem o cavalo mais veloz que há por estas redondezas. Podemos trazê-lo aqui num instante, mas não vale a pena chamá-lo senão quando for preciso."
"Ora, todos nós sabíamos que era ele quem corria mais risco uma vez que a pistola não era o seu forte. Por isso, quando recusou a ajuda, ninguém se atreveu a insistir. O duelo travou-se numa ária plana coberta de areia, na costa leste da Escócia. Avista e o barulho ficavam interceptados, em relação às aldeias mais próximas por uma longa cadeia de colinas cobertas de erva rala, hoje, provavelmente, terrenos de golfe, embora nesse tempo, em Inglaterra, ainda ninguém soubesse o que isso era. Havia um vale profundo e sinuoso entre as colinas e foi através dele que chegámos ao areal. Parece que ainda agora estou a ver a cena: primeiro uma faixa de areia amarela e a seguir outra mais estreita, de um vermelho escuro; uma cor que parecia já um longo rasto de sangue.
"A coisa precipitou-se com incrível rapidez, como se um ciclone se tivesse abatido sobre o areal. Logo ao primeiro tiro Maurice girou como um pião e caiu de borco. E, por estranho que pareça, eu, que tinha estado preocupado com ele até àquele momento, mal o vi morto, pois toda a minha pena se transferiu para o homem que o matara. E assim continuei a sentir até hoje. Eu sabia que aquela grande amizade do meu amigo havia de voltar à tona e que, muito embora todos achassem que tivera mil desculpas para fazer o que fizera, ele é que nunca mais se perdoaria a si próprio. Por isso, aquilo que ainda hoje tenho presente diante dos meus olhos, a imagem que me ficou gravada na memória a ponto de nunca mais conseguir esquecê-la, não é a da catástrofe, do clarão, do fumo e do corpo a cair por terra. Isso desapareceu como o som que nos acorda. O que eu vi então e que verei sempre é o pobre do James a correr para aquele que era ao mesmo tempo seu amigo e seu adversário; a sua barba escura que parecia preta em contraste com a palidez do rosto, o recorte das suas feições contra o pano de fundo do mar; os gestos frenéticos com que me dizia para ir chamar o médico à aldeia que ficava por detrás das colinas. Tinha deixado cair a pistola pelo caminho e levava uma luva na mão. Os dedos desta, flutuando ao vento, acentuavam ainda mais os seus gestos grotescos a pedir ajuda. É esta a cena que me ficou na retina e também ali não havia mais nada para ver, além da paisagem, das areias. do mar e do corpo morto e imóvel como uma estátua. E a figura negra da testemunha dele, imóvel também e sinistra, a recortar-se no horizonte.
- Romaine ficou imóvel? - quis saber o padre. - Pensei que ele deitasse a correr ainda mais depressa para junto do corpo.
- Talvez o fizesse quando me afastei - replicou o general. - Este foi o quadro que eu vi de relance, porque no instante seguin te corri em direcção às colinas e fiquei fora do alcance da vista deles. Ora bem, o pobre do Maurice escolhera bem o médico; este, embora já não chegasse a tempo de fazer nada, veio mais depressa do que eu poderia supor. Aquele médico de aldeia era um homem notável: ruivo, irrascível, capaz de uma grande rapidez de acção e forte presença de espírito. Mal o vi saltar para cima do cavalo, aí foi ele a correr para o local da tragédia, deixando-me ficar para trás. Num instante, tive noção da sua forte personalidade e lamentei que não tivesse sido chamado antes de o duelo começar, porque, no meu íntimo, estava convencido, não sei porquê, de que ele teria podido evitá-lo. Dadas as circunstâncias, resolveu a situação com grande despacho; antes de eu ter conseguido percorrer a pé o caminho de regresso que ele fizera a cavalo, já o seu espírito prático e impetuoso solucionara tudo: o cadáver fora provisoriamente enterrado nas dunas e o infeliz criminoso aconselhado a fazer a única coisa possível: fugir dali para fora para salvar a pele. Foi andando ao longo da costa até chegar a um porto donde conseguiu sair do país. O resto já o senhor sabe; o pobre do James ficou-se pelo estrangeiro durante muitos anos. Mais tarde, quando tudo já estava abafado ou esquecido, regressou ao seu lúgubre castelo e herdou automaticamente o título. Depois daquele dia, nunca mais o vi. No entanto, sei o que está escrito em letras de fogo no mais íntimo do seu cérebro.
- Fiquei a perceber - observou o padre Brown - que os senhores fizeram alguns esforços para o visitar?
-Aminha mulher não desiste - explicou o general. - Ela recusa-se a admitir que um tal crime destrua para sempre um homem e eu confesso-me inclinado a partilhar a sua opinião. Aqui há oitenta anos, isto seria considerado perfeitamente normal. Na realidade é um caso de homicídio, mas não de assassinato. A minha mulher é muito amiga da infeliz criatura que foi a causa da tragédia. Tem a certeza de que se James consentisse em voltar a ver Viola Grayson e esta lhe afirmasse que as velhas questões estavam esquecidas, ele recuperaria a razão. A minha mulher convocou para amanhã uma reunião dos velhos amigos de ambos. Ela é muito persistente.
O padre Brown entre tinha-se a brincar com os alfinetes que se encontravam junto do mapa do general e parecia escutar, um pouco distraidamente, o que o outro dizia. O seu cérebro era daquele tipo que vê as coisas em imagens; e a imagem que até a mente prosaica do militar vira revestida de cores emocionantes, tornava-se ainda mais impressionante e sinistra ao ser evocada pelo pensamento místico do padre. Via a vastidão desolada da areia, com os mesmos tons do Aceldama, o corpo morto no chão, o assassino a correr, todo inclinado para a frente, fazendo com a luva, gestos de louco remorso. A sua imaginação, porém, voltava sempre àquele ponto que não conseguia encaixar em qualquer cena do género: a testemunha do homem assassinado, imóvel e misteriosa, qual estátua negra na beira do mar. Para outros, isto poderia parecer um pormenor sem importância; no entanto para ele continuava a representar um ponto vivo de interrogação. Por que é que Romaine não deitara logo a correr? Era a reacção mais natural da parte de uma testemunha, uma questão de humanidade, tanto mais tratando-se de um amigo. Ainda que se tratasse de uma fraude ou de outro motivo obscuro, ainda por desvendar, dir-se-ia que ele devia ao menos ter corrido para salvar as aparências. De qualquer modo era natural que a testemunha se tivesse posto em movimento depois de tudo consumado e antes de a segunda testemunha ter desaparecido para lá das colinas.
- Diga-me, esse tal Romaine move-se muito lentamente?
- É curioso que o senhor me faça essa pergunta - respondeu Outram, lançando-lhe uma olhadela súbita. - Não, a verdade é que ele até se mexe muito depressa. Mas tem piada que ainda esta tarde o vi exactamente na mesma posição, durante a trovoada. Estava de pé, envergando aquela capa com fivelas de prata e a mão na cinta, precisamente como eu o tinha visto naquela maldita tarde, no areal.
Todos nós ficámos ofuscados pelo relâmpago, mas ele nem pestanejou. E, mesmo depois de escurecer, continuou imóvel.
- Creio que já lá não deve estar, pois não? - inquiriu o padre. - Isto é, penso que se deve ter ido embora.
- Pois, moveu-se rapidamente quando soou o trovão - replicou o outro.-Devia ter ficado à espera dele, porque nos disse exactamente o intervalo... que foi que aconteceu?
- Nada, piquei-me com um dos seus alfinetes - explicou o padre Brown.-Espero não lho ter estragado. - No entanto, os olhos dele haviam pestanejado e a boca fechara-se subitamente.
- Sente-se mal? - perguntou o dono da casa, fitando-o.
- Não - respondeu o padre. - Só que não sou tão estóico como o seu amigo Romaine. Não consigo deixar de pestanejar quando vejo uma luz.
Voltou-se para pegar no guarda-chuva e no chapéu, mas já perto da porta deu mostras de se ter lembrado de qualquer coisa e voltou atrás. Veio até junto de Outram, olhou-o bem de frente com o ar desolado de um peixe fora de água e fez menção de lhe segurar no colete. Depois murmurou:
- Meu General. Pelo amor de Deus faça que a sua mulher e essa outra amiga dela não insistam em voltar a ver Marne. Que ninguém acorde o leão que dorme, senão teremos todas as feras do Inferno à solta...
O general ficou só e voltou a ocupar-se dos seus mapas com uma expressão intrigada no fundo dos olhos.
Mais intrigados ainda iam ficando sucessivamente os simpáticos membros da conspiração chefiada pela mulher do general, os quais se haviam reunido para tomarem de assalto o castelo do misantropo. Aprimeira surpresa que tiveram foi causada pela ausência inesperada de um dos intervenientes da velha tragédia. Ao encontrarem-se num hotel pacato que ficava perto do castelo, ninguém sabia dar notícias de Hugo Romaine até que um telegrama de um certo advogado os veio informar de que o actor deixara inesperadamente o país. A segunda surpresa, ao bombardearem o castelo com pedidos de uma entrevista urgente, foi a figura que saiu de uma das arcadas sombrias para os vir acolher em nome do nobre proprietário. Uma figura que nenhum deles conseguia relacionar com aquelas soturnas avenidas e aquelas formalidades quase feudais. Não se tratava de um imponente mordomo, de um criado elegante ou de um vistoso porteiro. Quem saiu da porta cavernosa do castelo foi a figura modesta e atarracada do padre Brown.
- Oiçam lá! - declarou este com seus modos simples, um pouco enfadado. - Eu tinha dito que era melhor não virem incomodá-lo. Ele sabe o que faz e vocês vão assim provocar a infelicidade de muita gente...
Lady Outram, que vinha acompanhada de outra senhora, alta, discretamente vestida e ainda muito interessante, provavelmente a tal Miss Grayson, olhou o padre com frio desdém.
- Não me diga, padre! - retorquiu ela. - Isto é um caso muito especial e não percebo o que o senhor tenha a ver com ele.
- Os padres querem sempre meter o nariz nos casos especiais - resmungou Sir John Cockspur. - Não sabe a minha amiga que eles são como os ratos que vivem no forro das casas, procurando sempre introduzir-se nos nossos próprios quartos? Veja só como conseguiram tomar posse do pobre Marne!
Sir John estava um pouco irritado porque os seus aristocráticos amigos tinham-no convencido a desistir de uma reportagem sensacional em troca do privilégio de tomar parte num caso secreto da alta sociedade. Não lhe passava pela cabeça perguntar a si próprio se não seria ele mesmo um desses ratos que vivem no forro das casas a espiar.
- Oh, está bem! - exclamou o padre Brown num tom impaciente que era fruto da ansiedade. - Já falei com o marquês e com o único padre com quem ele está relacionado; as suas preferências clericais têm sido muito exageradas. Garanto-vos que ele sabe muito bem o que está a fazer e suplico-vos que o deixem em paz.
- Acha que o devemos deixar a apodrecer em vida? - exclamou Lady Outram numa voz um pouco trémula. - Tudo só porque ele teve a infelicidade de matar um homem em duelo há mais de um quarto de século? É a isso que o senhor chama caridade cristã?
- Sim - respondeu obstinadamente o padre. - É a isso que eu chamo caridade cristã.
- É essa a caridade cristã que podemos esperar destes padres -exclamou amargamente Cockspur. - É essa a ideia que eles fazem de perdoar a um sujeito o seu momento de loucura: emparedá-lo vivo e matá-lo à fome com jejuns, penitências e representações das fogueiras do Inferno. E tudo porque uma bala acertou num alvo errado.
- De verdade, padre Brown - observou o general Outram -, o senhor acha que ele merece isso? Acha isso cristão?
- Não há dúvida de que o verdadeiro espírito cristão - murmurou suavemente a mulher - é aquele que compreende tudo e tudo perdoa. Aquele que sabe recordar... e esquecer.
- Padre Brown - interveio o jovem Mallow com vivacidade -,geralmente costumo concordar com tudo o que o senhor diz; mas, diabos me levem se o percebo agora. Um tiro disparado num duelo, a que se seguiu um arrependimento profundo, não é um cri me assim tão grande...!
- Confesso que tenho uma opinião muito mais séria acerca do delito que ele cometeu - respondeu severamente o padre Brown.
- Então que Deus amoleça o seu coração! - murmurou a desconhecida, falando pela primeira vez. - Eu cá vou falar com o meu velho amigo!
Nesse momento, como se a voz dela acordasse um fantasma, qualquer coisa se moveu dentro da velha mansão e no alto da escadaria de pedra surgiu um vulto. Vinha vestido de negro mas os seus cabelos embranquecidos e a palidez de mármore das feições faziam-no parecer a ruína de uma estátua.
Viola Grayson começara a subir calmamente a escadaria, enquanto Outram murmurava por debaixo do espesso bigode negro:
- Certamente que ele não vai repeli-la como fez à minha mulher...
O padre Brown parecia finalmente resignado com a situação. Ergueu os olhos para o general e comentou:
- Tratemos de lhe perdoar o melhor que pudermos. Ao pobre Marne bem lhe basta a sua consciência. Pelo menos ele nunca repeliu a sua mulher.
- Que quer dizer com isso?
- Ele nunca a viu! - tornou o Padre Brown.
Enquanto falavam, a senhora continuava a subir as escadas até que chegou junto do marquês de Marne. Este começou a mexer os lábios, mas antes que pudesse falar aconteceu outra coisa. Um grito estridente correu pelas abóbadas, despertando os ecos daquelas velhas muralhas. Pelo tom de angústia com que saiu dos lábios da mulher bem poderia ter sido um simples grito, mas ela articulara distintamente uma palavra:
- Maurice!
- Que é isso, querida? - exclamou Outram, começando a subir os primeiros degraus. A outra vacilava, como se fosse cair do alto da escadaria. Depois, voltou-se e começou a descer, curvada, encolhida e toda a tremer. Ao mesmo tempo murmurava:
- Oh, meu Deus!... não é James... ele é Maurice!
- Acho melhor, Lady Outram - aconselhou o padre gravemente -, que a senhora vá ter com a sua amiga.
Então caiu sobre eles o som de uma voz que foi como uma pedrada vinda do alto da escadaria; uma voz que parecia sair do túmulo. Uma voz rouca e pouco natural, como a voz daqueles que há muito vivem em silêncio numa ilha deserta, sozinhos com as aves selvagens. Era a voz do marquês de Marne, que disse apenas:
- Esperem! - depois prosseguiu: - Padre Brown, antes que os seus amigos se retirem autorizo-o a dizer-lhes aquilo que eu já lhe disse a si. Aconteça o que acontecer, não me ocultarei por mais tempo.
-Tem razão - respondeu o padre. - Isso só abona a seu favor!
- Pois é - começou o padre Brown dali a pouco, em resposta à curiosidade do grupo. - Ele deu-me licença para falar. No entanto, não vou explicar o caso tal como ele mo contou, mas sim como eu o descobri sozinho. Ora bem, percebi logo de início que essa tal influência nefasta da parte dos monges era tudo um disparate inventado. A minha gente pode, em certos casos, aconselhar as pessoas a irem regularmente a um convento, mas nunca a encerrarem-se num castelo medieval. Da mesma forma que não ordenam a ninguém que se vista de frade se não for frade. No entanto, pensei que ele poderia ter as suas razões para se esconder debaixo de um capuz ou até de uma máscara. Ouvi falar dele como de um irmão inconsolável e também de um assassino; porém, suspeitava vagamente de que as razões que tinha para se ocultar estavam mais relacionadas com a pessoa que era que com aquilo que fizera.
- Depois, ouvi a descrição exacta do duelo que me fez o General; e aquilo que mais me deu que pensar foi a figura de Mr. Romaine em segundo plano. E impressionou-me sobretudo por ele se manter no segundo plano. O General ao sair do local do duelo tinha visto um homem morto estendido na areia enquanto o amigo deste se mantinha imóvel, a curta distância, qual estátua de pedra! Depois ouvi dizer outra coisa; assim sucedera quando ficara à espera que o trovão se seguisse ao relâmpago. Naquele dia remoto, Hugo Romaine ficara à espera que acontecesse alguma coisa.
- Mas já acontecera - observou o general. - De que podia ele estar à espera?
- Do duelo - explicou o pade Brown.
- Mas eu disse-lhe que tinha visto o duelo! - gritou o general.
- E eu garanto-lhe que o senhor não viu o duelo - tornou o padre.
- O senhor está louco? - exclamou o outro. - Ou pensa que sou cego?
- Tinham-no cegado... para que o senhor não visse - prosseguiu o padre. - Porque o senhor é um homem bom e Deus teve misericórdia da sua inocência e afastou o seu rosto dessa luta desigual. Pôs uma muralha de areias e silêncio entre o senhor e o que realmente aconteceu nesse horrível areal, abandonado ao espírito enraivecido de Judas ou de Caim.
- Conte-nos o que aconteceu! - suplicou a senhora com impaciência.
- Contarei tudo tal como eu o descobri - continuou o padre. - O que vim a saber depois foi que Romaine, o actor, andara a iniciar Maurice Mair na arte e nos truques da representação teatral. Tive um amigo que queria ser actor, que me fez um interessante relato das primeiras semanas da sua aprendizagem. Esta consistia sobretudo na arte de cair no chão; de tombar de uma vez como se estivesse morto.
- Deus nos acuda! - gemeu o general, agarrando-se aos braços da cadeira como se quisesse erguer-se.
-Amen! - respondeu o padre Brown. - O senhor referiu-me que tudo sucedera muito rapidamente; de facto, Maurice caiu antes de abala partir e ficou perfeitamente imóvel, à espera, enquanto o seu malvado professor e amigo esperava também, em segundo plano.
- Também nós estamos à espera - exclamou Cockspur -, e por mim já não aguento mais!
-James Mair, já então tomado de remorsos, correu para o corpo caído por terra e curvou-se para o levantar. Deitara fora a pistola como um objecto sujo; Maurice, porém, conservava ainda na mão a sua pistola que continuava carregada e, enquanto o outro se curvava sobre ele, ergueu-se, apoiado no cotovelo esquerdo e disparou à queima-roupa. Sabia que não era grande atirador, mas, naquele caso, difícil seria não acertar no coração.
Os circunstantes tinham-se levantado e rodeavam o narrador com os rostos pálidos de espanto:
- Tem a certeza do que está a dizer? - inquiriu por fim Sir John com voz rouca.
- Tenho a certeza absoluta - retorquiu o padre Brown. - E posto isto deixo Maurice Mair, o actual marquês de Marne, ao cuidado da vossa caridade cristã. Vocês falaram muito hoje dessa caridade. A mim pareceu-me que lhe atribuíam um lugar demasiado importante. Mas ainda bem para os pobres pecadores, como este agora, que vocês se enganem assim acerca do que é a misericórdia e se mostrem dispostos a reconciliarem-se com toda a humanidade. - Com mil raios! - explodiu o general. - Então o senhor julga que me vou reconciliar com um bandido destes? Pois juro que não mexeria uma palha para o livrar do Inferno. Eu disse que era capaz de compreender um duelo decente, mas um assassinato à traição...
- Merecia ser linchado - gritou Cockspur numa grande excitação. - Devia ser queimado vivo, como fazem aos negros nos Estados Unidos. E se por acaso existe um lugar onde as pessoas fiquem a arder para sempre, seria muito bem feito que ele...
- Cá por mim até teria nojo de lhe tocar - declarou Mallow.
- Ora aí está - disse secamente o Padre Brown - a grande diferença entre a caridade humana e a caridade cristã. Devem perdoar-me por eu não me ter sentido esmagado pelo vosso desprezo desta manhã em relação à minha falta de caridade cristã, e com os sermões que me fizeram sobre o perdão que devemos dar aos pecadores. Porque a mim afigura-se-me que vocês só perdoam aqueles pecados que não consideram pecados. Perdoam aos criminosos quando eles cometem delitos que vocês não consideram crimes mas sim convenções. Por isso, toleram um duelo convencional ou um divórcio convencional. Perdoam quando não há nada a perdoar.
- Mas, c'os diabos, o senhor quer que sejamos capazes de perdoar uma acção vil como esta?
- Vocês não, mas nós temos de perdoar. De súbito, pôs-se de pé e olhou à sua volta:
- Nós não tocamos em pessoas como esta senão com a nossa bênção - declarou ele. - Temos de dizer aquela palavra que as salve do Inferno. Só nós ficámos para as livrar do desespero quando a vossa caridade humana as abandona. Continuem no vosso caminho de rosas a perdoar os vossos pecados de estimação, a mostrarem-se generosos para com os vossos crimes de sociedade, que nós ficamos no escuro, quais vampiros da noite, a consolar os que realmente precisam de ser consolados; aqueles que fazem coisas realmente imperdoáveis, coisas que nem o mundo nem eles próprios perdoam e que só um padre tem o poder de perdoar. Deixem-nos aqueles que cometem os verdadeiros crimes, os mais mesquinhos e revoltantes; revoltantes como o de S. Pedro antes do galo cantar; e, no entanto, a manhã chegou!...
- A manhã - repetiu Mallow, intrigado. - Isso quer dizer a esperança... há esperança, para ele?
- Sim - replicou o padre. - Deixe que lhe faça uma pergunta. Vocês todos são pessoas muito importantes e seguras; não seriam capazes, dizem a vocês próprios, de cair tão baixo. Mas digam-me uma coisa: se algum de vós houvesse caído, teria a coragem, um dia mais tarde, sendo velho, rico, bem instalado na vida, de contar a sua história, levado pela sua própria consciência ou aconselhado por um confessor? Vocês consideram-se incapazes de cometer um crime tão baixo. Mas tendo-o cometido, seriam capazes de o confessar?
Os outros pegaram nos seus pertences e saíram do hotel, calados, em grupos de dois ou três. Quanto ao padre Brown, também em silêncio voltou para o melancólico castelo do marquês de Marne.

O SEGREDO DE FLAMBEAU

... aquela espécie de assassínios nos quais eu desempenhei o papel do criminoso - declarava o Padre Brown, enquanto pousava o seu copo de vinho. Uma série de rubras imagens de crime acabavam de passar diante dos seus olhos naquele momento.
- É certo - prosseguiu após uma pausa - que outros tinham desempenhado esse papel antes de mim e assim me haviam fornecido a experiência. Eu era uma espécie de actor suplente; sempre a postos para desempenhar o papel do assassino. E tive sempre a preocupação de estudar a preceito o meu papel. O que pretendo dizer é que, sempre que eu tentava imaginar o estado de espírito com que fora cometido certo acto chegava a conclusão de que eu próprio o poderia ter cometido em determinadas condições. E então, é claro, percebia logo quem fora o seu autor; de um modo geral, nunca se tratava da pessoa de quem se desconfiava.
- Por exemplo, parece evidente que fora o poeta revolucionário quem assassinara o juiz que odiava os revolucionários vermelhos. Mas isso não era razão para que o revolucionário vermelho o matasse. Não era, de facto, se nos metermos na pele de um poeta revolucionário. Ora, eu empenhei-me seriamente em me tornar um poeta revolucionário. Refiro-me a essa espécie de anarquista, pessimista e amante da revolta, não como reforma, mas como forma de destruição. Tentei varrer da minha mente certos elementos, como seja o senso comum, são e construtivo, que tive a felicidade de herdar ou de aprender. Fechei todas as clarabóias que me traziam a boa luz do Paraíso e imaginei a minha mente iluminada apenas por uma luz vermelha vinda de baixo; um fogo capaz de rachar os rochedos e de cavar abismos de baixo para cima. Mas nem quando esta visão atingia o seu auge, eu conseguia perceber como é que um visionário deste tipo seria capaz de cortar a sua carreira matando apenas um político; um só entre milhões de velhos idiotas convencionais, como ele os classificava. Nunca ele faria uma coisa dessas, por mais violentas que fossem as suas canções de revolta. Nunca o faria porque escrevia precisamente canções de violência. Um homem que consegue exprimir-se através de canções não precisa de se exprimir através do suicídio. Um poema, para ele, é um acontecimento e vai querer que estes se repitam. Pensei então noutra espécie de malvado; aquele que não pretende destruir o mundo, mas que depende inteiramente desse mundo. Pensei que, sem a graça de Deus, eu poderia ser um tipo para quem o mundo fosse apenas um clarão ofuscante de lâmpadas eléctricas fora do qual só existe escuridão. O homem mundano, que de facto só vive para este mundo e não acredita que haja outro, para quem os êxitos mundanos e os prazeres representam tudo o que ele pode extrair do nada, esse homem será capaz de tudo se um dia se vir em perigo de perder todo esse mundo e ficar de mãos vazias. Não será o revolucionário, mas sim o homem respeitável quem cometerá qualquer crime... para salvar a sua respeitabilidade. Pensemos que revelação isso representaria para um homem, tal como este famoso advogado; a revelação de um crime que a alta sociedade ainda repudia: a traição patriótica. Se eu estivesse no lugar dele e não possuísse outra bagagem para além da sua filosofia, só Deus sabe o que poderia ter feito. É precisamente nestes casos que o meu pequeno exercício religioso se torna tão eficaz.
- Pode haver quem diga que ele é um tanto mórbido - observou Grandison num tom ambíguo.
- Também há quem considere coisas mórbidas a humildade e a caridade cristãs - retorquiu gravemente o padre Brown. - O nosso amigo poeta deve ser um desses. Mas não discuto esses assuntos. Estou apenas a satisfazer a sua curiosidade em relação à maneira como eu trabalho. Alguns dos seus compatriotas deram-me a honra de me perguntar como é que consegui evitar alguns erros judiciários. Pois bem, o senhor pode então responder-lhes que o consegui através de processos mórbidos... O que não quero que imaginem é que o fiz por artes mágicas!
Chace continuou a fitar o padre com uma expressão preocupada; era demasiado inteligente para não perceber a ideia dele; mas apetecia-lhe dizer que a sua mente era demasiado esclarecida para a aceitar como boa. Tinha a sensação de estar a conversar com um homem que era simultaneamente uma centena de assassinos. Havia algo de anormal naquela figura minúscula, como um anão, encolhida junto à lareira; assustava-o pensar que aquela cabeça redonda albergava um monte de estranhos raciocínios e de imaginárias injustiças. Era como se o abismo de escuridão que ficava por detrás dele fosse constituído por uma multidão de figuras negras e gigantescas, os fantasmas dos grandes criminosos, dominados pelo círculo mágico do clarão do lume, mas prontos a fazer em pedaços o seu mestre.
- Bem, tenho de confessar que acho isso mórbido - respondeu francamente. - E desconfio que não é menos mórbido que as artes mágicas. Mas mórbido ou não, tenho de admitir que deve ser
uma experiência interessante. - E acrescentou, após reflectir um momento: - Mas não me parece que o senhor pudesse dar um bom criminoso. O que daria, sem dúvida, era um romancista sensacional.
- Eu só lido com factos verídicos - declarou o padre Brown.
- Se bem que, por vezes, se torne mais difícil imaginar as coisas
reais que as fictícias.
- Sobretudo - tornou o outro -, quando se trata dos grandes crimes do mundo.
- Não são os grandes crimes, mas sim os mais pequenos, que se tornam difíceis de imaginar - replicou o padre.
- Não sei o que o senhor quer dizer com isso... - observou Chace.
- Quero dizer que os crimes vulgares são roubos de jóias, como o caso do colar de esmeraldas, ou o do rubi de Meru, ou o dos peixes dourados. A dificuldade, nesses casos, é termos de tornar a nossa mentalidade mesquinha. Os grandes vigaristas, senhores das grandes ideias, não cometem esses crimes tão evidentes. Eu tinha a certeza de que não fora o Profeta quem roubara o rubi; nem o conde o autor do furto dos peixes dourados, se bem que um tipo como Bankes fosse muito bem capaz de tirar as esmeraldas. Para esses, uma pedra preciosa não passa de um bocado de vidro: e eles conseguem ver através do vidro. Ao passo que as pessoas mesquinhas, terra-a-terra, vêem nelas o seu valor mercantil. Para esses temos de ter uma mentalidade mesquinha, que é uma coisa terrivelmente difícil de conseguir. É o mesmo que pretender focar um objecto minúsculo com uma máquina fotográfica oscilante. Mas há certas coisas que ajudam e até conseguem projectar alguma luz sobre o mistério. Por exemplo: aquele sujeito que está sempre a vociferar contra os falsos mágicos, ou charlatães de qualquer espécie, que os quer desmascarar, esse sujeito tem sempre uma mentalidade pobre. É o tipo de pessoa que "lê nas entrelinhas" e que só vê mentiras. Confesso que isso deve ser, por vezes, uma tarefa muito trabalhosa. E, ao mesmo tempo, um prazer muito mesquinho. Quando percebi o que significava possuir uma mentalidade mesquinha, soube logo onde procurá-la: no homem que pretendia desmascarar o Profeta. Fora ele quem subtraíra o rubi. E aquele outro que escarnecia das fantasias míticas da irmã fora o autor do roubo das esmeraldas. As pessoas deste género estão sempre de olho nas jóias. Não conseguem nunca, ao contrário dos grandes charlatães, chegar ao ponto de desprezar as jóias. Estes criminosos, senhores de mentalidades mesquinhas, são sempre tipos convencionais. Tornam-se criminosos por puro convencionalismo.
- No entanto, levamos muito tempo a ver as coisas com esta crueza. Representa um tremendo esforço de imaginação tornarmo-nos assim tão convencionais, aspirarmos com tanta avidez à posse de um objecto mesquinho. Mas consegue-se... Consegue-se uma aproximação. Comecemos por imaginar uma criança gulosa: a maneira como ela consegue roubar um doce numa loja. Imaginemos que somos nós que desejamos um certo doce... Depois, temos de subtrair a poesia da criança e eliminar a aura que envolve para ela a pastelaria. Imaginemos que conhecemos bem o valor do doce no mercado mundial... Temos de encolher a nossa mentalidade até ao tamanho de uma objectiva fotográfica... Vemos primeiro o contorno, depois com mais nitidez e, pronto, aí está!
O padre Brown falava como um homem que houvesse capturado uma visão celestial.
Grandison Chace continuava a fitá-lo com um ar de fascinação e curiosidade. Temos de confessar que a certa altura a isto se veio juntar uma expressão de alarme. Era como se o choque causado pela primeira confidência do padre vibrasse ainda nele à semelhança do que sucede quando o trovão faz estremecer uma casa. Lá por dentro ia dizendo consigo que a sua má impressão fora apenas uma loucura passageira. O padre não podia ser nunca o monstro, o assassino que ele entrevira por um rápido instante. Mas, por outro lado, não haveria algo de esquisito naquele homem que falava com tanta calma na hipótese de ser ele próprio criminoso?
- Não lhe parece - exclamou de repente - que essa ideia que o senhor defende, de nos colocarmos na pele do criminoso, nos pode levar a uma excessiva tolerância em relação ao crime?
O padre Brown sentou-se e começou a falar mais pausadamente:
- Tenho a certeza de que produz precisamente o efeito contrário. Vem resolver todo o problema do tempo e do pecado. Produz no homem o remorso antecipado.
Seguiu-se um silêncio; o americano pôs-se a fixar o tecto, bastante inclinado, que cobria metade do recinto; o dono da casa fitava o lume sem fazer um movimento; então, a voz do padre fez-se ouvir num tom impessoal, como se viesse de um lugar mais fundo:
- Há duas maneiras de renunciar ao demónio - começou ele. - Essa diferença constitui talvez o abismo mais profundo que existe presentemente na religião. Uma delas consiste em sentir horror por ele porque está muito longe de nós; a outra é sentir o mesmo horror porque sentimos que ele está tão perto. E não há vício ou virtude que se encontrem assim tão divididas como essas duas virtudes.
Os outros não responderam e o padre prosseguiu no mesmo tom solene, como se as suas palavras fossem chumbo derretido.
- Vocês podem considerar que um crime é horrível porque nunca seriam capazes de o cometer. Eu penso que ele é horrível porque eu o poderia também cometer. Vocês pensam nele como uma coisa distante, por exemplo, uma erupção do Vesúvio; mas isto para vós seria menos perigoso que um fogo na vossa casa. Se o criminoso aparecesse subitamente dentro desta sala...
- Se aparecesse nesta sala um criminoso - observou Chace a sorrir -, acho que o senhor seria capaz de mostrar demasiada benevolência para com ele. Sem dúvida começaria por lhe dizer que o senhor era também um criminoso em potência e que achava perfeitamente natural que ele tivesse ido ao bolso do pai ou cortado as goelas da mãe. Francamente, não acho isso nada prático. Penso que o resultado seria que nenhum criminoso jamais se regenerasse. É fácil teorizar e evocar casos hipotéticos; mas todos nós sabemos que tudo isso não passam de palavras no ar. Para nós, que aqui estamos reunidos nesta casa confortável de Mr. Duroc, conscientes da nossa responsabilidade, esta conversa acerca de ladrões, de criminosos e dos mistérios das suas almas, causa-nos apenas um calafrio teatral. Porém, aqueles que têm de lidar de perto com esses ladrões e criminosos são obrigados a proceder de modo diferente. Estamos aqui muito descansados, a aquecer-nos à lareira; sabemos que a casa não está a arder. E sabemos também que não temos nenhum criminoso dentro desta sala...
Nesta altura Mr. Duroc, o dono da casa, a quem fora feita alusão ergueu-se lentamente do seu lugar junto à lareira e a sua sombra gigantesca parecia cobrir tudo e escurecer até a própria noite lá fora.
- Temos um criminoso nesta sala! - declarou ele. - Sou eu esse criminoso. Eu sou Plambeau, aquele a quem a polícia dos dois hemisférios continua a procurar.
O americano ficou parado a olhar para ele com os olhos fixos e brilhantes como pedras; parecia incapaz de se mover ou de falar.
- Não existe nada de místico, de metafórico ou de falso naquilo que afirmo - declarou Flambeau. - Durante vinte anos roubei com estas duas mãos, fugi da polícia com estes dois pés. Concordam sem dúvida em como as minhas actividades eram práticas. Também concordam em como os meus juizes e perseguidores tinham de tratar de perto com o crime. Pensam que eu não sei tudo acerca da maneira como eles o faziam? Ouvi todos os sermões acerca da boa conduta e fartei-me de ver os olhares severos das pessoas respeitáveis; apanhei reprimendas num estilo distante e superior em que perguntavam como era possível alguém cair tão baixo, que nenhuma pessoa decente poderia conceber semelhante depravação. Como podem imaginar, tudo isso apenas me fazia rir. Mas só este meu amigo conseguiu explicar-me por que é que eu roubava. E, a partir daí, nunca mais roubei.
O padre Brown fez um gesto de súplica e Grandison Chace exalou um suspiro que mais parecia um assobio.
- Eu disse-lhe a pura verdade - prosseguiu Flambeau -, e agora está na sua mão entregar-me à polícia.
Seguiu-se um momento de profundo silêncio, durante o qual era possível ouvir-se o riso distante dos filhos de Flambeau no andar de cima daquela casa escura e, lá fora, no crepúsculo, o grunhir dos grandes porcos cinzentos. Depois, esse silêncio foi interrompido por uma voz clara e vibrante, com um toque de indignação, que poderia surpreender aqueles que não conhecem a sensibilidade do espírito americano e ignoram que, a despeito dos aparentes contrastes, ele por vezes se aproxima bastante do espírito cavalheiresco dos espanhóis.
- Monsieur Duroc - dizia a voz num tom empolado -, somos amigos há bastante tempo e eu ficaria desolado se o senhor me julgasse capaz de lhe fazer uma partida destas, no momento em que estava a usufruir da sua hospitalidade e do convívio da sua família, só porque o senhor resolveu desvendar, por iniciativa própria, um pouco da suabiografia. E ainda por cima o senhor fê-lo simplesmente em defesa do seu amigo... não, meu caro, não concebo que um sujeito faça uma traição dessas em tais circunstâncias; isso equivaleria a ser um vil informador e a vender os amigos a troco de dinheiro. Ora, num caso destes... Será possível imaginar um homem transformado num tal Judas.
- Eu posso tentar - declarou o padre Brown.

 

 

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