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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SEGREDO DO VALE DA LUA / Elizabeth Goudge
O SEGREDO DO VALE DA LUA / Elizabeth Goudge

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O SEGREDO DO VALE DA LUA

 

A carruagem deu outra guinada, e Maria Merryweather, a srta. Heliotrópio e Wiggins mais uma vez caíram nos braços uns dos ou­tros. E mais uma vez suspiraram, resfolegaram, aprumaram-se e fixaram a atenção nos objetos que para cada um deles, naquele momento difícil, era fonte de coragem e força.

Maria mirou suas botas. A srta. Heliotrópio devolveu os óculos à posição devida, pegou do chão o surrado volume marrom de ensaios fran­ceses, levou à boca uma pastilha de menta e de novo, sob a luz mortiça, contraiu os olhos sobre os trêmulos caracteres pretos da página amarela­da. Wiggins, enquanto isso, passava a língua entre os bigodes, buscando algum sabor que ainda restasse do jantar havia muito digerido.

De maneira geral, pode-se dividir a humanidade em três categorias de pessoas: as que encontram conforto na literatura, as que encontram conforto nos adereços pessoais e as que encontram conforto na comida. A srta. Heliotrópio, Maria e Wiggins eram representantes típicos de cada uma dessas categorias.

Comecemos pela descrição de Maria, que é a heroína desta história. Naquele ano da graça de 1842, ela tinha 13 anos e nenhum atributo notá­vel, além dos misteriosos olhos cinza-prateados que chegavam a desconcer­tar de tão penetrantes, o cabelo liso e avermelhado e o rosto fino e pálido, com as sardas que tanto a aborreciam. No entanto, sua figura franzina, minúscula como a de uma fadinha, com a coluna ereta como um poste, transmitia muita dignidade, e ela tinha pés delicadamente pequenos, dos quais muito se orgulhava. Eram seu principal encanto, ela bem sabia, e por isso, sempre que possível, dedicava-se com maior fervor a suas botas do que a suas luvas, vestidos e toucados.

E as botas que ela calçava então haviam sido pensadas para elevar até mesmo os ânimos mais abatidos, pois eram feitas do mais macio cou­ro cinza, enfeitadas com contas de cristal ao redor do cano e forradas com alvíssima lã de carneiro. As contas de cristal, na verdade, não estavam à mostra, já que o vestido de seda cinza e a quente peliça de lã também cin­za, igualmente debruada com lã branca de carneiro, chegavam-lhe até os tornozelos; mas ela sabia que estavam lá, e o simples fato de pensar nelas já lhe dava uma força moral inestimável.

A lembrança daquelas contas a confortava, assim como a conforta­va, embora não com a mesma intensidade, a ideia do pedaço de fita púr­pura que, sob a peliça, cingia-lhe a delgada cintura, do pequeno cacho de violetas aninhado tão fundo nas reentrâncias de sua touca de veludo cin­za que mal dava para vê-lo, e das luvas de seda cinza que adornavam suas mãos miúdas, metidas num grande regalo branco. Pois Maria era uma verdadeira aristocrata: valorizava mais a perfeição das coisas ocultas do que aquilo que se exibia aos olhos. Não que ela não gostasse de se exibir. Gostava, sim. Ela era uma coisinha vistosa, mesmo assim, vestindo o cin­za e o roxo do luto.

Pois Maria era órfã. A mãe morrera quando ela ainda era bebê, e o pai, havia apenas dois meses, deixando tantas dívidas que todas as suas posses, incluindo a bela casa em Londres com claraboia acima da porta e janelas al­tas que davam para o jardim da silenciosa London Square, onde Maria pas­sara todos os anos de sua vida curta, tiveram de ser vendidas para saldá-las.

Quando os advogados por fim resolveram tudo satisfatoriamente, verificou-se que o dinheiro restante era suficiente apenas para enviá-la de coche, junto com a srta. Heliotrópio e Wiggins, a West Country, parte do mundo que elas não conheciam e onde viveriam com um primo de segun­do grau de Maria, Sir Benjamin Merryweather, o mais próximo de seus parentes vivos, que tampouco conheciam, em seu solar de Moonacre, no vilarejo de Silverydew.

Mas não era o fato de ser órfã que deixava Maria deprimida e a fazia contemplar suas botas em busca de conforto. Da mãe ela não se recordava; o pai, um soldado que passava a maior parte do tempo fora, com o regimento, e que de qualquer modo não ligava muito para crianças, nunca chegara a conquistar seu afeto — não tanto quanto a srta. Heliotrópio, que entrara na sua vida quando ela tinha poucos meses de idade, para ser primeiro sua babá e depois governanta, e que a cumulara de todo o amor que ela até então conhecera. Não. O que deprimia Maria era aquela viagem calami­tosa e o desconforto da vida rural que ela certamente prenunciava.

Maria não sabia nada sobre o campo. Era uma mocinha nascida e criada em Londres e adorava o luxo, que nunca lhe faltara na bonita casa com vista para a London Square — embora, com a morte do pai, tenha se revelado que ele de fato não o deveria ter proporcionado, já que não dis­punha do dinheiro para sustentá-lo.

E agora? A julgar pelo coche, não devia haver muito conforto no so­lar de Moonacre. Era um veículo horrendo. Fora apanhá-las em Exeter, e era ainda mais desconfortável que a diligência que as trouxera de Lon­dres. As almofadas dos assentos eram duras e puídas, penas de galinha es­palhavam-se pelo assoalho, e as gélidas lufadas de ar que entravam pelas portas empenadas traziam restos de palha para dentro. Os dois cavalos malhados, apesar do pelo reluzente e de aparentarem ser bem tratados e queridos — fato que Maria notou imediatamente, pois adorava cavalos —, eram velhos, obesos e lentos.

E o cocheiro era um velhinho decrépito, que mais parecia um gnomo que uma criatura humana. Trajava um sobretudo de vários forros, tão cheio de remendos que era impossível sequer imaginar sua cor original. Seu chapelão de castor, gasto e de aba enrolada, era tão grande para ele que lhe descia pelo rosto até encostar no nariz, de modo que quase não se viam suas feições, exceto o largo sorriso desdentado e o tufo de pelos gri­salhos no queixo mal-barbeado. No entanto, parecia amigável e mostra­ra-se bastante falante ao acomodá-las no coche, cobrindo-lhes os joelhos ternamente com uma manta rota e esfarrapada; porém, como lhe faltas­ sem cientes na boca, tiveram dificuldade para entender o que ele dizia. E agora, em meio à espessa névoa de fevereiro que envolvia o campo, mal conseguiam vê-lo pela janelinha frontal do coche.

Tampouco enxergavam o que quer que fosse no campo que agora atra­vessavam. A única coisa que sabiam era que a estrada era cheia de sulcos e buracos, pois eram arremessadas de um lado para o outro, para cima e para baixo, como se fossem petecas. E logo estaria escuro e não haveria nenhum dos modernos lampiões a gás que naqueles dias iluminavam as ruas de Londres, somente a horripilante e negra escuridão do campo. Além disso, o frio era cortante, pareciam já estar viajando havia um século, e não se via nenhum sinal de que estivessem chegando a seu destino.

A srta. Heliotrópio ergueu o livro de ensaios à altura do nariz, deci­dida a chegar ao fim do ensaio que falava de resistência antes que a noi­te baixasse. Sabia que voltaria a lê-lo ainda outras vezes nos meses seguin­tes, assim como aquele outro que falava do amor que nunca esmorece. Recordou-se da primeira vez que o lera, na noite do dia em que chegara para cuidar da pequena órfã Maria, que lhe parecera então o espécime in­fantil mais sem graça que já vira, com seus estranhos olhos prateados e ares de quem, ainda bebê, já sabia que tinha sangue azul e, por isso, era muito cheia de si. Depois de ler o ensaio, porém, a srta. Heliotrópio resol­vera que amaria a menina e que seu amor por ela jamais fraquejaria, até que a morte as separasse.

No começo, seu amor por Maria fora um tanto forçado. Fazia e con­sertava as roupas da criança com severa determinação e deplorável falta de imaginação; e, por mais travessa que fosse a menina, só muito raramen­te lhe aplicava corretivo, mais preocupada em ganhar seu afeto do que em aprimorar sua alma imortal. Aos poucos, porém, as coisas foram mudan­do. Sua ternura, quando Maria demonstrava alguma aflição, tornara-se calorosa, e passara a confeccionar as roupas da menina com tal zelo que cada pequena peça de vestuário era uma obra de arte; e não a poupava de umas palmadas a cada pecadilho, pois já não lhe importava que Maria gostasse dela ou não, mas apenas que pudesse fazer daquela criança uma mulher nobre e refinada.

Isso é amor de verdade, Maria bem o sabia; e, embora às vezes ficas­se com o traseiro tão dolorido que mal conseguia sentar, sua afeição pela srta. Heliotrópio em nada diminuíra. E, agora que já não era uma crian­ça mas uma jovem dama que acabara de entrar na adolescência, essa afeição era a melhor coisa da sua vida.

Pois desde bebê Maria sempre fora capaz de distinguir uma coisa boa logo à primeira vista. Sempre quis o melhor e era rápida em reconhe­cê-lo, mesmo quando, como no caso da srta. Heliotrópio, a carapaça exter­na mostrasse poucos indícios do tesouro que guardava. Talvez fosse a única pessoa no mundo a descobrir a criatura adorável que a srta. Heliotrópio de fato era; e por isso, sem dúvida, o sentimento da srta. Heliotrópio por ela tornara-se tão intenso.

A carapaça da srta. Heliotrópio era mesmo excepcional, o que mostra como eram penetrantes os olhos prateados de Maria, que logo foram capazes de enxergar através dela. A maioria das pessoas, quando confron­tadas com o nariz e o jeito de se vestir da srta. Heliotrópio, logo se detinha, sem conseguir ir adiante. O nariz da srta. Heliotrópio era curvo como bico de águia e sua cor avermelhada inconveniente despertava nas pessoas uma suspeita imediata. Achavam que ela comia e bebia demais e que por isso tinha o nariz vermelho. A verdade, porém, é que a srta. Heliotrópio pouco comia e nada bebia, pois sofria de um terrível problema digestivo.

E esse problema digestivo estragara seu nariz, não a falta de comedimento. Ela nunca se queixava desse problema, suportava-o calada, e, como nunca se queixava, todos faziam uma ideia errada a seu respeito, exceto Maria. Não que ela alguma vez tivesse mencionado a Maria esse seu problema, pois sua mãe lhe ensinara que uma Dama de Verdade distinguia-se por jamais falar qualquer coisa de si mesma a quem quer que fosse. Mas, com o passar do tempo, Maria, muito perspicaz, compreen­deu por que a srta. Heliotrópio gostava tanto de pastilhas de menta.

Era tão aflitivo o nariz da srta. Heliotrópio, rodeado pela palidez de seu rosto claro e fino, que nem se notava a extrema beleza de seus olhos azuis como miosótis, nem o delicado arco de suas sobrancelhas escuras e bem desenhadas. Os cabelos ralos e grisalhos ela usava em estreitos ca­chos ao redor do rosto, estilo de penteado muito adequado quando ela o adotara, aos 18 anos, mas que agora, aos 60, não lhe caía bem.

A srta. Heliotrópio era alta e muito magra, ligeiramente encurvada, mas não se percebia sua magreza porque ela usava um aro sob o antiqua­do vestido de bombazina roxa e, fosse inverno ou verão, trazia sempre um xale preto nos ombros, cruzado sobre o peito, de modo que parecia bem en­corpada. Quando saía, levava um grande guarda-chuva preto, vestia uma ampla e surrada capa preta e um enorme chapéu, também preto e com uma pluma roxa, amarrado no queixo. Dentro de casa, o chapéu dava lu­gar a uma touca branca, adornada com uma fita de veludo preta. Sempre usava luvas de seda preta e carregava uma bolsinha preta contendo um lenço imaculadamente branco cheirando a lavanda, seus óculos e uma cai­xa de pastilhas de menta. Em volta do pescoço, trazia um medalhão de ouro do tamanho de um ovo de pata, mas o que ele guardava Maria não sabia dizer, pois toda vez que perguntava à srta. Heliotrópio o que havia dentro do medalhão não recebia resposta. Poucas vezes a srta. Heliotró­pio se negava a atender a um pedido de Maria, desde que isso não com­prometesse sua alma imortal, mas nunca a deixava ver o que se ocultava no medalhão... Dizia que era um assunto que só a ela dizia respeito... Ma­ria nunca tinha oportunidade de verificar às escondidas, porque a srta. Heliotrópio jamais se separava do medalhão; quando se recolhia ao leito, à noite, colocava-o debaixo do travesseiro. Seja como for, Maria não o te­ria examinado às escondidas, pois não era esse tipo de garota.

Apesar de tão vaidosa e exageradamente inquisitiva, Maria possuía as admiráveis qualidades da honra, da coragem e do refinamento, e a srta. Heliotrópio era feita só de amor e paciência. Já Wiggins... é difícil fazer uma lista de suas virtudes. Na verdade, é impossível, porque ele não tinha nenhuma... Wiggins era guloso, convencido, mal-humorado, egoísta e pre­guiçoso. Maria e a srta. Heliotrópio achavam que ele as amava com de­voção porque estava constantemente colado aos seus calcanhares, balan­çava a cauda gentilmente sempre que falavam com ele e até mesmo as bei­java de quando em quando. Não era por afeição que Wiggins fazia tudo isso, mas porque considerava que fosse uma boa estratégia. Sabia que to­das as coisas que tornavam sua vida agradável vinham de Maria e da srta. Heliotrópio — a comida, sempre de boa qualidade e servida pontualmente na tigela verde à qual ele era tão apegado; a coleira de couro verde; a es­cova, o pente, o talco e o sabonete perfumados. Outras donas, conforme sabia das conversas com os cães de condição inferior que encontrava no parque, nem sempre se dispunham a dispensar a devida atenção ao con­forto de seus animais de estimação... As dele sim... Portanto, Wiggins decidira, ainda quando filhote, obter as boas graças de Maria e da srta. Heliotrópio e permanecer com elas enquanto o tratassem satisfatoriamente.

Embora o caráter moral de Wiggins deixasse muito a desejar, não se deve pensar que ele fosse um membro inútil da sociedade, pois algo que é belo é uma eterna alegria, e a beleza de Wiggins era de categoria tão superior que só se pode descrevê-la com este termo retumbante: “incomparável”. Era um legítimo King Charles Spaniel. Sua pelagem de cor creme intensa, lisa e lustrosa, recobria-lhe o corpo todo, exceto o tórax, onde se rompia numa magnífica cascata de frisas macias, como o peitilho de ba­bados de um cavalheiro. Ainda não estava em voga cortar a cauda dos Spaniels, e a de Wiggins parecia uma pena de avestruz. Tinha muito orgulho dela e a ostentava como uma bandeira ao vento; às vezes, quando o sol se infiltrava através de seus pelos finos, ela cintilava com brilho quase ofuscante.

As únicas partes de Wiggins que não tinham a mesma cor de creme eram as longas orelhas sedosas e as manchas acima dos olhos, que tinham da mais adorável tonalidade marrom-acastanhada. Seus olhos eram cas­tanhos também e emanavam uma ternura que conquistava os corações; mal sabiam as donas de tais corações que a ternura de Wiggins era toda por si mesmo, não por elas. As patas e o dorso das pernas eram recober­tos por uma finíssima plumagem, como a de um animal heráldico. O focinho de Wiggins era longo e aristocrático, com finos bigodes dourados que estavam sempre sob controle. Seu nariz era preto retinto, brilhoso e frio, e sua bonita língua rosada nunca apresentava nenhuma umidade desagradável. Pois Wiggins não era como aqueles cães emotivos que estão sempre com os bigodes trêmulos, o nariz quente e a língua gotejando.

Ele sabia que a emoção excessiva é prejudicial à beleza e nunca se entregava a ela... Exceto, talvez, um pouquinho, diante de um prato de comi­da. Uma boa refeição o deixava emocionado, tão intenso era seu deleite, tão profunda era sua gratidão às boas fadas que o haviam dotado, ao nascer, de uma excelente digestão e, além disso, cuidado para que o exagero nunca deformasse sua figura esguia... O jantar que ele comera na hospe­daria em Exeter fora de fato excelente, a costeleta, as verduras, as batatas assadas que, na verdade, foram servidos à srta. Heliotrópio e que ela não soubera apreciar... Sua língua rosada acariciou pensativamente os bigodes dourados. Se a comida em West Country fosse sempre tão boa quanto a refeição de Exeter, ponderou, suportaria com calma e paciência as névoas frias e as carruagens geladas.

Agora a escuridão era completa, e o velho cocheiro, com seu jeito es­quisito, desceu, lançou-lhes um sorriso e acendeu as duas lanternas anti­gas penduradas uma de cada lado da cabine. Mas elas não iluminavam muito, e tudo o que se podia ver pelas janelas do coche era a neblina que flutuava e as ribanceiras abruptas cobertas de samambaias molhadas. A es­trada se tornava cada vez mais estreita, de modo que as samambaias ro­çavam nos dois lados do coche; e também cada vez mais esburacada e ín­greme: ora se arrastavam penosamente colina acima, ora deslizavam peri­gosamente descendo o que parecia ser um terrível penhasco.

Na escuridão, a srta. Heliotrópio já não conseguia ler, nem Maria con­templar suas botas. Mas elas não reclamavam, porque Damas de Verdade nunca reclamam. Maria crispava as mãos dentro do regalo, e a srta. Helio­trópio crispava as suas sob a capa. Cerraram os dentes e aguentaram firme.

 

Apesar do frio, os três talvez tivessem cochilado um pouco por puro cansaço, pois foi com total surpresa que perceberam que o coche havia parado. Desde o momento em que perderam a consciência deviam ter per­corrido um longo caminho, pois tudo estava completamente mudado. O nevoeiro se dissipara, e a lua brilhava, permitindo que enxergassem cla­ramente o rosto uns dos outros.

O desânimo desaparecera, seus corações batiam acelerados, pressentindo a aventura. Com entusiasmo de crianças, a srta. Heliotrópio e Maria abaixaram as janelas do coche e se inclinaram para fora. Wiggins meteu-se ao lado de Maria para poder se inclinar também.

As ribanceiras cobertas de samambaia haviam sumido; no seu lugar, bem perto das janelas do coche, erguiam-se paredes de pedra bruta de um lindo cinza-prateado, e à frente, bloqueando completamente a passagem, havia uma rocha maciça.

“Será que pegamos o caminho certo?”, perguntou a srta. Heliotrópio.

“Há uma porta na rocha!”, disse Maria, tão debruçada na janela que corria o risco de cair de cabeça na pista estreita. “Veja!”

A srta. Heliotrópio também se debruçou num ângulo perigoso e viu que Maria tinha razão. Incrustada na rocha, havia uma porta de carvalho desgastada pelo tempo, tão velha que tinha a mesma cor da pedra, da qual mal se distinguia. Era bem larga, o suficiente para dar passagem a um coche. Bem ao lado dela, pendia uma corrente enferrujada que saía de um buraco na parede.

“O cocheiro está descendo!”, exclamou Maria, e com os olhos bri­lhando de ansiedade viu o homenzinho, que parecia um gnomo, correr até a corrente enferrujada, agarrar-se a ela, levantar as duas pernas do chão e balançar-se como um macaco num cipó. Ouviu-se então um profundo clangor em algum lugar no interior da rocha. Depois que o mesmo clangor ressoou três vezes, o cocheiro voltou ao chão, sorriu para Maria e mon­tou na cabine.

A porta se abriu lentamente. O cocheiro açulou os cavalos malha­dos, a srta. Heliotrópio e Maria voltaram para seus assentos e eles avan­çaram, enquanto a porta se fechava atrás deles tão silenciosamente quanto se abrira, obstruindo o luar e deixando-os mais uma vez sem iluminação, a não ser a da luz bruxuleante da lanterna que brilhava nas paredes úmi­das e musgosas de um túnel subterrâneo. Maria teve a impressão de que a luz também iluminava uma espécie de vulto sombrio, mas não teve cer­teza, pois o coche avançou antes que ela pudesse olhar com atenção.

“Ufa!”, disse a srta. Heliotrópio, não com a mesma alegria de antes, porque tudo se tornara viscoso e úmido, o túnel parecia não acabar mais, e as rodas do coche ecoavam como o rugido de um trovão. Mas, antes que tivessem tempo de se apavorar, viram-se novamente sob a luz do luar, num lugar tão bonito que nem parecia deste mundo.

Era tudo prata. Dos dois lados, troncos de árvores altas brotavam da relva, que de tão prateada pelo luar reluzia como água. Em meio às árvo­res, que eram plantadas a intervalos, abriam-se lindas clareiras, deixando à mostra o céu negro como ébano salpicado de estrelas prateadas. Nada se movia. Tudo estava muito quieto, como que enfeitiçado pela lua. O rendi­lhado dos brotos e ramos acima dos troncos prateados era tão delicado que o clarão da lua se infiltrava por ele como uma fina película de pó prateado.

Mas havia vida entre as árvores, embora vida imóvel. Maria viu uma coruja de prata pousada num galho de prata, e um coelho de prata senta­do nas patas traseiras à margem da estrada, piscando à luz da lanterna, e um bonito grupo de cervos de prata... E, por um instante fugaz, no extre­mo mais longínquo de uma clareira, imaginou ter visto um cavalinho branco com a crina e a cauda esvoaçantes, a cabeça erguida, empinado, a meio voo, como se estivesse feliz por vê-la.

“Veja”, ela gritou para a srta. Heliotrópio. Mas, quando esta se vol­tou para olhar, não viu nada.

Prosseguiram ainda por um bom tempo sobre o espesso tapete de musgo que abafava o som das rodas do coche, até que finalmente atraves­saram o arco de um velho muro cinzento — dessa vez não de rocha natu­ral, mas um muro feito por mãos humanas, encimado por ameias. Maria mal teve tempo de notar as ameias, entusiasmada, e já estavam dentro da muralha. O belo parque deu lugar a um jardim convencional, com cantei­ros de flores, trilhas pavimentadas ao redor de um lago de nenúfares e teixos podados em estranhas e fantásticas formas de gaios cantando e ho­mens montados a cavalo.

O jardim, assim como o parque, era todo prata e negro sob o luar, e, ao cruzá-lo, Maria foi tomada por um ligeiro frêmito de medo, pois teve a impressão de que os cavaleiros e os gaios negros viravam a cabeça à sua passagem para mirá-la friamente. Wiggins, embora estivesse no chão do coche e não pudesse ver as sombrias figuras negras, deve ter sen­tido algo estranho também, pois rosnou. E a srta. Heliotrópio, decerto também com uma sensação não muito boa, perguntou, com voz trêmula: “Falta muito para chegarmos à casa?”

“Já chegamos”, festejou Maria. “Veja, uma luz!”

“Onde?”, quis saber a srta. Heliotrópio.

“Ali!”, mostrou Maria. “Logo depois daquela árvore, lá em cima”. E apontou na direção de um ponto de luz alaranjado que piscava alegre­mente por entre os ramos mais altos de um enorme cedro negro que se er­guia diante delas como uma montanha. Havia algo extremamente reconfortante naquela cintilação alaranjada, incrustada como uma pedra pre­ciosa no meio de tanto preto e prata. Era algo um pouco mais terreno, entre tantas coisas sobrenaturais, algo que parecia dar as boas-vindas e gostar de vê-la, em vez das sombras negras e frias que não a queriam ali.

“Mas está no céu!”, exclamou atônita a srta. Heliotrópio. Então o coche fez uma grande curva em torno do cedro e elas conseguiram ver por que a luz brilhava tão no alto. A casa não era uma daquelas residências modernas a que estavam acostumadas, mas um casarão antigo, quase um castelo, e a luz vinha de uma janela que ficava no topo de uma torre alta.

A srta. Heliotrópio soltou um grito de pavor (contido rapidamente, no entanto, porque só as pessoas mal-educadas gritam quando se veem diante de uma perspectiva alarmante), ao pensar nos ratos e aranhas que tanto a amedrontavam. Já o grito de Maria era de deleite. Ela ia viver numa casa com torre, como uma princesa de conto de fadas.

Ah, mas era uma casa magnífica! Erguia-se diante delas com seus grandes muros voltados para o jardim tenebroso, emanando uma espécie de força atemporal tão reconfortante quanto a luz da janela da torre. E, em­bora nunca a tivesse visto antes, Maria sentiu-se em casa. Pois os Merryweathers tinham morado ali durante gerações, e ela era uma Merryweather. Envergonhou-se da apreensão que sentira ao saber que iria para lá. Aquela casa era um lar como a residência de Londres jamais fora. Ela preferia vi­ver ali com austeridade a morar no palácio mais luxuoso do mundo.

Mal o coche parou, Maria saltou e subiu correndo o lanço de degraus de pedra que ladeavam o muro e levavam à imensa porta de carvalho, gol­peando-a com os punhos para que a deixassem entrar. Nem seus pés le­ves, nem seus punhos pequenos fizeram muito barulho, mas alguém lá dentro decerto ouvira ruído das rodas do coche, pois a grande porta se abriu quase instantaneamente, revelando um senhor idoso com a aparência mais extraordinária que os olhos de Maria já tinham visto. Parado na oleira da porta, ele segurava no alto uma lanterna acesa.

“Bem-vinda, prima”, disse ele com voz grave, cheia e melodiosa, estendendo-lhe a mão desocupada.

“Obrigada, senhor”, ela respondeu, fazendo uma reverência e ofere­cendo-lhe a mão, já sabendo, desde aquele momento, que o amaria para sempre.


Mas seu primo tinha mesmo um aspecto muito esquisito, e uma vez que se pôs a observá-lo foi difícil desviar os olhos. Era tão alto e tão en­corpado que parecia preencher todo o enorme vão da porta. Tinha o ros­to redondo, vermelho e bem barbeado, e seu nariz grande e adunco ofus­cava completamente o da srta. Heliotrópio. Tinha três papadas, uma boca larga e sorridente e calorosos olhos fulvos, que piscavam muito, quase perdidos sob as espessas sobrancelhas brancas. As roupas, cuidadas com grande esmero, eram muito antiquadas e combinadas de maneira bastan­te incomum.

Trazia na cabeça uma enorme peruca branca, semelhante a uma cou­ve-flor, e suas papadas eram amparadas por uma gravata de renda de Honiton. O colete era de cetim azul-claro bordado com rosas amarelas e cra­vos carmesins, tão bonito que criava um contraste estranho com o traje de montaria desbotado e remendado e as botas de cano alto salpicadas de lama. Ele tinha as pernas ligeiramente arqueadas, o que é comum em ho­mens que passaram a maior parte da vida montados em uma sela. As mãos eram grandes e vermelhas como o rosto, tinham as palmas duras como couro, de tanto segurar as rédeas, mas uma bela renda caía-lhe so­bre os punhos, e num dos dedos havia um anel com um rubi enorme que reluzia como fogo.

De fato, tudo em Sir Benjamin Merryweather tinha calor e brilho: o rosto rubro e redondo, o sorriso, a voz, os olhos acastanhados, o anel de rubi. Depois de tomar a mão de Maria, ele a olhou muito atentamente, como se perguntasse a si mesmo algo a respeito da menina. Ela estreme­ceu diante daquele olhar, como se receasse não ter alguma qualidade que ele estivesse procurando; mesmo assim, manteve os olhos fixos no seu rosto, sem piscar.

“Uma legítima Merryweather”, ele disse finalmente com sua voz grave e tonitruante. “Uma Merryweather de prata, direta, altiva e ousa­da, corajosa e dotada do espírito da honra, nascida na lua cheia. Vamos nos dar bem, minha cara, pois eu nasci ao meio-dia; os Merryweathers da lua e os Merryweathers do sol sempre se gostam...”

Então parou abruptamente, dando-se conta, de repente, da presença da srta. Heliotrópio e de Wiggins, que àquela altura já tinham saído do coche, subido a escada e se encontravam atrás de Maria.

“Minha cara senhora!”, ele exclamou para a srta. Heliotrópio, depois de submetê-la a um olhar longo e arguto. “Minha cara senhora! Permita-me!”, e, fazendo referência, tomou-a pela mão e conduziu-a cerimoniosamente para dentro da casa. “Bem-vinda, senhora!”, disse-lhe. “Bem-vinda a minha pobre e humilde casa”.

E suas palavras soaram com o timbre da verdade, pois ele achava mesmo, sinceramente, que sua casa era humilde para hospedar a srta. Heliotrópio.

“Meu caro senhor!”, exclamou a srta. Heliotrópio, palpitando de excitação, já que, devido a sua aparência sem atrativos, os cavalheiros raramente lhe dispensavam atenções tão lisonjeiras. “Cavalheiro, o senhor é muito gentil!”

Maria pegou Wiggins, que rosnava de modo desagradável porque ninguém estava lhe dando a menor atenção, fechou a pesada porta atrás de si e voltou-se para seguir os mais velhos, com um suspiro de satisfação. Sabia que Sir Benjamin notara, de relance, que sua querida srta. Heliotró­pio era de fino estofo... Todos eles se dariam muito bem.

Mas não, talvez não, pois um rosnado baixo e desagradável debaixo de seu braço, onde ela trazia Wiggins, foi ecoado por um rugido trovejante, vindo da direção da lareira, onde o fogo era alimentado por gran­des toras de lenha, no saguão com piso de pedra para o qual Sir Benjamin os conduzira.

Um animal e tanto, grande e assustador, cujo corpo parecia estender-se por todo o comprimento da lareira, erguera a cabeçorra desgrenhada, até então pousada nas patas dianteiras, e encarava a cara delicada de Wiggins que espiava por debaixo do braço de Maria. Então farejou rui­dosamente, sentiu o cheiro do caráter de Wiggins, parecendo fazer pouco-caso dele, piscou uma única vez de maneira desdenhosa e voltou a pousar a cabeça sobre as patas. Mas não para dormir. Por entre a cascata de pe­los ruivos que caíam sobre eles, seus olhos amarelos como faróis brilha­vam de modo desconcertante sobre o grupo reunido — desconcertante por­que era terrivelmente penetrante.

Se os olhos de Sir Benjamin pareciam enxergar muita coisa, os da­quela criatura desgrenhada ao pé da lareira enxergavam infinitamente mais. Maria perguntava-se que tipo de criatura seria aquela. Supunha que fosse um cão; no entanto, de algum modo, não era exatamente um cão...

“O cão Wrolf”, disse Sir Benjamin, respondendo à pergunta que ela não pronunciara. “Há quem o considere assustador, mas garanto que não precisam ter medo dele. É um cão velho. Surgiu do bosque de pinheiros que há atrás da casa, numa véspera de Natal há mais de vinte anos, e fi­cou aqui por algum tempo. Então, depois de alguns problemas domésti­cos, foi-se embora novamente. Há pouco mais de um ano ele voltou, tam­bém na véspera do Natal, e desde então está morando comigo e, tanto que eu saiba, nunca fez mal nem a um camundongo”.

“Aqui há camundongos?”, sussurrou a srta. Heliotrópio.

“Centenas”, ribombou Sir Benjamin, alegremente. “Mas nós os con­trolamos com as ratoeiras. Com as ratoeiras e Zacarias, o gato. Zacarias não está aqui no momento. E, agora, caras damas, devem conhecer seus aposentos e desfazer suas malas; depois descerão novamente até o saguão para cearmos juntos”.

Sir Benjamin pegou três grandes castiçais de latão numa mesa ao lado da lareira, acendeu as velas, deu um à srta. Heliotrópio, outro a Ma­ria e, carregando o seu, levou-as a um cômodo adjacente que Maria ima­ginou ser a sala de estar, embora não conseguisse ver coisa alguma com tão pouca luz.

Ele abriu uma porta e, ao cruzá-la, depararam com a escada da tor­re. Os degraus eram de pedra, desgastados pelos incontáveis pés que os haviam pisado ao longo dos séculos, e serpenteavam ao redor do pilar central, deixando tonta a pobre srta. Heliotrópio. Sir Benjamin, no entan­to, seguia adiante com sua vela, subindo-os com a desenvoltura de um menino, apesar de sua idade e tamanho, e Maria, na retaguarda, subia-os com a agilidade de um macaco feliz.

“Seiscentos anos”, disse Sir Benjamin alegremente. “Construída no século XIII por Wrolf Merryweather, escudeiro do rei Eduardo I e funda­dor da nossa família, em terras cedidas pelo rei como recompensa por sua valentia na batalha. Na nossa família, srta. Heliotrópio, pronunciamos Wrolf com W, pois somos descendentes de vikings e grandes guerreiros”.

“Sim”, suspirou a srta. Heliotrópio. “Quando Maria era pequena, em­penhei-me em fazê-la comer pudim de arroz, tão apreciado pelos vikings”.

“Foi por causa do tal Wrolf que você deu esse nome ao cachorro que veio do bosque de pinheiros?”, perguntou Maria. Ela hesitara um pouco antes de se referir assim à fera enorme deitada no saguão, pois, por algum motivo, ainda não achava que se tratasse de fato de um cachorro.

“Isso mesmo”, disse Sir Benjamin. “Diz a tradição que Wrolf Merry­weather tinha cabelos avermelhados, e, como você deve ter notado, Wrolf, o cachorro, tem uma juba ruiva”.

“É, notei, sim”, respondeu Maria.

Sir Benjamin deteve-se diante de uma porta.

“Muito bem, senhoras, aqui as deixo”, disse. “Este é o quarto da srta. Heliotrópio, que fica sobre a sala de estar. O de Maria fica um pouco mais acima, bem no alto da tor­re”. Curvou-se diante delas e, em seguida, desceu a escada com sua vela.

A srta. Heliotrópio, que chegara a cogitar a possibilidade de ter de dormir num colchão de palha sobre um assoalho de juncos, suspirou de alí­vio ao ver o seu quarto. Era um aposento de bom tamanho, e o piso de carvalho era quase inteiramente coberto por um tapete carmim. O tape­te, na verdade, estava meio surrado, com alguns furos aqui e ali, mas era um tapete, não eram juncos.

Havia uma cama com dossel, do qual pendiam cortinas de veludo carmim para proteger das correntes de ar, e degraus para subir nela. Havia também uma cômoda de mogno com a frente abaulada, um enorme guarda-roupa de mogno, uma penteadeira guarnecida com saia de chintz e uma poltrona com um banquinho para apoiar os pés. As paredes de pe­dra eram forradas com painéis de madeira escura e aconchegante, e a ja­nela era bem vedada, com cortinas de chintz sobre as venezianas. Todas as cortinas estavam precisando ser remendadas, mas a mobília estava po­lida e impecavelmente limpa.

E, alguém, pelo visto, se preocupara bastante com seu conforto, pois um fogo vivo ardia na lareira, havia velas acesas sobre a cômoda e a pen­teadeira e, entre os lençóis, um aquecedor de cama. E a bagagem delas já estava ali, cuidadosamente empilhada aos pés da cama.

Mas Maria não se demorou muito no quarto da srta. Heliotrópio. Ao ver que ela estava satisfeita, saiu de mansinho com sua vela e prosseguiu a longa escalada pela escada da torre, subindo, sempre em espiral. Um quarto só seu! Nunca tivera um quarto só para ela. Sempre dormira com a srta. Heliotrópio e, por gostar tanto dela, jamais se importara com isso; nos últimos tempos, porém, começara a pensar que seria bom ter um quarto só seu.

 

A escada terminava numa porta tão pequena que um adulto gordo não poderia passar por ela. Mas, para uma menina magrinha de 13 anos, era perfeita. Com o coração aos pulos, Maria parou para observá-la. Em­bora aquela portinha estreita e baixa tivesse, evidentemente, centenas de anos, ficou com a sensação de que havia sido feita especialmente para ela. Pois se pudesse escolher sua própria porta escolheria aquela. Parecia mais a porta da frente de uma casa do que de dormitório, era igualzinha à por­ta de sua casa. Era de grevília, cravejada de pregos de prata, e tinha uma aldrava feita da menor e mais delicada ferradura que ela já vira, que bri­lhava como prata. Maria lembrou-se imediatamente do adorável cavalinho branco que julgara ter visto no parque e mostrara para a srta. Heliotró­pio... Só que a srta. Heliotrópio não o tinha visto... O trinco da porta era de prata e, quando Maria o ergueu, ressoou com um clique cordial, como se estivesse lhe dando boas-vindas. Ela entrou, trancou a porta, pousou a vela cuidadosamente no chão, encostou-se na porta e ali ficou, olhando, olhando, com os lábios entreabertos. Seu rosto, normalmente pálido, bri­lhava como uma rosa cor-de-rosa, seus olhos cintilavam como estrelas.

Não havia palavras que pudessem fazer jus ao refinado encanto e bele­za do quarto de Maria. Como ficava no alto da torre, e a torre era circular, o aposento também era circular, nem grande, nem pequeno demais, do ta­manho exato para uma menina de 13 anos. Tinha três janelas, duas em for­ma de ogiva, estreitas, e outra grande, com um assento embutido na grossa parede. As cortinas estavam abertas, e Maria avistou as estrelas. Em cada uma das janelas, um lindo candelabro de prata sustentava três velas acesas.

Maria deu-se conta que era de um deles a luz que vira brilhar lá de fora por entre os ramos do cedro. As paredes não eram forradas com pai­néis de madeira, como no quarto da srta. Heliotrópio, mas a pedra cinza-prateada era tão bonita que Maria achou melhor assim. O teto era abo­badado, e os delicados arcos de pedra curvavam-se acima da cabeça de Maria como a copa de uma árvore, encontrando-se no ponto mais alto do teto numa representação em relevo de uma meia-lua cercada de estrelas.

Não havia tapete sobre o piso de grevília, apenas uma pele de carneiro ao lado da cama, para que, de manhã, os pés descalços de Maria pi­sassem em algo quente e macio ao pousarem no chão. A cama era peque­na, e do seu dossel pendiam cortinas de seda azul-clara bordadas com estrelas de prata, do mesmo material que o das cortinas da janela. Estava coberta por uma colcha feita com belíssimos retalhos quadrados de veludo e seda, de todas as cores do arco-íris, alegres e vistosos.

Havia pouca mobília no quarto, somente dois baús de grevília para as roupas de Maria, um espelhinho redondo pendurado na parede sobre um deles, e um aparador com um jarro de prata e uma bacia. Mas Maria não precisava de nada mais. Móveis pesados como os da srta. Heliotrópio teriam estragado a beleza daquele pequeno cômodo. E também não lhe importava que a lareira, escondida no fundo da parede, fosse minús­cula, a menor que ela já vira. Era de tamanho suficiente para aninhar as chamas produzidas pelas pinhas e pelos galhos de macieira que queima­vam impregnando o ambiente com seu perfume.

Mas, quando começou a explorar o quarto, Maria descobriu que ele tinha alguns luxos. Na prateleira em cima da lareira havia uma caixa de madeira azul com biscoitos deliciosos, confeitados com flores de açúcar, para ela comer caso sentisse fome entre as refeições. E, ao lado da larei­ra, havia um cesto cheio de mais pinhas e lenha — o suficiente para man­ter o fogo aceso a noite inteira.

Tudo era perfeito. Era o quarto que Maria teria projetado para si mesma se tivesse conhecimento e habilidade para isso. Pois sabia que fora preciso muito conhecimento e habilidade para fazer aquele quarto. Arte­sãos excelentes haviam esculpido a lua e as estrelas e desenhado a mobí­lia, uma costureira de mão-cheia fizera a colcha de retalhos e bordara as cortinas.

Andou de um lado para o outro, guardando a peliça, a touca e o re­galo em um dos baús, ajeitando o cabelo diante do espelho, lavando as mãos na água que despejou do jarro de prata na bacia de prata, tocando todas as coisas bonitas com a ponta dos dedos como se as acariciasse, agradecendo de coração às pessoas que as haviam feito e ao responsável por aquela arrumação, fosse quem fosse. Teria sido Sir Benjamin? Não podia ser, porque ele não conseguiria passar pela porta.

Uma batida à porta e a voz assustada da srta. Heliotrópio do lado de fora fizeram Maria lembrar que a governanta, alta como era e com o aro que usava sob o vestido, tampouco conseguiria cruzar a soleira. E, apesar do seu amor pela srta. Heliotrópio, sentiu um ligeiro tremor de satisfa­ção... Aquele quarto era realmente dela... Quando abriu a porta, tinha na bochecha esquerda uma covinha travessa que aparecera pela primeira vez.

“Minha nossa! Minha nossa!”, lamentou-se a srta. Heliotrópio, que tirara os trajes de passeio e agora estava de touca e com o xale preto cruza­do no peito. “Que portinha ridícula! Jamais poderei entrar no seu quarto!”

“É mesmo!”, respondeu Maria, com um risinho.

“Mas como faremos quando você ficar doente?”, perguntou a srta. Heliotrópio, aflita.

“Não vou adoecer”, retrucou Maria. “Não neste lugar!”

“Não há dúvida de que o ar aqui é saudável”, concordou a srta. He­liotrópio; e, passando os olhos pelo quarto de Maria, arregalou-os, hor­rorizada. “Que lugarzinho esquisito! Tão diferente! Ah, Maria, pobre querida! Como conseguirá dormir num quarto desses? É de dar arrepios!”

“Eu gosto”, disse Maria.

Ao ver as bochechas rosadas de Maria, seus olhos cintilantes e aque­la covinha totalmente inédita, a srta. Heliotrópio teve certeza de que a menina estava falando a verdade. Examinando com mais atenção o estra­nho quartinho, viu que ele combinava com Maria. De pé ali parada, tão esguia e ereta em seu vestido cinza, o quarto parecia envolvê-la como as pétalas de uma flor ao redor do miolo. Ambos se completavam.

“Bem, bem!”, disse a srta. Heliotrópio. “O importante é que esteja feliz, minha querida. Agora, acho que devemos descer para cear”.

Levando suas velas, desceram a escada, com Wiggins no seu encalço.

“Quem será que faz o trabalho nesta casa?”, indagou a srta. Helio­trópio. “Não vi nem sinal de criados, no entanto está tudo tão em ordem e limpo! Há muita coisa por cerzir, como você certamente deve ter notado, mas, fora isso, ainda não encontrei nada que leve a reclamar dos criados... Mas onde estarão eles?”

“Talvez estejam esperando para nos servir a ceia”, disse Maria.

Porém não havia ninguém à espera. Tiveram de se servir sozinhos. A ceia estava maravilhosa. Pão caseiro crocante, sopa de cebolas, um delicioso guisado de coelho, maçãs assadas numa travessa de prata, mel, manteiga amarelinha, um grande jarro azul de clarete quente e castanhas assadas quentinhas embrulhadas em um guardanapo.

A srta. Heliotrópio limitou-se a comer pão e manteiga e a beber um pouquinho de clarete, mas com um apetite que a surpreendeu. Maria co­meu de tudo o que havia — com muita delicadeza, como de hábito, mas com um deleite surpreendente para alguém de aparência tão etérea. Seu primo elogiou-lhe o bom apetite com um risinho de apreço.

“Estômago de ferro, como todos os Merryweathers”, observou, em tom de aprova­ção. “Seu cãozinho, pelo que vejo, também é um glutão”.

Wiggins recebera um prato cheio de guisado e estava fazendo jus a ele. Dividia agora a lareira com Wrolf, se não com demonstrações de amizade, pelo menos sem hostilidade. Pelo visto ele e Wrolf tinham decidido ignorar um ao outro... E a imensa lareira era suficientemente larga para os dois.

“Sempre ouvi dizer que as mulheres de West Country são excelentes cozinheiras”, disse a srta. Heliotrópio, num leve tom de interrogação.

“A senhorita e Maria são as primeiras representantes do belo sexo a por os pés nesta casa nos últimos vinte anos”, informou Sir Benjamin.

“Mas por quê, senhor?”, perguntou Maria, com a colher de prata suspensa no ar. “Não gosta de mulheres?”

“De maneira geral, não”, disse Sir Benjamin. Então, inclinou-se todo galante, primeiro para a srta. Heliotrópio, depois para Maria. “Mas sem­pre existem deliciosas exceções à regra”, completou.

Falou com tanta sinceridade que nem a srta. Heliotrópio nem Maria se perturbaram diante da ideia de terem que viver na casa de um solteirão que não apreciava a companhia feminina. Mesmo assim, entreolharam-se estupefatas. Era difícil acreditar que um homem fosse capaz de preparar uma sopa tão maravilhosa e um guisado tão magnífico.

No entanto não perguntaram mais nada, pois nesse exato momento Wiggins distraiu sua atenção. Dominado pela gula, esparramou um pou­co de comida e um pedacinho de cenoura saiu voando e foi parar bem no focinho de Wrolf. Foi humilhante demais para Wrolf. Ofendido, ele se le­vantou e, lentamente, com passos cadenciados, retirou-se da sala, erguen­do com o focinho o trinco da porta. Saiu de maneira tão majestosa, com tanta dignidade, que na verdade foi mais que uma retirada, foi uma mar­cha real que atraiu todos os olhares.

Por um momento, todos pararam de conversar e de comer e pela primeira vez Maria pôde observá-lo por inteiro. Um cão? Independente­mente do que dissesse Sir Benjamin, ela não acreditava que fosse um cão. Nunca vira um cão com uma cabeça tão grande e peito tão volumoso, num curioso contraste com a cintura tão fina; nem com uma juba negra como aquela, tão farta e exuberante. A cauda, com aquele estranho tufo de pelos na ponta, também não era de cão, nem o andar, nem...

“Você sabe cavalgar, Maria?”, perguntou Sir Benjamin abruptamente, e, por uma questão de educação, ela voltou a atenção para seu anfitrião.

“Adoro cavalos, mas nunca me ensinaram a montar, senhor”, res­pondeu ela.

“Não a ensinaram a montar!”, exclamou Sir Benjamin, horrorizado. “O que deu em seu pai? Nenhum Merryweather, seja homem ou mulher, nunca é realmente feliz a não ser em cima de uma sela”.

“Meu pai passava pouco tempo em casa”, explicou Maria.

“Maria não está habituada”, apressou-se a dizer a srta. Heliotrópio; a ideia de ver sua preciosa Maria galopando no lombo de um cavalo a aterrorizava.

“Não tem importância”, disse Sir Benjamin, jovialmente. “O que importa é que tenho um pônei do tamanho exato para ela”.

O rosto pálido de Maria corou novamente, e seus olhos cintilaram.

“Aquele branco?”, perguntou ela, com entusiasmo incomum.

Sir Benjamin espantou-se.

“Branco? Não. É um cinza malhado. Você tem alguma preferência especial por montaria branca?”

“Não, não é isso”, disse Maria, sem muita convicção. “É que... pen­sei ter visto um cavalinho branco no parque quando vínhamos para cá”.

Se antes ela surpreendera o primo, agora o emudeceu. Ele pousou a taça de vinho bruscamente, fazendo respingar algumas gotas do belo cla­rete, e fitou-a com a expressão mais estranha do mundo, um misto de pas­mo, alivio e profunda ternura, que deixou Maria completamente sem jeito. Ficou aliviada quando ele afastou o olhar, esvaziou a taça e se levantou.

“Devem estar cansadas da viagem — e o cãozinho também — e decerto não veem a hora de ir para a cama”, ele disse.

Maria e a srta. Heliotrópio de imediato se deram conta de que acabavam de ser dispensadas abruptamente, mas apesar disso recolheram-se aos seus aposentos sem se sentirem ofendidas. Afinal, era de esperar uma certa esquisitice de um homem que passara os últimos vinte anos longe da influência civilizadora da companhia feminina... Além disso, ele ficara assustado.

“Você precisa ter cuidado para não o assustar, minha cara”, disse a srta. Heliotrópio, enquanto subiam a escada da torre, com as velas na mão e Wiggins seguindo seus passos. “Ele já tem certa idade e é um ho­mem cheio de manias. Abalos frequentes não lhe farão nada bem”.

“Mas não pretendia assustá-lo”, respondeu Maria. “Disse apenas que tinha visto...”

“Você vê coisas muito estranhas”, interrompeu a srta. Heliotrópio. “Com frequência eu mesma me assustava com coisas que você via e eu não. Houve uma época em que você via o cuco sair voando do relógio, pousar em cima dele e limpar as penas; e houve também aquele curioso amigo imaginário que você inventou quando era garotinha, aquele meni­no com pena no chapéu que brincava com você no jardim da Square”.

“Ele não era imaginário”, disse Maria rispidamente. “Era um meni­no de verdade. É um menino de verdade. Sei que ele ainda está vivo, em algum lugar, embora não apareça mais para brincar comigo. Seu nome é Pisco, e parece um pisco, com seus olhos pretos brilhantes, suas boche­chas rosadas e...”

“Minha querida”, interrompeu-a de novo a srta. Heliotrópio, já meio zangada, “você já me contou milhares de vezes como ele era, ou como imaginava que ele fosse, e não me canso de repetir que essa pessoa não existe, nem nunca existiu”.

Maria calou-se, pois não queria discutir com a srta. Heliotrópio. O úni­co assunto sobre o qual ela e sua governanta realmente discordavam com veemência era exatamente o da existência de Pisco. A dificuldade que Maria tinha para separar fatos de ficção sempre deixava a srta. Heliotrópio profun­damente angustiada, e Maria também ficava angustiada por duvidarem de sua palavra. Ela era muito sincera, e, quando dizia alguma coisa, nada a aborrecia mais do que ouvir os outros dizerem que não era verdade.

Diante da portinha com aldrava de prata, a srta. Heliotrópio e Ma­ria se despediram com um afetuoso beijo de boa-noite, já quase esqueci­das da briguinha passageira.

“É melhor Wiggins ficar com você à noite”, disse Maria. “Assim, se aparecer algum rato, ele pode caçá-lo”.

Mas Wiggins tinha outros planos. Pela porta aberta, avistara a pe­quena cama coberta com a colcha de retalhos e imediatamente lhe ocor­reu que devia ser bem mais macia que a da srta. Heliotrópio... Além dis­so, teve a impressão de farejar biscoitos... Correu para dentro a passos miúdos, deu um salto e instalou-se na cama.

“Veja que coisa comovente!”, disse a srta. Heliotrópio, com lágrimas de emoção nos olhos. “Ele sabe que você é a sua dona. Sente que deve protegê-la, agora que vai começar a dormir sozinha”.

Enrodilhado na cama, Wiggins abanou a ponta da cauda, com os olhos brilhando suavemente à luz das velas.

“Oh, meu Wiggins, você é mesmo uma gracinha!”, exclamou Maria, correndo para beijá-lo assim que a srta. Heliotrópio fechou a porta e se foi. “Como você é amoroso e dedicado, meu cãozinho! Merece ganhar um biscoito de açúcar, o maior de todos!”

Maria pegou para Wiggins o maior biscoito da caixa, o redondo que tinha em cima uma rosa de açúcar, e notou que as chamas na lareira ha­viam sido reavivadas, o jarro de prata estava cheio de água quente e havia um copo de leite na prateleira, ao lado da caixa de biscoitos. Quem teria feito isso? Não tinha sido o velho cocheiro, com certeza. Ele era baixinho e talvez conseguisse entrar pela porta, mas não havia como ir ao seu quar­to sem cruzar o saguão, e ela não o vira passar enquanto estavam ceando.

Bem, fosse quem fosse, todo aquele cuidado com ela lhe trouxe uma agradável e calorosa sensação de felicidade. Enquanto se despia, tomou um gole do leite quente e doce, exatamente como ela gostava. E o biscoi­to de açúcar que comeu junto, alongado e confeitado com um trevo ver­de, estava igualmente delicioso. Afinal, a vida no campo não ia ser tão desconfortável assim. Aquele coche caindo aos pedaços tinha lhe dado uma impressão errada.

Terminou de se despir, lavou-se, vestiu a longa camisola branca e a touca branca de borda rendada, apagou as velas e meteu-se na cama. Uma das janelas estava aberta, e o ar da noite que entrava por ela não era frio, mas fresco e suave. Ela descobriu que seu colchão era estofado com penas muito macias; os lençóis e as fronhas eram do mais fino linho e cheiravam a lavanda. Percebeu também que ao anoitecer alguém havia colocado na sua cama um aquecedor igual ao que estava na cama da srta. He­liotrópio, pois sentiu um calorzinho agradável nos pés quando eles tocaram o lençol. Era uma cama deliciosa, e com suspiros de satisfação ela e Wiggins mastigaram as últimas migalhas de biscoito e se aninharam para o repouso.

Wiggins caiu rapidamente num sono profundo, mas Maria passou algum tempo meio dormindo, meio acordada, pensando no lindo parque que haviam atravessado para chegar à casa e imaginando-se a correr por suas clareiras. Então sua fantasia tornou-se um sonho, e ela se viu no par­que, envolvida pelo aroma das flores, enquanto as árvores de primavera conversavam acima de sua cabeça.

Mas no sonho ela não estava sozinha. Pisco corria e dava risada ao seu lado. E ele estava exatamente igual a quando, ainda pequena, a leva­ram para brincar no jardim da London Square e ele surgira correndo do meio das árvores para lhe fazer companhia em sua solidão. Tinha a mes­ma idade que ela — ou talvez fosse um pouco mais velho, já que era mais alto e bem mais encorpado.

Pisco não era nem um pouco etéreo, ao contrário, e isso, para Ma­ria, era a prova de que ele era um menino de verdade e não uma simples criação de sua imaginação. Era robusto, forte, tinha as bochechas verme­lhas e a pele bronzeada pelo sol e pelo vento. Seus olhos pretos, que irra­diavam alegria e bondade, incrustavam-se no meio de cílios espessos e curtos, sob sobrancelhas escuras e bem delineadas. O nariz arrebitado pa­recia um tanto insolente sobre a boca grande, sorridente e generosa, e o queixo forte era dividido por uma covinha. O cabelo castanho e denso en­raizava-se bem baixo na testa e formava cachos miúdos como lã de car­neiro no resto da cabeça, terminando na nuca com um último cacho re­torcido como rabo de porco. Vestia-se todo de marrom, com um rústico colete marrom da cor das folhas da faia quando caem, calções de couro e perneiras marrons e, descendo pela lateral da cabeça, um velho e surrado chapéu marrom com uma longa pena verde de pavão...

Assim era Pisco quando aparecera para brincar com ela no jardim da Square; assim era quando veio lhe fazer companhia em seus sonhos na primeira noite que passou no solar de Moonacre: forte, bondoso e alegre, caloroso e reluzente como o sol, o melhor companheiro do mundo...

No quartinho do alto da torre, o clarão da lua e o do fogo mistura­ram seus tons de prata e ouro, e, no sono, Maria sorria.

 

Maria acordou de repente com o sol batendo em seus olhos e, por um instante, ficou um pouco confusa com a claridade, a quietude e o frescor. Então se lembrou e, com um rápido e vigoroso movimento, distou as cobertas para cima de Wiggins, que ainda dormia, e deslizou para fora da cama, seus pés descalços mergulhando agradavelmente no aconchego e na maciez do tapete de pele de carneiro.

Embora ainda fosse muito cedo, o quarto estava quentinho e, olhan­do ao redor, ela verificou, para sua surpresa, que o fogo continuava vivo, erguendo suas chamas radiantes na direção da chaminé. Era evidente que a fogueira fora montada com muita habilidade, e somente alguém com pés macios como de fada poderia ter se insinuado no quarto, empilhado a lenha e ateado fogo sem despertá-la. Enquanto aquecia as mãos no calor das chamas, olhou à sua volta tentando imaginar o que mais aquela cria­tura feérica teria feito para seu conforto.

Conforme adivinhara, havia água quente no jarro e... o que era aquilo sobre um dos baús de grevília? Um vestido novo? Aproximou-se e viu que se tratava de um lindo traje de equitação, feito de um belíssimo tecido azul-escuro com debrum prateado. Havia também um chapéu azul-escuro, enfeitado com uma pena de avestruz branca, e ainda um chicote, um par de luvas e um par de botas resistentes... E, por cima da pilha de roupas, um ramalhete de galantos, ainda úmidos do orvalho da manhã.

Vestiu-se com um tremor de excitação, que se tornou ainda mais in­tenso quando ela percebeu que a roupa se ajustava perfeitamente ao seu corpo. Sabia que não tinha sido feita para ela, pois era um modelo anti­quado (não que isso importasse naquele lugar onde o tempo não existia) e via-se que já havia sido usada antes: perto da bainha, um rasgo triangu­lar fora primorosamente remendado com uma linha tão fina que parecia teia de aranha. As luvas e as botas também estavam gastas aqui e ali, e em um dos bolsos do casaco havia um lenço de tecido leve que trazia, num dos cantos, o monograma L. M.

No entanto, apesar de exigente, Maria não se incomodou que outra pessoa tivesse usado aquelas roupas antes. Enquanto abotoava o casaco e prendia nele o ramalhete de galantos, teve a estranha sensação de que L. M., fosse quem fosse, a enlaçava com braços afetuosos, quase como sua mãe faria se não tivesse morrido.

“Sempre estarei segura quando estiver usando esta roupa”, pensou. “As pessoas sempre estão seguras nos bra­ços de sua mãe”.

Diante do espelho redondo, escovou os lisos cabelos cor de cenoura e prendeu-os no alto da cabeça. Agora estava pronta para olhar pelas janelas.

Aproximou-se primeiro da maior, a que tinha o assento, a janela sul, que se abria para a frente do jardim do solar e da qual partira a luz que lhe dera boas-vindas ao chegar. Dali se avistavam os galhos mais altos do grande cedro.

Uma pessoa ágil facilmente sairia por aquela janela, alcançaria a ár­vore e desceria para o jardim. Maria subiu no assento, escancarou a jane­la e debruçou-se. Não conseguiu enxergar muita coisa, por causa da ár­vore, mas o suficiente para perceber os raios de sol prateados inundando tudo e o céu azul-claro e sem nuvens. Ao olhar para baixo, viu por entre os ramos do cedro que o jardim, antes negro e prateado, agora brilhava com o branco e o dourado dos galantos e acônitos, salpicado aqui e ali de luminosos pontos coloridos onde os primeiros crócus amarelos e lilases erguiam sua taça para receber o sol.

Os teixos, com suas estranhas e fantásticas formas de gaios e cava­leiros, não estavam assustadores naquela manhã, porque seu negrume sombrio fora totalmente eclipsado pela delicadeza das flores primaveris. O jardim pedia cuidados, como ela pôde perceber. Os teixos precisavam de poda, os canteiros de flores ao redor do lago de nenúfares estavam cheios de ervas daninhas, e as pedras que pavimentavam as trilhas que serpen­teavam entre eles estavam recobertas de musgo verde. De algum modo, porém, aquela desordem aumentava o encanto do lugar, dando ao jardim uma aparência de singela hospitalidade que aquecia o coração. Na infância, Maria era repreendida se pisasse em algum dos impecáveis canteiros do jardim da Square, onde brincava com Pisco, mas aqui ninguém se im­portaria com o que ela fizesse.

“Ah, quem dera Pisco voltasse para brincar comigo aqui!”, sussur­rou para si mesma.

Mas Pisco desaparecera de sua vida já fazia alguns anos; assim que ela começou a prender o cabelo no alto da cabeça e assumir ares de gente grande, ele se foi.

Ela desceu do assento e dirigiu-se para a janela em forma de ogiva que dava para o oeste, emoldurando um cenário cuja beleza a deixou sem fôlego. Logo abaixo, havia um roseiral todo emaranhado, com uma pér­gula cor-de-rosa no centro, e caminhos de relva coleando entre os cantei­ros em forma de coração.

Era lindo, embora não houvesse mais que umas poucas folhinhas nas moitas crescidas e espinhosas. Maria pôs-se a imaginar como ficariam magníficas em junho, cheias de botões e exalando perfume até os velhos muros com ameias mais adiante, espalhando à sua volta uma onda de cor e luz. Se bem que não faltassem cores agora, pois o roseiral estava reple­to de pássaros, chapins com asas azuis e tentilhões de peito vermelho, criaturinhas alegres cuja beleza cativou o coração de Maria.

Mas essas pequenas criaturas não eram os únicos seres emplumados naquela manhã. Sons vindos do alto chamaram a atenção de Maria, que ao olhar para cima avistou um bando de gaivotas marinhas voando sobre o solar, dirigindo-se do leste para o oeste. Vinham uma atrás da outra, as grandes asas ruflando e brilhando esplendorosamente à luz da manhã, os gritos estranhos agitando o coração de Maria, que batia acelerado. Estavam lhe dizendo que o mar não podia estar longe, logo ali atrás, no leste, e ela nunca tinha visto o mar...

Por um breve momento, o reflexo da luz matutina sobre as asas ofus­cou-a, impedindo-a de enxergar com clareza. Então, esfregou os olhos com o nó dos dedos e deleitou-se novamente com a beleza do lado de fora da janela.

Além dos muros, divisou o parque de Moonacre. Nunca, em toda a sua breve vida, vira árvores tão magníficas; faias gigantes vestindo arma­duras prateadas, carvalhos vigorosos, castanheiros esplêndidos e bétulas delicadas tremulando com a luz. Não tinham folhas ainda, mas os brotos cresciam, e entre seus ramos parecia haver uma névoa de cor pálida — ametista, cromo, rosa e azul, mesclando-se umas às outras como as cores de um arco-íris que brilha por um instante através das nuvens e então, mudando de ideia, desaparece novamente.

As árvores não cresciam muito próximas. Entre elas abriam-se cla­reiras que, na noite passada, tinham se vestido de prata e agora se reco­briam da relva castanho-amarelada que anunciava o início da primavera. Logo a relva estaria verdinha e cheia de prímulas, pensou Maria. O tojo já estava em flor, gloriosos botões dourados que brilhavam quase tão triunfantes quanto as flores do jardim do solar. Nos espaços abertos do parque, ovelhas pastavam com seus filhotes saltitando ao redor, e ela avis­tou alguns cervos. Por mais que forçasse o olhar, procurando de um lado para o outro, não viu o cavalinho branco.

Depois do parque começavam as colinas, aquelas colinas suavemen­te arredondadas de West Country que, daquele momento em diante, ela viria a amar com paixão. Pareciam cingir o vale, da mesma forma que os muros com ameias cingiam o solar. Entre as colinas mais próximas, havia uma da qual ela gostou especialmente, alta, com o formato de um cone, um grupo de árvores no topo — era como uma presença amiga. Contra a paisagem de fundo das colinas, avistou uma torre de igreja, comprida e cinzenta, e deduziu que no sopé se aninhava o vilarejo de Silverydew.

Passou então para a janela do norte. Lá embaixo havia um monte de telhas velhas recobertas de limo, o telhado do solar que terminava nos muros daquele lado, e logo adiante o bosque de pinheiros, que se estendia pela encosta de uma das colinas. O bosque a amedrontou. Era tão escuro, denso, misterioso...

Lembrou-se que o misterioso e alarmante Wrolf surgira do bosque de pinheiros... Enquanto ali estava, ouviu um galo cantar em algum lugar nas profundezas do bosque, e o som que sempre lhe parecera reconfortante ecoou inesperadamente assustador.

Um chamado imperioso atraiu sua atenção para dentro do quarto. Wiggins acabara de despertar e estava reclamando seu passeio matinal. Em Londres ele sempre dava uma volta pelo jardim da Square antes do café da manhã, e não havia por que interromper sua rotina por causa de uma mudança de casa. Um passeio antes do desjejum era de grande ajuda para a sua digestão.

“Vamos lá, Wiggins”, disse Maria, e, apanhando o chapéu, o chico­te e as luvas, abriu a portinha, desceu correndo a escada da torre com Wiggins nos seus calcanhares, abriu a porta no pé da escadaria e viu-se na sala de estar.

 

Na noite anterior, não conseguira ver direito o aposento, mas agora, com a luz a invadi-lo pelas janelas do oeste e o clarão do fogo na lareira, ele se revelava em toda a sua suplicante beleza. Pois era uma salinha ado­rável, mas que obviamente nunca fora usada. E queria ser usada. Cada um dos delicados objetos ali dentro implorava para ser usado; só que, como aquela era uma sala de senhoras, e fazia vinte anos que nenhuma mulher punha os pés no solar de Moonacre, as súplicas sempre foram ignora­das... Mas agora começavam a ser ouvidas...

Quase sem se dar conta do que fazia, Maria atirou-se na direção do velho cravo e sentou-se na banqueta diante dele, jogando no chão o chapéu, as luvas e o chicote, e correu os dedos pelo teclado. Havia um cravo na casa de Londres, e a srta. Heliotrópio a ensinara a tocar lindamente e a cantar também. Enquanto tocava, deu uma olhada ao seu redor, deliciada.

O agradável aposento era forrado com painéis de carvalho, e a janela do oeste, com seu assento incrustado na parede, dava para o roseiral. Tal­vez por isso a pessoa que o mobiliou tenha criado uma sala das rosas. As cortinas de brocado cor de creme, surradas mas bonitas, eram decoradas com pequenos botões de rosa da cor do fogo, e a poltrona que ficava ao lado da lareira era forrada com o mesmo brocado. O tapete persa no chão era todo estampado com rosas douradas sobre fundo verde-mar. As seis cadeiras Sheraton alinhadas junto às paredes tinham assentos trabalhados em petit-point, rosas brancas silvestres com miolo dourado, sobre um fundo que remetia ao verde-mar do tapete. Não havia rosas cor-de-rosa em nenhum lugar. Pelo visto, a pessoa que decorara aquela sala não gos­tava de cor-de-rosa.

“Não é mesmo incrível?”, disse Maria para si mesma. “Porque eu tampouco gosto. Detesto cor-de-rosa. Não combina com meu cabelo”.

Enquanto tocava, seus olhos passeavam pela sala. Havia uma adorável e graciosa lareira Adam, cujo consolo de madeira entalhada erguia-se em de­licadas colunas pelas laterais para formar a moldura de um quadro, com uma inscrição em relevo na parte superior: “A alma valente e o espírito puro, com o coração alegre e amoroso, herdarão juntos o reino”. Dentro da mol­dura, uma pintura a óleo meio apagada. Maria teve de fixar o olhar por um instante para identificar o que ela retratava, mas quando finalmente conse­guiu decifrá-la seu coração disparou. Pois a cena mostrava um cavalinho imaculadamente branco e um animal fulvo de aspecto corajoso, muito pare­cido com Wrolf, galopando juntos por uma clareira na floresta.

Embora fosse difícil enxergar suas feições naquela pintura tão apa­gada, ambos pareciam alegres, como se se amassem e gostassem de estar juntos. Não havia ornamentos sobre o consolo e nenhum outro quadro acima dele; o cavalinho branco e o animal fulvo reinavam ali soberanos. Mas sobre a mesa encostada na parede havia uma caixa de costura enta­lhada em cedro, com a tampa tão bem fechada que dava a impressão de estar assim havia anos, e um tabuleiro de xadrez com as peças de marfim prontas para o jogo. Eram peças primorosamente entalhadas, e, naquele conjunto em particular, os cavalos eram representados por elmos emplu­mados, os peões vermelhos tinham cabeça de cachorro e os peões bran­cos eram cavalinhos brancos. Mas já fazia tanto tempo que ninguém jo­gava com eles que pareciam congelados.

Maria sentiu uma enorme vontade de levantar a tampa da caixa de costura e de colocar as peças em batalha outra vez. Porém não conseguia parar de tocar. Uma adorável e ondulante melodia, que ela desconhecia to­talmente, brotava de seus dedos. Sempre tivera facilidade para improvisar “ao instrumento”, como dizia a srta. Heliotrópio, mas não parecia que era ela que estivesse compondo aquela melodia; teve a sensação de que a música se libertava do cravo, onde estivera trancada desde a última vez em que fora tocada. Era uma melodiazinha magnífica, e Maria se entregou a ela com alegria, até que, de repente, parou... Alguém estava escutando...

Não ouviu nenhum ruído, mas percebeu que alguém escutava atentamente enquanto ela tocava. Levantou-se, correu até a janela aberta e olhou para fora, porém não avistou ninguém no roseiral, além dos pássaros. Correu então até a porta que dava para o grande saguão e abriu-a. Wrolf estava sentado diante da lareira, e Sir Benjamin, vestindo naquela manhã uma roupa de montaria verde-escura, acabava de entrar no saguão pela porta que ficava do lado oposto. Ele abriu um sorriso tão afável e ca­loroso que pareceu o raiar do sol no primeiro dia quente do ano, mas não fez nenhum comentário sobre o fato de ela estar tocando, e Maria achou que ele não a escutara.

“Dormiu bem, minha cara?”, ele perguntou.

“Muito bem, senhor”, disse Maria com uma reverência; em seguida, erguendo-se na ponta dos pés, ela o beijou. O gesto talvez fosse uma ousadia da parte dela, pois naquela época os jovens não beijavam as pessoas mais velhas, a menos que lhes pedissem. Mas ele lhe despertava tanto afeto! E Sir Benjamin não pareceu se incomodar. Ao contrário, gostou tanto, pelo visto, que, embora ela já fosse quase uma mocinha em seus 13 anos, retribuiu o beijo com um grande abraço de urso, que a fez tirar os pés do chão. Quan­do ele a colocou de volta no chão, Maria sentiu um calorzinho úmido na mão e, ao se virar, viu surpresa que Wrolf estava parado ao seu lado, lambendo-lhe a mão e abanando a cauda lentamente de um lado para o outro.

“Veja só isso!”, exclamou Sir Benjamin todo satisfeito. “Wrolf sabe. Você tem a fibra de uma legítima Merryweather, minha cara, e Wrolf sabe disso”.

Maria pousou a mão timidamente sobre a cabeçorra de Wrolf e, com o coração aos pulos, ousou olhar diretamente nos seus olhos amarelos, estranhos e flamejantes. Ele devolveu-lhe o olhar, apoderando-se dela. Ela lhe pertencia agora. De súbito, todo o medo que Maria sentia dele se dissipou, e ela cingiu-lhe o pescoço num abraço, afundando o rosto em sua juba fulva.

Em seguida, voltando-se de novo para Sir Benjamin, disse:

“Estive apreciando as belas paisagens que se avistam das minhas ja­nelas, senhor. Para que direção está voltado o seu quarto?”

“Sul e leste, querida”, ele respondeu. “Há uma segunda torre, e o meu quarto corresponde ao da srta. Heliotrópio. Era o quarto de minha mãe, quando ela ainda vivia, mas agora é ocupado por mim. O quartinho em cima, muito semelhante ao seu mas sem o entalhe no teto e com uma porta de tamanho normal, era meu quando menino. Mas ficou pequeno demais para mim e agora está desabitado”. E então, com um graveto queimado, desenhou a planta da casa nas cinzas diante da lareira.

No pavimento inferior do solar havia somente os depósitos e o quar­to de Digweed. O grande saguão, com o teto de vigas que chegava até o telhado, a cozinha que levava para fora dele, de um lado, e a sala de estar, do outro, ocupavam o primeiro andar. Os aposentos da srta. Heliotrópio ficavam sobre a sala de estar, e os de Sir Benjamin, sobre a cozinha.

“E agora”, disse Sir Benjamin, “vou lhe mostrar onde ficam as terras”.

Abriu uma gaveta da velha escrivaninha que ficava junto à parede e, retirando dela um pergaminho enrolado, abriu-o sobre o tampo do móvel.

“Você pode pegar isso e examiná-lo sempre que quiser, minha cara”, dis­se. “Aqui dá para ver todo o Reino de Moonacre de Sua Alteza. Mas, por ora, uma olhada será suficiente para conhecer a localização das terras”.

Era um velho mapa da propriedade, e Maria debruçou-se sobre ele com o coração palpitando; pois, embora mostrasse apenas algumas mi­lhas quadradas do West Country inglês, eram as milhas que, segundo Sir Benjamin, lhe pertenciam — seu reino. Na borda direita do mapa havia uma meia-lua azul que representava o mar — a baía Merryweather... Pelo visto, Maria Merryweather, que nunca vira o mar, era dona, na verdade, de uma meia-lua inteira de águas azuis.

Do lado esquerdo, ficava a igreja que ela avistara da janela oeste, a Igreja da Virgem Maria, e atrás dela a adorável colina, que se chamava Colina do Paraíso. Os nomes escritos no mapa, apesar de absolutamente triviais, soavam aos seus ouvidos como as notas de uma melodia familiar e querida. Ela olhou para Sir Benjamin sorrindo, mas sem dizer uma palavra, ele acenou com a cabeça, sinalizando que havia entendido.

“Você voltou para casa, minha cara”, disse ele. “Mas não consegue expressar o que está sentindo. É assim com todos os Merryweathers. Não costumamos demonstrar nossos sentimentos”.

“Por favor, senhor”, disse Maria, “o que significam aquelas palavras esculpidas em cima da lareira da sala de estar?”

“‘A alma valente e o espírito puro, com o coração alegre e amoroso, herdarão juntos o reino’”, citou Sir Benjamin. “Esse é o lema da nossa família minha cara, desde os dias do primeiro Sir Wrolf. Refere-se, acho eu, aos dois tipos de Merryweather, os do sol e os da lua, que sempre são felizes quando se amam. E é também, talvez, um artifício para nos fazer lembrar das quatro qualidades que conduzem à perfeição — a coragem, a pureza, o amor e a alegria”. Sir Benjamin fez uma breve pausa e então, com profundo alívio, exclamou: “Salsichas!!!”

Por um instante, Maria pensou que Salsicha fosse mais uma das coisas necessárias para alcançar a perfeição, mas, ao sentir o aroma delicioso, compreendeu que seu primo descera subitamente do plano espiritual para o material, onde ele parecia se sentir muito mais feliz e à vontade.

Quase ao mesmo tempo, a porta da sala de estar se abriu, dando passagem a srta. Heliotrópio com sua farfalhante saia de bombazina, o xale preto e a touca branca, feliz e sorridente após a excelente noite (uma das poucas em que não lhe atormentaram os pesadelos da indigestão), e a porta da cozinha se abriu, dando passagem ao velho cocheiro, que tra­zia uma enorme travessa de salsichas fumegantes.

“Bom dia, Digweed”, disse Sir Benjamin.

“Bom dia, senhor; bom dia, senhoras”, disse Digweed.

Ao vê-lo assim à luz do dia, sem o chapéu, Maria imediatamente se afeiçoou ao velho Digweed. Ele tinha olhos azuis, arregalados como os de um bebê, a testa alta e enrugada e a cabeça completamente calva. O sobretudo cheio de remendos dera lugar agora a um casaco e um colete par­dos, com um avental de couro amarrado na cintura. Escancarando um sorriso terno e amoroso para Maria e a srta. Heliotrópio, colocou as salsichas sobre a mesa com um gesto que parecia implorar para que comessem toda a porção.

Mas não havia apenas salsichas para o café da manhã. Digweed trouxe também um enorme presunto defumado em casa, ovos cozidos, café, chá, pão que acabara de sair do forno, mel, nata com uma espessa crosta amarela por cima, manteiga recém-preparada e um leite tão fresco que ainda estava quente e espumoso. As opções eram tão variadas e deli­ciosas que Maria mais uma vez se excedeu no seu apetite; assim como Wiggins, cuja tigela verde, retirada da bagagem, foi colocada diante da la­reira e servida com salsichas pela mão generosa do próprio Sir Benjamin... Wrolf, pelo visto, sempre fazia suas refeições na cozinha, pois preferia carne crua e não era lá muito elegante ao comer... Até mesmo a srta. He­liotrópio, mais confiante pela ausência de pesadelos, se arriscou a um ovo cozido. Quanto a Sir Benjamin, era incrível como comia, e, ao observar todo aquele apetite que ela parecia ter herdado e o tamanho da cintura dele, Maria hesitou por momento em comer a salsicha e o ovo.

“Não precisa se preocupar, minha cara”, tranquilizou-a Sir Benja­min. “Somente os Merryweathers do sol se tornam obesos. Os Merrywea­thers da lua podem comer de tudo e continuar tão magros e pálidos como a lua minguante”.

Maria deu um largo sorriso e pegou a salsicha.

“Que trajes são esses, Maria?”, indagou de súbito a srta. Heliotrópio.

“Encontrei-os no meu quarto”, respondeu Maria.

“Acho que teria sido melhor vestir sua túnica, como de costume, para as aulas matinais”, disse a srta. Heliotrópio em tom de reprovação. “Aquela salinha de visitas dará uma excelente sala de aulas, e começare­mos a trabalhar assim que terminarmos o café da manhã”.

Maria ergueu os olhos cheios de súplica para Sir Benjamin e perce­beu que ele fitava sua roupa com grande espanto. Era como se não a ti­vesse notado antes. Mas se recompôs e atendeu ao apelo do seu olhar.

“É uma mulher muito conscienciosa, madame”, disse para a srta. Heliotrópio. “Mas talvez fosse bom tirar uma manhã de folga, acomodar-se no seu novo lar e descansar um pouco da cansativa viagem. Esta manhã eu mesmo me encarregarei de instruir sua pupila”.

Falou com extrema polidez mas também com extrema firmeza, e a srta. Heliotrópio não pôde senão ceder. Na verdade, ficou feliz por isso, pois uma manhã tranquila para colocar as coisas em ordem no seu quar­to encantador era exatamente o que ela mais desejava.

“E agora, Maria”, disse Sir Benjamin assim que terminaram de co­mer, “coloque o chapéu, pegue um punhado de açúcar do pote e vamos... Wrolf... Wiggins... Venham”. Em seguida, inclinando-se para a srta. He­liotrópio: “Até logo, madame, não se preocupe com sua protegida. Ela es­tará segura comigo”.

“Sei disso, senhor”, respondeu a srta. Heliotrópio, e, de fato, obser­vou sua adorada Maria sair do saguão, rumo a sabe-se lá o quê, sem ne­nhum temor, tão grande era sua confiança em Sir Benjamin.

“Oh!”, exclamou Maria numa prolongada interjeição de êxtase quando, ao chegar com seu guardião ao patamar da escada da porta prin­cipal, viu o que a esperava lá embaixo.

 

Digweed aguardava lá embaixo, segurando pelas rédeas um elegan­te cavalo baio, de constituição forte, e uma pequena, rotunda e gorda pô­nei de pelo cinza malhado, com pernas muito curtas, cauda e crina longas e olhar risonho.

“Atlas e Vinca”, disse Sir Benjamin, apresentando-os. “São nomes bo­nitos, eu acho. Atlas porque ele suporta heroicamente o meu peso, e Vinca em homenagem à flor que cresce perto do solo e que a gente do campo cha­ma de alegria-da-casa. As pernas de Vinca são mais curtas que o normal, e ela está velhinha e obesa, mas percorre distâncias com a maior alegria”.

Maria, porém, não se deteve a ouvi-lo. Já tinha descido as escadas e estava oferecendo a Vinca o punhado de açúcar. Quando sentiu o conta­to da boca quente e macia de Vinca na sua mão, foi tomada por uma sen­sação de júbilo. Com a mão livre, deu um tapinha no dorso malhado da pônei e passou os dedos pela longa crina acinzentada, que lhe caía sobre-os olhos brilhantes em desalinho, mas de maneira muito graciosa.

“Vin­ca! Alegria-da-casa!”, ela sussurrou. E então, terminado o açúcar, apoiou a mão na palma estendida de Digweed, o pé no suporte para montar que se encontrava ao lado da escada, e gingou para cima da sela como se ti­vesse feito isso a vida inteira... Digweed abriu um sorriso de aprovação, e Sir Benjamin, descendo os degraus, deu uma grande e ruidosa gargalhada de satisfação.

“Não é preciso ensinar uma Merryweather a cavalgar, Digweed”, disse. “Não insultarei a senhorita com a rédea-guia. Pode tirá-la”. E, com um gemido, alçou-se do suporte para montar ao dorso paciente de Atlas. Seguidos por Wrolf e Wiggins, saíram trotando sob o sol luminoso pelo jardim do solar, com seu viço primaveril, e, atravessando o portão nos ve­lhos muros com ameias, avançaram pelo magnífico parque.

Maria jamais se esqueceu daquela manhã. Não era bem verdade que ela não precisava de instruções. Sir Benjamin teve de ensiná-la a ajustar-se ao ritmo do trote de Vinca, manejar as rédeas e o chicote, segurar Vinca quando esta disparava em alegre galope pela turfa macia. Mas ela apren­deu em duas horas o que a maioria das garotas da sua idade levaria duas semanas para aprender, pois era destemida e, após cada queda, levantava-se de novo, rindo, apesar de um pouco zonza e machucada, e voltava à sela antes mesmo que Sir Benjamin tivesse tempo de puxar as rédeas.

Ele estava imensamente satisfeito com ela. Notou que Maria tinha coragem, destreza e aquele senso de integração com a montaria que só se vê nas verdadeiras amazonas. Vinca também estava satisfeita, cooperan­do como podia com as aulas de equitação, e era evidente que se afeiçoara tão profundamente a Maria quanto Maria a ela.

“Ouça, querida”, disse Sir Benjamin enquanto trotavam de volta para casa, “você pode ir a qualquer lugar do vale que desejar, na compa­nhia de Wrolf ou Vinca. Nunca se aventure pelo campo sozinha, mas com eles pode ir aonde quiser”.

Maria olhou para o seu guardião com olhos arregalados de espanto e alegria. Naquela época, não se considerava apropriado que uma jovem andasse por aí sem estar acompanhada por um criado — costume, aliás, que sempre irritara a independente Maria.

“Quer dizer, então”, sussurrou ela, mal podendo acreditar, “que posso ir até o vilarejo, ou à Baía Merryweather e à Colina do Paraíso, sem ter que pedir sua permissão?”

“À Baía Merryweather, não”, disse Sir Benjamin. “Essa é a única ex­ceção. Gostaria que não fosse até a baía e vou lhe dizer por quê. Os pes­cadores que ali vivem são um tanto rudes. Não se dão bem com os moradores do vilarejo, nem conosco aqui no solar. O que é um transtorno, porque se recusam a vender-nos o seu peixe, e um pouco de peixe fresco de vez em quando não seria nada mau. O peixe que comemos é comprado na cidade mercado que fica do outro lado da colina e nunca é realmente fresco. Por isso, evite a Baía Merryweather, minha cara, mas pode ir a to­dos os outros lugares que quiser, desde que esteja com Wrolf ou Vinca”.

“Não sei o que a srta. Heliotrópio vai achar de eu andar por aí acompanhada somente de animais”, disse Maria. “Em Londres, eu não ti­nha permissão para caminhar sozinha nem até o outro lado da rua”.

“Falarei com ela”, disse Sir Benjamin. “Uma princesa com a missão de governar um reino deve conhecê-lo por inteiro, se pretende fazer um bom reinado. E como poderá conhecê-lo se não tiver liberdade para fazê-lo?”

Maria fitou-o. Era a segunda vez que ele se referia a Moonacre como se lhe pertencesse. Estaria ele querendo dizer que, quando morresse, ela seria sua herdeira? Mas a ideia de Sir Benjamin morrer era tão horrível que ela afastou o pensamento e o deixou para lá. Sir Benjamim também não disse mais nada, pois estavam de volta ao jardim e já o contornavam na direção dos estábulos, que ficavam no lado leste da casa.

Entrava-se no pátio dos estábulos por uma ampla arcada aberta no grosso muro de pedra, e o lugar era encantado. Assim que se passava pela arcada, deparava-se com um pombal alto, e grande parte do encantamen­to provinha do arrulhar das pombas e de sua bonita plumagem. Além dis­so, era pavimentado com pedras redondas de cores suaves, semelhantes a opalas, entre as quais brotavam tufos de musgo verde-claro, e no centro havia um poço enorme todo cercado com parede de pedra.

Maria apeou e disparou na direção do poço. Luxuriantes samam­baias cresciam dentro de suas paredes até o nível da água, pois o teto de telhas carcomidas, sustentado por pilares de pedra, tornava seu interior frio e escuro. A água ensombrecida era tão negra que quando Maria se debruçou e olhou para baixo viu-se refletida com uma vividez espantosa. Era gelada, também, como se brotasse de profundezas inimagináveis.

“É muito fundo?”, sussurrou com assombro para Sir Benjamin en­quanto ele descia do cavalo e atirava as rédeas para Digweed, que viera buscar Atlas e Vinca para o seu café da manhã.

“Ninguém sabe qual é a sua profundidade”, ele respondeu. “Nunca se soube que essa água um dia tenha secado, mesmo nos períodos de seca mais prolongados, e no auge do verão ela se mantém tão fresca quanto no inverno. Nos dias mais quentes, sempre é possível conservar o leite e a manteiga. Afaste as samambaias, minha cara, e veja o que há atrás delas”.

Maria assim fez e viu que bem acima do nível da água algumas pe­dras haviam sido retiradas da parede, formando pequenos compartimentos nos quais se encontravam recipientes com nata e leite e porções de manteiga embrulhadas em gaze esterilizada. Exclamou de alegria ao ver as prateleiras escuras escondidas atrás das samambaias e ficou imaginan­do que esconderijo perfeito seriam para outras coisas além de manteiga e leite. Se fosse uma dama que tivesse vivido ali no tempo das guerras e tu­multos, pensou, esconderia suas joias naquele lugar.

O pátio dos estábulos era limitado a oeste pela casa, e ali outro lan­ço de degraus de pedra, no pé do qual havia outro suporte para montar, levava à porta dos fundos e às portas à direita e à esquerda que, segundo informou Sir Benjamin, davam nos depósitos e no quarto de Digweed.

Ao sul, o pátio era limitado pelo muro com a arcada que levava ao jardim; ao norte, pelos estábulos; e a leste pelo galpão dos arreios e pelas cocheiras. Um túnel que passava pelas construções levava ao lado leste, e, olhando através dele, Maria avistou os canteiros da hora. Ela nunca ex­plorara um lugar como aquele antes e, quando Sir Benjamin a conduziu por ele, ficou encantada com as grandes cocheiras, onde o decaído coche que as trouxera da estação estava estacionado ao lado da charrete de Sir Benjamin e de uma pequena carruagem puxada pela pônei, quase caindo aos pedaços de tão velha. Gostou também das baias dos cavalos, das manjedouras cheias de feno de cheiro adocicado, do galpão dos arreios e do grande depósito de feno acima dos estábulos, no lado norte. Sir Benjamin mostrou-lhe como tirar as rédeas e a sela de Vinca e colocá-las de novo, para que não precisasse depender de Digweed para isso, e apresentou-a aos outros habitantes do estábulo, os dois cavalos gordos que puxavam o coche, Darby e Joan, Speedwell, a égua de cor creme que tracionava a charrete, e seu grande caçador negro, Hércules, velho também, mas ain­da dotado de enorme resistência e vigor — como todo cavalo precisava ser, para aguentar o peso de Sir Benjamin.

“Quem cavalgava e conduzia Vinca?”, perguntou Maria de sopetão. Era evidente que a carruagem não era usada havia anos, mas devia ter sido comprada para alguém, e Vinca parecia bastante acostumada a car­regar uma dama no seu dorso.

“Hã?”, esquivou-se Sir Benjamin como se não houvesse escutado, embora não tivesse a menor dificuldade de escutar, e então, abruptamente: “Ah, veja aquelas pombas sob a luz do sol, minha cara! Já viu algo tão bonito assim?”

Ao olhar para aquelas asas brancas reluzindo como neve à límpida luz prateada de West Country, Maria pensou que não, nunca vira nada mais bonito, exceto talvez, as gaivotas voando para o interior, logo de manhã.

“É hora de dar uma olhada na horta antes de entrarmos para almo­çar”, disse Sir Benjamin, e saiu caminhando na frente, rumo à arcada.

A horta era também um lugar encantado. Era rodeada por antigos muros de pedra, aqueles ao norte e a leste dos muros com ameias, junto dos quais cresciam árvores frutíferas: pés de ameixas e pêssegos, nectarinas e damascos. No centro ficava uma amoreira tão velha que seus galhos tiveram de ser amarrados com correntes, e embaixo dela havia um ban­co. A sua volta, espalhavam-se os canteiros de hortaliças, com arbustos de morangos, framboesas e groselhas, além de uma variedade de ervas, e entre eles havia estreitos caminhos pavimentados, cercados com jardineira. Havia também muita erva daninha, mas Sir Benjamin explicou, desculpando-se, que ele não tinha um jardineiro fixo. Digweed trabalhava no jardim quando podia, assim como Sir Benjamin e o menino pastor, mas não havia ninguém que cuidasse regularmente daquela tarefa.

“Menino pastor?”, pensou Maria. “Ainda não o vi”. A ideia da exis­tência de um pastor menino deixou-a profundamente agitada. Uma por­ta no muro leste levava ao pomar, e Sir Benjamin abriu-a para que Maria pudesse dar uma espiada nas velhas e retorcidas macieiras, recobertas de líquen prateado, e nos pés de peras, cerejas e nêsperas. Na relva acastanhada sob as árvores, já se viam alguns sinais de galantos, e no momen­to, disse-lhe Sir Benjamin quando ela parou entre as árvores e olhou para cima, seria difícil ver o azul do céu devido à profusão de flores cor-de-rosas e brancas sobre sua cabeça.

No caminho de volta pela horta até o pátio dos estábulos novamen­te, Maria notou uma cisterna à esquerda do túnel e, acima, uma janelinha com treliça onde havia vasos com lindos e enormes gerânios rosa-salmão. Que janela seria aquela? As cocheiras à direita e à esquerda do túnel che­gavam até o telhado. Não havia sótão acima delas. Haveria um quartinho sobre o túnel? Teria perguntado a Sir Benjamin se, naquele mesmo instan­te, ele não tivesse sacado do bolso o seu grande relógio e exclamado, sur­preso: “Valha-me Deus! O tempo voou. Mal teremos tempo de trocar de roupa para almoçar”.

Passaram o resto do dia tranquilos. A srta. Heliotrópio e Maria fize­ram a refeição com Sir Benjamin e, depois, sentaram-se na sala de estar. Maria tocou e cantou para o seu tutor, enquanto a srta. Heliotrópio co­chilava na poltrona. Mais tarde, Digweed trouxe o serviço de chá e Ma­ria preparou chá para todos. Em seguida, Sir Benjamin foi cuidar dos seus afazeres, e a srta. Heliotrópio e Maria leram em voz alta e bordaram. Chegou então a hora da ceia e, depois, a hora de ir para cama.

Só quando estava em seu leito, quase cochilando, é que Maria subi­tamente se lembrou que não tinha visto a cozinha. Nem Zacarias, o gato, que certamente vivia ali.

“De manhã”, disse para si mesma, “logo cedo, antes do café, vou di­reto conhecer a cozinha... e Zacarias”.

 

Mas aconteceu que, na manhã seguinte, ela dormiu mais que o esperado e foi acordada pelo som da aldrava batendo na porta. Correu a abri-la e deparou com a srta. Heliotrópio do outro lado.

“Maria”, disse a srta. Heliotrópio com certa rispidez, “hoje é o Dia do Senhor. Nada de vestir o traje de montaria. Vista o seu melhor vestido lilás. Já me certifiquei com Sir Benjamin e, conforme eu já esperava, ele costuma ir à missa nas manhãs de domingo. Iremos com ele”.

“Oh”, disse Maria. Em seguida, fazendo uma tentativa, acrescentou: “Talvez então eu possa cavalgar à tarde?”

“De jeito nenhum”, respondeu a srta. Heliotrópio. “Correr por aí no Dia do Senhor seria extremamente inapropriado. Agora, apresse-se, Maria, o aroma da salsicha já se espalhou pela casa”.

Maria lavou-se rapidamente com a água quente que, como no dia an­terior, fora deixada ali, vestiu-se ao lado da lareira que a misteriosa pessoa acendera para ela enquanto dormia e então procurou seu vestido lilás.

Mas não precisou procurar muito. Lá estava ele, no tampo do baú onde ontem ela encontrara as roupas de montaria, cuidadosamente do­ brado, junto com sua melhor peliça de domingo, a touca e o regalo de veludo roxo, ornamentados na borda com pluma de cisne branca, e suas lu­vas de seda roxas. Junto da pilha de roupas, havia um grande livro de preces de capa preta, fechado com uma fivela dourada, e, sobre ele, um ramalhete de violetas roxas ainda úmidas de orvalho.

Maria abriu a fivela dourada e folheou o livro de preces. Notava-se que era um livro antigo, pois a folha de guarda estava amarelada pelo tempo. Nela estavam escritas, em delicada caligrafia, as iniciais L. M. e o lema da família. Maria sorriu e então pestanejou, pois novamente sentiu vontade de chorar. “Direi minhas preces com muito zelo, L. M.”, prome­teu. “Farei minhas preces o melhor que puder, graças ao seu livro”. En­tão, ajeitou a touca de domingo na cabeça e prendeu nela o ramalhete de violetas.

Sir Benjamin, já vestido para ir à igreja, era uma visão e tanto na mesa do café da manhã. Estava usando o bonito colete de cetim bordado com rosas e cravos, o grande anel de rubi e a gravata de renda de Honiton com que a recebera na noite de sua chegada, e sua imensa peruca branca com aspecto de couve-flor certamente havia sido lavada e escova­da na noite anterior, pois estava mais branca do que nunca. Mas, em vez do casaco e das calças de montaria, vestia um casaco de veludo cor de amora, calças cor de amora amarradas no joelho com borlas de seda, e sapatos pretos com fivela prateada.

O casaco e as calças brilhavam nas costuras e estavam tão apertados que ele teve de sentar-se à mesa bem devagar para não rasgá-los, e os sa­patos estavam muito gastos nas pontas. Mas não havia uma única partí­cula de pó no veludo, e os sapatos e as fivelas reluziam tanto que chega­vam a ofuscar. Quanto ao rosto, Sir Benjamin o barbeara e lavara com tanto capricho que estava todo vermelho, reluzindo quase tanto quanto os seus sapatos.

“O asseio”, disse Sir Benjamin com uma risadinha ao notar o olhar de admiração de sua sobrinha-neta sobre ele, “anda junto com a devoção, não é mesmo, Maria? Pelo menos é assim que os Merryweathers sempre pensaram”.

Digweed conduziu-os até a igreja de coche, aberto dessa vez para re­ceber o ar fresco. Era evidente que ganhara uma boa faxina, pois o piso ainda estava úmido quando a srta. Heliotrópio, Sir Benjamin e Maria montaram nele e se acomodaram solenemente no banco de trás, com a srta. Heliotrópio no meio e Sir Benjamin e Maria a protegê-la, um de cada lado.

Talvez parecessem um pouco estranhos ali sentados em fila, meio apertados pela falta de espaço devido ao aro da saia da srta. Heliotrópio e ao corpanzil de Sir Benjamin. Além disso, a srta. Heliotrópio, como sempre, levava consigo seu guarda-chuva e sua bolsinha, e cada um trazia nas mãos um livro de preces volumoso.

Por mais estorvo, porém, que pudessem causar esse ou aquele obje­to que carregavam, nada se comparava ao item que Digweed trazia ao seu lado na boleia, o maior instrumento musical que Maria já vira na sua vida... Tinha o dobro do tamanho de Digweed.

“É um contrabaixo”, explicou Sir Benjamin. “Digweed toca na igreja. É o líder do coro. Ele é um bom músico. Excelente, na verdade”.

Digweed sorriu, estalou a língua para atiçar Joan e Darby, e lá se foram eles, observados do patamar da escada por Wrolf e Wiggins, sentados lado a lado com ares muito altivos. Perto de Wrolf, Wiggins parecia mi­núsculo, e Maria sentiu certa apreensão.

“Wrolf... não vai... comer Wiggins, não é?”, gaguejou num sussurro para Sir Benjamin.

“Não! Não! Não!”, apressou-se seu tutor a tranquilizá-la. “Wrolf apoderou-se de você ontem de manhã, não se lembra? Não só de você; tudo que lhe pertence está agora sob a proteção dele. Embora não tenha lá muita simpatia por Wiggins, ele morreria antes de permitir que algum mal sucedesse a um só pelo do seu corpo”.

O parque estava adorável naquela manhã, sob os luminosos raios prateados do sol. A promessa de primavera enchia de magia o ar, envolven­do cada flor, cada árvore e cada ovelha em fuga com uma aura de milagre, como se fossem a primeira flor, a primeira árvore ou a primeira ovelha a serem criadas. Cada clareira parecia levar direto ao Paraíso, e quando pa­raram um instante para tirar a pedra que se alojara no casco de Darby a cantoria dos pássaros soou-lhes como uma música celestial...

Embora olhasse de um lado para outro, Maria não viu nem sinal do cavalinho branco... Por fim, esqueceu-se dele ao avistar na rocha o túnel que haviam atravessado para entrar no parque, no dia de sua chegada.

Mas então a estrada se bifurcou, eles se desviaram para a direita e ela não conseguiu vê-lo.

“Não vamos pelo túnel?”, perguntou a Sir Benjamin.

“Não, minha cara”, disse ele. “Não se lembra do mapa? Moonacre e o vilarejo se situam entre as colinas. O túnel atravessa a encosta da co­lina e vai dar direto no mundo exterior. Silverydew não fica no mundo ex­terior, faz parte do nosso mundo”.

E assim era. Após percorrerem mais um pequeno trecho, a estrada terminou num velho portão quebrado que se mantinha aberto graças a uma pedra, e, ao cruzá-lo, entraram na rua do vilarejo.

“Que vilarejo encantador!”, exclamou Maria. “Oh, senhor, é o vila­rejo mais encantador que já existiu!”

“É seu”, disse Sir Benjamin.

“As pessoas estão sorrindo para mim”, admirou-se Maria. “Sorriem para mim como se me conhecessem!”

“São o seu povo”, disse Sir Benjamin, erguendo seu chapéu absurda­mente grande para agradecer aos sorrisos, reverências e mesuras que fa­ziam sua travessia pela rua do vilarejo parecer quase uma marcha real. “É isso mesmo, Maria. Sorria e mande-lhes um beijo com a mão. Estiveram esperando por muitos anos pela chegada de outra princesa a Moonacre”.

Maria quase chorou de alegria ao ver Silverydew e sua gente. Não havia vilarejo como aquele, nem pessoas como aquelas, em todo o West Country. As casinhas de adobe caiadas eram cobertas com palha doura­da e rodeadas por graciosos jardins, que resplandeciam com as flores da primavera. Um riacho corria ao lado da rua do vilarejo, e cada casa tinha sua própria pontezinha de pedra que cruzava o riacho na frente do por­tão do jardim. Nos pomares atrás das casas, brotos cada vez mais fartos se espalhavam pelas árvores.

Todas as casas pareciam prósperas e bem-cuidadas, e, além das flo­res, os jardins tinham colmeias de abelha, arbustos frutíferos e canteiros de ervas. As pessoas aparentavam ser tão felizes e prósperas quanto suas casas. As crianças eram robustas como pequenos pôneis, saudáveis e ale­gres; pais e mães tinham olhar firme e sereno; os idosos eram tão corados e sorridentes quanto as crianças. E suas roupas eram tão vistosas quanto os jardins, vestidos enfeitados com flores, toucas amarradas com fitas co­loridas; as cores dos casacos domingueiros dos homens, verde-garrafa, azul-escuro e cor de ameixa, mais se realçavam que desbotavam com o uso.

Ao se recordar das coisas feias que vira em Londres — casas deterioradas, crianças em andrajos e mendigos de pés descalços —, Maria disse para si mesma: “É assim que deveria ser. É assim que sempre deve ser em Silverydew. Não há nada que eu não faria para conservar Silverydew exatamente como é”. Empinou os ombros, ergueu o queixo e pareceu mes­mo muito determinada.

“Chegamos ao pórtico”, disse Sir Benjamin. “Srta. Heliotrópio, madame, apoie-se na minha mão”.

Depois de ajudá-la a sair do coche, ofereceu um braço a ela e outro à Maria, e com lenta dignidade passaram juntos sob o velho pórtico entalhado, subiram pelo caminho íngreme que atravessava o cemitério e chegaram ao adro da igreja. Lá em cima, os sinos ressoavam alegremente num repique glorioso, como nunca Maria ouvira antes.

Os sinos, na verdade, estavam falando, mas ela estava tão atordoa­da pela felicidade que sentia naquele momento que não conseguiu enten­der o que diziam. Ergueu os olhos para a torre da igreja, alta e cintilante à luz do sol, depois para as encostas da Colina do Paraíso mais adiante e, em seguida, para o límpido céu azul lá em cima. Estava tão feliz que achou que ia explodir.

 

A igreja era tão adorável por dentro quanto por fora, com lindos pi­lares que se erguiam altivos como troncos de árvores e arcos que se projetavam para cima como um grito de alegria, indo unir-se à magnífica cur­va ascendente do teto abobadado. As janelas luziam com as cores vividas do antigo vitral, e o sol, ao passar por elas, pintava as lajotas embaixo com todas as cores do arco-íris.

À esquerda dos degraus da capela-mor, ficava um púlpito alto, e, à direita, uma capelinha de pedra muito antiga com uma pequena entrada através da qual Maria divisou a figura de um cavaleiro de armadura jazen­do em sua tumba. Ao vê-lo, sentiu seu coração vacilar, pois sabia, sem que lhe tivessem dito, que a capela era um santuário Merryweather e que aque­le era seu ancestral.

Sob a janela oeste havia uma pedra de altar simples, coberta com te­cido de linho branco, e, sobre o degrau do altar, um grande vaso de cerâ­mica repleto das primeiras coroas e ramos do glorioso tojo dourado. Em­bora a etiqueta a proibisse de voltar a cabeça para olhar, Maria percebeu, pelos ruídos das cadeiras rangendo, das vozes abafadas e da suave afina­ção das cordas, que acima da entrada oeste havia uma galeria, e que o coro do vilarejo, com seus violinos, violoncelos e o contrabaixo de Dig­weed, já havia chegado.

Muitos fiéis já haviam ocupado as tribunas de madeira reservadas, e, ao passar, Maria só conseguiu ver as roucas das mulheres e as cabeças despidas dos homens. Agora que os aldeões que vira lá fora haviam en­trado também, a igreja estava lotada. Pois as pessoas de Silverydew ama­vam a sua igreja.

Estavam na porta da tribuna dos Merryweathers, logo abaixo do púlpito, e Sir Benjamin acenou para que ela entrasse depois da srta. He­liotrópio. Ele entrou por último e fechou a porta com o trinco, e então ela já não conseguiu ver mais nada da igreja, exceto o teto, o cume dos arcos e a parte superior do púlpito, pois as paredes eram tão altas que a tribu­na parecia uma salinha.

No assento almofadado que se estendia ao longo da parede posterior, havia espaço para uma família inteira; pai, mãe e dez filhos poderiam fa­cilmente enfileirar-se nele, pensou Maria, desde que algumas das crianças fossem ainda pequenas. E quando ela contou as almofadas para joelhos que ficavam na frente do assento notou que eram doze, por ordem de ta­manho — uma grande para o pai da família, e uma minúscula, pouco maior que um chapéu de sapo, para o filho caçula. Uma prateleira percorria toda a extensão da parede oposta ao assento, larga o bastante para que o pai e os filhos ali deixassem os chapéus, e a mãe e as filhas, as bolsas e sombrinhas.

Era tudo, de fato, muito confortável e acolhedor. Maria se ajoelhou sobre uma almofada de tamanho médio, deixou o regalo pender de sua própria corrente, depositou o livro de preces na prateleira à frente e co­briu o rosto com as mãos enluvadas, feliz porque naquela tribuna, assim como no solar, ela sentia que havia regressado ao lar.

“Celebrai com júbilo ao Senhor todos os habitantes da Terra”.

A retumbante voz que ressoou sobre sua cabeça quase a fez saltar para fora do corpo. Parecia uma grande trombeta anunciando o fim do mundo, e no susto ela se atrapalhou toda ao levantar. Teve a impressão de que veria o teto da igreja se abrir como uma vagem e o céu azul se enrolar como pergaminho para dar passagem aos anjos. Mas nada disso aconteceu. Era apenas o Pároco anunciando o primeiro hino.

Mas que estrondo! Ela achara que Sir Benjamin tinha uma voz possante, mas não era nada comparada à do Pároco. E, se à primeira vista ela pensara que Sir Benjamin era um cavalheiro idoso de aspecto estranho, agora percebia que, no quesito estranheza, ele não chegava aos pés do ancião no púlpito. De pé logo abaixo dele, já recomposta e novamente séria, com o regalo ainda pendendo da corrente e as mãos enluvadas segurando o livro de preces, ela olhou direto para o rosto dele, que retribuiu o olhar da mesma maneira penetrante que Sir Benjamin a fitara quando se conheceram. Ele abriu um sorriso luminoso, e ela lhe sorriu de volta, e daquele momento em diante Maria Merryweather e o Pároco de Silvery­dew se tornaram grandes amigos.

Mas, sem dúvida alguma, ele era um velho bastante incomum, mais parecido com um espantalho do que com qualquer outra coisa. Era muito alto e muito magro, e seu rosto fino, moreno e bem barbeado, com ar perspicaz e orgulhoso, mostrava os sinais da idade; as mãos, bem afeiçoadas, tinham dedos muito longos; e os cabelos alvíssimos quase chegavam aos ombros. Trajava uma batina preta e um colarinho branco sob o queixo.

Devia ser bem idoso, mas seus olhos escuros, emoldurados por es­pessas sobrancelhas brancas, faiscavam, e a voz era tão potente e encorpa­da que seria capaz de despertar os mortos. Era excepcionalmente límpida e eloquente também, com um ligeiro vestígio de sotaque estrangeiro que lhe acrescentava charme e originalidade. Ele gesticulava com as mãos en­quanto falava, de tal modo que estas pareciam falar também.

“Agora, boa gente de Silverydew”, bradou ele, passando seus olhos faiscantes sobre o recinto apinhado de fiéis, “com todo o seu coração, alma e voz, cantemos nossas preces”. Em seguida, levantou a cabeça e mirou o coro na galeria. “E vocês aí em cima, não desafinem, por amor a Deus”.

Então, de repente, arrancou um violino de algum lugar dentro do púlpito, encaixou-o sob o queixo, ergueu o braço direito com o arco en­trelaçado em seus delgados dedos morenos, passou-o pelas cordas com primoroso talento e conduziu seu povo pelo enlevante esplendor do Sal­mo 100, com um arroubo e paixão que lembravam um oficial da cavala­ria levando seus homens ao ataque.

E que ataque! Lá em cima, na galeria, os violinistas, violoncelistas e Digweed tocavam como se estivessem possuídos. Embora não pudesse vê-los, Maria era capaz de imaginar seus rostos vermelhos encharcados de suor, os braços se movendo para a frente e para trás, os olhos brilhantes quase saindo das órbitas de tanto entusiasmo e prazer. E cada homem, cada mulher, cada criança da congregação cantava a plenos pulmões.

A própria Maria cantou até lhe doer a garganta, com Sir Benjamin de um lado, berrando como uma buzina, e a srta. Heliotrópio de outro, trinando como um rouxinol. Maria ficou espantada com o trinado da srta. Heliotrópio. Ela nunca ouvira sua governanta fazer aquilo antes. Nem sequer sabia que ela fosse capaz de trinar.

E, com a imaginação correndo solta e desenfreada, Maria teve a im­pressão de ouvir, além das paredes da igreja, todos os pássaros do vale a cantar, as flores a cantar, as ovelhas, os cervos e os coelhos a cantar no par­que, nos bosques, nos campos e lá no alto, nas encostas das altas colinas. E, em algum lugar, as ondas do mar que ela ainda não conhecera rolavam pela Baía Merryweather, murmurando Amém ao quebrarem na praia.

Lá em cima, no púlpito, o Pároco tocava o violino como nunca an­tes Maria ouvira alguém tocar, e nunca chegaria a ouvir, pois não havia ninguém no mundo inteiro que tocasse, ou viesse a tocar violino de ma­neira tão magnífica quanto o Pároco de Silverydew.

O hino terminou e, sob o farfalhar suave das saias e anáguas domingueiras e o ranger das costuras nos casacos domingueiros, um pouco apertados demais, a congregação se pôs de joelhos. O Velho Pároco, dei­xando de lado o violino e erguendo-se muito ereto, com suas mãos ma­gras e morenas cruzadas no peito, fechou os olhos, levantou a cabeça e começou a orar com sua voz retumbante, agora ligeiramente mais baixa, mas tão nítida e sincera que, se algum membro da congregação perdesse uma palavra aqui ou ali, não teria desculpa para interromper a oração, a menos que fosse surdo como uma pedra.

Maria nunca ouvira ninguém rezar como o Velho Pároco, e ele o fazia de tal maneira que ela sentiu um tremor de reverência e alegria. Pois ele falava com Deus como se Deus estivesse não apenas no céu, mas ali mesmo, bem ao lado dele, no púlpito. E não só ao lado dele, mas ao lado de cada homem, mulher e criança dentro da igreja — Deus se tornou vivo para Maria enquanto ela rezava, e isso a deixou tão excitada e feliz que mal podia respirar.

E, quando o Velho Pároco leu a Bíblia para seu povo, não foi daque­le jeito monótono, de dar sono nas pessoas, como faziam os párocos de Londres. Ele a leu como se fosse algo extremamente empolgante, como ordens dadas no campo de batalha ou uma carta escrita ontem trazendo notícias boas. Quando pregava, discorrendo sobre a gloriosa beleza do mundo e a necessidade de louvar a Deus em cada momento do dia, sob pena de ser condenado a uma ingratidão tão profunda que dava medo até de falar, era com a vibração de uma tempestade. Em Londres, durante o sermão, Maria sempre ficava preocupada com suas roupas ou curiosa com os outros membros da congregação, mas naquela manhã só ajeitou as pregas da peliça e acariciou o regalo umas poucas vezes, e somente muna ocasião ergueu o pescoço na vã tentativa de ver alguma coisa por sobre a porta da tribuna.

Maria ouvia tudo fascinada. Quando cantaram o último hino, com tal intensidade que o teto quase se levantou, ela percebeu que não estava nem um pouco cansada; ao contrário, sentia-se tão disposta como no início da missa.

Depois que o último Amém se desmanchou no ar, o Velho Pároco desceu do púlpito e caminhou até a nave da igreja, indo postar-se no adro oeste para saudar seu povo enquanto passavam por ele em fila. Maria nunca vira um pároco fazer isso. Mas também não vira nenhum pároco como aquele velho senhor, nem assistira a nenhuma missa como aquela. Nada naquele vale encantado apresentava qualquer semelhança com alguma outra coisa que ela já vira em algum outro lugar.

O Velho Pároco, pelo visto, era desse tipo de pessoa que não liga a mínima para o que os outros vão dizer, pois, ao se dirigir até a nave, Maria ouviu o vozeirão do padre repreendendo um fazendeiro por bater no ca­chorro, uma mãe por deixar o filho ir para a escola com o rosto sujo, um menino por roubar o ninho de um passarinho, e uma garotinha por beber o leite destinado ao gato.

Ele parecia saber o que cada um deles havia feito na semana passa­da, e suas reprimendas eram tão mordazes que Maria agradeceu aos céus por ele não saber de nenhum de seus pecadilhos passados... Se ele me re­preendesse, acho que eu morreria, disse para si mesma...

No entanto, ninguém parecia se ofender com suas broncas ou com o fato de serem proferidas em tão alto volume que ecoavam por todo o adro. Ficavam vermelhos como beterrabas, baixavam a cabeça e murmu­ravam suas desculpas com verdadeiro pesar. Em Silverydew, o Velho Pá­roco parecia desfrutar os privilégios de um rei.

Mas ele também era capaz de fazer elogios. De vez em quando, a rai­va desaparecia de sua voz e dava lugar a um tom sincero de satisfação, como vinho vertido na água. Uma garotinha ajudara sua frágil mãe a la­var os pratos, um jovem marido cuidara do bebê enquanto sua mulher saíra para um passeio, e um menino enfaixara a pata machucada de um filhote. Ouvindo a maneira afetuosa com que o Velho Pároco elogiava suas ações, você pensaria que, no mínimo dos mínimos, eles tinham sal­vado a rainha Vitória do afogamento.

Então, o grupo do solar chegou ao adro e o Velho Pároco segurou a mão da srta. Heliotrópio, que ficou toda inquieta. Mas ela não tinha por quê, pois, ao vê-la, o sorriso do Velho Pároco se iluminou no seu rosto encarquilhado como um raio de sol sobre a neve.

“Bem-vinda, madame”, dis­se ele, saudando-a da mesma maneira calorosa que Sir Benjamin quando de sua chegada. “É uma honra ter a sua presença aqui no campo”. Em segui­da, trocaram olhares afetuosos, e todos os que estavam observando nota­ram que eles haviam gostado um do outro. Foi com relutância que o Velho Pároco soltou a mão da srta. Heliotrópio para tomar a de Sir Benjamin.

“Terra-tenente”, bradou ele num súbito acesso de raiva, “na última quarta-feira encontrei no seu parque um coelho preso numa armadilha. Já lhe disse antes e volto a lhe dizer que, se permitir que as criaturas sil­vestres de Deus sejam ameaçadas por armadilhas nas suas terras, o senhor passará a eternidade preso numa delas!”

Sir Benjamin, cujo rosto já era normalmente vermelho como uma beterraba e não parecia ser capaz de ficar ainda mais vermelho, ficou roxo e perdeu a pose.

“Não é culpa minha, Pároco”, disse ele. “Aqueles sujeitos, desalmados da Baía Merryweather montam as armadilhas nas minhas terras sem o meu conhecimento”.

“Não me venha com suas desculpas, terra-tenente”, vociferou o velho. “O parque lhe foi confiado por Deus, e cada centímetro dele deve ser mantido sob constante vigilância. O senhor é culpado de flagrante preguiça e negligência do dever. Tome as medidas necessárias para garantir que essa crueldade não se repita”.

Sir Benjamin não disse, como bem poderia ter dito, que era praticamente impossível vigiar cada centímetro de um parque daquele tamanho. Ele não disse coisa alguma. Limitou-se a esfregar a ponta do nariz com o dedo indicador, demonstrando uma terrível preocupação.

Chegou então a vez de Maria, e ela descobriu que tinha sido muito otimista ao pensar que o Velho Pároco nada sabia sobre suas faltas e de­feitos.

“Trajar-se com apuro é recomendável numa mulher”, disse ele, se­gurando sua mão com garra de aço. “Mas a vaidade não. A vaidade é coisa do demônio. E a curiosidade excessiva tampouco é recomendável nas mu­lheres. Corte o mal pela raiz, minha cara, enquanto é tempo”.

Ele vira, portanto, ela alisar a peliça e acariciar o regalo... Notara sua tentativa de espiar pela porta da tribuna... Ela não balançou a cabeça, pois isso não era do seu feitio, mas os olhos que ela mantinha fixos no rosto do Velho Pároco se encheram de lágrimas, e ela corou, da testa ao pescoço... Pois subitamente percebera que queria muito, muito mesmo, obter a apro­vação do Velho Pároco, e isso, pelo visto, ela já tinha perdido.

Mas não. A raiva sumiu da voz dele e foi substituída por aquele tom caloroso de apreciação.

“Uma legítima Merryweather”, ele disse. “Venha aqui sempre que quiser, criança. Esta igreja é, antes de tudo, o lar dos jovens”.

Então, mais uma vez, ele abriu aquele mesmo sorriso luminoso que lhe dirigira do alto do púlpito, e ela se inclinou reverentemente. Em segui­da, Maria, Sir Benjamin e a srta. Heliotrópio fizeram de novo a marcha real do adro ao pórtico, com Sir Benjamin parando a cada minuto para apresentar Maria a um e outro dos sorridentes aldeões.

“Que a pequena dama seja uma verdadeira Merryweather”, repetiam. Um velhinho sus­surrou-lhe baixinho: “Será você a escolhida, minha cara?”, e só ela ouviu o que ele disse. E uma velhinha sussurrou: “Mantenha o coração valente, querida, pois talvez seja você”.

A eles Maria se limitou a responder com um sorriso, pois não sabia do que estavam falando.

 

No caminho de volta para casa, Maria perguntou a Sir Benjamin o que o Velho Pároco quisera dizer quando falou que a igreja era, antes de tudo, o lar dos jovens.

“Ele gosta que as crianças da paróquia usem a igreja como creche”, ex­plicou Sir Benjamin. “Deixa que brinquem com a pequena estátua da Vir­gem e com o sino, e conta histórias para elas. Devo dizer, Maria, que no mundo além do vale o Velho Pároco é considerado uma pessoa bizarra. Não é visto com bons olhos em alguns lugares, embora nós aqui do vale o ame­mos e respeitemos. É verdade que ele é um tanto incomum. Diz o que quer e faz o que quer, e assim tem sido desde o dia em que aqui chegou, quaren­ta anos atrás. Ele é o verdadeiro rei deste pequeno reino, um aristocrata até a última gota de sangue do seu corpo. Nunca soube quem foram seus ances­trais, mas dou minha cabeça a corte se não corre sangue real cm suas veias”.

“Quer dizer que já faz quarenta anos que ele chegou aqui?”, per­guntou a srta. Heliotrópio.

“Mais ou menos isso”, disse Sir Benjamin. “Não sei nada de sua vida passada. A única coisa que ele me contou a seu respeito foi que no passado era ateu, até que um dia, atravessando uma tormenta, seu cava­lo ficou assustado e o atirou ao chão, e a pancada que sofreu na cabeça ao cair abriu-lhe os olhos. Percebeu como estava enganado, converteu-se e tornou-se padre”.

A sra. Heliotrópio suspirou longamente e ficou em silêncio até avis­tarem o solar. Então, de súbito, falou:

“Maria, cuidado com a postura. Levante os ombros. Sente-se direi­to. Depois do almoço, você vai passar uma hora exercitando a postura no espaldar, antes de ler o sermão de domingo para mim”.

Maria deu um suspiro.

“Outro sermão?”, perguntou Sir Benjamin com um tom de comiseração que soou como um bálsamo para Maria. “Afinal, o sermão desta manhã durou bem uma hora!”

“Todo domingo à tarde”, respondeu a srta. Heliotrópio com firmeza, “Maria lê em voz alta um dos sermões compostos por meu excelente pai”.

“Mesmo numa tarde tão bonita?”, indagou Sir Benjamin, atenden­do ao olhar de súplica que Maria lhe dirigia por sobre o regalo.

“O tempo nunca me impediu de cumprir com a educação de Maria”, informou a srta. Heliotrópio. “Na minha opinião, a preocupação excessiva com o tempo pode contribuir para a instabilidade do caráter”.

Falou com tanta gravidade, e seu nariz assumiu um aspecto tão alarmante, que Sir Benjamin não disse mais nada, nem tampouco Maria. Ela endireitou os ombros e sorriu para a srta. Heliotrópio, pois não queria que pensasse que ela a amava menos pelo fato de agora estarem vivendo naque­le lugar maravilhoso. Não importava onde estivesse, o que fizesse, quantas pessoas novas e interessantes viesse a amar nessa sua vida nova e empolgante, para ela a srta. Heliotrópio seria sempre a melhor e a mais querida de todas. Enquanto isso, Sir Benjamin mergulhou num devaneio agitado, e de vez em quando Maria o ouvia murmurar: “Outra armadilha! Lá vêm eles com suas artimanhas de novo! Isso não acaba nunca. Não acaba nunca”.

Depois do almoço, na sala de estar, encostada no espaldar que fora levado para lá juntamente com o globo, os livros de estudo, a pena de escrever, os lápis, os pincéis de pintura e as tintas de aquarela, enfim, toda a parafernália que fazia parte da sua educação, Maria ficou tentando adi­vinhar o que era que não acabava nunca. Seria possível que aqueles ho­mens perversos que não vendiam peixe para os aldeões e montavam ar­madilhas no parque representassem uma ameaça assim tão séria à felici­dade do vale? O povo de Silverydew parecia feliz e próspero, mas as pessoas muitas vezes têm preocupações que não revelam. Ela não queria que sua gente ficasse preocupada.

“Eles não precisam se preocupar”, disse para si mesma. “Descobri­rei o que anda acontecendo de errado e darei um jeito nisso. Serei — do que foi mesmo que me chamou aquela velhinha? — ‘a escolhida’ que vai dar um jeito nisso”.

Então riu de si mesma, pois se Sir Benjamin, que sabia de tudo que estava errado, não conseguia dar fim ao problema, como é que ela, que não sabia de nada, poderia fazê-lo?

“Acharei um jeito”, disse. E quando a srta. Heliotrópio chegou com o livro de sermões encontrou-a no espaldar com um olhar tão resoluto que pensou, por um instante, que Maria iria desobedecê-la e recusar-se a ler o sermão.

Mas Maria levantou-se de um salto e, com um sorriso afetuoso, pe­gou o livro e leu como nunca antes.

“Minha criança querida!”, pensou a srta. Heliotrópio. “Moonacre parece só lhe fazer bem”.

 

Na manhã seguinte, Maria despertou tão cedo que a única claridade lá fora era o pálido cinza do começo da aurora. Permaneceu quieta por algum tempo, ouvindo ao longe os ruídos no campo, o farfalhar das folhas, o gorjeio dos pássaros, o balido das ovelhas no parque e o grito de uma gaivota madrugadora a sobrevoar o telhado. Em meio a esses ruídos, ela identificou as notas de uma melodia que lhe causou uma sensação estranha, como se o teclado do qual a música brotasse fosse o seu próprio coração. Até que Wiggins, estirado aos seus pés, acordou e ronronou, fazendo tal estardalhaço (ele ronronava de maneira muito estardalhante) que imediatamente fez Maria recordar-se do que pretendia fazer naquela manhã — descobrir como era a cozinha e tentar ver se encontrava aquela criatura esquiva, o gato Zacarias. Num piscar de olhos, livrou-se das cobertas e saltou da cama.

Despertara cedo, mas não antes da gentil pessoa que cuidava do seu conforto; como nos dias anteriores, a lareira estava acesa, a água quentinha esperava por ela, e os apetrechos de montaria estavam preparados.

Maria se lavou e se vestiu tão rápido que a luz lá fora ainda era cinzenta e tênue quando ela e Wiggins desceram as escadas da torre. Mas as cortinas da sala de visitas estavam abertas, a lareira no saguão já estava acesa, e o vigilante Wrolf, deitado diante do fogo, piscava ao tremeluzir das chamas. Quando a viu, sentou-se nas patas e continuou a fitá-la, seus olhos fulvos reluzindo na penumbra com um brilho afetuoso e acolhedor e a grande cauda abanando vagarosamente de um lado para o outro. Ela teve a sensação de que ele estava esperando para sair com ela.

“Já, já, Wrolf”, ela disse. “Só quero dar uma olhada na cozinha”.

Wrolf parou de abanar a cauda, e o brilho afetuoso de seus olhos de repente deu lugar a uma flama aterradora de raiva e desdém... Ela teve a ligeira impressão de que ele seria capaz de comê-la... Maria passou por ele a passos rápidos, assustada, e pousou a mão no trinco da porta da cozinha, ansiosa não só para ver a cozinha como para se afastar de Wrolf.

Mas então, apesar do medo, ela se deteve, recordando-se subitamen­te do que o Velho Pároco lhe dissera no dia anterior.

“A curiosidade excessiva não é recomendável nas mulheres. Corte o mal pela raiz, minha cara, enquanto ainda é tempo”.

Os cavalheiros, pelo visto, não apreciavam que as mulheres fossem curiosas — embora fosse difícil entender como alguém poderia descobrir o que queria saber sem ser curioso. De repente ela se lembrou que Sir Benjamin não lhe mostrara a cozinha ontem. Talvez não quisesse que ela a conhecesse ainda. Pareceu-lhe que essa omissão era uma espécie de avi­so na porta indicando que o acesso era privado. Talvez fosse melhor es­perar um pouco mais. Com uma incômoda frustração, tirou a mão do trinco e, enchendo-se de coragem, fez um esforço para virar e encarar o zangado Wrolf...

Mas ele não estava mais zangado... Sua cauda balançava novamen­te e os olhos faiscavam afeto. Correu até ele e acariciou-lhe a cabeçorra, envergonhada por ter pensado que ele seria capaz de comê-la. É claro que isso nem lhe passara pela ideia! Afinal, ele não a aceitara completamente dois dias atrás? Wrolf apenas a fizera se recordar de como se deve com­portar uma honrada Merryweather.

“Vou dar uma volta por aí com Vinca”, disse ela para Wrolf. “Venha comigo para tomar conta de mim”.

Wrolf imediatamente empinou-se e caminhou até a porta principal, ergueu o trinco com o focinho, abriu a porta com uma de suas patas enormes e conduziu-os, Maria e Wiggins, pelos degraus da escada e pelo caminho que levava aos estábulos.

Vinca, ou Alegria-da-casa, já estava bem acordada na sua baia quando Maria, Wrolf e Wiggins entraram. Ela relinchou prazerosamente e então endireitou-se, totalmente quieta, enquanto Maria, devagar e meio desajeitada — porque era a primeira vez que fazia isso —, colocava-lhe a sela e ajeitava as rédeas. Em seguida, por sua própria iniciativa, saiu trotando até o suporte para montar, que ficava junto da escada da porta dos fundos, e ali parou esperando que Maria viesse montá-la. O pequeno cortejo, Maria sobre Vinca, ladeada por Wrolf e Wiggins, partiu num trote alegre, deixando o pátio do estábulo, avançando pelo jardim e atravessando o portão sob o grande arco em direção ao parque. Não estava fechado, Sir Benjamin lhe dissera que o portão nunca ficava fechado. Ele gostava saber que os aldeões podiam vir procurá-lo a qualquer hora do dia ou da noite se estivessem em apuros...

Maria sabia exatamente o que queria fazer quando entrou no par­que. Sem um instante de hesitação, dirigiu-se para o leste. Ela não tinha permissão para ir até a Baía Merryweather, mas poderia explorar aquele lado do parque... Talvez conseguisse ver o mar a distância.

Qualquer pessoa, numa manhã como aquela, se sentiria feliz. A relva acastanhada cintilava ainda com o brilho da neve, estalando sob as patas ligeiras de Vinca, e os brotos que cresciam no alto das árvores, esticando-se para apanhar os primeiros raios do sol, manchavam com sua cor vermelho-rubi o céu laminado de ouro. O ar era como vinho, tépido mas ainda temperado com os ressaibos penetrantes da neve.

Maria não teve dificuldades dessa vez para se manter na sela. Cavalgou como se tivesse feito isso a vida inteira, manejando as rédeas e o chicote com facilidade, até mesmo levando a mão à cabeça de vez em quan­do para impedir que seu chapéu emplumado voasse para longe.

Não havia muitas árvores naquele lado do parque, e à medida que avançavam estas ficavam cada vez mais esparsas, faias, carvalhos e arbus­tos de tojo dourado dando lugar a grupos solitários de pinheiros retorci­dos pelo vento, e, aqui e ali, ajuntamentos de rocha cinzenta obrigando-os a passar por entre as moitas de urze. Ao sabor fresco e gélido da neve jun­tava-se agora o hálito salgado do mar. Maria nunca o experimentara an­tes, mas soube logo do que se tratava e o inalou com prazer.

As gaivotas eram cada vez mais numerosas, a chamá-la, a conduzi-la adiante. Ergueu os olhos para elas, rindo e acenando com o chicote. Fal­tava pouco agora para avistar o mar.

 

Mas ainda não foi naquela manhã que ela conseguiu vê-lo. A meio galope, foi detida por um som estranho e terrível, um grito alto e agudo que veio perpassando a melodia alegre do vento, o alarido das gaivotas e o ruído dos cascos de Vinca, fazendo seu coração se comprimir no peito.

Maria puxou o freio da pônei e parou para escutar, com o coração disparado por um medo repentino. À sua direita, mais além do sombrio cinturão de pinheiros, havia um fosso profundo repleto de arbustos de tojo e amora, e era dali que vinha o som aterrador. Em algum lugar lá em­baixo, havia uma criança ou animal ferido. Ela hesitou por um instante e então, engolindo o medo que se instalara como um caroço duro na sua garganta, desviou-se com Vinca do mar que ela tanto ansiava conhecer e cavalgou decidida na direção do bosque de pinheiros.

As paredes do fosso eram tão íngremes e pedregosas, recobertas por moitas de tojo tão espessas, que ela teve de apear e descer sozinha, deixan­do Vinca sob os pinheiros. Wiggins, dando uma rápida olhada nos tojos espinhosos, também decidiu permanecer sob os pinheiros, e o mesmo fez Wrolf, que se deitou ao lado de Wiggins com o focinho apoiado nas patas.

Maria ficou surpresa e magoada ao ver que Wrolf não a acompanha­ria; por alguma razão, achava que ele haveria de querer protegê-la. Isso a deixou ainda mais amedrontada. Mas seguiu em frente mesmo assim, abrindo caminho entre os espessos arbustos, mãos e rosto arranhando-se nos espinhos, e aquele grito medonho cada vez mais perto.

À medida que se aproximava do fundo do fosso, os arbustos iam fi­cando mais ralos, e então ela conseguiu ver lá embaixo um espaço aberto forrado de turfa recoberta de prímulas, qual um tapete verde e redondo todo bordado. Teria exclamado de admiração diante da beleza do lugar não fosse o horror que essa beleza escondia, pois no centro do gramado se en­contrava uma armadilha, e, presa na armadilha, uma lebre aos guinchos.

Maria não sabia que era uma lebre, já que nunca tinha visto uma até então. Achou que fosse um coelho grandão, e imediatamente se lembrou da conversa entre Sir Benjamin e o Velho Pároco no dia anterior e da apreensão de Sir Benjamin no caminho de volta para casa... Quem teria montado aquela armadilha?

Ela logo ficou sabendo. Ao afastar os arbustos para salvar a coitada da lebre, viu outra figura se aproximando rapidamente do outro lado do fosso, um homem alto todo vestido de preto: calças pretas enfiadas em galochas pretas, uma capa preta de pescador, uma barba preta desgrenhada, trazendo na mão um porrete de aspecto cruel e um galo negro pousado no ombro. Maria não conseguiu distinguir-lhe claramente as feições, pois o medo agora não só dera um nó na sua garganta como lhe toldava a vi­são, mas não teve dúvida de que fora ele que montara a armadilha e que iria matar a lebre com o porrete... Quer dizer, isso se ela não chegasse an­tes para salvar a pobrezinha...

Ela correu, e ele, ao avistá-la, correu também; mas ela chegou pri­meiro e, enrascando o pé numa toca de coelho, caiu de cabeça aos pés do sujeito no exato momento em que ele erguia o porrete para dar cabo da lebre.

“Deixe o coelho em paz!”, gritou, seu medo agora subitamente dis­solvido numa explosão de fúria e amor apaixonado pela lebre. “Deixe-o. Esse coelho é meu! É meu! Estou lhe avisando!”

O homem riu e levantou o porrete de novo. E bem poderia ter aca­bado com a lebre ali mesmo, e talvez com Maria também, não fosse pela repentina aparição de Alguém.

Desnorteada pelo medo, ainda arrebatada pela onda de amor e rai­va, Maria identificou a presença de um vulto moreno e magro se inclinan­do na sua direção, a cabeça cheia de cachos abaixada, como uma cabra pronta para atacar, e arremetendo-se em seguida contra o homem de pre­to às suas costas, num golpe certeiro e bem dado no estômago. Pelo fos­so ecoou um riso divertido e contente, como o grito de um cuco, a risada de um menino, claro como o repicar de um sino, a gargalhada de um duende, repleto de uma satisfação travessa.

“Rápido! Rápido!”, gritou a voz alegre, que soou tão familiar a Ma­ria quanto as batidas de seu próprio coração, a responder com a mesma alegria. “Segure a lebre enquanto solto a armadilha. Depois, corra! Logo virão mais deles. Os Homens do Bosque Sombrio nunca caçam sozinhos. Rápido!”

Correram até a armadilha, e Maria, agarrando o corpo ofegante da lebre com suas mãos delgadas, atordoada como estava não conseguiu ver mais do que os dedos fortes e morenos de seu companheiro, que habil­mente abria os hediondos anéis de aço que prendiam a pata esquerda tra­seira da lebre. Mas aqueles dedos morenos eram tão familiares para ela quanto os seus próprios dedos brancos.

“Agora corra!”, disse o menino. E saíram em disparada, o menino na frente, com a lebre nos braços, galgando ágil a rampa do fosso na direção de que viera Maria. Maria vinha atrás, ofegando e tropeçando no esforço de não o perder de vista. Chegaram ao alto do fosso e ali encontraram Vin­ca e Wiggins, ainda à espera. Wrolf também estava lá, mas dessa vez não estava deitado. Firmemente plantado sobre as quatro patas, sacudia vigoro­samente a cauda e rosnava como um trovão, seus grandes olhos flamejantes atentos às sombras sob os pinheiros, onde figuras escuras se esgueiravam, figuras altas e magras como as de um pesadelo, que se confundiam com os pinheiros mas causavam medo, como os homens de teixo no jardim.

Maria entendeu então por que Wrolf não descera com ela pelo fos­so; ficara ali para impedir que aquelas figuras assustadoras se aproximas­sem. Ele sabia melhor do que ela de que maneira lhe poderia ser mais útil.

“De volta para casa, a todo o galope!”, ordenou o menino. Maria apressou-se a montar, e lá se foram eles, o menino correndo de um lado, com a lebre nos braços, e Wiggins correndo de outro... Wrolf seguia atrás.

Quando avistaram o solar, Vinca interrompeu o galope e mudou o passo para um trote vagaroso e suave, pois já pareciam estar fora de pe­rigo. Maria recuperou o fôlego e a compostura e agora fitava o menino ao seu lado com assombro e alegria. Ele lhe retribuía o olhar, sorrindo.

Estava exatamente igual a como lhe aparecera no sonho na noite passada. Não mudara nada desde os dias em que ia brincar com ela no jardim da Square; a única diferença é que havia crescido, assim como ela, e continuava mais alto do que Maria.

Seus olhos negros ainda brilhavam de prazer ao mirá-la. O cabelo es­pesso e castanho ainda formava cachos miúdos a cobrir-lhe toda a cabe­ça, terminando na nuca com um último cacho, que se retorcia graciosa­mente, como um rabo de porco. Seu rústico colete marrom ainda era da cor das folhas da faia no outono, e o velho e surrado chapéu que ele agi­tava em uma das mãos ainda ostentava a comprida pena verde.

“Pisco!”, ela gritou em tom de censura. “Por que nunca mais voltou ao jardim da Square?”

“Estávamos ficando muito velhos para aquelas brincadeiras de crian­ça”, respondeu ele. “Você logo se aborreceria com elas, e assim que co­meçasse a se aborrecer deixaria de acreditar em mim. As pessoas só creem quando mantêm o interesse. Era melhor partir antes que isso acontecesse. Sabia que você viria para Moonacre. Sabia que voltaria a vê-la. Você não ficará entediada com o que temos para fazer aqui — garanto que não! Fi­cará amedrontada, mas entediada, nunca!”

“O que é que vamos fazer aqui?”, Maria exigiu uma explicação.

“Você logo saberá”, disse Pisco.

Maria conteve sua curiosidade, pois Pisco sempre detestara que lhe enchessem de perguntas, e, se ela insistisse, ele desapareceria, e ela não queria que ele sumisse logo naquele momento.

 

Dirigiram-se ao pátio dos estábulos, sentaram-se na borda do poço e cuidaram da lebre. Ela não estava mais assustada, ao contrário, aninha­ra-se junto a Pisco com a mais absoluta confiança. Ele lavou-lhe a pata machucada com água do poço e enfaixou-a com o lenço de Maria, rasga­do em tiras. Fez isso com tamanha habilidade que a lebre nem deu sinal de sentir dor.

“Pronto!”, disse ele quando terminou, colocando a criatura nos bra­ços de Maria. “Aí está. Ela agora é a sua lebre”.

“Lebre!”, exclamou Maria. “Pensei que fosse um coelho grandão!”

Pisco sorriu.

“Os coelhos são encantadores”, disse. “São uns sujeitinhos adoráveis, e é divertido tê-los como animais de estimação. Mas uma lebre é coisa totalmente diferente. As lebres não são bichos, são gente. São mais espertas, corajosas e amorosas, e têm sangue de fada nas veias. Ter uma lebre como amiga é algo especial. Nem sempre é possível, porque elas têm muita dignidade e são muito reservadas — ao contrário dos coe­lhos, que estão sempre aos nossos pés. Mas, se conseguir conquistar o amor de uma lebre... bem, é uma grande sorte. E você conseguiu”.

Maria olhou para a bela criatura deitada no seu colo, quieta e tran­quila, e afagou ternamente suas longas orelhas sedosas. Olhando-a agora com atenção, percebeu que era quase um insulto comparar uma lebre a um coelho. Ela tinha um porte muito mais avantajado e um ar de reale­za. O pelo era cinza-prateado, macio e fino, e as orelhas eram tão gran­des que mais pareciam bandeiras; contudo, apesar de grandes, eram bo­nitas e graciosas, forradas por dentro com um veludo cor-de-rosa extre­mamente fino. A cauda não era um reles pomponzinho branco, como a de um coelho, mas um jorro magnífico de pelos brancos que chamavam a atenção para a força e o esplendor de suas patas traseiras muito bem de­lineadas. As patas da frente eram bonitas também, mas não tão bem apru­madas quanto as de trás. Os olhos eram grandes, pretos e brilhosos, e os bigodes prateados, duas vezes mais longos que os de Wiggins...

Wiggins lançou para a lebre um olhar de profunda antipatia... Ela era um pouco maior do que ele, e sua beleza representava um desafio à beleza dele, e isso ele não estava disposto a deixar por menos. Sentou-se bruscamente e, dando as costas para a lebre, coçou-se, num estudado ges­to de insulto. Mas ela não pareceu se importar. Era evidente que se trata­va de uma lebre de temperamento sereno.

“Vou chamá-la de Serena”, disse Maria. “Sabe, Pisco, amei Serena desde o primeiro momento, e quando a encontrei naquela armadilha fi­quei tão furiosa de vê-la tratada daquela maneira que perdi o medo”.

Não houve resposta. Quando ergueu os olhos, viu que Pisco havia desaparecido, embora ela não tivesse feito nem uma única pergunta. Ape­sar de chateada, não ficou zangada, pois sabia que ele voltaria de novo... Tinham aquele trabalho a fazer juntos.

Maria entregou Vinca aos cuidados de Digweed, que acabara de che­gar com um sorriso que ia de uma orelha a outra, e, contornando o jar­dim, subiu a escada da porta principal, com Serena nos braços e Wiggins nos seus calcanhares. Sir Benjamin estava parado à porta, fumando um longo cachimbo de barro. Atrás dele, no saguão, a mesa estava pronta para o café da manhã, e a lareira queimava vividamente, com Wrolf dei­tado diante dela, já adormecido.

“Fiquei um pouco nervoso ao vê-lo entrar sem você”, disse Sir Ben­jamim

“Não viemos juntos para casa”, explicou Maria. “Espantamos al­guns caçadores. Wrolf ficou atrás para persegui-los enquanto eu vinha embora com Serena, minha lebre, que salvamos das mãos deles”.

Maria não contou nada a respeito de Pisco. Decidira não mencioná-lo a nenhum dos adultos; afinal, eles diriam que tudo não passava de fru­to da sua imaginação.

Ao ouvir sobre os caçadores, Sir Benjamin mostrou-se preocupado, mas não disse nada. Em seguida, fitou Serena, que o fitou também.

“Serena não vai virar recheio de torta”, disse Maria com firmeza. “Ela é minha amiga e nunca, jamais servirá de comida. Comer coelho já é um horror, mas comer uma lebre é um crime”.

“Minha cara”, respondeu Sir Benjamin, “raramente como lebre, e, quando como, em vez de usá-la como recheio de torta, prefiro cozinhá-la em vinho do porto — meu melhor vinho do porto —, uma forma de preparo digna de reis, muito apropriada para tão régio animal”.

“O senhor não vai cozinhar Serena”, disse Maria.

“Nem sonharia em fazer isso, minha cara”, replicou Sir Benjamin com verdadeira humildade.

E o respeito com que ele olhou para Serena só foi igualado pelo res­peito com que agora olhava para Maria. Sua jovem protegida, pelo que pôde perceber, não precisaria de muito comando. O mais provável, aliás, era que ela viesse a comandá-lo.

 

Maria tinha imaginado que seria terrivelmente difícil, naquela manhã, concentrar-se nas aulas com a srta. Heliotrópio. A Moonacre que a aguardava lá fora era tão maravilhosa, tão cheia de mistérios e aventu­ras, que durante o café da manhã fora assaltada pela sensação de que qualquer minuto passado dentro de casa seria uma tormenta.

No entanto, quando ela e a srta. Heliotrópio se sentaram diante da lareira no fresco recinto da sala de visitas, com a janela oeste aberta de par em par para o roseiral, todo o desânimo que ela sentia se dissipou, ins­talando-se no seu lugar uma gostosa sensação de paz. Para agradar a srta. Heliotrópio, depois do café ela trocara o traje de montaria pela túnica longa de linho verde, que combinava com o verde do estofado das cadei­ras e do tapete, o que a fez sentir-se adequada àquele adorável ambiente e também parte dele. Wiggins, que resolvera acompanhá-las, dormia de um lado da lareira, e Serena, acomodada num cesto de vime que Sir Benjamin encontrara para ela, dormia do outro. Wrolf ainda dormia diante da lareira do saguão, e para que ele pudesse entrar, caso quisesse, elas dei­xaram a porta entreaberta. Digweed trabalhava no jardim, e Sir Benjamin saíra para visitar um de seus arrendatários numa fazenda distante. Até onde Maria soubesse, ela e a srta. Heliotrópio eram as únicas pessoas na casa — além dos animais, que dormiam tão profundamente que não se po­dia dizer que estavam ali.

Maria olhou à sua volta. O cravo do qual ela tirara aquela melodia encantadora parecia vivo agora, depois de ter sido tocado, mas o tabulei­ro de xadrez e a caixa de costura ainda estavam inanimados. A caixa de costura, especialmente, a atraía como um ímã. Ela precisava levantar a tampa e descobrir o que havia lá dentro.

“Por favor, srta. Heliotrópio, posso costurar esta manhã?”, perguntou.

“De jeito nenhum”, disse a srta. Heliotrópio muito séria. “Você cos­tura às sextas-feiras. Hoje é segunda. Às segundas, você estuda a arte de declamar versos — arte em que ainda está longe de ter o desempenho que deveria”.

Maria abriu a boca para protestar, mas, ao voltar os olhos para o es­tranho e indistinto quadro sobre a lareira, fechou-a novamente. Paciên­cia. Paciência. O cavalinho branco e o animal fulvo, galopando juntos pela clareira da floresta, pareciam não ter pressa de chegar. Talvez estives­sem galopando havia anos; no entanto, nenhuma sombra de impaciência maculava a felicidade que emanava do quadro. Não havia pressa no cam­po. Ela se levantou, pegou os livros de poesia que estavam empilhados no assento sob a janela e abriu-os sobre a mesa de jacarandá.

Primeiro recitou de um livrinho com capa verde-oliva, um volume já bem manuseado de poesia francesa, que pertencia à srta. Heliotrópio. Con­forme contara a Maria, ela o ganhara quando jovem de um francês que fugira para a Inglaterra para escapar às frequentes revoluções que acon­teciam na França, vindo instalar-se num vilarejo da Cornualha do qual o pai da srta. Heliotrópio era, na época, o pastor.

A srta. Heliotrópio havia ensinado inglês a ele e lhe dera um livro de poesia inglesa, e ele, em troca, lhe ensinara francês e a presenteara com esse livro de poesia francesa. Seu nome, Jane Heliotrópio, estava escrito na folha de guarda com uma linda caligrafia, e embaixo ele acrescentara seu próprio nome, Louis de Fontenelle. Naquela manhã, ocorreu a Maria de perguntar à srta. Heliotrópio como ele era.

“Era um jovem muito bonito, alto e moreno”, disse a srta. Heliotrópio, “e muito aristocrático — um marquês. Muito talentoso também, ver­sado em línguas, músico, erudito e cientista. E, além disso, um homem de ação — na juventude, servira como oficial da cavalaria. Mas, infelizmente, como muitos franceses, tinha um defeito terrível: era ateu, um homem que não acreditava em Deus. Quando meu pai descobriu isso, proibiu-o de voltar à paróquia”.

“O que aconteceu a ele?”, quis saber Maria.

“Simplesmente partiu”, respondeu a srta. Heliotrópio com um leve suspiro. Embora morrendo de vontade de fazer outras tantas perguntas, Maria prendeu a língua entre os dentes e calou-se, pois o suspiro da srta. Heliotrópio soou como um ponto final na conversa.

A srta. Heliotrópio geralmente ouvia com atenção a leitura de sua pu­pila, corrigindo-lhe os erros com bastante rigor, na verdade, mas naquela manhã ela parecia um pouco desligada, como se o reavivar das velhas lem­branças tivesse despertado nela o desejo de se afastar e ficar sozinha.

“Chega de leitura por hoje, querida”, disse ela quando Maria chegou ao fim de um poema. “Gostaria agora que você mesma compusesse um pe­queno poema. Enquanto isso, subirei ao meu quarto para consertar as cor­tinas do dossel. Como você deve ter notado na nossa primeira noite aqui, parece que falta nesta casa alguém que cuide de cerzir e remendar”.

“Já sei sobre o que gostaria de escrever”, disse Maria. “Toquei uma melodia outro dia que saiu do cravo assim que o abri. Posso compor uma letra para ela?”

“Certamente, querida”, respondeu a srta. Heliotrópio. “Sei que pos­so confiar que você não ficará à toa, mas permanecerá sentada nessa ca­deira em posição que convém a uma dama, pés juntos, costas eretas, até que tenha terminado sua composição da melhor maneira que for capaz”.

Em seguida, erguendo a saia pelas laterais, desapareceu pela porta em direção à escada da torre.

Maria pegou a pena e o papel e ajeitou-se mais uma vez na cadeira diante do fogo. Por mais obediente que fosse, no entanto, não era talvez completamente obediente, e sua postura não era exatamente a mais con­veniente. Pois, embora mantivesse as costas eretas, balançava os pés com irritação, produzindo um som farfalhante entre as anáguas. Não gostava de ser contrariada daquela maneira. Queria ter visto a cozinha, o gato e o mar antes do café da manhã e não conseguira fazer nenhuma dessas coi­sas. E agora não podia abrir a caixa de costura. Não era tão bom assim estar em Moonacre.

“Canção”, ela escreveu no alto da folha de papel, a tinta respingando da pena raivosa... Ah, mas tinha visto Pisco. Vê-lo foi como uma recom­pensa por ter sido uma boa menina, por não ter insistido em entrar na co­zinha... Moonacre estava se revelando para ela, mas em seu próprio tempo e a seu modo. Ela precisava apenas ser paciente.

Sorriu, atirou no fogo a folha de papel borrada, pegou outra folha e começou de novo; para sua surpresa, e apesar de seu estado de espírito re­belde, as palavras brotaram simples e fáceis, encaixando-se na melodia que saíra do cravo. Não parecia que fossem criação dela. Parecia que emanavam do roseiral, entrando pela janela aberta como uma revoada de borboletas, pousavam na ponta da pena e derramavam-se sobre o papel.

 

             Canção

 

     Como uma lança, uma espada

     do mais fino e delgado feitio,

     é assim a minha amada, a mesma têmpera,

     o mesmo brio.

 

     Como a brisa, como a onda,

     como flechas aladas ao vento,

     é assim meu amor — ciranda,

     tão fugaz como um alento.

 

     Como um suspiro, uma canção

     que nas cordas se dedilha,

     como a aurora, o orvalho no chão,

     asas fugindo da armadilha.

 

     Como a lua, como um astro,

     em sua tola, frágil vaidade,

     procura em sonhos — espectro

     o amor que deixou saudade.

 

Quando terminou, correu a sentar-se ao cravo. Abriu-o e tocou, can­tando sua canção até o fim... Mas, não, a canção não era sua, era de ou­tra pessoa... Mais uma vez, teve a certeza de que alguém a escutava no ro­seiral. Correu até a janela e olhou para fora, e, por um breve momento, pensou ter visto uma pequena silhueta se movendo adiante, mais parecen­do fada que gente. Mas quando voltou a olhar não havia nada, exceto o emaranhado de roseiras e uma porção de passarinhos graciosos, com suas asas da cor do arco-íris. Cantavam gloriosamente naquela manhã, gor­jeando, chilreando, trilando, flautando, sibilando em louvor da primave­ra, com tal intensidade que espantava não estourarem a garganta. Qual deles estaria sibilando daquela maneira? Maria ouvira falar dos beija-flo­res, mas nunca soube que habitassem a Inglaterra. O sibilar, que come­çara como um sonzinho muito discreto, foi ficando cada vez mais alto, até que já não parecia um sibilar, mas uma enorme chaleira apitando no fogo. E não vinha do roseiral, mas da sala atrás dela. Ela se virou. Sen­tado diante da lareira, entre Wiggins e Serena adormecidos cada um no seu cesto, com os olhos fixos nas chamas e ronronando muito alto, esta­va um gato preto.

 

Zacarias.

Maria prendeu a respiração e fitou-o. Nunca em toda a sua vida de­parara com um gato como aquele. Era enorme, o dobro do tamanho dos gatos que vira em Londres. A pelagem negra era curta, mas brilhava com tal esplendor que parecia cetim. A cauda de quase um metro se estendia pelo chão atrás dele e parecia uma cobra preta e gorda; a ponta, ligeira­mente erguida, sacudia de um lado para outro, sugerindo que o ruído alto e assustador que Zacarias fazia ao ronronar nem sempre correspondia ao seu humor. Tinha uma cabeça nobre, com uma fronte larga e abaulada, e orelhas grandes, mas de lindo formato. O peito, como era de esperar ten­do em vista o volume do som que dele saía, parecia extraordinariamente forte, assim como as espáduas largas, os quadris e as patas robustas.

Era um animal de aspecto bastante imponente, e, quando virou a ca­beça e seus grandes olhos verde-esmeralda para contemplar Maria, ela to­mou um susto quase tão grande quanto no dia em que conhecera Wrolf. Lembrou-se de Sir Benjamin lhe dizendo que Zacarias tinha um tempera­mento solitário, por isso não quis se aproximar dele sem a sua permissão. Continuou exatamente onde estava e acenou-lhe com a cabeça.

Esse gesto de cortesia pareceu agradá-lo, pois ele se levantou e apro­ximou dela, recolhendo a cauda no ar em três voltas perfeitas e avançan­do pelo tapete verde-mar com uma dignidade quase comovente. Quando chegou até Maria, pôs-se a caminhar ao redor dela em círculos, cada cír­culo menor que o anterior, até finalmente roçar em sua túnica, fazendo-se tão perto que ela pôde sentir nas pernas a vibração de seu ronrom.

Só então ela se atreveu a inclinar-se e tocar-lhe a cabeça com os de­dos... Era deliciosamente macia... Ele não pareceu se incomodar. Passeou ao redor de suas pernas mais uma vez e então, subitamente, parou de ronronar e dirigiu-se à porta entreaberta da sala de visitas. Com o coração aos pulos, Maria seguiu-o pelo saguão.

Wrolf já estava acordado e, dessa vez, não manifestou nenhuma contrariedade diante das intenções de Maria — se bem que, agora, visitar a co­zinha não era exatamente a intenção de Maria, mas de Zacarias...

Zacarias ergueu-se sobre as pernas traseiras e golpeou o trinco da porta da cozinha com sua vigorosa pata direita. Entraram, ele, Maria atrás e, em seguida, Wrolf, que empurrou a porta para fechá-la.

Na cozinha, Maria mais uma vez se deteve a olhar. Era magnífica, quase do mesmo tamanho que o saguão, e toda revestida com lajotas de pedra que, de tão escovadas, tinham a brancura da neve. O teto era atra­vessado por grandes vigas de carvalho das quais pendiam mantas de tou­cinho, réstias de alho e ervas. Tinha dois fogões abertos, um para cozer guisados e tortas, e outro, com espeto, para assar carnes. Embutidos na parede, havia dois fornos ovais para assar pães, e à volta das paredes, pen­duradas em ganchos, vasilhas e panelas de todos os tipos, tão bem area­das que refletiam a luz tal qual espelhos. Em um dos cantos, ficava uma pia grande; junto à parede, um enorme guarda-louça de carvalho com lin­das porcelanas arrumadas em filas; e, no centro, uma mesa de carvalho. Havia várias portas que Maria imaginou levarem às despensas e à leiteria. Das janelas avistava-se o pátio dos estábulos, de modo que o sol da manhã enchia o aposento. Todo o lugar era alegre, luminoso, acolhedor e meticulosamente limpo. Não havia cadeiras, somente um banco de ma­deira encostado na parede e vários banquinhos de três pernas. Um desses banquinhos fora arrastado para perto da mesa e em cima dele, encaran­do Maria quando ela entrou, estava um anão corcunda preparando mas­sa. Fez um breve aceno para ela e, com o rolo que tinha nas mãos, apon­tou-lhe o banco junto da parede.

“Marmaduke Scarlet, às suas ordens, patroinha”, disse ele com voz esganiçada. “Sente-se, mas fique em silêncio. Não posso me entregar a conversas enquanto estou ocupado em criar uma torta de vitela”.

Apesar de seus modos rudes, ele mostrou-se cordial ao vê-la, pois seu rosto subitamente se iluminou com um sorriso tão largo que chegava até as orelhas, e os olhinhos pretos e cintilantes piscaram para ela cheios de satisfação. Mesmo assim, Maria agradeceu do fundo do coração que Wrolf, no outro dia, a tivesse impedido de entrar na cozinha sem ser convidada, pois algo em Marmaduke lhe dizia que ele não era uma pessoa com quem pudesse tomar liberdades. Atravessou a cozinha até o banco, sentou-se e cruzou as mãos humildemente no colo.

Zacarias, enquanto isso, subiu em outro banquinho ao lado do anão e ali ficou, ronronando, balançando a cauda e, de vez em quando, estican­do uma de suas enormes patas para servir-se delicadamente de uma por­ção de massa. Era evidente que aqueles dois eram muito ligados e compa­nheiros inseparáveis, e que o gato era privilegiado. E não havia muita di­ferença de tamanho entre eles, pois Zacarias era quase da mesma altura que o anão.

Sentada obedientemente no banco, Maria prestava atenção no anão. Ele não estava olhando para ela agora, absorto em trabalhar a massa, e assim ela pôde dar uma boa observada nele. Nunca vira uma criatura como aquela. Seus lábios se entreabriram de pasmo.

Devia ser bem velho, pensou ela, pois a extremidade do bigode que circundava todo o seu rosto, como a borda de gordura de um presunto, era muito branca, assim como suas sobrancelhas espessas. Exceto pelo bi­gode, o rosto era bem barbeado, moreno como noz-de-galha e todo cris­pado com centenas de pequenas rugas. O nariz era tão acanhado que quase não se podia vê-lo; mas a parte visível era evidentemente muito sensível, pois tremia enquanto ele trabalhava, como o nariz de um coelho. Seu sen­tido do olfato, como o de todos os bons cozinheiros, era muito bem de­senvolvido, logo se notava. A boca formava uma grande meia-lua de ge­nerosidade quando ele sorria, e se contraía com a determinação de uma ratoeira quando ele a fechava. As orelhas morenas eram grandes demais para o seu tamanho, mas lindamente delineadas e delicadamente pontia­gudas, como as de um fauno. Os braços também eram grandes demais para o seu tamanho, e quando ele os soltava ao lado do corpo suas gran­des mãos morenas quase tocavam os tornozelos. Os pés, ao contrário, eram pequenos e delicados como os de uma criança, mas as pernas eram mui­to arqueadas, e a corcunda, tão pronunciada quanto a de Mr. Punch.

Contudo, apesar de sua compleição tão bizarra, era uma figura agra­dável de olhar, por causa do asseio reluzente de sua pessoa e do colorido de suas roupas. Trazia na cabeça um capuz escarlate; o casaco e as calças curtas eram roxos e usados com um colete verde-esmeralda, bordado com papoulas vermelhas. As meias de lã também eram roxas, e os sapatos marrons, ornamentados com fivelas de prata brilhantes. Usava um aven­tal com peitilho, alvíssimo, para proteger a roupa enquanto cozinhava.

Era um prazer assistir Marmaduke Scarlet trabalhando a massa, pois, se alguma vez existiu um mestre artesão era seu ofício, esse homem era Marmaduke. Empunhava o rolo de massa como se fosse um cetro real, e a massa que fazia era tão leve que mais parecia uma esponja quando ele a abria sobre a mesa. Do seu lado havia uma grande travessa com pedaços suculentos de carne de vitela e presunto, ovos cozidos, salsa e cebola pi­cada. Maria ficou com a boca cheia d’água ao vê-la e, quando ele esten­deu a massa branca sobre o recheio, ela engoliu em seco. Em seguida, ele começou a decorar a cobertura, moldando flores e folhas de massa com seus dedos habilidosos, com uma arte de fazer inveja a qualquer escultor.

Quando a torta ficou pronta, ele a levou para assar em um dos fo­gões, onde a lenha queimava lentamente, e, ajeitando-a no forno, cobriu-a com uma tampa de ferro e, por cima, um monte de cinzas quentes. Di­rigiu-se então a um dos fornos de pão e abriu a portinhola de ferro; den­tro dele, Maria viu os feixes de lenha se dissolvendo em cinza quente e os tijolos que revestiam suas paredes abrasados pelo calor. Marmaduke ras­pou as cinzas para o lado, retirou o pano branco que cobria dois grandes tabuleiros que estavam no chão, onde os pães ficaram descansando para crescer, colocou-os no forno e fechou a porta com uma pancada forte.

Em seguida, atravessou uma das portas na parede, pela qual Maria avistou uma despensa fria com arcos de pedra, e voltou com uma grande tigela azul cheia de ovos e um pote azul com nata; então, subindo mais uma vez no banquinho, começou a preparar um syllabub. A receita levou doze ovos, meio litro de nata e canela para aromatizar.

“Será que a srta. Heliotrópio”, pensou Maria com seus botões, “vai conseguir comer syllabub depois daquela torta?”

Mas ela nem precisou se preocupar com isso, pois, pelo visto, o na­riz sensível de Marmaduke já tinha farejado a distância o aroma do esto­jo com pastilhas de menta na bolsa da srta. Heliotrópio. Assim que ter­minou de bater o syllabub, preparou para ela uma deliciosa coalhada sim­ples, com um pouco de brande e noz-moscada salpicada por cima.

“E, para servir-lhe de entrada”, ganiu ele, interrompendo subita­mente um silêncio que já durava muito tempo, “um ovo escaldado”.

Pelo visto, os preparativos culinários de Marmaduke Scarlet estavam terminados por ora. Ele empilhou os utensílios com cuidado, pegou uma grande vasilha vermelha de cerâmica e encheu-a com a água quente da chaleira sobre o fogo... Maria tomou coragem e finalmente falou:

“Se for lavar a louça, posso secá-la?”, perguntou humildemente.

Marmaduke Scarlet ponderou.

“Você é capaz de afirmar, com abso­luta certeza, que não é do tipo que costuma quebrar as coisas?”, indagou com firmeza.

“Creio que não”, disse Maria. “Quer dizer, não sei, de fato, porque nunca fiz isso antes”.

“Você costuma deixar cair sua escova de cabelos quando se penteia de manhã?”, insistiu Marmaduke.

“Não, nunca”, assegurou Maria.

“Então, pode secar”, disse ele cordialmente. “Pode pegar um dos pa­nos de prato ali pendurados, trazer um banquinho até aqui e me conceder o benefício de sua ajuda durante essas abluções que necessariamente, em­bora infelizmente, sempre acompanham o exercício da arte culinária”.

Marmaduke Scarlet, pelo visto, compensava sua pequena estatura usando palavras complicadas na conversa. Ocorreu a Maria que, se ti­vesse de passar muito tempo fazendo alguma tarefa com ele, seria bom trazer um dicionário no bolso.

Ela pegou o pano de prato e o banquinho, conforme ele ordenara, e os três, Maria, Marmaduke e o gato Zacarias, se reuniram em fila junto da mesa, Marmaduke de pé no seu banquinho, Maria e Zacarias sentados. Marmaduke lavava, Maria secava e Zacarias só ronronava. Agora que não estava mais cozinhando, Marmaduke parecia muito jovial e bem-humora­do, e Maria então se atreveu a lhe fazer a pergunta que queimava em sua língua desde que deparara com o tamanho diminuto de Marmaduke.

“Por favor, sr. Scarlet”, disse, “é o senhor que cuida de mim no meu quarto, acendendo a lareira e trazendo água quente, leite e biscoitos de açúcar?”

Marmaduke abriu outro de seus gloriosos, amplos e benevolentes sorrisos, que iam de orelha a orelha, e respondeu com sua voz esganiçada: “Naturalmente, patroinha. Quem mais nesta propriedade, além de você mesma, teria estatura tão delicada para atravessar o vão que leva ao seu dormitório? E se, por alguma razão, eu não quiser passar pelo saguão, pos­so trepar no cedro do jardim e entrar no seu quarto pela janela para pres­tar-lhe esses pequenos serviços que fazem parte das minhas obrigações”.

“Obrigada, oh, obrigada”, disse Maria. “E é o senhor que separa aquelas roupas encantadoras para mim e deixa sobre elas os ramalhetes de flores?”

Mas agora, puxa vida!, ela dissera a coisa errada. O rosto de Mar­maduke escureceu como uma nuvem de tempestade, o sorriso desapare­ceu abruptamente de suas orelhas como coelhos se escondendo na toca, as espessas sobrancelhas se franziram, e faíscas saíam dos seus olhos. Quan­do ele falou, sua voz deixou de ser um ganido e vibrou na direção dela como o ribombar de um trovão.

“Minha aparência por acaso sugere que sou a criada pessoal de uma dama?”, ele demandou. “Algum homem que tenha respeito por si próprio haverá de se preocupar com fitas, rendas e as futilidades femininas? Per­mita-me informar-lhe, patroinha, que se existe alguma coisa neste universo para a qual não tenho a menor inclinação é uma mulher. E o meu amo, o terra-tenente, nutre em seu íntimo o mesmo sentimento de aversão pelas filhas de Eva que habita o peito deste seu humilde servo. Antes que você e sua governanta pisassem nos degraus desta mansão, nenhuma mulher, nos últimos vinte anos, cruzou estas portas com sua sombria presença”. Aquilo foi horrível.

“Mas a srta. Heliotrópio e eu não temos culpa de ter nascido mulhe­res”, gaguejou Maria.

“Não me lembro de tê-las culpado por isso”, disse Marmaduke. “Te­nho a nítida impressão de que as recebemos com toda a cortesia e o me­lhor da nossa culinária, e tudo fizemos para aliviar a infeliz circunstância que não admitia circunlóquio”.

“Vocês têm sido muito gentis”, gaguejou de novo Maria.

O sorriso de Marmaduke, antes colado nas orelhas, agora se pren­dera aos cantos de sua boca.

“Talvez as circunstâncias tenham nos atingido, ao terra-tenente e a mim, com mais gravidade do que o necessário”, ele teve a bondade de ad­mitir. “Você, patroinha, é de tenra idade; a natureza feminina se desenvol­ve com o passar do tempo, como todos os maus hábitos, e é menos repro­vável nos estágios iniciais. Quanto à sua governanta, ela é certamente de qualidade superior à outra duenha que aqui residia antes, com a outra pa­troinha, e nunca parava de fazer perguntas. Vendo-a pelo buraco da fecha­dura percebi que se trata de uma mulher de grande e piedoso caráter e di­gestão fraca, características que, ao concentrarem a atenção de uma dama à sua alma e ao seu estômago, não permitem que ela se entregue à curio­sidade feminina sobre os assuntos alheios, o que torna a sua presença uma tentação para os homens cujo domicílio ela compartilha”.

Maria ficou ruborizada e conteve-se para não perguntar quem era, então, que lhe preparava as roupas. Também teve receio de indagar sobre a outra patroinha e a outra governanta, embora estivesse morrendo de vontade de saber quem eram. Tampouco se atreveu a perguntar a Mar­maduke Scarlet onde ficava o quarto dele, embora também estivesse mor­rendo de vontade de sabê-lo, pois não conseguia atinar em que lugar da casa ele poderia estar.

“Patroinha”, disse Marmaduke, “o fato de que esteja disposto a ver com bons olhos a sua presença aqui não significa que queira vê-la zanzando pela minha cozinha o dia inteiro. Não quero. A cozinha é meu território privado, e só a meu convite se entra nela. Esse convite lhe será transmiti­do vez ou outra, por mim ou por Zacarias, o gato”.

E então, com um aceno de mão e polida mesura, ele deu a entender, tal qual um rei faria, que a entrevista estava terminada. Maria inclinou-se diante dele e retirou-se humildemente, acompanhada por Zacarias, que a levou até a porta da cozinha e, postando-se nas patas traseiras, levan­tou o trinco para ela.

Ela disparou pelo saguão, atravessou a sala de visitas e subiu as es­cadas da torre até o quarto da srta. Heliotrópio.

“Srta. Heliotrópio”, resfolegou, “existe um cozinheiro, um anãozinho engraçado e assustador com uma barba branca e um gorro escarlate, que fala de um jeito muito difícil e não gosta de mulheres... Mas ele não se incomoda tanto conosco porque você é muito boa e eu sou muito jovem. É ele que traz água para nós e acende nossas lareiras, mas não cuida das minhas roupas... Srta. Heliotrópio, quem cuida das minhas roupas?”

Com a agulha de cerzir numa das mãos, a srta. Heliotrópio inter­rompeu o conserto que fazia nas cortinas.

“Alguma mulher”, disse ela. “Digam eles o que disserem, Maria, com essa história de que há vinte anos nenhuma mulher põe os pés nesta casa, mas o fato é que existe uma mulher por aqui... Veja isto”.

Abriu a gaveta de baixo de sua cômoda e chamou Maria para olhar. Jeitosamente arrumados na gaveta havia três fichus de renda e três toucas ar­rematadas com fita da cor da heliotrópia. E, entre as dobras dos fichus, três sachês de lavanda feitos com musselina branca, cada um deles bordado com uma flor heliotrópica diferente — violeta, amor-perfeito e açafrão-de-outono.

“É uma legítima renda de Honiton”, disse a srta. Heliotrópio numa espécie de êxtase. “Uma Honiton legítima — extremamente cara —, com a qual sempre sonhei. E essas fitas, com a minha cor favorita, lembram meu nome, e as flores nos sachês... Nunca vi bordado tão perfeito. Eu lhe per­gunto, Maria, poderia algum homem, um simples homem, ter arrumado esta gaveta repleta de deleites que você acaba de ver?”

“Não”, disse Maria.

 

Quando acordou na manhã seguinte, Maria descobriu, para sua grande surpresa, que não era o traje de montaria que a aguardava. Em vez dele, encontrou um discreto vestido azul-escuro com gola e punhos de linho branco simples, uma capa azul-escura e um chapéu de palha azul-escuro com fitas azuis-violeta.

Maria não gostava muito dessa roupa. Apesar das fitas, era um tra­je sóbrio e sério, que a fazia sentir-se igualmente séria. No entanto, sabia que era melhor deixar isso de lado e vesti-lo, pois entendia agora que tudo que fazia, dia após dia, não dependia inteiramente da sua escolha. Ela es­tava, por assim dizer, cumprindo ordens. E, pelo visto, as ordens hoje não incluíam cavalgar.

Colocou o vestido azul sem pressa, seu estado de espírito combinan­do com o dia nublado que avistava lá fora pela janela. Não havia sol para contemplar hoje, nem céu azul. Nuvens cinzentas pairavam sobre o mun­do. Mas estava quente e calmo, e o cantarolar dos pássaros no roseiral chegava até ela pela janela oeste. Esperava que não chovesse, pois sabia que Digweed saíra de charrete logo cedo para fazer compras na cidade­ mercado situada além das colinas que rodeavam o vale, e não queria que ele se molhasse.

Com a capa sobre o braço e o chapéu sacolejando na mão, desceu para a sala de visitas, deixando Wiggins dormir um pouco mais. Abriu a janela e olhou para as moitas de rosas onde agora brotavam folhas tenras e novas. Os pássaros pareciam mais numerosos do que nunca naquela manhã, suas asas coloridas como flores destacando-se entre os galhos. Cantavam com tanta vibração que ela também sentiu vontade de cantar. Cruzou a sala, abriu o cravo e cantou a canção que ela libertara dele.

Cantava ainda quando, mais uma vez, percebeu que havia alguém a escutá-la no roseiral. Levantou-se, dirigiu-se até a janela e olhou para fora. Dessa vez, quem a escutava não era o pequeno vulto feérico que no outro dia se evaporara como um sonho, mas um velho alto que surgiu dentre as roseiras, aproximou-se da janela e estendeu-lhe a mão.

Era o Velho Pároco. Sem dizer palavra, Maria vestiu a capa e o cha­péu, subiu no peitoril da janela, cruzou o batente, tomou-lhe a mão e sal­tou para fora; de mãos dadas e em silêncio, atravessaram o roseiral e o jardim do solar e saíram no parque.

O Velho Pároco caminhava ligeiro, avançando com longas passadas, como um homem jovem. Parecia muito decidido, na verdade, e um pou­co carrancudo; sua mão magra segurava a de Maria com firmeza e força. Ele tinha planos para ela, Maria sabia disso. Mas ela não estava com medo. Quando ele se voltou e sorriu-lhe, foi muito mais do que não sen­tir medo; ela encheu-se de ânimo. Teve a sensação de que sua introdução a Moonacre estava prestes a terminar e que hoje o propósito de sua pre­sença ali iria se revelar.

“Aonde vamos, senhor?”, ousou perguntar.

“Para a igreja”, respondeu o Velho Pároco. “Há muitas coisas lá que quero lhe mostrar. Depois tomaremos o café da manhã juntos na casa pa­roquial. É cedo ainda, mas há muito a dizer e fazer, e é bom começarmos logo”.

“Não ficarão preocupados comigo se eu não voltar para o café da manhã?”, indagou Maria.

“Não”, respondeu o Velho Pároco. “Deixei um recado com Zacarias, o gato”.

 

Pegaram o caminho que o coche fizera no domingo e, depois de atra­vessar o portão quebrado, saíram na rua do vilarejo e chegaram ao pór­tico. Subiram pelo cemitério até a igreja, e o Velho Pároco empurrou a pe­sada porta para abri-la. Em seguida, curvando-se reverentemente para Maria, indicou-lhe para entrar na frente.

“Minha nossa!”, exclamou ela espantada. “A igreja está cheia de crianças”.

“As crianças acordam muito cedo”, disse o Velho Pároco, “e não dão sossego aos pais, atrapalham a mãe enquanto ela prepara o desjejum, ou vão atrás do pai quando ele sai para ordenhar as vacas, irritando-as com seu barulho e algazarra. Por isso, reúno-as aqui e mantenho-as en­tretidas até que o seu café da manhã esteja pronto”.

Entraram em silêncio, e Maria teve alguns minutos para olhar à sua volta antes que as crianças a notassem. Havia uns trinta meninos e meni­nas na igreja, nenhum deles com mais de 12 anos, e vários bebês de dois ou três anos. Pareciam flores com suas roupas coloridas e formavam gru­pos alegres espalhados por toda a igreja, tagarelando como gralhas e atentos a várias brincadeiras misteriosas.

“Crianças!”, chamou o Velho Pároco, conduzindo Maria pelos degraus da capela-mor até o espaço aberto. “Crianças! Maria Merryweather está conosco”.

Falou como se fosse algo muito importante, e as crianças evidente­mente achavam o mesmo, pois abandonaram suas brincadeiras e correram a se juntar ao redor de Maria, sorrindo para ela com tímida cordialidade.

“Mostrem a ela a Nossa Senhora e o Sino”, ordenou o Velho Pároco. “Mais tarde, cantaremos para ela a Canção do Sino”.

Uma linda garotinha, quase da mesma altura que Maria, tomou-lhe a mão direita. Tinha cabelos claros e encaracolados e trajava um vestido azul da cor do miosótis; Maria soube mais tarde que se tratava de Prudence Favo de Mel, filha do estalajadeiro. Do outro lado, um rechonchudo garoto moreno, de seus quatro anos mais ou menos, cuja robustez, morenice e brilho lembravam um cavalo alazão, agarrou-se como carrapicho à sua mão esquerda. Chamava-se Peterkin Pimenta, como lhe disseram as outras crianças.

A julgar pelos padrões de hoje, as crianças de Silverydew não tinham muitos brinquedos na igreja; na verdade, havia apenas dois, mas elas estavam mais do que satisfeitas com o que tinham, por isso não havia ra­zão para ter pena delas. E, ao olhar para aqueles tesouros com os olhos delas, Maria compreendeu perfeitamente o motivo de sua satisfação.

Primeiro elas lhe mostraram o Sino que ficava no chão, perto do púl­pito. Era um sino muito antigo que, segundo contaram as crianças, pertencera à igreja de um mosteiro que havia outrora no topo da Colina do Pa­raíso. Sete vezes ao dia, o sino tocava, convocando os monges às suas ora­ções, e as pessoas no vale, ao ouvirem o Sino, oravam também. Tangeram o sino para mostrar a Maria como era doce o som que ele produzia. O Ve­lho Pároco, disseram, deixava que elas o tocassem quando brincavam de ser monges, ou de batismos e casamentos, ou de tocadores de sino.

“Os sinos da igreja de Silverydew são famosos”, explicaram a Ma­ria. “Pode-se ouvi-los a quilômetros de distância. O Velho Pároco com­pôs uma canção para eles. Vamos cantá-la para você. Todos eles têm nome, sabia? E, ao serem pendurados no campanário, foram batizados igualzinho aos seres humanos. Foram benzidos com o sinal-da-cruz e un­tados com óleo, sal e vinho”.

Mas Maria não conseguiu olhar o Sino direito porque Peterkin Pi­menta começou a puxá-la pela mão, arrastando-a até um nicho na pare­de onde se encontrava a estátua de uma Nossa Senhora com seu Bebê nos braços. Era uma estátua de madeira pequena, não muito maior que uma boneca, e tão desgastada pelo tempo e pelas mãos carinhosas das inúme­ras crianças que as feições de Mãe e Filho quase haviam se apagado. Mas as dobras do manto da Nossa Senhora eram elegantes e encantadoras, as­sim como a pose altiva de sua cabeça, e o Bebê trazia a mão erguida, num gesto de bênção, e um sorriso no rosto. As crianças haviam colocado va­sos de flores no nicho, um de cada lado da estátua.

“Sempre oferecemos alguma coisa bonita para a Nossa Senhora”, explicou Prudence Favo de Mel. “Às vezes, no inverno, são apenas grãos e penas de pássaro que recolhemos por aí. Mas sempre trazemos algo. Amamos a Nossa Senhora. Gostaríamos de trazer-lhe conchas da praia, mas temos medo de descer até lá por causa Deles”.

Peterkin Pimenta falou então pela primeira vez, expressando-se com uma voz grave e profunda que, vinda de alguém tão novo, causava enorme surpresa.

“Quem dera eu tivesse um porrete bem grande”, disse. “Quem dera eu tivesse um porrete bem grande e cheio de pontas para afugentá-los!”

“Andaram roubando as galinhas do seu pai de novo, Peterkin?”, perguntou uma das crianças.

“Quatro galinhas”, disse Peterkin secamente. “Ontem”.

“São os Homens do Bosque Sombrio”, Prudence explicou a Maria num sussurro. “Vivem no bosque de pinheiros e são muito perversos. Não permitem que as pessoas vão até a Baía Merryweather, embora a baía não lhes pertença. E montam armadilhas cruéis para os animais silvestres, além de roubarem nossas galinhas, patos e gansos. Roubam mel das col­meias, também, e frutas dos pomares. Somos felizes em Silverydew, mas nossa felicidade não é perfeita por causa deles. Mas ninguém sabe como impedi-los de tanta maldade”.

Um breve arrepio percorreu a espinha de Maria. Quer dizer então que aqueles homens malvados viviam no bosque de pinheiros? Aquele bosque que ficava tão próximo dos muros do solar? Não era de admirar que ela tivesse medo dele. Maria teve vontade de fazer algumas perguntas a Prudence, mas outra criança a chamava para ver a Capela dos Merry­weathers, o cavaleiro e os dois animais.

“Pisco está na capela”, informou o Velho Pároco. Deixem que Pisco lhe mostre a capela. Ele tem esse direito. O resto de vocês, fiquem aqui fora”.

Então Pisco estava ali! Maria de repente esqueceu seus medos, feliz de saber que Pisco estava ali também, e na Capela dos Merryweathers. E que alegria descobrir que o Velho Pároco e as crianças falavam de Pisco como se ele fosse um menino de carne e osso! Ela sempre soubera que sim, embora em Londres ninguém, exceto ela, fosse capaz de vê-lo. Mas ali, pelo que parecia, outras pessoas também o viam. As crianças e o Velho Pároco a acompanharam até os dois degraus desgastados que levavam até a capela e então pararam. Maria entrou sozinha.

Era uma câmara de pedra de teto baixo, semelhante a uma caverna, e quase toda ocupada por uma grande sepultura de pedra. No topo da se­pultura, havia uma efígie em tamanho natural de um cavaleiro em arma­dura completa, com elmo na cabeça, o visor levantado a mostrar sua face sombria e séria, as mãos protegidas com cota de malha cruzadas sobre o peito. A grande espada de punho transversal que repousava ao seu lado não era entalhada na pedra, como o resto da efígie — era uma espada de verdade, torta e enferrujada pela idade, mas real. Porém, mais ainda do que a visão da grande espada, o que chamou a atenção de Maria foram os dois animais esculpidos na parte de cima e de baixo do túmulo. A cabeça do cavaleiro descansava sobre a figura reclinada de um cavalinho branco, e seus pés se apoiavam numa criatura que era a imagem viva de Wrolf. Depois disso, não foi surpresa para Maria encontrar o lema dos Merry­weathers entalhado em latim ao redor da sepultura. Enquanto ela pro­nunciava as palavras esmaecidas, quase apagadas, da inscrição, Pisco sal­tou de trás da sepultura, brandindo um esfregão. Ao vê-la, abriu-lhe um largo sorriso, que ela retribuiu, e Maria teve a impressão de ver o sol sur­gir de repente.

“O que está fazendo com esse esfregão?”, ela perguntou.

“Esfregando Sir Wrolf”, respondeu Pisco. “Faço isso quase todas as manhãs. E os animais também, mais o piso e tudo que está ao meu alcan­ce. Não acha que está uma beleza?”

Tudo parecia muito limpo, e os pequenos ramalhetes de flores colo­cados aqui e ali ao redor da sepultura, um entre os dedos de pedra de Sir Wrolf, outro preso jeitosamente atrás das orelhas do cavalinho branco, ti­nham um aspecto familiar.

“É você, Pisco, que prepara as roupas para mim todas as manhãs e deixa sobre elas um ramalhete de flores?”, perguntou Maria.

“Sou eu que colho as flores”, ele respondeu.

“Quem separa as minhas roupas? E quem colocou aquelas coisas adoráveis na gaveta da srta. Heliotrópio? A quem pertenciam o meu livro de preces e o traje de montaria?”, quis saber Maria.

Pisco se limitou a sorrir.

“Deve haver outra pessoa pequena neste lugar”, disse Maria. “Pois somente alguém muito pequeno conseguiria passar pela porta do meu quarto”.

Mas Pisco apenas sorriu, debruçando-se em seguida sobre o rosto sério de Sir Wrolf com o esfregão. Maria notou que atrás da sepultura havia um balde com água e uma barra de sabão do tamanho de uma beterraba.

“Não é à toa que ele parece tão sério”, disse Maria, enquanto Pisco aplicava o esfregão com mais empenho do que ternura. “Se você fosse um pouco mais gentil, talvez ele sorrisse”.

“Dizem no vilarejo que, no dia em que Eles forem dissuadidos de sua maldade, Sir Wrolf sorrirá”, retrucou Pisco. “Ele é o fundador da família Merryweather, como você sabe. Foi o escudeiro do rei Eduardo I. Por sua culpa Eles começaram a se portar tão mal. Ele deve ter ficado muito abor­recido com isso. Não admira que sua alma não consiga entrar no Paraíso”.

“O pobre homem não está no Paraíso?”, indagou Maria cheia de pena.

“Dizem no vilarejo”, explicou Pisco, “que o lugar mais próximo do Paraíso a que ele pode chegar é a Colina do Paraíso, por causa da malda­de que despertou neles. Contam que ele cavalga em torno da colina, sus­pirando e se lamentando pelo que fez. Dizem que está arrependido agora, mas só poderá entrar no Paraíso de verdade se encontrar um jeito de im­pedir que Eles continuem a atormentar o vale”.

Maria olhou para seu ancestral com piedade e preocupação. Embo­ra fosse uma delícia cavalgar, e a Colina do Paraíso fosse um lugar encan­tador, após cavalgar tantos séculos por ali Sir Wrolf devia estar exausto tanto da sela como da colina.

“Será que se Eles fossem convencidos a mudar sua conduta e ele sorris­se seria um sinal de que conseguiu entrar no Paraíso?”, perguntou Maria.

“Sim”, respondeu Pisco.

“Mas, Pisco, quem são Eles, e o que fez Sir Wrolf?”

“O Velho Pároco é quem sabe contar direito essa história”, disse Pis­co. “Agora, ouça! As crianças estão cantando”.

Pisco guardou o balde e o esfregão num canto, e juntos voltaram aos degraus da capela-mor, onde o Velho Pároco, com o violino sob o quei­xo, e as crianças sentadas em volta dele, na escada, cantavam a Canção do Sino, ao som do instrumento. Pisco e Maria se sentaram perto das crianças, e não demorou muito para que Maria decorasse a letra e a me­lodia e se juntasse à cantoria. Era aquela mesma letra que ela não conse­guira entender no primeiro domingo.

 

     Canção do sino

 

Lá no alto da torre da igreja,

benzidos com o sinal místico,

o óleo, o sal e o vinho que neles estão

desde o dia da unção,

os grandes sinos aguardam em silêncio,

durante a longa morte da noite,

pelo triunfo da ressurreição,

pela luz do renascimento.

Quando a aurora surgir da escuridão,

vitoriosa sobre a dor,

a música agitará o campanário

e a primavera despertará de novo.

 

     Coro

Toque de novo, doce Maria,

Toque de novo, Gabriel,

Toque mais uma vez, Douce e João,

Repique alto, sino tenor.

Cabeças grisalhas, erguidas aos céus,

entoam o antigo grito de júbilo

de vida na Terra. Vida na Terra.

Vida.

 

Quando homem e donzela se casarem,

na alegria e na tristeza,

quando os bebês forem ofertados a Deus

por todos os anos que virão,

quando o carvalho e o milho estiverem maduros

depois de dias cinzentos e ensolarados,

quando a colheita for celebrada

com satisfação e louvor,

corações agradecidos se elevarão

ao trono de Deus no firmamento,

a música agitará o campanário

e do amor nascerá a alegria.

 

     Coro

Toque de novo, doce Maria,

Toque de novo, Gabriel,

Toque mais uma vez, Douce e João,

Repique alto, sino tenor.

Cabeças grisalhas, erguidas aos céus,

entoam o antigo grito de júbilo

de amor na Terra. Amor na Terra.

Amor.

 

A terra encoberta por um manto de neve

sob a estrela de Natal,

pastores nas encostas,

sábios vindos de longe,

o boi e o asno no estábulo

as crianças em torno da Arvore,

o pai e a mãe,

os vizinhos, você e eu —

todos cantando louvores,

adorando o Rei que acaba de nascer,

enquanto a música agita o campanário,

fazendo os céus vibrarem.

 

     Coro

Toque de novo, doce Maria,

Toque de novo, Gabriel,

Toque mais uma vez, Douce e João,

Repique alto, sino tenor.

Cabeças grisalhas, erguidas aos céus,

entoam o antigo grito de júbilo

de paz na Terra. Paz na Terra.

Paz.

 

Quando terminaram de cantar, Pisco disse: “Por gentileza, senhor, po­deria contar a Maria a história de Sir Wrolf Merryweather e os Homens do Bosque Sombrio?”

O Velho Pároco dirigiu seus olhos luminosos e penetrantes para Ma­ria.

“Tem certeza de que quer ouvi-la?”, perguntou. “Às vezes, Maria, quando ouvimos uma história, somos compelidos a fazer coisas que não teríamos de fazer se não a tivéssemos ouvido. Sir Benjamin, pelo que vejo, não lhe contou a história, talvez com receio de colocar sobre você, que ainda é uma criança, um fardo que caberia a uma mulher”.

Essa última frase fez Maria se decidir. Na opinião dela, nenhuma menina adolescente era criança.

“Conte-me, por favor”, disse ela com cer­ta arrogância.

As crianças suspiraram e ficaram agitadas, remexendo-se como um bando de pássaros. Em seguida se aquietaram e silenciaram. No silêncio, o Velho Pároco pôs o violino de lado e contou a história.

 

“Séculos atrás”, começou ele, “Sir Wrolf Merryweather recebeu um lote de terra neste vale encantador, como recompensa por seus feitos co­rajosos, e nele construiu o solar onde Sir Benjamin vive hoje, estabelecen­do-se ali com seus soldados, seus cozinheiros e ajudantes de cozinha, seu bobo da corte, seus caçadores, seus falcões, sabujos e cavalos. E ali viveu, caçando, comendo, bebendo e divertindo-se até saciar seu coração. Pois era um homem jovial, grande e vermelho como um viking, com a cora­gem de um leão, o riso semelhante ao rosnado de um leão e um apetite leonino na hora das refeições.

“Mas apesar de toda a sua coragem e jovialidade, e do devido apre­ço pela boa comida, estava longe de ser um homem totalmente virtuoso, pois era de tal forma orgulhoso e ganancioso que se tornou uma espécie de provação para os seus vizinhos. Se alguma coisa lhe despertasse a von­tade, ele precisava se apoderar dela, e tinha tal opinião sobre si mesmo que acreditava que tudo que cobiçasse era seu por direito.

“A princípio, sua propriedade não incluía todo o vale, apenas o trato de terra hoje ocupado pelo parque de Moonacre e o vilarejo de Silverydew, com os campos e bosques que o cercam. O mosteiro no alto da Colina do Paraíso ali estivera desde os tempos dos normandos, e os monges eram os donos da colina. Eles cultivavam milho nas encostas mais baixas e pasta­vam suas ovelhas na turfa macia do terreno mais alto, fazendo um bom dinheiro com a venda de lã. Esses homens santos eram uma bênção para o vale, pois haviam construído esta igreja — na qual um deles celebrava os ofícios —, ensinavam as crianças e cuidavam dos enfermos, salvando mui­tas almas pela prece e pelo exemplo. As pessoas gostavam de olhar para cima e ver o mosteiro erguendo-se contra o céu, lá onde agora se vê um grupo de árvores crescendo ao redor do poço sagrado outrora usado pe­los monges, e gostavam de ouvir o Sino repicando lá no alto.

“Mas Sir Wrolf queria a Colina do Paraíso para si, pois o pasto ali era o melhor do vale, e ele o queria para as suas ovelhas. Sir Wrolf consi­derava ridículo que aqueles homens de Deus, destinados a viver na santa pobreza, possuíssem tantas bênçãos terrenas como o pasto e ovelhas. Jul­gava ele que isso não era conveniente nem correto. E foi o que ele disse ao rei, quando Sua Majestade o visitou no solar que acabara de construir. O rei, cuja vida Sir Wrolf salvara nada menos que três vezes, concordou com ele. Os monges, então, perderam a posse da Colina do Paraíso e foram ex­pulsos do vale. Sir Wrolf passou a guardar suas ovelhas na colina e trans­formou o mosteiro num alojamento de caça”.

O Velho Pároco e as crianças, que tinham ouvido essa história mui­tas vezes antes, suspiravam e balançavam a cabeça tristemente, deploran­do o abominável comportamento de Sir Wrolf, mas já não se aborreciam tanto com ela. Maria, porém, estava tão horrorizada que mal podia se mexer. Pois Sir Wrolf fazia parte de sua família e não era lá muito melhor que um ladrão qualquer.

“A posse da Colina do Paraíso de pouco valeu a Sir Wrolf”, conti­nuou o Velho Pároco. “Ele estava dormindo no alojamento, certa noite, quando irrompeu uma violenta tempestade e um raio atingiu a constru­ção, matando algumas ovelhas. Quase atingiu Sir Wrolf também, o que o deixou terrivelmente assustado. Ele nunca mais quis saber de voltar lá; acreditava que os monges haviam enviado a tempestade para puni-lo por tê-los tirado dali, e aos poucos o mosteiro caiu em ruínas. Pouco restou dele além de algumas pedras tombadas e do poço que durante séculos fora considerado sagrado — e que as pessoas do campo ainda hoje visitam para Fazer suas orações.

“Mas, embora tenha escapado por um triz da tempestade, isso não foi o bastante para curar Sir Wrolf da ideia de que podia ter tudo o que quisesse. Como sabem, este vale adorável é todo cingido por um grupo de colinas que o protegem do mundo exterior, e para Sir Wrolf parecia simplesmente legítimo e sensato que ele se apoderasse de todo o vale, es­tendendo os limites de sua propriedade até o círculo de colinas. Ele já ti­nha a Colina do Paraíso, mas faltava o bosque de pinheiros que ficava atrás do solar e levava direto ao mar, ao que hoje chamamos de Baía Merry­weather. Esta pertencia a Sir Guilherme Cocq de Noir, conhecido como Guilherme, o Sombrio, por causa do galo preto que era o emblema de sua família. Além do mais, ele tinha flamejantes olhos pretos, a barba e o ca­belo pretos e pele sem viço.

“E também por causa de seu coração perverso. Os homens às vezes o chamavam de Coeur de Noir, em vez de Cocq de Noir Pois era um homem mau; era Guilherme, o Sombrio, cruel com as criaturas silvestres, tirano com seus servos, mal-humorado e mesquinho. Sir Wrolf, apesar de todos os seus defeitos, era generoso como o próprio sol, enquanto Guilherme, o Sombrio, tal como a noite, mantinha tudo o que lhe pertencia envolto em sua própria escuridão, para não ter de compartilhá-lo com ninguém.

“O primeiro Cocq de Noir havia chegado à Inglaterra com Guilher­me, o Conquistador, de quem recebera suas terras, e portanto sua família habitava o castelo normando no bosque de pinheiros havia muito mais tempo que Sir Wrolf o seu solar.

“Mas isso não significava nada para Sir Wrolf. Ele queria caçar ja­valis selvagens no bosque de pinheiros, queria a madeira, queria contro­lar sozinho a pesca na baía. Fez uma oferta a Guilherme, o Sombrio, para comprar suas terras, mas este a recusou. Ele apelou ao rei novamente, mas dessa vez o rei tomou o partido de Guilherme. Então, Sir Wrolf pas­sou a ameaçar Guilherme, insultando-o sempre que surgia uma oportuni­dade, tentando colocar o povoado contra ele, fazendo de tudo que podia para infernizar a vida no castelo normando. Mas Guilherme, o Sombrio, era um homem de coragem e retribuía cada ameaça, cada insulto, até que finalmente todo o vale estava mergulhado na discórdia. Defendendo a causa de seus senhores, os seguidores dos dois cavaleiros entravam em combate toda vez que se encontravam. Os homens, naquela época, eram sel­vagens, e lutar era a razão de sua existência. Quanto mais lutavam, mais selvagens se tornavam, até que, por fim, este bonito vale se transformou numa espécie de campo de batalha; a turfa das verdes campinas vivia manchada de vermelho pelo sangue derramado, as roças foram abando­nadas, e nos jardins proliferavam ervas daninhas.

“Embora Sir Wrolf gostasse de combates, estes não o estavam aproxi­mando nem um pouco de seu acalentado desejo: apoderar-se das terras de Guilherme, o Sombrio. Vendo que a violência não surtia efeito, ele deci­diu recorrer a um estratagema. Guilherme contava então seus 50 anos, era viúvo e tinha uma única filha, uma jovem formosa que herdaria todos os seus bens. Sir Wrolf, que na época tinha por volta de 40 anos, ainda não se casara, pois nutria com respeito ao sexo feminino uma opinião muito desfavorável. Ele não era um homem dado a cortejar mulheres e sempre jurara viver e morrer solteiro. Mas agora lhe ocorrera que, se se casasse com a filha de Guilherme, quando este morresse ele se tornaria dono do bosque de pinheiros. Guilherme não era um homem idoso, mas gozava de uma saúde frágil, ao passo que Sir Wrolf jamais adoecera.

“Assim, violentando sua própria natureza, Sir Wrolf se tornou — não de uma hora para outra, pois isso despertaria suspeitas, mas gradualmen­te — um novo homem. Passou a demonstrar uma surpreendente gentileza, anunciou que reconhecera o erro de suas atitudes, mandou arrumar a igreja — que se encontrava em estado deplorável desde que os monges ha­viam partido —, construiu a casa paroquial onde hoje moro e instalou nela um padre para rezar a missa e cuidar das almas abandonadas dos aldeões de Silverydew. Começou ele próprio a frequentar a igreja, dizendo amém tão alto que fazia vibrarem as vigas do telhado. Cuidou das roças negli­genciadas, carpiu os jardins e puniu com severidade cada seguidor seu acusado de conduta violenta com o inimigo de outrora.

“Finalmente, depois de um bom intervalo, num dia de outono em que as folhas caíam, cavalgou sozinho até o castelo no bosque de pinheiros e pediu desculpas a Guilherme, o Sombrio. Exausto dos últimos dois anos de lutas constantes, Guilherme aceitou suas desculpas, e a paz mais uma vez amanheceu sobre o lindo vale. No Natal seguinte, Sir Wrolf preparou um grande banquete e convidou Guilherme e sua filha para a ocasião, re­cebendo-a como a rainha de todos os mortais. Na primavera ele a cumu­lou de galanteios apaixonados, e, quando a primavera se fazia verão, ar­rebatou-lhe o coração, desposando-a num dia de pleno verão.

“A filha de Guilherme, o Sombrio, era uma jovem bonita, pequena e delicada como uma fada, delgada como a lua minguante. Em vez das fei­ções escuras do pai, tinha uma beleza requintada, com seus cabelos claros como prata, olhos cinza-prateados e a pele alva como leite. Com efeito, tinha uma alvura tão prateada e um ar tão régio, que por todo o vale a chamavam de Princesa da Lua.

“Embora, a princípio, Sir Wrolf não a tivesse cortejado por amor, sua beleza era tanta que, no dia em que se casaram, ele estava completa­mente enamorado dela, e ela dele.

“Ele decorou o solar da maneira mais bonita que pôde, pendurando tapeçarias raras nas paredes e estofando as cadeiras com almofadas de seda. No alto de uma das torres, construiu para ela um adorável budoar, com janelas voltadas para o norte, o sul e o oeste, das quais se avistava todo o reino de Moonacre. Mandou esculpir no teto de pedra uma lua minguante rodeada de estrelas, tais quais cortesãos em torno de sua rai­nha, e instalou no aposento uma porta tão pequena que somente alguém da estatura de uma fada poderia entrar nele. Pois ela, por natureza, e ao contrário dele, era de pouco falar, e ele sabia que ela apreciaria esse cui­dado com a sua privacidade.

“O presente de casamento de Sir Wrolf à Princesa da Lua foi um de­licado cavalinho, branco como leite, um cavalinho selvagem que ele en­contrara, na semana anterior ao casamento, enroscado num espinheiro na Colina do Paraíso. Dizem no vale que toda manha, ao raiar do dia, os ca­valos brancos partem do mar em direção ao interior num galope alegre e selvagem, que ninguém vê porque eles rapidamente voltam a desaparecer, e, conta a lenda, esse cavalinho branco era um deles. Não conseguiu re­tornar ao mar com os outros porque tinha um chifre no meio da testa, e esse chifre, ao se enroscar no espinheiro, foi sua ruína. Mas, é claro, não posso atestar a veracidade disso... embora saiba que até hoje os aldeões acreditam que o velho espinheiro da Colina do Paraíso é visitado com fre­quência pelos Pequeninos, e eles sobem até lá nas datas importantes e fe­riados para sentar-se sob seus ramos e fazer três pedidos.

“O presente de casamento da Princesa da Lua para Sir Wrolf foi um grande rubi engastado em um anel e um enorme animal fulvo, uma espé­cie de cachorro que lhe pertencia desde que era filhote. Ela não tinha do­tes para lhe oferecer, pois Guilherme, o Sombrio, era um homem pobre, mas trouxe com ela um formoso colar de pérolas cor da lua que fora de sua mãe.

“Foi por ocasião de suas bodas que Sir Wrolf adotou os dois animais como emblema de sua família, o cão e o cavalo, e o lema: ‘A alma valente e o espírito puro, com o coração alegre e amoroso, herdarão juntos o reino’”.

Nesse momento, o Velho Pároco fez uma pausa tão longa que Ma­ria se perguntou se a história terminava ali. Mas não. Depois de um pro­fundo e melancólico suspiro, ele continuou.

“Gostaria que tudo tivesse terminado assim”, disse ele. “Gostaria que essa história fosse como todas as boas histórias e finalizasse com ‘fo­ram felizes para sempre’. Mas não foi isso que aconteceu, e devo contá-la tal como nos foi transmitida ao longo de gerações... Bem, crianças, no começo, tudo ia bem com Sir Wrolf e a Princesa da Lua, pois continua­vam profundamente apaixonados um pelo outro, tinham riqueza e boa saúde, enquanto a saúde de Guilherme, o Sombrio, piorava a cada dia, e Sir Wrolf estava prestes a se apropriar, de maneira legítima, do bosque de pinheiros e da pesca na baía. Faltava somente uma coisa para que sua fe­licidade fosse completa: um filho. Mas Sir Wrolf já havia conquistado na vida tudo o que desejava, por isso não tinha dúvidas de que, era boa hora, teria um filho também. Até que, de um dia para outro, Guilherme, o Som­brio, resolveu se casar — não com uma grande dama, mas com a filha de um fazendeiro do outro lado das colinas, que deu à luz um robusto me­nino de pele e cabelos escuros. Sir Wrolf encheu-se de amargura.

“Foi então que sua esposa começou a se afastar dele. A jovem Prin­cesa da Lua, dona de um espírito puro e sincero, não percebera até então o estratagema do marido. Acreditara que sua conversão fora genuína e que ele a cortejara unicamente por amor. Agora, ao vê-lo enfurecer-se e voci­ferar contra seu pai e o filho dele, revelando inconscientemente, em ex­plosões de cólera, cada pensamento que lhe passara pela mente nos últi­mos anos, ela compreendeu a verdade, e seu orgulho — e ela era muito or­gulhosa — ficou profundamente ferido. Não acreditava mais nele quando lhe dizia que a amava de verdade; tomava como mentiras as sinceras ju­ras de amor que ele lhe fazia; e, aos poucos, seu amor por ele se conver­teu em ódio.

“E então ela também deu à luz uma criança, o tão sonhado filho. Mas era tarde demais para que marido e mulher se reconciliassem. O bebê era parecido com o pai, que a decepcionara, e por essa razão ela não conse­guia amá-lo. Entregou-o aos cuidados de babás e do pai amoroso e passa­va a maior parte do tempo encerrada no quarto da torre, ou trabalhando no jardim do solar. Dizem que foi ela que plantou os teixos e depois os re­cortou na forma de cavaleiros e gaios, apenas para aborrecer o marido.

“Até que o jardim e também a casa se tornaram odiosos para ela. Começou a passar cada vez mais tempo a cavalgar seu bonito cavalinho branco pelas clareiras do parque, descendo e subindo a Colina do Paraí­so, atravessando as urzes até o mar. Gostava especialmente de cavalgar pela Colina do Paraíso, onde apeava e sentava-se, por horas a fio, ao lado do poço dos monges, ou junto do espinheiro em que o cavalinho branco fora encontrado. Parecia que ali, na Colina do Paraíso, ela e seu cavali­nho branco desfrutavam um pouco de paz e felicidade. Contudo, ela vi­via uma vida de solidão e tristeza, já que seu orgulho não só a afastara do marido e do filho, como a distanciara também do pai, da madrasta, do fi­lho deles e do castelo no bosque de pinheiros. Pois sua madrasta não pas­sava de uma filha de fazendeiro, e ela não podia conviver com isso. Além do mais, embora agora odiasse o marido, mantinha-se leal a ele e não se­ria amiga de seus inimigos.

“Pois a velha rixa havia ressuscitado, e Sir Wrolf e Guilherme, o Som­brio, tornaram-se inimigos novamente. Seus servos lutavam entre si toda vez que se encontravam, e o campo inteiro padecia sob o fardo de sua ira. Então, dois acontecimentos espantosos tiveram lugar, um logo após o ou­tro. Guilherme, o Sombrio, subitamente desapareceu, sem deixar vestí­gios, e foi dado como morto. Apenas um mês mais tarde, Sir Wrolf ficou sabendo que o bebê de cabelos escuros fora encontrado morto no berço, e que sua mãe, subjugada pela dor, voltara para sua gente, do outro lado das colinas, levando com ela o corpo do filho. Assim, o bosque de pinhei­ros que conduzia ao mar era agora propriedade de Sir Wrolf, por inter­médio de sua esposa, a Princesa da Lua, e o desejo que ele tanto acalen­tara se realizou.

“Mas não lhe trouxe nenhum bem. Embora não houvesse evidências de que Sir Wrolf nada tivera que ver com o desaparecimento de Guilher­me, o Sombrio, nem de que o bebê de cabelos escuros não fora vitimado simplesmente por uma das costumeiras enfermidades infantis, a Princesa da Lua, com a mente anuviada pela solidão e o orgulho ferido, convenceu-se de que o marido era o responsável pelas duas mortes. Acreditava que ele não passava de um assassino e, sendo assim, não suportava mais viver com ele sob o mesmo teto. Numa noite fria e estrelada, quando todos na casa folgavam depois do jantar, vestiu seu traje de montaria e, levando apenas o colar de pérolas cor da lua, desceu até o estábulo, atrelou seu cavalinho branco e saiu cavalgando pelo parque... e nunca mais foi vista”.

Novamente uma longa pausa, e Maria percebeu que seu coração ba­tia muito acelerado.

“Ninguém nunca soube o que aconteceu a ela?”, perguntou Maria.

“Não”, disse o Velho Pároco. “Nunca se soube o que aconteceu a ela nem ao cavalinho branco”.

“O que aconteceu a Sir Wrolf?”, indagou Maria.

“Ele ficou de coração partido e nunca deixou de chorar a ausência da pequena Princesa da Lua”, disse o Velho Pároco. “Dificilmente passa­va um dia em que ele não cavalgasse seu grande alazão, seguido de perto por seu cachorro fulvo, percorrendo o parque, o bosque e os campos, dan­do voltas e voltas na Colina do Paraíso, à procura dela. Mas nunca a en­controu. Dez anos depois que ela o abandonou, ele morreu, um homem amargo e infeliz que pouca alegria obteve do fato de legar ao seu filho, John, todo este lindo vale, de uma colina a outra, e a todos os herdeiros dele, para sempre”.

“E o que aconteceu ao grande cachorro fulvo?”, perguntou Maria.

“Enquanto Sir Wrolf viveu, ele se manteve fiel ao dono”, disse o Ve­lho Pároco, “mas quando Sir Wrolf morreu ele retornou ao bosque de pi­nheiros, do qual havia surgido; e também nunca mais foi visto”.

“Mas... e os Homens do Bosque Sombrio?”, indagou Maria. “O se­nhor não disse nada sobre eles. Esse não pode ser o fim da história”.

“É hora de as crianças irem para casa tomar o café da manhã”, disse o Velho Pároco. “E hora de você e eu tomarmos o nosso na casa paroquial”.

Maria entendeu. A parte da história que o Velho Pároco acabara de contar era conhecida por todos, mas havia algo mais nela que só dizia res­peito aos Merryweathers, e isso ele só contaria a ela, em particular. Le­vantou-se, ajeitou o vestido azul-escuro e despediu-se das crianças com um sorriso, enquanto elas marchavam para o café da manhã, acompanha­das de Pisco. Lamentou ao ver Pisco partir. Esperava que ele fosse tomar o café na casa paroquial também. Mas ele não foi. Dirigiu-lhe um sorriso radiante, atirou-lhe o ramalhete de prímulas que trazia no colete e saiu com os demais.

 

Maria e o Velho Pároco saíram para o cemitério, viraram à direita no meio do caminho e chegaram a um portão de madeira que le­vava a um jardim pequeno, agradável e desalinhado, onde arbustos de co­rintos, rosas e canteiros quadrados de coloridas flores primaveris se espa­lhavam com seu perfume diante da porta frontal da casa paroquial.

A casa paroquial, pequena, cinzenta e de teto baixo, era tão antiga que mais parecia um afloramento de rocha do que uma residência. Era toda re­coberta por trepadeiras, clematites, rosas e madressilvas, através das quais espiavam, acanhadas, as janelas em formato de losango e a porta de carva­lho. O Velho Pároco abriu a porta e entraram na sala de estar, um lugar tão encantador que os olhos de Maria se arregalaram de admiração.

A sala era grande, pois, além da pequena cozinha, não havia nenhum outro aposento no piso inferior. Numa das extremidades, havia uma am­pla lareira de pedra, onde a lenha queimava vividamente, e, ao lado da la­reira, uma fascinante escadinha de pedra que serpenteava até o dormitó­rio, no pavimento superior. O piso era revestido de lajotas lisas, tão bem escovadas que reluziam de tão brancas. Uma estante de madeira repleta de livros forrava as paredes, e das janelas, cujas vidraças, de tão limpas e polidas, cintilavam e brilhavam como cristal, pendiam cortinas com es­tampa xadrez branca e vermelha. As paredes eram muito espessas, e em cada recuo de janela havia um vaso de gerânios rosa-salmão.

No meio da sala, a mesa de carvalho, coberta com uma toalha branca, estava posta com a louça do café da manhã. Perto do fogo, havia uma pol­trona e duas cadeiras duras de carvalho, e essa era toda a mobília do apo­sento, que não tinha quadros nem ornamentos. Mas estes não eram necessá­rios, porque os livros na estante transmitiam uma sensação de conforto que parecia mobiliar e ornamentar a sala, assim como a limpeza e a ordem im­pecáveis do ambiente. Maria não teve dúvidas de que o que transformava os livros em criaturas vivas era o uso amoroso que o Velho Pároco deles fazia, mas todo aquele asseio não podia ser obra de um simples homem.

“O senhor mora aqui sozinho?”, ela perguntou.

“Moro sozinho”, respondeu ele. “Mas tenho uma criada, que vive no vilarejo e passa uma ou duas horas aqui, toda manhã, para cozinhar e limpar. Seu nome é Lo­veday Minette”.

O Velho Pároco olhou então pela janela e soltou um breve suspiro.

“Desejaria, às vezes, não viver sozinho”, disse ele. “Mesmo tendo a com­panhia do meu violino, as noites de inverno podem ser muito longas quando neva. Agora, tire o chapéu e a capa, minha cara, que Loveday ser­virá o café”.

Maria nem bem soltara o laço do chapéu quando a porta da cozinha se abriu para dar passagem a uma mulher que trazia, na bandeja, ovos vermelhos cozidos, café, leite, mel, manteiga e um pão caseiro crocante.

Mas, dessa vez, Maria não prestou atenção à boa comida e, com as mãos ainda ocupadas em desatar o laço do chapéu, deteve-se a fitar Lo­veday Minette com aquele olhar de quem observa um sonho virar reali­dade e se pergunta se está dormindo ou acordado. Pois, toda vez que, em seus momentos de solidão, a órfã Maria se punha a imaginar como seria a mãe que ela gostaria de ter, a imagem que lhe vinha à cabeça era exata­mente igual à de Loveday Minette.

Ela era delgada e graciosa como um ramo de salgueiro, pequena como uma fadinha, com uma pele alva e linda, suavemente rosada. O cabelo liso, de um dourado pálido, estava amarrado ao redor da cabeça numa grande trança, à maneira de uma coroa, o que lhe conferia um ar régio que combinava com a orgulhosa altivez de seu porte. Os olhos eram acin­zentados e penetrantes como os de Maria, e seus lábios delicados e sorri­dentes, embora tivessem um contorno suave, eram ao mesmo tempo for­tes, e havia um traço de obstinação no seu queixo de linhas bem defini­das. Era tão grande sua beleza que, à primeira vista, parecia jovem, mas um olhar mais atento revelava que não era, de fato, uma jovem. Havia fios grisalhos em seu cabelo dourado e um conjunto de pregas quase im­perceptível ao redor dos olhos, e suas mãos, apesar do bonito feitio, esta­vam enrugadas pelos anos de labuta. Usava um vestido de linho cinza en­feitado com rosinhas cor-de-rosa, um lenço branco, liso, cruzado no peito e um avental branco. Depositou a bandeja sobre a mesa, sorriu para Ma­ria como se a conhecesse desde sempre e, então, aproximou-se dela, desa­tou-lhe o laço do chapéu, tirou-o da cabeça e ajeitou-lhe o cabelo com uns poucos toques habilidosos. Em seguida, afagou a bochecha de Maria com o dedo indicador, sorriu-lhe novamente, colocou o chapéu e a capa na poltrona e retirou-se.

Nesse meio-tempo, o Velho Pároco trouxera as duas cadeiras para a mesa, uma das quais ele agora oferecia à Maria, de maneira muito cerimo­niosa. Sentindo-se uma rainha, Maria tomou assento, e, depois de empur­rar-lhe a cadeira, o pároco se sentou diante dela e serviu-lhe ovos e cafés.

Maria comeu em silêncio durante algum tempo, em parte porque a comida estava excelente e em parte porque a agradável familiaridade de Loveday Minette a deixara sem palavras. Contudo, quando finalmente se dirigiu ao Velho Pároco, não foi para falar de Loveday — pois ela parecia maravilhosa demais, muito dona de si para ser assunto de conversa —, mas da história que o pároco contara na igreja.

“O senhor não terminou a história”, disse ela. “Há ainda uma outra parte, algo particular que o senhor não podia contar às outras crianças”.

“Isso mesmo”, respondeu o Velho Pároco. “Sir Benjamin me deu a honra de conhecer a outra parte dessa história logo depois que aqui che­guei. Sempre fomos amigos. Tenho grande respeito por Sir Benjamin, e ele por mim. Ele não se incomoda com a minha franqueza, e, até onde sei, sou a única pessoa a quem ele contou essa curiosa mistura de lendas e fatos que vou relatar a você. Os aldeões mais velhos conhecem a história, mas ele não a comenta com eles”.

O Velho Pároco silenciou por um momento, enquanto mexia o café, e então começou a narrar a história com uma certa distância, como se fos­se apenas um conto extraído de um livro. Maria concluiu mais tarde que ele fizera aquilo de propósito, para que ela não se assustasse demais com tudo o que aquela história significaria para ela.

 

“Nada neste mundo termina para sempre”, disse o Velho Pároco. “Pode parecer que uma semente que cai na terra como matéria morta está definitivamente acabada, mas quando, na primavera seguinte, suas folhas e frutos voltam a germinar vemos que isso não passa de um engano. Quando ficou sabendo que o filho de Guilherme, o Sombrio, havia fale­cido e que a mãe do menino retornara à sua gente, Sir Wrolf certamente deve ter pensado que os Merryweathers não mais veriam ninguém daque­la família. Seu filho John, que não se recordava da mãe, certamente pen­sou que a Princesa da Lua e o cavalinho branco haviam desaparecido para sempre deste mundo. E certamente deve ter pensado, também, que o fato de seu pai ter enganado sua mãe era um pecado que não afetaria as gera­ções futuras.

“No entanto, todas as tentativas de podar aqueles teixos com outras formas que não sejam cavaleiros e gaios estão fadadas ao fracasso; eles sempre voltam a suas formas originais. E quem hoje vive no bosque de pi­nheiros são os homens perversos. Uma vez a cada geração, a Princesa da Lua retorna ao solar; e, por um breve tempo, se instala uma grande ale­gria, pois os Merryweathers do sol e os Merryweathers da lua sempre se dão muito bem. Mas, então, como um castigo pelo pecado original, acon­tece uma briga, e a Princesa da Lua volta a desaparecer”.

“Ela sempre terá de partir?”, sussurrou Maria, cheia de ansiedade. Pois já tinha adivinhado que era ela a Princesa da Lua desta geração. E não queria partir.

“Ela sempre partiu”, disse o Velho Pároco. “Não necessariamente do vale, mas do solar. Contudo, as pessoas mais velhas do vilarejo juram e declaram que, um dia, virá uma Princesa da Lua que terá a coragem de li­vrar o vale da maldade dos Homens do Bosque Sombrio. Mas, como to­das as princesas de todos os mais lindos contos de fada, ela terá de ven­cer seu orgulho para amar não um príncipe, mas um homem pobre, um pastor, um lavrador ou qualquer outro rapaz do campo, e conduzir a li­beração com a ajuda dele — o que nenhuma Princesa da Lua foi capaz de fazer ainda, tão orgulhosas sempre foram todas elas, tão avessas a aceitar a ajuda de outrem”. O Velho Pároco suspirou e serviu-se de um pouco mais de café. “Assim tem sido, e por isso a maldade dos Homens do Bos­que Sombrio ainda nos assombra”.

“Mas quem são eles?”, perguntou Maria. “Se o único filho de Gui­lherme, o Sombrio, morreu, não podem ser descendentes dele”.

“Sir Wrolf ouviu dizer que a criança havia morrido”, corrigiu-a o pároco, “mas nunca se soube de alguém que a tivesse visto morta. Há quem diga que a mãe dele, receando que Sir Wrolf fizesse algum mal ao menino, anunciou que o filho estava morto e então fugiu com ele para sua gente. Seja como for, cinquenta anos depois, ouviram o galo negro cantar novamente no bosque, e soube-se então que quatro homens, que bem po­dem ter sido os filhos daquele menino, surgiram do outro lado das coli­nas e se estabeleceram no castelo.

“E desde então seus descendentes vivem naquele lugar, uma maldi­ção para toda a redondeza. Os Merryweathers podem dizer que são os donos do bosque de pinheiros que leva até o mar e a Baía Merryweather, mas a verdade é que são tão donos daquela região quanto o são da ci­dade de Londres. Ela pertence aos Homens do Bosque Sombrio. No pas­sado, alguns Merryweathers tentaram desalojá-los de lá à força ou usando de estratagemas, mas, mesmo quando se consegue expulsá-los, não de­mora muito para que retornem. Seu tio, sabiamente, nunca tentou tal coisa. Ele os tolera e faz o que pode para proteger os animais da cruel­dade deles e compensar sua gente por tudo que sofrem nas suas mãos... E espera”.

“Pela Princesa da Lua?”, sussurrou Maria.

O Velho Pároco sorriu.

“Não sei”, disse ele. “Sir Benjamin provavel­mente espera que a velha profecia se cumpra como num conto de fadas”.

“O senhor acredita nisso?”, perguntou Maria.

“Todo conto de fadas encerra uma semente de verdade”, disse o Ve­lho Pároco. “Penso ser provável que somente uma Princesa da Lua seja capaz de lidar com a maldade dos Homens do Bosque Sombrio, porque é um fato que somente a lua pode banir a escuridão da noite. E me parece provável que ela só conseguirá fazê-lo se tiver a humildade de se apaixo­nar por um homem pobre, porque é um fato que nada de valor se con­quista neste mundo sem amor e humildade. Quanto ao fato de que a união dos Merryweathers do sol e da lua sempre termine em discórdia, embora convivam tão bem juntos... Bem... Sir Wrolf foi um pecador, e é um fato que os pecados dos pais recaem sobre os filhos — até que os filhos desfaçam o que seus pais fizeram”.

“Acha que Sir Wrolf matou Guilherme, o Sombrio?”, indagou Maria.

“Não, não acho”, respondeu o Velho Pároco com convicção. “Ele nunca teria se rebaixado a tal crime. Os Merryweathers nunca foram as­sassinos”.

“Então, o que pode ter acontecido a Guilherme, o Sombrio?”, insis­tiu ela.

“Não faço ideia”, disse ele. “Talvez, cansado de tudo, tenha resolvi­do se recolher a um eremitério, para ruminar sobre seus erros na solidão. Os homens maus sofrem de muita fadiga, pois a maldade é uma coisa ex­tremamente fatigante”.

“Pode ser também”, disse Maria, “que tenha tomado um barco e na­vegado adiante até o pôr do sol, para nunca mais ser visto. Oh, fico feliz de saber que Sir Wrolf não era um assassino!”

“Embora não fosse um assassino, Sir Wrolf era ganancioso, ladrão, trapaceiro e um grande pecador”, disse o Velho Pároco com o semblante sério. “Não há motivos para você se congratular com seu ancestral”.

“Acho que a Colina do Paraíso deveria ser devolvida a Deus”, disse Maria. “Os Merryweathers não têm direito a ela. As coisas continuarão a desandar entre os Merryweathers do sol e da lua até que deixem de ser ladrões”.

“Maria”, disse o Velho Pároco em tom de aprovação, “você é motivo de honra para sua família não tão honrada”.

“Será que Wrolf”, perguntou Maria, “é descendente do primeiro ca­chorro fulvo de Sir Wrolf, aquele que voltou para o bosque de pinheiros quando ele morreu?”

“É possível”, disse o Velho Pároco. “Dizem que um ano antes, mais ou menos, de outra Princesa da Lua chegar a Moonacre, um cão fulvo sur­ge do bosque de pinheiros, na véspera do Natal, e faz do solar a sua resi­dência. Então, quando a Princesa da Lua chega, ele a coloca sob sua pro­teção especial”.

Maria arregalou os olhos.

“Sir Benjamin me contou que Wrolf surgiu do bosque de pinheiros um ano atrás”.

“É verdade”, disse o Velho Pároco.

Maria arregalou os olhos ainda mais.

“Talvez Wrolf não seja descen­dente do primeiro cachorro, mas ele próprio”.

“Cachorros não costumam viver cem anos”, ponderou o Velho Pároco.

“Mas Wrolf não é um cachorro como outro qualquer, não é mes­mo?”, disse Maria.

“Não”, concordou o Velho Pároco, “sem dúvida que não”.

 

Haviam terminado o café agora. Abrindo um armário junto da larei­ra, o Velho Pároco retirou dele seu violino e sentou-se na poltrona para tro­car uma das cordas do instrumento. Maria não se sentia uma estranha na­quele aposento; ao contrário, estava completamente à vontade. E, como se estivesse em casa, dirigiu-se até a estante de livros e começou a examiná-los.

“Pode levar emprestado o que quiser”, disse o Velho Pároco. “Meus livros, assim como eu, estão sempre à disposição dos amigos”.

“Mas são quase todos em língua estrangeira”, disse Maria.

“Se quiser um livro em inglês”, disse ele, “há um volume de versos no canto da prateleira de cima... Embora eu considere a língua francesa a melhor e mais bonita de todas”.

Seu sotaque ligeiramente estrangeiro pareceu acentuar-se quando ele falou. Maria virou-se e olhou para ele.

“Com licença, senhor”, disse ela timidamente, “o senhor é francês?”

“Sou”, disse o Velho Pároco, e, encaixando o violino sob o queixo, começou a tocar, suavemente, a melodia que Maria estava tocando ao cravo antes de ir ao encontro dele no roseiral.

“Quem lhe ensinou a tocá-la?”, perguntou ele.

“Ninguém”, respondeu ela. “Saiu do cravo na primeira vez que o abri”.

“Já imaginava”, disse o Velho Pároco, meio que para si mesmo. “Deve ter sido a última que ela tocou antes de fechar o cravo. Sim, eu me lembro que ela a tocou naquela noite. Foi sua última noite no solar. Faz vinte anos”.

E, então, deixou que a suave melodia que estivera tocando se fundis­se com uma alegre dança campestre, para que Maria não tivesse chance de fazer mais perguntas, embora centenas delas queimassem agora em sua língua. Ela fez um esforço para engoli-las e retirou da prateleira o livro que o Velho Pároco havia indicado. Tinha na capa uma heliotrópia meio apagada e era pequeno o bastante para caber no bolso do vestido. Mas, antes de guardá-lo, deu uma espiada no conteúdo e encontrou na folha de guarda um nome que lhe era familiar, escrito numa caligrafia também familiar.

O nome era Louis de Fontenelle, e a caligrafia era de sua governan­ta, a srta. Heliotrópio... A sala virou de ponta-cabeça, junto com Maria... Então, tudo se endireitou novamente, e ela ficou ali parada, em silêncio, com a mão segurando o livro dentro do bolso, perguntando-se o que de­via fazer. Nada, por ora, pensou... Apenas esperar.

O Velho Pároco estava de pé agora, e a dança se convertera numa peça musical que rapidamente ganhou altura, como um bando de pássa­ros brancos em voo. Ele não parecia ter notado que a sala virara de pon­ta-cabeça com ela; na verdade, parecia estar completamente alheio a ela. Fora arrebatado pelas asas de sua música até o lugar onde os pássaros brancos estavam voando. Ela lhe dirigiu uma reverência que ele nem no­tou, vestiu o chapéu e a capa, ergueu o trinco da porta e saiu rapidamen­te para o pequeno, agradável e desalinhado jardim.

 

Mas, ao chegar ao portão de madeira, ela parou e esperou. E não teve de esperar muito tempo, pois dali a um instante Loveday Minette do­brou a esquina da casa paroquial, trazendo um xale cinza pendurado nos ombros, mas sem nenhum adereço na sua bela cabeça.

“Sabia que você estaria à minha espera”, disse ela com sua voz pro­funda e suave. “Podemos caminhar juntas até minha casa? Não fica muito fora do seu caminho”.

“Obrigada”, disse Maria humildemente, e quando Loveday Minette estendeu-lhe a mão ela a segurou tímida, como se fosse a mão de uma rai­nha. Pois, embora as mãos de Loveday estivessem marcadas pela labuta e ela trabalhasse para o Velho Pároco como se fosse uma criada, portava-se com modos de uma grande dama, e era assim que Maria a via.

“Meu nome também é Maria”, disse ela enquanto atravessavam o cemitério da igreja, “mas quando eu era pequena me chamavam de Mi­nette, por causa do meu tamanho, e esse nome acabou ficando, pois ain­da sou pequena”.

“A mãe do meu pai se chamava Loveday”, disse Maria.

“Loveday e Maria são nomes Merryweather”, explicou Loveday Minette. “As mulheres Merryweathers se chamam Maria, ou Mary, por­que a igreja é dedicada a Santa Maria. E Loveday — bem, as pessoas da lua adoram o dia e o brilho do sol”.

Caminharam de mãos dadas pela rua do vilarejo, atravessaram o portão quebrado que levava ao parque e então viraram à direita, ao lon­go de uma trilha estreita.

À sua esquerda, as árvores cresciam bem perto umas das outras, como numa floresta, mas à direita havia uma encosta verde com rochas de granito cinzas que afloravam da turfa e se erguiam ao lado delas como um muro.

“Este é um dos esporões inferiores da Colina do Paraíso”, disse Lo­veday enquanto caminhavam. “Mas é íngreme demais para ser escalado deste ponto. O melhor caminho é subir pela trilha que sai do vilarejo”. Então ela parou, apoiando a mão numa grande rocha cinza que se proje­tava para fora da encosta. “Gostaria de entrar um pouquinho?”, pergun­tou. “Queria lhe mostrar a minha casa”.

“Obrigada”, disse Maria, olhando à sua volta intrigada, pois não havia casa nenhuma ali.

“Por aqui”, indicou Loveday, contornando a rocha e sumindo de vista.

Mais confusa do que nunca, Maria também contornou a rocha. Atrás dela, quase escondida por uma sorveira que se debruçava da encosta acima, havia uma porta na colina. Loveday já havia entrado e segurava a porta aberta, hospitaleira e sorridente como se fosse uma porta absoluta­mente comum de uma casa absolutamente comum.

“Entre”, disse ela. “Esta é a porta dos fundos. Receio que a passa­gem seja um pouco escura. Dê-me a sua mão que vou fechar a porta”.

Quando a porta se fechou, tudo ficou escuro como breu, mas, com a mão firmemente agarrada à mão forte e calorosa de Loveday, Maria não teve medo. Andaram juntas por um túnel estreito, e então Loveday ergueu um trinco e abriu uma porta, e elas foram inundadas por uma adorável luz verde, o tipo de luz que, na imaginação de Maria, iluminava o mun­do submarino.

“Esta é a minha sala de estar”, disse Loveday.

Era uma caverna ampla, mas tinha janelas como qualquer outra sala. Havia duas na parede leste e uma na parede oeste, janelas em forma de losango escavadas bem fundo na rocha. Do lado de fora, eram enco­bertas por cortinas verdes de samambaias e trepadeiras, para que nin­guém que por ali passasse, pensou Maria, soubesse da existência daque­las janelas. A porta pela qual entraram ficava na parede norte, e, junto dela, uma escada de pedra, tão íngreme e estreita que mais parecia uma escada de mão, levava a um aposento no andar de cima. Na parede sul, havia outra porta, com um sino pendurado ao lado. Junto do sino, num gancho na parede, uma longa capa preta com capuz, e, do outro lado da porta, uma lareira com lenha queimando alegremente e, na frente dela, um gatinho dormindo. A sala era mobiliada com uma poltrona, mesa e cadeiras, feitas de carvalho; havia também uma cômoda encostada na pa­rede sul e, sobre ela, uma linda porcelana florida, mais vasilhas e panelas de cobre polido. Cortinas de chintz rosa-claro, com estampas de rosas de um tom mais escuro, pendiam das janelas, e, recobrindo o piso, tapetes de retalhos coloridos. Havia vasos de gerânios rosa-salmão no parapeito das janelas e na mesa, e maços de ervas pendurados no teto. Em sua simplici­dade e asseio, a sala era tão semelhante à do Velho Pároco — embora a dele fosse três vezes maior que esta — que Maria concluiu que Loveday ha­via decorado ambas. Apreciou o bom gosto de Loveday na arrumação do ambiente, mas não sua paixão pelo cor-de-rosa. Havia rosa demais naquela sala, ponderou ela. Maria preferia o esquema de cores usado na sala de visitas do solar.

“Mas que coisa mais divertida morar numa caverna!”, exclamou ela, olhando à sua volta com admiração.

“O rosa tem a propriedade de fazer até mesmo uma caverna se pa­recer com um lar”, disse Loveday. “Adoro rosa. Agora, vamos subir, que­rida, para ver onde nós dormimos”.

“Nós?”, indagou-se Maria, enquanto seguia sua bela anfitriã pela escada estreita. Será que Loveday tinha um marido? Não havia nenhum dos costumeiros indícios da presença de um marido, nenhuma bota suja de lama largada por ali, nenhuma cinza de tabaco no chão. Ele devia ser um marido muito ordeiro.

A escada de pedra conduziu-as ao bonito dormitório de Loveday. Ali também havia janelas encobertas por samambaias, a leste e oeste, dessa vez com cortinas estampadas com corriolas rosa-shocking. A cama de Lo­veday ficava encostada na parede sul. Tinha as mesmas cortinas de chintz estampadas com corriolas e uma linda colcha de retalhos em cujo padrão de cores predominava o rosa. A mobília parecia muito antiga. Do lado da cama, havia um armário para roupas e um baú de carvalho, já enegreci­do pelo tempo, sobre o qual estava afixado um espelho. Esse espelho não era feito de vidro, mas de prata polida, e trazia na moldura superior a fi­gura de um cavalinho em pleno galope.

“Centenas de anos atrás, quando esse espelho foi feito, ainda não exis­tia o vidro”, explicou Loveday ao perceber a surpresa de Maria ao olhar o espelho. “Em vez de vidro, usavam metal polido”, disse com um meigo sor­riso. “Mas ele produz um reflexo mais suave e favorável. Mire-se no meu espelho e você verá que é muito mais bonita do que imaginava”.

Com o coração acelerado, Maria aproximou-se do espelho e mirou-se, e, de fato, o rosto que retribuiu o seu olhar era muito formoso. As sardas pa­reciam ter sumido, e seu cabelo, em vez da tonalidade avermelhada, era puro ouro-prateado. E, de trás de sua cabeça, emanavam suaves raios prateados.

“Mas não sou eu no espelho”, sussurrou ela para Loveday.

“É, sim”, respondeu Loveday ternamente, pegando sua mão. “Não tenha medo”. Então, afastando Maria do espelho, disse: “Veja! Essa escadinha leva ao quarto dele”.

Ao lado da porta, encostada na parede, outra escada, também seme­lhante a uma escada de mão, levava para cima, mas era ainda mais íngre­me e estreita que a primeira, e Maria pensou que só alguém muito peque­no e ágil conseguiria subir por ela. O marido de Loveday devia ser uma criatura feérica, pequeno, ordeiro e de pés firmes, como era evidente. Es­tava ansiosa para conhecer seu quarto, mas, no exato momento em que Loveday se dirigia à escada, o sino tocou.

“Digweed está de volta”, disse Loveday, e desceu correndo a escada que levava à sala de estar. Maria foi obrigada a segui-la, pois pessoas bem-educadas, quando estão na casa de outras, não entram nos quartos sem permissão. Além disso, ela estava curiosa para saber o que o sino ti­nha que ver com a volta de Digweed.

Quando chegou à sala de estar, o sino pendurado ao lado da porta na parede sul ainda vibrava, e Loveday vestira sua longa capa preta e es­tava abrindo a porta.

“Venha, criança”, ela disse a Maria. “Digweed vai lhe dar uma carona até o solar, assim você poupará suas pernas, que a esta altura devem estar bem cansadas”.

Maria a seguiu pelo túnel escuro e úmido, iluminado unicamente pela luz que vinha da sala de estar. Viraram à direita e, à sua frente, de­pararam com um portão de carvalho, firmemente trancado por um delga­do tronco de árvore que, apoiado em suportes, a atravessava de um lado a outro, como um ferrolho.

Maria então soube onde estava. Era o mesmo túnel que haviam cru­zado na noite de sua chegada. E o vulto sombrio que avistara naquela ocasião era Loveday com sua capa preta a abrir-lhes o portão, como ago­ra fazia, puxando o capuz com uma das mãos para esconder o rosto, an­tes de levantar o tronco de árvore. Ela devia ser muito forte, pensou Ma­ria, apesar de tão pequenina; tão forte quanto uma fada.

O portão se abriu para dar passagem a Digweed e sua charrete, que vinha puxada por Darby.

“Estou sozinho, madame”, disse ele a Loveday, que retirou o capuz do rosto.

“Pare para que nossa pequena dama possa montar”, disse ela. Ele parou e esperou, abrindo um grande sorriso para Maria enquanto Loveday fechava e trancava o portão de novo. Feito isso, ela ajudou Maria a subir na charrete, ao lado de Digweed. Então, colocou-se ao lado do veículo, dirigindo para Maria um olhar sério. A luz verde que vinha da porta aber­ta atrás dela dava ao seu belo rosto um aspecto estranho, como se ela não fosse deste mundo.

“Maria”, disse ela, “não conte a Sir Benjamin que me viu. Ele não sabe que vivo aqui. O Velho Pároco sabe, todo o vilarejo sabe, Digweed sabe que eu sou a Porteira de Moonacre, mas Sir Benjamin não”.

A essa altura, Maria já estava ficando acostumada a viver em per­manente estado de assombro e a controlar sua curiosidade; por isso, diante de mais aquela surpreendente revelação, limitou-se a acenar com a cabe­ça, deixando escapar uma única pergunta.

“Mas, se ele não sabe que é você a Porteira, quem ele pensa que faz isso?”, quis saber.

“Havia uma velha que guardava o portão”, explicou Loveday. “Ela viveu no solar durante um tempo, mas fazia tantas perguntas que Marmaduke Scarlet se irritou e a destratou, e então ela não quis mais conti­nuar morando ali. Foi assim que Sir Benjamin a nomeou Porteira, para que ela tivesse um lar confortável. Mas ela brigou com ele também, pois me parece que, além de curiosa, era também uma velha muito mal-humo­rada; não falava com ele, nem deixava que ele colocasse os pés na casa. Então ela morreu e ocupei seu lugar. Mas Sir Benjamin não sabe que ela morreu e nem que eu tomei o seu lugar. A capa que eu uso pertencia a ela, que também era pequena, de tal modo que, quando Sir Benjamin me vê ao atravessar o portão, ele pensa que está vendo a velha Elspeth. Sei que posso confiar em você, Maria. Sei que guardará o meu segredo, assim como os aldeões”.

“Pode confiar”, disse Maria, inclinando-se da charrete para dar um beijo em Loveday, que o retribuiu. Em seguida, ela e Digweed atravessa­ram o túnel e saíram na beleza calma e tépida do parque.

Maria não passava por aquele caminho desde a noite de sua chegada, por isso olhava tudo à sua volta com grande curiosidade. O lugar parecia muito diferente à luz do dia, mas as clareiras que serpenteavam entre as árvores eram igualmente misteriosas, e ela não ficaria nem um pouco sur­presa se visse o cavalinho branco galopando entre elas. Mas não viu, e ago­ra tinha parado de olhar para prestar atenção à conversa com Digweed, pois ele se divertira muito na cidade-mercado e queria lhe contar. Comprara uma pá e uma foice novas, dez ratoeiras, uma garrafa de xarope para tosse para seu uso pessoal, um porco, um canário na gaiola, um osso enor­me, um pacote de biscoitos, um maço de rabanetes, um saco de papel cheio de balas de caramelo e outro cheio de rebuçados cor-de-rosa, uma cabeça de bacalhau e um pacote grande de tabaco. Foi uma viagem bastante barulhenta, pois o porco guinchava, o canário cantava a plenos pul­mões, as ratoeiras pulavam e chocalhavam a cada ressalto da estrada, e a cabeça de bacalhau tinha um cheiro tão forte que quase dava para ouvi-lo. Mas Maria gostou do passeio, apesar da cabeça de bacalhau, pois Digweed era. muito gentil, uma companhia adorável, a quem ela muito amava.

Sir Benjamin e a srta. Heliotrópio estavam caminhando pelo jardim do solar. Digweed parou a charrete para que Maria saltasse e se juntasse a eles. Quando ela desceu, ele lhe entregou os rebuçados cor-de-rosa.

“Para você, patroinha”, disse, todo acanhado.

E então, com o rosto ruborizado, entregou as balas de caramelo para a srta. Heliotrópio.

“Para a senhora, madame”, disse. “Embora saiba que prefere pastilhas de menta”.

Em seguida, entregou o tabaco para Sir Benjamin e saiu rápido, antes que qualquer um deles tivesse tempo de agradecer-lhe devidamente.

“Sempre nos traz presentes da cidade”, disse Sir Benjamin rindo en­quanto os três caminhavam de volta para o solar. “Esse canário, creio eu, é para Marmaduke Scarlet. Marmaduke é apaixonado por pássaros, mas seus bichos de estimação estão fadados a uma vida curta, por causa de Zacarias”.

A srta. Heliotrópio parecia um pouco agitada, pensou Maria, e Sir Benjamin agora lhe explicava por quê.

“Estou levando a srta. Heliotrópio para um pequeno passeio a fim de acalmar-lhe os nervos”, disse ele. “Pois esta manhã Marmaduke deci­diu se apresentar a ela. Em vez de abrir as cortinas do quarto e colocar o jarro de água quente na pia com o habitual silêncio que é do seu feitio, sem despertar nem mesmo as pessoas de sono mais leve, ele fez tanto barulho que ela acordou e o encontrou ali”.

“Foi um choque”, falou a pobre srta. Heliotrópio com a voz trêmu­la. “Um grande choque. Nenhum homem, exceto meu pai, naturalmente, jamais colocou os pés no meu quarto”.

“Marmaduke Scarlet não é bem um homem, srta. Heliotrópio”, con­fortou-a Sir Benjamin. “Ele é... bem... Marmaduke Scarlet. E o fato de se revelar à senhorita é uma enorme lisonja, pois sua aversão ao sexo femi­nino geralmente o faz evitar as mulheres como quem evita uma praga”.

“Então agora já sabe, srta. Heliotrópio, quem faz as tarefas da casa com tanto esmero”, disse Maria.

“Sim, agora eu sei”, disse a srta. Heliotrópio esboçando um sorriso. “E não teria acreditado que tão pequeno e idoso... cavalheiro, devo dizer, por falta de um termo melhor... poderia ser tão excelente dona de casa!”

“Mesmo assim, a senhorita ficou abalada”, disse Sir Benjamin com simpatia. “Não acha que uma voltinha de carruagem hoje à tarde lhe fa­ria bem? Não creio que vá chover antes do anoitecer. A senhorita e Ma­ria poderiam dar um passeio na carruagem puxada pela pônei. É uma car­ruagem própria para damas, embora esteja sem uso há vinte anos. Mas Digweed pode limpá-la de novo num instante”.

“Nada me daria maior prazer”, disse a srta. Heliotrópio polidamente.

“Oh, senhor”, exclamou Maria toda contente. “Podemos ir até a Colina do Paraíso?”

“Certamente”, respondeu Sir Benjamin.

Estavam em casa agora, e, enquanto Sir Benjamin e a srta. Heliotró­pio paravam para dar uma última olhada no jardim, Maria correu até o saguão. Todos os quatro animais — Wrolf, Zacarias, Wiggins e a lebre Se­rena — estavam reunidos amigavelmente ao redor do fogo, alegremente entretidos com o presente que Digweed trouxera para cada um deles da cidade. Wrolf com o osso enorme, Zacarias com a cabeça de bacalhau, Wiggins com os biscoitos, e Serena com os rabanetes. Olharam para ela com as mandíbulas ocupadas em mastigar e abanaram rabos e orelhas numa calorosa acolhida. Maria passou de um em um, acariciando-lhes a cabeça macia. Tudo parecia muito cordial e acolhedor, e mais do que nun­ca ela sentiu que seu período de adaptação a Moonacre havia terminado e que ela estava firmemente integrada àquele lugar, como uma joia em seu engaste. Sensação que se acentuou ainda mais quando a porta da cozinha se abriu e o rosto barbudo e rosado de Marmaduke Scarlet se introduziu pelo vão, com aquele seu imenso sorriso de orelha a orelha.

“Suplico-lhe que me conceda a gentileza, patroa, de adentrar o re­cinto de meus afazeres culinários”, disse ele com sua voz esganiçada. “Fo­mos informados por Zacarias, o gato, que você faria o desjejum na resi­dência do reverendo vigário de Silverydew. Contudo, tendo formado no passado uma opinião desfavorável sobre o sustento oferecido na casa pa­roquial, tomei a liberdade de incrementar o repasto que já ingeriu com uma pequena refeição fria. Queira fazer o favor de entrar”.

Maria entrou na cozinha e encontrou a mesa posta com uma toalha branquíssima, sobre a qual havia uma travessa de delicados bolinhos cober­tos com glacê cor-de-rosa, uma caneca de leite espumante e uma tigelinha de prata cheia de cerejas carameladas. Enquanto ela mastigava os bolinhos glaceados, beliscava as cerejas e sorvia longos e prazerosos goles do leite fresco, Marmaduke Scarlet subiu num banquinho e pendurou seu canário na janela. Durante todo o tempo em que ajeitava a gaiola, ele não deixou um minuto sequer de sorrir para Maria, chegando a lançar-lhe uma pisca­dinha com o olho esquerdo. Ele estava muito, muito satisfeito com ela, Ma­ria percebeu; era como se soubesse e aprovasse a decisão que ela tomara na sala do Velho Pároco ao ouvi-lo contar a história de sua família.

“Marmaduke Scarlet”, chamou ela, atrevendo-se a lhe fazer uma pergunta, visto que estava tão radiante e amigável, “como foi que Zaca­rias transmitiu o recado deixado pelo Velho Pároco?”

Marmaduke Scarlet acenou com a cabeça em direção à grande lareira.

“Qualquer comunicado deixado a cargo de Zacarias, ele o escreve com a pata direita nas cinzas”, explicou Marmaduke. “Zacarias é um gato excepcionalmente prodigioso. Seus ancestrais eram cultuados como deuses pelos faraós do antigo Egito, assim me disse ele; corre sangue azul em suas veias, assim me disse ele. Essa afirmação eu mesmo tive ocasião de corroborar, pois quando, certa vez, ele teve o infortúnio de aproximar demais o focinho da machadinha de carne, enquanto eu preparava sua re­feição domingueira de carne, fígado e toucinho, o sangue que fluiu de seu ferimento era de um azul tão profundo quanto o da campânula-azul”.

Maria depôs a caneca de leite, correu até a lareira e olhou as cinzas. Estavam esparramadas de maneira uniforme, como se alisadas por um rabo comprido, e sobre elas haviam sido desenhadas pequenas figuras muito semelhantes a hieroglifos egípcios. Primeiro vinha o contorno de um vio­lino, então o contorno de uma lua minguante, ambos unidos por um cír­culo. Em seguida, o desenho de uma igrejinha ao lado de um bule de café. Maria riu, encantada. Ela entendeu: o violino era o Velho Pároco, e a lua, ela própria, e estavam juntos, e juntos se dirigiam à igreja para o café da manhã.

“Zacarias merece essa cabeça de bacalhau”, disse Maria. “E você, patroinha”, disse Marmaduke Scarlet, conduzindo-a de volta à mesa, “merece esses bolinhos glaceados, essas cerejas e esse leite”.

 

Depois do almoço, Digweed trouxe a carruagem puxada pela pônei. Estava muito lustrosa e reluzente, pois ele acabara de poli-la, mas tinha um aspecto bastante peculiar... Feita de fibras trançadas, tinha um formato grande e meio circular, como um berço de bebê, e assentava-se quase rente ao chão, sobre quatro rodas grandes e robustas. A capota de fibras era forrada com sarja xadrez vermelha, e o banco de madeira sob ela tinha almofadas vermelhas. Digweed espalhara palha limpa e fresca no piso e ornamentara o chicote com um laço escarlate, igual ao que Vinca trazia no alto da cabeça.

Acompanhadas por Sir Benjamin, a srta. Heliotrópio e Maria desce­ram pomposamente as escadas com Wiggins, pois o primeiro passeio numa carruagem para pônei que não era usada havia vinte anos lhes pa­recia uma ocasião e tanto. A srta. Heliotrópio usava um de seus bonitos fichus novos sobre o vestido de bombazina roxa, a capa preta e o chapéu amarrado sob o queixo. Trazia também sua bolsinha com o livro de en­saios dentro, e seus belos olhos azuis brilhavam e cintilavam. Maria tra­java um vestido de linho verde, sob uma capa verde forrada de amarelo, e um chapéu verde com uma pena amarela. Wiggins, com sua grande co­leira de couro, recebera uma escovação extra por conta da ocasião e esta­va mais bonito que de costume. Serena, que já se encontrava bem melhor agora, podendo se mover com relativa facilidade usando três pernas, des­ceu a escada atrás deles. Estava muito elegante com a coleira de cordão de prata trançado que Maria fizera para ela, e suas longas orelhas empi­navam-se em alegre expectativa.

Quando Maria e a srta. Heliotrópio tomaram assento na carruagem, Digweed cobriu-lhes os joelhos com uma manta de lã. Wiggins então sal­tou para dentro e foi sentar-se aos pés delas, sinalizando para Serena que ela podia acomodar-se a seu lado, com uma cortesia que fez Wrolf sorrir por entre os bigodes. Wrolf, é claro, ia acompanhá-las, mas a pé, pois não havia espaço na carruagem para seu corpanzil. Zacarias observou-os partir da porta da frente, ronronando afavelmente, com a cauda enrolada em três voltas perfeitas acima do corpo. Não se ofereceu para acompanhá-los porque, a menos que sua presença fosse realmente necessária, preferia fi­car em casa. Sir Benjamin e Digweed tampouco ofereceram sua compa­nhia, pois a pequena carruagem era feminina demais para sua dignidade masculina. Mas deram instruções precisas a Maria sobre como manejar as rédeas e que caminho tomar quando entrassem no vilarejo, acenando com grande entusiasmo à sua partida.

“As ovelhas que verá na Colina do Paraíso são minhas, Maria, e, por­tanto, suas também”, disse Sir Benjamin. “Pode ser que encontre o meni­no pastor lá em cima. O melhor menino pastor das redondezas”.

“Vou procurá-los, senhor”, gritou Maria enquanto se afastavam.

Maria achou que cavalgar era muito mais empolgante que conduzir a carruagem. Contudo, Vinca seguia em boa marcha, e a pequena e engra­çada carruagem sacolejava alegremente pelo caminho. O dia se tornara quente e sufocante, por isso receberam com prazer a brisa que soprava em seus rostos ao avançarem.

“Tem certeza de que consegue manejá-la, querida?”, perguntou a srta. Heliotrópio com ligeira inquietação. “Você não vai nos derrubar, não é mesmo?”

“Acho que não conseguiria fazer isso mesmo que eu quisesse”, disse Maria. “Essa carruagenzinha é tão sólida e robusta... e roda tão perto do chão...”

“Sim, de fato”, disse a srta. Heliotrópio, espiando para fora por sob a capota. “Mesmo que tombássemos, não seria uma grande queda. Acha que vem uma tempestade por aí?”

“Tempestades não são comuns nesta época do ano”, disse Maria.

“Espero que não encontremos ciganos nem caçadores pelo caminho, nenhuma dessas coisas desagradáveis”, disse a srta. Heliotrópio. “Deve haver alguns por aqui, por causa das armadilhas que andam montando”.

Com o chicote, Maria indicou a grande figura fulva de Wrolf galopando ao lado delas.

“Ah, sim”, disse a srta. Heliotrópio. “Não há dúvida de que ele é um excelente guardião. Embora, às vezes, Maria, um guardião seja tão assustador quanto aquilo de que ele nos guarda”.

“Wrolf morreria por aqueles que eu amo”, respondeu Maria com convicção.

Mas a srta. Heliotrópio continuava meio inquieta.

“Tem certeza de que sabe qual caminho tomar?”, ela perguntou.

“Sim”, disse Maria. “E, mesmo que não soubesse, Vinca sabe”. E Vinca sabia mesmo. Sem que Maria precisasse conduzi-la, ela atravessou o portão quebrado e entrou no vilarejo, desceu a rua principal e passou pela igreja. E, como Vinca estivesse trotando, elas puderam ter uma boa visão da casa paroquial. Ao vê-la, a srta. Heliotrópio exclamou admirada: “Essa é a casinha dos meus sonhos. É a casa onde eu gostaria de morar”.

“Mas a senhorita não pode”, disse Maria. “Ali vive o Velho Pároco”.

“Quis dizer, minha cara”, disse a srta. Heliotrópio com dignidade, “que é nela que eu gostaria de morar se já não estivesse ocupada pelo Velho Pároco”.

Vinca fez uma curva à esquerda e entraram numa estradinha estreita e acidentada, serpenteando colina acima entre encostas escarpadas onde crescia uma espessa vegetação de samambaias, vincas e prímulas, encostas tão altas que nada se avistava acima delas. Do lado de uma delas, passava um riacho murmurante, o mesmo que corria ao longo da rua do vilarejo.

“Parece ser um caminho muito antigo”, disse a srta. Heliotrópio. “Lembro que meu pai me disse, certa vez, que as estradas vão afundando cada vez mais no solo com o passar dos anos e dos muitos e muitos pés que andam sobre elas”.

“Os monges subiam e desciam por esta estrada”, disse Maria. “Seus pastores conduziam as ovelhas por este caminho. Sir Wrolf e seus amigos subiam cavalgando por aqui até o alojamento de caça. E a Princesa da Lua, montada no seu cavalinho branco, também andava por esta estrada. Assim como todas as pessoas do vilarejo, durante séculos, para rezar jun­to ao poço sagrado e fazer seus três pedidos sob o espinheiro encantado onde Sir Wrolf encontrou o cavalinho branco que veio do mar. Elas con­tinuam usando este caminho. Não é à toa que está tão esburacado”.

“Do que você está falando, criança?”, quis saber a srta. Heliotrópio.

“O Velho Pároco andou me contando umas histórias de fada”, dis­se Maria.

“Espero que não se deixe influenciar por elas”, disse a srta. Helio­trópio.

“Não”, respondeu Maria.

Não era uma estradinha longa, mas tão íngreme que Vinca marcha­va devagar, e Wiggins e Serena saltaram da carruagem para juntar-se a Wrolf. Wiggins traçava seu caminho sobre os sulcos com muita elegância, Serena avançava com longos saltos de três pernas, e Wrolf subia tranqui­lamente como se passeasse, parecendo muito forte e determinado. Mas a estrada finalmente terminou, e eles chegaram à Colina do Paraíso. Vinca parou, por decisão própria, para que a srta. Heliotrópio e Maria pudessem admirar a vista.

A Colina do Paraíso merecia o nome que tinha: era bela demais para pertencer a este mundo.

“‘Elevarei meus olhos aos montes’“, citou a srta. Heliotrópio, ‘“pois deles vem o meu socorro’“.

Maria não disse nada. Saltou da carruagem, caminhou ura pouco so­bre a turfa macia e parou para olhar ao redor. Tão alto estavam que dava para ver o Vale de Moonacre lá embaixo. Àquela distância, o vilarejo, a igreja e a casa paroquial pareciam brinquedos de madeira entre árvores em flor e jardins coloridos. À direita ficava o esporão da encosta rochosa que se estendia desde a Colina do Paraíso até o parque de Moonacre, den­tro da qual se escondiam o túnel e a casa de Loveday Minette. E, ao longe, a bonita área do parque e o solar. À esquerda, estava a grande massa sombria do bosque de pinheiros, encobrindo as colinas do norte.

As colinas circundavam todo o vale como um grande muro. Só muito longe, ao leste, havia uma brecha entre elas, onde se afastavam como cortinas para revelar uma reluzente placa de madrepérola que mais parecia a soleira do céu. O que era aquilo? Oh, o que era aquilo?

O mar! Pela primeira vez na vida, Maria via o mar. Seu coração disparou, e suas bochechas ficaram ruborizadas. Estava contente agora de não ter visto o mar no dia em que encontrara Serena. Era melhor vê-lo pela primeira vez assim, à distância. As melhores coisas da vida são vistas pela primeira vez à distância.

Quando seus olhos se fartaram de contemplar o vale e a reluzente soleira do mar, ela se virou para olhar a própria Colina do Paraíso. O verde vívido da relva estava salpicado de violetas lilases e flores de morango, que pareciam estrelas brancas. Acima dela, as ovelhas pastavam em lindas encostas, e cordeiros semelhantes a flocos de nuvem branca saltitavam sobre a relva e as flores. O grupo de árvores no topo da colina parecia mui­to próximo agora, e Maria viu que eram faias, sob as quais se espalhavam as pedras cinzas que ainda restavam do mosteiro. O riacho brotava da terra em algum lugar no alto da colina e serpenteava encosta abaixo entre pedras recobertas de musgo e arbustos de alecrim perfumado. Num trecho do caminho, um velho espinheiro cinzento se debruçava sobre ele, e ao vê-lo, Maria correu até lá.

Era um espinheiro negro e já estava dando flores, botões brancos como o cavalinho branco que Sir Wrolf encontrara preso entre seus ramos cinzas — capturado por eles ao se aproximar do riacho para beber, seden­to que estava de galopar colina acima desde o mar. Com as raízes fincadas entre as pedras, estirava-se por sobre o riacho como que a protegê-lo, mergulhando suas pétalas na água clara e cristalina. Maria se pôs a imaginar que, naquele exato momento, pétalas brancas flutuavam pelo riacho até o vilarejo, passando sob as pontezinhas que saíam de cada portão de jardim e carregando com elas, talvez, a realização dos pedidos que os aldeões ali faziam nos dias santos e feriados.

“Farei um pedido também”, disse Maria para si mesma, e apoiando a mão no velho tronco retorcido ela fez três pedidos.

Que pudesse livrar o vale da maldade dos Homens do Bosque Som­brio.

Que pudesse conhecer o pastor pobre e amá-lo. Que pudesse ser a primeira Princesa da Lua a viver para sempre no seu lar.

Quando terminou de fazer os pedidos, percebeu que seu coração es­tava acelerado. Teve certeza, então, de que eles seriam atendidos e estava resolvida a enfrentar todas as aventuras que a realização de tão emocio­nantes desejos fatalmente acarretaria.

“Maria!”, chamou a srta. Heliotrópio. “Não vá muito longe, querida. Não se afaste dos meus olhos”.

Maria correu até a srta. Heliotrópio e os animais. “Mas preciso subir no topo da colina”, ela implorou. “Preciso olhar aquelas faias e as anti­gas pedras cinzentas”.

“A colina é escarpada demais para a carruagem”, objetou a srta. He­liotrópio. “E escarpada demais para mim. Você deve ficar aqui; não pos­so permitir que vá sozinha”.

“Sir Benjamin não se importa que eu vá aonde quiser, desde que Wrolf me acompanhe”, disse Maria. “Fique aqui na carruagem, com Vin­ca e Wiggins para protegê-la, enquanto eu subo no topo da colina com Wrolf e Serena para cuidarem de mim. Assim não haverá problemas, srta. Heliotrópio”.

O dia estava ficando abafado e quente, quente demais para discussões, por isso a srta. Heliotrópio acabou concordando. Acomodou-se confortavelmente na carruagem com seu livro de ensaios, na companhia de Wiggins, enquanto Vinca pastava calmamente na turfa fresquinha.

“Tome conta da srta. Heliotrópio, Vinca”, ordenou Maria. “Acon­teça o que acontecer, tome conta dela”.

Vinca parou de ruminar por um instante, ergueu a cabeça e lançou um olhar firme para sua dona. Em seguida, baixou a cabeça e voltou a ru­minar. Mais tranquilos agora, Maria, Wrolf e Serena partiram juntos rumo ao topo da colina. Foi uma escalada íngreme e calorenta e levou mais tempo do que Maria esperava. Criada na cidade, ela ofegava e suava, invejando os longos saltos de Serena e a incansável resistência de Wrolf. E Wrolf não facilitava muito as coisas, pois o tempo todo empurrava seu corpo para cima dela, fitando-a com o olhar fulvo e contrariado.

“O que é que há, Wrolf?”, quis saber. “Estou fazendo algo errado?”

Com um rosnar desanimado diante da estupidez de Maria, Wrolf se colocou no meio do caminho, obrigando-a a parar e olhar para seu dorso largo. Só então ela compreendeu o que ele queria e, agradecida, mon­tou nele como se fosse Vinca.

A partir de então, tudo ficou bem mais fácil. O pelo espesso e boni­to de Wrolf fornecia um assento macio, e com os dedos enroscados em sua juba ela não teve dificuldades para se segurar. Finalmente, pôde olhar ao seu redor e, à medida que subiam, ver o lindo campo que se descorti­nava à volta deles como um mapa e a linha do mar que cingia o horizon­te como uma fita de prata. Mas o céu estava muito escuro e pesado, com uma tonalidade quase roxa, e ela teve a impressão de ouvir ao longe o mur­múrio de um trovão... E ela que dissera para a srta. Heliotrópio que as tempestades não eram comuns naquela época do ano... Mas ela ficaria bem, pois Vinca tomaria conta dela.

Estavam quase no topo agora. Olhando para o alto, Maria avistou as velhas faias agitando-se ao vento, suas folhas novas açoitando o céu viole­ta como línguas de fogo verdes, e as antigas pedras cinzas caídas sob elas. Estava no meio das ovelhas agora. As mães levantaram a cabeça para olhá-la e a cumprimentaram com um balido, enquanto os cordeirinhos cabriolavam ao seu redor. Ela estranhou que eles não demonstrassem nenhum medo de Wrolf. Um ou dois vieram importuná-lo e ele os mandou para longe com uma patada brincalhona e inofensiva que os fez rodopiarem numa alegre cambalhota. Serena, por sua vez, saltava para lá e para cá en­tre as ovelhas e pareceu que estava lhes dizendo alguma coisa, pois todas olharam para Maria com ar de grande satisfação e baliram novamente.

Que música era aquela? Em algum lugar lá no alto, sob as faias, al­guém tocava uma flauta de pastor, e a alegre melodia desceu flutuando até Maria como uma voz a chamá-la. Ela se lembrou do pedido que fizera sob o espinheiro. Era o menino pastor!

Finalmente, chegaram ao topo da colina. Wrolf parou e ela deslizou de cima dele.

“Fiquem aqui”, disse Maria para ele e Serena, disparando em seguida na direção das faias e galgando as velhas pedras cinzas. “Você está aí?”, ela gritou. “Menino pastor, você está aí?”

Porém não houve resposta, e a música agora havia silenciado. Nada se ouvia exceto o murmúrio de água correndo em algum lugar escondido. Ela continuou quieta, olhando de um lado para outro, a escutar, mas não havia nada.

“Deve ter sido imaginação minha”, disse para si mesma. “Vai ver era só o barulho da água”. Por um momento, teve vontade de chorar de desapontamento.

Mas só por um momento, pois Maria era muito sensata para se dei­xar abater por pequenos desapontamentos. Além disso, havia tanta coisa para ver que ela logo se esqueceu da melodia que fantasiara. As faias, com seus troncos lisos e cinzentos e galhos estendidos para um lado e para ou­tro, pareciam mais seres humanos que árvores; eram como velhos mon­ges de braços abertos a espalhar bênçãos. E, bem no meio do círculo for­mado pelas faias, parte dos muros do mosteiro ainda se mantinha de pé, recobertos por heras e arbustos de sarça.

No muro quebrado, Maria deparou com uma bonita porta entalha­da, meio encoberta por uma cortina de heras. Afastou a cortina e cruzou a porta. O lugar parecia ter sido um pequeno pátio pavimentado com pe­dras, as quais ainda estavam lá, misturadas com outras pedras caídas, cobertas com ervas daninhas e sarças. No centro do pátio, havia uma exuberante moita de samambaias, e era lá de dentro, do fundo, que vi­nha o murmurinho da água. “É aqui que fica o poço sagrado”, disse para si mesma.

Afastou as samambaias para o lado e ali estava. Não um poço como o que havia no pátio dos estábulos no solai, mas uma linda nascente de águas claras que brotavam do solo em borbulhas, forçando sua passagem por um aglomerado de folhas de faias mortas que lhe obstruíam a saída, para então correr entre as pedras do pavimento e, passando sob um arco baixo no muro oposto, seguir na direção da encosta da colina, mais além. Maria se pôs a imaginar que elas serpenteariam pela encosta até forma­rem o riacho que corria sob o espinheiro encantado e dali desceriam pela colina até o vilarejo. De um lado do arco baixo crescia uma sorveira car­regada de frutos escarlates; do outro, um azevinho com folhas lustrosas, brilhantes, acima do qual, no muro, havia um nicho vazio.

Maria ajeitou sua capa verde ao redor do corpo, ajoelhou-se nas pe­dras do pavimento, cruzou as mãos, fechou os olhos e orou. Pois lembrou-se que aquele lugar fora sagrado um dia e que seu ancestral, Sir Wrolf, se apoderara dele, roubando-o de Deus. E agora, diziam, seu fan­tasma assombrava o lugar e, por causa de seus pecados, não podia entrar no Paraíso.

“Ó Deus”, rezou ela, “por favor, perdoe Sir Wrolf por ter sido tão ganancioso. E, por favor, me mostre o que devo fazer para devolver-Lhe este lugar. E então, por favor, permita que ele entre no Paraíso”.

Um clangor estranho, como o ruído das ferraduras de um cavalo pi­sando nas pedras, fez Maria abrir os olhos instantaneamente. Mas ela não viu nada esquisito ao seu redor, exceto a cortina de heras, no muro do lado oposto, que balançava um pouco, como se alguém acabasse de pas­sar por ali. Dirigiu-se até lá e afastou a cortina. Atrás dela, no muro, um outro arco de pedra baixo dava passagem não para a encosta da colina, mas para a escuridão e um lanço de escadas que levava ao subterrâneo.

“Deve haver um porão lá embaixo, ou algo assim”, disse Maria. Ela teria descido para dar uma olhada se outra coisa não tivesse atraído a sua atenção: uma flauta de pastor sobre a laje de pedra ao lado da porta... Era verdade, então; ela ouvira mesmo alguém tocar uma flauta... Com o cora­ção aos pulos, ajoelhou-se ao lado da flauta e já se preparava para pegá-la quando, subitamente, coisas alarmantes começaram a acontecer.

A primeira delas foi que o balido das ovelhas na colina mudou de tom — em vez de alegre e feliz, era um balido de terror. Em seguida, o cla­rão de um relâmpago no céu se fez acompanhar de uma trovoada.

“A srta. Heliotrópio!”, lembrou-se Maria de súbito. “A srta. Helio­trópio! Ela morre de medo de tempestades”.

Levantou-se de um pulo e correu de volta pelo caminho por onde viera até chegar à encosta da colina. Dali, a distância, avistou Vinca dis­parando rumo ao solar o mais depressa que podia, com a carruagem sal­tando e sacolejando sobre o terreno acidentado. “Muito bem, Vinca! Muito bem, Alegria-da-casa!”, gritou Maria. “Ela está cuidando da srta. Heliotrópio conforme eu pedi”.

Em seguida, olhando ao redor, descobriu por que razão as ovelhas estavam assustadas e percebeu também que Vinca estava protegendo a srta. Heliotrópio de algo muito pior que uma tempestade. Espalhados pela encosta, havia seis homens vestidos de preto, sombrios, vultos aterradores que pareciam ter caído das nuvens cinzentas lá em cima. E estavam roubando os cordeiros! Dois deles já desciam a colina levando nos om­bros um pobre fardo de lã branca.

“Wrolf! Wrolf!”, chamou Maria, mas um rugido intenso ressoou do outro lado da colina, e Maria entendeu que Wrolf estava ocupado com ou­tros Homens do Bosque Sombrio que ela não via dali. Se quisesse salvar aqueles cordeiros, cordeiros Merryweather, seus cordeiros, teria de fazer isso sozinha.

Apesar do terrível medo que sentia, ela não hesitou. Recolheu as saias com as duas mãos e disparou colina abaixo, gritando como havia gritado quando saíra em socorro de Serena: “Soltem esses cordeiros, es­tou avisando! São meus cordeiros. Soltem-nos!”

Mas os homens que carregavam os cordeiros seguiram adiante, en­quanto os outros quatro correram na direção de Maria, brandindo seus porretes e dando risada. Seus olhos faiscavam com tanta maldade em suas feições escuras que Maria viu neles um sinal de desgraça a caminho.

“Não tenho medo de vocês”, ela gritou, embora estivesse tão apavo­rada que sua língua quase grudava no céu da boca. “Não ousem machu­car meus cordeiros! Não se atrevam!”

Tudo então ficou muito confuso. O estrondo do trovão, o clarão do relâmpago, a chuva caindo como lanças de prata e os Homens do Bosque Sombrio se aproximando dela. À sua direita, no meio da chuva, ela avis­tou vagamente um vulto magro vestido de marrom, com um cajado de pastor na mão, correndo na sua direção; e, à esquerda, Wrolf vindo às pressas em seu auxílio, com Serena saltando logo atrás dele... Mas esta­vam longe de chegarem tão perto quanto Eles...

E então, em meio ao barulho do trovão e da chuva, ela ouviu clara­mente os cascos de um cavalo a galope pisoteando a relva. Como o cava­leiro estivesse atrás dela, Maria não conseguiu ver coisa alguma. Mas, fosse ele quem fosse, os Homens do Bosque Sombrio pareciam tê-lo vis­to, pois, com os semblantes pálidos de terror, deram a volta e fugiram. Os dois homens que levavam os cordeiros se viraram para trás e, ao olharem para cima e verem o mesmo que os outros tinham visto, largaram as ove­lhas e também fugiram. O vulto magro e marrom que vinha correndo aproximou-se dela e pegou-lhe a mão... Era Pisco.

“Rápido!”, ele gritou. “Há muitos mais deles por aí. Rápido! Corra até o mosteiro e esconda-se. Wrolf e eu vamos recolher as ovelhas. Corra!”

Maria correu e, enquanto corria, procurou ao redor pelo cavaleiro montado no cavalo a galope. Mas não viu nada, só a chuva e as velhas laias lá em cima, no alto da colina. Seguiu na direção das árvores como quem procura o refúgio do lar, passou correndo sob elas e não parou de correr até chegar ao pequeno pátio pavimentado e ao poço sagrado. Tudo estava calmo e quieto ali, e os galhos entrelaçados acima de sua cabeça abrigavam-na da chuva. Sentou-se ofegante junto da nascente e soube que estava a salvo. Ouviu então o rosnado de Wrolf a arrebanhar as ovelhas e a voz clara de Pisco a confortá-las e tranquilizá-las.

Dali a pouco, liderados por Serena, chegaram todos, em bando, e se reuniram ao redor dela, as mamães ovelhas e os cordeirinhos de caras pre­tas, caudas abanando e pernas compridas e desajeitadas. Cordeiros Merryweather. Seus cordeiros. Ela estendeu as mãos para eles, murmu­rando sons reconfortantes, e eles e suas mães se juntaram à volta dela. In­clinaram-se para beber da nascente de água fresca, enquanto Maria afa­gava-lhes a cabeça e conversava com eles como se fossem crianças. A chuva cessou, e um tímido raio de sol desceu sobre o pequeno pátio, prateando a água borbulhante e tingindo de ouro a lã das ovelhas. Ao erguer a ca­beça, Maria encontrou Pisco parado ao seu lado e Wrolf a sacudir-se vi­gorosamente para retirar a umidade dos pelos.

“Estamos seguros aqui”, disse Pisco. “Este é um lugar sagrado, e os Homens do Bosque Sombrio são malvados, nunca vêm até aqui. Eles têm medo”.

Maria olhou para ele. Trazia no rosto uma expressão séria que não era do seu feitio e estava todo molhado; gotas de chuva pingavam da pon­ta da pena que enfeitava seu chapéu.

“É você, então, o menino pastor”, disse Maria.

“Sou o menino pastor, o jardineiro-mirim e o faz-tudo de Sir Benja­min”, disse Pisco. “Você não sabia? Estava tocando flauta aqui quando de repente senti que havia algo errado. Saí e os vi subindo pelo outro lado da colina. Mas nunca teria ido atrás deles se não fosse por você e com a ajuda de Wrolf”.

“E do homem a cavalo”, disse Maria.

“Que homem a cavalo?”, perguntou Pisco.

“Ouvi um homem a cavalo galopando atrás de mim”, explicou Ma­ria. “Foi logo depois que chamei por Wrolf. Não consegui vê-lo, mas Eles sim. É curioso que não o tenha visto”.

“Não, não o vi”, disse Pisco, com ar muito sério e a água a gotejar de sua pena encharcada.

“Você está todo molhado, Pisco”, disse Maria.

“E você também”, disse Pisco.

Wrolf, que já sacudira toda a água do corpo e não estava mais mo­lhado, caminhou até o arco por trás da cortina de heras, onde a flauta de Pisco ainda repousava sobre a pedra, e voltou até eles novamente, emitin­do um rosnado baixo e profundo ao se aproximar.

“Ele tem razão”, disse Pisco para Maria. “Você vai pegar um resfriado se não tirar essas roupas molhadas”.

Estendeu-lhe a mão para ajudá-la a se levantar. “Vamos até minha casa; minha mãe lhe dará roupas secas. Wrolf ficará aqui com as ovelhas até ter certeza de que não há mais nenhum deles rondando por aí. Quan­do o sol se puser, as ovelhas estarão em segurança. Os Homens do Bos­que Sombrio não ousam nem sequer vir à colina depois que o sol se põe. Ninguém ousa. Todos têm medo”.

“Do fantasma de Sir Wrolf?”, perguntou Maria.

“É o que dizem”, respondeu Pisco.

“Sua casa fica longe, Pisco?”, indagou Maria. De repente ela se dera conta de que estava não só encharcada, mas também exausta. Mal conse­guiria dar outro passo. E, se Wrolf teria de ficar com as ovelhas, ela não poderia montar nele como fizera ao subir a colina.

“Minha casa é logo ali”, disse Pisco. “Teremos de andar um pouco ainda, mas o caminho todo é uma descida. Tchau, Wrolf”.

“Tchau, Wrolf”, disse Maria, acariciando-lhe a enorme cabeça desgrenhada. “Tchau, ovelhas”. Em seguida, olhando ao redor, perguntou, apreensiva: “Mas onde está Serena? Estava aqui agora há pouco”.

“Não se preocupe com Serena”, disse Pisco. “Ela deve ter ido fazer alguma coisa por aí. Não sei o quê, mas, seja o que for, certamente é algo útil. As lebres são muito sabidas”. Dizendo isso, pegou a mão de Maria e conduziu-a pelo pátio até o arco no muro detrás da cortina de heras.

“É esta a sua casa?”, perguntou ela, surpresa.

“Sim”, disse Pisco. “Esta é a Porta do Paraíso. Temos três portas: a Porta da Frente, a Porta dos Fundos e a Porta do Paraíso”.

“E você tem uma mãe lá embaixo?”, perguntou Maria, espreitando a escuridão com ar preocupado.

“A melhor mãe do mundo”, disse Pisco. Em seguida, enfiou a mão num nicho que havia na parede e dali retirou uma lanterna, que ele acendeu com uma pederneira e um pavio que trazia no bolso. “Vou na frente, siga-me, e arregace bem o vestido para não arrastá-lo na poeira”.

A curiosidade logo fez Maria esquecer todo o cansaço que julgava sentir, enquanto Pisco a conduzia por uma escada de pedra direto para as profundezas da terra. Chamar aquilo de escada era mera cortesia, pois tra­tava-se, na verdade, de degraus escavados muito toscamente no que parecia ser um túnel natural no meio da rocha.

“Minha mãe diz que, em tempos idos, devia passar um riacho por aqui”, disse Pisco. “E que esse riacho formou o túnel. Então, os monges fizeram os degraus, para que assim pudessem descer rápido até o vilarejo quando o tempo estava ruim. Estas colinas são cheias de túneis e cavernas. Nossa casa era provavelmente uma caverna. Ou várias cavernas. Ela é muito engraçada. Minha mãe acha que os monges a construíram para instalar uma escola ou um hospital para os aldeões”.

Andaram e andaram até que, subitamente, o túnel chegou ao fim. Estavam diante de uma arcada pequena e baixa na qual se encaixava uma porta de carvalho cujo tamanho só permitia a entrada de uma criança ou alguém muito franzino e de pouca estatura. Na porta havia uma aldrava que era uma pequena ferradura de prata.

“Pisco”, sussurrou Maria, “esta porta é tão pequena quanto a do meu quarto, e a aldrava é igualzinha à que tenho lá”.

“Dizem que a maioria das pessoas que viviam séculos atrás era me­nor do que somos hoje”, respondeu Pisco. “Deve ser por isso que os monges fizeram uma porta tão pequena. Não sei quem pôs essa aldrava. Já estava aí quando minha mãe e eu descobrimos essa porta, e acreditamos que ninguém mais, além de nós, conhece esta passagem. Dizem que a sua aldrava foi colocada lá pela primeira Princesa da Lua”.

Ele abriu a porta, apagou a lanterna e afastou-se para o lado cortes­mente, para que Maria entrasse primeiro.

Era uma caverninha engraçada, quase do mesmo formato que o quarto de Maria no solar, só que menor. Tinha apenas uma janela, lá no alto da parede, e a única coisa que se via através dela era um pedaço do céu. O quartinho tinha pouca mobília. Havia somente uma cama baixa de madeira coberta por uma colcha de retalhos, um baú entalhado e uma estante de livros. Na parede oposta, havia outra arcada pequena, mas sem porta. Maria teria gostado de demorar-se um pouco por ali para ver que livros Pisco tinha na estante, mas ele não deixaria.

“Vamos logo procurar minha mãe e trocar de roupa”, ordenou Pisco, dirigindo-se até a segunda arcada. Maria o seguiu pelo estreito lanço de degraus que levava direto ao quarto de Loveday Minette.

“Pisco!”, gritou ela, surpresa e, ao mesmo tempo, encantada. “Pisco! É Loveday Minette a sua mãe?”

“É claro”, respondeu ele com a maior naturalidade.

“E eu que achava que Loveday fosse casada com uma criatura feéri­ca”, disse Maria, “por causa desses degraus estreitos. Mas era a você que ela estava se referindo quando disse ‘ele’”.

“Meu pai não era um ser encantado”, disse Pisco. “Era um mortal, um advogado. Não era um homem do vale. Ele e minha mãe viviam na cidade-mercado que fica do outro lado da Colina do Paraíso. Morreu quando eu tinha apenas quatro anos de idade, e então minha mãe voltou a morar no Vale de Moonacre. Porque ela tinha vivido aqui antes de se ca­sar, e as pessoas que um dia viveram aqui nunca são felizes em outro lugar”.

Estavam agora no quarto de Loveday, e Pisco gritou da escada, cha­mando-a no aposento de baixo: “Mãe, você está aí? Maria está aqui, toda molhada”.

“Estou indo”, respondeu a voz prateada de Loveday. Num instante ela estava com eles, elegante, encantadora e parecendo jovem demais para ser mãe de Pisco.

“Desça, Pisco”, disse ela, “e vista as roupas secas que deixei arejando na frente da lareira”.

Pisco obedeceu, deixando Loveday e Maria sozinhas no adorável quarto de Loveday.

“Tire logo essas roupas molhadas, Maria”, ordenou Loveday com o tom pressuroso das mães. “Tenho um vestido que ficará perfeito em você. Nunca foi usado. Não está surrado como aquele meu velho traje de montaria que você usa”.

Maria, que estava despindo seu úmido vestido verde, deteve-se e es­piou Loveday pelas dobras da roupa. Ela estava de joelhos diante do baú de carvalho, revirando no fundo à procura do vestido que nunca fora usado.

“Agora eu entendi”, disse ela. “É você que vai ao solar todas as ma­nhãs, enquanto ainda estou dormindo, e prepara as roupas para mim, não é Loveday? E é seu o meu livro de preces. E foi você quem fez aquelas coisas lindas para a querida srta. Heliotrópio. Oh, Loveday, por que é tão boa para mim?”

“Na noite em que vocês chegaram”, disse Loveday, “abri o portão sob o arco de pedra para que entrassem. Você não me viu, mas eu a vi, e amei-a como se fosse minha própria filha”.

“E desde o momento em que vi você”, disse Maria, “amei-a como se fosse a minha mãe. Oh, Loveday, por que não me desperta e me dá um beijo quando vai ao meu quarto de manhã?”

“Farei isso agora”, disse Loveday. “Como sabe, eu entrava lá secre­tamente. Não queria que ninguém soubesse da minha presença. Sir Benja­min e Marmaduke Scarlet não toleram mulheres por lá. Antes de vocês chegarem, eles se vangloriavam de dizer que nenhuma mulher pisava no so­lar havia vinte anos. Maria, você não deve contar-lhes que apareço por lá”.

“Não direi nada”, Maria prometeu. “Mas, Loveday, quem a deixa entrar?”

“O gato Zacarias”, disse Loveday.

“Ah”, disse Maria, livrando-se do vestido verde, dos sapatos e meias molhados, e colocando-se diante de Loveday com seus pezinhos brancos e graciosos espiando por baixo da anágua de musselina.

Loveday levantou-se e veio na direção de Maria, trazendo nos braços uma peça branca e cintilante. Ergueu-a sobre a cabeça de Maria e en­tão desceu-a pelo corpo da menina, e Maria viu que era um magnífico vestido de cetim branco perolado. Era o mais belo vestido que já vira, e, enquanto Loveday o abotoava, ela suspirou de satisfação... Parecia ter sido feito sob medida para ela.

“É um vestido de noiva”, disse Loveday. “Mas nunca cheguei a usá-lo”.

“Por que não?”, perguntou Maria, perplexa. “Imagine ter um vesti­do lindo como este e não usá-lo no seu casamento!”

“O homem com quem ia me casar quando fiz esse vestido não foi o homem que desposei”, explicou Loveday. “Fui noiva de um cavalheiro rico no passado e fiz esse vestido para me casar com ele. Então brigamos, e aca­bei não me casando com ele. Desposei um cavalheiro pobre usando um vestido de musselina bordada, que era mais condizente com a condição do meu noivo... Você está um encanto, minha querida. Mire-se no espelho”.

Maria dirigiu-se ao antigo espelho de prata polida, sem medo, dessa vez, porque Loveday estava bem atrás dela, olhando por sobre o seu om­bro e sorrindo, e ela viu o rosto feliz de ambas, lado a lado. Aquele bri­lho de luar, um presente do espelho às feições que ele refletia, conferia-lhes uma semelhança de irmãs que alegrou seus corações.

“Não acha que somos parecidas?”, perguntou Maria. “Sou tão sem graça, e você é tão bonita, mas ficamos parecidas nesse espelho”.

“Somos parecidas”, disse Loveday. “Mas não cometa os mesmos er­ros que eu, Maria, faça o que fizer”.

“Que erros?”, perguntou Maria.

“Foram tantos que é difícil dizer”, disse Loveday, “mas todos tive­ram origem na minha tendência para ser provocativa e perder a calma. Nunca seja provocativa, Maria, nem se deixe enfurecer”.

“Farei o possível”, prometeu Maria. “Posso usar este vestido quan­do me casar?”

“É claro”, disse Loveday. “Nem será preciso reformá-lo. Está perfei­to em você”.

Desceram as escadas e lá estava Pisco, já com roupas secas e a mesa posta para o chá, com pão e manteiga, mel, nata e um bolo de gengibre dourado. A chaleira apitava no fogo, o gatinho branco ronronava ruido­samente e a estranha sala-caverna parecia reluzente e aconchegante, ilu­minada pelas chamas crepitantes da lareira. Depois de colocar as roupas úmidas das crianças para secar, Loveday preparou o chá num grande bule marrom semelhante a uma colmeia, e então eles se sentaram e se atiraram famintos à deliciosa comida. À mesa de carvalho forrada com uma toalha muito alva, sentado no lado oposto ao de Maria, Pisco a fitava com olhar de atônita admiração por sua aparência, mas, como estava muito ocupado em comer, não disse nada a princípio. Contudo, depois de devorar meio pão e um bom bocado de bolo, ele finalmente falou.

“É um lindo vestido”, disse com a boca cheia. “Não o tinha visto ainda. Parece um vestido de noiva”.

“É um vestido de noiva”, disse Maria mal se fazendo entender, pois ela também comia com avidez, devorando fatias de pão com mel em duas dentadas. “É o meu vestido de noiva. Estou experimentando para ver se serve”

“Você vai se casar?”, perguntou Pisco bruscamente, cessando de pronto o movimento de suas mandíbulas.

“É claro”, respondeu Maria enquanto se esticava para alcançar o pote de nata. “Ou espera que eu me torne uma solteirona?”

“Vai se casar hoje?”, quis saber Pisco.

Mas agora Maria estava com a boca tão cheia que não conseguiu responder, e Loveday, que apenas beliscava delicadamente uma fina fatia de pão com manteiga, já que não tivera seu apetite aguçado pelo ar fresco, pelo perigo e pelo exercício, respondeu por ela.

“É claro que não vai se casar hoje, Pisco. Ela ainda não tem idade para se casar. Mas, quando se casar, usará esse vestido”.

“Quando se casar, com quem se casará?”, perguntou Pisco a Maria.

Maria engoliu o último pedaço de seu pão com nata e mel, inclinou a cabeça para o lado e mexeu o chá pensativamente.

“Ainda não sei ao certo”, disse com certa reserva, “mas acho que me casarei com um meni­no que conheci em Londres”.

“O quê?”, berrou Pisco. “Vai se casar com um paspalhão londrino todo empertigado, com meias de seda, pomada no cabelo e cara de quei­jo Cheshire?”

Ficou com o bolo entalado na garganta e engasgou com tal violên­cia que Loveday teve de dar-lhe uma palmada nas costas e servir-lhe outra xícara de chá. Quando conseguiu falar de novo, seu rosto estava comple­tamente inflamado, não só pelo engasgo mas pela raiva, pelo ciúme, pela exasperação.

“Não se atreva a fazer uma coisa dessas!”, explodiu. “Você, Maria... você... se você se casar com um londrino, vou torcer o pescoço dele!”

“Pisco! Pisco!”, admoestou sua mãe horrorizada. “Nunca o vi per­der a cabeça desse jeito. Não sabia que era tão genioso”.

“Bem, agora já sabe”, disse Pisco furiosamente. “E, se ela se casar com esse sujeito de Londres, vou torcer não só o pescoço dele mas de todo mundo, e deixarei este vale, cruzarei as colinas para viver na cidade de onde veio meu pai e nunca mais voltarei para cá. E está acabado!”

Maria não disse coisa alguma em resposta a esse acesso de raiva. Simplesmente continuou a beber seu chá, parecendo mais reservada do que nunca. E, quanto mais reservada ela se fazia, mais irritado Pisco fica­va. Seus olhos cuspiam fogo, e seus encaracolados cabelos castanhos pa­reciam arrepiar-se de fúria por toda a cabeça. Maria quase podia apostar que, se estivesse por trás dele, teria visto o cacho de cabelo na sua nuca retorcer-se para a frente e para trás como a cauda de um gato. Bebeu o chá com uma deliberação irritante e, finalmente, falou.

“Por que não quer que eu me case com esse menino londrino?”, per­guntou.

Pisco golpeou a mesa com o punho com tal força que fez a louça tre­mer. “Porque você vai se casar comigo”, ele gritou. “Está ouvindo, Maria? É comigo que você vai se casar”.

“Pisco”, disse-lhe a mãe, “não é assim que se faz um pedido de ca­samento. Você deve se ajoelhar e fazer o pedido com voz gentil”.

“Como posso me ajoelhar se estou no meio do meu chá?”, vociferou ele. “E como posso ser gentil quando sinto que tenho um leão rugindo dentro de mim? Se eu não rugir, vou explodir”.

“Pois pode parar de rugir, Pisco”, disse Maria. “Pode parar, porque, em nome da paz e da tranquilidade, acabo de decidir que me casarei com você”.

Os cachos de Pisco assentaram-se de novo na sua cabeça e a onda vermelha que tingira sua fronte desapareceu. “Está bem, então”, disse ele com um grande suspiro de alívio. “Está combinado. Aceitarei mais um pe­daço de bolo agora, mãe, por favor”.

Depois disso, comeram, beberam, riram e conversaram sobre outras coisas, enquanto o fogo crepitava, o gatinho branco ronronava, a chalei­ra silvava mais e mais alto e a felicidade parecia envolvê-los como um halo e uma cantoria que quase dava para ver e ouvir. Mas havia algo que ainda parecia deixar Pisco um pouco perturbado, até que finalmente ele não pôde mais se conter: “Maria, quem é esse menino de Londres com quem você pensava em se casar?”

“Nunca tive a menor intenção de me casar com nenhum menino de Londres”, disse Maria.

“Mas você disse..”.

“Disse que era um menino que conheci em Londres”, falou Maria. “Esse menino era você”.

O último vestígio de ciúme e raiva evaporou-se de Pisco. Ele atirou a cabeça para trás e riu, riu, riu, rugindo dessa vez não de raiva, mas de alegria, e alguma coisa naquele rugir afável fez Maria recordar-se de repente, surpreendentemente, de Sir Benjamin.

“Ouçam, crianças”, disse Loveday, levantando-se da mesa e fitando-os com uma expressão muito séria, “agora vocês riem, mas, um minuto atrás, Pisco estava furioso e Maria sendo tão provocativa como só ela sabe ser. Poderia ter sido uma briga séria. E nunca devem brigar. Se isso acontecer, arruinarão não só a sua felicidade como a felicidade de todo o vale”.

Dizendo isso, recolheu os utensílios de chá, empilhou-os num canto ao lado da tina de lavar louça, dobrou e guardou a toalha de mesa e subiu para o seu quarto. Não estava chorando, mas Maria teve a sensação de que, não fosse ela uma mulher tão orgulhosa, certamente estaria.

“Não sei, não”, pensou Maria. “Será que ela não continuou aman­do esse cavalheiro com quem não se casou mesmo estando brigada com ele, mas, por ser orgulhosa demais, nunca quis procurá-lo para fazer as pazes? Pobre Loveday!”

Depois disso, ela silenciou por um momento, enquanto observava Pisco alimentando o gatinho. Lembrou-se que todas as Princesas da Lua haviam brigado com os homens que amavam e partido do solar de Moonacre; lembrou-se que não queria partir; lembrou-se que, poucos minutos alias, ela e Pisco quase tinham se envolvido numa briga feia; lembrou-se que dissera ao Velho Pároco que, se a Colina do Paraíso fosse devolvida a Deus, talvez essas brigas acabassem.

“Pisco”, disse ela, “antes de pôr fim à maldade dos Homens do Bos­que Sombrio, temos que devolver a Colina do Paraíso a Deus. Sir Wrolf a roubou. Precisamos devolvê-la”.

Pisco, que estava colocando o pires de leite diante da lareira, voltou-se para ela e disse: “Ótima ideia. Mas como fazer isso?”

Ainda sentada à mesa, Maria apoiou nas mãos seu queixo resoluto e refletiu. Boa pergunta: como? Seria tão bom se ela pudesse pedir conse­lho aos monges de quem Sir Wrolf roubara a colina... mas estavam mor­tos havia séculos. A figura mais próxima de um monge que ela conhecia naquele lugar era o Velho Pároco. Saberia ele o que fazer? “Vou pergun­tar ao Velho Pároco”, disse finalmente a Pisco.

“Tudo bem”, disse Pisco. “Mas, seja o que for que o Velho Pároco nos diga para fazer, é melhor fazermos de uma vez, assim poderemos cui­dar logo desses homens malvados. Não há tempo a perder. Eles estão fi­cando cada vez piores. Todos os dias, animais caem nas armadilhas, e é cada vez maior o número de frangos, gansos, patos, ovelhas e vacas rou­bados. Sumiram seis vacas na semana passada”.

Maria se levantou. “Falarei com o Velho Pároco agora mesmo”, dis­se ela. “A caminho de casa”.

Pisco também se levantou e encarou-a do outro lado da mesa. Seus olhos cintilavam, e ela percebeu que ele também estava exultante com a enorme aventura que os aguardava.

“Pisco”, perguntou ela, “como sabia que você e eu juntos é que de­veríamos acabar com a maldade dos Homens do Bosque Sombrio? No primeiro dia em que o encontrei aqui, você disse que teríamos de fazer isso. Como sabia?”

“Foi por causa de Serena”, disse Pisco. “Até então, nunca ninguém conseguira salvar animal algum desses homens, mas você e eu salvamos Serena. Naquele dia eu soube que poderíamos salvar todo o vale. E tive certeza disso quando salvamos as ovelhas”.

“Há uma outra coisa que não entendo”, disse Maria. “Como é que você aparecia para brincar comigo no jardim da Square em Londres?”

“Eu ia ao seu encontro quando estava dormindo”, explicou Pisco. “Às vezes, enquanto guardava o rebanho na Colina do Paraíso ou cuida­va do jardim do solar, eu subitamente me sentia sonolento e me acomo­dava na relva ou entre as flores para cochilar um pouco, e então me via em Londres. Ou de repente me vinha o sono enquanto estava limpando a Capela dos Merryweathers e eu me deitava em cima de Sir Wrolf, com a cabeça apoiada no cachorro, e cochilava. Ou às vezes estava aqui em casa e sentia sono, então me sentava no chão e adormecia com a cabeça no colo da minha mãe. Certa vez, indaguei-a sobre isso e ela me disse que todos somos, na verdade, duas pessoas, uma carnal e outra espiritual, e, quando a pessoa carnal está dormindo, a pessoa espiritual que vive dentro dentro dela, como uma carta dentro de um envelope, pode sair e viajar por aí”.

“Entendo”, disse Maria. Então ela fez outra pergunta: “Pisco, Loveday me contou que Sir Benjamin não sabe que ela vive aqui. Mas, se você é o pastor e o jardineiro dele, ele deve saber que você mora aqui, não é?”

“Sim, é claro que sabe”, respondeu Pisco. “Mas ele pensa que sou o filho adotivo da velha Elspeth, que morava nesta casa. Mamãe pediu aos aldeões que dissessem isso a ele porque não quer que ele saiba que a velha Elspeth morreu e que é ela agora que vive aqui. Ela se esconde quan­do ele aparece por aqui”.

“Mas por quê, Pisco?”, quis saber Maria, ardendo de curiosidade. “Por quê?”

“Não sei”, disse Pisco com indiferença, enquanto despejava leite fresco no pires do gatinho.

“Pisco, você não fica curioso para saber?”, insistiu Maria quase se exaltando. “Nunca perguntou isso a Loveday?”

“Não”, disse Pisco. “Por que deveria? Isso não é da minha conta. Como eu conseguia visitar você em Londres, isso sim era da minha conta e então perguntei à minha mãe. Mas por que ela não quer que Sir Benja­min fique sabendo que ela vive aqui, isso não é assunto meu”.

Maria soltou um longo suspiro de impaciência. Com efeito, a falta de curiosidade masculina estava além da sua compreensão. Quanto a ela, sa­bia que, se não conseguisse desvendar o que havia entre Loveday e Sir Benjamin antes de ir para a cama naquela noite, sua curiosidade certamente iria matá-la. Mas não adiantava continuar fazendo perguntas a Pisco.

Vou subir para tirar este vestido”, disse ela, recolhendo suas roupas estendidas diante da lareira. “E então passarei pela casa paroquial a cami­nho de casa para conversar com o Velho Pároco sobre a Colina do Paraíso”.

“Tudo bem”, disse Pisco todo animado. Em seguida, enquanto ela subia a escada para o quarto de Loveday, ele a chamou: “Na próxima vez que colocar esse vestido, será para se casar comigo”.

“Assim será, Pisco”, disse Maria. E sorriu. Seria muito divertido ca­sar-se com Pisco.

Ela achava que encontraria Loveday lá em cima, mas não havia nem sinal dela. Enquanto despia o lindo vestido de noiva e o guardava de vol­ta no baú de carvalho, teve a sensação de que Loveday saíra pelo quarto de Pisco, subira os degraus no interior da colina e atravessara a Porta do Paraíso para chegar à Colina do Paraíso, por onde agora perambulava, no mesmo lugar em que a Princesa da Lua havia perambulado, procurando consolo por ter brigado com o homem que amava.

 

Quando Maria terminou de trocar de roupa e desceu a escada nova­mente, Pisco a acompanhou até a porta dos fundos e lá se foi ela, o sol já começando a se pôr no horizonte. Ela correu até chegar à casa paroquial e bateu à velha porta da frente. Com um sorriso acolhedor, o Velho Páro­co imediatamente a convidou a entrar e fechou a porta. A salinha estava quente, aconchegante e agradável, pois ele havia fechado as cortinas e acendido as velas e a lareira, onde as chamas crepitavam fulgurantes, e os gerânios cor-de-rosa brilhavam com esplendor. Sentada na poltrona ao lado dele, enquanto aquecia os pés junto à lareira, pois estes haviam fica­do gelados depois da tempestade, Maria contou-lhe que queria devolver a Colina do Paraíso a Deus, mas não sabia como.

“Vou lhe mostrar o que fazer”, disse o Velho Pároco. “Venha à igre­ja amanhã bem cedo, na hora em que as crianças estão brincando por lá, e juntos, você, eu e as crianças, subiremos até a Colina do Paraíso e a de­volveremos a Deus. Mas há outra coisa que você precisa fazer, Maria, e tem de ser ainda esta noite”.

“O quê?”, perguntou Maria.

“Sir Benjamin ganha muito dinheiro com a venda da lã produzida pelas ovelhas que ele cria na Colina do Paraíso, mas, se a colina for devol­vida a Deus, então, depois de amanhã, a lã será de Deus, não mais de Sir Benjamin. Você precisa explicar isso a ele”.

Maria olhou para ele com certa hesitação. “O senhor não poderia fazer isso?”, ela perguntou. “Podemos ir juntos para o solar agora”.

“Não posso”, disse o Velho Pároco com firmeza. “Tenho muita coi­sa para fazer esta noite. É melhor você ir andando, Maria. Está escurecen­do e não é bom atravessar o parque sozinha no escuro”.

Maria levantou-se de um salto. Com certeza, não seria nada bom. Com os Homens do Bosque Sombrio rondando por ali, a ideia de se ver sozinha no escuro não era nada atraente. Quando o Velho Pároco fechou a porta atrás dela, Maria se deu conta de como escurecera enquanto estivera com ele e ficou amedrontada. Ele bem que poderia tê-la acompanha­do, pensou. Bem que poderia ter vindo para cuidar dela... E o que seria aquela sombra grande ali adiante, do outro lado do portão? Um Deles?...

Soltou um gritinho de medo abafado, que logo se converteu num gri­to de alegria quando o suposto Homem ergueu a cauda e abanou-a no ar, e ela viu que o vulto sombrio era Wrolf. Desceu pela trilha do jardim, afa­gou-lhe a enorme cabeça e admirou-se ao pensar que um dia chegara a ter medo dele. Então, percorreram juntos a rua do vilarejo e cruzaram o por­tão quebrado que levava ao parque.

Maria jamais se esqueceu daquela caminhada pelo parque na com­panhia de Wrolf. Estava quase escuro agora, e, se estivesse sozinha, ela te­ria ficado com medo, mas com Wrolf ao seu lado, ele que era a própria encarnação da coragem e da força, sentia-se tão segura quanto as casas. Ela caminhava devagar, com os dedos de uma das mãos enroscados na grande juba de Wrolf, sentindo o doce aroma de terra molhada, flores e musgo, e a cabeça erguida para contemplar as primeiras estrelas que des­pontavam no céu, acima da copa das árvores.

Tudo estava tão quieto após a tempestade que ela ouviu um cão la­tir a quilômetros de distancia e o farfalhar dos pássaros a se recolherem. De vez em quando, Maria olhava para as clareiras sombrias que se abriam dos dois lados do caminho, mas sem nenhum sentimento de ex­pectativa, apenas para admirar como eram bonitas. Ela não esperava mais ver o cavalinho branco, pois já o procurara muitas vezes em vão. Às ve­zes, ela se perguntava se de fato o vira, ou se aquilo que avistara na pri­meira noite não teria sido apenas um raio de luar perdido.

Mas não, não foi por nenhuma das coisas que ela viu que o trajeto de volta para casa naquela noite foi tão agradável. Foi por causa de Wrolf. Desde aquela tarde, parecia ter se criado entre eles um laço novo e muito forte. Pensou que ele talvez estivesse satisfeito com a decisão que ela e Pisco haviam tomado. Ele queria que ela tivesse êxito e não fracas­sasse como as outras Donzelas da Lua. Não queria que ela fosse embora do solar de Moonacre. Talvez porque ele próprio não quisesse partir. Pois, pelo visto, os cães fulvos sempre tinham de voltar para o bosque de pi­nheiros quando a Donzela da Lua brigava com seu amado. Era como se ele representasse as refinadas qualidades dos homens de Moonacre — for­te e valente, afetuoso, cordial e rubicundo —, de tal modo que, quando a Donzela da Lua se separava de seu homem, tinha de se separar também do cão fulvo.

De repente, ocorreu a Maria que o cavalinho branco tinha todas as qualidades da Donzela da Lua, a beleza alva, a pureza reluzente, o orgu­lho sereno. Somente o cão fulvo e o cavalinho branco tinham a perfeição que os Merryweathers do sol e da lua, sozinhos, jamais alcançariam... Eles eram perfeitos... Foi por causa desses pensamentos que passavam por sua cabeça, e também porque Wrolf estava tão contente com ela, que Ma­ria tanto gostou daquela caminhada para casa.

Só quando avistaram o solar e ela viu uma luz cintilando na janela da sua torre, como se alguém a tivesse acendido para servir-lhe de guia, que Maria subitamente se deu conta de que Sir Benjamin e a srta. Helio­trópio podiam estar terrivelmente preocupados com ela. Ficou cheia de remorsos, porque fazia horas que nem se lembrava deles.

“Rápido, Wrolf!”, disse ela, puxando-o pela juba. “Depressa! De­pressa!”

Mas Wrolf se negou a obedecê-la e fitou-a com um olhar tranquili­zador... Ele sabia que não estavam preocupados.

Quando chegaram ao saguão iluminado, a cena apresentada por Sir Benjamin e pela srta. Heliotrópio não sinalizava preocupação. Sentados à mesa diante do fogo, devoravam costeletas de porco, cebolas, maçãs as­sadas e pudim de ovos, enquanto Wiggins e Serena lambiam pão com lei­te das tigelas colocadas perto da lareira.

“Sã e salva”, disse Sir Benjamin, mas não como se tivesse duvidado de que ela chegaria em casa. Maria notou que ele estava usando seu me­lhor colete, aquele bordado com rosas amarelas e cravos carmesins, e o grande anel de rubi. As pessoas não se dão ao trabalho de vestir suas me­lhores roupas quando estão preocupadas.

“Você está atrasada, querida”, disse a srta. Heliotrópio, mas não como se isso a incomodasse.

Apesar do chá reforçado que tomara, Maria descobriu que seu apetite de Merryweather ainda estava em plena atividade e lamentou ao ver que Sir Benjamin, que estivera debruçado sobre as costeletas e as cebolas, deixara muito pouco sobre o qual ela pudesse se debruçar, e que a srta. Heliotrópio, sentada diante da travessa de maçãs assadas e do pudim de ovos, evidentemente não sofria de indigestão naquela noite. Mas sua preocupação revelou-se desnecessária quando a porta da cozinha se abriu com um rangido e as cabeças de Marmaduke Scarlet e Zacarias o gato as­somaram ao vão, uma por sobre a outra.

“Se a patroinha e o cão Wrolf se dignarem mais uma vez a adentra­rem meu humilde recinto, encontrarão nele duas pequenas refeições destinadas a satisfazer os apetites interiores de uma jovem bem-nascida e de seu fiel acompanhante canino”, disse Marmaduke.

Maria e Wrolf se dignaram, mais que depressa. A cozinha, ilumina­da pelo clarão do grande fogão, estava esplendidamente aconchegante. O canário, ainda a salvo das garras de Zacarias, cantava a plenos pulmões. Na mesa, estavam servidos um pombo assado numa travessa de prata, um pudim de maçã e um pote de nata. No chão, um enorme osso de carnei­ro. Wrolf atirou-se a ele sem mais demora; Maria, porém, dirigiu-se pri­meiro à lareira para dar uma olhada nas cinzas, embora o aroma delicio­so da ceia fizesse seu nariz tremer como o de um coelho.

Sim, havia outra sequência de figuras desenhadas nas cinzas. Primeiro, vinha um desenho de Serena saltando em três patas e as orelhas arremessa­das para trás pelo ritmo do seu andar; em seguida, o contorno da meia-lua que representava a própria Maria; e, por fim, as silhuetas de duas casas só­lidas, pequenas e quadradas, como aquelas desenhadas por crianças.

Maria soltou uma gargalhada de admiração. Serena trouxera a mensagem que Zacarias escrevera na lareira. “Serena diz que Maria está segura como as casas”.

“Oh, como é esperta a minha Serena!”, exclamou Maria. “E Zaca­rias, também, que esperto!”

Zacarias andou ao redor dela em círculos, com a cauda erguida, como sempre, em três voltas no ar, e, roçando-se nas saias de Maria, ronronou, ronronou, ronronou.

 

Porém, as figuras que Maria encontrou na lareira não foram a sua última descoberta naquele dia. Havia mais coisas por vir.

Quando terminou a deliciosa ceia e voltou ao saguão, encontrou-o va­zio, mas a luz do candelabro saindo por debaixo da porta da sala de visitas mostrou-lhe onde estavam todos. Os quatro estavam lá, Wiggins e Serena dormindo diante da lareira e Sir Benjamin e a srta. Heliotrópio ao lado de­les, sentados cada um de um lado da pequena mesa encostada na parede, sobre a qual ficavam o tabuleiro de xadrez e a caixinha de costura...

E estavam jogando xadrez... Aquelas peças congeladas finalmente voltavam a ser usadas. Os cãezinhos vermelhos e os cavalinhos brancos moviam-se pelos quadrados pretos e brancos, e os reis, rainhas, cavalos e bispos estavam todos em formação de batalha, não mais paralisados. À luz da lareira e do candelabro, não eram feitos de marfim, mas de opala e pérola. Estavam vivos.

“Oh!”, exclamou Maria alegremente. “Estão usando as peças nova­mente!”

Sir Benjamin ergueu os olhos para ela, e Maria notou que seu rosto estava mais vermelho que de costume e suas sobrancelhas castanhas ti­nham uma expressão de surpresa, como se ele estivesse fazendo algo que jamais pensara em voltar a fazer.

“Faz mais de vinte anos que não jogo xadrez”, disse ele com a voz rouca. “Costumava jogar xadrez com... Bem, isso é coisa do passado”.

“O que o fez mudar de ideia agora?”, quis saber Maria.

“Quando entramos na sala, as peças me pareceram tão abandona­das!”, disse Sir Benjamin. “Não como o cravo, que, por alguma razão, pa­rece muito diferente desde que você chegou. Antes que eu pudesse perce­ber o que estava dizendo, convidei a srta. Heliotrópio para uma partida”.

“Onde está a caixa de costura?”, perguntou Maria. “Aquela que es­tava na mesa, ao lado do tabuleiro? Ela também está abandonada. Onde colocaram a caixa de costura?”

“Havia uma caixa de costura por aqui?”, perguntou Sir Benjamin vagamente.

A srta. Heliotrópio olhou para Maria por cima dos óculos. “Acho que a coloquei no chão, em algum lugar por aí”, disse.

“No chão!”, exclamou Maria indignada. Então, avistou-a num can­to da sala e correu até ela. “Já que estão jogando xadrez, vou usar a caixa de costura”, disse.

“Claro, querida”, respondeu Sir Benjamin. Mas ele estava atento ao jogo, e Maria teve a impressão de que ele não escutara direito o que ela dissera. Fosse como fosse, ele lhe dera sua permissão para abrir a caixa de costura, permissão que ela não tivera no outro dia. Levou a caixa até o assento sob a janela, sentou-se e segurou-a um instante no colo, sentindo o suave e gostoso aroma do cedro. Então, levantou a tampa e examinou o interior da caixa.

Era forrada com cetim marfim estofado, e na parte de dentro da tam­pa, presos por alças no cetim, havia um pequeno dedal prateado e uma te­soura. No interior da caixa, ela encontrou uma peça bordada semiacabada e cuidadosamente dobrada. Maria retirou-a, desdobrou-a e viu que se tratava de um colete de cetim branco bordado com margaridas brancas como a lua, com miolos amarelos como sóis, e cada margarida repousava sobre um fundo de folhas verdes que a destacava contra o cetim branco. Estava quase terminado. Faltava apenas completar algumas folhas.

Maria depositou a caixa de costuras no assento, ao seu lado, e abriu o colete no colo. Então olhou para Sir Benjamin, sentado do outro lado e absorto demais no xadrez para prestar atenção ao que ela fazia. A luz do candelabro reluziu sobre o bonito colete bordado que ele estava usando. Maria passeou os olhos de uma peça a outra. As flores eram diferentes, mas o desenho era igual. Não havia dúvida que haviam sido trabalhados pela mesma mão e... e... sim, com as mesmas agulhas usadas no bordado das flores que enfeitavam os sachês de lavanda que Loveday fizera para a srta. Heliotrópio... Loveday trabalhara nos dois coletes.

Maria permaneceu ali sentada, muito quieta, dando tratos à bola. O colete no seu colo parecia ser feito do mesmo cetim que o vestido de noiva que ela usara naquela tarde. Parecia também ter sido feito para um ca­samento. Margaridas cor da lua com miolos amarelos como sóis. Lua e sol.

De repente, ela se recordou do que Marmaduke lhe dissera no dia em que o visitara pela primeira vez na cozinha e do elogio que ele fizera à srta. Heliotrópio. “Ela é certamente de qualidade superior à outra duenha que aqui residia antes, com a outra patroinha”.

E então lembrou-se do que Loveday dissera sobre a velha Elspeth, que vivera no solar durante um tempo mas, por causa de uma briga com Marmaduke, se recusara a continuar morando ali. Sir Benjamin a deixa­ra encarregada do portão, mas então ela brigou com ele também. Contu­do, ela e Loveday deviam ser amigas, pois Loveday soube de sua morte e assumiu seu lugar na portaria no interior da colina.

Maria finalmente compreendeu tudo. Sua curiosidade estava satisfei­ta. Quando menina, Loveday vivera no solar com sua governanta, assim como ela, Maria, ali vivia agora com a srta. Heliotrópio. E Loveday e sua governanta haviam passeado pelas redondezas com a carruagem puxada pela pônei. E Loveday cavalgara Vinca e amara Wrolf. E teria se casado com Sir Benjamin, mas eles brigaram e ela partiu. Maria se lembrou do que o Velho Pároco lhe dissera sobre a melodia que ela libertara do cravo, no dia em que tomaram o café da manhã juntos: “Deve ter sido a última que tocou antes de fechar o cravo. Sim, eu me lembro que ela a tocou na­quela noite. Foi sua última noite no solar. Faz vinte anos”.

Maria não sabia então de quem ele estava falando. Era de Loveday, com certeza. Loveday e Sir Benjamin brigaram naquela noite, e Loveday par­tiu para a cidade do outro lado das colinas e casou-se com o advogado que era o pai de Pisco... E Wrolf teve de voltar para o bosque de pinhei­ros... Mas ela amava tanto o vale que, quando seu marido morreu, teve de regressar a ele.

Porém, era orgulhosa demais para deixar que Sir Benjamin soubesse que ela havia retornado, orgulhosa demais para tentar fazer as pazes com ele. Maria se perguntava por que motivo Sir Benjamin e Loveday teriam brigado. Fosse o que fosse, era hora de fazerem as pazes, agora que a an­tipatia de Sir Benjamin e Marmaduke por mulheres havia se aplacado um pouco graças ao bom comportamento dela e da srta. Heliotrópio.

“Preciso dar um jeito de fazerem as pazes”, disse Maria para si mes­ma com grande determinação.

Mas, antes, era preciso devolver a Colina do Paraíso a Deus. Isso fi­caria para depois. Maria dobrou o colete e guardou-o, meteu a caixa de costura debaixo do braço e dirigiu-se em silêncio para a escada da torre. Ela tinha de se recolher cedo porque precisava madrugar na manhã se­guinte para a próxima aventura. Havia, no entanto, mais uma coisinha que precisava fazer antes de ir para a cama.

Com a mão no trinco da porta da torre, ela chamou com voz impe­rativa: “Sir Benjamin! Sir!”

O primo olhou para ela bastante espantado, pois nunca antes havia sido tratado com tanta formalidade em sua própria casa.

“Sir Benjamin”, disse Maria, “o senhor não tem direito ao dinheiro que obtém com a venda da lã retirada das ovelhas que pastam na Colina do Paraíso”.

“É mesmo, Maria?!”, exclamou Sir Benjamin rindo-se. “E por que não, ora essa?”

“Sir Wrolf roubou a Colina do Paraíso de Deus”, disse Maria firme­mente. “Amanhã, o Velho Pároco, as crianças e eu vamos devolvê-la a Deus. Ela deixará de lhe pertencer”.

“Ai de mim”, disse Sir Benjamin.

“O senhor tem de me dar a sua palavra, Sir”, continuou Maria, “de que não mais guardará o dinheiro para si, mas o dará aos pobres”.

“Meus rendimentos sofrerão uma considerável perda”, disse Sir Ben­jamin num tom bastante áspero.

“O senhor poderia comer menos”, sugeriu Maria para ajudar.

“Maria!”, exclamou a srta. Heliotrópio horrorizada. “Isso é jeito de falar com seu primo?”

“Digo isso para o bem dele”, disse Maria.

Sir Benjamin subitamente jogou a cabeça para trás e rugiu com uma estrepitosa gargalhada, o mesmo rugir afável de Pisco naquela tarde. “Mui­to bem, Maria”, disse ele. “As ordens de Sua Alteza serão cumpridas”.

Maria foi para a cama feliz por saber que sua curiosidade sobre mui­tos assuntos havia sido completamente satisfeita naquele dia... Mas ela continuava sem saber onde Marmaduke Scarlet dormia.

 

Loveday Minette cumpriu o prometido e, na manhã seguinte, Maria despertou com um beijo na bochecha, leve como o roçar da asa de uma borboleta, e, ao abrir os olhos, deparou com o que pensou, por um momento, ser o rosto de um anjo. Então ela reconheceu quem era e sorriu.

“Mãe Minette”, disse.

Loveday sorriu. “Já me chamaram de muitos nomes ao longo da vida”, ela disse, “mas esse é o melhor de todos. Agora, apresse-se, Maria! Você tem muita coisa para fazer esta manhã”.

Maria saltou para fora da cama, e Wiggins, que estava deitado aos seus pés, foi catapultado pelo ar, estatelando-se de costas no chão, com um humor não lá muito bom. E ali ficou, resmungando, com as quatro patas no ar, até que Loveday pegou um biscoito de açúcar da lata que fi­cava no consolo da lareira e o colocou no seu peito. Imediatamente ele se catapultou de volta, colocando-se outra vez sobre as patas, comeu o bis­coito e ficou feliz.

“Você sabia exatamente onde encontrar o biscoito, mãe Minette”, disse Maria enquanto se lavava na bacia de prata. “Quando você era me­ nina e dormia neste quarto, Marmaduke Scarlet fazia biscoitos para você também?”

Loveday Minette, que naquele momento tirava do baú o traje de montaria de Maria, parou por um instante, surpresa. “O que a faz pen­sar que eu dormia aqui quando era menina?”, perguntou.

“Foi só um palpite”, disse Maria, vestido suas anáguas. “Afinal, em que outro lugar poderia ter sido? Os quartos de Sir Benjamin e da mãe dele ficavam na outra torre. Sua governanta, Elspeth, provavelmente ha­bitava o quarto grande que fica nesta torre, agora ocupado pela srta. He­liotrópio. Você passava a maior parte do tempo aqui? Ou na sala de visi­tas? Onde você sentava quando estava costurando seu vestido de noiva? E o colete de Sir Benjamin?”

“Maria!”, gritou Loveday consternada. “Alguém andou lhe contan­do coisas a meu respeito?”

“Não”, disse Maria. “Foi só somar dois mais dois”.

“Você é tão boa em aritmética, Maria, que me deixa assustada”, dis­se Loveday.

“Tenho bom senso”, disse Maria, tirando gentilmente o traje de montaria das mãos de Loveday para vesti-lo. “E não ficaria admirada se eu fosse a primeira Merryweather a tê-lo. Devo ter saído a minha mãe, já que meu pai não tinha nenhum. E não me parece que você e Sir Benjamin tenham algum, tampouco. Se tivessem, não teriam brigado. Por que bri­garam, afinal?”

“É uma longa história, não há tempo para isso agora”, disse Loveday apressada.

“Você terá bastante tempo para contá-la enquanto atravessamos o parque até o vilarejo”, disse Maria. “Mãe Minette, você precisa me con­tar. Mães e filhas que se amam não têm segredos entre si”.

Loveday Minette não respondeu. Estendeu a Maria o chapéu com pluma, jogou o xale cinza sobre os ombros e, tomando a dianteira, con­duziu a menina pela portinha que só as Donzelas da Lua e os anões conse­guiam atravessar, descendo a escada da torre até o saguão. Wiggins seguia atrás.

Wrolf e Serena esperavam por elas no saguão — e, para grande espanto de Maria, Zacarias também.

“Zacarias virá também?”, perguntou Maria, surpresa. “Pensei que ele nunca acompanhasse ninguém a lugar nenhum”.

“Esta é uma ocasião muito importante para a história de Moona­cre”, explicou Loveday. “Por isso, todos os animais que nutrem por você um afeto especial irão acompanhá-la. Vinca está lá fora. Eu já a selei para você. Pisco está na igreja com as outras crianças”.

Saíram, desceram os degraus da entrada principal e encontraram Vinca esperando pacientemente ao lado do suporte para montar.

“Monte em Vinca que eu montarei em Wrolf”, disse Maria. “Não tem problema que você não esteja habituada. Ela vai de mansinho”.

“Sei disso”, respondeu Loveday ternamente, enquanto subia em Vin­ca com destreza. “Minha querida Vinca!”

Vinca relinchou baixinho e afetuosamente, lançando em seguida para Maria um olhar amoroso, para que ela não ficasse enciumada.

“Os animais Merryweather, pelo visto, vivem até uma idade avança­da, não é?”, falou Maria ao montar no dorso de Wrolf e notar os pelos grisalhos ao redor do seu pescoço.

“Eles sabem que são necessários”, disse Loveday. “Sim, eles têm bom senso”, disse Maria, pensativa. Cada vez mais ela percebia que a condução e proteção daqueles animais era absoluta­mente essencial para os Merryweathers não muito sensatos.

Era tão cedo ainda que a lua pairava como uma lâmpada acima do cedro, e as estrelas cintilavam com um tênue brilho. Mas no leste, atrás da Colina do Paraíso, o céu estava rosado, e no oeste a massa de nuvens peroladas sobre o mar estava debruada de puro ouro. Havia tempo de so­bra, e as duas Donzelas da Lua cavalgaram lentamente pela estrada co­berta de musgo por sob as árvores. Os cascos de Vinca não faziam ruído ao pisarem no musgo, e as patas almofadadas de Wrolf eram sempre si­lenciosas. Serena, Zacarias e Wiggins, logo atrás, conversavam entre si, mas tão baixinho que não se podia ouvir o que falavam. O momento era perfeito para contar histórias.

“Agora me conte, mãe Minette”, suplicou Maria.

 

“Assim como você, não nasci no solar de Moonacre”, disse Loveday. “Nasci na Cornualha, onde o mar golpeia com estrondo os grandes pe­nhascos rochosos e os gerânios são os mais belos do mundo. Ali vivi até os 10 anos de idade, quando meus pais morreram, e vim para o solar de Moonacre com minha governanta Elspeth para ser criada por Lady Letí­cia Merryweather, minha tia por laços de matrimônio e mãe de Sir Benja­min. Ela ficara viúva pouco tempo depois de casar-se, mas era uma mu­lher muito capaz. Criara seu filho tão bem e administrava a propriedade com tanta competência que Moonacre prosperou sob seu comando. Era rígida e severa, e eu não a amava, embora tenha certeza agora de que ela deve ter dado o melhor de si para cuidar da orfãzinha pobre que eu era. Quando cheguei a Moonacre, não possuía nada no mundo além das rou­pas do corpo e dez vasinhos com mudas de gerânios, aqueles magníficos gerânios rosa-salmão que são o orgulho da Cornualha”.

“É por isso, então, que há tantos gerânios na sua casa”, murmurou Maria.

“Sim”, disse Loveday. “Aqueles que estão lá em casa e também na casa do Velho Pároco são todos descendentes das dez mudas originais. Se eu trouxe tristeza para Moonacre, pelo menos trouxe também gerânios”.

“Continue”, Maria exortou-a suavemente.

“Meu pai, o pai de Sir Benjamin e o seu avô eram irmãos”, prosse­guiu Loveday. “Eram só os três, e cada um tinha um único filho: Sir Ben­jamin, eu e seu pai. Agora, os Merryweathers são uma família muito pe­quena, apenas Sir Benjamin, eu e você”.

“Bem”, disse Maria com veemência, “o que nos falta em quantida­de, nos sobra em qualidade. Não poderia haver três pessoas melhores. E não consigo imaginar como é que duas pessoas tão boas como você e Sir Benjamin acabaram brigando... Fale-me sobre a briga, mãe Minette... Por que brigaram?”

“Por causa dos gerânios”, disse Loveday com a voz sumida.

“Dos gerânios!”, Maria engasgou. “Mas como, por Deus, puderam ter uma briga tão terrível e definitiva por causa de gerânios?”

“Olhando agora para trás, não sei, realmente, como pudemos”, disse Loveday, “mas naquela época os gerânios pareciam ser a coisa mais im­portante do mundo. Assim são as brigas, Maria, especialmente entre os Merryweathers. Elas começam com uma coisa pequena, como gerânios cor-de-rosa, e então essa coisinha cresce e cresce até ocupar o mundo inteiro”. “Continue”, disse Maria.

“Quando cheguei a Moonacre”, disse Loveday, “eu era uma menina muito infeliz. Amava os meus pais, e eles estavam mortos; amava meu lar na Cornualha, e ele me fora tirado. As únicas coisas que eu tinha como recordação dos meus pais e minha terra natal eram os gerânios cor-de-rosa. Não tenho palavras para descrever, Maria, como eu adorava aqueles gerânios. Assim que cheguei, me deram o quartinho na torre, e eu o en­chi de gerânios. Então, quando eles se multiplicaram, espalhei vasos por toda a escada da torre... E foi aí que os problemas começaram... Pois se havia duas coisas que Lady Letícia detestava eram gerânios e a cor rosa — especialmente o rosa-salmão. Não havia um único gerânio no jardim do solar nem um único trapo cor-de-rosa dentro da casa. Fora ela que mobiliara a sala de visitas do solar e fizera os assentos das cadeiras, e, como você deve ter notado, as rosas são vermelhas e amarelas, não cor-de-rosa”.

“Eu sei”, disse Maria. “Uma das coisas que eu gosto na sala de visi­tas é a ausência de cor-de-rosa, pois, assim como Lady Letícia, Loveday, eu também não gosto de cor-de-rosa”.

“O quê?”, gritou Loveday. “Você cavalga ao meu lado, Maria, e se atreve a me dizer que não gosta de cor-de-rosa?” Loveday retraiu-se, seus olhos cuspiram um fogo gelado, e ela toda pareceu congelar. Era como se tivesse recebido um insulto mortal. Maria achou que ela estava sendo tão ridícula que também se retraiu, seus olhos chisparam e sua boca se abriu para fazer um comentário mordaz. Mas antes que tivesse tempo de fazê-lo Wrolf grunhiu baixo e Vinca relinchou como a adverti-las, e, em vez de retaliar, Maria sorriu.

“Não vamos brigar por isso”, ela disse. “Você gosta de rosa e eu não, e vamos concordar em divergir”.

Loveday se acalmou e sorriu.

“Era isso que Lady Letícia e eu, por al­guma razão, não conseguíamos fazer”, disse. “Brigávamos sem parar. Ela não permitia que nenhum gerânio sequer ultrapassasse os limites da tor­re para entrar na casa, e não me deixava usar nem sequer um pedaço de fita rosa no cabelo. Eu me sentia terrivelmente amargurada, porque, para mim, insultar meus gerânios era o mesmo que insultar meus pais. Eu estava muito infeliz. Acho que teria morrido de infelicidade se não fosse a minha governanta, a velha Elspeth, que apesar de teimosa como o quê sempre ficava do meu lado, e a imensa bondade de Sir Benjamin. Quan­do eu tinha 10 anos, ele era um esplêndido jovem de 25 anos e, como já disse, muito bom para mim. Eu o amava, embora ele, como sua mãe, tam­bém detestasse gerânios cor-de-rosa. Mas ele, ao contrário de sua mãe, não passava o tempo todo falando das coisas que não gostava. Calava-se e não as mencionava a ninguém. E vivia me dando coisas para compen­sar a severidade de sua mãe. Era um marceneiro habilidoso quando jovem — foi ele quem fez para mim toda a bela mobília que agora está no seu quarto. E me ensinou a jogar xadrez. Sempre jogávamos juntos. Impossí­vel dizer como eu o amava, Maria. E ele a mim... Embora amasse mais a mãe dele”.

“Você devia sentir muito ciúme da mãe dele por causa disso”, disse Maria.

“Sim, é isso mesmo”, disse Loveday. “Eu era, então, uma menina hor­rível: ciumenta, orgulhosa e passional, mas de um jeito frio, muito dife­rente da raiva inflamada de Lady Letícia, e isso a deixava muito contra­riada. Apesar disso, Sir Benjamin me amava, e, quando eu cresci, ele me pediu em casamento, e aceitei”.

“Lady Letícia não ficou aborrecida?”, perguntou Maria.

“Muito aborrecida”, disse Loveday. “Porém era uma mulher justa. Sir Benjamin tinha mais de 30 anos na época, e ela compreendeu que ele tinha todo o direito de casar-se comigo se quisesse. Assim sendo, ela lidou com a situação da melhor maneira que pôde. Mas não gostava nem um pouco de mim e estava muito infeliz com o nosso noivado. A infelicidade deve tê-la debilitado, porque, naquele inverno, ela pegou um resfriado e morreu em consequência dele antes que tivéssemos tempo de voltar atrás. Sir Benjamin ficou com o coração partido, pois adorava sua mãe. Fiz o melhor que pude para consolá-lo, e ele parecia me amar mais do que nun­ca. Combinamos de nos casar na primavera, e começamos a trabalhar, ele, eu e Elspeth, para deixar a casa brilhando, tinindo, pronta para o casa­mento. Dediquei-me com afinco ao meu bordado. Já tinha feito um lindo colete para Sir Benjamin, azul-claro com bordados amarelos e carmesins, porque são as cores do sol de que ele gosta, e então comecei a fazer outro para nossas bodas. Eu mesma costurei meu enxoval e o vestido de noiva... Até que, numa noite de primavera, pouco antes do dia do casamento, fiz uma grande bobagem, Maria”.

“Posso adivinhar o que foi”, disse Maria. “Naquela época, a torre já devia estar tão abarrotada de gerânios cor-de-rosa que não restava mais um único cantinho onde você pudesse colocar outro vaso, e então, num dia em que Sir Benjamin estava fora, você trouxe os gerânios para baixo e encheu a casa com eles”.

“Foi exatamente o que eu fiz”, disse Loveday. “Espalhei-os princi­palmente pela sala de visitas, pois o Velho Pároco viria jantar conosco e eu queria que o ambiente estivesse repleto de alegria. E coloquei um dos ves­tidos do meu enxoval — um cor-de-rosa. E decorei a mesa do jantar com flores cor-de-rosa. Então, o Velho Pároco chegou. E depois, bem mais tar­de, porque se atrasara cavalgando, chegou Sir Benjamin e viu o que eu ha­via feito”.

“O que ele disse?”, quis saber Maria.

“Na hora não disse nada”, falou Loveday, “porque o Velho Pároco estava ali. Portou-se a noite toda como um anfitrião cortês, mas eu per­cebi que ele estava com raiva. Acho que o Velho Pároco também notou, pois, para acalmar as coisas, depois do jantar ele pediu que eu tocasse e cantasse para eles. Então eu cantei uma canção escrita por algum Merry­weather séculos atrás e da qual Sir Benjamin gostava porque ela falava de uma garota que o fazia lembrar-se de mim”.

“Sim”, sussurrou Maria para si mesma. “Conheço essa canção”.

“Mas ele não pareceu apreciá-la naquela noite”, disse Loveday, “e, quando o Velho Pároco partiu, ele me disse exatamente o que pensava de mim. Ele tem o gênio dos Merryweathers, você sabe, embora seja muito ca­loroso e afável, e, quando jovem, se comportava às vezes como um leão rugindo. Ele enfureceu-se e vociferou naquela noite a ponto de quase su­bir pelas paredes de raiva. Disse que eu insultara a memória de sua santa mãe e que não era digna de pisar o chão que ela pisara. Disse mais coisas que me encheram de raiva, e acabei lhe dizendo palavras duras também. Entre outras coisas, disse que sua mãe não fora nenhuma santa, mas, ao con­trário, uma mulher pérfida por ser tão severa com uma garotinha só por­que eu adorava cor-de-rosa. E que os santos não odeiam gerânios. Que os santos amam todas as flores que Deus criou, especialmente os gerânios rosa-salmão da Cornualha, pois Deus nunca fez flores mais belas... Nis­so, Sir Benjamin apanhou todos os vasos de gerânios que estavam ao seu alcance e atirou-os pela janela, no roseiral”.

“E o que você fez?”, perguntou Maria.

“Subi para minha torre, tirei o vestido de seda que estava usando e vesti um traje de caminhada. Escrevi um bilhete para a velha Elspeth, mi­nha governanta, dizendo que eu estava partindo para sempre, mas que fi­caria bem e que ela não precisava se preocupar, e passei-o por baixo da porta do quarto. E então, quando escureceu completamente e a casa esta­va em silêncio, peguei uma bolsa de costura grande que eu tinha e me esgueirei para fora da casa direto para o roseiral, onde recolhi, em meio aos cacos de vasos quebrados, todos os gerânios que consegui encontrar na escuridão. Enchi a bolsa com eles e saí andando pelo parque, cruzei o tú­nel e o portão e cheguei à estrada que leva para fora do vale. Caminhei a noite inteira, e quando o dia amanheceu encontrei-me num mundo que eu absolutamente desconhecia. Parecia um outro país, e me senti muito es­tranha e desamparada nele. Mas não fraquejei nem voltei atrás. Segui pela estrada até a cidade-mercado e bati na porta da primeira casa que me pa­receu amistosa, oferecendo-me para trabalhar como criada. Eles me acei­taram. O filho da família, um jovem advogado, apaixonou-se por mim à primeira vista, e casei-me com ele tão logo os preparativos ficaram pron­tos, pois era um homem bom e eu gostava dele. Além disso, movida pelo orgulho e pela raiva, queria tirar de Sir Benjamin o poder de me fazer vol­tar para casa”.

“Ele tentou fazê-la voltar?”, perguntou Maria.

“Sim, tentou. Ele, o Velho Pároco e Elspeth não descansaram até descobrirem onde eu estava. Sir Benjamin enviou o Velho Pároco para me dizer que eu estava perdoada e que ele me aceitaria de volta. Mas ele não veio pessoalmente... Imagino que estivesse magoado demais, com raiva e o orgulho ferido... E não enviou nenhum pedido de desculpas por ter ati­rado meus gerânios pela janela. Por isso, fiquei ainda mais furiosa e man­dei uma mensagem pelo Velho Pároco, pedindo que enviassem todas as minhas roupas e dizendo que eu ia me casar com meu advogado assim que fosse possível e que jamais voltaria a pisar no vale novamente”.

“Mas você voltou”, disse Maria.

“Sim, voltei. Amava demais este lugar para ficar longe dele. E, ten­do sido criada no campo, eu odiava a cidade. Quando Elspeth se instalou como porteira, costumava visitá-la na portaria. Quando ela morreu, e também meu marido, recolhi todos os meus pertences, incluindo os gera­mos cor-de-rosa, e me mudei para cá em segredo, como lhe disse... Assim como a primeira Princesa da Lua”.

“O quê?!”, Maria arfou. “Ela viveu aqui?”

“Acho que sim”, disse Loveday. “Quando Pisco e eu viemos morar na portaria, ninguém havia usado o quarto-caverna que hoje é de Pisco. Estava cheio de terra, pedras e entulho que haviam entrado pelo buraco que agora é a janela. Pisco e eu removemos o entulho e encontramos na encosta da colina a portinha com a aldrava de ferradura. E, logo abaixo do entulho, encontramos também o espelho de prata encimado pelo ca­valo a galope que hoje está pendurado no meu quarto. A quem mais ele podia pertencer se não a ela? Acredito que ela tenha vivido aqui depois que deixou o solar, com seu cavalinho branco a pastar nas encostas da Colina do Paraíso”.

“Imagino que sim”, disse Maria. “Loveday, diz a lenda que ela levou embora o colar de pérolas quando saiu do solar. Você o encontrou também?”

“Não”, disse Loveday. “Procurei-o várias vezes, mas em vão. O gran­de anel de rubi que a Princesa da Lua deu a Sir Wrolf está a salvo; Sir Ben­jamin o usa de vez em quando. Mas o colar de pérolas parece ter se per­dido para sempre. É uma pena, porque você ficaria encantadora com ele no dia do seu casamento”.

“E pensar, Loveday”, disse Maria, “que você viveu todos esses anos na portaria e nunca nem sequer tentou fazer as pazes com Sir Benjamin!”

“E por que deveria?”, disse Loveday com um tom áspero e frio. “Ele também nunca tentou fazer as pazes comigo”.

“Ele tentou, sim! Enviou o Velho Pároco para falar com você na casa do advogado”.

“Aquilo não foi exatamente uma tentativa de fazer as pazes”, disse Loveday. “Ele nunca disse que lamentava ter perdido a calma e nunca se desculpou por ter atirado os gerânios pela janela. E todos os outros gerânios cor-de-rosa, aqueles que ele não jogou pela janela, ele deve ter queimado, pois nunca ouvi dizer que houvesse algum gerânio rosa no solar ou mes­mo no jardim”.

Maria não falou nada, mas lembrou-se subitamente do quarto mis­terioso em cima do túnel que levava do pátio dos estábulos para a horta e dos gerânios cor-de-rosa que avistara na janela. Naquele mesmo instan­te, ela resolveu que, na primeira oportunidade que tivesse, iria investigar o assunto dos gerânios. Mas, no momento, o assunto pendente era devol­ver a Deus a Colina do Paraíso, e tinham acabado de chegar ao portão quebrado que levava ao vilarejo.

“Não tenho tempo agora, mãe Minette, para lhe dizer que, na mi­nha opinião, você e Sir Benjamin têm sido dois grandes tolos”, disse ela com ar sério. “Falaremos sobre isso mais tarde. Creio que seja melhor dei­xar os animais no pórtico da igreja enquanto estivermos lá dentro”.

“Nada disso, entremos com eles”, disse Loveday. “O Velho Pároco não se importa com animais dentro da igreja. Ele diz que cães, gatos e ca­valos são os filhos mais bem comportados de Deus, muito mais bem com­portados, em geral, que homens e mulheres, e ele não vê razão para que sejam mantidos fora da casa de Deus”.

“Nem eu, tampouco”, disse Maria.

Cavalgaram pela rua do vilarejo, que ainda parecia dormir em hora tão cedo, embora o riacho que descia da Colina do Paraíso murmurasse alegremente sob cada pequena ponte na frente de cada portão de jardim, dali passando pelo pórtico e pelo cemitério da igreja. No adro, Loveday e Maria apearam e entraram na igreja de mãos dadas, com Wrolf e Vinca, Zacarias e Serena, logo atrás delas, em pares, e Wiggins na retaguarda a abanar sua cauda como se fosse um estandarte no ar.

 

A igreja estava repleta de sol, crianças e música. O Velho Pároco, de pé nos degraus da capela-mor com o violino sob o queixo, tocava uma das melodias mais bonitas que Maria já ouvira. Ao redor dele, sentadas nos degraus, estavam todas as crianças de Silverydew, com suas roupas coloridas como flores, cantando como os pássaros na aurora, com todo vigor e alegria.

O Velho Pároco não parou de tocar quando Loveday Minette, Ma­ria, Wrolf, Vinca, Zacarias, Serena e Wiggins se juntaram ao coro de crianças, mas gritou para eles: “Tomem seus lugares e decorem a letra e a melodia desta nova canção o mais rápido que puderem”.

Loveday e Maria sentaram-se nos degraus com Wiggins e Serena no colo. Wrolf e Vinca se postaram ao lado delas e, com paciência e reverência, se puseram a aprender a nova canção... Zacarias, porém, saltou por sobre a porta que levava ao interior da tribuna dos Merryweathers e sentou-se nas almofadas dentro dela, como se fosse todos os faraós que já passaram pela terra reunidos numa única e magnífica criatura ronronante.

A letra da nova canção que o Velho Pároco compusera para aquela ocasião histórica era fácil de decorar, e logo Loveday e Maria estavam cantando com o mesmo entusiasmo que as crianças.

 

         Canção da primavera

 

Louvado seja nosso Senhor por nosso irmão Sol,

Não há ninguém mais belo e brilhante que ele.

Louvado seja nosso Senhor por nossa irmã Lua,

com sua luz pura e adorável.

Louvado seja nosso Senhor pelas estrelas cintilantes

Que cingem o domo da noite.

 

Louvado seja nosso Senhor pelo vento e pela chuva,

Pelas nuvens, pelo orvalho e pelo ar;

Pelo arco-íris no alto do céu

Tão precioso, generoso e belo.

Pois todas essas coisas falam do amor de nosso Senhor,

O amor que em toda parte está.

 

Louvado seja o nosso Senhor por nossa mãe terra,

Tão graciosa e bondosa ela é,

A ofertar suas flores, grãos e frutos,

A relva, o milho e a madeira,

Pois é ela que nos sustenta em vida

e dá-nos o alimento do dia.

 

Louvado seja nosso Senhor pelas estações do ano,

Pela vida nova a brotar;

Pelos brotos e botões, pelos cordeiros e bebês,

Pelos tordos e melros a cantar.

Possa o louvor, como a cotovia, saltar de nossos corações

E alçar voo até o portão do Céu.

 

“Acho que é o bastante”, disse o Velho Pároco quando todos canta­vam a contento. “Maria, por favor, vá à Capela dos Merryweathers e veja se Pisco já concluiu a tarefa que lhe dei”.

Maria desceu Serena do colo e apressou-se até a capela. Sentado no chão, de pernas cruzadas, Pisco estava encostado na tumba de Sir Wrolf, com a grande espada de punho transversal do cavaleiro apoiada nos joe­lhos. Ele a polia vigorosamente com uma lixa de papel. Quando viu Ma­ria, ergueu os olhos e escancarou um sorriso: “É impossível deixar o aço totalmente limpo e brilhante”, disse, “está velho demais. Mas ficou me­lhor do que estava. O Velho Pároco disse que vamos levá-la conosco”.

Maria sorriu de satisfação. O Velho Pároco tivera uma ótima ideia! Já que o próprio Sir Wrolf não podia ir com eles para restituir a proprie­dade que roubara, pelo menos eles poderiam levar sua espada!

Pisco levantou-se, tirou o pó das roupas, guardou a lixa, a escova e o balde no canto da capela e, juntos, Maria e ele, levaram a espada para o Velho Pároco. Quando chegaram aos degraus da capela-mor, o Velho Pá­roco havia deixado o violino de lado e abotoado a batina até o alto, Lo­veday Minette estava erguendo do nicho a estátua de Nossa Senhora e o Menino Jesus, e as crianças retiravam o Sino de seu lugar no púlpito.

“Vamos levá-los também?”, perguntou Maria.

“É claro”, respondeu o Velho Pároco. “São propriedade do mostei­ro e vamos devolvê-los ao lugar a que pertencem”.

Algumas crianças estavam chorosas. “Sentiremos muita falta da Nos­sa Senhora”, lamentavam-se.

“Bobagem”, retrucou o Velho Pároco. “Vocês podem levar oferendas para ela na Colina do Paraíso, tal como fazem aqui. De hoje em diante, to­dos iremos até lá com frequência para louvar a Deus. Agora venham, todos vocês. Caminharemos em procissão desde já. Irei na frente, e o res­tante de vocês, os animais e as crianças virão atrás, dois a dois, cantando a canção de louvor que acabei de ensinar-lhes, a toda voz. Podem se reve­zar para carregar a Nossa Senhora e o Sino”.

“Vamos parecer animais entrando na arca”, disse Maria.

“Não poderíamos parecer com nada melhor”, disse o Velho Pároco. “Vamos, agora. Pisco, dê-me a espada”.

Pisco entregou-lhe a grande espada e, empunhando-a no alto como uma cruz de procissão, o Velho Pároco caminhou pela nave da igreja com ela e saiu ao sol, cantando a toda voz. Logo atrás dele, lado a lado, vi­nham Wrolf e Vinca, seguidos por Maria e Pisco, com Wiggins e Zacarias atrás formando um par, e então Loveday Minette conduzindo o pequeno Peterkin Pimenta, seguidos por Prudence Favo de Mel e todas as outras crianças, carregando a Nossa Senhora e o Sino e cantando efusivamente a canção que o Velho Pároco lhes ensinara.

No momento em que chegaram à trilha acidentada, o sol já ia alto no céu. Era a manhã de primavera mais gloriosa que já se viu. Enquanto su­biam, ainda a cantar, embora agora quase sem fôlego, as crianças colhiam fetos, alegrias-da-casa e prímulas, fazendo com elas grandes ramalhetes. E à volta deles, por todos os lados, os pássaros cantavam também, trinando tão alto que o barulho que faziam quase abafava a cantoria das crianças. Quando saíram da trilha para a Colina do Paraíso, o sol parecia arder com mais esplendor do que nunca, e, ao galgar a colina, todos estavam muito felizes, avançando por entre as ovelhas e os cordeiros saltitantes, passean­do sobre a relva verdinha e entre violetas lilases, deixando para trás espi­nheiros em flor, sempre subindo e subindo, até onde as faias erguiam-se, prateadas e verdes, contra o céu azul. Ao se aproximarem do cume, o Ve­lho Pároco fez todos pararem para recuperar o fôlego; então, novamente a cantar, prosseguiram sob os galhos das faias, atravessaram o vão no muro quebrado e, mais à frente, ingressaram no pátio pavimentado.

Assim que entraram, Maria compreendeu por que o Velho Pároco não se oferecera para acompanhá-la pelo parque na noite passada... Ele tinha algo mais importante a fazer... Logo que ela o deixara, ele provavel­mente subira até ali, no crepúsculo, e sob a luz da lua e das estrelas deve ter laborado noite adentro. Pois as pedras do pavimento estavam limpas de todo o entulho, das ervas daninhas e sarças e haviam sido tão bem la­vadas e escovadas que refletiam a luz do sol como se fossem lajes de pé­rola. As folhas mortas do poço e do canal que passava pelas pedras do pa­vimento haviam sido removidas, de modo que a água da nascente jorra­va límpida e com força, fluindo velozmente e sem obstáculos, brilhante como prata, sob o arco baixo sob a sorveira. A árvore tinha um aspecto glorioso à luz da manhã, com seus frutos reluzindo como velas acesas. Debaixo de seus ramos, o Velho Pároco empilhara as pedras que tirara do pátio, formando com elas um pequeno altar. Todo o lugar parecia fresco, limpo, agradável e totalmente renovado. Quando o Velho Pároco ajeitou a espada de Sir Wrolf entre os galhos da sorveira, de modo que ficasse atrás do altar de pedra como uma cruz, e as crianças depositaram as flores diante dele, e a estátua da Nossa Senhora com o Menino foi colocada no nicho vazio acima do pequeno arco de pedra, e o Sino foi pendurado num ramo do azevinho, o lugar todo ficou pronto para receber as preces e lou­vores que o Velho Pároco se preparava para oferecer ali.

De pé diante do altar, com Loveday, e cercado pelas crianças e pelos animais, mais todas as ovelhas e cordeiros que haviam conseguido espre­mer no pequeno pátio já lotado, o Velho Pároco primeiro disse uma pre­ce muito longa, embora a manhã estivesse tão encantadora que ninguém se incomodou. Orou pelo perdão de Sir Wrolf, que roubara aquele lugar de Deus — e, nesse momento, o Wrolf vivo emitiu um rosnado profundo e penitente. Em seguida, orou pelo perdão de todos os Merryweathers que, durante os séculos seguintes, nada fizeram para devolvê-lo — e então Lo­veday Minette, Maria e Pisco abaixaram a cabeça e disseram que lamen­tavam por isso. Depois, orou pedindo mais perdão para os Merrywea­thers, por guardarem para si o dinheiro que haviam obtido com a venda da lã retirada das ovelhas que pastavam naquela colina sagrada — e, nes­sa altura, todas as ovelhas baliram com pesar. Em seguida, orou para que aquele lugar continuasse sendo para todo o sempre um lugar sagrado e que nenhuma maldade jamais voltasse a ser praticada ali. E todos então disseram “Amém”, as ovelhas baliram baixinho e misteriosamente, e Pisco foi até o azevinho e fez tocar o Sino, que ressoou com voz profunda, alta e clara para avisar às pessoas do vale, lá embaixo, que a Colina do Paraí­so pertencia de novo a Deus. Depois, Pisco pegou sua flauta de pastor onde a deixara, do lado da Porta do Paraíso, e, acompanhados por ela, canta­ram “O Senhor é o Meu Pastor” e o Salmo 100, a Canção do Sino e a Canção da Primavera, e todas as coisas de louvor que puderam lembrar. Até que finalmente, com relutância, porque estava tão agradável ali em cima na colina, eles se viraram e seguiram em procissão de volta ao vilarejo, cantando pelo caminho.

Quando chegaram ao vilarejo, descobriram que o som do Sino e da alegre cantoria havia trazido para a rua todos os adultos, e eles riam, fa­lavam e choravam, tudo ao mesmo tempo, porque estavam muito felizes. Pois a primavera havia chegado e a Colina do Paraíso fora devolvida a Deus, e agora sentiam que estavam num bom caminho para viverem felizes para sempre.

 

Fazia algum tempo agora que Maria não via Pisco nem Love­day, e, como não havia roupas preparadas para ela quando acordava de manhã, imaginou que, no momento, nenhuma aventura se fazia necessá­ria. Wrolf também andava sumido; talvez pensasse que ela poderia cuidar um pouco de si própria. Era uma gloriosa manhã de primavera, com as árvores e flores desabrochando em folhas e botões e os pássaros cantan­do a toda voz.

Sempre que se levantava, Maria corria primeiro até a janela sul do quarto para contemplar os narcisos que enchiam de luz os magníficos rios e lagos, criando um contraste com a escuridão sombria dos sinistros teixos.

Em seguida, corria para a janela oeste para ver o roseiral, que era agora uma suave névoa de tenras folhas verdes onde as cores vividas das asas dos pássaros reluziam como fogo.

Então, dirigia-se até a janela norte e ficava a observar longamente, e com expressão séria, a massa escura do bosque de pinheiros mais além do telhado inclinado. Por diversas vezes, no início da aurora, ela teve a impres­são de ouvir um galo cocoricar no bosque, e o som lhe parecera um desafio.

“E então?”, dizia. “Có-cocó-ricó. O que-cocó-você-ricó vai fazer? O que vai cocó-você-ricó fazer?”

Como ela não tinha a menor ideia do que ia fazer com respeito à maldade dos Homens do Bosque Sombrio, não podia responder. Só lhe restava esperar. Mas não ficava à toa enquanto esperava, pois se mantinha em prontidão para o que quer que fosse que tivesse de fazer. Procurava não alimentar pensamentos de medo e descobriu que esse tipo de espera e de exercício de reflexão ocupava muito uma pessoa.

Depois, ela tomava aulas com a srta. Heliotrópio e, quase todos os dias, cavalgava até a Colina do Paraíso para admirar as ovelhas e os cordei­ros, que não eram mais ovelhas e cordeiros Merryweather, e conversar com as crianças que encontrava no pátio pavimentado, a brincar sob as faias. Pois as crianças de Silverydew tinham agora adotado o mosteiro como uma segunda creche. Não é que tivessem perdido o gosto pela igreja, mas haviam decidido mantê-la para os dias frios ou chuvosos, e a Colina do Paraíso, para os dias quentes e ensolarados. Não tinham medo de ficar ali. Instinti­vamente sabiam que, agora que a Colina do Paraíso fora restituída a Deus, os Homens do Bosque Sombrio não apareceriam por lá novamente.

Maria pensou que Pisco talvez sentisse o mesmo que as outras crian­ças, pois não estava mais protegendo o rebanho. Ela nunca mais o vira ali e sentia sua falta, mas imaginou que ele estivesse fazendo algo útil em al­gum outro lugar e que logo voltaria a vê-lo, se fosse paciente.

O pequeno pátio pavimentado estava começando a perder o aspec­to de ruína e se tornando, a cada dia, mais parecido com uma igreja que­rida e habitada. Os pés das crianças e dos adultos que com frequência su­biam ali agora, ao final do seu dia de trabalho, haviam aberto uma trilha sob as faias até o vão que havia no muro.

O Velho Pároco colocara dois vasos grandes de gerânios no altar de pedra, diante da grande espada de punho transversal de Sir Wrolf, e um de cada lado do vão. E a Nossa Senhora e o Menino sempre recebiam ofe­rendas de flores, exatamente como acontecia quando estavam na igreja lá do vale.

O carpinteiro do vilarejo instalara um banco onde os adultos ofe­gantes podiam sentar e descansar depois do esforço de subirem a colina. O pedreiro do vilarejo consertara vários trechos do muro, e o telhador do vilarejo, considerado o melhor de toda a região, já arrumara as vigas e as colunas que um dia haviam sustentado o telhado de colmo que protegia o pequeno pátio das gotas de chuva que pingavam das árvores.

E pessoas desconhecidas haviam trazido vários tesouros: um vaso de cerâmica para colocar as flores da Nossa Senhora, um cordão de casta­nhas-da-índia para enfeitar o muro e uma corda boa e nova para badalar o Sino. Sempre que alguém fazia suas orações naquele lugar, badalava o Sino, tal como os monges no passado, para que as pessoas no vale sou­bessem o que estava fazendo.

Um dia, quando saiu para cavalgar com Sir Benjamin, Maria o levou à Colina do Paraíso para ver o que havia sido feito lá. Quando ele viu as ovelhas e se lembrou que não ia mais ganhar dinheiro com elas, pareceu muito triste, mas, assim que Maria o conduziu até o pátio pavimentado, alegrou-se. Tirou o chapéu, como fazia na igreja, e olhou ao redor admi­rado, e, quando saíram, parou um instante diante dos vasos de gerânios na porta e cheirou.

“Têm um bom aroma”, disse. “Uma espécie de aroma benéfico”.

“Eu detestava cor-de-rosa”, disse Maria, “mas agora eles parecem tão bonitos aqui que estou pensando em mudar de opinião”.

“Não pense, mude”, disse Sir Benjamin abruptamente, quase ríspi­do. “Não desperdice seu ódio com gerânios cor-de-rosa. Todas as cores são do sol, e boas. Guarde seu ódio para as coisas obscuras — coisas ma­lignas. Agora, por Deus, vamos para casa. Você me fez perambular por aqui durante um bom tempo, e agora vamos nos atrasar para o jantar”.

Durante todo o caminho de volta, ele se mostrou bastante irritado, um aspecto dele que Maria desconhecia, mas ela não se importou porque sa­bia agora que ele também, assim como Loveday, lamentava aquela briga. E, após um bom jantar de carne assada com molho, pastéis de Yorkshire, ba­tatas assadas, verduras, molho de raiz-forte, tortinhas de maçã, açúcar, nata, queijo, bolo de ameixa e cerveja, ele voltou a ser o mesmo de sempre.

 

Na manhã seguinte, Maria despertou com o sonho de que a meia-lua esculpida acima de sua cabeça descera voando como uma borboleta e a beijara no nariz. Quando acordou, viu que o traje de montaria já esta­va preparado, por isso, devia ter sido Loveday que a beijara. No café da manhã, Sir Benjamin notou que ela estava usando o traje e abriu um lar­go sorriso.

“Que dia adorável!”, disse. “Um dia magnífico. Bonito demais para desperdiçá-lo com livros escolares. Vamos dar a ela um dia de folga, srta. Heliotrópio. Deixemos que corra por aí hoje, que vá aonde quiser, faça o que quiser. Você poderia dar uma olhada no pomar, Maria. Guardei algu­mas ovelhas lá, e são uma beleza”. Dizendo isso, suspirou ruidosamente. “Vou criar um rebanho maior do que aquele que eu tinha, agora que, gra­ças à sua intromissão, aquelas que pastavam na Colina do Paraíso estão irremediavelmente perdidas”.

Mas quando Maria olhou para ele viu que não estava zangado com ela por causa das ovelhas, pois seus olhos cintilavam.

Contudo, causou-lhe alguma surpresa que ele estivesse tão bem-hu­morado, pois acontecera uma pequena tragédia naquela manhã. Marma­duke Scarlet deixara aberta a porta da despensa e Wrolf, lá entrando, de­vorara por inteiro a perna de cordeiro reservada para o almoço, a peça de filé e o pastelão de rins reservados para a ceia e o presunto reservado para o café da manhã do dia seguinte... Tanto quanto sabiam, ele nunca fizera isso antes.

A srta. Heliotrópio concordou em dar um dia de folga para Maria. As­sim que terminou o café da manhã, ela se dirigiu ao estábulo com Serena, Wiggins e Wrolf para selar Vinca, pensando em levar a pônei ao pomar também e depois sair para uma cavalgada — por onde quer que fosse que devesse cavalgar hoje. Então, conduzindo Vinca e seguida pelos outros ani­mais, atravessou o túnel que levava à horta, onde todas as árvores frutífe­ras começavam a florescer e a grande amoreira se cobria de verde. Parou numa das estreitas trilhas entre as jardineiras e olhou para a janela em cima do túnel, onde avistou, como antes, os esplendorosos gerânios rosa-salmão.

“Darei uma examinada nisso mais tarde”, disse Maria para si mes­ma. “Depois que tiver me livrado dos Homens do Bosque Sombrio”.

Dirigiu-se então para a porta do muro leste, abriu-a e entrou no po­mar. Fazia algum tempo que não andava por ali e ficou boquiaberta ao ver a floração rosa e branca que formava, acima de sua cabeça, um baldaquino digno de uma rainha. Fizera tanto calor nos últimos dias que os frutos haviam brotado mais cedo que de costume, e ainda havia moitas de prímulas crescendo ao redor dos velhos troncos de árvores retorcidos.

Um vento de primavera brincalhão sacudia a macieira em flor, trazen­do até Maria o rastro de uma melodia alegre que vinha do outro lado do pomar. Ela resolveu segui-lo e encontrou Pisco sentado na relva, debaixo da maior e mais bela das árvores em flor, com as costas apoiadas no tron­co, tocando sua flauta. Os galhos acima dele estavam repletos de pássaros, piscos, melros, tordos, chapins, corruíras, tentilhões, todos cantando a ponto de quase explodirem. Vários coelhos saltitavam ao redor, como se dançassem ao som da música, e Serena começou a dançar também, enquan­to Wiggins corria em círculos, perseguindo a própria cauda, como fazia quando era filhote. Wrolf e Vinca eram majestosos demais para dançar ou pular, mas Wrolf abanava a cauda e Vinca relinchava alto de alegria.

“Pisco, você é uma espécie de encantador, como Orfeu”, disse Ma­ria. “Acho que os animais e pássaros seguiriam sua música aonde quer que fosse”.

“É verdade, é isso mesmo que eles fazem”, respondeu Pisco. Então sorriu para ela e perguntou: “Bem, está pronta?”

O coração de Maria acelerou. “É hoje?”, sussurrou.

“Sim”, disse Pisco. “Agora. Passei os últimos dias explorando o bos­que de pinheiros com Wrolf. Ele me mostrou onde fica o castelo e desco­briu o caminho que nos levará para dentro dele. De nada adiantará bater à porta, como é de costume, pois não nos deixarão entrar. Teremos de nos infiltrar ali secretamente”.

“Mas, Pisco”, sussurrou Maria, “o que vamos fazer quando estiver­mos lá dentro?”

“Na verdade, não sei”, disse Pisco. “Podemos simplesmente ir até os Homens do Bosque Sombrio e dizer a eles para deixarem de ser maus. Po­demos tentar, pelo menos”.

Maria achou que, apesar de simples, aquele plano parecia assustado­ramente perigoso e isso a fez eriçar-se toda de medo, mas respondeu ao riso animado de Pisco com um sorriso alegre.

“Esperem um momento, patroinha e patrãozinho”, chamou uma voz esganiçada. Ao se virarem, Pisco e Maria depararam com Marmaduke Scarlet vindo na sua direção, por entre as árvores, carregando duas volu­mosas bolsas de couro, uma em cada mão, acompanhado de Zacarias.

“Ouvindo pela fresta da porta da cozinha, ligeiramente entreaberta durante o café da manhã, soube que hoje seria um dia festivo, livre das agruras do estudo, e tomei a liberdade de preparar um pequeno repasto para o seu piquenique”, disse ele. “Servirá para aplacar os aguilhões da fome caso sua peregrinação demore além do previsto para o seu retorno seguro à mansão dos ancestrais, que é o que ansiosamente esperam os que lhes desejam boa sorte. As bolsas têm alças para carregar a tiracolo e, se apoiadas na altura da cintura, seu peso não será um inconveniente. Tenha um bom dia, patroinha; tenha um bom dia, patrãozinho Pisco”.

Entregou-lhes então as bolsas, dispensou seus agradecimentos e in­clinou-se em profunda reverência. Ao se virar para ir embora, parou um instante e fixou os brilhantes olhos azuis em Zacarias.

“Zacarias”, falou solenemente, “vá com eles e cumpra o seu dever hoje”. Dizendo isso, virou-se e afastou-se, atravessando novamente o pomar.

Penduraram as sacolas tal como haviam sido instruídos e, depois que Maria alçou-se ao lombo de Vinca, apoiando o pé na mão espalmada de Pisco, ele disse: “Vamos, agora, todos vocês, e que Deus defenda o que é direito!”

Wrolf liderava o cortejo, seguido de Maria montada em Vinca, Pisco ao lado dela e, atrás, Wiggins, Serena e Zacarias, com a cauda erguida em três voltas acima do dorso. Dirigindo-se ao extremo oposto do pomar mu­rado, atravessaram outra porta que os levou àquela área do parque em que Maria estivera na primeira manhã. Mas não seguiram na direção do Fosso de Prímulas e do mar. Viraram para o norte, rumo ao bosque de pinheiros.

Uma cerca de madeira separava o parque do bosque de pinheiros, mas, como estivesse quebrada em determinado trecho, foi por ali que fizeram sua entrada.

“Sir Benjamin vive consertando a cerca, mas Eles sempre voltam a quebrá-la”, disse Pisco.

Assim que ingressaram no bosque de pinheiros, o luminoso sol de primavera se apagou e eles se viram num mundo de penumbras. Os troncos das grandes árvores erguiam-se ao redor deles como as colunas de uma imensa catedral, e, lá no alto, os galhos se espalhavam e se entrelaçavam para formar uma vasta copa de escuridão sobre suas cabeças. O espesso tapete de escamas de pinhas mortas estalava sob seus pés, e o silêncio era profundo e misterioso. Os corredores formados pelas colunas do extenso bosque pareciam todos iguais, porém Wrolf conhecia o caminho. Seu vul­to imenso e desgrenhado galopava adiante, penetrando mais e mais fun­do no bosque. Pisco e Vinca, Serena e Zacarias pareciam incansáveis, mas Wiggins logo sentiu as patas doerem, ficou com medo e começou a se queixar. Então Maria o carregou. Estava um pouco trêmulo e, ao aninhá-lo em seus braços, ela se sentiu mais corajosa. Nada como proteger alguém mais assustado que a gente, pensou Maria, para nos fazer sentir valentes como um leão... valentes como... Wrolf... Ela olhou para Wrolf, que se­guia em frente.

“Pisco!”, sussurrou de repente, “não acredito que Wrolf seja um cão, de jeito nenhum. Acho que é um leão!” “É claro”, disse Pisco.

“Mas Sir Benjamin sempre o chama de cão!”

“Para não assustar as pessoas”, explicou Pisco.

“Bem!”, admirou-se Maria. “Bem... eu... nunca! Fico contente de tê-lo conhecido antes de saber o que ele era”.

Olhou para Wrolf marchando à frente deles e, embora não pudesse sentir por ele mais respeito do que já sentia, sentia agora reverência, além de respeito... Um leão!

Pouco depois, Wrolf sentou-se subitamente sob um pinheiro gigan­te, cujas raízes brotavam do solo e coleavam pelo chão em várias direções, convidando-os a sentar-se e recostar-se nelas. Um pequeno e límpido ria­cho corria ao lado, apressando-se em direção a leste, rumo ao mar.

“Hora do almoço!”, disse Pisco.

Maria apeou. Ela e Pisco se acomodaram confortavelmente entre as raízes que serviam de encosto, enquanto os cinco animais se deitaram pra­zerosamente sobre o macio tapete de escamas de pinha, ao lado deles. Maria abriu as duas sacolas, desatou os alvíssimos guardanapos e excla­mou de satisfação ao ver o que continham. Marmaduke Scarlet se supe­rara. Era surpreendente o que ele conseguira guardar em tão pequeno es­paço. Sanduíches de presunto. Sanduíches de geleia. Rolinhos de salsicha. Tortinhas de maçã. Pão de gengibre. Bolo de açafrão. Biscoitos de açúcar.

Rábanos. Uma garrafinha de cristal com leite. Duas xicrinhas e dois pire­zinhos feitos de chifre. Os olhos das crianças cintilaram, os animais lam­beram os beiços e todos se atiraram à comida com vontade. Zacarias co­meu sanduíches de presunto e bebeu o leite despejado em um dos pires. Serena comeu os rábanos. Wiggins escolheu os rolinhos de salsichas e os biscoitos de açúcar. Vinca mastigou alegremente as tortinhas de maça. Maria e Pisco comeram tudo o que sobrou. Wrolf desdenhou os rolinhos de salsicha que lhe ofereceram e preferiu, em vez deles, tomar uns bons goles de água do riacho.

“Ele precisa comer alguma coisa. Precisa repor as energias”, disse Pisco.

“Ele já repôs, no café da manhã”, disse Maria. “Comeu uma perna de cordeiro, uma peça de filé, um pastelão de rins e um presunto. Na hora, não consegui entender como ele podia ser tão guloso; agora compreendo por quê”.

“Os leões gostam de fazer isso”, explicou Pisco. “Ingerem uma enor­me quantidade de comida e assim armazenam energia para o dia todo”.

Quando todos já haviam comido e saciado a sede no riacho, Maria dobrou os papéis de sanduíche que não iam mais usar e escondeu-os sob as raízes em que haviam se encostado. Porém Wrolf, pelo visto, não apro­vou o lugar que ela escolhera, pois retirou-os dali com a pata, recolheu-os na boca, levou-os até o outro lado da árvore e ali os deixou.

“Mas, Wrolf, não devemos deixá-los expostos”, disse Maria. “Odeio lixo”. E então empurrou-os vigorosamente para debaixo da raiz. Para sua surpresa, ao fazer isso, o chão cedeu sob sua mão e ela quase caiu de nariz.

“Veja, Pisco!”, gritou. “Tem um buraco ali embaixo!”

Pisco se aproximou, ajoelhou-se ao lado dela, e viram que se trata­va de um grande fosso sob o pinheiro. Uma pessoa pequena facilmente passaria entre as raízes e se arrastaria para dentro dele.

“Bem!”, disse Pisco. “Seria possível viver ali embaixo sem que nin­guém soubesse. Agora, é melhor ir andando. Wrolf está esperando”.

Prosseguiram como antes, com Wrolf na dianteira, embrenhando-se nas profundezas escuras do bosque, que se tornava mais profundo e escuro à medida que avançavam, até que finalmente ficou tão escuro que mal po­diam enxergar o caminho. Então, iniciaram uma pequena subida, e, por fim, Pisco falou:

“Veja, Maria!”

Estavam à beira de uma clareira na mata, um lugar ermo como uma pedreira, repleto de rochedos entremeados de lagos com água estagnada. Dos três lados, a rocha se erguia sólida como um muro, e, coroando o muro, na direção em que estavam olhando, havia um castelo quadrangu­lar, semelhante a uma torre, tão velho que parecia fazer parte da rocha so­bre a qual estava assentado. Por todos os lados, exceto aquele onde ficava o grande portão voltado para a clareira lá embaixo, os pinheiros se fecha­vam sobre ele como a escuridão da noite... Era um castelo assustador...

E o único jeito de chegar até ele, até onde Maria pôde divisar, era su­bir os degraus que haviam sido recortados no penhasco abaixo; e, para fa­zer isso, teriam de sair da proteção dos pinheiros e cruzar a clareira sob os olhos de qualquer um que estivesse olhando pela janela acima do portão.

“Há um outro caminho”, sussurrou Pisco. “Wrolf me mostrou quan­do estivemos aqui antes. Veja, ele está nos conduzindo para lá”.

Voltaram para o meio dos pinheiros, viraram à esquerda num gran­de semicírculo e iniciaram uma subida íngreme, galgando as rochas que irrompiam do chão entre as árvores e abrindo caminho entre o emaranha­do de moitas de sarça. Maria teve de apear e conduzir Vinca. Pisco leva­va Zacarias e Wiggins debaixo do braço, para evitar que o pelo espesso dos bichanos se enroscasse nas moitas. Então, desviaram-se para a direita novamente e foram parar direto nos fundos do castelo. Seus muros som­brios erguiam-se escarpados acima deles. Mas não havia porta ali. Nem janelas, tampouco. Nada além do grande muro alto, tão alto como o mais alto pinheiro, encimado por ameias.

“Subiremos na árvore mais alta e dali nas ameias”, explicou Pisco como se nada fosse. “Tentei subir no outro dia, para ver se era possível, e é muito fácil”.

“Não creio que Wrolf achará fácil”, disse Maria. “Oh, os animais não conseguirão subir”, disse Pisco jovialmente. “Teremos de ir sozinhos”.

Entrar ali dentro sem Wrolf? O coração de Maria foi parar nos pés, mas ela não disse uma palavra. Arregaçou o traje de montaria e preparou­ se para seguir Pisco pinheiro acima. Os ramos cresciam baixo no tronco, e, se ela apoiasse os pés onde Pisco lhe mostrasse, não seria difícil.

Mas Wiggins não ia ficar para trás com Wrolf, não se o soubesse. Wrolf poderia comê-lo. Antes que Maria tirasse os dois pés do chão, ele se levantou nas patas traseiras e, apoiado na árvore, começou a chora­mingar de um jeito de dar pena.

“Pisco”, disse Maria, “não posso deixar Wiggins para trás. Ele sem­pre me acompanha aonde quer que eu vá”.

“Passe-o para mim, então”, disse Pisco com um tom bem-humora­do. “Posso segurá-lo com uma das mãos e subir com a outra facilmente”.

Então desceram, pegaram Wiggins e começaram de novo. Quando chegaram à metade da escalada, Maria, sentindo-se mais segura, atreveu-se a olhar para baixo. Wrolf, Vinca e Serena estavam aos pés do pinhei­ro, lado a lado, com expressão de branda satisfação e aprovação em suas caras peludas. Mas Zacarias — e Maria ficou pasma ao vê-lo — subia pela árvore logo atrás dela... Ele estava vindo, também...

Por alguma razão, a presença de Zacarias fez Maria sentir-se ainda mais segura. Ele era apenas um gato, mas não um gato qualquer.

O galho mais alto do pinheiro estendia-se como uma ponte desde o tronco da árvore até as ameias, e, não fosse a horrível queda que se anun­ciava abaixo, teria sido absolutamente fácil ziguezaguear por ele. Se a dis­tância que separava o galho do chão fosse pequena, Maria não teria pen­sado duas vezes. Pisco, pelo visto, não pensara duas vezes. Ziguezagueou pelo galho, com Wiggins debaixo do braço, sem a menor preocupação.

Mas, quando chegou a vez de Maria, ela achou que não seria capaz. O vazio abaixo dela parecia ter quilômetros e quilômetros de altura. Ela simplesmente não podia continuar. Quando Pisco, já em total segurança do outro lado do galho, apoiou a mão livre nas ameias, ela ainda estava parada na outra extremidade do galho, oscilando, nauseada e zonza. Temia que Pisco olhasse para trás e visse que ela estava com medo... mas sim­plesmente não conseguia ir em frente... Então, uma coisa preta saltou por sobre seu ombro e pousou no galho à frente, e ela deparou com uma gran­de cauda preta e peluda a roçar-lhe o nariz. Com um suspiro aliviado, Maria agarrou-se a ela como a uma corda, fechou os olhos, ziguezagueou para a frente e, rebocada por Zacarias, chegou até Pisco, que, debruçado sobre as ameias, abriu os braços para recebê-la.

 

Quando Maria abriu os olhos de novo, os quatro estavam sentados no telhado de pedra do castelo. Parecia um pátio, e não havia nada ali, a não ser uma espécie de caixa de pedra bem no centro, com uma porta na parede. Assim que recobraram o fôlego, Pisco dirigiu-se até a porta e abriu-a. Dentro dela, uma escada de pedra em espiral mergulhava na es­curidão. Sem dizer uma palavra, tomou Wiggins nos braços e começou a descer, seguido por Maria e Zacarias, colado em seus calcanhares.

A luz que entrava pela porta aberta atrás deles não durou muito tem­po, e logo se viram na mais completa escuridão. Seguiram em frente, ta­teando o caminho, até que Pisco topou com outra porta. Apalpou-a para encontrar o trinco, levantou-o e, com toda a cautela, abriu a porta deva­gar. Um feixe de luz vertical entrou pela fresta, e ele abriu a porta mais um pouquinho, espiando ao redor.

“Venha”, sussurrou para Maria.

Esgueiraram-se pela porta e fecharam-na sem fazer ruído. Estavam numa pequena galeria de pedra com uma estreita escada de pedra que le­vava ao grande saguão do castelo, no pavimento inferior. Aparentemen­te, ali ficava também a cozinha, pois a lenha queimava na grande lareira, diante da qual enormes pedaços de carne assavam em espetos.

“Deve ser a carne de Sir Benjamin”, cochichou Pisco para Maria. “Seu melhor touro foi roubado alguns dias atrás, como você deve saber”.

“Não, não sabia”, disse Maria.

“Pois é”, disse Pisco. “E o pai de Peterkin Pimenta teve seus ovos roubados ontem. E o pai de Prudence perdeu um barril de sidra na últi­ma quarta-feira, e todos os pães da sra. Favo de Mel desapareceram”.

No centro do saguão havia uma mesa de cavalete e, no meio dela, uma grande travessa com ovos cozidos, além de pães e jarros de sidra.

Porém, o que mais chamou a atenção de Maria não foi a comida, mas os seres humanos que estavam no saguão. Dois homens de aparência cruel, com cabelo e barba pretos e avental de couro amarrado na cintura, giravam os pedaços de carne nos espetos, enquanto outros dois coloca­vam pratos e canecas sobre a mesa. Um outro soprava o braseiro de car­vão com um fole, e outro ainda, sentado num banco, afiava uma porção de facas de aspecto assustador. Ela não gostou das feições de nenhum deles.

“Eles vão almoçar”, sussurrou Maria para Pisco. “Parece que almo­çam bem tarde”.

“Almoçam quando terminam de fazer suas maldades do dia”, expli­cou Pisco. “Vamos esperar até que tenham entornado toda a sidra do sr. Favo de Mel e fiquem mais alegres. Então, descemos”.

Uma porta no outro extremo do saguão se abriu, e um homem mui­to grande, mais alto que os outros, com um enorme galo negro pousado no ombro, entrou com uma arma nas mãos e dois coelhos mortos pendu­rados no cinto. Era o homem de quem eles haviam salvado Serena. Atrás dele vieram mais cinco, carregando cestos com bonitos peixes frescos. De­ram alguns para o homem no braseiro, que se pôs a limpá-los e cozinhá-los sobre o carvão. Em seguida, os homens tiraram suas botas e sentaram-se para descansar nos bancos que ficavam encostados na parede.

Maria contou. Havia vinte ao todo. Vinte homens grandes e um enor­me galo negro contra duas crianças, um cachorro minúsculo e um gato.

Assim que a carne e o peixe ficaram prontos, a refeição começou. Os Homens do Bosque Sombrio aproximaram os bancos da mesa e atiraram-se à comida com prazer. As crianças sentiram o sangue ferver-lhes nas veias ao verem como eles se deleitavam com a comida roubada. O peixe exalava um aroma delicioso. Elas nunca haviam comido peixes tão fres­cos como aqueles no solar. Até as cabeças de peixe oferecidas a Zacarias eram trazidas por Digweed da cidade-mercado e não tinham a mesma qualidade. Zacarias pareceu lamentar esse fato mais do que os outros, pois, assim que os homens começaram a comer o peixe, ele se pôs a salivar e praguejar baixinho.

Maria ouvira alguém dizer, certa vez, que comida e bebida roubadas nunca davam prazer, mas ela logo viu que essa afirmação era incorreta, pois jamais vira alguém comer com tanto gosto como aqueles homens malvados — nem mesmo ela e Sir Benjamin. Quando iniciaram a refeição, estavam bastante mal-humorados, mas, à medida que mais e mais da car­ne de Sir Benjamin, da sidra, dos ovos e dos pães do sr. Favo de Mel e dos bonitos peixes da Baía Merryweather desciam por suas gargantas, mais alegres ficavam. Por fim, estavam todos falando a plenos pulmões, rindo, cantando e dando murros na mesa. Faziam tal barulho que o galo negro voou e foi pousar numa das vigas, onde começou a cocoricar, acompa­nhando a letra da canção que eles cantavam.

 

           Canção do galo

 

Somos os homens do bosque do norte,

Do pântano, da colina e do mar,

Caçadores, predadores e pescadores selvagens

Espalhando, livres, a crueldade por onde passamos.

 

Somos os homens do grande galo negro

Que se empoleira lá no alto do alto pinheiro,

Gritando có-có-ri-có-có.

Oh, galo negro no alto pinheiro.

 

Somos filhos do trovão e da tormenta,

Da geada, do vento e da neve.

Somos o tumulto, o medo da noite,

E a escuridão sempre nos acompanha.

 

Somos os homens do grande galo negro

De penas pretas e crista preta,

Gritando có-có-ri-có-có.

Oh, galo negro de crista de preta.

 

Somos os homens da masmorra e da muralha,

Do machado, do elmo e do escudo.

Somos os homens do porrete e da espada,

Guerreiros que nunca se rendem.

 

Somos os homens do grande galo negro,

Que canta lá no alto da fortaleza do castelo,

Gritando có-có-ri-có-có.

Oh, galo negro na fortaleza do castelo.

 

E a música era acompanhada também pelo som da flauta de Pisco, que ele tirara do bolso e começara a tocar. Quando ele conseguiu chegar à melodia correta, sussurrou para Maria: “É agora!”

Dizendo isso, marchou escada abaixo, sempre tocando, seguido por Maria com Wiggins no braço e Zacarias, que ainda salivava e pragueja­va, abanando raivosamente sua imensa cauda, agora esticada.

Avançaram corajosamente pelo saguão na direção dos homens, e só quando estavam quase chegando à mesa é que a doce música de Pisco pe­netrou o barulho, fazendo-os olhar ao redor. Foi tão grande o seu assom­bro que eles não fizeram nada terrível; apenas pararam de cantar e esmur­rar a mesa, sentaram-se e arregalaram os olhos. Enquanto isso, Pisco, ainda acompanhando na flauta o cocoricar do galo na viga, aproximou-se e pa­rou à esquerda do líder, que ocupava a cabeceira da mesa, e Maria colo­cou-se à sua direita.

“Que bela cantoria, bom senhor!”, gritou Pisco com sua voz clara. E ele tocava tão bonito que os homens, primeiro um, depois outro, volta­ram a cantar, até que finalmente estavam todos cantando de novo.

Assim que aquele silêncio de assombro instalou-se de novo, Maria sentou-se no banco ao lado do seu anfitrião, puxou um prato na sua di­reção e perguntou, com sua voz clara e prateada: “Posso servir-me de um pouco de peixe?”

Pisco também se sentou e disse: “Para mim também, por gentileza”.

Quase sem se dar conta do que fazia, o líder estendeu seu garfo, es­petou dois peixes da travessa à sua frente, deu um para Maria e outro para Pisco, e, ao comando de um selvagem “Miau!” atrás dele, separou as cabeças de peixe e atirou-as por sobre os ombros para Zacarias.

“Que peixe delicioso, senhor!”, disse Maria, ao provar um pedaço.

E estava mesmo delicioso. Apesar da boa refeição que fizera no bos­que, ela descobriu que ainda sobrava um grande apetite para ele, e, quan­to mais comia, menos temor sentia. Quando estava totalmente satisfeita, sentiu-se também cheia de coragem e, pousando a faca e o garfo, ousou en­carar o rosto do homem ao seu lado.

Seu rosto era semelhante ao de uma águia, escuro e malvado, com um nariz recurvo e cruel e olhos pretos faiscantes, que, embora olhassem diretamente, não tinham nenhuma brandura. As sobrancelhas pretas se eriçavam de maneira assustadora, e o que se podia enxergar da sua boca, escondida entre o bigode preto e a barba espessa, parecia uma de suas ar­madilhas cruéis. Seu olhar, no entanto, apesar de duro, revelava surpresa, e Maria sabia instintivamente que, quando as pessoas são pegas de sur­presa, pode-se conseguir muita coisa delas.

“Monsieur Cocq de Noir”, disse ela com toda a cortesia, “há muito tempo ansiava pelo prazer de conhecê-lo”.

Ao ouvir isso, seu anfitrião ficou ainda mais surpreso. Os olhos dele saltaram com uma expressão positiva. “Por que razão me chama de Cocq de Noir?”, ele perguntou.

“Porque é esse o seu nome”, disse Maria. “Sei quem é você. É o des­cendente do filho de Guilherme, o Sombrio, supostamente assassinado por Sir Wrolf. Mas isso não é verdade. A mãe dele o levou em segurança para a terra distante que fica além do vale. Ele nunca mais retornou ao vale, mas seus filhos sim, e todos vocês aqui são descendentes dos filhos dele”.

O silêncio atônito com que essa declaração foi recebida deu a Maria a certeza de que ela e o Velho Pároco haviam montado direitinho aquele quebra-cabeça.

“Meu ancestral, Sir Wrolf, foi muito perverso em tentar se apoderar das terras de Guilherme, o Sombrio”, continuou Maria. “Mas ele não era mais perverso do que vocês, que vivem a roubar e caçar furtivamente por aí”.

“Minha terra é improdutiva”, rebateu Monsieur Cocq de Noir. “Não podemos criar animais num bosque de pinheiros. Do que viveremos, meus homens e eu, se não caçarmos e roubarmos?”

“Por que não fazem comércio com o povo do vale?”, retrucou Pisco repentinamente. “Nunca temos peixe fresco no vale. E gostaríamos mui­to de ter. Se vendessem peixe para nós, venderíamos a vocês carne, ovos e frangos”.

Monsieur Cocq de Noir riu com desdém. “Seria impossível para um Cocq de Noir manter-se no castelo de seus ancestrais, com a dignidade que convém a alguém de sua posição, vendendo peixe”, disse ele com uma indignação que fez sua voz elevar-se gradualmente de um murmúrio ner­voso a um grito de raiva. “Onde está aquele colar de pérolas que minha ancestral, a Donzela da Lua, levou com ela para o solar de Moonacre?

Aquelas pérolas são propriedade da minha família. Se eu as tivesse, pode­ria vendê-las e viver virtuosamente de rendas até o fim dos meus dias. A maldade não me atrai nem um pouco, desde que eu possa obter o que preciso sem ela... Sua família roubou aquelas pérolas”.

“Não roubamos, não!”, disse Maria indignada. “Essas pérolas nun­ca mais foram vistas, desde que a Donzela da Lua desapareceu. Ela mes­ma as perdeu ou escondeu. Não fizemos nada com elas”.

“Devolva-me as pérolas”, disse Monsieur Cocq de Noir, “e, então, posso pensar seriamente em corrigir meus atos”.

“Como posso lhe devolver o que se perdeu há centenas de anos?”, perguntou Maria irritada. E então, lembrando-se do que dissera Loveday sobre não se irritar, tentou falar com mais calma. “Não devemos brigar”, disse. “Se você perdoar Sir Wrolf por tentar tirar as terras de Guilherme, O Sombrio, Sir Benjamin o perdoará por roubar e caçar sem permissão, e então, se prometer deixar de ser mau, poderemos ser todos amigos, para sempre... Afinal, somos primos distantes. A Donzela da Lua é minha an­cestral também”.

Mas Monsieur Cocq de Noir foi ficando mais e mais irritado. “Em­bora Sir Wrolf não tenha assassinado o filho de Guilherme, o Sombrio, foi ele que matou o próprio Guilherme”, berrou ele. “E esse pecado ja­mais será perdoado enquanto viver um Cocq de Noir”.

“Sir Wrolf não matou Guilherme, o Sombrio”, disse Maria com vee­mência. “Guilherme, o Sombrio, foi simplesmente acometido de um súbi­to cansaço, como acontece com todos os homens maus, e resolveu se re­colher em algum lugar. Na minha opinião, ele entrou num barco e saiu navegando rumo ao pôr do sol”.

“Prove isso”, gritou Monsieur Cocq de Noir, golpeando a mesa com o punho. “Devolva-me as pérolas, prove que Guilherme, o Sombrio, não foi assassinado, e eu serei um modelo de virtude até o fim dos meus dias”.

Isso não era bom. Monsieur Cocq de Noir estava sendo tão insensato em suas exigências que Maria simplesmente não conseguiu se conter. Em­bora Pisco tenha se inclinado na sua direção com uma expressão de adver­tência e Zacarias tenha emitido um “Miau!” de reprovação, ela explodiu.

“Você é o homem mais insensato que já conheci”, vociferou ela, “e também o mais malvado! E, se Guilherme, o Sombrio, era assim como você, não culparia Sir Wrolf se ele de fato o tivesse matado — o que, porém, ele não fez. Estou envergonhada de ser sua prima distante, ora se estou!”

E o pandemônio se espalhou. Todos os homens saltaram nos pés, gri­tando e brandindo porretes e armas, o galo negro na viga do telhado cocoricou feito louco, e Monsieur Cocq de Noir berrou a toda voz. “Essas são as crianças mais insolentes que já vi. Levem-nas à masmorra e que pereçam a pão e água. Nada de salsichas nem tortas de maçã — apenas pão e água”.

Pisco levantou-se de um salto. “Fuja!”, gritou para Maria. “Rápido! Fuja!

Deslizou para baixo da mesa, agarrou Wiggins, que durante todo o tempo estivera a roer um delicioso osso aos pés de Maria, e então saíram em disparada pela escada de pedra que levava à pequena galeria, antes que os homens se dessem conta do que estavam fazendo.

Mas, assim que eles perceberam, saíram no seu encalço, e as crian­ças não teriam conseguido escapar se não fosse Zacarias, que protegeu sua retirada com grande estilo.

Inflando-se até atingir duas vezes seu tamanho já considerável, ele avançou pela retaguarda, atrás de Maria e Pisco, salivando e eriçando os pelos ferozmente; e de seus grandes olhos verdes chispavam faíscas tão ter­ríveis que os homens, assustados, se detiveram por um momento, e os qua­tro aventureiros puderam galgar os degraus em direção à galeria e atraves­sar a portinha que levava à escuridão amiga da escada da torre.

“Continue correndo”, disse Pisco ofegante. “Só mais cinco minutos, Maria, e chegaremos até Wrolf e Vinca”.

Mal haviam chegado ao telhado quando ouviram os homens subin­do a escada. Arrastaram-se por cima das ameias até o galho do pinheiro amigo e ziguezaguearam por ele. Maria seguia na frente dessa vez, sem pensar duas vezes, muito mais temerosa dos homens que da queda lá em­baixo. Pisco vinha atrás com Wiggins nos braços e Zacarias na retaguar­da. Chegando ao pinheiro, escorregaram por ele e, ao pousarem os pés no chão, levaram o maior susto de todos os que já haviam passado naquele dia terrível.

Pois Wrolf e Vinca não estavam lá.

 

Pisco abriu um sorriso meio forçado para Maria e tomou sua mão. “Nossas pernas nos levarão”, disse ele. “Corra, Maria. Arregace suas saias e corra. Os homens não se atreverão a escorregar pelo pinheiro, mas sai­rão pela porta principal e descerão pela rocha”.

Eles correram. Quando chegaram à clareira, Maria olhou para trás por sobre o ombro e viu que Pisco tinha razão. Os Homens do Bosque Sombrio saíam pela porta do castelo e desciam pelos degraus escavados na rocha abaixo.

“Corra! Corra!”, ordenou Pisco com um tom de voz que denotava desespero. E, de fato, não parecia haver escapatória, pois já estavam sem fôlego, não conheciam bem o caminho, Maria se atrapalhava com as saias, e Pisco, carregando Wiggins, avançava com dificuldade. Apenas Zacarias saltava sem impedimentos, aparentemente despreocupado e sem medo. Então, de súbito, o desespero deu lugar à alegria, pois um raio de sol, infiltrando-se pela escuridão das árvores, reluziu sobre um bonito vulto pra­teado e de orelhas longas, que apareceu pulando à sua frente.

“É Serena!”, ofegou Maria. “Ela veio nos mostrar o caminho!”

Naquele momento, todo o medo que sentiam desapareceu, embora ouvissem os homens se aproximando rápido atrás deles. Seguiram Serena e correram, correram, correram, até que finalmente viram surgir à sua frente o grande pinheiro onde haviam parado para almoçar. Serena saltou na direção dele, pulou entre duas grandes raízes e sumiu de vista.

“Ela entrou no buraco!”, disse Maria ofegante. “Enfiou-se pelo fos­so subterrâneo que Wrolf nos mostrou!”

“Está nos dizendo para entrar ali também”, falou Pisco.

Maria foi na frente, espremendo-se entre as raízes e rastejando sobre as mãos e os joelhos. Pisco empurrou Wiggins e Zacarias para dentro, logo atrás de Maria, e então enfiou-se também pelo buraco. Passaram justinho por ele. Se fossem um pouco só mais gordos, teriam ficado entala­dos. E foi bem na hora. Um minuto mais tarde e o primeiro homem a che­gar ao pinheiro teria agarrado a perna de Pisco enquanto ele desaparecia.

Lá embaixo, na escuridão acolhedora e segura sob as raízes da árvore, viram-se deslizando por um íngreme banco de areia e, então, caíram. Mas não se machucaram, pois aterrissaram confortavelmente num leito macio de escamas de pinha secas.

Ali ficaram por um momento para recobrar o fôlego, sem nada en­xergar, a princípio, no meio daquela escuridão. Até que seus olhos foram se acostumando a ela e, graças a um feixe de luz que se infiltrava pelas raízes do pinheiro lá em cima, puderam identificar um pouco dos arredo­res. Sentaram-se e puseram-se a observar. Era uma pequena caverna subterrânea e, embora o chão onde estavam sentados fosse macio, as paredes mais baixas da caverna eram de rocha. Então, quando conseguiram en­xergar melhor, fizeram uma surpreendente descoberta...

Aquela caverna servira de moradia para alguém no passado... Havia na parede um buraco enegrecido, como se houvesse um dia abrigado uma lareira, e, ao lado dele, numa rocha plana, uma caçarola de ferro, prova­velmente usada para cozinhar. Na rocha junto à caçarola, encontraram uma faca de caça dentro de uma bainha de metal e uma caneca de prata toda manchada. Maria e Pisco examinaram os objetos, aproximando-os bem dos olhos para observá-los na luz mortiça, e ficaram surpresos ao ver que a bainha da faca era lindamente trabalhada e tinha o contorno de um galo, e no caneco de prata também estava desenhado um galo.

“Alguém morou aqui um dia”, disse Pisco.

“Guilherme, o Sombrio, morou aqui”, disse Maria com ar triunfante. “Naquele tempo, provavelmente, as raízes do pinheiro não eram tão espessas e retorcidas, e a abertura devia ser maior. É como eu disse, Pisco. Cansado de tantas brigas, ele resolveu vir morar nas matas sozinho”.

Pisco abriu a boca para responder, mas, subitamente, ouviram um barulho assustador lá em cima, o som de um machado golpeando a ma­deira, e, ao descobrirem que não estavam seguros, levantaram-se de um pulo. Os homens, grandes demais para forçar sua entrada pela pequena abertura que dera passagem às crianças, estavam cortando as raízes da árvore.

“Olhe!”, gritou Pisco, cujos olhos, já acostumados à pouca luz, en­xergavam perfeitamente agora. “Olhe para Zacarias!”

Do outro lado da caverna, na parede oposta, havia uma passagem triangular para o que parecia ser outra caverna, e Zacarias, parado dian­te dela, fazia movimentos frenéticos com a cauda, como se estivesse a cha­má-los. Dispararam na direção dele e viram que, na verdade, não se tratava de uma caverna, mas de um corredor subterrâneo que levava direto para o fundo da terra, muito semelhante ao que conduzia da Porta do Paraíso para a casa de Loveday. No entanto, não tinham lanterna agora, e estava escuro como breu.

Zacarias, porém, era tão bom quanto qualquer lanterna. Maria agarrou-se firmemente ao rabo dele, como fizera ao atravessar o galho do pinheiro, Pisco agarrou-se à saia dela com a mão direita e Wiggins sob o braço esquerdo, e Serena veio atrás. Andaram aos tropeços pela escuri­dão, descendo e descendo, topando nas pedras do caminho, arranhando os cotovelos nas laterais do corredor de rocha, mas conduzidos, sustenta­dos e apoiados pelo rabo de Zacarias.

Ouviram atrás de si o som de algo sendo arrancado e adivinharam que seus perseguidores acabavam de entrar no esconderijo. Em seguida, fez-se silêncio, como se eles estivessem examinando o que encontraram ali, e então o ruído das botas pisando nas pedras, a avisar-lhes que os ho­mens vinham no seu encalço pelo corredor.

“Mas não conseguirão avançar tão rápido quanto nós”, disse Pisco com tom encorajador. “Não contam com a ajuda do rabo de Zacarias”.

E assim prosseguiram, com o coração cheio de otimismo. Um som estranho e bonito invadia o corredor de vez em quando, ora mais alto, ora mais suave, como uma música que cresce e então desaparece, para voltar a crescer e desaparecer de novo.

“O que será isso?”, perguntou Maria.

“É o mar”, disse Pisco. “Creio, sim, creio que vamos sair na Baía Merryweather”.

Maria ficou sem palavras. A excitação diante da ideia de finalmente chegar ao mar deixou-a absolutamente engasgada.

Agora, uma tênue luz verde entrava no túnel, e ela conseguiu enxergar o contorno das orelhas e dos bigodes de Zacarias. E, a cada passo, o ado­rável barulho do mar crescia ao redor deles. Então, o túnel se alargou e eles se viram numa caverna maior. Do outro lado, na parede mais distante, uma abertura deixava passar a luz do dia, débil, porém bonita. Zacarias estava indo na direção da luz do dia, mas Maria o fez parar com um vigoroso pu­xão no rabo. “Veja!”, gritou. “Lá está o barco de Guilherme, o Sombrio!”

Pararam e olharam. O barco estava estacionado no chão da caverna, estreito e comprido como uma embarcação viking. A madeira estava corroí­da em alguns pontos, mas as costelas ainda estavam lá, robustas, fortes e lin­damente torneadas, e, esculpido na proa, um grande galo de asas abertas.

“Veja só!”, gritou Maria com ar triunfante. “É o barco em que Gui­lherme, o Sombrio, navegou rumo ao pôr do sol”.

“Então, por que está aqui?”, perguntou Pisco. “Deveria estar no poente”.

“Depois que Guilherme, o Sombrio, desembarcou no poente, os ca­valinhos brancos que vivem no mar trouxeram o barco de volta para a terra”, disse Maria. “E um deles o atracou aqui”.

Pisco riu, aquele tipo de risada que diz “Não acredito numa palavra do que você está dizendo”, e os dois bem poderiam ter iniciado uma bri­ga ali, mas Zacarias, que não estava nem um pouco interessado no barco de Guilherme, o Sombrio, apenas em levá-los para um lugar seguro, pu­xou vigorosamente a própria cauda, apressando-os na direção do facho de luz. Ao passar por ele, viram que se tratava da entrada para uma outra caverna ainda, com o chão arenoso recoberto de conchas, que os levou di­retamente para a Baía Merryweather.

“Oh! oh! oh!”, exclamou Maria. “Pare, Zacarias! Pisco, pare! Veja, Wiggins! Veja, Serena!”

E, embora soubessem que os Homens do Bosque Sombrio estavam atrás deles, todos pararam e contemplaram.

A Baía Merryweather tinha o formato de uma lua crescente. Lindos penhascos rochosos, cheios de cavernas, cercavam uma pequena praia de seixos coloridos e, então, uma faixa de areia dourada salpicada de rochas que abrigavam tanques de anêmonas escarlates, conchas e algas marinhas coloridas como fita de cetim. Além da baía, o mar era de um azul profun­do, manchado com ondas de cristas brancas que pareciam cavalos a ga­lopes, centenas de cavalinhos brancos que se estendiam até o horizonte no esplendor de uma luz cintilante que fez Maria querer gritar diante de tan­ta maravilha. Dentro da baía, aquele mar glorioso vinha ao encontro de­les em ondas brilhantes, uma após a outra, que se curvavam, quebravam e caíam, lançando chuvas de espuma luminosa e bolhas irisadas que pou­savam aos seus pés como flores atiradas.

O cheiro salgado do mar, a brisa fresca que soprava dele, parecia en­viar grandes ondas de força ao corpo cansado de Maria, e, lá no alto, as gaivotas revoavam com todo o esplendor, entoando seu grito estranho e forte.

Um antigo cais de pedra fora construído na baía, e redes de pesca ha­viam sido deixadas ali para secar. Balançando na água azul, havia alguns botes de pesca muito feios, com velas pretas e sujas enroladas nos mastros. Ao vê-los, Maria foi subitamente tomada de raiva. Velas pretas! Botes feios naquele mar cintilante. Deviam ser azuis, vermelhos, verdes, amarelos, com velas brancas como asas de pássaros... E assim seriam no dia em que a maldade dos Homens do Bosque Sombrio fosse banida daquele lugar.

Mas, no momento presente, ainda não fora, e seus esforços para bani-la haviam sido um completo fiasco, e Pisco a puxava pela saia com um grito alarmante. Ela olhou ao redor e viu que eles pululavam para fora da caverna como horríveis besouros pretos saindo da toca.

“Corra!”, gritou Pisco.

Uma trilha estreita, íngreme e perigosa serpenteava pela rocha até o topo do penhasco acima, e eles dispararam na direção dela, Serena saltan­do na frente e Zacarias na retaguarda. Como não estava acostumada a es­calar rochas, Maria subia com muita dificuldade, e Pisco, com Wiggins debaixo do braço, também não se via em situação muito mais fácil. Ele tentou colocar Wiggins no chão e fazê-lo subir sozinho, mas Wiggins tam­pouco estava habituado a escaladas e se recusou a sair do lugar, por isso Pisco teve de pegá-lo no colo novamente. Foi uma escalada horrível, pois logo ouviram os passos dos homens atrás deles, aproximando-se rápido.

Foi um pesadelo. Maria se perguntava se, chegando ao topo, conse­guiriam correr o bastante para escapar. Por quê, oh! por que Wrolf e Vin­ca os haviam abandonado? Mas eles nunca chegariam ao topo, pensou. Não demoraria muito para que sentissem as mãos dos Homens do Bos­que Sombrio agarrando seus calcanhares. Ela sabia que eles estavam mui­to próximos pelo modo que Zacarias bufava e praguejava na retaguarda.

“Continue!”, disse Pisco resfolegando atrás dela. “Mais rápido! Mais rápido!”

Mas a pobre Maria não conseguia acelerar. Seus membros pareciam feitos de chumbo agora, e suas mãos doíam e sangravam de apoiar-se nas pedras pontiagudas. A única maneira de seguir adiante era manter os olhos fixos no pompom branco da cauda de Serena, que galgava a rocha à sua frente, e nas orelhas compridas da lebre que se agitavam no ar como ban­deiras. Havia algo reconfortante na visão daquele pompom, algo revigo­rante naquelas orelhas que acenavam alegremente. Serena parecia muito tranquila. E assim Maria prosseguiu, sem nada enxergar exceto Serena.

Subitamente, a lebre deu um grande salto e desapareceu, e as mãos do­loridas de Maria agarravam-se agora não à rocha, mas a moitas de urzes, e ela deparou com a cara fulva e peluda de Wrolf. Haviam chegado ao topo do penhasco, onde Wrolf e Vinca esperavam por eles. Ela não devia ter du­vidado de seus animais queridos. “Wrolf! Wrolf”, gritou, e, enlaçando-lhe o pescoço com os braços, beijou-o afetuosamente no nariz preto e frio.

“Não perca tempo com beijos!”, gritou Pisco logo atrás, num tom de voz exasperado. “Monte nele!”

Ela montou. Zacarias subiu atrás, e Pisco e Wiggins montaram em Vinca. E assim, com Serena saltando na frente, cavalgaram veloz para casa, com as gaivotas revoando e gritando triunfantemente pelo céu. Os pinhei­ros passavam rápido por eles, assim como as moitas de tojo dourado. Su­biram a colina, desceram pelo vale e chegaram ao Fosso das Prímulas onde haviam encontrado Serena. Então, os pinheiros deram lugar a car­valhos e faias, e viram a macieira em flor agitando-se sobre o muro do po­mar e as torres do solar erguendo-se mais adiante. Estavam a salvo agora, com a casa à vista e os homens malvados muito lá atrás. Wrolf e Vinca trocaram o galope por um trote suave. Maria e Pisco recobraram o fôle­go e trocaram um sorriso, felizes por estarem a salvo.

“Bem, foi um dia e tanto!”, disse Pisco.

“Mas não conseguimos o que queríamos”, disse Maria. “Os Homens do Bosque Sombrio continuam malvados como sempre e mais raivosos do que antes. Em vez de torná-los melhores, só fizemos piorá-los”.

“Mas nem por isso estou chateado. Você está?”, perguntou Pisco.

“Não, não estou”, disse Maria. “Creio que não podíamos esperar ter sucesso na primeira tentativa. Mas já fizemos a primeira tentativa e ago­ra devemos ir em frente”.

“E foi uma grande aventura”, disse Pisco. Então, olhando para o céu, viu que estava inundado de cores. “Puxa, o sol está se pondo”, gri­tou. “Passamos o dia todo fora. Preciso correr para casa, senão mamãe fi­cará preocupada”.

Saltou do lombo de Vinca, entregou as rédeas para Maria, colocou Wiggins no chão e disparou pelo parque na direção da portaria, voltan­do-se mais uma vez para acenar para Maria. A luz do ocaso iluminou a comprida pena verde do seu chapéu e sua face rosada e sorridente. Então, desapareceu entre as árvores, que o acolheram como a um filho.

 

Maria cavalgou vagarosamente pelo jardim do solar e entrou no pá­tio dos estábulos, onde encontrou Digweed à sua espera. Ele não disse nada, mas abriu um largo e reconfortante sorriso, como a dizer: “Não se preocupe! Você terá melhor sorte da próxima vez!” Em seguida, retirou-se com Vinca, para lhe dar uma boa escovada e uma boa porção de for­ragem. Quando Maria desceu das costas de Wrolf, ele também lançou-lhe um olhar reconfortante e consolador. Então, Wrolf, Zacarias, Serena e Wiggins subiram lentamente os degraus de pedra que levavam à cozinha, em busca de descanso e alimento. Todos pareciam muito cansados, pen­sou Maria... Todos menos Wiggins, que liderava o cortejo com ares de he­rói conquistador...

Mas Wiggins nada fizera o dia inteiro, exceto atrapalhar e fazer-se carregar. E agora trazia aquela expressão triunfante de um comandante militar que não tomou parte do calor e da poeira da batalha e, no entan­to, marcha com toda a altivez diante das tropas quando estas, vitoriosas, regressam para casa.

Só que não saímos vitoriosos, pensou Maria, e agora que Pisco não estava mais ao seu lado ela sentiu certo desânimo. Estava sem coragem de entrar em casa e encarar Sir Benjamin, que logo veria em seu rosto as mar­cas daquele dia malsucedido. Sentou-se no parapeito de pedra do poço, pensando em descansar um pouco primeiro.

Estava agradável e tranquilo ali no pátio dos estábulos, com as pom­bas brancas arrulhando ao seu redor e o céu azul todo sarapintado com nuvenzinhas cor-de-rosa que mais pareciam penas enroladas. Maria incli­nou-se para olhar dentro do poço e viu seu reflexo na água escura; pare­cia pálido, cansado e um pouco triste, bastante diferente do rosto a que ela estava acostumada. Ocorreu-lhe, então, que o rosto da primeira Donzela da Lua tivesse talvez aquele mesmo aspecto quando ela deixou para sempre o solar. Talvez, antes de selar seu cavalinho branco, ela também tivesse sentado na borda do poço por um instante e observado seu rosto refletido na água, emoldurado por seus lindos cabelos dourados e suas re­luzentes pérolas cor da lua no pescoço.

“O que ela terá feito com essas pérolas?”, perguntou-se Maria.

Uma tosse alta e esganiçada, do tipo que deseja chamar a atenção, interrompeu seus pensamentos. Maria virou-se e viu Marmaduke Scarlet parado no patamar da escada da cozinha. Ele acenou com a cabeça e sor­riu-lhe, nem um pouco perturbado, pelo visto, com o fracasso daquela primeira tentativa.

“Estou prestes a preparar uma omelete para seu deleite no jantar”, dis­se ele, “e vou precisar da manteiga que pus para resfriar dentro do poço esta manhã. Seria incômodo, patroinha, eu lhe pedir que enfiasse a mão na aber­tura logo abaixo de você, retirasse o ingrediente necessário e o trouxesse para mim quando entrasse em casa para fazer a toalete e se preparar para absorver a refeição da qual, a essa altura, você deve estar muito precisada?”

Ao concluir essa peroração, Marmaduke Scarlet inclinou-se e reti­rou-se, e Maria imediatamente se preparou para atender ao seu pedido, pois sabia que aquele longo discurso queria dizer, em linguagem simples: “O jantar está esperando. Apresse-se”.

Debruçou-se sobre o poço, enfiou a mão e o braço por entre as samambaias e vasculhou os atraentes compartimentos ocultos na parede do poço que Sir Benjamin lhe mostrara no primeiro dia em que ali estivera — e que ela então considerara um excelente esconderijo para joias. No pri­meiro compartimento, ela só encontrou queijo; o pote com a manteiga es­tava no segundo, mas, quando o retirou de lá, achou tão pequena a porção que duvidou se seria suficiente, pois as deliciosas omeletes de Marmaduke Scarlet eram sempre muito grandes e levavam muita manteiga. Talvez houvesse outro pote mais para dentro. Debruçando-se dessa vez sobre a borda do poço o mais que pôde, vasculhou com a mão até o fundo do pe­queno compartimento.

Não conseguiu encontrar mais manteiga, mas seus dedos tocaram algo que parecia ser uma caixinha de metal. Ao puxá-la para fora, viu que se tratava mesmo de uma caixa. Sentou-se na beirada do poço com ela no colo. Era muito antiga, mas ainda era possível reconhecer o galo que or­namentava a tampa. Como não estivesse trancada, Maria abriu-a. Dentro dela encontrou um pedaço de seda rota e desbotada, que quase se des­manchou quando ela a tocou, e, embrulhado no tecido, um colar de pé­rolas cintilantes.

Maria ficou ali paralisada, com o colar entre os dedos e os lábios entreabertos de admiração diante da beleza das pérolas. O céu do poente mu­dara de azul para cor-de-rosa e então para dourado, e as pombas brancas que desfilavam à sua volta tinham as asas debruadas de ouro. O vento amainara, e tudo estava muito quieto. Num movimento lento, Maria le­vantou as mãos e prendeu o colar no pescoço. Em seguida, debruçou-se novamente sobre o poço para contemplar seu reflexo mais uma vez. O bri­lho do sol se pondo parecia ter se infiltrado em seus cabelos ruivos assim como nas penas das pombas, pois eles agora reluziam como ouro puro ao redor do seu rosto, mais luminosos ainda que as pérolas que cingiam a branca coluna do seu pescoço. Sorriu para seu rosto refletido na água, e ele lhe sorriu de volta. Foi um momento de tamanha quietude e beleza, que ela teve a impressão de que o mundo todo havia parado de respirar.

Maria sentou-se novamente e pôs-se a pensar nas pérolas. E, como se a primeira Donzela da Lua houvesse lhe contado, compreendeu como elas tinham ido parar naquele esconderijo. Na noite de sua partida, a Donzela da Lua sentara-se ali, de fato, a se perguntar a quem pertenceriam aquelas pérolas — se a ela, já que fora um presente de seu pai, ou a seu marido, já que o colar fora o único dote que ela levara para Moonacre. Incapaz de se decidir, e não querendo apoderar-se do que talvez não lhe pertencesse, nem entregar a seu marido um tesouro ao qual ele não tinha direito, ela escondera as pérolas no poço.

A voz esganiçada novamente se fez ouvir, alta e com um ligeiro tom de indignação, do patamar da escada da cozinha: “Patroinha, a hora tarda...”

Maria afrouxou um pouco o colar para ocultá-lo dentro do casaco, que ela abotoou até em cima. Em seguida, pegando o pote com a manteiga, subiu calmamente a escada com passos vagarosos e entrou na casa.

 

Naquela noite, Maria dormiu profundamente por algumas ho­ras e então despertou de repente, com o quarto iluminado como se fosse dia. A princípio, pensou que já havia amanhecido, mas então percebeu que a luz que inundava o aposento vinha do luar que entrava pela janela — o mais claro luar que já vira em toda a sua vida. Pela janela sem cortina, os raios prateados se esparramavam pelo quarto como as ondas da Baía Merryweather ao quebrarem aos seus pés para lhe dar boas-vindas.

Havia algo cordial naquele luar, como se a lua daquela noite amas­se Maria e a reivindicasse como irmã, iluminando o mundo inteiro só por sua causa. Ela soltou o colar de pérolas que ainda trazia no pescoço e, com ele nas mãos, elevou-o para o alto como se fosse uma oferenda, e a lua, reluzindo sobre sua beleza e tornando-o dez vezes mais belo, pareceu aceitar a oferenda.

Contudo, Maria não queria se desfazer daquelas pérolas. Amava-as tanto que não queria dá-las nem mesmo para aquela lua encantadora. En­tregá-las para os Homens do Bosque Sombrio, então... nem pensar. Mas era preciso. Monsieur Cocq de Noir prometera que eles deixariam de ser maus se ela pudesse provar que Guilherme, o Sombrio, não fora assassinado por Sir Wrolf, mas se recolhera à vida de ermitão por vontade própria, e se lhe entregasse as pérolas.

A primeira condição já se cumprira, pois ele certamente vira o reti­ro de Guilherme, o Sombrio, com seus próprios olhos quando estava per­seguindo ela e Pisco. E ele teria as pérolas também, caso ela se convencesse a entregá-las... Então, ele deixaria de ser mau, e a felicidade tomaria con­ta do Vale de Moonacre...

Maria não tinha dúvidas de que, se cumprisse sua parte no trato, Monsieur Cocq de Noir cumpriria a dele. Mesmo o mais cruel dos homens guarda alguma bondade dentro de si, e, ao se recordar do seu olhar dire­to, ela teve certeza de que ele não era o tipo de homem que quebraria a palavra dada. No entanto, não sentia a menor vontade de entregar-lhe as pérolas que ela mesma encontrara e que já pareciam fazer parte dela.

“Se ao menos eu pudesse dá-las a você”, disse para a lua. “Mas não quero dá-las para aquele homem horrível”.

Ocorreu-lhe então, subitamente, que entregar as pérolas a Monsieur Cocq de Noir seria, de certa maneira, o mesmo que entregá-las à lua. Pois a lua pertence à noite, e o que poderia ser mais semelhante à noite que Monsieur Cocq de Noir e seu escuro bosque de pinheiros? E a primeira Prin­cesa da Lua saíra da escuridão do bosque de pinheiros trazendo as péro­las com ela. As pérolas pertenciam mais aos Homens do Bosque Sombrio do que aos Merryweathers.

“Farei isso”, disse Maria, e, incapaz de continuar na cama mais um minuto sequer, levantou-se, dirigiu-se até a janela sul e olhou para o jar­dim do solar por entre os galhos do grande cedro.

Tudo era preto e prata, exatamente como na noite de sua chegada. O dourado dos narcisos fora roubado pelo feitiço da lua, e cada um de­les sustentava uma trompa de prata numa delgada lança de prata. E os homens-teixos e os galos-teixos eram negros como a noite — e tinham um aspecto tão vivido que Maria teve a sensação de que, se os narcisos tocas­sem suas trompas, eles imediatamente começariam a se mexer... Na ver­dade, um deles estava se mexendo... Maria prendeu a respiração.

Mas ela estava enganada. Não era um dos Homens do Bosque Som­brio que vinha saindo das sombras junto do escudo prateado do lago de nenúfares, mas uma criatura desgrenhada, de quatro patas, que cruzou vagarosamente o jardim e veio parar debaixo da janela, sob o cedro, e ago­ra a fitava... Era Wrolf.

Maria debruçou-se na janela e falou com ele. “Sim, farei isso, Wrolf”, disse, “e o farei agora mesmo. Me espere aí”.

Vestiu-se o mais rápido que pôde, procurando não fazer barulho para não despertar Wiggins. Por mais que o amasse, sabia que avançaria mais rápido se não tivesse companhia, exceto Wrolf. Wrolf querido! Entendia agora por que ele e Vinca haviam deixado que ela e Pisco escapassem so­zinhos do castelo. Se não tivessem feito isso, Monsieur Cocq de Noir ja­mais teria visto o retiro de Guilherme, o Sombrio.

Maria vestiu o traje de montaria e colocou o colar novamente no pescoço. Então parou e refletiu por um momento. Não queria acordar a srta. Heliotrópio ao descer a escada, nem que Sir Benjamin a visse. Ele se recolhia muito tarde às vezes, e ela não sabia que horas eram... Talvez não passasse ainda da meia-noite... Conseguiria descer pelo cedro? Certamen­te que sim. Vira, na primeira noite, que era fácil subir nele, muito mais fá­cil que no pinheiro. E Marmaduke subia.

Sem se dar tempo para sentir medo, saiu pela janela e pisou no gran­de e generoso galho logo abaixo, e foi descendo e descendo, de um galho para outro, até que seu pé direito finalmente tocou não a madeira dura, mas a robustez macia das costas de Wrolf. Com um suspiro de satisfação, acomodou-se ali e agarrou-se firme ao rufo de pelos do seu pescoço.

“Estou pronta, Wrolf”, disse.

Ele partiu imediatamente, com passos cadenciados, e atravessou a magia em preto-e-branco do jardim do solar iluminado pela lua. Ergueu com a pata o trinco do portão, que nunca estava trancado, e saíram no par­que rumo ao bosque de pinheiros. Maria contemplou admirada a beleza do mundo iluminado pela lua. Tudo estava calmo e quieto. Nenhum pás­saro piava, nenhuma folha se mexia.

No entanto, apesar da paz da noite, quando deixaram o parque e en­traram no bosque de pinheiros ela sentiu um medo súbito e desesperador, não dos Homens do Bosque Sombrio, mas da escuridão. O luar não con­seguia penetrar a espessa copa de galhos acima deles, e o denso negrume era como uma mortalha que tolhia não só o movimento e a visão, mas também a respiração. Wrolf caminhava devagar agora, e ela não conse­guia imaginar como ele encontraria o caminho. Tinha medo também de ser atacada pelas árvores que ela não via. E não só pelas árvores, mas por duendes e espíritos da floresta que talvez vivessem naquelas matas e go­vernassem as horas sombrias.

Maria viu-se cavalgando com um braço levantado para proteger o rosto e a boca subitamente ressequida de medo. Em certo trecho do cami­nho, um graveto enroscou-se no seu cabelo e ela pensou que fosse uma mão a agarrá-la, e quando um arbusto prendeu-se à sua saia achou que fos­sem mãos tentando derrubá-la das costas de Wrolf e teve de se conter para não gritar. E houve um momento em que teve a sensação de que Wrolf a abandonara, pois não conseguia enxergá-lo. Não era Wrolf que ela esta­va cavalgando, mas algum terrível monstro de pesadelo que a mergulhava cada vez mais fundo no medo. “Se nenhuma luz surgir, acho que não vou suportar”, pensou, para em seguida dizer a si mesma que tinha de supor­tar. Todas as coisas chegam ao fim, até mesmo a noite. Baixou resoluta­mente o braço que levantara para proteger-se, endireitou os ombros e sorriu na escuridão.

Então, como se o seu sorriso, feito uma chama, tivesse acendido uma lanterna, percebeu que já conseguia divisar alguma coisa. Distinguiu a ca­beça desgrenhada de sua montaria, seu querido Wrolf, e identificou vaga­mente a silhueta das árvores. A luz prateada tornou-se então mais intensa, e era tão bonita que ela teve certeza de que nenhum mal poderia habitá-la. “Deve ser o luar”, pensou, mas sabia que nenhum raio de luar poderia atravessar o manto da escuridão que os encobria e que nem mesmo a lua tinha um brilho tão magnífico.

Foi então que ela o viu. Um cavalinho branco andava a meio galope à frente, a conduzi-los, e de seu corpo imaculadamente branco a luz ema­nava como de uma lâmpada. Ele estava alguns metros adiante, mas por um instante fugaz ela conseguiu vê-lo perfeitamente, nítido como um camafeu contra a escuridão. A curva altiva do pescoço, a crina e a cauda brancas a ondular, o brilho dos cascos prateados — era tudo completamen­te estranho e, contudo, absolutamente familiar para ela, como se os olhos que o viram tantas vezes antes olhassem através dos dela, que só agora, pela primeira vez, contemplavam sua beleza. Maria nem sequer ficou sur­presa quando ele virou sua linda cabeça para trás para olhá-la e ela avis­tou lhe na fronte um pequeno chifre prateado... Seu cavalinho branco era um unicórnio.

A partir de então, viajaram velozmente, Wrolf se esforçando para não perder de vista o cavalinho branco. Mas nunca chegavam a alcançá-lo, e Maria já não pôde vê-lo tão claramente quanto no primeiro momento em que o vira. Pois, pelo resto do caminho, ele não era mais que um bri­lho contínuo, um rastro de luz em movimento cujo contorno não era mais nítido contra a escuridão. Mas ela ficou contente com o que viu, conten­te até mesmo quando as árvores se espaçaram, a escuridão se dissipou e o esplendor crescente do luar lentamente ofuscou o brilho do cavalinho branco; contente até mesmo quando ele desapareceu... Pois agora ela o vira duas vezes e já não havia como duvidar da sua existência. Talvez voltasse a vê-lo. Sim, ela tinha a forte sensação de que voltaria a vê-lo uma ultima vez.

 

Ela e Wrolf estavam agora na clareira, olhando para o castelo lá no alto, e, no céu acima dele, a lua pairava como um grande escudo enfeita­do com a silhueta de um homem encurvado, quase dobrado pelo peso do fardo que carregava nas costas.

“Pobre homem!”, disse Maria. “É Monsieur Cocq de Noir lá na lua, Wrolf, e ele carrega sua maldade nas costas como Cristão em O peregri­no. Ele ficará feliz de poder se livrar dela”.

Wrolf se limitou a responder com um rosnado de desdém, enquanto atravessava a clareira e chegava aos pés da escada escavada na rocha. Ali ele parou, como a indicar para Maria que seria mais fácil subirem se ela descesse de suas costas. Assim ela fez, e começaram a escalada, Maria na frente e Wrolf atrás.

Subiram e subiram; tão longo e íngreme era o caminho que Maria chegou a pensar que estavam escalando até o homem estampado na lua, numa missão de misericórdia para libertá-lo de seu fardo. Mas, finalmen­te, atingiram o topo, e ela parou diante da grande porta do castelo para recobrar o fôlego. Ao seu lado, Wrolf roçou a cabeça desgrenhada em seu ombro para lhe dar coragem. Acima deles, havia um sino de ferro do qual pendia uma corrente comprida e enferrujada. Maria agarrou a corrente e puxou-a com toda força, fazendo o sino vibrar uma vez no silêncio da noite, como a marcar uma hora, o início de um novo dia.

Quase no mesmo instante, a janela acima da grande porta se abriu, e um rosto escuro de águia olhou para fora. Monsieur Cocq de Noir ob­servou Maria e Wrolf em silêncio, mas suas sobrancelhas arqueadas e o esgar de desdém nos seus lábios não eram nada animadores. Sem nada di­zer, Maria tirou o colar do pescoço e o levantou à luz do luar para que ele o visse. Os olhos de Monsieur Cocq de Noir cintilaram com um brilho re­pentino. Ele fechou a janela e desapareceu de vista. Depois de um grande ruído de ferrolhos rangendo, a pesada porta se abriu e ele apareceu dian­te deles, segurando uma lanterna acima da cabeça, com seu grande galo negro pousado no ombro.

“Você pode entrar, Donzela da Lua”, disse. “Mas o cão fulvo deve permanecer aí fora”.

“De jeito nenhum”, disse Maria com firmeza. “Aonde eu vou, meu cão vai também”. E, antes que Monsieur Cocq de Noir tivesse tempo de dizer mais alguma coisa, ela entrou, acompanhada de perto por Wrolf, e a porta se fechou atrás deles. Estavam numa salinha quadrada, de pedra, com assentos de pedra em cada lado, e havia uma segunda porta que, se­gundo imaginou Maria, devia levar ao saguão. A sala não tinha janelas e era fria e úmida como uma caverna, iluminada apenas pela lanterna que Monsieur Cocq de Noir agora depositava em um dos assentos. O galo ne­gro continuava a bater suas asas de maneira aterradora, e Maria teria fi­cado muito assustada, não fosse a presença do corpo forte e caloroso de Wrolf encostado ao dela. Passou o braço esquerdo ao redor do pescoço dele, enquanto segurava com a mão direita o colar de pérolas junto ao peito. Monsieur Cocq de Noir estendeu sua mão forte e morena, com de­dos curvos como garras de águia, como se pretendesse arrancar-lhe o colar, mas Wrolf rugiu ferozmente e ele afastou a mão.

“Monsieur”, disse Maria. “Cumpri as duas condições que me impôs. Quando me seguiu pelo buraco debaixo do pinheiro, pôde ver que era ali o retiro de Guilherme, o Sombrio, onde ele se refugiou quando ficou can­sado do mundo. E, quando desceu pelo corredor que levava à caverna mais embaixo, viu o barco em que ele navegou até o pôr do sol... Agora sabe que Sir Wrolf não matou Guilherme, o Sombrio. E, como vê, tenho as pérolas comigo. Encontrei-as por acaso dentro do poço do solar. A Don­zela da Lua deve tê-las escondido ali na noite em que partiu. Sei que é um homem de palavra, Monsieur. Sei que agora que cumpri minha parte do acordo você manterá a sua”.

“Não considero que você tenha cumprido as duas condições”, retorquiu Monsieur Cocq de Noir. “Você tem as pérolas, é verdade, mas a faca e a caneca provam apenas que Guilherme, o Sombrio, usou uma vez o bu­raco sob o pinheiro, e não que ele tenha se retirado para viver ali na épo­ca em que Sir Wrolf foi dado como suspeito por sua morte. E quanto a essa história fantástica de que ele teria navegado rumo ao pôr do sol na­quele barco... Bem, Donzela da Lua, como é que o barco voltou de lá para a caverna novamente?”

Era a mesma pergunta que Pisco lhe fizera, e Maria deu a mesma res­posta. “Os cavalinhos brancos que vivem no mar o trouxeram de volta à terra”, disse. “E um deles o empurrou para dentro da caverna”.

O galo negro zombou dela com um cocoricó longo e alto, e Mon­sieur Cocq de Noir urrou de rir. “Que bela história!”, disse ele caçoando. “Você não espera que um homem inteligente acredite nesse conto da ca­rochinha, não é? Donzela da Lua, não venha lançar poeira da lua nos olhos de um Cocq de Noir. Me dê essas pérolas, que me pertencem por direito, e caia fora. Não lhe farei mal algum desta vez, mas se voltar a se aproxi­mar do meu castelo ficará presa na masmorra de que falei”.

Mas Maria não arredou pé. “O que lhe disse não é conto da caro­chinha, mas a pura verdade”, disse com convicção.

Mais uma vez o galo cocoricou e seu dono riu. “Mostre-me o cava­linho branco que empurrou o barco para dentro da caverna depois de vol­tar do poente e acreditarei em você”, ele disse.

“Muito bem”, respondeu Maria sem hesitar. “Venha comigo ao bos­que de pinheiros e você verá”.

Assim que terminou de dizer isso, Maria sentiu-se paralisar de pas­mo e medo. Pasmo porque só se dera conta do que estava dizendo quando as palavras saíram de sua boca, e medo porque receava que o que acabara de dizer não fosse verdade. E se levasse Monsieur Cocq de Noir ao bosque de pinheiros e não vissem nada? Nesse momento, Wrolf encostou-se nela para tranquilizá-la, e ela soube então que estava tudo bem.

“Vamos, então?”, perguntou a Monsieur Cocq de Noir, e, soltando Wrolf por um instante, atou o colar novamente ao pescoço.

Em resposta, ele riu mais uma vez, pegou a lanterna e abriu a porta. “Mas preste atenção”, disse, “não vou passar a noite toda perambulando pelo bosque atrás dessa fantasia da sua imaginação. Se eu não puser os olhos nesse seu cavalo branco quando chegarmos ao pinheiro, terei ven­cido e você terá perdido — e me entregará as pérolas e eu continuarei ca­çando e roubando como antes”.

“E se virmos o cavalo”, disse Maria, “terei vencido e você terá per­dido. Eu lhe darei as pérolas, e você e seus homens, a partir de hoje, dei­xarão de ser maus”.

“Combinado”, disse Monsieur Cocq de Noir, estendendo a mão para Maria, que a aceitou. Trocaram um aperto de mãos e, ao mirar o ros­to daquele homem e seu olhar firme, ela soube que ele manteria a pala­vra. Embora fosse evidente que ele não esperava, nem por um momento, que teria de mantê-la. Pois, enquanto abria a porta, ele não parava de rir, e o galo não parava de cocoricar zombeteiramente.

 

Sob a luz clara do luar, os quatro desceram juntos a escada no pe­nhasco e, quando chegaram embaixo, Maria montou novamente em Wrolf e cruzaram a clareira de volta ao bosque de pinheiros. Monsieur Cocq de Noir segurava a lanterna no alto para iluminar o caminho, mas ela lança­va um brilho apenas intermitente sobre a vasta escuridão que os rodeava. Porém, dessa vez, Maria não estava com medo da escuridão, nem do ho­mem alto que caminhava com passos largos ao seu lado... De certo modo, ela estava começando a gostar de Monsieur Cocq de Noir... Ele podia ser um homem mau, mas sabia rir e sabia chegar a um acordo.

Então, todo o prazer que estava sentindo no despontar daquele sen­timento de amizade começou a ser devorado pela ansiedade, pois já se apro­ximavam do pinheiro agora e não havia nenhum clarão na escuridão, ne­nhum sinal que fosse do que estavam procurando. Nessa hora, Maria pensou que traíra seu bom senso, do qual tanto se orgulhava, ao contar aquela história dos cavalos brancos do mar que tinham trazido o barco de Guilherme, o Sombrio, do poente, e do cavalo branco que o empurra­ra para dentro da caverna. Era evidente que tudo não passava de um conto de fadas que ela inventara... No entanto, o mais engraçado naquilo tudo era que, ao contar aquela história para Pisco e Monsieur Cocq de Noir, ela acreditara no que estava dizendo...

Bem, já não acreditava, e, conforme mergulhavam na escuridão, seu coração foi ficando cada vez mais apertado. Se ela não fosse tão resoluta, teria caído em prantos por ver seus planos irem por água abaixo mais uma vez. Não se lembrava de ter se sentido tão infeliz assim antes. A es­curidão agora era densa, assim como o silêncio, e a lanterna de Monsieur Cocq de Noir tremulava como a dizer que estava prestes a se apagar.

E então, subitamente, ela se apagou, e Maria sentiu como se a escu­ridão e o silêncio tivessem tombado sobre suas cabeças, sufocando-os. Monsieur Cocq de Noir deve ter sentido o mesmo, ou então arranhara a canela num tronco de árvore, pois começou a resmungar com irritação sob a barba preta. Embora ela não conseguisse ouvir o que ele dizia, teve a forte sensação de que outra coisa não era senão impropérios.

Wrolf, porém, avançava decidido.

“Se pegasse na minha mão”, disse Maria timidamente a Monsieur Cocq de Noir, “você não trombaria tanto nas coisas, pois Wrolf parece saber por onde vai”.

Ele pegou na mão dela, mas sua mão parecia uma armadilha de aço que de nada serviu para confortá-la. Além disso, continuava resmungan­do sob a barba, e a escuridão e o silêncio pareciam ficar mais e mais pe­sados. Então, subitamente, o grande galo negro, que durante todo o tem­po viajara em silêncio no ombro do seu dono, cocoricou. Não de zomba­ria dessa vez, mas aquele trombetear triunfal com que os gaios acolhem um novo dia, e Maria se lembrou de um ditado que ouvira certa vez: “A noi­te é mais escura quando se aproxima a aurora”.

“Creio que a noite está chegando ao fim”, disse para Monsieur Cocq de Noir.

“Assim que eu puder enxergar o caminho, vou direto para casa”, ele respondeu rudemente. “E aconselho você a fazer o mesmo, jovem dama, e a manter-se longe do meu caminho no futuro para evitar o pior. Não posso imaginar o que me levou a sair nessa busca desatinada. Você deve ter me infectado com sua loucura lunática. Você deve...”

Ele se calou abruptamente, pois algo no bosque chamou sua aten­ção. Era possível agora enxergar a tênue silhueta das árvores ao redor de­les e o contorno de seus próprios rostos. E não era só a escuridão que es­tava se dissipando, pois o silêncio também se quebrara. E conseguiam ouvir ao longe, brando e misterioso, o som do mar.

“Acho que Wrolf nos trouxe pelo caminho errado”, disse Maria. “Parece que viemos dar na praia”.

“Não”, disse Monsieur Cocq de Noir. “O bosque termina antes de se chegar à praia. Só nas noites com vento é possível ouvir o mar estando no bosque, e não há nenhum sopro de vento”.

Sua voz soou estranha e rouca, como se o grande Monsieur Cocq de Noir estivesse um pouco assustado.

Maria, porém, não estava assustada, apenas admirada. “Paremos para assistir ao alvorecer”, disse. “Pare, Wrolf. Veja, oh! veja!”

Estavam agora paralisados como estátuas, a menina e o leão, o ho­mem e o galo, como se a beleza do que viam os tivesse convertido em pedra. Ao leste, onde ficava o nascente e o mar, a luz se infiltrava no bosque como uma névoa leitosa, e, conforme a luz aumentava, mais se intensifi­cava o som do mar. E então a luz pareceu tomar forma.

Ainda era luz, mas dentro dela moviam-se formas feitas de uma luz ainda mais brilhante; e as formas eram de centenas de cavalos brancos ga­lopando, com suas crinas ondulantes e pescoços altivos como os das pe­ças de xadrez da sala de visitas, e corpos tão velozes quanto a luz, cuja substância não parecia mais sólida que a do arco-íris. No entanto, era possível ver nitidamente seu contorno contra o fundo — negro como a noi­te — formado pelas árvores... Eram os cavalos do mar que galopavam para o interior, como o Velho Pároco dissera para Maria, que no seu alegre campear pela terra davam boas-vindas à aurora.

Estavam quase sobre eles agora, o mar rugindo em seus ouvidos, a luz cegando seus olhos. Monsieur Cocq de Noir soltou um grito de pavor e protegeu a cabeça com o braço, mas Maria, embora tenha fechado os olhos por causa do fulgor da luz, ria alto, deliciada. Pois sabia que os cavalos a galope não lhe fariam mal; apenas se derramariam sobre eles como a luz, ou como o arco-íris no campo quando chove e faz sol.

E foi o que aconteceu. Houve um momento de indescritível frescor e júbilo, como uma onda a se quebrar sobre suas cabeças, e então o som do mar sumiu na distância. Quando abriram os olhos, viram apenas a débil luz cinzenta e fantasmagórica sob a qual somente a tênue silhueta das ár­vores e o contorno de seus próprios rostos se faziam visíveis. Os cavalos brancos haviam partido... Todos, exceto um.

Eles o avistaram ao mesmo tempo, parado sob o pinheiro gigante à direita, com o pescoço orgulhosamente arqueado, um dos delicados cas­cos de prata levantado, o corpo meio virado como se tivesse sido sur­preendido em pleno galope. Então, ele também se foi, e nada restou no bosque além da luz crescente da aurora.

Ficaram ali parados num longo silêncio, a olhar para o pinheiro, com o grande buraco escancarado entre as raízes, onde os homens haviam forçado sua passagem no dia anterior, tristes e desolados por saberem que nunca mais voltariam a ver aquela beleza que acabara de evanescer-se. Então, o galo negro cocoricou mais uma vez, e o encanto se quebrou. Ma­ria suspirou e se mexeu.

“Bem?”, disse.

“Você venceu”, disse Monsieur Cocq de Noir. “Amanhã pensarei que isso foi um sonho — mas você venceu e eu manterei minha palavra”.

Maria tirou o colar de pérolas e o entregou a ele. “Estas não são um sonho”, disse. “E não será um sonho quando for ao solar de Moonacre amanhã para confraternizar com todos nós. Você irá, não é?”

“Donzela da Lua”, disse Monsieur Cocq de Noir, “algo me diz que, pelo resto da minha vida, obedecerei às ordens de Sua Alteza. Estarei pre­sente no solar amanhã, por volta das cinco horas”.

Em seguida, inclinando-se diante dela, partiu, com o galo negro ain­da no ombro. Maria e Wrolf cavalgaram velozmente para casa, sob um alvorecer maravilhoso que mudou de cinza para prata, de prata para ouro, descortinando-se, à medida que deixavam o bosque de pinheiros, na­quele céu rosado, contornado de açafrão e ametista, que saúda o azul de um dia feliz.

Wrolf carregou Maria não até o jardim do solar, mas até a porta do muro que levava ao pomar, e ali parou e sacudiu-se, indicando-lhe que ela devia desmontar. Estava cansado agora — foi o quis dizer ao sacudir-se —, pois já fazia um bom tempo que a levava nas costas. Ela desceu obedien­temente, beijou-o e agradeceu-o por tudo que fizera por ela naquela noi­te. Ele lhe dirigiu um olhar afetuoso, empurrou-a na direção da porta do pomar e lá se foi a tratar de suas próprias coisas.

 

Maria entrou no pomar, onde as ovelhas e cordeiros ainda dormiam sob as árvores de flores rosas e brancas, com o orvalho da manhã cinti­lando como prata na lã que recobria seus corpos, e atravessou a horta. Percebeu então que estava muito cansada e com uma fome voraz. En­quanto caminhava pela trilha entre as jardineiras, só conseguia pensar em duas coisas: café da manhã e cama. Mas um súbito brilho cor-de-rosa, como uma bandeira a desfraldar-se diante de seus olhos, forçou-a a olhar para cima, plantando em sua cabeça um terceiro pensamento entre a cama e o café da manhã... Os gerânios cor-de-rosa na janela daquele quarto acima do túnel... Via-os agora mais claramente que de costume, pois aquela janela, que até então sempre estivera fechada, estava escanca­rada para receber a aurora.

Parou para olhá-los e sentiu-se alegrar-se com a sua beleza. Afinal, embora o rosa não fosse sua cor favorita, era uma cor e, como dissera Sir Benjamin, todas as cores são do sol e boas. E o rosa é a cor da aurora e do pôr do sol, o elo entre o dia e a noite. Sol e lua, ambos, deviam gostar do rosa, pois quando um está nascendo e o outro se pondo eles se cumpri­mentam na vastidão do céu rosado.

E então, enquanto estava ali parada olhando os gerânios cor-de-rosa, Maria surpreendeu-se ao ver um braço sair pela janela, com um regador na mão, e derramar sobre as flores uma luminosa chuva de gotas prateadas. E aquele braço comprido e fino, dentro da manga vistosa, só podia ser de uma pessoa: Marmaduke Scarlet.

“Marmaduke!”, chamou ela baixinho. “Marmaduke!”

Os gerânios se afastaram e o rosto rosado e barbudo de Marmaduke assomou à janela. Ele acenou com a cabeça e sorriu, e pareceu contente em vê-la, embora não surpreso. “Patroinha”, disse, “estou prestes a saborear um ligeiro repasto antes de me dirigir ao solar para começar a faina diária. Você me daria a honra de subir até aqui e compartilhá-lo comigo?”

“Adoraria, Marmaduke”, disse Maria, “pois estou morrendo de fome. Mas como subo até aí?”

“Procure atrás da cisterna”, disse Marmaduke.

Maria correu até a grande cisterna verde que vira à esquerda do tú­nel no primeiro dia em que ali estivera e, escondida bem atrás dela, en­controu uma portinha verde na parede, não muito maior que a do seu quarto na torre. Levantou o trinco e abriu-a, deparando com um lanço de estreitos degraus de pedra, próprios para alguém muito pequeno. Subiu-os, abriu outra porta e entrou na sala dos gerânios cor-de-rosa.

“Bem-vinda, patroinha, à minha humilde morada”, disse Marmadu­ke Scarlet.

“Então é aqui que você mora, Marmaduke!”, exclamou Maria, com sua curiosidade plenamente satisfeita agora.

“É aqui que eu moro quando não estou ocupado com meus afazeres domésticos”, disse Marmaduke Scarlet.

Era a sala mais estranha que Maria já vira, comprida e estreita como o túnel abaixo dela. Numa das extremidades, a janela com os vasos de ge­rânios no peitoril se estendia de parede a parede, e no lado oposto ficava a caminha de madeira de Marmaduke, recoberta com uma colcha xadrez escarlate e branca. No meio do quarto, havia uma mesinha de madeira com dois bancos de três pernas, tudo do tamanho exato para um anão.

A mesa estava coberta com uma toalha xadrez vermelha e branca que combinava com a colcha, e, sobre ela, uma travessa azul cheia de ma­çãs, um jarro amarelo com leite, um prato roxo com uma pilha de broinhas com manteiga, dois pratos verdes grandes e duas canecas da mesma cor. Mas o que fez Maria gritar de assombro não foi a comida deliciosa nem a louça de cores variadas, mas o aspecto das paredes norte e sul, pois, em toda a sua extensão, do chão ao teto, eram forradas de prateleiras de madeira onde havia vasos e mais vasos de gerânios rosa-salmão.

Todos aqueles gerânios, mais a colcha, a tolha e a louça colorida, bem como as roupas vistosas de Marmaduke, inundavam a sala com tal resplendor de cores que chegava a ofuscar, não fosse pelo fato de que ha­via uma única janela — e tão repleta de gerânios que a luz se infiltrava pela treliça de pétalas coloridas e entrava na sala consideravelmente suaviza­da, embora muito rosa.

“Oh, Marmaduke!”, exclamou Maria. “Esses são os gerânios que Loveday Minette deixou para trás quando partiu?”

“São as mudas das plantas originais”, disse Marmaduke, gentilmen­te indicando o banco em que Maria deveria sentar-se.

“Quer dizer, então, que você também gosta de cor-de-rosa?”, per­guntou Maria, ao sentar-se.

“Não tolero essa cor”, disse Marmaduke, sentando-se no lado opos­to e despejando leite nas duas canecas. “Mas tampouco tolero o desper­dício. Nenhum bom cozinheiro tolera isso. Assim sendo, quando ocorreu o infeliz desencontro, vinte anos atrás, e meu amo ordenou que eu remo­vesse da casa, por via da porta, todos os gerânios que ele não tinha atira­do por via da janela; em vez de jogá-los fora, trouxe-os para cá. Achei que um dia poderiam ser úteis”.

Enquanto comia as maçãs e as broinhas que, de tão besuntadas de manteiga, eram quase mais manteiga que broinhas, Maria subitamente teve uma ideia. Ficou em silêncio por algum tempo, a ruminá-la.

“Marmaduke”, disse finalmente. “Acho que sei como eles podem ser úteis. Acho que acabo de ter uma ideia brilhante”.

“Não duvido, patroinha”, disse Marmaduke polidamente.

“Marmaduke”, continuou Maria, “podemos oferecer um chá ama­nhã à tarde? Um chá para sete pessoas?”

“Certamente, patroinha”, disse Marmaduke. “Mas, se pretende que Sir Benjamin esteja presente, não creio que tenha escolhido um dia apro­priado. Amanhã de manhã ele irá até a cidade-mercado para sentar-se no Tribunal. Como sabe, ele é um magistrado”.

“E ele não estará de volta até a hora do chá?”, perguntou Maria.

“Ele não costuma voltar na hora do chá”, respondeu Marmaduke. “A fadiga de ir ao Tribunal geralmente requer uma visita subsequente à estalagem local, uma farta refeição e algum refrigério de natureza líquida”.

“Pedirei a ele que venha direto para casa quando sair do Tribunal”, disse Maria, “e vamos oferecer-lhe uma farta refeição e muitos refrigérios líquidos aqui em casa”.

“Muito bem, patroinha”, disse Marmaduke. “Clarete quente vai muito bem com chá da tarde”. E então, pousando no prato a maçã que ele havia apenas mordiscado, e com o rosto subitamente iluminado pela chama da inspiração, Marmaduke fixou os olhos brilhantes no canto no­roeste do teto e murmurou para si mesmo: “Bolo de ameixa. Bolo de açafrão. Bolo de cereja. Bolinhos confeitados. Bombinhas. Pão de gengibre. Merengues. Syllabub. Palitos de amêndoas. Gotas de chocolate. Bolo de gengibre. Canudinhos de creme. Bolinhos recheados com geleia. Pastéis de forno. Sanduíches de presunto. Sanduíches com creme de limão. San­duíches de alface. Torrada com canela. Torrada com mel...”

“Mas, Marmaduke, é muita comida para sete pessoas!”, interrom­peu Maria.

“Gosto sempre de estar preparado para receber mais convidados do que se espera”, disse Marmaduke. “Além disso, pelo tom de sua voz, de­preendi que esse chá pretende ser uma grande ocasião, e grandes ocasiões precisam ser celebradas com fartura. Qualquer pequeno indício de avare­za numa grande ocasião é deplorável. O sustento físico do homem inte­rior, assim como o deleite estético do olho exterior, deve ser pródigo”.

Maria não tinha certeza de que havia entendido a última frase, mas percebeu que tinha algo a ver com arranjos florais, o que a encorajou a perguntar: “Por favor, Marmaduke, poderia me emprestar esses gerânios para eu decorar a casa para o chá?”

“Certamente, patroinha”, respondeu ele.

“Pisco nos ajudará a levar os vasos para casa”, disse Maria. “E, ah, Marmaduke, você verá Pisco quando ele vier cuidar das ovelhas no pomar? Se chegar a vê-lo, poderia entregar-lhe uma carta minha?”

Em resposta à pergunta, Marmaduke gingou até sua cama, enfiou-se debaixo dela e voltou com um tinteiro, uma pena e um bonito papel de pergaminho.

“Querido Pisco”, escreveu Maria. “Na noite passada, Wrolf me levou para uma segunda tentativa e foi um sucesso. Acho que os Homens do Bosque Sombrio deixarão de fazer suas maldades. Por favor, me perdoe, caro Pisco, por eu ter feito a segunda tentativa sem você. Não pude evi­tar. E não teria conseguido ir até lá uma segunda vez se você não tivesse me ajudado na primeira. Não tenho como lhe contar tudo isso por carta, mas contarei quando eu o vir. Quero muito vê-lo, por isso, por favor, ve­nha para o chá amanhã. Gostaria que estivesse aqui às três e meia. E, por gentileza, peça a Loveday que venha também, às quatro e meia. Diga-lhe que ela tem de vir, por favor. Se ela não vier, tudo estará arruinado. Diga isso a ela. Sei, é claro, que ela não vai querer entrar na casa a essa hora do dia, mas, se ela esperar no roseiral, irei ao seu encontro. Diga-lhe que ama­nhã é o dia de Sir Benjamin ir ao Tribunal na cidade-mercado. Assim ela fi­cará mais animada para vir. Ah, e, por favor, procure o Velho Pároco e diga-lhe que venha também, às quatro e quinze. Querido Pisco, você e Love­day têm que vir, e o Velho Pároco também”.

Maria dobrou a carta e entregou-a a Marmaduke. Em seguida, le­vantou-se e, com uma mesura, agradeceu a deliciosa refeição.

“Espero que isso não estrague seu apetite para o café da manhã”, disse ele preocupado.

“Nem um pouco, obrigada”, tranquilizou-o Maria.

Desceu a escada e cruzou o pátio dos estábulos e o jardim em dire­ção à casa. Ao olhar para os homens-teixos e os galos-teixos, descobriu que já não tinha medo deles. Era como se o mal que vivia neles tivesse se retirado e, agora, não fossem mais presenças, apenas teixos com formas divertidas.

No saguão, ela encontrou Sir Benjamin, que acabava de descer. Ele a fitou com o olhar atônito, pois seu rosto pálido e cansado mais as escamas de pinha grudadas na sua saia revelavam que ela havia passado a noite fora. Estava prestes a lhe perguntar por onde andara, mas então, olhando-a com amor e confiança, conteve-se e acalmou-se, como se soubesse.

“Estou com muito sono agora, senhor, para lhe contar o que houve”, ela disse. “Mas logo mais lhe contarei... Por favor, senhor, posso oferecer um pequeno chá amanhã? Quero convidar o Velho Pároco para o chá. O senhor virá também? Com sua melhor roupa?”

“É o dia em que vou ao Tribunal”, disse Sir Benjamin.

“Mas se vier direto para casa e não parar na estalagem chegará em tempo para o chá”, disse Maria. “E haverá uma porção de coisas para co­mer e beber no meu chá. Por favor, por favor, caro senhor!”

Ele não pôde recusar ao apelo de seu rosto pálido. “Seja feita a sua vontade”, disse. “Mas se o que você chama de ‘coisas para beber’ for chá não quero. Não há bebida mais sem graça e insípida que...”

“Não, não é”, Maria apressou-se a tranquilizá-lo, “é clarete quente”.

O rosto de Sir Benjamin se iluminou. “Pode contar comigo”, garan­tiu a Maria. “E vestirei minha melhor roupa”.

“Posso ter arranjos florais no meu chá?”, perguntou Maria.

“Deus abençoe esta criança!”, exclamou ele. “É claro que sim, se quiser, mas está me parecendo que você está fazendo alvoroço demais para receber o Velho Pároco para o chá”.

“E me dará a sua palavra solene de que, se não gostar dos meus ar­ranjos florais, não vai atirá-los pela janela?”, perguntou Maria.

Os olhos de Sir Benjamin se arregalaram um pouco, mas ele se limi­tou a responder com ar sério: “Minha palavra solene”.

“Está tudo certo, então”, disse Maria com satisfação. “Agora vou me arrumar para o café da manhã e, depois, vou dormir, dormir e dormir”.

“Parece que está mesmo precisando disso”, concordou o primo. “Nun­ca vi um caso mais evidente de noite passada em claro”.

 

Maria passou a maior parte daquele dia, e toda a noite seguin­te, dormindo profundamente, e durante a manhã do outro dia teve grande dificuldade para se concentrar nas aulas. Foi difícil também apaziguar a srta. Heliotrópio, que estava muito nervosa com aquela sua mudança de comportamento. “Está tudo bem, srta. Heliotrópio”, ela continuava dizen­do. “Quando o chá desta tarde tiver terminado, eu lhe explicarei tudo”.

“Mas quem virá para esse chá misterioso?”, perguntou a srta. He­liotrópio.

“Além de nós e o Velho Pároco, uma dama muito infeliz, um homem muito mau e aquele garoto que costumava brincar comigo no jardim da Square, em Londres”, respondeu Maria.

“Minha cara, quantas vezes tenho de lhe dizer que essa pessoa não existe?”, exasperou-se a pobre srta. Heliotrópio.

“Depois desta tarde, você nunca mais terá que dizer isso”, disse Maria.

“Uma dama infeliz e um homem mau!”, disse a srta. Heliotrópio. “Isso não parece muito apropriado”.

“Mas depois desta tarde ela será feliz e ele será bom”, disse Maria. “E Marmaduke sabe tudo a respeito do meu chá”.

“Ah, bem, se Marmaduke Scarlet está ciente”, disse a srta. Heliotró­pio, mais animada. Ela agora tinha Marmaduke na mais alta conta, por causa da excelência de seu trabalho doméstico e por ter gentilmente per­mitido que ela cuidasse de todos os remendos necessários na casa.

Depois do almoço, Maria despachou a srta. Heliotrópio para o quar­to, com ordens de que ficasse ali descansando até ser chamada, e Digweed para a portaria, a fim de que interceptasse Sir Benjamin e o trouxesse em silêncio, sem tocar o sino. Digweed recebeu ainda instruções para condu­zir Sir Benjamin ao seu quarto com os olhos fechados e dizer-lhe também que ali permanecesse até ser chamado. Em seguida, ela e Marmaduke reu­niram todos os animais queridos para ajudarem nos preparativos para o final feliz pelo qual tanto haviam se esforçado — Wrolf, Wiggins, Zacarias, Serena e Vinca. Marmaduke opôs-se à ideia de entrar com Vinca na casa, mas levaram-na escada acima e ela ficou parada na porta da frente, onde poderia assistir a tudo. É verdade que Wiggins tivera uma participação muito insignificante no esforço feito pelos animais, mas ele estava tão bo­nito hoje que todos se esqueceram que seu comportamento nem sempre combinava com sua aparência.

Nesse momento, Pisco chegou, com suas roupas marrons muito bem escovadas, os sapatos tão lustrosos que reluziam como vidro, a pena ver­de no chapéu agitando-se alegremente e o rosto redondo e rosado bri­lhando de asseio, felicidade e empolgação.

“O Velho Pároco virá, e minha mãe estará esperando no roseiral às quatro e quinze”, garantiu ele para Maria. “Ela prometeu. Não foi fácil convencê-la, mas ela prometeu”.

“Obrigada, Pisco”, disse Maria. “E... ficou chateado porque tive de resolver as coisas sem você?”

“Nem um pouco”, tranquilizou-a Pisco com um sorriso. “Contanto que você me conte tudo que aconteceu”.

“Assim que terminarmos os preparativos para o chá, eu lhe contarei tudo”, disse Maria. “Pelo resto da minha vida, Pisco, eu sempre lhe con­tarei tudo”.

“Eu também lhe contarei tudo”, disse Pisco. “Mesmo porque, se eu não contar, você vai me atazanar tanto com as suas perguntas que eu não terei sossego na vida”.

Então, puseram mãos à obra. Wrolf, com um cesto grande pendura­do na boca, ajudou Maria e Pisco a carregarem todos os gerânios do quar­tinho de Marmaduke para dentro da casa. Eram bem mais numerosos do que Maria percebera. Ela e Pisco encheram a sala de visitas com eles, enfileirando-os de tal modo pelo assento da janela que, vista do roseiral, esta parecia uma labareda cor-de-rosa, e espalharam-nos também pelo grande saguão e pelas janelas do quarto de Maria na torre. Em seguida, ajudaram Marmaduke Scarlet a preparar a mesa do chá no saguão, que ficou linda depois de pronta, com os candelabros acesos no centro, ladea­dos por vasos com botões de gerânio escolhidos a dedo, xícaras e pires da mais fina porcelana de Crown Derby, taças de cristal, e todas as guloseimas servidas em travessas de pratas. O bule de prata com o chá e os grandes jarros de clarete quente seriam trazidos mais tarde por Marmaduke.

Maria subiu então ao seu quarto para vestir sua melhor roupa, um vestido de festa londrino que ainda não usara no solar de Moonacre, fei­to com seda amarelo-clara e todo bordado com miosótis azuis. Tinha um grande bolso avulso no qual Maria guardou o livrinho com a heliotrópia na capa que ela emprestara do Velho Pároco no dia em que o visitara pela primeira vez e o livro de versos franceses de capa verde que Louis de Fontenelle dera a Jane Heliotrópio. Enquanto se vestia, viu Sir Benjamin che­gando com Digweed e subindo a escada com os olhos fechados, levado por Digweed. Maria sabia que podia confiar que ele não tentaria espiar quan­do entrasse no saguão. Era um homem inteiramente confiável.

Pontualmente às quatro e dez, Maria passou para pegar a srta. He­liotrópio e desceu com ela a escada da torre. Ela vestia sua bombazina roxa com uma das lindas toucas e um dos fichus que Loveday lhe fizera.

“Agora, srta. Heliotrópio”, disse, abrindo a porta da sala de visitas e apresentando-lhe Pisco, que se inclinou para ela com o chapéu na mão, “este é Pisco, que eu conheço quase que a minha vida inteira e com quem vou me casar; portanto, nunca haverá época em que não o conhecerei. Eu o amo muito, assim como amo você, por isso os dois devem se amar também”.

“Valha-me Deus!”, disse a srta. Heliotrópio, fitando Pisco por sobre os óculos com grande assombro. “Valha-me Deus! Nunca vi um jovem as­sim tão colorido”.

“Ele não é exatamente como lhe descrevi em Londres?”, perguntou Maria.

“Sim, é mesmo”, disse a srta. Heliotrópio. “Só que maior”.

“Madame, eu cresci desde então”, disse Pisco, inclinando-se nova­mente, muito cortês, a mão direita a florear o chapéu com pena de pavão e a esquerda pousada no coração, no estilo galante que estivera em voga quando a srta. Heliotrópio era jovem. E, recuperada agora do choque ini­cial, era fácil ver que o seu coração simpatizava com ele.

“Valha-me Deus!”, repetiu, mas com um tom muito cordial.

Pisco aproximou-se dela, tomou-lhe a mão e beijou-a. “Seu criado, madame”, disse ele, “enquanto eu viver”.

Diante desse gesto, o coração da srta. Heliotrópio derreteu-se por completo, e ela inclinou-se e o beijou. “Você é um bom rapaz”, disse ela. “Se é ou não o menino que Maria imaginava em Londres... bem, isso não sei dizer. Mas é um bom rapaz e, se cuidar bem de Maria, terá em Jane Heliotrópio a sua mais fiel amiga”.

Passos ressoaram, e o Velho Pároco entrou na sala, com um gerânio cor-de-rosa espetado numa das casas de botão da sua batina.

“Oh, senhor!”, Maria gritou para ele, “poderia, por gentileza, levar a srta. Heliotrópio para dar um passeio pelo pomar? Está agradável e quen­te lá fora, e as árvores estão lindas com os primeiros frutos. Há um banco confortável sob a amoreira. Não gostaria de sentar-se lá e ler um pouco para a srta. Heliotrópio? Ela gosta que leiam para ela — especialmente poe­sia. Apreciaria aquele livro de versos ingleses que o senhor me emprestou e também o de poesia francesa”. Dizendo isso, Maria tirou os dois livrinhos do bolso e entregou-os a ele. “O chá será servido às cinco”, concluiu.

Com um brilho nos olhos, o Velho Pároco pegou os livros, inclinou-se para a srta. Heliotrópio e ofereceu-lhe seu braço. “Madame, poderia me dar a honra?”, disse. E, dirigindo-se a Maria: “Sua Alteza Real, nunca vi com bons olhos as artimanhas de manipulação das mulheres, mas cedo às suas de bom grado. Pois elas trazem o feitiço da lua, e tão valente é a lua em arrostar tão imensa escuridão com uma face tão pequena, que é tolo o homem que de boa vontade não se coloque a seu serviço”.

E, com essa elegante homenagem, o Velho Pároco conduziu a srta. Heliotrópio para fora da sala, deixando Maria e Pisco a sós.

“Pisco”, disse Maria, “quero que vá ao quarto de Sir Benjamin e traga-o para cá. Aproxi­me-se com ele da janela, para olhar o roseiral, e entretenha-o numa conversa”.

“Por quanto tempo?”, perguntou Pisco. “E sobre o que devemos conversar?”

“Até eu voltar”, disse Maria. “Não vou demorar. Converse com ele sobre ovelhas. Sir Benjamin passaria horas no mesmo lugar falando sobre ovelhas”.

Em seguida, ela saiu pela janela da sala e correu até o recanto mais escondido do roseiral. Loveday cumprira o prometido. Lá estava ela, tra­jando seu vestido cinza com bordados cor-de-rosa, a cabeça pequena e al­tiva nua ao sol da primavera. De pé, com a postura totalmente ereta, pa­recia uma rainha, apesar de sua pequena estatura, em meio aos arbustos de rosa que ostentavam rebentos novos e verdes.

“Mãe Minette”, gritou Maria, envolvendo-a num abraço, “o Ho­mem do Bosque Sombrio virá para o chá da tarde”.

Com uma exclamação de alegria, Loveday abraçou Maria com for­ça. “Então você conseguiu, Maria?”, perguntou. “Oh, minha linda e co­rajosa Donzelinha da Lua! Mas como conseguiu isso?”

“Levarei horas e horas para contar-lhe tudo”, disse Maria. “Deixe­mos isso para mais tarde. Agora, por favor, Loveday, quero que venha dar uma olhada nos arranjos florais que coloquei na janela da sala de visitas”.

“Você me fez caminhar até aqui só para ver seus arranjos florais?”, perguntou Loveday. Mas ela não estava aborrecida; apenas achou aquilo engraçado.

“Quando chegar à janela da sala, você verá que sua caminhada va­leu a pena”, garantiu Maria. “Agora, feche os olhos, por favor”.

Loveday obedeceu, e sendo ela, assim como Sir Benjamin, uma pes­soa totalmente confiável, não tentou nem sequer dar uma espiada por en­tre os cílios enquanto Maria a conduzia na direção da casa. As duas esta­vam lindas atravessando o roseiral de mãos dadas, com seus vestidos flo­ridos e o sol tingindo de ouro prateado seus cabelos loiros. Vinham acompanhadas por um bando de passarinhos a ruflar suas asas coloridas e derramar seu canto sobre elas como uma chuva de luz no céu azul. O homem e o menino parados na janela da sala de visitas interromperam a conversa sobre ovelhas e, de tão admirados, suspenderam a respiração.

“Agora!”, disse Maria, e Loveday abriu os olhos.

E o que ela viu foi uma profusão de gerânios rosa-salmão, aqueles que eram o orgulho da Cornualha. Eles enchiam a janela e o interior da sala, tal como naquela noite, anos atrás, em que seu amado perdera a calma e os atirara pela janela. E ele estava ali parado, no meio deles, com sua melhor peruca de cachos brancos, seu casaco domingueiro e o colete que ela fizera para ele muito tempo atrás, olhando-a como se ela fosse o sol, a lua e as estrelas, todos reunidos numa coisa só.

“Loveday!”, ele gritou com um rugido de alegria, “me perdoe, pelo amor de Deus, por ter atirado pela janela aqueles malditos gerânios. Ve­nha logo para cá e nunca mais me deixe!”

Quando Loveday entrou pela janela aberta e pôs os pés no assento, ele a ergueu nos braços como se fosse uma criança, enquanto Maria dis­parava pelo jardim do solar e subia as escadas até o saguão.

“Está tudo bem”, gritou para Pisco, que também saíra voando da sala de visitas. “Esta missão está cumprida. Você permite que Sir Benja­min se case com sua mãe, Pisco?”

“Se ele quiser, tudo bem”, disse Pisco. “Pouco me importa quem vai se casar com quem, desde que você se case comigo”.

E, subitamente, com um brado de alegria muito semelhante ao de Sir Benjamin, enlaçou-a num grande abraço de urso que quase a deixou sem fôlego. E todos os animais, Wrolf, Zacarias, Serena, Wiggins e Vinca (que agora estava dentro do saguão), se reuniram ao redor deles num círculo, rugindo, miando, guinchando, rosnando e relinchando de alegria, enquanto Marmaduke Scarlet, parado na porta do cozinha com as mãos na cintura, sorria o mais largo dos sorrisos, aquele que desaparecia nas orelhas.

 

Então, em meio a todo o barulho que faziam, ouviu-se o som de cas­cos trotando — não os cascos de um cavalo apenas, mas de muitos. Parecia que uma grande companhia de cavaleiros vinha se aproximando de algum lugar. Maria e Pisco se soltaram e correram até a porta, com Marmaduke Scarlet e os animais se amontoando atrás deles. O jardim do solar estava completamente tomado pelos Homens do Bosque Sombrio montados em cavalos pretos, alguns deles imóveis e os demais trotando aos pares. Os imóveis eram os teixos, e os que vinham trotando eram Monsieur Cocq de Noir e seu séquito. Também havia gaios negros no jardim, embora to­dos estivessem imóveis, exceto um deles, que batia as asas e cocoricava no ombro do seu dono.

“Vieram todos!”, exclamou Maria apavorada. “Convidei Monsieur Cocq de Noir, mas vieram todos!”

“Não tenha medo, patroinha”, disse baixinho a voz de Marmaduke atrás dela. “Há comida suficiente. Temos bolo de ameixa, bolo de açafrão, bolo de cereja, bolinhos confeitados, bombinhas, pão de gengibre, meren­gues, syllabub, palitos de amêndoas, gotas de chocolate, bolo de gengibre, canudinhos de creme, bolinhos recheados com geleia, pastéis de forno, sanduíches de presunto, sanduíches com creme de limão, sanduíches de alface, torrada com canela, torrada com mel, para alimentar vinte pessoas ou mais. Não tenha medo, patroinha. Quando Marmaduke é o cozinhei­ro, há sempre fartura”.

“Mas e o clarete quente?!”, gritou Maria.

“Disso também”, disse Marmaduke, “há um suprimento ilimitado”.

Maria e Pisco pararam no patamar da escada de mãos dadas, como um príncipe e uma princesa, e exclamaram “Bem-vindos!”. Os homens apearam do suporte para montar e, deixando os cavalos pretos na companhia dos ca­valos de teixo no jardim, reuniram-se dois a dois, inclinaram-se diante de Maria e Pisco e atravessaram a guarda de honra formada pelos animais no saguão, para serem acolhidos por Sir Benjamin e Loveday Minette, que aguar­davam, como um rei e uma rainha, na frente da grande lareira.

Atraídos para o saguão pela algazarra que ali se instalara, Sir Benja­min e Loveday imediatamente abriram mão de sua felicidade particular para assumirem, sem nenhuma estupefação aparente, o papel de anfi­triões daqueles vinte homens até então considerados seus inimigos.

“De hoje em diante, Sir Benjamin”, disse Monsieur Cocq de Noir com uma pronunciada reverência, “o senhor encontrará em mim tudo o que se espera de um bom vizinho”.

“Tenho certeza que sim, senhor”, disse Sir Benjamin. “Esqueçamos o que passou e comecemos de novo a partir de hoje”.

Depois disso, o chá foi servido com uma novidade: Marmaduke Scarlet foi persuadido a sentar-se à mesa com Sir Benjamin, Loveday, Maria, Pisco e os vinte Homens do Bosque Sombrio. Wiggins sentou-se no colo de

Maria, Zacarias dividiu a cadeira com Marmaduke, o galo negro permaneceu no ombro do seu dono, e Vinca e Wrolf postaram-se um de cada lado da cadeira de Sir Benjamin, na cabeceira da mesa. Comeram, beberam, riram, cantaram, e quando finalmente os homens partiram cantando rumo ao pôr do sol, não restava uma só migalha de comida, uma só gota de be­bida sobre a mesa; nem uma só gota de ódio em nenhum coração, nem uma só migalha de amargura em nenhum pensamento. Tudo foi esclarecido e perdoado, e o futuro descortinou-se diante deles com uma linda promessa.

 

Uma linda promessa que se cumpriu, porque todos viveram felizes para sempre.

O leitor inteligente deve ter notado que o Velho Pároco e a srta. He­liotrópio não apareceram para o chá. Isso porque eles se esqueceram.

Depois de passearem pelas trilhas do pomar por algum tempo, apre­ciando o calor do sol e a conversa um do outro — pois, desde o momento em que se encontraram na igreja no primeiro domingo, sentiram uma grande atração um pelo outro —, o Velho Pároco, lembrando-se das reco­mendações de Maria, levou a srta. Heliotrópio até o banco debaixo da amoreira e abriu os dois livrinhos para escolher qual deles leria para ela.

No exato momento em que um raio de sol, infiltrando-se pelas ver­des folhas da primavera sobre suas cabeças, refletiu sobre eles, a srta. He­liotrópio viu o nome de seu amado escrito com a sua própria caligrafia na folha de guarda de um dos livros. E o Velho Pároco viu o nome da única mulher com que se importara um dia escrito, com a caligrafia dele, na fo­lha de rosto do outro livro. E naquele mesmo momento outro raio de sol iluminou o medalhão que ela estava usando, e o Velho Pároco reconhe­ceu nele o medalhão que lhe dera anos atrás, quando eram jovens, com um cacho de cabelo seu.

Depois disso, tinham muita coisa a dizer um para o ouro, pois, por mais idosa que seja uma pessoa, ela nunca se esquece de quando era jo­vem, ou das pessoas que amou quando era jovem; na verdade, quanto mais velha ela fica, mais claramente se lembra do que passou e mais pro­fundo é o seu amor pelas pessoas... Assim, não é de admirar que a srta. Heliotrópio e o Velho Pároco tenham se esquecido de entrar para o chá.

Sir Benjamin e Loveday se casaram um mês depois. Embora tenha sido uma cerimônia reservada, realizada no começo da manhã apenas com a presença das pessoas que realmente os amavam, pois Sir Benjamin e Loveday estavam um pouco acanhados de se casarem na sua idade, foi uma ocasião muito bonita. Loveday terminara de bordar o colete de ca­samento que Sir Benjamin usava, ela vestia o seu vestido de noiva, e am­bos estavam esplêndidos. O Velho Pároco celebrou o casamento, e o fez com grande beleza.

O Velho Pároco e a srta. Heliotrópio se casaram no mês seguinte, e foi uma cerimônia ainda mais reservada, mas igualmente adorável. O úni­co contratempo foi que o Velho Pároco não podia celebrar o próprio ca­samento, por isso tiveram de chamar um padrezinho gordo que vivia além da colinas. Mas ele era um bom padre, de modo que isso não chegou a ser um problema. E o Velho Pároco e a srta. Heliotrópio viveram juntos na casa paroquial e foram ainda mais felizes do que imaginavam que se­ria possível. E a srta. Heliotrópio não sofreu mais de indigestão, pois sua indigestão fora causada pelo sofrimento que sentira ao se separar de Louis de Fontenelle, e, agora que estava casada com ele, não havia mais moti­vos para a indigestão.

Pisco e Maria só se casaram na primavera seguinte, pois os mais ve­lhos acharam que era melhor esperar mais um ano para aprenderem a controlar seu gênio de Merryweather antes de viverem felizes juntos. Mas, na primavera seguinte, numa gloriosa e cálida manhã de abril, eles se ca­saram, e não foi uma cerimônia nada reservada — foi o casamento mais barulhento, feliz e bonito já celebrado na velha igreja de Silverydew. Ma­ria usou o vestido de noiva de Loveday, com um grande buquê de prímulas amarrado com fita dourada e prateada e uma grinalda de prímulas no cabelo. Pisco usou um casaco novinho em folha, feito com o mais brilhan­te tecido verde-esmeralda, e prímulas na lapela; nas mãos, um chapéu verde debruado com uma fita dourada e prateada e enfeitado com um arranjo feito de penas de galo que o próprio Monsieur Cocq de Noir arrancara da cauda de seu galo negro, como sinal da eterna amizade que agora unia os Homens do Bosque Sombrio aos Merryweathers.

Não foi o coche que os conduziu do solar para a igreja; foram mon­tados em Wrolf e Vinca, com Zacarias, Wiggins e Serena seguindo atrás com laços de fita dourada e prateada amarrados no pescoço. E, quando chegaram ao adro da igreja, todas as crianças de Silverydew vieram ao seu encontro, vestidas com suas melhores roupas, os braços cheios de flores, cantando a Canção do Sino com o acompanhamento dos sinos que repicavam lá no alto.

Quando Maria e Pisco caminharam pela nave da igreja até os degraus da capela, para serem casados pelo Velho Pároco, os devotados animais seguiram atrás deles aos pares, e todas as crianças formaram um cortejo atrás dos animais. Sir Benjamin, Loveday (agora Lady Merryweather), a srta. Heliotrópio (agora Madame de Fontenelle), Monsieur Cocq de Noir e Marmaduke Scarlet sentaram-se, todos muito elegantes, na tribuna do solar, e estavam quase explodindo de felicidade. A igreja estava lotada até as portas com o povo de Silverydew e todos os Homens do Bosque Som­brio, que cantavam com tal entusiasmo que o teto quase se levantou. A igreja estava lindamente enfeitada com prímulas, flores de macieira, nar­cisos, violetas, galantos e crócus, que naquele ano, especialmente, haviam decidido desabrochar todos ao mesmo tempo para que pudessem estar presentes no casamento de Maria. A sepultura de Sir Wrolf Merryweather estava toda recoberta de flores, e quando, na noite anterior, Maria e Pis­co deram os toques finais nos arranjos florais de Sir Wrolf, imaginaram ter visto a centelha de um sorriso perpassar pelo semblante de pedra de seu infame ancestral.

“Só que agora ele não é mais infame”, dissera Maria a Pisco. “Ele não vai mais assombrar a Colina do Paraíso, porque entrou no Paraíso verdadeiro e está cavalgando um cavalo branco pelos campos de lírios que margeiam o reluzente riacho”.

Quando a cerimônia terminou, Maria e Pisco montaram novamente em Wrolf e Vinca e cavalgaram até o solar sob a luz do sol, atravessando a vegetação nova do lindo parque. E todos os que estiveram na igreja vi­nham atrás deles cantando, para saborear o café da manhã que Marma­duke Scarlet preparara para o casamento.

 

                                                                                Elizabeth Goudge  

 

                      

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