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Series & Trilogias Literarias
Era uma noite escura e fria de novembro, e Alice e eu estávamos sentados à lareira da cozinha com o meu mestre, o Caça-feitiço. O tempo não parava de esfriar e eu sabia que qualquer dia o Caça-feitiço decidiria que estava na hora de partirmos para sua “casa de inverno” na desolada charneca de Anglezarke.
Eu não tinha pressa de viajar. Era aprendiz do Caça-feitiço desde a primavera apenas e nunca vira a casa de Anglezarke, mas a curiosidade, com certeza, não estava tirando o meu sossego. Eu me sentia confortável e aquecido ali em Chipenden, onde teria preferido passar o inverno.
Levantei os olhos do livro de verbos latinos que estava tentando aprender e os olhos de Alice encontraram os meus. Ela estava sentada em um banquinho perto da lareira. Sorriu para mim e retribuí seu sorriso. Alice era a outra razão por que eu não queria partir de Chipenden. Era a pessoa mais próxima de uma amiga com quem eu já convivera, e nos últimos meses tinha salvado a minha vida em várias ocasiões. Eu realmente apreciava sua companhia. Ela tornara a solidão da vida de um caça-feitiço mais suportável. Meu mestre, porém, me havia dito que, em breve, ela iria nos deixar. Ele jamais confiara em Alice porque a garota pertencia a uma família de feiticeiras. Achava também que ela começaria a me distrair das minhas aulas, e assim sendo, quando o Caça-feitiço e eu fôssemos para Anglezarke, ela não nos acompanharia. A pobre Alice não sabia disso e eu não tinha coragem de lhe contar, e por enquanto estava apenas aproveitando mais uma das nossas preciosas noites juntos em Chipenden.
Esta, no entanto, acabou sendo a nossa última do ano: enquanto Alice e eu líamos sentados à luz das chamas e o Caça-feitiço cochilava em sua cadeira, o toque do sino com que o convocavam rompeu a nossa paz.
Ao som indesejável, meu coração foi parar nas botas. Só podia significar uma coisa: serviços de caça-feitiço.
Ninguém jamais passava do portão da casa dele. Primeiro porque teria sido estraçalhado pelo seu ogro de estimação que guardava os jardins. Então, apesar da pouca claridade e do vento frio, era minha obrigação descer até o círculo dos salgueiros onde ficava o sino para ver quem pedia ajuda.
Eu estava me sentindo aquecido e confortável depois de um jantar mais cedo e o Caça-feitiço deve ter percebido minha relutância em descer. Balançou a cabeça como se estivesse desapontado comigo, seus olhos verdes faiscando ferozes.
— Vá lá embaixo, rapaz — rosnou. — É uma noite de mau tempo e seja quem for não vai querer ficar esperando!
Quando me levantei e apanhei a capa, Alice me deu um breve sorriso de solidariedade. Sentia pena de mim, mas era também perceptível que estava feliz de poder continuar ali sentada, aquecendo as mãos enquanto eu tinha que sair naquele vento inclemente.
Fechei bem a porta dos fundos ao passar e, carregando uma lanterna na mão esquerda, atravessei a passos largos o jardim oeste e desci o morro, o vento fazendo o possível para arrancar a capa das minhas costas. Por fim, cheguei aos salgueiros, no cruzamento de duas estradinhas rurais. Estava escuro, e a minha lanterna projetava sombras inquietantes, os troncos e ramos se entrelaçando e formando pernas, braços, garras e caras de gnomos. Por cima da minha cabeça, os galhos nus dançavam e sacudiam ao vento, produzindo um som triste e lamurioso, como o de um banshee irlandês, o espírito que agoura uma morte iminente.
Essas coisas, porém, não me preocupavam muito. Já estivera antes naquele lugar depois de anoitecer, e nas minhas viagens com o Caça-feitiço já topara com coisas que fariam seus cabelos ficarem em pé. Portanto, não iria me incomodar com sombras; esperei que alguém muito mais nervoso do que eu viesse ao meu encontro. Provavelmente, o filho de um sitiante enviado pelo pai afligido por fantasmas e desesperado para obter ajuda; um rapaz que estaria apavorado só de parar a um quilômetro da casa do Caça-feitiço.
Não era, contudo, um rapaz que estava em pé entre os salgueiros, e parei admirado. Ali, sob a corda do sino, havia um vulto alto, de capa preta e capuz, que segurava um bastão na mão esquerda. Era outro caça-feitiço!
O homem não se mexeu, por isso fui ao seu encontro, parando a uns dois passos de distância. Tinha os ombros largos e era ligeiramente mais alto do que meu mestre, mas não vi quase nada do seu rosto porque o capuz encobria suas feições. Ele falou, antes que eu pudesse me apresentar:
— Com certeza, ele está se aquecendo ao pé da lareira enquanto você está aqui no frio — disse o estranho, com a voz carregada de sarcasmo. — Continua o mesmo!
— O senhor é o sr. Arkwright? — perguntei. — Sou Tom Ward, aprendiz do sr. Gregory...
Era um bom palpite. Meu mestre, John Gregory, era o único caça-feitiço que eu conhecia pessoalmente, mas eu sabia que havia outros, e que o mais próximo era um tal Bill Arkwright, que exercia seu ofício para além de Caster e cobria as áreas fronteiriças do norte do Condado. Então, era muito provável que aquele homem fosse o Arkwright — embora eu não pudesse imaginar por que estaria vindo visitar o meu mestre.
O estranho afastou o capuz do rosto, revelando uma barba negra, salpicada de fios brancos, e uma cabeleira densa e rebelde, grisalha nas têmporas. Seus lábios sorriam, mas seus olhos continuavam duros e frios.
— Quem eu sou não é da sua conta, garoto. Mas seu mestre me conhece o suficiente!
E, dizendo isso, meteu a mão dentro da capa, puxou um envelope e entregou-o a mim. Eu o revirei, examinando-o rapidamente. Fora lacrado com cera e estava endereçado a John Gregory.
— Muito bem, vá andando, garoto. Entregue-lhe a carta e avise que nos reencontraremos em breve. Estarei esperando por ele em Anglezarke!
Obedeci, enfiei o envelope no bolso da calça, mais do que satisfeito de ser dispensado, porque não me sentia à vontade na presença daquele desconhecido. Depois de me virar e dar alguns passos, a curiosidade me fez olhar para trás. Para minha surpresa, não havia sinal do homem. Embora não tivesse havido tempo para mais do que alguns passos, ele já desaparecera entre as árvores.
Intrigado, me afastei depressa, ansioso por voltar para casa e sair do vento frio e cortante. Fiquei imaginando o que conteria a carta. Percebera um tom de ameaça na voz do desconhecido e, pelo que dissera, não me parecera que ele e meu mestre teriam um encontro agradável!
Com esses pensamentos girando na cabeça, passei pelo banco onde o Caça-feitiço me dava aulas quando o tempo estava suficientemente ameno e cheguei às primeiras árvores do jardim oeste. Ouvi, então, uma coisa que me fez prender a respiração de medo.
Um urro de raiva, de perfurar os tímpanos, ecoou da escuridão sob as árvores. Era tão feroz e aterrorizante que me imobilizei. Era um rosnado entrecortado que podia ser ouvido a quilômetros de distância, e eu já o conhecia. Sabia que era o ogro de estimação do Caça-feitiço se preparando para defender o jardim. Mas do quê? Haveria alguém me seguindo?
Virei-me e ergui a lanterna examinando, ansioso, a escuridão. Talvez o desconhecido estivesse às minhas costas! Eu não enxergava nada, por isso apurei os ouvidos, procurando captar o menor som. Ouvi apenas o vento sussurrando entre as árvores e o latido distante de um cão em algum sítio. Por fim, satisfeito por não estar sendo seguido, continuei o meu caminho.
Mal acabara de dar o primeiro passo, tornei a ouvir o rugido raivoso, dessa vez bem mais próximo. Os pelinhos da minha nuca ficaram arrepiados e senti muito mais medo, porque percebi que a fúria do ogro era dirigida a mim. Mas por que estaria enraivecido comigo? Eu não fizera nada errado.
Fiquei absolutamente parado, sem me atrever a dar mais um passo, temendo que o menor movimento pudesse fazê-lo me atacar. Era uma noite fria, mas o suor brotava na minha testa e me senti realmente vulnerável.
— Sou eu, o Tom! — gritei, finalmente, para as árvores. — Não há nada a temer. Estou levando uma carta para o meu mestre...
Ouvi em resposta um rosnado, dessa vez bem mais brando e distante, e, depois de alguns passos hesitantes, prossegui apressado. Quando cheguei a casa, o Caça-feitiço estava parado à porta dos fundos, empunhando o bastão. Ouvira o ogro e saíra para investigar.
— Você está bem, rapaz? — perguntou.
— Estou — gritei. — O ogro se enfureceu, mas não sei por quê. Agora já se acalmou.
Com um aceno de cabeça, o Caça-feitiço voltou para dentro de casa, encostando seu bastão atrás da porta.
Quando, por fim, eu o segui à cozinha, encontrei-o parado de costas para a lareira, aquecendo as pernas. Tirei o envelope do bolso.
— Tinha um desconhecido lá embaixo vestido como um caça-feitiço — informei, estendendo-lhe o envelope. — Não quis me dizer quem era, mas pediu para lhe entregar isto...
Meu mestre se adiantou e puxou o envelope da minha mão. Imediatamente a vela na mesa começou a bruxulear, o fogo quase se extinguiu na lareira e uma friagem repentina invadiu a cozinha, sinais de que o ogro continuava nem um pouco satisfeito. Alice mostrou-se assustada e quase caiu do banquinho. O Caça-feitiço, no entanto, de olhos arregalados, rasgou o envelope e começou a ler.
Quando terminou, fechou a cara e enrugou a testa, aborrecido. Resmungando alguma coisa baixinho, atirou a carta à lareira, onde ela pegou fogo e se enrolou enegrecida antes de cair no fundo da grelha. Olhei-o espantado. Seu rosto revelava fúria e ele parecia tremer da cabeça aos pés.
— Vamos partir para a minha casa em Anglezarke amanhã cedo, antes que o tempo piore — disse ele com rispidez, olhando diretamente para Alice —, mas você só irá nos acompanhar parte do caminho, garota. Vou deixar você perto de Adlington.
— Adlington? — repeti. — É onde o seu irmão Andrew está morando, não é?
— É, rapaz, é, mas ela não vai ficar com Andrew. Há um casal de sitiantes nos arredores da aldeia que me deve alguns favores. Eles tiveram muitos filhos, mas infelizmente apenas um sobreviveu. E, para aumentar a tragédia, uma filha morreu afogada. Atualmente, o rapaz trabalha longe de casa a maior parte do tempo, a saúde da mãe está começando a fraquejar e seria bom que ela pudesse contar com alguma ajuda. Então, essa será a sua nova casa.
Alice olhou para o Caça-feitiço, seus olhos se arregalando de espanto.
— Minha nova casa? Isso não é justo! — exclamou. — Por que não posso ficar com o senhor? Não fiz tudo que me pediu?
Alice não saíra da linha desde o outono, quando o Caça-feitiço a deixara morar conosco em Chipenden. Ganhara o próprio sustento, copiando alguns livros da biblioteca do Caça-feitiço, e me contara um bom número de coisas que a tia, a feiticeira Lizzie Ossuda, lhe ensinara para eu as registrar, ampliando assim os meus conhecimentos sobre a cultura das feiticeiras.
— É, garota, você fez o que eu pedi, não tenho queixas — respondeu o Caça-feitiço. — O aprendizado para se tornar um caça-feitiço é difícil, e a última coisa de que Tom precisa é ser distraído por uma garota como você. Não há lugar para uma mulher na vida de um caça-feitiço. Na verdade, esta é a única coisa que temos em comum com os padres.
— Mas por que tudo isso de repente? Tenho ajudado Tom, não o distraí! — protestou Alice. — E não poderia ter trabalhado com maior aplicação. Alguém lhe escreveu dizendo o contrário? — quis saber, zangada, apontando para a lareira onde caíra a carta queimada.
— Quê? — perguntou o Caça-feitiço, erguendo as sobrancelhas intrigado, mas em seguida percebeu a que se referia Alice. — Não, claro que não. Mas o conteúdo de uma carta particular não é da sua conta. Enfim, já decidi — disse ele, fixando nela um olhar duro. — Portanto, não precisamos continuar discutindo. Você começará uma vida nova. Será uma boa oportunidade para encontrar o seu lugar no mundo, garota. E será também a sua última chance!
Sem dizer mais uma palavra nem me olhar, Alice deu as costas e subiu a escada, pisando com força para se recolher. Levantei-me para segui-la e lhe oferecer algum consolo, mas o Caça-feitiço me mandou ficar.
— Espere aqui, rapaz! Precisamos conversar antes de você subir essa escada; portanto, sente-se.
Obedeci e me sentei junto à lareira.
— Nada que você disser vai me fazer mudar de ideia! Aceite isto agora e tudo será mais fácil — disse o Caça-feitiço.
— Pode ser — respondi —, mas havia maneiras melhores de dizer isso a Alice. Com certeza, o senhor poderia ter lhe dado a notícia um pouco mais gentilmente.
— Eu tenho mais com que me preocupar do que com os sentimentos de garotas — respondeu o Caça-feitiço.
Não adiantava discutir com ele quando estava assim, por isso poupei meu fôlego. Eu não estava satisfeito, mas não havia nada que pudesse fazer. Sabia que meu mestre tomara a decisão havia semanas e não iria mudá-la agora. Pessoalmente, eu não entendia por que ele precisava ir a Anglezarke. E por que íamos partir tão subitamente? Era alguma coisa ligada ao desconhecido e o que estava escrito na carta? O ogro reagira de modo estranho também. Era porque sabia que eu ia levando a carta?
— O estranho afirmou que veria o senhor em Anglezarke — eu disse sem pensar. — Ele não me pareceu muito amigável. Quem era?
O Caça-feitiço me encarou e, por um momento, pensei que não fosse me responder. Então, balançou novamente a cabeça e resmungou alguma coisa baixinho antes de falar.
— Chama-se Morgan e, no passado, foi meu aprendiz. Um aprendiz fracassado, eu poderia acrescentar, embora tenha estudado comigo durante quase três anos. Você mesmo sabe que nem todos os meus aprendizes se formam. Ele simplesmente não estava à altura do ofício e ficou com raiva, só isso. Você não o verá quando estivermos lá, mas se o vir, fique longe. Ele é pura encrenca, rapaz. Agora, suba: como já disse, vamos viajar amanhã muito cedo.
— Por que precisamos passar o inverno em Anglezarke? — perguntei. — Não poderíamos ficar aqui? Não teríamos mais conforto nesta casa? — Aquilo simplesmente não fazia sentido.
— Você já fez perguntas suficientes para um dia! — disse o Caça-feitiço, sua voz revelando irritação. — Mas vou lhe dizer o seguinte. Nem sempre fazemos coisas porque queremos. E se é conforto que você quer, então está no ofício errado. Goste ou não goste, as pessoas precisam de nós, particularmente quando anoitece. Somos necessários, por isso vamos. Agora, vá se deitar. E nem mais uma palavra!
Aquela não era a resposta completa que eu esperara, mas o Caça-feitiço tinha uma boa razão para tudo que fazia e eu era apenas um aprendiz que tinha muito a aprender. Então, concordei obediente e fui me deitar.
O ADEUS A CHIPENDEN
Alice estava sentada na escada em frente ao meu quarto me esperando. A vela ao seu lado projetava sombras fugidias na porta.
— Não quero ir embora daqui, Tom — disse ela se levantando. — Tenho sido feliz aqui. Essa tal casa de inverno seria a segunda opção melhor. O Velho Gregory não está me tratando direito!
— Lamento e concordo com você, Alice, mas ele já decidiu. Não tem nada que eu possa fazer.
Notei que ela havia estado chorando, mas não sabia o que acrescentar. De repente, Alice pegou a minha mão esquerda e apertou-a com força.
— Por que ele sempre tem que agir assim? — perguntou. — Por que detesta tanto as mulheres e as garotas?
— Acho que elas o magoaram no passado — expliquei com brandura. Recentemente eu ficara sabendo de umas coisas sobre meu mestre, mas até aquele momento guardara-as para mim. — Olhe, Alice, vou lhe contar uma coisa, mas tem de me prometer que não contará a mais ninguém e jamais deixará o Caça-feitiço saber que eu lhe contei!
— Prometo — sussurrou ela de olhos arregalados.
— Você se lembra de quando voltamos de Priestown e ele quase a colocou na cova?
Alice assentiu. Meu mestre resolvia o problema das feiticeiras malevolentes prendendo-as, vivas, em covas. Ia fazer o mesmo com Alice, embora ela realmente não merecesse esse tratamento.
— Você lembra o que gritei? — perguntei-lhe.
— Não ouvi muito bem, Tom. Eu estava me debatendo aterrorizada, mas sei que o que você disse foi importante, porque ele mudou de ideia. Sempre lhe agradecerei pelo que fez.
— Eu disse que ele não tinha posto a Meg em uma cova; portanto, não devia fazer isso com você!
— Meg? — interrompeu-me Alice. — Quem é Meg? Nunca ouvi falar dela antes...
— Meg é uma feiticeira. Li tudo sobre ela em um dos diários do Caça-feitiço. Quando ele era moço se apaixonou por Meg. E acho que ela partiu o coração do meu mestre. E mais, ela continua viva em algum lugar de Anglezarke.
— Meg de quê?
— Meg Skelton...
— Não! Deve ser engano. Veio do estrangeiro, a Meg Skelton veio do estrangeiro. Faz anos que voltou para a terra dela. Todo mundo sabe disso. Era uma feiticeira lâmia e quis voltar a viver com o povo dela.
Eu tinha aprendido muito sobre feiticeiras lâmias em um livro da biblioteca do Caça-feitiço. A maior parte vinha da Grécia, terra onde minha mãe também tinha vivido, e, em seu estado selvagem, elas se alimentavam de sangue humano.
— Bom, Alice você tem razão, ela não nasceu no Condado, mas o Caça-feitiço diz que ela continua morando aqui e que vou conhecê-la este inverno. Pelo pouco que sei, talvez ela esteja até morando na casa dele...
— Não seja bobo, Tom. Isso é muito pouco provável, não acha? Que mulher de juízo perfeito moraria com ele?
— Ele não é tão ruim assim, Alice — lembrei. — Nós dois estamos vivendo na casa dele há semanas e temos sido bem felizes!
— Se a Meg estiver morando na casa dele em Anglezarke — disse Alice, com um sorriso maldoso no rosto —, não se surpreenda se estiver enterrada em uma cova.
Retribuí seu sorriso.
— Bem, vamos descobrir quando chegarmos lá — respondi.
— Não, Tom. Você vai descobrir. Eu estarei morando em outro lugar. Esqueceu? Mas não é tão mau assim, porque Adlington é perto de Anglezarke. É só uma caminhada mínima, e você poderia ir até lá me visitar, Tom. Você faria isso? Assim eu não me sentiria tão sozinha...
Embora não tivesse certeza se o Caça-feitiço me deixaria visitá-la, eu queria que ela se sentisse melhor. De repente, lembrei-me de Andrew.
— E o Andrew? Ele é o único irmão do Caça-feitiço que sobrou, e está morando e trabalhando em Adlington agora. Com certeza, morando tão perto, meu mestre vai querer fazer uma visita de vez em quando. E, provavelmente, me levará junto. Apareceremos com frequência na aldeia, tenho certeza, então haverá muitas oportunidades para nos vermos.
Alice sorriu e soltou minha mão.
— Então, não deixe de fazer isso, Tom. Vou ficar esperando por você. Não me desaponte. E obrigada por me dizer aquelas coisas sobre o Velho Gregory. Apaixonado por uma feiticeira, hein? Quem poderia imaginar que fosse capaz disso?
Em seguida, ela apanhou a vela e subiu a escada. Eu ia, de fato, sentir saudades de Alice, mas arranjar uma desculpa para vê-la talvez fosse mais difícil do que eu afirmara. O Caça-feitiço seguramente desaprovaria. Não tinha tempo para mulheres e me alertara em várias ocasiões que tomasse cuidado com elas. Eu contara a Alice o suficiente sobre meu mestre, talvez até demais, mas tinha havido muitas outras mulheres no passado do Caça-feitiço, além da Meg. Ele também se envolvera com uma tal Emily Burns, que já era noiva de um dos seus irmãos. O irmão estava morto, mas o escândalo dividira a família e causara muitos problemas. Diziam que Emily também vivia perto de Anglezarke. Toda história tem dois lados e eu não pretendia julgar o Caça-feitiço até saber mais a respeito; contudo, já era o dobro das mulheres que a maioria dos homens do Condado tinha em uma vida inteira; o Caça-feitiço, sem dúvida, vivera um bocado!
Fui para o meu quarto e pus a vela sobre a mesinha de cabeceira. Próximo à sua base havia muitos nomes rabiscados por aprendizes anteriores. Alguns tinham concluído com sucesso o aprendizado com o Caça-feitiço: o nome de Bill Arkwright estava ali no canto superior esquerdo. Muitos haviam fracassado antes de completar o tempo de treinamento. Alguns tinham até morrido. O nome de Billy Bradley estava no canto oposto. Fora o aprendiz imediatamente anterior a mim, mas cometera um engano e um ogro arrancara seus dedos. Billy morrera de choque e hemorragia.
Examinei atentamente a parede naquela noite. Pelo que sabia, todos que tinham morado naquele quarto haviam gravado seus nomes, inclusive eu. O meu era muito pequeno porque não sobrara muito espaço, mas estava ali. No entanto, pelo que eu estava vendo, faltava um nome. Examinei a parede cuidadosamente para me certificar, e eu tinha razão: não havia nenhum “Morgan” gravado na parede. Por quê? O Caça-feitiço tinha dito que o rapaz havia sido seu aprendiz; então, por que não acrescentara seu nome?
Que havia de tão diferente com Morgan?
Na manhã seguinte, depois de um rápido café da manhã, fizemos as malas e nos preparamos para partir. Pouco antes de sairmos, voltei rapidamente à cozinha para me despedir do ogro de estimação do Caça-feitiço.
— Obrigado por todas as refeições que preparou — eu disse para o ar.
Não estava muito seguro se o Caça-feitiço teria gostado dessa ida especial à cozinha para agradecer: ele estava sempre falando que não se devia dar intimidade aos “empregados”.
Enfim, sei que o ogro apreciou o elogio, porque, mal terminei de falar, ouvi um ronronar satisfeito embaixo da mesa da cozinha e tão sonoro que os tachos e panelas começaram a vibrar. Em geral, o ogro permanecia invisível, mas ocasionalmente assumia a forma de um gatão ruivo.
Hesitei, reuni coragem e acrescentei, sem saber muito bem qual seria a reação do ogro ao que eu tinha a dizer:
— Lamento ter enraivecido você ontem à noite. Eu só estava cumprindo a minha obrigação. Foi a carta que o incomodou?
O ogro não falava; portanto, não iria me responder com palavras. O instinto me fizera perguntar aquilo. Uma sensação de que era o mais correto.
De repente, desceu uma corrente de ar pela chaminé, um leve cheiro de fuligem, e um pedaço de papel saiu voando da lareira e caiu em cima do tapete à minha frente. Aproximei-me e o apanhei. Estava queimado nas bordas e parte dele se desfez entre meus dedos, mas eu sabia que era o que tinha restado da carta entregue por Morgan.
Havia apenas algumas palavras no papel chamuscado, e estudei-as algum tempo para conseguir decifrá-las.
Devolva o que me pertence ou vou fazê-lo se arrepender de ter nascido. Comece por
Era só o que havia escrito, mas o bastante para eu entender que Morgan estava ameaçando meu mestre. A que estaria se referindo? O Caça-feitiço tinha tirado alguma coisa dele? Alguma coisa que legitimamente lhe pertencia? Eu não podia imaginar o Caça-feitiço roubando nada. Não era do seu feitio. Aquilo não fazia o menor sentido.
Meus pensamentos foram interrompidos pelos gritos do Caça-feitiço na porta da frente.
— Ande, rapaz! Que está fazendo? Não demore! Não temos o dia todo!
Amassei o papel e atirei-o de volta à lareira, apanhei meu bastão e corri para a porta. Alice já se encontrava do lado de fora, mas o Caça-feitiço estava parado no portal me olhando desconfiado, duas bolsas a seus pés. Não tínhamos enchido muito as bolsas, mas ainda assim eu é que teria de carregá-las.
A essa altura, o Caça-feitiço tinha me presenteado com uma de suas bolsas, embora até o momento eu não tivesse muito que carregar dentro dela. Levava apenas a corrente de prata que minha mãe me dera, o estojinho de fazer fogo, presente de despedida do meu pai, meus cadernos e um punhado de roupas. Algumas meias tinham sido tão cerzidas que pareciam quase novas, mas o Caça-feitiço comprara para mim um casaco de inverno de pele de carneiro que eu estava usando por baixo da capa. Ganhara também meu próprio bastão — novinho em folha que meu mestre talhara em sorveira-brava, e que era muito eficaz contra a maioria das feiticeiras.
O Caça-feitiço, apesar de desaprovar Alice totalmente, fora generoso com relação às suas roupas. Ela também ganhara um novo casaco de inverno de lã preta, que chegava quase aos seus tornozelos, e preso nele um capuz para manter suas orelhas aquecidas.
O frio não parecia incomodar muito o Caça-feitiço, que vestia sua capa com capuz, como fizera na primavera e no verão. Nos últimos meses, sua saúde andara muito enfraquecida, mas ele parecia tê-la recuperado e estar mais forte que nunca.
Meu mestre trancou a porta da frente quando saímos, olhou para o sol de inverno, apertando os olhos, e saiu em passo acelerado. Eu apanhei as duas bolsas e o acompanhei o melhor que pude, com Alice nos meus calcanhares.
— Ah, a propósito, rapaz — disse o Caça-feitiço por cima do ombro —, vamos parar no sítio do seu pai a caminho do Sul. Ele ainda me deve dez guinéus de pagamento pelo seu aprendizado!
Senti tristeza por deixar Chipenden. Eu me afeiçoara à casa e aos jardins, e me doía pensar que Alice e eu estaríamos separados dali em diante. No entanto, eu teria oportunidade de rever minha mãe e meu pai. O que era razão suficiente para meu coração dar saltos e meu passo ganhar novo vigor. Eu estava a caminho de casa!
EM CASA
Durante a viagem para o Sul, não parei de olhar para as serras que estava deixando para trás. Passara tanto tempo andando lá no alto, perto das nuvens, que algumas me pareciam velhas amigas, particularmente o pico do Parlick, que era o mais próximo da casa de verão do Caça-feitiço. No fim do segundo dia de caminhada, no entanto, aquelas altas serras que eu conhecia tão bem eram apenas um risco arroxeado na linha do horizonte e me senti feliz por ter um casaco novo. Já tínhamos passado uma noite desconfortável e enregelante em um curral destelhado, e, embora o vento tivesse abrandado e o sol brilhasse palidamente, parecia estar esfriando de hora em hora.
Por fim, fomos nos aproximando de casa, e a ansiedade de rever minha família recomeçou a crescer a cada passo. Estava desesperado para ver meu pai. Na última visita, ele convalescia de uma grave pneumonia, e era pequena a sua chance de recuperar totalmente a saúde. De qualquer modo, ele pretendia se aposentar e entregar o sítio ao meu irmão mais velho, Jack, no início do inverno. Sua doença acelerara as coisas. O Caça-feitiço se referira ao sítio do meu pai, mas isso já não correspondia à realidade.
De repente, lá embaixo, já dava para ver o celeiro e a casa com um penacho de fumaça saindo da chaminé. Ao redor, o quadriculado dos campos e as árvores desfolhadas pareciam invernosos e desolados, e senti vontade de aquecer minhas mãos na lareira da cozinha.
Meu mestre parou no fim da estradinha rural.
— Muito bem, rapaz, acho que seu irmão e sua cunhada não ficarão muito felizes de nos ver juntos. O ofício de Caça-feitiço incomoda a maioria das pessoas, por isso não devemos aborrecê-las. Pode ir e traga o meu dinheiro; a garota e eu aguardaremos aqui. Com certeza, você deve estar ansioso para rever sua família, mas não demore mais de uma hora. Enquanto você estiver sentado junto à lareira acesa, lembre-se de que estaremos congelando os pés aqui!
Ele tinha razão: meu irmão Jack e sua mulher não gostavam de caça-feitiços e já tinham me avisado que não os trouxesse em casa. Portanto, deixei Alice com meu mestre e corri pela estrada em direção ao sítio. Quando abri o portão, os cães começaram a latir e Jack apareceu contornando o celeiro. Não estávamos conseguindo nos entender desde que eu fora aceito como aprendiz do Caça-feitiço, mas, ao menos dessa vez, ele pareceu contente em me ver e seu rosto se iluminou com um largo sorriso.
— Que bom te ver, Tom — disse ele, passando o braço pelos meus ombros.
— E eu a você, Jack. Mas como vai o papai? — perguntei.
O sorriso desapareceu do rosto do meu irmão tão depressa quanto aparecera.
— A verdade, Tom, é que não acho que ele esteja muito melhor do que a última vez que você esteve aqui. Há dias melhores do que outros, mas a primeira coisa que ele faz de manhã é tossir e escarrar tanto que mal consegue respirar. É doloroso de ouvir. Queremos ajudar, mas não há nada a fazer.
Ele balançou a cabeça tristemente.
— Coitado do papai. Estou indo para o Sul, vou passar o inverno lá — informei. — Só vim apanhar o resto do dinheiro que papai deve ao Caça-feitiço. Gostaria de poder ficar um pouco, mas não posso. Meu mestre está aguardando no fim da estrada. Temos que continuar a viagem em uma hora.
Não mencionei Alice. Jack sabia que ela era sobrinha de uma feiticeira e não ia querer perder tempo com ela. Os dois já tinham brigado antes e eu não queria ver a cena repetida.
Meu irmão se virou e olhou para trás em direção à estradinha, antes de me avaliar de alto a baixo.
— Sem dúvida, você veio vestido a caráter — comentou com um sorriso.
E tinha razão. Eu deixara as bolsas com Alice, mas usando a capa preta e com o bastão na mão eu parecia uma versão em miniatura do meu mestre.
— Gosta do casaco? — perguntei, afastando a capa para ele poder ver melhor.
— Parece quente.
— O sr. Gregory o comprou para mim. Diz que vou precisar. Ele tem uma casa na charneca de Anglezarke, não muito longe de Adlington. É onde vamos passar o inverno, e faz um frio violento lá.
— É, vai sentir muito frio mesmo, pode ter certeza! Mas que seja você, e não eu! Enfim, é melhor eu continuar o meu trabalho. Não faça mamãe esperar. Ela está realmente animada e feliz hoje. Deve ter pressentido que você ia chegar.
Dizendo isso, Jack tornou a atravessar o terreiro e parou no canto do celeiro para acenar. Retribuí o aceno e me encaminhei para a porta da cozinha. Muito provavelmente minha mãe sabia que eu estava a caminho. Tinha o dom de pressentir essas coisas. Na qualidade de parteira e curandeira, ela frequentemente sabia quando alguém vinha buscar sua ajuda.
Quando empurrei a porta dos fundos, encontrei minha mãe sentada na cadeira de balanço ao pé da lareira. As cortinas estavam fechadas porque ela era sensível à luz do sol. Ao me ver entrar na cozinha sorriu.
— Que bom te ver, meu filho. Venha me dar um abraço e me contar todas as novidades!
Aproximei-me, e ela me apertou contra o peito. Depois, puxei uma cadeira para me sentar perto dela. Muita coisa acontecera desde a última vez em que vira minha mãe, no outono, mas eu lhe enviara uma longa carta contando-lhe todos os perigos que enfrentara com meu mestre, quando fomos concluir um serviço em Priestown.
— A senhora recebeu minha carta, mamãe?
— Recebi, Tom, e peço muitas desculpas por não ter respondido, mas andamos muito ocupados aqui e eu sabia que você nos visitaria a caminho do Sul. Como está Alice agora?
— Finalmente acabou endireitando, mamãe, e ficou feliz de morar conosco em Chipenden. O único problema é que o Caça-feitiço ainda não confia nela. Estamos viajando para a casa de inverno dele, mas Alice vai ficar em um sítio com um pessoal que ela nem conhece.
— Pode parecer radical — respondeu minha mãe —, mas tenho certeza de que o sr. Gregory sabe o que está fazendo. Está visando o melhor para todos. Quanto a Anglezarke, tenha cuidado, filho. É uma charneca sinistra e fria. Acho que Alice recebeu um castigo brando.
— Jack me falou do papai. É tão grave quanto você esperava, mamãe?
Da última vez que nos víramos, ela não contara a Jack seus piores receios, mas insinuara para mim que a vida do meu pai estava chegando ao fim.
— Eu tinha esperança de que ele ficasse um pouco mais forte. Precisará de muitos cuidados para conseguir atravessar o inverno que, desconfio, será o pior que já passei desde que cheguei ao Condado. No momento, ele está lá em cima dormindo. Daqui a pouco levarei você para vê-lo.
— Mas Jack me pareceu mais alegre — eu disse, tentando animá-la. — Talvez ele tenha aceitado a ideia de ter um caça-feitiço na família.
Minha mãe deu um grande sorriso.
— E deveria ter aceitado mesmo, mas suspeito que a melhora do seu humor está mais ligada ao fato de Ellie estar grávida e desta vez ser um garoto. Jack sempre quis ter um filho. Alguém que um dia pudesse herdar a propriedade.
Fiquei feliz por Jack. Minha mãe jamais se engana nessas coisas. Então, percebi que a casa estava silenciosa. Silenciosa demais.
— Onde está Ellie? — perguntei.
— Lamento, Tom, mas você escolheu o dia errado para uma visita. Quase toda quarta-feira ela vai à casa dos pais e leva a pequena Mary. Você devia ver aquela criança agora! Está enorme para oito meses e engatinha tão ligeiro que a gente precisa ter olhos na nuca! Enfim, sei que seu mestre está esperando e faz frio lá fora, então vamos ver seu pai.
Meu pai dormia profundamente, mas havia quatro travesseiros apoiando suas costas e deixando-o quase sentado.
— Nessa posição, ele respira melhor — disse minha mãe. — Seus pulmões ainda estão um pouco congestionados.
Meu pai respirava ruidosamente; seu rosto estava cinzento, e havia uma listra de suor em sua testa. A verdade é que sua aparência era a de alguém muito doente — uma mera sombra do homem forte e saudável que, no passado, cuidara do sítio sozinho e fora um pai dedicado para sete filhos.
— Olhe, Tom, sei que você gostaria de dar uma palavrinha com o seu pai, mas ele não dormiu nada a noite passada. É melhor não o acordar agora. Que me diz?
— Claro, mamãe — concordei, mas fiquei triste por não poder conversar com meu pai. Ele estava tão doente que eu sabia que talvez não o visse mais.
— Bom, dê-lhe um beijo, filho, e vamos deixá-lo dormir...
Olhei para minha mãe, espantado. Não conseguia me lembrar da última vez que beijara meu pai. Era mais normal uma palmadinha no ombro ou um rápido aperto de mão.
— Ande, Tom, beije-o na testa — insistiu minha mãe. — E lhe deseje melhoras. Ele pode estar dormindo, mas parte dele ouvirá o que você disser e isso o fará se sentir melhor.
Tornei a olhar para minha mãe, e nossos olhos se encontraram. Havia firmeza nos seus, e senti sua força de vontade. Fiz, então, exatamente o que me pediu. Inclinei-me para a cama e beijei de leve a testa quente e úmida de meu pai. Senti um cheiro estranho que não consegui identificar com exatidão. Um cheiro de flores. Um tipo de flor de que eu não conhecia o nome.
— Melhore depressa, papai — sussurrei muito baixinho. — Voltarei na primavera para ver o senhor.
Minha boca ficou seca de repente e, quando passei a língua nos lábios, senti o gosto salgado de sua testa. Minha mãe sorriu tristemente e apontou para a porta do quarto.
Quando fui saindo com ela, meu pai começou a tossir e escarrar atrás de mim. Virei-me preocupado e, naquele momento, ele abriu os olhos, fixando-os em mim.
— Tom! Tom! É você? — chamou-me, antes de ter um novo acesso de tosse.
Minha mãe passou por mim no portal e se curvou para meu pai, ansiosa, acariciando gentilmente sua testa até a tosse passar.
— Tom está aqui — disse ela a meu pai —, mas não vá se cansar falando demais.
— Você está trabalhando muito, rapaz? Seu mestre está satisfeito com você? — perguntou-me, mas sua voz estava fraca e rouca, como se ele tivesse alguma coisa presa na garganta.
— Está tudo correndo bem, papai. Aliás, essa é uma das razões por que estou aqui — respondi me aproximando da cama. — Meu mestre decidiu continuar meu treinamento e quer os dez guinéus que ainda faltam pagar pelo meu aprendizado.
— Que boas notícias, filho. Estou realmente contente com você. Então tem gostado de trabalhar em Chipenden?
— Tenho, papai — respondi sorrindo —, mas agora estamos de viagem para passar o inverno na casa dele, na charneca de Anglezarke.
De repente, papai pareceu assustado.
— Ah, eu gostaria que você não estivesse indo para lá — disse ele, lançando um olhar a minha mãe. — Correm histórias estranhas sobre aquele lugar, e nenhuma delas é boa. Precisará ter olhos na nuca, quando estiver lá. Fique sempre perto do seu mestre e preste muita atenção a tudo que ele disser.
— Tudo correrá bem, papai. Não se preocupe. Cada dia aprendo mais.
— Tenho certeza de que sim, filho. Devo confessar que tive minhas dúvidas em colocar você como aprendiz de um caça-feitiço, mas sua mãe tinha razão. É um trabalho duro, mas alguém tem que fazê-lo. Ela me contou o que você tem conseguido e estou realmente orgulhoso de ter um filho tão valente. Não tenho favoritos, me entenda. Sete filhos eu tive e todos são bons rapazes. Gosto de todos e me orgulho de cada um, mas sinto que talvez você venha a ser o melhor da minha safra.
Sorri apenas, sem saber o que dizer. Meu pai retribuiu meu sorriso, depois fechou os olhos, e, em pouco tempo, o ritmo de sua respiração mudou e ele voltou a adormecer. Minha mãe indicou a porta com um aceno e saímos juntos do quarto.
Quando voltamos à cozinha, perguntei a minha mãe sobre o cheiro estranho.
— Foi você quem perguntou, por isso não vou esconder, Tom. Além de ser o sétimo filho de um sétimo filho, você herdou algumas coisas de mim. Nós dois somos sensíveis ao que chamam de prenúncios da morte. O cheiro que você sentiu é a aproximação da morte...
Um bolo se formou na minha garganta e as lágrimas começaram a arder nos meus olhos. Imediatamente minha mãe veio até mim e me abraçou.
— Ah, Tom, procure não se afligir. Isso não significa que seu pai irá necessariamente morrer dentro de uma semana, um mês ou um ano, a contar de hoje. Mas quanto mais forte o cheiro, mais próxima está a morte. Se alguém se cura completamente, o cheiro desaparece. E isso está acontecendo com seu pai. Há dias em que o cheiro está quase ausente. Estou cuidando dele o melhor que posso e ainda tenho alguma esperança. Enfim, é isso, já lhe contei, e é mais uma coisa que você aprendeu.
— Obrigado, mamãe — agradeci tristemente me preparando para partir.
— Ora, não saia correndo desse jeito — disse minha mãe, sua voz suave e bondosa. — Sente-se perto da lareira que vou preparar uns sanduíches para sua viagem.
Fiz o que me mandou e ela rapidamente preparou um embrulho com sanduíches de presunto e frango para nós três.
— Não estamos esquecendo nada? — indagou ao me entregar o embrulho.
— O dinheiro do sr. Gregory! — exclamei. Tinha me esquecido completamente.
— Espere aqui, Tom. Tenho que dar um pulo no meu quarto para buscar.
Por “meu quarto” ela não queria dizer o quarto que dividia com meu pai. Referia-se ao quarto trancado no último andar, onde guardava seus pertences. Eu só tinha ido até lá uma vez, quando era bem pequeno, e outra, quando ela me dera a corrente de prata. Ninguém mais entrava naquele quarto. Nem mesmo papai.
Havia lá muitas caixas e baús, mas eu não fazia a menor ideia do que continham. Pelo que minha mãe acabava de dizer, havia dinheiro também. Para começo de conversa, o dinheiro dela é que comprara o sítio. Trouxera-o de seu país, a Grécia.
Antes de partir, minha mãe me entregou o embrulho de sanduíches e contou os dez guinéus que depositou em minha mão. Quando me fitou, vi preocupação em seus olhos.
— Vai ser um inverno cruel, duro e longo, filho. Todos os sinais estão aí. As andorinhas migraram para o Sul quase um mês antes do habitual e a primeira geada se formou quando as minhas últimas rosas ainda estavam viçosas, coisa que nunca vi acontecer antes. Vai ser uma estação inclemente e acho que nenhum de nós a viverá sem sofrer mudanças. E não poderia haver lugar pior para passar o inverno do que Anglezarke. Seu pai ficou preocupado com você, filho, e eu também estou. E tinha razão. Por isso, não vou fazer rodeios. Não tenho dúvida de que as trevas estão aumentando o seu poder e que há uma influência particularmente maléfica naquela charneca. É o lugar onde deuses antigos foram cultuados em um passado distante e, no inverno, alguns deles começam a despertar do seu sono. O pior deles é Golgoth, a quem alguns chamam de Senhor do Inverno. Portanto, não saia de perto do seu mestre. Ele é o único amigo verdadeiro que você tem. Vocês têm de se ajudar mutuamente.
— Mas, e Alice?
Minha mãe balançou a cabeça.
— Talvez ela venha a ficar bem, talvez não. Naquela charneca fria, vocês estarão mais perto das trevas do que na maioria dos lugares no Condado; portanto, estar próximo de Anglezarke será um novo teste para ela. Tenho esperança de que se saia bem, mas não consigo ver o desfecho. Faça como digo. Trabalhe com seu mestre. É isso que conta.
Tornamos a nos abraçar; então, me despedi e saí pela estradinha afora.
A CASA DE INVERNO
Quanto mais nos aproximávamos de Anglezarke, pior o tempo ficava.
Tinha começado a chover, e o vento frio de sudeste foi aumentando, a ponto de nos fustigar o rosto. As nuvens cinzentas baixas e carregadas lembravam pesos de chumbo suspensos sobre nossas cabeças. Mais tarde, o vento se intensificou e a chuva se transformou em geada e depois em granizo. O chão virou um lamaçal sob nossos pés, retardando muito o nosso progresso. Para piorar, topávamos todo o tempo com áreas de turfa e alagados traiçoeiros, e o Caça-feitiço precisou usar todos os seus conhecimentos para podermos atravessá-los em segurança.
Na manhã do terceiro dia, porém, a chuva parou e as nuvens se dispersaram, permitindo-nos ver o sinistro contorno das serras à frente.
— Ei-la! — exclamou o Caça-feitiço, apontando as serras com seu bastão. — A charneca de Anglezarke. — E, lá adiante, a uns seis quilômetros para o Sul — ele tornou a apontar —, fica Blackrod.
Estávamos longe demais para ver a aldeia. Pensei poder divisar alguns fiapos de fumaça, mas talvez fosse uma nuvem.
— Como é Blackrod? — perguntei. Meu mestre mencionara algumas vezes a aldeia, então imaginei que era o lugar em que eu apanharia as provisões semanais.
— Não é uma aldeia tão acolhedora quanto Chipenden, por isso é melhor ficar longe dela — respondeu o Caça-feitiço. — Os moradores são gente esquisita, e muitos são aparentados entre si. Foi onde nasci, por isso eu sei. Adlington é um lugar muito mais simpático e agora não está muito distante. A menos de dois quilômetros, na direção norte, fica o sítio onde a deixaremos, garota — disse ele a Alice. — É conhecido como Sítio Vista da Charneca. Você irá morar com os donos, o sr. e a sra. Hurst.
Uma hora depois, chegamos à sede de um sítio isolado nos arredores de um grande lago. À medida que o Caça-feitiço avançava, os cães começaram a latir; dali a pouco, ele já estava no terreiro, conversando com um velho agricultor que não parecia muito satisfeito de vê-lo. Uns cinco minutos depois, sua mulher veio se reunir aos dois. Não trocaram nenhum sorriso durante a conversa.
— Tenho certeza de que não vou ser nada bem-vinda aqui! — disse Alice, virando os cantos da boca para baixo.
— Talvez não seja tão ruim assim — tentei justificar. — Não se esqueça de que eles perderam uma filha. Tem gente que nunca se recupera de uma tragédia como essa.
Enquanto esperávamos, observei o sítio mais atentamente. Não me pareceu muito próspero, e a maioria dos prédios, malconservada. O celeiro estava inclinado e dava a impressão de que a próxima tempestade o jogaria no chão. Tudo que eu via tinha uma aparência sombria. Não pude deixar de pensar também no lago vizinho. Era uma extensão desolada de água cinzenta, alagadiços na margem oposta e uns poucos salgueiros mirrados na margem mais próxima. Teria sido ali que a filha deles se afogara? Sempre que olhassem pelas janelas da frente da casa, os Hurst se lembrariam do acontecido.
Alguns minutos depois, o Caça-feitiço se virou e fez sinal para nos aproximarmos; avançamos pela lama até o terreiro.
— Este é o meu aprendiz, Tom — disse o Caça-feitiço, apresentando-me ao velho sitiante e sua mulher.
Sorri e cumprimentei-os. Ambos acenaram com a cabeça, mas não retribuíram meu sorriso.
— E esta é a jovem Alice — continuou o Caça-feitiço. — É trabalhadeira e poderá ajudar muito em casa. Sejam firmes mas gentis, e ela não causará problemas.
Eles mediram Alice de alto a baixo, sem tecer comentários, e, depois de um breve aceno de cabeça para o casal e um vestígio de sorriso, ela ficou olhando para seus sapatos de bico fino. Dava para perceber que se sentia infeliz; sua estada com os Hurst não estava começando nada bem. Eu realmente não a culpava. Os dois exibiam um ar infeliz de derrota, como se a vida os tivesse nocauteado. O rosto e a testa do sr. Hurst eram fortemente vincados, como se praticasse mais franzi-los do que rir.
— Vocês têm visto o Morgan com frequência, ultimamente? — perguntou o Caça-feitiço.
À inesperada menção do nome de Morgan, ergui os olhos ligeiro e vi a pálpebra esquerda do sr. Hurst tremer sem parar. Ele me pareceu nervoso. Talvez até apavorado. Seria o mesmo Morgan que tinha ido entregar a carta para meu mestre?
— Quase nunca o vejo — respondeu a sra. Hurst de má vontade, sem olhar para o Caça-feitiço. — Ele dorme aqui uma noite ou outra, mas vem e vai quando quer. No momento, quase não tem aparecido.
— Quando esteve aqui a última vez?
— Faz duas semanas. Talvez mais...
— Bem, quando vier visitá-la, diga que eu gostaria de dar uma palavrinha com ele. Diga que me procure em casa.
— Direi.
— Não se esqueça. Bem, vamos andando.
O Caça-feitiço se virou para ir embora e apanhei meu bastão e as duas bolsas para acompanhá-lo. Alice correu atrás de mim e me agarrou pelo braço fazendo-me parar.
— Não se esqueça do que me prometeu — cochichou no meu ouvido esquerdo. — Venha me visitar e não deixe passar mais de uma semana. Estou contando com você!
— Virei, não se preocupe — respondi sorrindo.
Feito isso, ela voltou a se reunir aos Hurst e fiquei observando os três entrarem na sede do sítio. Fiquei realmente triste por Alice, mas não havia nada que eu pudesse fazer.
Quando deixamos o Vista da Charneca para trás, comentei com o Caça-feitiço o que começava a me preocupar.
— Eles não pareceram satisfeitos de receber Alice — afirmei, esperando que ele me contradissesse. Para minha perturbação e surpresa, ele concordou.
— É verdade, não ficaram nada satisfeitos. Mas não tinham muita opção. Os Hurst me devem uma boa quantia, entende? Duas vezes livrei a propriedade deles de ogros inoportunos. E ainda não recebi um centavo por todo o meu trabalho. Concordei em cancelar a dívida, se ficassem com Alice.
Não consegui acreditar no que estava ouvindo.
— Mas isso não é justo com Alice! — protestei. — Eles talvez a tratem mal.
— A garota é capaz de se cuidar, e você sabe muito bem disso — respondeu ele com um sorriso sombrio. — Além do mais, você não vai conseguir ficar longe daqui e fará uma visita de vez em quando para ver se ela está bem...
Quando abri a boca para protestar, o sorriso do Caça-feitiço se alargou, dando-lhe a aparência de um lobo faminto que abrisse bem a boca para arrancar a cabeça da presa.
— Então, acertei? — perguntou-me.
Confirmei com a cabeça.
— Foi o que pensei, rapaz. Já conheço você bastante bem. Portanto, pare de se preocupar com a garota. Preocupe-se consigo mesmo. Vai ser um inverno duro. Um inverno que nos testará até o limite das nossas forças. Anglezarke não é lugar para fracos nem covardes!
Havia outra coisa me intrigando, por isso decidi desabafar.
— Ouvi o senhor perguntar aos Hurst sobre um tal Morgan. É o mesmo Morgan que lhe mandou a carta?
— Ora, certamente tenho esperança de que não existam dois, rapaz! Um já é encrenca suficiente.
— E ele de vez em quando fica com os Hurst?
— Fica, rapaz, o que seria de esperar, uma vez que é filho deles.
— O senhor mandou Alice ficar com os pais do Morgan? — perguntei assombrado.
— Isso mesmo. E sei o que estou fazendo; portanto, agora chega de perguntas. Vamos andando. Precisamos chegar a Anglezarke bem antes de anoitecer.
Do primeiro momento em que as vi de perto, gostei da aparência das serras em torno de Chipenden, mas com relação à charneca de Anglezarke foi diferente. Eu não consegui precisar o que era, mas quanto mais perto chegávamos, mais deprimido eu me sentia.
Talvez fosse porque a via nos meses finais do ano e o inverno estava próximo. Ou talvez fosse a charneca escura em si que se erguia diante de mim como uma fera adormecida, as nuvens amortalhando seu topo sombrio. Mais provavelmente era porque todos tinham me prevenido contra o lugar e comentado que o inverno ia ser rigoroso. O que quer que fosse eu me senti pior ainda ao ver a casa do Caça-feitiço, o lugar sinistro onde moraríamos nos meses seguintes.
Chegamos à casa margeando um riacho em direção à sua nascente, entramos no que o Caça-feitiço chamava de “ravina” e que era uma fenda na charneca, um vale estreito e fundo com encostas escarpadas de cada lado. A princípio, as encostas eram formadas de cascalho apenas, mas as pedras soltas logo cederam lugar a tufos de capim e rocha nua, e as paredes escuras da ravina pareciam se fechar.
Após uns vinte minutos de caminhada, a ravina virou para a esquerda e inesperadamente surgiu a casa do Caça-feitiço à nossa frente, encostada à face da escarpa à nossa direita. Meu pai sempre dizia que a primeira impressão que se tem de alguma coisa é quase sempre a correta, então o meu estado de ânimo despencou em cima das botas. Era fim de tarde e a luz já declinava; portanto, não favorecia muito a aparência da casa. Ela era maior e mais imponente do que a de Chipenden, mas fora construída com pedras muito mais escuras, o que lhe dava um ar inconfundivelmente sinistro. Além disso, as janelas eram pequenas, o que, somado ao fato de a casa estar em uma ravina, certamente deixaria seus aposentos muito sombrios. Era uma das casas menos convidativas que eu já vira.
O pior, no entanto, era não ter jardim. Como disse, a casa estava assentada contra a escarpa rochosa; na frente, cinco ou seis passos nos levavam à beira do riacho, que não era muito largo, mas parecia fundo e gelado. Mais trinta passos sobre o leito de seixos e batia-se com o dedão do pé na face oposta do rochedo. Isto é, se a pessoa conseguisse atravessar as pedras escorregadias sem cair na água.
Não subia fumaça da chaminé, o que indicava que não havia uma lareira acesa para nos receber. Em Chipenden, o ogro de estimação do Caça-feitiço sempre sabia quando estávamos regressando, e não só a casa era aquecida como havia uma refeição fumegante esperando por nós na mesa da cozinha.
No alto, os lados da ravina davam a impressão de quase se unirem por cima da casa, e via-se apenas uma estreita faixa de céu. Eu tremia porque estava ainda mais frio ali embaixo na ravina do que estivera na subida da charneca, e concluí que, mesmo no verão, o sol não seria visível mais de uma hora por dia, se tanto. Isso me fez apreciar o que tivera em Chipenden, com suas matas, campos, serras elevadas e o céu aberto no alto. De lá contemplávamos o mundo embaixo; aqui estávamos presos em uma cova estreita e comprida.
Ergui os olhos, apreensivo, para o ponto em que as bordas escuras da ravina encontravam o céu. Qualquer pessoa ou qualquer coisa poderia estar lá em cima nos espiando e não saberíamos.
— Muito bem, rapaz, chegamos. Esta é a minha casa de inverno. Temos muito que fazer: cansados ou não, precisamos trabalhar!
Em vez de subir em direção à porta da frente, o Caça-feitiço me conduziu a uma pequena área lajeada nos fundos da casa. A três passos da porta dos fundos dávamos de cara com o rochedo, de onde escorria água e pendiam estalactites, como dentes de dragão em uma das histórias mirabolantes que um tio meu costumava contar.
É claro que, na boca quente do dragão, os “dentes” teriam virado vapor de água na mesma hora; nesse lugar frio atrás da casa, eles durariam a maior parte do ano e, quando nevasse, não haveria como se livrar deles até o fim da primavera.
— Aqui sempre usamos a porta dos fundos, rapaz — disse o Caça-feitiço, tirando do bolso a chave que seu irmão Andrew, o serralheiro, fizera para ele. Abriria qualquer porta desde que a fechadura não fosse muito complicada. Eu próprio possuía uma igual que me havia sido útil mais de uma vez.
A chave entrou forçada na fechadura e a porta pareceu abrir com relutância. Uma vez dentro da casa, fiquei deprimido ao ver como a cozinha era escura, mas o Caça-feitiço apoiou o bastão na parede, tirou uma vela da bolsa e acendeu-a.
— Ponha as bolsas ali — disse-me, apontando para uma prateleira baixa ao lado da porta dos fundos.
Fiz o que me mandou e guardei meu bastão no canto, junto ao dele, antes de acompanhá-lo ao interior da casa.
Minha mãe teria ficado chocada com o estado da cozinha. Àquela altura, eu tinha certeza de que não havia ogros para fazer o serviço doméstico. Era visível que ninguém cuidara do lugar desde que o Caça-feitiço o deixara no fim do inverno anterior. Havia poeira em todas as superfícies, e teias de aranha pendiam do teto. A pia tinha uma montoeira de panelas sujas, e havia meia forma de pão, coberta de bolor verde, em cima da mesa. Sentia-se também um cheiro adocicado e desagradável, como se alguma coisa estivesse apodrecendo lentamente em um canto escuro. Junto à lareira havia uma cadeira de balanço parecida com a de minha mãe no sítio. Pendurado no espaldar, um xale marrom que parecia estar precisando de uma boa lavada. Fiquei imaginando a quem pertenceria.
— Muito bem, rapaz — disse o Caça-feitiço —, é melhor pormos mãos à obra. Vamos começar aquecendo esta casa velha. Feito isso, pensaremos na limpeza.
Do lado da casa havia um barracão de madeira atulhado de carvão. Eu nem queria pensar como teriam trazido tanto carvão para a ravina. Em Chipenden me mandavam buscar as provisões da semana, e desejei que uma das minhas tarefas ali não fosse ir comprar sacos de carvão.
Havia dois baldes grandes, próprios para carregar carvão, e eu os enchi e levei para a cozinha.
— Sabe como acender um bom fogo de carvão? — perguntou-me o Caça-feitiço.
Confirmei. No inverno, lá no sítio, minha primeira obrigação pela manhã era acender o fogo da cozinha.
— Certo, então. Você cuida desta e eu da outra na sala de visita. Há treze lareiras nesta casa, mas se acendermos seis já conseguiremos aquecer o ambiente.
Uma hora depois, tínhamos conseguido acender os seis fogos; um na cozinha, um na sala de visitas, um no quarto que o Caça-feitiço chamava de escritório no andar térreo, e um em cada um dos três quartos do primeiro andar. Havia mais sete quartos, inclusive um no sótão, mas não nos ocupamos desses.
— Certo, rapaz, já é um bom começo. Agora vamos buscar água — disse o Caça-feitiço.
Cada um levando um jarro grande, saímos pela porta dos fundos e contornamos a casa até a frente, onde o Caça-feitiço continuou em direção ao regato. O regato era tão fundo quanto tinha me parecido à primeira vista, e foi fácil encher os jarrões; e era suficientemente limpo, frio e cristalino para deixar ver as pedras em seu leito. Era um curso de água manso que produzia apenas um murmúrio ao descer pela ravina.
Quando acabei de encher o meu jarro, percebi um movimento no alto. Na realidade, não vi nada; era mais a sensação de estar sendo vigiado, mas quando ergui os olhos até onde a borda escura da rocha encontrava o céu cinzento, não havia nada lá.
— Não olhe para cima, rapaz — repreendeu-me o Caça-feitiço, com uma ponta de irritação na voz. — Não lhe dê esse gosto. Finja que não notou.
— Quem é ele? — perguntei muito nervoso enquanto seguia o Caça-feitiço de volta a casa.
— É difícil dizer. Não olhei, por isso não tenho certeza — respondeu meu mestre, parando de repente e descansando o jarro grande no chão. Então, mudou rapidamente de assunto. — Que achou da casa? — perguntou-me.
Meu pai me ensinara a dizer a verdade sempre que possível, e eu sabia que o Caça-feitiço não era homem de se magoar facilmente.
— Eu prefiro viver no alto do morro do que em uma fenda funda entre as pedras do calçamento como uma formiga — respondi. — Por enquanto, continuo preferindo a sua casa de Chipenden.
— Eu também, rapaz. Eu também. Só viemos porque precisávamos. Aqui estamos bem no limite, no limite das trevas, e é um mau lugar para se passar o inverno. Há coisas na charneca em que não suportamos pensar, mas se não pudermos enfrentá-las, quem poderá?
— Que tipo de coisas? — perguntei, lembrando-me do que minha mãe comentara, mas interessado em saber o que o Caça-feitiço diria.
— Ah, há ogros, feiticeiras, fantasmas e sombras em profusão, e coisas bem piores...
— Como o Golgoth? — arrisquei.
— É, o Golgoth. Sem dúvida, sua mãe lhe contou tudo sobre ele. Acertei?
— Ela mencionou quando falei que estávamos a caminho de Anglezarke, mas não me contou muita coisa. Só que ele, às vezes, desperta no inverno.
— Isso ele faz, rapaz, e lhe darei outras informações em momento mais oportuno. Agora olhe só para aquilo — disse ele, apontando para a grande chaminé com duas fileiras de tubos, de onde subia para o céu uma densa fumaça marrom. Ele espetou o dedo na direção da fumaça. — Estamos aqui para fincar a nossa bandeira, rapaz.
Procurei a bandeira. Só vi fumaça.
— Ou seja, com a nossa presença aqui, estamos dizendo que esta terra pertence a nós, e não às trevas — explicou o Caça-feitiço. — Enfrentar as trevas, principalmente em Anglezarke, é uma tarefa dura, mas é o nosso dever e vale a pena cumpri-lo. Enfim — disse ele, apanhando seu jarro —, vamos entrar e começar a limpar a casa.
Nas duas horas seguintes estive realmente ocupado esfregando, varrendo, lustrando e indo do lado de fora sacudir nuvens de poeira dos tapetes. Por fim, depois de lavar e secar a louça suja, o Caça-feitiço me disse para fazer as camas nos três quartos do primeiro andar.
— Três camas? — perguntei, achando que tinha entendido mal.
— É, são três, e, quando terminar, é melhor lavar os ouvidos para desentupi-los! Anda! Não fique aí boquiaberto. Não temos o dia todo.
Então, dei de ombros e fui fazer o que ele estava mandando. A roupa de cama estava úmida, mas abri os lençóis para que o calor da lareira os secasse. Feito isso, exausto do esforço, desci. Foi quando passei pela entrada do porão e ouvi uma coisa que fez os pelos da minha nuca eriçarem.
Vindo lá de baixo, ouvi uma espécie de suspiro trêmulo seguido quase imediatamente de um gritinho. Esperei no alto da escada, no limiar da escuridão, e apurei os ouvidos, mas o som não se repetiu. Seria imaginação?
Entrei na cozinha e encontrei o Caça-feitiço lavando as mãos na pia.
— Ouvi alguma coisa gritar no porão — disse-lhe. — É um fantasma?
— Não, rapaz, não há mais fantasmas nesta casa, cuidei deles há muitos anos. Não, deve ser a Meg. Sem dúvida, acabou de acordar.
Não tinha certeza se ouvira direito. Ele havia me dito que eu iria conhecer a Meg, e eu sabia que ela era uma feiticeira lâmia e morava em algum lugar de Anglezarke. De certo modo, eu também esperava encontrá-la morando na casa do Caça-feitiço. No entanto, a visão da casa abandonada e fria varrera essa ideia da minha cabeça. Por que ela estaria dormindo lá embaixo, em um porão extremamente frio? A curiosidade me mordeu, mas eu tinha juízo suficiente para não fazer perguntas no momento errado.
Por vezes, o Caça-feitiço estava disposto a responder, me mandava sentar e apanhar o caderno, e encher a caneta de tinta para escrever. Outras vezes, ele simplesmente queria continuar o que estava fazendo no momento, e agora eu via essa expressão decidida brilhando em seus olhos verdes, por isso me calei enquanto ele acendia uma vela.
Desci com ele a escada de pedra para o porão. Não me sentia exatamente apavorado porque meu mestre sabia o que estava fazendo, mas com certeza eu estava muito nervoso. Nunca encontrara uma feiticeira lâmia antes, e embora tivesse lido alguma coisa a esse respeito, eu não sabia o que esperar. E como ela conseguira sobreviver ali, no frio e no escuro, durante a primavera, o verão e o outono? O que havia comido? Lesmas, caramujos e caracóis, como as feiticeiras que o Caça-feitiço prendia em covas?
Quando a escada fez a primeira curva, vi um portão gradeado bloqueando a nossa passagem. Para além, os degraus se tornavam repentinamente bem mais largos, permitindo que até quatro pessoas, lado a lado, pudessem descê-los. Eu nunca vira antes uma escada de porão com degraus tão largos. Não muito distante do portão, pude ver uma porta na parede e me perguntei o que haveria por trás. O Caça-feitiço tirou uma chave do bolso e meteu-a na fechadura. Não era a chave que ele sempre usava.
— É uma fechadura complicada? — perguntei.
— Lá isso é, rapaz. Mais complicada do que a maioria. Se algum dia precisar, costumo guardar a chave no alto da estante mais próxima à porta do escritório.
Ao ser aberta, a porta fez um ruído metálico tão alto que me deu a impressão de ressoar pelas pedras em cima e embaixo e fazer a casa inteira badalar como um enorme sino.
— O ferro impediria a maioria de ultrapassar esse ponto, mas, mesmo que não impedisse, ouviríamos o que estava acontecendo lá em cima. Esse portão é melhor do que um cão-de-guarda.
— A maioria do quê? E por que os degraus são tão largos? — perguntei.
— Primeiro as coisas mais importantes — respondeu com rispidez o Caça-feitiço. — As perguntas e respostas podem vir depois. Primeiro precisamos cuidar de Meg.
À medida que descíamos a escada, comecei a ouvir leves ruídos que vinham do porão. Ouvi um gemido e, em seguida, o que me pareceram leves arranhões, deixando-me ainda mais nervoso. Não levei muito tempo para perceber que havia tantos andares abaixo da casa quanto havia acima: cada vez que a escada fazia uma curva, surgia uma porta de madeira na parede e, na terceira volta, um pequeno patamar com três portas.
O Caça-feitiço parou à frente da porta do meio, então me disse:
— Espere aqui, rapaz. Meg sempre fica um pouco nervosa logo que acorda. Precisamos lhe dar tempo para se acostumar com você.
Dizendo isso, ele me entregou a vela, girou a chave na fechadura e entrou no escuro, fechando a porta ao passar.
Fiquei esperando uns dez minutos, e não me acanho de confessar que aquela escada me deu muito medo. Primeiro, porque quanto mais tínhamos descido mais frio parecia estar fazendo. Depois, porque ouvi outros ruídos assustadores mais embaixo que vinham da próxima curva fora do meu campo de visão. Eram, na maioria, sussurros levíssimos, mas uma vez pensei ter ouvido um gemido distante, como se alguém ou alguma coisa estivesse passando mal.
Percebi, então, ruídos abafados no quarto em que o Caça-feitiço tinha entrado. Meu mestre parecia estar falando baixo mas com firmeza, e, em um momento, ouvi uma mulher chorar. Isso não demorou muito e seguiram-se mais sussurros, como se nenhum dos dois quisesse que eu entreouvisse o que diziam.
Por fim, a porta se abriu com um rangido. O Caça-feitiço apareceu e alguém seguiu-o ao patamar.
— Essa é Meg — disse meu mestre, afastando-se um passo para o lado para eu poder vê-la direito. — Você vai gostar dela, rapaz. Talvez seja a melhor cozinheira de todo o Condado.
Depois de me avaliar de alto a baixo, Meg pareceu intrigada. Encarei-a também absolutamente surpreso. Talvez ela fosse a mulher mais bonita que eu tinha visto na vida, e usava sapatos de bico fino. Quando cheguei a Chipenden, logo na minha primeira aula, o Caça-feitiço me alertara para os perigos de conversar com garotas que usassem sapatos de bico fino. Quer elas soubessem ou não, dissera-me, algumas seriam feiticeiras.
Eu não tinha ligado para o alerta e conversara com Alice, que me metera em todo tipo de encrenca antes de me ajudar a sair delas. No entanto, ali estava meu mestre desconsiderando o próprio alerta! Só que Meg não era uma garota; era uma mulher, e tudo em seu rosto era tão perfeito a ponto de ser impossível parar de fitá-la; seus olhos, seus malares altos, sua pele.
Eram os cabelos, porém, que a traíam. Eram prateados, a cor que se esperaria ver em alguém bem mais velho. Meg não era mais alta que eu e chegava apenas aos ombros do Caça-feitiço. Observando-a mais atentamente, percebi que estivera dormindo durante meses no frio e na umidade; havia fragmentos de teias de aranha em seus cabelos e manchas de mofo em seu desbotado vestido roxo.
Há diferentes tipos de feiticeiras, e eu enchera várias páginas dos meus cadernos com os ensinamentos que o Caça-feitiço me passara a respeito delas. Mas eu tinha descoberto o que sabia sobre lâmias quando lera escondido alguns livros na biblioteca do Caça-feitiço que eu não tinha permissão de consultar.
As lâmias vinham de além-mar e, em sua terra, se alimentavam do sangue dos homens. Sua condição natural recebia a designação de ferina, e nela as lâmias não eram humanas, e tinham escamas cobrindo seus corpos e longas garras nos dedos. Eram, porém, capazes de se transformarem gradualmente, e quanto maior o seu contato com os humanos, tanto mais humana a sua aparência se tornava. Decorrido algum tempo, elas se transformam em “lâmias domésticas”, uma condição em que parecem mulheres humanas, exceto por um fio de escamas verdes e amarelas que corre ao longo de sua coluna dorsal. Algumas até se tornam benévolas em vez de malévolas. Meg teria se tornado boa? Seria essa mais uma razão por que o Caça-feitiço não encerrara seu caso, colocando-a em uma cova, como fizera com a Lizzie Ossuda?
— Muito bem, Meg — disse o Caça-feitiço —, este é o Tom, meu aprendiz. É um bom rapaz; portanto, vocês dois devem se dar muito bem.
Meg me estendeu a mão. Pensei que quisesse apertar a minha, mas, pouco antes de nossos dedos se tocarem, ela deixou cair o braço de repente, como se tivesse se queimado, e em seus olhos surgiu uma expressão preocupada.
— Cadê o Billy? — perguntou com uma voz sedosamente suave mas tocada pela incerteza. — Eu gostava do Billy.
Eu sabia que ela estava se referindo ao Billy Bradley, o aprendiz do Caça-feitiço que morrera e que o servira antes de mim.
— Billy se foi, Meg — o Caça-feitiço explicou gentilmente. — Já lhe disse. Não se preocupe. A vida continua. Agora você terá que se acostumar com Tom.
— Mas é outro nome para eu lembrar — queixou-se Meg tristemente. — Será que vale o esforço quando nenhum deles para muito tempo?
Meg não começou a preparar imediatamente o jantar.
Mandaram-me buscar mais água no riacho e precisei dar mais de dez viagens até Meg ficar satisfeita. Então, usando as duas lareiras, ela começou a esquentar a água, mas para meu desapontamento percebi que não era para cozinhar.
Ajudei o Caça-feitiço a arrastar uma grande banheira de ferro para a cozinha e enchê-la de água quente. Era para Meg.
— Vamos nos retirar para a sala — disse o Caça-feitiço. — Meg precisa ter privacidade. Ela está naquele porão há meses e quer se refrescar.
Resmunguei mentalmente que, se meu mestre não a tivesse trancado lá embaixo, ela poderia ter conservado a casa limpa e arrumada para o seu retorno no inverno. E isso, naturalmente, me levou à pergunta seguinte: por que o Caça-feitiço não a levava para a casa de verão em Chipenden?
— Aqui é a sala de visitas — disse meu mestre, abrindo a porta e me convidando a entrar. — É onde conversamos. É onde recebemos as pessoas que precisam da nossa ajuda.
Ter uma sala de visitas é uma velha tradição no Condado. É o melhor aposento, o mais luxuoso possível e raramente usado, porque está sempre bonito e arrumado para receber visitas. O Caça-feitiço não tinha uma sala de visitas em Chipenden, porque gostava de manter as pessoas afastadas de sua casa. É por isso que elas tinham de ir à encruzilhada onde havia os salgueiros, tocar o sino e aguardar. Aparentemente, as regras ali seriam diferentes.
Em casa, em nosso sítio, não nos preocupávamos em ter uma sala de visitas porque os sete irmãos formavam uma grande família, e também porque quando todos morávamos lá, precisávamos de todos os aposentos para viver. Enfim, minha mãe, que não nasceu no Condado, acha que ter uma sala de visitas é uma ideia muito maluca.
“Para que serve uma bela sala que quase nunca é usada”, dizia sempre. “As pessoas podem falar com a gente onde nos encontrarem.” A sala de visitas do Caça-feitiço não era luxuosa, mas o velho sofá surrado era tão confortável quanto as duas poltronas aparentavam ser, e a sala aquecera bastante, me fazendo sentir sono assim que me sentei. Fora um longo dia e tínhamos andado muitos quilômetros.
Sufoquei um bocejo na garganta, mas não consegui enganar o Caça-feitiço.
— Eu ia lhe dar uma aula de latim, mas é preciso ter a mente alerta para isso — disse ele. — Logo depois do jantar é melhor você ir se deitar, mas acorde cedo amanhã e revise seus verbos.
Assenti.
— E tem mais uma coisa — disse meu mestre, abrindo o armário ao lado da lareira. Tirou dali um garrafão de vidro marrom e ergueu-o no alto para eu ver. — Sabe o que é isso? — perguntou-me, erguendo as sobrancelhas.
Encolhi os ombros, então vi o rótulo na garrafa e li-o em voz alta.
— Chá de ervas.
— Jamais confie no rótulo de uma garrafa. Quero que todos os dias, logo de manhã, você sirva pouco mais de um centímetro em uma xícara, e complete com água bem quente, misture bem e dê a Meg para beber. Depois, quero que fique por perto até ela beber a última gota. Demora um pouco porque ela gosta de bebericar. Essa será a sua principal tarefa do dia. Sempre lhe diga que é o chá de ervas habitual para manter as juntas flexíveis e os ossos fortes. Isso a deixará feliz.
— E o que é? — perguntei.
O Caça-feitiço não respondeu por um momento.
— Como você sabe, Meg é uma feiticeira lâmia — explicou-me, por fim —, mas a bebida a faz esquecer quem é. É uma coisa perigosa e perturbadora a pessoa lembrar quem realmente é, por isso faço votos que isso jamais aconteça com você, rapaz. Será particularmente perigoso para todos nós se Meg lembrar quem é e o que é capaz de fazer.
— É por isso que o senhor a mantém no porão e longe de Chipenden?
— É, seguro morreu de velho. E não posso deixar que as pessoas saibam que ela mora aqui. Ninguém entenderia. Há umas poucas pessoas na aldeia que se lembram do que ela pode fazer, mesmo que ela própria não consiga lembrar.
— Mas como é que ela sobrevive sem comida o verão inteiro?
— No estado ferino, as lâmias podem, às vezes, passar anos sem comer nada além de insetos, vermes ou ocasionalmente uns dois ratos. Mesmo quando estão domesticadas como a Meg, passar fome durante meses não é problema. Além de fazê-la adormecer, uma boa dose da poção contém muitos nutrientes, então Meg não sofre nenhum prejuízo real. Enfim, rapaz, tenho certeza de que vai gostar dela. É uma excelente cozinheira, como você logo descobrirá — disse o Caça-feitiço —, além de ser uma pessoa metódica e asseada. Ela sempre mantém os tachos e panelas limpos e brilhantes como se fossem novos, e os arruma no armário, exatamente como gosta. Faz o mesmo com os talheres. Sempre os organiza na gaveta: facas à esquerda, garfos à direita.
Fiquei imaginando o que ela teria pensado da bagunça que encontramos. Talvez, por isso, o Caça-feitiço estivesse tão ansioso para deixar tudo limpo e em ordem.
— Muito bem, rapaz, já conversamos bastante. Vamos ver como ela está se saindo...
Depois do banho, o rosto de Meg, esfregado até ficar saudavelmente rosado, a fez parecer mais jovem e mais bonita que nunca, e, mesmo com os cabelos prateados, dava para pensar que ela tivesse metade da idade do Caça-feitiço. Agora estava usando um vestido limpo, castanho como a cor dos seus olhos, e fechado nas costas com botões brancos. Era difícil ter certeza, mas eles pareciam feitos de osso! Não quis nem pensar na possibilidade. Se fosse osso, de onde teria vindo?
Para meu desapontamento, ela não preparou o jantar. Como poderia, se não havia mantimentos em casa além da meia forma de pão bolorento?
Tivemos, então, de nos arranjar com o resto do queijo que o Caça-feitiço trouxera para a viagem. Era um bom queijo do Condado, farelento, com uma bela cor amarelada, mas não era minimamente suficiente para satisfazer três pessoas.
Sentamos à mesa da cozinha mordiscando-o lentamente para fazê-lo durar. Conversou-se muito pouco: só o que eu conseguia pensar era no café da manhã.
— Assim que clarear o dia irei buscar os mantimentos da semana — sugeri ao Caça-feitiço. — Devo ir a Adlington ou a Blackrod?
— Fique longe das duas aldeias, rapaz — disse o Caça-feitiço. — Principalmente de Blackrod. Buscar provisões é uma tarefa que você não terá de cumprir enquanto estivermos aqui. Pare de se preocupar. Do que está precisando é dormir cedo; portanto, já para a cama. Seu quarto é o da frente da casa: vá para lá e durma bem. Meg e eu temos coisas a conversar.
Fiz o que me mandava e fui direto para a cama. Meu quarto era bem maior do que o que ele me dera em Chipenden, ainda assim continha apenas uma cama, uma cadeira e uma cômoda muito pequena. Se fosse de fundos, eu não teria podido ver nada exceto a escarpa nua que havia ali. Por sorte era de frente e, no momento em que ergui a janela de guilhotina, ouvi o leve murmúrio do riacho e o gemido do vento passando pela casa. A nuvem cinzenta desaparecera e brilhava uma lua cheia que lançava sua luz prateada no interior da ravina, de onde o riacho a refletia. Ia ser uma noite realmente fria e coberta de geada.
Meti a cabeça para fora da janela para ver melhor. A lua estava bem em cima do rochedo, em frente aos meus olhos, e parecia impossivelmente grande. Recortada contra ela, dava para ver a silhueta de alguém ajoelhado no rochedo espiando para baixo. Em um minuto, a figura desapareceu, mas não antes de eu ter visto que usava um capuz!
Fiquei observando o rochedo por uns momentos, mas a figura não reapareceu. O ar frio começou a invadir o quarto, por isso fechei a janela. Seria Morgan? E se fosse, por que estaria nos espionando? Teria sido Morgan também quem nos observara quando estávamos apanhando água no riacho?
Tirei a roupa e me enfiei na cama. Estava cansado; ainda assim, achei difícil adormecer. A velha casa rangia e gemia muito e, em um dado momento, ouvi algo se deslocando furtivamente próximo aos pés da cama. Provavelmente eram apenas camundongos sob as tábuas do assoalho, mas sendo um sétimo filho, filho de um sétimo filho, era bem possível que eu estivesse ouvindo coisa muito diferente.
Apesar dos ruídos eu finalmente consegui adormecer — acordei, porém, subitamente no meio da noite. Fiquei deitado e inquieto me perguntando por que acordara tão de repente. Estava escuro como breu e eu não conseguia enxergar, mas sentia que havia alguma coisa errada. Tinha ouvido um ruído de algum tipo. Com toda certeza.
Não precisei esperar muito para ouvi-lo novamente. Dois sons distintos que começaram gradualmente e foram crescendo a cada segundo. Um era uma espécie de canto agudo à boca fechada, e o outro um ronco grave e bem mais baixo, como se alguém estivesse rolando pedregulhos por uma escarpa de rocha abaixo.
Só que isso parecia estar acontecendo em algum lugar embaixo da casa, e era tão forte que as vidraças das janelas estavam sacudindo, e até as paredes pareciam estar estremecendo e vibrando. Comecei a sentir medo. Se piorasse mais, a casa toda certamente iria ruir. Eu não sabia o que poderia ser, mas um pensamento cruzou a minha mente. Seria um terremoto fazendo os lados rochosos da ravina tombarem por cima da casa?
SOB A CASA
Os terremotos aconteciam, mas eram muito raros no Condado. Entre os vivos não havia lembrança da ocorrência de algum mais grave. Contudo, a casa estava sacudindo tanto que comecei realmente a me preocupar. Vesti-me, então, ligeiro, enfiei as botas e desci.
A primeira coisa que reparei foi que a porta do porão estava aberta. De lá vinham sons leves, e, sentindo curiosidade, desci alguns degraus. O som grave e prolongado me pareceu ainda mais forte e ouvi distintamente um grito agudo, mais animal do que humano.
Em seguida, o portão bateu e uma chave girou na fechadura. A luz de uma vela bruxuleou na escuridão e passos se aproximaram. Por um segundo tive medo, imaginando quem poderia ser, mas logo avistei o Caça-feitiço.
— Que foi? — perguntei, achando que ele estivesse amarrando alguma coisa lá embaixo.
O Caça-feitiço me encarou com uma expressão assustada no rosto.
— Que está fazendo acordado a uma hora dessas? — quis saber. — Vá andando, volte imediatamente para a cama!
— Achei que tinha ouvido alguém gritar — respondi. — E o que está provocando toda essa agitação? É um terremoto?
— Não, rapaz, não é um terremoto. E não é nada com que deva se incomodar. Tenho mais o que fazer do que responder às suas perguntas. Isso acabará dentro de alguns instantes; portanto, volte para o seu quarto e amanhã cedo lhe conto tudo — disse ele me empurrando escada acima e fechando a porta do porão.
Seu tom de voz indicava que era perda de tempo discutir, por isso voltei para cima, ainda preocupado com o modo com que a casa continuava a sacudir e tremer.
Pois bem, a casa não caiu e, conforme prometera o Caça-feitiço, tudo se aquietou. Consegui voltar a dormir, mas acordei uma hora antes do sol nascer e desci à cozinha. Meg dormia em sua cadeira de balanço e não tive certeza se ela havia passado a noite toda ali ou se descera silenciosamente do seu quarto quando os ruídos começaram. Ela não estava propriamente roncando, mas, cada vez que expirava, emitia um leve assobio.
Cuidando para não fazer barulho demais e acordá-la, acrescentei um pouco de carvão na lareira e logo as labaredas cresceram. Sentei-me, então, em um banquinho ao seu lado e comecei a revisar meus verbos latinos. Trazia comigo dois cadernos; um para anotar tudo que o Caça-feitiço me ensinara sobre ogros e outras criaturas do nosso ofício; e outro para as aulas de latim.
Minha mãe me ensinara grego, o que me poupava o trabalho de estudar esse idioma também, mas eu ainda me atrapalhava para acompanhar o latim, e os verbos, particularmente, me davam uma canseira. Muitos livros do Caça-feitiço estavam escritos em latim; portanto, eu precisava me esforçar muito para aprendê-lo.
Comecei do princípio, com o primeiro verbo que meu mestre repetira até eu assimilar. Ele me ensinara a estudar os verbos latinos seguindo uma espécie de padrão. Isso é importante, porque o final de cada palavra muda dependendo do que a gente está querendo dizer. É também útil recitá-los em voz alta para, como me explicara o Caça-feitiço, ajudar a fixá-los na memória. Eu não queria acordar Meg, por isso mantive a voz pouco acima de um sussurro.
— Amo, amas, amat — eu disse, sem olhar para o caderno, recitando as três palavras que significam eu amo, tu amas, ele ou ela ama.
— No passado amei alguém — disse uma voz da cadeira de balanço —, mas agora nem consigo me lembrar quem foi.
Levei tamanho susto que quase deixei cair o meu caderno e por pouco não caí eu próprio do banquinho. Meg estava olhando para o fogo e não para mim, com uma expressão no rosto em que se mesclavam atordoamento e tristeza.
— Bom-dia, Meg — saudei-a com um sorriso. — Dormiu bem à noite?
— Obrigada por perguntar, Billy — respondeu-me —, mas não dormi nada bem. Houve uma barulheira, e passei a noite tentando me lembrar de uma coisa que não para de dar voltas na minha cabeça. É uma coisa muito veloz e escorregadia, e não consigo captá-la. Mas não desisto facilmente e vou continuar sentada aqui ao pé da lareira até ela voltar à minha lembrança.
Ao ouvir isso me alarmei. E se Meg lembrasse quem ela era? E se percebesse que era uma feiticeira lâmia? Eu precisava fazer alguma coisa depressa antes que fosse tarde demais.
— Não se preocupe, Meg — disse eu, pondo de lado o meu caderno e ficando em pé de um salto. — Prepararei para você um delicioso chá quente.
Depressa enchi a chaleira de cobre com água e pendurei-a no gancho dentro da lareira para o fogo aquecer “seus fundilhos”, como dizia meu pai. Depois, apanhei uma xícara limpa e levei-a comigo para a sala de visitas. Lá, apanhei o garrafão marrom no armário e servi pouco mais de um centímetro da poção na xícara. Feito isso, voltei à cozinha e esperei a chaleira ferver para completar o líquido na xícara até a borda e misturar tudo muito bem, conforme o Caça-feitiço me havia instruído.
— Tome, Meg, é o seu chá de ervas. Vai ajudar a manter suas juntas flexíveis e seus ossos fortes.
— Obrigada, Billy — disse, sorrindo. Ela aceitou a xícara e começou a soprá-la, depois tomou um golinho bem lentamente, ainda olhando para o fogo.
— Está uma delícia — disse depois de algum tempo. — Você é mesmo um rapaz amável. É justamente do que preciso para desenferrujar meus ossos velhos pela manhã...
Fiquei triste ao ouvi-la dizer aquilo. Uma parte de mim não estava satisfeita com o que eu acabara de fazer. Meg passara quase a noite toda tentando lembrar alguma coisa e agora a bebida iria fazer sua memória piorar. Enquanto ela se entretinha curvando-se para frente e bebericando o chá, fui para trás de sua cadeira verificar uma coisa que me incomodara na noite anterior.
Olhei atentamente os treze botões brancos que fechavam seu vestido marrom, do decote à bainha. Naturalmente, eu não podia ter certeza absoluta, mas apenas uma razoável certeza.
Cada botão era feito de osso. Ela não era uma feiticeira que praticava a magia dos ossos; era uma lâmia, um tipo de feiticeira que não era nativa do Condado. Mas aqueles botões me deixavam curioso. Seriam de ossos das vítimas que ela fizera no passado? E por baixo dos botões, por baixo do vestido, eu sabia que, sendo ela uma lâmia doméstica, teria um fio de escamas verdes e amarelas ao longo da espinha dorsal.
Pouco depois, ouvi uma batida na porta dos fundos. Fui atender porque meu mestre ainda estava dormindo depois da noite conturbada que passara.
Havia um homem parado à porta, usando um estranho boné de couro com abas que cobriam suas orelhas. Segurava uma lanterna na mão direita; com a esquerda, conduzia um pequeno pônei carregado com tantos sacos pardos que era de admirar que suas pernas não tivessem dobrado.
— Alô, jovem, trouxe a encomenda do sr. Gregory — disse ele me dando um sorriso contraído. — Você deve ser o novo aprendiz. Era um bom rapaz o Billy, e tive muita pena quando soube do que lhe aconteceu.
— Meu nome é Tom — apresentei-me.
— Muito bem, Tom, muito prazer. Meu nome é Shanks. Pode, por favor, dizer ao seu mestre que trouxe provisões extras e que vou dobrar esse extra a cada semana até o inverno se tornar insuportável. Parece que vai ser um inverno rigoroso e, quando nevar, talvez eu passe muito tempo sem poder subir aqui.
Confirmei com a cabeça, sorri e então olhei para cima. Ainda estava escuro, mas começava a clarear, e a nesga de céu estava praticamente fechada com nuvens cinzentas que sopravam do oeste. Naquele instante, Meg veio se juntar a mim na porta. Parou às minhas costas, mas Shanks, sem dúvida, a viu, porque seus olhos quase saltaram das órbitas e ele logo recuou dois passos, quase colidindo com o pequeno pônei.
Percebi que estava apavorado, mas depois que Meg deu as costas e voltou para dentro, ele se acalmou um pouco e eu o ajudei a descarregar os sacos. Enquanto fazíamos isso, o Caça-feitiço apareceu e pagou ao homem.
Quando Shanks se virou para ir embora, o Caça-feitiço o acompanhou pela ravina mais ou menos uns trinta passos. Começaram a conversar, mas estavam muito longe para eu ouvir cada palavra que diziam. O assunto, no entanto, era Meg, disso eu tinha certeza, porque ouvi-os mencionar seu nome duas vezes.
Ouvi Shanks dizer claramente:
— Você nos disse que tinha dado um jeito nela!
Ao que o Caça-feitiço respondeu:
— Eu a mantenho sob controle, não se preocupe. Conheço o meu ofício muito bem, por isso o problema não lhe diz respeito. E, se tiver juízo, você guardará segredo!
Meu mestre não parecia muito feliz quando voltou para casa.
— Você deu a Meg o chá de ervas? — perguntou desconfiado.
— Fiz exatamente o que me mandou, assim que ela acordou.
— Ela foi lá fora?
— Não, mas chegou à porta e ficou atrás de mim. Shanks a viu e se apavorou.
— É uma pena que a tenha visto — disse o Caça-feitiço. — Ela não costuma se mostrar assim. Pelo menos, não nos últimos anos. Talvez seja preciso aumentar a dose. Como lhe contei ontem à noite, rapaz, Meg causou muitos problemas no Condado. As pessoas tinham medo dela e ainda têm. E, até o momento, os moradores da aldeia não sabiam que ela anda solta pela casa. Se isso transpirar, nunca mais me darão sossego. As pessoas por aqui são teimosas: uma vez que cismam com alguma coisa, não desistem facilmente. Mas Shanks vai ficar de bico calado. Eu lhe pago muito bem.
— Shanks é o merceeiro? — perguntei.
— Não, rapaz, é o marceneiro e coveiro local. A única pessoa, em Adlington, que tem coragem de se arriscar a vir aqui. Eu lhe pago para buscar e entregar as compras.
Depois que guardamos os sacos em casa, o Caça-feitiço abriu o maior e entregou a Meg o que ela precisava para começar a preparar o café da manhã.
O bacon estava melhor do que o que o ogro de estimação do Caça-feitiço fazia, mesmo na melhor das manhãs, e Meg fritara bolos de batatas e ovos frescos mexidos com queijo: meu mestre não tinha exagerado quando dissera que Meg era uma boa cozinheira. Enquanto devorávamos o café da manhã, perguntei-lhe sobre os estranhos ruídos da noite.
— Por ora, não é nada para nos preocupar — respondeu, engolindo mais uma enorme garfada de batata. — Esta casa foi construída sobre um ley, por isso é previsível termos problemas ocasionais. Por vezes, um terremoto a quilômetros de distância causa tremores a uma série inteira de leys. Os ogros podem ser obrigados a mudar do lugar em que sempre moraram satisfeitos. À noite passada, um ogro passou por baixo de nós. Precisei descer ao porão só para ver se tudo continuava bem e trancado.
O Caça-feitiço tinha me ensinado tudo sobre os leys quando estávamos em Chipenden. Havia linhas de força sob a terra, que se assemelhavam a caminhos que os ogros podiam usar para se deslocar rapidamente de um lugar para outro.
— Entenda, isso por vezes é sinal de problemas futuros — continuou ele. — Quando fazem sua morada em um novo local, muitas vezes desandam a fazer travessuras, por vezes travessuras perigosas, o que significa trabalho para nós. Anote o que digo, rapaz, é muito possível que precisemos cuidar de um ogro antes de terminar a semana.
Depois do café da manhã, fomos para o escritório do Caça-feitiço, para a aula de latim. Era um aposento pequeno, com duas cadeiras de espaldar reto, uma mesa grande, um único tamborete de três pernas, soalho nu e várias estantes altas de madeira escura. Era um tanto frio também: do fogo aceso na véspera restavam apenas cinzas na lareira.
— Sente-se, rapaz. As cadeiras são duras, mas não é bom que sejam confortáveis quando se estuda. Você não iria querer cochilar — concluiu ele, olhando-me com severidade.
Corri o olhar pelas estantes a toda a volta. O aposento era sombrio, recebia apenas a luz acinzentada da janela e de umas duas velas, por isso eu não havia reparado até aquele momento que as estantes estavam vazias.
— Onde estão os livros? — perguntei.
— Em Chipenden. Onde poderiam estar, rapaz? Não faz muito sentido guardar livros neste frio e umidade. Os livros não gostam dessas condições. Não, teremos de nos arranjar com o que trouxemos e talvez escrever alguma coisa que nos ocorrer enquanto estivermos aqui. Você não pode passar o tempo todo lendo livros e deixando que os outros os escrevam.
Eu sabia que o Caça-feitiço tinha trazido com ele uma boa quantidade de livros, o que deixara sua bolsa bastante pesada, enquanto eu só trouxera os meus cadernos. Na hora seguinte, lutei para aprender os verbos latinos. Era um trabalho cansativo e fiquei contente quando o Caça-feitiço sugeriu um descanso, mas não com o que se seguiu.
Ele arrastou o tamborete até a estante mais próxima da porta. Subiu nele e tateou a última prateleira com os dedos.
— Muito bem, rapaz — disse, segurando uma chave, seu rosto muito sério. — Não podemos adiar por mais tempo. Vamos descer e dar uma olhada no porão. Mas, primeiro, vamos ver se a Meg está bem. Não quero que saiba que vamos descer. Isso pode deixá-la nervosa. Ela não gosta nem de pensar naquela escada!
Suas palavras provocaram em mim excitação e medo ao mesmo tempo. Tinha andado explodindo de curiosidade para saber o que havia na continuidade da escada, mas ao mesmo tempo sabia que a descida seria tudo, menos uma experiência agradável.
Encontramos Meg ainda na cozinha. Ela lavara a louça e agora estava sentada diante da lareira cochilando.
— No momento está bem feliz — disse o Caça-feitiço. — Além de afetar sua memória, o remédio a faz dormir muito.
Acendemos cada um uma vela antes de descer a escada de pedra, o Caça-feitiço à frente. Desta vez prestei maior atenção ao que me cercava, tentando gravar a parte subterrânea da casa na minha memória. Já havia descido um bom número de porões, mas tinha a sensação de que este seria o mais assustador e incomum de todos.
Depois que o Caça-feitiço destrancou o portão de ferro, virou-se e me deu um tapinha no ombro.
— Meg raramente entra no meu escritório, mas quando ela fizer isso nunca a deixe apanhar esta chave.
Assenti, observando o Caça-feitiço trancar a porta depois de passarmos. Olhei para baixo...
— Por que os degraus embaixo são mais largos? — perguntei mais uma vez.
— Porque precisam ser, rapaz. Apanhamos e levamos coisas para baixo. Os trabalhadores precisam ter um bom acesso...
— Trabalhadores?
— Ferreiros e pedreiros, naturalmente, os artífices de quem dependemos em nosso ofício!
À medida que descíamos, com o Caça-feitiço à frente, a chama da minha vela projetava sua sombra fugidia na parede e, apesar do eco de nossas botas na pedra, ouvi os primeiros ruídos leves que vinham lá de baixo. Percebi um suspiro e uma tosse sufocante ao longe. Decididamente havia alguma coisa ou alguém ali embaixo!
O porão possuía quatro níveis. Os primeiros dois tinham apenas uma porta assentada na pedra, mas por fim chegamos ao terceiro andar, o das três portas que eu vira no dia anterior.
— A do meio, você já sabe, é onde Meg sempre dorme quando estou ausente — disse o Caça-feitiço.
Por enquanto, ela recebera um quarto no primeiro andar junto ao do Caça-feitiço, provavelmente para ele poder vigiá-la — embora, pelo que eu tinha visto na noite anterior, ela preferisse dormir na cadeira de balanço ao pé da lareira.
— Não uso muito os outros — continuou o Caça-feitiço —, mas podem ser bem úteis para trancafiar uma feiticeira em segurança enquanto faço outros preparativos...
— O senhor quer dizer enquanto prepara uma cova?
— É, isso mesmo, rapaz. Você deve ter notado que aqui é diferente de Chipenden. Não tenho o luxo de um jardim, por isso tenho que usar o porão...
O quarto e último nível era o porão em si. Mesmo antes de darmos a última volta na escada e podermos vê-lo inteiramente, ouvi coisas que fizeram a vela tremer na minha mão e a sombra do Caça-feitiço dançar freneticamente nas paredes.
Ouvi murmúrios e gemidos e, pior ainda, um leve som de unhas raspando uma superfície. Sendo o sétimo filho de um sétimo filho, consigo ouvir coisas inaudíveis para a maioria das pessoas, porém, nunca cheguei a me acostumar com esse dom. Há dias em que me sinto mais corajoso, é só o que posso dizer. O Caça-feitiço parecia bastante calmo, mas também tinha feito isso a vida inteira.
O porão era grande, maior do que eu previra; na verdade, tão grande que sua área devia ser maior do que o andar térreo da casa. De uma parede pingava água, e o teto baixo sorava umidade, o que me fez indagar se estaríamos na margem do riacho ou embaixo dele.
A parte seca do teto estava coberta de teias de aranha tão espessas e embaraçadas que devia ser trabalho de um exército de aranhas. Se apenas uma ou duas tivessem tecido aquilo tudo, eu não queria conhecê-las.
Passei muito tempo examinando o teto e as paredes porque queria retardar o momento em que teria de olhar para o chão. Passados alguns segundos, porém, senti o olhar do Caça-feitiço em mim e não me restou outra escolha senão a de baixar finalmente os olhos.
Já vira o que o Caça-feitiço guardava em dois dos seus jardins em Chipenden. Supunha que veria mais da mesma coisa, mas enquanto lá os túmulos e covas tinham sido espalhados entre árvores por onde o sol ocasionalmente se filtrava, salpicando o chão de sombras, aqui havia um número bem maior e eu me senti enclausurado por quatro paredes e um teto baixo repleto de teias.
Era um total de nove túmulos de feiticeiras, cada qual marcado por uma lápide, tendo à frente um metro e oitenta de terra cercado por pedras menores. Presas nessas pedras por parafusos com porcas, e por cima da área de terra, havia treze barras de ferro. Tinham sido colocadas para impedir que as feiticeiras mortas ali embaixo usassem as unhas para chegar à superfície.
Havia, então, ao longo de uma das paredes do porão, lápides maiores e mais pesadas. Eram quatro, e em cada uma o pedreiro gravara exatamente a mesma inscrição:
A letra grega beta informava, a quem soubesse ler os símbolos, que havia ogros seguramente presos sob a lápide, e o número “I” em algarismo romano, no canto inferior direito, indicava que eram de primeira grandeza, criaturas letais capazes de matar um homem mais rápido do que num abrir e fechar de olhos. Até ali nenhuma novidade, pensei, e, sendo o Caça-feitiço competente em seu ofício, não havia nada a temer dos ogros presos no porão.
— Há também duas feiticeiras vivas aqui embaixo — disse o Caça-feitiço —, e essa é a primeira — continuou ele apontando uma cova quadrada e escura com uma cercadura de pedrinhas atravessada por treze barras de ferro para impedi-la de sair. — Olhe para a pedra angular — disse ele, ainda apontando.
Vi então uma coisa que nunca observara antes, nem mesmo em Chipenden. O Caça-feitiço aproximou sua vela para eu poder enxergar melhor. Havia um símbolo, muito menor do que o das lápides dos ogros, seguido pelo nome da feiticeira.
— O símbolo é a letra grega sigma porque classificamos todas as feiticeiras como “S”. Há tantos tipos que, sendo do sexo feminino e sutis, muitas vezes fica difícil classificá-las com precisão — explicou o Caça-feitiço. — Mais do que um ogro, a feiticeira tem uma personalidade que pode mudar com o tempo. Assim, é preciso fazer referência à sua história, a história completa de cada uma, e, amarrada ou não, ela é registrada na biblioteca de Chipenden.
Eu sabia que isso não se aplicara a Meg. Havia muito pouca coisa a seu respeito na biblioteca do Caça-feitiço, mas me calei. De repente, ouvi algo se mexendo na escuridão da cova e recuei rapidamente um passo.
— Bessy é uma feiticeira de primeira grandeza? — perguntei, nervoso, ao Caça-feitiço, porque essas eram mais perigosas e capazes de matar. — Não está gravado na lápide...
— Todas as feiticeiras e ogros neste porão são de primeira grandeza, e por esse motivo amarrei todos, então nem sempre vale a pena o pedreiro ter o trabalho adicional de gravar, mas não há nada a temer, rapaz. A velha Bessy está neste porão há muito tempo. Nós a perturbamos e ela está apenas se virando durante o sono, é só. Agora venha até aqui dar uma olhada nisso...
Era outra cova de feiticeira, igual à primeira, mas de repente estremeci de frio. Algo me disse que o que fosse que houvesse naquela cova era muito mais perigoso do que Bessy, que estava adormecida e procurava apenas se acomodar no chão frio e úmido.
— Seria bom você olhar de perto — disse o Caça-feitiço — para poder ver com o que estamos lidando. Levante a sua vela e espie dentro, mas tenha o cuidado de deixar os pés bem afastados!
Eu não queria fazer aquilo, mas a voz do Caça-feitiço foi firme. Era uma ordem. Olhar no fundo da cova fazia parte do meu treinamento, portanto não havia opção.
Inclinei o corpo para frente, firmando os pés longe das barras, e ergui a vela no alto, fazendo-a lançar uma luz trêmula e amarelada no fundo da cova. Naquele exato momento, ouvi um ruído embaixo, e alguma coisa grande correu pelo chão e foi se esconder nas sombras do canto mais próximo. Parecia infesto de vida, como se pudesse subir mais rápido pela parede da cova do que eu abrir e fechar os olhos.
— Segure sua vela diretamente por cima das barras e olhe bem! — ordenou o Caça-feitiço.
Obedeci, segurando a vela com o braço estendido. A princípio, só pude ver dois grandes olhos cruéis me encarando, dois pontos de fogo refletindo a chama da vela. Quando olhei mais atentamente, vi um rosto magro emoldurado por uma maçaroca de cabelos grossos e oleosos e, embaixo, um corpo atarracado e escamoso. Tinha quatro membros que pareciam mais braços do que pernas, e grandes mãos alongadas que terminavam em garras compridas e afiadas.
Estremeci, e minha mão tremeu tanto, que quase larguei a vela através das barras. Recuei depressa demais e quase caí, mas o Caça-feitiço me segurou pelo ombro e me equilibrou.
— Uma visão nada agradável, não é, rapaz? — murmurou ele, balançando a cabeça. — O que temos aí embaixo é uma feiticeira lâmia. Tinha uma aparência bastante humana há vinte anos quando eu a amarrei aí. Agora retomou a forma ferina. É isso que acontece quando se põe uma lâmia em uma cova. Privada da companhia humana, ela lentamente reverte ao que era. E, mesmo depois de todos esses anos, continua forte. É por isso que tenho o portão de ferro na escada. Se ela conseguisse sair daqui, o portão retardaria a sua fuga.
“E isso não é tudo, rapaz. Como está vendo, a cova normal para feiticeiras não é suficiente para ela. Há barras de ferro dos lados e no fundo da cova também, enterradas no solo. Portanto, ela está realmente em uma jaula. Além disso, há camadas de sal e ferro. Ela é capaz de cavar rápido e fundo com as garras daqueles quatro membros, e essa é a única maneira de impedir que fuja! Enfim, você sabe quem é?”
Era uma pergunta esquisita. Olhei para baixo e li seu nome na lápide.
O Caça-feitiço deve ter visto a expressão no meu rosto quando a ficha caiu, porque sorriu sombriamente.
— É, rapaz. É a irmã de Meg...
— E Meg sabe que ela está aqui embaixo?
— Houve tempo em que soube, rapaz, mas agora não consegue mais lembrar; e é melhor que continue assim. Tenho outra coisa para lhe mostrar.
Ele saiu andando entre as lápides até o canto oposto, que parecia ser o lugar mais seco do porão; o teto no alto tinha poucas teias de aranha. Havia uma cova aberta, pronta para ser usada, e a tampa estava ao lado no chão, à espera de ser puxada para o lugar certo.
Vi então, pela primeira vez, como era feita a tampa para a cova de uma feiticeira. As pedras externas eram cimentadas juntas formando um quadrado que os longos parafusos atravessavam de lado a lado para garantir que não saíssem da posição. As treze barras de ferro eram, na realidade, longos parafusos, apertados com porcas embutidas nas pedras. Era tudo muito engenhoso, e um pedreiro e um serralheiro, trabalhando juntos, precisariam ter muita perícia para executá-las.
De repente, meu queixo caiu e o mantive caído tempo suficiente para o Caça-feitiço notar. Dessa vez não havia nenhum símbolo, mas um nome já fora gravado na pedra angular mais próxima:
Meg Skelton
— Qual dos dois você acha melhor, rapaz? — perguntou o Caça-feitiço. — Chá de ervas ou isso? Porque tem de ser um ou outro.
— Chá de ervas — respondi, minha voz pouco mais do que um sussurro.
— Certo; então, agora você sabe por que não pode se dar ao luxo de esquecer o chá da Meg pela manhã. Se esquecer, ela se lembrará e eu não quero ser obrigado a trazê-la para cá.
Eu tinha uma pergunta e queria fazê-la, mas me contive por saber que o Caça-feitiço não iria gostar. Queria saber por que o que era bom para uma feiticeira não era bom para todas. Contudo, eu sabia que não podia reclamar muito: nunca esqueceria que Alice já estivera bem próxima das trevas. Tão próxima que o Caça-feitiço achara melhor prendê-la em uma cova. Só mudou de ideia porque lhe lembrei que deixara Meg em liberdade.
Naquela noite, achei difícil adormecer. Minha cabeça girava com o que eu tinha visto e a plena consciência do lugar em que estava morando. No passado, eu já vira coisas assustadoras, mas a ideia de morar em uma casa com túmulos de feiticeiras, ogros amarrados e feiticeiras vivas no porão, não me deixavam descansar. Por fim, resolvi descer nas pontas dos pés. Tinha deixado os meus cadernos na cozinha e queria o de latim: sabia que, se passasse meia hora encarando listas cansativas de substantivos, adjetivos e verbos, certamente sentiria sono.
Mesmo antes de chegar ao pé da escada, ouvi ruídos que me surpreenderam. Alguém estava chorando na cozinha e o Caça-feitiço falava em voz baixa. Quando cheguei à porta, não entrei; ela estava entreaberta e vi pela fresta uma coisa que me fez parar imediatamente.
Meg estava sentada na cadeira de balanço junto à lareira. Segurava a cabeça nas mãos e os soluços sacudiam seus ombros. O Caça-feitiço estava curvado para ela, falando brandamente e afagando seus cabelos. Seu rosto, iluminado pela luz da vela, estava voltado para mim, e havia nele uma expressão que eu nunca vira antes. Lembrava muito o jeito com que o rosto grande e anguloso do meu irmão Jack se suavizava ao olhar sua esposa Ellie.
Então, enquanto espiava, vi com assombro uma lágrima escorrer do olho esquerdo do meu mestre e ir descendo pela bochecha até alcançar a sua boca.
Não pude continuar a espreitar, por isso voltei para o quarto e me deitei.
UM MAU-CARÁTER
Em pouco tempo os dias começaram a se acomodar em uma rotina própria. De manhã, as minhas tarefas eram acender as lareiras do térreo e apanhar água fresca no riacho. Em dias alternados, acender todos os fogos da casa para impedir que o lugar ficasse úmido demais. Quando fosse cuidar das lareiras dos quartos, tinha instruções para abrir as janelas durante dez minutos a fim de arejar o aposento. Primeiramente limpava todas as grelhas e, para isso, subia e descia a escada tantas vezes que me sentia feliz ao terminar. A do sótão era a pior, é claro, e eu sempre começava por ela, antes que as minhas pernas ficassem cansadas demais.
O sótão era um quarto realmente grande, o maior da casa, com um piso muito amplo. Tinha apenas uma janela: uma enorme clarabóia no teto. O quarto não era mobiliado, exceto por uma vasta escrivaninha de mogno, que estava fechada à chave. No espelho da fechadura de latão havia em relevo um pentagrama, uma estrela de cinco pontas circunscrita em três círculos concêntricos. Eu sabia que os pentagramas eram usados para proteger os praticantes da magia quando convocavam demônios, por isso me perguntei por que o espelho teria aquele desenho.
A escrivaninha parecia muito cara, então também me perguntei o que haveria nela e por que o Caça-feitiço não a levava para o seu escritório, que seria um lugar muito mais apropriado e onde ela seria mais útil. Nunca cheguei a lhe perguntar a respeito da escrivaninha. E quando, finalmente, falamos nela, já era tarde demais.
Depois de arejar o sótão, eu ia cuidar de cada andar da casa. Os três quartos diretamente sob o sótão não eram mobiliados. Dois ficavam na fachada da frente e um na dos fundos. Este último era o pior e o mais escuro da casa porque nele só havia uma janela abrindo para a face da escarpa. Quando levantei a guilhotina e espiei para fora, a pedra ficava tão próxima que eu quase podia esticar a mão e tocá-la. Havia um ressalto na escarpa com uma trilha que levava para o topo. Deu-me a impressão de que era possível pular da janela para o ressalto. Não que eu fosse bastante doido para experimentar! Um escorregão e espatifaria os miolos nas lajes do calçamento.
Depois de acender as lareiras, eu servia a Meg o chá de ervas e em seguida praticava meus verbos latinos até a hora do café da manhã, que era bem mais tarde do que em Chipenden. Seguiam-se as aulas na maior parte do dia, mas, no fim da tarde, eu saía para dar uma breve caminhada com o Caça-feitiço, não mais que vinte minutos até o fundo da ravina, que se abria para a falda inferior da charneca. Apesar do trabalho pesado de cuidar das lareiras, eu fazia muito mais exercício em Chipenden e estava começando a me sentir inquieto. Toda manhã o ar parecia mais frio, e o Caça-feitiço me informou que logo teríamos a primeira nevada.
Certa manhã, meu mestre foi a Adlington ver Andrew, seu irmão serralheiro. Quando perguntei se podia acompanhá-lo, ele me respondeu que não.
— Não, rapaz, alguém precisa vigiar Meg de perto. Além disso, tenho coisas a conversar com Andrew. Assuntos de família que são particulares. Preciso deixá-lo a par do que está acontecendo...
Imaginei, então, que o Caça-feitiço fosse contar ao irmão a história completa do que nos acontecera em Priestown, quando meu mestre escapara de ser executado na fogueira pelo Inquisidor. Quando regressamos a Chipenden, o Caça-feitiço enviara uma carta ao irmão em Adlington, dizendo que estava são e salvo; provavelmente agora queria contar os detalhes.
Fiquei realmente desapontado de ser deixado para trás — estava desesperado para descobrir como Alice estava se saindo —, mas não tinha opção e, apesar do chá de ervas, Meg realmente exigia que alguém a vigiasse. A maior preocupação do Caça-feitiço era que ela pudesse sair e se afastar da casa, por isso eu precisava garantir que as duas portas, a da frente e a dos fundos, estivessem trancadas. O que aconteceu, no entanto, foi que ela fez algo completamente inesperado...
A tarde ia avançando e eu ficara no escritório do Caça-feitiço passando uma aula para o meu caderno. Mais ou menos a cada quinze minutos eu ia ver se Meg estava bem. Em geral, eu a encontrava cochilando diante da lareira; ou isso ou preparando as hortaliças para o jantar. Dessa vez, quando fui vê-la, ela não estava lá.
Corri primeiro para as portas, só para me certificar, e ambas estavam trancadas. Então, fui olhar na sala de visitas, nada; subi a escada. Esperava encontrá-la no quarto, mas, depois de bater e não receber resposta, experimentei abrir a porta. O quarto estava deserto.
Quanto mais alto eu subia, pior começava a me sentir. Quando vi que o sótão também estava vazio, entrei em pânico. Inspirei profundamente. “Pense!”, disse a mim mesmo. Onde mais Meg poderia estar?
Só havia mais um lugar onde Meg poderia estar — na escada que levava ao porão. Mas não me parecia provável, pois o Caça-feitiço me dissera que o simples ato de pensar na escada a deixava nervosa. Primeiro, verifiquei seu escritório e subi no banco para procurar na última prateleira da estante. Não era possível que ela tivesse apanhado a chave sem eu notar, mas quis confirmar. A chave continuava lá. Com um suspiro de alívio, acendi uma vela e desci a escada do porão.
Ouvi o portão muito antes de alcançá-lo. Sacudia com força, produzindo um estrépito que reverberava por toda a casa. Se não estivesse esperando encontrar Meg ali, teria suposto que alguma coisa subira a escada e estava tentando fugir.
Era, no entanto, a própria Meg. Ela segurava as grades com força e as lágrimas corriam sem parar do seu rosto. À luz da vela, vi-a sacudindo o portão. Pela violência com que o fazia, percebi que ainda era muito forte.
— Vem, Meg — eu disse gentilmente —, vamos voltar para cima. Está frio e venta muito aqui. Se não se cuidar, vai pegar um resfriado.
— Mas tem alguém lá embaixo, Billy. Alguém lá embaixo que precisa de ajuda.
— Não tem ninguém lá embaixo — respondi, consciente da minha mentira. Sua irmã Marcia, a lâmia ferina, estava lá, presa em uma cova. Meg estaria começando a lembrar?
— Tenho certeza de que tem, Billy. Não me lembro o nome dela, mas sei que está lá embaixo e que precisa de mim. Por favor, abra o portão e me ajude. Me deixe descer para dar uma olhada. Por que não vem comigo e traz sua vela?
— Não posso, Meg. Entenda, não tenho a chave para abrir o portão. Venha, por favor. Volte para a cozinha...
— John sabe onde está a chave? — perguntou Meg.
— Provavelmente. Por que não perguntamos a ele quando chegar?
— É uma boa ideia, Billy. Perguntaremos.
Meg sorriu para mim, lavada em lágrimas, e subiu a escada. Levei-a para a cozinha e sentei-a na cadeira de balanço junto à lareira.
— Sente-se aqui e se aqueça, Meg. Vou preparar para você outra xícara de chá de ervas. Vai precisar, depois de ter ficado parada naquela escada úmida...
Meg já bebera a dose habitual daquele dia e eu não queria me arriscar a deixá-la doente, por isso servi um pouquinho na xícara e acrescentei a água quente. Ela me agradeceu; dali a pouco tinha tomado tudo. Quando, finalmente, o Caça-feitiço voltou, ela já adormecera.
Ao saber o que tinha acontecido, ele balançou a cabeça e comentou:
— Não gostei de saber disso, rapaz! De agora em diante, teremos de aumentar a dose matinal para quase dois centímetros no fundo de uma xícara. Não é o que quero, mas não vejo outro jeito.
Sua boca revelava depressão. Eu nunca o vira tão infeliz. Logo, porém, descobri que Meg não era o único motivo.
— Tive notícias ruins, rapaz — disse-me, afundando em uma cadeira junto à lareira. — Emily Burns faleceu. Já está fria na sepultura há mais de um mês.
Não soube o que dizer. Fazia anos que ele tinha vivido com Emily Burns. Desde então, Meg era a mulher de sua vida. Por que estaria tão triste?
— Lamento — disse, sem jeito.
— Mas nem a metade do que eu lamento — respondeu ríspido o Caça-feitiço. — Ela era uma boa mulher, a Emily. Teve uma vida dura, mas sempre fez o máximo que pôde. O mundo será um lugar mais pobre agora que ela se foi! Quando os bons morrem, por vezes libertam um mal que de outra forma continuaria sob controle!
Ia lhe perguntar o que queria dizer com aquelas palavras misteriosas, mas nesse momento Meg começou a acordar e abriu os olhos, por isso ficamos calados e ele não tornou a mencionar Emily.
Ao café da manhã, no oitavo dia de nossa chegada, o Caça-feitiço empurrou seu prato, elogiou Meg pelo talento culinário e se virou para mim.
— Muito bem, rapaz, acho que já está na hora de ir ver como a garota está se saindo. Você saberá chegar lá sozinho?
Confirmei com a cabeça, tentando não sorrir exageradamente, e dez minutos depois eu estava descendo a ravina a passos largos e desembocando na encosta da charneca a céu aberto. Rumei para o norte de Adlington em direção ao Sítio Vista da Charneca, onde Alice estava morando.
Quando o Caça-feitiço tinha resolvido viajar para sua casa de inverno, presumi que o tempo não tardaria a mudar e de fato não parou de esfriar. Hoje, no entanto, as coisas pareciam ter mudado para melhor. Embora fosse uma manhã de frio e geada, o sol estava brilhando, o ar estava límpido e era possível ver quilômetros ao meu redor. Era o tipo de manhã em que a gente se sente feliz por estar vivo.
Alice deve ter visto eu me aproximar ainda no sopé do morro porque veio ao meu encontro. Havia uma pequena mata logo na divisa da propriedade e ela esperou ali à sombra das árvores. Parecia realmente triste, por isso percebi, mesmo antes que falasse, que não estava feliz na nova casa.
— Não é justo, Tom. O Velho Gregory não poderia ter me arranjado um lugar pior para ficar. Não é nada divertido morar com os Hurst.
— É tão ruim assim, Alice?
— Eu estaria melhor em Pendle; só por isso você já pode fazer uma ideia.
Pendle concentrava a maior parte das feiticeiras e da família de Alice. Ela detestava morar lá porque a tratavam mal.
— Eles são cruéis com você, Alice? — perguntei alarmado.
Alice negou com a cabeça.
— Ainda não encostaram a mão em mim. Mas também não falam muito comigo. E não demorei a descobrir por que são tão calados e infelizes. É aquele filho deles, o tal Morgan, por quem o Velho Gregory perguntou. Ele é cruel e mesquinho. Um verdadeiro mau-caráter. Que tipo de filho bateria no pai e gritaria com a mãe até fazê-la chorar? Ele nem chama os dois de pai e mãe. Velho e Velha é o melhor que ouvem dele. Têm medo do filho e mentiram para o Velho Gregory porque o Morgan os visita sempre. Eles têm, têm pavor das visitas. Não tenho nada com isso, mas não dá para suportar muito mais. Se precisar, darei um jeito nele.
— Por enquanto não faça nada. Me deixe falar com o Caça-feitiço primeiro.
— Não acho que ele virá correndo ajudar. Acho que o Velho Gregory fez de propósito. O tal filho é da mesma laia que ele. Usa uma capa com capuz e também carrega um bastão! Provavelmente, o Velho Gregory pediu a ele para me vigiar.
— Ora, Alice, ele não é um caça-feitiço.
— E que mais poderia ser?
— É um dos aprendizes do Caça-feitiço que não se formou, e eles não se toleram. Lembra a última noite em Chipenden quando entrei com aquela carta e o Caça-feitiço ficou realmente zangado? Não tive chance de lhe contar, mas a carta era do Morgan. Estava ameaçando o Caça-feitiço. Disse que meu mestre tem uma coisa que pertence a ele.
— Então é mesmo um mau-caráter — continuou Alice. — E não visita só a casa. Tem noites que desce o morro e vai até o lago. Eu o segui ontem à noite. Ele fica parado na margem, olhando fixo para a água. Às vezes, mexe a boca como se estivesse falando com alguém. A irmã dele se afogou naquele lago, não foi? Acho que fala com o fantasma dela. Nem me espantaria se ele a tivesse afogado!
— E bate no pai? — perguntei. Aquilo tinha me chocado mais do que qualquer outra coisa. Me fez lembrar meu pai, e, só de pensar, senti um nó na garganta. Como alguém poderia levantar a mão para o próprio pai?
Alice confirmou.
— Eles brigaram duas vezes desde que estou lá. Brigas feias. Da primeira vez, o sr. Hurst tentou empurrá-lo para fora da casa e os dois se atracaram. Morgan é muito mais moço e mais forte, e você pode adivinhar quem levou a pior. Da segunda vez, ele arrastou o pai para cima e trancou-o no quarto. O velho começou a chorar. Não gostei daquilo. Lembrei-me do tempo em que morei com a minha família em Pendle. Quem sabe, se você contar ao Velho Gregory a dureza que é aqui, ele me deixe ir morar com vocês.
— Acho que você não vai gostar muito de Anglezarke. O porão está cheio de covas e ele tem lá duas feiticeiras vivas presas, e uma delas é irmã da Meg, uma lâmia ferina. E é apavorante ver como ela corre pela cova. Porém, de quem mais tenho pena é da Meg. Você estava certa. Ela mora na casa com o Caça-feitiço, mas ele a droga com uma poção que a impede de lembrar quem é. Meg passa mais da metade do ano trancada em um quarto na descida para o porão. Realmente dá pena ver. Mas o Caça-feitiço não tem escolha. Ou faz isso ou põe Meg em uma cova, como fez com a irmã dela.
— Não é direito prender uma feiticeira em uma cova. Nunca concordei com isso. Mas eu preferia estar lá com vocês do que ser obrigada a ver Morgan quase todo dia. Me sinto sozinha, Tom. Sinto saudades de você!
— Eu também sinto, Alice, mas no momento não posso fazer nada. De qualquer forma, vou contar ao Caça-feitiço o que você me disse e pedir mais uma vez. Farei tudo que puder, prometo. E o tal Morgan está lá agora? — perguntei, acenando em direção ao sítio.
Alice fez que não com a cabeça.
— Não o vejo desde ontem. Mas, com certeza, vai voltar logo.
Não pudemos continuar a conversar depois disso, porque a sra. Hurst, a mulher do sitiante, apareceu à porta dos fundos e começou a chamar Alice aos berros e ela teve que ir atender.
Alice fez uma careta e ergueu os olhos para o céu.
— Voltarei logo para ver você! — eu disse, quando ela se virou para ir embora.
— Faça isso, Tom. Mas pede ao Velho Gregory, por favor!
Não voltei direto para a casa do Caça-feitiço. Subi ao alto da charneca, para que o vento pudesse arejar minha cabeça. Minha primeira impressão foi que o topo da charneca era muito plano e a paisagem não chegava aos pés da que eu descortinava das serras em Chipenden. E a vista dos campos embaixo não era tão impressionante.
Ainda assim, havia morros mais altos para o sul e o leste, e, para além de Anglezarke, mais charnecas. Havia o morro do Inverno e o de Rivington para o sul, as serras do Smith mais adiante e, para leste, a charneca de Turton e a de Darwen. Eu sabia isso porque estudara os mapas do Caça-feitiço antes de partirmos, e depois tivera o cuidado de dobrá-los corretamente. Portanto, já tinha uma boa ideia da geografia da área na cabeça. Havia muito que explorar e resolvi perguntar ao Caça-feitiço se poderia tirar um dia de folga para fazer isso antes de o inverno realmente chegar. Achei provável que ele concordasse, porque parte do trabalho de um caça-feitiço é conhecer a geografia do Condado para poder se deslocar rapidamente de um lugar para outro e achar o caminho quando alguém mandava buscar sua ajuda.
Continuei a caminhar até ver uma elevação arredondada a distância, bem no alto de uma charneca. Parecia artificial, e imaginei que fosse um túmulo, um monumento funerário a algum líder do passado. No momento em que eu ia me afastando, vi surgir um vulto. Levava um bastão na mão esquerda e usava uma capa com capuz que lhe cobria a cabeça. Só podia ser Morgan!
Seu aparecimento no túmulo foi tão repentino que dava até a impressão de ter se materializado do nada. O bom-senso, no entanto, me dizia que ele simplesmente subira a encosta pelo lado oposto do morro.
Que estava fazendo? Não consegui entender. Parecia uma espécie de dança! Atirava-se para os lados e agitava os braços no ar. Então, inesperadamente, soltou um urro de fúria e atirou o bastão ao chão. Estava furioso. Mas com o quê?
Momentos depois, o vento soprou uma névoa do leste ocultando-o, então continuei minha caminhada. Certamente, não fazia questão de encontrá-lo cara a cara. Sobretudo no mau humor em que estava!
Depois disso, não me demorei muito mais nas charnecas. Enfim, se eu retornasse em tempo razoável, a probabilidade de o Caça-feitiço me deixar rever Alice em breve seria maior. E eu queria estar de volta para lhe contar o que descobrira.
Depois da refeição do meio-dia, contei ao meu mestre que tinha visto Morgan no alto da charneca e o que Alice me dissera a respeito dele.
O Caça-feitiço coçou a barba e suspirou.
— A garota tem razão. Morgan é um mau-caráter, sem sombra de dúvida. Ele se veste como caça-feitiço, e é isso que algumas pessoas crédulas pensam que é. Mas ele não possuía a disciplina necessária para aprender o nosso ofício. Além do mais, era preguiçoso e gostava de cortar caminho. Já faz quase dezoito anos que ele deixou o meu aprendizado e, desde então, não tem feito nada de bom. Ele se acha um mago e tira dinheiro de gente boa e honesta, que é a mais vulnerável. Tentei impedir que ele enveredasse pelo mau caminho, mas parece que tem gente que simplesmente recusa qualquer ajuda.
— Mago? — perguntei, porque não conhecia a palavra.
— É outro nome para mágico ou bruxo, rapaz. Alguém que pratica a chamada magia. E faz umas curas também, mas a especialidade dele é a necromancia.
— Necromancia? Que é isso? — Eu nunca tinha ouvido o Caça-feitiço usar aquele termo antes e percebi que precisaria fazer muitas anotações no meu caderno depois daquela conversa.
— Pense, rapaz. A palavra vem do grego; portanto, você deveria ser capaz de descobrir o que significa.
— Bem, nekros quer dizer “cadáver” — disse eu, depois de pensar bastante. — Então, suponho que tenha a ver com os mortos.
— Muito bem, rapaz! Ele é um mago que usa os mortos para o ajudarem e assim obter poder.
— Como? — perguntei.
— Bem, como você sabe, fantasmas e sombras fazem parte do ofício. Mas enquanto nós temos uma boa conversa com eles para convencê-los a prosseguir viagem, ele faz o contrário. Usa os mortos. Usa-os como espiões. Anima-os a continuar presos à terra, a servir seus objetivos e a encher seus bolsos de dinheiro. Por vezes, enganando pessoas vulneráveis que choram por seus mortos.
— Então ele é um charlatão?
— Não, ele realmente se comunica com os mortos. Portanto, lembre-se de uma coisa, e lembre-se bem: Morgan é um homem perigoso, e suas ligações com as trevas lhe concedem poderes reais e perigosos que devemos temer. E é cruel também, e prejudicaria seriamente quem ficasse em seu caminho. Portanto, fique longe dele, rapaz.
— Por que o senhor não o deteve antes? — perguntei. — O senhor não deveria ter dado um jeito nele há muitos anos?
— É uma longa história. De fato, eu deveria, mas ainda não era hora. Vamos cuidar disso em breve. Procure se manter afastado dele até estarmos prontos, e pare de me dizer como fazer o meu trabalho!
Baixei a cabeça, e meu mestre me deu uma palmadinha no braço.
— Vamos, rapaz, não fiquei aborrecido. Seu argumento é bom. Fico contente de ver que está raciocinando sozinho. E a garota fez bem em surpreender Morgan conversando com o fantasma da irmã. Foi exatamente por isso que a coloquei lá, para ficar de olho em coisas desse gênero!
— Mas isso não é justo! — protestei. — O senhor sabia que Alice ia passar um mau pedaço lá.
— Eu sabia que não iria ser um mar de rosas, rapaz, mas a garota tem que pagar pelo que fez no passado e ela é perfeitamente capaz de se cuidar sozinha. Além disso, depois que eu der um jeito no Morgan, a casa dos Hurst será muito mais feliz. Mas, primeiro, temos que encontrá-lo.
— Alice disse que os Hurst mentiram. Morgan faz muitas visitas ao sítio.
— É mesmo?
— Ela disse que, no momento, ele não está, mas pode voltar inesperadamente.
— Então, é por onde devemos começar a nossa busca amanhã — disse o Caça-feitiço, pensativo.
Ao perceber que o silêncio se prolongava, cumpri a promessa que tinha feito a Alice, embora soubesse que seria perda de tempo pedir.
— Alice não poderia voltar a morar conosco? — perguntei. — Ela realmente está sofrendo muito. É uma crueldade deixar que continue a morar lá quando temos espaço suficiente aqui.
— Por que fazer uma pergunta da qual já sabe a resposta? — interpelou-me o Caça-feitiço com um olhar indignado. — Não seja bonzinho. Se deixar seu coração governar sua cabeça, então as trevas o vencerão em todos os embates. Lembre-se, rapaz: um dia isso poderá salvar sua vida. E já temos muitas feiticeiras morando aqui.
E assim o assunto foi encerrado. Mas não visitamos o sítio dos Hurst no dia seguinte. Aconteceu uma coisa que mudou tudo.
O TACA-PEDRAS
Logo depois do café da manhã, um troncudo filho de sitiante bateu na porta dos fundos com os dois punhos, como se a vida dele dependesse daquilo.
— Que está tentando fazer? seu retardado — gritou o Caça-feitiço, escancarando a porta. — Quebrar a porcaria da porta?
O rapaz parou de bater e seu rosto ficou vermelho vivo.
— Perguntei pelo senhor lá na aldeia — disse ele. — Um carpinteiro saiu da oficina e apontou aqui para cima. Me disse para bater com força na porta dos fundos.
— É, mas ele disse bater e não socá-la até retomar a forma de árvore — respondeu o Caça-feitiço aborrecido. — Afinal, que quer comigo?
— Meu pai me mandou aqui. Disse para o senhor ir lá imediatamente. É um caso feio. Tem um homem morto.
— Quem é seu pai? — perguntou meu mestre.
— Henry Luddock. Moramos no Sítio da Pedra, perto da ravina de Owshaw.
— Conheço seu pai e já trabalhei para ele antes. Por acaso você é William?
— Isso mesmo...
— Muito bem, William, a última vez em que visitei o Sítio da Pedra, você era um bebezinho de colo. Estou vendo que está perturbado, por isso entre e descanse um pouco as pernas. Depois, respire fundo, acalme-se e comece pelo começo. Quero todos os detalhes; portanto, não omita nada — ordenou o Caça-feitiço.
Ao atravessarmos a cozinha para chegar à sala de visitas, não vi sinal de Meg. Quando não estava trabalhando, era normal ela ficar sentada na cadeira de balanço aquecendo as mãos na lareira. Imaginei se estaria fora do caminho porque tínhamos uma visita — o que devia ter feito quando as provisões foram entregues por Shanks.
Uma vez na sala de visitas, William retomou a narrativa dos acontecimentos que tinham começado mal e ficaram muito pior. Aparentemente, um ogro, provavelmente o que meu mestre e eu tínhamos ouvido passar pela ley duas noites antes, se instalara no Sítio da Pedra e começara suas travessuras fazendo barulhos durante a noite. Sacudira os tachos e panelas na cozinha, batera a porta da frente e esmurrara algumas vezes as paredes. Isso bastou para identificá-lo imediatamente segundo as anotações que eu fizera sobre os ogros.
Era um bate-portas; portanto, eu já adivinhara o que viria a seguir na história de William. Na manhã seguinte, o ogro começara a atirar pedras. A princípio, eram apenas pequenos seixos que ele acertava nas janelas, rolava pelas telhas ou deixava cair pela chaminé. Então, as pedras ficaram maiores. Muito maiores.
O Caça-feitiço me ensinara que, por vezes, os bate-portas se transformavam em taca-pedras. E eram ogros mal-humorados e muito perigosos para se enfrentar. O morto era um pastor empregado por Henry Luddock. Seu cadáver fora encontrado na encosta inferior da charneca.
— Ele teve o crânio esfacelado — contou William. — A pedra que fez isso era maior do que a cabeça dele.
— Você tem certeza de que não foi um acidente? — perguntou o Caça-feitiço. — Talvez tenha tropeçado, caído e batido com a cabeça.
— Temos certeza absoluta: ele estava deitado de barriga para cima com a pedra em cima dele. Depois, quando estávamos carregando o corpo, outras pedras começaram a cair à nossa volta. Foi horrível. Pensei que ia morrer. Então, pode ir nos ajudar? Por favor. Meu pai está enlouquecendo de tanta preocupação. Tem trabalho a fazer, mas não é seguro sair de casa.
— Está bem, volte e diga a seu pai que estou a caminho. Quanto ao trabalho do sítio, ordenhem as vacas e façam apenas o que for necessário. Os carneiros podem se arranjar sozinhos, pelo menos até a neve cair; portanto, fiquem longe da encosta.
Depois que William foi embora, o Caça-feitiço se virou para mim e balançou a cabeça, sério.
— É um caso grave, rapaz. Taca-pedras fazem travessuras, mas raramente matam; portanto, este é um patife que pode repetir o que já fez. Cuidei de uns dois iguais antes e acabei, no mínimo, com uma baita dor de cabeça pelo trabalho que tive. É diferente de lidar com um estripa-reses, mas por vezes pode ser igualmente perigoso. Caça-feitiços já foram mortos por taca-pedras.
Eu tinha enfrentado um estripa-reses no outono. O Caça-feitiço adoecera e eu precisei resolver o caso sem ele, auxiliado por um montador e seu ajudante. Tinha sido apavorante, porque estripa-reses matam suas presas. Este também era apavorante, mas de modo diferente. Não havia muito que a pessoa pudesse fazer para se defender de pedregulhos que caíam do céu!
— Muito bem, alguém vai ter que enfrentá-lo! — eu disse com um sorriso, fazendo cara de corajoso.
O Caça-feitiço concordou solenemente.
— Com certeza, rapaz. Então, vamos andando.
Havia uma coisa que era preciso fazer antes de sairmos. O Caça-feitiço me levou de volta à sala de visitas e me disse para apanhar o garrafão com o rótulo “CHÁ DE ERVAS”.
— Prepare outro chá para Meg — disse-me. — Só que desta vez mais forte. Despeje uns cinco centímetros. Isso produzirá o efeito desejado, porque deveremos estar de volta em uma semana.
Fiz o que me mandava, usando, no mínimo, cinco centímetros da infusão escura. Depois fervi a água na chaleira e a despejei na xícara quase até a borda.
— Beba, Meg — disse-lhe o Caça-feitiço, quando lhe estendi a xícara fumegante. — Vai precisar disso porque o tempo vai esfriar mais e talvez faça seus ossos doerem.
Meg sorriu para ele; dez minutos depois, tinha esvaziado a xícara e já estava começando a cabecear. O Caça-feitiço me deu a chave do portão da escada e me disse para ir na frente. Depois, apanhou Meg no colo como se fosse um bebê e me acompanhou sem hesitação.
Destranquei o portão, desci a escada e esperei diante da porta do meio, enquanto o meu mestre entrava no escuro levando Meg. Deixou a porta aberta e pude ouvir cada palavra que ele disse a ela.
— Boa-noite, meu amor. Sonhe com o nosso jardim.
Tenho certeza de que não deveria ter ouvido aquilo, mas acontecera e me senti muito constrangido em ouvir logo meu mestre falando daquele jeito.
E a que jardim estaria ele se referindo? Seriam os jardins em Chipenden? Se eram, desejei que estivesse falando do jardim oeste com a vista das serras. Nos outros dois, com suas covas de ogros e sepulturas de feiticeiras, nem se devia pensar.
Meg não respondeu nada, mas o Caça-feitiço deve tê-la acordado quando saiu e trancou a porta, porque ela começou a chorar como uma criança que tem medo do escuro. Ouvindo-a, o Caça-feitiço parou e aguardou um bom tempo do lado de fora até o choro finalmente cessar e ser substituído por outro ruído mais fraco. Ouvi o assobio que saía por entre os dentes de Meg quando expirava.
— Ela está bem agora — eu disse em voz baixa para meu mestre. — Está dormindo. Estou ouvindo-a ressonar.
— Não, rapaz! — respondeu-me com um dos seus olhares fuzilantes. — Parece mais que está cantando do que roncando.
Pois para mim parecia ronco, e só pude concluir que o Caça-feitiço não admitia nem a mais leve crítica a Meg. Enfim, dito isso, subimos, fechamos o portão e arrumamos nossas coisas para viajar.
Rumamos para leste, penetrando mais fundo na ravina, até ela se estreitar tanto que estávamos quase andando pelo riacho e se ver apenas uma nesguinha de céu cinzento lá no alto. Então, para minha surpresa, chegamos a uns degraus cavados na rocha.
Eram degraus estreitos e íngremes que o gelo deixava escorregadios. Eu levava a pesada bolsa do Caça-feitiço, o que significava que, se escorregasse, só teria uma das mãos livre para me socorrer.
Acompanhando meu mestre, consegui chegar inteiro ao topo e, sem dúvida, a escalada valeu a pena porque eu estava de volta ao ar fresco, com vastos espaços ao meu redor. As rajadas de vento pareciam querer nos empurrar para fora da charneca, e as nuvens escuras e ameaçadoras corriam pelo céu tão próximas de nossa cabeça que davam a impressão de ser possível erguer os braços e tocá-las.
Já contei que, sendo uma charneca, Anglezarke era alta, mas muito mais plana do que as serras que tínhamos deixado em Chipenden. Havia, porém, alguns morros e vales, alguns deles de formas muito estranhas. Entre esses destacava-se um por ser pequeno, redondo e liso demais para ser natural. Quando passamos por perto, reconheci-o subitamente como o túmulo onde vira o filho dos Hurst.
— Foi aqui que vi Morgan — contei ao Caça-feitiço. — Ele estava em pé em cima do túmulo.
— Sem dúvida estava, rapaz. Ele sempre foi fascinado por esse túmulo e simplesmente não consegue ficar longe dele. É chamado de Broa, entende, por causa de sua forma arredondada — explicou-me o Caça-feitiço, apoiando-se no bastão. — Foi construído na antiguidade pelos primeiros homens que chegaram ao Condado, vindos do oeste. Eles desembarcaram em Heysham, como você já sabe.
— Para que serve? — perguntei.
— Poucos têm certeza, mas alguns são doidos o suficiente para arriscar um palpite. A maioria acha que é apenas um túmulo onde descansa um antigo rei com as suas armas e riquezas. Movidos pela cobiça, alguns fizeram escavações profundas, mas nada encontraram que justificasse seu trabalho. Você sabe o que significa a palavra Anglezarke, rapaz?
Balancei a cabeça e estremeci de frio.
— Ora, significa “templo pagão”. A charneca inteira era uma vasta igreja a céu aberto, onde os antigos cultuavam velhos deuses. E, como sua mãe deve ter lhe contado, o mais poderoso desses deuses era Golgoth, cujo nome significa Senhor do Inverno. Este túmulo, dizem alguns, era o seu altar especial. Para começar, ele era uma poderosa força elemental, um espírito da natureza que gostava do frio. Uma vez, porém, foi venerado durante tanto tempo e com tanto fervor, que ficou cheio de si e voluntarioso, ultrapassando, por vezes, o tempo correspondente à sua estação e ameaçando com um ano inteiro de gelo e neve. Alguns chegam a pensar que foi o poder de Golgoth que desencadeou a última Era Glacial. Quem sabe a verdade? Em todo caso, mesmo em pleno inverno, no solstício, temendo que o frio nunca mais terminasse e que a primavera não retornasse, as pessoas faziam sacrifícios para apaziguá-lo. Eram sacrifícios sangrentos, porque os homens nunca aprendem.
— Animais? — perguntei.
— Humanos, rapaz, faziam isso para que, empanturrado e satisfeito com o sangue das vítimas, Golgoth adormecesse profundamente, permitindo a volta da primavera. Os ossos das vítimas ainda existem. Cave em qualquer lugar, em um raio de um quilômetro e meio, e você não tardará a encontrar uma grande quantidade de ossos. Este túmulo é outra coisa que sempre me preocupou com relação a Morgan. Ele não conseguia se afastar daqui e estava sempre interessado em Golgoth, interessado demais para o meu gosto, e provavelmente ainda está. Há gente que pensa que Golgoth poderia ser a chave para a supremacia em magia, e, se um mago como Morgan conseguisse acessar a energia de Golgoth, então o poder das trevas dominaria o Condado.
— E o senhor acha que Golgoth continua a existir em algum lugar da charneca...
— Acho. Dizem que ele dorme em suas profundezas. E é por isso que o interesse de Morgan por Golgoth é perigoso. A questão é a seguinte, rapaz, os velhos deuses permanecem fortes quando são cultuados por gente tola. O poder de Golgoth diminuiu quando esse culto cessou e ele mergulhou em um sono profundo. Um sono do qual não queremos que ele acorde.
— Mas por que as pessoas pararam de cultuá-lo? Pensei que tivessem medo de que o inverno jamais terminasse.
— É, rapaz, é verdade, mas outras circunstâncias, por vezes, são mais importantes. Talvez uma tribo mais forte tenha se mudado para a charneca, trazendo um deus diferente. Ou talvez as safras tenham se perdido e as pessoas tenham precisado migrar para uma área mais fértil. O motivo perdeu-se no tempo, mas agora Golgoth está dormindo. E é assim que eu quero que continue. Portanto, fique longe deste lugar, rapaz; é o meu conselho. E vamos tentar manter Morgan longe daqui também. Agora vamos, não resta muita claridade, por isso temos que nos apressar.
Assim dizendo, o Caça-feitiço se afastou comigo, e, uma hora depois, descemos a charneca e rumamos para o norte, chegando ao Sítio da Pedra antes de anoitecer... William, o filho do sitiante, estava à nossa espera no fim da estrada, e subimos o morro em direção à sua propriedade, quando a luz do dia estava começando a morrer. Antes de visitar o sítio, porém, o Caça-feitiço insistiu que o rapaz o levasse ao lugar onde o corpo fora encontrado.
Uma trilha subia direto do portão dos fundos da propriedade para a charneca, que se recortava escura e ameaçadora contra o céu. Agora que o vento abrandara, as nuvens se deslocavam preguiçosamente e pareciam pesadas de neve.
Mais uns duzentos passos nos levaram a uma ravina muito menor do que aquela em que fora construída a casa do Caça-feitiço, mas não menos sombria e sinistra. Era apenas uma ravina estreita, cheia de lama e pedras, cortada ao meio por um riacho raso e veloz.
Não parecia ter muito que ver ali, mas não me senti à vontade, nem tampouco William. Seus olhos movimentavam-se sem parar, e ele, a todo momento, se virava repentinamente, como se achasse que alguma coisa poderia estar se esgueirando às suas costas. Era engraçado observar, mas eu estava apavorado demais para sequer sorrir.
— Então foi aqui? — perguntou o Caça-feitiço quando William parou.
O rapaz assentiu e indicou um ponto no solo em que os tufos de capim estavam achatados.
— E esse é o pedregulho que tiramos de cima da cabeça dele — informou, apontando para um enorme pedaço de rocha cinzenta. — Foi preciso dois de nós para levantá-lo.
O pedregulho era grande e olhei-o sombriamente, apavorado só de pensar que uma coisa daquela pudesse cair do céu. A visão me fez compreender como um taca-pedras poderia ser perigoso.
Então, inesperadamente, começaram a cair pedras. A primeira foi pequena, e o barulho que fez ao bater no capim foi tão leve que mal ouvi em meio ao borbulhar do rio. Olhei para as nuvens no alto, em tempo de ver uma pedra bem maior caindo e passar de raspão pela minha cabeça. Logo, pedras de todos os tamanhos estavam caindo à nossa volta, algumas suficientemente grandes para nos causar sérios ferimentos.
O Caça-feitiço apontou na direção do sítio com o bastão e, para minha surpresa, começou a descer de volta à ravina. Andamos rapidamente, e me esforcei para acompanhar seu ritmo, sentindo a bolsa pesar mais a cada passo, por causa da lama escorregadia sob meus pés. Só paramos, já sem fôlego, quando chegamos ao terreiro do sítio.
As pedras tinham parado de cair, mas uma delas já fizera um estrago. Deixara um corte na cabeça do Caça-feitiço e o sangue estava escorrendo. Não era sério nem representava uma ameaça à sua saúde, mas vê-lo machucado assim me deixou preocupado.
O taca-pedras tinha matado um homem; contudo, meu mestre — que já passara do vigor da idade — teria que enfrentá-lo. Eu sabia que no dia seguinte ele iria realmente precisar do seu aprendiz. Sabia que seria um dia apavorante.
Henry Luddock nos recebeu muito bem quando chegamos ao sítio. Dali a pouco estávamos sentados em sua cozinha diante de um belo fogo de lenha. Ele era um homem corpulento, jovial, a cara vermelha, que não deixara a ameaça do ogro abatê-lo. Estava triste com a morte do pastor que contratara, mas revelou bondade e consideração conosco, e quis cumprir o papel de anfitrião nos oferecendo um farto jantar.
— Obrigado por sua gentileza, Henry — disse-lhe o Caça-feitiço, recusando educadamente. — É muita bondade sua, mas nunca trabalhamos de estômago cheio. Isso significa procurar encrenca. Mas, por favor, não se acanhe e aproveite seu jantar.
Para meu desânimo, foi exatamente o que a família Luddock fez. Sentou-se e devorou grandes porções de empadão de vitela, enquanto um mísero bocado de queijo amarelo e um copo-d’água para cada um foi o que o Caça-feitiço nos permitiu.
Sentei-me, então, mordiscando o queijo, pensando em Alice naquela casa onde se sentia tão infeliz. Se não fosse esse ogro, o Caça-feitiço talvez tivesse dado um jeito em Morgan e melhorado a vida dela. Porém, com um taca-pedras a enfrentar, quem sabia quando poderia cuidar disso.
Não havia quartos disponíveis na casa dos Luddock, e eu e o Caça-feitiço passamos uma noite desconfortável, enrolados em cobertores no chão da cozinha, junto às brasas do borralho. Com o corpo frio e endurecido, nos levantamos na manhã seguinte muito antes do alvorecer e seguimos para a aldeia mais próxima, Belmont. O caminho todo era uma descida, o que facilitou a nossa ida, mas eu sabia que logo teríamos que refazer cada passo, na árdua subida de volta ao sítio.
Belmont não era muito grande — apenas uma encruzilhada com meia dúzia de casas e a oficina de ferreiro que tínhamos ido visitar. O ferreiro não pareceu muito satisfeito de nos ver, talvez porque o acordamos com as nossas batidas à porta. Ele era grandalhão e musculoso como a maioria dos ferreiros, e certamente não era homem para brincadeiras, mas olhou para o Caça-feitiço preocupado e constrangido. Sabia muito bem qual era o ofício do meu mestre.
— Preciso de um machado novo — disse o Caça-feitiço.
O ferreiro apontou para a parede atrás da forja, onde havia vários machados expostos, ainda toscos mas prontos para receber acabamento.
Meu mestre escolheu depressa, apontando o maior. Era um enorme machado de dois gumes, e o ferreiro mediu meu mestre rapidamente de alto a baixo, como que avaliando se ele seria grande e forte o suficiente para manejá-lo.
Depois, sem perder tempo, fez um aceno com a cabeça, resmungou e se pôs a trabalhar. Fiquei ao lado da forja, observando enquanto ele aquecia, malhava e dava forma ao machado em sua bigorna, e a intervalos mergulhava-o em uma tina de água, produzindo um grande chiado e uma nuvem de vapor.
A marteladas, ele enfiou um longo cabo de madeira na lâmina antes de afiar o machado na mó, as faíscas voando. Ao todo, levou quase uma hora até se dar finalmente por satisfeito e passar o machado ao meu mestre.
— Agora preciso de um escudo de bom tamanho — disse o Caça-feitiço. — Tem que ser bastante grande para proteger nós dois, mas suficientemente leve para o rapaz poder segurá-lo sobre a cabeça com os braços esticados.
O ferreiro pareceu surpreso, mas entrou nos fundos da oficina e voltou com um grande escudo circular. Era feito de madeira com uma moldura de metal. Seu centro era de ferro com um espigão saliente, e o ferreiro o retirou e substituiu por outro de madeira para deixar o escudo mais leve. Então, revestiu o lado externo do escudo com estanho. Segurando-o pelas bordas, eu agora podia erguê-lo acima da minha cabeça com os braços esticados. O Caça-feitiço achou que não estava bom porque eu poderia machucar os dedos e largar o escudo. Então, a tira de couro usual foi substituída por dois puxadores de madeira do lado interno da borda.
— Certo, vamos ver o que você é capaz de fazer — disse o Caça-feitiço.
Ele me mandou segurar o escudo em diferentes posições e em diferentes ângulos, e então, satisfeito, pagou ao ferreiro e saímos em direção ao Sítio da Pedra.
Subimos a serra imediatamente. O Caça-feitiço precisou deixar o bastão para trás porque tinha as mãos ocupadas levando o machado e a própria bolsa. Eu estava brigando para sustentar o escudo pesado, mas contente por ele não me fazer carregar também sua bolsa. Subimos juntos até chegar ao lugar onde o homem morrera. Lá, o Caça-feitiço parou e me fixou um olhar penetrante.
— Agora você precisa ter coragem, rapaz. Muita coragem. E precisamos trabalhar rápido. O ogro está morando embaixo das raízes daquela velha ameixeira-brava lá adiante. Temos que cortar e queimar a árvore para expulsá-lo.
— Como é que o senhor sabe? — perguntei. — Taca-pedras normalmente vivem embaixo de raízes de árvores?
— Moram onde têm vontade de morar, mas, em geral, os ogros gostam de viver em ravinas, e particularmente embaixo de raízes de ameixeiras-bravas. O pastor foi morto na subida dessa ravina. E sei que tem uma ameixeira-brava mais adiante porque foi exatamente onde enfrentei o último ogro. Faz quase dezenove anos, quando o jovem John era apenas um bebê e Morgan era meu aprendiz. Mas temos um problema, aquele ogro cedeu a uma gentil persuasão e se mudou quando lhe pedi, enquanto este é um taca-pedras rebelde que já matou um homem; portanto, as palavras não bastarão.
Então, caminhando para o norte, entramos pelo lado oeste da ravina, o Caça-feitiço à frente, caminhando em passo acelerado: logo, nós dois já estávamos resfolegantes. A lama gradualmente cedeu lugar às pedras soltas, dificultando a caminhada.
De início nos mantivemos colados ao topo da ravina, até que o Caça-feitiço começou a descer o cascalho até chegarmos à margem do riacho. Era raso e estreito, e ainda assim espumava sobre as pedras, descendo com tal força que teria sido difícil atravessá-lo. Continuamos a subir no sentido contrário à correnteza, as margens de cada lado erguendo-se quase verticalmente até deixarem no alto apenas uma nesga de céu visível. Então, apesar do barulho que fazia o riacho, ouvi o primeiro seixo cair na água logo adiante.
Já estava esperando por isso, quando caíram outros, me obrigando a tirar o escudo das costas e tentar segurá-lo sobre nossas cabeças. O Caça-feitiço era mais alto, por isso eu precisava erguer o escudo muito alto; em pouco tempo, meus ombros e braços começaram a doer. Mesmo segurando-o com os braços esticados, o Caça-feitiço foi obrigado a se curvar e nosso avanço se tornou desconfortável para ambos.
Logo depois, avistamos a ameixeira-brava. Não era particularmente grande, mas era uma árvore velha, escura e retorcida, com raízes nodosas que lembravam garras. Erguia-se desafiadora, tendo sobrevivido às piores intempéries por mais de cem anos. Era um bom lugar para um ogro fazer sua casa, especialmente um taca-pedras como aquele, um tipo que evitava a companhia humana e gostava de viver sozinho.
As pedras que caíam começaram a ficar maiores a cada minuto, e, no momento em que chegamos à árvore, uma pedra maior do que o meu punho bateu no escudo e quase me deixou surdo.
— Segure firme, rapaz! — gritou o Caça-feitiço.
Então, as pedras pararam de cair.
— Ali adiante... — Meu mestre apontou e, na escuridão sob os galhos da árvore, vi o ogro começar a tomar forma. O Caça-feitiço me dissera que esse tipo de ogro era, na realidade, um espírito e que não tinha carne, osso e sangue próprios, mas que, por vezes, quando tentava amedrontar as pessoas, ele se revestia de coisas que o tornavam visível aos olhos humanos. Desta vez estava usando as pedras e a lama debaixo da árvore. O entulho subia em uma grande nuvem líquida e rodopiante, e aderia a ele de tal modo que seus contornos podiam ser vistos.
Não era uma visão bonita. Tinha seis enormes braços que, suponho, fossem muito úteis para atirar pedras. Não admira que pudesse arremessar tantas e com tal rapidez. Sua cabeça era igualmente enorme, e seu rosto, coberto de lama, limo e seixos que se mexiam quando nos olhava ameaçadoramente, parecia ter por baixo um terremoto. E havia um corte escuro à guisa de boca e dois grandes buracos negros onde deveriam estar os olhos.
Sem dar atenção ao ogro e sem perder tempo, enquanto as pedras recomeçavam a chover sobre nós, o Caça-feitiço foi direto à árvore, brandindo o machado quando a alcançou. A madeira velha e nodosa era dura, e foram precisos muitos golpes para cortar seus galhos. Eu perdera o ogro de vista, pois estava ocupado demais tentando segurar o escudo no alto e repelir as pedras maiores que vinham em nossa direção. O escudo parecia pesar mais a cada minuto, e meus braços tremiam com o esforço de mantê-lo erguido.
O Caça-feitiço atacou o tronco, golpeando-o com fúria. Entendi, então, por que escolhera um machado com gume duplo: vibrava-o indo e vindo em grandes arcos cortantes, e cheguei a temer pela minha vida. Olhando para ele, ninguém imaginaria que fosse tão forte. Não era nada jovem, mas aprendi então, pelo modo com que o machado de dois gumes afundava na madeira, que, apesar de sua idade e recente fraqueza, ele continuava a ser, no mínimo, tão forte quanto o ferreiro e duas vezes mais do que meu pai.
O Caça-feitiço não cortou a árvore até embaixo; rachou o tronco, pôs de lado o machado e apanhou sua bolsa de couro preto. Não pude ver direito o que estava fazendo porque as pedras recomeçaram a cair com mais força do que antes. Olhei de esguelha e vi o ogro começar a ondular e se expandir: músculos volumosos saltavam por todo o seu corpo como virulentos furúnculos. E, enquanto mais lama e seixos voavam, o ogro quase dobrou de tamanho. Então, duas coisas aconteceram em rápida sucessão.
A primeira foi um pedregulho cair do céu à nossa direita e se enterrar no chão até a metade. Se tivesse nos atingido, o escudo teria sido inútil. Ambos teríamos sido esmagados. A segunda foi que a árvore repentinamente explodiu em chamas. Como já falei, não pude ver como o Caça-feitiço fez aquilo, mas o resultado foi, sem dúvida, espetacular. Com um ruído de deslocamento de ar, a árvore subiu e as labaredas iluminaram o céu, as faíscas estalando em todas as direções.
Quando olhei para a esquerda, o ogro havia desaparecido; então, com os braços trêmulos, baixei o escudo e apoiei a borda no chão. Nem bem tinha feito aquilo, o Caça-feitiço recolheu sua bolsa, apoiou o machado no ombro e, sem dizer palavra ou olhar para trás, começou a descer a serra.
— Vamos, rapaz! — gritou para mim. — Não fique aí parado!
Ergui o escudo e segui-o, sem ao menos arriscar um olhar para trás.
Depois de algum tempo, o Caça-feitiço reduziu o ritmo de sua caminhada e eu o alcancei.
— Foi só isso? — perguntei. — Terminou?
— Na seja boboca! — respondeu ele, balançando a cabeça. — Estamos apenas começando. Este foi o primeiro passo. O sítio de Henry Luddock agora está a salvo, mas o ogro atacará em outro lugar, e muito em breve. O pior ainda está por vir!
Fiquei desapontado porque achei que o perigo tinha passado, e a nossa tarefa, terminado. Na realidade, estava desejando uma refeição quente e gostosa, mas o Caça-feitiço cortara as minhas esperanças; teríamos de continuar a jejuar.
Assim que voltamos ao sítio, ele comunicou a Henry Luddock que se livrara do ogro. O sitiante agradeceu-lhe e prometeu lhe pagar no outono seguinte, logo depois da colheita; cinco minutos mais tarde, estávamos retomando o caminho da casa de inverno do Caça-feitiço.
— O senhor tem certeza de que aquele ogro voltará? Achei realmente que o serviço estivesse terminado — comentei com o Caça-feitiço quando atravessávamos a charneca, o vento soprando em rajadas às nossas costas.
— Na verdade, o serviço está feito pela metade, rapaz, mas o pior ainda está por vir. Da mesma forma que um esquilo enterra bolotas para comer mais tarde, um ogro armazena reservas de energia onde ele mora. Por sorte, ela desapareceu, queimou-se com a árvore. Vencemos a primeira grande batalha, porém, depois de passar alguns dias reunindo suas forças, ele recomeçará a incomodar mais alguém.
— Vamos, então, prendê-lo em uma cova?
— Não, rapaz. Quando um taca-pedras mata com tanta naturalidade, ele precisa ser liquidado para sempre.
— E de onde ele irá tirar novas forças? — perguntei.
— Do medo, rapaz. É como fará. Um taca-pedras se alimenta do medo das pessoas que ele atormenta. Alguma pobre família nas vizinhanças vai ter uma noite de terror. Não sei aonde ele irá ou quem escolherá; portanto, não há nada que eu possa fazer nem aviso que eu possa dar. É uma das coisas que temos de aceitar. Como, por exemplo, matar aquela velha árvore, coitada. Eu não queria destruí-la, mas não tive escolha. O ogro continuará a se deslocar reunindo forças, e, dentro de uns dois dias, ele terá encontrado uma nova morada permanente. E, então, alguém virá nos pedir ajuda.
— Por que o ogro se tornou malévolo? — perguntei. — Por que matou?
— Por que as pessoas matam? Algumas matam e outras não. E algumas, que começam bem, acabam mal. Calculo que esse taca-pedras se cansou de ser apenas um bate-portas e de se esconder perto das casas, amedrontar gente com batidas e rondar a noite. Ele quis mais: quis toda a encosta do morro só para ele e planejou expulsar do sítio o coitado do Henry Luddock e sua família. Mas, agora que destruímos sua morada, precisará de outra. Portanto, vai se deslocar pelo ley.
Assenti.
— Bem, talvez isso o alegre — disse ele, tirando um pedaço de queijo amarelo do bolso. Partiu um pedacinho e me deu. — Mastigue isso, mas não engula tudo de uma vez.
De regresso à casa do Caça-feitiço, tiramos Meg do porão e a levamos para cima, e me acomodei outra vez à rotina de tarefas e aulas. Mas com uma grande diferença. Como estávamos esperando que o ogro criasse problemas, o jejum permaneceu. Era uma tortura para mim observar Meg cozinhando suas refeições enquanto passávamos fome. Tivemos três dias inteiros de jejum até meu estômago achar que eu não tinha mais garganta, mas finalmente, por volta do meio-dia do quarto dia, ouvimos fortes batidas na porta dos fundos...
— Muito bem, vá ver quem é, rapaz! — mandou o Caça-feitiço. — Com certeza, são as notícias que estávamos esperando.
Obedeci, mas, quando abri a porta, para meu espanto, encontrei Alice aguardando.
— O velho sr. Hurst me mandou — disse ela. — Estamos com um problema de ogro na Vista da Charneca. Então? Não vai me convidar a entrar?
O RETORNO DO TACA-PEDRAS
O Caça-feitiço tinha acertado em sua previsão, mas ficou tão surpreso quanto eu quando conduzi a nossa visitante à cozinha.
— O ogro foi parar no sítio dos Hurst — informei-o. — O sr. Hurst está pedindo ajuda.
— Venha à sala de visitas, garota. Conversaremos lá — disse ele, virando-se para indicar o caminho.
Alice sorriu para mim, mas não antes de lançar um rápido olhar a Meg, que estava de costas para nós e aquecia as mãos no fogo.
— Sente-se — disse meu mestre a Alice, fechando a porta da sala. — Agora me conte tudo. Comece pelo princípio e não se apresse.
— Não tenho muito que contar — começou Alice. — Tom me falou o suficiente sobre ogros para eu ter certeza de que é um taca-pedras. Faz alguns dias que está atirando pedras no sítio; nem é seguro a gente sair. Arrisquei minha vida só para vir buscar vocês. O terreiro está cheio de pedregulhos. Quase não sobraram vidraças inteiras, e ele já derrubou três canos da chaminé. É de admirar que ninguém tenha se machucado.
— Morgan não tentou resolver o problema? — perguntou o Caça-feitiço. — Ensinei-lhe noções básicas para lidar com ogros.
— Faz dias que não o vejo. Já foi tarde!
— Parece que é a notícia por que estávamos esperando — comentei.
— É, acho que sim. É melhor você preparar o chá de ervas. Forte como da última vez.
Levantei-me, abri o armário ao lado da lareira e apanhei o garrafão de vidro marrom. Quando me virei, vi a censura no rosto de Alice. O Caça-feitiço também viu.
— Sem dúvida, como sempre, o rapaz andou comentando com você os meus assuntos particulares. E você já deve saber o que ele vai fazer e por que é necessário. Portanto, não faça essa cara!
Alice não respondeu, mas me acompanhou à cozinha e me observou preparar o chá de ervas enquanto o Caça-feitiço ia ao escritório atualizar seu diário. Quando terminei, Meg estava cochilando na cadeira de balanço, por isso precisei acordá-la gentilmente, sacudindo-a pelo ombro.
— Tome, Meg — disse-lhe, quando abriu os olhos. — Tome o seu chá de ervas. Beba com cuidado para não queimar a boca...
Ela aceitou a xícara, mas contemplou-a pensativa.
— Eu já não tomei o meu chá hoje, Billy?
— Precisa tomar mais um pouco, Meg, porque o tempo está ficando cada dia mais frio.
— Ah! Quem é a sua amiga, Billy? Que garota bonita! Que lindos olhos castanhos!
Alice sorriu quando ela me chamou de “Billy” e se apresentou.
— Sou Alice e costumava morar em Chipenden. Agora estou morando em um sítio perto daqui.
— Ora, venha nos visitar sempre que quiser — convidou Meg. — Não tenho muita companhia feminina ultimamente. Ficaria satisfeita de ver você.
— Beba o seu chá, Meg — interrompi-a. — Aos pouquinhos, enquanto está quente. Assim será melhor para você.
Meg começou, então, a bebericar a poção, e dali a pouco bebera tudo e começara a cochilar.
— É melhor descer logo com ela para o frio e a umidade! — disse Alice com uma ponta de amargura na voz.
Não tive chance de responder porque o Caça-feitiço saiu do escritório e ergueu Meg da cadeira. Levei a vela e destranquei o portão, enquanto ele a carregava para o quarto no porão. Alice ficou na cozinha. Cinco minutos depois de subirmos, os três já estávamos a caminho.
O Sítio Vista da Charneca tinha sido bastante castigado. Tal como Alice descrevera, o terreiro estava cheio de pedras e quase todas as vidraças estavam partidas. A janela da cozinha era a única intacta. A porta da frente estava trancada, mas o Caça-feitiço usou sua chave e, em segundos, abriu-a. Procuramos os Hurst e os encontramos escondidos no porão; do ogro não havia sinal.
O Caça-feitiço não perdeu tempo.
— Vocês terão que sair daqui imediatamente — disse ao velho sitiante e a sua mulher. — Receio que não haja outro jeito. Ponham o essencial em uma mala e partam. Deixem que eu faço o que for preciso.
— Mas aonde iremos? — perguntou a sra. Hurst, quase às lágrimas.
— Se ficarem, não posso garantir suas vidas — respondeu asperamente o Caça-feitiço. — Vocês têm parentes em Adlington. Terão que se hospedar com eles.
— Em quanto tempo poderemos voltar? — perguntou o sr. Hurst. Estava preocupado com sua subsistência.
— No máximo em três dias — respondeu o Caça-feitiço. — Não se preocupe com o sítio. O meu rapaz cuidará do que for necessário.
Enquanto arrumavam a mala, meu mestre me mandou fazer o maior número possível de tarefas no sítio. Tudo estava em silêncio; não havia pedras caindo e, aparentemente, o ogro estava descansando. Então, aproveitando ao máximo o momento, comecei a ordenhar as vacas; estava quase escuro quando terminei. Assim que entrei na cozinha, encontrei o Caça-feitiço sentado à mesa sozinho.
— Cadê Alice? — perguntei.
— Foi com os Hurst, aonde mais iria? Não podemos ter uma garota nos atrapalhando quando há um ogro para enfrentar.
Eu estava realmente cansado, por isso não me dei ao trabalho de discutir. Desejara que ele tivesse deixado Alice ficar.
— Sente-se e pare de fazer essa cara mal-humorada, rapaz. Assim vai acabar talhando o leite. Precisamos nos preparar.
— Onde está o ogro agora? — perguntei.
O Caça-feitiço encolheu os ombros.
— Descansando embaixo de uma árvore ou de um pedregulho, suponho. Agora que escureceu, ele não irá demorar a chegar. Os ogros podem agir durante o dia e, como descobrimos às nossas custas lá na serra, ele certamente se defenderá se for provocado. Mas a noite é o período que preferem e é quando têm maior força. Se é o mesmo ogro que enfrentamos no Sítio da Pedra, provavelmente a coisa vai ficar feia. Primeiro, porque ele vai se lembrar de nós assim que se aproximar e vai querer se vingar pelo que lhe fizemos. Quebrar janelas e derrubar canos de chaminé não será suficiente. Ele tentará arrasar esta casa conosco dentro. Portanto, será uma luta mortal. Ainda assim, rapaz, anime-se — disse ele, ao perceber minha expressão preocupada. — É uma casa velha, mas foi construída com boas pedras do Condado sobre fundações muito sólidas. Os ogros, em sua maioria, são mais burros do que parecem, por isso ainda não morremos. Precisamos apenas enfraquecê-lo mais. Vou me oferecer como alvo. Quando tiver minado as forças dele, você o liquidará com sal e ferro; portanto, vá encher seus bolsos, rapaz, para estar preparado!
Sozinho eu já usara aquele velho recurso do sal e do ferro quando precisei enfrentar a velha feiticeira Mãe Malkin. As duas substâncias combinadas eram muito eficazes contra as trevas. O sal queimaria o ogro e o ferro drenaria sua energia.
Fiz o que o meu mestre mandou: enchi os bolsos com o sal e o ferro que ele trouxera em saquinhos na sua bolsa.
Pouco antes da meia-noite, o ogro atacou. Fazia horas que vinha se formando uma grande tempestade, e os primeiros roncos distantes tinham cedido lugar ao estrondo dos trovões sobre a casa e a verdadeiros lençóis de relâmpagos. Estávamos na cozinha, sentados à mesa, quando tudo começou.
— Aí vem ele — murmurou o Caça-feitiço, sua voz tão baixa que parecia estar falando mais para si do que para mim.
E estava certo: uns dois segundos depois, o ogro desceu a serra, rugindo ameaças, e avançou contra a casa. Dava a impressão de que um rio tinha rompido as margens e se precipitado contra nós.
A janela da cozinha estourou para dentro, espalhando cacos de vidro para todo lado, e a porta dos fundos abaulou como se um grande peso a forçasse por fora. Depois, a casa inteira sacudiu como uma árvore na tempestade, inclinando-se primeiro para um lado e depois para o outro. Sei que isso parece impossível, mas juro que aconteceu.
Em seguida, ouvi estalos e rachaduras no alto e as telhas começaram a voar do telhado e se espatifar no terreiro do sítio. Então, por alguns segundos, tudo parou e silenciou, como se o ogro estivesse descansando ou pensando no que mais iria fazer.
— Está na hora de acabar com isso, rapaz — disse o Caça-feitiço. — Fique aqui e observe pela janela. As coisas vão ficar feias lá fora, pode ter certeza.
Achei que as coisas já estavam bem feias, mas não disse nada.
— Haja o que houver, custe o que custar — continuou meu mestre —, não saia. Só use o sal e o ferro quando o ogro entrar na cozinha. Se usar lá fora com esse tempo, ele não sofrerá o impacto pretendido. Vou atrair o ogro para dentro de casa. Portanto, esteja preparado.
O Caça-feitiço destrancou a porta e, empunhando o bastão, saiu para o terreiro. Ele era o homem mais corajoso que eu conhecera na vida. Tenho certeza de que não gostaria de encarar aquele ogro no escuro.
Estava um breu no terreiro e todas as velas na cozinha tinham se apagado. Ficar imerso em total escuridão era a última coisa que eu queria, mas felizmente ainda tínhamos um lampião. Levei-o para perto da janela, embora sua luz não iluminasse bem o terreiro. O Caça-feitiço estava a alguma distância, por isso continuei sem visão do que estava ocorrendo e precisando depender do clarão dos relâmpagos.
Ouvi o meu mestre bater no lajeado três vezes com o bastão, então, soltando um urro, o ogro avançou para ele, atravessando o terreiro da esquerda para a direita. Em seguida, ouvi uma exclamação de dor e um ruído semelhante ao de um galho partindo. Quando o relâmpago tornou a brilhar, vi o Caça-feitiço de joelhos, as mãos erguidas à frente, tentando proteger a cabeça. Seu bastão caíra no chão, a certa distância, partido em três pedaços.
No escuro, ouvi pedras baterem nas lajes perto do Caça-feitiço e mais telhas despencarem do telhado sobre ele. Meu mestre gritou de dor, talvez umas duas ou três vezes, e, apesar de ter recebido ordem para observar da janela e aguardar o ogro entrar, fiquei pensando se não deveria sair e tentar ajudar. Meu mestre estava passando um aperto e parecia evidente que iria levar a pior. Espiei para o escuro lá fora, tentando enxergar o que estava ocorrendo, na esperança de que um novo relâmpago iluminasse o terreiro. Simplesmente não conseguia ver o Caça-feitiço. Então, a porta dos fundos rangeu e começou a se abrir muito lentamente. Aterrorizado, afastei-me, recuando até minhas costas baterem na parede. O ogro estaria vindo me pegar agora? Pousei o lampião em cima da mesa e me preparei para enfiar as mãos nos bolsos e apanhar o sal e o ferro. Devagar, um vulto escuro cruzou a entrada da cozinha e congelei, petrificado, então voltei a respirar ao reconhecer o Caça-feitiço de quatro. Tinha engatinhado em direção à porta, protegido pela sombra de uma parede. Por isso eu não conseguira vê-lo.
Corri para ele, bati a porta e ajudei-o a chegar à mesa. Foi trabalhoso, porque todo o seu corpo parecia tremer, e ele não aparentava muita firmeza em suas pernas. Estava um horror. O ogro o ferira gravemente; o sangue cobria seu rosto e havia em sua testa um enorme calombo, do tamanho de um ovo. Ele se apoiou com as duas mãos na borda da mesa, procurando se manter em pé. Quando abriu a boca para falar, vi que perdera um dente da frente. Estava uma lástima.
— Não se preocupe, rapaz — disse rouco. — Nós o botamos para correr. Não lhe sobrou muita energia e agora é hora de liquidá-lo. Prepare-se para usar o sal e o ferro, mas, haja o que houver, não erre a pontaria.
“Botá-lo para correr” significava que o Caça-feitiço se oferecera como alvo, o ogro gastara muita energia para tentar destruí-lo e agora se achava bem mais fraco. Mas quanto era esse mais fraco? O ogro continuava muito perigoso.
Naquele mesmo instante, a porta se escancarou e dessa vez o ogro realmente entrou. Relampejou e vi sua cabeça redonda e os seis braços empastados de lama. Havia, porém, uma diferença: ele parecia muito menor. Perdera um pouco de sua energia; o Caça-feitiço não sofrera em vão.
Com o coração disparado e os joelhos trêmulos, adiantei-me para enfrentar o ogro. Enfiei as mãos nos bolsos, enchi-as de sal e ferro, e lancei seu conteúdo direto contra a criatura. O sal na mão direita; o ferro, na esquerda.
Apesar do que lhe custara, o Caça-feitiço tinha feito tudo que os livros recomendavam. Primeiro, queimara a árvore do ogro, consumindo seu estoque de energia. Depois, oferecera-se como alvo em campo aberto, minando ainda mais a força da criatura. Eu teria, no entanto, que terminar o serviço dentro de casa. E não podia errar.
Havia apenas uma corrente de ar entrando pela janela e outra pela porta aberta, e a minha pontaria era boa. A nuvem de sal e ferro atingiu o ogro em cheio. Ouviu-se um berro tão alto e agudo que chegou a me doer os dentes e quase estourou meus tímpanos. O sal estava queimando a criatura, o ferro exaurindo a energia que lhe restava. No momento seguinte, o ogro desapareceu.
Fora-se. Desaparecera para sempre. Eu o liquidara.
Meu alívio, entretanto, não durou muito. Vi o Caça-feitiço cambalear e percebi que estava prestes a cair. Tentei alcançá-lo — tentei realmente. Cheguei, porém, tarde demais. Seus joelhos dobraram, ele soltou a mesa e caiu para trás, batendo a cabeça com violência na laje da cozinha. Tentei levantá-lo, mas ele era um peso morto, e reparei, para meu pesar, que seu nariz estava sangrando muito.
Comecei a entrar em pânico. De início, não consegui ouvir sua respiração. Por fim, percebi o ar vibrando levemente em sua garganta. O Caça-feitiço estava seriamente ferido e precisava com urgência de um médico.
PRENÚNCIOS DA MORTE
Desci o morro correndo até a aldeia, sob uma chuva torrencial; trovões ribombavam no alto e raios fulgurantes bifurcavam-se no céu.
Não fazia a menor ideia de onde morava o médico e, desesperado, bati na primeira porta a que cheguei. Não obtive resposta, então soquei a seguinte com os punhos. Quando nem assim obtive resposta, lembrei-me que o irmão do Caça-feitiço, Andrew, tinha uma oficina em algum lugar na aldeia. Continuei a correr mais um pouco em direção ao centro, tropeçando nas pedras do calçamento e metendo os pés nas corredeiras de chuva que cascateavam morro abaixo.
Levei muito tempo para encontrar a oficina de Andrew. Era menor do que a que ele alugara em Priestown, mas ficava bem situada, na alameda Babylon, exatamente na esquina onde pareciam ficar as principais lojas da aldeia. O clarão de um relâmpago iluminou o letreiro sobre a janela:
ANDREW GREGORY
MESTRE SERRALHEIRO
Bati com força na janela da oficina, usando os nós dos dedos, e, quando não ouvi resposta, segurei a maçaneta da porta e sacudi-a violentamente, sem sucesso. Ocorreu-me que Andrew talvez estivesse ausente fazendo um serviço em algum lugar. Talvez estivesse passando a noite em outra aldeia. Então, ouvi erguerem a janela de guilhotina de um aposento no primeiro andar da loja vizinha e uma voz masculina aborrecida gritar para fora.
— Fora! Suma daqui! Está achando que pode fazer essa barulheira, altas horas da noite, quando as pessoas decentes precisam dormir?
— Preciso de um médico — gritei para o retângulo escuro da janela. — É urgente. Um homem pode estar morrendo!
— Pois então está perdendo o seu tempo! Isto aqui é uma oficina de serralheiro.
— Trabalho para o irmão de Andrew Gregory. Ele mora na casa da ravina, na borda da charneca. Sou aprendiz dele!
O relâmpago tornou a brilhar e vi momentaneamente o rosto no alto e o medo que se estampou nele. Era provável que a aldeia inteira soubesse que o irmão de Andrew era um caça-feitiço.
— Tem um médico que mora na rua Bolton a uns noventa metros para o sul.
— Onde fica a rua Bolton? — indaguei.
— Desça o morro até a encruzilhada e vire à esquerda. É a rua Bolton. Continue andando. É a última casa!
Dito isso, bateu a janela, mas não me incomodei: tinha a informação de que precisava. Desci o morro desembalado, virei à esquerda, continuei correndo, resfolegando, e logo estava batendo na porta da última casa.
Os médicos estão acostumados a serem acordados no meio da noite para atender urgências, e esse não demorou muito para abrir a porta. Era um homem franzino com um bigodinho preto e fios grisalhos nas têmporas. Segurava uma vela e balançava a cabeça enquanto me ouvia, parecendo muito calmo e objetivo. Disse-lhe que o homem ferido estava no Sítio Vista da Charneca, mas quando lhe expliquei quem precisava de atendimento e por quê, sua atitude mudou e a vela começou a tremer em sua mão.
— Pode ir que seguirei assim que puder — respondeu-me, fechando a porta na minha cara.
Tomei a direção da charneca, mas fiquei preocupado. O médico parecia visivelmente amedrontado com a perspectiva de tratar um caça-feitiço. Faria o que tinha prometido? Realmente seguiria para o sítio? Se não o fizesse, o Caça-feitiço poderia morrer. Pelo que eu sabia, poderia até já ter morrido, e com o coração pesado subi o morro o mais rápido que pude. Nessa altura, o pior da tempestade já se deslocara e só se via um relâmpago ocasional e se ouviam roncos distantes da trovoada sobre a charneca.
Eu não precisava ter me preocupado com o médico. Cumpriu sua palavra e chegou ao sítio uns quinze minutos depois de mim.
Não se demorou lá, porém. Quando examinou o Caça-feitiço, suas mãos tremiam tanto que não foi preciso muito mais que a expressão do seu rosto para eu saber que ele estava aterrorizado. Ninguém gosta de chegar perto de um caça-feitiço. Contara-lhe também o que ocorrera no terreiro e na cozinha, o que só fez piorar a situação. Ele não parava de olhar para os lados, como se estivesse esperando ver um ogro se aproximar para atacá-lo. Eu teria achado graça se não me sentisse tão triste e preocupado.
Ele me ajudou, no entanto, a carregar o Caça-feitiço para cima e a deitá-lo na cama. Encostou o ouvido no peito do meu mestre e escutou com atenção. Quando se endireitou, balançou a cabeça.
— A pneumonia está começando a afetar os pulmões dele — disse-me, por fim. — Não há nada que eu possa fazer.
— Ele é forte! — protestei. — Vai melhorar.
O homem se virou para mim com uma expressão que eu já vira no rosto de outros médicos. Era um ar profissional em que se mesclavam a compaixão e a calma, a máscara que usavam para dar à família as más notícias sobre um doente grave.
— Receio que o prognóstico seja muito ruim, garoto — disse ele, dando-me uma palmadinha gentil no ombro. — Seu mestre está morrendo; é pouco provável que sobreviva a esta noite. Mas, no fim, a morte chega para todos nós e temos que aceitá-la. Você está sozinho?
Confirmei.
— Vai ficar bem?
Tornei a confirmar.
— Bem, vou mandar alguém aqui pela manhã — disse ele, apanhando sua maleta e se preparando para partir. — Ele precisará ser lavado — acrescentou agourentamente.
Eu sabia o que isso queria dizer. Era uma tradição do Condado lavar os mortos antes de enterrá-los. Sempre me parecera uma ideia maluca. Que adiantava lavar alguém que ia acabar em um caixão embaixo da terra? Fiquei indignado e quase lhe disse isso, mas consegui me controlar e fui me sentar ao lado da cama, atento ao Caça-feitiço, que respirava com dificuldade.
Meu mestre não podia estar morrendo! Eu me recusava a acreditar. Como poderia morrer depois de tudo por que passara? Eu não estava preparado para aceitar seu fim. Com certeza, o médico estava enganado. Mas, por mais que eu tentasse me convencer de que ele se enganara, comecei a me desesperar. Lembrei-me do que minha mãe me havia dito sobre os prenúncios da morte. Lembrei-me do cheiro no quarto do meu pai, aquele fedor de flores que minha mãe explicara que era um sinal da aproximação da morte. Eu herdara seu dom e sentia o tal odor que se desprendia do Caça-feitiço e se intensificava a cada minuto.
Quando clareou, porém, ele continuava vivo, e a mulher que o médico mandara para banhar seu corpo não conseguiu esconder o desapontamento em seu rosto.
— Só posso ficar até o meio-dia. Tenho outro para preparar hoje à tarde! — avisou rispidamente, mandando-me apanhar um lençol, rasgá-lo em sete tiras e trazer uma tigela de água fria.
Depois que eu lhe entreguei o que me pediu, ela apanhou uma tira do lençol, dobrou-o até caber na palma de sua mão e mergulhou-a na água. Usou-a para lavar a testa e o queixo do Caça-feitiço. Era difícil saber se fizera aquilo para o doente se sentir melhor ou para lhe poupar o trabalho de mais tarde lavar seu corpo.
Concluída a limpeza, ela se sentou ao lado da cama e começou a tricotar alguma coisa que parecia uma roupa de bebê. Falava muito também; contou-me a história de sua vida e se gabou dos dois empregos que tinha. Além de lavar cadáveres e prepará-los para o enterro, era também a parteira local. Estava com uma forte gripe e não parava de tossir em cima do Caça-feitiço e de assoar o nariz vermelho em um grande lenço estampado.
Pouco antes do meio-dia, ela começou a juntar suas coisas para ir embora.
— Voltarei amanhã de manhã para prepará-lo — disse-me. — Ele não sobreviverá outra noite.
— Então não há esperança? — perguntei-lhe, consciente de que o Caça-feitiço não abrira os olhos desde que batera com a cabeça.
— Escute a respiração dele — disse-me a mulher.
Escutei atentamente. Sua respiração tinha um som rouco com uma leve vibração. Era como se a garganta estivesse congestionada.
— Esse é o som da morte — afirmou. — O tempo dele neste mundo está chegando ao fim.
Naquele momento, ouvimos uma batida na porta da frente e desci para ver quem era. Quando abri a porta, Alice estava parada à soleira, seu casaco de lã abotoado até o pescoço e o capuz lhe cobrindo a cabeça.
— Alice! — exclamei realmente feliz de vê-la. — O Caça-feitiço se feriu enfrentando o ogro. Bateu a cabeça e o médico acha que ele vai morrer!
— Me deixe vê-lo — disse Alice, empurrando-me para passar. — Talvez não seja tão grave quanto ele pensa. Os médicos podem se enganar. O Velho Gregory está lá em cima?
Confirmei e acompanhei-a ao quarto da frente. Ela se encaminhou direto para o Caça-feitiço e pôs a mão em sua testa. Depois, levantou sua pálpebra esquerda com o polegar e examinou o olho com muita atenção.
— Ainda há esperança — disse ela. — Talvez eu possa ajudar...
A mulher apanhou a bolsa e se preparou para sair, a indignação vincando sua testa.
— Francamente, não me falta ver mais nada! — exclamou, olhando para os sapatos de bico fino de Alice. — Uma bruxinha se oferecendo para ajudar um caça-feitiço!
Alice ergueu a cabeça, os olhos faiscando de raiva, abriu bem a boca e arreganhou os dentes. Depois sibilou para a mulher que rapidamente se afastou da cama.
— Não espere que ele lhe agradeça a ajuda! — lembrou ela a Alice, saindo de costas do quarto e disparando escada abaixo.
— Não tenho muita coisa aqui — disse Alice, quando a mulher se foi. Desabotoou o casaco e tirou uma bolsinha de couro do bolso interno. Estava fechada com um cordão que ela desamarrou, depois despejou algumas folhas secas na palma da mão. — Por ora, vou dar a ele só uma poção rápida.
Quando ela desceu à cozinha, sentei-me do lado da cama do Caça-feitiço, fazendo o possível para ajudá-lo. Seu corpo todo ardia em febre; comecei, então, a aplicar compressas molhadas em sua testa para baixar sua temperatura. Um filete de sangue e muco descia continuamente do seu nariz e entrava pelo bigode, transformando a tarefa de mantê-lo limpo em uma ocupação de tempo integral. Seu peito vibrava e o cheiro de flores estava mais forte que antes, por isso comecei a achar que, apesar do que dizia Alice, a enfermeira tinha razão e ele não viveria muito mais. Depois de algum tempo, Alice voltou trazendo uma xícara cheia até a metade com um líquido amarelo-claro, levantei a cabeça do Caça-feitiço enquanto ela o fazia beber um pouco da infusão. Desejei que minha mãe estivesse ali, embora soubesse que Alice era a segunda melhor opção: minha mãe já me dissera que ela sabia o que fazia quando preparava poções.
O Caça-feitiço se engasgou e cuspiu um pouco, mas conseguimos fazê-lo beber quase tudo.
— É uma época do ano realmente ruim, mas talvez eu consiga encontrar alguma coisa melhor — disse Alice. — Vale a pena sair para procurar. Não que ele mereça, pelo jeito com que me tratou!
Agradeci e a acompanhei até a porta da frente. Tinha parado de chover, mas o ar úmido estava gelado. As árvores estavam nuas e tudo parecia desolado.
— É inverno, Alice. Que poderá achar, se quase não há vegetação?
— Mesmo no inverno há raízes e casca de árvores que se podem usar — replicou ela, abotoando o casaco para se proteger do frio. — Isto é, se a gente sabe onde procurar. Voltarei assim que puder...
Tornei a subir para o quarto, triste e perdido, para fazer companhia ao Caça-feitiço. Eu sei que parece egoísmo, mas não pude deixar de pensar em mim mesmo. Seria impossível completar o meu aprendizado sem o Caça-feitiço. Teria que ir para o norte de Caster, onde Arkwright praticava o seu ofício, e lhe pedir para me aceitar. Como no passado ele tinha sido aprendiz do Caça-feitiço e morado em Chipenden como eu, talvez concordasse, mas não havia garantia alguma. Poderia já ter um aprendiz. Depois disso me senti pior. Realmente culpado. Porque estivera pensando em mim e não no meu mestre.
Então, mais ou menos uma hora mais tarde, o Caça-feitiço, de repente, abriu os olhos. Estavam ferozes e brilhantes de febre e, para começar, acho que nem sabia quem eu era. Ainda se lembrava, porém, de como dar ordens e começou a despachá-las aos berros, como se eu fosse surdo ou coisa parecida.
— Me ajude a levantar! Me levante! Vamos! Vamos! Agora! — gritou, enquanto eu lutava para ajudá-lo a se sentar e escorava suas costas com travesseiros. Começou, então, a gemer muito alto, seus olhos giraram nas órbitas e reviraram para dentro, deixando visíveis apenas as córneas brancas.
— Me traga uma bebida! — gritou. — Preciso de uma bebida!
Havia uma jarra de água fria na mesa de cabeceira, enchi uma xícara até a metade e levei-a gentilmente aos seus lábios.
— Beba devagar — recomendei, mas o Caça-feitiço tomou um grande gole e cuspiu a água nas cobertas.
— Que porcaria é essa? É isso que mereço? — vociferou, e suas pupilas reapareceram e me fixaram com um olhar alucinado e feroz.
— Me traga vinho. E que seja tinto. É disso que preciso!
Não achei que fosse uma boa ideia, doente como estava, mas ele insistiu. Queria vinho e tinha que ser tinto.
— Desculpe, mas não tem vinho aqui — expliquei-lhe, mantendo a voz calma para não deixá-lo mais agitado.
— Claro que não há vinho aqui! Isto é um quarto! — gritou. — Lá embaixo, na cozinha, é onde encontrará o vinho. Se não houver, experimente a adega. Vá procurar. E não demore. Não me faça esperar.
Havia meia dúzia de garrafas na cozinha, todas de vinho tinto. O problema é que não havia sinal de saca-rolhas — não que eu tivesse procurado muito. Levei, então, a garrafa para o quarto, achando que assim o caso estaria encerrado.
Enganei-me: quando que me aproximei da cama, meu mestre puxou a garrafa da minha mão, levou-a à boca e arrancou a rolha com os dentes que lhe sobraram. Por um momento, pensei que a engolira, mas de repente ele a cuspiu com tanta força, que a rolha foi bater na parede oposta.
Ele começou, então, a beber e, enquanto bebia, ia falando. Eu nunca vira o Caça-feitiço tomar bebida alcoólica antes, mas agora ele não conseguia despejar o vinho na garganta com suficiente rapidez. Tornou-se mais e mais agitado, a conversa cedeu lugar a disparates. Não fazia o menor sentido, ele estava delirando de febre e embriaguez. E falava quase tudo em latim, a língua que eu estava suando para aprender. Em determinado momento, ele começou a fazer o sinal da cruz sem parar, com a mão direita, como os padres.
Em nosso sítio, raramente bebíamos vinho. Minha mãe fabrica um vinho de sabugueiro que é realmente gostoso. Só o serve em ocasiões especiais: quando eu morava em casa, era uma sorte se ganhasse metade de um cálice duas vezes por ano. O Caça-feitiço esvaziou a garrafa inteira em menos de quinze minutos e mais tarde vomitou — vomitou tanto, que, aí sim, quase morreu engasgado. Naturalmente, tive que limpar a sujeira com as outras tiras de lençol.
Alice voltou pouco depois e preparou outra poção com as raízes que tinha encontrado. Juntamos nossos esforços e conseguimos despejá-la na boca do Caça-feitiço, que adormeceu momentos depois.
Feito isso, Alice cheirou o ar e torceu o nariz. Mesmo depois de eu ter trocado a roupa de cama, o quarto continuava a feder horrivelmente, por isso deixei de sentir o cheiro das flores. Pelo menos, foi o que pensei na hora. Não entendi que o Caça-feitiço estava começando a melhorar.
Comprovou-se, assim, que o médico e a enfermeira tinham se enganado: horas depois, a febre desapareceu e meu mestre começou a expelir o catarro dos pulmões, sujando lenços com a mesma rapidez com que eu os encontrava, e acabei rasgando em tiras outro lençol. O Caça-feitiço estava a caminho de uma lenta recuperação. E, mais uma vez, devíamos isso a Alice.
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Os Hurst retornaram no dia seguinte; pareciam, no entanto, perdidos e atordoados, como se não soubessem por onde começar a limpar a destruição. O Caça-feitiço passou a maior parte do tempo dormindo, mas não podíamos deixá-lo em um quarto no qual o vento entrava uivando pela janela quebrada. Então, peguei dinheiro em sua bolsa e entreguei ao sr. Hurst para providenciar alguns consertos.
Os artífices foram contratados na aldeia: um vidraceiro colocou vidros novos nas janelas do quarto e da cozinha, enquanto Shanks pregava tábuas nas demais para impedir a entrada da chuva e do vento. Também eu tive um dia ocupado, acendi as lareiras dos quartos e da cozinha, ajudei nas tarefas do sítio, especialmente na ordenha. O sr. Hurst fez alguma coisa, mas estava completamente desanimado. Dava a impressão de ter perdido o gosto pela vida e a vontade de viver.
— Que desgraça! Que desgraça! — ele não parava de resmungar preocupado. E uma vez ouvi-o dizer claramente, erguendo os olhos para o telhado do celeiro, revelando aflição:
— Que fiz eu, que fiz para merecer isso?
Naquela noite, logo quando terminamos de jantar, ouvimos três batidas fortes na porta da frente, e isso fez o pobre sr. Hurst se levantar de um salto tão repentinamente que quase caiu de costas por cima da cadeira.
— Eu atendo — disse a sra. Hurst, pousando a mão delicadamente no braço do marido.
— Fique aqui, querido, e tente se acalmar. Não vá se aborrecer outra vez.
Pela reação da família, imaginei que fosse Morgan chegando. E havia alguma coisa no modo de dar aquelas três batidas fortes que me enregelou até os ossos. Minhas suspeitas se confirmaram quando Alice olhou para mim, virou os cantos da boca para baixo e murmurou silenciosamente o nome “Morgan”.
Ele entrou na cozinha à frente da mãe. Carregava um bastão e uma bolsa. De capa e capuz, era a imagem exata de um caça-feitiço.
— Que cena aconchegante! E não é o jovem aprendiz em pessoa? — disse ele, voltando-se para mim. — Menino Ward, mais uma vez nos encontramos.
Retribuí o cumprimento com a cabeça.
— Então, que andou acontecendo aqui, velho? — perguntou Morgan sarcástico. — O terreiro está um caos. Você não tem amor-próprio? Está deixando o sítio virar uma ruína.
— Não é culpa dele. Você é retardado ou o quê? — disse Alice com rispidez, a hostilidade pesando em sua voz. — Qualquer idiota pode ver que isso é obra de um ogro!
Morgan franziu a testa, enfurecido, e encarou-a, erguendo ligeiramente o bastão, mas Alice retribuiu seu olhar com um sorriso de zombaria.
— Então, o Caça-feitiço mandou o aprendiz cuidar do ogro, não foi? — replicou Morgan, virando-se para a mãe. — Ora, isso é que é gratidão, não é, velha? Você hospeda uma bruxinha para ele e o Gregory nem se dá ao trabalho de vir ajudar a amarrar o seu ogro. Ele sempre foi um safado sem coração.
Levantei-me no mesmo instante.
— O sr. Gregory veio imediatamente. Está lá em cima porque ficou gravemente ferido enfrentando o ogro...
Na mesma hora, percebi que falara demais. Senti uma repentina apreensão pelo meu mestre. Morgan o ameaçara no passado e agora o Caça-feitiço se achava fraco e indefeso.
— Ah, então você sabe falar — exclamou Morgan, caçoando. — Se quer saber a minha opinião, é óbvio que o seu mestre já era. Foi ferido amarrando um ogro? Ah, meu Deus, essa é a tarefa mais básica do manual! Mas esse é o problema da idade. Sem dúvida, o velho tonto já perdeu o vigor. É melhor eu subir e dar uma palavrinha com ele.
Dizendo isso, Morgan atravessou a cozinha e começou a subir os degraus de madeira em direção aos quartos. Curvei-me e cochichei para Alice que ficasse onde estava. E me encaminhei para a escada. A princípio, pensei que a sra. Hurst fosse me pedir para ficar, mas ela simplesmente continuou sentada e escondeu o rosto nas mãos.
Comecei a subir a escada furtivamente, mas os degraus rangiam, por isso só subi três e parei ao ouvir a risada estridente de Morgan seguida pela tosse do Caça-feitiço. A escada rangeu às minhas costas e, ao me virar, vi Alice com o dedo nos lábios pedindo silêncio.
Ouvi, então, a voz do meu mestre no quarto.
— Continua cavando aquele velho túmulo? — ouvi-o perguntar. — Um dia ele causará sua morte. Tenha juízo. Afaste-se enquanto ainda for capaz de respirar.
— Você poderia facilitar a tarefa para mim — respondeu Morgan. — Devolva o que é meu. É só o que peço.
— Se eu lhe devolvesse, você causaria danos indizíveis. Isto é, se sobrevivesse. Por que tem de ser assim? Pare de mexer com as trevas e tome juízo, rapaz! Lembre-se das promessas que fez a sua mãe. Ainda é tempo de tomar jeito na vida.
— Não finja que se importa comigo — respondeu Morgan. — E não se atreva a falar da minha mãe. Você nunca ligou para nenhum de nós, essa é a verdade. Para ninguém, a não ser para aquela feiticeira. Quando Meg Skelton entrou em cena, a coitada da minha mãe não teve a menor chance. E aonde foi que isso o levou? E aonde foi que isso a levou, exceto a uma vida de infelicidade?
— Não, rapaz. Eu gostava de você e gostava de sua mãe. Eu a amei no passado, você sabe disso, e toda a vida fiz o melhor que pude para ajudá-la. E, por causa dela, tentei ajudar você, apesar de tudo que fez!
O Caça-feitiço recomeçou a tossir, e ouvi Morgan praguejar e se encaminhar para a porta.
— Agora tudo mudou, velho, e terei o que está me devendo. E, se você não quiser me entregar, usarei outros meios.
Alice e eu demos meia-volta e descemos a escada. Mal chegamos à cozinha e já ouvimos a bota de Morgan raspar o degrau do alto.
Ele, no entanto, nem olhou para nós. Com uma expressão revoltada no rosto, sem dar atenção aos pais, passou reto pela cozinha em direção ao corredor. Escutamos calados ele erguer o ferrolho, girar a chave na fechadura de uma porta no corredor e começar a andar dentro do quarto. Dali a uns instantes, nós o ouvimos sair, fechar e tornar a passar o ferrolho na porta. Em seguida, saiu da casa; a porta da entrada bateu atrás dele.
À mesa, ninguém falou, mas não pude deixar de olhar para a sra. Hurst. Então, no passado, o Caça-feitiço também a amara! Com esta eram três mulheres com quem ele se envolvera! E essa era uma das razões por que o Morgan parecia guardar rancor dele.
— Vamos pôr você na cama, querido — disse a sra. Hurst ao marido, sua voz branda e carinhosa. — Você está precisando de uma boa noite de sono. Pela manhã se sentirá bem melhor.
Com isso, os dois deixaram a mesa, o coitado do sr. Hurst arrastando os pés em direção à porta, de cabeça baixa. Tive muita pena dos dois. Ninguém merecia ter um filho como Morgan. A mulher parou à porta e se virou para nós.
— Não demorem muito a subir — recomendou ela e assentimos educadamente, depois ficamos ouvindo o casal subir.
— Pronto — disse Alice —, agora estamos sozinhos. Por que não vamos dar uma olhada no quarto de Morgan? Quem sabe o que poderemos encontrar...
— O quarto em que ele acabou de entrar?
Alice fez que sim.
— Às vezes, ouvimos barulhos estranhos vindos lá de dentro. Eu gostaria de ver o que tem lá.
Ela apanhou, então, uma vela do castiçal sobre a mesa e foi saindo da cozinha, atravessou a sala de visitas e enveredou pelo corredor.
Havia dois quartos que saíam daquele corredor. De costas para a porta de entrada, a pessoa entrava direto na sala; do lado esquerdo havia outra porta pintada de preto. Tinha um ferrolho por fora.
— É aqui — sussurrou Alice, tocando a porta com o bico fino do sapato esquerdo e fazendo o ferrolho deslizar. — Se não estivesse fechado à chave, eu já teria bisbilhotado. Mas agora não é problema. A sua chave a abrirá num instante, Tom. — Ela apontou para a fechadura.
De fato, a minha chave abriu a porta e eu a empurrei devagarinho. Era um quarto bastante amplo, mais comprido do que largo, com tábuas pregadas na janela ao fundo, guarnecida com pesadas cortinas pretas. O quarto era lajeado como o restante do térreo, mas não havia tapetes nem carpetes. Apenas três peças de mobília: uma longa mesa de madeira com uma cadeira de espaldar reto em cada ponta.
Alice entrou primeiro.
— Não há muito que ver, não é? — comentei. — Que esperava encontrar?
— Não tenho certeza, mas achei que haveria mais alguma coisa — começou Alice. — Às vezes, ouço sinos tocando aqui. Na maioria sininhos, é o que são, desses que cabem na mão fechada. Uma vez, ouvi um sino de enterro que me pareceu grande bastante para tocar no campanário de uma igreja. Frequentemente ouço o som de água correndo e uma garota chorando. Suponho que seja a irmã dele que morreu.
— Você ouve esses sons quando ele está dentro do quarto?
— Geralmente, mas mesmo quando ele não está em casa eu, às vezes, ouço um cão latindo e rosnando, ou até farejando junto à porta, como se estivesse querendo sair. É por isso que os Hurst mantêm a porta sempre aferrolhada. Acho que têm medo que saia alguma coisa ruim de dentro.
— Mas agora não estou sentindo nada aqui — eu disse a Alice. Não tinha a sensação de frio que me avisava quando havia alguma coisa das trevas por perto. — O Caça-feitiço diz que Morgan é um necromante que usa os mortos. Conversa com eles e os obriga a obedecer às suas ordens.
— De onde ele tira esse poder? Não usa a magia dos ossos nem a do sangue como uma feiticeira — disse Alice enrugando o nariz —, e também não usa a magia do parentesco. Com certeza, eu teria pressentido se fosse um desses casos. Então, o que é, Tom?
Sacudi os ombros.
— Talvez de Golgoth, um dos deuses antigos. Você ouviu ainda há pouco o que o Caça-feitiço falou sobre a escavação daquele túmulo e que isso acabaria matando o Morgan? Então, é um túmulo antigo a que chamam de Broa e que fica no alto da charneca. Talvez ele esteja tentando invocar Golgoth, como os antigos faziam. Talvez o deus queira ser invocado e esteja ajudando-o de alguma forma. Mas Morgan ainda não pode fazer isso porque o Caça-feitiço está guardando uma coisa de que ele precisa. Algo que facilitaria esse acesso.
Alice assentiu pensativa.
— Quem sabe é isso, Tom, mas algumas coisas que eles falaram também me deixaram intrigada. Não consigo imaginar o Velho Gregory e a sra. Hurst juntos. Acho difícil acreditar que formaram um casal.
Eu também achava difícil acreditar. Muito difícil. Enfim, não havia muita coisa para se ver, por isso saímos do quarto e tornamos a fechá-lo à chave e a passar o ferrolho. Havia mistérios a serem desvendados — segredos no passado do Caça-feitiço — e eu estava ficando cada vez mais curioso.
* * *
Morgan não reapareceu no Sítio Vista da Charneca, mas transcorreu mais uma semana até podermos voltar para a casa do Caça-feitiço. Mandamos buscar Shanks e fizemos a viagem com meu mestre montado no pequeno pônei, e Alice e eu a pé, acompanhando-o.
Shanks se recusou a pôr os pés na casa e foi direto para Adlington, deixando o Caça-feitiço conosco. Eu já contara a meu mestre que Alice tinha preparado as poções que provavelmente salvaram sua vida. Ele não fez nenhum comentário, mas tampouco fez objeção quando nós dois o ajudamos a ir para o quarto. Ainda não voltara a ser o mesmo e ia levar algum tempo para se recuperar plenamente. A viagem também o deixara exausto. Ele não conseguia se firmar nas pernas e passou uns dois dias deitado no quarto.
Uma coisa que me surpreendeu foi que, a princípio, ele não mencionou Meg. Eu também não o lembrei: não me agradava a ideia de descer a escada do porão sozinho. E, uma vez que ela passara o verão todo dormindo lá, uns dias a mais não fariam grande diferença. Em consequência, tive que assumir a maioria das tarefas. Alice ajudou um pouco, mas não tanto quanto eu teria gostado.
— Só porque sou mulher não quer dizer que seja minha obrigação preparar todas as refeições! — respondeu-me com rispidez quando insinuei que ela deveria cozinhar melhor do que eu.
— Eu não sei cozinhar, Alice — protestei. — Em casa, era minha mãe quem cozinhava, em Chipenden, era o ogro do Caça-feitiço, e aqui era Meg.
— Então, agora é a sua chance de aprender — disse Alice com um sorriso. — Quanto a Meg, aposto que não iria gostar tanto de cozinhar sem beber todo aquele chá de ervas!
Na manhã do terceiro dia, o Caça-feitiço, abatido, finalmente desceu e se sentou à mesa, enquanto fiz o melhor que pude para preparar o café da manhã. Cozinhar era muito mais duro do que parecia, mas não tão duro quanto o bacon que preparei.
Comemos em silêncio até que, passados alguns minutos, o Caça-feitiço empurrou o prato para longe.
— É uma boa coisa que eu esteja sem apetite, rapaz — disse ele, balançando a cabeça. — Porque a fome me obrigaria a comer isso e não sei se iria sobreviver à experiência.
Alice caiu na gargalhada e eu sorri e sacudi os ombros, satisfeito de ver no meu mestre sinais de franca recuperação. Quanto aos estorricos de bacon, eu já provara melhores, mas minha fome era suficiente para comer qualquer coisa, e a de Alice também. Comecei a me animar porque, pelo jeito, o Caça-feitiço ia deixá-la ficar conosco.
Na manhã seguinte, ele finalmente decidiu que já era tempo de acordar Meg. Como ele ainda não estava muito firme nas pernas, desci a escada ao lado dele e ajudei-o a levar Meg para a cozinha, enquanto Alice esquentava a água. O esforço foi demasiado para ele e suas mãos começaram a tremer tanto que precisou voltar para a cama.
Ajudei Alice a preparar o banho de Meg.
— Obrigada, Billy — disse Meg, quando começamos a encher a banheira de água quente. — Você é um rapaz tão atencioso! E a sua bonita amiga é muito prestativa também. Qual é o seu nome, querida?
— Me chamam de Alice... — respondeu ela com um sorriso.
— Sua família mora nas vizinhanças? É bom ficar perto da família. Eu gostaria de ter feito isso. Agora eles moram tão longe!
— Atualmente não vejo meus parentes. Não eram boas companhias e estou melhor sem eles — acrescentou Alice.
— É claro que não! — exclamou Meg. — Por que não, qual era o problema, querida?
— Eram feiticeiras — respondeu Alice, dando um sorrisinho enviesado e malicioso para mim.
Fiquei realmente aborrecido. Aquele tipo de conversa poderia despertar a memória de Meg. Alice estava fazendo aquilo de propósito.
— No passado, eu conheci uma feiticeira — lembrou Meg, com uma expressão sonhadora no olhar. — Mas foi há tanto tempo...
— Acho que o seu banho está pronto agora, Meg — eu disse, agarrando o braço de Alice e afastando-a da cozinha. — Vamos para o escritório, para você ter um pouco de privacidade.
Uma vez no escritório do Caça-feitiço, interpelei Alice meio zangado.
— Por que você tinha que dizer aquilo? Ela pode começar a lembrar que é feiticeira.
— E isso seria tão ruim assim? Não é justo o Caça-feitiço tratá-la desse jeito. Ela estaria melhor morta. Fui apresentada a ela, mas Meg já tinha me esquecido.
— Melhor morta? É mais provável que acabasse em uma cova — retruquei com raiva.
— Ora, por que você não dá a Meg um pouquinho menos de chá de ervas, para ela ter uma vida melhor e não ficar esquecendo tudo? Ajuste a dosagem e ela não se lembraria de tudo, mas as coisas poderiam ser bem melhores para ela. Me deixe fazer isso, Tom. Não é muito difícil. Darei a ela um pouquinho menos todo dia até acertarmos.
— Não, Alice! Nem se atreva! — avisei-a. — Se o Caça-feitiço descobrisse, mandaria você de volta para os Hurst sem pestanejar. Enfim, não vale a pena se arriscar. Alguma coisa poderia dar muito errado.
Alice balançou a cabeça.
— Mas não é direito, Tom. Mais cedo ou mais tarde algo terá que ser feito.
— Então, que seja mais tarde. Você não vai mexer com o chá de ervas, por favor? Me prometa.
Alice sorriu.
— Prometo, mas acho que deveria levantar o assunto com o Velho Gregory. Você faria isso?
— Não é uma boa hora, com ele ainda doente. Falarei quando achar que é o momento adequado. Mas ele não vai me dar ouvidos. Há anos que está agindo assim. Por que iria mudar agora?
— Fale com ele, é só o que estou lhe pedindo.
Concordei, embora soubesse que estaria perdendo meu tempo e só iria deixar o Caça-feitiço aborrecido à toa. Alice estava começando a me preocupar. Queria confiar nela, mas era óbvio que estava obcecada a respeito de Meg.
O Caça-feitiço desceu no fim da tarde e conseguiu tomar um pouco de caldo, depois passou a noite embrulhado em um cobertor diante da lareira. Quando subi para me deitar, ele continuava lá e Alice estava ajudando Meg a lavar as panelas para o dia seguinte.
Na manhã seguinte, uma terça-feira, o Caça-feitiço me deu uma breve aula de latim. Não parecia muito bem: cansou-se depressa e voltou para a cama, me deixando estudar sozinho o resto do dia.
Então, no fim da tarde, ouvimos uma batida na porta dos fundos. Fui atender e deparei com Shanks, o homem que fazia as entregas para o Caça-feitiço, em pé à porta. Seu rosto espelhava grande nervosismo e ele não parava de espiar por cima do meu ombro esquerdo, como se esperasse alguém aparecer às minhas costas a qualquer momento.
— Trouxe a encomenda do sr. Gregory — disse, indicando o pônei atrás dele com sua carga de sacos pardos. — E tenho uma carta para você. Entregaram no endereço errado e o pessoal estava fora, em viagem de negócios. Acabaram de chegar e a carta já deve ter uma semana.
Olhei-o admirado. Quem poderia estar me enviando uma carta para Anglezarke? Ele enfiou a mão no bolso do paletó, tirou um envelope amassado e me entregou. Fiquei preocupado porque reconheci a caligrafia do meu irmão Jack no envelope e sabia que teria gasto uma pequena fortuna para despachar a carta pelo correio: tinha que ser algo muito sério. Com certeza, más notícias.
Rasguei o envelope e abri a carta que era curta e objetiva.
Caro Tom,
Nosso pai tornou a adoecer. Está piorando rapidamente. Todos os filhos estão aqui, menos você; portanto, é melhor vir imediatamente para casa.
Jack
Meu irmão sempre foi brusco e suas palavras fizeram o meu coração ir parar nas botas. Não consegui acreditar que meu pai fosse morrer. Não consegui sequer imaginar. O mundo não seria o mesmo sem ele. E se a carta de Jack estava na aldeia havia uma semana aguardando ser lida, talvez eu chegasse tarde demais. Enquanto Shanks descarregava as nossas provisões, corri para dentro, subi ao quarto do Caça-feitiço e, com as mãos trêmulas, mostrei-lhe a carta. Ele a leu e deu um longo suspiro.
— Lamento as más notícias — disse-me. — É melhor ir para casa agora mesmo. Em uma hora dessa, sua mãe precisará de você do lado dela.
— E o senhor? — perguntei. — Vai ficar bem?
— Não se preocupe comigo, ficarei ótimo. Agora, vá enquanto ainda há claridade. Você vai querer estar lá embaixo, longe da charneca, muito antes do anoitecer.
Quando desci à cozinha, Alice e Meg estavam cochichando. Meg sorriu quando me viu.
— Hoje à noite vou preparar para vocês um jantar especial — disse-me.
— Não jantarei aqui, Meg. Meu pai está doente e vou precisar passar uns dias em casa.
— Lamento muito saber disso, Billy. Com certeza, vai nevar; portanto, agasalhe-se bem contra o frio. A queimadura de frio pode fazer seus dedos caírem.
— É muito grave, Tom? — perguntou Alice, parecendo preocupada; dei-lhe, então, a carta, que ela leu rapidamente.
— Ah, Tom! Lamento muito — disse ela, atravessando a cozinha para me abraçar. — Talvez não seja bem o que parece...
Quando os nossos olhos se encontraram, percebi que ela só estava dizendo aquilo para eu me sentir melhor. Ambos temíamos o pior.
Aprontei-me para viajar. Nem quis levar minha bolsa — deixei-a no escritório —, mas levei o bastão; no bolso, além de um bom pedaço de queijo amarelo e farelento para a viagem, guardei o meu estojinho de fazer fogo e um toco de vela. Nunca se sabe quando poderão ser úteis.
Depois de me despedir do Caça-feitiço, me dirigi à porta dos fundos com Alice. Para minha surpresa, em vez de me dizer adeus, ela tirou o casaco do gancho e vestiu-o.
— Vou acompanhar você até embaixo na ravina — disse me dando um sorriso triste.
Descemos juntos. Não falamos. Eu estava sem ânimo e amedrontado, e Alice parecia realmente quieta. Quando chegamos ao fundo da ravina e me virei para me despedir, para minha surpresa vi lágrimas nos olhos de Alice.
— Que foi, Alice?
— Não vou estar aqui quando você voltar. O Velho Gregory vai me mandar embora. Estou de partida para o Sítio Vista da Charneca outra vez.
— Ah, sinto muito, Alice. Ele não me falou nada. Pensei que estivesse tudo bem.
— Ele me comunicou ontem à noite. Diz que eu estou ficando muito íntima de Meg.
— Muito íntima?
— Talvez seja porque ele nos viu conversando, foi isso. Quem sabe o que vai na cabeça do Velho Gregory? Achei que devia lhe dizer. Para você saber onde me encontrar quando voltar.
— Irei ao sítio ver você assim que chegar. Até antes de voltar para a casa do Caça-feitiço.
— Obrigada, Tom — agradeceu Alice, pegando por um momento a minha mão esquerda e lhe dando um aperto afetuoso.
Assim, deixei-a e continuei a descer, parando uma vez para olhar para trás. Ela ainda estava lá me olhando e lhe acenei. Alice não dissera outras palavras de consolo quando nos separamos. Não mencionara meu pai. Nós dois sabíamos que não havia nada a dizer, e eu tinha medo do que iria encontrar em casa.
O crepúsculo chegou rápido, ajudado por uma camada espessa de nuvens pesadas que vinha do norte. Estava escurecendo quando deixei o alto da charneca; não sei como acabei me desorientando e perdi a trilha que pretendera seguir.
Lá embaixo havia um arvoredo e uma mureta de pedras, e, um pouco além, uma construção pequena — provavelmente uma casa de peão, o que significava que deveria haver uma estradinha ou trilha descendo o morro. Subi na mureta, mas hesitei antes de saltar do outro lado. Primeiro, porque a mureta tinha quase dois metros de altura, e depois, porque descobri que estava olhando para um grande cemitério. E também não era uma casa ao longe. Era uma pequena capela.
Sacudi os ombros e saltei entre as lápides. Afinal, talvez fosse um pouco sinistro, mas eu era o aprendiz do Caça-feitiço e tinha que me acostumar com lugares assim, mesmo que já estivesse quase escuro. Comecei a contornar os túmulos, descendo o morro, e dali a pouco meus pés estavam esmagando o saibro do caminho que levava à capela.
O caminho deveria ter sido reto. Descia ao lado da capela; a partir daí serpeava entre as lápides em direção a dois enormes teixos que formavam um arco sobre o portão. Eu devia ter continuado a andar, mas vi um reflexo de luz nos pequenos vitrais da capela, que denunciavam a chama trêmula de uma vela. E, quando passei pela porta, reparei que estava ligeiramente entreaberta e ouvi com clareza uma voz que veio do seu interior.
Uma voz que gritou uma única palavra:
— Tom!
Era uma voz grave, uma voz de homem, uma voz que estava acostumada a ser obedecida. Não a reconheci.
Embora parecesse improvável, tive a sensação de que me chamava. E quem poderia estar na capela que soubesse meu nome ou que eu estivesse passando por ali no escuro, naquele instante? Não deveria haver ninguém ali àquela hora da noite. Ela só era usada ocasionalmente, para breves serviços religiosos, antes dos enterros.
Quase antes de perceber o que estava fazendo, me encaminhei para a porta da capela, abri-a e entrei. Para minha surpresa, não havia ninguém, mas logo reparei em algo realmente esquisito na disposição interna da capela. Em vez de fileiras de bancos voltados para o altar, separados por uma nave, os bancos estavam colocados em quatro filas paralelas à parede e virados para um único confessionário, grande e encostado na parede à minha direita, com duas enormes velas de cada lado, como se fossem sentinelas.
O confessionário tinha as duas entradas costumeiras, uma para o padre e outra para o penitente. Na realidade, um confessionário tem dois cubículos divididos por um biombo, de tal forma que, embora o padre possa ouvir a confissão através de uma gelosia, não pode ver o rosto da pessoa que se confessa. Havia, no entanto, algo estranho ali. Alguém removera as portas, de modo que eu estava vendo dois retângulos totalmente escuros.
Enquanto observava as portas me sentindo muito inquieto, alguém saiu das sombras da entrada do padre à esquerda e veio ao meu encontro. Usava uma capa com capuz igual à do Caça-feitiço.
Era Morgan, embora a voz que tivesse me chamado não fosse a dele. Haveria mais alguém na capela? Quando se aproximou, senti repentinamente um frio intenso. Não o frio habitual que me informava da proximidade de uma criatura das trevas. Era um pouco diferente. Lembrou-me o frio que experimentara quando estava enfrentando, em Priestown, um espírito diabólico chamado Flagelo.
— Mais uma vez nos encontramos, Tom — disse Morgan com um sorriso levemente zombeteiro. — Lamento as notícias sobre seu pai. Mas ele teve uma vida boa. No fim, a morte chega para todos nós.
Meu coração deu um salto no peito e parei de respirar. Como sabia da doença do meu pai?
— Mas a morte não é o fim, Tom — disse ele, dando mais um passo em minha direção. — E, por algum tempo, ainda podemos nos comunicar com aqueles que amamos. Você gostaria de falar com seu pai? Posso chamá-lo para você agora, se quiser...
Não respondi. Só então comecei a entender o que ele estava dizendo. Senti-me atordoado.
— Ah, me desculpe, Tom. É claro que você ainda não sabe, não é? — continuou Morgan. — Seu pai morreu na semana passada.
O QUARTO DA MINHA MÃE
Morgan tornou a sorrir, mas meu coração veio parar na boca e o pânico me invadiu: o mundo girou à minha volta. Sem pensar, dei meia-volta e corri para a porta.
Uma vez do lado de fora, continuei a descer o caminho, meus pés triturando o saibro. Quando alcancei o portão, virei-me e olhei para trás. Ele estava parado à porta aberta da capela. Seu rosto, na sombra, não me permitia ler sua expressão, mas ele ergueu a mão esquerda e me cumprimentou. O tipo de aceno que alguém faria a um amigo. Não retribuí o aceno. Abri o portão e continuei a descer o morro, uma profusão de pensamentos e emoções atravessando minha mente. Angustiava-me a ideia de que meu pai já pudesse estar morto. Morgan estaria certo? Sendo um necromante, algum fantasma invocado poderia ter lhe dado a notícia? Eu me recusava a acreditar e procurei me livrar desse pensamento.
E por que eu fugira? Deveria ter parado e dito o que pensava a seu respeito. Contudo, subira-me um nó à garganta e minhas pernas me levaram porta afora antes que eu tivesse tido tempo de pensar. Não que eu sentisse medo de Morgan, apesar de ter sido realmente sinistro ouvi-lo dizer o que dissera na capela, à luz bruxuleante das velas iluminando-o pelas costas. Foi o fato de ter sido confrontado com aquela notícia.
Não me lembro de muita coisa do resto da viagem, além de que fazia cada vez mais frio e ventava muito. Ao anoitecer do segundo dia, o vento passara a soprar de nordeste e o céu parecia carregado de neve.
Na realidade, a neve só começou a cair quando eu estava a meia hora de casa. A claridade foi sumindo, mas eu conhecia o caminho como a palma da minha mão e aquilo não retardou o meu progresso. Quando finalmente abri o portão para o terreiro, um manto branco cobria o sítio e eu estava enregelado até os ossos. A neve sempre faz tudo parecer parado, mas uma imobilidade noturna parecia ter descido sobre a casa. Entrei no terreiro e o latido dos cães rompeu o silêncio.
Não havia ninguém por ali, embora brilhasse uma luz hesitante na janela de um dos quartos de fundos. Teria chegado tarde demais? Meu coração foi parar nas botas e temi o pior.
Então, vi Jack: ele atravessou o terreiro, pisando forte em minha direção. Tinha a cara amarrada, as sobrancelhas peludas unidas sobre a ponte do nariz.
— Por que demorou? — interpelou-me, aborrecido. — A viagem não leva uma semana, leva? Nossos irmãos vieram e já partiram. E James mora do outro lado do Condado! Você foi o único que não chegou...
— Sua carta foi parar no endereço errado. Eu a recebi uma semana depois — expliquei. — Como é que ele está? Cheguei tarde demais? — perguntei, prendendo a respiração, mas já lendo a verdade no rosto de Jack.
Meu irmão suspirou e baixou a cabeça como se não pudesse me encarar. Quando tornou a erguer a cabeça, seus olhos cintilavam de lágrimas.
— Ele se foi, Tom — disse com brandura, já sem rispidez nem raiva. — Morreu em paz durante o sono fez uma semana ontem.
Antes que eu percebesse, ele estava me abraçando e ambos começamos a chorar. Nunca mais eu veria meu pai; nunca mais ouviria sua voz, suas velhas histórias e suas máximas; nunca mais apertaria sua mão nem lhe pediria conselho; e essa constatação era insuportável. Parado ali, porém, lembrei-me de alguém que sentiria aquela perda bem mais do que eu.
— Coitada da mamãe — disse, quando finalmente recuperei a voz. — Como tem passado?
— Mal, Tom. Realmente mal — disse Jack, balançando a cabeça tristemente. — Nunca vi mamãe chorar antes e foi uma cena horrível. Ela se descontrolou, ficou sem comer nem dormir durante dias. E, no dia seguinte ao enterro, fez a mala e foi embora, dizendo que precisava se afastar por um tempo.
— Aonde foi?
Jack balançou a cabeça, seu rosto espelhando uma total infelicidade.
— Eu gostaria de saber.
Não disse nada a Jack, mas lembrei-me do que meu pai me havia dito: mamãe tinha vida própria e, depois que ele estivesse morto e enterrado, provavelmente ela regressaria à sua terra. E ele tinha acrescentado que, quando esse momento chegasse, eu deveria ter coragem e deixá-la partir com um sorriso. A minha esperança é que ela ainda não tivesse viajado. Será que iria embora sem se despedir de mim? Eu tinha esperança que não. Precisava vê-la novamente, mesmo que fosse a última vez.
Aquela foi a pior refeição que me lembro de ter feito em casa.
Foi muito triste não ter meus pais sentados à mesa, e não parei de olhar para a cadeira vazia dele. O bebê já estava lá em cima no berço, então éramos apenas três, Jack, Ellie e eu, catando a comida no prato.
Quando meu olhar encontrou o de Ellie, ela sorriu triste, mas permaneceu calada. Tive a sensação de que queria me dizer alguma coisa, mas estava esperando uma oportunidade.
— O ensopado está muito bom, Ellie — comentei. — Desculpe se deixo sobrar, mas não estou conseguindo comer muito. Ando sem fome.
— Não se preocupe, Tom — respondeu ela gentilmente. — Eu compreendo. Nenhum de nós tem apetite. Coma o que puder. É importante conservar suas forças num momento como esse.
— Provavelmente, a hora é imprópria, mas eu queria dar os parabéns aos dois. Da última vez que estive aqui, mamãe me contou que estão esperando outro bebê e que é um menino.
Jack sorriu tristemente, sua voz mansa.
— Obrigado, Tom. Se, ao menos, papai tivesse vivido para ver o neto nascer... — Em seguida, ele pigarreou como se fosse dizer uma coisa importante. — Olhe — começou ele. — Por que você não fica conosco uns dias até o tempo melhorar? Não precisa voltar amanhã, precisa? A verdade é que uma ajuda no sítio viria a calhar. James ficou uns dois dias, mas precisou voltar para o trabalho dele.
James era o meu segundo irmão mais velho; era ferreiro. Eu duvidava que tivesse ficado depois do enterro porque Jack realmente precisava de ajuda no sítio. Não estávamos falando do plantio da primavera nem da colheita do outono, épocas em que se empregava toda mão de obra que se pudesse obter. Não, Jack queria que eu ficasse, pela mesma razão que precisara de James. Apesar de detestar o ofício de caça-feitiço e geralmente não se sentir bem com a minha presença, ele precisava de mim agora para preencher o vazio, a solidão de estar ali sem papai nem mamãe.
— Eu gostaria de demorar uns dias — respondi, sorrindo.
— É muita bondade sua, Tom. Agradeço — disse ele, empurrando o prato, embora não tivesse ingerido nem um terço da comida. — Estou indo me deitar.
— Irei mais tarde, amor — disse Ellie a Jack. — Você não se importa se eu ficar mais um pouco fazendo companhia ao Tom, não é?
— Claro que não — respondeu ele.
Quando Jack subiu, Ellie me deu um sorriso caloroso. Estava bonita como sempre mas parecia pesarosa e cansada, era o preço da tensão da última semana.
— Obrigada por concordar em ficar, Tom — disse-me. — Ele precisa conversar sobre os velhos tempos com um irmão. É assim que se chora uma perda, falando dela sem parar. Mas acho também que precisa de você porque acredita que, se estiver aqui, é mais provável que sua mãe volte...
A ideia não tinha me ocorrido. Minha mãe pressentia as coisas. Saberia que eu estava passando uns dias no sítio. Quem sabe ela, de fato, voltasse para me ver.
— Espero que sim.
— Eu também, Tom. Mas, escute, quero que você seja muito paciente com Jack. Tem uma coisa que ele ainda não lhe contou. Houve uma surpresa no testamento do seu pai. Uma coisa que ele não esperava...
Franzi a testa, preocupado. Uma surpresa. Que poderia ser? A família toda sabia que, quando papai morresse, Jack, que era o filho mais velho, herdaria o sítio. Não teria sentido dividi-lo entre os sete filhos, tornando-o cada vez menor. Era a tradição do Condado. Sempre passava para o filho mais velho, com a obrigação de garantir o teto para a viúva enquanto vivesse.
— Uma surpresa agradável? — perguntei inseguro, sem saber o que esperar.
— Não, não do ponto de vista do Jack. Mas não quero que você entenda mal, Tom. Ele só está pensando em mim e na pequena Mary e, é claro, no filho que vai nascer — disse ela, alisando a barriga. — Jack não herdou a casa inteira. Um quarto foi deixado para você...
— O quarto da mamãe? — perguntei, adivinhando a resposta. Era onde minha mãe guardava os objetos pessoais, onde guardava a corrente de prata que tinha me dado no outono.
— É, Tom. Aquele quarto embaixo do sótão, sempre trancado à chave. Aquele quarto e tudo que ele contém. Embora a casa e a terra sejam propriedades do Jack, você sempre terá acesso àquele quarto e permissão para usá-lo quando quiser. Jack empalideceu quando o testamento foi lido. Isso significa que você poderia até morar aqui, se quiser.
Eu sabia que Jack não ia querer que eu viesse muitas vezes a casa, para evitar que eu trouxesse alguma coisa comigo; alguma coisa das trevas. Eu não podia contradizê-lo porque isso já acontecera antes. A velha feiticeira Mãe Malkin chegara a entrar no nosso porão, na primavera anterior. O bebê de Jack e Ellie tinham corrido um perigo real.
— Mamãe fez algum comentário sobre esse desejo? — perguntei.
— Nem uma palavra. Jack ficou aborrecido demais para discutir o assunto e ela foi embora no dia seguinte.
Não pude deixar de pensar que a doação daquele quarto a mim significava que logo ela estaria partindo; indo para sua terra e nos deixando para sempre. Isto é, se já não tivesse partido.
Na manhã seguinte me levantei muito cedo, mas Ellie chegara à cozinha antes de mim. O cheiro das salsichas fritas é que tinha me atraído para baixo. Apesar de tudo que acontecera, meu apetite estava começando a retornar.
— Dormiu bem a noite, Tom? — perguntou-me com um grande sorriso.
Confirmei com um aceno, mas foi uma mentirinha. Tinha levado muito tempo para adormecer e acordado a toda hora. E, cada vez que abria os olhos, tornava a sentir a dor, como se compreendesse pela primeira vez que meu pai tinha morrido.
— Cadê a neném? — perguntei.
— Mary está lá em cima com Jack. Ele gosta de passar um tempinho com ela toda manhã. Assim, tem uma boa desculpa para começar a trabalhar mais tarde. Vocês não vão mesmo conseguir fazer muita coisa hoje — disse, apontando para a janela. Os flocos de neve desciam rodopiando e a cozinha estava mais clara do que em dias de verão porque a luz se refletia na neve que se amontoava no terreiro.
Logo em seguida, eu estava devorando um prato de ovos com salsichas. Enquanto comia, Jack desceu e me fez companhia à mesa. Cumprimentou-me com a cabeça e começou a comer. Ellie foi para a sala da frente e nos deixou sozinhos. Meu irmão catava a comida com a ponta do garfo e mastigava-a lentamente, e eu comecei a me sentir culpado porque conseguia apreciar a minha refeição.
— Ellie me disse que você já sabe do testamento — disse Jack finalmente.
Confirmei com a cabeça, mas continuei calado.
— Olhe, Tom, como filho mais velho, sou o testamenteiro, o executor do testamento, e é meu dever garantir que os desejos do papai sejam cumpridos, mas estive pensando se não poderíamos entrar em um acordo. E se eu comprasse o seu quarto? Se eu pudesse levantar o dinheiro, você o venderia para mim? E quanto aos pertences de mamãe lá dentro, tenho certeza de que o sr. Gregory deixaria você guardá-los em Chipenden.
— Preciso de tempo para pensar, Jack. Tudo isso foi uma surpresa. Coisas demais acontecendo rápido demais. Não se preocupe. Não tenho planos de voltar com frequência aqui. Estarei muito ocupado.
Jack enfiou a mão no bolso da calça e tirou um molho de chaves. Colocou-as sobre a mesa à minha frente. Havia uma chave grande e três menores: a maior para a porta do quarto; as outras três para as caixas e baús guardados lá dentro.
— Bem, aqui estão as chaves. Com certeza, você irá querer subir e ver o que herdou.
Estiquei o braço e empurrei as chaves de volta.
— Não, Jack. Por enquanto, fique com elas. Não entrarei naquele quarto até ter conversado com mamãe.
Ele me olhou espantado.
— Você tem certeza?
Confirmei com a cabeça, ele tornou a enfiar as chaves no bolso e o assunto foi encerrado.
O que Jack tinha dito era bastante sensato. Contudo, eu não queria o dinheiro. Para comprar a minha parte, ele teria que levantar um empréstimo e, financeiramente, a situação já era bastante difícil, pois ele iria cuidar do sítio sozinho. No que me dizia respeito, meu irmão poderia ficar com o quarto. E, certamente, o Caça-feitiço me deixaria guardar as caixas e baús da minha mãe em Chipenden. Eu suspeitava, porém, que era desejo de minha mãe que o quarto fosse meu, e isso era a única coisa que me impedia de concordar imediatamente. O testamento era do meu pai, mas a decisão provavelmente havia sido dela. Minha mãe sempre tinha uma ótima razão para fazer tudo que fazia; portanto, eu não poderia decidir com acerto até termos falado pessoalmente.
Naquela tarde, fui visitar o túmulo do meu pai. Jack ia me acompanhar, mas consegui fazê-lo desistir. Eu queria um tempo só para mim. Pouco mais de uma hora para refletir e chorar sozinho. E havia mais uma coisa que eu precisava saber. Algo que eu não poderia fazer, se Jack fosse comigo. Ele não entenderia ou, na melhor das hipóteses, ficaria realmente aborrecido.
Programei a minha ida para chegar ao pôr do sol com claridade apenas suficiente para localizar o túmulo. Era um cemitério desolado e coberto de neve, a quase um quilômetro da igreja. O adro da igreja em si estava lotado, por isso tinham consagrado aquele terreno adicional. Era, na realidade, apenas uma pequena área cercada por uma sebe de pilriteiros e uns poucos sicômoros na divisa oeste. Foi fácil encontrar a sepultura do meu pai na fila da frente dos lotes que avançavam mês a mês pelo cemitério. Sua sepultura ainda não tinha lápide, mas estava temporariamente assinalada por uma cruz simples, com o seu nome entalhado na madeira:
JOHN WARD
R.I.P
Por algum tempo, fiquei parado junto à cruz, pensando nos tempos felizes que passáramos em família; recordando a época em que era pequeno, e papai e mamãe viviam felizes e ocupados, e todos os meus irmãos moravam em casa. Lembrei-me da última vez que conversáramos e ele me dissera que se orgulhava de ter um filho tão corajoso, e que, embora não tivesse favoritos, em sua opinião eu seria o melhor de todos.
As lágrimas me vieram aos olhos e chorei alto ao lado da sepultura. Quando começou a escurecer, respirei fundo e me controlei, concentrei-me no que precisava fazer. Tarefa de caça-feitiço.
— Papai! Papai! — me dirigi à escuridão. — Você está aí? Está me ouvindo?
Três vezes gritei, exatamente do mesmo modo e com as mesmas palavras, mas a cada uma os únicos sons que ouvi foram o assobio do vento passando pela sebe de pilriteiros e um cachorro solitário latindo ao longe. Suspirei, então, aliviado. Meu pai não estava ali. Seu espírito não ficara preso na terra. Não era um espírito que rondava o túmulo. Eu desejava apenas que ele tivesse ido para um lugar melhor.
Ainda não chegara a uma conclusão definitiva sobre Deus. Talvez Ele existisse e talvez não. Se existia, será que se daria ao trabalho de me ouvir? Habitualmente eu não rezava, mas, tratando-se do meu pai, abri uma exceção.
— Por favor, meu Deus, dê-lhe a paz — falei baixinho. — É o que ele merece. Foi um homem bom e trabalhador, e eu o amava.
Então me virei e, muito triste, refiz o caminho para casa.
Demorei-me no sítio quase uma semana. Quando chegou a hora de partir, chovia, e, no terreiro, a neve estava se transformando em lama gelada.
Minha mãe não voltou, e fiquei em dúvida se algum dia voltaria. Meu dever, porém, era retornar a Anglezarke e ver como ia passando o Caça-feitiço. Eu só esperava que ele estivesse convalescendo. Disse a Jack e Ellie que os visitaria na primavera e que então conversaríamos sobre o quarto.
Comecei a longa caminhada para o sul, pensando no meu pai e nas mudanças que tinham ocorrido. Parecia fazer pouco tempo que eu vivera feliz em casa com meus pais e meus seis irmãos, e papai era forte e bem-disposto. Agora tudo estava mudando. Tudo se desintegrando.
De certa maneira, eu jamais poderia visitar a minha casa de novo porque ela deixara de existir. Tudo estava muito diferente agora. As construções continuariam as mesmas e eu ainda avistaria o morro do Carrasco da janela do meu antigo quarto. Mas, sem meus pais, o sítio simplesmente não seria a minha casa.
Eu sabia que tinha perdido alguma coisa para sempre.
NECROMANCIA
Quanto mais eu avançava para o sul, mais frio ficava, e a chuva era gradualmente substituída pela neve. Eu estava cansado e queria ir direto para a casa do Caça-feitiço, mas prometera a Alice visitá-la primeiro e pretendia cumprir minha palavra.
Quando finalmente divisei o Sítio Vista da Charneca, já era quase noite. O vento tinha cessado e o céu desanuviara. A lua saíra e a neve fazia tudo parecer muito mais luminoso do que o normal; para além da sede do sítio, o lago era um espelho escuro refletindo as estrelas.
O sítio em si estava escuro. A maioria dos sitiantes do Condado se deitava cedo no inverno, então era exatamente o que eu esperava. Minha esperança, no entanto, era que Alice tivesse pressentido minha aproximação e saísse escondido para vir ao meu encontro. Passei pela cerca divisória e atravessei o campo em direção ao aglomerado de construções malcuidadas. Diante de mim erguia-se um curral e, ouvindo um som estranho, parei à porta aberta. Alguém estava chorando.
Entrei, e os animais se afastaram nervosos. Imediatamente o fedor chegou às minhas narinas. Não era o costumeiro cheiro quente de animal acrescido de algumas dúzias de saudáveis dejetos de gado. Era cheiro de diarreia, um mal digestivo que ataca o gado e os porcos. Um mal tratável, mas aqueles animais estavam doentes e abandonados. A situação tinha piorado muito desde que eu passara por lá.
Foi então que percebi que alguém estava me observando. À esquerda, iluminado por um raio de luar, achava-se sentado o sr. Hurst, encolhido em um tamborete de ordenha. As lágrimas corriam pelas faces do velho e ele me fitava, a infelicidade estampada em seu rosto. Recuei quando se levantou.
— Vá embora! Me deixe em paz! — exclamou, sacudindo o punho para mim, tremendo da cabeça aos pés.
Fiquei assustado e aflito. Ele sempre fora tão manso e gentil, jamais dissera a mim ou a Alice uma só palavra de irritação. Agora parecia desesperado e no limite de sua resistência. Afastei-me de cabeça baixa. Fiquei muito penalizado. Morgan devia estar tratando o pai realmente mal; decerto, era por isso que estava zangado e constrangido. Eu não sabia o que fazer, mas achei melhor conversar com Alice sobre o que tinha visto.
Continuei andando até o terreiro. A casa continuava às escuras e não tive certeza do que fazer. Alice devia estar realmente ferrada no sono para não perceber que eu estava por perto. Esperei um pouco, meu hálito condensando no ar frio.
Dirigi-me à porta dos fundos e bati duas vezes, mas não precisei bater uma terceira. Em instantes, a porta foi abrindo lentamente, as dobradiças rangeram e a sra. Hurst me espreitou, piscando ao luar.
— Preciso falar com Alice — disse-lhe.
— Entre, entre — convidou-me, sua voz fraca e rouca.
Havia um capacho junto à porta, por isso entrei no pequeno hall e, depois de sorrir e lhe agradecer educadamente, bati a neve das botas o melhor que pude. À frente havia duas portas internas. A da direita estava fechada, mas a porta que dava para o quarto de Morgan estava parcialmente aberta e vi uma vela bruxuleando em seu interior.
— Entre — disse ela, apontando para o quarto.
Por um momento, hesitei, imaginando o que Alice estaria fazendo no quarto de Morgan, mas ainda assim entrei. O ar estava impregnado com o fedor de sebo e, por alguma razão, a primeira coisa em que reparei foi uma grossa vela de cera preta, encaixada em um grande castiçal de latão. Estava no centro da comprida mesa de madeira com suas duas cadeiras, uma em cada ponta.
Eu tinha esperado ver Alice, mas me enganara. Sentado à ponta da mesa mais próxima, com o rosto voltado para a vela, havia uma figura encapuzada. Ela se virou para mim e vi uma barba e um sorriso zombeteiro. Era Morgan.
Mais uma vez, meu instinto foi fugir, mas ouvi dois ruídos às minhas costas. O primeiro foi o da porta fechando-se firmemente. O segundo foi o pesado ferrolho encaixando-se no suporte. À minha frente, vi a janela coberta pela pesada cortina preta e nenhuma outra porta. Estava preso no quarto com Morgan.
Olhei ao meu redor, depois para as lajes nuas de pedra e, por fim, para a cadeira que aguardava vazia. O quarto estava frio e estremeci. Havia uma lareira, mas cheia de cinzas.
— Sente-se, Tom — disse Morgan. — Temos muito que conversar.
Não me mexi, por isso ele indicou a cadeira defronte.
— Vim aqui falar com Alice — respondi.
— Alice foi embora. Partiu há uns três dias.
— Partiu? Partiu para onde? — perguntei.
— Ela não disse. Não era uma garota muito comunicativa aquela Alice. Nem se deu ao trabalho de avisar que estava indo embora. Agora, Tom, a última vez que você entrou neste quarto foi sem convite, como um ladrão no meio da noite, com aquela garota ao seu lado. Mas vamos esquecer isso porque agora você é muito bem-vindo. Então, vou repetir. Sente-se.
Desanimado, sentei-me, mas conservei meu bastão em pé do lado esquerdo, segurando-o com firmeza. Como sabia que tínhamos estado no quarto dele? E fiquei realmente preocupado com Alice. Aonde poderia ter ido? Com certeza, não voltara para Pendle. Olhei para a outra ponta da mesa e enfrentei o olhar de Morgan. De repente, com um sorriso, ele baixou o capuz, revelando sua cabeleira basta e rebelde. Pareceu-me bem mais grisalha do que da última vez. À luz da vela, seu rosto estava anguloso e as rugas muito mais fundas.
— Eu lhe ofereceria vinho — disse ele —, mas não bebo quando estou trabalhando.
— Eu normalmente não bebo vinho — respondi.
— Mas, com certeza, come queijo — retorquiu com um sorriso zombeteiro no rosto.
Não respondi, e sua expressão se tornou séria. Inesperadamente ele se curvou para frente, contraiu os lábios e soprou com força. A chama da vela dançou e se apagou, mergulhando o quarto em absoluta escuridão e intensificando o cheiro de sebo.
— Agora somos apenas você, eu e a escuridão — disse Morgan. — Acha que é capaz de aguentar? Tem coragem para ser meu aprendiz?
Eram as palavras exatas que o Caça-feitiço me dissera no porão da casa mal-assombrada em Horshaw, o lugar onde me levara no primeiro dia de aprendizado. Fizera isso para avaliar se eu tinha ou não o estofo exigido para ser um caça-feitiço. Foram as palavras que me disse no momento em que a vela apagou.
— Aposto que, quando você desceu pela primeira vez a escada do porão, ele estava sentado no canto e se levantou no momento em que você se aproximou — continuou Morgan. — Nada muda. Você, eu e outras duas dezenas ou mais. É previsível. O velho tolo! Não admira que ninguém fique com ele muito tempo.
— Você ficou três anos — repliquei baixinho no escuro.
— Recuperou sua voz, Tom? Que bom — disse Morgan. — Vejo que ele andou falando a meu respeito. Encontrou alguma coisa boa para dizer?
— Na verdade, não.
— Isso não me surpreende. E lhe contou por que desisti do meu aprendizado de caça-feitiço?
Agora meus olhos já tinham se acostumado ao escuro e pude distinguir a forma de sua cabeça na minha frente à mesa. Eu poderia ter lhe dito que o Caça-feitiço comentara que ele não tinha disciplina e não estava à altura do ofício, mas em vez disso decidi fazer algumas perguntas pessoais.
— Que quer de mim? E por que a porta foi trancada? — perguntei.
— Para você não poder fugir novamente. Para você não ter opção, exceto ficar e encarar o que tenho a lhe mostrar. Ouvi dizer que você é um bom aprendiz. Você e eu sabemos que seu mestre não dá grande valor a isso. Portanto, esta é a primeira aula do seu novo aprendizado. Você terá que lidar com os mortos, mas vou ampliar seu conhecimento. E ampliá-lo de maneira significativa.
— Por que iria querer fazer isso? — desafiei-o. — O sr. Gregory está me ensinando tudo que preciso saber.
— Primeiro as coisas mais importantes, Tom — respondeu Morgan. — Vamos falar de fantasmas primeiro. Que sabe sobre eles?
Resolvi fazer sua vontade. Talvez, se o deixasse desabafar o que guardava no peito, eu pudesse retomar a viagem para a casa do Caça-feitiço.
— A maioria dos fantasmas está preso aos ossos; outros, ao lugar onde sofreram ou cometeram algum crime terrível quando ainda viviam na Terra. Não têm liberdade de ir aonde querem.
— Muito bem, Tom — disse Morgan com uma ponta de zombaria na voz. — E aposto como também anotou tudo isso no seu caderno, como um aprendiz bem mandado. Pois ouça uma coisa que aquele velho tolo não lhe ensinou. Nem deve ter mencionado, porque não gosta de pensar nisso. Eis a grande pergunta. Aonde vão as pessoas depois que morrem? E não estou me referindo a sombras e fantasmas presos à Terra. Eu me refiro aos outros mortos. A vasta maioria. Gente como seu pai.
Ao ouvir a menção ao meu pai me empertiguei na cadeira e encarei Morgan.
— Que é que você sabe sobre meu pai? — perguntei com raiva. — Como soube que ele estava morto?
— Tudo a seu tempo, Tom. Tudo a seu tempo. Tenho poderes com que seu mestre apenas sonha. Mas você não respondeu à minha pergunta. Aonde vão as pessoas depois da morte?
— A Igreja diz que vão para o céu, o inferno, o purgatório ou o limbo — respondi. — Não tenho muita certeza, o sr. Gregory nunca aborda esse assunto. Mas acredito que a alma sobreviva à morte.
O purgatório era aonde iam as almas para se purgar, sofrer até ter condições de entrar no céu. O limbo era mais misterioso. Os padres achavam que os que não tinham recebido o batismo iam para lá. Supunham que fosse um lugar para almas que não eram realmente más, mas por culpa de outros não estavam em condições de entrar no céu.
— Que sabe a Igreja? — comentou Morgan em tom desdenhoso. — Isso é praticamente a única coisa em que o Velho Gregory e eu concordamos. Mas veja, Tom, dos quatro lugares que você acabou de mencionar, o limbo é, de longe, o mais útil para alguém como eu. O nome vem do latim, limbus, que significa “borda externa” ou “orla”. Veja, qualquer que seja seu destino final, a maioria dos mortos tem que passar primeiro pelo limbo, que fica no fim deste mundo, e alguns acham isso muito difícil. Os mortos fracos, temerosos e culpados recuam e recaem neste mundo, onde viram fantasmas, se juntam aos que se atrasaram e ficaram presos na Terra. São os mais controláveis. Mas, mesmo os fortes e bons, precisam se empenhar e lutar para ultrapassar o limbo. Isso leva tempo, e, enquanto demoram, tenho o poder de alcançar qualquer alma à minha escolha. Posso retê-la quando passa. Posso obrigá-la a fazer o que quero. Se necessário, fazê-la sofrer.
“Os mortos já viveram. Suas vidas terminaram. Mas nós continuamos vivos e podemos usá-los. Podemos nos aproveitar deles. Eu quero o que Gregory me deve. Quero a casa dele em Chipenden, com aquela enorme biblioteca que encerra tanto conhecimento. E há mais uma coisa. Uma coisa ainda mais importante. Uma coisa que ele me roubou. Ele está de posse de um grimório, um livro de feitiços e rituais, que você vai me ajudar a recuperar. Em troca, pode continuar o seu aprendizado, sob a minha orientação. E lhe ensinarei coisas com que ele jamais sonhou. Entregarei em suas mãos um poder real!”
— Não quero a sua orientação — retruquei indignado. — Estou feliz com as coisas do jeito que estão!
— Que o faz pensar que pode escolher? — perguntou Morgan, sua voz repentinamente fria e ameaçadora. — Acho que está na hora de lhe mostrar o que posso fazer. Agora, para sua própria segurança, quero que se sente absolutamente imóvel e ouça com atenção. Aconteça o que acontecer, não tente se levantar dessa cadeira!
O quarto mergulhou em silêncio e fiz o que ele mandava. Que mais poderia fazer? A porta estava trancada e ele era maior e mais forte do que eu. Eu poderia usar o meu bastão contra ele, mas sem real garantia de sucesso. Por enquanto, era melhor concordar até poder sair e voltar para o Caça-feitiço.
Ouvi um leve ruído na escuridão. Algo entre um farfalhar e passos leves. Lembrava um pouco camundongos correndo sob as tábuas do soalho. Não havia, porém, tábuas, apenas pesadas lajotas de pedra, e senti o quarto começar a esfriar. Em geral, isso sinalizava a aproximação de alguma coisa; alguma coisa que não pertencia a este mundo. Por outro lado, aquele frio parecia diferente, tal como fora quando nos falamos na capela.
Repentinamente, um sino dobrou muito acima de nossas cabeças. Era um som profundo e triste, como a chamar os enlutados para um enterro, e tão forte que a mesa vibrou. Eu o sentia ecoando pelas pedras sob meus pés. O sino dobrou nove vezes, cada dobre mais leve que o anterior. Seguiram-se imediatamente três batidas fortes na mesa. Eu discernia o vulto de Morgan e ele não me parecia estar se mexendo. As batidas se repetiram mais altas e o pesado castiçal de latão tombou, rolou pela mesa e bateu no chão.
No quarto escuro, o silêncio que se seguiu foi quase doloroso e tive a sensação de que meus tímpanos iam estourar. Eu estava prendendo a respiração e só o que conseguia ouvir era a pulsação em minha cabeça, as batidas rápidas do meu coração. O estranho frio se intensificou e então Morgan falou para a escuridão.
— Minha irmã, pare e me escute com atenção! — ordenou.
Ouvi o ruído de água gotejando. Parecia haver um buraco no teto que vazava no centro da mesa, onde estivera a vela.
Em seguida, uma voz respondeu. Dava a impressão de vir da boca de Morgan. Eu distinguia apenas o contorno de sua cabeça e podia jurar que seu queixo estava mexendo, mas era uma voz de moça, e um homem adulto não poderia imitar aquele timbre e intensidade.
— Me deixe em paz! Me deixe descansar! — exclamou a voz.
O ruído das gotas de água caindo aumentou, seguido de um discreto chapinhar, como se estivesse se formando uma poça no tampo da mesa.
— Obedeça-me e depois a deixarei descansar — tornou Morgan. — É com outro que quero falar. Traga-o aqui e depois pode retornar ao lugar de onde veio. Há um garoto comigo no quarto. Pode vê-lo?
— Eu o vejo — respondeu a voz de moça. — Ele acabou de perder alguém. Sinto sua tristeza.
— O nome do garoto é Thomas Ward — disse Morgan. — Está de luto pelo pai. Traga o espírito do pai até nós agora!
O frio começou a diminuir e a água parou de cair. Não pude acreditar no que acabara de ouvir. Morgan iria mesmo trazer o espírito do meu pai? Senti-me ofendido.
— Você não gostaria de falar com seu pai mais uma vez? — Morgan me interpelou. — Já fiz isso e ele me disse que todos os seus irmãos o visitaram no leito de morte para se despedir, exceto você, que não esteve presente nem ao enterro. Ele ficou triste. Muito triste. Agora vocês dois terão uma oportunidade de acertar as coisas.
Aquilo me deixou perplexo. Como Morgan poderia saber o que acontecera? A não ser que realmente tivesse se comunicado com o espírito do meu pai...
— Não foi minha culpa! — respondi zangado e transtornado. — Não recebi a mensagem a tempo.
— Então, agora você terá oportunidade de lhe dizer isso pessoalmente...
Recomeçou a esfriar. Uma voz se dirigiu a mim do outro lado da mesa. O queixo de Morgan estava mexendo outra vez, mas, para meu desânimo, era a voz do meu pai que estava saindo de sua boca. Não havia engano. Ninguém poderia ter imitado a voz de outra pessoa com tanta perfeição. Era como se meu pai estivesse sentado diante de mim na outra cadeira.
— Está escuro — exclamou meu pai —, não consigo nem enxergar minha mão diante do rosto. Alguém, por favor, acenda uma vela para mim. Acenda uma vela para que eu possa me salvar.
Senti-me péssimo ao pensar em meu pai sozinho com medo do escuro. Tentei falar para tranquilizá-lo, mas Morgan falou primeiro.
— Como pode se salvar? — disse com sua voz grave, forte e autoritária. — Como pode um pecador como você alcançar a luz? Um pecador que sempre trabalhou no dia do Senhor?
— Ah, perdoe-me! Perdoe-me, meu Deus. Eu era sitiante e tinha tarefas a fazer. Gastei os dedos de tanto trabalhar, mas as horas do dia nunca eram suficientes. Eu tinha família para sustentar. Mas sempre paguei os meus dízimos, jamais soneguei o que pertencia à Igreja. Sempre acreditei, sinceramente acreditei. E ensinei meus filhos a distinguir o bem do mal. Fiz tudo que um pai deveria fazer.
— Um dos seus filhos está aqui agora — disse Morgan. — Gostaria de lhe falar pela última vez?
— Por favor, por favor. Me deixe falar com ele. É o Jack? Tinha coisas que eu devia ter lhe contado enquanto era vivo. Coisas que não disse e gostaria de dizer agora!
— Não — respondeu Morgan. — Não é o Jack que está aqui. É o seu filho mais moço, Tom.
— Tom! Tom! Você está aí? É você mesmo?
— Sou eu, papai. Sou eu! — exclamei, sentindo um nó na garganta. Não conseguia suportar a ideia de meu pai sofrendo na escuridão daquele jeito. Que ele tinha feito para merecer isso? — Desculpe não ter chegado a tempo em casa. Desculpe não ter ido ao seu enterro. Recebi o aviso tarde demais. Se tiver alguma coisa para dizer ao Jack, diga a mim. Darei o seu recado. — As lágrimas começaram a arder nos meus olhos.
— Diga ao Jack que peço desculpas pelo sítio, filho. Desculpas por não ter deixado tudo para ele. É o meu filho mais velho e tinha esse direito por nascimento. Mas dei ouvidos à sua mãe. Diga a ele que peço desculpas por ter deixado aquele quarto para você.
As lágrimas corriam pelo meu rosto agora. Era um choque ouvir que minha mãe e meu pai não tinham concordado a respeito daquele quarto. Quis prometer ao meu pai que acertaria a situação, cedendo o quarto a Jack, mas não pude, porque precisava levar em conta os desejos da minha mãe. Tinha que conversar com ela primeiro. Tentei, no entanto, fazer meu pai se sentir melhor. Era o máximo que poderia fazer.
— Não se preocupe, papai! Acertarei tudo. Conversarei com Jack. Isso não causará problemas na família. Absolutamente nenhum. Não se preocupe. Tudo ficará bem.
— Você é um bom rapaz, Tom — disse meu pai, sua voz carregada de gratidão.
— Um bom rapaz! — interrompeu Morgan. — Ele é tudo, menos bom. Este é o filho que você deu a um caça-feitiço! Sete filhos você teve e não ofereceu nenhum à Igreja!
— Ah! Lamento! Lamento muito! — exclamou meu pai aflito. — Mas nenhum dos meus filhos tinha vocação. Nenhum queria ser padre. Me esforcei para encontrar um bom ofício para cada um, e, quando foi a vez do último, a mãe queria que fosse aprendiz de caça-feitiço. Resisti e discutimos por causa disso como jamais tínhamos discutido. Por fim, cedi, porque eu a amava e não podia lhe negar o que seu coração pedia. Me perdoe! Fui fraco e pus o amor terreno acima do meu dever para com Deus!
— E foi o que fez! — exclamou Morgan em voz alta. — Não há perdão para alguém como você, e agora irá sofrer as dores do inferno. Está sentindo as chamas começarem a lamber sua carne? Está sentindo o calor aumentar?
— Não, Senhor! Por favor! Por favor! A dor é insuportável! Por favor, me poupe. Farei qualquer coisa! Qualquer coisa!
Levantei-me enfurecido. Morgan estava fazendo aquilo com meu pai. Fazia-o crer que estava no inferno. Fazia-o experimentar dores terríveis. Não podia permitir que continuasse.
— Não lhe dê ouvidos, papai! — gritei. — Não há chamas. Não há dor. Vá em paz! Vá em paz! Vá em direção à luz! Vá em direção à luz!
Dei quatro passos rápidos pelo lado esquerdo da mesa e, com toda a minha força, brandi meu bastão contra a figura encapuzada, aplicando-lhe um golpe poderoso. Sem emitir um som, ele caiu para a direita e ouvi a cadeira bater nas lajes.
Rapidamente apanhei meu estojinho de fazer fogo e o toco de vela no meu bolso. Em poucos instantes, consegui acender a vela. Ergui-a para iluminar ao redor. A cadeira tombara de lado e havia uma capa preta caída sobre ela e o piso. Mas de Morgan nem sinal! Cutuquei a capa com o bastão, mas encontrei-a tão vazia quanto parecia estar. Morgan desaparecera no ar!
Reparei numa coisa no tampo da mesa. A madeira estava seca como um osso e não havia vestígio algum da água que tinha parecido pingar e empoçar ali, mas onde antes tinha estado o castiçal de latão havia um envelope negro.
Apoiando a vela na beirada da mesa, estendi a mão e apanhei o envelope. Estava lacrado, mas nele se lia:
Para o meu novo aprendiz, Tom Ward.
Rasguei o envelope e desdobrei a folha de papel que ele continha.
Muito bem, você agora viu o que sou capaz de fazer. E o que acabei de fazer posso repetir. Prendi seu pai no limbo. Assim, posso alcançá-lo e fazê-lo acreditar no que eu quiser. Não há limite para a dor que posso lhe causar.
Se quiser poupá-lo, submeta-se à minha vontade. Primeiro, preciso de um objeto da casa de Gregory. No sótão, trancado na escrivaninha dele, há uma caixa de madeira, e dentro um grimório, que é um livro de feitiços e rituais poderosos. Está encadernado em couro verde e na capa tem um pentáculo de prata em relevo — uma estrela de cinco pontas inscrita em três círculos concêntricos. É meu. Traga-o para mim.
Segundo, não conte a ninguém o que viu. Terceiro, deve aceitar que agora é meu aprendiz, contratado por um período de cinco anos a partir da data de hoje — ou o seu pai irá sofrer. Para sinalizar a sua aceitação, bata três vezes no tampo da mesa. A porta está destrancada e, qualquer que seja a sua decisão, você pode sair livremente. A escolha é sua.
Morgan G.
Eu não poderia suportar a ideia do espírito de meu pai sofrendo tormentos. Tampouco queria ser aprendiz de Morgan. Relutei em bater na mesa, mas com isso eu ganharia algum tempo. Morgan pensaria que eu concordava com sua exigência e isso impediria meu pai de sofrer enquanto eu consultava o Caça-feitiço. Ele saberia o melhor a fazer.
Inspirei profundamente e bati três vezes no tampo da mesa. Prendi a respiração, mas não houve resposta. O quarto estava absolutamente estático e silencioso. Experimentei a porta e ela abriu. Eu não tinha ouvido nada, mas o ferrolho fora puxado. Voltei à mesa, apanhei meu estojinho de fazer fogo, apaguei a vela e guardei os dois nos bolsos. Depois, empunhando o bastão, deixei o quarto e abri a porta da frente.
Quase caí de espanto. Era dia claro! A luz do sol refletia-se na neve e já fazia, no mínimo, duas horas que amanhecera! Tinha me parecido que estivera no quarto de Morgan apenas quinze minutos, contudo havia transcorrido um número igual de horas.
Não dava nem para começar a explicar. O Caça-feitiço me havia dito que Morgan era um homem perigoso que mexia com as trevas. Não me havia dito, porém, que ele podia fazer as coisas que eu vira. Morgan era um mago forte e perigoso com poderes mágicos reais, e estremeci ao pensar que teria de enfrentá-lo novamente. Momentos depois eu já estava avançando com dificuldade pela neve funda, o mais rápido que podia, subindo o morro em direção à casa do Caça-feitiço.
ARDIL E TRAIÇÃO
Logo a casa surgiu à minha frente, a fumaça marrom subindo pelos canos da chaminé, anunciando que lareiras acesas e hospitaleiras me esperavam ali dentro.
Bati na porta dos fundos. Minha chave abriria a maioria das portas, mas não a usei. Uma vez que tinha estado algum tempo ausente me pareceu mais educado esperar ser convidado a entrar. Bati três vezes e, por fim, a porta foi aberta por Meg, que me deu um sorriso antes de se afastar e me deixar entrar.
— Saia depressa da neve e entre, Tom! — exclamou. — Que bom ver que você voltou.
Uma vez dentro de casa, despi a capa e o casaco de pele de carneiro, apoiei o bastão a um canto e bati a neve das minhas botas.
— Sente-se — disse Meg, conduzindo-me para junto da lareira. — Você está tremendo de frio. Vou lhe preparar uma tigela de sopa quente para aquecer seus ossos. Por enquanto, isso terá que bastar, mais tarde prepararei uma boa refeição.
Eu estava tremendo mais de nervoso do que de frio, perturbado pelo que acabara de acontecer no quarto de Morgan, mas, aos poucos, comecei a me acalmar. Obedeci e aqueci as mãos à lareira, observando minhas botas começarem a fumegar.
— É bom ver que você ainda tem todos os dedos! — exclamou Meg.
Sorri.
— Onde está o sr. Gregory? — perguntei, em dúvida se teria sido chamado para algum serviço de caça-feitiço. Desejei que tivesse sido chamado porque isso significaria que estava novamente apto e saudável.
— Ainda está de cama. Precisa de todo o descanso que puder obter.
— Então, ainda não melhorou muito?
— Está se recuperando lentamente — respondeu Meg. — Mas vai levar tempo. Essas coisas não podem ser aceleradas. Procure não perturbar nem sobrecarregar seu mestre. Ele precisa descansar e dormir o máximo que puder.
Meg me trouxe uma tigela fumegante de canja de galinha, agradeci e tomei aos poucos, sentindo o caldo começar a aquecer minhas entranhas.
— Como vai o coitado do seu pai? — perguntou-me ela de repente, acomodando-se na cadeira de balanço. — Está melhor?
Fiquei surpreso que se lembrasse, e sua pergunta trouxe lágrimas aos meus olhos mais uma vez.
— Ele morreu, Meg — respondi-lhe. — Mas estava muito doente.
— Que tristeza, Tom. Lamento muito. Sei o que é perder a família...
Senti a dor da perda do meu pai apertar meu estômago e pensei no que Morgan fizera ao seu espírito. Meu pai não merecia aquilo. Eu não podia deixar que se repetisse. Precisava fazer alguma coisa.
Meg calou-se e ficou contemplando as chamas. Passado um tempo, fechou os olhos e começou a cantar baixinho, de boca fechada. Quando terminei de tomar a sopa, fui deixar a tigela na mesa.
— Obrigada, Meg. Estava ótima.
Ela não respondeu e pareceu estar dormindo. Era uma coisa que fazia com frequência: cochilar na cadeira de balanço junto à lareira.
Eu não soube, então, o que fazer. Tinha tido esperança de falar com meu mestre sobre Morgan, mas era evidente que ele ainda não estava bem de saúde para se preocupar com problemas. Não queria incomodá-lo e fazê-lo piorar. Enquanto descansava, talvez eu pudesse dar uma olhada no grimório, verificar se estava mesmo onde Morgan dissera. Talvez alguma informação contida ali me ajudasse a decidir o que fazer. Uma coisa era evidente: com meu mestre doente e Alice desaparecida, eu estava sozinho, e cabia a mim fazer o que era certo para meu pai. Só ele me interessava, e eu precisava agir para impedir que continuasse a sofrer nas mãos de Morgan. Começaria localizando o grimório.
O Caça-feitiço estava no andar de cima, dormindo, e talvez eu não tivesse outra oportunidade tão boa de procurar o livro. Uma parte de mim se sentia mal só de pensar em apanhá-lo sem falar com o Caça-feitiço. Mais tarde haveria tempo para explicações. Agora, só meu pai importava. Eu não conseguia sequer pensar que Morgan pudesse torturá-lo novamente.
Quando fui deixando a cozinha, Meg abriu de repente os olhos e se curvou para atiçar o fogo.
— Vou subir para ver o sr. Gregory — disse-lhe.
— Não, Tom. Ainda é cedo para perturbá-lo. Sente-se aqui à lareira para se aquecer depois da longa caminhada que fez nesse frio.
— Bem, então, vou só apanhar o meu caderno no escritório.
Dirigi-me, no entanto, à sala de visitas, e não ao escritório. Se o Caça-feitiço continuava de cama, Meg ainda não teria tomado o chá de ervas. Eu precisava que ela dormisse um tempo para poder procurar o grimório, e o chá de ervas era a maneira mais fácil de conseguir isso. Apanhei o garrafão marrom no armário e dosei quase dois centímetros da infusão em uma xícara. Depois, fui à cozinha e comecei a aquecer a água.
— Que é isso? — perguntou Meg com um sorriso, quando lhe estendi a xícara.
— É o chá de ervas. Beba-o, Meg. Impedirá que o frio afete seus ossos.
O único aviso que recebi foi o desaparecimento do sorriso em seu rosto. Meg derrubou a xícara da minha mão com um tapa, fazendo-a despedaçar-se no chão. Depois se levantou, me agarrou pelo pulso e me puxou para perto. Tentei me desvencilhar, mas ela era forte demais. Senti que poderia quebrar meu braço sem grande esforço.
— Mentiroso! Mentiroso! — gritou, seu rosto a poucos centímetros do meu. — Tinha esperado mais de você, mas vejo que não é melhor do que John Gregory! Não diga que não lhe dei uma chance. Você provou ser igual a ele. Você também destruiria minha memória, não é mesmo, garoto? Mas agora eu me lembro de tudo. Sei o que era e sei o que sou!
Com os nossos rostos quase se tocando, Meg me cheirou acintosamente.
— Sei o que você é também — disse ela, sua voz agora pouco mais do que um sussurro. — Sei o que está pensando. Conheço seus piores pensamentos secretos, aqueles que você não confessaria nem a sua mãe.
Seus olhos fitavam os meus com intensidade. Não eram pontos de fogo como os de Mãe Malkin quando nos enfrentáramos naquela primavera, mas pareciam estar crescendo. Ela era uma lâmia e fisicamente mais forte do que eu, e agora sua mente estava começando a me dominar também.
— Sei o que você poderia ser um dia, Tom Ward — sussurrou ela —, mas esse dia ainda está muito distante. Você é apenas um garoto, enquanto eu já palmilhei esta terra mais anos do que gostaria de me lembrar. Portanto, não tente aplicar nenhum dos golpes de John Gregory em mim, porque conheço todos. Sem faltar nenhum!
Ela me fez girar, deixando-me de costas para ela, e soltou meu braço, transferindo suas mãos para o meu pescoço.
— Por favor, Meg! Não tive intenção de lhe fazer mal — supliquei. — Queria ajudar você. Conversei com Alice sobre isso. Ela também queria ajudá-la...
— É fácil dizer isso agora. Me dar aquela mistura nojenta para beber era um modo de me ajudar? Não, acho que não. Não quero mais ouvir suas mentiras, ou será pior para você!
— Mas não são mentiras, Meg. Lembre-se: Alice nasceu em uma família de feiticeiras. Ela entendia você e realmente lamentava o que estava acontecendo. Eu ia conversar com o sr. Gregory sobre você e...
— Certo, garoto! Já ouvi muitas desculpas! — retorquiu Meg. — É para o porão que você vai. Vamos ver se você gosta de ficar lá no escuro. É o que você merece. Quero que saiba o que passei. Eu não dormia o tempo todo, entende? Vivia acordando e passava muitas horas pensando sozinha no escuro. Fraca demais para me mexer, fraca demais para ficar em pé, tentando desesperadamente me lembrar de tudo que você e John Gregory queriam que eu esquecesse: continuava capaz de pensar e sentir, e sabia que passaria longos meses entediada e sozinha à espera que alguém aparecesse à porta para me soltar...
A princípio, eu lutei, fiz o possível para resistir, mas não adiantou, Meg era simplesmente forte demais. Ainda me prendendo pelo pescoço, ela me fez descer os degraus do porão, meus pés mal tocando o chão, até chegarmos ao portão de ferro. Meg tinha a chave, e logo o atravessamos, continuando a descer para os níveis inferiores.
Ela não se preocupou em levar vela, e, embora eu consiga andar no escuro muito melhor que a maioria das pessoas, a cada volta o caminho se tornava mais escuro e mais difícil de enxergar. A ideia do porão me aterrorizava. Lembrei-me de sua irmã, a lâmia ferina, presa em uma cova; eu não queria nem pensar em me aproximar dela. Para meu alívio, porém, quando terminamos a terceira volta, ela me fez parar diante das três portas.
Com outra chave, abriu a porta do lado esquerdo, me empurrou para dentro e me trancou. Ouvi-a, então, destrancar a cela vizinha à minha e entrar. Não se demorou. Bateu logo a porta e começou a subir as escadas. Momentos depois, ouvi o ruído metálico do portão se fechando; mais passos, sempre mais distantes; e, então, o silêncio.
Esperei alguns momentos, para ver se ela voltaria por algum motivo, mais tarde procurei nos bolsos o toco de vela e o meu estojinho de fazer fogo. Segundos depois, a vela estava acesa e examinei minha cela. Era pequena, talvez uns oito passos por quatro, com um monte de palha a um canto para me servir de cama. As paredes tinham sido construídas com blocos de pedra, e a porta de um carvalho resistente tinha uma janelinha quadrada no alto, protegida por quatro barras verticais de ferro.
Sentei-me a um canto no piso de pedra para refletir. Que acontecera na minha ausência? Tinha certeza de que, agora, o Caça-feitiço estava na cela vizinha, aquela em que Meg passava os verões. Que mais ela teria ido fazer ali? Mas como o Caça-feitiço tinha acabado em poder de Meg? Ele ainda não estava bem quando eu viajara para casa. Talvez tivesse esquecido de dar o chá de ervas a Meg e ela tivesse recuperado a memória? Talvez tivesse posto alguma coisa na comida ou na bebida dele — provavelmente a mesma coisa que ele andara usando todos esses anos para mantê-la dócil.
E não era só isso — tinha havido a influência de Alice. Ela não parava de conversar com Meg, contando-lhe que nascera em uma família de feiticeiras. Por vezes, as duas ficavam cochichando. De que falavam? Se fosse pela vontade de Alice, a dose de ervas no chá de Meg teria sido reduzida. Bom, eu não culpava Alice pelo que acontecera, mas sua presença na casa do Caça-feitiço, com certeza, não tinha melhorado a situação.
Quando regressei, Meg apenas fingira estar confusa e ficara se divertindo à minha custa. Teria realmente me dado o que chamara de uma chance? Se eu não tivesse tentado lhe dar o chá de ervas, ela teria me tratado de outro modo? Então, compreendi. Quando voltara para Anglezarke, estava tão absorto nos meus pensamentos sobre Morgan e meu pai que fiquei completamente cego a todos os indícios — sinais que agora eu via com demasiada clareza. Pela primeira vez até então, Meg me chamara de “Tom” e não de “Billy”. E se lembrara do meu pai. Por que eu não percebera na hora? Eu devia ter me mantido na defensiva. Deixara o coração governar minha cabeça, e agora o Condado inteiro corria perigo. Uma lâmia livre para voltar a andar por onde quisesse, sem um caça-feitiço nem um aprendiz para impedi-la. O que fora feito estava feito, mas de alguma forma eu precisava corrigir a situação.
Havia boas e más notícias, mas a maioria era má. Meg me “farejara”, usando seus poderes de feiticeira. Agora, ela conhecia muita coisa sobre mim, mas não se dera ao trabalho de me revistar, senão teria encontrado o estojinho de fazer fogo e a vela. Teria encontrado também a chave — aquela que podia abrir quase todas as portas, desde que não fossem muito complicadas. Então, essa era a boa notícia. Eu poderia sair da minha cela. E poderia abrir a porta da cela do Caça-feitiço também.
A má notícia é que a chave não serviria para transpor o portão. Do contrário, o Caça-feitiço não teria guardado uma chave especial no alto da estante na biblioteca. E agora ela estava em poder de Meg. Mesmo que pudéssemos sair das celas, continuaríamos presos no porão. Então, era muito evidente o que eu precisava fazer: falar com o Caça-feitiço. Meu mestre saberia o que fazer.
Usei, então, a chave para abrir a porta da minha cela. A chave não fez muito barulho, mas a porta parecia emperrada e, apesar da minha cautela, abriu com um tranco, fazendo um barulho que ecoou para cima e para baixo da escada. Desejei que Meg estivesse na cozinha junto à lareira e não tivesse ouvido. Apanhando a vela, saí pé ante pé para o corredor e iluminei a grade da cela do Caça-feitiço. Espiei para dentro, mas não vi muita coisa. Havia uma cama no canto e, em cima dela, um volume escuro. Seria o Caça-feitiço?
— Sr. Gregory? Sr. Gregory! — chamei através das barras, em tom de urgência, embora ainda me esforçasse para falar o mais baixo possível.
Ouvi um gemido profundo vindo do volume que se mexeu lentamente. Parecia a voz do Caça-feitiço. Eu ia tornar a chamá-lo, quando ouvi um som repentino na escada de baixo. Virei-me e prestei atenção. Por um momento, fez-se silêncio. Depois, ouvi novamente um ruído. Alguma coisa estava subindo os degraus na minha direção.
Um rato? Não, parecia bem maior. De repente, a coisa parou. Estaria enganado? Imaginara o ruído? O medo pode pregar peças à nossa mente. O Caça-feitiço sempre dizia que era importante distinguir entre sonho e vigília.
Sem perceber, eu estivera prendendo a respiração. Agora, tendo expelido o ar, percebi que o movimento subindo a escada havia recomeçado. Eu não podia ver do outro lado da curva; portanto, só podia julgar o que era pelos sons que fazia. Não era algo que estivesse se arrastando para cima, então não poderia ser uma feiticeira morta que tivesse conseguido se libertar. Não era o som de botas, portanto não poderia ser uma sombra nem um fantasma subindo as escadas, nem mesmo um ser humano que, por alguma razão, estivesse se escondendo lá embaixo. Era um som que eu nunca tinha ouvido na vida.
Alguma coisa se movia e parava, tornava a se mover e se detinha com a mesma ligeireza. Alguma coisa que estava subindo a escada com mais de duas pernas! Que mais poderia ser? Só podia ser a lâmia ferina! Depois de anos na cova, estava sentindo uma necessidade desesperada de sangue humano. E estava vindo atrás de mim!
Em pânico, sem pensar, voltei correndo para a minha cela, fechei a porta e tranquei-a depressa. Em seguida, apaguei a vela — do contrário, ela poderia ver a luz e ser atraída. Mas estaria eu seguro dentro de uma cela trancada? Se a feiticeira conseguira fugir da cova, é porque tinha sido capaz de vergar as barras. Então me dei conta de que Meg poderia simplesmente ter libertado a irmã, e, por um momento, me senti um pouco melhor. Não tive tempo, porém, de respirar aliviado. Lembrei-me de uma coisa que o Caça-feitiço me dissera sobre o portão:
“O ferro impediria a maioria de ultrapassar esse ponto...”
A feiticeira lâmia era a coisa mais perigosa que havia no porão. Portanto, se ela decidisse fugir, talvez nem a grade de ferro fosse suficiente para segurá-la por muito tempo! Quanto às barras da minha cela, era melhor nem pensar. Minha única esperança era que a feiticeira ainda estivesse fraca depois de ter passado tanto tempo na cova.
Fiquei absolutamente parado e apurei os ouvidos, fazendo o possível para respirar sem ruído. Eu a ouvia se aproximando, ela dava uma corridinha e parava, e chegava cada vez mais perto. Empurrei as costas contra o canto da cela e prendi a respiração.
Alguma coisa roçou na porta. O contato seguinte com a madeira foi mais forte. Ouvi, então, um arranhão, como se garras afiadas se cravassem na madeira, tentando obter apoio. Era como se alguma coisa procurasse se firmar para subir pela porta. Eu correra para a minha própria cela sem pensar e agora desejava que tivesse me trancado na do lado, na companhia do Caça-feitiço. Talvez conseguisse acordá-lo e lhe perguntar o que fazer.
Estava escuro. Muito escuro. Tão escuro que, na minha cela, eu não sabia dizer onde terminava a porta e começavam as paredes dos lados. O retângulo da janelinha cortado pelas quatro barras verticais era ligeiramente mais claro do que o restante da porta; portanto, devia haver alguma luz nas escadas projetando uma leve claridade na parede, para além da minha cela.
Uma forma passou pelo retângulo. Era uma silhueta, mas pude ver o suficiente para identificar sua semelhança com uma mão. Ouvi-a agarrar as barras. Não era, no entanto, um contato de pele e músculos. Produzia um som áspero, como se uma lima raspasse o ferro e fosse acompanhado por um silvo explosivo de raiva e dor. A lâmia tinha encostado em ferro, e a dor que estava sentindo devia ser intensa. Somente a sua força de vontade a fazia insistir. Em seguida, algo volumoso passou diante das barras, como o disco de uma lua escura eclipsando a luz pálida por trás. Tinha que ser a cabeça da feiticeira. Espiava-me pelas barras, mas estava escuro demais para eu ver seus olhos!
Ouvi um segundo arranhão, e a porta gemeu e estalou. Tremi de medo. Entendia o que estava acontecendo. Ela tentava vergar as barras ou arrancá-las da porta de madeira.
Se eu tivesse comigo o meu bastão de sorveira-brava, poderia ter golpeado e talvez afugentado a lâmia através das barras. Mas eu não tinha nada. Minha corrente de prata estava na bolsa, e ali não me seria útil. Eu não tinha nada que pudesse usar para me defender.
A porta gemia e estalava reagindo à pressão crescente, e ouvi-a começar a ceder. A feiticeira sibilou e produziu um som fungado e rouco. Estava ansiosa para entrar, desesperada para beber meu sangue.
Para meu alívio, porém, ouvi uma súbita batida metálica no alto da escada, e a lâmia largou as barras e desapareceu de vista. Ouvi o eco de passos que se aproximavam, e a chama de uma vela dançou na parede em frente às barras.
— Para trás! Para trás! — Ouvi Meg gritar do outro lado da porta e, em seguida, o barulho da lâmia se afastando depressa escada abaixo.
Depois vi a chama da vela e ouvi o clique-clique dos sapatos de bico fino acompanhando a criatura na descida. Fiquei onde estava encolhido a um canto. Algum tempo depois, os passos tornaram a se aproximar, ouvi pousarem um balde no chão e uma chave girar na fechadura da minha cela.
Bem a tempo, antes que Meg abrisse a porta, empurrei o toco de vela e o estojinho de fazer fogo para dentro dos bolsos. Agora estava feliz de não ter me trancado na cela do Caça-feitiço, ou ela teria sabido que eu possuía outra chave.
Meg parou emoldurada no portal, erguendo sua vela no alto. Com a outra mão, fez sinal para eu me aproximar. Não me mexi. Estava apavorado demais.
— Vem aqui, garoto — disse ela, rindo para si mesma. — Não se preocupe. Não vou morder você!
Fiquei de joelhos, mas minhas pernas estavam bambas demais para me permitirem ficar de pé.
— Você vem, garoto? Ou terei de ir buscá-lo? — perguntou Meg. — A primeira opção é muito mais fácil e menos dolorosa...
Dessa vez, o terror me pôs de pé. Ela poderia ser “doméstica”, mas não deixava de ser uma lâmia cujo alimento favorito era, provavelmente, sangue. O chá de ervas a fizera esquecer esse detalhe. Agora, porém, ela sabia exatamente o que era. E sabia o que queria. Havia compulsão em sua voz; um poder que enfraquecia a minha vontade e me fez atravessar a cela até a porta aberta.
— Sorte sua eu ter decidido alimentar Marcia antes — disse ela, apontando para o balde.
Olhei para baixo. Estava vazio. Não sei o que contivera, mas havia uma película de sangue no fundo.
— Quase deixei para mais tarde, mas então me lembrei de que ela ficaria desesperada para pegar você, uma vez que é tão jovem. John Gregory não exerce a metade dessa atração — explicou ela com um sorriso fino e cruel, indicando com a cabeça a cela ao lado e confirmando para mim que o Caça-feitiço estava, de fato, ali.
— Ele realmente gosta de você — eu disse a Meg desesperado. — Sempre gostou. Por favor, não o trate assim! Na verdade, ele a ama. Ele realmente a ama! — repeti. — Chegou a escrever isso em um dos seus cadernos. Não era para eu ter mexido, mas mexi e li. É verdade.
Lembrava-me de cada palavra que ele escrevera...
“Como poderia prendê-la na cova, quando percebia que a amava mais do que a mim mesmo?”
— Amor! — desdenhou Meg. — Que entende de amor um homem desse?
— Foi quando vocês se conheceram e ele ia prendê-la em uma cova; esse era o seu dever. E não pôde fazer isso, Meg! Não pôde fazer porque a amava demais. Contrariava tudo que tinha aprendido e em que acreditava, ainda assim ele a poupou de ir para a cova! Só lhe dava o chá por não ter outra opção. A cova ou o chá: ele escolheu o que achou melhor, porque gosta muito de você.
Meg soltou um silvo de raiva e espiou para dentro do balde, como se quisesse lambê-lo.
— Ora, isso foi há muito tempo, e ele certamente tem um jeito engraçado de demonstrar seu amor. Talvez, agora, John compreenda o que é ficar trancado aqui embaixo metade do ano. Porque não tenho mais pressa. Vou passar um bom tempo pensando exatamente no que fazer com ele. Quanto a você, é apenas um garoto, e não acho que tenha muita culpa. Não pensa melhor porque foi assim que ele o treinou. E é uma vida dura. Um ofício difícil.
“Eu poderia soltá-lo — continuou ela. — Mas você não deixaria as coisas como estão, não é mesmo? É o seu jeito de ser. O jeito como foi criado. Você iria buscar ajuda. Iria querer salvá-lo. O povo daqui não tem uma boa opinião sobre mim. No passado, talvez eu tenha dado razão para isso, mas a maioria recebeu o que merecia. Uma multidão veio me pegar. Gente demais para eu poder me defender. Não, se eu deixasse você partir, seria o meu fim. Mas prometo-lhe uma coisa. Não vou entregar você à minha irmã. Você não merece.”
Assim dizendo, ela fez sinal para eu me afastar; depois, fechou a porta e tornou a fechá-la à chave.
— Mais tarde vou lhe trazer alguma coisa para comer — disse através da gradinha. — Até lá, talvez eu tenha decidido o que é melhor fazer com você.
Passaram-se muitas horas até Meg voltar, por isso tive oportunidade de pensar e planejar.
Fiquei prestando muita atenção a todos os ruídos e ouvi Meg descer a escada. Lá fora devia estar começando a escurecer. Imaginei que ela estivesse me trazendo o jantar mais cedo. Desejei que não fosse o último. Ouvi-a destrancar o portão e o barulho do metal abrindo. Então me concentrei totalmente, registrando o tempo que transcorreu entre a segunda batida do portão ao fechar e o clique-clique de seus sapatos de bico fino quando recomeçou a andar.
Imaginara dois planos. O segundo apresentava muitos riscos, por isso desejei que o primeiro desse certo.
Pelas barras, vislumbrei a luz da vela. Meg pousou alguma coisa à porta da minha cela, destrancou-a e abriu-a. Era uma bandeja com duas tigelas de sopa fumegante e duas colheres.
— Pensei em uma coisa, Meg — eu disse, experimentando meu primeiro plano, que era conquistar sua boa vontade com palavras. — Uma coisa que poderia melhorar muito a situação para nós dois. Por que você não me deixa tomar conta da casa? Eu poderia acender as lareiras e apanhar água. Poderia dar uma boa ajuda. Que é que você vai fazer quando Shanks vier entregar os mantimentos? Se atender a porta, ele saberá que você anda à solta. Mas, se eu atender, ele jamais desconfiará. E se alguém vier tratar um serviço de caça-feitiço, vou poder dizer que ele ainda está doente. Se você me deixasse abrir a porta, só depois de muito tempo alguém saberia que você está em liberdade. E isso lhe daria bastante tempo para resolver o que fazer com o sr. Gregory.
Meg sorriu.
— Tome sua sopa, garoto.
Curvei-me, tirei a tigela da bandeja e apanhei uma das colheres. Quando me endireitei, Meg fez sinal para eu me afastar e começou a fechar a porta da cela.
— Boa tentativa, garoto, mas quanto tempo levaria até você se aproveitar e tentar libertar seu mestre? Aposto que muito pouco!
Meg trancou a porta. Meu primeiro plano fracassara. Não me restava escolha, senão experimentar o segundo. Descansei a tigela de sopa no chão e tirei a chave do bolso. Ouvi Meg girar sua chave na fechadura da cela do Caça-feitiço. Aguardei, me arriscando, desesperançado.
Eu acertara! Meg tinha entrado direto na cela do Caça-feitiço. Imaginei que, talvez, ele estivesse fraco ou tonto demais para poder se levantar e chegar à porta. Talvez ela fosse lhe dar a sopa pessoalmente. Então, sem perder tempo, destranquei minha porta, abri-a cautelosamente e saí da cela. Por sorte, dessa vez, ela não prendeu nem fez barulho.
Eu tinha pensado em cada detalhe, avaliando mentalmente todos os riscos. Uma opção seria entrar na cela do Caça-feitiço e tentar dominar Meg. Em circunstâncias normais, juntos, meu mestre e eu seríamos adversários à altura, mas eu suspeitava que o Caça-feitiço estava demasiado fraco para ajudar. E não tínhamos com o que enfrentá-la: nem bastão de sorveira-brava nem corrente de prata.
Decidi, então, ir apanhar a corrente de prata na minha bolsa no escritório e tentar amarrar Meg. Para tanto, eu contava com duas coisas. Uma, que a lâmia ferina não corresse para a escada e me apanhasse antes de eu atravessar o portão de ferro. A outra era que Meg não tivesse trancado o portão ao passar. Era por isso que eu tinha prestado tanta atenção. O portão batera e os saltos dos sapatos tinham começado a clicar quase imediatamente. Ela não tivera tempo de trancá-lo. Ou, pelo menos, eu achava que não!
A princípio, andei pé ante pé, um passo de cada vez, e fiquei olhando por cima do ombro: para a cela, vendo se Meg saía; em seguida para o canto da escada, vendo se Marcia, a lâmia ferina, estava vindo me pegar. Tinha esperança que sua barriga ainda estivesse satisfeita com a refeição matinal. Ou que não subisse enquanto Meg estivesse por perto. Talvez receasse a irmã. Sem dúvida, voltara ao ouvir a ordem de Meg.
Por fim, alcancei o portão e agarrei o ferro frio. Estaria trancado? Para meu alívio, o portão cedeu e procurei abri-lo o mais suavemente possível. Mas o Caça-feitiço sabia o que estava fazendo, quando mandara instalá-lo na escada. Ouviu-se um estrondo metálico e a casa inteira ressoou como um sino.
Imediatamente, Meg saiu da cela do Caça-feitiço e correu escada acima em minha direção, os braços erguidos, os dedos abertos e recurvados como garras. Por um momento, congelei. Não podia acreditar na rapidez com que ela vinha subindo. Mais uns segundos e seria tarde demais; corri também. Corri desembalado sem olhar para trás. Até o alto da escada, depois pela casa até a cozinha, consciente de que Meg estava nos meus calcanhares, ouvindo seus passos às minhas costas e esperando sentir suas unhas perfurarem minha pele a qualquer momento. Não houve tempo para ir ao escritório buscar a minha bolsa. Não tive a menor esperança de abri-la e apanhar a tempo a minha corrente de prata. Na porta dos fundos, passei a mão na capa, no casaco e no bastão, destranquei a porta e corri para o frio enregelante.
Tinha calculado certo. Caíra o crepúsculo, mas ainda havia muita claridade me ajudando a enxergar. Não parei de olhar para trás, mas não vi sinal de perseguição. Desci com dificuldade pela ravina o mais rápido que pude, mas foi penoso. Havia muita neve que estava começando a congelar no solo.
Quando cheguei ao pé da encosta, parei e tornei a olhar para trás. Meg não me seguira. Fazia um frio cortante e o vento soprava do norte em rajadas, por isso vesti meu casaco de pele de carneiro e, por cima, a capa. Parei, então, para pensar, minha respiração se condensando no ar frio.
Senti-me um covarde por abandonar o Caça-feitiço à mercê de Meg e precisava compensar o que fizera. Tinha de salvar o Caça-feitiço de suas garras. Precisava, porém, de ajuda para isso. E a ajuda não estava longe: o irmão do Caça-feitiço, Andrew, morava e trabalhava em Adlington de quem eu me valera antes em Priestown. Era o serralheiro que tinha feito para meu mestre a chave do Portão de Prata que trancafiara o Flagelo. Fazer uma chave para o portão de ferro que levava ao porão do Caça-feitiço devia ser bem mais fácil. E era exatamente disso que eu precisava.
Voltaria escondido à casa de inverno, passaria pelo portão e tiraria o Caça-feitiço da cela, o que era mais fácil falar do que fazer. Havia a lâmia ferina à solta — isso para não falar na própria Meg.
Procurando não pensar demais nas dificuldades que me aguardavam, continuei andando pesadamente pela neve em direção a Adlington. O caminho até lá era uma descida. Logo, porém, eu teria que retornar.
PRESO NA NEVE
As ruas de pedras de Adlington estavam cobertas por uns quinze centímetros, ou mais, de neve acumulada. Na claridade que ia sumindo, havia uma multidão de crianças ao ar livre rindo, soltando guinchos e gritos, escorregando ou atirando bolas de neve umas nas outras. Havia também outras pessoas menos felizes. Duas mulheres de xale passaram por mim e subiram, nervosas e de cabeça baixa, os olhos fixos nos pés para a calçada pesada de neve. Levavam cestas vazias e se dirigiam à alameda Babylon para compras de última hora. Segui na mesma direção até a oficina de Andrew.
Quando ergui o trinco e empurrei a porta, uma sineta tilintou. A oficina estava vazia, mas ouvi alguém vindo dos fundos. Ecoava um clique-clique de sapatos de bico fino e, para meu espanto, Alice entrou e chegou ao balcão, um grande sorriso no rosto.
— Que bom ver você, Tom! Fiquei imaginando quanto tempo você iria levar para me encontrar...
— Que está fazendo aqui? — perguntei admirado.
— Trabalhando para o Andrew, é claro! Ele me deu um emprego e uma casa — respondeu-me com outro sorriso. — Cuido da loja para ele poder passar mais tempo na oficina. Cozinho a maior parte das refeições e faço a limpeza também. Ele é um bom homem.
Fiquei um momento calado, e Alice deve ter visto a expressão no meu rosto, porque seu sorriso desapareceu rapidamente e ela pareceu preocupada.
— Seu pai...
— Quando cheguei, papai já tinha morrido. Cheguei tarde demais, Alice.
Não pude acrescentar mais nada, minha voz quebrou e senti um nó na garganta. Imediatamente, Alice se esticou por cima do balcão e pôs a mão no meu ombro.
— Ah, Tom! Lamento muito! Venha para os fundos se aquecer na lareira.
A sala de visitas era confortável, com um sofá, duas poltronas aconchegantes e um generoso fogo a carvão ardendo na lareira.
— Gosto de um bom fogo — comentou Alice alegremente. — Andrew é mais econômico com o carvão do que eu, mas ele saiu para fazer um serviço e só vai voltar muito depois de anoitecer. Quando o gato sai...
Apoiei meu bastão a um canto e me afundei no sofá que ficava em frente à lareira. Em vez de se sentar ao meu lado, Alice se ajoelhou junto ao fogo, os joelhos no tapete, de modo a deixar seu lado esquerdo voltado para mim.
— Por que você saiu da casa dos Hurst? — perguntei.
— Tive que sair — respondeu Alice, com desprezo. — Morgan não parava de insistir que eu o ajudasse com alguma coisa, mas não queria dizer exatamente como. Ficou com raiva. Tinha uma espécie de plano para se vingar do Velho Gregory.
Achei que, provavelmente, sabia a que Alice estava se referindo, mas resolvi ficar calado. Prometera a Morgan que não falaria a ninguém sobre seus planos. Ele era um necromante que usava os espíritos para descobrir o que queria. Eu não podia me arriscar. Não podia contar a Alice, porque, se Morgan descobrisse, tornaria a fazer meu pai sofrer.
— Ele não me deixava em paz. Por isso, vim embora. Não suportava olhar para ele nem mais um minuto. Pensei, então, no Andrew. Mas chega de falar sobre mim, Tom. Lamento a perda do seu pai. Você quer me contar o que houve?
— Foi duro, Alice. Perdi até o enterro do meu pai. E minha mãe já tinha ido embora e ninguém sabia para onde. Pode ter ido para a terra dela e talvez nunca mais volte a vê-la. Eu me sinto tão sozinho...
— Passei a maior parte da vida sozinha, Tom. Por isso, sei como a gente se sente. Mas temos um ao outro, não é mesmo? — perguntou, estendendo a mão para segurar a minha. — Sempre estaremos juntos. Nem mesmo o Velho Gregory conseguirá impedir!
— O Caça-feitiço não está em posição de fazer nada no momento. Quando voltei, Meg tinha virado a mesa. Agora é ele quem está trancafiado. Preciso que Andrew me faça uma chave para eu poder tirar o Caça-feitiço de lá. Preciso da sua ajuda. Você e Andrew são as únicas pessoas a quem posso recorrer.
— Parece que, finalmente, ele recebeu o que estava merecendo — disse Alice, retirando sua mão da minha, um leve sorriso fazendo os cantos de sua boca recurvarem para cima. — Teve que provar o próprio remédio!
— Não posso simplesmente deixar o Caça-feitiço lá — protestei.
— E quanto à outra lâmia? A ferina? A irmã da Meg?
— Ela está fora da cova, livre para andar pela escada até o portão.
— E se por acaso sair da casa?
— Poderá vir aqui embaixo na aldeia. Ninguém estaria seguro e tem muita criança morando aqui.
— E a Meg? — continuou Alice. — Não é tão simples, é? Ela não merece ir para a cova. Não merece, tampouco, passar o resto da vida bebendo chá de ervas! De um jeito ou de outro, isso tem que acabar.
— Então você não vai ajudar?
— Não foi o que eu disse, Tom. A gente precisa pensar bem, só isso.
Pouco depois de escurecer, Andrew voltou. Quando entrou, eu estava aguardando-o na oficina.
— Que foi, Tom? — perguntou ele, batendo a neve das botas e esfregando as mãos para fazer o sangue voltar a circular normalmente. — Que é que aquele meu irmão quer agora?
Andrew sempre lembrava um espantalho bem-vestido, as pernas compridas e desajeitadas, mas ele era bondoso, bem-humorado e um excelente serralheiro.
— Ele está encrencado outra vez — respondi. — Preciso que você faça uma chave para eu poder tirá-lo de lá. E é realmente urgente.
— Uma chave? Uma chave para quê?
— O portão na escada do porão da casa dele. Meg prendeu-o lá embaixo.
Andrew balançou a cabeça e estalou a língua.
— Não posso dizer que isso me surpreenda. Um dia ia acontecer. Só me espanta que tenha demorado tanto! Eu sempre achei que Meg ia acabar passando a perna nele. John gosta demais dela e sempre gostou. Deve ter baixado a guarda.
— Mas você ajudará?
— Claro que sim. Ele é meu irmão, não é? Mas estive lá fora no frio a maior parte do dia e não posso fazer muita coisa até ter aquecido os ossos e posto uma comida quente na barriga. Você poderá me contar tudo depois de jantarmos.
Eu ainda não provara muita coisa da culinária de Alice, além das lebres assadas nas brasas de uma fogueira ao ar livre, mas a julgar pelo cheiro apetitoso do guisado que vinha da cozinha, eu ia saborear uma iguaria.
Não me desapontei.
— Está realmente delicioso, Alice — elogiei.
Alice sorriu.
— É bem melhor que aquela lavagem que você preparou para mim em Anglezarke.
Nós dois rimos, depois comemos em silêncio sem deixar nem um pedacinho. Foi Andrew quem falou primeiro.
— Não tenho chave para aquele portão — disse-me. — A fechadura e a chave foram feitas por um serralheiro de Blackrod há uns quarenta anos ou mais. Ele já morreu, mas tinha reputação de ser o melhor no ofício; portanto, estamos diante de um mecanismo muito complexo. Vou precisar ir à casa para ver pessoalmente. O mais fácil seria eu tentar arrombar a fechadura para você poder entrar.
— Poderíamos ir hoje à noite? — perguntei.
— Quanto mais cedo melhor — respondeu ele. — Mas eu gostaria de saber exatamente o que vamos enfrentar. Onde acha que Meg estará?
— Ela normalmente dorme na cadeira de balanço junto à lareira da cozinha. Mas, mesmo que passemos por Meg em segurança e pelo portão, vamos ter mais um problema...
Falei-lhe, então, da lâmia ferina solta no porão. Ele não parava de balançar a cabeça, como se não conseguisse acreditar em notícias tão ruins.
— Como é que você vai dominá-la? Usando aquela sua corrente de prata?
— Não a trouxe comigo. Ficou na minha bolsa. E a bolsa, provavelmente, continua no lugar de sempre, no escritório do Caça-feitiço. Mas tenho o meu bastão. É feito de sorveira-brava e, se eu tiver sorte, ele manterá a lâmia afastada.
Andrew balançou a cabeça e não pareceu muito satisfeito.
— Isso não chega a ser um plano, Tom. É extremamente perigoso. Não posso arrombar uma fechadura enquanto você luta para afastar duas feiticeiras — disse ele. — Mas há outra maneira. Poderíamos arranjar, mais ou menos, uma dúzia de homens na aldeia para ir conosco e acabar com Meg de uma vez por todas.
— Não — disse Alice, com firmeza. — Isso não é jeito. É uma grande crueldade.
Percebi que ela estava se lembrando da ocasião em que a multidão de Chipenden atacara a casa em que estava morando com a tia, Lizzie Ossuda. Alice e a tia tinham pressentido e tiveram tempo de fugir, mas a propriedade explodira em chamas e perderam tudo que possuíam.
— O sr. Gregory não iria querer isso. Tenho certeza — eu disse.
— É verdade — respondeu Andrew. — É o modo mais seguro, mas John nunca me perdoaria. Muito bem, parece que estamos de volta ao primeiro plano.
— Escute só uma coisa em que você não pensou, Tom — disse Alice. — Uma feiticeira como ela não consegue pressentir você ao longe, Tom. A percepção não funciona com um sétimo filho de um sétimo filho, certo? É muito provável que não me pressinta tampouco, isto é, se eu decidir ir com você. Mas com Andrew é diferente. Quando ele se aproximar da casa, ela vai perceber e se preparar.
— Se ela estiver dormindo, talvez seja possível — constatei, mas não me sentia tão confiante assim.
— Mesmo dormindo é muito arriscado — replicou Alice. — Só você e eu devíamos ir, Tom. Talvez encontremos a chave e nem precisemos arrombar a fechadura. Onde é que o Caça-feitiço guarda a chave?
— Na prateleira mais alta da estante, mas talvez agora esteja com Meg.
— Bom, se não estiver lá, poderemos apanhar sua bolsa no escritório e amarrar Meg com a corrente de prata para tirar a chave dela. De qualquer forma, não precisaríamos de você, Andrew. Eu e Tom podemos fazer isso.
Andrew sorriu.
— Isso seria muito conveniente para mim — disse. — Gostaria de ficar longe daquela casa e daquele porão. Mas não posso deixar vocês fazerem tudo sozinhos, sem apoio nenhum. O melhor seria dar a vocês uma boa dianteira e seguir mais tarde. Se vocês não aparecerem na porta dentro de meia hora, voltarei a Adlington e reunirei uns doze brutamontes da aldeia. John terá que conviver com as consequências.
— Muito bem. Mas quanto mais penso no assunto, mais medo tenho de entrar pela porta dos fundos; é arriscado demais — confessei a Alice. — Como disse, Meg dorme na cozinha em uma cadeira junto à lareira. Ela nos ouviria e teríamos que passar pela cozinha para chegar ao escritório. A porta da frente seria um pouco melhor, mas ainda correríamos o risco de acordá-la. Não: tem um jeito muito melhor. Poderíamos entrar pela janela de um dos quartos dos fundos. A melhor é a do andar embaixo do sótão, onde a rocha fica bastante perto do peitoril da janela. Os trincos das janelas estão quase todos enferrujados ou quebrados. Acho que eu poderia me esticar e forçar a janela a abrir e pular para dentro.
— É uma loucura — exclamou Andrew. — Já estive naquele quarto e vi o vão entre o penhasco e o peitoril. É grande demais. Além disso, se você está preocupado em virar uma chave na fechadura da porta dos fundos, imagine o barulho que faria forçando uma janela!
Alice riu, como se eu tivesse dito uma coisa realmente boba, mas logo apaguei o ar de riso do seu rosto.
— Meg não nos ouviria se alguém batesse com força na porta dos fundos no momento exato em que eu arrombasse a janela... — eu disse.
Observei a boca de Andrew se abrir de admiração, quando percebeu o que eu estava sugerindo.
— Não — disse ele —, você não está querendo dizer...
— Por que não, Andrew? — perguntei. — Afinal de contas, você é irmão do sr. Gregory. Tem razões suficientes para visitar a casa.
— É, e poderia acabar no porão, prisioneiro como John!
— Acho que não. Meu palpite é que Meg nem irá atender a porta. Ela não quer que saibam na aldeia que está livre porque iria atrair uma turba enfurecida. Você poderia bater na porta umas quatro ou cinco vezes e depois ir embora, o que me daria todo o tempo de que preciso para entrar pela janela.
— Talvez isso dê certo — disse Alice.
Andrew afastou seu prato e ficou calado por um longo tempo.
— Uma coisa continua me incomodando — disse por fim. — O vão entre o paredão de rocha e o peitoril da janela. Não vejo como poderá atravessá-lo. Além disso, estará escorregadio.
— Vai valer a pena tentar — insisti —, mas, se eu não conseguir, podemos voltar mais tarde e tentar pela porta dos fundos.
— Poderíamos facilitar um pouco as coisas usando uma tábua — disse Andrew. — Tenho uma nos fundos que talvez sirva. Alice teria que ancorá-la com o pé na pedra enquanto você atravessasse engatinhando. Não seria fácil, mas tenho também um pequeno pé de cabra perfeito para esse serviço — acrescentou.
— Então, vale a pena tentar — repeti, tentando aparentar mais coragem do que sentia.
Combinamos tudo, e Alice pareceu ter decidido ajudar. Andrew foi buscar a tábua no quintal. Mas, quando abriu a porta da rua para sair, estava caindo uma nevasca. Andrew balançou a cabeça.
— É loucura você ir agora. Essa nevasca é digna do próprio Golgoth. A neve formará dunas, e o alto da charneca ficará perigoso. Você poderia se perder e morrer congelado. Não, é melhor aguardar até amanhã. Não se preocupe — disse-me com um tapinha no ombro. — Aquele meu irmão é um sobrevivente, como todos sabemos. Do contrário, não teria durado tanto tempo.
Havia apenas dois quartos no primeiro andar da loja; um para Andrew e o outro para Alice; portanto, dormi no sofá da sala de visitas, enrolado em um cobertor. O fogo apagou na grelha e a sala esfriou, tornando-se gelada. Perdi a conta do número de vezes que acordei durante a noite. Na última, a claridade do alvorecer brilhava através das cortinas; portanto, resolvi me levantar.
Bocejei e me espreguicei, andando um pouco para cá e para lá a fim de desenferrujar as juntas. Foi então que ouvi um barulho na loja. Alguém parecia ter batido três vezes na janela.
Quando entrei no recinto, estava iluminado pela luz que a neve refletia. Tinha nevado durante a noite e os flocos se amontoaram até a base da janela. Encostado na vidraça, havia um envelope negro. Fora colocado de tal modo que se pudesse ver o sobrescrito. Estava endereçado a mim! Só podia vir do Morgan.
Uma parte de mim queria deixá-lo onde estava. Mas logo pensei que as ruas começariam a ficar movimentadas e qualquer pessoa que passasse por ali o veria. Poderia apanhá-lo para ler, e eu não queria que um estranho ficasse sabendo dos meus assuntos.
Havia tanta neve acumulada contra a porta da rua que não consegui abri-la; precisei sair pela porta dos fundos, abrir o portão do quintal e dar a volta na casa. Somente quando me preparava para enfrentar a nevasca é que percebi algo muito estranho. Não havia pegadas. À minha frente, uma montanha de neve sem a menor marca em sua superfície. Como a carta teria chegado ali?
Apanhei-a depois de ter aberto uma vala funda na neve. Tornei a contornar a casa na direção dos fundos e da cozinha, abri a carta e li:
Estarei no cemitério da igreja de São Jorge, a oeste da aldeia. Se você quiser o bem do seu pai e do seu velho mestre, não me deixe esperando. Não me faça tornar a procurá-lo. Você não vai gostar.
Morgan G.
Eu não havia notado na última carta, mas agora a assinatura atraíra o meu olhar. Ele teria mudado de nome? A inicial do segundo nome deveria ser H, abreviando Hurst.
Intrigado, dobrei a carta e enfiei-a no bolso. Fiquei na dúvida se deveria acordar Alice e lhe mostrar a carta. Talvez devesse levá-la comigo. A última pessoa que ela gostaria de ver, no entanto, era Morgan. Já me dissera que tinha abandonado o Sítio Vista da Charneca porque não suportava vê-lo nem mais um minuto. E eu sabia que, na realidade, não poderia mesmo contar tudo a Alice, mesmo que quisesse: eu temia o Morgan e o que poderia fazer com meu pai. Para ser sincero, temia também o que ele poderia fazer comigo. Com tanto poder, ele era de fato perigoso: não era pessoa para ser desobedecida. Portanto, protegi-me com a minha capa, apanhei o bastão e saí direto para a igreja.
Era uma construção antiga, quase escondida pelos velhos teixos que a cercavam. Algumas lápides indicavam sepulturas de habitantes locais que haviam morrido nos séculos anteriores. Avistei Morgan ao longe, um vulto recortado contra o céu cinzento e apoiado no bastão, o capuz vestido para proteger-se do frio. Estava na parte mais nova do cemitério, onde haviam sido enterrados os mortos relativamente mais recentes.
A princípio, ele não deu sinal de ter me visto. Tinha a cabeça inclinada para um túmulo, os olhos fechados como se estivesse rezando. Olhei também para baixo, espantado. O cemitério tinha, aqui e ali, poucos ou muitos centímetros de neve acumulada em consequência da tempestade da véspera, mas aquele túmulo estava completamente limpo, um simples retângulo no solo úmido. Era quase como se o tivessem acabado de cavar. Olhei para os lados, mas não vi sinal de pá nem de qualquer outro instrumento que pudesse ter sido usado para remover a neve.
— Leia a inscrição na lápide! — ordenou-me Morgan, olhando-me pela primeira vez.
Obedeci. Quatro cadáveres tinham sido enterrados na mesma cova, empilhados um sobre o outro, como era costume no Condado, para economizar espaço no adro da igreja e assegurar que os parentes continuassem juntos na morte. Três eram crianças, mas a última era a mãe. As crianças tinham morrido uns cinquenta anos antes, à idade de dois, um e três anos, respectivamente. A mãe morrera recentemente, e seu nome era Emily Burns, a mulher com quem, no passado, o Caça-feitiço estivera envolvido. A mulher que ele roubara de um de seus irmãos, o padre Gregory.
— Ela teve uma vida dura — disse Morgan. — Vivida a maior parte do tempo em Blackrod, mas quando percebeu que estava morrendo, veio para cá passar os últimos meses com a irmã. Perder três filhos, como perdeu, partiu o seu coração e, mesmo depois de terem passado tantos anos, ela nunca se recuperou totalmente. Quatro sobreviveram. Dois trabalham em Horwich e constituíram família. O mais velho abandonou o Condado faz dez anos e nunca mais ouvi falar nele. Eu fui o sétimo e último...
Transcorreram alguns minutos até as informações começarem a se encaixar. Lembrei-me do que o Caça-feitiço tinha dito a Morgan no quarto da casa dos Hurst.
“Eu gostava de você e gostava de sua mãe. Eu a amei no passado, você sabe disso...”
Lembrei-me também da inicial “G” com que tinha assinado a carta que me enviara.
— É — continuou ele. — Logo depois que nasci, meu pai abandonou de vez a casa da família. Jamais casou com a minha mãe. Nunca nos deu o seu nome. Mas eu o incorporei assim mesmo.
Olhei para ele espantado.
— É — confirmou com um sorriso sinistro. — Emily Burns era minha mãe verdadeira. Sou filho de John Gregory.
Morgan manteve o olhar distante enquanto falava.
— Ele nos abandonou. Abandonou seus filhos. Não é o que um pai deveria fazer, não é?
Quis defender o Caça-feitiço, mas não soube o que dizer. Por isso, fiquei calado.
— Mas nos sustentou. Devo dizer a seu favor. Sobrevivemos por algum tempo, então minha mãe sofreu um colapso e não pôde continuar. Cada um de nós foi entregue a uma família adotiva. Para meu azar, acabei na casa dos Hurst. Mas, quando completei dezessete anos, meu pai veio me buscar e me tomou como aprendiz.
“Por um período, nunca fui mais feliz. Tinha desejado um pai durante tanto tempo e enfim tinha um, por isso quis desesperadamente agradá-lo. No princípio me esforcei o máximo, mas acho que não consegui esquecer o que ele tinha feito a minha mãe e, aos poucos, comecei a perceber quem ele era. Três anos depois, ele se tornou repetitivo. Eu sabia tudo que ele fazia e muito mais. Sabia que poderia ser melhor e mais forte. Sou o sétimo filho de um sétimo filho de um sétimo filho. Três vezes sete.
Percebi o tom de arrogância em sua voz, e isso me irritou.
— Foi por isso que você não gravou seu nome na parede do quarto em Chipenden, como os outros aprendizes? — disse sem pensar. — É porque se acha melhor do que todos os outros? Melhor do que o Caça-feitiço?
Morgan deu um sorriso presunçoso.
— Não posso negar que acho. É por isso que segui um caminho próprio. Sou autodidata e ainda estou aprendendo. Sou capaz de fazer coisas que aquele velho tolo jamais sonhou. Coisas que ele tem medo de experimentar. Pense nisso! Um conhecimento e um poder como os meus e a garantia de que seu pai descanse em paz. É o que estou lhe oferecendo em troca de uma pequena ajuda...
Fiquei espantado, porém, com o que Morgan estava me contando. Se o que dizia era verdade, mostrava o Caça-feitiço em uma luz realmente desfavorável. Eu já sabia que ele largara Emily Burns pela Meg. Agora acabava de descobrir que era pai, que tivera sete filhos com ela e abandonara todos. Senti-me magoado e desapontado. Não parava de pensar no meu próprio pai, que tinha permanecido com a família e trabalhado tanto a vida inteira. E agora poderia sofrer por um capricho de Morgan. Senti-me perturbado e enraivecido. O chão do cemitério pareceu se levantar subitamente em direção ao céu e eu quase caí.
— Muito bem, meu jovem aprendiz, trouxe?
Meu rosto deve ter parecido vazio de expressão.
— O grimório, é claro. Pedi que o trouxesse para mim. Espero que tenha me obedecido, ou o pobre do seu pai vai realmente sofrer.
— Não pude apanhá-lo. O sr. Gregory tem olhos na nuca — eu disse, baixando a cabeça.
Certamente eu não ia contar ao Morgan que meu mestre estava à mercê de Meg. Se ele achasse que o Caça-feitiço estava fora do caminho, poderia ir até a casa e se apropriar do livro. Meu mestre podia ter segredos sinistros, mas eu ainda era seu aprendiz e o respeitava. Precisava de mais tempo. Tempo para salvar meu mestre e lhe contar tudo a respeito de Morgan. Juntos havíamos derrotado o taca-pedras; juntos, com certeza, poderíamos deter o Morgan.
— Preciso de mais tempo. Posso fazer o que me pede, mas preciso aguardar uma oportunidade.
— Muito bem, não demore demais. Traga o livro na próxima terça-feira à noite, logo depois do pôr do sol. Lembra-se da capela no cemitério?
Confirmei com a cabeça.
— Muito bem, é lá que estarei esperando.
— Acho que não vou poder fazer isso tão rápido...
— Arranje um jeito! — vociferou ele. — E faça isso sem o Gregory perceber que alguém o levou.
— Que vai fazer com o livro?
— Ora, quando você o trouxer, descobrirá, Tom, não é mesmo? Não me deixe na mão! Se começar a vacilar, pense no seu pobre pai e no que poderá vir a sofrer...
Eu sabia como Morgan podia ser cruel. Tinha visto como levara o sr. Hurst às lágrimas e ouvido Alice contar como ele arrastara o velho até o quarto e o trancara ali. Se Morgan podia machucar meu pai, ele o faria. Não restava a menor dúvida.
Então, enquanto estava ali trêmulo, ouvi na minha cabeça, mais uma vez, a voz angustiada do meu pai, ao mesmo tempo em que o ar ao meu redor vibrava e mexia.
— Por favor, filho, eu suplico, faça o que ele pede, ou serei torturado por toda a eternidade. Por favor, filho, traga o que ele quer.
Quando a voz foi sumindo, Morgan sorriu implacável.
— Muito bem, você ouviu o que seu pai disse. Então, é melhor ser um filho obediente...
Dito isso, deu um sorriso cruel, me virou as costas e saiu do cemitério.
Eu sabia que, sem dúvida, era errado roubar o grimório para Morgan, mas, observando-o se afastar, soube também que não tinha opção. De algum modo, teria que apanhar o grimório quando fôssemos salvar o Caça-feitiço.
NO PORÃO
Quando voltei à casa de Andrew, Alice estava na cozinha preparando o café da manhã. Eram ovos com presunto, e o cheiro estava maravilhoso.
— Você saiu cedo esta manhã, Tom — admirou-se.
— Eu estava dolorido de dormir no sofá — menti. — Precisava esticar um pouco as pernas.
— Ora, você vai se sentir muito melhor depois de comer.
— Não posso, Alice. É melhor jejuar quando a gente vai enfrentar as trevas.
— Não posso acreditar que umas boas garfadas possam lhe fazer mal! — protestou ela.
Não me dei ao trabalho de discutir. Havia coisas que Alice tinha me dito sobre feitiçaria que eu acreditava, desconfiando, enquanto havia outras que o Caça-feitiço considerava a mais pura verdade, que faziam surgir um sorriso de deboche em seu rosto. Por isso, fiquei calado observando Andrew e ela comerem enquanto a minha boca aguava.
Depois do café, partimos imediatamente para a casa do Caça-feitiço. A manhã chegara apenas à metade, mas a luz ia desaparecendo rápido, com o céu carregado de nuvens escuras. Pelo jeito, vinha mais neve pela frente.
Deixamos Andrew no fundo da ravina. Ele ia aguardar dez minutos para nos dar tempo de chegar ao alto da charneca sobre a casa. Mais tarde, depois de ter batido na porta, ele se afastaria e observaria à distância, na esperança de nos ver aparecer e sinalizar que tínhamos tido sucesso.
— Boa sorte, não me deixem esperando demais — recomendou Andrew — ou vou morrer congelado!
Acenei um adeus e, segurando a tábua e o bastão e levando o pequeno pé de cabra no bolso interno do casaco, comecei a subir a encosta da charneca. Durante a subida, eu à frente e Alice nos meus calcanhares, esmagávamos sob os pés a neve que começava a congelar. Fiquei preocupado com a descida para a casa. Estaria escorregadia e perigosa.
Dali a pouco, começamos a descer a trilha para a ravina. A trilha virou um ressalto, com a rocha à nossa esquerda e uma queda vertical à direita.
— Cuidado onde pisa, Alice! — alertei-a. Era uma longa descida. Um escorregão, e precisariam raspar os nossos restos com uma pá.
Pouco depois, avistamos a casa; ali paramos. Conforme combinado, ficamos esperando ouvir Andrew se aproximar pela frente.
Decorreram uns cinco minutos até ouvirmos suas botas triturando a neve congelada. Em algum lugar, lá embaixo, um Andrew muito nervoso deveria estar contornando a casa e subindo em direção à porta dos fundos. Levantei-me depressa e comecei a levar a tábua em direção à casa. Quando chegamos defronte à janela, ajoelhei-me e tentei colocar a tábua em posição. Consegui apoiar uma das extremidades no peitoril da janela, logo na primeira tentativa. O que me preocupou foi que o peitoril não era muito largo. Tive medo que a tábua escorregasse na hora de atravessar e eu caísse embaixo, no quintal. Então, era importante que Alice a firmasse na borda do rochedo.
— Pise aí em cima! — murmurei, indicando a extremidade da tábua junto dela.
Alice fez o que pedi. Imaginei que assim impediria que a tábua se mexesse. Entregando a Alice o meu bastão, me ajoelhei na tábua e me preparei para atravessá-la engatinhando. Não era uma grande distância, mas eu estava nervoso, e, a princípio, minhas pernas se recusaram a me obedecer. Era uma boa altura até as lajes cobertas de neve, lá embaixo. Por fim, comecei a rastejar, tentando não olhar para o abismo. Logo eu já estava ajoelhado junto à janela; uma vez ali, puxei o pequeno pé de cabra do bolso do casaco e encaixei-o em sua base. Naquele exato momento, Andrew bateu com força na porta dos fundos, quase diretamente abaixo de mim.
Três fortes pancadas ecoaram pela ravina. A cada uma, eu pressionava o pé de cabra, tentando alavancar para o alto a janela de guilhotina. Na pausa que se seguiu, fiquei absolutamente imóvel.
Pam! Pam! Pam!
Forcei novamente a janela, mas sem o menor sucesso. Comecei a me perguntar quantas vezes mais Andrew bateria até perder a coragem. Talvez o trinco fosse mais forte do que eu previra. Quantas chances teríamos? Talvez a feiticeira acabasse atendendo a porta. Se isso acontecesse, eu não queria estar na pele de Andrew.
Pam! Pam! Pam!
Desta vez, por fim, tive sucesso. Consegui forçar a janela para cima e, quando abri um vão suficiente, ergui-a com as duas mãos.
Pam! Pam! Pam!, tornei a ouvir o som embaixo. Se olhasse, poderia ter visto Andrew, mas fixei meu olhar no peitoril da janela e pulei para dentro do quarto antes de guardar o pé de cabra no bolso. Alice se esticou e me entregou o bastão, depois atravessou a tábua, engatinhando muito mais rápido do que eu. Uma vez no interior de casa, retiramos a tábua do vão, para o caso de Meg sair ao quintal e avistá-la de baixo. Depois, fechamos a janela.
Feito isso, nos sentamos juntos no chão do quarto escuro, com os ouvidos atentos. Não houve mais batidas. Não ouvi a porta da frente abrir, por isso desejei que Andrew tivesse ido embora são e salvo. O som que eu temia agora era o de Meg subindo as escadas. Teria me ouvido forçar a janela?
Eu já combinara com Alice que, se conseguíssemos entrar na casa sem problemas, aguardaríamos uns quinze minutos antes de prosseguir. O primeiro passo seria recuperar a minha bolsa no escritório do Caça-feitiço. Uma vez de posse da corrente de prata, nossas chances de sucesso seriam bem maiores.
Eu não contara, porém, a Alice o que Morgan queria que eu fizesse. Não mencionara o grimório porque eu sabia que me chamaria de tolo por entregá-lo ao Morgan. Não havia problema ela falar assim. Não era o pai dela que poderia sofrer. A súplica que ele me fizera na escuridão não parava de me assombrar. Era demais aguentar tudo aquilo.
Se pudesse salvar o Caça-feitiço e, de alguma forma, prender Meg, eu voltaria ao sótão. Tinha que fazer isso. Era uma traição ao Caça-feitiço, mas eu não podia deixar meu pai sofrer mais. Então, esperamos uma eternidade, escutando, nervosos, cada rangido da velha casa.
Passados uns quinze minutos, bati de leve no ombro de Alice, me levantei com cuidado, apanhei o bastão e me dirigi cautelosamente à porta do quarto.
Não estava trancada; abri-a devagarinho e saí para o patamar. Estava ainda mais escuro na escada, onde nos aguardava um poço de escuridão. Desci, um passo vagaroso, uma pausa para escutar, antes de dar o segundo. Adotei esse padrão: passo, pausa e escuta; passo, pausa e escuta. Em determinado ponto, o degrau rangeu sob o meu pé. Paramos imóveis e aguardamos pelo menos cinco minutos, achando que talvez tivéssemos acordado a feiticeira. E, quando o pé de Alice produziu um segundo rangido no mesmo degrau, tivemos que repetir o processo. Levamos muito tempo, mas, finalmente, alcançamos o andar térreo.
Momentos depois, chegamos ao escritório do Caça-feitiço. Ali estava mais claro e pude ver a minha bolsa ainda no canto em que a deixara, mas não havia nem sinal da bolsa do Caça-feitiço. Levei a corrente de prata e enrolei-a no pulso e na mão esquerda, pronta para o arremesso. Esse era o braço que eu usava: quando estive praticando no jardim do Caça-feitiço, consegui acertar a corrente em torno de um poste a mais ou menos dois metros e meio de distância, nove vezes em cada dez tentativas. Então, agora, cara a cara, fosse com a lâmia ferina ou com Meg, eu tinha uma boa probabilidade de sucesso. Um ataque das duas ao mesmo tempo seria outra história em que eu nem gostaria de pensar.
Em seguida me curvei e aproximei a boca do ouvido de Alice.
— Veja se a chave está na última prateleira da estante — cochichei, apontando para o lugar indicado.
Havia a probabilidade de Meg guardar a chave do portão do seu lado, mas eu estava me lembrando do que o Caça-feitiço me dissera certa vez: ela era metódica e sempre guardava as coisas nos lugares certos. Ele se referia a panelas e caçarolas, facas e garfos. Faria a mesma coisa com a chave? Valia a pena verificar.
Então, enquanto Alice apanhava uma cadeira e a colocava junto da estante, montei guarda ao lado da porta, a corrente preparada. Ela subiu na cadeira e apalpou atentamente a superfície da prateleira do alto, antes de me dar um enorme sorriso e mostrar a chave.
Eu acertara! Tínhamos a chave do portão!
Ainda segurando a corrente, apanhei meu bastão e, cautelosamente, saí do escritório, à frente de Alice, e me dirigi à escada que levava ao porão. Minha expectativa era que Meg estivesse acordada, mas ouvi o som de sua respiração na cozinha, o assobio que saía de sua boca ao expirar. Estava profundamente adormecida e até ali tivéramos sorte.
Uma opção seria ir diretamente à cozinha e amarrar Meg enquanto ela ainda dormia, mas eu precisava da corrente para enfrentar a ameaça da lâmia ferina no porão. Descemos lentamente a escada, Alice agora à frente, até chegarmos ao portão. Esse era um momento perigoso e eu já explicara que uma batida do ferro ressoaria por toda a casa. Alice, no entanto, inseriu a chave na fechadura com o maior cuidado e girou-a sem ruído. Conseguiu fazer o mesmo quando abriu o portão, que deixou aberto, caso precisássemos sair às pressas.
Estava muito escuro no porão e bati levemente no ombro de Alice, o sinal para ela parar. Guardei a corrente no bolso, apoiei o bastão na parede com cuidado e, usando o estojinho de fazer fogo, acendi um toco de vela e entreguei-o a Alice. Mais uma vez, segui um passo atrás dela, segurando a corrente e o bastão em posição. A vela era um risco calculado porque, embora a escada descesse em espiral, um vislumbre de luz poderia chegar ao porão e alertar a lâmia ferina. Mas era inegável que precisávamos de luz para cuidar direito do Caça-feitiço e retirá-lo da cela. A decisão acabou se provando acertada...
De repente, Alice soltou uma exclamação, parou de chofre e apontou para baixo. Uma corrente de ar frio subia do porão, fazendo a chama da vela dançar e bruxulear, e à sua luz percebi um vulto escuro que se deslocava rapidamente pela escada em nossa direção. Por um momento, com o coração disparado, pensei que fosse a lâmia ferina: coloquei-me ao lado de Alice, ergui minha mão esquerda e me preparei para arremessar a corrente de prata.
Quando, porém, a friagem que vinha do porão cessou e a luz parou de oscilar, vi que o movimento rápido do vulto escuro era uma ilusão causada pelo bruxuleio da chama. Alguma coisa estava se deslocando escada acima, mas vinha rastejando, arrastando-se para o alto tão devagar que levaria um tempo enorme para chegar ao portão.
Era Bessy Hill, a outra feiticeira viva — a que estivera na cova vizinha à da lâmia ferina. Seus cabelos grisalhos eram longos e oleosos, e nele pululavam pequenos insetos negros; seu vestido rasgado tinha manchas de mofo e limo. Lentamente, ela puxava o corpo pelas escadas, e, embora tivesse conseguido sair da cova, o fato de ter sobrevivido anos com uma dieta de lesmas e vermes e outros seres nojentos significava que não dispunha de muita energia. É claro que a história teria sido muito diferente se tivéssemos topado com ela no escuro.
Paramos. Se ela pudesse nos pegar pelo tornozelo, seria difícil nos desvencilharmos. Ela queria sangue desesperadamente e cravaria os dentes na primeira carne morna que se aproximasse. Uma chupada de sangue a tornaria imediatamente mais forte e mais perigosa. Causava pavor, mas tínhamos que passar por ela.
Desci, nervoso, indicando por meio de gestos a Alice que devia me seguir de perto. Os degraus eram largos e permitiam que déssemos uma boa distância à feiticeira. Perguntei-me como teria conseguido escapar da cova. Uma possibilidade era que a lâmia ferina tivesse forçado as barras para ela. Ou, talvez, Meg a tivesse soltado. Quando passamos por ela, dei-lhe uma olhada rápida. Tinha a cabeça virada para nós, mas seus olhos estavam bem fechados. A boca, no entanto, mostrava-se aberta e sua comprida língua roxa pendia sobre o degrau, como se estivesse lambendo alguma coisa na pedra úmida. Ela cheirava, fungava, torcia a cabeça para o alto e tentava erguer a mão. Quando abriu os olhos, eles pareciam brasas ardendo no escuro.
Descemos depressa, deixando-a para trás. Quando chegamos ao nível com as três portas, entreguei meu bastão a Alice. Ela o aceitou com uma careta. Não gostava de tocar em sorveira-brava. Mas eu já estava tirando a minha chave do bolso e não demoraria a destrancar a porta da cela do Caça-feitiço.
Até aquele momento, a minha preocupação era que ele não estivesse lá. Achei que Meg talvez o tivesse transferido para outro lugar ou até o tivesse prendido em uma cova no porão. No entanto, ali estava ele, sentado na cama com a cabeça entre as mãos. Quando a vela brilhou na cela, ele olhou em nossa direção, mas sua expressão foi de perplexidade. Depois de uma olhada na escada que descia e uma escuta atenta para verificar se a lâmia não estaria subindo, entrei na cela com Alice e ajudamos o Caça-feitiço a se levantar. Ele não ofereceu resistência e nós o arrastamos para a porta. Meu mestre não pareceu reconhecer nenhum de nós e calculei que Meg tivesse lhe dado, muito recentemente, uma forte dose da poção.
Minha corrente agora estava guardada no bolso — não era o melhor lugar se a lâmia nos atacasse, mas eu não tinha opção. A subida dos degraus foi lenta, o Caça-feitiço arrastando os pés, e Alice e eu sustentando-o pelos cotovelos. Eu não parava de olhar para trás, mas não vinham sons ameaçadores do porão. Quando alcançamos a feiticeira na escada, ela estava dormindo, os olhos bem fechados, roncando alto pela boca aberta. A subida a deixara exausta.
Dali a pouco, chegamos ao portão. Depois que o atravessamos, Alice tornou a fechá-lo e trancá-lo silenciosamente, apanhei a chave e guardei-a no meu bolso. Continuamos a subir até chegar ao térreo. O som da respiração de Meg na cozinha confirmou que ela também continuava adormecida; portanto, agora eu tinha uma importante decisão a tomar. Ou ajudava Alice a levar o Caça-feitiço para longe da casa ou entrava na cozinha e amarrava Meg com a corrente de prata.
Se eu conseguisse amarrá-la, tudo estaria terminado e a casa voltaria às nossas mãos. A tentativa, porém, tinha seus riscos. Meg poderia acordar subitamente — e nove em cada dez tentativas não eram dez em cada dez! Eu poderia errar e Meg era incrivelmente forte. O Caça-feitiço não estava em condições de ajudar, e os três estaríamos à mercê dela. Apontei, então, para o corredor que levava à porta da frente.
Momentos depois, abri a porta e ajudei Alice a levar o Caça-feitiço para fora. Em seguida, apanhei sua vela, protegendo-a junto ao corpo para impedir que apagasse.
— Tenho mais uma coisa a fazer na casa — disse-lhe. — Não vou demorar, mas leve o sr. Gregory para longe daqui. Andrew deve estar esperando mais embaixo na ravina...
— Não seja louco, Tom — exclamou Alice, seu rosto expressando preocupação. — Que pode ser tão importante para fazer você querer voltar lá dentro?
— Confie em mim, Alice. Tenho que fazer isso. Vejo você na casa do Andrew...
— Tem alguma coisa que você não me contou — queixou-se Alice. — Que foi? Você não confia em mim?
— Vai, Alice, por favor. Faz o que estou pedindo. Depois eu lhe explico tudo.
Com relutância, Alice começou a descer o morro, guiando o Caça-feitiço pelo cotovelo. Ela não olhou para trás e percebi que estava muito aborrecida comigo.
NO SÓTÃO
Uma vez dentro de casa, fechei a porta e comecei a subir a escada. Na mão direita segurava a vela; na esquerda, o meu bastão de sorveira-brava. A corrente de prata continuava no bolso esquerdo do meu casaco de pele de carneiro. Subia mais depressa do que tinha descido, mas continuava cauteloso. Não queria acordar Meg. E tinha outra preocupação. Minha chave era grande demais para a fechadura da escrivaninha do Caça-feitiço. Ia precisar arrombá-la com o pé de cabra, e isso, provavelmente, faria mais do que um simples barulhinho.
À medida que subia, comecei a me sentir cada vez mais inquieto. Meg ainda dormia, mas poderia acordar a qualquer momento. Se ela me seguisse na subida da escada, eu sempre poderia recolocar a tábua em posição e fugir pela janela do quarto dos fundos. Mas será que eu a ouviria subindo a tempo? Alice tinha razão. Nas circunstâncias, era uma tolice ter voltado. Mas mantive o pensamento no meu pai e obriguei minhas pernas a não desistirem de subir a escada.
Dali a pouco, eu estava parado à porta do sótão. Já ia abri-la e entrar, quando ouvi um leve ruído. Parecia um arranhão...
Nervoso, encostei o ouvido esquerdo à porta e tornei a escutar o mesmo ruído. O que poderia estar fazendo aquilo? Minha única opção era fingir que não estava ouvindo e tentar apanhar o que Morgan queria. Comecei a girar a maçaneta. Só então, ao entrar devagarinho no quarto, compreendi que deveria ter fugido com Alice e o Caça-feitiço quando tive oportunidade. Devia ter contado ao meu mestre tudo que acontecera com o Morgan e seguido o que ele me aconselhasse. O Caça-feitiço teria sabido a melhor maneira de ajudar meu pai.
Todos os meus instintos me avisaram para correr. Era como se uma voz gritasse sem parar na minha cabeça: “Perigo! Perigo! Perigo!” Quando entrei, quase fechei a porta ao passar. Senti um forte impulso de fazer isso, mas consegui resistir. Estava escuro, por isso ergui a vela acima da minha cabeça para ver melhor; soprou, então, uma repentina rajada de vento frio e ela apagou.
No alto, vi o pálido contorno da claraboia. Estava totalmente aberta e descia uma brisa fria sobre o meu rosto. Seis passarinhos estavam empoleirados na borda. Em silêncio. Como se aguardassem alguma coisa pacientemente. E, embaixo, o horror daquele quarto.
Nas tábuas do assoalho, havia penas dispersas, manchadas de sangue, muitos restos de passarinhos mortos. Era como se uma raposa tivesse entrado no galinheiro. Havia asas, pernas, cabeças e centenas de penas. Penas desciam pelo ar, flutuavam em torno da minha cabeça, impelidas pela brisa fria que soprava da claraboia.
Quando vi uma coisa muito maior, não me surpreendi. A visão, porém, me enregelou até os ossos. Agachada a um canto, perto da escrivaninha, estava a lâmia ferina, olhos fechados, as pálpebras superiores grossas e pesadas. Por alguma razão, seu corpo parecia menor, mas seu rosto estava muito maior do que da última vez que eu a vira de relance. Deixara de ser ossudo, estava pálido e inchado, as bochechas se assemelhando a duas bolsas. Enquanto eu a observava, ela abriu ligeiramente a boca e um filete de sangue escorreu pelo seu queixo e começou a pingar no assoalho. A lâmia lambeu os lábios, abriu os olhos e ergueu-os para mim, como se dispusesse de todo o tempo do mundo.
Estivera se alimentando. Alimentando-se de passarinhos. Tinha aberto a claraboia e atraído os pássaros para suas mãos ansiosas e retorcidas, obrigando-os a voar até onde os aguardava. Depois, um a um, ela começava a beber seu sangue, mantendo os que ainda estavam vivos nas proximidades, mediante o feitiço da coação. Eles possuíam asas, mas tinham perdido a vontade de voar.
Eu não possuía asas, mas possuía pernas. Minhas pernas, no entanto, não queriam me obedecer e fiquei parado, pregado no chão de tanto pavor. Ela se aproximou de mim muito lentamente. Talvez fosse por estar pesada, de tão empapuçada de sangue. Talvez sentisse que não havia pressa.
Se ela tivesse corrido pelo assoalho em minha direção, seria o meu fim. Eu jamais teria deixado aquele sótão. Ela, no entanto, se deslocava lentamente. Muito lentamente. E o horror de observar sua aproximação foi suficiente para quebrar o feitiço. De repente me libertei. Consegui me mover. Mover mais ligeiro do que jamais me movera antes.
Não pensei em usar a minha corrente nem o meu bastão. Minhas pernas agiram mais rápido do que o meu pensamento. Enquanto a lâmia se arrastava pelo chão, virei-me e corri. E, quando corri, houve uma agitação de asas às minhas costas: minha fuga libertara os passarinhos do encanto. Aterrorizado, o coração batendo forte, desci a escada aos saltos, fazendo barulho suficiente para acordar os mortos. Não me importei. Eu só queria sair e me afastar da lâmia. Nada mais importava. Toda a minha coragem se esvaíra.
Havia, porém, alguém esperando por mim nas sombras ao pé da escada.
Meg.
Por que eu não tinha interrompido a descida e entrado no quarto dos fundos? Devia ter me concentrado. Parado para pensar. Em vez disso, entrara em pânico e perdera a chance de escapar. A lâmia ferina estava cheia de sangue para se deslocar com rapidez. Eu teria podido abrir a janela, colocar a tábua em posição e atravessar para a segurança. E agora minhas botas pesadas, batendo nos degraus, tinham acordado Meg.
Lá estava ela entre mim e a porta da frente. Enquanto que, às minhas costas, provavelmente, já vinha descendo a escada a lâmia ferina. Meg ergueu os olhos para mim, seu rosto bonito se abriu em um sorriso. Havia claridade suficiente para ver que não era um sorriso amigável. De repente, ela se curvou para mim e farejou alto três vezes.
— Uma vez, eu falei que não daria você para minha irmã comer. Mas agora tudo mudou. Sei o que você fez. E isso tem um preço. Um preço de sangue!
Não respondi, porque eu já estava recuando bem devagar escada acima. Eu ainda segurava o toco de vela, por isso enfiei-o no bolso da calça. Feito isso, transferi o bastão para a mão direita e tirei a corrente de prata do bolso esquerdo do meu casaco de pele de carneiro.
Meg deve ter visto a corrente ou pressentiu-a, porque, de repente, subiu correndo a escada, as mãos estendidas à frente, como se quisesse arrancar meus olhos. Entrei em pânico, mirei rápido e lancei a corrente. Foi um arremesso descuidado, que não envolveu sua cabeça. Felizmente, porém, a corrente bateu em seu ombro e do lado esquerdo do corpo. Ao sentir esse contato, ela berrou agoniada e caiu para trás contra a parede.
Percebendo a chance, passei por ela correndo e cheguei ao pé da escada, e só então me virei para enfrentá-la. Pelo menos, deixava de existir a ameaça da irmã às minhas costas. A corrente continuava alguns degraus acima. Agora, eu só tinha o meu bastão de sorveira-brava. Era a madeira mais poderosa que se podia usar contra uma feiticeira. Meg, no entanto, não era do Condado; era uma lâmia de uma terra estrangeira. Produziria nela o mesmo efeito?
Meg recuperou o equilíbrio e se voltou para me enfrentar.
— O toque da prata é um tormento para mim, garoto — disse, o rosto contorcido de fúria. — Você gostaria de sentir uma dor igual?
Ela desceu um degrau e, ao fazer isso, arrastou deliberadamente o dorso da mão esquerda na parede ao seu lado. Enquanto eu observava, ela raspou as unhas com força no reboco, cavando um sulco profundo. O reboco era velho e muito duro. Ela estava me mostrando o que suas unhas podiam fazer na minha carne. Quando deu o segundo passo, apontei o bastão para o alto, empunhando-o para golpear sua cabeça e seus ombros.
Agora, porém, eu estava pensando. Concentrado. E, quando ela atacou, descendo a escada ao meu encontro, baixei rápido o bastão, brandindo-o contra seus pés. Ela arregalou os olhos quando viu o que eu estava tentando fazer, mas seu impulso tinha sido forte demais: suas pernas se engancharam no bastão e ela mergulhou de cabeça escada abaixo. O bastão foi arrancado das minhas mãos, mas agora eu podia recuperar a corrente e, saltando por cima de Meg, subi correndo a escada.
Apanhei a corrente, enrolei-a no pulso esquerdo e me preparei para arremessá-la mais uma vez. Desta vez, eu estava decidido a não falhar.
Ela sorriu para mim, seu rosto pura zombaria.
— Você já errou uma vez. Não é tão fácil quanto acertar aquele poste no jardim do Gregory, não é? Suas mãos estão suadas, garoto? Estão começando a tremer? Você só tem mais uma chance. E, então, será meu...
Eu sentia que ela estava apenas tentando minar a minha confiança e aumentar a probabilidade de eu errar. Inspirei, então, profundamente e recordei meu treinamento. Nove em cada dez tentativas eu era capaz de envolver o poste. E nunca errara duas vezes seguidas. Agora só o medo poderia me atrapalhar. Só a dúvida. Portanto, inspirei fundo e me concentrei. Quando Meg se levantou, mirei com a maior concentração. Estalei a corrente no ar como um chicote antes de arremessá-la. E ela caiu descrevendo uma perfeita espiral da direita para a esquerda, que envolveu sua cabeça e seu corpo. A feiticeira soltou um grito agudo que foi subitamente interrompido quando a corrente tapou sua boca e ela desabou no chão.
Com cautela, desci os degraus e examinei-a com atenção. Para meu alívio, estava bem amarrada. Olhei-a nos olhos e vi a dor neles. E, embora a corrente a machucasse, havia também desafio em seu olhar. De repente, sua expressão mudou e percebi que estava olhando por cima de mim, para o alto da escada. Ao mesmo tempo, ouvi a corrida rasteira e, ao me virar, topei com Marcia, a lâmia ferina, descendo a escada na minha direção.
Mais uma vez, o fato de estar saciada de sangue me salvou. Ela ainda continuava empapuçada e lenta. Do contrário, teria me atacado antes que eu tivesse sequer a chance de piscar. Agarrei meu bastão de sorveira-brava e subi a escada ao seu encontro. O ódio ardia em seus olhos de pálpebras pesadas e os quatro membros finos sob seu corpo se retesaram, prontos para saltar. A princípio, não tive tempo para me amedrontar e golpeei seu rosto inchado com o meu bastão. Ela não suportou o toque da sorveira-brava e soltou uma exclamação de dor quando o meu terceiro golpe atingiu-a abaixo do olho esquerdo. Silvou enfurecida e começou a recuar, seus longos cabelos sujos arrastando pelos lados dos degraus e deixando um rastro úmido e pegajoso.
Não sei quanto tempo lutamos. O tempo parecia ter parado. O suor escorria da minha testa para dentro dos olhos e eu ofegava, meu coração batendo forte com o esforço e o medo. Eu sabia que, a qualquer momento, ela poderia vazar a minha defesa ou eu poderia tropeçar — casos em que ela me pegaria instantaneamente, e seus dentes pontiagudos se cravariam nas minhas pernas. Contudo, acabei acuando-a contra a porta do sótão e ataquei mais uma vez freneticamente, para fazê-la entrar. Feito isso, bati a porta e tranquei-a, usando a minha chave. Eu sabia que a porta não a seguraria por muito tempo e, quando desci a escada, ouvi suas garras começando a estraçalhar a porta de madeira. Estava na hora de fugir. Eu seguiria os outros para a oficina. Assim que o Caça-feitiço tivesse convalescido, poderíamos voltar e resolver todos os problemas.
Quando, porém, abri a porta da frente, caía uma forte nevasca, a neve açoitava meu rosto. Talvez, eu encontrasse o caminho até o fundo da ravina, mas prosseguir seria loucura. Mesmo que eu conseguisse sair da charneca em segurança, morreria congelado tentando encontrar Adlington. Fechei a porta depressa. Restava-me apenas uma opção.
Meg não era maior do que eu e não era muito pesada. Decidi levá-la para baixo e colocá-la na cova. Feito isso, eu poderia me trancar com ela atrás do portão e ficar relativamente a salvo da lâmia ferina. Pelo menos, por algum tempo. Nem mesmo o portão seguraria Marcia para sempre.
Contudo, havia Bessy Hill, a outra feiticeira com que me preocupar. Deixei Meg no alto da escada para o porão e dei uma rápida busca para localizar a bolsa do Caça-feitiço. Afinal, encontrei-a na cozinha e, sem demora, enchi os bolsos de sal e limalha de ferro. Depois carreguei Meg para o porão, pendurando-a pelas pernas sobre o meu ombro direito. Na mão esquerda, eu levava o bastão e a vela. Gastei um bom tempo para carregá-la e tive o cuidado de trancar o portão ao passar. Mais uma vez, dei distância de Bessy Hill, que ainda roncava nos degraus.
Depois de tudo que acontecera, tive vontade de arrastar Meg pelos pés e deixar sua cabeça bater em cada degrau. Não fiz isso. Provavelmente, ela já estava sofrendo bastante com a corrente de prata que a prendia fortemente. E, apesar de tudo, o Caça-feitiço iria querer que ela fosse tratada o melhor possível. Portanto, tive cuidado.
Porém, quando a coloquei na borda da cova, não pude resistir e disse:
— Sonhe com o seu jardim! — desejei-lhe no tom mais sarcástico possível. Deixei-a, então, e, segurando, meu toco de vela, tornei a subir a escada. Agora estava na hora de cuidar de Bessy Hill. Devo tê-la acordado quando desci, porque ela estava fungando e cuspindo outra vez em sua lenta subida para o portão. Meti as mãos nos bolsos da calça e retirei-as cheias de sal e ferro. Não joguei-os nela, porém; uns três degraus acima, espalhei uma linha de sal, de parede a parede, depois pulverizei o ferro por cima. Andei, então, ao longo do degrau e, cuidadosamente, misturei os dois para formar uma barreira que impedisse a feiticeira de cruzá-la.
Por fim, subi até o portão e me sentei uns três degraus abaixo, caso a lâmia ferina descesse e tentasse me alcançar através das grades.
Acomodei-me e fiquei observando a vela ir se consumindo. Muito antes de ameaçar apagar, eu já estava lamentando o que dissera a Meg. Meu pai não teria gostado que eu fosse tão sarcástico. Tinha me criado para ser uma pessoa melhor. Meg não podia ser tão ruim. O Caça-feitiço a amava e, no passado, ela também o amara. E como ele iria se sentir quando visse que eu a colocara na cova? Que eu fizera uma coisa que ele jamais fora capaz de enfrentar?
Passado algum tempo, a vela finalmente se extinguiu e fiquei no escuro. Subiam leves ecos de sussurros e arranhões do porão, onde as feiticeiras mortas se mexiam, e, de vez em quando, o som débil da feiticeira viva, fungando e cheirando frustrada, incapaz de atravessar a barreira de sal e ferro. Eu estava quase cochilando, quando a lâmia ferina chegou inesperadamente, depois de ter finalmente aberto a porta do sótão com as garras. Minha visão noturna é boa, mas estava realmente escuro na escada e só o que ouvi foi o farfalhar de suas pernas se arrastando e, em seguida, uma sonora pancada quando um vulto escuro se atirou contra o portão e começou a raspar o metal. Meu coração subiu à boca. Pelo jeito, ela estava mais uma vez esfomeada; então, apanhei meu bastão de sorveira-brava e, desesperado, ataquei-a através das grades.
A princípio, isso não afetou seu frenesi, e ouvi as barras gemerem à medida que ela forçava o metal que ia cedendo. Então, dei sorte. Devo tê-la atingido em algum ponto sensível, provavelmente o olho, porque ela soltou um grito agudo e se afastou do portão choramingando e tornando a subir os degraus.
Quando a nevasca parasse e o Caça-feitiço estivesse suficientemente forte, ele voltaria a casa para resolver os problemas — disso eu tinha certeza. Só não sabia quando. Seria uma longa tarde seguida de uma noite mais longa ainda. Talvez, eu tivesse que passar dias ali na escada. Não tinha certeza de quantas vezes Marcia investiria contra o portão.
Duas vezes mais ela atacou e, depois que a repeli pela terceira vez, ela recuou escada acima e desapareceu de vista.
Imaginei que teria voltado para o interior da casa.Talvez tivesse ido caçar ratos ou camundongos. Depois de algum tempo, tive que lutar para me manter acordado. Não podia me dar ao luxo de dormir, porque o portão já estava cedendo. Se eu não estivesse preparado para rechaçá-la, ela não demoraria a forçar sua entrada.
Eu estava numa séria enrascada. Se, ao menos, não tivesse voltado para buscar o grimório, estaria são e salvo com o Caça-feitiço e Alice na casa de Andrew.
VERDADES DURAS
Estava desconfortável e muito frio na escada. Passado um tempo, pelos meus cálculos, a noite tornou a virar dia. Eu sentia fome e estava com a boca seca de tanta sede.
Quanto tempo teria que passar ali embaixo? Quando tempo até o Caça-feitiço chegar? E se meu mestre não se restabelecesse e estivesse doente demais para vir me salvar? Comecei, então, a me preocupar com Alice. E se ela voltasse a casa para me procurar? Pensaria que a lâmia continuava presa no porão. Não sabia que tinha estado no sótão e que agora estava solta pela casa.
Finalmente, ouvi ruídos vindos de algum lugar acima. Não o ruído de pernas rastejando, mas o murmúrio bem-vindo de vozes humanas e botas descendo os degraus e, em seguida, o som de alguma coisa pesada sendo arrastada escada abaixo. A chama de uma vela se refletiu no canto e eu me pus de pé.
— Muito bem, Andrew! Parece que não precisaremos de você — disse uma voz que reconheci imediatamente.
O Caça-feitiço aproximou-se do portão. Arrastava a lâmia ferina atrás dele, bem presa por uma corrente de prata. Ao seu lado vinha Andrew, que o acompanhara para abrir a fechadura.
— Muito bem, rapaz, não fique aí de boca aberta — disse ele. — Abra o portão e nos deixe entrar.
Obedeci depressa. Queria contar ao Caça-feitiço o que fizera com Meg, mas, quando abri a boca para falar, ele balançou a cabeça e pôs a mão no meu ombro.
— Primeiro as prioridades, rapaz — disse ele, sua voz bondosa e compreensiva, como se soubesse exatamente o que eu fizera. — Foi penoso para todos nós e temos muito que conversar. Mas isso fica para depois. Primeiro, temos trabalho a fazer...
Dito isso, com Andrew à frente segurando a vela no alto, descemos a escada. Quando nos aproximamos da feiticeira viva, Andrew parou e a vela começou a tremer em sua mão.
— Andrew, dê a vela ao rapaz — disse o Caça-feitiço. — É melhor você subir de volta e esperar na porta a chegada do pedreiro e do ferreiro. E pode dizer a eles que estamos aqui embaixo.
Com um suspiro de alívio, Andrew me entregou a vela e, depois de acenar em direção ao irmão, tornou a subir a escada. Continuamos a descer até o porão, com seu teto baixo de onde pendiam teias de aranha em profusão. O Caça-feitiço seguiu direto para a cova da lâmia ferina, onde as barras de ferro estavam escancaradas, deixando espaço suficiente para jogá-la no fundo escuro — e o Caça-feitiço não perdeu tempo com preparativos para fazer exatamente isso.
— Prepare o bastão, rapaz! — ordenou.
Cheguei mais perto, a vela na mão direita para iluminar a lâmia e a cova, o bastão de sorveira-brava na mão esquerda em posição para golpeá-la.
O Caça-feitiço segurou a lâmia por cima das barras abertas e, com um movimento repentino, torceu a corrente de prata para a direita e deu-lhe uma sacudidela. A corrente se desenrolou e, com um grito agudo, a lâmia caiu na escuridão. Imediatamente, o Caça-feitiço se ajoelhou ao lado da cova e começou a prender a corrente de prata de uma barra à outra, trançando-a sobre a abertura, de modo a formar uma barreira temporária que a lâmia não pudesse transpor. Das trevas da cova, a lâmia silvou para nós enfurecida, mas não fez nenhuma tentativa de subir; em poucos instantes, a tarefa estava concluída.
— Pronto, isto deve mantê-la presa até o pedreiro e o ferreiro chegarem — disse meu mestre se levantando. — Agora vamos ver como está Meg...
O Caça-feitiço foi à cova de Meg, e eu o acompanhei, segurando a vela. Ele espiou para dentro e balançou a cabeça com tristeza. Meg estava deitada de costas, olhando para nós no alto, seus olhos arregalados e enfurecidos, mas a corrente ainda prendendo-a fortemente e impedindo-a de falar.
— Sinto muito — eu disse. — Sinto mesmo. Eu estava...
O Caça-feitiço ergueu a mão me fazendo calar.
— Guarde suas palavras para depois, rapaz. Fico realmente magoado de ver isso...
Ouvi a voz do Caça-feitiço prender na garganta e, de relance, vi a dor em seu rosto. Desviei depressa o olhar. Houve um longo silêncio, mas por fim ele deu um profundo suspiro.
— O que está feito está feito — disse tristemente —, mas nunca pensei que fosse chegar a isso. Não depois de todos esses anos. Enfim, vamos cuidar da outra...
Tornamos a subir a escada até onde estava a feiticeira viva, Bessy Hill.
— A propósito, foi um recurso bem-lembrado, rapaz! — exclamou o Caça-feitiço, apontando para a linha de sal e ferro. É bom ver que está usando sua iniciativa.
Bessy Hill virou a cabeça lentamente para a esquerda e pareceu estar querendo falar. O Caça-feitiço balançou a cabeça tristemente e apontou para os pés da feiticeira.
— Vamos, rapaz. Você a segura pelo pé direito. Eu a segurarei pelo esquerdo. E vamos arrastá-la devagar para baixo. Com cuidado, agora! Não queremos que bata com a cabeça...
Fizemos exatamente isso e foi uma tarefa desagradável: o pé direito de Bessy estava frio, úmido e escorregadio, e, enquanto a levávamos para baixo, ela começou a fungar e cuspir. Não demorou muito e estava de volta em sua cova. Ficou faltando apenas substituir as barras forçadas e ela estaria segura.
Não falamos durante algum tempo e imaginei que o Caça-feitiço estivesse pensando em Meg, mas dali a pouco ouvimos o som distante de vozes masculinas e de botas pesadas.
— Muito bem, rapaz, devem ser o ferreiro e o pedreiro. Pensei em lhe pedir para cuidar de Meg, mas não é direito e não vou me esquivar do que precisa ser feito. Portanto, volte lá para cima e acenda bons fogos em todos os cômodos de baixo. Você agiu bem: conversaremos mais tarde.
Na subida, encontrei o ferreiro e o pedreiro.
— O sr. Gregory está no fim da escada — informei-lhes. Eles assentiram e continuaram a descer. Nenhum dos dois parecia feliz. Era um trabalho sinistro, mas precisava ser feito.
Mais tarde, quando voltei ao porão para avisar meu mestre que já acendera os fogos, Meg continuava na cova. A minha corrente fora recuperada e guardada, e ele a entregou a mim em silêncio. A cobertura de pedra e ferro tinha sido encaixada na cova e presa com pinos de metal profundamente enterrados no chão.
Agora Meg estava presa sob barras de ferro tão firme quanto as outras feiticeiras. O Caça-feitiço deve ter se sentido triste de verdade por precisar fazer aquilo. Tinha levado quase a vida inteira, mas finalmente Meg estava amarrada.
A tarde ia adiantada quando o serviço foi concluído, e o pedreiro e o ferreiro finalmente foram embora. Depois de fechar a porta, o Caça-feitiço se virou para mim e coçou a barba.
— Tem só mais uma tarefa antes de comermos, rapaz. É melhor você subir e limpar aquela sujeira lá no sótão.
Mesmo depois de tudo que acontecera, eu não tinha esquecido o grimório. Não esquecera o que Morgan poderia fazer a meu pai. E ali estava a minha oportunidade! Então, com as mãos trêmulas só de pensar que ia trair o Caça-feitiço e roubar seu grimório, levei o esfregão e o balde para o sótão. Depois de fechar a claraboia, comecei a limpar o chão o mais rápido que pude. Uma vez terminada a limpeza, em um minuto eu arrombaria a escrivaninha e esconderia o grimório no meu quarto. Eu nunca tinha visto o Caça-feitiço ir ao sótão, por isso poderia entregar o livro a Morgan sem meu mestre perceber que fora tirado dali.
Tendo limpado as penas e o sangue do assoalho, voltei minha atenção para a escrivaninha. Embora fosse uma peça benfeita, ornamentada e sólida, eu não levaria muito tempo para abri-la. Tirei o pequeno pé de cabra do bolso do casaco e enfiei-o na fresta entre as portas.
Naquele momento, ouvi passos às minhas costas e, sentindo-me culpado, me assustei; deparei com o Caça-feitiço parado à porta, uma expressão de cólera e incredulidade em seu rosto.
— Então, rapaz! Que temos aqui!
— Nada — menti. — Eu estava só limpando essa velha escrivaninha.
— Não minta para mim, rapaz. Não há nada pior neste mundo do que um mentiroso. Então, foi por isso que voltou à casa. A garota não conseguia entender por quê...
— Morgan me mandou apanhar o grimório em sua escrivaninha no sótão! — deixei escapar e baixei a cabeça, envergonhado. — Está esperando que eu o entregue na terça-feira à noite, na capela do cemitério. Sinto muito, sinto mesmo. Jamais quis trair o senhor. Mas não pude suportar a ideia do que ele poderia fazer ao meu pai, se eu não lhe obedecesse.
— Seu pai? — O Caça-feitiço franziu a testa. — Como Morgan pode fazer mal a seu pai?
— Meu pai morreu, sr. Gregory.
— Sei, a garota me contou ontem à noite. Lamentei saber.
— Então, Morgan invocou o espírito do meu pai e o aterrorizou...
O Caça-feitiço ergueu a mão.
— Acalme-se, rapaz. Pare de engrolar e fale mais devagar. Onde foi que tudo isso aconteceu?
— No quarto dele, no sítio. Ele invocou, primeiro, a irmã e ela trouxe meu pai. Era a voz do meu pai, e Morgan o fez pensar que estava no inferno. Fez a mesma coisa em Adlington; sem sombra de dúvida, ouvi a voz do meu pai na minha cabeça, e Morgan disse que continuaria a fazer isso se eu não lhe obedecesse. Voltei para buscar o grimório, mas, quando cheguei ao sótão, a lâmia ferina estava aqui comendo passarinhos. Corri para baixo em pânico e encontrei Meg me esperando. Falhei quando arremessei a corrente da primeira vez e achei que estava perdido.
— É, poderia ter lhe custado a vida — concordou meu mestre, balançando a cabeça num gesto de desaprovação.
— Eu estava desesperado.
— Não me interessa, rapaz — retorquiu o Caça-feitiço, coçando a barba. — Eu não lhe disse para ficar longe dele? Você devia ter me contado tudo, em vez de vir aqui furtivamente para roubar um objeto só porque Morgan mandou.
Fiquei magoado com o uso da palavra “roubar”. Não havia como negar que teria sido um roubo, mas ouvi-lo usar essa palavra me magoou demais.
— Não pude. O senhor estava prisioneiro de Meg. Enfim, o senhor não me contou tudo — respondi indignado. — Por que não me disse que Morgan era seu filho? Como posso saber em quem confiar, quando o senhor faz segredo de uma coisa dessa? O senhor me disse que ele era filho do casal Hurst, mas não era, era seu. O sétimo filho que o senhor teve com Emily Burns. Fiz o que fiz porque amo meu pai. Mas seu filho jamais faria o mesmo pelo senhor. Ele o odeia. Quer destruí-lo. Diz que o senhor é um velho tolo!
Eu sabia que tinha ido longe demais, mas o Caça-feitiço apenas sorriu deprimido e balançou a cabeça.
— Suponho que não há pior tolo do que um velho tolo, e, sem dúvida, é o que tenho sido algumas vezes, mas quanto ao resto...
Ele me encarou com dureza, seus olhos verdes faiscando de ferocidade.
— Morgan não é meu filho! É um mentiroso! — disse, de repente, batendo no tampo da escrivaninha, seu rosto branco de fúria. — Era, é e sempre será. Está apenas tentando confundir e manipular você. Não tenho filhos, por vezes até me arrependo disso, mas se eu tivesse um filho, você acha que eu negaria isso? Seu pai teria negado ser pai de algum de vocês?
Balancei a cabeça.
— Quer ouvir a história completa, se é tão importante para você?
Assenti.
— Muito bem, não vou negar que tirei Emily Burns do meu irmão. Nem que isso magoou profundamente a minha família. Principalmente meu irmão. Nunca neguei isso e pouco tenho a dizer em minha defesa, exceto que era jovem. Queria Emily, rapaz, e precisava tê-la. Um dia, você descobrirá o que estou querendo dizer, mas só tive metade da culpa. Emily era uma mulher decidida e ela também me queria. Mas, algum tempo depois, cansou-se de mim, exatamente como se cansara do meu irmão. Ela me deixou e arranjou outro homem.
“Edwin Furner era o nome dele e, embora fosse o sétimo filho de um sétimo filho, trabalhava como curtumeiro. Nem todos que têm as qualificações necessárias seguem o nosso ofício. Tudo correu bem durante uns dois anos e eles foram felizes. Mas logo depois que nasceu o segundo filho, ele passou quase um ano fora, deixando Emily se arranjar sozinha com dois filhos pequenos.
“Teria sido melhor se ele tivesse continuado longe, mas ele sempre reaparecia como uma moeda falsa de que a gente quer se livrar. Cada vez que ia embora, ele a deixava esperando mais um filho. Foram sete ao todo. Morgan foi o sétimo. Depois disso Furner nunca mais voltou.”
O Caça-feitiço balançou a cabeça, cansado.
— Emily teve uma vida dura, rapaz, e nós continuamos amigos. Por isso eu a ajudava quando podia. Às vezes, com dinheiro, outras vezes, procurando emprego para os rapazes. Como não havia um pai para defendê-los, que mais eu podia fazer? Quando Morgan completou dezesseis anos, arranjei-lhe um emprego no Sítio Vista da Charneca. Os Hurst gostaram tanto dele que acabaram adotando-o. Não tinham filho homem e ele teria herdado o sítio. Mas Morgan não se concentrava no trabalho e as coisas começaram a azedar. Não durou lá nem um ano, se tanto.
“Já lhe contei que eles tinham uma filha. Era mais ou menos da mesma idade que ele e se chamava Eveline. Mesmo jovens como eram, Morgan e Eveline se apaixonaram. Os pais não iam tolerar isso porque queriam que os dois fossem irmão e irmã, então os surraram, tornando suas vidas insuportáveis. Por fim, não conseguindo mais aguentar, Eveline se afogou no lago. Depois disso, Emily me suplicou que afastasse Morgan de lá e o tomasse como aprendiz. Na época, pareceu uma solução razoável, mas eu tinha dúvidas que se justificaram. Morgan passou três anos comigo e, finalmente, voltou para Emily, mas não conseguiu ficar longe do Sítio Vista da Charneca. Ele ainda passa temporadas lá, pelo menos quando não está fazendo maldades em outro lugar.
“A irmã deve ser uma alma penada que não conseguiu completar a travessia para o além. Por isso, ele a domina. E, pelo visto, ele tem se fortalecido. Até sobre você parece exercer algum poder. É melhor me contar exatamente o que está acontecendo entre vocês dois.”
Foi o que fiz, e, enquanto falava, o Caça-feitiço não parou de me pedir detalhes. Comecei pelo meu encontro com Morgan na capela do cemitério, na borda da charneca, e terminei com a conversa junto à sepultura de Emily Burns.
— Entendo — disse meu mestre quando terminei. — Agora ficou muito claro. Já comentei com você que Morgan sempre foi fascinado por aquele túmulo antigo no alto da charneca. Se alguém o cavar tempo suficiente, acabará encontrando alguma coisa. Muito bem, quando era meu aprendiz, Morgan finalmente encontrou um baú lacrado com o grimório. E aquele grimório contém um ritual que é a única maneira de despertar Golgoth. Foi isso que ele tentou fazer. Por sorte, cheguei antes de o ritual ter ido longe demais e o interrompi.
— Que teria acontecido se ele tivesse terminado?
— É melhor nem pensar, rapaz. Um engano na execução do ritual e ele teria morrido. Melhor assim do que completá-lo com êxito. Morgan tinha seguido as instruções ao pé da letra e desenhado um pentáculo no piso do quarto no Sítio Vista da Charneca, uma estrela de cinco pontas inscrita em três círculos concêntricos, entende? Portanto, estaria seguro ali dentro se executasse o restante corretamente. Mas Golgoth teria se materializado do lado de fora do pentáculo e estaria solto pelo Condado. Não é à toa que o chamam de Senhor do Inverno. O verão levaria anos para retornar. A morte por congelamento e a fome teriam sido o nosso destino. Morgan ofereceu o cão do sítio em sacrifício. Golgoth jamais o tocou, mas o pobre animal morreu de pavor.
“Então, como já disse, fiz Morgan parar a tempo. Encerrei o aprendizado dele e confisquei o grimório. A mãe dele e eu o fizemos prometer que deixaria Golgoth em paz e não tentaria despertá-lo outra vez. Emily acreditou na promessa e, por causa dela, dei a Morgan todas as oportunidades e sempre tive esperança que a fé que tinha no filho se justificasse. Mas, como o interrompi em meio ao ritual, parte do poder de Golgoth já havia sido despertado e se agregou a Morgan. Sua mãe estava certa: vai ser um inverno cruel. Estou convencido de que as razões disso estão ligadas a Golgoth e Morgan. Depois que saiu da minha tutela, ele se dedicou às trevas, e seus poderes, desde então, vêm aumentando. E ele acha que o grimório lhe trará o poder definitivo.
“Morgan já é capaz de fazer coisas que um homem não deveria fazer. Algumas são apenas truques mágicos, como alterar a temperatura de um quarto para impressionar os crédulos. Mas agora parece que também é capaz de prender os mortos à sua vontade: não apenas fantasmas, mas também espíritos que pairam no limbo entre esta vida e a outra. Me custa dizer isso, rapaz, mas a situação parece muito grave. Eu realmente receio que Morgan possa atormentar o espírito de seu pai...”
O Caça-feitiço ergueu os olhos para a claraboia e, em seguida, baixou-os para a escrivaninha. Balançou, então, a cabeça tristemente.
— Muito bem, rapaz, vá descendo e conversaremos um pouco mais sobre isso...
Quinze minutos mais tarde, meu mestre estava sentado tranquilamente na cadeira de balanço de Meg e havia uma sopa de ervilhas fumegando na panela.
— Está com muita fome, rapaz? — perguntou-me.
— Não como nada desde ontem — respondi.
Ao ouvir isso, ele riu, revelando a falha onde o ogro lhe arrancara o dente, levantou-se, pôs duas tigelas sobre a mesa e serviu a sopa quente com uma concha. Não demorou para eu começar a molhar o pão no delicioso caldo escaldante. O Caça-feitiço não quis o pão, mas esvaziou sua tigela.
— Lamento muito que seu pai tenha falecido — disse-me, afastando a tigela de sopa vazia. — Ele não deveria recear nada após a morte. Infelizmente, Morgan está usando o poder de Golgoth para atormentar seu pai e chegar a você. Mas não se preocupe, rapaz, assim que pudermos, poremos um fim nisso. Quanto à outra tolice, Morgan não é meu filho nem nunca foi. — O Caça-feitiço tornou a me encarar nos olhos. — Então? Você acredita em mim?
Confirmei com um aceno que não deve ter sido muito convincente, porque o Caça-feitiço suspirou e balançou a cabeça.
— Muito bem, rapaz, ou bem ele é mentiroso ou eu é que sou. É melhor você decidir qual dos dois é. Se não existir confiança entre nós, não tem sentido você continuar como meu aprendiz. Mas esteja certo de uma coisa: eu não deixaria você segui-lo. Antes, eu agarraria você pelo cangote, o devolveria à sua mãe e deixaria que ela metesse algum juízo nessa cabeça-dura.
Seu tom era ríspido, mas, depois de tudo que tinha acontecido, eu me sentia realmente abalado.
— O senhor não poderia me devolver a minha mãe — disse-lhe com amargura. — Cheguei tarde demais para o enterro e nem ao menos a vi. Depois do enterro, ela foi embora, talvez para a terra dela. Acho que não vai voltar...
— Vamos lhe dar espaço, rapaz. Ela acabou de perder o marido e precisa de tempo para chorar e pensar. Mas você voltará a vê-la e não vai demorar muito. Tenho certeza. E isso não é uma profecia. É apenas bom-senso. Se ela for, irá, mas vai querer se despedir direito de todos os filhos antes de partir.
“Enfim, é horrível o que Morgan está fazendo, mas não se preocupe, vou procurá-lo e obrigá-lo a parar de uma vez por todas.”
Eu estava exausto demais para responder, por isso apenas confirmei com a cabeça. Esperava que ele tivesse razão.
A CAPELA FÚNEBRE
Apesar de todas as promessas do Caça-feitiço, não foi possível dar atenção imediatamente a Morgan. Nas duas semanas seguintes, o tempo esteve tão ruim que quase não saímos de casa. Nevasca sobre nevasca invadia a ravina, fazendo a neve rodopiar contra as janelas, soterrando a fachada da casa quase ao nível dos quartos do primeiro andar. Eu estava começando a acreditar que, de fato, Golgoth fora despertado e me sentia grato que Shanks tivesse tido a precaução de entregar mantimentos em maior quantidade. Quando chegou a terça-feira que Morgan marcara para o nosso encontro, fiquei nervoso e, de certa forma, esperei que ele aparecesse na casa. As nevascas, no entanto, foram tão fortes que ninguém teria conseguido atravessar a charneca. Ainda assim, cada hora preso naquela casa parecia uma tortura. Eu estava desesperado para sair, ir procurar Morgan e pôr fim ao sofrimento do meu pai.
Meu mestre nos fez seguir a rotina normal de dormir, comer, ter aulas durante a nevasca, mas acrescentou algo novo. Toda tarde, ele descia a escada do porão para conversar com Meg e levar-lhe alguma coisa para comer. Em geral, eram apenas biscoitos, mas, às vezes, ele levava sobras do nosso almoço. Eu ficava imaginando o que os dois conversavam quando ele estava lá embaixo, embora tivesse o bom-senso de não perguntar. Tínhamos concordado em não ter mais segredos, mas eu compreendia que, apesar disso, o Caça-feitiço ainda esperava preservar alguma privacidade.
As outras duas feiticeiras tinham que se arranjar como pudessem, mastigando vermes, lesmas e qualquer coisa que pudessem extrair da terra úmida, mas Meg ainda era um caso especial. Tinha a sensação de que, em breve, o Caça-feitiço voltaria a dar a Meg o chá de ervas e a tiraria do porão. Ela era, sem dúvida, uma cozinheira bem melhor do que qualquer um de nós, mas, depois de tudo que ocorrera, eu não podia deixar de me sentir mais seguro com ela presa na cova. Preocupava-me, no entanto, com o Caça-feitiço. Teria amolecido? Depois de todos os seus avisos para não confiar em mulheres, ali estava ele desrespeitando outra vez as próprias regras. Tive vontade de lhe dizer isso, mas como poderia, vendo que estava inquieto por causa de Meg?
Ele continuava a não se alimentar direito e, certa manhã, seus olhos estavam vermelhos e inchados, como se os tivesse esfregado várias vezes. Cheguei a me perguntar se tinha estado chorando e isso me fez pensar qual seria o meu comportamento em igual situação. E se eu fosse o Caça-feitiço e Alice estivesse lá embaixo na cova? Não estaria fazendo o mesmo? Eu também me perguntava como estaria Alice. Tinha decidido que, o dia em que o tempo melhorasse, ia perguntar ao meu mestre se poderia fazer uma visita à oficina do Andrew para vê-la novamente.
Então, inesperadamente, certa manhã, o tempo mudou. Eu passara todo o tempo pensando na ameaça ao meu pai, esperando que, na primeira oportunidade, sairíamos para procurar Morgan. Mas isso não aconteceu. Com o sol chegou também um serviço para o Caça-feitiço. Meu mestre e eu fomos chamados ao Sítio Platt, no leste. Era um problema com um ogro, ou assim pareceu.
Levamos uma hora, mais ou menos, para partir porque, primeiro, o Caça-feitiço talhou para si mesmo um novo bastão de sorveira-brava, e, quando finalmente chegamos, depois de duas horas de dura caminhada pela neve funda, não havia o menor sinal de presença de um ogro nas redondezas e o sitiante pediu muitas desculpas por ter se enganado, culpando sua mulher, que tinha tendência ao sonambulismo. O homem contou que ela arrastara móveis na cozinha e batera potes e panelas para perturbar a família, e acordara na manhã seguinte sem se lembrar do que fizera. Mostrou-se constrangido por ter nos chamado à toa e quase ansioso demais para remunerar o Caça-feitiço pelo incômodo.
Fiquei furioso que tivéssemos perdido um tempo precioso e disse isso ao Caça-feitiço no caminho de volta. Ele concordou.
— Aí tem coisa — comentou meu mestre. — A não ser que eu muito me engane, nos fizeram sair de propósito. Você já viu alguém tão pronto a meter a mão no bolso para pagar?
Balancei negativamente a cabeça e redobramos o nosso passo, o Caça-feitiço seguindo à frente, ansioso para retornar a casa. Quando chegamos, a porta dos fundos estava aberta. A fechadura havia sido arrombada. Depois de verificar se a porta do porão e o portão estavam intactos, o Caça-feitiço me mandou esperar na cozinha e subiu. Cinco minutos depois, ele desceu balançando a cabeça, furioso.
— Levaram o grimório — exclamou. — Muito bem, rapaz, temos certeza de quem estamos procurando! Quem mais poderia ser, senão Morgan? Ele domina Golgoth o suficiente para fazer parar de nevar e, em seguida, arma esquemas para nos roubar.
Pareceu-me estranho que Morgan não tivesse tentado roubar o grimório antes. Teria sido bem fácil durante os verões, quando Meg estava trancada no quarto embaixo, e a parte superior da casa, vazia. Lembrei-me, então, do que o Caça-feitiço me contara — a promessa que Morgan fizera à mãe de que não tentaria ressuscitar Golgoth. Talvez tivesse cumprido a promessa até a mãe morrer; depois do luto, ele agora se sentia livre para agir como quisesse.
— Muito bem, não podemos fazer muita coisa hoje, exceto ir a Adlington pedir ao meu irmão para vir consertar a porta — disse o Caça-feitiço. — Mas não mencione o roubo. Eu falarei quando achar melhor. E, no caminho, faremos uma visitinha ao Sítio Vista da Charneca. Duvido que encontre Morgan lá, mas tem umas coisas que preciso perguntar aos Hurst.
Fiquei imaginando por que meu mestre não queria contar a Andrew a perda do grimório, mas senti que ele não estava disposto a responder a perguntas.
Partimos imediatamente para o sítio. Quando chegamos, o Caça-feitiço entrou sozinho para falar com os Hurst e me disse para esperá-lo no terreiro. Não vi sinal de Morgan. Meu mestre demorou algum tempo na casa e saiu de testa franzida. Com lábios contraídos, partiu à frente para a loja de Andrew.
O Caça-feitiço se comportou como se fosse apenas uma visita fraternal, fazendo com que eu tornasse a me perguntar por que não mencionava o que acontecera. Mas foi bom ver Alice. Ela nos preparou uma ceia tardia e nos aquecemos diante da boa lareira na sala de visitas, antes de nos sentarmos à mesa. Quando terminamos de comer, o Caça-feitiço se dirigiu a Alice.
— Foi uma boa ceia, garota — disse com um leve sorriso —, mas agora tenho assuntos particulares a tratar com o meu irmão e Tom. Por isso, é melhor você ir dormir.
— Por que eu deveria ir dormir? — perguntou ela, revelando indignação. — Sou eu que moro aqui, e não você.
— Por favor, Alice, faça o que John está pedindo — disse Andrew gentilmente. — Tenho certeza de que ele deve ter uma boa razão para não querer que você ouça o que vai dizer.
Alice lançou a Andrew um olhar fuzilante, mas ele era o dono da casa e ela obedeceu, fechando a porta quase violentamente e subindo a escada batendo os pés.
— Quanto menos ela souber, melhor — disse o Caça-feitiço. — Acabei de visitar os Hurst e conversei um pouco com a mulher para saber por que a jovem Alice deixou o sítio. Parece que ela discutiu com Morgan e partiu aborrecida, mas alguns dias antes os dois tinham andado muito íntimos e passado um bom tempo no quarto dele no andar térreo. Talvez isso não queira dizer nada. Ele pode muito bem ter tentado aliciá-la, da mesma forma que tentou fazer com o rapaz — disse ele me indicando com um aceno de cabeça. — Tentou e falhou. Mas, só por precaução, é melhor que ela não me ouça. Hoje de manhã Morgan arrombou minha casa e roubou o grimório.
Andrew pareceu realmente preocupado e abriu a boca para falar, mas eu fui mais rápido.
— Isso não é justo! — protestei. — Alice odeia Morgan. Ela mesma me contou. Por que mais teria saído? Não tem cabimento achar que ela o teria ajudado.
O Caça-feitiço balançou a cabeça, aborrecido.
— Algumas lições vão levar mais tempo do que outras para entrar na sua cabeça tonta! — retrucou com rispidez. — Depois de tanto tempo, você ainda não aprendeu que não se pode confiar inteiramente nessa garota. Sempre vai precisar que a vigiemos. É por isso que providenciei para que ficasse por perto. Do contrário, eu não permitiria que chegasse nem a dez quilômetros de você.
— Espera aí — interrompeu Andrew. — Você está me dizendo que Morgan apanhou o grimório? Como pôde ser tão tolo, John? Você devia ter queimado aquele livro infernal quando teve oportunidade! Se ele tentar executar novamente aquele ritual, qualquer coisa poderá acontecer. Eu tinha esperança de ver mais alguns verões antes de esgotar meu tempo na terra. Você devia tê-lo destruído. Não consigo entender por que o guardou tantos anos!
— Olhe, Andrew, isso não é da sua conta e você terá que confiar em mim. Digamos que tive as minhas razões.
— Emily, hein?
O Caça-feitiço fingiu não ouvir.
— O que foi feito está feito e gostaria que Morgan jamais tivesse levado aquele livro que estava guardado a chave em lugar seguro.
— Eu também! — concordou Andrew, alteando a voz e ficando mais zangado a cada minuto. — O seu dever é o Condado. Você tem dito isso muitas vezes. O que você fez ao guardar aquele livro em vez de queimá-lo foi uma irresponsabilidade para com o seu dever!
— Muito bem, mano, agradeço a sua hospitalidade, mas não por suas palavras desagradáveis — respondeu o Caça-feitiço, com uma ponta de cólera na voz. — Eu não me meto com o seu ofício e você deveria confiar que sempre farei o que for melhor para todos. Só vim aqui para pôr você a par da situação, mas foi um dia longo e cansativo, e está na hora de irmos para nossas camas e assim evitar dizer coisas de que vamos acabar nos arrependendo!
E, tendo dito isso, saímos da casa de Andrew às pressas. Quando íamos descendo a rua, lembrei-me da principal razão da nossa visita.
— Não pedimos a Andrew para consertar a fechadura. Quer que eu corra lá para falar?
— Não, não vá, rapaz — respondeu o Caça-feitiço com raiva. — Nem que ele fosse o último serralheiro do Condado! Prefiro consertar a porta sozinho.
— Bom, agora que o tempo melhorou — perguntei —, podemos começar a procurar Morgan amanhã? Estou realmente preocupado com meu pai...
— Deixe isso comigo, rapaz — disse o Caça-feitiço, abrandando a voz. — Pensei em alguns lugares onde Morgan pode ter ido se esconder. O melhor é eu sair amanhã bem cedo antes do amanhecer.
— Posso ir com o senhor?
— Não, rapaz. Tenho mais chance de surpreendê-lo dormindo, se for sozinho. Confie em mim. Farei o melhor possível.
Eu confiava no Caça-feitiço. E, embora achasse sensato o que ele dizia, ainda assim gostaria de acompanhá-lo. Tentei mais uma vez convencê-lo, mas percebi que estava gastando meu fôlego à toa. Quando o Caça-feitiço toma uma decisão, a gente tem que aceitar e deixar que ele a execute.
Na manhã seguinte, quando desci à cozinha, não vi sinal do Caça-feitiço. Sua capa e seu bastão haviam desaparecido e, conforme prometera, ele tinha saído de casa muito antes de o sol nascer à procura de Morgan. Quando terminei o café da manhã, meu mestre ainda não tinha voltado e me dei conta de que sua ausência me oferecia uma oportunidade imperdível. Estava curioso a respeito de Meg e resolvi fazer uma rápida visita ao porão para ver como ia passando. Apanhei, então, a chave na prateleira superior da estante, acendi uma vela e desci a escada. Passei pelo portão, tranquei-o e continuei a descida para o porão, mas, quando cheguei ao patamar onde havia as três portas, uma voz repentinamente chamou da cela do meio:
— John? John? É você. Reservou a nossa passagem?
Parei imediatamente. Era a voz de Meg. Ele a tirara da cova e a pusera em uma cela onde estaria mais confortável. Tinha sentido pena. Não havia dúvida de que, dentro de mais uns dias, ela estaria de volta à cozinha. O que significava, porém, a pergunta a respeito da passagem? Ela ia viajar? O Caça-feitiço ia acompanhá-la?
De repente, ouvi Meg fungar alto, três vezes.
— Ora, garoto, que está fazendo aqui embaixo? Venha até a porta para eu poder vê-lo melhor...
Ela farejara a minha presença, por isso não adiantava tornar a subir furtivamente. Com certeza, contaria ao Caça-feitiço aonde eu tinha ido. Aproximei-me da cela e espiei para dentro, tomando o cuidado de não chegar perto demais.
O rosto bonito de Meg me sorriu através das grades. Não foi o sorriso sinistro que me havia dado quando nos engalfinháramos. Para minha surpresa, foi quase amigável.
— Como vai, Meg? — perguntei gentilmente.
— Já estive melhor e já estive pior. E não foi graças a você. Mas o que foi feito está feito e não o culpo por isso. Você é o que é. Você e John têm muito em comum. Mas vou lhe dar um conselho: isto é, se estiver disposto a me dar ouvidos.
— Claro que estou.
— Neste caso, preste atenção ao que vou dizer. Trate bem aquela garota. Alice gosta de você. Trate-a melhor do que John me tratou, e você não terá o que lamentar. Não será preciso terminar assim.
— Gosto muito de Alice e farei tudo que for possível.
— Pois faça mesmo.
— Ouvi você perguntar sobre uma reserva de passagem — comentei me virando para ir embora. — Que quis dizer?
— Não é da sua conta, garoto — retrucou Meg. — Pode perguntar ao John, mas acho que não vai fazer isso, porque receberia a mesma resposta dele. E acho que ele não iria querer que você andasse por aqui sem permissão, iria?
Ao ouvir isso, murmurei um “tchau” e tornei a subir a escada, tomando o cuidado de trancar o portão ao passar. Aparentemente, o Caça-feitiço continuava a guardar segredos e eu desconfiava de que sempre guardaria. Nem bem repus a chave no lugar, ele chegou.
— O senhor achou Morgan? — perguntei desapontado. Já sabia a resposta. Se tivesse encontrado, teria trazido o sujeito amarrado como prisioneiro.
— Não, rapaz, lamento dizer que não achei. Pensei que o encontraria rondando a torre abandonada de Rivington. Com certeza, esteve lá recentemente e, sem dúvida, fazendo o que não presta. Mas, pelo jeito, ele nunca para em lugar algum por muito tempo. Mas não se preocupe. Vou procurá-lo outra vez amanhã cedo. Nesse meio-tempo, você pode fazer uma coisa para mim. Hoje à tarde, dê uma chegada a Adlington e pergunte àquele meu irmão se pode vir consertar a porta dos fundos — disse o Caça-feitiço. — E diga que estou arrependido de termos trocado palavras desagradáveis e que, um dia, ele entenderá que fiz o melhor para todos.
As aulas da tarde se prolongaram além do habitual e faltavam menos de duas horas para anoitecer quando, levando meu bastão de sorveira-brava, finalmente parti para Adlington.
Andrew me deu as boas-vindas e seu rosto se abriu em um sorriso quando lhe apresentei as desculpas do Caça-feitiço: na mesma hora, ele concordou em consertar a porta dali a uns dois dias. Depois, passei quinze minutos conversando com Alice, embora ela parecesse meio indiferente. Provavelmente porque tinha sido mandado para a cama na noite anterior. Depois de me despedir tornei a partir para casa, ansioso para chegar antes de escurecer completamente.
Estava caminhando a menos de cinco minutos, quando ouvi um leve ruído às minhas costas. Virei-me e vi que alguém me seguia na subida do morro. Era Alice; esperei-a me alcançar. Ela estava usando o casaco de lã e, à medida que se aproximava, seus sapatos de bico fino deixavam pegadas nítidas na neve.
— Você está aprontando alguma coisa — disse Alice sorrindo. — Que foi que não quiseram que eu ouvisse ontem à noite? Você pode me contar, não pode, Tom? Não temos segredos. Enfrentamos coisas demais juntos.
O sol tinha se posto e estava começando a escurecer.
— É muito complicado — eu disse impaciente para ir embora. — Não tenho muito tempo.
Alice se curvou para mim e segurou meu braço.
— Vamos, Tom, você pode me contar!
— O sr. Gregory não confia em você. Acha que ficou muito íntima do Morgan. A sra. Hurst contou a ele que você e Morgan passaram muito tempo juntos naquele quarto do térreo...
— Não é novidade que o Velho Gregory não confie em mim! — exclamou Alice com uma careta de desdém. — Morgan estava planejando uma coisa importante. Um ritual, foi o que ele me disse, que ia lhe trazer riqueza e poder. Queria a minha ajuda e me amolou sem parar até eu não conseguir nem mais olhar para ele. Foi só isso. Anda, Tom. Que está acontecendo? Pode me contar...
Por fim, percebendo que ela não ia desistir, me deixei convencer, e Alice caminhou ao meu lado enquanto eu lhe explicava, relutante, o que tinha ocorrido. Falei sobre o grimório e que Morgan queria que eu o roubasse e como estava torturando o espírito de meu pai. Depois contei que a casa tinha sido arrombada e que agora estávamos procurando Morgan.
O mínimo que posso dizer é que Alice não ficou muito satisfeita com o que relatei.
— Você quer dizer que entramos juntos na casa do Velho Gregory sem você mencionar o que tinha planejado? Não fez a mínima menção? Você pretendia ir ao sótão e nem me disse? Isso não é direito, Tom. Arrisquei a minha vida e merecia um tratamento melhor. Bem melhor!
— Desculpe, Alice, eu realmente lamento. Mas só conseguia pensar no meu pai e no que Morgan estava fazendo com ele. Não estava nem raciocinando. Eu devia ter confiado em você, sabe?
— Agora é um pouco tarde para reconhecer isso. Mas acho que sei onde você poderia encontrar Morgan hoje à noite...
Olhei-a espantado.
— Hoje é terça-feira, e, nessas noites, ele sempre faz a mesma coisa. Vem fazendo isso desde o final do verão. Tem uma capela na encosta do morro. No meio de um cemitério. As pessoas vêm de longe e lhe entregam dinheiro. Fui lá com ele uma vez. Ele faz os mortos falarem. E nem é padre, mas tem uma congregação que põe muita igreja no chinelo.
Lembrei-me da primeira vez em que me encontrei com Morgan — quando chegaram as notícias sobre meu pai e eu estava indo para o sítio. Tinha sido também uma terça-feira. Peguei um atalho que cortava o cemitério e ele estava na capela. Devia estar esperando a congregação chegar. E, ainda, ele tinha me pedido para levar o grimório em uma terça-feira, quando anoitecesse. Senti vontade de me bater. Por que não tinha sido capaz de somar dois mais dois?
— Não está me acreditando? — perguntou Alice.
— Claro que estou. Sei onde fica a capela. Já estive lá antes.
— Então, por que não passa por lá a caminho de casa? — sugeriu Alice. — Se eu estiver certa no meu palpite, vai poder ir avisar ao Velho Gregory. Talvez ele chegue a tempo de pegar Morgan! Mas não se esqueça de mencionar que fui eu que lhe disse onde o encontrar. Talvez ele forme uma opinião melhor a meu respeito. Mas vou esperar sentada.
— Venha comigo — sugeri. — Você poderia vigiar enquanto busco o Caça-feitiço. Assim, se não voltarmos a tempo, você nos dirá aonde Morgan foi.
Alice balançou a cabeça.
— Não, Tom. Por que faria isso depois do que aconteceu? Não gosto que desconfiem de mim. Não é certo. Enfim, você tem o seu trabalho e eu tenho o meu. A oficina tem estado realmente movimentada. Trabalhei muito o dia todo e agora vou me esquentar ao pé da lareira em vez de gastar meu tempo ao relento tiritando de frio. Você faz o que tem que fazer e deixe o Velho Gregory resolver o problema com Morgan. Mas me deixe fora disso.
Dito isso, Alice deu meia-volta e desceu o morro. Fiquei desapontado e um pouco triste, mas não pude culpá-la. Se eu tinha segredos para ela, por que deveria me ajudar?
A essa altura, estava quase escuro e o céu começava a cintilar de estrelas. Sem perder tempo, escolhi o caminho que me levava ao alto da charneca e retornei até a mureta, no ponto exato do arvoredo em que eu a saltara naquela terça-feira à noite, quando estava viajando para o sítio. Apoiei-me na mureta e olhei na direção da capela. A chama das velas refletia-se no vitral da janela. Notei, então, alguma coisa muito além do cemitério. Pontinhos dispersos de luz vinham subindo a encosta na minha direção.
Lanternas! Os membros da congregação de Morgan estavam se aproximando. Embora eu não pudesse ter certeza, ele provavelmente já estava lá dentro, esperando-os chegar.
Dei meia-volta e atravessei o arvoredo, retomando o rumo da casa do Caça-feitiço. Precisava avisar meu mestre e trazê-lo de volta, em tempo de pegar Morgan. Não tinha, porém, dado mais que dez passos quando alguém saiu das sombras à minha frente. Uma figura encapuzada de capa preta. Parei, quando veio ao meu encontro. Era Morgan.
— Você me desapontou, Tom — disse ele, seu tom cruel e duro. — Pedi para me trazer uma coisa. Você me deixou na mão e tive que ir buscá-la pessoalmente. Não lhe pedi muito, não foi? Não quando havia tanto em jogo.
Não respondi e ele avançou mais um passo. Dei-lhe as costas, pensando em correr, mas, antes que conseguisse me mexer, ele me agarrou pelo ombro. Resisti por um momento e tentei erguer o bastão para acertá-lo, mas inesperadamente senti uma forte pancada na têmpora direita. Tudo escureceu e tive a impressão de que estava caindo.
Quando abri os olhos, me vi na capela. Minha cabeça doía e senti que ia enjoar. Estava sentado na última fila de bancos com a cabeça apoiada na fria parede de pedra, de frente para o confessionário. A cada um dos lados do móvel havia duas grandes velas.
Morgan estava parado à frente do confessionário, virado para mim.
— Muito bem, Tom. Tenho outros assuntos a tratar primeiro. Depois conversaremos.
— Preciso voltar — eu disse, sentindo dificuldade em encontrar as palavras. — Do contrário, o sr. Gregory vai se preocupar com o meu paradeiro.
— Pois deixe que se preocupe. Que diferença faz o que ele pensa? Você nunca irá voltar... Agora é o meu aprendiz e tenho um serviço para você fazer hoje à noite.
Com um sorriso de triunfo, Morgan entrou no confessionário pela porta reservada ao padre, do lado esquerdo. E saiu do meu campo de visão. As velas iluminavam a capela, mas as duas portas eram dois retângulos de total negrume.
Tentei me levantar e sair correndo, mas me senti muito fraco e minhas pernas ainda estavam bambas. Minha cabeça latejava e a visão ficara turva com a pancada na cabeça, então só me restava ficar sentado ali, tentando recuperar o fôlego, desejando conter o vômito.
Alguns instantes depois, chegaram os primeiros membros da congregação de Morgan. Entraram duas mulheres e, quando cada uma delas passou pela porta, ouvi um tilintar de metal contra metal. Eu não notara antes, mas havia um prato de cobre para donativos à esquerda da porta e elas deixaram cair ali uma moeda antes de seguir para seus lugares. Depois, sem sequer olhar para o meu lado, mantendo a cabeça baixa, elas se acomodaram em um dos primeiros bancos, que começaram a se encher de gente. Notei, porém, que todos que entravam na capela deixavam suas lanternas do lado de fora. A congregação era, na maior parte, formada por mulheres — os poucos homens presentes eram relativamente idosos. Ninguém falava. Aguardamos em silêncio, exceto pelo tilintar das moedas e o balanço do prato. Finalmente, quando todos os bancos foram ocupados, a porta pareceu fechar sozinha. Ou isso ou alguém do lado de fora a empurrara.
Agora, a única luz vinha das velas dos lados do confessionário. Ecoaram algumas tossidas e, mais à frente, alguns pigarros; em seguida, o silêncio da expectativa em que se poderia ouvir uma agulha cair no chão. Exatamente como acontecera no quarto escuro, no Sítio Vista da Charneca. Tive a sensação de que meus ouvidos iam estourar. De repente me arrepiei. Do confessionário saiu uma friagem em minha direção. Morgan estava usando o poder que obtivera na tentativa de ressuscitar Golgoth.
De repente, o silêncio foi rompido pela voz de Morgan, que chamou alto:
— Minha irmã? Minha irmã, você está aí?
Em resposta, ouviram-se três batidas no piso da capela, tão fortes que a construção pareceu vibrar, seguidas de um longo suspiro entrecortado que veio da porta reservada ao penitente às escuras.
— Me deixe em paz! Me deixe descansar! — respondeu a garota, suplicante. Não era mais do que um sussurro carregado de angústia, e a resposta mais uma vez vinha da porta escura do confessionário. A irmã de Morgan era uma alma penada sob seu controle. Não queria estar ali.
O irmão a fazia sofrer, mas a congregação não sabia disso, e eu percebia o nervosismo, a expectativa e a excitação das pessoas ao meu redor enquanto esperavam Morgan invocar os parentes e amigos que a morte lhes roubara.
— Obedeça-me primeiro. Depois poderá descansar! — ressoou a voz de Morgan.
Como se reagisse às suas palavras, um vulto branco saiu das sombras e parou emoldurado à porta da entrada do penitente. Embora Eveline tivesse se afogado quando tinha uns dezesseis anos, o espírito não parecia mais velho do que Alice. Seu rosto, pernas e braços nus eram brancos como o vestido que estava usando. A roupa aderia ao seu corpo como se estivesse encharcada, e seus cabelos estavam escorridos e molhados. A aparição provocou uma exclamação de espanto na congregação, mas o que atraiu minha atenção foram os seus olhos. Eram grandes e luminosos, e extremamente tristes. Eu nunca tinha visto um rosto mais triste que o do fantasma de Eveline.
— Estou aqui. Que quer de mim?
— Há outros espíritos com você? Outros que queiram falar com alguém que esteja reunido aqui conosco?
— Tem alguns. Perto de mim está um espírito de criança que atende pelo nome de Maureen. Ela quer falar com Matilda, sua querida mãe...
Naquele momento, uma mulher no primeiro banco se levantou e estendeu os braços, suplicante. Parecia estar tentando falar, mas seu corpo tremia de emoção e somente um gemido escapou de seus lábios. O vulto de Eveline recuou para a escuridão e outro vulto se adiantou.
— Mãe? Mãe? — gritou uma voz feminina de dentro do confessionário. Desta vez era a voz de uma criança muito pequena. — Venha para mim, mamãe. Por favor, por favor! Sinto tanto a sua falta...
Ao ouvir isso, a mulher deixou o seu lugar e caminhou hesitante em direção ao confessionário, de braços estendidos. A congregação prendeu o fôlego e imediatamente vi o motivo. Um vulto pálido tornou-se visível nas sombras da porta do lado direito. Parecia o de uma criança de uns quatro ou cinco anos, os cabelos longos até os ombros.
— Segura a minha mão, mamãe! Por favor, segura a minha mão! — pedia a criança, e da porta escura surgiu uma mãozinha branca. Ao alcançá-la, a mulher caiu de joelhos e a agarrou, puxando-a ansiosa para tocá-la com os lábios.
— Ah, sua mãozinha está tão fria, tão gelada! — exclamou a mulher, começando a chorar, seus soluços e gritos aflitos ecoando por toda a capela. Isso durou longos minutos, até que, por fim, a mão recuou para a porta e a mãe voltou insegura ao seu lugar.
Depois disso, a mesma cena se repetiu várias vezes. Ora com adultos, ora com crianças que se materializavam das sombras da porta do confessionário. Vislumbravam-se vultos escuros, rostos pálidos e, mais raramente, uma mão estendida para a claridade das velas. E sempre havia uma forte reação emotiva do parente ou amigo que fazia o contato.
Com o passar do tempo, comecei a me enojar com o espetáculo, desejando que ele terminasse. Morgan era um homem inteligente e perigoso que usava o poder de Golgoth para prender aqueles pobres espíritos à sua vontade. Enquanto ouvia a aflição dos vivos e o tormento dos mortos, lembrei-me de ter ouvido o tilintar das moedas no prato de cobre para os donativos.
Finalmente, a sessão terminou. A congregação saiu da capela e, quando a última pessoa passou, a porta fechou, aparentemente movida por uma mão invisível.
Morgan não saiu do confessionário imediatamente, mas, aos poucos, o frio começou a passar. Quando finalmente apareceu e se aproximou de mim, havia gotas de suor em sua testa.
— Como vai o meu pai depois que o fiz sair naquela viagem inútil? — perguntou Morgan com uma careta risonha. — O velho tolo gostou da caminhada até o Sítio Platt?
— O sr. Gregory não é seu pai — eu disse em voz baixa, levantando-me inseguro. — O nome do seu verdadeiro pai era Edwin Furner, um curtumeiro local. Todo mundo sabe a verdade que você não consegue aceitar. Conta mentira sobre mentira. Vamos agora mesmo a Adlington perguntar a algumas pessoas. Vamos perguntar à irmã de sua mãe: ela ainda mora lá. Se todos confirmarem o que você diz, talvez eu comece a acreditar. Mas acho que não vão confirmar. O pai é você: o pai da mentira! E contou tantas que agora está começando a acreditar nelas!
Lívido de fúria, Morgan deu um soco na minha direção. Tentei me desviar, mas ainda estava tonto e meus reflexos continuavam lentos demais. O punho dele tornou a me atingir na têmpora, quase no mesmo lugar da vez anterior. Caí, batendo com a parte de trás da cabeça nas pedras.
Não cheguei a perder a consciência dessa vez, mas fui posto de pé com violência e ele chegou o rosto bem perto do meu. Senti o gosto de sangue na boca e um dos meus olhos quase fechado, inchado a ponto de eu mal conseguir enxergar. A expressão do rosto de Morgan, porém, estava muito nítida e não gostei do que vi. Tinha a boca distorcida e os olhos brilhantes e furiosos. Parecia mais o rosto de uma fera do que de um homem.
A BROA
– Você teve a sua chance e não a aproveitou! Mas tenho outra utilidade para você. Uma de que não vai gostar nada! Tome, pegue isso! — vociferou Morgan, atirando alguma coisa para mim.
Era uma pá. Mal agarrei-a e ele me entregou um saco estufado, tão pesado que precisou me ajudar a colocá-lo no ombro. Em seguida, Morgan me empurrou em direção à porta da capela e para o frio lá fora. Fiquei tiritando, mal aguentando o peso do saco, me sentindo doente e fraco demais para fugir. E, se tentasse, tinha a certeza de que ele me pegaria em segundos e tornaria a me esmurrar. O vento começou a soprar do nordeste, formando nuvens que encobriam as estrelas. Parecia que ia voltar a nevar.
Morgan me deu outro empurrão para me fazer andar, e me seguiu levando uma lanterna. Dali a pouco, estávamos escalando a charneca desolada e coberta de neve, deixando para trás as últimas árvores dispersas. Não tive escolha, senão continuar a fazer um violento esforço para subir. Se não andava suficientemente ligeiro, recebia um empurrão nas costas. Uma vez, escorreguei e caí de cara no chão, soltando o saco. Em consequência, recebi um soco nas costelas tão forte que senti pavor de cair de novo. Ele me mandou apanhar o saco e continuamos a penosa subida na neve até eu perder a noção do tempo. Finalmente, no alto da charneca, ele me mandou parar. Não muito longe havia um morro redondo e liso demais para ser natural; a neve que o cobria refletia-se muito branca à luz das estrelas que ainda apareciam no céu. Reconheci-o, então, pelo que era. Era a Broa, o túmulo que o Caça-feitiço apontara na viagem em que tínhamos ido resolver o caso do ogro na ravina de Owshaw. O monte de terra de onde Morgan desenterrara o grimório.
Morgan apontou para o leste e me empurrou à frente. A uns duzentos e poucos passos havia um rochedo de pequenas dimensões. Quando o alcançamos, ele mediu rapidamente dez passos para o sul, e avaliei as minhas chances de poder lhe dar uma pancada com a pá e fugir. Continuava, porém, me sentindo fraco e ele era muito maior e mais forte do que eu.
— Cave aqui! — ordenou-me, apontando um lugar na neve.
Obedeci e logo atravessei a camada de neve, atingindo a terra escura. O solo sob a neve estava congelado e o progresso foi lento. Perguntei-me se estaria me fazendo cavar a minha própria sepultura, mas eu não aprofundara mais que trinta centímetros quando a pá bateu em pedra.
— Os tolos cavaram muitas vezes aquele túmulo — disse ele, apontando para a Broa às nossas costas. — Mas nunca encontraram o que encontrei. Há uma câmara no fundo, mas a entrada fica muito mais distante do que se poderia supor. A última vez que estive aí embaixo foi na noite seguinte à morte da minha mãe, e estou tentando recuperar meu livro desde aquela época! Agora, limpe a pedra, que temos muito trabalho a fazer!
Fiquei aterrorizado porque suspeitava que Morgan pretendia ressuscitar Golgoth naquela noite. Fiz, no entanto, o que me mandou e, quando terminei, ele tirou a pá da minha mão e, usando-a como alavanca, fez força para desencavar a pedra e empurrá-la para o lado. Gastou muito tempo nisso e, quando o conseguiu, a neve estava começando a cair, o vento sussurrava pela charneca e soprava em fortes rajadas. Vinha chegando mais uma nevasca.
Ele segurou a lanterna sobre o buraco e, à sua luz, pude ver os degraus que levavam à escuridão lá embaixo.
— Muito bem, vá descendo! — disse ele, erguendo o punho, ameaçador.
Encolhi-me e obedeci, Morgan segurou a lanterna enquanto desci cautelosamente, o peso do saco dificultando o meu equilíbrio. Eram, ao todo, dez degraus. Embaixo, vi-me em uma passagem estreita. No alto dos degraus, Morgan tinha pousado a lanterna e lutava com a pedra. A princípio, achei que seria difícil demais empurrá-la sozinho, mas ele acabou recolocando-a com um baque surdo, como se fosse uma laje sepultando um morto. Desceu, então, a escada, trazendo a lanterna e a pá, e me disse para seguir em frente; foi o que fiz.
Ele levava a lanterna no alto, atrás de mim, projetando a minha sombra pelo túnel que era reto e típico. O chão, as paredes e o teto eram de terra, e, a intervalos, tinham usado madeira para escorar a parte superior. Em um determinado ponto, o teto desabara, quase obstruindo nosso caminho, e precisei afastar o saco para passar e arrastá-lo pelo gargalo à minha frente. Fiquei nervoso com as condições do túnel. Se houvesse um desabamento sério, seríamos enterrados vivos ou ficaríamos presos ali embaixo para sempre. Eu tinha uma forte percepção de que havia um grande peso de terra por cima de nós.
Por fim, a passagem desembocou em uma grande câmara oval. Era imponente, com as generosas dimensões de uma igreja de bom tamanho, e as paredes e o teto eram de pedra. O chão, no entanto, era o mais surpreendente. À primeira vista, pensei que fosse ladrilhado, mas logo percebi que era um mosaico primoroso em que tinham retratado todo tipo de criatura monstruosa por meio do encaixe minucioso de vários milhares de pedrinhas coloridas. Algumas eram seres fabulosos sobre os quais eu tinha lido no Bestiário do Caça-feitiço, outros eu vislumbrara apenas em pesadelos: híbridos grotescos como o minotauro, metade touro, metade homem; vermes gigantescos com longos corpos serpentinos e bocas escancaradas; um basilisco, uma serpente com pernas, crista na cabeça e olhos penetrantes e assassinos. Cada uma dessas figuras em si era suficiente para disputar minha atenção, mas havia outra coisa que imediatamente prendeu meu olhar...
Ali, bem no centro do piso, feito de pedras negras, havia três círculos concêntricos, e inscrito neles uma estrela de cinco pontas. Percebi imediatamente que o meu maior medo se confirmava.
Era um pentáculo, um símbolo usado por magos que, de dentro dele, lançavam feitiços ou convocavam demônios das trevas. Aquele fora desenhado pelos primeiros homens que haviam chegado a Anglezarke para invocar Golgoth, o mais poderoso dos deuses antigos. E agora Morgan ia usá-lo.
Pareceu-me que ele sabia exatamente o que pretendia fazer e logo me pôs a trabalhar, mandando limpar o piso até deixá-lo brilhante, particularmente a parte central do mosaico onde havia o pentáculo.
— Não deve ficar nem um ínfimo grão de poeira, ou tudo poderá sair errado! — recomendou.
Não me dei ao trabalho de perguntar o que ele queria dizer; eu deduzira sozinho. Pretendia realizar o ritual mais letal do grimório. Ia invocar Golgoth enquanto ocupássemos o centro do pentáculo para nos proteger. A limpeza era vital porque a sujeira poderia ser usada para atravessar a defesa do símbolo.
Havia grandes tinas do lado oposto da câmara, e uma delas continha sal. No saco que eu carregava, entre outros objetos que incluíam o grimório, havia uma grande garrafa de água e alguns panos. Usando um pano úmido, tive que esfregar com sal o mosaico e depois limpá-lo até Morgan se dar por satisfeito.
A tarefa me pareceu levar horas. De tempos em tempos, eu olhava ao meu redor, tentando descobrir se haveria na câmara alguma coisa que pudesse me servir para dominar Morgan e fugir. Ele devia ter largado a pá na passagem, não havia nenhum sinal dela na câmara; tampouco havia qualquer outra coisa que pudesse usar como arma. Reparei, no entanto, em uma grande argola de ferro presa à parede junto ao piso e fiquei imaginando para que serviria. Parecia própria para prender um animal.
Quando terminei de limpar o piso, para meu horror, Morgan me agarrou subitamente, me arrastou até a parede, amarrou com firmeza minhas mãos às costas e prendeu a ponta da corda na argola. Começou, então, os seus cuidadosos preparativos. Senti o estômago embrulhar quando, de repente, percebi o que ia acontecer. Morgan iria trabalhar no interior do pentáculo, protegido de tudo que surgisse na câmara, enquanto eu permaneceria preso à argola na parede, sem a menor defesa. Seria algum tipo de sacrifício? Seria essa a finalidade original da argola? Lembrei-me, então, do que o Caça-feitiço me contara sobre o cão do sítio. Quando Morgan tinha tentado executar o ritual no quarto, o cão morrera de pavor...
Ele tirou cinco velas pretas grossas do saco e colocou uma em cada ponta do pentáculo. Depois, abriu o grimório, e, à medida que acendia cada vela, lia um breve encantamento. Feito isso, sentou-se de pernas cruzadas no centro exato do pentáculo e, segurando o livro aberto, olhou direto para mim.
— Você sabe que dia é hoje? — perguntou-me.
— Terça-feira — respondi.
— E a data?
Fiquei calado e ele respondeu por mim.
— É 21 de dezembro. O solstício de inverno. O meio exato do inverno a partir do qual os dias gradualmente começam mais uma vez a encompridar. Vai ser, portanto, uma longa noite. A noite mais longa do ano. E, quando terminar, apenas um de nós sairá desta câmara — continuou Morgan. — Minha intenção é ressuscitar Golgoth, o mais poderoso dos deuses antigos. E vou fazer isso aqui, no mesmo lugar em que os antigos o fizeram. Este túmulo foi construído em um ponto de grande energia para o qual convergem leys. Nada menos de cinco leys se cruzam no centro do pentáculo em que estou sentado.
— Não será perigoso despertar Golgoth? — perguntei. — O inverno poderá durar anos.
— E se durar? — perguntou Morgan. — O inverno é a minha estação.
— Mas as safras não crescerão. As pessoas passarão fome!
— E daí? Os fracos sempre morrem. Os fortes herdam a terra. O ritual de invocação oferecerá a Golgoth apenas a opção de obedecer. E ele ficará preso aqui, nesta câmara, até que eu o liberte. Preso até que me dê o que quero.
— E você quer o quê? — perguntei. — Que pode valer a desgraça de tanta gente?
— Quero poder! Que mais vale a pena na vida? O poder que Golgoth me dará. A capacidade de congelar o sangue de um homem nas veias. Matar com um olhar. Todos os homens me temerão. E, mergulhados em um longo inverno, quando eu matar, quem saberá que tirei uma vida? E quem poderá provar isso? John Gregory será o segundo a morrer, mas não o último. Você morrerá antes dele — Morgan riu baixinho. — Você faz parte da isca. Parte do engodo para atrair Golgoth aqui. Da última vez, tive que usar um cão, mas um ser humano é muito melhor. Golgoth extrairá a pequena centelha de vida do seu corpo para incorporar ao dele. Sua alma também. Seu corpo e sua alma morrerão no mesmo instante.
— Você tem mesmo certeza de que o pentáculo vai protegê-lo? — perguntei, tentando não pensar no que ele acabara de dizer, tentando insinuar a dúvida em sua cabeça. — Rituais têm que ser exatos. Se você esquecer alguma coisa ou pronunciar mal uma única palavra, poderá não dar certo. Nesse caso, nenhum de nós sairá desta câmara. Os dois seremos destruídos.
— Quem lhe disse isso? Aquele velho tolo do Gregory! — caçoou Morgan. — É bem dele dizer uma coisa dessas. E sabe por quê? Porque não tem coragem de tentar nada que seja realmente ambicioso. Ele só serve para fazer aprendizes crédulos cavarem covas inúteis e tornar a enchê-las! Durante anos, ele tentou me impedir de experimentar. Chegou a me obrigar a jurar a minha mãe que nunca tentaria executar novamente o ritual. Por amor me mantive fiel à promessa que lhe fiz, até que sua morte finalmente me liberou e tornou possível me apossar do que é meu! O Velho Gregory é meu inimigo.
— Por que você o odeia tanto? — indaguei. — Que foi que ele fez para magoá-lo? Tudo que fez foi pensando no melhor. É um homem muito melhor do que você e extremamente generoso. Ajudou sua mãe quando seu pai verdadeiro a largou. Deu-lhe um ofício e, mesmo quando você optou pelas trevas, não agiu como você realmente merecia. Uma feiticeira malevolente não é pior do que você e é presa com vida em uma cova!
— É verdade. Ele poderia ter feito isso — respondeu Morgan em tom baixo e perigoso. — Mas agora é tarde demais. Você tem razão. Eu o odeio. Nasci com uma farpa das trevas na alma. Ela foi crescendo e se tornou o que você hoje vê. O Velho Gregory é um servo da luz, e eu agora pertenço inteiramente às trevas. Por isso ele é meu inimigo natural. A treva odeia a luz. Sempre foi assim!
— Não! — exclamei. — Não tem que ser assim. Você pode escolher. Pode ser o que quiser. Você amava sua mãe. É capaz de amar. Não tem que pertencer às trevas, não entende? Nunca é tarde demais para mudar!
— Poupe o seu fôlego e fique calado! — retrucou Morgan irritado. — Já falamos demais. Está na hora de começar o ritual...
Fez-se silêncio durante um tempo em que só ouvi as batidas do meu coração. Por fim, Morgan começou a entoar as palavras do grimório; sua voz subia e descia de um modo ritmado e salmodiado que me lembrava bastante o dos padres rezando diante dos fiéis. A maior parte era em latim, mas havia também palavras de, pelo menos, mais uma língua que não reconheci. A cantoria não tinha fim; pelo visto, nada estava acontecendo. Comecei a alimentar a esperança de que o ritual não produzisse efeito ou que ele se enganasse e Golgoth não aparecesse. Logo, porém, senti que alguma coisa começava a mudar.
A câmara foi ficando um pouco mais fria. A mudança era muito lenta e gradual, como se alguma coisa muito grande estivesse se aproximando, mas precisasse vencer uma longa distância. Era aquela friagem especial que eu sentira anteriormente em torno de Morgan. A energia que ele extraía de Golgoth.
Comecei a imaginar quais seriam as minhas chances de me salvar. Não demorei muito a concluir que seriam mínimas. Ninguém conhecia a entrada do túnel. E, embora eu tivesse cavado a terra e exposto a pedra, o tempo piorara e a neve logo a encobriria. O Caça-feitiço sentiria minha falta, mas sua preocupação seria suficiente para sair me procurando no meio de uma nevasca? Se ele fosse à oficina de Andrew, Alice talvez lhe dissesse aonde eu tinha ido. Mas, mesmo que ele chegasse à capela, qual era a probabilidade de encontrar meu bastão? Eu o deixara no arvoredo, do lado externo da cerca; a essa altura, estaria coberto de neve.
Descobri, então, que podia mexer ligeiramente as mãos. Será que conseguiria forçar a corda o suficiente para soltá-la? Comecei a tentar, juntando-as e separando-as, torcendo os pulsos e os dedos. Pelo menos, Morgan não veria o que eu estava querendo fazer. Estava ocupado demais entoando as palavras do ritual, e nem sequer parava quando virava uma página do livro. Então, ao olhar para ele, reparei em outra coisa. Parecia haver novas sombras na câmara. Sombras que não podiam ser explicadas apenas pela posição das cinco velas. E a maioria estava se mexendo. Algumas pareciam fumaças pretas; outras, névoas cinzentas e brancas que se contorciam do lado externo do pentáculo, como se tentassem penetrar nele.
Quem eram? Almas penadas, acidentalmente capturadas pela energia do ritual e trazidas para este lugar a contragosto? Ou, talvez, espíritos dos que tinham sido enterrados no túmulo e suas proximidades. As duas hipóteses pareciam prováveis, porque o ritual era de coação. Mas, e se elas me vissem? Não podiam alcançar Morgan: ele estava protegido. Mas, e se tomassem consciência da minha presença?
Mal aquele pensamento me ocorreu, comecei a ouvir leves sussurros ao meu redor. Era difícil entender o significado do que estava sendo dito, mas certas palavras recebiam mais ênfase. Ouvi “sangue” duas vezes e também a palavra “osso”, e depois, muito claramente, o meu próprio nome de família, “Ward”.
Comecei a tremer, descontrolado. Senti medo, mas resisti com todas as minhas forças. O Caça-feitiço repetira muitas vezes que as trevas se alimentavam do terror: o primeiro passo para derrotá-las era enfrentar e vencer o próprio medo. Então, tentei, realmente tentei, mas era muito difícil, porque eu não estava enfrentando as trevas armado com os recursos que aprendera a usar. Não estava de pé empunhando um bastão de sorveira-brava nem atirando sal e ferro. Estava preso e amarrado, totalmente indefeso, enquanto Morgan executava, talvez, o ritual mais perigoso que um mago jamais experimentara. E eu era parte do ritual, uma centelha de vida que estava sendo oferecida a Golgoth, para compeli-lo a vir a este lugar. E, segundo Morgan, no momento em que ele aparecesse, tiraria não só a minha vida como também a minha alma. Eu sempre acreditara na vida após a morte. Alguém poderia tirá-la de mim? Alguma coisa poderia matar a alma de uma pessoa?
Aos poucos, porém, os sussurros foram desaparecendo; as sombras se dissolveram e a câmara pareceu até esquentar um pouco. Meu tremor diminuiu e dei um suspiro de alívio, mas Morgan continuou a salmodiar e a virar páginas. Comecei a achar que, em algum ponto, ele devia ter cometido um erro e falhado; não demorei a ver que o engano era meu.
Dali a pouco, o frio retornou e, com ele, os espectros de fumaça, contorcendo-se na periferia do pentáculo. E desta vez foi ainda pior e reconheci uma das sombras. Tinha a forma de Eveline, com seus grandes olhos pesarosos.
Os sussurros aumentaram e eram carregados de um ódio tão feroz que eu quase podia senti-lo na boca; coisas invisíveis giravam em torno da minha cabeça, passavam tão próximas que eu sentia o ar se deslocar pelo meu rosto e arrepiar meus cabelos. Logo, a ameaça se tornou mais concreta. Dedos invisíveis puxavam meus cabelos ou beliscavam a pele do meu rosto e pescoço, bafos frios e malcheirosos roçavam a minha testa, boca e nariz.
E, como anteriormente, tudo parou. Não por muito tempo. De novo o frio aumentou e as sombras se reuniram. E assim continuou, minuto após minuto, hora após hora durante a noite mais longa do ano. Mas os períodos de paz e calmaria foram encurtando, e os momentos de medo se alongando. Havia ritmo nesses acontecimentos. O ritual estava acumulando energia. Lembrava a sucessão de ondas de uma maré cheia quebrando contra uma praia pedregosa e íngreme. Cada onda era mais violenta e poderosa do que a anterior. Cada uma chegava mais alto nas pedras. E, a cada pico de atividade, o tumulto se intensificava. As vozes gritavam nos meus ouvidos, e globos de uma funesta luz púrpura orbitavam o pentáculo próximos ao teto da câmara. Então, finalmente, depois de horas de cânticos lidos no grimório, Morgan conseguiu o que pretendia.
Golgoth atendeu ao seu chamado.
GOLGOTH
Durante longos minutos de terror, ouvi Golgoth se aproximando. O próprio chão começou a tremer, passando-me a sensação de que, das entranhas da terra, um gigante furioso vinha subindo até nós. Um gigante com imensas garras que rompia e atirava, para os lados, a rocha maciça, em sua ânsia de abrir caminho para a câmara no alto.
Se eu fosse Morgan, teria ficado apavorado, simplesmente petrificado de pavor, incapaz de murmurar nem sequer uma palavra. Ou teria interrompido o ritual, porque era loucura continuar. Mas ele não. Morgan continuou lendo o grimório. Rendera-se às trevas em busca do poder, que ambicionava a qualquer preço.
Apesar dos roncos ameaçadores que vinham de baixo, o vento parara inteiramente de soprar, embora as cinco velas começassem a bruxulear e quase apagar. Perguntei-me quanta importância elas realmente teriam para o ritual. Seriam uma parte vital das defesas do pentáculo? Parecia bastante provável: se tivessem apagado, Morgan não estaria mais seguro do que eu. As velas tornaram a bruxulear, mas não notei o menor sinal de medo em Morgan. Estava totalmente absorto no ritual e continuou a salmodiar seguindo o livro, indiferente ao perigo.
O chão passou a tremer com maior violência, e os ruídos perturbadores que vinham do fundo da terra se tornaram mais numerosos. A essa altura, havia tantos espectros reunidos ao redor do pentáculo, que eles se fundiam em um redemoinho de névoa cinza e branca que tornava suas formas individuais indistinguíveis. Um vórtice de energia pressionava a barreira invisível que delimitava o perímetro do pentáculo e ameaçava invadi-lo a qualquer momento.
Mais alguns minutos e teria conseguido. Alguma coisa, no entanto, ocorreu para expulsar os espectros da câmara e provavelmente devolvê-los ao lugar de onde tinham vindo. Começaram a cair pedrinhas do teto, e um ronco soou seguido de uma cacofonia de sons de trituração e esmagamento. Olhei para a minha direita em direção ao túnel que nos trouxera à câmara. O teto cedeu sob uma avalanche de terra, fechando a passagem e despejando um caos de poeira e entulho. Para minha desolação, o túnel agora estava completamente bloqueado. Acontecesse o que acontecesse, eu estaria preso ali embaixo para sempre.
Naquele momento, eu quase teria achado a morte bem-vinda: pelo menos, assim a minha alma sobreviveria. Isso porque eu sabia que, muito em breve, Golgoth chegaria, e meu corpo e minha alma seriam, ambos, extintos. Eu seria obliterado. E o medo que senti naquele instante fez todo o meu corpo tremer.
Subitamente, porém, ocorreu uma mudança. Sem aviso, Morgan parou de cantar e pulou de pé. Seus olhos se arregalaram de terror e ele deixou o livro cair. Correu para a borda do pentáculo: deu um passo na minha direção e abriu muito a boca. Seus olhos se encheram de terror.
A princípio, pensei que ele estivesse tentando falar ou gritar. Agora sei que não. Pensando bem, concluo que ele estava simplesmente tentando respirar.
Cristais de gelo já tinham se formado em seus pulmões, e aquele passo foi o último que ele deu na vida. Abrir a boca foi seu movimento final e consciente. Congelou diante dos meus olhos; ele literalmente congelou, cobrindo-se de gelo da cabeça aos pés. Tombou, então, para frente e, no momento em que sua testa, seus braços e ombros bateram no chão, ele estilhaçou como uma estalactite de gelo. Parecia vidro desfazendo-se em mil caquinhos. Morgan fragmentou-se, pulverizou-se, mas sem derramar sangue, porque estava congelado até a alma. Estava morto. Morto e desaparecido.
Suponho que tenha cometido um erro fatal no ritual e Golgoth tenha se materializado no interior do pentáculo para matar instantaneamente o necromante. Agora, no interior dos três círculos concêntricos, havia uma presença dominadora. Apesar das cinco velas que ardiam, eu não conseguia ver ninguém, mas sabia que estava ali e sentia seus olhos hostis me olhando do pentáculo.
Pressenti o desespero de Golgoth para escapar. Uma vez fora do pentáculo, ele estaria livre para fazer o que bem entendesse no Condado; livre para mergulhá-lo em décadas de inverno enregelante. As chamas das velas voltaram a dançar como se fossem sopradas por um hálito invisível, mas eu estava sem ação. Aterrorizado. Que poderia fazer para salvar o Condado? Absolutamente nada: encontrava-me preso a uma argola de ferro, aguardando meu fim.
Naquele momento, Golgoth se dirigiu a mim de dentro do pentáculo...
— Um tolo jaz aos meus pés. Você também é tolo?
Sua voz encheu a câmara, ecoando por todos os lados. Era como um vento cortante, fustigando com rajadas de neve os cumes sinistros de Anglezarke.
Não respondi, e a voz de Golgoth tornou a soar, dessa vez mais baixa, porém mais cortante, como uma lima grossa contra um balde de metal.
— Você não tem língua, mortal? Fale, ou quer que a congele e estilhace como fiz com aquele tolo?
— Não sou tolo — respondi, meus dentes começando a bater de medo e frio.
— Me agrada ouvir isso. Porque, se for, de fato, abençoado com a sabedoria, então, antes que a noite finde, eu poderei elevá-lo a uma posição mais elevada do que a mais elevada nesta Terra.
— Estou feliz como sou — respondi.
— Sem minha ajuda, você perecerá aqui. É a morte que você está buscando? Isso o fará feliz?
Não respondi.
— Só o que precisa fazer é deslocar uma vela do círculo. Apenas uma vela. Faça isso, e eu me libertarei e você viverá.
Preso à argola, eu estava a uma boa distância da vela mais próxima, por isso não sabia como ele esperava que eu a alcançasse. E, mesmo que fosse possível, eu não poderia fazer aquilo. Não poderia salvar a minha própria vida à custa dos milhares de habitantes do Condado que iriam sofrer.
— Não! — eu disse. — Não farei isso...
— Embora confinado nos limites deste círculo, eu ainda posso alcançá-lo. Deixe-me mostrar...
O frio começou a irradiar do pentáculo; o mosaico embranqueceu sob uma geada. Um desenho de cristais de gelo se formou e senti frio que subia do piso para meu corpo, me insensibilizando até os ossos. Lembrei-me do aviso de Meg, quando viajei para casa:
“... agasalhe-se bem contra o frio. A queimadura de frio pode fazer seus dedos caírem.”
O frio mais intenso estava nas minhas costas, junto às minhas mãos presas à argola, e, à medida que ele se entranhava na minha carne, imaginei meus dedos congelados, o sangue parando de circular e eles se tornando negros e quebradiços, prestes a se partirem como gravetos secos em um galho de árvore morto. Senti minha boca abrir para gritar; o ar frio arranhou minha garganta por dentro. Pensei em minha mãe. Agora mesmo que eu nunca mais a veria. Mas, de repente, caí de lado, distante da argola de ferro. Olhei para trás e vi que ela se partira junto à base da parede. Golgoth a congelara e fragmentara para me libertar. Fizera isso para eu poder cumprir suas ordens. Então, ele tornou a se dirigir a mim de dentro do pentáculo, mas dessa vez sua voz me pareceu mais fraca.
— Desloque a vela. Faça isso agora, ou tirarei mais do que a sua vida. Extinguirei a sua alma também...
Aquelas palavras me fizeram sentir um frio mais intenso do que aquele que partira a argola de ferro. Morgan estava certo. A minha alma corria perigo. Para salvá-la, era preciso apenas obedecer. Minhas mãos continuavam amarradas às costas e insensíveis, mas eu poderia ter me levantado, me dirigido à vela mais próxima e a derrubado com um chute. Pensei, no entanto, naqueles que sofreriam em consequência dos meus atos. O frio de inverno rigoroso mataria primeiro os velhos e os jovens. Os bebês morreriam em seus berços. Mas a ameaça se tornaria ainda maior. As safras não cresceriam e não haveria colheita no ano seguinte. E por quantos anos isso se repetiria? Não haveria alimentos para os animais de criação. Uma grande fome nos assolaria. Milhares pereceriam. E tudo por minha culpa. Chutar a vela salvaria a minha vida. Salvaria a minha alma também. Mas o meu primeiro dever seria sempre com o Condado. Talvez, nunca mais revisse a minha mãe, porém, se libertasse Golgoth, como poderia voltar a fitá-la nos olhos? Ela se envergonharia de mim e eu não conseguiria suportar. Fosse qual fosse o preço, eu tinha de fazer o que era certo. Melhor o esquecimento. Melhor não ser nada do que viver a experiência!
— Não farei isso — respondi a Golgoth. — Prefiro morrer aqui do que libertá-lo.
— Morra então, tolo! — disse Golgoth, e imediatamente o frio começou a se intensificar. Fechei os olhos e esperei o fim, sentindo meu corpo se tornar dormente. Estranhamente o medo passara. Sobreveio a resignação. Eu tinha aceitado o que ia acontecer.
O frio, com certeza, me fez desmaiar, porque a próxima coisa de que me lembro foi abrir os olhos.
Estava tudo quieto e silencioso na câmara e o ar bem mais quente. Para meu alívio, Golgoth sumira. Eu já não sentia sua presença. Mas por que ele não cumprira sua ameaça?
O pentáculo estava intacto e as cinco velas continuavam acesas. Dentro dele, eu via um vulto caído de bruços. Pela capa, reconheci Morgan. Desviei depressa o olhar. O branco fora substituído pelo vermelho. Os pedaços de Morgan estavam começando a degelar.
Para meu espanto, eu continuava vivo. Mas, por quanto tempo? Estava encurralado. Em breve, as velas se gastariam e apagariam, e eu estaria imerso para sempre na escuridão.
Eu queria viver e, de repente, comecei a forçar desesperadamente a corda. Eu já não estava preso à argola de ferro, mas as minhas mãos continuavam amarradas às costas. Sentia nelas um formigamento, embora a circulação estivesse voltando. Se, ao menos, eu pudesse soltar as mãos, usaria as velas uma a uma. Isso me daria horas de luz para trabalhar. A passagem estava bloqueada, mas eu podia cavar o entulho apenas com as mãos. Valia a pena tentar. A terra estaria fofa. E talvez o túnel inteiro não estivesse bloqueado. Em algum ponto, eu poderia encontrar a pá!
Por alguns momentos, eu me enchi de esperança. A corda, no entanto, não cedia, e as minhas tentativas para me libertar pareciam apertar os nós ainda mais. Lembrei-me de meses antes, na primavera, quando me tornara aprendiz do Caça-feitiço: Lizzie Ossuda me amarrara em uma cova com a intenção de me matar e usar meus ossos em sua magia negra. Eu tinha me esforçado, mas não havia sido capaz de me desvencilhar. Fui salvo por Alice, que usou uma faca para cortar as cordas. Que vontade de gritar por ela agora! Mas não era possível. Eu estava sozinho, ninguém sabia onde me encontrar.
Depois de algum tempo, interrompi meus esforços frenéticos para me soltar. Deitei de costas e fechei os olhos, tentando reunir forças para um derradeiro esforço. Foi então, quando estava deitado e absolutamente imóvel, e minha respiração quase normalizada, que, de repente, lembrei-me das velas no pentáculo. Podia usar a chama de uma delas para queimar a corda que me amarrava! Por que não tinha pensado nisso antes? Sentei-me depressa. Agora tinha uma chance concreta de me libertar. Mas foi nesse momento que ouvi um ruído vindo do túnel bloqueado.
Que poderia ser? O Caça-feitiço teria finalmente descoberto o meu paradeiro e vindo me salvar? Mas o som não era de pá. Parecia mais um som de arranhões, como se alguma coisa estivesse esgravatando a terra caída. Seria um rato? O barulho foi aumentando. Seria mais de um? Um bando de ratos que viviam nas profundezas do túmulo? Diziam que os ratos comiam qualquer coisa. Havia até histórias de ratos que roubavam recém-nascidos dos berços. E se tivessem farejado carne humana? Iriam querer comer os pedaços do cadáver de Morgan? E depois? Iriam se voltar contra mim? Atacar-me enquanto eu estava vivo?
O ruído aumentou. Alguma coisa estava cavando o túnel bloqueado em direção à câmara. Alguma coisa estava abrindo à unha um caminho na terra. Que poderia ser? Observei, ao mesmo tempo fascinado e aterrorizado, o aparecimento de um buraquinho a meia distância entre o teto e o piso da câmara, e a terra que dele se desprendia foi caindo na periferia do piso de mosaicos. Senti uma corrente de ar que fez as chamas dançarem. Emergiram duas mãos, mas não eram humanas. Vi dedos longos e, em vez de unhas, dez garras recurvadas que escavavam o solo para entrar na câmara. Então, mesmo antes de ver a cabeça, eu soube exatamente quem era.
De algum modo, a lâmia ferina escapara do porão do Caça-feitiço e farejara a minha presença. Marcia Skelton tinha vindo chupar meu sangue.
A ARMADILHA
A lâmia ferina escorregou o corpo pelo buraco e correu pelo piso de mosaico. Ouvi-a fungar duas vezes, mas ela não estava olhando para mim. Correndo de quatro com a cabeça abaixada e os cabelos pretos sujos e longos arrastando pelo chão, ela se encaminhou para a borda do pentáculo, suas garras fazendo um barulho estridente de unhas raspando o mármore. Ela parou e ouvi-a farejar outra vez alto, mirando os restos de Morgan.
Fiquei imóvel, mal conseguindo acreditar que ela ainda não tivesse me atacado. Morgan acabara de morrer, mas pensei que ela preferisse o sangue fresco de alguém vivo. Ouvi, então, mais um ruído vindo do túnel. Outra coisa estava se aproximando...
Outro par de mãos apareceu, mas essas possuíam dedos humanos em vez de garras afiadas. Quando a cabeça despontou, uma olhada bastou para reconhecê-la. Vi os malares altos, os olhos brilhantes e os cabelos prateados. Era Meg.
Ela saiu do buraco, sacudiu a poeira e rumou diretamente para mim. Devia ter deixado os sapatos de bico fino do lado de fora, mas o som macio dos seus pés descalços me aterrorizou. Não admira que a lâmia ferina tivesse se mantido a distância. Meg me queria todo para ela, e, depois de tudo que acontecera, eu não poderia esperar piedade.
Ela se ajoelhou onde já podia me alcançar, e seus lábios se entreabriram em um sorriso sinistro.
— Você está a um segundo da morte — disse Meg, aproximando-se e abrindo a boca, deixando à mostra seus dentes brancos, ansiosa para me morder. Senti seu hálito no meu rosto e no pescoço, e comecei a tremer. Então, ela se curvou e, para minha surpresa, cortou a corda que amarrava minhas mãos.
— Poucos seres humanos chegaram tão perto de uma feiticeira lâmia e sobreviveram — disse-me antes de se levantar. — Considere-se um garoto de sorte!
Fiquei sentado ali, mirando-a boquiaberto. Sentia-me fraco demais para me mexer.
— Levante-se, garoto! — ordenou-me. — Não temos a noite toda. John Gregory está esperando por você. Vai querer saber o que esteve acontecendo aqui embaixo.
Pus-me de pé, inseguro, e fiquei parado alguns instantes, fraco, enjoado e receoso de que pudesse cair a qualquer momento. Por que ela estava me ajudando? O que se passara entre o Caça-feitiço e Meg? Ele estivera lhe levando comida no porão. Tinham tido longas conversas. Estaria me socorrendo porque o Caça-feitiço pedira? Tinham feito as pazes?
— Vá apanhar o grimório — disse Meg, apontando para o pentáculo. — Nem eu nem Marcia podemos entrar nesse círculo...
Dei um passo em direção do pentáculo, mas parei quando vi o livro. Estava caído em uma poça de sangue. Não suportaria tocá-lo e, de qualquer modo, estava inutilizado. Então, vi de relance os restos de Morgan e tive engulhos. Baixei a cabeça, tentando apagar a imagem da minha mente. Não queria revê-la em pesadelos.
— Faça o que estou mandando, pegue o grimório! — repetiu Meg, elevando levemente a voz. — John Gregory não lhe agradecerá se o deixar aqui para futuramente alguém o encontrar.
Obedeci e entrei no pentáculo. Abaixei-me e apanhei o livro. Estava úmido e pegajoso. Senti o cheiro de sangue e meu estômago se contraiu; tornei a engulhar. Lutei para não vomitar e saí do pentáculo, apanhando a vela mais próxima. Não me agradava a ideia de subir pelo túnel escuro em companhia de duas lâmias. A retirada da vela, provavelmente, rompera a força do pentáculo e achei que Marcia entraria para se alimentar. Depois de farejar na direção do cadáver, ela se afastou. Meg foi à frente e Marcia veio atrás de mim. Só desejei que não ficasse nos meus calcanhares.
Emergimos do buraco à claridade pálida que antecede o alvorecer. A tempestade de neve tinha amainado, mas ainda caíam leves flocos no chão. O Caça-feitiço estava aguardando à entrada e se curvou para me oferecer a mão. Deixei a vela preta cair na neve e agarrei a mão esquerda dele com a minha; ele me puxou para me pôr de pé. Em seguida, saiu a lâmia ferina se arrastando pela neve.
Abri a boca para falar, mas meu mestre levou um dedo aos lábios me pedindo silêncio.
— Tudo a seu tempo. Você pode me contar depois — disse ele. — Morgan está morto?
Confirmei e baixei a cabeça.
— Muito bem, aqui poderá ser o túmulo dele — disse o Caça-feitiço.
Dizendo isso, afastou-se para um lado e agarrou a pedra, puxando-a para colocá-la em posição. Equilibrou-a na borda do buraco e, quando ficou satisfeito, deixou-a cair no encaixe. Feito isso ajoelhou-se e, usando as mãos, começou a cobrir a pedra com a terra solta e a neve. Por fim, levantou-se.
— Dê-me o livro, rapaz — mandou o Caça-feitiço.
Entreguei-o, feliz por me livrar dele. Meu mestre ergueu-o e examinou a capa. Quando o transferiu para a outra mão, seus dedos se sujaram de sangue. Balançando a cabeça, ele denotava cansaço e tristeza. Então, começou a descer das alturas da charneca e tomou o rumo da sua casa de inverno. E, cada vez que eu espiava por cima do ombro, constatava que as duas lâmias vinham logo atrás de nós.
Uma vez em casa, o Caça-feitiço me levou para a cozinha, acrescentou carvão à lareira e, quando o fogo reavivou, começou a preparar o café da manhã. Em um dado momento, eu me ofereci para ajudar, mas ele me mandou de volta à minha cadeira.
— Recupere suas forças, rapaz — disse. — Você passou um mau pedaço.
Quando senti o cheiro dos ovos cozinhando e do pão torrando, me senti muito melhor. Meg e a irmã tinham ido para o porão, mas eu não quis perguntar nada. Era melhor deixar o Caça-feitiço me contar o que acontecera. Dali a pouco, estávamos os dois à mesa, devorando enormes pratos de ovos com torradas. Por fim, sentindo-me bem melhor, limpei o prato e me recostei na cadeira.
— Muito bem, rapaz, está se sentindo suficientemente bem para falar? Ou vamos deixar para amanhã?
— Gostaria de falar de uma vez — respondi. Sabia que, uma vez que lhe contasse o que tinha ocorrido, eu me sentiria bem melhor. Seria o primeiro passo para esquecer tudo.
— Então, comece pelo começo e não omita nada! — disse o Caça-feitiço.
Fiz exatamente o que me mandou, comecei pela minha conversa com Alice na subida do morro, quando soube onde poderia encontrar Morgan e terminei com o clímax do ritual — a chegada de Golgoth e como ele me ameaçara depois de matar Morgan.
— Portanto, Morgan deve ter cometido algum engano — eu disse. — Golgoth apareceu dentro do pentáculo...
— Não, rapaz — replicou o Caça-feitiço, balançando tristemente a cabeça —, ele deve ter recitado o ritual palavra por palavra. A culpa foi minha. Tenho o sangue de Morgan nas mãos.
— Não estou entendendo. Como assim? — perguntei.
— Eu devia ter dado um jeito em Morgan há muitos anos, quando ele tentou invocar Golgoth — disse o Caça-feitiço. — Era um rapaz muito perigoso e já então não havia nada que se pudesse fazer para ajudá-lo. Eu sabia disso e devia tê-lo prendido em uma cova, mas a mãe dele, Emily, o defendeu e me suplicou que não fizesse isso. Morgan cobiçava o poder e era amargurado e deformado pelo rancor, mas ela acreditava que isso se devia a uma vida injusta e ao fato de não ter um pai para apoiá-lo. Eu gostava da mãe dele e senti certa pena do rapaz, por isso deixei meu coração governar minha cabeça. Mas, no fundo, eu sabia que não era um pai que lhe faltava. O sr. Hurst e eu tínhamos tentado ser pais para ele. O que lhe faltava, na realidade, era a disciplina necessária a um caça-feitiço, a coragem e a perseverança para dedicar a vida a um ofício que rende muito pouco em termos de bens terrenos. Contudo, em vez de castigá-lo por tentar invocar Golgoth, eu simplesmente encerrei seu aprendizado e o fiz jurar a mim e à mãe que não voltaria a procurar Golgoth nem o grimório.
“Abandonado, sem um ofício, Morgan buscou o poder e a riqueza através da necromancia, e se voltou para as trevas. Eu sabia que, a cada inverno, a tentação do poder de Golgoth aumentaria e, com o tempo, se tornaria irresistível para ele. Então, preparei uma armadilha que só entraria em ação se ele realmente tentasse invocar o Senhor do Inverno...”
— Armadilha? Que armadilha? Não estou entendendo...
— Ele sempre foi preguiçoso nos estudos — disse o Caça-feitiço, coçando pensativamente a barba. — Seu ponto fraco eram as línguas, e ele nunca aprendeu muito bem o vocabulário latino. Era ainda pior nas outras. Ele começou a aprender a língua antiga no terceiro ano. Era a que falavam os primeiros homens que desembarcaram no Condado, os que construíram a Broa e cultuaram Golgoth. Os que escreveram o grimório. Ele não fez muito progresso. Sabia como pronunciá-la, como lê-la em voz alta, mas seus conhecimentos tinham sérias lacunas.
“Eu não podia correr riscos, entende, rapaz? O nosso primeiro dever é sempre com o Condado. Assim, há muitos anos, mandei copiar o grimório. O texto original foi destruído, e a nova versão, colada na capa original. Várias palavras foram mudadas no livro para inutilizar os rituais. Mas só fiz uma mudança no ritual de Golgoth. A palavra wioutan, que significa ‘do lado de fora’, foi substituída por wioinnan, que significa do ‘lado de dentro’...”
— Então, foi por isso que Golgoth apareceu dentro do pentáculo com Morgan — exclamei, admirado com a armadilha do Caça-feitiço. Um segredo que ele guardara durante anos.
— Eu não confiava em Morgan, por isso preparei essa cilada para uma eventualidade. Tive muito trabalho para mandar copiar e alterar o livro, mas, como já disse, o nosso dever é proteger o Condado. Emily sabia o que eu tinha feito, mas a fé que devotava ao filho era muito maior do que a minha. Achava que ele tinha mudado de vida e jamais tentaria ressuscitar Golgoth. Ele jurou à mãe, e eu fui testemunha desse juramento. Nunca procurei esconder onde estava o grimório. A escrivaninha sempre esteve à vista e Morgan sabia aonde vir procurá-lo, e o tempo provou que eu estava certo. Ele teria vindo há anos se a promessa que fez à mãe não o tivesse impedido. Assim que soube que Emily tinha morrido, temi o pior e entendi por que Morgan tinha ido me procurar em Chipenden...
Fez-se um longo silêncio em que o Caça-feitiço tornou a coçar a barba, profundamente absorto em seus pensamentos.
— E que aconteceu no final? — perguntei. — Por que Golgoth não me matou? Por que simplesmente foi embora?
— Uma vez invocado, seu tempo no pentáculo era limitado. Cada segundo que passasse ali o enfraqueceria. Por fim, ele precisou partir. Não havia escolha. Naturalmente, se você tivesse permitido que ele saísse, tudo teria sido diferente. Ele estaria livre para vagar pelo Condado e assolá-lo com um inverno sem fim. Portanto, você agiu bem, rapaz. Cumpriu o seu dever e ninguém poderia lhe pedir mais do que isso.
— Como foi que o senhor me encontrou? — perguntei.
— Isso você deve agradecer primeiro à garota. Quando você não retornou como eu esperava, fui falar com Andrew para saber a que horas você saíra da oficina. Foi a sua amiga Alice que me disse aonde você tinha ido. Ela queria me acompanhar e ajudar na busca, mas eu não quis nem ouvir falar nisso. Trabalho melhor sozinho: não preciso de uma garota nos meus calcanhares. Quase tivemos que amarrá-la na cadeira para impedir que me seguisse. Quando cheguei lá, estava entrando uma nevasca do nordeste e a capela estava deserta. Procurei um pouco pelo cemitério, mas não me demorei. Só havia uma pessoa para quem eu poderia apelar. A única que poderia encontrar você naquelas condições.
“Meg não demorou a farejá-lo. Descobriu seu bastão entre as árvores do morro e o rastreou até o túmulo. Não precisou muito tempo para encontrar a entrada, mas, quando empurrei a pedra, o túnel estava bloqueado. Então, Marcia cavou até a câmara. São três a merecer os seus agradecimentos.”
— Três feiticeiras — enfatizei.
O Caça-feitiço fingiu não me ouvir.
— Enfim, Alice continuará na oficina de Andrew, como você poderia esperar. Quanto a Meg e a irmã, de agora em diante ficarão no porão do outro lado do portão, que não será fechado.
— Então, o senhor e Meg voltaram a ser amigos?
— Não, as coisas não estão como eram quando nos conhecemos. Eu gostaria de voltar o relógio atrás, mas isso não é possível. Você entende, garoto, entramos em um acordo. As coisas não podem continuar como estão, mas explicarei melhor depois que você tiver descansado.
— E meu pai? — perguntei. — Ele vai ficar bem agora?
— Ele era um bom homem e, agora que Morgan morreu e seu poder terminou, seu pai não deverá ter nada a recear. Absolutamente nada. Ninguém sabe exatamente o que acontece quando morremos — disse o Caça-feitiço com um suspiro. — Se soubéssemos, não haveria tantas religiões diferentes dizendo coisas diferentes e todas achando que têm razão. Para mim, não faz a menor diferença qual a religião que a pessoa segue. Nem mesmo se ela prefere seguir sozinha e escolher o seu próprio caminho na vida. Desde que viva uma vida honesta e respeite as crenças dos outros como seu pai lhe ensinou, então não pode estar muito errada. Ele, sem dúvida, encontrará o caminho que o levará à luz. Não precisa se preocupar. E agora chega de conversa. Você teve uma noite difícil; portanto, vá se deitar por algumas horas.
Fiquei, porém, na cama mais do que algumas horas. Tive febre alta, e o médico veio três vezes de Adlington antes de achar, finalmente, que eu estava me restabelecendo. Na verdade, transcorreu quase uma semana até eu ter condições de descer e passar a maior parte das horas do dia enrolado em um cobertor diante da lareira do escritório.
O Caça-feitiço também não puxou muito por mim nas aulas e passou mais uma semana inteira para eu ter condições de ir a Adlington ver Alice. Ela estava cuidando da oficina sozinha. Como não entraram muitos fregueses, tivemos tempo de bater um longo papo. Conversamos na loja, debruçados por cima do balcão de madeira.
Durante a minha doença, o Caça-feitiço tinha feito uma visita à oficina e ela sabia a maior parte do que ocorrera. Então, eu só precisei completar os detalhes e me desculpar mais uma vez por ter feito segredo dos meus problemas.
— Enfim, Alice, obrigado por ter contado ao Caça-feitiço que eu tinha ido para a capela. Do contrário, ele nunca me encontraria — disse, encerrando finalmente a minha história.
— E continuo desejando que você tivesse confiado mais em mim, Tom. Você devia ter me contado logo o que Morgan estava fazendo com seu pai.
— Me perdoe. No futuro, não vou esconder mais nada de você...
— Mas o Velho Gregory não vai me incluir entre os bons, não é? Ele não confia nem um pouco em mim!
— A opinião dele sobre você melhorou muito — afirmei. — É só dar tempo ao tempo.
— Mas, na primavera, quando vocês voltarem para Chipenden, terei que continuar aqui. Queria tanto ir com vocês...
— Achei que você gostava de trabalhar na oficina do Andrew.
— Podia ser pior, mas Chipenden é muito melhor. Gosto de morar naquele casarão com jardim. E vou sentir saudades de você, Tom.
— Vou sentir saudades de você também, Alice. Mas, pelo menos, você não está em Pendle. Enfim, no próximo inverno estaremos de volta e vou tentar visitar você mais vezes.
— Seria bom, isso seria.
Pouco depois, ela se animou um pouco e, no final, quando eu já ia saindo, me pediu um favor.
— Na manhã que vocês estiverem viajando para Chipenden, você perguntará ao Velho Gregory se ele me levaria também?
— Perguntarei. Mas não acho que vá adiantar nada, Alice.
— Mas você perguntará, não é? Ele não vai arrancar a sua cabeça a dentadas se você perguntar, não é?
— Está bem. Perguntarei.
— Promete?
— Prometo — eu disse, sorrindo. Fazer promessas a Alice, no passado, tinha me metido em encrencas, mas essa promessa não podia fazer muito estrago. No pior, o Caça-feitiço poderia apenas recusar.
O MELHOR
Embora tivesse sido um inverno rigoroso, três semanas após a morte de Morgan a temperatura começou a subir e a terra a descongelar. Isso possibilitou a Shanks fazer sua primeira entrega em séculos. Ajudei-o a descarregar, como sempre, mas, quando ele foi embora, o Caça-feitiço o acompanhou por um bom trecho na descida da ravina e tiveram uma longa conversa.
Alguns dias mais tarde, pouco depois do café da manhã, Shanks trouxe à nossa porta um caixão, carregado pelo pequeno pônei, que quase desmontou sob o peso dessa carga. Ajudei-o a desamarrar o caixão e o baixamos com cuidado. Não era tão pesado quanto parecia, mas era um tanto grande e eu nunca vira outro tão bem-feito. Era de madeira escura e envernizada, e tinha duas alças de latão de cada lado. Não o levamos para dentro de casa; nós o deixamos perto da porta dos fundos.
— Para que é isso? — perguntei ao Caça-feitiço, quando Shanks desapareceu ao longe.
— Cabe a mim saber e a você descobrir. Pense um pouco e me responda quando tiver chegado a uma conclusão.
Já era hora do almoço quando as minhas suspeitas se confirmaram.
— Vou me ausentar uns dias, rapaz. Acha que pode se arranjar sozinho?
Minha boca estava cheia, por isso confirmei com um aceno de cabeça e continuei a devorar meu ensopado de cordeiro.
— Você não vai perguntar aonde estou indo?
— Fazer um serviço de Caça-feitiço?
— Não, rapaz. Assunto de família. Meg e a irmã estão voltando para casa. Vão partir de navio, de Sunderland Point, e vou acompanhá-las para garantir que cheguem ao porto em segurança.
Sunderland Point ficava ao sul de Heysham e era o maior porto do Condado. Navios de todas as partes do mundo subiam o rio Lune para ancorar lá. Percebi, então, que meu palpite sobre o caixão estava certo.
— Então, Marcia irá no caixão — eu disse.
— Acertou de primeira, rapaz — disse o Caça-feitiço com um sorriso. — Uma dose cavalar de chá de ervas deverá mantê-la sossegada. Ela não poderia embarcar normalmente. Talvez assustasse alguns passageiros. O que o capitão do porto sabe é que a irmã de Meg morreu e ela vai levá-la para enterrar na terra natal. Enfim, já disse, irei com elas até o porto para garantir que embarquem sãs e salvas. Naturalmente, iremos viajar durante a noite. Com certeza, nos hospedaremos em uma estalagem e Meg passará as horas do dia no quarto, com as cortinas fechadas. Ficarei triste de vê-la partir, mas é melhor assim.
— Uma vez, ouvi o senhor conversando com Meg sobre um jardim que tiveram juntos. Era o seu jardim em Chipenden?
— Era, rapaz. O jardim oeste, como você deve ter imaginado. Passamos muitas horas felizes, sentados naquele mesmo banco em que tantas vezes lhe dou aulas.
— E o que aconteceu? — perguntei. — Por que o senhor trouxe Meg para Anglezarke e a trancou no porão? Por que ela precisou ser drogada com chá de ervas?
— O que aconteceu entre Meg e mim é assunto nosso! — respondeu o Caça-feitiço com rispidez, lançando-me um olhar demorado e inquisidor. Por um momento, ele pareceu realmente aborrecido, e percebi que a minha curiosidade tinha ido longe demais. Em seguida, ele suspirou e balançou a cabeça com ar cansado.
— Como você sabe, Meg ainda é uma mulher bonita, mas, quando jovem, ela era excepcionalmente bonita e virava a cabeça dos homens. Eu sentia muito ciúme e brigávamos demais. Mas não foi só isso. Ela era muito obstinada e fez muitos inimigos no Condado. Os que a contrariavam aprenderam a temê-la. E os que vivem temerosos por muito tempo se tornam perigosos. Acabaram acusando-a de feitiçaria e deram queixa ao Alto Magistrado em Caster. Foi um problema muito sério e mandaram um guarda vir prendê-la.
— Ela estaria segura na sua casa em Chipenden, não é? O ogro teria impedido o guarda até mesmo de se aproximar dela.
— Teria feito isso, rapaz. Mas teria impedido, matando-o! E o homem estaria apenas cumprindo o seu dever e, embora eu ame Meg, não ia querer ter a morte do jovem guarda pesando na minha consciência; portanto, fui obrigado a fazê-la desaparecer. Fui à vila e o encontrei lá e, com a ajuda do serralheiro como testemunha, consegui convencê-lo de que Meg tinha fugido do Condado.
“Em consequência, eu a trouxe para cá e ela passou os verões presa no quarto do porão e os invernos confinada em casa. Era isso, ou acabaria pendurada na ponta de uma corda; as feiticeiras são enforcadas em Caster, como você sabe. Em um dado momento, anos mais tarde, ela saiu de casa e aterrorizou alguns habitantes locais. Para mantê-los quietos, tive que prometer que a prenderia em uma cova no porão. Foi por isso que Shanks ficou tão perturbado quando a viu naquela manhã. Agora, finalmente Meg vai voltar para a terra dela. É uma coisa que eu devia ter feito há anos, mas me faltou coragem.”
— E ela quer ir para lá?
— Acho que ela sabe que é o melhor. Além disso, os sentimentos de Meg por mim não são mais os mesmos que os meus por ela — disse o Caça-feitiço, parecendo mais velho e mais triste do que eu jamais o vira antes. — Vou sentir falta dela. Muita falta mesmo. A vida não será a mesma sem Meg. Era ela quem tornava suportáveis os invernos aqui...
No fim da tarde, observei o Caça-feitiço fechar Marcia, a irmã de Meg, no caixão. Então, quando ele acabou de apertar os últimos parafusos de latão, ajudei-o a carregar o caixão até embaixo, na ravina. Era pesado e cambaleamos um pouco sob seu peso, procurando manter os pés firmes na terra macia e lamacenta, acompanhados por Meg, que carregava as próprias malas. À medida que descíamos, em solene silêncio, para as sombras do vale, lembrei-me de um enterro de verdade.
O Caça-feitiço providenciou um coche para nos aguardar na estrada. Os quatro cavalos ficaram nervosos quando nos aproximamos, dilatando as narinas, a respiração fumegando ao luar, e o cocheiro custou a controlá-los. Quando conseguiu, desceu do coche, parecendo também muito nervoso, veio até o Caça-feitiço e tocou o boné com os dedos em sinal de respeito. Suas bochechas tremiam e ele parecia prestes a desencarnar.
— Não precisa ter medo e, como lhe prometi, pagarei bem pelo seu serviço. Agora me ajude a pôr isso no coche — pediu-lhe meu mestre, indicando com uma batidinha o caixão de Marcia. Os dois o ergueram e o colocaram na traseira do carro, e o Caça-feitiço acompanhou com atenção enquanto o cocheiro amarrava o caixão com uma corda.
Enquanto estavam ocupados, Meg se aproximou de mim sorrindo sinistramente, com os dentes à mostra.
— Você é um garoto perigoso, Tom Ward, um garoto muito perigoso — disse ela, chegando mais perto. — Cuide-se para não fazer inimigos demais...
Não soube muito bem o que responder.
— Você fará uma coisa para mim, garoto? — cochichou-me ao ouvido.
Concordei inquieto.
— Ele não é tão frio como quer que as pessoas pensem — disse, indicando meu mestre com um gesto. — Cuide dele para mim. — Sorri, então, e concordei acenando a cabeça.
Quando o Caça-feitiço veio se reunir a nós, ela lhe deu um sorriso caloroso e amigável que me fez pensar que, no fundo, ainda gostava um pouco dele. Em seguida, segurou a mão dele e apertou-a carinhosamente. O Caça-feitiço abriu a boca como se fosse dizer alguma coisa, mas as palavras não saíram. As lágrimas brilhavam em seus olhos e ele pareceu engasgar de emoção.
Constrangido, dei as costas à cena e me afastei alguns passos. Eles cochicharam entre si por alguns momentos e caminharam juntos para o coche. Quando o cocheiro abriu a porta e fez uma pequena reverência para Meg, o Caça-feitiço a ajudou a embarcar. Depois, ele se dirigiu a mim.
— Certo, rapaz, vamos andando. Volte para a casa — disse o Caça-feitiço.
— Ajudaria se eu fosse junto? — perguntei.
— Não, rapaz, ainda assim agradeço. Há coisas que preciso fazer sozinho. Um dia, quando você for mais velho, acho que entenderá. Mas desejo que você nunca tenha que passar por nada parecido...
Eu, porém, já estava entendendo: lembrei-me do dia em que o vi com Meg na cozinha, as lágrimas escorrendo pelo seu rosto. Eu sabia o que ele estava sentindo. E mais, podia me imaginar em seu lugar e precisar me despedir de Alice pela última vez. Seria assim que Alice e eu terminaríamos?
Alguns instantes depois, o Caça-feitiço embarcou, e, mal se acomodou ao lado de Meg, o cocheiro agitou o chicote sobre o lombo dos quatro cavalos. O coche se afastou sacolejando e começou a ganhar velocidade. Estavam rumando para o norte e seu destino era Sunderland Point, enquanto eu subi lentamente a ravina de volta à casa.
Uma vez lá, esquentei um pouco de sopa de ervilhas para o meu jantar e me sentei ao lado da lareira. Não ventava e eu ouvia cada estalo e rangido da casa velha. As tábuas do assoalho se acomodavam, um degrau rangia, um camundongo corria do outro lado da parede. Cheguei a fantasiar que embaixo, no porão, muito além do portão de metal, eu ouvia os murmúrios dos mortos e dos semimortos em suas covas.
Foi então que percebi o longo caminho que percorrera. Ali estava eu, sozinho em um casarão com um porão cheio de ogros e feiticeiras amarradas, e não sentia o mínimo medo. Era o aprendiz do Caça-feitiço e, na primavera, completaria meu primeiro ano de treinamento. Mais quatro anos e também me tornaria um caça-feitiço!
RETORNO A CHIPENDEN
Próximo ao meio-dia, em certa manhã de fins de abril, quando fui apanhar água no riacho, o Caça-feitiço me acompanhou. O sol tinha acabado de surgir no alto da borda da ravina e ele sorriu ao sentir seu leve calor. No rochedo, nos fundos da casa, as estalactites de gelo estavam derretendo rapidamente, pingando água nas lajes.
— Hoje é o primeiro dia de primavera, rapaz — comentou ele —, portanto, partiremos para Chipenden!
Fazia semanas que eu estava esperando ouvir essas palavras. Desde que tinha voltado sem Meg, o Caça-feitiço andava muito quieto, ensimesmado, e a casa parecia mais sombria e deprimente que nunca. Eu estava louco para ir embora.
Assim, na hora seguinte, corri pela casa executando todas as tarefas necessárias: limpando as grelhas das lareiras e lavando todas as panelas, pratos e xícaras para facilitar as coisas quando voltássemos no inverno seguinte. Por fim, saímos, o Caça-feitiço trancou a porta dos fundos e começou a descer a ravina. Eu o seguia de perto e feliz, levando as duas malas de costume e o meu bastão de sorveira-brava.
Lembrei-me da promessa a Alice — perguntar se ela poderia nos acompanhar a Chipenden —, mas fiquei esperando o momento oportuno. Então percebi que, em vez de tomar o caminho mais direto para o norte, estávamos seguindo em direção a Adlington. Embora tivesse visitado o irmão na véspera, supus que o Caça-feitiço quisesse se despedir mais uma vez do irmão. Eu ainda hesitava confuso se mencionaria Alice, quando avistamos a loja.
Para minha surpresa, Andrew e Alice vieram ao nosso encontro na rua de pedras. Alice carregava uma trouxinha com os seus pertences e parecia pronta para viajar. Sorria e tinha uma expressão excitada.
— Tenha um verão agradável e próspero, Andrew — desejou animado o Caça-feitiço. — Vejo você em novembro!
— O mesmo para você, mano! — respondeu Andrew com um aceno.
No momento seguinte e para minha absoluta surpresa, o Caça-feitiço virou-se e saiu andando e, quando o acompanhei, Alice começou a andar do meu lado, sorrindo de orelha a orelha.
— Ah, esqueci de lhe dizer, rapaz — disse o Caça-feitiço por cima do ombro —, Alice vai ficar conosco em Chipenden, nas mesmas condições que antes. Combinei tudo ontem à noite com Andrew. Ela precisa morar onde eu possa ficar de olho nela!
— Grande surpresa, não é, Tom? Ficou feliz de me ver? — perguntou Alice.
— Claro que fiquei feliz de ver você e realmente satisfeito que esteja regressando a Chipenden conosco. É a última coisa que eu esperava. O sr. Gregory não me disse nada.
— Ah! Não disse, é? Agora você sabe como a gente se sente quando as pessoas guardam segredos e não dizem o que a gente devia saber! Bem feito! — disse ela rindo.
Ri também. Não me importei com a caçoada de Alice. Eu tinha merecido. Devia ter lhe contado a minha intenção de roubar o grimório. Se tivesse feito isso, talvez ela conseguisse meter algum juízo na minha cabeça. Agora tudo terminara e caminhávamos alegremente juntos, retornando, enfim, a Chipenden.
No dia seguinte, tive mais uma surpresa. O caminho para Chipenden nos levou a uns seis quilômetros do nosso sítio. Eu ia perguntar se podia fazer uma visita, mas o Caça-feitiço me passou a frente.
— Acho que você deve fazer uma visita a sua casa, rapaz. Quem sabe descobrirá que sua mãe voltou; e, nesse caso, ela estará esperando para vê-lo. Vou continuar andando porque, no caminho, preciso visitar um cirurgião.
— Cirurgião? O senhor está doente? — perguntei, começando a me preocupar.
— Não, rapaz. O homem trata também de dentes como um segundo ofício. Tem um bom estoque de dentes de defuntos e, com certeza, vai achar alguma coisa que me sirva — respondeu-me ele, abrindo um largo sorriso para eu poder ver a falha causada pelo ogro quando lhe quebrara o dente.
— Onde é que ele arranja os dentes? — perguntei espantado. — Com ladrões de túmulos?
— A maior parte vem de antigos campos de batalha — disse o Caça-feitiço meneando a cabeça. — Ele me fará uma dentadura e logo estarei novo em folha. Ele também tem uma boa linha de botões de ossos. Meg costurava os próprios vestidos e era uma de suas melhores freguesas — concluiu o Caça-feitiço, com tristeza.
Fiquei feliz de saber. Pelo menos, os botões não tinham vindo de suas antigas vítimas, como a princípio eu suspeitara.
— Enfim, vá andando agora — disse o Caça-feitiço — e leve a garota para lhe fazer companhia no caminho.
Fiquei feliz de obedecer. Sem dúvida, o Caça-feitiço não queria Alice em seus calcanhares. Eu teria, no entanto, o problema de sempre. Jack não ia querer que ela desse sequer um passo dentro dos limites da propriedade e, como o Sítio do Cervejeiro agora era dele, não valia a pena discutir.
Uma hora e pouco depois, Alice e eu avistamos o sítio e reparei em uma coisa muito estranha. Para o norte, um pouco além da divisa do sítio, ficava o morro do Carrasco, de onde subia uma coluna de fumaça escura em meio às árvores do topo. Alguém acendera uma fogueira. Quem faria uma coisa dessas? Ninguém jamais subia lá porque era assombrado por soldados que tinham morrido enforcados na guerra civil que assolara o Condado havia algumas gerações. Até os cães do sítio davam uma boa distância ao morro.
Instintivamente, soube que era minha mãe. Por que estaria lá em cima eu nem imaginava, mas quem mais se atreveria? Contornamos o sítio para leste e, ultrapassando a divisa setentrional, subimos o morro através das árvores. Das sombras não havia sinal algum, e o morro do Carrasco estava silencioso e parado, com os galhos nus refulgindo ao sol de fim de tarde. Os botões nas folhas estavam inchados, mas talvez ainda levassem uma semana ou mais para abrir. A primavera tinha chegado muito tarde este ano.
Assim que chegamos ao alto, vi que tinha acertado. Minha mãe estava sentada diante de uma fogueira, contemplando as chamas. Abrigara-se sob um refúgio de ramos, gravetos e folhas secas que a protegiam do sol. Seus cabelos estavam empastados de sujeira e davam a impressão de que não os lavava havia muito tempo. Perdera peso também e seu rosto estava magro, com os olhos fundos, sua expressão triste e cansada, talvez da própria vida.
— Mamãe! Mamãe! — exclamei, sentando-me ao seu lado na terra úmida. — A senhora está bem?
Ela não me respondeu imediatamente e tinha no rosto um olhar distante. Pensei, a princípio, que não tivesse me ouvido. Depois, ainda mirando as chamas, ela ergueu a mão esquerda e pousou-a no meu ombro.
— Que bom que você voltou, Tom — disse por fim. — Há dias que estou esperando você aqui...
— Onde esteve mamãe?
Ela não respondeu, mas, depois de uma longa pausa,ergueu a cabeça e os nossos olhares se encontraram.
— Em breve estarei viajando, mas precisamos conversar antes de eu partir.
— Não, mamãe, a senhora não está em condições de ir a lugar nenhum. Por que não desce para o sítio e come alguma coisa? E precisa também de uma boa noite de sono. Jack sabe que a senhora está aqui?
— Sabe, filho. Jack sobe todos os dias para me ver e me suplica para fazer exatamente o que você acabou de me pedir. Mas é doloroso demais ir lá embaixo, agora que seu pai não está em casa. Foi um abalo muito forte, Tom, e partiu meu coração. Mas, agora que você finalmente chegou, vou me obrigar a voltar uma última vez antes de deixar o Condado para sempre.
— Não vá embora, mamãe! Por favor, não nos deixe! — supliquei.
Minha mãe não respondeu, apenas fitou as chamas.
— Pense no seu primeiro neto, mamãe! — continuei desesperado. — Não quer vê-lo nascer? Não quer ver a pequena Mary crescer? E eu? Preciso da senhora! Não quer que eu cumpra o meu aprendizado e me torne um caça-feitiço? A senhora me salvou no passado e talvez eu volte a precisar de sua ajuda para chegar ao fim...
Minha mãe continuou calada, e Alice, de repente, se sentou de modo a ficar defronte a ela com a fogueira no meio.
— Não tem certeza, não é? — disse à minha mãe, seus olhos penetrantes à luz das chamas. — A senhora não sabe realmente o que fazer.
Minha mãe ergueu a cabeça, seus próprios olhos cintilando de lágrimas.
— Quantos anos você tem, garota? Treze, não é? É apenas uma criança. Então, que pode saber dos meus problemas?
— Talvez eu só tenha treze anos — retorquiu Alice em tom de desafio —, mas sei das coisas. Mais coisas do que alguns de vocês que viveram uma vida inteira. Algumas me foram ensinadas. Outras eu simplesmente sei. Vai ver já nasci sabendo. Não sei por quê. Nasci assim, só isso. E conheço a senhora. Pelo menos, um pouco. E sei que está dividida entre ir e ficar. Não é? É verdade, não é?
Minha mãe baixou a cabeça e, para minha surpresa, confirmou mudamente.
— O poder das trevas está crescendo, está evidente, e já disse isso ao Tom antes — disse minha mãe, virando o rosto para me olhar, seus olhos brilhando mais intensamente do que os de qualquer outra feiticeira que eu já tivesse visto. — É o mundo inteiro que está caindo em poder das trevas, não é só o Condado. Preciso combatê-las na minha própria terra. Se eu voltar agora, talvez possa fazer alguma coisa antes que seja tarde demais! E há outros assuntos lá que deixei pendentes.
— Que assuntos, mamãe?
— Logo você saberá. Não me pergunte agora.
— Mas a senhora estaria sozinha. Que poderá fazer sozinha?
— Não, Tom, eu não estaria sozinha. Há outros que me ajudariam, muito poucos devo admitir.
— Fique, mamãe. Fique e deixe que as trevas venham a nós — supliquei. — Vamos enfrentá-las juntos na minha terra e não na sua...
Minha mãe sorriu triste.
— Esta é a sua terra?
— É, mamãe. É o Condado onde nasci. A terra onde nasci para defender das trevas. Foi o que a senhora me disse. A senhora disse que eu seria o último aprendiz do Caça-feitiço e que depois seria minha responsabilidade zelar pela segurança.
— É bem verdade e não vou negar — respondeu minha mãe preocupada, fitando as chamas.
— Então, fique e vamos enfrentá-las juntos. O Caça-feitiço está me treinando. Por que a senhora não me treina também? Tem coisas que a senhora sabe fazer que até ele desconhece. O modo como silenciou as sombras aqui no morro do Carrasco. Ele me disse que não se podia fazer nada para ajudar as sombras; que elas desapareciam quando chegasse a hora. Mas a senhora fez. Elas se calaram durante meses! Além disso, eu herdei outras coisas também. “Prenúncios da morte”, foi como a senhora chamou a sensação. Senti quando o Caça-feitiço esteve à morte recentemente. E, quando relembro, senti também quando ele começou a sarar. Sentirei a próxima vez que alguém doente der a virada para recuperar a saúde. Por favor, não vá embora. Fique e me ensine.
— Não, Tom — respondeu minha mãe, pondo-se de pé. —Lamento, mas já tomei a minha decisão. Ficarei aqui mais uma noite, mas amanhã estarei a caminho.
Eu sabia que já argumentara o suficiente e que seria egoísmo continuar. Tinha prometido ao meu pai que a deixaria partir quando chegasse a hora, e essa era a hora. Alice tinha razão. Minha mãe estava dividida, mas eu sabia que a decisão não era minha.
Minha mãe virou-se para encarar Alice.
— Você percorreu um longo caminho, garota. Muito mais longo do que me atrevi a esperar. Mas, no futuro, haverá provas maiores. E, para enfrentá-las, vocês dois precisarão unir forças. A estrela de John Gregory está começando a perder o brilho. Vocês são o futuro e a esperança do Condado. O Caça-feitiço precisa dos dois ao lado dele.
Minha mãe estava me olhando do alto quando terminou de falar. Contemplei a fogueira por um momento e me arrepiei.
— A fogueira está quase se apagando, mamãe — disse-lhe sorrindo.
— Tem razão. Vamos descendo para o sítio. Os três.
— Jack não vai querer ver Alice — lembrei-lhe.
— Então, terá simplesmente que aturá-la — respondeu minha mãe, em um tom de voz que deixava claro que não iria aceitar protestos de Jack.
E a verdade foi que, em sua felicidade de ver minha mãe regressar, Jack mal pareceu notar Alice.
Depois de tomar um banho e trocar de roupa, apesar das súplicas de Ellie para que descansasse, minha mãe insistiu em preparar o cozido do jantar. Fiz-lhe companhia na cozinha enquanto ela cozinhava e lhe contei a maior parte do que estivera acontecendo em Anglezarke. O que não mencionei foi como Morgan torturara o espírito do meu pai. Conhecendo minha mãe, não me surpreenderia descobrir que ela já sabia. Porém, mesmo que esse fosse o caso, ainda teria sido doloroso demais para ela. Por isso eu não lhe disse nada. Já sofrera o suficiente.
Quando terminei, ela não falou muito, mas me puxou para perto e me disse que se sentia muito orgulhosa de mim. Era bom estar em casa. A pequena Mary dormia no primeiro andar em segurança, no centro da mesa estava a vela de cera de abelha no castiçal de latão, um fogo vivo ardia na lareira e a comida preparada por minha mãe estava servida. Sob a superfície, porém, as coisas tinham mudado e continuavam a mudar. Todos sabíamos disso.
Minha mãe sentou-se à cabeceira da mesa, no lugar que antes pertencera ao meu pai, e quase parecia ter voltado ao seu normal. Alice e eu nos sentamos defronte a Jack e Ellie. É claro que, a essa altura, Jack já tinha tido tempo de refletir e deixava transparecer que não se sentia confortável com a presença de Alice, mas nada havia a fazer.
Pouco se conversou à mesa aquela noite, mas, quando terminamos de jantar o cozido, minha mãe afastou o prato e se levantou. Olhou para cada um de nós antes de começar a falar.
— Este talvez seja o último jantar que fazemos juntos. Amanhã à noite, estarei deixando o Condado e talvez jamais retorne.
— Não, mamãe! Não diga isso — pediu Jack, mas ela o silenciou erguendo a mão esquerda.
— Vocês todos precisam cuidar uns dos outros agora — disse com tristeza. — É o que seu pai e eu gostaríamos que fizessem. Mas tenho uma coisa para lhe dizer, Jack. Portanto, preste atenção. O que está escrito no testamento do seu pai não pode ser alterado porque o documento reflete os meus desejos também. O quarto embaixo do sótão tem que pertencer ao Tom enquanto ele viver. Mesmo que você morresse e o seu filho herdasse o sítio, continuaria a ser assim. Não posso lhe explicar as minhas razões, Jack, porque você não iria gostar do que ouviria. Mas há muito mais em jogo do que os seus sentimentos. Meu último desejo, antes de partir, é que você aceite de boa vontade o que tem de ser feito. Muito bem, filho, você aceita?
Jack concordou e baixou a cabeça. Ellie pareceu assustada e senti pena dela.
— Muito bem, Jack, fico feliz que tenhamos resolvido isso. Agora apanhe para mim as chaves do meu quarto.
Jack foi à sala e voltou quase que imediatamente. Havia quatro chaves. As três menores eram dos baús que havia no quarto. Jack colocou-as na frente da minha mãe, que as recolheu com a mão esquerda.
— Tom e Alice — disse minha mãe —, venham comigo. — Assim dizendo, ela se levantou da mesa, saiu da cozinha e começou a subir a escada. Foi direto ao seu quarto particular. Aquele que ela sempre mantinha trancado à chave.
Minha mãe abriu a porta e entrei com ela. O quarto continuava praticamente como eu o conhecia, cheio de malões, caixas e baús. No outono, ela me levara ali e me dera a corrente de prata guardada no baú maior, o mais próximo da janela. Sem a corrente, eu agora seria prisioneiro de Meg ou, mais provavelmente, teria sido entregue para a irmã dela se alimentar. O que mais haveria, porém, nos outros três baús maiores? Eu estava começando a me sentir realmente curioso.
Naquele momento, olhei para trás. Alice continuava parada à porta do quarto, com uma expressão nervosa, hesitante, no rosto. Estava olhando para a soleira da porta.
— Entre e feche a porta, Alice — disse minha mãe gentilmente.
Quando Alice entrou, minha mãe lhe deu um enorme sorriso e me entregou as chaves.
— Tome, Tom, são suas agora. Não as dê a mais ninguém. Nem mesmo ao Jack. Guarde-as com você o tempo todo. Este quarto agora é seu.
Alice olhou ao redor, de olhos arregalados. Eu sabia que ela adoraria começar a mexer naquelas caixas e descobrir todos os segredos que continham. Devo admitir que eu sentia o mesmo.
— Posso agora ver o que tem nos baús, mamãe? — perguntei.
— Dentro você encontrará as respostas para muitas coisas que o têm intrigado; coisas a meu respeito que eu nunca disse nem ao seu pai. Meu passado e meu futuro estão nessas caixas. Mas você precisará estar com a cabeça fria e a mente aguçada para entender. Você passou por muita coisa, e está cansado e deprimido, então o melhor é esperar até eu ter partido, Tom. Volte no fim da primavera e então veja tudo, quando estiver cheio de esperanças e os dias forem se alongando. Será melhor.
Fiquei desapontado, mas sorri e concordei com um aceno de cabeça.
— Como quiser, mamãe.
— Tem mais uma coisa que preciso lhe dizer. Este quarto é mais do que a soma de tudo que contém. Uma vez trancado, nenhum mal poderá jamais entrar. Se você for corajoso e sua alma for pura e boa, este quarto será um baluarte, uma fortaleza contra as trevas, e lhe oferecerá maior proteção do que a casa do seu mestre em Chipenden. Só o use quando alguma coisa muito terrível estiver perseguindo-o, e a sua própria vida e alma estiverem em perigo. É o seu último refúgio.
— Só meu, mamãe?
Minha mãe olhou para Alice e de novo para mim.
— Alice está presente, então ela poderá usá-lo também. Foi por isso que a trouxe aqui em cima, só para ter certeza. Mas jamais traga outra pessoa. Nem Jack, nem Ellie, nem mesmo seu mestre.
— Por que, mamãe? Por que o sr. Gregory não pode usá-lo?
Eu não conseguia acreditar que o Caça-feitiço não pudesse usar o quarto em caso de extrema necessidade.
— Porque há um preço a pagar quando se usa este quarto. Vocês são jovens e fortes, e a sua energia está em ascensão. Vocês sobreviveriam. Mas, como disse, o poder de John Gregory está declinando. Ele é como uma vela prestes a se apagar. Se usar o quarto, extinguirá a pouca energia que lhe resta. E, se algum dia for preciso, será exatamente isso que você deverá dizer a ele. E também que fui eu quem disse.
Concordei com um aceno de cabeça e nada mais. Eles nos cederam camas para passar a noite, mas, assim que o sol nasceu e tomamos um bom café da manhã, minha mãe nos despachou para Chipenden. Jack ia providenciar uma carroça para apanhar mamãe ao pôr do sol e levá-la a Sunderland Point. Dali, ela embarcaria em um navio para a sua própria terra, na esteira de Meg e a irmã.
Minha mãe se despediu de Alice e pediu que ela fosse andando e me esperasse no portão do terreiro. Com um sorriso, Alice acenou e se afastou. Quando nos abraçamos, eu sabia que seria a última vez, minha mãe tentou dizer alguma coisa, mas as palavras ficaram presas em sua garganta e uma lágrima correu pelo seu rosto.
— Que foi, mamãe? — perguntei carinhosamente.
— Desculpe, filho. Estou tentando ser forte, mas é tão doloroso que quase não sou capaz de aguentar. Não quero dizer nada que piore esse momento para você.
— Diga, por favor, diga o que precisar dizer — supliquei, já com lágrimas nos olhos.
— É que o tempo passa tão depressa e fui tão feliz aqui. Eu ficaria, se pudesse, ficaria mesmo, mas é meu dever partir. Fui tão feliz com seu pai. Nunca conheci um homem mais honesto, sincero e afetuoso. E minha felicidade se completou quando você e seus irmãos nasceram. Jamais conhecerei felicidade igual. Mas terminou e terei que abrir mão do passado. Tudo acabou tão depressa que agora parece que tive apenas um breve sonho de felicidade.
— Por que tem que ser assim? — perguntei amargurado. — Por que a vida tem que ser tão curta, e o que é bom passar tão depressa? Vale realmente a pena viver?
Minha mãe me fitou com tristeza.
— Se você conseguir tudo que espero, então os outros acharão que a sua vida valeu a pena, filho, mesmo que você não ache. Você nasceu para servir o Condado. E é isso que terá de fazer.
Mamãe e eu nos abraçamos com força uma última vez e pensei que meu coração fosse explodir.
— Adeus, meu filho — sussurrou ela e roçou os lábios pelo meu rosto.
Foi demais para suportar e me afastei depressa. Alguns passos adiante, porém, me virei para acenar e vi mamãe retribuindo o aceno das sombras do portal da cozinha. Dali a pouco, quando tornei a olhar, ela já havia entrado na cozinha. Com o coração pesado, continuei a caminhar com Alice para Chipenden, a sensação do último beijo de minha mãe ainda no rosto. Eu tinha apenas treze anos, mas sabia que a minha infância terminara ali.
Já estamos de volta, em Chipenden: as campainhas azuis estão florindo, os pássaros cantando e o sol ficando mais quente a cada dia que passa.
Alice nunca se sentiu tão feliz na vida, mas está realmente curiosa com o que os baús do quarto da minha mãe poderão conter. Não posso levá-la outra vez ao sítio, porque isso aborreceria demais Jack e Ellie, mas estou planejando voltar lá no próximo mês e prometi contar a Alice tudo que encontrar.
O Caça-feitiço parece ter recuperado inteiramente a saúde e todos os dias passa horas andando pelas serras para fortalecer sua resistência. Nunca o vi mais magro e mais forte, mas alguma coisa parece ter se alterado em sua cabeça. Às vezes, há longos silêncios durante as aulas, em que parece esquecer que estou presente. E, com frequência, ele fica olhando para longe com uma expressão preocupada no rosto. Apesar de parecer mais forte que nunca, disse-me que sente que seu tempo na Terra está chegando ao fim.
Há coisas que ele quer fazer antes de morrer. Coisas que há anos vem adiando. Primeiro, ele tem falado em ir a Pendle para acabar de uma vez por todas com os três covens de feiticeiras que há na aldeia. São trinta e nove feiticeiras ao todo! Parece-me uma empreitada muito perigosa e não consigo nem começar a imaginar como ele poderá dar conta dela. Não tenho, porém, opção e acompanharei meu mestre aonde quer que ele decida ir. Ainda sou o aprendiz e ele é o Caça-feitiço.
Joseph Delaney
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