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Series & Trilogias Literarias
O encantador lorde Dante Risande está acostumado a vencer a resistência de todas as mulheres. Entretanto, há uma mulher que parece desafiar este hábito: a bela serva Gianelle Dejiat.
Gianelle não quer submeter-se a nenhum homem, nem sequer a esse guerreiro com olhos de prata que fala com tanta ternura. Deseja ser livre, e se nega a ser um número a mais na longa lista das conquistas de Dante. Sua negativa não faz mais que avivar o interesse do conde por ela.
O nobre normando, homem de confiança do rei, deve investigar um assassinato do qual Gianelle é a principal suspeita. Entretanto, porque acredita firmemente na inocência da mulher, arriscará tudo para provar. Gianelle, apesar de tudo, terá que confiar nele.
Capítulo 1
Inglaterra, 1071
— Recorde Casey — disse Gianelle, enquanto retorcia a grossa capa para dar um nó a mais —, uma hora depois que lorde Bryce e seus convidados se retiraram a seus aposentos, empreenderemos a fuga.
Amarrou com força o nó e amarrou a outra ponta no pé da cama. Atirou com firmeza, valendo-se de todo o peso de seu corpo. Dava a impressão de que resistiria.
— Suponhamos que ele desperte e saia para nos buscar — observou Casey, enquanto a observava esconder o longo tecido debaixo da cama. Não parecia nada bem. A idéia de lançar-se pela janela a assustava muito. Oxalá houvesse outra maneira menos infeliz de fugir. Mas Gia tinha razão; era imperioso que abandonassem Devonshire. O amo era mau, mas seu irmão era pior. Não é que as castigasse, embora vontade não faltasse. Pelo menos, quanto a isso, gozavam do amparo do amo. Entretanto, Edgar Dermott sempre achava uma maneira de tornar a vida impossível, sobretudo a de Gia. Não tirava de cima seu olhar penetrante, com as pálpebras semicerradas. Se comia mais do que as escassas rações permitidas aos serventes de Devonshire, ali estava ele para acusá-la. Se no castelo acontecia algo estranho, a culpava e desfrutava castigando-a.
— Não se preocupe; não nos procurará — assegurou Gianelle —. Casey, esta é nossa melhor oportunidade para escapar. Com a presença dos convidados, só descobrirá que sumimos quando já estivermos na metade do caminho para York.
Casey desejava compartilhar o otimismo de sua melhor amiga. Não sabia que parte do plano lhe causava mais pavor: descer pelos muros de Devonshire com ajuda de uma corda ou confrontar os perigos que a aguardavam abaixo.
— Você tem as moedas?
Casey assentiu e elevou sua saia, para mostrar a Gia a bolsa que pendia à altura de seu joelho.
— Quanto temos?
— Segundo minha conta, há dez peniques. Não acredito que tenhamos muito mais.
— O que acontecerá se os guardas nos descobrem fugindo?
Gianelle atravessou o quarto e pegou Casey pelos ombros.
— Sabe que adormecem logo. Não deve preocupar-se. Pense em como serão nossas vidas depois desta noite. — O olhar decidido de Gianelle relampejava; suas bochechas, habitualmente pálidas, avermelhavam-se com a emoção — Seremos livres. Já não haverá amos que nos digam o que devemos pensar e como nos comportar. Não haverá mais castigos quando nos atrevermos a desafiar, com o olhar, nossos superiores. Poderemos dizer o que quisermos comer quando tivermos fome e nos banhar em lagos cristalinos, em lugar de fazê-lo em uma tina atrás da cozinha.
A voz emocionada de sua amiga lhe dava ânimos. Embora para Casey a liberdade não fosse tão importante como para sua amiga, assentiu, sorridente e confiante.
Deviam fugir, e Casey jamais abandonaria sua amiga mais querida.
— Agora venha; vamos subir e fingir sermos as obedientes serventes que nosso amo acredita que somos.
Gianelle tomou Casey pela mão e a arrastou para a porta.
— Gia — Casey fez uma pausa, antes de ingressar no salão—, está segura de que não nos apanhará? Recorda a última vez que o fizemos se zangar…
Gianelle bateu na mão de Casey, para tranqüilizá-la.
— Prometo Casey. Lorde Dermott não despertará.
Gianelle recolheu a bandeja de prata em que levava um enorme leitão assado. Ignorou os ruídos de seu estômago vazio, enquanto trabalhava, a ponto de cair para trás sob o peso da bandeja. Lançou uma maldição em voz baixa. Por Deus, com o que teriam alimentado esse porco? Acreditou que não chegaria ao salão e parou duas vezes para descansar, apoiando a bandeja sobre seu joelho. Tampouco seu maldito cabelo deixava de incomodá-la. Teve que afastar, com um sopro, a mecha dourada que obstruía sua vista, antes de preparar-se para seguir caminho.
Os corredores do castelo de Devonshire ferviam de serventes, vassalos e até hóspedes perdidos. Hoje, lorde Dermott celebrava o festival do solstício de verão e não tinha economizado gastos para receber seus nobres convidados. Contratou dois cozinheiros adicionais para colaborar com Maeve na preparação de um banquete digno do rei. Os trovadores, posicionados ao redor da lareira, tocavam melodias de amor e fidelidade, enquanto malabaristas vestidos com cores extravagantes lançavam bolas no ar, e acrobatas anões davam cambalhotas, entre as fileiras de mesas preparadas para o festejo.
Do estrado onde Bryce Dermott estava sentado junto a seu irmão, lorde Edgar Dermott, observou como Gianelle se atrapalhava com a bandeja.
— Rápido prostituta — grunhiu seu amo — Todos estão com fome.
Gianelle apertou os dentes, mas baixou a cabeça e se aproximou depressa. Por fim, aproximou-se do estrado e depositou a bandeja, apesar de quase ter tropeçado quando o barão Douglas Landry, sentado em uma mesa mais baixa que a de seu amo, beliscou-lhe o traseiro. Gianelle conteve uma maldição e o olhou com ódio, mas ele se limitou a arquear uma sobrancelha, exigindo:
— Encha minha taça.
— É obvio meu senhor — respondeu ela, baixando o olhar e fazendo uma reverência —. Há um tonel de vinho recém aberto na cozinha — anunciou, enquanto tomava a taça.
Na cozinha os rumores corriam livremente, e Gianelle não se importou que as criadas rodeassem Maeve, a cozinheira, enquanto esta observava o preparo de um novilho, girando no assador.
— Escutei que o conde, sozinho, resgatou vinte guerreiros do rei Guillermo das masmorras de Edgar Aetheling, pouco depois da conquista. Sarah, a filha de Ingram, diz que é até mais alto que lorde Edgar, e que tem os cabelos de cor negra e os olhos como estanho.
— Assim é — comentou Sylvia, enquanto preparava uma bandeja com ovos —. Vi quando visitei minha irmã em Dover, na primavera passada. Entrou no povoado a cavalo e se aproximou de uns pescadores para conversar, como se entre eles não houvesse nenhuma diferença. Entretanto, é um homem muito rico. Possui terras em Norwich, e inclusive na França. Minha irmã disse que o povo, em Dover, ama seu senhor; principalmente as mulheres.
Sylvia piscou um olho, dissimuladamente, a Maeve, e adicionou:
— Digo a vocês, moças, que lorde Dante Risande é um cavalheiro mais distinto que qualquer dos que se encontram, neste momento, na sala.
— Oxalá pudesse atender as mesas esta noite — riu Maeve. Ao ver Gianelle, agitou sua concha de sopa e alfinetou —: Você o viu, Gia?
Gianelle sacudiu a cabeça e, passando junto às mulheres, aproximou-se de Casey, que acomodava bolos de maçã em uma longa bandeja destinada ao serviço das mesas.
— Já disse ontem, Maeve, que não me interessa nenhum homem querendo me fazer sentir o peso de sua autoridade.
— Ai, nem sequer o rosto de um deus mudaria as idéias de Gia —exclamou Lydia, uma moça robusta, que levantou o olhar do cisne que estava preenchendo. Tirou sua mão da ave e apontou com seu dedo gorduroso para Gia —: Morrerá solteirona, se não achar um homem a quem amar logo, menina.
— O amor é para os poetas, Lydia — opinou Gianelle e colocou uma erva na taça do barão Landry —. Eu não perco tempo com essas bobagens românticas.
— O que faz com esta erva?— perguntou Casey, vendo-a encher a taça de vinho.
— O barão Landry me beliscou o traseiro — repôs Gianelle, com uma risada traidora —. Deverá pagar por isso.
— Colocará para fora meu delicioso assado antes de encher as tripas —disse Maeve, com uma gargalhada.
— Isso não será pior que perder um par de dentes, como aconteceu a lady Millicent no mês passado, depois de esbofetear Gia por ter chamado a atenção do velho amargurado de seu marido — recordou Casey.
— Como ia imaginar que, com esses enfeites que pus nas tortas de mel, ia quebrar os dentes?
As mulheres riram quando Gianelle levou a taça do barão Landry, enunciando uma breve prece para seus pobres intestinos. Depois, jogou um olhar aos bolos. Faltava fazer uma coisa mais, antes de abandonar a cozinha.
Passou junto à Margaret, outra das faxineiras de Dermott, e a olhou com malícia quando a moça disse que acabava de ver lorde Dante, e que o bom Deus a castigasse, se não era o exemplar mais magnífico de homem sobre o qual tivesse posto os olhos, em toda a sua vida.
Ao ingressar no salão, Gianelle não se incomodou em localizar o homem que acabava de revolucionar o pessoal da cozinha, mas fixou a vista em Douglas Landry e se dirigiu para ele, cantarolando.
— Sirva-se de seu vinho, milorde — disse tranqüilamente, colocando a taça sobre a mesa. Ao voltar-se, acreditou ter se chocado contra um muro.
Poderosos dedos agarraram seus braços, para evitar que, com a trombada, caísse no colo de Landry.
— Desculpe-me, mademoiselle.
Gianelle ergueu o olhar e viu o cabelo escuro e os olhos cinzentoss do homem. Santo Deus! Que homem enorme! Mas foi seu aroma que a impactou. Uma estranha combinação de aroma de couro e tabaco. Mal ele afrouxou suas mãos, Gia tentou escapulir, mas algo a segurava.
— Seu cabelo se enroscou no meu botão — disse com uma voz ao mesmo tempo profunda e suave, que parecia retumbar dentro de seu peito.
Devia tratar-se do famoso conde de Risande. Nenhum outro convidado de Dermott falava com um tom de voz tão aprazível, e poucos o faziam com esse sotaque sensual com reminiscências de sua terra natal: Normandía.
Geralmente, Gianelle não se atrevia a olhar pela segunda vez a um nobre. Mas sua voz e suas palavras a tinham tentado a fazê-lo. Quando ergueu o olhar, observou que prendia seu olhar. Malditas bruxas da cozinha: tinham razão! Seus olhos eram como prata e os cílios, tão negros como o cabelo, faziam-nos parecer até mais agudos e penetrantes. Tinha o nariz reto e firme, a mandíbula maciça e os lábios esculpidos para o prazer. Comparou-o com um lobo que, por seu magnífico porte, fazia com que uma mulher esquecesse quão perigoso podia ser aproximar-se muito. Seu olhar cativante era como o de um predador a ponto de apanhar sua vítima. Gianelle se manteve imóvel e fascinada por um instante, até que ele deu um sorriso, adornado com uma covinha provocante.
—Rogo que me desculpe milorde — e, depois de uma breve reverência, afastou-se depressa.
Lorde Dante Risande a viu afastar-se. Seguiu com seu olhar a longa trança dourada que acariciava suas nádegas.
— Merde! Viu isso, Balin?— dirigiu-se a um homem que estava pacientemente sentado a sua direita.
— Viu o que, senhor?
— Esse rosto — Dante voltou-se, procurando à moça no salão abarrotado —. Que olhos! Descubra seu nome.
Balin suspirou, profundamente.
— Algum dia descobrirá que é pai de uma dúzia de filhos, de cuja existência desconhecia — resmungou, enquanto se encaminhava para cumprir com o solicitado por seu amo.
Dante sorriu, observando à moça à distância.
— Se a sorte me acompanhar, serão treze antes de abandonar este castelo, amanhã pela manhã.
Capítulo 2
Dante elevou a taça de prata e contemplou os entalhes gravados que a adornavam. A antiquada decoração era refinada e estava tão belamente esculpida para perdurar durante anos. Ao voltar o olhar para o salão, Dante se alegrou, vendo os nobres normandos e saxões compartilharem o vinho e as risadas. Já havia sido vertido sangue suficiente na Inglaterra. Era hora de que as duas nações vivessem em paz. Mas nem todos compartilhavam essa idéia, e sua missão era descobrir os aliados de Hereward the Wake, o chefe da resistência enfrentada pelo rei.
Como guerreiro, Dante compreendia que houvesse saxões que ainda lutassem contra Guillermo. O novo rei era um conquistador estrangeiro e, embora houvesse tentado preservar as leis anteriores à conquista, foram muitas as terras divididas entre os normandos. Entretanto, agiu com grande justiça. Se um nobre saxão, como Bryce Dermott, jurava-lhe fidelidade, podia conservar quase todas suas terras. O que preocupava Guillermo era a resistência e a Dante correspondia encabeçar a busca para capturar seu líder.
Algo quente e suave roçou seu braço, fazendo com que deixasse de lado seu compromisso com o dever, para concentrar-se em seu outro passatempo favorito. Voltou sua cabeça para lady Genevieve Salle, a quem deu um sorriso formal.
— Mademoiselle?
Ah, essa voz com reminiscências de veludo negro, misturado com o aço, estremeciam lady Genevieve. Ela se inclinou sobre sua cadeira, com o decote muito próximo de sua boca.
— Não me dirá nada mais, mon cher?
Seus lábios entreabertos quase em contato com os dele pareciam esperar algo. Quando passou a língua provocativamente pelos lábios, a expressão de Dante endureceu.
— Depois de nosso recente… — fez uma pausa e, depois de morder o lábio inferior, acrescentou — … encontro, supus que, pelo menos, diria algo.
Pousou seus olhos sobre ela, com a arrogância de um homem plenamente convencido do poder sexual que exercia. Ela conteve o fôlego. Maldito! Por que jogava tanto fogo com esses olhos e essa boca plena de sensualidade? Lady Genevieve titubeou, sem mover-se do lugar, mas desejava ter se sentado, pois seus joelhos fraquejaram. Com displicente encanto, acomodou o loiro cabelo. As pérolas estavam em seu lugar, intercaladas com seu esmerado penteado.
— Não acredito que um encontro justifique que nos consideremos amantes, meu querubim — respondeu ele, enquanto observava o barão Landry, que acabava de levantar-se de sua cadeira e sair às pressas do salão, segurando o ventre com ambas as mãos.
— E se fossem dois? — propôs Genevieve, aproximando-se, atraída por sua voz profunda e vigorosa —. Poderíamos concretizá-lo agora mesmo.
— Deixemos para outro momento, mademoiselle.
Como se atrevia? Estava furiosa. Ou ele esquecia que era a filha do conde de La Salle de Flandes? Qualquer homem receberia suas atenções como uma bênção do céu; ainda, seu corpo. Ah, mas ela o tinha devotado… e tinha dado tanto mais… uma noite inesquecível e beijos que tinham esquentado seu sangue até arrancar gritos, sem importar que seu pai escutasse entregue aos estudos, em uma sala ao lado.
Ela o observou. Seus dedos, adornados com rubis, estremeciam com a vontade de apagar o sorriso com uma bofetada — ou de acariciar seus cabelos. Ante a confusão que experimentava, começou a transpirar e grossas gotas deslizaram entre seus seios. Apesar da humilhação, desejava sentir-se envolta em seus potentes braços; entretanto, deu-lhe as costas e partiu indignada.
Dante voltou a sorrir, enquanto admirava o voluptuoso balanço de seus quadris. O conde de La Salle certamente exigiria que formalizassem sua união, se chegasse a saber do que Dante tinha chamado seu ‘’ encontro” íntimo, que, na realidade, tinha sido uma batalha no meio de uma tormenta invernal. Ela era muito bela, com suas longas pernas e seus seios cheios e firme, capaz de tentar a um monge, mas o deixava com uma sensação de vazio.
Dante remexeu-se em sua cadeira de carvalho esculpido, que parecia muito estreita para suas longas pernas. Examinou o vasto salão, até que sua vista recaiu sobre Bryce Dermott, que cortava um pedaço de porco. Duvidava seriamente que as suspeitas do rei Guillermo fossem justificadas. O senhor de Devonshire era tido como um tirano, mas lhe faltava cérebro até para planejar suas atividades cotidianas, por isso era difícil supor que fosse capaz de conspirar. O olhar de Dante pousou então no homem sentado à direita de Bryce. Esse sim era digno de suspeita. Edgar Dermott não se parecia em nada com seu irmão mais velho. Sorvia o vinho de sua taça com o mesmo olhar frio e calculista de um falcão à espreita de sua presa.
— Acha que sabe por que estamos aqui? — perguntou Balin, enquanto se acomodava na cadeira junto a Dante, com os olhos fixos na mesa principal.
— Sabe quem sou e o que aconteceu quando Hereward nos atacou no inverno passado — Dante lançou um sorriso desafiante a Edgar Dermott —. Não deve ter muita simpatia por mim, não é?
— Bom — disse Balin, encolhendo os ombros, mais estreitos que os de Dante —, se na verdade apóia Hereward, entende-se que seja cuidadoso. Afinal, foi você que conduziu o exército do rei em Peterborough, onde aniquilou a resistência.
Dante queria esquecer esse sucesso. Não se tratava da sangrenta batalha que teve lugar em Peterborough, mas do que tinha encontrado ao retornar ao seu lar.
— Seu nome é Gianelle.
Dante se ajeitou e esfregou o queixo, enquanto tratava de esquecer.
— Quem?
— A menina que admirou. Chama-se Gianelle Dejiat.
Dante olhou para Balin, com o cenho franzido.
— É normanda?
— Assim parece.
Deslizando o olhar para Bryce Dermott, Dante se perguntou como era possível que um saxão tivesse uma mulher normanda a seu serviço. Divisou-a novamente enchendo as taças dos convidados. A luz das velas iluminava seu rosto, parecendo indiferente aos nobres a quem atendia. Parecia excessivamente magra sob sua áspera vestimenta marrom. Mas embora seu corpo não possuísse as curvas insinuantes que Dante tanto admirava, havia algo nela que o subjugava. Talvez fosse a delicadeza de seu rosto o que lhe tirava o fôlego, ou que fosse tão diferente das damas que riam atrás de seus perfumados lenços e que passavam, incesantemente, a mão pelo cabelo, para assegurar-se de que cada pérola e cada fivela estivessem em seu lugar. Gianelle era autêntica, e não precisava de adornos para fazer ressaltar sua beleza. Edgar Dermott, evidentemente, estava de acordo: o irmão do barão a contemplava com o desespero de um homem esfomeado frente à comida.
Quando, por fim, ficou ao seu lado, Dante a examinou atentamente. Ela o ignorou.
— Posso beber? — perguntou ele.
Piscou e o olhou fixamente, com um leve sentimento de pânico que a fez ruborizar. Pela segunda vez, durante a noite, seus formosos olhos ambarinos impressionaram Dante.
— Desculpe-me, milorde. A que se refere?
— Pergunto por que notei que o barão Landry dava a impressão de estar bastante... apressado quando se retirou.
Gianelle segurou o jarro contra seu peito. Como podia suspeitar do que ela tinha feito?
— Eu não tenho nada a ver com isso.
Dante soube que ela mentia. Tinha-a observado quando entrou no grande salão e deu a Landry uma taça já servida. Por que não o serviu do jarro? Os anos vividos junto ao rei Guillermo tinham ensinado como era fácil desfazer-se dos inimigos, com uma taça de vinho. Espantava-lhe a suspeita de que essa mulher encantadora estivesse trabalhando com alguém que quisesse envenenar os hóspedes normandos de Bryce Dermott. Seria uma pena que se voltasse contra sua própria gente. Maior pena teria que ser prendê-la e levá-la diante do rei.
Colocou sua mão sobre a taça, para que não lhe servisse e disse, com um sorriso:
— Prefiro manter a mente limpa e os conteúdos de meu estômago onde estão.
Estava a ponto de fazer um comentário a respeito da palidez dela, quando outra moça pôs uma jarra diante dele e ofereceu:
— Deseja servir-se de um pouco de carne de novilho, milorde?
Dante contemplou primeiro a jarra e depois à servente. Levantou-se de um salto, sua voz falhou e não encontrava as palavras. Sua única certeza era que havia reencontrado sua irmã Katherine.
—Balin! —exclamou, sem tirar o olhar da moça.
—Vejo-a, milord — confirmou Balin, incrédulo ante a semelhança que o deixava sem fala.
Dante tentou pousar sua mão sobre a bochecha da moça, mas ela o impediu.
— Por Deus! Quem é?
— Meu nome é Casey, milord — respondeu tremendo.
— Casey? Parece com alguém cuja lembrança me é muito querida.
Gianelle estava consciente dos truques dos homens quando tentam apanhar às moças, mas a angústia que percebia em sua voz pareceu autêntica.
— Gianelle!
O rugido de Bryce Dermott fez com que deixasse cair o jarro. O vinho tinto salpicou as botas de Dante e a barra de seu próprio vestido. No salão, fez-se um silêncio total, salvo pela prece que murmurou Casey.
— Meus convidados estão sedentos! Deverão esperar toda a noite, enquanto fica observando lorde Risande? — Dermott apertou os dentes e desafiou o olhar de Dante, do outro extremo do salão —. Aceite, por favor, minhas desculpas. Esta prostituta jamais aprendeu a obedecer e é freqüente motivo de incidentes desagradáveis. Observe-a: nem sequer agora deixa de me desafiar com o olhar.
Gianelle ficou paralisada, vendo-o abandonar a mesa onde estava. Ela sabia que devia baixar os olhos, mas não pôde fazê-lo. Presa do terror e do ódio olhava-o sem pestanejar. Os olhos azuis e gélidos dele cintilavam com violência.
— Ensinarei você a respeitar seus superiores!
A jovem deu um passo atrás e se chocou contra algo maciço. Sabia que seu senhor a golpearia e não podia fazer nada para impedi-lo. Seus olhos examinaram os diversos olhares fixos nela. Chocou-se com o sorriso desdenhoso de Edgar Dermott, sabendo que ele desejava que fosse sua mão que estivesse a ponto de cair sobre ela. Gianelle lamentou por não ter espirrado sobre sua comida, enquanto servia-o. Levantou desafiante seu queixo, antecipando com integridade a iminente humilhação.
— Aprenderá qual é seu lugar, cadela insolente!
Dermott ergueu a mão para golpeá-la e ela fechou os olhos, diante do inevitável. Mas não recebeu nenhum golpe. A mão de seu senhor enfurecido tinha sido detida por dedos maiores ainda, antes de chegar à seu rosto.
—Advirto-lhe isso, Dermott. Baixe a voz e a mão, ou será você o golpeado. Se tocar nela — ameaçou Dante com uma voz tão letal como suas palavras— juro que derramarei seu sangue aqui mesmo.
Dermott assentiu e nem sequer olhou para Gianelle quando Dante soltou sua mão. Em troca, esfregou o pulso, voltando-se para seu irmão, que o observava de sua cadeira. Edgar Dermott o acompanhou sutilmente com um gesto de cumplicidade, enquanto fulminava Dante com um olhar assassino. Por um instante, pareceu disposto a vingar-se mas de repente, seu rosto se apaziguou, invadido por um amplo sorriso.
— Brindemos pelo heróico comandante do rei Guillermo — propôs, levantando sua taça para Dante —, o arrojado defensor do belo sexo. Esperemos que sua fidalguia não acabe sendo a causa de sua morte.
Ao que Dante retrucou, sem que seus olhos cinzentos se alterassem com o sorriso desafiante que deu a Edgar Dermott:
— E quem quiser testar-me que tenha a força e a destreza necessárias para me fazer transpirar, pelo menos, antes de fracassar.
A confiança que transbordava em sua voz convenceu Gianelle de que seu defensor não estava habituado a perder muitos combates. Mas não podia perder-se em sua reflexão, porque quando Dante mudou de posição, percebeu que tinha as costas coladas a seu formidável peito. Sem voltar-se para olhá-lo, precipitou-se para a mesa mais próxima, para retomar suas tarefas.
Durante a hora seguinte, Gianelle fez o possível para não aproximar-se da mesa de lorde Risande. Já tinha dado amostras de sua acuidade visual e seu bom senso, ao deduzir que ela tinha colocado algo na bebida do barão Landry. Por que não a tinha denunciado para lorde Dermott? Da habilidade dele de enxergar o que outros não viam, não cabia dúvida, mas o que tramaria? Seria capaz de perceber que ela e Casey planejavam fugir? Não podiam correr esse risco.
Havia outro motivo pelo qual se mantinha afastada, um que custava admitir. Ele a tentava para que olhasse e sorria, com sua risada profunda e viril. Com certeza, estava seduzindo alguma jovenzinha com sua diabólica covinha e esse sorriso irresistível que fazia fraquejar as pernas. Que tolices! Ela tinha coisas mais importantes em que pensar como passar o resto de sua vida em liberdade, com Casey. Possivelmente fugissem para a Escócia e criassem ovelhas. Gianelle se perguntou se os homens teriam serventes nessa longínqua terra, mas ela nunca abandonaria a busca, como tinha feito seu pai. Rogava para que Henri Dejiat tivesse obtido sua ansiada liberdade.
Ergueu o olhar ao sentir que Dante fixava nela seus olhos cinzentos. Para sua surpresa e consternação, viu-o aproximar-se. Teve o mau pressentimento de que queria voltar a interrogá-la sobre o barão Landry e sentiu o coração a ponto de saltar do peito. Por um instante pensou em jogar uma vela acesa sobre o gigantesco conde, para que não se aproximasse. Mas estava imobilizada, incapaz de reagir, enquanto o contemplava e santo Deus, quanto havia para ver!
Era a personificação da elegância masculina em sua roupa combinando harmoniosamente com sua figura, uma túnica azul, que o cobria até os joelhos. Sua camisa branca estava bordada com fios dourados. Uma espada pendia de sua cintura, inserida em uma luxuosa bainha de couro. Estreitas calças negras de lã e suaves botas de couro envolviam suas longas e musculosas pernas. Seu cabelo escuro deixava à mostra o rosto anguloso, as grossas mechas caindo por sua nuca.
Gianelle bateu no chão com o sapato, em sinal de impaciência, desejando que perguntasse o que queria e partisse o quanto antes. Mas não podia tirar os olhos de cima do conde.
— Desculpe-me, senhora, mas me sinto na obrigação de averiguar que motivo pode ter para acompanhar com um olhar tão pensativo a singela tarefa de trocar velas.
Era claro que podia ler seus pensamentos. Gianelle quis desaparecer dali antes que a acusasse, em voz alta, de todas as maldades cometidas ao longo de sua vida, guiada pela rebeldia. Iriam açoitá-la por substituir o sabão derretido com seiva arbórea o mês passado? Ou seria merecedora do látego por ter amassado os bolos de maçã antes de servi-los?
Dante inclinou a cabeça para obter sua atenção:
—Não tem nada a temer de mim.
Gianelle quis rir de tão nervosa. Sua cabeça mal chegava à altura do peito daquele homem, que tinha uma musculatura ressaltada pela túnica e seus olhos que pareciam lançar raios. Parecia pouco para temer?
— No que pensava?
— Em meu pai.
— Isso é estranho?
— Non, milord, absolutamente.
Surpreso pela aparente falta de emoção que percebia em sua voz e com curiosidade por saber como tinha chegado a servir Bryce Dermott, Dante voltou a perguntar:
— Entregou você como serva?
—Nasci serva, milord — replicou Gianelle, olhando em torno através do salão. Teria preferido que continuasse perguntando sobre o barão Landry. Qualquer coisa era melhor que essa persistente incerteza.
— Onde serviu antes de chegar aqui?
Por fim, se atreveu a levantar os olhos e seu ar de preocupação quase provocou o sorriso de Dante.
Mas a jovem compreendeu que ele era ainda mais esperto do que ela supunha. Queria conhecer os nomes de seus senhores anteriores, para interrogá-los a respeito dos danos que ela poderia ter causado à eles, ou a terceiros, conforme fosse o caso. Pois bem, ele não a venceria em astúcia. Daria a ele quantos nomes quisesse. Mas não seriam verdadeiros.
— Não entendo seu interesse, mas se deseja conhecê-los, não posso me negar. Vejamos, meu primeiro senhor. Quando cheguei a Inglaterra foi lorde Harold… humm… Hampton. Depois estive com…
Dante entrecerrou os olhos, fixos nela, reprimindo uma ameaça de sorriso. Não podia imaginar por que estaria mentindo novamente. Devia ter suspeitado de algo, mas adorava ver como ela tratava de rivalizar com ele em termos de astúcia.
— Jamais escutei falar dele. Qual é a região que outorgou-lhe o rei?
— Região?
Ela mordeu o lábio inferior e tratou de pensar em algumas regiões da Inglaterra.
O problema era que somente conhecia as três onde tinha estado, naqueles seis anos desde sua chegada, e não conhecia outras.
Dante lançou-lhe um sorriso cativante.
— Diga o que quiser, Gianelle. Juro por minha espada que poderia me contar que o tal lorde Harold Hampton se reúne com sua corte no fundo do mar e, somente olhando para você, não poderia deixar de acreditar.
Gianelle olhou-o, cautelosa. Não conseguia decidir se ele estava sendo sincero ou chamando-a de mentirosa. Apostou na última hipótese, já que nenhum nobre que estivesse em seu juízo perfeito se importaria em elogiar uma serva. Essa conclusão foi irritante. Como se atrevia a chamá-la de mentirosa?
— Se já tiver concluído seu interrogatório, poderei continuar com minhas tarefas.
Dante olhou-a, contrariado:
— Tentava conversar com você, não interrogá-la.
— Por que inexplicável motivo você conversaria comigo?
— Pardon — Dante temeu que seus ouvidos o estivessem traindo —, por que eu conversaria com você?
— Oui.
— Eu… — deteve-se e a olhou carrancudo —. Bom, eu…
Merde, nunca antes tinham perguntado por que queria conversar com uma dama e optou por manter a boca fechada. Infelizmente para ele, seu silêncio foi interpretado como se a conversa — ou como ela quisesse chamar — entre os dois tinha acabado.
— Espere! — puxou-a pelo braço antes que se afastasse. Devia suspeitar que ela tivesse colocado algo em sua comida. Se não, porque andaria atrás dela como um cachorrinho desesperado por mimos? Jamais tinha acontecido algo assim com uma mulher, e não era o momento oportuno para que acontecesse pela primeira vez. Seu cenho se franziu ainda mais, enquanto falava:
— Encontre-me lá fora, mais tarde, quando tiver terminado suas tarefas.
— Non.
— Permanecerei em silêncio e poderá “me interrogar”.
— Mas, milord — disse, olhando-o nos olhos —, não há nada que eu deseje perguntar ao senhor.
Dante ficou vendo a moça se afastar, pela terceira vez, naquela noite. Suas palavras deveriam ter lhe incomodado, já que nunca nenhuma mulher tinha falado com ele desse modo. Entretanto, sorriu. Ele era um guerreiro, sempre preparado para enfrentar um digno rival. Sem dúvida, a perspectiva de levá-la para seu leito era muito excitante.
Capítulo 3
Gianelle nunca tinha imaginado o quanto seria difícil descer por uma corda. Tinha os dedos machucados pela aspereza das amarras; seus pés escorregaram duas vezes, quando colocou-os contra os nós, e ficou pendurada. Casey era de pouca ajuda, enquanto tremia, como um camundongo, e invocava as escrituras, lamentando-se de ser como os tolos que desprezavam a sabedoria. Gianelle teria escolhido um par de salmos, para agradecer pelo fato das dependências de serviço estarem no nível inferior do castelo.
— Quantos nós faltam?
Gianelle elevou a vista, rogando para que Casey não desabasse em cima dela.
— Não sei. Mas não devem ser muitos mais.
— Veja se conta, Gia.
— Non. Faça você.
— Meu rosto está sangrando.
— Então não aproxime o rosto dos nós, Casey.
Logo seriam livres. Gianelle repetia constantemente, para tornar suportável a dor de suas mãos. A idéia de que já não viveria submetida às ordens de outra pessoa a tinha ajudado a reunir forças e coragem necessárias para fazer frente aos piores momentos. E agora dava ânimo, apesar dos perigos que a aguardavam, de seus dedos doloridos e da ameaça do pé de Casey sobre sua cabeça.
— Tome cuidado! — exclamou, com o olhar fixo no solado do calçado de sua amiga.
— Acho que a corda está se desprendendo! — disse Casey, com voz tão aguda que devia ter despertado todo o castelo —. Está sentindo?
O nó no qual estava presa a corda no pé da cama desatou, e ambas precipitaram-se no chão. Gianelle caiu sentada bruscamente, Casey aterrissou em cima dela e depois a corda caiu, golpeando suas cabeças.
Estava tão ocupada amaldiçoando a corda e tentando desenroscar-se, que não viu o homem recostado tranqüilamente contra o muro do castelo, mesmo a pálida luz da lua envolvendo-o completamente. Quando ele falou, Casey gritou e Gianelle fez um silêncio mortal.
—Tinham pensado ir a alguma parte?
Maldito. O que estaria fazendo ali? Gianelle golpeou a terra com seus punhos, e Casey levantou-se de um salto e saiu correndo.
— Pegue-a, Balin — ordenou Dante, dirigindo-se a outra figura, entre as sombras —. Leve-a ao seu quarto e assegure a moça que não diremos uma palavra sobre isto a Dermott.
Gianelle continuava imóvel. Perguntava-se por que esse estranho iria protejê-las. Certamente, algo desejaria em troca. Mas o que? Perguntou-se se teria a força necessária para estrangulá-lo com a corda, mas em seguida entendeu que seria inútil tentar. Sentia um desejo infinito de amaldiçoá-lo; ele se mantinha imperturbável, de braços cruzados, com um ridículo sorriso. Talvez estivesse se divertindo desde o começo, vendo-as cair da janela.
— Que maldição o trouxe aqui? — Gianelle sentia vontade de chorar. Queria gritar de frustração e de raiva, por sua esperança perdida, que desabava tão duramente como ela.
Dante afastou-se do muro e se inclinou junto a ela.
— Sempre diz a primeira coisa que vem a sua cabeça? Pois… — seu olhar pousou sobre o contorno de sua perna e, logo, sobre a coxa, que tinha ficado exposta durante a queda. Não podia afastar o olhar e suspirou quando ela arrumou a barra da saia —. Devo dizer que seu desprezo me machuca. Não é agradável ser considerado uma maldição.
Viu-a levantar e afastar um cacho que caía sobre seu nariz.
— Por que não está dormindo, como os outros?
Seu desalento comoveu Dante, que conteve o impulso de tomá-la em seus braços.
— Não podia dormir — explicou ele, enquanto ficava de pé. Fechou os olhos para concentrar-se no que queria dizer, para resistir a tentação de seus lábios —. Tinha saído para caminhar com Balin, e falávamos sobre você.
— No meio da noite?
— Oui.
Não tinha a menor intenção de dizer que Balin e ele também tinham aguardado que todos estivessem dormindo, para poder explorar o castelo de Bryce Dermott. Ainda não tinham encontrado nada que permitisse vinculá-lo a Hereward the Wake, quando Dante escutou as ferventes preces, pela janela, e saiu para investigar.
— Por que devo ser tema de conversa para você com um de seus homens? —perguntou Gianelle. Não confiava nesse estranho misterioso, com seus olhos penetrantes e seu irresistível sorriso. Quando ele a olhava fazia sentir-se como uma prostituta.
— Não deveria ser eu que faz as perguntas? Por exemplo: por que desejam fugir?
— Você jamais compreenderia.
— Mas desejo saber.
— Queremos ser livres.
Dante teve a sensação de que ele era o primeiro homem a quem havia dito essas palavras. Seu atual senhor certamente a castigaria se dissesse à ele. Dante não entendia por que queria afastar-se do amparo que tinha entre os muros, e das cozinhas onde se preparavam comidas quentes. Para falar a verdade, dava a impressão de que Gianelle não pesava mais que um véu de seda, e o fato de viver entre esses muros, junto a um homem capaz de golpeá-la, transformava-os em prisão e não em refúgio. Mas o mundo, além de Devonshire, era muito pior ainda que o tirano que vivia dentro. Dante sabia por experiência própria.
— E para onde iriam?
— Aonde nos conduzissem nossos pés — respondeu, elevando o queixo com arrogância.
— Não parece um plano muito bom. Tem uma adaga escondida sob a roupa?
— Non — respondeu surpresa. Por que não tinha lhe ocorrido trazer uma faca? Reconheceu que não havê-lo feito era uma tolice; mas do que ia servir, se não sabia usá-la —. Temos um moedeiro.
Em seguida se arrependeu de ter dito. Agora, ele iria querer saber de quem tinham tirado as moedas.
— Bom, os ladrões que as matassem ao menos conseguiriam algo em troca de seu esforço.
— Não nos teriam matado — retrucou Gianelle. Imediatamente recuou, vendo que ele se aproximava.
— Com estes braços finos — disse Dante, apertando levemente seu antebraço —, seu atacante não teria que lutar muito.
A jovem teria gostado de pôr a prova essa teoria com ele, mas sentiu que seus dedos a acariciavam. Era tal sua delicadeza que estremeceu. Tentou afastar-se, mas ele aumentou levemente a pressão sobre seu braço e a reteve no mesmo lugar.
— As mãos femininas não deveriam estar machucadas. Venha, deixe-me limpar o sangue.
— Você, cuidar de mim? — riu ao dizê-lo, embora teria preferido chorar.
Conduziu-a para o interior do castelo e Gianelle não resistiu. Ele tinha acabado com seus planos para ganhar a liberdade; mas ela tinha sido muito impaciente e não tinha tomado precauções suficientes.
— Acredita seriamente que Casey e eu teríamos sido vítimas de ladrões?
— Oui. As moças nunca devem andar sozinhas pelo bosque.
Houve algo em suas palavras, e no tom apagado de sua voz, que fez com que Gianelle acreditasse. Não entanto, deteve-se e lançou um olhar cheio de nostalgia sobre o ombro, antes de entrar no castelo.
A cozinha estava às escuras. Dante tropeçou em uma mesa e fez estremecer algumas jarras. Lançou uma violenta maldição em francês, quando esteve a ponto de cair sobre um tonel de nabos.
Rechaçando seu braço, a jovem se apressou a acender uma boa quantidade de velas, antes que Dante fizesse com que matassem ambos. Quando acabou de acender a última vela, notou o sorriso zombador dele e sentiu-se tentada a rir, embora continuasse indignada por sua fuga ter sido frustrada.
— Onde é o porão? — perguntou ele. Gianelle assinalou uma porta no final do corredor e viu desaparecer sua gigantesca silhueta na penumbra —. Só quero me desfazer desta corda. Não vá embora.
— Você já me impediu de fazer isso – murmurou Gianelle, enquanto se encaminhava para um grande armário, no qual Maeve guardava os panos de cozinha limpos. Havia um pouco de água fresca em uma caçarola. Molhou um pano e o apertou contra seus dedos ensangüentados, enquanto lançava uma imprecação francesa de seu próprio vocabulário.
— Venha, deixe-me ajudá-la.
Céu santo! A voz de Dante atrás dela, acabou com sua tranqüilidade. Ao voltar-se, encontrou com seus olhos reluzentes.
— Dói muito? — indagou com voz aveludada, com um sussurro que espalhou um hálito morno sobre a bochecha da jovem.
Ela sacudiu a cabeça, enquanto ele começava a limpar suas feridas. Olhou-o várias vezes. Quando seus olhos se encontraram, ele sorriu.
— Seus olhos são de uma cor muito estranha, milord.
— Te assustam?
— Por que me assustariam? Somente parecem… estranhos. Têm pequenas luzes esverdeadas que antes não tinha observado.
A covinha marcou-se mais profundamente, fazendo com que escapasse outra maldição dos lábios de Gianelle. Que arrogante era!
— Você tem modos estranhamente irritantes — disse ela, com a esperança de ferir seu orgulho— É como uma coçeira inoportuna que, por mais que se coçe, não desaparece.
Dante deixou de esfregar os dedos e se permitiu olhá-la.
— Ainda não me coçou.
Talvez fosse sua imaginação; mas Gianelle tinha a impressão de que o homem ronronava como um enorme leão macho.
— Talvez o faça antes que amanheça, milord — sussurrou, encorajada pela calidez de seu olhar.
— Pode chamar-me de Dante e, para que saiba, agrada-me que me coçem bem aqui.
Tomou a mão e a colocou debaixo de sua costela, do lado direito.
Gianelle a retirou. Curaria-se sem sua ajuda. Dante começou a observar a disposição da cozinha.
— Alguma vez escutou Dermott, ou seu irmão, falarem sobre Hereward the Wake?
— Hereward… o que? — Ela olhava suas costas, enquanto ele pegava uma jarra. Maeve e as outras morreriam se soubessem da atenção com que Gianelle observava como a luz das velas refletia sobre a escura cabeleira que coroava esse soberbo peito.
— The Wake — repetiu Dante. Abriu um dos frascos e mostrou a ela —. Foi isto que colocou na bebida do barão Landry?
Gianelle abriu a boca, disposta a negar pela última vez. Mas havia algo na despreocupação de sua pergunta, uma certa desenvoltura em seu olhar, que dizia que não fazia sentido mentir. Por que teria que fazê-lo? Ele tinha descoberto sua tentativa de fuga, mas não a tinha delatado, para que a castigassem. Embora soubesse que era arriscado confiar nele, até o momento não tinha lhe dado motivos para deixar de fazê-lo. De fato, era o primeiro homem que tinha feito perguntas, sem responder aos gritos diante de suas respostas, mesmo que não fossem respeitosas. Era o primeiro nobre que não só lhe permitia olhá-lo nos olhos, mas parecia desfrutar de que o fizesse. Por mais desatinada que fosse a idéia, isso dava a Gia uma sensação de igualdade.
— Quer conhecer a verdade sobre o assunto?
— Isso representaria uma verdadeira novidade — brincou Dante, observando como se insinuava um sorriso nos lábios dela.
— Pois, muito bem, milord. Jamais escutei o nome de Hereward the Wake e o que você tem na mão é pimenta.
Dante olhou dentro do jarro, aproximou-o de seu nariz e inalou. Gianelle cobriu a boca, para reprimir uma risada quando ele espirrou, lançando uma nuvem de pimenta sobre ela.
— Oui, é pimenta.
Esfregou os olhos, tapou o frasco e o colocou em seu lugar. Seus dedos se deslocaram em direção a próxima vasilha.
— Canela — disse Gianelle —. Embora Maeve use pouco, porque é cara. O irmão de milord manda vir a casca de um longínquo lugar, cujo nome desconheço.
— A Índia — explicou Dante, com os olhos fixos na especiaria — É curioso que o irmão mais novo de um nobre saxão possa permitir-se tais luxos. — A menos que tivesse encontrado uma forma de conseguir recursos em troca de serviços a respeito dos quais o rei não tem conhecimento —. E isto? — Dante assinalou outro jarro —. Trata-se de outra especiaria estranha?
— Isso é salvia. Posso falar com inteira liberdade, milord?
Um ligeiro sorriso se desenhou sobre seus belos lábios.
— Seria um verdadeiro prazer.
A resposta a surpreendeu e fez com que aumentasse sua confusão. Tinha uma maneira especial de interferir com os pensamentos dos outros e ela se perguntava se o faria com algum propósito concreto.
— Como é possível que saiba de onde vem a canela, mas não seja capaz de identificar um frasco de pimenta?
— Gosto que temperrem o hidromiel com canela, mas não me ocupo de prepará-lo.
— É obvio — sentiu-se uma tola por não ter reparado que, na melhor das hipóteses, nunca tinha visto sua própria cozinha.
— Diga-se de passagem, tem um aspecto irresistível quando te provoco surpresa.
— Você não me provoca nada — apressou-se a responder —. O próximo jarro contém narcisista. Seco e em pó é totalmente insípido, ideal para jogar no vinho de um nobre libertino.
Dante achou divertida a maneira como ela o olhava, ao pronunciar as três últimas palavras.
— E que efeito tem sobre um nobre libertino?
— Produz vômitos — Gianelle aguardou sua reação. Dante encolheu os ombros.
— Desagradável, mas inócuo. O barão Landry fez algo para merecer semelhante tempero em seu vinho?
— Com certeza. — sentiu que os nervos que oprimiam a nuca relaxavam e, de repente, sentiu muito sono. Dante viu-a bocejar e quis sugerir levá-la até sua cama —. Posso fazer uma pergunta, milord?
— Claro que sim — respondeu, contendo o fôlego e fazendo com que a visão dela, deitada e entregue, desaparecesse de sua mente.
— Se eu não merecesse, você bateria em mim?
Num primeiro instante, Dante ficou perplexo. Ele sabia por que tinha feito essa pergunta tão comovedora e o aborrecia pensar que alguém pudesse fazer cair duramente suas mãos sobre um corpo tão frágil e indefeso.
— Non, jamais bateria em você, Gianelle.
Havia calor e ternura em seu olhar quando ela reparou em seus traços varonis, suavizados pela luz das velas.
— Você é uma pessoa pouco comum, lorde Risande.
Ele tomou a mão de Gianelle.
— Pensei o mesmo a respeito de você durante toda a noite.
Merde. Devia beijá-la para não ficar louco.
Um grito penetrante interrompeu seus devaneios.
— Que demônios…!
Escutaram passos e burburinho. O castelo despertava, alertado pelos gritos de uma mulher. Lorde Bryce Dermott tinha morrido. Estava morto, envenenado em seu próprio leito.
Sem tirar os olhos de Gia, Dante soltou a mão e se afastou. O coração de Gia quase parou quando ele voltou-se para olhar sobre o ombro os frascos alinhados em cima da mesa para temperar carne.
Capítulo 4
Em um canto do grande salão tinham sido reunidos os serventes de Devonshire, que trocavam sussurros alarmados. Edgar Dermott os tinha reunido, sem que recebessem outra informação além da que já era de conhecimento geral. Seu senhor tinha sido envenenado. Ao que parecia, lady Genevieve A Salle compartilhava seu leito e, ao despertar, foi quem o encontrou morto.
— Como sabem que foi envenenado? — perguntou Margaret aos que estavam ali reunidos —. Talvez seu coração tenha parado, depois do encontro com a nobre prostituta. Eu a escutei oferecer-se pela segunda vez à lorde Risande. Jogo meu traseiro que qualquer mulher capaz de dar duas trepadas com esse garanhão seria capaz de arrebentar um sapo inflado como nosso amo.
— Gia — perguntou Casey —, acha que é possível que uma mulher mate um homem por obrigá-lo a esforçar-se na cama?
— Não sei — replicou, com indiferença, sem deixar de observar a porta, temendo que Dante aparecesse e a declarasse culpada. Ela tinha observado como ele entrecerrava os olhos, carregados de suspeita, ao contemplar os frascos da estante. Sabendo o que ela tinha feito com a bebida do barão Landry, poderia supor que tivesse envenenado, de igual modo, a seu senhor.
— Gia, agora Edgar Dermott será nosso senhor e já sabemos o quanto é cruel.
Gianelle tocou a mão de sua amiga, para reconfortá-la diante de um pensamento tão aterrador. Ela não padeceria esses sofrimentos: Non, se a sorte a acompanhasse fugiria antes do anoitecer. Permitiu-se condenar Dante de Risande. Se estivesse dormindo, como todos os outros, Casey e ela já se encontrariam na metade do caminho para a Escócia.
Quando a porta se abriu, um silêncio sepulcral reinou no salão. Primeiro, entrou Edgar Dermott, caminhando até o centro do salão. A roupa de dormir estava amarrotada debaixo da calça. Logo, entrou Dante, acompanhado por Balin e sete guardas do castelo. Seus passos ressoavam nos ouvidos de Gianelle. Seus olhares se cruzaram, mas isso não a tranqüilizou.
— Meu irmão foi assassinado — a voz de Edgar Dermott retumbou no meio do silêncio —. Encontramos uma taça de vinho em seu quarto. Quando a deram para um porco, misturada com sua ração, o animal desabou e morreu em pouco tempo.
Alguém lançou um grito abafado, à direita de Gia.
— Suspeito de um de vocês…, e tomarei medidas…
— Já disse, Dermott — ressoou a voz poderosa de Dante, afogando o discurso do outro —, todos os que estão neste castelo são suspeitos, inclusive os senhores e as damas que ainda não foram interrogados.
Dermott não fixou o olhar em Dante, mas fechou os olhos e rilhou os dentes, com impaciência.
— Conde de Risande, você, mais do que ninguém, deveria saber que nenhum nobre seria capaz de cometer semelhante atrocidade.
— Não é assim. A despeito de seus títulos, os homens são capazes de fazer muitas coisas, inclusive trair o seu rei.
— Perdoe-me — disse com uma risada zombeteira —, esqueci que, entre os que me escutam, está o protetor dos servos.
— Você está falando com o emissário do rei e o comandante do exército real.
As palavras de Dante foram ditas com tanta autoridade, que duas das servas presentes fizeram, impensadamente, uma reverência.
As feições de Dermott endureceram. O porco normando tinha envergonhado seu nome, desafiando Bryce diante de seus servos, por nada menos que uma servente. Ambos pagariam por isso. Se Bryce lhe tivesse permitido discipliná-la, Gianelle estaria se arrastando aos seus pés, grávida com seu terceiro bastardo, em lugar de permanecer ali de pé, à espera de que Risande saísse novamente em sua defesa. Bem, essa seria a última noite que alguém o faria. Bryce lhe tinha impedido de castigar à moça e arrastá-la para sua cama somente porque preferia ele mesmo fazê-lo. Agora, seu irmão estava morto e Gianelle lhe pertencia; mas devia enfrentar Risande. Até que ponto estaria disposto a defendê-la, se um mandato do rei o impedisse? Tratava-se de um plano realmente engenhoso. Se ele acusasse Gianelle de assassinato, poderia fazer com ela o que quisesse enquanto durasse a investigação, e ninguém poderia protegê-la, nem sequer esse normando. Edgar só lamentava que Risande não pudesse presenciar o espetáculo.
— Então, na qualidade de emissário do rei — disse com um sorriso ardiloso —, você está a par do que diz a lei. Visto que sou o irmão da vítima, tenho o direito de castigar o assassino. Exijo, formalmente, que não interfira com a aplicação da justiça. Entre estes servos, há um que tirou a vida de meu irmão.
Voltou os olhos para Gianelle:
— Vi seus olhos cheios de ódio, esta noite. Ela gostou quando você humilhou meu irmão. Em duas oportunidades, escutou-a expressar o desejo de que seu senhor morresse, depois de ter sido castigada por insolência. Eu mesmo adoeci por tê-la repreendido. Por Deus, meu irmão não quis escutar minhas advertências a respeito desta traidora.
—Tem provas para sustentar o que está dizendo? — perguntou Dante.
— Eu a conheço; você, não.
Dante lançou um olhar a Gianelle e sorriu. Tinha planos para remediar a situação. Dirigiu-se a Dermott:
— Isso não basta, e já que suas acusações estão apoiadas unicamente em seu orgulho ferido, vou me encarregar de defendê-la.
Dante sabia que estava indo muito longe em sua tentativa de proteger Gianelle. Todos os indícios apontavam para ela. Ele não sabia nada sobre ela, salvo que, a primeira vista, parecia como uma moça completamente dócil e maleável. Entretanto, vingou-se de Landry como uma consumada assassina. Depois, havia se pendurado numa corda, para fugir de um homem a quem certamente temia e odiava. Por que não assegurar-se de que jamais seria apanhada, matando-o? A lógica indicava que o mais provável era que fosse culpada, mas Dante não se importava. Tinha resolvido que ia possuí-la e não permitiria que Edgar Dermott, nem um assassinato, o impedissem. O verme provavelmente estava a par de que a lei insistiria que se fizesse uma investigação do caso, que demoraria muitos meses.
Se Dermot tivesse tempo para solicitar ao rei, Gianelle poderia receber ordens de permanecer onde estava, até que sua inocência fosse provada. Dante não permitiria. Culpada ou não, ele a desejava. Oui, a expressão combativa de seus lábios o excitava ao imaginar que zona de seu corpo poderiam saborear. Era necessário que a tirasse de Devonshire, o quanto antes.
— Sua preocupação para que se faça justiça não será ignorada, Dermott — declarou, com a esperança de que seu plano funcionasse —. Eu me ocuparei pessoalmente de investigar o assassinato. Meu capitão da guarda, sir Balin DeGarge, partirá imediatamente para Graycliff, para convocar doze de meus homens mais ardilosos. Assim que voltar com eles, começaremos a interrogar. Começaremos com os nobres, pois tenho certeza que terão mais pressa para partir de Devonshire.
— Os… — as palavras começaram a se formar nos lábios de Edgar Dermott, mas não se completaram. Sua incompreensão ante o que estava acontecendo logo deu lugar à ira —. Você pretende reter condes, barões e duques, na qualidade de prisioneiros no castelo de meu irmão, até que seu cavalheiro retorne de Dover?
— Não vamos considerá-los prisioneiros. Peça-lhe simplesmente que permaneçam aqui. Somente se negarem-se, os trataremos como prisioneiros.
Dante sabia que se tratava de uma sugestão arriscada. Cada um dos nobres ali presentes se queixaria formalmente ao soberano, por ter sido retido no castelo, assim que lhes fosse permitido partir. Rogou que o irmão de Bryce Dermott compreendesse que a prolongada estadia de tantos convidados acabaria com as reservas financeiras de Devonshire. E se a perda econômica não afetasse, talvez a de sua honra, sim.
— Suponho que, depois de alguns anos, seus pares lhe perdoarão por tê-los considerado assassinos.
— Milord, não está falando a sério. Enviarei uma carta ao rei e…
— Aguardará a resposta — concluiu Dante, falando por ele — Isso deve demorar mais que algumas noites. Se for obrigado a permanecer aqui uma quinzena, aguardando a resposta, que outra coisa posso fazer, se for meu dever?
O pânico sulcou o rosto de Edgar.
— Podemos interrogar às pessoas de serviço agora, enquanto permitimos que o resto vá embora. Quando aparecerem seus homens, terão tempo para prosseguir os interrogatórios nos castelos dos lordes.
Dante pensou por um instante, e sacudiu a cabeça.
— Non. Viajaríamos durante muitos meses; talvez demorasse um ano para encontrar o assassino. Você certamente não iria deixar passar tanto tempo sem pegar o patife, para colocá-lo a disposição da justiça.
— Você faria tudo isto só para proteger uma assassina? — Dermott falava entre dentes, de tanto que apertava a mandíbula —. Não permitirei que manche meu nome, nem que me leve à ruína, porque você insiste em…
— Não tenha tanta certeza de que se trata de uma assassina. Mas a investigação poderia acabar logo. A primeira coisa que devemos fazer é determinar quem se beneficiaria com a morte de seu irmão. Você tem intenção de dirigir-se ao rei Guillermo para solicitar que o nomeie lorde de Devonshire, não é verdade?
— Este é um crime por vingança, não para obter vantagens — esclareceu Edgar, ao compreender a tácita ameaça de Dante.
— Trata-se de algo que falta esclarecer — retrucou Dante. Voltou-se para observar os serventes — Vou cuidar para que todos sejam tratados equitativamente, sem importar quanto demore. Aguardam-nos dias difíceis.
Atravessou o salão, quando a voz de Dermott o deteve. Antes de voltar-se para ele, Dante deixou escapar um bufar.
— Lorde Risande, valorizo seu empenho para levar… — seus lábios se esticaram, enquanto resistia a reconhecer que tinha sido derrotado — o assassino de meu irmão perante a justiça. Mas deve haver outra maneira de fazê-lo.
Dante levou o dedo indicar aos lábios e ficou pensativo.
— Ocorre-me uma idéia: o rei Guillermo estará de volta a Inglaterra dentro de algumas semanas. Quando reunir sua corte, os principais vassalos deverão estar lá. Poderá informar a respeito do acontecido desta noite. Nenhum que seja inocente poderá ofender-se, pois deverá apresentar-se de qualquer maneira. E, certamente, gostarão de colaborar com o esclarecimento do assassinato.
Dermott fixou seu olhar furioso sobre Dante. Sua jogada tinha dado errado, mas já não importava: o comandante do rei tinha decidido que todo mundo permanecesse no lugar. Claro que Dermott poderia ter fingido que aceitava que os setenta nobres ficassem para ver o que Risande faria a seguir. Mas, não sabendo até que ponto o normando estava disposto a forçar as coisas, preferiu dar o braço a torcer. O que mais enfurecia Dermott era que Dante não parecia se importar que seu plano fosse descoberto. O arrogante demônio ficou sorrindo, muito tranqüilo, esperando para ver se Dermott se atrevia a desafiá-lo. Risande não lhe deixava nenhuma alternativa, mas havia um consolo: pela manhã, teria partido e não haveria ninguém para impedir que levasse Gianelle para sua cama.
— Agradeço por ter resolvido este assunto sem promover nenhuma catástrofe, lorde Risande. Mas falta um detalhe. Qual dos servos vai interrogar?
Com um amplo sorriso, Dante se dirigiu aos servos ali reunidos:
— Encarregarei-me disso pela manhã, antes de partir.
— Mas já é quase de dia, milord — observou Maeve.
— É verdade. Então, será agora, e verão como será rápido — Dante confrontou o homem que o olhava com raiva —. Um detalhe mais: Gianelle e Casey virão comigo a Dover.
— Não, não pode fazer isso! Sua inocência não ficou comprovada.
— Se você se negar deixá-las partir, não restará outra alternativa que registrar meu protesto diante do Rei, e asseguro que terá que fazê-lo, de qualquer forma. Acaso vai recusar?
— Venceu hoje, mas voltaremos a nos encontrar — rugiu Dermott — Asseguro.
— Espero que seja muito em breve — disse Dante, fixando seu duro olhar sobre Dermott, enquanto puxava algo de seu bolso —. Não sou ladrão —acrescentou, alcançando-lhe duas moedas de prata, uma por cada uma das mulheres que levava, e abandonou o grande salão.
Gianelle tinha vontade de chorar. Os olhos nublavam, e isso provocava uma profunda indignação. Não tinha chorado desde o dia em que seu pai a abandonou e jurou que nunca voltaria a fazê-lo.
Mas, num mesmo dia, esteve duas vezes a beira das lágrimas, e a culpa era de Dante Risande. A perda de sua liberdade era uma boa razão para chorar, mas a imagem de Dante colocando Edgar Dermott em seu lugar e saber que estava disposto a defendê-la, mesmo achando-a culpada, dava vontade de passar o resto de sua vida cantando ternas canções para o demônio. Certamente, as colocaria em liberdade assim que saíssem de Devonshire. Até se atreveu a imaginar que o “protetor dos servos” as acompanharia onde queriam ir. Mas tinha comprado às duas. Como não chorar? As canções se apagaram em seu coração e seus dentes rilharam, ao sair do salão.
Dante estudava as feições de Gianelle, enquanto permanecia sentada, em silêncio. Ao baixar os olhos, contemplou as dobras de sua saia e seus dedos esfolados, que espremia, nervosamente.
— Você fez?
— Que coisa, milord?
Ele observava atentamente suas mãos.
— Você envenenou Bryce Dermott, Gianelle?
— Eu estava com você, milord.
Dante passou as mãos pelo rosto e tratou de manter a calma. Ela estava esquivando-se da pergunta.
— Acha que não me ocorreu que pode ter cometido o crime antes de sua tentativa de fuga?
— Acho que não tenho idéia do que possa estar passando por sua cabeça.
— Gianelle, estou cansado. É a última pessoa que devo interrogar. Responda-me, para que nós possamos sair daqui, de uma vez.
— Oui, eu também estou cansada, e temo ter esquecido qual é a pergunta.
Foi o que encheu o copo. Dante golpeou suas coxas, enfaticamente, e lançou um palavrão impróprio para ouvidos femininos.
— Olhe para mim — ordenou. Assim fez ela, mas somente por um instante, antes de baixar o olhar, obedientemente.
— O que houve? Acaso evita me olhar nos olhos, para dissimular seu sentimento de culpa?
— Eu não sentiria nenhuma culpa se tivesse assassinado um homem como Bryce Dermott, milord. Esá gritando comigo agora, por que sou sua serva?
Dante não quis que a frustração que sentia fosse percebida em sua voz; mas era muito difícil.
— Você não é minha “serva”!
— Você pagou por mim — insistiu ela —. Ou é sua intenção conceder minha liberdade? E a de Casey?
Disso se tratava! Por fim, compreendeu por que a diabinha se empenhou em fazê-lo enlouquecer. Queria que concedesse sua liberdade. Brevemente, deixou-se tentar e esteve a ponto de fazê-lo. Inclusive pensou em alguns lugares para onde poderia enviá-la e que não corresse perigo. Talvez fazê-la ingressar em um convento, mas era insuportável a idéia de vê-la coberta dos pés a cabeça, vestida de negro. Gostaria muito mais de vê-la estendida em sua cama, sem roupas. Franziu o cenho quando imaginou a diabinha quebrando um vaso contra seu crânio.
— Já falamos sobre isso. Você e Casey não sobreviveriam um só dia desprotegidas. Não posso conceder seu desejo.
— Compreendo milord — sua voz dava a entender o contrário.
—Tem minha palavra de que gozará de plena liberdade para fazer o que quiser no castelo de Graycliff.
— Vou querer partir e não sou livre para fazê-lo.
Dante sentiu vontade de lutar com um guarda, para lhe esmagar o nariz com uma trombada. Não entendia essa mocinha. Sentia-se completamente frustrado. A única coisa que ela queria, desde o primeiro momento, era afastar-se dele; isso constituía um desafio e queria demonstrar que era um homem melhor que seus senhores anteriores.
— Vamos passar o dia viajando. Prefere ficar descansar algumas horas…?
— Non — repôs, depressa —. Desejo partir agora. Quer dizer, se me corresponder tomar a decisão.
— É claro que sim. Por isso perguntei — o tom de aborrecimento em sua voz divertiu Gianelle, mas somente se atreveu a sorrir quando lhe deu as costas. Foi somente pelo que disse, e pelo modo como havia dito que se permitiu aquela insolência. Pela primeira vez, alguém permitia fazer sua vontade.
Uma hora mais tarde, a paciência de Dante foi posta a prova novamente. Estava montado em seu cavalo, aguardando que Gianelle e Casey juntassem seus bens e se despedissem. Finalmente, Gianelle se aproximou e, olhando ao seu redor, perguntou:
— Qual será meu cavalo?
— Este — respondeu Dante e tomou-a pela cintura, deixando-a cair de repente sobre sua montaria. Ela fez uma careta e ajeitou a saia sobre os joelhos, que caiam sobre a garupa do cavalo. Quando Dante tocou as rédeas para empreender a marcha, Gianelle atinou a agarrar-se em seus ombros; como fazia Casey, que ia montada atrás de Balin.
— Está confortável? — inquiriu Dante, quando saíram de Devonshire.
A jovem queria dizer que sua coluna vertebral dava a sensação de estar quebrada como lenha seca, com cada passo que dava o animal. Suas nádegas escorregavam e seus dedos formigavam, com cãibras, de tanto agarrar-se, desesperadamente, aos ombros dele.
— Oui, estou bie… — mal terminou de dizer, quando escorregou e caiu no chão.
— Merde! — Dante proferiu uma maldição e desmontou, com um salto —. Está ferida?
Puxou-a pelo braço e a ajudou a ficar de pé.
— Non. — sacudiu a roupa.
Dante tomou-a pelos ombros, obrigando-a a levantar os olhos.
— Montou alguma vez? — perguntou, com doçura.
— É obvio. Muitas vezes. Bom — adicionou ao ver que ele levantava uma sobrancelha com descrença—, uma vez. E ia amarrada no cavalo, de maneira que não caí.
Balin e Casey se adiantaram. O capitão sacudiu a cabeça ao passar, mas não disse uma só palavra.
— Venha. Vai seguir sentada diante de mim.
Dante montou com um salto e se agachou para erguê-la até seu colo. Ela voltou a queixar-se, porque as coxas de Dante não eram menos duras que a montaria. Acomodou-se como pôde; mas com certa preocupação, pela forma tão colada em que seu traseiro assentava entre as pernas dele.
— Isto é pecaminoso! — protestou, sem negar que ao envolvê-la com seus braços, ao tomar as rédeas, Dante lhe proporcionava uma sensação de grande segurança.
— Só se saltar sobre mim desse modo — sua voz retumbou como um prelúdio de sedução.
Gianelle ficou rígida.
— Quanto tempo demoraremos para chegar a Dover?
— Três dias — Dante sorriu, enquanto tirava um ramo de seu cabelo— Vai gostar do lugar. A brancura dos escarpados ainda me tira o fôlego. — Acreditou escutar da parte dela uma queixa zombadora. Inclinou-se para frente e falou em seu ouvido —. Pode falar com inteira liberdade.
Dante soube que seu próximo pedido seria insensato, mas se sentia invadido pela luxúria, diante desse delicado perfil, emoldurado por sua cabeleira revolta, como ouro.
— E eu gostaria que me olhasse enquanto estamos conversando.
— Já que insiste — disse, voltando o rosto para ele — Você fala com palavras muito sedutoras.
Ele sorriu, e fez com que o coração dela se agitasse.
— Espero que isso tenha sido um elogio.
— Estou segura de que não faltam mulheres para lhe fazerem elogios.
Para proteger-se do esplendor desse olhar insistente, sorriu para Casey, que ia montada ao seu lado, apertando a bochecha contra as costas de Balin. Sua amiga devolveu o sorriso e fechou os olhos.
— Considera-me um libertino, então?
— Isso não é de minha conta. Somente falo pelo que posso observar.
— E o que observa? — Dante estava assombrado de que a indiferença dela o preocupasse.
— Presenciei o encantador momento de sua despedida com lady A Salle. Para uma mulher que acabava de despertar junto a um cadáver, parecia bem recuperada. Lady Humphrey e a filha do duque de Stamford riam sem conseguirem se conter enquanto você se despedia delas. Tem sempre o mesmo efeito sobre as mulheres?
— Sobre todas, menos uma.
Gianelle assentiu, e se voltou para contemplar o bosque no qual estavam a ponto de entrar.
— Uma que tem ainda a cabeça no lugar.
Dante franziu o cenho, voltando o olhar para Balin, quando o escutou rir baixo.
— Preste atenção em Casey — ordenou —. Está dormindo e a ponto de cair do cavalo.
Balin diminuiu a marcha e, com a mão por trás do corpo, ocupou-se de acomodá-la, enquanto Dante esporeava seu garanhão.
Gianelle reagiu ante a velocidade agarrando-se a ele. Mas, com o vento no rosto, sentiu que estava voando. Estreitada contra seu peito e aconchegada firmemente entre seus braços, relaxou e acabou por fechar os olhos, quando chegaram ao bosque.
— Desta vez — murmurou, ao perceber que estava adormecendo —, estou preparada.
Sua mão caiu sobre a coxa de Dante e sua cabeça repousou sobre seu braço.
Capítulo 5
Muito a seu pesar, Dante aproveitou que havia adormecido, para afastar a mão que ela colocou sobre a coxa e apalpá-la. Soltou uma maldição, ao perceber uma adaga oculta ali.
— O que está fazendo, safado, enquanto ela dorme? — reprovou Balin.
— Tem uma adaga, Balin — sussurrou — Acha que sou capaz de tocá-la, enquanto dorme?
— A verdade: já não sei o que se pode esperar de ti.
— O que significa isso? E, por favor, afaste os olhos, enquanto tiro a faca.
— Está cravando em seu coração, pelo que vejo — opinou Balin, fixando o olhar no bosque.
— De maneira nenhuma — repôs o jovem, enquanto levantava a saia, acima do joelho.
— Acha que assassinou lorde Dermott e, em vez de capturá-la, está oferecendo um refúgio em Graycliff.
— Depois dos interrogatórios, estou convencido de que ela não o assassinou.
A visão de sua coxa bem torneada conteve o fôlego, turbado pela emoção.
— Por acaso ela negou?
Dante esquadrinhou o rosto da moça adormecida e acabou franzindo o cenho.
— Non. Mas me distraiu bastante.
Maldição, nem sequer tinha percebido, até esse instante. Extraiu a adaga, que era, na realidade, uma pequena faca de cozinha, de sua capa, que ela prendeu a sua perna, e baixou novamente o vestido.
— Você não permite que nada te distraia. Na realidade, não te importa se ela é culpada, não é?
— Não muito.
— Mas por que trazê-la para casa?
— Porque Dermott a teria pendurado na árvore mais alta, sem incomodar-se em fazer uma só pergunta. Por que pensa que reuniu os servos no salão? Ele desejava terminar com este assunto ingrato o quanto antes. Não tinha nenhum interesse em interrogar os nobres hóspedes de seu irmão. E Gianelle era uma presa fácil. Ele queria acusá-la, para vingar-se da humilhação que eu tinha exposto seu irmão. Eu não podia deixá-la em suas mãos.
Dante não podia explicar que não podia deixá-la ali, porque algo nela o atraía como a canção de uma sereia. Agora mesmo, seu olhar deslizava para esse rosto de lábios tentadores, ligeiramente entreabertos, que tinham lançado mais insultos em uma noite, do que tinha escutado nos últimos cinco anos. Tinha vontade de acariciar seu queixo e perder-se na pureza desses olhos, pelo resto de sua vida.
— Trouxe esta outra por que se parece com Katherine, verdade?
As palavras de Balin o tiraram de seu sonho.
— Oui, foi. Parece muito com ela, mas falta aquela faísca no olhar que tinha minha irmã.
Balin assentiu e lançou um profundo suspiro.
— Temo que estas duas tiveram uma vida muito mais dura que a de qualquer vassalo de Graycliff. Não tenho vontade de passar a vida cuidando delas.
— É brando, mon frère — assinalou Dante.
— Oui, mas sobreviverei, se for o único que souber disso.
Cavalgaram até o anoitecer e finalmente acamparam em uma pequena clareira, nos subúrbios de Hertfordshire. Gianelle e Casey tinham dormido todo o dia, e isso preocupou Dante. Se ele adormecesse, ela aproveitaria a oportunidade para fugir. Considerou amarrá-la a seu corpo, enquanto a recostava com delicadeza, mas isso a faria sentir-se ainda mais cativa. Dante esfregou os olhos, sabendo que deveria vencer o sono. Não seria a primeira vez que ficaria sem dormir, mas não havia motivo para negar esse luxo a Balin.
— Simone vai se enfurecer quando observar como olha Gianelle.
— Simone já não é minha amante. Sabe que faz mais de um ano que não compartilha meu leito.
— Não porque ela não queira.
— Cansou-me com suas manipulações.
— Oui, cansou-se dela, como cansa de todas. E desta também. — Balin passou a mão pela barba e fez um gesto em direção a Gianelle — O que acontecerá se partir seu coração? Não seria a primeira vez.
Dante quis protestar, mas se conteve, ao perceber que Balin tinha razão.
Ao cabo de uns minutos, a respiração de Balin se tornou mais pausada, transformada em um sereno ronco, e Dante ficou sentado, contemplando as chamas. Pensava nas palavras de seu capitão. Não queria partir o coração de Gianelle, nem quis machucar nenhuma das mulheres com quem tinha estado. Muitas delas, como Simone, tinham outros amantes, e não ficavam desconsoladas. Era inconcebível que Gianelle sofresse por sua causa: nem sequer lhe agradava, e, além disso, parecia que o considerava irritante. Que coisa tão terrível tinha feito? Era tão diabólico querer protegê-la de um mundo que ela não conhecia? Merde, nem sequer sabia montar. Então, lançou-lhe um olhar e notou que seus olhos se fecharam de repente.
— Sei que está acordada. Surpreendi você me observando, fée.
Ao diabo com excelente sua visão! Gianelle deixou escapar um suspiro de exasperação, mas manteve os olhos fechados.
— Estava descarregando a raiva através do olhar. Ora, observando!
Ele riu brandamente.
— O que fiz agora, para que se zangasse comigo durante o sono? Estava sonhando comigo, por acaso?
— Certamente que não — e, ao dizê-lo, impacientou-se por haver-se deixado apanhar outra vez. Tinha escutado a conversa com Balin e a última coisa que precisava o sedutor Dante Risande era acreditar que lhe interessava estudar suas feições — É simplesmente seu rosto que me faz ficar com raiva.
— Se insistir em me insultar, eu gostaria que me olhasse nos olhos quando o fizer.
— Não, obrigado — e cruzou de braços, sem levantar-se.
— Do que tem medo?
Abriu os olhos, de repente, desafiando-o com o olhar:
— De nada!
Dante confrontou seu rancor com doçura.
— Alguma vez falou com sinceridade com Bryce ou Edgar Dermott?
— Se me contive, foi para proteger Casey. Eles costumavam me castigar, machucando-a.
Os olhos de Dante resplandeceram como o aço no vermelho vivo, ao refletirem-se nas chamas.
— Agora compreendo por que desejava vê-lo morto.
— Non. Seriamente que não.
Como Dante ficou em silêncio, ela, como resposta, ergueu-se, abraçando seus joelhos.
— Por que me chama de fée?
— Porque tem o aspecto que devem ter as fadas, tão etéreas e pequeninas, cheia de encanto e malícia.
“E você parece um lobo disposto a me comer crua” — pensou Gianelle e perguntou — dormiu um pouco?
— Não ainda.
— Mmmh. — Gianelle voltou a suspirar e tocou a coxa. Ao fazê-lo, seus olhos se arregalaram, com a surpresa —. Você tirou minha faca! Como se atreve?
— Como diz? — desculpou-se e lhe brindou com seu melhor sorriso, que ressaltava aquela covinha que enlouquecia as mulheres.
— Patife!
— Isso é tudo o que vai me dizer?
— Demônio! — chiou. Dante sorriu, com desprezo e Gianelle entrou em erupção — Filho de uma porca resmungona!
— Assim está muito melhor — opinou, com um gesto de dor fingida.
— Você é que tem medo. Você teme que eu fuja. Não se anima a fechar os olhos, porque sabe que não poderá exercer sua autoridade sobre mim.
Casey despertou ao escutar os gritos de sua amiga e quase desmaiou, quando viu a quem eram dirigidos.
— Gianelle, por favor, cale-se. Eu imploro.
Mas a jovem não ouviu. Apenas se ouvia. Isto era algo que queria fazer há anos, e agora que tinha começado, não podia parar.
— Eu lambi seu bolo de maçã. Oui, e não só o seu, mas o de todos.
Dante encolheu os ombros.
— Eu não comi bolo. Agora penso que teria gostado de fazê-lo.
— Por favor, não bata nela, milord — rogou Casey.
— Não tenho a menor intenção de bater em nenhuma de vocês duas, jamais — assegurou — Só estou esperando que acabe com seu discurso.
— Já acabei! — uivou e se deixou cair.
— Sente-se melhor agora? — Dante falava com ternura, porque sabia que ela precisava ter certeza que nunca bateria nela e acreditou tê-lo demonstrado.
— Oui, muito.
— Chora? — escutou com atenção os soluços abafados e estava para aproximar-se para reconfortá-la, quando Casey interveio:
— Gia nunca chora milord.
— Graças a Deus — declarou Dante. Os gritos eram suportáveis, mas as lágrimas seriam um assunto diferente.
Ouviu farfalhar um ramo na penumbra do arvoredo e Dante se levantou com um salto.
— O que foi isso? — Gianelle se ergueu e secou os olhos com o dorso da mão.
Dante fez gestos para que se calasse e ficou olhando, sem pestanejar, as árvores, à esquerda.
— Casey — sussurrou —, acorde Balin sem fazer ruído.
Casey se aproximou do capitão, que dormia, e o sacudiu, até que abriu os olhos.
— Esconda-as — indicou Dante —. Saiam e não se afaste delas.
Balin puxou Gianelle e Casey, quando surgiu do bosque um grupo de homens. Gianelle se deteve e lutou até soltar-se. Aterrada, observou como Dante desembainhava a espada sem perder a calma e defendia-se. A jovem quando Balin puxou-a pelo braço de novo e o encarou, dizendo:
—Ele está sozinho; não vai ajudá-lo?
Balin sacudiu a cabeça e a arrastou, junto com Casey, para trás de uma imensa rocha, de onde se observava o descampado.
Gianelle já tinha visto como um homem morria pela ação da espada; quando Edgar Dermott atacou um homem por trás. Foi uma ação própria de um covarde, com certeza. O que se desenvolvia diante de seus olhos agora era algo completamente diferente. Dois dos sete homens que atacaram Dante estavam mortos antes que ela pudesse observar a cena. Os cinco homens restantes rodeavam o conde, brandindo suas espadas, mas o temor de Gianelle tinha desaparecido. À luz da fogueira, Dante segurava, com ambas as mãos, sua enorme espada, imóvel, salvo por uma contração muscular ameaçadora. Rodeava-o uma aura de confiança em si mesmo que mostrava absoluta certeza em relação ao resultado do combate, para o qual contava com sua destreza e seu devastador poder físico. Um dos atacantes, a sua esquerda, fez um leve movimento, involuntário. Dante inclinou a cabeça e preparou o golpe, lançando-o para a direita. Assim morreu o terceiro homem, sem atinar a mover-se. Assim acabou com um após outro dos rivais, atacando-os com a precisão de um experiente assassino.
Gianelle queria afastar os olhos, mas a magia e a beleza de Dante em plena ação a subjugavam. Lançava estocadas e interrompia os embates harmoniosamente e sem grande esforço. Assim matou os outros dois. Sua espada resplandecia a luz da lua, como se dançasse em suas mãos. O sangue de sua sexta vítima salpicou-lhe a bochecha. Um golpe lançado de baixo para cima pôs fim à vida do último inimigo.
Fez-se um profundo silêncio, somente interrompido pelos batimentos do coração de Gianelle.
— Não precisou de nenhum tipo de ajuda — sussurrou.
— Non, por certo — coincidiu Balin —. Movam-se, as duas. Dante vai querer saber se não sofreram nenhum tipo de dano.
— Mas se estávamos escondidas…
— De qualquer forma, o bosque é um lugar cheio de perigos. Venham.
Gianelle olhou sobre seu ombro e sentiu um calafrio. Dante tinha dito o mesmo na noite anterior. Ela e Casey não teriam sobrevivido se estivessem sozinhas. Possivelmente Deus tinha escutado as preces de Casey e enviado Dante em seu auxílio, quando frustrou sua fuga do castelo de Devonshire.
— Por que o conde viaja com um só guarda, se sabe que é tão perigoso?
Balin encolheu os ombros e respondeu:
— Não precisa de um exército em seu auxílio.
Disso estava certa. A força física de Dante era descomunal. Ela observou que estava olhando para ela, sobre a fogueira e fixou seus olhos nele. Desta vez foi ele quem baixou os olhos e aproximou-se de seu cavalo. Acariciou as longas crinas negras e depois procurou um trapo no bolso, para limpar o sangue do rosto.
— Dante!
Virou a cabeça e viu seu capitão, que fazia gestos da clareira no bosque.
— As damas dizem que conhecem este homem — anunciou, dando um pontapé em um dos mortos.
— Quem é?
— Vi este homem uma vez, no castelo — reconheceu Gianelle.
— Sim, seu nome é…, ou melhor, era Trevor the Black — sustentou Casey.
— Pertence a guarda de Dermott? — perguntou Dante.
— Non — Gianelle sacudiu a cabeça —. Vinha ocasionalmente visitar. É irmão de sir Conrad Lowell, o emissário de meu senhor falecido.
— Foram enviados por Edgar Dermott — Balin estava furioso — Vamos voltar e matá-lo.
— Non. Falaremos primeiro com Guillermo. Acredito que Dermott é um dos muitos rebeldes que procuramos. Quero que nos leve até Hereward, antes de matá-lo.
— Quem é esse Hereward? Você o mencionou ontem à noite.
— É um saxão que foi enviado ao exílio pelo falecido rei Eduardo — respondeu Dante, enquanto tirava o sangue de sua espada —. Retornou quando Guillermo já tinha sido designado rei. Os normandos se apoderaram das propriedades de seu pai e mataram seu irmão. Desconheço o motivo. Ele se dedicou, então, a cometer atrocidades de todo o tipo, e transformou-se no líder dos saxões rebeldes. No inverno passado, saqueou a abadia de Peterborough; mas quando nós chegamos, já tinha partido sempre atento aos movimentos do rei. Tem espiões ao longo de toda a Inglaterra. É inteligente e um hábil guerreiro. Evita o rei a cada passo e Guillermo deseja terminar com suas aventuras.
— Odeia todos os saxões, milord?
— Só os seguidores de the Wake.
— Porque odeiam o rei? — ela se atreveu a olhá-lo e ele fez menção de negar com a cabeça.
— Non. Porque mataram minha irmã.
Deixaram os corpos dos combatentes mortos entre as cinzas da fogueira e se retiraram do lugar. Gianelle sabia que Dante estava exausto e não havia voltado a falar, depois de referir-se a sua irmã, mantendo-se pensativo durante o resto da viagem. Quando não alardeava suas conquistas como sedutor, dava a impressão de que algo o tornava vulnerável: uma tristeza evidente, que Gianelle sentia que podia compartilhar.
Entretanto, não queria compartilhar nada com ele. Preferia acreditar que era tão frio e cruel como Bryce e Edgar Dermott, mas havia algo nele que permitia ver que era muito diferente de todos os outros homens que tinha conhecido. Foi esta convicção que fez com que decidisse a falar:
— Como morreu? — A pergunta saiu como um imperceptível murmúrio, temerosa de provocar o que Gianelle mais temia: que a paciência Dante acabasse.
Mas ela queria saber, e a gentileza que ele tinha demonstrado até então lhe dava ânimo para perguntar. Ele não respondeu imediatamente, e a jovem fechou os olhos, resignada a suportar provocações, quando Balin lançou um suspiro.
— Ela tinha saído para cavalgar, com dois de meus homens, quando foragidos, seguidores de Hereward, assaltaram-na. Tratava-se de uma vingança contra mim, pelo fato de ter lutado ao lado de Guillermo, em Peterborough.
— Mataram-na no bosque? — Ela adivinhou a resposta, sem necessidade de Dante dizer nada. Isso explicava por que se incomodou em repetir tantas vezes que o bosque era um lugar perigoso —. E você não estava presente.
Ela levantou a cabeça para fixar o olhar nele e viu a tristeza profunda que empanava o brilho de seus olhos.
— Como pode saber que foram os homens de Hereward?
— Porque consegui encontrar seis deles, pouco depois de minha volta a Graycliff, e confessaram, antes de morrer. Não quero continuar falando disto - concluiu com mais tristeza do que ira.
Gianelle concordou e recostou sua cabeça sobre o peito de Dante. Este esticou seu corpo, por um momento, mas logo relaxou.
Ele sussurrou seu nome e tomou algumas mechas de cabelos soltos entre seus dedos, acariciando com eles seu rosto. Sua voz saía forçada, talvez pelo cansaço.
— Milord?
— Está muito magra. Deveria ter arrancado algumas dentadas daqueles bolos, ao invés de lamber somente.
Com isso, a fez sorrir. Oui, Dante Risande era um homem diferente.
Capítulo 6
Que descarado! Até vencido pelo sono, tentava seduzi-la.
À medida que o quente ritmo de sua respiração se fazia sentir no pescoço de Gianelle, e seu corpo relaxou ao envolvê-la, ela se deu conta de seu enorme tamanho e soube que havia adormecido. Sua primeira reação foi afastá-lo com um empurrão, mas não conseguiu movê-lo. Olhou para Balin, com o olhar suplicante, para pedir ajuda; mas o capitão simplesmente tomou as rédeas, assegurando-se que Dante não cairia do cavalo. Seria muito perigoso parar agora, porque talvez houvesse mais bandidos à espreita.
Os homens de Dermott não causavam a menor preocupação em Gianelle. Sentia que escorregava e o considerável peso de Dante acelerava isso, sem dúvida.
— Balin, estou caindo!
— Coloque sua perna do outro lado. Terá mais equilíbrio. Isso, muito bem. Né… baixe a saia sobre os joelhos — devia lembrar disso, quando tentava acomodar-se sobre o cavalo.
Ela franziu o cenho. Quando conseguiu abrir as pernas, concentrou o peso de seu corpo, apoiando suas costas contra o peito de Dante.
— Diabos, como é pesado! — mas fechou a boca e abriu bem os olhos ao sentir que o braço de Dante a envolvia, aproximando sua cintura dele. Ao aproximá-la, ele deu um grunhido de prazer, como se ela fosse seu travesseiro favorito.
A jovem tratou de libertar-se, mas quanto mais se esforçava, mais evidente era o erotismo de sua posição. A palma de uma mão apertou seu ventre; os longos dedos se desdobravam, roçando-a com uma sensualidade desinibida, como se nenhuma roupa resguardasse sua intimidade. Ela quis escapar, incapaz de evitar por completo, o efeito de suas carícias; mas acabou jogando o corpo em cima dele, inclinando-se para frente, para ser esmagada por trás, entre seu peito e a dureza de suas coxas. Depois acomodou a cabeça de maneira que sua boca ficasse apertada contra o pescoço dela.
— Imagino que está sonhando com você — raciocinou Casey, ao ver como Dante se aninhava em seu corpo.
Balin lhe deu uma cotovelada e depois outra, até que Dante reagiu abrindo pesadamente os olhos.
— Está espremendo Gianelle de maneira indecente.
Dante piscou lentamente e se ergueu, arrastando Gianelle consigo.
— Deus! Como é ossuda!
A boca dela se abriu com indignação, mas ele aproximou sua cabeça do ombro de Gianelle, roçando a suavidade de sua bochecha com a aspereza de sua barba de vários dias, e sussurrou:
— Lamento ter machucado você.
A jovem assombrou-se por ele ter se desculpado com ela. Mas, em seguida, ele voltou para sua posição anterior e começou a roncar; de maneira que ela não se atreveu a mover um só músculo.
Logo amanheceu e Gianelle deu graças a Deus, pois, junto com o sol, também se levantou o peso do corpo de Dante, que a afligia.
Ele se esticou comodamente, lançou um amplo sorriso em direção a Casey e Balin e se inclinou, dizendo:
— Já está acordada, fée?
— Non — queixou-se. A dor de seus ossos e músculos maltratados lhe provocava náuseas —. Devo ter morrido durante a noite.
Endireitou as costas e deu um suspiro de alívio ao escutar os pequenos estalos que provocavam seus movimentos.
— Algo para comer te fará sentir-se melhor.
— Há um arroio atrás do prado — indicou Balin com o queixo —. Vamos parar para dar de beber aos cavalos.
Logo que retomaram a marcha, se detiveram a tempo para que Gianelle, decomposta, não vomitasse sobre seu novo senhor. Ele desmontou primeiro e tomou-a pela cintura, para descê-la do cavalo. Quando seus pés tocaram o piso, suas pernas cederam sob o peso de seu corpo maltratado, mas Dante a sustentou antes que caísse.
— Está muito dolorida? — perguntou, com certo pesar e remorso —. Por que demônios foi sentar-se de pernas abertas? Para os que não estão acostumados a cavalgar, essa posição deixa mais doloridos os músculos.
— Odeio você! — Gianelle lançou um olhar fulminante e preferiu sustentar-se contra seu cavalo, antes de recorrer a ele.
— Assim voltamos para ao início.
— Deixe-me em paz, para que possa morrer tranqüila — disse, escondendo o rosto nas crinas do animal. Dante ergueu-a, sem que pudesse opor resistência, e a conduziu em seus braços —. Desça-me — pediu, sem muita convicção, enquanto avançavam para um remanso, junto ao rio.
— Não seja tão obstinada. Quase não pode caminhar.
Teve que reconhecer que ele tinha razão. Estava tão dolorida que até os musculosos braços de Dante a incomodavam com seu contato. Sentou-a junto a Casey e se inclinou para alisar seu cabelo sobre a fronte.
— Isso. Não foi tão ruim, não é?
Estava tão perto que ela poderia beijá-lo ou arrancar seus olhos. Aquela covinha provocante fez com que desejasse fazer as duas coisas.
— Graças a Maeve temos comida suficiente para voltar a Normandía.
Gianelle fechou os olhos, sentindo que adoeceria só de pensar em passar tanto tempo sobre o lombo de um cavalo. Sentiu que alguém sacudia sua manga. Era Casey, que se aproximou para falar em seu ouvido.
— O que houve, Casey? — Dante acomodou-se na grama, junto às moças. Desatou uma das bolsas que Balin tinha tirado dos cavalos, começando a comer — Podem comer o quanto quiserem.
Casey olhou com certo alarme para Gianelle, antes de responder com nervosismo:
— Você é muito amável, milord. Mas temo… parece que terei que…
Dante parou de remexer na bolsa e olhou para ela. Ela baixou os olhos e retorceu os dedos. Dante suspirou, com o desejo de ter arrancado vários dentes ao Bryce, antes que outros fizessem, pelo grau de submissão que exigia de seus servos. Talvez fosse tarde para a vingança; mas não era tarde para restituir a estas mulheres um pouco de dignidade. Tomou um pedaço de pão negro e ofereceu-o.
O pão ficou na frente de Casey. Ela riu, percebendo o bom humor que transparecia nos olhos cinzentos de Dante. Em seguida deixou de preocupar-se e lhe dirigiu um sorriso, que congelou ao sentir que ruborizava.
— Preciso me aliviar.
Dante assinalou um enorme carvalho, a uns poucos metros atrás dela.
— Você também? — a pergunta foi dirigida a Gianelle —. Precisa de ajuda para chegar à árvore?
— Acredito que poderei arrumar-me sozinha. — respondeu brevemente. Entretanto, sua amiga ajudou-a a ficar de pé.
Casey foi para trás da árvore, enquanto Gianelle contemplava o rio, perguntando-se onde desembocaria.
— Acho que lorde Risande gosta de você, Gia.
— Eu diria que gosta de tudo que usa saias — replicou Gianelle, e recordou a conversa entre os homens.
—É muito atraente e atencioso também.
— Mmmh, não é mau.
Gianelle se recostou contra o tronco da árvore e observou Dante, que estava sentado com um braço apoiado sobre sua perna e a outra estendida. Ele tomou uma maçã e riu de algo que Balin disse. Tinha um ar tão despreocupado que Gianelle quase deixou escapar um suspiro de inveja.
— Qual é sua opinião sobre Balin? — Casey apareceu atrás do tronco, arrumando a saia.
Gianelle tinha percebido a preocupação que ele demonstrava pela comodidade dela, na noite anterior, e a admoestação que fez a Dante a respeito dela.
— Será melhor não pensarmos em nenhum dos dois, Casey.
— Por que não?
— Porque teremos desaparecido daqui muito antes de ter tido tempo de consolidar qualquer relação.
— E o que acontece se eu quiser ir para Graycliff, Gia?
— Continuaremos sendo servas. Pagou por nós como se fôssemos ferramentas, Casey. Acaso não quer se sentir livre, sem restrições nem condicionamentos, para fazer o que quiser?
Casey negou com a cabeça, olhando fixamente sua melhor amiga.
— Gia, de onde tira essas idéias? Nascemos nobres ou plebéias. De qualquer forma, somos verdadeiramente livres. Esquece que meu pai era o barão de Colchester, antes de sua morte? Minha mãe não tomava decisões por sua conta, mas sim obedecia as ordens de seu marido. Eu não desejo ser independente. Tenho medo. E me assusta mais ainda pensar que algum dia, devido a suas estranhas opiniões, acabe perdendo a vida.
Os olhos de Casey estavam repletos de lágrimas contidas. Gianelle percebeu que não teria sentido discutir o assunto agora; sua amiga compreenderia depois de umas semanas de repressão e controle sob as ordens de seu novo amo, e ela podia esperar até então.
— Vamos, antes que esses dois acabem com toda a comida.
Uma hora mais tarde, Gianelle gemia de dor. Não tinha comido dessa maneira desde o verão anterior, quando Casey trouxe, às escondidas, meio cordeiro e quatro enormes pedaços de pão de mel, aproveitando a ausência temporária dos senhores. Bryce Dermott era um porco glutão que odiava compartilhar seus mantimentos, quase tanto quanto compartilhar suas mulheres. Mas hoje tinha comido até a indigestão, sob o olhar atento de Dante, com a recomendação de que preenchesse essa pele com algo mais que ossos.
Balin e Casey tinham saído para dar um passeio, e Dante estava agachado junto ao rio, lavando o rosto. Tirou a túnica e soltou o cabelo negro. Gianelle teve que reconhecer o quanto gostava de olhar para ele. Zangou-se consigo mesma, e decidiu que, desse momento em diante, iria ignorá-lo por completo. E se recostou para não se sentir tentada a olhar para ele de novo.
Não tinha calculado que podia adormecer. Sonhou que voava sobre um campo ensolarado e via um imenso lobo negro que saltava sobre suas costas. Curiosamente, seu peso não a curvava, mas seus pulmões se enchiam com um aroma desconhecido e agradável. Sorriu em sonhos e afundou o nariz na camisa de Dante, com as mãos enroscadas sob o queixo. O quente fôlego do lobo, sobre sua cabeça, explodiu em um poderoso ronco.
Despertou. Viu uma ampla superfície de linho branco que esmagava seu nariz. À medida que ia despertando, compreendeu que se tratava do peito de Dante. Aborrecida por ter se colado, sem querer, contra seu corpo, tratou de erguer-se, mas sua longa trança estava presa sob o corpo dele. Tentou libertar-se. Ele virou de costas. Ao fazer um movimento inconsciente com o braço, esteve a ponto de golpeá-la no rosto, antes de deixar o braço cair por cima de sua própria cabeça. Onde diabos estariam Casey e Balin, que não vinham ajudá-la? Deus, Dante era realmente enorme. E como podia conservar esse aroma tão agradável, depois de ter lutado com sete bandidos?
Contra sua vontade, observou-o. Um calor agradável percorreu suas costas, ao pensar que tinha dormido com ele. Perguntou-se se ele teria ficado observando-a enquanto dormia, como indicava a posição na qual estava deitado.
“Basta! — pensou Gianelle —. Ele é meu senhor. É um libertino que utiliza às mulheres para satisfazer seu desejo e logo as descarta. Liberte seu maldito cabelo e afaste-se agora mesmo”.
A trança tinha ficado debaixo do braço dele. Teria que mudar a posição. Tomou o amplo bíceps e rogou que não despertasse, enquanto ela rolava, virtualmente, em cima dele, com a intenção de soltar sua trança. Encontrou-se olhando diretamente no rosto de Dante, com o coração pulsando, enlouquecido. Sem ter outra opção, apertou fortemente suas pálpebras e afastou-se de seu braço.
— O que está fazendo?
Uma voz quase inaudível a surpreendeu de tal modo, que sentiu que seu coração parou. Abriu os olhos, pensando em uma desculpa conveniente, para explicar por que seu rosto estava tão próximo ao dele. Tão próximo que teria sido capaz de contar cada um dos cílios negros que adornavam seus maravilhosos olhos.
Um amplo e sensual sorriso desenhou-se em seus lábios.
— Não deveria esperar que eu adormecesse para se jogar em cima de mim, fée. Eu adoraria participar, se me permitir.
Ela jogou a cabeça para trás, desejando mais do que nunca estar longe de sua pessoa.
— Que estranho! Achei que tinha despertado; mas compreendo que ainda está sonhando. — Gianelle deu um último puxão, enquanto a gargalhada Dante ressoava no descampado.
— Seria muito incômodo soltar meu cabelo, para que possa me levantar?
— Oui, seria — a contemplava com ar divertido. Seus olhos ganharam vida ao pousar nos lábios dela — Mas farei para te evitar a tentação de me dar um beijo.
Ela o olhou com ódio, enquanto observava-o girar o corpo, sem deixar de rir. Assim que levantou-se, teve vontade de chutá-lo antes que Dante dissesse algo mais.
— Aonde vai?
— Devo encontrar Casey.
— Balin a levou ao castelo de um amigo meu, não muito longe daqui. Combinamos de nos encontrar nesse lugar.
— Bem — Gianelle parou e cruzou os braços —, mostre-me a maneira de chegar lá e eu irei a pé.
Começava a gostar de sua recente beligerância, quando Dante estendeu seu braço para ela, e olhou-a de um modo sedutor. Aproximou sua boca da dela e a saboreou, colocando a língua profundamente e colando seus suaves lábios sobre os dele, em um longo beijo que terminou quando Gia sentiu as pernas frouxas. Logo, tomou-a em seus braços, surpreso por sentir-se tão emocionado quanto ela, e a colocou sobre seu cavalo.
Instalada em seu colo, Gianelle agarrou, com ambas as mãos, a mão dele. Segurava-se sem pensar: precisava de um lugar para não cair, nem sair flutuando em uma nuvem. Sua mão era a coisa mais sólida que tinha.
Tinha lhe beijado! Deus, tinha lhe beijado e não se parecia em nada com o beijo que Edgar Dermott tinha roubado. O beijo de Dante era como o vinho, e seu efeito se prolongava, como uma bebedeira. Mas não foi somente o beijo, mas seu olhar, como se ele tivesse o poder de dobrar sua vontade sem esforço. Tenho que reconhecer que se saiu bem. Ela tinha decidido caminhar e ele a deixou tão fraca que nem sequer podia manter-se de pé. Entretanto, podia ter exigido que obedecesse, ou mesmo pegá-la pelos cabelos, pois, no final das contas, era seu senhor e ela lhe pertencia.
Olhou novamente a robusta mandíbula e os lábios tentadores. O que pensaria nesse momento? Talvez estivesse aborrecido. Bom, merecia. Oxalá tivesse ficado aborrecido por beijá-la. Seu olhar caiu sobre seus dedos presos à mão de Dante. A mão com a qual segurava as rédeas era tão bela e forte como ele. Então, soltou-o. Não tinha sentido agarrar-se a algo irreal. Isso tinha lhe ensinado seu pai muito bem.
Ele, por sua vez, fechou os olhos, quando Gianelle afrouxou o fatal apertão de seus dedos. Parecia uma tolice, mas gostava que ela sentisse o desejo, e inclusive a necessidade, de tocá-lo.
— Gianelle, eu…
— Por favor — interrompeu —, nunca deve voltar a me beijar.
Dante contemplou o rígido perfil e os olhos cabisbaixos da moça. Murmurando uma breve maldição, afastou o olhar, para dissimular seu desgosto.
Continuaram em silêncio até parar em um pequeno castelo de pedra e madeira. As velhas tábuas rangeram embaixo dos pesados cascos do cavalo de Dante. O minúsculo pátio interno estava alvoroçado com ruidosos gansos e porcos. Um curtidor amaciava, a marteladas, um couro estendido sobre uma pedra. Interrompeu sua tarefa para levantar uma mão, como saudação. Uma serva, que carregava um balde sob o braço, saudou Dante com um grito, para assombro de Gianelle, e depois atirou um beijo, através do pátio.
— Quem é o senhor deste castelo, que permite que seus servos tomem semelhantes liberdades com seus hóspedes? — perguntou, erguendo uma sobrancelha com curiosidade.
— Sua filha, Brynna, é a mulher de meu irmão. Trata-se de lorde Richard Dumont, conde de Salisbury. E seus servos são livres para fazer o que quiserem, sempre que não faltem com o respeito, é obvio.
Gianelle pensou que essa liberdade incluía meter-se na cama de Dante e não voltou a olhar à prostituta, embora quisesse vê-la cair estatelada, depois de tropeçar em algum frango.
— Estamos em Salisbury agora?
— Non, fée. Salisbury está ainda a quatro dias de viagem. Há alguns anos, o rei deu a lorde Dumont estas terras, e Richard quis conservá-las tal como estavam nos tempos de seus pares saxões.
Não prestou atenção. Tinha avistado Casey e Balin junto a um ancião, que devia ser lorde Dumont, a julgar por sua túnica elegantemente bordada, tecida ao estilo escocês. Os três estavam parados próximos a uma cerca, com o olhar voltado ao que acontecia do outro lado.
Uma espetacular égua branca se equilibrava e corcoveava com suas crinas ao vento, tentando libertar-se de seu cavaleiro, jogando-o, finalmente, a vários metros de distância.
— Por Deus, que formosa! — comentou Dante, enquanto desmontava.
— Dante, seu grande safado! — gritou alegremente o ancião. Gianelle concordava inteiramente com o rótulo escolhido —. Esperava você há um mês — saudou, dando um tapinha em suas costas —. Como está?
— Estou bem — a resposta de Dante era totalmente verdadeira, porque a última vez que tinha visto Richard havia sido meses depois do assassinato de Katherine.
— Ah, essas são boas notícias. Você e seus acompanhantes ficarão para passar a noite.
— Non, Richard, eu quero…
— Está decidido. Fique. Além disso, interessa-me conhecer as últimas novidades sobre Hereward — Richard lhe apertou o braço com força, quando Dante concordou —. E quem é esta moça? — perguntou, indicando Gianelle, que tinha ficado gratamente impressionada pela doçura de seus olhos castanhos e sua cabeleira grisalha, antes de baixar os olhos, com a modéstia correspondente a sua posição.
— Lorde Richard Dumont, permita-me apresentar Gianelle Dejiat.
Richard beijou-lhe a mão, com deliciosa cortesia.
— Encantado.
— Não se engane — preveniu Dante, dando uma piscada de cumplicidade a ela —. Trata-se de uma verdadeira diabinha.
Gianelle respondeu com um olhar assassino e partiu em busca de Casey. Dante riu e, voltou a olhar para a égua, perguntando:
— Onde a conseguiu?
— É um presente de meus amigos turcos. Seu nome é Ayla, que significa “luz da lua”, em seu idioma. É indomável. Nenhum de meus homens conseguiu domá-la. Mesmo assim, não queria me desfazer dela.
— Talvez não tenha outra alternativa além de fazê-lo. — Os olhos de Dante resplandeceram quando, ao aproximar-se do cercado, a égua o encarou, ameaçadora.
— Acha que poderá montá-la? — desafiou-o Richard.
— Oui, acho que sim.
A égua relinchou e ergueu-se nas patas traseiras. Depois, saiu pulando, com as crinas esvoaçando.
“Imbecil arrogante” — pensou Gianelle diante da segurança na voz de Dante. Ela não queria que saísse machucado, mas quase merecia a surra que receberia se tentasse tirar vantagens dessa fêmea.
— Por que acha que poderá montá-la, se ninguém mais conseguiu?
Dante afastou os olhos do animal e esquadrinhou o olhar de Gianelle, como se quisesse adivinhar o que pensava.
— Por que não vou obrigá-la, fée.
— Se conseguir montá-la sem que corcoveie — prometeu Richard —, será sua.
Dante atravessou o cercado, com impaciência.
— Pagarei generosamente — advertiu, falando sobre o ombro.
— Não fique achando que já te pertence, garotinho. Primeiro deverá montá-la — baixou o tom de sua risada e adicionou com voz grave —. Sairá com o traseiro avariado, senhoras. Talvez não seja agradável contemplá-lo.
Casey cobriu os olhos, mas Gianelle sorriu e se dispôs a observar.
Dante aproximou-se com cautela da égua. Esta se deteve e olhou para ele, com os músculos tensos e preparados para entrar em ação. Baixou a cabeça e escoiceou o chão com sua pata dianteira. Gianelle notou como Dante se aproximava para acariciar suas crinas, não para agarrá-la, mas para apaziguá-la. Murmurou umas palavras, mas a jovem não conseguiu escutar. A égua afastou-se, mas a mão de Dante agarrou suas crinas, ao mesmo tempo em que montava, com um salto, sobre o lombo, enquanto a besta lutava. Ele segurou-se, mas não por muito tempo. Duas vezes o derrubou, sem mover-se do lugar, com uns pinotes tão ferozes que Gianelle temeu que o animal acabasse por lançá-lo até a Normandía.
Mas ele se levantava cada vez, resolvido a montar novamente. Apertou suas poderosas pernas contra o corpo do animal e soltou as crinas. Por pouco não foi arremessado longe novamente, mas jogou o corpo para frente, e abraçou o pescoço da égua. A montaria arqueava o lombo, com intenção de desmontar o cavaleiro, mas este resistiu. Gianelle viu que os lábios de Dante moviam-se e imaginou que estaria convencendo à égua de que, sem importar quanto se rebelasse, nunca aplicaria o rigor do látego.
De repente, o animal parou. Virou a cabeça e tentou morder o rosto de Dante. Todos contiveram o fôlego. Casey deu um grito angustiado e tapou os olhos outra vez. Mas o nobre segurou o enorme focinho e a conteve. Deu uma patada mais e depois permitiu que Dante arranhasse, carinhosamente, a potente boca do animal.
— Agora, cavalgue — pediu Richard Dumont, com admiração.
Erguendo-se sobre seu lombo, Dante apertou os estribos contra os flancos e a égua saiu, galopando. Completou uma volta atrás da outra, como se quisesse engolir o ar.
Dante conduziu-a para o cercado e, quando chegou junto a Richard, a fera resfolegou e voltou a dar coices, levantando poeira.
— É incrível! — exclamou lorde Dumont.
Dante estava tão agitado quanto a égua. Enquanto acariciava e falava brandamente com o animal, dirigiu um sorriso a Gianelle, que compreendeu a magia que possuía esse incomparável feiticeiro. Era mais perigosa que qualquer arma. Era sua ternura.
Capítulo 7
Jantaram no salão principal, que tinha aproximadamente a metade do tamanho do salão de Devonshire. O fogo esquentava o ambiente e o tornava acolhedor. Como lorde Dumont não vivia ali de maneira permanente, havia somente uns poucos servos. Gianelle e Casey se dirigiram diretamente à cozinha, mas Dante as deteve e colocou-as na mesa com Balin, Richard e três de seus cavalheiros, que o tinham escoltado desde Salisbury.
Quando a mesa estava posta, Gianelle observou seu prato de codorna assada, enquanto escutava as vozes dos homens, que conversavam animadamente. Ela nunca tinha acompanhado cavalheiros e senhores em uma refeição e ao fazê-lo, agora, sentia-se um pouco desconfortável.
Olhou de soslaio para Casey. Sua amiga era filha de um nobre saxão, cujo castelo foi queimado pelos invasores, e seus pais foram mortos. Casey estava a par das convenções e somente mudou seu estilo de vida há cinco anos, antes que Bryce Dermott a resgatasse entre as ruínas e a incorporasse a seus servos.
— Diga-me, querida, não gosta da comida? — lorde Dumont interrompeu seu diálogo com Dante, ao ver que ela não tinha provado nada.
— Cheira muito bem — sussurrou, baixando a cabeça.
— Nesse caso, seria mais conveniente que a comesse, fée — aconselhou Dante, com uma piscada, quando seus olhares se encontraram —. Seu estômago está roncando.
— Quando visitei o castelo de Warwick — comentou um cavalheiro, sentado à esquerda de Gianelle —, várias damas preferiam que seus acompanhantes levassem a comida à sua boca. Talvez esta dama também deseje.
— Ou talvez não, Frederick — o gesto feroz de Dante sugeriu que cortaria os dedos do cavalheiro que se atrevesse a aproximá-los da boca de Gianelle.
Depois disso, decidiu comer sozinha, tentando não chamar a atenção sobre sua pessoa.
Dante relatou a Richard os detalhes da morte de Bryce Dermott, sem demonstrar a menor emoção. Não fez menção ao barão Landry, nem aos conhecimentos sobre ervas de Gianelle.
— Deixarei nas mãos de Guillermo a investigação em torno dos hóspedes de Dermott.
Richard soltou uma risada, enquanto fincava os dentes na perna de codorna que tinha na mão.
— Isso o agradará.
Da emboscada, e do papel que Edgar Dermott podia ter desempenhado nela, não se falou absolutamente, porque um dos cavalheiros sentados ao redor da mesa estava a serviço do Richard fazia pouco tempo, e era conhecida a modalidade de Hereward, de introduzir espiões entre seus inimigos.
Depois do jantar, uma serva mais velha e roliça acompanhou Gianelle e Casey até o lugar onde dormiriam. Frederick também se retirou e apresentou-se a ocasião para conversar sobre um assunto mais pessoal. Dante soube que seu irmão Brand tinha sido pai pela terceira vez.
— É um varão — proclamou Richard Dumont —. Seu nome é Richard e tem uma voz mais potente que a de seu irmão mais velho.
— Um dado que, sem dúvida, estremecerá Guillermo, quando você contar — Dante riu e, imediatamente, avistou Gianelle, que retornava ao salão, acompanhada por Frederick.
— Com certeza — corroborou o avô orgulhoso —, o segundo filho de Brand e Brynna poderá levar o nome do rei, mas será o terceiro que se tornará o guerreiro mais temível.
— Brand é afortunado, por ter uma esposa que lhe dá… — Dante interrompeu seu discurso, ao notar que a jovem sorria diante de algo que dizia o cavalheiro.
Lorde Dumont seguiu com o olhar mortífero de Dante:
— Pensa conseguir uma esposa?
Dante apertou as mandíbulas.
— Non. A busca de Hereward ocupa todo meu tempo. Não necessito… desculpe-me.
Quando ela ergueu os olhos da mão que seu acompanhante tinha pousado sobre seu braço, viu Dante aproximando-se, rapidamente. Dava a impressão de ser ainda mais alto e corpulento. Puxou-a pela mão e a afastou do outro cavalheiro.
— Acreditei que tinha ido dormir — protestou, enquanto se dirigia para as escadas, arrastando Gianelle.
— Solte-me, por favor — rogou ela, cravando os pés no chão de juncos e tentando soltar a mão.
Dante parou e voltou-se para a jovem com o olhar cintilante. Soltou-a, tal como ela tinha pedido, e se afastou, sem dizer uma palavra.
Que diabos estava acontecendo com ele? Dante passou a mão pelos cabelos, sacudindo a cabeça, em sinal de autocrítica. Merde! Estava com ciúmes! Deu risada, mas se sentia tão aborrecido consigo mesmo, que nada parecia engraçado. Nunca tinha sorrido dessa maneira para ele, e com certeza, não teria pedido a Frederick que a soltasse, se a puxasse pela mão. Diabos! Estaria perdendo o juízo? Quando tinha se importado com assuntos tão frívolos, relacionados com as mulheres? Simone deitava-se com outros homens quando era sua amante, e ele nunca se incomodou com isso. Não conhecia nenhuma mulher que não tivesse aperfeiçoado o sorriso Deus lhe deu e a risada insinuante e jamais tinha se interessado em saber com quem ensaiavam suas artes de sedução. Mas Gianelle não praticava estas artes. Non, ela era séria. Ele era capaz de ler seu pensamento naqueles olhos tão luminosos e expressivos. Voltou a zangar-se, para não sorrir ao pensar nela, e resistiu ao impulso de retornar ao salão, se por acaso ela tivesse retornado para reunir-se com o cavalheiro, ou melhor, com a idéia de fugir com ele. Talvez Balin tivesse razão: Gianelle estava tomando conta de seu coração. Devia pôr fim a isso, antes que a coisa se agravasse. Disse a si mesmo que nunca ficaria satisfeito com uma só mulher e terminou dando um pontapé na porta, que fez tremer as paredes.
Gianelle estava furiosa. Que diabos havia com Dante? Não fazia sentido que ficasse assim somente porque ela encontrou com sir Frederick, ao descer as escadas. A menos que não quisesse que Gia falasse com ninguém, mesmo que fosse por mera cortesia. De maneira que assim seria sua vida.
— O grande miserável! — murmurou — Merece que coloquem brasas ardentes dentro de suas botas.
— Como disse milady?
— Oh, aí está! — Gianelle sorriu à mulher que as tinha acompanhado a seu quarto —. Você partiu tão apressadamente. Parece-me que nos indicou um aposento equivocado.
A mulher a olhou, desconcertada.
— Um aposento equivocado?
— Oui. Você nos conduziu escada acima.
— Pois, sim.
— Bem, mas não somos damas.
— Assim não…?
— Non, somos suas…
— Oh, perDante! — a mulher a interrompeu e bateu ligeiramente na cabeça, culpando-se por sua distração —. O quarto dele é aquele.
Gianelle sentiu-se confusa, até que percebeu o que a mulher quis dizer, e ruborizou.
— Oh, Non! Não é isso.
— Fergie! — escutou-se a voz de lorde Richard, do salão principal—. Onde colocou minha taça de cerveja?
Fergie afastou-se de Gianelle e, recolhendo sua saia, foi ao encontro de seu senhor.
— Está onde a pôs, sobre a mesa.
Gianelle a viu afastar-se e depois observou a escada. Que idéia, que ela desejava compartilhar o quarto com Dante! Claro que, possivelmente Fergie havia escutado pedidos semelhantes outras vezes, em visitas anteriores de Dante.
Ao aproximar-se de sua porta, deteve-se. Não tinha gostado do modo como Dante tinha soltado sua mão, como se fosse um trapo repulsivo e poluído. Acaso tinha culpa de que não houvesse dito com quem podia falar e com quem não? E acaso não tinha insistido em que ela não devia os olhos ao conversar? Isso significava que somente devia olhar para ele? Se fosse assim, teria que lavar seus lençóis no bebedouro dos porcos. Se houvesse porcos no castelo de Graycliff.
Não podia compreender por que o incomodava tanto. Suspeitava que fosse algo parecido ao que tinha acontecido quando pagou por ela. Era bastante simpático, quando queria ser, e havia vezes em que se comportava mais como um amigo que como um senhor. Isso acontecia quando não a olhava como se fosse incapaz de resistir à vontade de deitar-se com ela. Ela precisava saber se seria um tirano, como os Dermott, para poder odiá-lo e empreender sua fuga o quanto antes.
Com o coração batendo enlouquecido em seu peito, acomodou alguns cachos rebeldes atrás da orelha e seguiu, para exigir uma resposta a suas perguntas.
Ergueu a mão, para bater na porta, mas acabou hesitando. Finalmente, depois de uma profunda inalação, decidiu-se.
— Oui?
Gianelle entreabriu a porta quando Dante terminava de tirar a camisa.
— Que surpresa! — exclamou. Estava lá, sem nada além de suas meias de lã e suas botas.
Gianelle arregalou os olhos. Pestanejou e menção de retroceder, mas a risada zombadora dele a deteve. Ela quis rir, para amenizar a importância à situação, mas somente conseguiu tragar uma enorme baforada de ar.
— Eu… eu… — a jovem tinha a boca tão seca que temeu que os lábios ficassem presos. Sentia-se uma idiota por sua gagueira, e mais ainda por ficar com os olhos fixos naqueles braços reluzentes e vigorosos. O pêlo escuro de seu peito, estranhamente moldado refulgia a suave luz das velas que iluminavam o ambiente. Passou a mão pelo estômago firme, depois de muitos anos de batalhas. Gianelle não podia evitar de olhá-lo. Jamais tinha visto um homem em semelhante estado físico.
— E bem? — inquiriu Dante, arqueando uma sobrancelha. Deixou cair sua camisa no chão e observou Gianelle —. Estou cansado e queria terminar de tirar as meias.
Ela reagiu e, recuperando o controle de seus atos, declarou:
— Eu gostaria de saber por que está você tão zangado comigo.
— Ah, sim?
— Oui.
O rigor de seu olhar a perturbava. Esforçava-se para olhar para qualquer lado, para não sentir-se atraída por Dante, com seu rosto sensual, seu corpo musculoso e suas pernas poderosas.
— Sir Frederick foi muito cortês comigo e…
Ela fez silêncio, ao perceber o mau humor dele. Na realidade, tinha um aspecto verdadeiramente sensual, como se nele se resumisse a personificação da potência viril. As velas de cera que rodeavam o quarto acentuavam os contrastes de luz e sombra, e destacavam as formas de seu esplêndido físico.
— Não é permitido que eu fale com outras pessoas? — perguntou ela, depois que passaram alguns segundos sem que ele dissesse nada.
— Pode falar com quem quiser.
Sentou-se em uma cadeira, do lado da lareira, e lutou para tirar uma bota.
— Então, por que se zangou tanto?
Ele preferia sacudi-la, antes de responder com a verdade.
— Não estou zangado — grunhiu —. Vá dormir.
Bufou de indignação contra si mesmo. Não restava a menor duvida de que devia estar mal da cabeça. Ela tinha vindo ao seu quarto, havia uma cama a menos de um metro de distância, e estava dizendo que fosse dormir em outra parte! Tirou a outra bota com um puxão e a jogou contra a parede.
Gianelle não sabia se devia sair correndo ou dar um pontapé na porta, indignada. Não fez nenhuma das duas coisas, e ficou parada. Seus olhos relampejaram quando lhe dirigiu a palavra:
— Não o entendo. Você não perde a calma quando o insulto, mas depois se zanga por menos que nada. Não me afeta sua irritação, mas queria conhecer seus desejos, para não me ver submetida novamente a um senhor que age como um louco furioso.
Dirigiu-lhe um olhar que parecia acariciar seu corpo.
— Meu desejo — respondeu pausadamente, com um sorriso inequívoco e sedutor — é o de me levantar desta cadeira e te beijar até te fazer perder os sentidos. Estou fazendo um grande esforço para evitar isso, pois me pediu isso da última vez que a beijei. Mas, preste atenção, se não sair agora mesmo, minha resolução pode mudar.
— Está bem — Gianelle se sentiu derrotada —. Obrigado por sua explicação.
Ela saiu e Dante atirou-se na cadeira, não sabendo se devia rir ou lançar uma maldição.
Na manhã seguinte, Dante colocou Gianelle sobre a sela de seu garanhão e depois montou a égua branca com um salto, trocou algumas palavras com lorde Dumont, recordando o assunto que tinham tratado no dia anterior. Richard assegurou que se manteria atento a qualquer notícia que tivesse sobre Edgar Dermott.
Gianelle estava para perguntar a Dante o que devia fazer para não cair da sela, quando ele conduziu sua égua inquieta e partiu a galope. Gianelle o insultou em silêncio, enquanto se esforçava para ficar escarranchada sobre o animal. Quando acreditou estar bem sentada, incitou seu cavalo, que saiu disparando. Ela se segurou com tenacidade, resolvida a não cair outra vez. Balin alcançou-a e acalmou o trote do cavalo, tomando entre suas mãos as rédeas, até que partiram lado a lado, em um ritmo mais cometido.
Chegaram a Dover perto do meio-dia. Tinham deixado para trás os bosques, e isso provocou em Gianelle uma sensação de abandono e soliDante. O monte tinha parecido um refúgio acolhedor, com seus altos troncos e as espessas sombras entre as árvores, perfeito para resguardar-se de todo o tipo de assaltantes e foragidos. Ficou olhando as pequenas colinas rochosas e descoloridas, e aspirou um perfume familiar. Era o aroma dele, de seu moreno e atraente senhor. Remexeu-se na sela.
Uma imensa muralha de rocha derrubava sua sombra sobre o caminho, impedindo a passagem do sol e advertindo Gianelle de que sua nova prisão se estenderia além dos muros do castelo. A passagem corria entre paredes verticais, que deixavam ver um fragmento de céu azul, onde revoavam estranhas aves de asas brancas, com pontas negras. Contemplou pensativa esses pássaros, invejando sua liberdade, e se perguntou por que permaneceriam nesta paisagem inóspita, quando tinham perto esses bosques, muito mais formosos. Um momento depois, ao dar a volta sobre uma colina, teve a resposta.
A passagem se abria, como uma imensa cortina, revelando um mundo reluzente e maravilhoso, sob os raios do sol. A luz cintilava como se o manto tempestuoso da água, que se estendia sem fim, estivesse coberto de diamantes. Grandes ondas rolavam do oceano para lançar-se sobre os escarpados e explodiam em uma esteira de espuma.
Gianelle aspirou de forma tão audível que Dante segurou Ayla, para assegurar-se de que havia se machucado. Ela permanecia quieta, contemplando com assombro o mar, com algumas mechas flutuando pela forte brisa. Dante sentiu que seu peito se encolhia ao olhar para ela e lutou contra o efeito que lhe provocava. Mas cada vez a via mais bela, mais desejável.
— Está bem, Gianelle?
Voltou a cabeça para olhar para ele, ainda contendo o fôlego.
— Você vive aqui?
Ele indicou a silhueta de um castelo, no alto do escarpado, envolto em uma bruma prateada.
Ayla pulava impaciente. Com um ruidoso bufar, deu um pequeno pinote. Dante acompanhava seus movimentos. A montaria e o homem pareciam um só ser, tão selvagens e indomáveis como esse lugar.
— Venha — disse Dante. Balin pegou suas rédeas, e Gianelle não teve outra alternativa além de afastar-se desse lugar maravilhoso.
O castelo do Graycliff parecia esculpido nos muitos escarpados que o rodeavam. Suas torres perfuravam as nuvens baixas que avançavam do mar e envolviam o castelo em uma névoa permanente.
Enquanto subiam pelo íngreme atalho, as ondas batiam, como chicotadas, sobre as rochas, mais abaixo. Gianelle teve um impulso inconsciente de chorar ante um quadro tão grandioso e impressionante como esse mar enfurecido. Enquanto subiam, encontravam com gaivotas, atirando-se a superfície do mar, para capturar algum peixe, pronto a chocar-se contra as pedras. Quando o grupo chegou aos portões, Gianelle ainda desfrutava do sonho provocado pela paisagem e o aroma marinhos, que traziam a lembrança do perfume da camisa de Dante, quando ela adormeceu contra seu peito. Tudo nele lembrava Graycliff.
Detiveram-se ao escutar uma voz aguda que vinha do alto da muralha.
— Quem vem? — perguntou uma figura precariamente inclinada sobre o baluarte.
— Eu, pedaço de idiota! Abra o portão — gritou Dante, olhando com impaciência para Balin.
O capitão sacudiu a cabeça e as comissuras de seus lábios esboçaram um sorriso mordaz.
— Já te disse que pusesse fim às penúrias desse velho inepto.
Gianelle estremeceu ante a imponente presença de seu novo lar. As sombras de duas torres caíam sobre o pequeno pátio, onde alguns frangos revoavam ao redor de um porco do tamanho de um pônei. Diferente da paisagem que o rodeava, o castelo aparecia tenebroso, e a jovem compreendeu que seu novo lar, com suas esplêndidas torres e portões de ferro, era inexpugnável. Aqui não haveria maneira de escapar pela janela.
No interior do castelo, a luz do sol derramava-se através de dúzias de janelas sobre o chão de juncos e hortelã, e iluminava os extensos corredores, decorados com tapeçarias multicoloridas e castiçais dourados. Mais de uma dúzia de cavalheiros saudaram Dante, mas para Gianelle pareceu que nenhum se alegrava tanto de vê-lo como as mulheres do castelo.
Não importava que vestissem finos tecidos ou a roupa singela das servas: todas riam e trabalhavam em excesso ansiosas para adulá-lo, antes de recomeçar suas tarefas, e a jovem indicou isso a Casey, com um gesto.
Um ancião desceu pela larga e curvada escada de pedra, esquadrinhando o grupo com olhos entrecerrados, até que reconheceu seu senhor.
— James, como te ocorreu montar guarda? — perguntou Dante, tirando as luvas, enquanto examinava o homenzinho macilento que, por sua vez, esforçava-se para distinguir os presentes, sobrepondo-se a sua escassa visão.
Ao escutar sua voz, orientou-se, dirigindo-se para seu senhor:
— Milord, não podia ficar na cozinha nenhum dia mais. Ingred passa cacarejando rumores dia e noite, e já não agüento mais.
Dante observava o homem, com os olhos faiscantes de bom humor.
— Mas você não vê nada, homem!
— Mas escuto — contrapôs James, erguendo-se orgulhoso —. Tenho o ouvido mais aguçado deste castelo. Escutei que Balin aconselhava-o a me tirar a vida, para me economizar mais sofrimentos.
— A despeito de suas incríveis virtudes, deve deixar a muralha para Roland.
— Está bem — respondeu em tom queixoso —, mas Roland não vê nada de noite, entretanto eu posso escutar como se reproduzem os coelhos na aldeia vizinha.
— Que bom, assim evitaríamos ser atacados por coelhos em pleno ato de reprodução — comentou Balin, divertido, ao abandonar o salão.
— Isso eu também escutei! — gritou James, em direção ao extenso corredor.
Dante fez gestos a um homem corpulento e loiro, que aguardava nas sombras.
— Talard, estas duas damas viverão conosco. Mostre seus quartos e prepare suas banheiras.
Mal olhou para Gianelle e voltou-se para um lacaio que o aguardava, golpeando seu pé sobre o chão e fazendo dançar seus dedos sobre uns pergaminhos que tinha apertados contra o peito.
— Há novidades da parte do rei, Douglan?
Talard tocou levemente o cotovelo de Casey. Seu rosto, habitualmente corado, ficou pálido como o de um morto, quando ela sorriu, e ficou com a sensação de estar vendo um fantasma. Observou Gianelle, com alívio, ao ver que não se parecia com ninguém conhecido, vivo ou morto, e convido-as a acompanhá-lo. Imediatamente, apareceu uma mulher no alto da escadaria.
— Bem-vindo a casa, milord.
Tinha o cabelo negro, e a pele da cor da bainha da espada de Dante. Suas pálpebras estavam pintadas com ouro e, quando fixava os olhos em Dante, abria-os e fechava como um gato que toma sol. Não podia dizer que descesse as escadas caminhando, mas balançando, em um insinuante vaivém, com sua voluptuosa figura mal coberta por vaporosos tecidos. Seus lábios vermelhos expressaram satisfação quando tomou um fio do cabelo de Gianelle, como se a estivesse examinando.
— Onde a encontrou?
Douglan suspirou, vexado, e bateu mais forte com o pé.
— Simone, Gianelle e Casey. — Dante fez as apresentações, fazendo um gesto com os dedos. Douglan puxou seu senhor pela manga e o levou para o lado.
— Talard, por que ainda está aqui?
— Não compreendo porque trouxe estas duas mulheres.
O fornido vassalo aguardava uma explicação, mas tudo o que recebeu de Dante foi um olhar de desaprovação.
— Suponho que costurarão novas vestimentas. Ou farão misturas de ervas. Adestrarão falcões… — pensava em algumas das coisas que estava acostumada a fazer sua irmã. Exceto por ela, nunca tinha se interessado em averiguar de que maneira as mulheres ocupam seu tempo —. Como vou saber, Talard?
— Então, não são servas? — quis assegurar-se Simone.
— Non.
— Concubinas — sugeriu Simone, olhando Talard de maneira cúmplice.
Gianelle e Casey abriram a boca para protestar, mas Dante indicou que fizessem silêncio.
— Não são minhas concubinas — ergueu suas mãos, sem saber como explicar-se, e se voltou para ocupar-se de Douglan —, são simplesmente o que elas quiserem ser.
Capítulo 8
O que elas quiserem ser. Gianelle tentava decifrar o que Dante queria dizer, enquanto Talard as conduzia ao piso superior. O fato de que teriam seus quartos no piso de cima foi uma verdadeira surpresa, porque os servos sempre se acomodavam no primeiro nível. Fergie, a mulher a serviço de lorde Dumont, tinha-as hospedado acima por uma noite, por pura ignorância. Mas aquilo era diferente. Dante havia dito que elas não eram servas! Então, o que eram? Era óbvio que Talard estava tão confuso quanto elas, de modo que não podia esperar que esclarecesse coisas. E Casey estava muito ocupada contemplando os luxos que a rodeavam, para sequer interessar-se por esse assunto. Gianelle viu, por sobre o ombro, a outra mulher que as vinha seguindo pelas escadas.
De modo que esta era Simone. Não parecia uma louca furiosa, como tinha insinuado Balin. Na realidade, dava a sensação de estar tão serena como um lago em um dia sem vento. Qual seria exatamente a função da exótica beldade nesse lugar, se era certo que tinha deixado de ser a amante de Dante? Pelo modo como vestia-se, tampouco a podia tomar por uma serva. Gianelle estava imersa nessas considerações, quando chegaram ao patamar. Seguiram Talard através do corredor iluminado por candelabros de parede, cobertos de cera. Havia numerosas portas, reforçadas com ferro, dos lados do salão. Talard deteve-se diante de uma delas.
Simone parou diante dele, encarando-o:
— Até aqui, é suficiente — indicou a Talard, roçando-lhe o lábio inferior com o polegar. Depois, dedicou-lhe um sorriso tão sedutor que afrouxou os joelhos do homem —. Prepare o banho para as damas e retire-se.
Conduziu Gianelle e Casey até seus aposentos, como se fosse uma perfeita castelã.
Gianelle assombrou-se ao entrar no quarto. Um delicado cortinado de musselina caia de um dossel, montado sobre uma cama suficientemente grande para todo um harém (que é o que lorde Risande provavelmente mantivera). Havia uma cadeira forrada com brocado em frente a uma lareira, em cujo suporte entrecruzava-se um par de espadas; contra a parede, uma ostentosa mesa de nogueira, decorada com belas tapeçarias, em tons de ouro e rubi.
— Acredito que há um engano de parte de quem nos outorgou esse quarto —disse Gianelle a Simone.
— Preferem quartos separados?
— Oh, Non — apressou-se a explicar —. Referia-me ao fato deste quarto ser muito luxuoso.
A voz de Simone tinha uma particular musicalidade, suave e erótica, quando sorria.
— Muito luxuoso para que? — Quando Gianelle baixou os olhos, acrescentou — Já entendi. Vocês são servas.
— Fomos, mas já não somos — corrigiu gentilmente Casey.
Simone voltou-se para Casey e dedicou-lhe um olhar tão negro como o carvão.
— Deve estar disposto a matar por você. Parece muitíssimo com sua irmã. A quem pertenciam vocês duas?
— Lorde Risande não matou Bryce Dermott! — enfatizou Casey, baixando logo seu olhar celeste para o piso, quando Simone deu um passo adiante, com olhos inquisidores.
— Nós somos servas — repetiu Gianelle, para distrair a atenção de Simone, focada em Casey —. Dante foi muito gentil conosco, mas acredito que este quarto é muito…
— Dante? — repetiu Simone, inclinando a cabeça e observando Gianelle sobre outro ponto de vista —. Já vejo. Pois você não é a primeira serva com quem ele se entreteve e tampouco será a última.
— Eu não sou…
A porta abriu-se e apareceu Talard, seguido por uma fileira de servos que levavam uma grande bandeja e uma dúzia de baldes de água quente. Simone deslizou seu braço nu por entre os de Talard, sussurrou-lhe algo no ouvido, e abandonou o quarto.
Gianelle a viu partir e chutou o chão, chateada. Não queria que Simone pensasse que ela era a amante de Dante, mas deu pouca importância ao assunto, ao cruzar seu olhar com o de Casey, do outro lado da fumegante banheira. Nenhuma das duas jovens cabia em si de prazer, maravilhadas com tanto luxo.
— Por favor, faça chegar à lorde Risande nosso mais profundo agradecimento por nos ter proporcionado um quarto tão belo — pediu Casey. Talard respondeu com um movimento de cabeça e mal esperou que saíssem os servos que tinham carregado os baldes e a banheira, antes de fechar a porta.
Quando ficaram sozinhas, deram as mãos, subiram com um salto sobre os deliciosos colchões de pluma, e festejaram, dando gritinhos de felicidade e prazer.
Um golpe na porta as trouxe de volta à realidade. Esperaram que a porta se abrisse, mas, quando repetiu-se o golpe, Casey disse a Gia:
— Esperam nossa autorização para entrar.
— Oh! — respondeu, deixando escapar uma risada, pois essa seria outra mudança ao que deviam ir-se acostumando, e gritou —: Entre!
A porta se abriu e apareceu uma mulher que, certamente, não era uma serva. Provavelmente, fosse outra das favoritas de Dante; Gianelle percebeu, decepcionada, que sentia-se incomodada diante dessa idéia. A mulher era formosa, não muito maior que Casey e ela, e tinha o cabelo loiro e os olhos azuis. Tinha colocado um vestido comprido de lã azul, tão delicado como sua sedosa pele. Carregava nos braços vários vestidos, e disse:
— Encontrei com Dante quando subia aos seus aposentos com Douglan. Pediu-me que trouxesse estes vestidos.
Casey adiantou-se para receber os vestidos. Voltou-se para Gia com os olhos cheios de entusiasmo.
— Eu sou lady Desse, a esposa de sir Malen.
— Oh, sim! — suspirou Gianelle com grande alívio. Mas por que alívio? Para ela, que importava com quem Dante se deitava?
Afastou esse pensamento e ocupou-se em apresentar-se, junto com Casey, diante de lady Desse, a quem também perguntou se os vestidos lhe pertenciam.
— Sim. Acredito que ficarão bem.
Cruzou o quarto e abriu as janelas. Escutou-se o rugido do mar e ela se voltou para as jovens:
— Para você, pode que fiquem um pouco largas. —Sorriu ao olhar para Casey, — E para você, talvez terei que cortar um pouco.
Tocou a bochecha com o dorso da mão, tratando de ocultar sua emoção.
— Não quer sentar-se? Está alterada. Sente-se bem?
— É que você me faz recordar alguém.
— Katherine — sugeriu Casey.
— Assim é. Era mais jovem que você, e eu sentia muito carinho por ela. A morte de Katherine causou muita dor em Graycliff. Quase destruiu Dante.
— Não olha para mim com freqüência — reconheceu Casey.
— Ele não estava aqui para salvá-la — observou Desse —, e não se perdoou.
Gianelle recordou aquela noite em que quis falar com ele a respeito de sua irmã; tinha-lhe parecido muito vulnerável nessa ocasião. Mas o fato de que um guerreiro tão capaz e poderoso se sentisse indefeso diante de seus sentimentos de culpa e dor, tornavam Dante mais autêntico, mais humano.
— Que pena! — Casey suspirou longamente e, não querendo deixar que lady Desse ficasse triste outra vez, decidiu mudar de assunto —: Em troca, adora olhar para Gia todo o tempo — disse, com uma risada, ao perceber o olhar furioso de sua amiga —. Mas ela é extremamente teimosa.
Lady Desse contemplou a jovem com cabelos de ouro, que ruborizava, enquanto resmungava baixinho.
— Bom, talvez uma mulher que não se joga em seus braços seja exatamente do que ele precisa.
Gianelle percebeu o olhar de simpatia de lady Desse, e esteve segura de que seriam amigas.
— A água do banho está esfriando, enquanto estou aqui perdendo tempo. Disse a Talard que prepare mais água para que se banhe depois.
— Obrigado, lady Desse.
— Pode chamar-me de Desse, querida — disse a Gianelle —. Em seguida enviarei minha criada, Nora, para que ajude vocês.
— Poderá arrumar meu cabelo com essas presilhas lindas, como o seu? —perguntou Casey antes que Desse se retirasse.
— É obvio — assentiu, enquanto fechava a porta.
— Oh, Gia! Não te parece maravilhosa?
Gianelle sentou-se na cama e assentiu. Observou o luxo que a rodeava e pensou que fácil seria habituar-se a tudo isso. Pena que não ficaria muito tempo.
O grande salão estava lotado de gente, a maioria pertencente à guarnição de Dante. A fragrância dos juncos sobre piso se misturava com os aromas da cerveja, do vinho doce, do faisão assado, do pão recém assado e do pescado temperado com molho de cogumelos. Os deliciosos aromas atormentaram os sentidos de Gianelle e fizeram com que seu estômago rugisse. Ressoavam sobre os muros as risadas dos comensais, sentados em seis amplas mesas, montadas sobre cavaletes e dispostas em um amplo retângulo. Os faisões eram devorados até os ossos, que eram jogados aos cães. Dúzias de altos candelabros iluminavam o salão e uma imensa lareira esquentava o ambiente. As damas atendiam aos presentes, e algumas, mais elegantes, compartilhavam a mesa com os homens. Simone também estava ali, com a cabeça jogada para trás e rindo provocativamente, entre dois entusiasmados cavalheiros. Casey observou Desse, sentada junto a um homem atraente, de cabelo castanho, e aproximou-se para saudá-la.
Gianelle localizou Dante com o olhar, antes que Talard a escoltasse até seu lugar na mesa. Estava junto à lareira, com uma taça na mão, inclinando a cabeça em direção a uma serva ruiva. Gianelle não pôde deixar de notar como seu cabelo escuro caía ligeiramente sobre seus largos ombros, quando se inclinava. Essa noite ele o usava solto, parecendo ainda mais atraente. Por algo que disse, a prostituta jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada. Ergueu os olhos exatamente no momento em que Gianelle sentava-se e seus olhos brilharam como o aço. Trocou ainda algumas palavras com a ruiva e em seguida dirigiu-se para onde estava Gianelle.
Dante tinha impressionado-a antes, mas agora que o via com suas botas negras cobertas de pó, sobre as meias escuras, que envolviam as coxas maciças como o aço, a espada que pendia de seus quadris e a camisa de linho natural, com largas mangas que deixavam ver seus longos dedos, à medida que se aproximava, arrebatava-lhe o fôlego.
— A cor rubi te cai bem, fée — saudou-a, referindo-se ao vestido que tinha escolhido para essa noite. Queria colocá-la de pé, para poder desfrutar olhando para Gia. Parecia linda mesmo vestida com roupas de trabalhos, mas essa noite sua pequena fada estava particularmente deslumbrante. Usava o cabelo preso, com pentes, escondidos debaixo daslustrosas ondas. Alguns fios soltos caíam sobre suas têmporas e ele sentiu um forte desejo de acariciá-los. O vestido lhe caía muito bem e revelava algumas curvas que Dante não tinha observado, sob a roupa de serviço habitual. A vestimenta rubi era feita de lã ou de linho. Sob a luz mortiça do fogo era impossível de saber, sem apalpá-la; e isso era justamente o que tinha pensado em fazer. O tecido colava-se a seus quadris e seus seios, fazendo com que Dante sentisse o sangue ferver.
— Gostou de seu quarto? — sua voz profunda tinha o efeito mágico de uma carícia.
— É tão grande que quase nos perdemos nele.
Ao erguer os olhos, viu que ele sorria. Ela colocou suas mãos sobre seu colo e ficou olhando para elas.
— Eu deveria estar atendendo as mesas.
— Non — disse, sacudindo a cabeça e aproximando uma cadeira —. Você deve ser atendida. Além disso, eu sou responsável pela segurança de todos em Graycliff. E se estivesse na cozinha, sabe Deus o que poderia colocar nas bebidas!
Ao dizer isso, um sorriso sedutor antecipou-se aos esforços dela para tentar dizer algo em sua defesa.
A presença de Dante a deixava aflita, quando inclinava-se para ela, e seus sentidos se revolucionavam com o aroma selvagem que emanava, envolvendo-a no calor de sua proximidade.
— Parece uma rainha, Gianelle.
Ela sentia-se como se fosse; mas nada disso era real: nem a sala, nem os vestidos, nem a atenção com a qual lhe brindava. Quanto tempo demoraria para perder o interesse e fixar sua atenção em alguma outra coisa? Ela e Casey estariam melhor quando fugissem. Em seguida percebeu que, talvez, Casey não quisesse fugir. Como rechaçar a enorme tentação do luxo, depois de ter dormido, durante anos, sobre um colchonete no chão, atrás da cozinha!
— O que a preocupa, que faz com que fique com esse lindo rosto franzido? —perguntou Dante, aproximando a mão do cabelo da jovem.
Ela se sobressaltou. A expressão de Dante endureceu e, em lugar de tocá-la, levantou mais a mão, para pedir à serva que enchesse sua taça de vinho. Em seguida, apareceu uma bela morena, encheu a taça e se jogou em seu colo.
— Que mais posso lhe oferecer, milord? Algo quente, talvez?
— Traga algo para Gianelle comer, Beth — repôs Dante, empurrando-a, com suavidade, para que ficasse de pé.
Depois de um silêncio incômodo entre os dois, Gianelle o encarou.
— Milord, eu não tive outro dever em minha vida além de servir outros. Não são muitas as coisas que aprendi; mas aprendi a conhecer às pessoas. E vejo que as mulheres o querem.
— Querem — o comentário tinha um tom intencional.
— Não finja. Você sabe tão bem como eu que é um verdadeiro descarado. —Ela estava preparada para deixar a mostra sua irritação; em troca, Dante cruzou os braços, enquanto se remexia em sua cadeira, com os dentes apertados, acumulando raiva —. Você está acostumado a conseguir o que quer — prosseguiu Gianelle, agora mais calma, pois temia que acabasse por zangar-se seriamente —. Estou convencida de que trata sem o menor cuidado todas as mulheres que seduziu, e eu gostaria de saber por que. Mas desculpe. Não me corresponde falar com você dessa forma.
— Por que parar agora, Gianelle? Esteve assinalando meus defeitos desde que nos conhecemos.
— É que são muitos milord.
Ele a observava. O rictus de seus lábios flutuava entre seu orgulho ferido e o bom humor. Por fim, riu e ergueu a taça da mesa, esvaziando-a de um só gole.
— Agora vai se embebedar e ficará de mau humor toda a noite?
— Merde — Dante inclinou-se sobre a mesa e deixou cair sua cabeça entre as mãos —. Acho que eu gostava mais quando não se atrevia a falar.
— É claro que sim. Você prefere segurar no colo uma descerebrada, incapaz de fazer mais do que bater suas pestanas, que a uma mulher que possa questionar sua arrogância.
— Está enganada a meu respeito — Dante ficou de pé e dirigiu-lhe um dos sorrisos com o qual tinha cativado numerosos corações, inclusive o de Gianelle —. E se você conhecer uma mulher capaz de questionar minha arrogância, faça com que venha e demonstrarei isso.
Gianelle mordeu o lábio, quando ele partiu. Mas Beth trazia uma bandeja repleta e fumegante e, no momento, suas maldições foram adiadas. Ao provar o arenque, perguntou-se se era preferível comer esse delicado prato ou dizer a Dante o que pensava dele. Na realidade, não havia dito tudo o que pensava dele. Era melhor que não tivesse mencionado como tinha sido amável com ela e como acelerava seu coração ao ver seu sorriso. Além disso, estava muito agradecida de que lhe permitisse expressar o que pensava.
Quando terminou de jantar, percorreu com os olhos o imenso salão. As paredes de pedra estavam esculpidas com ninfas de seios nus, montadas sobre gigantescos golfinhos. Contemplavam-na dos quatro cantos, como se fossem convergir para onde estava ela.
Casey estava sentada no extremo oposto do salão, rindo com lady Desse. Com seus olhos faiscantes, fez um gesto com a mão para Gianelle, para que se aproximasse. Mas o olhar de Gia voltava-se, contra sua vontade, em direção a Dante.
Estava sentado com Balin e outros homens do outro lado do salão. Escutou com atenção algo que disse Balin, fazendo um gesto de assentimento. Os outros riram e lançavam restos de comida aos cães. Gianelle notou, surpresa, que Talard estava entre eles e que alguns dos muitos servos que tinham conduzido os baldes e a banheira, compartilhavam as mesas com os cavalheiros de Dante. As mulheres riam, enquanto carregavam jarras de cerveja à altura de suas cabeças, para evitar que as arrebatassem. Que diferença do salão de Bryce Dermott! Todo mundo parecia sentir-se a vontade aqui, como se estivessem em sua casa. Até Casey era feliz, como se tivesse encontrado seu lugar entre as risadas dessa gente que se divertia e a aceitava, sem fazer restrições entre nobres e servos.
De repente, Gianelle sentiu-se mais só do que nunca. Qual era o lugar que lhe correspondia aqui? Teria ficado mais feliz servindo: pelo menos, compreenderia o motivo do mal-estar que a consumia. Acariciou o delicado tecido de seu vestido e fechou os olhos. Sentia que desempenhava um papel sobre um cenário, dentro de um sonho extravagante. Esse não era seu lugar, entretanto, não desejava despertar.
— Gianelle, por que está sentada aqui, tão sozinha? — perguntou Desse com doçura.
— É o lugar que Talard me indicou.
— Mas, querida — Desse acomodou-se na cadeira que Dante tinha ocupado antes —, pode sentar onde quiser. Venha, conhecerá meu marido e outros. Também vou chamar Casey — acrescentou, para persuadi-la.
— Non. Acredito que irei para meu quarto.
— Balin me contou que você e Casey foram servas, e que foram muito maltratadas.
— Isso é coisa do passado. Dante… lorde Risande foi mais que amável conosco.
— E também comigo e meu marido. Malen está a seu serviço há mais de dois anos.
Enquanto falava, Desse observou que Gianelle parecia estar esperando a oportunidade para escapar.
— Fique e compartilhe uma taça de vinho comigo — disse, tomando-a pela mão, com um sorriso de satisfação, quando Gianelle aceitou.
Depois da segunda taça, sentia-se muito melhor, rindo como não fazia há anos.
— Por Deus, Casey tem razão — comentou Desse —. É verdade! Dante não para de observá-la.
— É um descarado — resmungou Gianelle.
— Não são todos? — concordou Desse, com um suspiro —. A única diferença é que é mais atraente que os outros.
Voltaram a rir e Desse pediu um pouco mais de vinho.
James se aproximou de Dante e tocou o ombro de seu amo, em um gesto reconfortante.
— O que se pode fazer quando belas jovens se divertem a nossas custas?
— Como disse? — Dante se voltou e deteve o ancião.
— Refiro-me à moça nova e a formosa mulher de sir Malen — James dirigiu seu olhar cego para as mulheres e riu como se soubesse do que se tratava —. Gostam, mas consideram você um depravado. Na realidade, é a moça nova que diz isso.
— É capaz de ouvir o que estão cochichando? — Dante seguiu com o olhar a cena que se desenvolvia. Quando James assentiu, aproximou outra cadeira e ordenou que se sentasse ao seu lado— Diga-me o que dizem.
— Está certo de que deseja saber?
— Diga-me — os lábios de Dante se curvaram em uma careta curiosa.
— Segundo a moça nova, é um porco arrogante e presunçoso, com belos ombros — prestou maior atenção e corrigiu—: Olhos, não ombros.
— Continue.
— Agora, lady Desse está contando sobre sua antiga amante, Bridget — James deu uma palmada na perna —. Lembro dela. Era uma que tinha uns enormes…
— James! — Dante fez um gesto para que se calasse, recordando que havia senhoras a mesa.
— Sinto muito, milord — disse, prestando atenção à conversa das mulheres —. A moça nova suspeita que não satisfaz suas companheiras e é por isso que não ficam contigo.
James lançou um olhar de comiseração para Dante.
— Parece um golpe baixo contra sua dignidade, né?
— Oui. Tem uma língua mais afiada que uma tocha.
— Agora diz que, assim que levar outra mulher para sua cama, estará cheia de formigas, das que ardem ao morder.
— Formigas, é?
Disse isso por ciúmes? Bem, não teria que preocupar-se. Ela era a única mulher que tinha a intenção de levar para sua cama.
— Eu, em seu lugar, tomaria cuidado, milord. Dá a impressão de que você não lhe agrada muito — James olhou a cadeira seu amo; mas este já não estava.
Gianelle olhou desafiante a Dante, à medida que se aproximava sem poder evitar admirá-lo, das botas até o cabelo, que caía sensualmente sobre os ombros.
— Permite-me uma palavra contigo?
— É obvio — respondeu a jovem com um sorriso.
Dante não tinha a intenção de falar com ela ali, diante de centenas de pares de olhos, mas sim lhe propor ir até um local mais isolado. Como seguiu nessa direção imediatamente, não viu que ela tropeçava com a mesa e compartilhava uma risada de incerteza com Desse. Quando chegaram ao lugar escolhido, já tinha recuperado o domínio de seus movimentos e ainda sorria. Quando pareceu que ela simulava tropeçar para cair nos braços dele, Dante começou a saborear seu triunfo.
— Não vai me beijar, não é?
A voz aveludada de Gianelle parecia o ronronar de uma gata. Ele a atraiu para si.
— Eu quero fazer contigo coisas muitíssimo mais íntimas que beijar, fée.
A jovem deixou cair sua cabeça para trás. Dante sentiu como seu corpo se esticava ao aproximar a boca daquele pescoço. Demorou um instante para perceber que ela estava mole. Ao levantar o rosto, alarmou-se.
— Gianelle?
Tinha desmaiado.
Dante lançou uma maldição e a tomou em seus braços. Ao sair do salão, cruzou com Malen, carregando sua mulher no ombro.
— Passaram das medidas, milord — declarou Malen —. Amanhã, vão estar muito mal.
Dante contemplou o formoso rosto de Gianelle. Deveria se incomodar com a mudança brusca em seus planos, mas ela tinha desfrutado de um agradável jantar, e ele se alegrou. Quando chegaram ao quarto dela, depositou-a na cama e se inclinou sobre seu corpo.
— Mulher, você põe a prova meu controle!
Passou o polegar por seu lábio inferior e se limitou a beijá-la, castamente, desejando boa noite.
Capítulo 9
Gianelle pareceu escutar a voz de Casey, que se tornou paulatinamente mais forte, até que teve a impressão de que se transformou em um trovão. Logo, veio o relâmpago: um raio de luz branca que a obrigou a fechar os olhos um instante, depois de tê-los aberto.
— Gia, acorde. É quase meio-dia.
— Não grite, Casey — rogou Gianelle, enjoada até com o timbre de sua própria voz —. Meu Deus! Caí de cabeça pelas escadas?
— Foi à bebida.
— O que? — Gianelle tratou de abrir as pálpebras, mas doíam.
— Pobrezinha. Lorde Risande me preveniu que teria dor de cabeça e, por isso, devia despertar com suavidade.
— Pois faça o que ele disse e pare de gritar.
— Não estou gritando. Bebeu muito vinho com Desse, ontem à noite, e agora o demônio vem cobrar sua dívida. Lembre-se do que nos dizia o capelão, em Devonshire, quando nosso amo se excedia com a bebida. Disse que se tratava de libertinagem e que…
— Casey, por favor — Gianelle enterrou o rosto em seu travesseiro, mas ao mover-se, sentiu-se ainda pior. Devia reconhecer que tinha metido um demônio no estômago, dadas as náuseas que experimentava —. Lembro-me de ter bebido apenas duas taças.
— Ficou como morta. Lorde Risande teve que te carregar e trazer até sua cama.
Ao ver que usava sua camisola, a palidez da jovem se acentuou, fazendo com que se sentisse ainda mais doente.
— Ele me despiu, o muito…?
— Não, fui eu — tranqüilizou. Casey foi até a janela —. Gia — não sabia como dizer, ao prever a desaprovação no olhar de sua amiga —, Gosto de lorde Risande e desejo ficar aqui.
Seu temor se confirmava. Casey estava encantada com a ficção de que viveria entre plumas e roupas finas, comeria sem ter que incomodar-se em preparar sua comida, nem em ter que ir para a cozinha, no meio da noite, para roubar. Gianelle compreendia, mas não estava disposta a deixar-se tentar. Por mais doloroso que fosse para Casey, tinha chegado o momento de dizer.
— Casey, por que imagina que nosso generoso senhor nos deu este magnífico quarto, quando não somos mais que servas?
— Mas não somos servas. Você ouviu quando ele disse a Talard.
— Ele pagou por nós. Por que teria feito, se não quisesse obter algo em troca?
Casey voltou-se para ela, retorcendo seu vestido azul.
— Pareço-me com sua irmã e ele…
— E o que quer de mim? — perguntou Gianelle, com serenidade. Pouco a pouco, ergueu-se até ficar sentada —. Ele acreditou que eu tinha envenenado nosso amo, e mesmo assim me comprou.
— Jamais acreditou isso! — Casey levantou a voz, mas sossegou quando sua amiga fez um gesto de dor —. Gia, você nunca machucaria ninguém. Ele tirou você de Devonshire porque gosta...
— Oui. Agrado-lhe. E nos deu tudo isto para obter meus favores.
— E o que tem isso de mau? Parece-me muito doce e delicado!
— Doce? — Gianelle riu, e tomou a cabeça com as mãos —. Parece doce que queira se meter em minha cama? — Quando sua amiga tentou responder, Gianelle a interrompeu —. Ele está acostumado a conseguir tudo. Viu como habilmente negociou com Edgar Dermott. E como lutou com aqueles homens no bosque. Até a égua selvagem de lorde Dumont foi incapaz de resistir à suavidade de sua mão e de sua voz. Mas eu resisti a seus encantos desde o primeiro momento, e é por isso que estamos aqui, neste belo quarto, e não esfregando pisos. Ele está resolvido a me conquistar, de uma maneira ou de outra.
Casey pegou sua mão e sentou-se junto a ela, na cama.
— Então, permita que te conquiste. Quem sabe Deus não enviou Dante para te fazer conhecer o amor que nega com tanta insistência.
— O amor não tem nada a ver com isto. Quando Dante conseguir o que quer, começará a procurar outra conquista. Compartilhou o leito com Simone e estou plenamente convencida de que essa serva, Beth, também conhece seus carinhos e suas doces promessas, embora ontem à noite quase não prestou atenção nela. Cansa de todas. Escutei isso da boca de Balin.
— Teme que se canse de ti?
— Non, o que temo é que nos tire tudo isto, quando acontecer.
Casey entendeu as palavras de Gianelle. Seus olhos se encheram de lágrimas e apoiou a cabeça no colo de sua amiga.
— Não suportaria. Não quero voltar a ser uma serva.
— Já sei — disse Gianelle, acariciando a cabeça de sua amiga —. É por isso que não podemos permanecer aqui. Acharemos uma felicidade que nos pertença por completo e que ninguém poderá nos tirar.
— Assim será — Casey permitiu que a firmeza de Gianelle a reconfortasse. Como o tinha feito sempre, desde que se conheceram, quando Bryce Dermott a tinha jogado aos pés dos outros servos, e Gianelle tinha cuidado dela, fazendo com que seu pesar se transformasse em esperança —. Acharemos nossa própria felicidade, e nunca nos separaremos — disse, repetindo a primeira promessa que tinha feito a sua amiga. Estava resignada a perder tudo, mas Gianelle se equivocava a respeito de lorde Risande, disso estava certa.
— Milord?
Dante afastou o olhar da janela de seu quarto, onde tinha se perdido na lembrança do olhar e do sorriso sedutor de Gianelle. Sentia necessidade de possui-la, fosse sobre uma mesa, sobre sua cama, ou contra uma parede; dava no mesmo. Ardia por sentir o contato de seus lábios, por submetê-la ao calor de seu corpo. Sacudiu a cabeça, em uma tentativa de afastar esses pensamentos.
— Desculpe, Douglan — disse, retornando aos assuntos que tinham em mãos. Acomodou um maço de pergaminhos sobre a mesa e sentou-se em uma cadeira maciça —. Onde estávamos?
Douglan leu em voz alta o pergaminho que segurava em suas mãos: “Bryce Dermott morreu sem descendência, de maneira que quem mais se beneficia com sua morte é seu irmão, Edgar”.
— Oui — Dante fechou os olhos e levou a mão à fronte —. Na realidade, não encontrei nenhuma evidência, em Devonshire, que apoiasse minhas suspeitas de que Edgar Dermott estivesse vinculado às hostes de Hereward, mas sofremos uma emboscada por parte de alguns de seus homens, em Briarwood Forest. Não ficaram sobreviventes para serem interrogados, mas tenho motivos para acreditar que a ordem foi dada por ele. Despachei sir Thomas o Ágil, com dez de meus homens, a Devonshire, com o propósito de que me mantenham informado a respeito dos movimentos de Dermott”.
A pluma de Douglan ia e vinha. Ao terminar, levantou os olhos e perguntou:
— Isso é tudo?
Dante abriu os olhos, fazendo com que se apagasse de sua mente a imagem de Gianelle.
— Informe que o levante do mês passado, em Kent, foi controlado, com menos perda de vidas que a prevista por ele. “antes de morrer, lorde Evansey nos informou que Hereward estava escondido em Colchester; mas o buscamos durante uma semana, sem êxito. Como os ingleses não simpatizam conosco, não ofereceram ajuda. Aos poucos que o fizeram, concedi uma recompensa e prometi que diria seus nomes a você, sire”.
Depois de um momento, passou ambas as mãos pelo rosto e emitiu um gemido. Acaso havia esquecido algo? Merde, não conseguia pensar com clareza. Não podia tirar a imagem dela da mente.
— Está aborrecido por algum motivo? — perguntou Douglan, solícito, ao perceber o ar pensativo de seu senhor. Depois de quatro anos a serviço do conde de Graycliff, Douglan sabia que não era um homem governado por suas emoções. Somente uma vez, quando encontrou o corpo de sua irmã, deu mostras de estar profundamente afetado —. Trata-se da dama, senhor?
— Non… oui — reconheceu Dante, levantando-se, como se sua cadeira fosse uma armadilha da qual devia escapar. Percorreu o quarto —. Para mim, é um absoluto mistério. Quando sorri, é um anjo caído das nuvens, mas em seguida. Me despreza, rechaçando minhas tentativas de agradá-la. Enche-me de frustração e ao mesmo tempo me…
Os dentes de Dante chiaram, ao recordar como, depois do beijo, ela tinha se agarrado a seu pescoço, durante um longo momento.
De onde estava sentado, Douglan contemplou, assombrado, seu senhor:
— Então, se importa com ela?
Dante parou de caminhar, no meio do quarto, e riu:
— Não diga tolices.
— É obvio. Desculpe-me. Perguntava-me se algum dia decidiria assentar a cabeça, economizando-me a tediosa obrigação de escrever bilhetes de despedida à damas que, provavelmente, nem sabem ler.
— Espero que valorize meu bom humor, Douglan. Não tem idéia do quanto podem ser cruéis os amos com seus servos, quando estes se permitem as liberdades que você toma.
Douglan respondeu, com um amplo sorriso:
— É por isso que todos o amam em Graycliff, milord.
Dante resmungou algo incompreensível e se dirigiu à porta.
— Vou cavalgar.
— E os assuntos do castelo? Devemos tratá-los com os aldeões, para não falar da mortandade dos frangos: nenhum se pode comer. Além disso…
Dante ergueu a mão, pedindo silêncio.
— Depois, por favor. Agora preciso sair.
Douglan acessou, com um gentil sorriso. As coisas seriam a sua maneira, como sempre.
Gianelle desceu para jantar em companhia de Casey, mas duvidava que fosse capaz de comer alguma coisa. Que situação! Por fim, tinha ao seu dispor toda a comida que quisesse e não podia comer. Prometeu-se que jamais voltaria a beber uma gota de vinho.
Seus pensamentos giraram ao redor de seu senhor, a quem não tinha visto todo o dia. Casey disse que ele tinha perguntado por ela pela manhã, mas Gianelle estava dormindo. Um imperceptível sorriso se esboçou em seus lábios ao saber disso. Passar o dia dormindo era um luxo novo para ela. Nunca tinha repousado em linhos tão finos, nem tinha um homem ao qual afligia com recriminações, as quais ele respondia com sorrisos. Era divertido aborrecer Dante. E ele lhe agradava também, por mais que quisesse negar. Conseguia fazê-la sorrir, quando não a fazia perder a paciência com sua arrogância. Não pretendia dominá-la, mas dedicava sorrisos encantadores, ressaltados por essa covinha, e brilhos de cumplicidade ao trocarem olhares, para vencer sua resistência. Fazia com que se sentisse mais viva do que nunca, e isso a preocupava. Se permitisse, ele conseguiria possuí-la, de modo que devia agir com cautela. Se Dante se cansasse dela, tudo mudaria em Graycliff.
Ao aproximar-se do grande salão, os pensamentos de Gianelle voltaram-se para os escarpados e o mar. Parecia estranho que uma paisagem tão selvagem tivesse sobre ela um efeito reconfortante e apaziguador. Olhou ao seu redor, satisfeita com a calma que lhe proporcionava o castelo; mas não poderia ficar sentada tranqüilamente outra noite, meditando sobre a precariedade de sua situação, enquanto tinha o tumultuoso chamado do mar.
Gianelle achou a entrada principal. Saiu de Graycliff e se encontrou rodeada de uma densa névoa, que escondia a luz do sol. A primeira coisa que fez foi respirar fundo, como se quisesse certificar-se dessa nova realidade. O pátio estava deserto, salvo pela presença de um porco e algumas aves. Aproximou-se da torre, rindo alegremente quando os pássaros desdobraram suas asas, procurando refúgio no alto e dando fortes grasnidos. Mas a risada congelou em seu rosto, ao ver que estava na frente da grade que cruzava a ponte.
Ajustando seus dedos aos frios barrotes, observou as nuvens sobre os escarpados. Embora percebesse que o portão estava fechado, jogou-se contra ele, com violência, várias vezes, para desafogar-se. Por fim, desistiu e apoiou a cabeça sobre as grades.
— Pensa fugir outra vez, Gianelle?
Voltou-se rapidamente, com as costas contra a paliçada, e viu Dante, que a observava. Estava reclinado contra o muro do castelo, como uma fera à espreita, com os braços e as pernas cruzados. Seu olhar era sugestivo.
— Saí para caminhar — desculpou-se, enquanto via pela extremidade do olho um cavalheiro, que guardava a égua branca.
— Sozinha?
— Não tenho medo.
— Mas deveria ter. — Seus olhos ardiam sob o cabelo negro. Gianelle sentia que suas flechas prateadas a penetravam, como o raio ao aço, provocando uma comichão sob a pele —. Poderia se perder facilmente, ou morrer, ao cair pelos escarpados — continuou, enquanto se aproximava dela —. É muito ingênua, ma fée.
— Não tanto como você gostaria milord — retrucou ela, retrocedendo, instintivamente, ante sua proximidade.
— Suspeito que o que eu quero te espantaria — olhava-a de cima, moreno e irresistível. O aroma do oceano impregnava sua roupa e seu cabelo. Gianelle imaginava-o montando seu magnífico corcel, rapidamente ao longo da costa, contagiado pelo poder selvagem do vento que soprava do mar.
Então, pensou em Simone, em Beth e até em lady A Salle: cada uma caindo sob o feitiço de sedução de Dante. Afirmou sua decisão de não converter-se na próxima vítima e ergueu seu queixo, em sinal de desafio, consciente do inegável efeito que ele tinha sobre ela, e disse:
— O ingênuo é você, se pensa que estou disposta a me entregar.
A expressão de Dante obscureceu, enquanto deslizava os olhos sobre o rosto da jovem — seus olhos, sua boca, seu queixo desafiante — e sobre seu seio. Ao falar, sua voz áspera e profunda revelava a paixão que Gianelle despertava nele.
— Não desejo que se entregue, mesmo que seus olhos me digam que está disposta a fazê-lo. Quero que venha para mim, por sua própria vontade.
— Deve estar bêbado!
Gianelle tentou girar, para voltar a entrar no castelo, mas ele segurou sua mão, com firmeza e elevou o olhar em direção do guarda.
— Roland, levante a grade!
Soltou a mão de Gianelle e lhe mostrou o caminho para sair do castelo.
Com o olhar desconfiado, Gianelle avançou, seguida por ele.
— O que deseja ver?
Ela sabia que lorde Risande era o único perigo real que a espreitava, embora não tivesse nada a ver com sua segurança física. Não deveria ir a nenhuma parte com ele. Já passava muito tempo pensando nele. Ao vê-lo sentia-se fraca e a ponto de cair em seus braços. A prudência aconselhava a fugir, mas a vastiDante a chamava; então ela olhou nos olhos dele e disse:
—Tudo.
Conduziu-a pela mão, para que não escorregasse — embora o contato com ele a desconcentrasse e tropeçasse ainda mais —, até uma colina, coberta de musgo. Ali, tomou-a pela cintura, elevando-a até um estreito atalho entre as rochas. Chegaram à parte mais elevada do escarpado, respirando profundamente, ante a vista que se abria sobre o mar.
Dante colocou-se ao seu lado e compartilhou com ela o maravilhoso espetáculo:
— Lindo, não é?
— Meu Deus! — para Gianelle faltaram as palavras. Ela tinha queria ver tudo e Dante estava mostrando.
Impressionantes escarpados, brancos e cinzentos, saíam ao encontro de um turbulento e ilimitado mar, banhado pela esplendorosa luz avermelhada do sol, oculto no horizonte. Trinta metros mais abaixo, a maré em ascensão, lançava o fluxo espumante contra o muro de pedra, e logo se elevava no ar. Como música da natureza, o rugido enchia os ouvidos e a alma de Gianelle com sua magia.
— Jamais imaginei que pudesse existir um lugar assim.
Dante voltou-se para ela e observou como a brisa alvoroçava seu cabelo, deixando a descoberto seu perfil.
— Deve ter atravessado o Canal, quando chegou da Normandía.
— Mas não vi nada. Meu pai e eu abandonamos a Normandía numa noite muito escura. Nos escondemos atrás de uns barris que foram a bordo, a caminho de Hastings. E quando tocamos terra… — interrompeu-se. Dante não a tinha obrigado a relatar sua história, mas parecia que, depois de tê-la trazido até esse lugar maravilhoso, merecia que contasse — Meu pai ansiava a liberdade, tanto como eu. Disse que a encontraríamos aqui, na Inglaterra, agora que Guillermo era o rei. Mas nunca imaginei que tivesse a intenção de livrar-se de mim, como se fosse outra de suas posses. Ao descer a terra, deixou-me atrás dos barris e disse que sairia para assegurar-se de que pudéssemos descer do navio, sem correr nenhum perigo. Eu o esperei durante um longo tempo, muito assustada para me mover, sequer. Quando compreendi que não voltaria, armei-me de coragem e decidi sair. Era noite, mas não sei de que dia. O navio tinha chegado avariado a costa e estava rodeado de homens, que gritavam e martelavam. Eu corri, escondida deles, sem que me vissem, e escapei.
Ao seu lado, Dante tentava silenciar as palavras que passavam por sua mente. Somente desejava tomá-la em seus braços para ampará-la, mas estava certo que ela tentaria fugir. Na realidade, tinha fugido toda sua vida. Sentou-se e apoiou os braços sobre os joelhos. Quando Gianelle o acompanhou, um momento depois, ele continuou com o olhar fixo nas escuras águas.
— Gosto daqui — disse ela, seguindo com a vista o ponto que ele olhava.
— Gianelle, o que posso fazer para que queira ficar?
Ela não sabia se era a calidez de seu olhar ou suas palavras que a fizeram sentir que sua resistência cederia, mas uma voz interior a alertou: “Cuidado, Gia! É mais esperto do que imagina”.
— Se eu dissesse que não há nada que você possa fazer, deixaria que eu partisse?
Dante havia se feito a mesma pergunta durante todo o dia, desde que saiu a cavalo pela manhã, e se surpreendeu ao descobrir que faria qualquer coisa para impedir que ela se afastasse de sua vida. Mas não tinha direito de mantê-la cativa, e quanto mais a conhecia, mais queria que gozasse de sua liberdade. Somente desejava que a gozasse junto a ele.
— Oui, fée, deixaria você partir. Você não pertence a ninguém, e ninguém tem o direito de restringir sua liberdade.
Os olhos dela se arregalaram, em sinal de assombro. Sua surpresa fez com que entreabrisse os lábios e Dante sentiu-se tentado a beijá-la.
— Você está dizendo o que realmente sente milord?
Mal se escutava sua voz. Estaria disposto a conceder seu maior desejo, para conquistá-la? Estava tentada a se atirar em seu pescoço, para que pudesse celebrar sua vitória. Mas o que ganharia ele com seu afastamento? Não tinha pedido que fosse à sua cama, antes de partir. Acaso se rendia? Já tinha se cansado dela?
— Se for isso o que deseja meus homens lhe escoltarão.
— E Casey também?
Ele apertou as mandíbulas.
— Sim, se desejar. Meus homens as escoltarão até que tenham saído de Graycliff. Poderão ir ao meu castelo em Norwich. Quase nunca vou a esse lugar, mas vocês estarão seguras lá. Ou poderão acompanhar lorde Dumont em sua próxima viagem a Avarloch. Meu irmão é um senhor justo, e viver em sua aldeia será muito agradável. Mas não deve partir sozinha, Gianelle.
Seu olhar pousou sobre as ondas, banhadas pela luz da lua. Nunca voltaria a ver esse lugar. O fato de que Dante não lhe tivesse dado um lugar em sua aldeia só podia significar que não se interessava em vê-la mais. Que não tinha nenhum interesse nela. Que nem sequer a escoltaria pessoalmente, mas enviaria seus soldados. Não tinha a menor idéia a respeito do por que seu rechaço a tinha golpeado, como uma martelada no coração. Concedia o que ela tinha pedido, e podia dar-se por satisfeita, feliz e triunfante.
— Sairemos pela manhã, então?
Dante ficou de pé e a ajudou a levantar-se.
— Oui, agora mesmo, se desejar.
— Será melhor assim — disse ela, olhando-o furiosa.
— Assim como?
— Tendo sido esquecida antes que você começasse a gostar de mim.
— Esquecida? Que diabos…? — Dante parou, ao compreender o sentido profundo de suas palavras. — Foi o que te fez, não?
— Quem? De que demônios está falando?
— Refiro-me ao seu pai. Abandonou e se esqueceu de você.
— Meu pai não tem nada a ver com isto. Solte-me!
Dante soltou-a e inclinou a cabeça para gravar seu rosto antes que fugisse.
— Lamento — sussurrou. E, seriamente, sentia. Ela o tinha feito compartilhar de sua dor e ele não tinha direito de julgá-la — Perdoe-me, fée.
Gianelle assentiu.
— Devemos retornar.
Sem olhar para ele, pois estava certa de que poderia ler em seus olhos o que sentia seu coração, afastou-se. Imediatamente, olhou para ele.
— Não conheço o caminho.
Dante se aproximou e envolveu a mão com a sua. Antes que descessem, ela se voltou para contemplar a água à luz da lua, pela última vez.
Capítulo 10
Dante ficou um longo tempo com o olhar fixo em sua taça e, de repente, esvaziou-a de um gole. Apertou os dentes e esticou as pernas, para desentorpecer.
— Amanhã vai partir. Casey, provavelmente, vai acompanhá-la.
— E por que permitiu? — Balin olhava a escuriDante através da janela —. Eu tinha pensado em levar Casey à aldeia, amanhã.
Não precisava olhar para saber que Dante estava tão triste quanto ele; o tom de sua voz o delatava.
— O que podia fazer Balin?
— Podia ter pedido que não partisse. É óbvio que não deseja isso.
— O que eu desejo não é o que importa.
Agora, o surpreso era o capitão.
— Eu sabia que tinha chegado ao seu coração.
— Ela merece ser feliz.
— Aqui também pode ser feliz.
— Non, não é assim. Não comigo. Ela precisa de alguém que a queira para sempre e não a deixe nunca. Foi abandonada, e teme que volte a acontecer algo semelhante. Eu poderia derrubar as defesas que erigiu, mas o que seria dela — e ao dizer isso, olhou para Balin — se algum dia a deixasse.
Balin conhecia a habilidade de seu senhor para perceber os sentimentos das pessoas e obter informações a partir de poucas palavras; por esse motivo, o rei o tinha incumbido da busca de Hereward. Não obstante, perguntou a Dante por que não tinha sugerido que permanecessem na aldeia de Dover.
— Porque é possível que alguém — explicou Dante, com o cenho franzido— prometa-lhe essas coisas que ela necessita, e eu prefiro não ver isso acontecer.
Abandonou o local e partiu para seu quarto. Enquanto caminhava, refletiu sobre o que sentiria uma jovem, escondida e em perigo, enquanto esperava a volta de seu pai e protetor, que jamais retornaria. Tinha abandonado sua filha numa ilha estrangeira, no começo de uma guerra sangrenta. Dante desejou que esse pai tivesse encontrado a liberdade que procurava, trespassado na ponta de alguma espada inimiga.
Ingressou em seu quarto e viu a cama vazia. Ricos cortinados de veludo se abriam do dossel, revelando um refúgio acolchoado com plumas de ganso e lençóis suaves.
Seu trono.
Com quantas mulheres se deitou ali? Quantas chegou a conhecer? Quantas esqueceu?
Tirou as botas e a camisa, para aproximar-se da lareira. Recordava o tempo em que seu irmão tinha vivido em Graycliff e Collette de Marson quase o destruiu. Brand se queixava, freqüentemente, porque tinha uma sensação de frio. Dante sentia agora o mesmo frio da soliDante. Fechou os olhos e recordou Gianelle de pé, diante da grade da entrada: os cabelos ao vento, o rosto corado e os olhos da cor do pôr-do-sol. Gostava de observar seu delicado rosto franzido, ao zangar-se quando ele a provocava. E recordava a maneira singular como o sorriso aparecia em seus olhos, enquanto seus lábios permaneciam sérios. De repente, escutou a voz dela do outro lado da porta; apenas um sussurro, incitando alguém para que a seguisse. Dante se aproximou, com o ouvido atento, até que os passos desapareceram. Então, saiu ao corredor.
Ainda se encontrava ali, a alguns passos de distância. Ele a via perfeitamente, porque todas as velas estavam acesas no corredor. Junto a ela, o velho James inclinava a cabeça em direção ao quarto de Dante e perguntava a Gianelle o que estava fazendo e para que tinha pedido que a escoltasse através do castelo.
— Simplesmente desejo saber como chegar de um lugar a outro, James —disse, tomando um candelabro. Dante observou como a chama iluminava seu rosto, por um instante, antes que apagasse as velas com um sopro. James pensou que talvez enxergasse mal, mas seu olfato lhe dizia que estava apagando as velas.
— Você não dirá a Dante o que fiz e eu não contarei que deu estricnina aos frangos.
— Calma, senhorita. Não há motivo para isso. Depressa, vamos sair daqui.
Quando apagou as três últimas, Gianelle e James desceram as escadas sem fazer ruído. Dante se aproximou da parede e pegou uma vela apagada. Por que diabos teria apagado todas as velas? Levou o castiçal a seu quarto, colocou-o sobre a mesa e se perguntou porque Gianelle quis deixar todo o castelo nas trevas.
Então, fixou-se no candelabro e em seus lábios desenhou-se um sorriso.
Na manhã seguinte, Dante cruzou com Balin ao sair de seu quarto. O capitão estava um pouco pálido e sem fôlego.
— Estão aguardando, no pátio, para que as escoltem a Norwich.
— Quem?
— Quem? Casey e Gianelle. Casey está chorando. Acredito que deveria ir ver o que está acontecendo.
Em seguida, chegou Talard, que parou para pegar uma vela da parede. Examinou-a, lançou uma imprecação e sacudiu o cilindro de cera ante os olhos de seu senhor.
— Foram arrancadas todas as velas deste piso. Por todos os Santos! Você teria quebrado o pescoço ao cair pelas escadas na escuriDante, se tivesse saído de seu quarto, ontem à noite.
Dante esboçou um olhar de preocupação e prosseguiu seu caminho escada abaixo.
— Uma brincadeira bastante perigosa — comentou, por sobre seu ombro —. Encontrarei os culpados e os castigarei com severidade.
— Sim, e mande-os para mim, quando tiver terminado com eles — retrucou Talard.
Esforçando-se para acompanhar os passos de Dante, Balin coçou a barba:
— Mas por que alguém arrancaria as velas?
—Pela mesma razão que lambia os bolos e colocava pó no vinho. Está zangada. E não pode mostrar-se zangada porque lhe dei a liberdade que me pediu. — Dante estava louco de vontade de rir. Balin, por fim, compreendeu a que se referia e devolveu o sorriso —. Está furiosa porque a estou enviando para longe daqui.
Fingiu seriedade quando saiu ao pátio. Observou às duas mulheres, paradas em frente ao estábulo: Casey secava as lágrimas com uma parte do pano que tinha entre seus dedos. Gianelle fixava o olhar, sem pestanejar, sobre os escarpados que rodeavam o castelo.
Dante se aproximou, com as mãos para trás.
— Como? Não carregam nenhum tipo de bagagem?
— Nada do que há aqui nos pertence — respondeu Gianelle com firmeza, mas sem olhar para ele.
A primeira vista, notava-se que usavam os mesmos trajes de serva que vestiam quando chegaram.
— Casey, por que está chorando?
Gianelle lhe fez uma advertência com o olhar, mas Casey a ignorou e confessou:
— Estou gostando daqui, milord.
— Eu gosto de tê-las aqui — Dante estava a ponto de sorrir, quando Gianelle soprou e murmurou algo indecifrável —. Desculpe, o que disse? — aproximou-se e se inclinou para ela.
— Nada — ela batia no chão com o pé e fingia interessar-se nas ruidosas aves que sobrevoavam —. O que são? — adicionou, como se não se importasse.
— Gaivotas.
Agradeceu e voltou a concentrar-se nos escarpados. Por nada do mundo olharia para ele. Dante encolheu os ombros e adicionou:
— Pois, bem — as brindou com um formal sorriso de despedida —. Adeus e boa viagem, senhoras — e caminhou de volta ao castelo —. É uma pena, entretanto. Teria preferido que ficassem. — Deixou passar um momento, sentindo que era tão matreiro como sua pequena fada —. E por que não?
Substituindo seu sorriso triunfal por um pesaroso suspiro, voltou até onde se encontravam as jovens.
— Balin desejava levar Casey para conhecer a aldeia. Trata-se de um fiel amigo e me desgosta decepcioná-lo. — Com dissimulação, observou como Gianelle mordia o lábio inferior olhando na direção de Casey —. E eu tinha pensado em te levar ao mar hoje, para ensinar você a nadar.
As mulheres trocaram olhares e Gianelle enterrou a ponta de sua sapatilha na terra.
— Eu também não gosto de desiludir meus amigos. Suponho que um dia mais aqui não será tão desagradável.
Casey se jogou nos braços de sua amiga. Beijou-a na bochecha e correu para Balin.
— Asseguro a você, tinha o humor de um rato pulguento, dos que temos no porão, antes de conhecer Casey — comentou Dante, vendo seu capitão lançar uma gargalhada, por algo que a moça disse.
— E como era você antes da minha chegada?
Ele sorriu e ofereceu-lhe a mão. Ela hesitou um instante, antes de entregar a sua.
— Infelizmente, eu era um encanto.
“E continuava sendo, o grande maldito” — pensou, ao observar como aparecia aquela covinha com cada sorriso. Ela se disse que nada tinha mudado. Partiria no dia seguinte, sem se importar por não voltar a vê-lo. Ele não a retinha e não era isso o que ela desejava?
Levou mais de uma hora para fazer os preparativos para sair de excursão ao mar. Tinha decidido desfrutar plenamente do dia, e para isso devia levar a roupa adequada. Como não tinha idéia do que devia vestir na água, consultou lady Desse.
— Irá com lorde Dante? — perguntou a mulher de sir Malen, sem incomodar-se em dissimular o travesso sorriso que enfeitava seus lábios.
— Oui. E não é preciso que me olhe dessa maneira, Desse. Sou completamente imune aos seus encantos. — Gianelle se expressou com severidade.
— Oh, é obvio! — disse, com aparente arrependimento; mas seu sorriso se consolidou, enquanto se dirigia ao roupeiro —. Só quero te dizer do quanto me alegro de que as tenha convencido a ficar. — Revisou diversas roupas, até que encontrou o que parecia mais indicado para Gianelle.
Ela se adiantou para examinar de perto a regata de grosso tecido de linho, a fim de certificar-se que não ficaria transparente quando estivesse molhada.
— Fica um pouco curto e não tem mangas — queixou-se, apoiando uma mão sobre seu esbelto quadril e assinalando para Desse que a roupa mal passava dos joelhos.
— É justamente o que alguém necessita para mover livremente os braços e as pernas na água. De outro modo, poderia se enroscar com a roupa e necessitar da ajuda de lorde Risande.
— Está bem, vou usar. Mas pode apagar esse sorriso de seu rosto. Não necessitarei que ninguém me resgate.
— É obvio que não.
— Não sou uma idiota e não me arriscarei nas partes profundas.
— Estou certa de que não o fará.
Saiu do quarto; no corredor, voltou a zangar-se ao escutar a risada reprimida de Desse.
Em seu quarto, Gianelle colocou a regata e escovou o cabelo até deixá-lo brilhante. Acomodou-o para que caísse em ondas sobre o ombro. Depois, a visão de suas pernas nuas lhe desagradou. Havia mais carnes à vista que escondida. Com a esperança de que Dante não a considerasse muito atrevida, colcou o vestido e amarrou o manto.
Deixou seu quarto e correu escada abaixo, ansiosa para lançar-se ao mar. Ao correr, caiu nos braços de Dante, que a estreitou, com um sorriso que acelerou seu coração. Depois, pegou sua mão e ambos saíram de Graycliff.
Capítulo 11
Montada atrás de Dante, sobre seu garanhão percorreram a costa até uma praia de areias douradas. Gianelle tirou as sapatilhas e enterrou os pés na areia quente. Observou a maré, enquanto Dante retirava a bolsa com as provisões da sela. Tomou uma baforada de ar salgado, fresca e profunda, sentindo que se purificava interiormente.
Ele parou para olhar para ela. Notou como estava impressionada com a beleza da paisagem e como sua pele se arrepiava, e soube que chegaria a amar essa terra tanto como ele amava, se decidisse ficar.
Isso o fazia feliz. À maioria das mulheres não gostava da desanimada soliDante dos escarpados, nem da rudeza da costa. Ela, que era tão feminina, tinha um espírito selvagem, impaciente por ser libertado.
— É impressionante, verdade? — comentou Dante, com voz baixa e profunda, plena de emoção.
Gianelle o olhou, com um brilho entusiasmado em seus olhos, que causou uma impressão profunda em seu rosto varonil. Teria aberto a boca para dizer que estava de acordo com sua opinião, mas o certo era que os cenários mais belos perdiam seu encanto, quando os comparava com ele. Nem a resplandecente maravilha do mar podia parar seu fôlego como ele. Respirou fundo e viu o tremor de suas mãos, ao pensar que logo Dante se despiria. O que estava acontecendo? Ficaria tão desavergonhada como as moças de Devonshire quando o viram chegar? Por certo a culpa não era toda dela: o homem era a tentação em pessoa, com esses sorrisos insinuantes e suas hábeis carícias.
Para alívio de sua inquietação, Dante tirou uma manta de sua bolsa de couro e a estendeu sobre a areia. Gianelle tinha a esperança de que dormisse ali, com toda sua roupa, mas nem bem ele começou a tirar as calças, não pôde afastar o olhar. Era correto que fosse o senhor desse lugar, pois era tão imponente e poderoso como ele. Como as ondas que banhavam a areia sob seus pés, Dante se aproximava e se afastava, tentando-a; além da aparente inocência dessa brincadeira, havia um perigoso poder de atração. Ele era quente como a areia, sombrio e duro como os escarpados que os rodeavam. Mas, como o mar, podia engoli-la inteira, espremer a vida de seu corpo e deixá-la seca e prostrada.
Ou, ela poderia aprender a nadar.
Com certa apreensão, começou a desfazer os laços de seu casaco. Observou o rugido das ondas e parou diante delas, desafiante, para mostrar sua coragem. Mas ao perceber que Dante tirava a túnica, sua resolução a abandonou, como se diluíam as névoas, banhadas pelo sol. Decidiu não olhá-lo; mas, ao mesmo tempo que formulava a idéia, já estava voltando o olhar em sua direção. Seus dedos tremeram, em plena tarefa de desatar os nós, e ficaram paralisados, quando seus olhos pousaram sobre as costas musculosas dele. Os férreos braços de Dante vibravam sob o sol e, quando se voltou, percebendo o olhar dela sobre ele, sorriu, e Gianelle se sentiu arrastada por esse homem, como se fosse o turbulento mar. Antes que ela pudesse afastar os olhos, terminou de despir-se, até ficar somente com as meias negras que chegavam abaixo dos joelhos.
— Vem?
Percebeu sua voz, profunda e sedutora; mas não pôde reagir. Era encantador, de pé, ali, com o oceano ao fundo. E não pôde fazer nada além de ficar olhando aquelas meias, rodeando suas pernas e seu traseiro maravilhosamente torneado. Ele não a esperou, se meteu na água, como um deus do mar que retorna a sua guarida. Gianelle mordia o lábio, sofrendo por não poder afastar os olhos dele. Dante a assustava mais do que nunca: não porque estivesse tentando obrigá-la, mas sim porque ela temia perder o controle de suas próprias emoções. Até seu corpo tinha começado a desejá-lo. Sentiu o arrebatamento de um raio ardente, que caiu sobre ela, deixando-a sem respiração.
Da água, Dante abria os braços, convidando-a. O vento agitava seus cabelos negros sobre o rosto, e os olhos fixos e ardentes.
— Venha, Gianelle, não tema. Salvarei você se as temíveis ondas chegarem a te arrastar — disse, dando um passo atrás. Estava certo de que o desafio a motivaria. E tinha razão. Sorriu ao ver como a boca dela endurecia, enquanto retomava a tarefa de desatar os laços de sua roupa. Em seguida, esse sorriso desapareceu e lhe faltou o fôlego, quando ela deixou cair suas roupas. Não estava preparado para contemplar tanta nudez e se sentiu esmagado quando essa provocante beleza foi ao seu encontro. Enquanto admirava suas esbeltas pernas e suas curvas, Dante desejou ficar o dia inteiro sentado ali, na borda admirando-a. Era um prazer para seus olhos. Nunca nenhuma mulher tinha feito com que sentisse tanto desejo, como se fosse um garoto, que mal conhecesse a paixão. Amaldiçoou baixinho, mordendo o lábio inferior, enquanto fazia gestos a Gianelle para que se aproximasse mais.
Quando estava ao seu lado, apertou-a contra seu vigoroso peito e com voz sedosa perguntou:
— Tem medo?
Ela queria dizer que não; mas estava tão aturdida, com o ardor que transmitia ao pegar suas mãos e atraí-la para si, que somente atinou a tragar o ar, acompanhado de um gesto afirmativo.
— Você está com medo? Não acredito.
As ondas espumantes salpicaram Gianelle com água gelada.
— Ai!
Seu corpo tremeu de frio, mas Dante a envolveu com seu calor, para resguardá-la. Ela sentiu que esse olhar a penetrava e ficou sem ar e sem palavras.
— O que houve, ma fée? — sussurrou, enquanto a segurava em um abraço estreito e quente —. Está fria a água?
Antes que ela pudesse responder, afastou-se e a salpicou.
Gianelle ficou boquiaberta, com os olhos cheios de surpresa, voltando a tremer por causa do frio da água e do calor fulminante dos olhos brincalhões de Dante. Ainda não havia se recuperado do primeiro sobressalto, quando ele repetiu o gesto, sorrindo para provocá-la. Ela se agachou para lhe jogar água, mas ele antecipou-se e, desta vez, molhou-a completamente. Riu e ela acabou perseguindo-o. E o teria alcançado, se soubesse correr na água. Caiu nas ondas. Dante riu ainda mais, quando ela ficou de joelhos, passando a mão pelo rosto, para tirar a água salgada. Ela não o perseguiu, ficando quieta em seu lugar, tapando os olhos, até que ele chegou ao seu lado e perguntou, preocupado:
— Está machucada?
Enquanto ele se inclinava para tomar seu rosto, Gianelle ocultou o sorriso com o qual pensava festejar seu triunfo. Então, abraçou suas pernas e, com um forte puxão, derrubou-o e atirou-se em cima. Sua tentativa de afundar a cabeça dele na água fracassou, porque era muito forte. Rindo, Dante deu a volta, ficando por cima dela, e segurou sua cabeça com uma mão.
— Não se preocupe. Não farei com que se renda ainda.
Sorriu para Gia e, por um momento arrebatador, um sentimento inefável cruzou seu olhar, tão poderoso que ela quis acariciá-lo. O que estava querendo dizer? A expressão dele tornou a mudar. Sua boca perfeita elevou-se num sorriso, fazendo com que aparecesse aquela covinha contra a qual era incapaz de defender-se, e se afastou, depois de ter tornado a salpicá-la. Avançou até as águas mais profundas, e mergulhou. Gianelle começou a segui-lo, mas parou quando viu que ele desaparecia sob a água. Voltou-se para ver onde estava, mas ele apareceu a suas costas, sem que notasse. Quando lhe tocou o ombro e ela deu a volta, beijou-a.
Não foi um beijo prolongado, mas suficiente para enfraquecê-la. Ele se afastou sorridente, uma vez mais, voltando a convidá-la, com os braços abertos.
— Venha. Ou me permitirá sair impune dessa façanha?
Seu sorriso malicioso alargou-se, à medida que ela entrava mais nas profundas águas, até não poder ficar de pé. Então, ele mergulhou e desapareceu sob a água.
Demorou tanto para vir à superfície que a jovem começou a alarmar-se, no exato instante em que ele surgiu, como um deus, diante do lugar onde ela estava. Gotas cristalinas salpicaram, molhando-a de novo. A água jorrava dos ombros até a estreita cintura, enquanto a dominava com sua presença, graças a sua estatura.
— Sentiu saudades? — sussurrou, à altura dos lábios dela, a ponto de beijá-la outra vez.
— Oh! Acaso foi a algum lugar? — perguntou Gianelle, jogando água em seus olhos. Cobriu a boca, rindo, e ao ver como ele se sobressaltava, deu a volta e fugiu.
Com a segurança de ter se livrado, Gianelle sorriu quando viu as águas rasas a poucos centímetros de distância. Assim aprenderia a não zombar dela tão cruelmente, mas então sentiu que a puxavam pelos tornozelos, derrubando-a.
Ela caiu de bruços sobre a areia e, antes que tivesse tempo de tomar ar e levantar-se, Dante a deitou de costas e jogou o peso de seu corpo em cima dela. Manteve-a assim, sorrindo diabolicamente, e ameaçando-a com um grande punhado de areia.
— Renda-se e mostrarei piedade!
— Jamais!
— Você recusa?
— Jamais, bruto! É surdo?
Dante encolheu os ombros, como se não restasse alternativa. Agarrou as mãos da jovem e começar a lambuzar as bochechas da jovem com areia. Ela gesticulava e ria, aos gritos, debaixo de seu corpo. Quando terminou, observou-a com a alegria do momento em seus olhos. De repente, sua expressão mudou, pela paixão que o devorava.
— Beije-me, ou agora mesmo afundarei nas águas e porei fim a minha vida desgraçada.
Gianelle deixou de rir e olhou-o, séria. Seu coração estava agitado. Dante o sentia contra seu peito como o batimento do coração desesperado de um pequeno pássaro.
A resistência dela ruiu. Fechou os olhos e apertou os lábios, disposta a recebê-lo. Dante, em cima dela, sorria ante o casto beijo que Gia estava oferecendo.
Acariciou-lhe a boca com os lábios, saboreando sua ternura, sentindo seu sabor, enquanto tentava recuperar o fôlego, apressado pelos batimentos de seu próprio coração. Sua língua penetrou entre seus lábios, assolando as profundidades mais escondidas de sua boca, acariciando-a e fazendo com que ela se retorcesse sob seu ataque. Seu corpo pedia que a possuísse ali mesmo, enquanto a maré ia e vinha sobre eles. A resposta dela, tão docemente desinibida, fez ferver cada gota de seu sangue, endurecendo seu corpo até que Dante deixou escapar um gemido. Interrompeu o beijo, enquanto seus olhos penetravam nos dela.
— Oh, Meu Deus! — sussurrou Gianelle, comovida e entregue.
— Devo advertir — respondeu com um sorriso, descaradamente sensual, com a boca muito próxima a dela —. O feitiço de sua sedução é completamente irresistível.
Gianelle riu:
— Eu não estou seduzindo você. É você o responsável.
Ele aproximou seus dedos das bochechas cobertas de areia e limpou-as com ternura.
— Non, ma petite fée. Somente pensar em você, me seduz. — Quando ela fez um gesto de incredulidade, ele riu e se apoiou em seus cotovelos —: Duvida de minhas palavras?
— Oui — seus olhos diziam que se divertia —. Deve ter dito as mesmas palavras sabe Deus quantas outras mulheres.
Dante ficou de pé e caminhou para a manta, estendida na areia. No trajeto parou para recolher algo.
Gianelle ria zombadora, olhando-o:
— Ficou mal-humorado?
— Oui. Estou ofendidíssimo. — aproximou-se caminhando por trás, enquanto dizia —: Venha e me beije outra vez. Talvez te perdoe.
— Prefiro me afogar.
Gia deu um sorriso radiante antes de voltar seu olhar para o mar.
— Eu poderia arrumar as coisas para lhe fazer essa vontade, pequena.
Gianelle afogou a risada, levantou-se e foi atrás dele.
— Diverte-me insultá-lo. Não sei por que — zombou, adiantando-se.
Sentou-se sobre a manta, soltou o cabelo para que secasse e ergueu o rosto, para absorver o calor do sol.
Os olhos de Dante a devoravam. Sentia-os ardentes, entrecerrados, da cor dos olhos de um lobo à espreita. Contemplou-o junto a ela.
Houve um prolongado silêncio, até que ele estendeu-lhe uma concha. Gianelle aceitou o presente, examinando-o com curiosidade. Dante tomou sua mão, sem dizer uma palavra, e a aproximou de seu ouvido. Os olhos da jovem se arregalaram, com admiração, e sorriu com tanto deleite que ele não pôde reprimir um gemido.
— É o mar, Gianelle. Agora te pertence.
O olhar de Dante percorreu seu rosto, cada vez mais de perto, até que ela acreditou que voltaria a beijá-la. Para seu desencanto, não o fez. Ao invés disso, o acariciou com a ponta dos dedos, até o queixo. Quando passou a acariciar-lhe o pescoço, deu um gritinho, ao sentir um forte puxão debaixo do umbigo. Percorreu seu ombro e seu braço, com aqueles dedos que arrepiavam sua pele, da ponta dos pés até a cabeça. Santo Deus! O que estava fazendo? A urgência que sentia no ventre chegou ao meio de suas coxas, enquanto contemplava seu olhar abrasador, rogando em silêncio que parasse, embora quisesse que continuasse. Os dedos finalmente encontraram as pequenas mãos dela, e as envolveram, com suavidade. Ela sussurrou seu nome e ele fechou os olhos, erguendo as mãos dela até os lábios, e beijando-a tão intimamente que ela ficou sem fôlego, sem palavras, sem…
Oh, não! Gianelle não podia permitir-se perder a batalha. Esse não era um homem atraído por uma só mulher. Ela não podia permitir-se essa entrega, essa sensação de posse, sem importar quão doces fossem suas palavras, nem quão ardentes fossem seus beijos. Mas como resistir?
— É tão belo — disse, olhando as ondas, em lugar de olhar para ele —. Este lugar é tão maravilhoso que poderia ficar aqui para sempre.
— Oui. Este é meu lugar predileto, meu santuário — Dante sentou-se junto dela e olhou ao redor, com os olhos cheios de emoção.
— Seu aroma está impregnado em você.
— Depois da conquista, acompanhei minha irmã de volta a nossa terra natal por um ano; mas sentia saudades. Nasci na Normandía, mas é aqui que desejo morrer.
Gianelle o observava com atenção, enquanto falava, e compreendia perfeitamente por que amava tanto esse lugar. Ela se havia sentido fascinada pela paisagem, desde a primeira vez que o viu.
— Seus pais ainda vivem?
Ele negou com a cabeça.
— Quase não cheguei a conhecê-los. Meu irmão Brand e eu fomos enviados para William, para sermos seus escudeiros, quando éramos ainda muito jovens.
— Seu irmão está casado com a filha de lorde Dumont?
— Oui.
— Parece com você?
Dante riu e a contemplou.
— Non, Brand não é um libertino. Apaixonou-se por Brynna e a tem feito muito feliz.
— O amor é coisa de tolos — opinou Gianelle, com o olhar fixo no mar.
— Parece estranho dito por uma mulher.
— Estou certa de que você não poderia pensar outra coisa — sentenciou, mas voltou a rir, quando ele se queixou e sacudiu sua cabeça, clamando ao céu.
— Não discuta comigo, Dante. A quantas mulheres amou de verdade?
— Só uma — reconheceu —. Minha irmã.
Gianelle ficou séria.
— Perdoe-me — disse, em voz baixa e tocou seu braço com a mão —. Não quis…
— Faz muito tempo que não falo a respeito dela — a proximidade do contato fez com que ela se enternecesse —. Parecia muito com Brand. Sempre estava disposta a rir de tudo e, da mesma forma, a chorar, com a mesma paixão. Tudo a motivava: uma tormenta, um cavalo ou árvores. Adorava escutar o vento entre as folhas das árvores. Aqui, não faz muitos, costumava me pedir que a levasse ao bosque, a poucas léguas de distância. Embora pareça disparate, reconforta-me saber que morreu escutando o som que amava. Quando a encontrei, ainda havia algumas folhas nas árvores.
Gianelle afastou o rosto e não voltou a olhar para ele, nem quando Dante alisou o cabelo sobre os ombros.
— Fée, não chore.
— Não choro — retrucou e passou a mão pelo nariz. Ao erguer os olhar, seus olhos estavam úmidos —. Como superou uma perda como essa, Dante?
— Não sei se algum dia será possível — respondeu. Ao olhá-la, soube que ela compreendia a dor que se sente ao perder um ser amado —. Desde que morreu, levanto a cada dia, com um só pensamento.
— Qual?
— A vingança. É algo mais forte que eu. — Dante olhou-a e sentiu que falhavam as palavras que queria dizer a seguir, porque não estava habituado a utilizá-las —. Então… — riu diante de suas próprias limitações. Mas, quando sorriu, até sem ter compreendido, achou as palavras adequadas —: Então olhei em seus olhos e, a partir desse momento, não pensei em nada além de você.
Capítulo 12
A pequena aldeia costeira de Dover estava emoldurada por um extraordinário céu azul e escarpados penhascos.
Gianelle agarrava com um braço à cintura de Dante e com o outro saudava os meninos que tinham ido dar boas vindas ao seu senhor, quando fazia sua entrada a cavalo. Tinham ido encontrar Balin e Casey, embora Gianelle suspeitava que o verdadeiro motivo da viagem fosse o desejo de Dante de mostrar como vivia sua gente. Ao passar em frente às casas, ele parecia conhecer cada um de seus habitantes e saber que ofício exerciam. O jovem Cameron, que se ocupava de secar o arenque e o bacalhau, dava a impressão de que seria tão hábil como seu pai para a pesca. Ennis e Kevin o Tubarão — assim conhecido pelo tubarão negro de três metros de comprimento que tinha pescado — eram os melhores fabricantes de redes de toda a costa. A velha Lizzy Somers sabia fazer colares com caracóis, dignos da rainha Matilda, e Teresa, a filha da cozinheira de Graycliff, preparava uma sopa tão saborosa que Dante estava convencido de que Colin, o homem que conduzia ovelhas, havia casado com ela só para assegurar uma tigela toda a noite.
Em qualquer parte, os aldeões saíam à porta de suas casas, sorridentes e saudando Dante. Gansos e frangos corriam, enquanto os cães espantavam as gaivotas que se aproximavam dos cestos cheios de enguias e ostras.
Tudo era perfeito, pois o povo tinha um senhor a quem amavam e que, por sua vez, amava todos eles. Os rostos eram amigáveis; as crianças estavam bem alimentadas.
Dante desmontou primeiro e ajudou Gianelle. Dois homens que carregavam redes bateram em seu ombro, quando passaram ao seu lado.
— Ninguém se inclina diante de você, nem espera que fale antes de lhe dirigir a palavra? — perguntou, surpresa diante da facilidade com que se relacionava com seu povo.
— Non, e se o fizessem, seriam jogados do alto do escarpado — respondeu com uma piscada, enquanto erguia uma garotinha nos braços —. Olá, Hilary.
— Olá, lorde Risande.
A pequena não tinha mais de cinco anos. Seus cachos loiros caíam sobre suas rosadas bochechas, no meio das quais se via sua boca sorridente, de um vermelho intenso como o rubi.
Ao vê-los, Gianelle sentiu que o coração se rasgava. Dante parecia ainda maior e mais magnífico ao segurar uma criança em seus braços. Por um breve instante, pensou em como seria com seus filhos, se ele fosse pai, mas esforçou-se por afastar essas imagens. Com a perseverança de Dante não se podia contar, e estava com vontade de chorar, maldito seja.
— Quer montar meu cavalo?
Hilary se mostrou entusiasmada e dava pulinhos, quando ele a sentou na sela. O animal sacudiu a cabeça e bufou, como se a garotinha não fosse mais que um incômodo inseto.
— Hilary, esta é Gianelle — disse, em fingida voz baixa —. Não acha que parece uma fada?
Hilary abriu os grandes olhos e fez um veemente gesto afirmativo, de modo que seus cachos de cabelo ondularam, no compasso do movimento de sua cabeça.
— Você tem asas?
— Non — Gianelle riu e mostrou suas costas.
— Você é a esposa de lorde Risande?
— Non — respondeu Dante, com um sofrido suspiro, enquanto segurava ligeiramente as rédeas —. Ela diz que lhe faço recordar um sapo enrugado.
Gianelle assentiu e Hilary riu.
Uma mulher de olhos verdes e tão loira quanto Hilary se aproximou de Dante, e o olhou, ruborizada.
— Lamento, milord. Acaso Hilary o está importunando?
Gianelle observou à mulher. Não pareceu que lamentasse nada, absolutamente.
— Claro que não. Mas não faça essa pergunta ao meu cavalo —disse Dante, vendo como Hilary seguia dando pontapés e agora também saltava na sela, para que o cavalo aumentasse a marcha.
Passando por sua filhinha, Becky sorriu para Gianelle. Dante fez as apresentações e, imediatamente, inflou as bochechas, como se fosse um sapo, para recordar a Hilary por que Gianelle não era sua esposa.
— Minha mamãe disse que se casaria com você, se meu papai fosse embora de casa.
— Hilary! O que está dizendo? — Becky empalideceu —. Não sei do que está falando.
— Mas, mamãe, escutei dizer a Caitlin que…
Becky lhe tapou a boca e a levou, antes que pudesse dizer outra palavra.
— Não é de admirar que você seja tão arrogante. Nem sequer precisa esforçar-se; tão poderoso é seu encanto.
— Fala sério? E do que me serve, se a mulher que desejo é imune a ele.
— Não vou beijar esses lábios de sapo — respondeu Gianelle, sem incomodar-se em olhá-lo. Identificou Casey e Balin entre um grupo de gente reunida ao redor do fogo.
Dante se aproximou por trás, inclinando-se para falar em seu ouvido:
— Você se derreteu em meus braços.
— Estive a ponto de me decompor — corrigiu, juntado seu dedo indicador com o polegar, para mostrar o pouco que tinha faltado. Ele riu com vontade e respondeu com um sorriso.
Casey levantou os olhos e puxou a manga de Balin, quando os avistou.
— Gia, venha ver o que Balin me deu de presente — disse, segurando um formoso colar de conchinhas, com corais e pérolas.
— Não esperava ver você por aqui — disse Balin a Dante, enquanto as duas mulheres se sentavam juntas para conversar em uníssono e sem pausa.
— Faz uma semana que não venho aqui. Espero que todos estejam bem.
As expressões de assentimento se escutaram, multiplicadas.
— Acompanhe-nos, milord — gritou alguém —. Os caranguejos fervem e tem para todos.
Teresa, a mulher de Colin, o pastor de ovelhas, entoou uma canção sobre um homem morto em alto mar, enquanto sua mulher aguardava a volta de seu amado, durante dez longos anos.
Enquanto a voz da Teresa ressoava no ar noturno, Dante tomou a mão de Gianelle. Ela sentiu-se comovida. Ao olhá-lo, percebeu que estava perdendo terreno a toda velocidade. Ele era muito afetuoso e terno para que ela pudesse continuar resistindo. Dava à ela tudo o que sempre quis, e mais.
Como poderia perdoá-lo?
Como faria para esquecê-lo?
Horas depois, Gianelle rolava na cama, sem poder dormir. Assim que fechava os olhos, via seu rosto e escutava sua voz. Devia saber que Risande iria ganhar. Tinha desarmado Gia com a mesma rapidez com que se desfez de seus atacantes no bosque. Desde a noite em que se conheceram, tinha-a tratado de maneira diferente de qualquer outro homem, nobre ou plebeu, como nunca tinham feito antes. Sua insistência para que ela ignorasse as normas que a comandaram a vida toda e olhasse para ele, teria sido uma artimanha para que se fixasse em suas musculosas costas e na sensualidade com que suas meias apertavam suas coxas? Acaso queria que ela adivinhasse em seus olhos o desejo que o consumia e como era capaz de conter-se? Mas ela não precisava adivinhar. Sentia o sabor do desejo em seus beijos, ardentes e apaixonados, a despeito de seu férreo autocontrole. E o que aconteceria se permitisse? Quando ele se cansasse, teria liberdade de fazer o que quisesse, como Simone. E por que se incomodava pela falta de interesse que demonstrava por ela? Por que estava irritada por ele estar disposto a lhe dar sua liberdade? Não era isso, por acaso, o que ela queria?
Dava voltas na cama, amaldiçoando o persistente aborrecimento que não lhe permitia repousar. Ele nunca a amaria. Ela desejava acreditar que não pensava em nada além dela, como disse na praia. Mas Dante Risande não amava às mulheres que cortejava. E, de qualquer maneira, o que era o amor? Ela não sabia. Seu pai não a tinha amado, tampouco seus senhores. A única coisa que sabia sobre o amor era o que tinha escutado dos bardos do castelo e sempre se referia a algo penoso. Dante tinha dado sua liberdade, mas, ao fazê-lo, fez com que também quisesse algo mais.
Golpeou o colchão, sem poder acomodar-se.
— Gia, pelo amor de Deus, deixe de se remexer tanto — resmungou sua amiga.
Devia partir pela manhã; mas sabia que não o faria. Amava os escarpados, o oceano, o povo. Pela primeira vez em sua vida tinha a sensação de pertencer a algum lugar e não desejava partir. Também Casey estava feliz aqui, muito feliz. Casey: por ela ficaria.
Dante desceu as escadas, pela manhã, ansioso para ir para a cama. Tinha passado a noite no torreão, vigiando além dos escarpados, como tinha feito tantas noites, depois da morte de Katherine. Mas nessa noite só tinha pensado em Gianelle. É verdade que, a princípio, queria brincar de gato e rato com ela. Sua resistência era um estímulo; qualquer guerreiro preferiria confrontar um desafio, ao invés de um adversário que joga a espada em vez de lutar. Mas ela inflamava em seu interior um fogo que nenhuma mulher acendeu e, ao mesmo tempo, apaziguava o ódio que o corroia, sem cessar. Não queria privar-se desse alívio.
Refletia ainda sobre a melhor maneira de persuadi-la para que não abandonasse Graycliff, quando viu Talard no corredor.
— Bom dia, Talard. Suponho que as velas estão intactas.
— Assim é, milord.
O vassalo notou o aspecto cansado de Dante e mostrou, com um gesto, seu descontentamento. O senhor tinha passado a noite vigiando os muros, outra vez. Muitas manhãs tinha encontrado Dante adormecido na muralha, de onde se viam os escarpados.
— Mandarei levar o café da manhã em seu quarto.
— Obrigado. E ordene que me preparem um banho. Tenho a pele cheia de areia.
Talard assentiu, retrocedendo para a escada; mas Dante o chamou:
— Gianelle ainda está aqui?
— Sim. Almoçará com Balin e outros no grande salão.
O alívio de Dante era evidente, mas Talard não disse nada. Os assuntos de seu senhor não eram de sua incumbência.
Quando seu banho estava pronto, tirou a camisa e as botas, e percebeu que seu apetite o tinha abandonado. Olhou sua cama, com o desejo de encontrar ali Gianelle. Caramba! Devia tirá-la da mente. Jogando suas meias sobre a cama, concentrou-se em Hereward. Onde estaria escondido esse maldito? Teria ordenado a morte de Katherine ou os assassinos teriam agido por sua conta? Devia averiguar. Como pôde abandonar as suspeitas sobre Edgar Dermott, quando existiam tantas evidências contra ele? Sim, ele sabia por que o tinha feito. Foi por causa dela. Por Deus, estava se tornando tão terno como uma pétala de rosa! O que não faria por ela, e por que não podia deixar de pensar nela?
Chutou suas botas através do quarto e se meteu na banheira. Deveria estar lá embaixo, esta hora.
Alguém bateu.
— Entre — convidou e reclinou sua cabeça. Ao escutar a expressão de surpresa de seu visitante, abriu os olhos e sorriu ao ver Gianelle —. Tornou-se um hábito seu entrar em meu quarto quando não estou totalmente vestido. Feche a porta, que há corrente de ar.
— Nem sequer tem o recato de cobrir-se? — protestou. Deu a volta para fechar a porta e ficou nessa posição.
— Que espera? Que tome banho vestido?
Diabos, ele estava certo. Tomando fôlego, decidiu que o melhor seria dizer logo por que tinha vindo.
— Balin acaba de me informar que você sabia que tinha sido eu quem tirou as velas dos candelabros.
— Oui — ele se acomodou um pouco mais na água e voltou a fechar os olhos.
— E não disse nada? Por que simulou que acreditava na minha inocência? Por que me levou ao mar, sabendo que eu tinha cometido semelhante besteira? Com a intenção de me seduzir, milord?
— As velas não me interessam absolutamente, fée.
— Há algo que interesse? — perguntou com ira.
Ela sabia que não tinha nenhum direito de perguntar tal coisa. Devia sentir-se agradecida de que não tivesse lhe dado nenhum castigo por ter arrancado as velas e, em parte, estava. Mas mortificava Gia saber que ele estava informado do que ela tinha feito e irritou-a ter dito nada. Era a prova de que ele seguiria adiante com seu plano para seduzi-la, sem importar o que ela fizesse. Nem sequer tinha perguntado quais tinham sido seus motivos para cometer essa maldade.
— São muitas as coisas que me importam, Gianelle. Poderia me alcançar o sabão?
Com seu hábito de desobedecer ordens, Gianelle olhou para a cama, antes de atender sua indicação. Ele apontou para o sabão e lhe agradeceu quando aproximou a tigela.
— Que você desfrute seu banho.
Era difícil afastar seus olhos desses formidáveis braços. Entregou-lhe o sabão e fez menção de retirar-se.
— Por favor, não vá, Gianelle.
“Bem — pensou —, por fim”. Sentia-se mais aliviado.
Ela se deteve. Suas mãos tremeram; seu coração estava totalmente entregue a ele. Ninguém tinha pedido nunca com um ‘por favor’.
— Acredito que será melhor que eu não permaneça aqui, enquanto você está se banhando.
— Referia-me a sua partida de Graycliff — ele tratou de reprimir seu sorriso, para que não se transformasse em algo muito evidente, quando ela se voltou para olhar para ele, visivelmente confusa —. Mas, já que menciona, não vejo motivo para que não fique aqui, em meus aposentos.
— Não seria apropriado, a menos que estivesse aqui para banhá-lo.
Dante pôs o sabão ao alcance da mão dela e seu olhar a abrasou.
— Não tem medo de me tocar, não é? — perguntou, ao ver que ela não pegava o sabão.
Ela arrancou-o da mão, com um puxão.
— Não seja ridículo. Já banhei outros homens.
— Preferiria que não me recordasse isso.
— Sei que não é fácil — retrucou, ajoelhando-se junto à bandeja e arregaçando as mangas do vestido —. Mas não pense que sou incapaz de resistir.
— É evidente que sabe fazer, fée.
Cansou-se de negar o efeito que este homem tinha sobre ela. E o que tinha de mau que o banhasse? Tinha banhado seus senhores centenas de vezes, embora reconhecia que esses contatos físicos não tinham sido agradáveis. Não lhe tinham acelerado o sangue nem fixado o pensamento na sensação dessa carne rígida e ardente sob seus dedos.
A sensação era maravilhosa. Mordeu o lábio inferior, olhando ao redor, para encontrar no que fixar a vista e distrair-se daquele corpo escultural.
No quarto, havia dois pequenos divãs forrados em veludo azul. Podia sentar-se em frente ao fogo aceso, em uma noite de inverno, e Gianelle imaginou o prazer que experimentaria esse formidável corpo ao fazê-lo. Cada polegada de madeira que adornava o quarto, das complexas molduras de sua cômoda, até os travesseiros de sua cama, tinham um acabamento que os fazia reluzir, como espelhos. Havia frutas frescas sobre uma mesa, junto a uma parede grafite, com unicórnios e fadas; Gianelle sorriu ao vê-las. Prestou atenção nas minúsculas criaturas aladas, tão delicadamente representadas. Ruborizou-se e olhou com reprovação para Dante, que se espreguiçava sob suas mãos. As fadas estavam nuas. Então, dirigiu o olhar à cama de Dante. Era enorme, até maior que a que compartilhava com Casey. Perguntou-se quantas mulheres o tinham acompanhado debaixo desses cortinados de veludo.
Com um suspiro e uma maldição reprimida, concentrou-se de novo em sua tarefa, enquanto afastava as imagens de Dante na cama com outras mulheres. Agora ensaboava seu ombro. Ele gemeu, satisfeito, e sua sensualidade a obrigou a respirar fundo.
— Quem banhou?
Gianelle notou que estava olhando para ela.
— Achei que preferiria que não tocasse neste assunto.
— Assim é. Mas quem…?
— Bryce Dermott e, às vezes, seu irmão — a mão de Gianelle deslizou sobre o peito de Dante, que se contraiu sob seus dedos.
— Algum deles tocou-a alguma vez?
— Muitas faxineiras se entregavam livremente aos Dermott. Mas eu não.
Massageou seus braços, firmes e maciços sob o suave contato, fascinada pelos contornos de seu corpo e hipnotizada por sua força. Diminuiu o ritmo do percurso de seus dedos, acariciando apenas o pêlo negro e crespo de seu antebraço. Seu contato era cada vez mais delicado, até converter-se em uma carícia ao chegar às pontas dos dedos.
— Não me respondeu.
— É tudo o que posso dizer — disse, enquanto percebia que estava tocando-o com muita suavidade, dando a ele uma sensação de intimidade, e quis mudar de assunto.
— Você é bastante forte — adicionou, mas percebeu que assim somente revelaria a fascinação que provocava nela —. Perdoe-me.
Dante tomou queixo e voltou seu rosto, até que seus olhos se encontraram. Falava como se suas palavras apenas a roçassem.
— O que lamenta? Sentir curiosidade pelo corpo de um homem que não te obriga a nada? — Tomou a mão dela na sua e a apoiou contra seu peito —. Jamais te machucaria desse modo.
Suas palavras, o som de sua voz e o constante batimento de seu coração contra sua mão a comoveram tão profundamente que teve que voltar a morder o lábio, para evitar que sua emoção se transformasse em lágrimas. Ele continuava derrubando as defesas que havia levado tantos anos de esforço para construir, guiando aquela mão do peito até o queixo; então, Dante baixou a cabeça e beijou seus dedos.
— Você é enorme — falhou o fôlego ao dizer.
— Oui. Mas empregarei minha força para te proteger dos perigos; jamais para te causar dor.
Ela acreditou. Tinha dado muitas provas de sua capacidade para controlar seus impulsos. Permitia-lhe que fosse desafiante, rebelde e até insolente. Ria com ela e a escutava, sério, quando contou a respeito de seu pai. Como poderia explicar que, ao seu lado, ela não temia por sua carne, mas sim por seu coração? Não sabia como dizer o quanto se sentia feliz quando Dante pediu que não fosse embora. Quanto se alegrava que ele pedisse as coisas com delicadeza, sem dar ordens, nem fazer valer sua autoridade. Seus cuidados faziam com que ela se sentisse bela, pela primeira vez; sua ternura a fazia sentir-se preciosa e valorizada. E isso era, precisamente, o que a fazia desconfiar. Pois, certamente, não falava sério e ela desejava ardentemente que fosse assim. De repente, sentiu necessidade de chorar por todos esses sonhos frustrados de ser amada por um homem como Dante Risande, sonhos que tinham sido arrancados de seu coração.
— Devo parar de me submeter a seus encantos, porque ficarei destroçada quando partir — quis falar como se fosse uma brincadeira, mas saiu com um gemido sufocado — No final, terminarei sendo a maior tola de todas.
Sentiu como a mão de Dante envolvia a sua e a atraía para ele. Ela cedeu, já sem vontade de oferecer nenhum tipo de resistência. Manteve-se muito perto dele, segura pelas bordas quentes e firmes da banheira e pelo ardor tempestuoso de seu olhar.
— Sei o que teme, Gianelle. Eu não lhe abando…
— Non. Evite de me fazer semelhante promessa.
O conde silenciou as palavras que teria empregado com qualquer outra mulher que não importasse tanto à ele como Gianelle. Puxou-a pela nuca com ternura e aproximou sua boca da dela.
A doce carícia de seus lábios arrancou outro suspiro a jovem, que se agarrou ao firme peito de Dante para não sucumbir em seus braços, embora, de algum jeito, transmitia uma segurança que ela nunca tinha experimentado. Já não queria desafiá-lo, somente desejava sentir-se envolvida por seus braços e acreditar que não a deixaria. Agora, esses braços a enlaçavam como uma promessa de amparo eterno e sentiu ruírem suas últimas defesas. Saboreou seus beijos, um após o outro, até ficar exausta e sem ar.
— Meu doce anjo — sussurrou Dante, quase sem separar sua boca da dela.
A ternura de sua voz, o desespero com que reclamava seus beijos, fez com que Gianelle se sentisse dominada por um estranho e novo desejo. Ele se ergueu um pouco na banheira e a arrastou, até que ficou encaixada entre suas coxas de aço.
— Não te farei mal.
A veracidade de sua promessa, expressa em um sussurro, fez com que seus olhos se iluminassem, como diamantes sob a luz da lua.
Seu olhar passou do pescoço de Gianelle para seus seios, que apareciam sob a roupa empapada. O corpo da jovem se contraiu com o toque dos dedos de Dante na ponta de seus mamilos. Dante gemia, seus beijos eram cada vez mais tórridos e insaciáveis. Sua língua a convidou a uma dança sensual, ao penetrar entre seus lábios; ela acariciou seus cabelos com maior paixão e o atraiu para si ainda mais, enquanto as mãos do homem exploravam cada curva de seu corpo.
Finalmente, com a respiração alterada e os olhos febris, Dante separou-se de seu rosto e tomou um de seus suculentos mamilos entre os lábios. Ela arqueou as costas e ele colocou sua mão sob as nádegas de Gianelle para acomodá-la sobre a rigidez de seu membro, que a prensava debaixo da água.
Estava totalmente enlouquecido. O contato de suas mãos com seu peito nu, com seus braços, com seu rosto, exacerbavam seu desejo. A forma como ela correspondia a seus beijos o incitava a possuí-la, até que ambos ficassem exaustos e imóveis. Os olhos da mulher, entrecerrados pela paixão, seus involuntários gemidos e o roçar de seu corpo sobre a rígida ereção, estavam deixando Dante fora de si. Deslizou sua mão sobre sua perna, acariciando a carne trêmula do joelho, passando para a coxa até localizar o foco de umidade aveludada, entre as pernas. Gianelle conteve a respiração quando Dante arrancou o tecido que se colocava entre sua meta, antes do assalto final. Acariciou sua feminilidade, enquanto mordiscava, de maneira brincalhona, o mamilo, obrigando-a a gritar.
— O que está fazendo? — disse com um gemido de prazer.
— Nada… ainda — a voz profunda chegou aos seus ouvidos e fez vibrar sua coluna vertebral.
Tentou fechar as pernas, mas Dante continuou acariciando-a e agradando, até que ela não pôde evitar pedir que não parasse, que a estimulasse cada vez mais. Mais.
— Quero conhecer seu sabor — disse ele, ao ver que ela já não tentava fechar as pernas, oferecendo sua apreciada intimidade.
Gianelle se encontrou com o olhar fixo de Dante, que era puro fogo. Sorriu de maneira voluptuosa e ela sentiu o bater das asas de milhares de mariposas em seu estômago. Devolveu o sorriso. Não poderia imaginar o que iria acontecer.
Ela acreditava que, quando um homem se deitava com uma mulher, fazia somente para sentir prazer. Quando Dante a ergueu e a sentou na borda da banheira, pensou que era isso que pretendia fazer: ele levantou seu vestido, acima das coxas, e separou seus joelhos. Meu deus! Era tão terrivelmente belo, com aqueles cabelos que caíam sobre seus amplos ombros. Parecia incrível como podia ser desejável ver um homem de joelhos. A deliciosa umidade de sua língua, ao percorrer a parte interior de sua coxa, deixou-a tão atônita que somente atinou a repetir seu nome. Em lugar de parar, agarrou-a com firmeza, para evitar que tentasse escapar. Deu um beijo diretamente sobre os pêlos e ela apertou os dentes, excitada além do imaginável. Brincou com seus lábios e a beliscou brandamente com os dentes. Cobriu com sua língua o botão vermelho, saboreando-a, marcando-a a fogo. Já incapaz de resistir a seus endemoninhados procedimentos, Gianelle se segurou com força, enquanto ele colocava a língua na estreita passagem.
Seu apetite era insaciável e não parou, até que ela jogou sua cabeça para trás, entre convulsões irreprimíveis de puro êxtase, que a obrigavam a gemer e envolver o pescoço de Dante com suas pernas.
— É ainda mais doce que o mel — sua voz era um grunhido feroz —, como sempre suspeitei.
Gianelle olhava em seus olhos, e tratava de controlar sua respiração e as sensações que experimentava pela primeira vez, mas ele tomou-a em seus braços e a levou até o sofá, em frente ao fogo.
Deixou-a, por um instante, para recolher suas meias negras, e Gianelle não conseguia afastar os olhos dele. Ele caminhava pelo quarto, nu, molhado e dando a impressão de ser ainda maior. Uma onda de calor avermelhou suas bochechas e desceu por todo seu corpo, fazendo com que fechasse as pernas. Estava certa de que era um pecado seu desejo de montar sobre ele, de todas as maneiras possíveis. Inclusive, saboreá-lo como ele tinha feito com ela. Não era um homem, era uma estátua de um deus grego, como a que ela tinha visto, certa vez, em uma pintura: Zeus, Hércules, não importa quem. Contemplava-o, em silêncio e fascinada, enquanto se secava. O tecido percorria cada um dos perfeitos ângulos e formas que modelavam seu corpo.
— Tem um olhar travesso, fée — disse, enquanto colocava as calças —. Devo me preocupar com isso?
Gianelle negou com a cabeça.
— Desejo… — começou, enquanto o seguia com os olhos até o guarda-roupas, onde o viu escolher uma túnica. Quando ele voltou para junto dela, olhou para o lado.
— O que deseja? — tinha uma sobrancelha levantada e a covinha enfeitava seu sorriso, tão tentadora como sempre.
— Quero… já sabe… — o olhar de Gianelle se encontrou com o dele —. Com você.
— Fazer amor?
Ela deixou escapar um suspiro.
— Bom, eu nunca tinha chamado assim, antes.
— Mas assim será entre nós.
Dante se esforçou para não sorrir, ante o desconcerto dela.
— Quando?
Ali estava, arrebatada e pronta para recebê-lo, até pedindo por favor. Dante deu um gemido, arrasado pelo desejo, e teve que conter-se para não acabar jogando-se sobre ela. Era claro que era inexperiente, provavelmente estava mais assustada pelo sexo do que estaria de fugir no meio da noite. Quando pensava que possivelmente Edgar Dermott a houvesse machucado, enfurecia-se até que seus dedos se contraíam em punhos assassinos. Tinha sido ele quem a tinha feito temer algo que era, na verdade, maravilhoso? Dante estava convencido de que o êxtase que ela tinha alcançado na borda da banheira era sua primeira experiência sexual prazeirosa.
— Primeiro te ensinarei a desfrutar do corpo de um homem — a promessa de Dante, cheia de delicadeza, estremeceu-a —, e esse corpo será o meu. Levante-se.
Gianelle obedeceu, mas fechou os olhos com força quando ele começou a tirar sua roupa.
— Quer que eu também feche os olhos? — perguntou, esforçando-se para não dar mostras da emoção que o embargava. Ela assentiu, sorridente, e ele teve a sensação de que seu coração se derreteria no peito —. Coloque isso, está seco.
Gianelle abriu os olhos e pegou a túnica que ele alcançava. Quando viu que tinha fechado os olhos, teve vontade de lhe dar um beijo. Rapidamente, tirou as roupas molhadas e colocou a túnica seca.
— Pronto.
Merde! Não estaria mais tentadora se estivesse totalmente nua. Sua túnica ficava abaixo dos joelhos, as mangas ultrapassavam a ponta dos dedos e ela as arregassou, evitando o olhar persistente dele. Saber que estava nua debaixo dessa tênue musselina fazia com que ele quisesse levantar sua roupa sobre as coxas e possuí-la, agora mesmo, sobre o sofá, mas se esforçava para aplacar o fogo que o consumia. Devia ir devagar, para dominar esse desejo. Queria lhe ensinar que o sexo era algo que ela podia desfrutar, mas não poderia fazê-lo se acabasse se atirando sobre ela, impetuosamente. E se a insuportável dor que o oprimia embaixo da calça fosse um dado fidedigno, seu ímpeto nunca tinha sido maior.
Quando seu pulso desacelerou um pouco, atreveu-se a tocá-la. Atraiu-a para o sofá, para que descansasse sobre seu corpo. Tomou-a pela cintura com um braço e ajeitou seu cabelo atrás de uma orelha, com a mão livre.
— Isto não dói? — perguntou ela, um tanto envergonhada de tocar num assunto como o de seu rígido membro, apertado contra o ventre dela, em termos tão cotidianos.
Um sorriso iluminou seu rosto, quando Dante respondeu:
— Enormemente.
Ela mordeu o lábio inferior e pensou um instante.
— Eu acreditava que, quando isso acontecia, um homem precisava ser satisfeito.
— Eu estou satisfeito, segurando-a em meus braços.
Ela não teve alternativa além de beijá-lo. Tinha que fazer. Beijou sua boca sedenta, seu queixo, aproximando-se com miúdos suspiros, entre dentadas, de seu pescoço vigoroso. Inclinou-se sobre seu peito e lambeu uma gota de água, que tinha ficado no mamilo. Sentiu que o corpo dele se esticava debaixo do dela. O áspero pêlo que o recobria fazia cócegas em seu nariz. Ela se perguntava até onde poderia explorá-lo, antes que seu controle o abandonasse. Estimulada pelas doces carícias em suas costas, ela rebolou os quadris. Ele gemeu e separou suas pernas com suas grandes mãos, para que montasse sobre ele.
— Oh, meu Deus! — ofegou Gianelle —. Está tão quente bem… ali.
Debaixo dela, Dante sorriu, apertando os dentes, ao sentir o calor que envolvia sua carne como uma luva.
— Me alegro de que te agrade.
— Mmmh. Nunca tinha feito isto antes. Suas dimensões são… — interrompeu para esfregar-se contra o corpo dele — perfeitas.
Dante estava a ponto de explodir. Passou suas mãos debaixo da túnica dela e tomou suas nádegas nas mãos. Sabia que ela estava preparada; ele, também. Com uma maldição entre os dentes, deslizou-a lenta e persuassivamente, ao longo de sua ereção. Gianelle arregalou os olhos, por um instante, antes de estremecer em um espasmo arrebatado que arrancou um gemido tão alto que Dante teve que tapar sua boca com a mão, para impedir que Balin e Talard chegassem para resgatá-la.
Capítulo 13
Ao cabo de várias horas, quando abriu os olhos, Gianelle sentiu o calor de seu poderoso corpo debaixo dela. Dava-se o luxo de ficar aconchegada nos braços de Dante, como se fosse seu lugar. Escutava seu fôlego, com o compassado vaivém do peito sobre o qual descansava sua bochecha. Não queria mais sair dali.
— Dante!
Ele mal reagiu, antes de abrir os olhos. O cabelo de Gianelle sobre seu rosto recordou dos momentos que tinham compartilhado, acariciou-o e se remexeu no sofá.
— O fogo está apagando.
— Tem frio, fée?
Quando ela assentiu, envolveu-a em seus braços e, erguendo-a, levou-a até a cama, onde a depositou sobre as peles. Logo, aproximou-se da lareira e atiçou as brasas, até que reavivou o fogo. Colocou mais lenha e retornou para seu lado. Via-a tão bela, estendida em sua cama, com os tons rosados da luz sobre sua figura, que temeu que seu coração parasse. O cabelo caía como um véu dourado; seus olhos estavam iluminados por uma luminosidade que, como a chama, tinha sido acesa por ele.
— Tem apetite, formosa?
— Oui, meu estômago está roncando.
Dante ficou tentado a lhe dizer que seu estômago sempre roncava, até cheio de comida. Em vez disso, riu, encantado com ela e seu insaciável apetite. Foi até a mesa onde Talard tinha deixado as bandejas com frutas e partes de cordeiro, que havia trazido para ele antes.
— Não coma a carne. Está aqui há algum tempo. — sentou-se junto a ela na cama e aproximou uma amora de seus lábios —. Prove isto.
Os lábios dela roçaram os dedos que seguravam a fruta e ele se aproximou, para contemplar mais de perto sua língua, quando recebia o fruto na boca.
— Mmmh. Doce! — murmurou, tomando consciência do aroma dele que, por sua proximidade, envolvia-a.
— Agora, prove esta.
Colocou uma uva entre seus lábios e fez um gesto para que se aproximasse. Gianelle aproximou sua boca, com um sorriso. Abocanhou a suculenta fruta com os dentes, mas somente conseguiu fazer com que os lábios de Dante se amoldassem aos dela, em um beijo que conjugava a paixão dos dois.
Quando a fruta acabou, ela passou seus dedos pelas cicatrizes que cobriam suas costas, e pediu que lhe explicasse como as obteve. Ele a acariciou em lugares que ela não teria imaginado proporcionarem tanto prazer, como a curvatura na base de seu nariz e o delicado vão em seu pescoço. Também percorreu com o dedo o lado interno de seu cotovelo e o sensível joelho, fazendo com que estremecesse. Seus lábios exploraram os lóbulos das orelhas, o queixo e a pele muito suave do peito. Jurou que faria amor com adoração e explicou de que maneira o faria.
Cada palavra que saía de sua boca causava um tremor no ventre de Gianelle. Ela o atraiu para si, surpresa com sua própria audácia, mas sem duvidar dele.
— Não é capaz de tirar as mãos de cima de mim, mulher? — sua voz denotava a urgência de sua reclamação, enquanto seu sorriso arrogante reforçava o ardor de seu olhar.
Ela riu e ele a beijou, penetrando com sua língua na suntuosa doçura dessa boca. Tomou a cabeça e devorou a garganta com seus beijos. Mordiscava sua carne, enquanto deslizava a mão entre suas coxas. Enquanto acariciava seu traseiro nu, aproximou ainda mais a mão da jovem da dureza larga e firme que se manifestava sob a roupa.
Ao ouvir uma batida na porta, Dante parou, levantou a cabeça e perguntou a contra gosto:
— O que houve?
— Milord, Gianelle está com você? — escutou Talard perguntar.
— Oui. Vá embora — e Dante recomeçou com os beijos.
Houve um silêncio, e logo:
— Desculpe-me. Mas, Casey está muito preocupada. Acredito que ela teme que sua amiga tenha fugido.
Gianelle empurrou Dante e ficou de pé.
— Nunca partiria sem ela — disse, dirigindo-se para a porta —. Ela sabe muito bem.
Dante esperou que os sinais de sua paixão se aplacassem e se aproximou da porta. Abriu-a com um puxão e olhou com ira para Talard, atrás de quem Casey estava escondida. Por Cristo! Até deixando de lado a semelhança com sua irmã morta, seu coração se enterneceu ao notar quão assustada estava.
— Obrigado, Talard.
Seu vassalo assentiu e se afastou imediatamente, com Casey seguind- o de perto, mas a jovem se voltou, sorrindo com humildade:
— Perdoe, se houver…
— Venha — disse Dante, colocando-se de lado, e convidando-a a entrar em seu quarto.
Ela obedeceu, com certa apreensão, intensificada quando percebeu que Gianelle terminava de vestir-se.
— Oh, perDante! Seriamente, sinto muito…
Dante deu a volta e se sentou na cama, indicando a Casey que sentasse no sofá, junto à janela.
— Casey, ninguém partirá de Graycliff.
— Ah, não? — seus olhos azuis se fixaram em sua amiga.
— Não, a menos que desejar fazê-lo. Mas me partiria o coração que você e Gianelle fossem embora.
— É muito amável de sua parte, milord, mas não se cansará dela? E se assim for, não vai querer que nos afastemos? — perguntou com honestidade, mas em seguida fechou os olhos. Não precisava olhá-lo para dar-se conta de que o conde estava furioso. Entretanto, quando falou, fez em tom moderado.
— Casey, quem disse que eu me cansarei de Gianelle?
— Eu disse — reconheceu Gianelle. Ela recordava o que disse Balin e não quis que Dante suspeitasse de seu amigo.
— Estou vendo. Sempre vou querer vocês aqui, Casey; não importa como aconteçam as coisas entre nós. — Beijou-lhe a mão e a acompanhou até a porta.
Depois de fechá-la, Dante se recostou contra a porta. Observou Gianelle, sentada na beira da cama e cruzou os braços sobre o peito.
— Não vou perguntar por que achou que me cansaria de ti. Ao invés disso, pergunto por que achou que isso aconteceria?
— Esteve com muitas mulheres?
Ele fechou os olhos e amaldiçoou em francês. Afastou-se da porta, para sentar-se no sofá.
— Oui.
— Onde estão agora?
— Não sei.
— Como posso saber que não sou mais uma?
Ele sacudiu a cabeça e, sem olhá-la, respondeu:
— Eu também não sei.
Dante esfregou o rosto com as mãos, mas não deteve Gianelle quando se levantou e saiu.
Essa noite, o conde jantou no grande salão, em companhia de Balin, Casey, lady Desse e seu marido, e outras pessoas. Em Graycliff não havia nenhum lugar reservado para o senhor, que se sentava à mesa com quem queria. Lorde Brand Risande tinha desenhado o salão dessa maneira e Dante não viu motivo algum para modificá-lo quando assumiu o castelo. Além disso, bastava olhar para compreender quem era o amo. Sua formidável estatura o proclamava o mais poderoso entre seus homens e sua forma de lançar um olhar sobre sua gente, revelava o cuidado com que acompanhava os bardos e histriões que, por serem desconhecidos, poderiam representar uma fonte de perigo. No geral, sua risada era franca e expansiva, suavizando os traços de sua fisionomia. Mas, essa noite, o senhor de Graycliff quase não se inteirou do que acontecia a seu redor. Sorriu quando um de seus homens lhe deu uma cotovelada, compartilhando as gargalhadas de festejo com os homens, mas seus pensamentos estavam concentrados em Gianelle. Ainda não tinha se apresentado para jantar e ele vigiava a entrada, com a taça na mão, entre um gole e outro.
Estaria zangada com ele, ou magoada. Sem dúvida, ele era um bandido que se aproveitava das mulheres. Apesar disso, cada vez que lembrava de seu último diálogo, apertava os dentes e piorava seu humor. Acaso esperava que ele mentisse, quando tinha perguntado se seu destino seria o mesmo que o das outras? Como poderia saber? Jamais tinha entregue seu coração a uma só mulher; agradar a todas tinha sido sua meta até então. Mas sabia que Gianelle não se conformaria com algo tão vulgar como ser uma amante. Soube desde que contou o que tinha acontecido com seu pai. Ele não queria machucá-la e estava certo de que ela era mais importante para ele que qualquer outra mulher, mas bastaria isso?
Observou Simone, do outro lado da mesa, e se perguntou se teria sofrido quando ele se interessou por Fiona, a filha de Kennit do Derry. Depois tinha sido Patrice, irmã de seu amigo Geoffrey o Rápido, e mais tarde Bridget, Anne e Aubrey. Ele era um descarado e Gianelle tinha boas razões para estar zangada. Mas não tinha havido nenhuma aventura desde a morte de Katherine, no inverno anterior. Ninguém tinha conseguido refrear o furor vingativo que o dominava. Ninguém, exceto Gianelle.
Então, viu-a chegar. Não se cansava de admirar sua frágil beleza e lhe dedicou um leve sorriso. Era tão delicada, que parecia feita por fadas com um fino fio de seda dourada. O penteado revelava o gracioso contorno de seu pescoço. Vestia um longo vestido de linho amarelo, com mangas bufantes, que faziam Dante lembrar-se do suave contorno de seus braços. Tinha o pescoço rodeado de enfeites azuis e uma corda similar caía sobre a curva de seu quadril, destacando sua estreita cintura, que ele podia abranger facilmente com suas mãos.
Quando seus olhares se cruzaram, Dante se manteve quieto: sorriria ou evitaria seu olhar? Não fez nenhuma das duas coisas; mas saudou Desse. Quando passou ao seu lado, ele pegou-a pela mão e rogou:
— Por favor, sente-se comigo.
Para sua surpresa, ela obedeceu. Balin e Casey deixaram um lugar livre e ela pediu aos serventes que trouxessem uma bandeja e um pouco de vinho.
— Suspeitávamos que não nos acompanharia — Balin tratou de ocultar sua brincadeira, depois de um leve sorriso —. Temi que os olhos de Dante ficassem fixos na porta para sempre, mesmo depois de terminado o jantar.
— Balin! — uma risada maléfica cruzou o rosto de Dante, enquanto se voltava para seu capitão —. Gianelle não quer saber quanto senti saudades; verdade, fée?
Foi muito ardiloso de sua parte fazer recair uma brincadeira sobre sua pessoa, em vez de partir sua taça na cabeça de Balin, tal como sugeria a ferocidade de seu olhar.
— Sim, quero.
Disse com um sorriso completamente inocente, pestanejando.
— Muito bem, passei amaldiçoando, por ter que escutar os desvarios de Balin. Esperava que se sentasse ao meu lado uma mulher que nos desafiasse, a mim e a minha arrogância.
Reclinou-se em sua cadeira, enquanto elevava a taça até seus lábios sorridentes.
— Gianelle — riu Balin —, com este cavalheiro não há maneira de sair ganhando.
— É verdade — apontou ela —. E se alguém se acostumar a ganhar sempre, pode chegar a conformar-se com vitórias vazias.
— Milord — interveio Simone, antes de retirar-se —, você parece ter apetite. Entretanto, não comeu nada. Não me surpreende, absolutamente. — Fixou seus olhos negros sobre Gianelle e acrescentou —: Seu paladar deve pedir algo mais saboroso.
— Simone — respondeu Dante —, algumas especiarias me deixam um gosto amargo na boca.
— Surpreende-me que não mande limpar a mesa, para que seja servida sobre uma bandeja, como uma oferenda — brincou Desse com seu senhor, ao ver que Simone partia furiosa.
— Ele ainda a interessa — assegurou Gianelle, séria.
— Para Simone somente importa seus próprios interesses. Adoraria ter o senhor do castelo sob seu domínio.
— Na verdade, é muito bonita — opinou Casey.
— Você é mais bonita que ela — corrigiu Balin.
Gianelle e Desse trocaram sorrisos, enquanto Talard se aproximava de Dante.
— Acaba de chegar Conrad Lowell, emissário de lorde Edgar Dermott, e solicita uma audiência.
— Conduza ao meu escritório, e fique com ele até que eu chegue — disse Dante. Inclinando-se para Gianelle adicionou — Volto em seguida — e seus lábios roçaram a parte posterior do pescoço.
— Porque acha que veio? — perguntou Balin, que o acompanhava.
— Já iremos descobrir — Instantes mais tarde, quando ingressou em seu escritório, viu dois desconhecidos que o aguardavam —: Qual de vocês é Lowell?
Um homem alto e desajeitado, cuja palidez contrastava com seus negros cabelos, elevou levemente a palma da mão. Seu aspecto era pouco saudável; tinha o nariz proeminente, e os lábios finos e apertados.
— Posso saber o que deseja? — a voz de Dante era neutra.
— Vim entregar uma missiva. — Procurou sob seu manto e estendeu um pergaminho com o selo real, que tinha sido violado. A mensagem era dirigida a Edgar Dermott.
Dante o contemplou e voltou a olhar para Lowell. Então este homem era o irmão de Trevor o Negro, aquele a quem Gianelle e Casey tinham reconhecido quando caíram na emboscada.
— Seus olhos estão cheios de ódio. Deve-se à morte de seu irmão?
— Não sabia que você era o responsável — respondeu o emissário, apertando os dentes.
— Então, já encontraram seu corpo. — Voltou-se para Balin, enquanto desdobrava o pergaminho —: Quanto faz desde que aconteceu? Uma semana? —e dirigiu um sorriso desafiador a Lowel l—: Como souberam onde procurar?
Sem aguardar a resposta do emissário, Dante centrou sua atenção na mensagem. Estava escrito de punho e com a letra de Willian.
‘’Dermott,
Embora esteja certo de que o conde de Kent tinha boas razões para deixar o crime de seu irmão sem solução até eu retornar a Inglaterra, estou considerando muito seriamente o assunto de sua serva, Gianelle Dejiat.
Embora você jure que a viu entrar no quarto de seu irmão, com uma taça na mão, devo confessar que me parece estranho que lorde Risande a tivesse retirado de seu serviço, sem que ter lhe aplicado nenhum castigo, se suspeitasse que tivesse cometido o crime.’’
Dante levantou os olhos e os fixou em Lowell.
— É mentira. Dermott jamais a viu entrar no quarto de seu irmão.
Lowell não respondeu, se limitou a esperar que Dante continuasse com a leitura.
“Não obstante, acatarei seu pedido, ordenando que ela lhe seja devolvida, à espera de minha volta. Mas o faço responsável, em caráter de fiel vassalo, para que não sofra dano algum enquanto estiver sob seus cuidados. E se lorde Risande a tomou por esposa, você não poderá tomar posse dela. Quanto à outra acusação que fez, confio plenamente em que lorde Risande saberá…’’
O olhar de Dante escureceu de raiva ao ler a segunda acusação de Dermott. Pôs o pergaminho nas mãos de Balin e tomou o emissário pelo pescoço com uma mão, enquanto lhe tirava a espada da bainha, com a outra. Antes que o companheiro de Lowell pudesse compreender o que estava acontecendo, Dante pôs sua própria espada na garganta e gritou:
— Mente! Entendeu? — rugiu, dirigindo-se a Lowell —. Diga ao desgraçado a quem você serve que venha em pessoa, buscar Gia se a quiser, e que eu arrancarei sua língua mentirosa.
Empurrou-o em direção a Balin e jogou atrás dele sua espada.
— Mostre a saída para estes dois.
Capítulo 14
Dante evitou Gianelle nos dias subseqüentes. Comia a sós em seus aposentos, isolava-se em seu escritório durante o dia, ou se afastava de Graycliff até o entardecer. Ela o observava cavalgar sobre as estreitas bordas dos escarpados, sob um céu ameaçador, com o ar salgado agitando seu cabelo e suas mangas. Seu aspecto era tão selvagem que parecia ser uma parte da paisagem.
Tentou convencer-se de que não se importava absolutamente que Dante voltasse ou não, mas o aguardava cada noite. Sentia saudades de seu sorriso galante, seus olhos fixos nela e sua voz repetindo seu nome.
Sua primeira reação foi zangar-se, mas, logo, seu coração se partiu. Era um sentimento que era muito conhecido e que tinha demorado anos para superar. A culpa era dela: era uma tonta se esperava outro comportamento da parte dele. Ela sabia que ele não se importava com ninguém e ela tinha caído em seus braços. Proibiu-se de chorar por ele, mas, às vezes, quando o via afastar-se a galope, ansiava por acompanhá-lo, imaginando que se fundiam em uma só silhueta.
Na sexta de noite, Dante retornou a seu lado.
Estava instalada no grande salão, participando sem entusiasmo de um bate-papo sobre costura com Casey e Desse, quando ele apareceu na entrada. Tinha um aspecto irresistível, com seu longo cabelo desordenado pelo vento, e uma barba de vários dias sombreando sua mandíbula. Encaminhou-se diretamente para Gianelle, sem saudar ninguém. Quando esteve frente a ela, a fragrância do vento e do mar a embriagou.
— Precisamos conversar.
— Será melhor que vá — recomendou Desse, enquanto ele se dirigia à entrada —. Foram poucas as vezes que o vi assim.
Gianelle duvidava, mas quando, ao chegar à porta, voltou-se para olhá-la, ela se levantou com um salto e saiu atrás dele.
— Edgar Dermott quer que volte — concluiu, fechando a porta de seu quarto.
— Como? Por quê?
— Porque assim o deseja. — Dante atravessou o quarto e se jogou sobre o divã. Parecia um príncipe contrariado, instalado sobre seu trono —. Possivelmente sinta saudades de sua presença em sua cama.
Gianelle se aproximou furiosa e deu uma violenta bofetada em Dante.
— Como se atreve a me falar desse modo?
— Tenho que acreditar que ele fez este pedido ao rei porque gostava de seu rechaço?
— Por que não? Você gosta — repôs, com o lábio inferior tremendo de indignação. Não podia acreditar que pudesse ser tão cruel. Conteve um soluço e o olhou enfurecida —. Envie-me de volta, então.
— Jamais. Mas quero que me diga a verdade.
— Você não merece nada de mim — respondeu e tentou sair, mas ele ficou de pé com um salto e atalhou a porta para impedir que ela a abrisse.
— Acreditei que Dermott te mataria, por isso te tirei dali. Quando nos emboscou, eu não compreendia como era possível que quisese te fazer mal. Pareceu-me que era para vingar a humilhação sofrida por seu irmão, quando saí em sua defesa. Mas realmente importa, Gianelle? Conhece-te e sabe o que é capaz de fazer quando se zanga. Por isso acredita que assassinou seu irmão.
— Ele não sabe nada de mim. Eu era simplesmente algo que ele desejava —expressou a jovem e apoiou-se contra a porta; fechando os olhos ao confessar — Quem me conhece é você.
Dante afundou o rosto no cabelo dourado e aspirou:
— Acaso te ama?
— Se o amor significa me submeter a sua vontade, se trata-se de me causar dor, ou se for egoísta e controlador, e cheio de exigências, então, oui, ama. Mas eu não poderia afirmar Dante. Não tenho idéia a respeito do que é sentir amor, exceto o que sinto por Casey.
“E por ti — desejava gritar com todas suas forças —. Por ti, antes que me abandonasse”.
— Você acredita que eu o amava? — perguntou em voz alta —. É por isso que se manteve a distância?
Dante a olhou nos olhos. Já não interessava o que estaria pensando. Precisava vê-la; sentia saudades de seu rosto.
— Eu tentei fugir, Dante. Esqueceu?
— Non — disse.
— Então, que importância pode ter que me queira? Não entendo.
— Porque disse ao rei que você e seu irmão eram seguidores de Hereward the Wake. Só me ocorre pensar que Edgar Dermott te acusaria pela paixão desprezada. Ele não tem provas de que tivesse assassinado seu irmão.
Gianelle o olhou diretamente, com incredulidade e horror em seus olhos.
— Então, se eu dissesse que Edgar Dermott não me amava, ou que eu lhe era indiferente, você acreditaria que eu pertenço ao grupo que odeia?
— Gianelle, Hereward sabe infiltrar espiões dos quais ninguém jamais suspeitaria.
Ela baixou os olhos. As lágrimas corriam por suas bochechas como gotas de cristal.
— Pensei que você me conhecia. Vejo que me enganei.
Dante lhe deu as costas e alisou os cabelos. Sabia que merecia cada expressão de repulsa e menosprezo de parte dela, mas não podia suportá-lo.
— Lamento ter duvidado de ti; mas não posso me permitir nenhum descuido.
— Entendo.
— Não, não entende — começou, aproximando-se da janela —. Não sabe como demorei a acreditar. Meu instinto me dizia que Dermott mentia. Mas eu não posso me reger por meus instintos, Gianelle. Confio na lógica e compreendi que devia haver uma emoção como o amor ou o ciúmes. Estava tentando agir com bom senso, e ao mesmo tempo, a idéia de que ele pudesse amar você me tirava do sério.
— Não seria melhor me perguntar, em vez de afastar-se de mim?
— Precisava pôr as idéias em ordem.
— Bem. Espero que tenha conseguido — soluçou; secou as lágrimas, mas seguiam caindo, a despeito de seus esforços para evitá-las.
— Efetivamente, consegui. Decidi que não vou te mandar de volta, mesmo que estivesse envolvida com Hereward. E depois de te interrogar, compreendi que nunca aceitaria.
— Aceitar o que?
— O rei ordenou que retorne a Dermott. A única maneira de evitá-lo é me casando com você.
Gianelle permaneceu em silêncio, por uns instantes. Elevou sua cabeça para olhá-lo e passou a mão para limpar as lágrimas de seus olhos.
— E você está disposto a fazer isso?
— Oui — repôs, sem hesitar.
— Deve ter sido muito difícil tomar essa decisão.
— Não foi tão difícil como estar aqui sem poder te abraçar, Gianelle. Fiquei louco ao me afastar de ti. Jamais voltarei a te tratar com crueldade. Juro por minha vida. E te peço que se case comigo.
Ela negou com a cabeça e deu um passo atrás, quando ele quis pegar sua mão.
— Dante, eu não posso me casar com você porque quer me proteger de Edgar Dermott. Não posso me casar com você por nenhum motivo.
— Por quê? — sussurrou. Aproximou-se e tomou seu rosto entre as enormes mãos, olhando-a com intensidade.
— Porque acho que me apaixonei por você. Sinto-me indefesa ante minhas emoções, presa por um homem que não quer cadeados nem grilhões para me submeter; basta seu sorriso — seus olhos resplandeciam à luz da vela, enquanto acariciava os lábios de Dante —, seus beijos e a doçura de suas palavras. Estou prisioneira neste lugar. Não quero abandonar este lugar que amo, embora me veja obrigada a suportar sua frieza. Você sente o mesmo em relação ao amor. Não deseja sentir-se preso. Você sente que isso o compromete e não aceita esse compromisso. — mordeu o lábio inferior e, logo, afastou-se —. Eu acredito que algo muito pior que amar é não ser correspondido — disse com voz pausada e saiu do quarto.
Gianelle soube que suas lágrimas surgiriam, irreprimíveis, embora se tapasse a boca e mantivesse os olhos firmemente fechados. Correu até seu quarto, amaldiçoando a todos os poetas por terem sido incapazes de descrever essa dor.
Quando despertou, no dia seguinte, Gianelle soube que Dante tinha ido ao castelo de lorde Richard Dumont. Não retornaria a Graycliff por um ou dois dias. Estava decidida a não pensar nele. Não se tratava de uma decisão devido ao orgulho ferido, nem à negação de seus sentimentos, mas para impedir que seus olhos se fechassem, por causa do inchaço. Durante anos tinha aprendido a controlar-se e agora não podia fazê-lo. Entretanto, sua emotividade sem barreiras oferecia um importante consolo: fazia com que se sentisse muito bem, quase como se soltasse uma boa gargalhada. Ao dar rédeas soltas a suas emoções, sentia-se mais livre do que jamais tinha imaginado.
Cruzou com Balin e Casey, que iam para a praia e a convidaram a acompanhá-los. A jovem a apressou com os braços, mas Gianelle se desculpou.
— Venha para se distrair — rogou Casey, cujos olhos não tinham um aspecto muito melhor que os seus, depois de ter compartilhado com sua amiga duas noites completas de pura tristeza.
— Non. Devo falar com Douglan.
Gianelle se encontrou com o lacaio de Dante, que trabalhava no despacho. Ela pigarreou, para fazer notar sua presença, e conseguiu que se voltasse para olhá-la, sem interromper sua atividade.
— Douglan, você sabe escrever?
— Que demônios te aconteceu! — gritou, alarmado —. Está doente? Está muito mal.
— Ora! Não estou doente; somente preciso que escreva algo para mim —Gianelle deu uma ampla volta, antes de sentar-se em uma cômoda poltrona —. Quero fazer chegar uma missiva ao rei William.
Sentou-se com as mãos pregadas no colo, disposta a começar.
Douglan não podia acreditar no que estava vendo. Depois de um instante de incerteza, deu uma gargalhada e se ocupou novamente de sua tarefa com os pergaminhos.
— É um assunto muito urgente.
Enternecido por seu aspecto e seu olhar, o lacaio suspirou, assentiu com a cabeça e empunhou a pluma de ganso.
— Compreenderá que deverei mostrar o conteúdo de sua mensagem a lorde Risande, antes de enviar.
— Não há tempo, Douglan. Entenderá à medida que for escrevendo: “Estimada Sua Majestade”.
Douglan elevou os olhos e sorriu.
— É suficiente dizer “sire” ou “Sua Majestade”.
— De acordo: “Meu nome é Gianelle Dejiat e Douglan está escrevendo esta carta, já que não sei escrever. Eu estava a serviço de Bryce Dermott, de Cambridge, antes que Dante me resgatasse”.
— “Lorde Risande” será mais apropriado — Douglan esclareceu, sem incomodar-se em olhar para ela.
— Oui, “lorde Risande”: “É por sua causa que estou escrevendo, quer dizer: que Douglan está escrevendo. Lorde Risande é uma pessoa muito obstinada, que sempre está disposto a fazer as coisas a sua maneira. Não desejo compará-lo de maneira nenhuma com meu amo anterior. É controlado e justo, amável e — secou os olhos — terno. Salvo pelo que aconteceu há duas noites. Mas isso foi porque Edgar Dermott lhe havia dito a você que eu era uma seguidora de Hereward the Wake — Douglan deixou cair a pluma. Gianelle esperou que voltasse pegá-la, com os olhos fixos nela, e continuou —: Mas Dante descobriu a verdade. Saiba você, senhor rei, que Edgar Dermott acreditou estar apaixonado por mim. Digo ‘acreditou’, pois agora que sei o que é o amor, compreendo que Dermott somente quer me possuir e me controlar. E aqui está o nosso dilema. Dante me disse que nunca retornarei a Devonshire e, tal como afirmei, ele é um homem que sempre consegue o que quer. Até me propôs matrimônio, para que eu não tivesse…”. Douglan, não está escrevendo.
Ele estava estupefato. Olhou-a com a boca aberta, até que lhe indicou, com um gesto, que se ocupasse do pergaminho; apertou os lábios e voltou a tomar a pluma em sua mão.
— Assim está melhor: “Eu, é obvio, neguei-me, coisa que foi muito difícil, pois parece que se Dante me quisesse, seria um maravilhoso marido. — Fez uma pausa, enquanto Douglan lhe alcançava um lenço —. Sua Majestade estou segura de que Dante não me enviará de volta e me preocupa pensar que você possa se aborrecer com ele, depois de haver ordenado que o fizesse. Você não pode imaginar a capacidade de persuasão que é capaz de exercer este homem. É inteligente e tem um poder de sedução irresistível. Eu sei que jamais ficaria contra você; porque o ama como a um pai. Só deseja me proteger de Edgar Dermott. Quanto a isto, não cederá, estou segura. Até conquistou meu coração e, embora eu saiba que você certamente terá escutado muitas coisas, a seu respeito, da parte de muitas mulheres, tenha certeza, que não foi nada fácil conquistar meu afeto. Rogo que seja misericordioso com ele, quando chegar o momento.
“E se você tivesse a graça de conceder que eu permaneça aqui, submeto a sua consideração a possibilidade de que envie a Edgar às posses de seu irmão, em Ely. Estavam acostumados a desfrutar de suas estadias ali, de modo que penso que não protestará muito. Do contrário, temo que envie mais homens para matar Dante. Se me conceder sua atenção um momento mais, quero assegurar que eu não sou partidária de Hereward the Wake. Jamais apoiaria um homem que se recusa a enfrentar seus inimigos, mas sim prefere esconder-se e deixar que outros briguem por ele.
Gianelle ficou de pé e devolveu o lenço a Douglan.
— Confio em que corrija devidamente meu texto. Temo que me falta sua eloqüência, ou a de Dante.
— Está perfeito — a resposta de Douglan evidenciava um renovado respeito por Gianelle.
Ela o agradeceu com um gentil sorriso e se retirou.
Capítulo 15
Com os braços sobre o cercado de madeira, Dante contemplava a arvoredo longínquo. Ao seu redor, resplandecia o verão. Os pássaros brincavam sob a folhagem de um antigo carvalho, cresciam flores junto ao cercado, enquanto uma única nuvem se deslocava lentamente no céu. Mas todo o colorido que enfeitava a cena era indiferente. Somente quando pensava em Gianelle as coisas ganhavam vida.
Merde, o que estava fazendo, longe dela?
Necessitava tempo para meditar sobre o que havia dito. De acordo: o amor compromete com a outra pessoa e ele sempre tinha rechaçado essa idéia, mas com Gianelle parecia extraordinária. Tinha todas as mulheres do mundo ao seu dispor, mas, sem ela, esse mundo perdia seu encanto. Tinha tentado conquistá-la para desfrutá-la na cama e tinha terminado por apaixonar-se. A possibilidade de que ela pudesse retornar a Dermott, que outro homem gozasse de seu amor, enlouquecia-o.
Por Deus, a amava, e era uma sensação maravilhosa!
— Dante — lorde Dumont interrompeu seu pensamento —. Pela primeira vez te vejo sorrir.
— Devo parecer um idiota — Dante sacudiu a cabeça, rindo de seus próprios gestos —, mas é o que acontece quando um homem se apaixona, verdade, Richard?
— Apaixonado, você?
— Oui, já sei o que pensa, mas este amor me consome em vida. É ela que me consome. Tentei negar, porque sou um estúpido, mas não desejo viver sem ela.
Richard calou-se.
— William tem a culpa. Cuidou de ti e de Brand, e saíram tão teimosos quanto ele.
— Retorno para casa, mon frère — Dante bateu nos ombros de Richard, abriu o portão e lançou um assobio para que trouxessem Ayla.
— Ande — apressou Richard, enquanto Dante montava com um salto —. Case com ela, o quanto antes, e que tenham uma dúzia de pirralhos.
A terra tremia sob os cascos da égua. Ao chegar às costas rochosas, transpô-las como se voasse, com as crinas ao vento, entre as mãos de Dante. Conhecia cada caminho e cada atalho que o levaria para casa, levando seu amo sobre o lombo.
A grade se elevou, mas ela não diminuiu o galope, nem Dante queria que o fizesse. Estendeu-se sobre o longo pescoço de seu corcel, passando debaixo dos pesados barrotes de ferro. Por fim, a égua se deteve, elevando-se e empinando no ar com graça espetacular.
— Oui — Dante bateu, levemente, no pescoço do animal —. Também eu me alegro de ter voltado para casa.
Desmontou com um salto, dirigindo-se diretamente ao portão.
Gianelle tinha aparecido na janela, quando escutou que elevaram a grade, e viu Dante chegar; seu coração acelerou e saiu em seguida do quarto. Não sabia por que tinha visitado lorde Dumont; somente rogava que não tivesse sido por causa de alguma mulher. No mais profundo de seu coração, estava segura de que não era esse o motivo.
Quase se chocaram no patamar de uma escada. Ali estava ele, mais fabulosamente belo que quando tinha partido.
— Perdoe-me por ter sido tão tolo.
— Acaso foi? — sorriu, sem fôlego —. Não tinha notado.
Tomou-a em seus braços, como se seu corpo não pesasse nada. Gianelle entreabriu os lábios, sorrindo ante sua avidez por um beijo. A boca de Dante desceu até a garganta dela, enquanto a levava em seus braços ao seu quarto. Abriu a porta com o pé e a deitou, com a maior delicadeza, sobre as peles.
— Desde que roubou meu coração, desejo ser um homem melhor; entretanto, quando te vejo, transformo-me em um selvagem. Acha que temo me apaixonar, ma fée? — sussurrou enquanto lhe beijava as pálpebras com doçura —. Daria a vida por você.
Apoiou um joelho sobre o leito e começou a lhe acariciar o rosto.
— Pensa que posso negar que estou apaixonado, quando cada sorriso seu me tira o fôlego? Non, meu coração não me permite isso. Como é fácil apaixonar-se por alguém que, ao menor contato, faz com que me sinta como se tivesse nascido de novo! Alguém que se apodera de sua alma com seus lábios! Olhe para mim, minha única amada, e veja como tem meu coração em suas mãos e quanto te amo.
Se tivessem aberto as janelas e lhe oferecessem a possibilidade de voar até o céu, a moça teria permanecido no quarto com Dante, para sempre.
— Quero que seja minha mulher. Quero ser o pai de seus filhos. Jamais te deixarei Gianelle.
Os olhos de Dante refulgiam com a paixão que fazia ferver seu sangue.
— E gozará comigo — paquerou ela, mordiscando o lábio inferior de Dante e passando a ponta da língua por seus lábios.
— Oui — respondeu, com um gemido de prazer —, assim será.
Seu olhar se aprofundou e percorreu o corpo de Gianelle com fantasias tão ardentes que o urgiam a acariciá-la de maneira cada vez mais apaixonada.
Por um breve instante, a jovem temeu que esse lobo faminto pudesse destrui-la por completo. O físico de Dante era grande e poderoso, mas em seus olhos não havia ameaça alguma: somente uma luminosidade suave e cheia de fascinação. Seus dedos eram ásperos, por causa do constante contato com as rédeas e a espada; mas, ao afastar uma mecha de seu rosto, era como se estivessem lhe fazendo a mais terna carícia.
Fechou os olhos, para ouvir os sussurros da fera, e tremeu sob as ânsias que ele confessou que o atormentavam. Temia não poder controlar seu desejo e assustá-la com seus arroubos passionais, mas cada uma de suas palavras acariciava a alma de Gianelle.
Oui. Era um homem único. Estava em guarda ante sua própria força, consciente da vulnerabilidade dela, e isso o fazia até mais forte. Mas havia algo mais. Algo que tinha ensinado na banheira e no sofá. Ela sentia que tinha poder sobre esse magnífico guerreiro. Sempre tinha estado à mercê dos homens, sem nenhum poder, por sua condição de escrava; agora, podia provocar no corpo de um homem como Dante Risande um doloroso desejo. Tinha o poder de lhe fazer perder o controle, de fazer com que chegasse a temer a tempestuosidade de seu próprio desejo. Fazia com que se sentisse uma mulher mais completa não só na intimidade, mas cada vez que a olhava. Gianelle se deleitava com essa idéia fechando os olhos com tal lassiDante que Dante teve que controlar-se para não lhe arrancar a roupa.
Ela estava nua e indefesa, sob seu olhar. Mas ele não a atacou. Simplesmente, ficou embevecido com sua formosura.
— Pelo amor de Deus, ma fée: sua beleza faz estragos em meu coração.
A jovem se ergueu e o colocou de joelhos frente a ela. Apertou a bochecha contra seu peito, enquanto Dante lhe soltava o cabelo e o aproximava de seu rosto. Ela percebia como inalava, apoderando-se de seu aroma, enquanto seus dedos afrouxavam habilmente os laços da camisa. Dante respirou profundamente e seu peito se dilatou sob os lábios de Gianelle, que se deslizavam por seu bem definido contorno.
Dante se libertou da camisa com um firme movimento dos braços, que fizeram tremer à mulher ao observar sua impressionante envergadura. Ela beijou seu torso nu e suspirou com as apaixonadas carícias em seu cabelo. Depois, Dante afastou um pouco sua cabeça, para que seus olhares se encontrassem.
— Não agüento mais a vontade de te possuir — sussurrou, com voz rouca e o fôlego descompassado, apressado pela inadiável necessidade de achar refúgio dentro do corpo de Gianelle. Percorreu suas coxas com os dedos, começando pelo lado externo, explorando a delicada cavidade atrás do joelho, e as suaves curvas de suas nádegas. Sem que ela soubesse como tinha acontecido, as botas e as meias de Dante voaram através do quarto.
Nu, grande e formoso, recostou-a sobre a cama. Dante a cobria dos pés a cabeça e Gianelle se deleitava com a força e o predomínio que exercia com sua mera presença. Ela tremia em seus braços, mas não por temor, e sim por uma necessidade tão primitiva como a que o impulsionava. Quando ele separava sua boca da dela, Gianelle voltava a aproximá-la, porque precisava que penetrasse em sua carne, para apagar o fogo que a abrasava sem piedade. Dante deslizou por todo o seu corpo, com beijos que a marcavam como fogo. Acariciou as suaves curvas de seus seios e envolveu com sua língua os bicos, que se encolheram e endureceram sob seu sedoso estímulo. Cada uma das formas que Dante escolhia para tocar estimulava de maneira cada vez mais urgente, avivando-a até fazer com que se retorcesse com desespero.
Dante se ajoelhou sobre ela, dominante. Elevou-a até pôr seus seios ao alcance de sua ânsia devoradora, lambendo e saboreando cada um. Gianelle se contorcia, arranhava os rígidos e potentes braços que a aprisionavam e clamava por Dante, em meio a sua ardente respiração. Sem poder evitar, arqueou as costas, procurando a espada sedosa que palpitava sobre sua coxa. Queria sentir-se reclamada por esse homem. Já.
Sua língua, seus lábios, sua boca a percorriam, retornando ao pescoço, procurando essa boca insaciável. Quando ele ergueu a cabeça para olhá-la, Gianelle conteve o fôlego, pois estava vendo um lobo. Seus negros cabelos caíam e denotavam vigor; uma tormenta obscurecia seu olhar, como uma advertência. Uma advertência de que estava a ponto de apoderar-se dela, e de fazê-lo com ferocidade. Já não havia nenhum temor em seu olhar; agora revelava somente a infinita urgência por concretizar a posse. E ela o desejava mais que qualquer outra coisa na vida.
Dante a deitou e acariciou a suave cavidade de seu pescoço, enquanto sussurrava seu nome e lhe separava as coxas com o joelho.
Penetrou-a com delicadeza, gemendo com febril sujeição, até que sentiu que ela estava pronta para recebê-lo plenamente. Então, um doce trovão invadiu as entranhas de Gianelle . Era como se a luz das estrelas caísse sobre ela, sacudida até o mais intimo de seu corpo pelas investidas de Dante. Gianelle fechou os olhos e jogou a cabeça para trás, suspirando de maneira entrecortada. O que estava fazendo? Fosse o que fosse, produzia um prazer intenso e pecaminoso, que a impulsionava a lhe rodear os quadris com as pernas, para aproximar-se até mais e senti-lo mais profundamente dentro dela.
Ele se apoiou sobre suas mãos e ela sorriu. Sua carne, ardente e dolorosamente rígida, empalava-a, impulsionada pelo vigor dessas coxas que subiam e baixavam lentamente. Ele se retirava um pouco e, imediatamente, penetrava-a outra vez, no mais profundo, mais e mais, até que a deliciosa fricção fez com que lhe fincasse os dentes no ombro.
A paixão que arrancava enlouquecia Dante ainda mais, como se até esse grau de união não bastasse. Olhou-a nos olhos. Seu olhar era profundo, surpreendente e intenso. Por que a observava, como se ela estivesse a ponto de sair voando e ele devesse segurá-la? Ele estava tomando posse dela, sem nenhuma objeção de sua parte: marcava-a, reclamava-a e lhe pedia mais.
O ardor de Dante a transtornava, fazendo com que apertasse sua cintura com as pernas, desfrutando que ele a segurasse pelas nádegas e acariciasse suas coxas, para intensificar a sensação de que seus corpos se aproximavam cada vez mais. Suas estocadas eram cada vez mais furiosas, até que ela acreditou que perderia a razão. Ofegava e apertava os dentes para não gritar de gozo. Santo Deus! Era ela quem gemia agora!
Mas seus gemidos somente foram um estímulo a mais para Dante, que sorriu. E essa foi sua perdição, a provocação que desatou as amarras. De repente, com furor, explodiu a luz, como uma explosão dentro do corpo de Gianelle. A paixão se derramou em seu interior. Articulou seu nome em voz alta, em sua agonia, contraindo-se em espasmos debaixo e ao redor do corpo dele.
— Sou tua — disse, entregue por completo.
Dante gemeu e ficou rígido, como se tivesse levado uma chicotada. Seu corpo a perfurou, tenso, inchado, transbordante. Gianelle voltou a lhe arranhar os braços, as costas e a rigidez de suas nádegas, desfrutando sem inibições de suas potentes investidas. Então, Dante reduziu o ritmo e um áspero grito gutural escapou de sua boca. Avançou como uma besta imensa e temível, retrocedendo logo, para voltar a investir, com as mandíbulas apertadas. Ela sentiu como explodia nas profundidades de seu corpo. Ele a estava marcando para sempre, enchendo-a até fazê-la transbordar.
— Minha vida — sussurrou Dante quando descansavam —, verdade que Edgar Dermott se aproveitou de ti?
Não tinha dado uma resposta clara da primeira vez que ele tinha feito uma pergunta a esse respeito. Neste mesmo momento, a idéia o enfurecia: “Devia tê-lo matado”.
— Non, Dante. Nunca compartilhei a cama com Edgar. Ele desejava fazê-lo, mas eu pertencia a seu irmão. Embora meu senhor levasse muitas servas a sua cama, negava-se a compartilhá-las. Você me salvou. E logo me libertou, inclusive dos muros que ergui ao meu redor. Passarei a vida pensando em formas de te agradecer por isso
—Toda a vida? — sorriu Dante com curiosidade.
Ela devolveu o gesto, assentindo, pois sabia que, ao fazer essa promessa, estaria distraindo-o da preocupação por seu passado.
Dante se acotovelou, apoiando a cabeça sobre seu braço.
— E já pensou em algo?
Quando ela riu, ele a acompanhou, enquanto se deleitava com cada ângulo que revelava distintos aspectos de sua beleza.
— Bem, pensei que poderia começar por…
— Milord! — chamou Douglan à porta.
Violentos insultos pronunciados por Dante não impediram que Douglan insistisse.
— Matarei-o — rugiu Dante, saltando da cama. Enrolou uma das peles ao redor da cintura e partiu para a porta. Antes de abri-la, voltou os olhos em direção ao leito e sorriu. Gianelle estava completamente oculta sob as peles.
— Você pretende me fazer acreditar que esteve escondido aqui todo o dia? —Douglan entrou no quarto, apontando com um dedo acusador a seu amo —. Eu nem sequer sabia de sua volta.
Seus olhos se desviaram para a cama, onde observou que o monte de peles se movia ligeiramente para a esquerda.
— É Gianelle — explicou Dante.
— Oh — o lacaio sorriu com espontaneidade —. Olá, Gianelle.
Uma mão branca apareceu debaixo das peles e se agitou, em uma saudação.
— O que aconteceu, Douglan?
O servo se voltou e lhe deu um olhar irado:
— ”O que aconteceu, Douglan?” É tudo o que tem para dizer?
— Oui.
— Bem, para sua informação, enquanto você estava aqui em cima, sem incomodar-se em me comunicar que tinha retornado, chegou uma missiva do rei. Estará de volta a Inglaterra antes que tenhamos lua cheia e quer que você o aguarde em Winchester. Também, tenho notícias que seu irmão se encontra a umas vinte léguas daqui, e chegará amanhã pela manhã.
— Magnífico, chegará bem a tempo para minhas bodas.
— Suas bodas? — desconcertou-se Douglan. Atrás dele, Gianelle apareceu —. Como farei os preparativos para suas bodas, ou terei tempo de fazê-lo, se…?
— Chega para você uma semana?
— Bem, eu…
Dante ergueu um dedo, pedindo silêncio a Douglan, enquanto se aproximava da cama.
Gianelle o olhou e sentiu que a percorria uma onda de calor, ao sentir que tentador estava usando apenas uma pele e um sorriso.
— Casará comigo, Gianelle?
— Não quero que faça isto porque deseja se mostrar galante e por temor de ter me desonrado, depois de — sua voz era um sussurro —, já sabe.
Dante assentiu e deu um sorriso indulgente.
— Essa seria uma péssima razão para te pedir que fosse minha esposa.
— Ou porque queira me proteger.
— Mas desejo te proteger. — Seus olhos se fixaram sobre ela e pareceram querer controlar cada um de seus movimentos. Ela não podia afastar a vista.
— Você é um nobre e eu uma ser…, uma plebéia — recordou, dando um pretexto para retirar o oferecimento.
Dante levou a mão dela aos lábios.
— Meu amor, sou eu quem se sentiria honrado se me aceitasse por marido.
Ela abriu a boca, sem poder emitir uma palavra, salvo uns sons incoerentes que faziam com que se ampliasse o carismático sorriso de Dante.
— Oui — conseguiu articular Gianelle, rindo, e se jogou em seu pescoço.
— Douglan! — Dante se fez ouvir, sua voz perturbada pelo desejo que renascia nele, enquanto Gianelle o abraçava, sussurrando em seu ouvido.
— Às ordens, milord.
— O que faz aqui? Tem que organizar uma festa de casamento.
— Se você me permitir, milord, opino que fez uma sábia escolha.
— Obrigado, Douglan. Agora, suma.
Dante já estava se deitando sobre sua futura esposa, antes que terminasse de fechar a porta.
Capítulo 16
Casey entrelaçou o último fio de cor verde esmeralda no cabelo de Gianelle e o prendeu, com outro par de tranças similares, formando uma coroa sobre sua cabeça. Com umas escovadas dos cachos de cabelo loiros que caíam sobre as costas, completou o penteado de Gia. Casey tinha estado ocupada, desde a alvorada, em vestir sua amiga com um longo traje de seda bizantina dourada e um casaco enfeitado com laços de tom esmeralda. Agora contemplava o resultado de sua tarefa, vendo sua amiga de corpo inteiro.
— O que acontecerá se não agradar lorde Brand? — Gianelle caminhava em frente à cama, satisfeita de ter-se libertado das mãos laboriosas de sua amiga —. Suponhamos que a sua mulher pareça…
— Que você é muito formosa para se casar com alguém como eu — concluiu Dante, recostado contra o marco da porta, com aparente indiferença, enquanto seu coração estava a ponto de explodir. Permaneceu imóvel por um instante. Se seu desejo de tomar Gianelle em seus braços não fosse tão urgente, teria ficado olhando-a embevecido, deslumbrado por sua delicada beleza. Quando ela inclinou sua cabeça para dissimular o rubor que sua atenção lhe provocava, Dante se aproximou. Nem sequer notou que Casey passava ao seu lado, para sair do quarto com um sorriso de satisfação. Somente via sua fada selvagem, transformada em uma tímida princesa. De pé frente a ela, temeu que, ao tocá-la, fosse desaparecer ante seus olhos.
— Ordene-me que caia de joelhos para te render as honras que merece e o farei, minha bela dama.
— Não sou mais que uma camponesa, milord — respondeu Gianelle, sob suas longas pestanas. Suas palavras fizeram com que Dante quisesse chorar de felicidade, enquanto ela sofria pensando que, se o olhasse, seria ela que romperia em lágrimas.
Começou por lhe tocar um dedo e logo outro, até que suas mãos ficaram entrelaçadas.
— Que logo será minha mulher — adicionou em voz baixa e com emoção. Tinha vontade de aprisioná-la entre seus braços e entregar sua alma com devoção —. Olhe para mim, mon amour.
Gianelle levantou os olhos cheios de um amor e um desejo que nunca havia sentido. Ele se inclinou para lhe separar os lábios com delicadeza e aproximou sua boca da dela.
Gianelle suspirou ao mesmo tempo em que seu corpo se apertava contra o de Dante, que a subjugava com seu desespero por possuí-la. Seu corpo dava sinais do fogo que o consumia e ela, longe de resistir, abraçou seu pescoço com mais força.
Com suas mãos sob o casaco, Dante acariciou as nádegas de Gianelle. Deslocou seus quadris, em um movimento lento e intensamente sensual, de maneira que as coxas de Gianelle acariciassem toda a extensão de sua virilidade. Seu contato se intensificou. Seu beijo se tornou mais urgente, mais selvagem, até que Gianelle se sentiu tão quente que teve vontade de arrancar a roupa e ficar nua frente a ele.
— Escuto gritaria de crianças.
A voz rachada do James se fez ouvir ao seu lado e Gianelle atinou a desprender-se violentamente do abraço de Dante. Entretanto, ele a arrastou novamente para si e fulminou com o olhar seu sorridente servo.
— Maldição, James, acaso não aprendeu a bater antes de entrar no quarto de uma dama?
James enfocou com seus olhos cegos seu amo, com uma expressão zangada de confusão.
— Claro, teria batido na porta, se não estivesse totalmente aberta, para que todo aquele que passasse o visse estreitado nos braços de sua dama.
Dante olhou, ofuscado, para a porta aberta e Gianelle custou a reprimir a risada ante a astúcia do ancião, que tinha inclinado seu ouvido para detectar sons que ninguém mais podia captar.
— Seu irmão se aproxima — pronunciou — e um de seus filhos está armando um alvoroço espantoso. — Sacudiu a cabeça e tapou os ouvidos—: Não haverá paz em Graycliff com toda essa gritaria. Tenho certeza.
Dante quis dirigir-se para a porta, com Gianelle; mas ela se soltou com um puxão. Ergueu um jarro, dirigindo um sorriso a Dante.
— O que é isso?
— Vaga-lumes. Ontem à noite saí para recolher com James — explicou Gianelle.
O agudo ouvido de James tinha acertado, embora o conde de Avarloch e sua família ainda não tivessem cruzado a ponte levadiça, quando Dante e Gianelle saíram do castelo.
Ao escutar os alaridos infantis, James retornou correndo para o interior, no entanto Gianelle forçava a vista para espionar seus hóspedes. Ao seu lado, Dante sorria para sua prometida. Reconfortava-lhe observar que sua ansiedade, ante o encontro com seu irmão, tinha diminuído. Oui era perfeitamente capaz de resistir ao mais severo interrogamento da parte do rei William. O coração de Dante transbordava de orgulho quando a puxou pela cintura, no momento em que os viajantes ingressavam no pátio.
— Alguns o chamam “Brand o Apaixonado” - sussurrou ao ouvido, inclinando-se para Gianelle —. Cuidado com seu sorriso, meu amor, pois se chegar a te cativar com seu feitiço, terei que desenbainhar minha espada contra ele.
Dante lhe deu uma piscada de cumplicidade, mas Gianelle já havia se soltado de seu abraço e teve que conformar-se vendo como corria em direção de seu irmão.
Lorde Brand Risande estava a ponto de entregar seu pequeno de três anos, que gritava para um de seus escudeiros, quando se surpreendeu ao encontrar-se com o olhar dourado de uma formosa mulher.
— Bom, bom, meu pequeno — disse ela, tomando o menino em seus braços —. Por que grita assim? — Estreitou-o com carinho, enquanto beijava seus cachos de cabelos avermelhados. Deixando de lado o pai, depositou o menino sobre o piso e se ajoelhou junto a ele, sem importar a terra que manchava seu vestido —. Se continuar assim, assustará todas as luzes mágicas que as fadas trouxeram para ti — e apontou o jarro cheio de vaga-lumes, para que o examinasse.
O menino deixou de chorar e passou a mão pelos olhos.
— Insetos — foi à palavra que se escutou, depois de um último soluço.
— OH, mas não se trata simplesmente de insetos. Olhe.
Gianelle tirou a cortiça e colocou a mão, tirou um vaga-lume que poUsou em seu dedo, fechou novamente o jarro. Segurou o inseto ante o olhar do pequeno, assombrado e feliz de ver como se iluminava sua parte posterior. O vaga-lume voou e aterrissou sobre o nariz de uma menina, apenas uns anos mais velha, cujos belos olhos verdes ficaram vesgos, quando quis olhar para onde o inseto pousou.
— São para mim? —perguntou para Gianelle.
— Santo céu! Não! Juntei-os para que vocês os vissem, mas agora devemos libertá-los. Ajudarão a fazer?
A menina deu um sorriso, exibindo uma covinha tão encantadora como a de seu tio.
— Como se chama pequena?
—Tanon Elizabeth Risande.
A garotinha tomou um cacho de cabelo negro que lhe caía sobre os ombros e meteu o polegar na boca.
— Muito bem, Tanon Elizabeth Risande. Precisaremos de seu polegar para pôr em liberdade os vaga-lumes. — Gianelle girou ainda abaixada, para o menino — Precisaremos de sua ajuda também. Quando sua irmã tirar a cortiça e sacuda o jarro, deverá gritar com todas suas forças: “Voem já!”.
—Voe já! —gritou o menino.
Gianelle riu, e ajudou à menina a desentupir a cortiça, enquanto a pequena sacudia o jarro, deixando cair os insetos sobre o pasto antes que levantassem vôo, em plena liberdade.
—Voem já! — animou Gianelle.
— Voe já, bichinhos!
— Foram embora — pronunciou Tanon, enquanto apareciam as lágrimas em seus olhos e seu polegar voltava para a boca.
Gianelle lhe enxugou as lágrimas e acariciou seu cabelo.
— Bem, esta noite estarão de volta, justo antes que você e seu irmão… como se chama?
A moça tirou o polegar da boca o tempo necessário para recitar:
— William Robert Risande.
—… William Robert Risande for dormir, para que tenham um sonho feliz. Se olharem para nossa janela, poderão ver.
— É maravilhosa.
Gianelle elevou os olhos para o homem que lhe estendia a mão, enquanto falava.
— Quem é você? Rogo que nos acompanhe de volta a Avarloch, para ser a ama de nossos pequenos.
Gianelle procurou Dante com o olhar. Sentia-se insegura em seu novo posto de futura ama do castelo e não tinha certeza do que se esperava dela. Descobriu seu prometido abraçado a uma bela mulher, que carregava outra criatura, menor e ruiva nos braços.
— Lorde Brand — saudou Gianelle, fixando sua atenção novamente sobre o homem que não lhe soltava a mão. Inclinou a cabeça e ajoelhou-se, como corresponde aos servos —. Bem-vindo a Graycliff. Eu sou Gianelle.
Ao sentir seus lábios sobre os dedos, levantou a vista para ele. E o conde do Avarloch sorriu.
Gianelle nunca tinha acreditado em nenhum homem, antes de conhecer Dante. De fato, eram poucos os que lhe agradavam. Mas o sorriso de lorde Brand Risande era tão cativante, tão sincero e formoso, que Gianelle se sentiu cômoda e devolveu o gesto. Tratava-se de um homem irresistivelmente atraente, mas menos parecido a Dante do que ela teria imaginado. Embora tivessem o cabelo igualmente negro, lorde Brand o usava mais curto. Seus olhos, de um azul esverdeado, recordavam a Gianelle seu amado mar.
— Qualquer pessoa capaz de fazer com que meu filho deixe de chorar… — se deteve, rindo, e sua risada, como sua voz, tinha o efeito de uma brisa cálida em um dia de inverno —. Estou tentado a perguntar se tem um par de asas nas costas. É tão reconfortante como um anjo e não menos encantadora.
— Merde. Deixo você com minha prometida por um instante e já faz com que ruborize.
Ao voltar-se, Gianelle viu vir Dante, acompanhando a espantosa ruiva, e levando Tanon e William em seus braços.
— Sua o que? — perguntou Brand, surpreso —. Escutei bem? — Voltou a olhar para Gianelle, de um modo completamente diferente —. Qual é sua magia, que conseguiu persuadir este libertino para que se case?
— Persuadir? Foi preciso que lhe rogasse. — Dante beijou seus sobrinhos, antes de deixá-los no chão.
Gianelle presenciou sorridente, o abraço entre os dois irmãos e lhe apresentaram à mulher que tinha a seu lado.
Tudo relativo à lady Brynnafar Risande era delicioso. Sua espessa cabeleira acobreada caía esplendorosamente sobre os ombros. Seus chamativos olhos eram da mesma cor que os de sua filha. Era alta e tão elegante que fazia com que Gianelle se sentisse como uma desajeitada jovenzinha.
— Irmã — disse, abraçando Gianelle com ternura —. Foi muito inteligente o que fez com os vaga-lumes.
— As crianças são uma bênção — disse Gianelle, acariciando a bochecha do bebê, que dormia nos braços de sua mãe —, e você foi muito abençoada.
— É certo. Mas, às vezes, tenho vontade de me mudar para um dormitório independente e trancar a porta desde… Ai! — Brynna deu a volta, dando um tapa para tirar os dedos de seu marido, que acabavam de lhe beliscar o traseiro — Isso doeu, descarado!
— Então, pensará duas vezes antes de voltar a dizer algo tão detestável.
— Canalha — resmungou Brynna, quando recuperou o fôlego. Sorriu novamente para Gianelle e, depois, tomando-a pelo braço como se se conhecessem sempre, caminhou com ela para o castelo.
Sem saber quais seriam suas obrigações, Gianelle procurou com o olhar a Dante, em busca de ajuda. Dirigiu-lhe um sorriso, enquanto caminhava mais atrás, junto a Brand.
— O que te traz a Graycliff?
— Já sabe que estamos acostumados a passar os verões em Winchester, com William — disse Brand — Quis te ver antes, pois estava bastante preocupado, Dante. A morte de Katherine não foi fácil para nenhum de nós; mas acredito que você foi o mais afetado.
— Estou bem, irmão. Gianelle trouxe nova vida a meu coração.
— Deve me contar tudo a respeito dessa mulher que capturou seu coração indomado.
Gianelle olhou para trás e surpreendeu Dante devorando-a com os olhos.
— Combinamos tacitamente que nenhum dos dois tentará domar ao outro.
— Mmmh — sorriu Brand e fixou sua vista nas luxuriosas curvas do traseiro de sua mulher — Sempre falei que não há nada melhor que uma boa dose de selvageria entre um homem e sua mulher.
Nessa noite houve um grande festim no salão do palácio, em honra aos visitantes. A carne de vitela fervida e as fogaças crocantes de pão de centeio abriram o apetite, à espera do bacalhau e tubarão ao forno, além de sete leitões que Ingrid preparava. Havia também bolos de pêra, bolos de ave e suficiente vinho e cerveja para manter todos os homens de Graycliff em um estado de total bebedeira, durante uma semana inteira.
Gianelle comeu, sustentando o pequeno William no colo e assegurando-se de que a comida não estivesse tão quente para que queimar a boca da criança. Tanon estava sentada ao seu lado, tagarelando sem cessar sobre os vaga-lumes. À direita da anfitriã, localizava-se Brynna e lhe cochichou algo ao ouvido, que fez com que Gianelle soltasse uma gargalhada.
Dante e Brand estavam sentados em frente das damas, comentando o extraordinário fato da semelhança entre Casey e Katherine. E, por, mais que Dante se esforçasse para concentrar sua atenção na conversa, seu olhar sempre terminava em Gianelle. Ao ver como se dava bem com as crianças, alegrou-se pensando que logo teriam sua própria família. Quando ela ria, via-a tão despreocupada, tão assombrosamente formosa, que desejava lhe arrancar de sua cadeira e levá-la para o quarto. Sorriu ao perceber que também para ela era difícil deixar de olhá-lo com olhos sonhadores.
— É formosa — comentou Brand, alegrando-se de ver seu irmão tão feliz — Mas devo reconhecer que, pelo que você me contou, é provável que William não se convença tão facilmente de sua inocência.
Dante deu a volta, olhando seu irmão.
— Eu o convencerei.
— Está sendo acusada de ter assassinado um conde, Dante, embora reconheça que mais parece um anjo que uma assassina.
— Irmão — disse Dante olhando Brand com olhos capazes de fundir o ferro durante um combate —: Gianelle não matou ninguém.
— Diabos! Você está apaixonado. Brynna quase me convenceu de que nenhuma mulher jamais conseguiria fazê-lo. Não finja estar horrorizado, frère. A criada de Brynna, Alysia, faz dois anos que está casada; mas quando passo pela cozinha, a determinadas horas, nunca deixo de escutar seu discurso apaixonado, com o relato de suas habilidades.
— Penso que uma boa surra, entre outras coisas, serviria para que mantivesse a boca fechada — Dante o olhou indignado e depois dirigiu a vista para Gianelle.
Seu irmão riu.
— Ela não dominou sua arrogância.
— É arrogante saber que posso te vencer na luta? — desafiou Dante.
— Ah, de modo que esteve praticando?
Ambos riram e, depois, Brand anunciou que era tarde e hora de ir dormir.
— A viagem foi longa e tenho saudades de uma cama quentinha. — Ao sorrir para Brynna, ela saltou de sua cadeira para reunir as crianças. Vendo que suas bochechas se avermelhavam, Brand levantou-se depressa.
— Me permitiria levar as crianças para dormir? — perguntou Gianelle — Lady Brynna deve estar cansada depois da longa viajem, e eu prometi um conto para William.
Brand deu seu consentimento e dirigiu um sorriso de aprovação, em direção ao seu irmão, enquanto estendia sua mão para Brynna.
— Ignoro a razão pela qual a considera inocente, mas confio em seu critério, Dante. E estou muito feliz por ti.
Gianelle viu o casal sair, sussurrando coisas ao ouvido e sorrindo como se fossem noivos a ponto de compartilhar sua primeira noite. Voltou seu olhar para Dante, que acabava de ficar de pé e se aproximava dela. Não conseguiu fazer mais nada além de sorrir. Somente olhar para ele, nublava seu juízo. Sentia-se tentada a refugiar-se nos braços desse homem que a tinha tratado como algo valioso, pela primeira vez.
— Gianelle?
— Sim? — olhou para ele. Sorria com ternura! Olhava-a nos olhos e sentia como suas vísceras se retorciam sob o crescente ardor desses olhos cinzentos, que lhe recordavam que Dante sabia como fazê-la gritar: de prazer, não de dor.
Escutou-o rir brandamente e piscou para dispersar seus pensamentos licenciosos. Absolutamente mortificada por ter sido descoberta em flagrante ato de professar sua admiração por ele, saiu apressadamente, passando ao seu lado, e disse:
— Vamos, crianças, é hora de ir dormir.
Dante se adiantou, vendo o rebolado de seus quadris, e se aproximou por trás, bastante perto para poder inclinar-se sobre sua nuca e sentir o aroma de seu cabelo.
— Devo te seguir como um lacaio, à vista de todos, em meu castelo?
O coração da jovem pulsava ferozmente ao sentir seu contato. A calidez de seu fôlego sobre a nuca avivava seus sentidos.
— Se quiser — retrucou com arrogância, resistindo ao impulso de voltar-se para beijá-lo. Tentou resistir ao efeito que estava tendo sobre ela, mas fracassou, ao sentir que colocava suas mãos sobre seus quadris. Aproximou o traseiro dela, sem parar de caminhar.
— O que desejo — começou, com a voz rouca, enquanto ocultava o rosto em sua cabeleira — é que vamos ao meu quarto agora mesmo.
Dante percebeu que o corpo dela tremia em resposta a suas palavras, e a tomou pela cintura.
— Ainda falta uma semana para que eu seja sua mulher — disse Gianelle, querendo aparentar frieza, mas mal estava em condições de pensar com coerência. O corpo masculino a cobria, exercendo seu predomínio.
— E você acha que isso me deteria?
Ela sabia que devia pôr distância entre seus corpos; mas levantou a mão para cobrir a de Dante.
— Vai me fazer tropeçar — tentou protestar, mas sua voz soou como um lânguido ronronar. Percebeu que tinha apoiado sua bochecha contra o peito de Dante, acariciando sem dar-se conta.
Então, lembrou-se das crianças e seus olhos se arregalaram. Tanon estava olhando e deu-lhe um sorriso. William tinha ficado para trás e esfregava os olhos sonolentos com os punhos.
— Olhe o que fez! — disse bruscamente a Dante. Tomou a mão de Tanon e com a outra ergueu William.
Dante a observou, com um amplo sorriso, e se aproximou para ajudá-la.
Capítulo 17
Brynna, Casey e Desse vestiram Gianelle com um traje de bodas celeste, que tinha pertencido à mãe de Dante, lady Andrea Risande, que, por sua vez, tinha recebido de sua mãe. Era um vestido cheio de botões, tradição de família, que estava destinado a Katherine, para quando se casasse. Gianelle se emocionou até as lágrimas quando Dante lhe pediu que o pusesse e rogou que, se tivessem uma filha, desse a ela oportunidade de continuar com a tradição.
O vestido tinha um trabalhado extraordinário. O pescoço era alto e justo; as mangas, amplas e bufantes. O vestido a rodeava por baixo da cintura com um material suave e claro, encravado com cristais que refletiam os tons dourados e prateados do quarto. Suspirando atrás de sua amiga, Casey decorava com fileiras de pérolas o grosso trançado da cabeleira de Gianelle.
— Não posso acreditar que isto esteja acontecendo — sorria enquanto trançava seus cabelos.
—Tampouco eu — murmurou Gianelle.
Enquanto fazia os últimos ajustes no vestido, com dedos ágeis e habilidosos, lady Desse observou à noiva.
— Pelo amor de Deus, está de causar pena, Gianelle.
— Oh, Gia, está bem? — Casey se esticou por cima de seu ombro, para ver o rosto —. Lorde Risande é maravilhoso: tão belo e gentil que todo mundo o ama.
— Oui. Esse é o problema, mas não estou triste — disse Gianelle, respirando fundo, com os olhos fechados.
— Então, a que se devem tantos suspiros? — perguntou-lhe Desse. Gianelle mordeu o lábio, enquanto preparava uma resposta. Seu olhar cruzou com o de Brynna e se dirigiu a ela:
— Seu marido é um homem muito atraente. Seu sorriso é…
— Sei — lady Risande compreendeu que faltassem as palavras, e sorriu.
— Não se preocupa que, havendo tantas mulheres… que ele chegasse a…?
— Não — Brynna se aproximou e tomou as mãos de Gianelle —. E você tampouco deve preocupar-se. Tanto Brand como Dante valorizam a lealdade acima de tudo. Não só a esperam dos outros; também eles se comprometem.
— Mas em qualquer lugar que vá, as mulheres paqueram com Dante. E, depois de tudo, é um homem. Compreende?
— Sim, percebi — Brynna riu.
— Todas nos demos conta — sustentou Desse, dando um último ponto.
— Vê? — suspirou Gianelle —. Até Desse notou.
— Oh, santo céu, é obvio que notei — Desse deu uma batidinha em sua perna —. Não sou cega. Mas eu nunca paquerei com ele, e tampouco o faria. Estou muito contente com Malen.
— E o que aconteceria se cansasse de mim?
— Oh, não comecemos — protestou Casey.
— Sim. Vamos começar — Gianelle descarregou um olhar carrancudo sobre sua amiga que, aturdida, deixou cair duas pérolas.
— Fique quieta — avisou e retomou seu trabalho.
Gianelle suspirou e, com tom meditativo, perguntou:
— O irmão do rei William é o bispo, verdade? Dante poderia cansar-se de mim e fazer com que nosso matrimônio fosse declarado nulo.
— Para isso, teria que se dirigir a Igreja, querida — apontou Desse, sem incomodar-se em levantar a vista do vestido.
— Vocês não o conhecem! — argüiu Gianelle, para justificar-se —. Tem fadas nuas nas paredes de seu quarto.
Casey riu, enquanto alisava uns cabelos soltos, à altura das têmporas de Gianelle. Desse chiou, por haver cravado com um alfinete, e meteu o dedo na boca.
— Eu o conheço — se adiantou Brynna —. Conheço sua fama com as mulheres e compreendo que se assuste. A mim, francamente, surpreendeu-me que te apresentasse como sua prometida. Mas, Gianelle, você conseguiu o que nenhuma outra conseguiu antes. Conquistou seu coração. E deve acreditar se te disser que, uma vez que conquiste o coração de um Risande, será teu para sempre. — Os ombros de Gianelle se afrouxaram e o brilho esmeralda dos olhos de Brynna resplandecia de felicidade —. Eu não tenho irmãs. Virá me visitar freqüentemente?
— Oui — prometeu Gianelle, abraçando-a.
Centenares de velas acesas se refletiam nos olhos de Dante, enquanto inspecionava a capela. Sacudiu a cabeça, descontente, e se voltou para seu irmão:
— Aqui não caberão todos os convidados e os aldeões, que continuam chegando. Amaldiçôo o inútil do Douglan! O cretino conseguiu distribuir muitos convites.
A sua esquerda se encontrava Balin, que coçava a barba bem feita, e concordando, acrescentou:
— E o pior é que acaba de chegar Conrad Lowell.
— Ao menos, não vejo Dermott. Vigia-os, e se algum deles fizer o menor movimento, com intenção de interferir na cerimônia de casamento, mate-o.
Balin olhou com incredulidade em direção de Brand e, logo, dirigindo-se a Dante, perguntou:
— Não te parece que seria pouco aconselhável fazer isso em um casamento?
Dante negou com a cabeça:
— Non, decididamente, não.
— Uma coisa assim nunca interferiu com nenhum casamento dos que eu estive — observou Brand, sem alterar-se —; mas, acredito que meu irmão passou muitos anos a serviço de William.
Dante sorriu pela primeira vez essa manhã e saiu furioso, em busca do frade. Balin o observava. Estava decidido a matar um homem por querer deter o casamento? Por Deus, Dante amava de verdade essa moça! Já estava na hora!
Ninguém podia alegrar-se mais por seu senhor do que ele. Tinha presenciado sua terrível mudança, depois da morte de Katherine; quando o céu escureceu e Dante ia de um lado para outro do castelo, angustiado por sua culpa e seu pesar, amaldiçoando o vento e a terra, e a todos seus habitantes. Gianelle lhe havia devolvido a alegria de viver. Mas estar disposto a matar alguém por ela era inacreditável.
Observou Dante, enquanto conversava com o frade que devia benzer suas bodas. Ambos os homens sorriam e seu amo tocou o ombro do homem, antes de reunir-se novamente com seu irmão e com Balin.
— Conduzam os convidados para fora, aos escarpados, e depois tratem de averiguar porque da demora de minha noiva.
— Aos escarpados? — quis assegurar o capitão.
— Oui. Aos escarpados — respondeu Dante, com um grande sorriso, ao passar entre os convidados. Voltou-se, antes de sair —: Ela ficará feliz — disse, com satisfação.
— Os escarpados? — o rosto de Gianelle se iluminou —. Vamos nos casar sobre os escarpados?
Com um longo suspiro e um breve sorriso, Balin assentiu.
— A igreja é muito pequena e Dante está empenhado em te fazer feliz, mesmo que algum dos convidados caia no mar.
Era um assunto grave. Cada um dos nobres presentes comentava como era possível que um conde tão rico e poderoso pudesse casar com uma plebéia. Incomodava ter que escutar esse cochicho zombador, mas vendo sua pequena noiva, tão formosa em seu ondulante traje de bodas e com o rosto corado, Balin soube que Dante não podia ter escolhido alguém mais perfeito. Além disso, Casey derretia seu coração cada vez que a olhava. Bem, se alguém se atrevesse a dizer qualquer coisa contra um dos seus, teria que se ver com ele.
— Está preparada, milady, escoltarei-a ao encontro de seu noivo.
Com uma risada nervosa, Gianelle se deixou conduzir, seguida por Casey, Brynna e Desse.
— Diga-me, Balin — perguntou Gianelle, olhando-o enquanto desciam pela escada —. Está feliz?
Mais atrás, lady Desse suspirou:
— Direi a vocês. O amor é uma coisa divina.
Gianelle jamais acreditou que pudesse concordar com uma declaração como essa; mas os bardos tinham razão e o sorriso que iluminava seus lábios derramava luz ao longo dos corredores. Ao seu lado, o capitão da guarda de Dante apertou com decisão seu braço e se ergueu orgulhoso de conduzir a iminente ama de Graycliff até ao local do casamento: os escarpados.
Nos escarpados, ela somente tinha olhos para Dante. Passou por centenas de convidados, alguns deles instalados bastante precariamente sobre as asperezas e saliências das rochas, frente ao mar, tão sereno como o magnífico rosto do noivo que a aguardava. De pé, contra um fundo de nuvens e mar azul, Dante parecia um anjo guerreiro. O vento revolvia seu cabelo e sacudia as mangas de sua túnica escarlate, apresentando-o como a imagem da perfeição, recém descida do paraíso. Ela lançou um suspiro. Ele deu um passo à frente, com a mão estendida. Uma mecha negra flutuou ante seus olhos, ao sorrir. Dava a impressão de que irradiava luz; Gianelle fechou os olhos: se fosse um sonho, não queria despertar.
— Olá, belle fée.
Sua voz era como as ondas, profunda e tranqüilizadora, consciente de seu poder. Tomou a mão e a beijou, com tanta delicadeza que ela acreditou que desmaiaria e cairia na água.
Gianelle estava tão tomada pelo amor que fluía por seu corpo que quase não escutou a bênção nupcial do frade, nem as promessas que fez Dante em voz baixa. Mal percebeu quando a beijou, ao finalizar a cerimônia, estremecendo-a dos pés a cabeça.
Dante a conduziu de volta ao castelo. Ao redor muitíssimos rostos, alguns sorridentes, outros que cochichavam ao ouvido de seus acompanhantes, sem que ela pudesse entender. Tratou de localizar Casey. Ao invés disso, viu Balin, Brand e Brynna, o velho James, que lhe sorriram.
De volta ao castelo, Douglan conduziu todos até o salão principal, onde tinha preparado a comemoração. As mesas quase cambaleavam sob o peso das bandejas de prata transbordantes de sopa e pães, e água de rosas para enxaguar mãos. Os pratos estavam carregados de faisão, veado e carne de cisne, além de bolos, e frutas, e uma inesgotável provisão de deliciosos vinhos. Havia dúzias de rosas recém cortadas e pétalas esparramadas sobre o piso, para acolchoá-lo sob os delicados pés da noiva até o elevado estrado que tinha sido montado para instalá-la, junto a seu marido, durante a celebração.
Todo isso era real? Era exclusivamente para ela? Observou o perfil do homem que estava ao seu lado, sonriendo para todos. Sentia desejo de tocá-lo, de lhe acariciar o rosto, de alisar os aveludados cabelos sobre seus ombros. Queria memorizar com o tato cada traço e imprimi-lo em sua própria alma para sempre. Acreditou escutar Brand propondo um brinde e observou que Dante se voltava para ela. Parecia mover-se lentamente. Gianelle conteve o fôlego, porque, quando caísse sobre ela o deslumbrante olhar, todo esse sonho se transformaria em realidade.
Dante levou uma taça até seus lábios e a alcançou para que também bebesse, segundo o costume. Ela aceitou e se sentiu penetrada até a alma por esses olhos que a obrigavam a baixar a vista, para defender-se de seu poder. Advertia sua proximidade, que prometia um beijo que a perturbaria até mais que o vinho.
— Ruboriza-se, minha vida — sussurrou, depois de tê-la beijado. Seu fôlego era doce e expressivo —. Rogo para que meus beijos sempre tenham o mesmo efeito sobre ti.
— Sinto como se estivesse sonhando — disse ela, sem conseguir tirar os olhos dos lábios dele.
— Pois, nesse caso, prefiro que nunca desperte.
Houve música e diversão depois do banquete. Dante se desculpou com Gianelle, prometendo que retornaria em seguida. Lorde Dumont exibia orgulhoso, seu neto mais novo, a todos aqueles que queriam vê-lo. Brand e Brynna riam juntos e William perseguia sua irmã. Gianelle suspirava, com a esperança de fazer durar para sempre a mesma felicidade que hoje compartilhava com Dante.
Ao olhar em torno, avistou Casey rindo com Balin. Gianelle ficou de pé, para perguntar ao elegante capitão se haveria outro casamento no futuro. Mas quando quis dar um passo para descer do estrado, chocou-se contra um muro de pedra.
Não tinha observado o homem que tinha diante de sí. Seu torso era duro, quase como seu olhar, que jamais esqueceria. Tragou uma baforada de ar e deu um passo atrás, procurando a mesa, a suas costas, algo com que golpeá-lo. Ele elevou uma mão delicadamente cuidada para segurar a dela.
— Desculpe-me por assustá-la — disse com uma risadinha, que sugeria exatamente o contrário.
— Não se aproxime — advertiu Gianelle.
— Gia, isso não é maneira de me receber — o sorriso de Edgar Dermott era como uma máscara que dissimulava sua fúria interior —. Ter chegado à nobreza te azedou o caráter.
— O que faz aqui? — perguntou sem baixar o olhar.
— Vim ver você, querida. Que outro motivo poderia impulsionar-me a vir até este lugar esquecido por Deus, além de encontrar à assassina de meu irmão?
Gianelle procurou Dante com o olhar. Ao não achá-lo, levantou a vista de novo até o cavalheiro que lhe impedia de passar.
— A morte de seu irmão não foi obra minha; tampouco tenho nada a ver com o fato de que esteja apodrecendo no inferno neste momento.
O sorriso de Edgar Dermott se ampliou, e não parecia menos desumano que a de seu falecido irmão. Devorava-a com os olhos, como se fosse apoderar-se dela, até que Gianelle, em seu desespero, tentou gritar e sair correndo.
— Deixe-me passar!
Ele elevou um dedo, como uma advertência.
— Um momento, nada mais.
— Você a deixará passar agora.
O tom da voz, as suas costas, era tão urgente, que a assustou até mais que a aparição de seu antigo amo.
— Ficará de lado, agora mesmo, ou morrerá antes de voltar a tomar fôlego. Seria para mim um motivo de desgosto ter que sujar o piso que tanto agrada a minha bela mulher.
Dermott cedeu. Com mais graça do que teria exibido seu irmão, mais corpulento, conteve-se e ofereceu a Dante um sorriso e uma gentil inclinação:
— Só quis oferecer a sua mulher minha bênção, por ocasião de suas bodas, milord.
Os olhos de Dante se assemelhavam a adagas que apontavam o homem inclinado diante dele. Depois, dirigiu-se a Gianelle:
— Venha aqui.
Ela não se moveu. Seus pés pareciam plantados no lugar onde se encontrava, como uma árvore entre as rosas que cobriam o piso.
— Vejo que continua obediente como era estando sob os cuidados de meu irmão — zombou Dermott.
Zangado porque sua mulher não tivesse pedido sua ajuda, a expressão de Dante obscureceu. Chamou Balin, com a intenção de ordenar que escoltasse aqueles visitantes indeseados até a saída de Graycliff. O capitão acudiu imediatamente, trazendo sua amiga com ele.
Quando Casey viu Edgar Dermott, deteve-se tão bruscamente que Balin quase teve que puxá-la, e mesmo assim, Casey seguia resistindo a mão do capitão, sacudindo a cabeça, com os olhos cheios de pavor.
— Veio atrás de mim.
— Non, minha alegria. Trata-se somente de um incauto, que não pensa na possibilidade de não voltar a ver o sol. Venha, Dante — chamou Gia.
Ao aproximar-se do estrado, Casey respondeu ao olhar ameaçador de Dermott, aconchegando-se a Balin. Sentindo-a estremer, ele pensou que possivelmente não seria má idéia liquidar esse homem.
— Balin, acompanhe Dermott até a porta de meu castelo.
— De maneira nenhuma — Dermott sacudiu lentamente sua cabeça e tirou um grande pergaminho, que tinha enrolado sob o espartilho —. Já que você não retornou com Gianelle, desafiando a ordem do rei, tenho aqui uma autorização do bispo para permanecer aqui, protegido, até que se tenha consumado seu matrimônio, de modo que o rei possa verificar que a assassina de meu irmão será, de agora em diante, sua legítima algema. Ela não está plenamente sob sua proteção, enquanto não se consumar o matrimônio.
— E como saberá que se consumou? — grunhiu Gianelle —. Seu irmão se assegurou de que não haveria vestígios de sangue nos lençóis.
Dermott deu sinais de indignação e logo olhou furioso para Dante. Mas o senhor de Graycliff olhava para Casey, que o chamava.
— Tenho que trocar duas palavras com você — rogou.
— Um momento, Casey — respondeu, com impaciência.
Brand apareceu junto a Dante e, aproximando-se de Dermott, arrancou-lhe o pergaminho da mão, para lê-lo, e passar a seu irmão.
— O decreto não está vigente. Falta a assinatura de William — declarou.
Dermott encolheu os ombros.
— Foi cometido um assassinato. Talvez haja alguma demora, mas o rei William está a par da acusação que levantei e, cedo ou tarde, terei sua assinatura.
— Já se fez justiça no leito profanador de seu irmão. Você cometeu um tremendo engano ao envolver o rei em suas maquinações. Mas se voltar a vê-lo perto de minha mulher, nem o selo real me impedirá de matá-lo.
Quando Dante prestou atenção em Casey, viu que as lágrimas transbordavam em seus olhos.
— Devo lhe comunicar algo importante, milord. Por favor, me permita falar com você em particular. — Quando sua expressão atormentada recaiu sobre Gianelle, Casey não pôde resistir ao pranto—: Não imagina o quanto lamento!
Capítulo 18
Balin ajudou Casey a sentar-se, enquanto Gianelle se esforçava para reconfortá-la.
— Oh, Gia! Tem que acreditar, não tinha a menor ideia de que Dermott viria te buscar. Eu pensava que aqui estaríamos a salvo. Por favor, me perdoe.
Gianelle secou a bochecha de sua amiga com a manga do vestido.
— Vamos. Não é para tanto.
— Eu tinha medo que descobrisse nossa fuga. Teria jogado toda a culpa em você. Sempre fazia — clamou Casey —. Não quis que voltasse a te machucar, mas não tive intenção de matá-lo. Juro. Não quis que morresse.
Na sala se fez um silêncio total, salvo pelos passos de Dante para o lugar onde se sentava Casey, que ficou pálida e trêmula quando se aproximou. Esteve a ponto de sorrir, para tranqüilizá-la, mas também porque tinha tido certas suspeitas, quando a interrogou em Devonshire. Ela tinha se mostrado incômoda e preocupada, como se quisesse que o interrogatório acabasse o quanto antes. Dante tinha experiência para adivinhar quem era culpado e quem não, mas seu instinto tinha dito que Casey era muito inocente para cometer um crime assim. Parou diante dela e tomou ambas as mãos.
— Por que não me disse a verdade antes?
— Estava assustada, e depois nos afastamos dali e tratei de esquecer. Mas não posso permitir que castigue Gianelle por algo que eu fiz. Não foi minha intenção, somente coloquei uma pequena quantidade de mandrágora em sua taça de vinho, o suficiente para que dormisse. Mas devo ter me excedido na quantidade.
— Non — Gianelle se afastou, em direção da lareira, e ficou olhando o fogo aceso. Tomou ar profundamente, antes de começar a falar —. Eu também quis assegurar-me de que pudéssemos fugir sem sermos descobertas, e adicionei outra pequena quantidade de mandrágora a sua taça. Surpreendeu-me que tão pouco o tivesse matado.
Dante emudeceu. Não sabia se devia indignar-se com sua mulher ou mostrar-se surpreso por saber enganá-lo tão habilmente.
— Mulher, seu talento para mentir supera em muito qualquer um que imaginei.
Ela baixou a vista, ante o estupor que via no rosto de Dante.
— Se recordar bem, eu nunca neguei a acusação.
Um sorriso indulgente se desenhou nas comissuras dos lábios de Dante, que se ergueu para aproximar-se de Gianelle:
— Deixe este assunto por minha conta. Ninguém além de nós quatro sabe a verdade.
— Você não deve compartilhar este erro conosco. Não lhe pediria isso. Tampouco queria que soubesse.
— Adivinho suas razões — replicou, arqueando as sobrancelhas.
— Está aborrecido comigo?
— Já falaremos quando estivermos a sós.
O brilho masculino de seu olhar fez com que uma comichão estremecesse todo o corpo de Gianelle.
Voltou-se para Casey e falou com autoridade, e ao mesmo tempo, com comedimento.
— Seque as lágrimas e fique aqui até se acalmar. Balin e Gia lhe acompanharão. Não quero que Dermott e seus homens a vejam neste estado. Casey — disse logo depois que ela concordou e limpou o nariz com seu lenço —, não permitirei que aconteça nada a nenhuma das duas. Mas peço somente uma coisa: não aproximem-se da cozinha!
A luz das velas flutuou nos candelabros de parede quando Dante passou, para retornar aos seus convidados. Ao ingressar no salão, observou furioso, que Edgar Dermott tinha tido a ousadia de permanecer ali; o homem que tinha posto em xeque a vida de Gianelle, ao acusá-la ante o rei William, agora cochichava algo no ouvido de Simone.
Dante tinha vontade de matá-lo e se aproximou como quem se encaminha ao campo de batalha. Brand compreendeu que devia intervir, para evitar um derramamento de sangue.
— Rogo, irmão. É o dia de suas bodas. Qualquer que seja a vingança que deseja, pode esperar. Pense em sua mulher.
Dante o olhou brevemente, fazendo um gesto de conformidade, antes de continuar seu caminho para onde se encontrava Dermott. O patife tinha uma mão sobre o ombro de sua antiga amante.
— Nunca mais permita que te veja apoiar sua mão sobre alguém que viva neste castelo — ressoou a voz do senhor de Graycliff —. O fato de continuar vivo se deve a esse pergaminho que traz. Mas juro que assim que tenha em meu poder o selo do rei espalharei por toda a Inglaterra a forma como seu irmão maltratava seus vassalos. Quanto a ti, terá sorte se conseguir mendigar alguma guarida ao longo do caminho.
— Atreve-se a me ameaçar? — Dermott o olhou com incredulidade. Tentou em vão livrar-se da mão de Dante.
— Eu não faço ameaças. É um juramento. Você escolhe. Se ficar, tenho que te matar. Ou foge e se prepare para minha vingança. Tenha certeza de que vai chegar. Chegará porque acusou minha mulher de estar ligada com o maior inimigo do rei. E porque a culpa pelo assassinato de seu irmão, que devia ter morrido trespassado sobre a ponta de minha espada, e não em sua cama.
Dermott o olhou atentamente e, logo, um sorriso de advertência se desenhou em seu rosto:
— Tome cuidado com o que bebe. Sua mulher conhece venenos.
— Lástima que não tenha aplicado seus conhecimentos contigo.
Os dedos de Dante se dirigiram ao punho de sua espada. Tinha a certeza de que, se continuasse olhando para esse homem durante um minuto mais, acabaria por matá-lo e ao diabo com a lei. Chamou Talard e dois de seus homens.
— Escolte esse porco a um dos quartos. Somente olhando para ele, me sinto mal.
Esteve a ponto de retirar-se, quando sir Conrad fez o gesto de empunhar sua espada. O sorriso de Dante era violento e desafiador.
— Venha — disse, fazendo gestos ao paladino de Dermott, para que se aproximasse —. O que está esperando?
Brand deu um passo e se interpôs no caminho de Conrad, que não parecia disposto a enfrentar Dante.
— Erga sua espada contra meu irmão e sua cabeça rolará pelo chão antes que tenha tempo de pensar.
Conrad retrocedeu e seguiu Dermott para fora do salão.
— Que festa de casamento tão interessante! — exclamou quando os convidados começaram a cochichar —. Acredite-me, como anfitrião, é um desastre.
Dante observou os rostos confusos de seus convidados com atenção e passou a mão pelo cabelo.
— Se tiver alguma sugestão para melhorá-la, gostaria de conhecer.
— Sugiro que procure sua esposa e a traga a presença de todos. Seus aldeões devem saber que, na casa de seu senhor, tudo está em perfeita ordem.
Nenhum dos dois tinha observado a presença de Simone, que tinha se aproximado de Dante, percorrendo seu braço com uma longa carícia.
— Parece que sua esposa te abandonou. Que comece a música e mostremos a sua gente que seu poderoso amo não passará a noite só em sua cama. Não lhes importará quem te dê felicidade.
— Não me abandonou — Dante a olhou com impaciência —. Mas você pode dançar para entreter os convidados, Simone.
Ela indicou que tocassem sua música preferida e se encontrou com um par de olhos azul esverdeado, e sorriu, com a avidez de uma gata diante da comida.
— Cuidado — Brand lhe devolveu o gesto —. As garras de minha mulher são ainda mais afiadas que as tuas.
Dante saía do salão no momento em que Gianelle retornava.
— Ia te buscar. Dermott e seus homens foram para um dos quartos. E Casey, como está?
— Está melhor; mas não espere por ela. Quando vim para cá, Balin a estava beijando.
— E você, como está, fée?
— Lamento ter mentido.
Ela queria que seu arrependimento fosse mais evidente, mas se sentiu atraída pela música. Nunca tinha escutado algo assim. Não era de origem celta nem normanda. Tampouco se ouviam as gaitas de fole, que se empregavam para produzir os tons que imitavam os gemidos das mulheres no auge do prazer. O erotismo dos tons graves produzia um efeito tranqüilizador; entretanto, Gianelle sentiu que a atiçavam como o bater dos tambores antes da batalha.
— Que som é esse?
— É Simone; está dançando.
Toda a atmosfera do grande salão tinha mudado. Gianelle estava segura de que antes tudo parecia mais brilhante e animado. Também o ar parecia mais espesso, carregado do aroma de almíscar, misturado com suor, enquanto Simone girava no centro do salão e se libertava progressivamente de seus longos e sedosos tules, no compasso de um ritmo que subjugava Gianelle. Observava em silêncio, impressionada, enquanto a bela mulher dançava, com o cabelo negro caindo sobre seus ombros. A música exercia sua magia sobre Simone, que se ajoelhou. Jogou a cabeça para trás e suas mãos percorreram seus cabelos, seus seios, quase expostos já que havia se livrado da maioria das gazes cor esmeralda que a cobriam. Deixou-se cair para trás e arqueou suas costas, em um crescente movimento giratório, que deixou sem fôlego quase todos os espectadores masculinos que presenciavam a dança.
Dante também foi atraído pela música; os sons percorriam seu sangue como labaredas. Mas não era a insinuante dança de Simone que lhe tirava o fôlego. O arroubo que percebia nos olhos dos convidados tinha feito sua esposa retroceder até apoiar suas costas, pequenas e delicadas, contra o torso, os quadris e as coxas dele. A paixão o comoveu ao aspirar seu perfume e baixou a cabeça, estreitando-a com os braços, para não perder o sabor de sua proximidade. Estava ao seu lado e olhava encantado como sua pele se iluminava com o fogo da lareira. Desejava-a intensamente, como tinha feito desde que a viu pela primeira vez. Ofegou ante a idéia de possui-la ali mesmo, no momento em que Simone, ao concluir sua dança, deixava ouvir um gemido, como uma mulher satisfeita depois de fazer amor. Gianelle se voltou para Dante com fúria:
— Está bem, esposo meu? Ou Simone ainda te cativa e eu tenha que buscar um balde de água fria, para jogar na sua cabeça?
Dante a fulminou com o olhar, e observou cada vez mais excitado os lábios trêmulos e o queixo desafiante da jovem, vermelha de indignação. Sua mulher era pura paixão e inocência, ao mesmo tempo. Seus olhos enormes relampejavam e seu peito se agitava pelo desejo que sentia em seu marido. Ele não podia evitar a tentação de possui-la.
Atraiu-a para si e a acariciou com paixão até se localizar sobre a parte de seu corpo que a reclamava com mais intensidade. Ele resistia ante o uso de tanta força, mas a música transtornava seus sentidos como uma carícia íntima; o perfume de sua mulher o embriagava. Ao sentir que ela correspondia a seu abraço, soube que acabava o tempo que passariam entre os convidados.
— Você me enlouquece. Somente você — sussurrou e lambeu a comissura dos lábios, obrigando-a a abri-los ligeiramente, para colocar sua língua. Ela gemeu e Dante sentiu o coração parar. Tinha a sensação de que estava a ponto de explodir, e a atraiu ainda mais para si. Ela jogou a cabeça para trás, deixando seu pescoço exposto para que ele a mordiscasse com doçura, embora desejasse penetrá-la e colocar o selo definitivo de sua posse com sucessivas e irrefreáveis investidas. Ela também o desejava. Ele percebia no aroma que destilava: uma paixão selvagem que clamava por sua liberação; gemia, levantando o rosto de Dante para que a beijasse, desencadeando sensações irrefreáveis que comoviam todo seu corpo.
Quando a música parou, não se separaram e todos os olhos se concentraram sobre o casal. Brand sorria ante a imagem de seu irmão abraçado de maneira tão delirante e apaixonada à sua ardente esposa.
Dante se deu conta de que todos os olhos estavam sobre eles, mas nem assim teve vontade de afastar-se de sua mulher. Sorriu, enquanto mordiscava seu lábio inferior, fazendo com que voltasse a gemer. Quando os convidados começaram a aplaudir, Gianelle tomou consciência da situação e entreabriu lentamente os olhos. Piscou como quem acordada de um sonho.
Com as bochechas da cor das rosas que cobriam o piso, empurrou seu marido para afastá-lo um pouco, mas seu peito se apresentava sólido e resistente contra as mãos trêmulas. Dirigiu-lhe um sorriso tão sedutor que ficou outra vez indefesa em seus braços.
O grande salão retumbou com o som de pratos de madeira golpeados contra as mesas, ao som de grandes hurras de aprovação. Pediam que Dante a erguesse e a levasse como devem fazer os maridos ao desposar suas noivas, e queriam seguir o casal ruborizado até o quarto, para testemunhar a consumação do casamento, como exigia a tradição. A idéia fazia com que Gianelle empalidecesse, mas contava com as fortes mãos de seu marido que a seguravam. Ele pediu silêncio e anunciou, com voz profunda e enrouquecida, que conduziria Gianelle a sua cama. Quando todos responderam com um rugido de entusiasmo, voltou a sorrir, esclarecendo que se alguém tivesse a ousadia de segui-los, teria que se ver com ele na manhã seguinte. Não toleraria que outros homens desfrutassem contemplando à jóia que tinha em seus braços, embora fosse a tradição. Tomou Gianelle pela mão e saiu com ela do grande salão.
Dante desejava levantar Gianelle e correr com ela em seus braços para seu quarto, mas, ao mesmo tempo, desfrutava como seu sangue fervia antecipando o prazer, enquanto subia a escada, com as costas iluminadas pelos candelabros, que permitiam ver os encantos de sua companheira.
— Não posso esperar mais — disse com voz urgente. Seus olhos lançavam fogo enquanto erguia a mão dela, para lamber a palma e seus dedos.
Sua língua parecia uma labareda, que não teria sido mais sedutora se a estivesse passando por uma parte mais íntima. Gianelle lamentou, com um gemido, quando parou, sorrindo por trás de seus lábios zombadores.
— Quer mais? — sussurrou, tentando-a com um sorriso sensual que apressava o fluxo de seu sangue e seus passos. Levou o dedo dela à boca e o chupou com ardor —. Pretendo lamber cada delicioso pedaço de sua pele.
Gianelle fechou os olhos, em pleno arroubo, recordando a mestria com que sabia incursionar com aquela língua. Quando voltou a abri-lo, foi apanhada pela magia desse perfil varonil, cuja voluptuosidade era ressaltada pela difusa luz das velas.
— Eu poderia fazer o mesmo — disse ela, e ele sentiu que seu autocontrole não resistiria.
Apanhou-a em seus braços e a jovem tremeu sob a pressão de seus músculos e ante a insinuante sensualidade de seu sorriso. Apertada contra a rigidez de seu corpo, Gianelle sentiu a pressão de seu peito, suas coxas e sua firme ereção. Não a beijou, mas sim a esfregou contra seu corpo, lhe dando uma idéia pecaminosa sobre o lugar onde quereria que o lambesse.
Grandes labaredas vindas da lareira iluminavam a cama. Gianelle não se sentia intimidada, embora Dante parecesse um guerreiro tomado pela privação, depois de longos meses de ausência, disposto a tomar sua mulher pela força. Começou a soltar o cinto enquanto sorria de uma maneira que acelerou o pulso de Gianelle, impressionada pela força física que estava a ponto de cair sobre ela. Dante a devorou com o olhar e se concentrou em seus mamilos, que endureceram como se os tivesse beijado. Aproximou-se, enquanto tirava a camisa. Gianelle mordeu o lábio, querendo fazer o mesmo com os ombros nus, o peito e o ventre de seu homem. Era tal a necessidade que sentia que quase não se reconhecia. Essa era outra parte de sua personalidade que Dante tinha libertado. Os seios excitados pesavam ao vê-lo e o estímulo de seu aroma a impulsionava a tirar sua roupa e aproximar-se, nua, para sentir o contato com sua pele.
Ele a fez voltar-se e deixou a nuca a descoberto, para beijar cada pedaço de sua carne pulsante. Cobriu-a de beijos e mordidas na garganta e amoldou seu corpo ao dela, para que sentisse a dureza palpitante por baixo de suas meias. Enquanto ia desamarrando os laços de seu vestido nupcial, beijava cada pedaço de pele que ia revelando, até que a despiu por completo. Então, levou-a para a cama e se sentou.
Convidou-a para acomodar-se entre suas coxas e ela respondeu em seguida, sem oferecer nenhum tipo de resistência. Na realidade, não teria podido fazê-lo. Sentada de costas contra o peito de Dante, ele tomou seus seios com ambas as mãos, e os acariciou com delicadeza, até que os mamilos, erotizados, ficaram duros e erguidos entre seus dedos. Mais abaixo, seu pronunciado inchaço a empurrava, ansiando dolorosamente desafogar-se em sua intimidade.
Fez Gianelle se voltar e sentiu como lhe lambia os lábios. Arranhou seu ombro com as unhas quando Dante apertou um mamilo entre seus dedos. Jogando a cabeça para trás, esticando seu pescoço ante o olhar entusiasmado do ávido amante. Deixou cair sua cabeleira, como uma cascata dourada, que ele tomou entre suas mãos, afastando-a, até que ambos os mamilos ficaram expostos: a boca de Dante encontrou os tensos casulos cor de rosa e sua língua deslizou sobre eles, enquanto tomava os seios com as mãos. Atraiu-a para mais perto; assim a queria, e a fez notar com um profundo gemido, que parecia mais um rugido. Sua musculatura se esticou como o aço quando separou as pernas e deslizou seus dedos dentro da úmida caverna que escondiam.
A boca exigente de Dante cobriu a dela; sua língua penetrou com mestria, enquanto suas mãos a exploravam. Ela gritou, rogando que parasse com suas provocações eróticas e a penetrasse. Estava ardente e úmida, pronta para recebê-lo.
Essa era a provocação que Dante esperava. Levantou-a sobre seus quadris, tirou as meias e logo a ergueu novamente, para colocá-la sobre ele. Tinha tanto fogo nos olhos, seu olhar era tão selvagem, que Gianelle sentiu um pouco de medo. Tentou mantê-lo à distância, colocando suas mãos no robusto peito dele, no momento em que a empalou com um movimento de seus quadris e ela deixou escapar um breve e surdo gemido. Dante fez um movimento giratório com os quadris para que Gianelle gozasse mais e ela se agarrou a seus ombros, estreitando-se fortemente contra sua carne extensa e rígida. As mãos de Dante seguravam suas nádegas, em um rítmico sobe e desce que arrancou dele um gemido de satisfação, enquanto se enterrava na calidez do corpo dela. Chupou-lhe os mamilos e Gianelle estremeceu; então, afastou-se o suficiente para dizer o quanto a amava. Apertando os dentes, jogou a cabeça para trás e Gianelle beijou seu pescoço, até que, ao lhe passar a língua, por pouco não fez com que gozasse. Sem separar-se, acomodou Gianelle debaixo de seu próprio corpo. Ergueu ainda mais uma das coxas dela, para poder incursionar mais profundamente. Seu olhar chamejante despertou um beijo não menos ardente, rematado com uma mordida de seu lábio.
— Enche-me tão completamente — gemeu Gianelle e em sua voz havia um tremor que acompanhava o de seu corpo, que pulsava em torno do grosso membro de Dante no mesmo ritmo que seu coração.
Ele segurou suas nádegas, enquanto entrava e saía cada vez com mais força; às vezes retirava-se um pouco, para observar como suas primeiras gotas se derramavam sobre o ventre de Gianelle, e então voltava a afundar-se em suas profundidades. Quando se ergueu sobre seus joelhos, ela contemplou encantada. Gianelle se contorcia, segurando as peles da cama, disposta a abandonar-se por completo; mas ele voltava a retirar-se, para elevá-la até sua boca insaciável. Ela se agarrou à cabeleira negra e empapou Dante com sua paixão.
Quando acabou, ficou estendida ofegando, débil e trêmula. Ele se recostou ao seu lado e a tomou em seus braços.
— Descanse, MA fée, ainda não terminou.
Mais tarde, Talard levou vinho ao quarto; mas Dante não quis beber da taça. Molhou seus dedos na bebida, e deixou que gotejasse sobre os mamilos, o pescoço e o ventre de sua mulher, e a lambeu de cima abaixo. O mesmo fez com sua boca, cuja doçura beijou e absorveu. Quando salpicou um pouco de vinho em suas coxas, ela riu. Ele sorriu e voltou a salpicá-la, o que acendeu a paixão neles. Dante ficou de pé junto à cama e envolveu seus quadris com as pernas. Ela o acompanhou com lentos e acariciantes movimentos, até que a cálida semente de Dante a alagou e transbordou.
Por fim adormeceram exaustos, mas na manhã seguinte, quando ela despertou, Dante estava preparado para o amor. Ela se negou com a cabeça, quando ele a atraiu para si, mas foi até o sofá e o chamou. Quando ele se aproximou, Gianelle o deteve e olhou com admiração o pecaminoso espetáculo que tinha ante os olhos, escuro e arrebatador.
Ajoelhou-se, tomou sua enorme masculinidade entre as mãos e a introduziu em sua boca. Acariciou-o com lambidas, desde a base, que palpitava de desejo e molhava os lábios com seu néctar. Ele resmungou algo em voz muito baixa e acomodou a cabeça de Gianelle para que o introduzisse mais plenamente. Por fim, ergueu-a uma vez mais sobre seu colo e a penetrou.
Capítulo 19
— Nem pense em me tocar! — Gianelle ergueu as mãos para impedir quando Dante se aproximou de sua cama. O fato de que estivesse completamente vestido não tinha maiores significados, dada a rapidez com que era capaz de tirar a roupa.
Ele riu e exibiu uma bandeja com comida. Já era quase de tarde e ela ainda não havia se levantado.
— É um bruto — murmurou, provando um ovo cozido —. Estou dolorida por toda a parte.
A satisfação fez com que aparecesse um traço de satisfação no olhar triunfante de Dante. E também deu motivos a Gianelle para fingir lamentar-se:
— Transformou-me em uma desavergonhada, Dante. Espero que esteja contente!
— É claro que sim — deu uma piscada e fincou os dentes em um pedaço de leitão.
Gianelle estremeceu ao observar como limpava o suco da comissura da boca com sua língua.
— Basta!
Dante a olhou de lado, com curiosidade:
— Basta o que?
— Basta de lamber a boca.
Dante deixou de mastigar e sorriu.
— Você está louca por mim. Admita.
— Dá-me asco.
— Mentirosa — riu.
— Eu adoro quando sorri. Parece tão… doce.
— Doce?
— Oui. Como um menino que, de repente, tornou-se homem.
— E quando você sorri, parece uma rameira sensual. — Ela o empurrou, mas ele riu e se jogou em cima dela —. Perdoe-me, quis dizer anjo, mas me lembrei de ontem à noite. Não é minha culpa.
Ela voltou a golpeá-lo, até que Dante tomou sua mão e a beijou.
— Amo você.
— Para sempre?
— Oui.
— Promete, meu marido?
— Oui, eu prometo.
— Nunca me abandonará?
— Nunca — jurou —. Jamais.
— Que bom. Pois, se o fizer, colocaria brasas quentes em suas calças… quando fosse colocá-las.
— Merde. Sei que é uma mulher perigosa.
Afastou-o, enquanto sorria, e pegou a bandeja que estava a ponto de cair da beira da cama.
— Esqueceu o vinho. Irei buscá-lo.
— Non. Não quero que ronde pelo castelo enquanto eu estou aqui em cima e Edgar Dermott anda solto.
— Acaso o viu?
— Acaso tenho sangue na camisa?
Ela encolheu os ombros e voltou a comer. Dante se ergueu. Ficava encantada em observá-lo. Vestia uma camisa de linho, de cor natural, ajustada à cintura, e umas meias negras enfiadas em um par de botas de pelica.
— Não pode tirar os olhos de mim — adivinhou Dante, sem necessidade de olhar para trás.
— Prefiro olhar um lixo coberto de moscas.
A risada profunda e espontânea de Dante encheu o quarto e, depois, o grande salão, onde se encontrou com o velho James, que perseguia uma galinha.
— Bom dia, milord. Deve ter dormido bem, com certeza — disse, plantando-se diante de seu senhor e dando uma piscada de cumplicidade.
— Muito bem. Merci, James, mas — os olhos de Dante-se entrecerraram com diversão — por que persegue as aves?
James franziu o cenho com ar de aborrecimento.
— Não me deixou dormir de noite, com seu contínuo cacarejo. Penso comer a ave assim que a alcançar.
— Comê-la?
— Assim é, senhor.
— E como pode saber que foi precisamente essa galinha que não te deixava dormir? — perguntou enquanto se esforçava para não rir.
— Verá, cada galinha tem um modo particular de cacarejar. A verdade é que são todas diferentes, como as vozes das mulheres. Talvez eu não possa ver a que está tagarelando; mas posso reconhecê-la pela voz. Como ontem à noite, ao passar pelo quarto de lorde Dermott, quando a maldita galinha não me deixava dormir. Escutei uma voz de mulher ali dentro. Talvez ninguém percebesse de quem se tratava, mas Simone tem um tom de voz inconfundível, e eu…
Os olhos de Dante se acenderam de indignação.
— Simone estava no quarto de Dermott?
James assentiu e começou a dar uma longa explicação a respeito das modulações e outros detalhes que permitiam distinguir sua voz da de outras mulheres do castelo.
— E que fazia ali? — interrompeu Dante, com frieza.
James respondeu com um sorriso malicioso:
— O que você acha que estava fazendo?
— Maldita! — exclamou logo depois de um momento de silêncio —. Não é capaz de manter as pernas fechadas frente a nenhum homem.
— Nenhum, exceto do pobre velho James — se queixou o outro, mas então, ao escutar um som inesperado, inclinou a cabeça para a direita —. Venha pequena, chiqui, chiqui… — repetiu, enquanto concentrava sua atenção. De repente, tirou um porrete, que levava na cintura, e a descarregou a centímetros do rosto horrorizado de seu senhor. Em seguida desapareceu, atrás da fugitiva, com a qual tinha pensado deleitar-se na hora do jantar.
Dante o olhava consternado. Devia achar algum outro posto para ele, menos perigoso, antes que matasse alguém por engano, em um desses repentes.
Sorriu mais feliz do que estivera em muito tempo, e pediu a Talard que levasse vinho ao quarto.
Encontrou com sua esposa, no pé das escadas. Com um grande sorriso, abraçou-a pelas costas, abaixo da cintura, e perguntou:
— E você o que faz que não está na cama? Já sente saudades?
Gianelle riu, sem pensar em outra coisa além do contato das mãos de Dante com suas nádegas.
— Nem sequer me tinha dado conta de que não estava — mentiu estimulada pela tentação de provocá-lo —. Desci porque ainda estou com fome.
— Assombroso! Aconteceu o mesmo comigo.
Gianelle estava preparada para ceder ante as artimanhas do apetite de Dante, mas não agora, nem por completo. Em troca, prometeu:
— Se me soltar, te levarei para o nosso quarto e permitirei saborear a doçura de meu peito.
Dante sorriu com tanta sensualidade que Gia sentiu os joelhos afrouxarem. Duvidava que fosse capaz de continuar resistindo.
Ele a soltou, mas, em vez de retornar ao quarto, Gianelle deu uma gargalhada e saiu correndo para a porta principal do castelo.
O sorriso de Dante se apagou um pouco, quando decidiu persegui-la. Alcançou-a no momento em que se esforçava para abrir os pesados batentes, e usou sua força para impedi-la. Estava atrás dela, com as mãos por cima de sua cabeça; ela sentia seu fôlego entre o cabelo e levantou a vista para encará-lo.
— Aonde vai, mulher? — Dante encostou seus lábios no sorriso zombador de Gianelle.
Antes que pudesse apanhá-la, conseguiu abrir a porta com um puxão. A pesada madeira golpeou em cheio o nariz do senhor de Graycliff, mas sua esposa não se deteve, nem sequer para ouvir as imprecações da vítima de sua brincadeira. Riu e cruzou aos saltos entre o cacarejo das galinhas e os chiados dos porcos. Seus pés pareciam voar, sustentados pelo vento, para a grade que guardava a entrada.
Com o cabelo revolto pelo vento e as bochechas rosadas pela agitação da corrida, recuou contra a grade, disposta a enfrentar Dante.
— Ordene que abram, ou nunca mais me deitarei em sua cama.
Dante sacudiu lentamente a cabeça e se aproximou inquieto, como um leão macho que acossa sua fêmea.
— Faça. Estou avisando. Ou me encerrarei em meu quarto, enquanto sofre e fica com vontade.
— Ficar vontade? — Dante se deteve e riu, mas seus olhos a devoravam dos pés a cabeça —. Derrubaria a porta e te mostraria que me pertence. Jamais ficaria com vontade!
Divertida com sua afirmação, Gianelle fez um gesto, para que se afastasse.
— Afaste-se ou nunca voltarei a te sorrir.
— Ah! Isso seria muito cruel. — Dante se voltou, para avisar a Roland que levantasse a grade, e a olhou de novo —: Estou avisando, menina; assim que a tiver ao meu alcance e, acredite, vou te alcançar, e tomarei você onde estiver; de maneira que seria melhor voltar para a nossa cama, enquanto ainda tem tempo.
— E admitir que você me venceu? — exclamou Gianelle, enquanto a grade de ferro se levantava —. Está enganado! Jamais!
Agachou-se e começou a correr, sabendo que ele não demoraria em alcançá-la.
Durante vários minutos permaneceu quieto, admirando o espetáculo de sua esplêndida cabeleira, que se agitava e resplandecia sob o sol, encantado com a plasticidade da figura de Gianelle. Viu que erguia suas saias, com suas esbeltas pernas à vista, quando saltava entre as rochas para que ele não a capturasse. A risada de sua amada o enchia de alegria. Concedeu-lhe uma ampla vantagem, antes de empreender a perseguição, e em seu rosto se desenhou uma risada triunfal.
Gianelle desceu com o coração agitado entre os penhascos de pedra, até o caminho que a levaria até o mar. Se Dante a alcançasse ainda próximo do castelo, estava certa de que a estenderia no chão e reclamaria o prêmio por sua vitória, à vista de todos. Sorriu ao dar-se conta de que estava muito perto do mar: sentia o aroma das ondas e ouvia seu fragor, ao romper sobre as rochas, sem deter sua corrida.
Estava refletindo sobre como seria maravilhoso concretizar sua união sobre a areia, quando bateu de frente com Dante. Desconcertada, permaneceu com a vista cravada em seus olhos fulminantes, perguntando-se como tinha conseguido ultrapassá-la.
Ele a segurou, para que não pudesse continuar fugindo, enquanto ambos recuperavam o fôlego; bastou um instante para ensaiar um sorriso provocante.
— Este será meu maior triunfo, do qual se falará durante séculos. Vê? Temos testemunhas.
Gianelle não queria olhar, mas não teve alternativa, e descobriu que havia ali pelo menos uma dúzia de pescadores, que observavam com atenção.
— Non, não faria tal coisa — pediu. Respirava com profundidade e um sotaque febril, como o movimento do mar.
— Asseguro que sim. E o farei.
— Muito bem — declarou, com a certeza de que o que tivesse que fazer, não perderia essa aposta por nada —. Faremos.
Sem afastar os olhos, sorriu e começou a tirar roupa.
Dante cruzou os braços, fixando sobre ela um olhar desafiante.
— Isto vai ser divertido.
— Oui — ronronou Gianelle —; para eles, também.
Sorriu, enquanto agitava a mão, saudando os pescadores, que suspenderam a tarefa com suas redes, sem poder acreditar no que viam.
O olhar de Dante os captou, e seu sorriso desapareceu, mas não fez o menor gesto para detê-la quando Gianelle deixou cair sua primeira saia até os tornozelos.
Seus olhos se encontraram, provocadores, quando ela tirou suas sapatilhas e as chutou no ar, como quem joga os ossos para os cães. A pequena fada parecia disposta a se libertar de suas asas e exibir sua tenra beleza feminina para todos. Dante sentiu o pulso agitar-se com fúria, pela vontade que sentia de vê-la se despir e o rechaço de compartilhar essa visão com outros.
Ela cruzou os braços sobre a cabeça e começou a tirar o vestido. Dante observava, com o fôlego descontrolado e os olhos entrecerrados. Quando viu o tesouro dourado entre suas coxas, lançou uma maldição.
Em um só movimento, ergueu-a em seus braços, dizendo:
— Você é somente minha.
E a levou para uma pequena cova, ao pé do escarpado, perto do mar.
Suas palavras soaram com tal poder, com tal autoridade, que Gianelle não pôde fazer outra coisa além de tremer entre seus braços. Ninguém a tinha marcado como ele fez na noite anterior. Ela sabia que lhe pertencia. E enquanto Dante a segurava com força contra seu peito, ela soube que também queria lhe pertencer.
Adorava sentir como tirava sua roupa. Seu olhar ardente e sua excessiva, quase selvagem, paixão a extasiavam, enquanto a devorava com os lábios. E quando a colocou de joelhos sobre a areia, reluzente e cálida, e se colocou em suas costas, ela compreendeu que estava a ponto de apoderar-se de muito mais do que seu corpo.
Quando Gianelle retornou ao grande salão, estava tão esfomeada que teria devorado sete pratos.
Dante se posicionou ao seu lado, diante da larga mesa montada sobre cavaletes, vendo-a comer tortas de mel, um pedaço de cordeiro e, em seguida, uma taça de vinho. Seu marido se divertia e a admirava.
— O que aconteceu? — perguntou Gianelle; a inocência de seu olhar acariciava o coração de Dante.
— Tem um apetite voraz, mas é muito pequena.
— Eu não estaria tão desesperada se tivesse me deixado comer ao meio dia, em vez de me fazer correr pelas imediações.
Dante esteve a ponto de ensaiar um protesto, mas se conteve e riu.
— Além disso — continuou ela alegremente, enquanto comia uma suculenta pêra —, se engordasse, me salvaria por um tempo de seu voraz apetite, milord.
— De nada serviria — proclamou. Sua voz grave queimava a pele como se a estivesse lambendo —. Da mesma forma, adoraria você.
Gianelle deixou de mastigar e o observou. Falava sério? Seriamente a adorava? Ou essas expressões fluíam de sua boca com a mesma rapidez que os elogios dispensados a Ingred quando a elogiava pelos magníficos festins que costumava preparar em Graycliff? Ela queria que ele repetisse e que dissesse que a amava e que significava muito para ele. Mas soube que tinha deixado passar a oportunidade, quando Brand apareceu diante deles.
— Lamento interromper. Achei que ficariam contentes de saber que Dermott e seus homens se foram do castelo há uma hora. O mais provável é que tenha ido para Cambridge preparar sua vingança.
O sorriso de Dante deixou Gianelle pasma. O rosto de seu marido a fascinava. Seus olhos pareciam cristais, claros e luminosos, que contrastavam com sua pele morena e seus cabelos de ébano. Seus olhos podiam atravessar a carne como espadas poderosas, mas quando pousavam sobre ela eram ternos e apaixonados, turvados por inúmeras emoções.
Dante continuou sorrindo, enquanto olhava sua esposa. Brand tinha abandonado a mesa, mas ela nem sequer se deu conta.
— Faz cinco minutos que tem uma expressão estampada de encantamento. No que está pensando?
Como se estivesse hipnotizada, Gianelle ficou observando o movimento dos músculos da garganta de Dante ao engolir. Depois, deixou que seu olhar se deslocasse sobre seu rosto.
— Estou à beira de um belo mar banhado pela luz da lua — sussurrou ela —. O poder desse mar me reclama e, embora sinta medo, vejo-me obrigada a ir de encontro ao seu chamado.
— Por que está assustada, minha formosa fada?
Ela fechou os olhos, em silêncio, e se deixou abraçar contra o calor do corpo de Dante, que a acariciava meigamente entre seus braços.
— Por Deus, Gia, eu jamais te faria mal! — fez o juramento com a boca entre seus cabelos, incapaz de suportar a idéia. Gianelle queria conservar esse momento para sempre. Queria enroscar seus dedos em seus cabelos e não soltá-los nunca mais. Afastou-se para olhá-lo nos olhos.
— As ondas desse mar não tentam me afundar na penumbra de suas profundezas, mas acariciam com mãos divinas, me dando calor. Esse maravilhoso mar jamais ruge embora, por seu incrível poder, poderia me matar, como se eu não fosse nada. Entretanto, seu temível fluxo me sussurra as coisas mais doces que já ouvi.
Dante sorriu ante seu olhar agradecido.
— E o que tem de mal nisso?
— É fácil apaixonar-se ante tanta generosidade. Mas temo que diante de tal poder, uma pessoa simples como eu poderia ser esquecida.
Ela teve a sensação de que Dante reagiu assumindo certa rigidez, ao escutar suas palavras, e rogava que não as tivesse levado a mal.
— Meu amor, um mar não é mais que um lago, se não houver vento para agitar suas águas. Venha, vamos cavalgar.
Dante a conduziu até os estábulos e pediu que o esperasse. O amo dos escarpados retornou montando sobre sua selvagem égua branca como uma visão. Sem deter-se, ergueu-a pela cintura e a sentou em seu colo. Encantava-se ao sentir a pressão de sua vigorosa mão ao segurá-la. O calor de seu fôlego sobre a nuca lhe produzia um delirante desejo e, quando Dante esporeava sua égua, o coração de Gianelle enlouquecia.
Cavalgaram sobre as rochas, sem diminuir a marcha, de modo que Gianelle fechou com força os olhos, por medo de que Ayla escorregasse e os três despencassem até o fundo dos escarpados. Mas logo chegaram ao mar e a égua bufou, levantando uma nuvem de areia.
— Quer correr — murmurou Dante ao ouvido de Gianelle e levantou sua saia, acomodando a perna de maneira que ficasse mais segura sobre o lombo o animal —. Pode guiá-la — acrescentou e cedeu as rédeas.
— Tenho medo.
— E desde quando isso foi capaz de te deter? — riu Dante, e se dirigiu à égua —: Ayla, ensine a Gianelle o que se sente ao voar.
Assim dizendo, aplicou um ruidoso golpe na anca com a mão, para fazê-la disparar.
Gianelle se agarrou às rédeas. O mar, a sua esquerda, transformou-se em um borrão cinzento, enquanto as patas de Ayla transpunham a areia molhada a tal velocidade que nem deixavam rastros. O vento arrancava lágrimas dos olhos da jovem e seu fôlego se entrecortava. Na verdade estava voando, tão livre como Dante quando saía a cavalgar com Ayla.
— Sente o vento, MA fée? — Ele a segurava por trás e sua voz parecia vir das profundezas do mar —. É tão poderoso como o oceano.
— Oui — concordou e entendeu por que ele a fazia partícipar dessa sensação. Porque ela não era insignificante, mas tão importante para ele quanto ele para ela.
Devolveu-lhe as rédeas e se recostou contra seu corpo, estendendo as mãos livres.
— Obrigado, Dante. Obrigado por ter me libertado.
Capítulo 20
Edgar Dermott tirou a luva e golpeou com ela a outra mão. O velho galpão abandonado cheirava a madeira podre e bosta de cavalo. Aproximou-se da janela para respirar ar puro e para ver se o homem que estava esperando aparecia.
No céu, pesadas nuvens anunciavam chuva. Escutou um chiado e, ao voltar-se, avistou um rato que escapulia nas sombras. Amaldiçoou em voz alta e deu um forte pisão, para fazer o roedor voltar a sua cova. Depois, começou a caminhar de um lado para outro, ao sentir-se preso dentro do lugar em ruínas.
Fazia uma hora que esperava, mas parecia uma semana. Seria melhor que se fosse e levasse a cabo seus planos sem a aprovação de seu senhor. Entretanto, a última vez que tinha tentado, quase fez com que ele e seu irmão perdessem a cabeça.
Seu irmão. Que bom que aquele gordo imbecil tivesse morrido. É obvio, era difícil fingir que alguém lamentava a morte de seu irmão; mas havia motivos. Devonshire lhe pertenceria logo que mostrasse ao rei William as missivas que os seguidores de Hereward tinham enviado, por seu intermédio, a seu irmão. Ele declararia que não tinha o menor conhecimento das relações de seu irmão com o rebelde. Mais tarde cuidaria de Gianelle.
Queria vê-la morta, e queria ser ele a matá-la, depois de levá-la para a cama, é obvio. Os dias em que essa puta frígida o rechaçava chegavam ao fim. Uma mudança de planos era tudo o que precisava para que caísse em suas mãos. Seu irmão já não o deteria e, não restaria ninguém que o impedisse de tê-la em sua cama.
Escutou um cavalo que se aproximava e espiou pela janela, com a mão sobre o punho de sua espada. Lançou um assobio, para alertar à figura encapuzada que vinha para o galpão. O cavaleiro vinha sozinho: Hereward the Wake não precisava de um séquito ao seu redor. Era um homem grande, possuidor de um braço valente e veloz, e de uma espada muito rápida.
Tirou o capuz, deixando à vista seus olhos verdes e sua espessa juba avermelhada. Olhou ao redor com um gesto de desagrado, e perguntou:
— É você ou esse feno podre que produz o mau cheiro?
— Salvo que tenha me assustado com a ferocidade de sua imagem a ponto de sujar os calções, provavelmente a causa provém do mal estado do feno — grunhiu Edgar, com idêntica agressividade.
— Não seria a primeira vez que aconteceria, Dermott — retrucou Hereward, sem alterar-se, enquanto passava a mão sobre o punho de sua espada.
— Não terá tanta pressa em me matar quando escutar o que vim dizer.
— Então, diga e veremos.
Hereward recostou sua vigorosa figura contra o marco da porta, disposto a escutar.
— O rei William está de volta à Inglaterra. Chegou há dois dias.
Hereward fixou a vista no pescoço de Edgar.
— Parece que vou ter que fatiar seu pescoço, embora preferisse te ouvir gritar. Seriamente: tenho assuntos mais importantes para atender e te tirar do meu caminho não seria uma má idéia. — Com voz grave e tom ameaçador adicionou —: Já estou informado que o filho da mãe voltou.
— Também sabe que deu ordem para que todos seus vassalos principais se apresentem para uma reunião na corte?
— Prossiga.
— Eu mesmo fui convocado.
—Sem dúvida, se arrastará aos seus pés e jurará lealdade.
— Nunca — mentiu Dermott —. Vou te provar minha lealdade, matando o homem que te persegue.
Ao escutar estas palavras, Hereward ergueu uma sobrancelha, em sinal de brincadeira.
— Não esqueçamos o motivo que provocou a ira de Risande. Se você e outros cretinos descerebrados não tivessem matado sua irmã, não teria dedicado sua existência em minha captura. Por isso considero que sua vida me pertence.
— Darei-te a vida de lorde Risande, em troca.
Hereward jogou para trás sua cabeça e lançou uma estrepitosa gargalhada, sem dar a menor importância à fúria que destilavam os olhos de Dermott.
— E como fará para matá-lo? Mesmo se tivesse uma dúzia de braços armados e olhos na nuca, não teriam vantagens em um combate corpo a corpo.
— Não tenho intenção de combatê-lo — repôs Dermott, sem alterar-se.
— Oh! Claro que não. Uma flechada pelas costas seria mais própria de seu estilo.
— Quando estiver morto, que importância pode ter a forma como aconteceu?
— Nenhuma. Reconheço que quero tirar esse peso de mim, mas um guerreiro da categoria de Risande merece melhor sorte que morrer por causa de uma flechada pelas costas.
— Como pode dizer tal coisa, depois dos numerosos seguidores teus que ele liquidou?
— Você matou sua irmã, Dermott — grunhiu Hereward —. Ela era uma inocente, que nada tinha a ver com as guerras do rei. Compreendo a ira de Risande. Agora, me fale de seu plano. Começo a perder a paciência.
— Muito bem. Conto com a ajuda de uma pessoa, no castelo, que me manterá informado sobre o dia em que Risande partirá. Saberei quantos homens o acompanharão, e o seguiremos. Vamos matá-lo em segredo, durante o caminho, e seguiremos até Winchester, para nos reunirmos com o rei. Ninguém suspeitará de mim, pois planejo surpreender Risande e seus soldados longe de Dover. Você tem muitos seguidores ansiosos para matá-lo. Pode ficar com o mérito, se acha que te favorece de algum modo — arrematou Dermott, com um sorriso amargo.
— Não, eu não mato homens pelas costas. Ninguém acreditaria que tenha sido coisa minha.
— Claro. Desculpe-me.
— Considerarei a possibilidade de te perdoar quando Risande morrer. Mas te assegure de que esteja morto, pois, do contrário, teremos que lutar com um maníaco até mais enfurecido. E então, eu mesmo te matarei.
Hereward abriu o portão e saiu sem dizer nenhuma palavra mais. Não sentia a menor preocupação pelo que Dermott pudesse dizer ao rei. O traidor nunca atracaria Winchester.
No interior do galpão, Edgar Dermott se certificou de que seu montão de missivas estivesse seguro debaixo do manto. Estava disposto a demonstrar sua lealdade ao rei; mas, antes, devia tomar de assalto um castelo, para recuperar uma escrava que lhe tinha sido arrebatada.
— Durante quanto tempo ficará ausente?
— Não por muito tempo. Somente uns dias.
Dante olhou sua esposa com uma expressão que mostrava o pesar que sentia ao ter que abandoná-la por seu dever para com o rei.
— Estarei de volta o quanto antes.
Sentada na beira da cama, Gianelle tentava dominar seus nervos, agarrando-se a sua saia. Na realidade, queria saltar do leito, correr e amparar-se em seus braços.
— Não pode apressar o rei, Dante.
— Venha você também. Brynna e as crianças viajarão conosco.
Gianelle baixou a vista, sacudindo a cabeça ao negar:
— Acredito que será melhor que Casey e eu não estejamos presentes quando explicar ao rei nossa situação.
Dante a olhou durante um momento, e depois recomeçou seus preparativos, embora não tivesse nenhum desejo de afastar-se dela.
— Logo retornarei, Gianelle.
Ela assentiu e ficou de pé. Caminhava inquieta pelo quarto, observando seu perfil, enquanto ele empacotava seus bens em uma bolsa de couro. De repente, parou.
— Sentirei saudades — confessou. Quando Dante respondeu com um sorriso sedutor, ficou sem fôlego.
— Certamente, será um alívio para você — brincou ele.
Gianelle encolheu os ombros e retomou seu andar.
— Unicamente devido ao seu tolo senso de humor.
— Em troca, eu sentirei saudades de nossas disputas.
Oh, ela sentiria saudades de muito mais que isso! Os olhos dele que a olhavam com ternura e paixão, a aspereza de suas mãos quando a acariciavam, o tom insinuante de sua voz quando dizia o muito que a amava.
Dante interrompeu a tarefa e a abraçou para que sossegasse.
— Faça amor comigo antes de partir — pediu, com voz enrouquecida, em seu ouvido.
— Sabia que era uma besta arrogante desde o primeiro momento que te vi — protestou, mas se abandonou quando Dante a levantou em seus braços e a conduziu ao leito.
Logo depois da partida de Dante e seus homens, Gianelle caminhou pelo castelo, onde reinava um detestável silêncio. Quem o Rei William achava que era? Passava todo o tempo vivendo na França e, de repente, por um desejo, todos seus cavalheiros se viam obrigados a correr ao seu encontro.
Encontrou Casey em seu quarto, mal-humorada, e não se surpreendeu absolutamente que falasse de Balin, pelo menos uma dezena de vezes, para justificar sua amargura. Logo, apareceu Desse, também entristecida pela ausência de seu marido.
— Nunca vou me acostumar com sua ausência — se queixou —. É pior que quando sai para combater e não sei se voltarei a vê-lo.
Gianelle estremeceu:
— Não sei se suportaria.
— Que alternativa temos? Eles são guerreiros. Devemos elevar preces ao Senhor, rogando que os proteja e que retornem sãos e salvos. Somente podemos confiar em Deus e na destreza de nossos homens.
Gianelle se sentiu angustiada. Não tinha levado em conta que Dante participaria de batalhas. Nem queria pensar nisso.
Afastou-se de suas amigas quando Desse começou uma tarefa de bordado. Para Gianelle parecia impossível dedicar-se a trabalhos de paciência, como esse, nas presentes circunstâncias. Ao descer as escadas, elevou uma prece para que Dante sempre retornasse para seu lado, depois de cada batalha.
— Sentirei saudades — tinha sussurrado, enquanto Balin o chamava, lhe recordando que nunca chegariam a Winchester se não terminassem aquela despedida.
O amor transbordava no olhar profundo de Dante. Gianelle estava segura de que nunca a abandonaria como tinha feito seu pai. Ela suspirava perdida em seus pensamentos, e quase derrubou James, ao chegar à cozinha.
— Também me dá pena vê-lo partir, milady — disse, com um sorriso que acentuava sua cegueira.
— Como?
— Refiro-me ao conde. É o que acontece quando aqueles a quem se ama saem em viagem. Parece que o coração quer sair do corpo e ir com eles —acrescentou e se afastou, deixando Gianelle com a sensação de que tinha o ouvido sensível também para detectar os desejos mais recônditos de seu coração.
O sol poente estendeu seus raios entre a copa das árvores e as libélulas, que pareciam dançar apressadas pela brisa.
De repente, a terra tremeu e os insetos se dispersaram, enquanto Dante e seus homens cavalgavam tranqüilamente pelo aprazível bosque. Não foram tão velozes como Dante queria, porque lady Brynna os acompanhava com seu bebê, Richard, nos braços, e Tanon desfrutava da aventura no colo de seu pai. O pequeno William tinha insistido em viajar com Dante, e o fato de tê-lo em seu colo o lembrava que devia cavalgar com prudência, mesmo que cada légua que o afastava de Graycliff, tornava-o mais triste. Quanto antes chegasse a Winchester, mais cedo estariam de volta.
Merde! Como sentia saudades de Gianelle! Amava-a além do possível para seu coração. Amava seu formoso rosto, cheio de candura; sua intrepidez, que tinha permitido alcançar sua atual liberdade espiritual; sua paixão, que a fazia bambolear os quadris ao caminhar, sabendo que não conseguia tirar os olhos de cima dela. A lembrança de sua expressão ofegante, quando o olhava com aqueles olhos cheios de luminosidade, derretia seu coração.
Seguia refletindo sobre estas coisas, quando uma flecha cortou o ar e se cravou nas costas de sir Armond, um cavalheiro que tinha chegado com ele à Inglaterra, anos atrás.
— Fujam! — ordenou Dante, enquanto tentava proteger seu sobrinito, interpondo-se entre ele e a chuva de flechas que estava caindo. Fez Ayla girar para a esquerda e lhe cravou as esporas. Logo, dirigiu-se a seus soldados —: Balin, leve vinte homens para explorar esses arvoredos! Você, Gerald, corte caminho por essa garganta, com Robert e os outros, e veja como encurralar o inimigo pelo lado oposto, com as tropas de Balin. Brand! —gritou ao seu irmão —. Fuja com sua família e leve William. Vão, logo.
De improviso, outras quatro flechas aterrissaram, uma na terra, diante do grupo, e outras três nos troncos das árvores que o rodeavam. Dante segurou sua égua, para tranqüilizá-la, com os olhos contra o céu enegrecido. Jogou seu sobrinho virtualmente nos braços de seu irmão, repetindo:
— Vão, agora!
O sangue fervia em suas veias. Viu como seu irmão tomava as rédeas do cavalo de Brynna e fugia, velozmente. Depois de um rápido movimento com as rédeas, conduziu Ayla pela cortina de árvores das quais acabavam de sair. Ao escutar um ruído a sua direita, fez um gesto a um de seus homens, para que assumisse a defesa desse flanco, enquanto ele mesmo desembainhava sua espada e avançava.
Escutou alguém chamá-lo por seu nome; tratava-se de uma voz de mulher. Ele chutou os arbustos e cruzou por entre antigos carvalhos, sem tomar precauções. Atrás dele, seus homens o chamavam, mas não respondeu. De acordo com um elementar raciocínio, compreendeu que era impossível que a voz fosse de Casey ou de Gianelle. Elas estavam a muitas léguas de distância, em Dover. Mas ele seguiu sua marcha, à medida que o invadiam as lembranças da sorte de sua irmã. Tinha deixado-a sozinha, e quando retornou…
Umas folhas mexeram a sua direita e, imediatamente, a flecha que penetrou em seu torso fez em pedacinhos as imagens que o atormentavam.
— Meu Deus, jurou que não o mataria!
— Menti!
Simone olhou com ira e frustração o homem que tinha ao lado, mas agora não havia tempo para uma discussão. Os homens de Dante estavam se aproximando. Havia um silêncio sombrio no bosque. Mesmo as aves a acusavam de ter traído esse homem atraente, que tinha sido seu amante, e agora estava olhando angustiada, diante de sua traição. Faltava-lhe o ar.
— O que fizemos?
— Cale-se — advertiu Edgar Dermott, enquanto se agachava para tomar a espada de Dante. Queria apoderar-se de sua égua também, mas esta saiu disparada para onde estavam seus homens.
Por um instante, Simone temeu que o degolasse, mas Dermott se limitou a sorrir.
— Bem, isso basta.
— Para que?
Dermott lhe apertou as bochechas com os dedos, deixando uns visíveis machucados em sua suave pele. O azul de seus olhos era como labaredas que a queimavam; sua voz tinha a frieza que pressagiava a violência:
— Minha querida mulherzinha, se voltar a me questionar, arrancarei o seu coração e comerei no café da manhã. Compreendeu?
Simone assentiu, tremendo ante a crueldade recém descoberta de seu atual amante. Quando ele a chamou, ficou olhando, consternada, o corpo de Dante. O que tinha feito?
Alguém pronunciou o nome de Dante. Alguém que estava além das árvores.
— Perdoe-me — sussurrou ao corpo que estava aos seus pés, e se embrenhou no bosque.
Gianelle estava a ponto de tomar um banho, quando escutou Roland gritar da torre. Dante já teria retornado? Seu coração se descontrolou, mas se deu conta de que não podia ser: fazia só três dias que tinha partido e não teria tido tempo de apresentar-se ante o rei e estar de volta. Colocou a delicada bata de lã, um dos numerosos presentes que seu marido tinha oculto em diversos cantos do quarto, com bilhetes, para lhe fazer uma surpresa. É obvio, não sabia que ela não sabia ler, mas Desse e Douglan o tinham feito por ela.
Inclinou-se sobre a beira do terraço. Sua abundante cabeleira flutuava ao vento, como uma bandeira. Do quarto de Dante podia ver o pátio interno e o exterior: Simone, sozinha, a cavalo, aguardava para entrar em Graycliff. Seus olhares se cruzaram por um instante, até que Simone desviou a vista e a grade se ergueu, para lhe abrir caminho.
Decepcionada e com certa resignação, Gianelle suspirou, disposta a entrar e retomar seu banho, quando retumbou ao longe um trovão prolongado e crescente. Ela viu que o céu estava escuro, e em seguida escutou o grito de alarme de Roland.
Gianelle não recordava como as coisas aconteceram a partir desse momento. Somente viu Edgar Dermott, seu rosto convertido em uma máscara do ódio, matar com uma flechada o vigia, antes que pudesse descer novamente a grade. Dermott ingressou com mais de uma centena de homens armados. Avançaram como um rio transbordante, dizimando os homens de Dante, sem lhes dar tempo para empunhar suas espadas.
Gianelle conhecia bem a violência dos Dermott. Entretanto, não pôde reagir ante o que se desenvolvia frente a seus olhos. Dermott vinha buscá-la. Ela sabia combater o medo. Era capaz de pensar quando o mundo vinha por cima, não como damas delicadas que gritavam como umas loucas e perdiam o controle ante o perigo. Mas este era o irmão do barão Bryce Dermott.
Saiu do quarto e desceu as escadas. Mais à frente do portão podia ouvir os gritos dos soldados de Dante. Alguns procuraram detê-la, para levá-la a um esconderijo secreto na parte inferior do castelo, mas ela se esquivou e correu para a cozinha, onde tinha visto sua amiga pela última vez.
— Casey! — gritou, mas não houve resposta. Não havia ninguém ali. Revisou o salão principal, o escritório de Dante, no piso superior, e depois correu até o quarto de Casey.
Mais abaixo, as pesadas portas de Graycliff se abriram e houve um silêncio terrível, que lhe recordava os momentos de terror que precediam o ataque de Bryce Dermott, cada vez que a descobria depois de outro frustrado plano de fuga.
— Gianelle, querida! Onde está, minha vida?
Seus joelhos estiveram a ponto de dobrar-se, mas tomou fôlego profundamente e disse a si mesma que não voltaria a temer um Dermott, nunca mais. Abandonou o quarto de Casey e se refugiou no quarto que compartilhava com Dante. Tinha uma adaga no guarda-roupa. Pegou-a, ocultando-a entre sua roupa, e saiu caminhando tranqüilamente do quarto.
— Ah, que festa se apresenta ante meus olhos! — Dermott sorria, vindo em direção dela. Durante um instante, viu-o lutar com um dos homens de Dante, a quem tinha segurado por um braço. Edgar Dermott fazia alarde de uma excepcional força física e, embora o pobre soldado se defendesse com todas suas forças, não conseguiu escapar.
— Solte-o — exigiu Gianelle, mas sua voz era apenas um sussurro.
— Oxalá pudesse. Mas — e tirou uma impressionante espada, que levava às costas. Sem o menor sinal de emoção, cravou-a no peito do soldado — eu não vim fazer amigos — disse, enquanto deixava o corpo da vítima escorregar até o chão. Do pé da escada, mostrou a Gianelle o punho revestido de âmbar de sua espada —: Reconhece-a, querida?
Gianelle sabia há muito tempo como fazer para não chorar diante das desgraças. Mas ao vê-lo agitar a espada de Dante diante de seus olhos, faltou-lhe o fôlego.
— Onde… onde conseguiu isso?
— Eu acreditava que te matar me daria uma grande satisfação, mas ter matado seu marido para desfrutar de você me parece muitíssimo melhor.
Sorriu e acomodou a espada na bainha.
— Você está mentindo — Gianelle deu outro passo adiante —. Nunca teria conseguido matá-lo, porque ele é um guerreiro e você é um pestilento monte de escória.
Edgar Dermott pisou no primeiro degrau da escada e segurou Gianelle pela garganta.
— Basta, querida — advertiu, enquanto lhe apertava o pescoço. Ela se manteve em silêncio. De fato, nem sequer tentou escapar da mão que lhe apertava a garganta. Ficou absolutamente quieta, cravando o olhar, para mostrar que não se deixaria submeter. Dermott riu e a jogou contra a parede e, como se o contato com ela o tivesse manchado, esfregou a palma da mão sobre o casaco, com expressão de desagrado.
— Seu campeão está morto — pronunciou despectivamente —. Como supõe que poderia ter sua espada sem matá-lo? — Nesse momento, apareceu Simone e, aproximando-se dela, disse —: Foi um plano engenhoso que urdiu, querida. Atacamos o contingente de soldados a uma distancia segura para não levantar suspeitas. Os homens de Risande pensam que foram atacados por um pequeno bando de ladrões, não é, Simone?
Levou a mão da mulher aos lábios, enquanto ela fechava os olhos.
— Parece que agora lamenta — comentou, franzindo o cenho. Um sorriso sinistro cruzou seu rosto —: Mas esteve magnífica, chamando-o: “Dante, Dante” — zombou, arremedando e acabando por rir.
Apoiada na parede, para poder sustentar-se, Gianelle perguntou:
— É verdade, Simone? — custava perguntar o que mais lhe interessava saber —: É verdade que está morto?
Ao ver que Simone assentia, muda, com a cabeça, Gianelle puxou a faca e se atirou sobre Dermott. Conseguiu feri-lo no pescoço, mas de forma superficial. Apenas um talho que ele cobriu com sua mão, antes de lançar-se sobre ela.
Capítulo 21
Dois dias vivendo sem ele. Amanhã seriam três. Já tinha suportado a ausência de Dante. Mas não tinha pensado que seria assim. Não tinha tido saudades. Não havia sentido que morreria sem ele ao seu lado.
Ele estava morto. E era apenas o segundo dia.
Ela estava montada sobre um cavalo, no pátio de Graycliff, vendo a bruma que descia dos escarpados. Quinze cavaleiros de Dermott a rodeavam. Alguns deles conhecia de Devonshire; outros eram totalmente estranhos. Nenhum falava com ela. Estavam atentos às ordens de Edgar Dermott, montado em um cavalo de guerra negro, que estava inquieto, enquanto a névoa se enroscava em seus cascos.
— Enviei o resto da guarnição a Devonshire — anunciou Dermott, e sua voz retumbou no pátio deserto —. Sir Lowell e outros dez homens me acompanharão a Winchester, para ver o rei. O restante levará essa mulher à propriedade de meu finado irmão e esperarão minha volta. Se algo acontecer, ou se conseguir fugir, morrerão na ponta de minha espada.
— O rei cortará sua cabeça! — gritou Gianelle, confrontando seu olhar com valentia e resolução.
— O rei me beijará o traseiro, agradecido, quando puser ao seu alcance Hereward the Wake.
Gianelle chiou os dentes. Devia ter imaginado que esse porco estaria confabulado com o inimigo de Dante.
— Vai matá-lo quando souber que você matou Dante.
Ao dizê-lo, Gianelle sentiu faltar a voz. Fez o possível para evitar, mas não pôde impedir que seus olhos se enchessem de lágrimas.
— E quem contará a ele, Gianelle? Você? Simone? — riu, enquanto sacudia a cabeça —. Simone está morta. Arrependeu-se de ter colaborado comigo e ameaçou me denunciar ao rei. Era você que eu queria. Ainda não decidi se vou te matar. Agrada-me te contemplar; mas esteja certa, se te deixar com vida, terei que arrancar sua língua. De uma ou outra maneira, não dirá nada ao rei.
— O que faremos com os homens que ficaram presos nos porões? —perguntou Conrad Lowell a Dermott —. Devo mandar alguns homens para liquidá-los?
— Devia ter feito isso ontem, Lowell — retrucou Dermott, deixando escapar um eloqüente suspiro. Estalou os dedos, em direção a um dos homens que rodeavam Gianelle —: Raynard venha aqui. Cuide dos prisioneiros que estão no porão, quando eu partir. Não quero que ninguém que saiba o que aconteceu fique com vida. Ninguém. Compreendeu?
— De acordo, milord.
— Vamos sair daqui; detesto este lugar sombrio. — Fez girar sua montaria e se dirigiu a seus soldados por sobre o ombro, uma vez que Lowell, com seu pequeno cortejo, saía do pátio atrás dele —: Recordo a todos. Conservem meu tesouro com vida.
Gianelle o viu partir e ficou olhando o castelo. Ela não poderia sair de Graycliff. Dante estava presente nos escarpados ao redor, nos aromas que o vento trazia do mar. Todas as coisas boas que tinham acontecido na sua vida aconteceram ali. Embora ele já não estivesse ao seu lado, ela não partiria.
— Devo cuidar das testemunhas — anunciou Raynard, agitando as rédeas em direção ao castelo.
Gianelle se sobressaltou, pois sabia que mataria Desse e os outros que tinham ficado no interior. Não deixaria seus amigos morrerem. Devia pensar em alguma maneira de resgatá-los, e não havia tempo a perder.
— Espere! — clamou —. Dê-me um momento para contemplar meu lar.
— Já teve tempo de sobra para contemplá-lo.
— O que importa, Raynard? — perguntou um guarda que se revolvia em seu cavalo ao ouvir as atrozes ameaça de seu amo —. Dê-lhe um momento mais.
Gianelle pestanejou em direção de seu salvador momentâneo e este sorriu.
— Foi boa gente que viveu aqui, milord — disse, limpando as lágrimas que corriam por suas bochechas —. Amigos que morreram sem que tivesse tempo de me despedir deles como mereciam. Estou certa de que você também já perdeu amigos.
Como o cavalheiro respondeu com um gesto afirmativo, ela prosseguiu:
— Há um barril do melhor vinho de meu senhor em um canto da cozinha. Um de seus homens poderia buscá-lo… — Gianelle apressou seu discurso quando o viu sacudir a cabeça —. Não demoraria, e talvez — adicionou com um cálido sorriso — compartilhassemos um brinde em sua memória.
— Por que compartilharia um brinde com os homens que mataram seus amigos? — a pergunta veio de Raynard, desconfiado.
Gianelle se voltou para ele, baixando a vista, em direção a suas próprias mãos:
— Eu não tenho nada contra vocês. Somente obedecem ordens. Podemos deixar que o vinho estrague, mas seria uma verdadeira pena. Lorde Risande não se cansava de elogiá-lo.
— Albert, vá procurar o vinho. E depressa — ordenou o guarda.
— Espero que seja tão saboroso como diz — advertiu Raynard. Passou o dorso da mão pelos lábios, enquanto Gianelle confirmava. Uma coisa que ela sabia muito bem era que os guardas raras vezes deixavam passar a oportunidade de beber umas taças, nem sabiam resistir ante a perspectiva de uma moça indefesa.
Ela tinha derrubado estricnina no barril pela manhã, quando Dermott se dirigia aos homens que sairiam para Devonshire. Tinha a intenção de envenenar Dermott, mas este tinha rechaçado todos seus convites.
Desagradava-lhe a idéia de matar tantos homens, mas era a única forma de salvar seus amigos e ficar em Graycliff.
Quando Albert retornou com o pequeno tonel, Gianelle fez um comentário elogioso sobre a urgência com que havia retornado, sem deixar de dirigir outro insinuante sorriso ao primeiro guarda.
— Qual é seu nome? Não recordo tê-lo visto em Devonshire.
— Eu sou Brody, milady.
— Ah, Brody! Temo que teremos que beber diretamente do bico.
— Albert, maldito: não trouxe taças — reprovou Brody.
— Alcance-me o condenado tonel — Raynard o arrancou das mãos de Albert —. Desde quando precisamos de taças?
— Sir Raynard — interrompeu Gianelle, quando este tirava o lacre do bico e o inclinava para sua boca —. Não estará esquecendo o brinde?
— Muito bem: pelos mortos — disse, antes de levantar o barril e desfrutar de um prolongado gole.
— Pelos mortos — murmurou Gianelle, sentindo uma lágrima correr pela bochecha. Depois sussurrou —: Jamais poderei esquecê-lo.
— Ela tem razão. É delicioso!
Raynard bebeu duas vezes mais e passou a mão pela boca. Continuando, alcançou o vinho a Albert, que também bebeu em abundância. Três homens mais o fizeram antes que Martin, um guarda que conhecia Gianelle de Devonshire, oferecesse-lhe o vinho:
— Lembro que uma vez derrubou uma vasilha de tinta de escrever dentro da taça de Dermott. Sylvia contou-me, uma noite, enquanto compartilhávamos a cama. Tome, beba você primeiro.
Raynard passou o dedo pela dentadura. Ao ver que não havia sinais de tinta, sorriu.
Gianelle levou o bico à boca e o tapou com a língua, para evitar que o líquido fluísse. Simulou que bebia, e chegou a fingir que se engasgava.
Brody tomou o barril pequeno e bateu em suas costas:
— Não resista. Simplesmente deixe que vá descendo.
Ela assentiu e secou os olhos:
— É forte.
Brody deu uma piscada e começou a beber.
—Estava com seu senhor quando matou meu marido? — Ele deixou de lado o barril, e fez um gesto afirmativo; embora parecesse envergonhado —. Nesse caso, pode beber a sua saúde — propôs Gianelle, que ficou olhando como fazia, sem sentir remorso, nem sentimento algum.
— Rápido — ordenou Raynard, à medida que o barril pequeno ia passando de mão em mão —. Já perdemos muito tempo. Brody, parta com ela. Os alcançaremos logo.
— Espero que não roubem os baús de milord — os repreendeu Gianelle. A estricnina demoraria um pouco para fazer efeito. Ela tinha a esperança de que morressem no quarto de Dante, antes que descessem ao porão —. Estou segura de que lorde Dermott já levou todo o ouro.
— Ouro? — Raynard arqueou as sobrancelhas e, depois, passou vários minutos discutindo a forma como dividiriam os despojos entre eles. Finalmente, o grupo de Gianelle e o de Raynard se separaram.
Rumaram por um gigantesco atalho, com o mar enfurecido abaixo, quando Albert pegou o ventre e rolou do cavalo. Martin começou a gritar que ela devia tê-los envenenado. Outro cavaleiro voltou-se para Gianelle, que vinha atrás, mas o animal perdeu o equilíbrio e despenhou pelo escarpado.
Gianelle nem sequer pestanejou ao ouvir seu grito. Tomou com firmeza as rédeas, pronta para girar seu cavalo, quando topou com o olhar de Brody.
—Vocês me arrancaram a vida. Agora estamos quites.
Ele a olhou sem compreender.
— Sinto — sussurrou Gianelle e agitou as rédeas, para fugir.
Quando chegou a Graycliff, desceu do cavalo e entrou a toda velocidade no castelo. Foi diretamente à cozinha, recolheu o que necessitava, e se precipitou escada abaixo até o porão. Quase tropeçou com o corpo de Raynard, que jazia imóvel.
— Desse! — chamou —. Talard! Onde estão?
— Gianelle, aqui! — as vozes a chamavam do fundo de um corredor, atrás de uma grossa porta de grades.
— Estão todos bem?
— Sim — respondeu Talard, com a voz grave e áspera, porque estava sedento —. Mas lady Desse desmaiou esta manhã. Trouxe água?
— Non. Traje algo melhor. Desse, o que houve?
— Acho que estou grávida, Gia — repôs.
— Pelo amor de Deus, vou tirá-la agora mesmo!
— Como? Tem a chave? — os olhos escuros era tudo o que via do rosto de Talard.
— Non. Mas tenho isto — anunciou, mostrando uma fina faca para cortar carne.
— O que é?
— A cozinheira utiliza para cortar pescado. Deve servir — disse, enquanto mexia freneticamente na fechadura —. É algo que fiz muitas vezes, no passado.
Outro rosto apareceu atrás da porta. Era Douglan.
— Bom trabalho, milady. Não se apresse tanto.
Ela assentiu, fazendo girar a peça metálica que tinha entre seus dedos.
— Como faremos para sair do castelo? — perguntou Desse, que estava mais atrás.
— Os homens de Dermott não estão — informou Gianelle —. A maior parte deles partiu esta manhã e eu matei os restantes.
Escutou murmúrios de confusão e esperança dentro da masmorra, até que Talard perguntou:
— Como diabos fez para matá-los?
— Com veneno.
Ela trabalhava com cuidado, tentando manter a calma, enquanto seu coração parecia a ponto de explodir. Quando escutou o som que indicava que tinha aberto a fechadura, por pouco não perdeu os sentidos. Tomou fôlego e abriu a porta com um puxão.
Em seguida, se viu envolvida em sucessivos abraços com Talard, Douglan e Desse. Impactou-lhe o aspecto necessitado dos servos que tinham ficado com vida. Lá estava Beth, que lhe sorria. Também um pequeno número de guardas de Dante. Muitos tinham viajado com ele a Winchester, mas Dermott tinha matado a mais de cinqüenta dos que tinham ficado no castelo.
— Onde está Casey? — Desse sacudiu Gianelle pelos ombros —. Não resta ninguém além de nós?
Douglan tomou conta da situação ao perceber o alarme na voz de lady Desse e a tranqüilidade que transmitiam os olhos de Gianelle. Guiou todos para as escadas. Empalideceu quando se encontrou com o guarda morto e voltou a perguntar a Gianelle se estava segura de que todos os homens de Dermott haviam partido. Então, ordenou:
— Byron, leve Henry e Edward, e corram a Winchester. Não percam um instante. Informem lorde Risande a respeito do que aconteceu aqui…
— Então, não sabem? — Gianelle os confrontou, com sua dor refletida nos olhos e a voz transformada num sussurro —: Dante está morto. Edgar Dermott o matou.
Desse se deteve, a ponto de desmaiar. Talard e Douglan se negaram veementemente a admitir.
— Simone foi sua cúmplice. Não sei por que. Ela também está morta.
Gianelle se expressava sem emoção. Sentia-se completamente vazia. Observou que alguns choravam.
— Gianelle — Desse abraçou-a —. Venha, querida. Acompanharei você ao quarto para descansar em sua cama.
— Não. Aqui não podemos ficar.
Gianelle olhou Talard, assombrada.
— É obvio que sim. Disse que Dermott e seus homens se foram.
— Poderiam retornar, e nós não temos muitos…
— Não sairei de Graycliff, Talard — insistiu Gianelle, com firmeza —. Seu espírito está aqui e não o deixarei.
— Você é a mulher do homem a quem jurei lealdade. Embora tenha morrido, é meu dever protegê-la. Não posso deixá-la aqui. Retornaremos depois de ver o rei, milady. Perdoe-me.
Sem dizer uma palavra mais, jogou-a sobre o ombro e a tirou de seu lar.
O lugar mais indicado para procurar refúgio eram as cavernas a beira do mar, que era precisamente o único lugar da terra onde Gianelle queria estar. Ali podia lembrar de Dante. Perceberia seu aroma nesse mundo mágico. Poderia ver seu rosto esculpido nas rochas, escutar sua voz no rugido do mar.
Mas as cavernas eram um refúgio muito evidente. Embora Gianelle quisesse negar, Talard tinha razão. Quando os homens de Dermott não chegassem com ela a Ely, outros viriam buscá-los. Entretanto, Talard demorou dois dias para convencê-la. Dois dias que passou perambulando pela areia, espionando sobre a superfície reluzente do oceano, à espera que seu amado retornasse da morte. Oh, se isso fosse possível, ela ficaria esperando-o ali para sempre.
Seu pesar aumentava cada dia. Cada momento que ele faltava era pior que toda uma vida de servidão. Havia ocasiões em que a profundidade de seu sentimento a surpreendia, como se seu coração não pertencesse a ela, mas a outra pessoa. Ela amava Casey e tinha um profundo sentimento por Desse. Mas, ao perder Dante, seu amor por ele pareceu algo novo e diferente. A necessidade que sentia de tê-lo ao seu lado a estava enlouquecendo. Ele tinha se embrenhado dentro de seu mundo, seu coração e sua alma. Estava em seu sangue, em seus sonhos e em suas lágrimas.
— Dante — gritou em direção ao mar. Mas não obteve resposta. Nunca haveria uma resposta.
Ao repassar seu sofrimento, deu-se conta de que nunca havia dito que o amava. Uma só vez tinha sugerido que poderia estar a ponto de apaixonar-se. Tinha medo de entregar seu coração. Mas ele o tomou, e desapareceu.
— Uma só oportunidade, Meu deus. Uma só oportunidade mais — rogou, arranhando a areia com seus dedos, que ansiavam tocar o rosto amado.
Assim a encontrava Talard a cada manhã, sobre a areia, com o coração esmigalhado e em silêncio, enquanto a maré a empapava.
— Desse precisa de ajuda, Gia. Não podemos permanecer aqui.
— Eu não posso partir — teimava.
Era a mulher mais formosa que Talard tinha conhecido, mas essa frágil e encantadora criatura estava se destroçando diante de seus olhos, e ele não sabia como impedir. Via Gia das cavernas, quando ela percorria a beira da água, com os braços cruzados contra o peito, como se quisesse envolver-se em um abraço. Ficou maravilhado com seu cabelo, banhado por labaredas de luz, suaves e lustrosas ondas que caíam sobre seu triste rosto, enquanto escuras olheiras apareciam ao redor de seus grandes olhos. Talard sorriu quando lembrou-se dela percorrendo o castelo aos soluços, anunciando que estava a ponto de resfriar-se. Isso era tudo o que restava de Gianelle. Uma lembrança. Ainda estava ali, mas tinha ficado vazia como os caracóis jogados na areia. Como um lar para a alma que certa vez a habitou.
— Venha, milady — disse, ajudando-a a levantar —. Devemos ir.
— Non — sussurrou, mas não impediu que a erguesse.
Talard jamais imaginou que Gianelle tentasse fugir-se. Mas ela era uma perita na arte da fuga. E desapareceu.
Capítulo 22
James apagou o fogo com sua bota e chupou o dedo retorcido, antes de elevá-lo, para ver de onde soprava o vento.
— Vem do leste.
— Espero que esteja certo! — Casey se envolveu com a manta desfiada que James lhe tinha dado.
— De maneira que, minha pequena, Winchester fica no oeste.
Tentou agarrar a mão de Casey, mas puxou uma ponta da manta, ao não ver, e a fez cair.
— Ai! Basta, James! E deixe de me chamar dessa maneira. Faz-me pensar que está planejando me matar.
— Ah! — respondeu, sacudindo a cabeça —. Está zangada comigo porque te separei de Gianelle. Mas de quem foi a idéia de ir a Winchester procurar lorde Risande para que viesse resgatá-la?
— Minha — recordou Casey.
— Admite?
— Sim.
James fez um gesto com os ombros e seguiu seu caminho pelo monte.
— Está bem. Não estaria com vida, para pensar em resgatá-la, se não fosse por mim. Sempre digo a milord que ouço melhor que qualquer um nesse condenado castelo. Escutei Dermott dando ordens aos seus homens a uma légua de distância.
— Sei, James — resmungou Casey, enquanto seguia atrás —. Já me repetiu isso mil vezes — e Casey começou novamente a chorar, ante a exasperação de James, que não sabia o que fazer com ela.
— Não vai chorar outra vez — correu para ficar ao seu lado. Quando chegou, procurou reconfortá-la —: Tudo ficará bem.
— Não devia deixá-la. Tinha prometido que nunca o faria — soluçou Casey.
— Mas tem que salvá-la, peq…, menina.
As tentativas de James para consolá-la somente fizeram com que soluçasse com mais força.
— E se bater nela? Se a violar? Oooooh! — uivava Casey.
— Santo céu! — exclamou James, enquanto lhe acariciava o cabelo —. Se o fizer, lorde Risande vai fatiar seu instrumento com uma facada. Vamos, pequena; procuremos o amo.
Prosseguiram seu caminho, exaustos e famintos. Não tinham cavalo, nem água, nem comida; somente uma meta. Para Casey não havia alternativa. Conhecia bem a maldade de Dermott e rezava para que Gianelle estivesse a salvo, porém sabia que o único homem que poderia salvá-la de Edgar Dermott era o bom lorde Risande. Entretanto, a cada passo que dava, afastando-se de Gianelle, seu sentimento de culpa aumentava, então resolveu parar. Ela não se atrevia a pensar que Dermott chegaria a matar Gianelle. Isso não. Mas havia coisas que eram piores que a morte, e ela não podia deixar de pensar nelas. Cada vez que o fazia, tinha outro ataque de pranto, a ponto de James chorar com ela.
Passou outro dia e a firmeza de James, por fim, desmoronou. Tropeçou e se segurou contra um tronco, com os lábios ressecados.
— Não chegaremos, menina — disse, sem fôlego e mais cansado do que podia imaginar —. Necessitamos algo para comer.
Casey recolheu suas saias e o ergueu pelo braço.
— Vamos, James, não pode se render.
— Não posso mais.
— Deve tentar, por favor — insistiu —. Ela nunca teria me abandonado a minha sorte. Rogo isso, James.
Como James não reagia, Casey caiu de joelhos e começou a chorar. Tampouco poderia abandoná-lo ali, a sós. Ante a impossibilidade de tomar uma decisão, começou a rezar.
— Está bem, está bem — suspirou James, temendo outra interminável invocação aos poderes celestiais. Ficou de pé com o resto de suas forças —. Já vou. Mas, enquanto reza, não poderia pedir a Deus que nos envie uma maldita refeição?
Pouco depois encontraram uma cabana, no meio do bosque. Tinha uma janela, à altura da cozinha, através da qual se via o assador, com um ganso assado e dourado, preparado para comer, cujo aroma tentador flutuava no vento. Casey deu a James uma cotovelada nas costelas.
— Agora deve dar graças! - disse, enquanto corria para o barracão.
Estupefato, James elevou seu rosto ao céu, dominado por um temor reverencial:
— Obrigado, meu Senhor. Seria possível que nos conseguisse também um ou dois cavalos?
James não tinha sido um crente muito fiel, mas isso começou a mudar depois de devorar o suculento ganso e quando encontraram um grupo de homens que se ofereceram para escoltá-los até Winchester. Tinham um aspecto e uma linguagem rudes, mas quando se inteiraram de quem era o amo de James, o líder se mostrou amigável. Ofereceu-lhes água e lhes permitiu montar com dois de seus homens.
— Teve oportunidade de conhecer pessoalmente meu senhor? —perguntou James ao chefe.
— Uma só vez, e muito brevemente. É um excelente espadachim.
— É claro que sim. E utilizará sua espada para cortar Dermott em fatias, quando se inteirar do que aconteceu.
— Dermott, diz?
— Sim. Você também o conhece?
— De fato. É por causa dele que estou rondando este caminho. Faz dias que devia ter aparecido por aqui.
James apertou seus olhos cegos, como se quisesse ver melhor:
— Então, pensava matá-lo?
— É muito ardiloso.
— Obrigado — James inclinou a cabeça em sinal de reconhecimento —. E posso saber quem é você?
— Não, não pode. Mas me diga: o que fez Dermott, para que os vassalos de lorde Risande se vejam obrigados a sair para lhe avisar, abandonando o castelo sem cavalos nem comida?
— Não houve tempo — repôs James —. Casey, pequena, está bem? —acrescentou, olhando para ela.
— Sim, muito bem — ouviu sua voz, de algum lugar atrás.
— O que aconteceu, então? — o estranho o convidava a contar, com refinada persuasão.
— Óbvio que não houve tempo. Dermott atacou o castelo, para levar Gianelle, segundo a opinião de Casey.
— Gianelle?
— Sim. A esposa de milord. Antes pertenceu a Dermott.
— Compreendo.
O homem fez silêncio. James ouviu que vários cavaleiros se afastavam.
— Casey! — voltou a chamar.
— Tudo está bem, James.
Para James pareceu que sua voz transmitia certa intranqüilidade.
— Enviou seus homens para Graycliff?
— Outra vez acertou. Oxalá Risande compreenda quanto vale, velho.
— Saberá quando lhe entregar Casey. Enviou seus homens como amigos ou como inimigos ao lar de meu senhor?
— Enviei-os com ordem de matar Edgar Dermott, se ainda se encontrar ali.
— Por que nos ajuda? — inquiriu, sem necessidade de lhe ver o rosto para conhecer sua expressão. Percebia o ligeiro suspiro, que delatava uma hesitação em justificar-se. Mas quando falou, James compreendeu que dizia a verdade, com total indiferença pelos riscos que pudesse correr.
— Dermott me disse que mataria Risande e viajaria a Winchester, para reunir-se com o rei. Mas mentiu, e foi raptar sua mulher.
— Por que ia dizer a você tal coisa? Quem é você? — James estava furioso, por ouvir esse foragido referir-se tão despreocupadamente ao plano para tirar a vida de seu amo.
— É melhor que não saiba quem te ajudou, velho.
— Muito bem, ladrão. Diga-me então de que cor é seu cabelo.
— Ladrão? — o homem ficou em guarda; mas conservou o bom humor —. Acaso te roubei?
— Não. Mas deve estar claro, ante sua excelente visão, que não temos nada digno de roubar. Casey, de que cor é o cabelo deste homem?
— Vermelho, James.
— Demônios! — disse James, fazendo um gesto para que o homem se aproximasse —. Diga-me agora, já que não o fez antes, porque nos ajuda, e por que quer matar o homem que ameaçou de morte meu amo, Hereward the Wake.
Casey ficou espantada, enquanto James sorria com orgulho.
— Muito bom — felicitou Hereward, com autêntico reconhecimento —. Deve me contar como, com a perda da visão, aguçaram-se seus demais sentidos. Mas, no momento, direi o seguinte: ajudei-os para obter informações. Para minha grande surpresa, tive o prazer de viajar em sua companhia e, possivelmente, em agradecimento por minha gentileza com você e sua amiga, faça o favor de transmitir uma mensagem de minha parte a seu senhor.
— Sim, é possível.
— Diga-lhe que tive a intenção de matar o homem que matou sua irmã. Ah, por fim te espantei, velho! Edgar e Bryce Dermott, junto com outra meia dúzia de homens que morreram nas mãos de seu amo, quiseram vingar-se, enquanto meus homens lutavam com Risande em Peterborough, matando sua irmã. Fizeram isto sem que eu soubesse e sem meu consentimento, mas por esse fato seu amo transformou minha vida em um inferno. Não me importaria que Dermott matasse seu amo. Dermott é um infeliz, sem têmpera nem coragem, que acredita que vai ganhar o reconhecimento do rei me entregando. Eu só quis acabar antes com ele.
— Dermott matou a jovem Katherine? — perguntou James, com voz apagada —. Lorde Risande sentiu muito sua morte.
— Sim, sei — replicou Hereward —. As batalhas levam muitas vidas, mas, quando morrem os inocentes, levam a alma também.
— Você também é ardiloso, Hereward.
— Falo por minha experiência. Meu irmão era um simples agricultor. Os normandos o mataram sem razão, depois de apoderar-se das terras de nosso pai.
— Sinto muitíssimo — disse James. Depois, ambos se calaram. Quando pararam para passar a noite, falaram de coisas menos dramáticas, e Hereward compartilhou sua fogueira e sua comida com os viajantes.
Casey não estava disposta a conversar com ele, pois sabia que era o inimigo de Dante, mas estava mais animada agora que James a acompanhava em suas preces, embora às vezes pedisse coisas impróprias. Por exemplo, pedia a Deus a visão de um lince, um galinheiro cheio de gordas, suculentas e silenciosas galinhas, a agilidade do leopardo, a riqueza de um rei, o rosto de uma estátua romana; sua lista não tinha fim.
— Não é assim — tratou de explicar, e Hereward se divertia escutando-os.
— Por que não? Pareceu oportuno nos prover de comida, quando a pedimos, e enviou Hereward the Wake para nos escoltar. Por que não poderia me proporcionar algumas mulheres para esquentar minha cama pelas noites?
Não tinha remédio, e Casey por fim se cansou de discutir com ele. Que rogasse a Deus que lhe permitisse voar pelas nuvens. Somente lhe interessava localizar Dante, o quanto antes, para resgatar Gianelle. Oxalá chegassem a tempo.
Depois de três dias, chegaram a Winchester.
— Aqui nossos caminhos se separam.
Hereward deteve sua tropa e pôs algumas tiras de carne seca na mão ossuda de James.
— Não me sobram cavalos, mas o castelo do rei não está muito longe.
— Obrigado — respondeu James —. Sei como chegar.
Hereward saudou Casey com uma inclinação da cabeça. Ela não queria deixar-se impressionar por sua simpatia, embora seu sorriso parecesse amigável. Ficou olhando, em silêncio, enquanto ele e seus homens se afastavam.
— Venha, James — disse, tomando-o pela mão —. Quanto antes encontrarmos lorde Risande, mais cedo poderemos salvar Gia.
James bufava e amaldiçoava, à medida que avançavam pelas ruas tortuosas de Winchester. Não estavam em uma aldeia costeira, mas em uma importante cidade, cheia de enriquecidos personagens e ostentosas damas, que se detinham surpresos ao ver os dois desconhecidos.
James os escutava cochichar, com a mesma clareza que se estivessem gritando insultos. Não importava a mínima o que dissessem de sua pessoa, mas Casey se encolhia debaixo da manta, fazendo-se menor do que era como se quisesse passar despercebida. James não via, mas imaginava perfeitamente como viam Casey e ele esses olhos pretensiosos. Como tinha bom olfato, mesmo ele se horrorizava do quanto cheiravam mal. Casey e ele tinham o cabelo grudado e o rosto imundo, esfarrapados depois de tantos dias de viagem, em condições incrivelmente precárias.
— Sigamos adiante, menina. Logo chegaremos — disse a Casey, levantando o queixo com arrogância.
Casey manteve os olhos no caminho pavimentado que tinha diante de sí. Gostaria de parar e admirar as belas construções, adornados com bandeiras de vivas cores; imaginar que poderia ser uma das finas damas que passeavam com elegantes cavalheiros, luxuosamente vestidos. Mas agiam como os convidados de lorde Dermott, que a olhavam por cima do ombro, para lhe fazer sentir seu desprezo.
— Onde estará esse castelo, James?
— A cinqüenta metros, à direita, vamos encontrar uma fileira de antigos carvalhos. Atravessaremos esse atalho, filhinha, e verá o mais assombroso castelo jamais construído. Ali se encontra nosso amo.
— Bem, depressa. Não estou a vontade aqui.
Casey não se surpreendeu quando, ao fim de cinqüenta metros, encontrou-se ante uma fileira de carvalhos. Mas não estava preparada para a vista do lar do rei. Ao deter-se para contemplar o espetacular castelo que se levantava diante dela, Casey inalou profundamente, enquanto James ria. Nunca tinha visto algo tão grande. Gigantescas torres decoradas com bandeiras amarelas e a figura do leão apontavam para o céu. Quatro torres elevavam seus topos ricamente esculpidos, sobre as quais havia centenas, ou possivelmente milhares, de guardas.
Aproximaram-se da ponte levadiça, que estava estendida, e Casey empalideceu, sob a sombra desses muros tão grossos que nem sequer um aríete de ferro puro poderia penetrar. Aspirou o ar puro, e apurou o passo. Ali estariam Balin e Dante. Não tinha nada a temer, mas seu coração pulsava com desespero. O rei da Inglaterra estava ali, e ela tinha matado um de seus lordes.
Frente ao posto do guarda, James sacudiu o pó do caminho e endireitou seus frágeis ombros.
— Temos notícias urgentes para o conde de Graycliff — anunciou com a voz mais digna possível.
O guarda deu um passo em direção de James; Casey estava certa de que ia jogar ambos na sarjeta.
— Por que está gritando, se estou ao seu lado, velho? — repreendeu o guarda, com uma expressão dura.
James se voltou para ele e respondeu:
— Não vejo muito bem, jovem, mas escuto melhor que você. Se eu gritei, certamente terá escutado. Solicitamos que lorde Dante Risande nos receba imediatamente. Viemos de longe com importantes novidades.
— Suma, camponês, antes que me obrigue a fazer uso de minha espada.
James arrepiou-se, como se fosse um gato ao qual acabassem de jogar um balde de água.
— Pertencemos à casa do conde Dante Risande e cada momento que demorarmos, pode custar a vida de sua mulher.
O guarda os examinou com um olhar lento e depois fez gestos para que partissem.
— Casey? — uma figura enorme os avistou do alto de uma torre —. James?
Ao olhar para cima, Casey deu um sorriso reluzente.
— Balin! Oh, Balin! — clamou Casey, saltando e agitando os braços.
Imediatamente, Balin desapareceu e James dirigiu seu rosto em direção da entrada. Um tênue sorriso enrugou a comissura de seus lábios.
— Já vem. Ouço perfeitamente. Fique de lado, jovenzinho — deu a ordem com altivez —, não desejo que Balin DeGarge o parta ao meio.
Casey não deixou de saltar até que Balin apareceu na porta, tão alto e belo como um verdadeiro cavalheiro. Ela via no rosto de Balin uma expressão mescla de confusão e grata surpresa.
— Que demônios fazem vocês aqui?
Casey se jogou em seus braços como se a tivessem disparado com uma catapulta. Escondeu o rosto em seu pescoço e, entre beijos e suspiros, confessou-lhe quanto tinha sentido saudades. De repente, como se tivesse recordado o motivo de sua presença no lugar, afastou-se e o olhou.
Então Balin se deu conta do vestido esfarrapado de Casey, e seu olhar se tornou sombrio. Ao ver que lhe tremia o lábio inferior, dirigiu-se a James:
— O que aconteceu? O que fazem vocês aqui?
— Onde está lorde Dante, Balin? — perguntou James e antes que Balin tivesse tempo de responder, Casey começou a soluçar e caiu novamente em seus braços.
— Edgar Dermott tomou de assalto Graycliff e levou Gianelle.
— Oh, Deus! Como? Quando?
— Balin, onde está lorde Dante?— deu uma volta ao redor de Balin e entrou no castelo —. Onde está?
Casey deixou de soluçar o suficiente para observar seu enorme amado, enquanto aguardava uma resposta. As mãos tremiam tanto que tinha que segurá-las.
— Fomos atacados no bosque — começou a dizer rapidamente —. Dante recebeu uma flechada.
— Não! — gritou Casey, consternada —. Está morto?
O próximo som que escutou fez com que seu coração parasse, enquanto James dava um coice e tapava os ouvidos com ambas as mãos.
— Balin — o vozeirão grave que saía de um dos quartos retumbou com o passar do corredor, sobre os muros de pedra, dando a Casey a impressão de que o castelo poderia desmoronar —, se você não tirar esta mulher de cima de mim, com suas beberagens de bruxa, descerei para te buscar e te obrigarei a bebê-las.
— Milord? — James elevou a cabeça na direção de onde vinham os sons —. É você, milord? — O castelo tinha ficado em silêncio —. Siga gritando, que não demorarei a encontrá-lo — anunciou James, indo em direção da escada.
Capítulo 23
O lento avanço de James não podia se comparar com a velocidade de Balin, de modo que, embora o servo tivesse corrido primeiro, o outro chegou antes ao quarto de Dante.
— Saia, imediatamente! — ordenou o capitão à anciã curvada sobre a cama de seu amigo.
— Mas ainda não tomou seu remédio.
— Não importa. Vá! — exigiu Balin.
— Bom, não é meu assunto — retrucou a velha, recolhendo seus bens —. Não tem feito mais que me chatear desde que cheguei, com seus gemidos e lamentos, falando todo o tempo de sua bendita esposa. — Então, dirigiu-se a Dante, com raiva —: Infeliz! Se tem tanta pressa para retornar para sua casa, que espera para tomar seus remédios?
Com três pernadas, Balin chegou até ela e, tomando-a pelos ombros com a maior suavidade possível, fez com que saísse do quarto.
— Não quero voltar a vê-la, Balin. Não necessito suas beberagens. Já não tenho febre. Sinto-me bem e estou indo para casa.
— Oui — Balin assentiu e baixou a vista.
— Oui? — Dante o olhou com assombro —. Nada de discussões? Nem ameaças de recorrer a William para me colocar grilhões e me obrigar a permanecer na cama?
— Non, milord — resmungou Balin.
— Bem. Alegra-me que tenha compreendido, por fim, quem está ao meu serviço. Atravessaram-me com uma flechada, mas continuo sendo seu senhor.
Da soleira, Casey jogou um olhar e viu Dante. Estava recostado sobre um enorme almofadão de cetim, em uma cama que parecia esculpida em ouro, em um quarto decorado com tapeçarias tão finas que pareciam imensos quadros pintados, banhados pela luz vespertina. Ao seu redor, tudo empalidecia em contraste com sua crua e brutal beleza. Quando a viu, levantou-se da cama com um salto.
— Casey? — perguntou sem acreditar em seus olhos. Depois viu James, e suas escuras sobrancelhas agitaram-se sobre as pupilas de prata, enquanto seu pulso se acelerava —. O que esão fazendo aqui?
Casey olhou Balin, enquanto James pigarreava. Agora que estavam diante dele, como diriam?
— Dante — Balin falou, mas sua voz, habitualmente robusta, era apenas um sussurro —, Edgar Dermott atacou Graycliff.
Não precisou que dissesse mais. Dante compreendeu o que significava.
— Reúna a outros. Sele os cavalos. Andando, já!
Pegou sua túnica, que estava sobre o respaldo da cadeira e arrancou a camisa. Casey se espantou ao ver as ataduras ensangüentadas que cobriam um ombro e parte do braço. Se estivesse sentindo alguma dor na ferida do peito, não deu sinal algum ao levantar seus poderosos braços para vestir-se.
Seus olhares se cruzaram e Dante teve que recostar-se contra a parede, apavorado pela lembrança do corpo ensangüentado de sua irmã morta. Casey correu para reconfortá-lo, mas foi ela quem chorou ao sentir o amparo de seus braços, e rogou que se apressassem para resgatar Gianelle.
— Não chore. Ela vai estar bem. Juro — anunciou Dante —. Agora, me conte tudo o que aconteceu.
Não havia muito que contar e, quando ela terminou seu relato, Dante se aproximou de James e pôs uma mão sobre seu ombro.
— Obrigado por trazer Casey.
— Não pude encontrar lady Gianelle. Se não, também a teria resgatado.
— Sei — sorriu, mas por dentro sentia o estômago revolto e o sangue avivado em suas veias —. Quando voltarmos, será meu chefe da guarda. Confiarei a seu excelente ouvido a segurança de meu castelo.
James aprovou com um gesto o que considerava tardio, mas merecido, reconhecimento de seus méritos.
Balin retornou ao quarto com uma grande bolsa de couro. Entregou a seu senhor, junto com uma nova espada.
— Willliam deseja ver você antes de sua partida.
— Non. Não há tempo.
Dante se sentou na cama para colocar as botas. Deu um ligeiro pontapé quando sentiu que uma dor percorria seu ombro e seu braço.
— Dante — Balin, parado frente a ele, olhava-o de cima —, ele não tem a intenção de demorar, mas deve atender seu chamado. O país já está bastante alvoroçado pela ação de Hereward the Wake e seus seguidores: o cavalheiro mais leal do rei não pode incorrer em desobediência.
O conde se ergueu, chiando os dentes, e fez um sinal de consentimento ao sair. James o seguia de perto.
— Permita-me, milord. A propósito de Hereward the Wake…
O salão real era tal como Casey tinha imaginado. Havia fileiras de grossas colunas esculpidas na entrada. Uma mesa enorme ocupava o centro da cavernosa sala e na cabeceira, sentado sobre um trono que mal cobria a largura de suas poderosas costas, estava sentado o rei William o Conquistador. Era um homem de aspecto formidável, na verdade, mas teria parecido mais dominador sem a pequena Tanon montada em seu colo. Lady Brynna se achava a poucos passos e sorriu com doçura para Casey. Lorde Brand também estava ali, como lorde Richard Dumont. Casey voltou os olhos para o rei. Não usava coroa alguma sobre a cabeça. Não precisava para dar a imagem de majestade e poder que lhe correspondia. Vestia-se ao estilo militar, e um manto dourado bordado com o emblema de um leão negro cobria seu peito. Tinha o cabelo escuro, com algumas mechas brancas sobre a fronte e as têmporas. Seu rosto estava quase totalmente coberto por uma barba rala e bem feita. Olhava fixamente para Dante, enquanto acariciava os cachos de cabelo de Tanon.
Ao ver Casey, o rei sorriu.
— Você deve ser lady Cassandra — escutou, impactada por sua poderosa voz de barítono. Aconchegou-se mais perto de Balin e deixou escapar um leve gemido, ao pedir o amparo de seu braço.
— Casey — Dante se voltou e estendeu a mão, convidando-a a acompanhá-lo.
Ela olhou para Balin, que sorriu, para lhe dar confiança.
— Vá tranqüila, meu amor — disse, avançando com ela até onde estava Dante.
— Escutei coisas importantes a respeito de você — disse o rei William, com um olhar gentil, de seus olhos cinzentos e profundos —. No começo estranhei que Balin estivesse tão apaixonado por uma jovem e esquecesse sua habitual estupidez, passando todo o tempo falando alegremente sobre ela. Mas agora que vejo você, compreendo-o.
— William — interveio Dante —, meu leal vassalo, James, acaba de me informar que Hereward o ajudou a chegar aqui com Casey.
A expressão do rei mudou em um instante.
— Richard, venha e encarregue-se de sua neta.
Lorde Richard Dumont se aproximou e levou a pequena. O sombrio olhar de William intimidou Casey, mas James simplesmente inclinou um pouco sua cabeça para o lado.
— Você viajou com Hereward the Wake?
— Sim, Sua Majestade — respondeu James —. E foi muito amável e educado.
William olhou incrédulo, para Dante.
— Respondeu com franqueza todas minhas perguntas.
— Você compreende que se trata de meu pior inimigo? — disse o rei com voz profunda e ameaçadora, aproximando-se de James.
— Sim, Sua Majestade. Mas, não falamos de você. Disse-me que Edgar Dermott e seu finado irmão tinham assassinado lady Katherine e…
— O que? — Brand se separou de sua mulher e quase atropelou o rei, em seu afã de chegar até James —. Porque diria tal coisa?
James teria recuado ante essa reação, mas já tinha tido uma resposta similar, quando contou a Dante.
— Quis que milord soubesse que ele não tinha tido nada a ver com o assunto.
— E devemos acreditar em Hereward? — Brand se dirigiu ao rei e, depois, a seu irmão.
— Conte a eles o resto da história, James — disse Dante.
— Acreditei nele, milord. Estava esperando Dermott no bosque para matá-lo, quando encontrou conosco. Dermott disse que ia matar milord, e depois vir a Winchester para ganhar o favor de Sua Majestade, entregando-o a ele. The Wake tinha a intenção de impedir que o fizesse. Quando contei sobre Gianelle, enviou um contingente de homens a Graycliff, com a certeza de que Dermott o tinha enganado. Nós comprovamos agora que o malvado queria, efetivamente, matar lorde Risande.
— Nós tivemos Dermott em nossas mãoes — disse Brand a seu irmão—, e virtualmente o jogamos para fora de Graycliff.
— Podem voltar e se encarregar dele — disse William, retornando a seu trono, enquanto coçava o queixo —. Se o que disse Hereward é verdade, Dermott deve estar chegando. Se The Wake não o apanhar primeiro.
— Não perguntei onde se esconderia — acrescentou James, com expressão compungida.
— Já estou informado, graças à mulher de Dante. — Ele o olhou e o rei explicou —: Enviou-me uma missiva. Não pediu proteção para ela, mas para você, Dante, me rogando que não te tratasse com dureza por haver se negado a devolvê-la a Devonshire. Pediu-me que enviasse as posses de seu antigo amo ao seu irmão, em Ely, dizendo que estavam acostumados a ir ali freqüentemente, mas nenhum dos Dermott tem propriedades ali, e supus que suas recorrentes visitas teriam a ver com Hereward. Enviei um exército para rastreá-lo, mas não o encontraram. Agora entendo por que. Estava todo o tempo aqui.
O soldado do rei se apresentou e se aproximou do trono. Inclinando-se no ouvido de Sua Majestade, cochichou uma mensagem, fez outra reverência e saiu.
— Muito bem — disse William, sorrindo, primeiro para Dante e depois a Brand —. Parece que Edgar Dermott chegou e pede uma audiência a respeito de um assunto urgente. Qual de vocês deseja pôr fim a sua vida, depois que essa audiência tenha sido concedida?
Dante arrancou a espada de sua bainha, com um gesto tão violento e tal arrebatamento no olhar que William recordou a ferocidade daquele temível guerreiro, que tinha dizimado sozinho um regimento inteiro de saxões, em Hastings, no primeiro dia, depois do desembarque.
— Será meu.
As mulheres se retiraram e entraram quatro guardas armados de William; logo, entrou Edgar Dermott. Conrad Lowell, ao seu lado, inspecionava com cuidado os presentes.
— Majestade, sinto-me profundamente honrado — disse, com uma inclinação até o chão, seguida de um amável sorriso.
— Qual é esse assunto tão urgente?
O tom da pergunta aquietou a impaciência de Dermott, antes de prosseguir. Consultou com os olhos seu emissário e, ante sua incerteza, decidiu começar.
— Como sabe, agora que meu irmão não está mais entre os vivos, Devonshire ficou sem amo.
— Oui. Decidi ceder Devonshire para sir Balin DeGarge, nomeando-o barão de Cambridge.
Produziu-se um silêncio de morte na sala, enquanto William olhava fixamente para Dermott, para ver se ele se atrevia a reagir. Mas como a boca de Edgar ficou completamente aberta e não atinou a dizer uma palavra, William começou a perder a calma.
— Merde. Detesto ver pessoas com a boca aberta. Feche-a, antes que faça com que cortem sua cabeça.
Dermott apertou os lábios, mas voltou a abri-los imediatamente:
— Trago cartas, onde Dante fala do paradeiro de Hereward the Wake. Meu irmão e ele…
— Diga-me, Dermott — interrompeu, impaciente —, se seu irmão estivesse vivo, trairia-o com naturalidade?
Não esperou a resposta. O homem que tinha a sua frente o adoecia com sua simples presença. Fez um gesto para alguém que estava a sua direita, dizendo:
— Acabemos isto, antes que salte de minha cadeira e faça eu mesmo.
Quando Dante saiu de trás de uma das grossas colunas, Dermott sentiu o sangue gelar. Retrocedeu, com total incredulidade.
— Mas, estava…
— Morto?— completou Dante, insinuando um sorriso cruel —. Não de todo.
Conrad Lowell desembainhou sua espada, mas alguém o segurou por trás, pelo pescoço, e encontrou com a espada de Brand, que se cravou em seu ventre.
— Você é o próximo — anunciou o mais velho dos Risande.
— Sua Majestade — Dermott correu até o rei e caiu de joelhos—, houve um terrível mal-entendido. Vim aqui dizer que Hereward se esconde em Ely.
— Dermott — a voz possante de Dante o estremeceu e fez com que se calasse —, onde está a minha mulher? — Edgar soube que já não poderia escapar da tormenta que caía em cima dele —. Onde está? — Dante o ergueu pelo pescoço, obrigando-o a ficar de pé —. Levou-a de Graycliff. O que fez com ela? Diga-me e te perdoarei a vida.
— Enviei-a para Ely com ordens de que não fosse machucada. Juro.
Dante o soltou, arrastando a ponta de sua espada no chão.
— Prepare-se — ordenou.
— Não!
— Você matou minha irmã — a voz de Dante era grave, desumana, sem o menor indício de misericórdia —. Prepare-se, a menos que queira morrer sem lutar.
Com mãos trêmulas, Dermott puxou a arma e lançou seu primeiro golpe.
Dante o obstruiu com facilidade, fazendo a espada de Dermott cair, para avançar um passo e cortar-lhe o pescoço com um só golpe, matando-o imediatamente.
— Mmmh! Eu o teria feito sofrer mais — opinou William, observando o corpo caído.
— Devo partir agora mesmo, William — desculpou-se Dante, enquanto embainhava a espada e chamava Balin.
— Espere. É verdade que sua mulher matou Bryce Dermott?
Por um momento, pensou em negar. Mas levou tempo demais para pensar em como escolheria as palavras. Confiava na justiça de William e não seria capaz de mentir.
— Sim, mas sua intenção era fazê-lo dormir, enquanto ela escapava do castelo.
— Isso me basta — William ficou de pé e se aproximou de Dante —. Poupou-me o aborrecimento de ter que executá-lo. Vá. Meus homens estão a sua disposição, mon ami. Corra para salvar sua dama.
Talard foi o primeiro que sentiu o chão vibrar sob seus pés. Deteve-se, e fez com que Douglan prestasse atenção. Aguçou a vista para ver na escuridão do bosque e empalideceu ao escutar o trovejar de centenas de cascos de cavalos.
— Por Deus! Vamos fugir! — gritou Talard aos outros.
Douglan, que carregava lady Desse, ficou completamente paralisado, salvo seu coração, que palpitava com frenesi. Só atinou a fechar com força os olhos, quando o exército caiu sobre ele.
Alguém gritou e Douglan teve a certeza de que Deus tinha decidido intervir para salvá-lo da morte. Mesmo assim, temia abrir os olhos para ver de perto no que tinha roçado.
Alguém o estava sacudindo, e com bastante violência. Mas não estava preparado para o que viu quando, por fim, atreveu-se a abrir os olhos.
— Milord! — quase deixou cair lady Desse, ao reconhecer Dante, suspenso sobre sua cabeça como uma gigantesca nuvem negra —. Talard, Talard! É lorde Dante; está vivo! — gritou em direção ao bosque.
Sir Malen arrancou Desse dos braços de Douglan e o lacaio observou o casal que havia voltado a encontrar-se com um sorriso involuntário, até que Dante o puxou pelos ombros e o sacudiu outra vez.
— Onde está Gianelle? Cruzamos com os guardas que enviou a Winchester e nos disseram que fugiu dos soldados de Dermott que deviam conduzi-la a Ely. Mas onde está?
Talard saiu do bosque, mas se deteve desconcertado, ao ver Dante.
— Está vivo.
Dante soltou Douglan e estremeceu ao voltar-se para Talard:
— Oui, claro que estou. Mas diga-me, por favor, que Gianelle também está.
Talard piscou e pigarreou, finalmente, explicou:
— Dermott disse que você estava morto, milord. Ela salvou a todos.
— Mas diga-me que está viva — rogou Dante, enquanto seu vassalo deu um passo para trás.
— Sentia muito sua falta — disse Talard, que não se atrevia a chegar ao final de seu relato —. Eu nunca tinha visto ninguém tão transtornado pela saudade. Não quis vir conosco.
Casey desceu do cavalo e se aproximou, chorando.
— Por Deus, me diga onde está.
— Não sei — Talard afastou os olhos —. Fugiu faz mais de uma semana. Simplesmente, desapareceu.
Um rugido, como um trovão longínquo, fez com que Talard voltasse a fixar o olhar em seu senhor. Queria não ter escutado. Dante tinha caído de joelhos, deixando escapar aquele estranho som, como se uma angústia insuportável rasgasse seus pulmões, cravando adagas em seu coração e o silêncio reinou no bosque.
Capítulo 24
Dante explorou toda a comarca, mas Gianelle continuava desaparecida. Procurou durante dias inteiros, a pé e a cavalo, sem descansar, mas não a encontrou. Não falava com ninguém e ninguém se animava a aproximar-se para falar com ele. Casey só chorava, grudada em Balin, desconsolada pela tortura em que Dante estava mergulhado, quando retornava ao castelo, depois de mais uma tentativa frustrada. Depois de uma semana, Dante chamou Talard ao seu quarto. Sorriu ao escutar o relato de como Gianelle os tinha resgatado da masmorra. Mas quando Talard passou a relatar como ela passava os dias perambulando sozinha pela beira do mar, Dante cobriu o rosto e passou os dedos entre o cabelo, como se desejasse arrancá-los.
— Ela retornará, milord — tentava convencê-lo.
— Non, porque pensa que morri. Não voltará. E eu devo encontrá-la. Que cada homem que tenhamos procure em cada povoado, em cada aldeia, daqui até Escócia, se for necessário.
Gianelle caminhava pela beira do mar, recolhendo caracóis e guardando-os nos bolsos de sua saia. Ia descalça pela areia molhada, encantada com a sensação que lhe produzia nos dedos dos pés. Cantarolava uma canção a respeito de um belo homem que tinha partido para a guerra e depois, retornou para sua amada. Sentia-se reconfortada. O mar também lhe proporcionava paz.
Uma gaivota sobrevoava e ela ergueu a vista para observá-la.
— Bem-vindo — gritou —. Tem fome? Venha, siga-me e te darei de comer. — Voltou-se e retornou às cavernas —. Temo não ter pão, amiguinho. Faz tempo que não vou ao castelo. Da última vez, alguns dos homens tinham voltado e falavam de Hereward the Wake. Não posso retornar ainda. Mas não tenho sentido muita fome ultimamente.
Voltou a olhar, e a gaivota já não estava ali. Enrugou o cenho ao sentir-se tomada por uma sensação de abandono.
— Possivelmente devo passar pela aldeia — disse, falando sozinha —. Preciso de comida.
Fez um gesto de afirmação com a cabeça e desapareceu no interior de uma das cavernas. Reapareceu um momento depois, calçando suas sapatilhas de couro e com um dos sedosos véus de Simone lhe envolvendo a cabeça e o pescoço. Atravessou um pequeno atalho arenoso, saltou por cima de uma pedra e se agachou ao avistar um pescador que conduzia suas redes até a beira da água.
Não era um trajeto muito longo e Gianelle se divertia ao subir pelas rochas. Seus pés diminutos lhe permitiam mover-se depressa, ágil como um gato, e desaparecer ao ver outra pessoa ou diante de qualquer ruído inesperado. Inclusive, tinha conseguido ir ao seu antigo quarto, sem que a vissem, e ao escutar a conversa dos cavaleiros de Dermott, retornando da aldeia, duas noites atrás, havia fugido.
Havia se escondido no fundo das cavernas quando a procuraram. O monstro tinha demonstrado incomum tenacidade, porque enviava os soldados atrás dela quase diariamente. Depois de algum tempo, chegou a ter medo de sair de sua caverna. Mas nessa manhã não se sentiu ameaçada. Sorria, cheia de satisfação, escolhendo conchas que trocaria por comida. Ao chegar ao atalho de terra que a conduziria à aldeia, deteve-se. Era o lugar mais perigoso de todos. Tinha que atravessar um espaço aberto de ambos os lados, transitado constantemente por cavaleiros.
Ao ver que não havia ninguém, atreveu-se a cruzar com uma corrida.
Antes de entrar na aldeia, ajustou o véu, para cobrir não somente seu rosto, mas sua cabeleira. Havia muitas pessoas que poderiam reconhecê-la, embora ela não acreditasse que a delatariam. Mas não havia razão para correr riscos desnecessários.
Tonéis cheios de arenque, peixe-espada e tubarão estavam alinhados em frente às casas. Os homens reparavam suas redes e as mulheres desossavam os pescados sob os raios do sol. Em qualquer lugar para onde olhasse, via as famílias trabalhando e as crianças brincando entre as rochas. Escutava a música, flutuando na brisa, enquanto os homens bebiam e contavam histórias sobre criaturas fabulosas que tinham visto no mar. As risadas permeavam o ar, chegando a fazer com que Gianelle sorrisse, embora as pequenas alegrias que tinha nesses últimos dias sempre contrastavam com a tristeza que sentia pela ausência de Dante. Ela supôs que ninguém tinha informado aos aldeões que seu senhor estava morto.
Gianelle passou entre um bando de gansos que comiam os grãos esparramados, para chegar à casa de Lizzy Somers, com quem trocava suas conchas por água doce e pão.
Com seus bens nas costas, empreendeu o caminho de volta, sem economizar as lágrimas de todos os dias.
Ao cruzar o atalho sem olhar, quase foi pisoteada por um cavalo de guerra. O pão caiu e derrubou a água. Também seu cachecol se soltou. Levantou-se aturdida e ouvindo gritos atrozes.
Na realidade, não eram gritos de terror, mas sim de puro alívio e exaltação.
— Gianelle! Graças a Deus! Que bênção!
Casey saltou do cavalo e Balin a seguiu, sem soltar o impressionante cavalo que tinha derrubado Gianelle, devido ao seu imperdoável descuido.
— Casey! — Gianelle esfregou a cabeça, para assegurar-se de que não estava sonhando —. Casey? Casey! Oh, Oh! — e abraçou sua amiga que chorava como uma criatura que reencontrava sua mãe. Ao vê-las, até Balin se emocionou.
Ajudou Gianelle a ficar de pé, quando Casey pôs fim aos beijos e abraços. Nenhuma das duas moças cabia em si de felicidade, pois acreditavam que nunca mais voltariam a se encontrar.
— Procuramos você sem descanso.
Parecia incrível que estivessem realmente ali. Eram eles? Era mesmo sua amiga?
— Senti muita saudade.
Chorava e ria ao mesmo tempo, e voltou a abraçar Casey.
De repente, acabou sua alegria e ficou rígida. Olhando sobre o ombro para Balin, foi tomada pela saudade e as conhecidas ondas de dor.
— Estava com Dante quando morreu?
Sem parar de sorrir, como se fosse um tolo, Balin sacudiu a cabeça:
— Ele não morreu minha querida senhora.
Gianelle quase não ouviu Balin, atormentada por imagens do corpo ferido de Dante, abandonado em algum solitário caminho. Deixou Casey e deu um passo para o cavalheiro sorridente. Piscou e sussurrou, como se não tivesse compreendido:
— O que?
— Disse que Dante não morreu. Mas morrerá se não descobrir logo seu paradeiro.
Gianelle pestanejou e uma lágrima solitária correu por sua bochecha. Poderia animar-se a acreditar no que estava ouvindo? Era muito para seu coração. Tropeçou, mas Balin a segurou e disse com ternura:
— Enlouqueceu sem ti e logo contagiará a todos.
Ela se agarrou às mangas de Balin. Era incapaz de mover um só músculo, exceto seu lábio inferior, que não parava de tremer. De repente, tomou consciência do que estava acontecendo, puxou a saia e começou a correr.
— Non, para lá não — gritou Balin, vendo-a sair em direção ao castelo —. Espera por você junto ao mar.
Sem agradecer, Gianelle cruzou o atalho, como um pássaro que sai voando depois de ter recuperado a vida e a liberdade. Seu coração se acelerou e lhe deu asas. Estava vivo! As cores adquiriam uma nova vida com a notícia. Vivo! As gaivotas chiavam no alto e ela respondia do mesmo modo. Não tinha morrido! Desceu uma pedra com um salto, para abreviar a distância, e abriu os braços para suavizar o impacto de sua queda. Na areia morna, tirou as sapatilhas, jogando-as para cima para festejar com as gaivotas.
Explorou o horizonte, mas não o avistou. Então, correu mais; em alguma parte devia estar.
— Dante! — gritou, e o viu na água, nadando —. Dante! — repetiu, correndo com toda a rapidez que seus pequenos pés permitiam —. Oh, obrigado, Meu deus! Obrigado, obrigado!
No meio do ruído ensurdecedor das ondas, Dante não a tinha escutado ainda. Enorme, surgiu por entre as ondas, sacudindo a cabeça, para escorrer os cabelos. Quando ouviu um grito, similar ao chiado das gaivotas e lançou um olhar sobre a costa.
— Dante! — Gianelle agitava os braços por cima de sua cabeça e pulava sem parar. E começou a correr.
Dante viu sua amada correr para ele, com os cabelos agitados como se fossem asas ao vento. A voz enfraqueceu pela emoção e pareceu que seu coração ia saltar do peito, pela felicidade que sentia ao ver o belo rosto de sua mulher. Ela estava livre, livre para voar, para nunca mais voltar e, mesmo assim, estava correndo para ele. Dante riu quando a viu cair nas ondas, e levantar-se novamente.
Estendeu os braços e a acolheu com ternura, enquanto ela repetia seu nome incesantemente, como se não quisesse ouvir outra palavra além dessa pelo resto de sua vida.
Dante a acariciou e a apertou entre seus braços.
— Meu deus! Onde esteve, meu amor?
Com o rosto apoiado contra o vigoroso batimento do coração de Dante, Gianelle chorava agradecida pelo contato de suas mãos, seus braços, sua voz, envolta por esse sentimento de amor que havia negado durante tanto tempo. Levantou os olhos para ele. Faltavam as palavras, mas via seus olhos. Seus olhos, que a absorviam como se ela fosse aquela brisa do mar, tão natural para ele.
— Meu amor, estava em um belo mar, banhado pelos raios prateados da lua. E já não tenho medo de seu poder. Mas me entristecia o fato de que as ondas estivessem calmas.
Dante observava sua boca, enquanto Gianelle falava. Tomou o rosto entre suas mãos, ansioso para beijá-la, e escutar as palavras que via em seus olhos.
— Estava sereno, Dante — continuou Gianelle —. Não tive a oportunidade para dizer as palavras que queria ter dito. Amo você, Dante. Não imagina o quanto te amo.
O fôlego de ambos se fundiu, antes de um beijo de fogo; um beijo que era para ele, tão avassalador como o mar que rugia ao seu redor. Ele era pura rocha e sal, e quente como a areia. Ergueu-a em seus braços e a levou para a beira. Caiu de joelhos e a depositou sobre a areia úmida. E ali ficaram, beijando-se, acariciando-se, amando-se.
A risada dos dois foi levada pelo vento até as almenas de Graycliff, onde um ancião cuidava dos muros do castelo. Não podia ver quase nada, mas escutava melhor do que qualquer um dos guardas. Inclinou sua cabeça na direção de onde vinham os sons do mar e, logo, levantou seus olhos quase cegos para o céu:
— Obrigado — murmurou —. Agora, seria muito pedir que também conseguisse essa barulhenta galinha dourando no assador esta noite?
Paula Quinn
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