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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SENHOR DE RAMPLING GATE / Anne Rice
O SENHOR DE RAMPLING GATE / Anne Rice

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O SENHOR DE RAMPLING GATE

 

Rampling Gate: para nós, era muito real naqueles velhos quadros, erguendo-se como um castelo de contos de fadas da sua própria mata escura. Uma selva de empenas e chaminés entre as duas torres imensas, muralhas de pedra cinzenta cobertas de hera, janelas com mainés refletindo as nuvens de passagem.

 

Mas por que papai jamais fora lá? Por que nunca nos levara? E por que, no leito de morte, naqueles tristes meses depois de mamãe falecer, disse a meu irmão, Richard, que Rampling Gate devia ser destruído pedra por pedra? Rampling Gate que sempre pertencera aos Ramplings, Rampling Gate que se mantivera de pé por mais de quatrocentos anos?

 

Estávamos com medo da tarefa que nos esperava, e dolorosamente confusos. Richard acabara de concluir quatro anos em Oxford. Duas tempestuosas temporadas sociais em Londres me haviam provado alguma coisa sobre excesso de timidez. Eu ainda preferia escrevinhar poemas e contos no silêncio do meu quarto a passar as noites nos bailes, mas mantivera isso muito em segredo, e embora não fôssemos filhos mimados, tivéramos o melhor de tudo que nossos pais nos podiam dar. Agora, porém, haviam acabado os anos de despreocupação. Precisávamos ser cuidadosos e ajuizados.

 

E era com dor no coração que, sentados no gabinete de papai, entre as paredes revestidas de livros, olhávamos as velhas imagens de Rampling Gate diante da pequena lareira de carvão.

 

— Destruam-no, assim que eu me for — dissera papai.

— Eu simplesmente não entendo, Julie — confessara Richard, enchendo de xerez a pequena taça de cristal em minha mão. — É uma coisa autêntica, aquela velha casa, uma verdadeira mansão do século XIV, em excelentes condições. Parece que uma certa senhora Blessington, nascida e criada na aldeia de Rampling, cuidou dela esses anos todos. Estava lá quando o tio Baxter morreu, e ele foi o último Rampling a morar debaixo daquele teto.

— Você se lembra — perguntei — do ano em que papai tirou todos esses quadros e os guardou?

— Eu jamais vou esquecer! — disse Richard, acomodando-se de novo na poltrona de veludo e olhando as minúsculas chamas na grade da lareira. — Você se lembra de como ele ficou furioso?

 

No entanto, fora um incidente simples. Na verdade, não acontecera absolutamente nada de fato. Nós não podíamos ter mais de 6 e 8 anos na época, e fôramos com papai despedir-nos de amigos na estação. Pela janela de um trem, ele vira um rapaz que o assustara e perturbara. Eu lembrava claramente o rosto até agora. Muito bonito, nariz fino, sobrancelhas bem desenhadas e bastos cabelos castanhos. Os grandes olhos negros, com uma expressão tristíssima, haviam encarado papai, que nos puxara para trás e se afastara às pressas.

 

— E a discussão naquela noite, entre papai e mamãe — disse Richard, pensativo. — Eu me lembro de que escutamos no patamar da escada e tivemos muito medo.

— Papai disse que não estava mais satisfeito por ser senhor de Rampling Gate; veio para Londres e explicou. Um horror indizível, foi como chamou, que ele fosse tão ousado.

— Sim, exatamente, e quando mamãe tentou acalmá-lo, quando sugeriu que ele estava imaginando coisas, ficou furioso.

— Mas quem podia ser o senhor de Rampling Gate, se não era papai? O tio Baxter já havia morrido muito tempo atrás.

— Eu simplesmente não sei o que concluir — murmurou Richard. — E não há nada nos papéis de papai que explique coisa alguma. — Examinou as imagens mais recentes, uma bela gravura tintada que mostrava a casa perfeitamente refletida na água azul de seu próprio lago. — Mas eu lhe digo uma coisa; o pior disso, Julie — declarou, balançando a cabeça — é que nós mesmos sequer vimos a casa algum dia.

 

Olhei-o, e nossos olhos se encontraram num momento de confusão que logo se transformou em outra coisa. Curvei-me para frente:

 

— Ele não disse que não podíamos ir lá, disse, Richard? — perguntei. — Que não podíamos visitar a casa antes que ela fosse destruída.

— Não, claro que não! — ele disse. O sorriso abriu-se fácil em seu rosto. — Afinal, não devemos isso aos outros, Julie? Ao tio Baxter, que gastou o resto de sua fortuna restaurando a casa, e mesmo a essa velha senhora Blessington, que a manteve esses anos todos?

— E que dizer da própria aldeia? — apressei-me a acrescentar. — Que significará para toda aquela gente ver Rampling Gate destruída? Claro que devemos ir ver a casa por nós mesmos.

— Então está decidido. Vou escrever imediatamente à senhora Blessington. Direi que estamos indo e não sabemos quanto tempo vamos ficar.

— Oh, Richard, isso seria maravilhoso demais! — Não pude impedir-me de abraçá-lo, embora o fizesse ruborizar e tirar uma baforada do cachimbo, exatamente como haveria feito papai. — Que seja pelo menos uma quinzena — eu disse. — Quero muito conhecer a casa, sobretudo se...

 

Mas era demasiado triste pensar na advertência de papai. E muito mais divertido pensar na viagem em si. Eu ia embalar meus manuscritos, pois, quem sabia? Talvez naquele cenário melancólico e perfeito, encontrasse exatamente a inspiração de que precisava. Era uma euforia quase perversa, romper a tristeza que pairava sobre nós desde o enterro de papai.

 

— Estamos agindo certo, não estamos, Richard? — perguntei, insegura, um pouco desconcertada pelo quanto queria ir. Havia um certo prazer ilícito naquilo, ir finalmente a Rampling Gate.

 

“Horror indizível”, repeti as palavras de papai com uma ligeira careta. Que queria dizer aquilo tudo? Tornei a pensar no jovem estranho, quase delicado, do qual tivera um vislumbre na estação de trem, olhando-nos com aquela expressão melancólica no rosto magro. Ele usava um capote negro, com uma gravata vermelha estufada, e eu me lembrava de como parecia pálido contra aquela mancha rubra. A pele era como louça de osso. Estranho lembrar com tanta vividez, até a inclinação da cabeça, e aqueles luxuriantes e compridos cabelos castanhos. Percebia agora que, naqueles poucos e admiráveis momentos, ele criara para mim um ideal de beleza masculina que eu jamais questionara desde então. Mas papai ficara tão furioso naqueles momentos... Senti uma inequívoca pontada de culpa.

 

— Claro que estamos agindo certo, Julie — respondeu Richard.

 

Sentava-se à escrivaninha, já escrevendo as cartas, e eu perdida, sem conseguir compreender toda a extensão de meus pensamentos.

 

Era fim de tarde quando a velha charrete nos conduziu da estação do trem pela suave encosta acima, e tivemos por fim nossa primeira visão real da magnífica casa. Creio que prendi o fôlego. O céu empalidecera num profundo tom de rosa, atrás de um banco de nuvens ligeiramente douradas, e os últimos raios de sol batiam nas vidraças de cima das janelas chumbadas e enchia-as de ouro sólido.

 

— Oh, mas é muito majestosa — murmurei —, parece demais uma catedral, e pensar que nos pertence.

 

Richard deu-me o mais leve beijo no rosto. Eu me senti de repente louca e de algum modo ávida por ser destruída por ela, de medo ou encanto, não sabia, talvez uma sublime mistura das duas coisas.

 

Queria de todo coração saltar e me aproximar a pé, deixando aquelas torres crescerem cada vez mais acima de mim, mas nosso velho cavalo ganhara velocidade. E a pequena fila de criados, duros de goma, se desfizera para adiantar-se, a velha caseira enrugada de braços abertos, os homens para descer as caixas e baús.

 

Richard e eu fomos introduzidos no grande salão pela minúscula e ágil figura da senhora Blessington, nossas passadas ecoando nos ladrilhos de mármore, os olhos deslumbrados pelos poeirentos fachos de luz que caíam sobre a longa mesa de carvalho e suas maciças cadeiras lavradas, as sombrias e pesadas tapeçarias que se agitavam muito de leve contra as paredes altíssimas.

 

— É um lugar encantado! — exclamei, incapaz de conter-me. — Oh, Richard, estamos em casa!

 

A senhora Blessington deu uma alegre risada, cerrando com força a mão seca sobre a minha. Os pequenos olhos azuis me encaravam com a expressão mais curiosamente vazia, apesar do sorriso.

 

— Ramplings em Rampling Gate mais uma vez, nem posso dizer como este é um dia alegre para mim. E sim, minha querida — ela disse, como se lesse minha mente naquele segundo — eu sou, e há muitos anos, inteiramente cega. Mas se a senhora vê uma coisa fora do lugar nesta casa, deve me dizer logo, pois seria exceção, eu lhe garanto, e não a regra.

 

E de seu pequeno rosto emanava uma tal simpatia que a adorei imediatamente. Encontramos nossos quartos, os melhores da casa, bem arejados, os lençóis brancos como a neve, e fogos ardendo aconchegantes, para secar a umidade que jamais deixava as grossas paredes. As janelas de vidraça em forma de diamante abriam-se para uma gloriosa paisagem da água e carvalhos que cercava a casa, e para as poucas luzes dispersas que assinalavam a aldeia mais além.

 

Naquela noite, rimos feito crianças quando jantávamos na grande mesa de carvalho, as velas lançando apenas uma débil claridade. E depois, houve uma feroz batalha de bilhar na sala de jogos que fora a última renovação do tio Baxter, e algum excesso de conhaque também.

 

Foi pouco antes de nos recolhermos que perguntei à senhora Blessington se alguém estivera na casa desde a morte do tio Baxter. Isso fora em 1838, quase cinqüenta anos antes, e ela já era caseira então.

 

— Não, minha querida — ela se apressou a responder. — Seu pai veio naquele ano, como a senhora sabe, mas não ficou mais que um ou dois meses e voltou para casa.

— Nunca houve um rapaz depois disso? — insisti, mas na verdade não tinha apetite para nada que perturbasse a felicidade que sentia.

 

Como adorava a espartana limpeza daquele quarto, as paredes de pedra nuas de papel ou enfeite, o brilho dos painéis de castanheiro da cama.

 

— Um rapaz? — Ela deu uma risada descontraída, quase gostosa, quando, com infalível certeza do que a cercava, pegou o atiçador e mexeu no fogo. — Que pergunta mais estranha.

 

Fiquei sentada um instante olhando o espelho, tirando os últimos grampos dos cabelos, que me caíram pesados e cálidos em torno dos ombros. Era uma sensação boa, como de uma capa sob a qual pudesse ocultar-me. Mas ela se voltou, como se sentisse em mim algum nervosismo, e aproximou-se.

 

— Por que fala num rapaz, senhorita? — perguntou.

 

Devagar, hesitantes, seus dedos examinavam as longas tranças caídas sobre meus ombros. Ela tomou a escova de minhas mãos.

 

Senti-me inteiramente tola contando-lhe a história, mas dei um jeito de apresentar uma versão de algum modo simplificada de nosso inesperado encontro com um rapaz de beleza diabólica, a quem papai depois, furioso, chamara de senhor de Rampling Gate.

 

— Era bonito, era? — ela perguntou, escovando delicadamente meus cabelos embaraçados. Parecia pendurada sobre cada palavra conforme eu o descrevia.

— Não houve então nenhum intruso nesta casa, senhora Blessington? — perguntei. — Nenhum mistério não resolvido...

 

Ela deu sua mais gostosa risada.

 

— Oh, não, querida, esta casa é o lugar mais seguro do mundo — apressou-se a dizer. — É uma casa feliz. Nenhum intruso se atreveria a perturbar Rampling Gate.

 

Nada, na verdade, perturbou a serenidade dos dias que se seguiram. A fumaça e o barulho de Londres, e as palavras de nosso pai agonizante, tornaram-se um sonho. O que era real eram nossas longas caminhadas juntos nos jardins tomados pelo mato, nossas viagens no barquinho de um lado para outro do lago. Tomávamos chá sob o quente vidro da estufa vazia. E o princípio da noite nos encontrava a caminho do andar de cima, com os melhores livros da biblioteca do tio Baxter, para ler à luz de velas, na intimidade de nossos quartos.

 

Todas as nossas discretas perguntas na aldeia recebiam mais ou menos a mesma resposta: os aldeões adoravam a casa e não tinham histórias estranhas ou inquietantes. Repetidas vezes, na verdade, nos disseram que Rampling era a aldeola mais feliz de toda a Inglaterra, que ninguém se atreveria — as palavras mesmas da senhora Blessington — a causar problema ali.

 

— Aquela casa é nosso anjo da guarda — disse a velha na livraria onde Richard parou para pegar os jornais de Londres. — Haveria algum dia a cidadezinha de Rampling sem a casa chamada Rampling Gate?

 

Como iríamos falar-lhes do édito de papai? Como iríamos lembrar a nós mesmos disso? Mas não falamos uma palavra sobre o desastre proposto, e Richard escreveu à sua firma para dizer que só voltaríamos a Londres no outono.

 

Ele estava descobrindo um tesouro de material clássico nos velhos volumes que haviam pertencido ao tio Baxter, e eu instalara meu escritório no pequeno gabinete ao lado da biblioteca, que tinha toda para mim.

 

Eu jamais conhecera tanta paz e silêncio. Parecia que a atmosfera de Rampling Gate impregnava a mais simples de minhas descrições escritas, e entremeava-se exuberante nas tramas e personagens que eu criava. Na segunda-feira após nossa chegada, já concluíra meu primeiro conto, e fui a pé à aldeia pô-lo no correio, para os editores da Blackwood's Magazine. Era uma manhã gloriosa, e ao voltar a pé, não me apressei.

 

Perguntava-me o que tanto haveria perturbado nosso pai naquele lindo recanto da Inglaterra. Que lhe haveria tanto enegrecido as últimas horas, para ele lançar sua maldição sobre aquele lugar?

 

Meu coração se abriu para aquela fantástica quietude, para uma inegável grandeza que me fazia esquecer de mim mesma. Havia momentos em que eu me sentia como um intelecto sem corpo, vagando por um insondável silêncio, subindo e descendo trilhas de jardim e corredores de pedra que haviam testemunhado coisas demais para tomar conhecimento de uma jovem pequena e frágil, que em momentos aleatórios falava de fato em voz alta com as armaduras em volta, as estátuas quebradas no jardim, os querubins das fontes por anos e anos sem água para despejar de suas conchas.

 

Mas haveria naquela beleza alguma força maligna que ainda nos escapava, alguma história não contada que explicasse tudo? Horror indizível... Eu via em minha mente o rapaz, e tomava-me a mais estranha sensação, de que a imagem se enriquecera um pouco em minha memória ou imaginação no passado recente. Talvez em sonho eu o houvesse reinventado, dando-lhe o rubro fulgor dos lábios e das faces. Talvez em minha recriação para a senhora Blessington eu lhe houvesse permitido levar a mão àquela gravata vermelha, e vira os dedos longos e delicados, sugerindo a mão de um músico.

 

Tinha tudo isso em mente quando tornei a entrar em casa, sem fazer barulho, e vi Richard em sua poltrona de orelha favorita, de couro, junto à lareira.

 

O ar entrava cálido pelas portas abertas do jardim, mas o fogo era vivo, fazia a vasta sala, com suas altas estantes de volumes encadernados em couro, parecer convidativa e quase pequena.

 

— Sente-se — ele disse com voz grave, mal me lançando uma olhada. — Quero ler uma coisa para você agora mesmo. — Tinha um longo e fino livro-caixa nas mãos. — Isto era do tio Baxter — disse — e a princípio eu pensei que fosse apenas um livro de contabilidade que ele manteve durante as renovações, mas descobri algumas anotações de diário feitas nas últimas semanas de sua vida. São apressadas, quase indecifráveis, mas consegui destrinçá-las.

— Bem, leia para mim — eu disse, com uma pequena pontada de medo.

Não queria saber de nada terrível sobre aquele lugar. Se pudéssemos ficar ali para sempre... mas isso estava fora de questão, claro.

 

— Agora escute isto — disse Richard, virando a página com cuidado. — “5 de maio de 1838: Ele está aqui, tenho certeza. Voltou de novo.” E várias páginas depois: “Ele acha que esta casa é dele, acha mesmo, e gostaria de tomar meu vinho e fumar meus charutos se pudesse. Lê meus livros e documentos, e eu não vou suportar isso. Dei ordens para que trancassem tudo.” E finalmente, a última anotação, escrita na manhã em que ele morreu: “Exausto, morto de exaustão, e é ele ainda a causa do meu cansaço. Ontem à noite eu o vi com meus próprios olhos. Estava neste mesmo quarto. Anda e fala exatamente como um mortal, e ousa contar-me seus segredos, e sendo ele um demônio com rosto de serafim, e eu um mero mortal, como vou suportá-lo!”

— Deus do céu! — murmurei devagar.

 

Levantei-me da poltrona onde me instalara, e parada atrás dele, li a página eu mesma. Era o rabisco, a letra, a última anotação no livro. Eu sabia que o coração do tio Baxter cedera. Ele não morrera por violência, mas muito pacificamente, naquela mesma sala, com o livro de preces na mão.

 

— Poderia ser a mesma pessoa de quem papai falou naquela noite? — perguntou Richard.

 

Apesar do sol que jorrava pelas portas abertas, tive um violento arrepio. Pela primeira vez, senti medo da casa, medo de nossa ousadia indo ali, lembrando as palavras de papai.

 

— Mas isso foi anos antes, Richard... —disse. — E que pode significar isso, essa conversa sobre um ser sobrenatural? Sem dúvida o homem estava louco! Não foi nenhum espírito que eu vi naquele vagão!

 

Afundei na poltrona defronte e tentei acalmar as batidas do coração.

 

— Julie — disse Richard, delicadamente, fechando o livro. — A senhora Blessington vive feliz aqui há anos. Seis criados dormem toda noite na ala norte. Certamente não há nada nisso tudo.

— Mas não tem muita graça, tem? — eu disse, timidamente. — Não é de modo algum como contar histórias de fantasmas como fazíamos, e povoar a escuridão com seres imaginários, e rir dos amigos medrosos na escola.

— Toda a minha vida — ele disse, fixando os olhos em mim — eu ouvi histórias de almas e espíritos, algumas imaginadas, outras supostamente verdadeiras, e quase sempre há alguma menção ao fato de a casa em questão parecer assombrada, ter uma atmosfera que nos enche de pressentimentos, uma sensação de ameaça ou susto.

— E, eu sei, e não há absolutamente nenhuma atmosfera deletéria dessas aqui.

— Ao contrário, nunca me senti tão à vontade em minha vida. — Ele enterrou a mão no bolso e pegou o inevitável fósforo para acender o cachimbo, que se apagara. — Na verdade, Julie, não sei como diabos vou obedecer ao último desejo de papai de demolir esta casa.

 

De repente, me vi desejando, irracionalmente, que ele não houvesse descoberto as anotações no livro do tio Baxter.

 

— Preciso voltar a conversar com a senhora Blessington! — eu disse, quase contrariada.

— Quer dizer, seriamente...

— Mas eu já conversei, Julie — ele disse. — Perguntei a ela sobretudo isso hoje de manhã, quando fiz a descoberta, e ela apenas riu. Jura que nunca viu nada fora do comum aqui, e ninguém vivo na aldeia conta histórias desta casa. Voltou a dizer como está contente por termos vindo morar em Rampling Gate. Acho que não tem idéia de que pretendemos destruir a casa. Oh, ia destruir o coração dela se soubesse.

— Nunca viu nada fora do comum? — perguntei. — Foi só o que ela disse? Mas que estranhas palavras da parte dela, Richard, quando não pode ver nada.

 

Ele, porém, não me ouvira. Pusera o livro de lado e levantara-se devagar, quase preguiçosamente, saíra pelas portas duplas para o pequeno jardim, e olhava por cima da alta sebe os carvalhos que curvavam os galhos para a superfície do lago. Não se ouvia um barulho àquelas primeiras horas da manhã, a não ser o farfalhar das folhas no ar matinal, o canto de vez em quando de um passarinho distante.

 

— Talvez tenha ido embora — disse Richard, olhando para trás, a voz viajando clara no silêncio — se é que algum dia esteve aqui. Talvez não haja mais nada para assustar ninguém. Você não acha que agüentaria o inverno nesta casa, acha? Creio que ia querer voltar para Londres nessa altura.

 

Parecia muito pequeno contra as altas árvores, o céu estilhaçado em reluzentes fragmentos pelo caramanchão da folhagem que filtrava delicadamente a luz. Rampling Gate o pegara. E eu entendia perfeitamente, porque também me pegara. Eu poderia muito bem passar o inverno ali, por mais sombrio e frio que fosse. Não queria mais voltar para casa. E o imediatismo do mistério apenas embotava meu senso de tudo e de todos os outros lugares.

 

— De uma coisa eu sei, Julie — ele disse, como se não houvéssemos interrompido a conversa. — Jurei a papai que faria o que ele pediu, e isso está me dilacerando. De um jeito ou de outro, vai ficar em minha consciência para sempre destruir a casa ou ir contra meu próprio pai e o encargo que ele me impôs em seu último alento.

— Precisamos procurar ajuda, Richard. A opinião de nossos advogados, a opinião dos clérigos de papai. Você deve escrever a eles e explicar tudo. Papai estava febril quando deu essa ordem. Se pudéssemos explicar, eles nos ajudariam a decidir.

 

Eram três horas quando abri os olhos. Mas ficara acordada muito tempo. Ouvira hora a hora as abafadas batidas do relógio abaixo de nós. E não era medo que sentia ali deitada sozinha na escuridão, mas outra coisa. Uma vaga e constante agitação, um senso de vazio e necessidade, que acabaram por me fazer levantar da cama. Perguntava-me o que era necessário para resolver a tensão. Olhava demoradamente as mais simples coisas nas sombras. O pequeno arrás pendurado acima da lareira, com seus principezinhos e princesinhas perdidos em fibras e fios desbotados. O retrato de uma ancestral elisabetana fitando com olhos amendoados de sua pequena moldura.

 

Que era aquela casa, na verdade? Apenas uma casa, ou um estado de espírito? Que fazia ela à minha alma? Por que as anotações no livro do tio Baxter não nos haviam mandado voando para Londres? Por que ficáramos até tão tarde no grande salão após a ceia, sem dizer uma única palavra?

 

Senti-me de repente esmagada, e no entanto deixada de fora de um grande e deslumbrante segredo, e não fora essa a palavra que o tio Baxter havia usado?

 

Consciente apenas de uma insuportável inquietação, pus o robe de lã, abotoei a gola de renda e amarrei o cinto. E, calçando os chinelos, fui para o salão.

A lua batia em cheio na escadaria de carvalho e na porta bastante recuada do quarto de Richard. Aproximei-me nas pontas dos pés e, olhando para dentro, vi que a cama estava vazia, as cobertas inteiramente intocadas. Portanto, ele saíra sozinho nessa noite, como eu. Oh, se me houvesse procurado, me pedido que fosse com ele. Virei-me e desci sem fazer barulho a longa escadaria.

 

O grande salão escancarava-se como uma caverna à minha frente, a lua tocando aqui e ali um par de espadas cruzadas, ou um escudo montado. Mas no outro extremo, na alcova bem ao lado da biblioteca, vi o inequívoco tremular de uma luz. E uma brisa seca cruzava o salão, trazendo consigo o barulho e o cheiro de um fogo de lenha.

 

Senti um arrepio de alívio. Richard estava ali. Podíamos conversar. Ou talvez pudéssemos fazer explorações juntos, protegendo as frágeis chamas das velas por trás dos dedos em concha, ao percorrermos um aposento após outro. Fui tomada por uma sensação de bem-estar que me acalmou, e no entanto a escura distância entre nós parecia interminável, e eu estava desesperada para cruzá-la, apressando-me de repente ao passar pela longa mesa de jantar, com seus enormes castiçais, e entrar por fim na alcova antes das portas da biblioteca. Sim, Richard ali estava. Sentava-se de olhos fechados, cochilando recostado na poltrona de orelha, a brisa do jardim soprando as frágeis chamas das velas no consolo de pedra da lareira e na mesa a seu lado.

 

Eu estava para me aproximar dele, fechar a porta, dar-lhe um leve beijo, e perguntar-lhe se não queria subir para a cama, quando de repente vi pelo canto do olho que havia mais alguém na sala.

No canto à extrema esquerda da mesa via-se outra figura, em pé, olhando o amontoado de papéis de Richard, as mãos pálidas apoiadas na madeira.

 

Eu sabia que não podia ser. Sabia que devia estar sonhando, que nada naquela sala, menos que tudo aquela figura, podia ser real. Pois era o mesmo rapaz que eu vira quinze anos antes no vagão de trem, e nem um único aspecto do tenso rosto jovem mudara. Lá estavam os mesmos cabelos, densos, lustrosos e apenas descuidadamente penteados, caindo sobre a grossa gola do capote negro, a pele tão pálida que quase chegava a ser luminosa nas sombras, e aqueles olhos negros erguendo-se de repente e fixando-me com a mais curiosa expressão, que quase me fizeram gritar.

Ficamos fitando um ao outro de lados opostos da escura paisagem da sala, eu paralisada na entrada, ele visível e inegavelmente abalado por haver sido surpreendido. Meu coração parou.

 

E numa fração de segundo ele se achava junto de mim, cobrira a distância entre nós, bem mais alto que eu, os finos dedos brancos fechando-se delicados sobre meu braço.

 

— Julie! —sussurrou, numa voz tão baixa que parecia meus próprios pensamentos falando comigo.

 

Mas não era sonho. Ele era real. Segurava-me, e o grito já irrompera solto de mim, ensurdecedor, incontrolável e ecoando das quatro paredes.

 

Vi Richard levantando-se da poltrona. Estava sozinha. Agarrando-me à ombreira da porta, cambaleei para frente, e aí, de novo num momento de perfeita clareza, vi o jovem intruso, vi-o de pé no jardim, olhando para trás, e então já desaparecera. Não pude parar de gritar. Não consegui nem mesmo quando Richard me abraçou e me implorou, e sentou-me na poltrona.

 

Eu ainda chorava quando a senhora Blessington por fim apareceu. Ela pegou imediatamente um copo de licor para mim, e Richard me perguntou mais uma vez o que eu vira.

 

— Mas você sabe quem era! — eu lhe disse, quase histérica. — Era ele, o homem do trem! Apenas usava um capote há anos fora de moda, e tinha a gravata de seda aberta na garganta. Richard, ele estava lendo seus papéis, virando-os, lendo-os na escuridão de breu.

— Tudo bem — ele disse, fazendo um gesto com a mão para acalmar-me. — Ele estava de pé junto à mesa. E não havia luz ali, logo você não poderia vê-lo direito.

— Richard, era ele! Você não entende? Ele me tocou, segurou meus braços. — Lancei um olhar suplicante à senhora Blessington, que balançava a cabeça, os olhinhos parecendo contas azuis na luz. — Ele me chamou de Julie — murmurei. — Sabe meu nome.

 

Levantei-me, agarrei a lâmpada, e quase empurrando Richard da frente fui até a mesa.

 

— Oh, Deus do céu — disse. — Não está vendo o que aconteceu? São suas cartas para o doutor Partridge e para a senhora Sellers, sobre a demolição da casa!

 

A senhora Blessington deu um gritinho e levou a mão à face. Parecia uma criança enrugada, com sua touca de dormir, ao desabar sobre a cadeira de espaldar reto junto à porta.

 

— Certamente você não acredita que era o mesmo homem, Julie, após esses anos todos.

— Mas ele não mudou, Richard, nem no mínimo detalhe. Não há como me enganar, Richard, era ele, estou lhe dizendo, o mesmíssimo homem.

— Oh, querida, querida... — murmurou a senhora Blessington. — Que irá fazer ele se os senhores tentarem demolir a casa? Que irá fazer ele agora?

— Quem irá fazer? — perguntou Richard, cauteloso, estreitando os olhos. Tomou a vela de minhas mãos e aproximou-se dela. Eu a fitava, só então compreendendo o que ouvira.

— Então a senhora sabe quem é ele! — sussurrei.

— Julie, pare com isso! — disse Richard.

 

Mas o rosto dela se contraíra, empalidecera, e os olhos se tornaram distantes e pequenos.

 

— A senhora sabe que ele esteve aqui! — insisti. — Deve nos contar logo!

 

Com um esforço, ela se levantou.

 

— Não há nada desta casa que lhes faça mal — disse — nem a nenhum de nós. — Voltou-se, desdenhando Richard quando ele tentou ajudá-la, e entrou sozinha no corredor escuro. — Já não precisam mais de mim — disse em voz baixa — e se têm de derrubar esta casa, construída por seus ancestrais, devem fazê-lo sem precisar de mim.

— Oh, mas nós não pretendemos fazer isso, senhora Blessington! — insisti. Ela, porém, já cruzava a galeria de volta à ala norte. — Vá atrás dela, Richard. Você ouviu o que ela disse. Ela sabe quem é ele.

— Eu já estou farto disso esta noite — disse Richard quase irado. — Nós dois devemos subir para a cama. À luz do dia, dissecaremos toda essa questão e revistaremos a casa. Agora, venha.

— Mas devemos dizer a ele, não devemos? — perguntei.

— Dizer o quê? De quem você está falando?

— Dizer que não vamos derrubar esta casa! — eu falei claro, alto, ouvindo o eco de minha voz.

 

O dia seguinte foi de fato o mais exaustivo desde que chegamos. Levamos a maior parte da manhã para convencer a senhora Blessington de que não tínhamos intenção de demolir Rampling Gate. Richard pôs suas cartas no correio e resolveu que não devíamos fazer nada enquanto não recebêssemos ajuda. E juntos iniciamos uma busca na casa. Mas o anoitecer encontrou-nos apenas na metade do trabalho, havendo coberto a torre e a ala sul, e a parte principal da própria casa. Faltavam ainda a torre norte, num pavoroso estado de má conservação, e algumas câmaras no subsolo, que em tempos passados haviam servido como masmorras e agora estavam lacradas. E por toda parte havia armários e escadarias privadas que precisavam ser verificados, e às vezes perdíamos a noção de onde exatamente havíamos estado.

 

Mas também estava claro, ao jantar, que Richard se achava em estado de tensão e exasperação, e não acreditava que eu houvesse visto alguém no gabinete. Convencera-se de que o tio Baxter ficara louco antes de morrer, ou então que seus delírios eram um código para algum acontecimento mundano que o deixara extraordinariamente tenso. Mas eu sabia o que tinha visto. E à medida que avançava o dia, fui ficando cada vez mais calada e recolhida. Um silêncio caíra entre mim e a senhora Blessington. Eu entendia demasiado bem a raiva que ouvira na voz de meu pai naquela noite havia muito passada, quando ele voltara para casa da Estação Vitória e minha mãe o acusara de estar imaginando coisas.

 

Contudo, o que me obcecava mais que qualquer outra coisa era o delicado rosto do misterioso homem que eu vislumbrara, os olhos negros quase inocentes que se haviam fixado em mim por um momento, antes de eu dar o grito.

 

— Estranho que a senhora Blessington não tenha medo dele — eu disse em voz baixa e perturbada, não mais me importando se Richard me ouvia. — E que ninguém aqui pareça receá-lo nem um pouco ... — Vinham-me as mais estranhas fantasias. Passavam-me pela cabeça as palavras despreocupadas dos aldeões. — Seria sensato você fazer uma coisa antes de recolher-se — eu disse. — Deixe por escrito uma nota dizendo que não pretende demolir a casa.

— Julie, você criou um dilema insolúvel — disse Richard. — Insiste em que tranqüilizemos a aparição sobre a não-destruição da casa, quando na verdade constata a existência da criatura mesma que levou meu pai a dizer o que disse.

— Oh, eu queria que jamais tivéssemos vindo aqui! - explodi de repente. Então devíamos ir embora, os dois, e decidir essa questão em casa.

— Não, o problema é exatamente esse. Eu jamais poderia ir sem saber... os "segredos dele", o “infeliz demônio". Agora, jamais poderia continuar vivendo sem saber!

 

A raiva deve ser um excelente antídoto para o medo, pois certamente alguma coisa atuou para aliviar meu alarme natural. Não me despi naquela noite, nem sequer tirei os sapatos, mas fiquei sentada naquele escuro quarto oco, fitando o pequeno quadrado da vidraça em diamante da janela, até ouvir toda a casa mergulharem silêncio. A porta de Richard fechou-se finalmente. Vieram aqueles outros distantes ruídos indicando outras trancas sendo postas no lugar. E quando o relógio de pé no grande salão bateu onze horas, Rampling Gate estava como sempre ferrada no sono.

 

Pus-me à escuta dos passos de meu irmão no corredor. Não o ouvindo mexer-se de seu quarto, fiquei admirada pela curiosidade não o fazer procurar-me para dizer que devíamos ir juntos descobrir a verdade.

Era melhor assim. Eu não o queria comigo. E senti uma lúgubre euforia ao imaginar-me saindo do quarto e descendo a escada como fizera na noite anterior. Ia esperar mais uma hora, porém, para ter certeza. Ia deixar a noite atingir o auge. Doze, a hora da bruxa. Meu coração batia rápido demais a essa idéia, e eu lembrava sonhadora o rosto que vira, a voz que dissera meu nome.

 

Por que parecia em retrospecto tão íntima, que conhecíamos um ao outro, nos falávamos, que ele era alguém que eu reconhecia no fundo de minha alma?

 

— Como é seu nome? — creio que sussurrei alto.

 

E então um espasmo de medo me assustou. Teria eu coragem de ir à procura dele, abrir a porta para ele? Estava perdendo o juízo? Fechando os olhos, descansei a cabeça no alto encosto da poltrona de damasco. Que era mais vazio que aquela noite rural? Que era mais gostoso?

 

Abri os olhos. Andara sonhando ou falando sozinha, tentando explicar a papai porque era necessário compreendermos nós mesmos o motivo. E percebi, percebi plenamente — creio que antes mesmo de acordar — que ele estava ao lado da cama.

 

A porta estava aberta. E ele se achava ali parado, vestido exatamente como na noite passada, e tinha os olhos negros cravados em mim com a mesma curiosidade óbvia, a boca apenas um pouco frouxa como a de um colegial, e segurava quase sem perceber a cabeceira da cama com a mão direita, perdido a contemplar-me. Não parecia saber que eu o olhava. Mas quando me curvei para frente, sentando-me, ele ergueu o dedo para silenciar-me, e balançou de leve a cabeça.

 

— Ah, é o senhor! — sussurrei.

— Sou — ele disse, na voz mais suave, menos intrusa.

 

Mas estiváramos conversando, não estiváramos, eu lhe fizera perguntas, não, contara-lhe coisas. E senti de repente que perdia o equilíbrio, ou resvalava de volta num sonho. Não. Em vez disso, eu quase captara o fragmento de um sonho do passado. Aquela onda de atmosfera que nos envolve a qualquer momento do dia seguinte, quando alguma coisa lembra o universo que nos absorveu absolutamente no sono. Quero dizer que ouvi nossas vozes por um instante, quase discutindo, e vi papai com sua cartola e capote negro correndo sozinho pelas ruas do West End, olhando para dentro de uma porta após outra, e depois, erguendo-se da mesa de tampo de mármore do escuro e fumacento teatro de variedades, você... seu rosto.

 

— Sim.

— Volte, Julie! — Era a voz de papai.

— ...não deve nunca, nunca, não pode fazer isso.

 

Ele tinha o rosto magoado, como o de um colegial prestes a chorar.

 

— Não, em absoluto, nós não queremos, nenhum de nós, você sabe... e não é um espírito! — Olhei suas botas cobertas de lama, a fina camada de poeira na face perfeitamente branca.

— Espírito? — ele perguntou quase lamentando, quase amargurado. — Eu gostaria de ser.

 

Mesmerizada, vi-o aproximar-se de mim e o quarto escurecer, e senti suas frias mãos sedosas em meu rosto. Eu me levantara. Estava de pé diante dele, e olhava para cima, dentro de seus olhos. Ouvia as batidas de meu coração. Ouvia-as como as ouvira na noite passada, no momento mesmo em que gritara. Deus do céu, estava conversando com ele! Ele estava em meu quarto e eu conversava com ele! E ele me tinha em seus braços.

— Real, absolutamente real — murmurei, e um baixo zumbido me percorreu toda, de modo que tive de apoiar-me na cama.

 

Ele me olhava, como se tentasse compreender alguma coisa muitíssimo importante, e não respondeu. Os lábios tinham uma aparência rubra, uma aparência suave, apesar de toda a sua beleza varonil, como se ele jamais houvesse sido beijado. E fui tomada de uma leve tontura, uma ligeira confusão em que não tinha certeza alguma de que ele sequer se achava ali.

 

— Ah, mas estou, sim — ele disse baixinho. Eu sentia sua respiração em minha face, e era quase gostosa. — Eu estou aqui, e você está comigo, Julie.

— Sim...

 

Fechei os olhos. O tio Baxter sentava-se curvado sobre sua escrivaninha e eu ouvia o furioso arranhar de sua pena.

 

— Infeliz demônio — ele disse para o ar da noite, que entrava pelas portas abertas.

— Não! — eu disse.

 

Papai apareceu na porta do teatro de variedades e gritou meu nome.

 

— Ame-me, Julie — veio a voz em meu ouvido. Senti os lábios dele em meu pescoço. — Só um beijinho, Julie, não faz mal...

 

E o centro do meu ser, aquele lugar secreto onde se alimentam todos os desejos e comandos, abriu-se para ele sem luta nem barulho. Eu teria caído, se ele não me segurasse. Fechei os braços em torno dele, as mãos deslizando na sedosa massa de seus cabelos. Eu flutuava, e havia como sempre houvera em Rampling Gate um lugar interminável. Era Rampling Gate em toda a minha volta, era aquela alma atemporal e impenetrável que se abria afinal... A força de um grande conhecimento dentro de mim... Ver como vê Deus, e aceitar a profundeza de tudo com a mesma rapidez com que os olhos avaliam e a forma impregna... Sim, sussurrei alto, aqueles versos de Keats, aqueles versos... Cessar sem dor à meia-noite.

 

Não. Num violento instante, nos afastáramos, ele recuando tão certamente quanto eu. Saí cambaleando pelo chão do quarto, agarrei-me à moldura da janela e apoiei a testa na parede de pedra. Por um longo instante, fiquei de olhos fechados. Uma dor quase agradável pinicava minha garganta, onde os lábios dele me haviam tocado, um delicioso latejar que não parava. Então me voltei e vi com clareza todo o quarto, a cama, a lareira, a cadeira. E ele continuava parado exatamente onde eu o deixara, a mais pavorosa aflição no rosto.

 

— Que fizeram comigo? — murmurou. — O mais cruel de todos os truques?

— Alguma coisa de ameaça, indizível ameaça — sussurrei.

— Alguma coisa antiga, Julie, alguma coisa que desafia a compreensão, alguma coisa que pode e vai continuar.

— Mas por quê? O que é você? — Toquei a dor latejante com as pontas dos dedos e, baixando o olhar para eles, arquejei. — E sofre tanto, é tão inocente na aparência, e parece que pode amar!

 

Um violento conflito dilacerava o rosto dele por dentro. Ele voltou-se para ir embora. Com toda a minha vontade, resisti para não segui-lo, não pedir-lhe que se voltasse. Mas ele se voltou, pasmo, lutando e decidido em seu propósito ao estender a mão para pegar a minha.

 

— Venha comigo — disse.

 

Puxou-me para si com toda delicadeza e, passando o braço em torno de mim, guiou-me para a porta. Passamos apressados pelo longo corredor do andar de cima e por uma portinha de madeira para uma escada em espiral que eu jamais vira antes. Logo percebi que subíamos a torre norte da casa, a parte arruinada do prédio que Richard e eu não havíamos investigado antes.

 

Por uma minúscula janela após outra vi a suave paisagem ondulada passar da floresta que nos cercava para o pequeno grupo de luzes mortiças que assinalavam a aldeia de Rampling e a pálida faixa branca que era a estrada para Londres.

 

Subimos sempre, até alcançarmos a câmara mais acima, que ele abriu com uma chave de ferro. Manteve a porta aberta para eu entrar, e vi-me num espaçoso aposento cujas altas e estreitas janelas não tinham vidraça. Uma inundação de luar revelava a mais curiosa mistura de móveis e objetos, o amontoado que sugere um sótão e uma espécie de gabinete. Havia uma escrivaninha, uma grande estante de livros, macias poltronas de couro e dezenas de mapas amarelados e enrolados, e quadros emoldurados nas paredes. Velas havia por toda parte, grudadas nos vazios nichos de pedra ou nas mesas e estantes. Aqui e ali um barril servia de mesa, junto com a mais fina velha cadeira elizabetana. Parecia que pingara cera sobre tudo, e no meio do amontoado viam-se exemplares amassados dos mais recentes jornais, o Mercure de Paris, o Times de Londres.

 

Não havia lugar para dormir naquele quarto.

 

Quando pensei nisso, onde ele devia deitar-se quando ia repousar, um arrepio percorreu-me e senti, com toda vividez, seus lábios tocando de novo o meu pescoço e tive um súbito impulso de gritar.

Mas ele me segurava nos braços, beijava minhas faces e lábios de novo com toda suavidade, e depois conduziu-me para uma poltrona. Acendeu uma por uma as velas à nossa volta.

 

Eu me arrepiava, os olhos ligeiramente aguados na luz. Via mais objetos estranhos: telescópios e lupas, um violino no estojo aberto, um punhado de conchas marinhas reluzentes e de formas perfeitas. Jóias espalhavam-se em volta, uma cartola de seda negra e uma bengala, um buquê de flores mortas, secas como palha, daguerreótipos e ferrótipos em seus pequenos estojos de veludo e livros abertos.

 

Mas estava demasiado perturbada então pela visão dele na luz, o brilho dos grandes olhos negros, e o luzidio dos cabelos. Nem mesmo na estação de trem eu o vira tão claramente quanto agora em meio à claridade das velas. Partia meu coração. E no entanto, ele me olhava como se eu fosse a festa de seus olhos, e de novo disse meu nome, e senti o sangue me afluir às faces. Mas pareceu haver de repente um grande hiato na passagem do tempo. Eu estivera pensando, sim, que é você, há quanto tempo você existe... E voltei a ficar tonta.

 

Percebi que me levantara e achava-me de pé ao lado dele à janela, e ele me virava para olhar lá embaixo, e o campo se havia inexplicavelmente modificado. As luzes da aldeia tinham desaparecido da escuridão que jazia como um vapor sobre a terra. Uma grande mata, muito mais antiga e densa que a floresta de Rampling Gate, cobria as colinas como um sudário, e de repente tive medo, como se resvalasse para dentro de um turbilhão do qual jamais poderia retornar por vontade própria. Havia aquela sensação de que conversávamos os dois, falávamos e falávamos em voz baixa e agitada, e eu dizia que não devia ceder.

 

— Veja bem, é só o que eu lhe peço.

 

E havia em mim uma vaga certeza de que só pelo conhecimento eu seria fatalmente mudada. Era a leitura do livro proibido, o canto de um encanto proibido.

 

— Não, só o que foi — ele sussurrou.

 

E então até mesmo a forma da terra me fugiu. E o próprio quarto perdeu sua substância, como se um silencioso vento de terrível força houvesse entrado na casa e a estivesse destroçando.

 

Cruzávamos a noite numa carruagem. Deixáramos a torre havia muito tempo, e era o fim da tarde e o céu tinha a cor de sangue. E entramos numa mata de árvores tão altas e grossas que dificilmente algum raio de sol chegava ao chão coberto de folhas. Não tínhamos tempo para nos demorarmos naquele mágico lugar. Saíramos para campo aberto, para os pequenos trechos de terra cultivada que cercavam a antiga aldeia de Knorwood, com seus telhados de empena e ruas tortas. Vimos os muros do mosteiro de Norwood e a igrejinha com o sino tocando as Vésperas sob o alto céu. Uma grande e movimentada vida habitava Knorwood, mil corações pulsavam em Knorwood, mil vozes emitiam sua prece comum.

 

Mas muito além da aldeia, na elevação acima da mata, ficava a torre redonda de um castelo realmente antigo, e para aquele castelo em ruínas, já não mais que uma casca de si mesmo, nós seguimos, a escuridão baixando rápido. Por suas câmaras vazias vagamos, crianças impetuosas, o cavalo e a estrada inteiramente esquecidos, e ao senhor do Castelo, uma criatura escaveirada e de pele pálida, de pé diante da lareira a rugir no salão sem teto, nos apresentamos. Ele voltou-se e fixou-nos com olhos apertados e brilhantes. Era uma coisa morta, compreendi, mas trazia dentro de si uma magia inestimável. E meu jovem companheiro, meu inocente rapaz, me passou para os braços do senhor. Era como eu fizera naquela mesma noite, além daquele sonho, em meu próprio quarto; e do senhor ele se retirou, agarrando a forte dor na garganta.

 

Eu compreendi. Eu soube. Mas o castelo se dissolvia tão certamente quanto podia dissolver-se qualquer coisa naquele sonho, e estávamos num lugar úmido e fechado. O fedor era-me insuportável, o mais terrível dos fedores, o fedor da morte. E ouvi meus passos nas pedras do calçamento, e estendi a mão para me firmar na parede. A minúscula praça estava deserta; as portas e janelas escancaravam-se para a mente a vagar. Subindo a rua de um lado e descendo do outro, vi marcas nas casas. E soube o que significavam. A Morte Negra chegara à aldeia de Knorwood. A Morte Negra a devastara. E num momento de sufocante horror, compreendi que ninguém, nem uma única pessoa, restara viva.

 

Mas isso não era exatamente correto. Alguém vinha subindo aos arrancos o estreito beco. Cambaleava, quase caía, empurrando uma porta após outra, e finalmente chegou a um lugar quente, fedorento, onde uma criança berrava no chão. Mãe e pai jaziam mortos na cama. E o grande gato gordo da casa, ileso, brincava com o bebê chorão, cujos olhos saltavam do minúsculo rosto afundado.

 

— Pare com isso! — ouvi-me arquejar. Sabia que segurava minha cabeça com as mãos. — Pare, pare com isso, por favor!

 

Eu gritava, e meus gritos certamente varariam a visão e aquele quartinho rústico desmoronaria à minha volta, e eu devia despertar a gente de Rampling Gate para mim, mas não o fiz. O rapaz voltou-se e encarou-me, e no fedorento quarto fechado eu não via o seu rosto. Mas sabia que estava ali, meu companheiro, e sentia o cheiro de sua febre e doença, e o fedor do bebê agonizante, e via o corpo liso e luzidio do gato passando a pata na mão estendida da criança.

 

— Pare, você perdeu o controle! — gritei firme, com toda a minha força, mas o bebê só fez berrar mais alto. — Faça com que ele pare!

— Eu não posso... — ele sussurrou. — Isso continua eternamente. Jamais vai parar! E com um grande e agudo grito, dei um chute no gato e mandei-o voando para fora do quarto imundo, derrubando o balde de leite ao passar e derramando-o sobre as pedras como um íntimo das bruxas.

 

Pálido e febril, o suor encharcando seu rústico gibão, meu companheiro tomou-me pela mão. Empurrou-me de costas para fora da casa e para a rua, longe da criança a berrar.

 

Morte no salão, morte no quarto, morte no claustro, morte diante do altar central, morte nos campos abertos. Parecia Julgamento de Deus mil almas haverem morrido na aldeia de Knorwood — eu soluçava, pedindo para ser libertada — era como o fim da própria Criação.

 

E por fim a noite desceu sobre a aldeia morta, e ele continuava vivo, tropeçando pelas encostas acima, atravessando a mata, rumo à torre redonda onde o senhor, com a mão na ombreira de pedra da janela quebrada, esperava a sua vinda.

 

— Não vá! — implorei-lhe.

 

Corria ao lado dele chorando, mas ele não ouvia. Por mais que eu tentasse, não podia alterar aquelas coisas. O senhor pairava acima dele com um sorriso quase triste, ao vê-lo cair, o peito ondular nos últimos alentos. Finalmente, os lábios mexeram-se, gritando pela salvação, quando era danação que o senhor oferecia, quando era danação que o senhor daria.

 

— Sim, danado então, mas vivo, respirando! — gritou o rapaz, e o senhor, que permanecera parado até então, curvou-se para beber.

 

O beijo de novo, o beijo letal, o sangue sugado do corpo agonizante, e depois o senhor erguendo a pesada cabeça do jovem, para receber o sangue de volta do corpo do próprio senhor.

 

Tornei a gritar. Não, não beba. Ele virou-se e olhou-me. Seu rosto era tão o rosto da morte então que não pude acreditar que lhe restasse animação, mas ele perguntou:

 

— Que faria você? Voltaria a Knorwood, abriria aquelas portas uma após outra, tocaria o sino da igreja vazia, e se o fizesse, os mortos ressuscitariam?

 

Não esperou minha resposta. E eu não tinha nenhuma para dar. Ele se voltara de novo para o senhor, que o esperava, e ferrou a inocente boca na veia que pulsava com toda aparência de vida sob a fria e translúcida carne do senhor. E o sangue jorrou no corpo jovem, vencendo numa única grande explosão a febre e a doença que o devastara, impulsionando-o com a vida mortal.

 

Agora ele estava sozinho no salão do senhor. Tinha a imortalidade e a sede de sangue de que precisaria para mantê-la, e essa sede eu a sentia com toda a minha alma. Ele fitava as paredes quebradas à sua volta, o fogo lambendo as pedras enegrecidas da lareira gigante, o céu noturno acima do teto caído, lançando sua interminável rede de estrelas. Era o insondável ritmo do universo que atuava por baixo de toda superfície, quando a última criatura viva — a minúscula criança — silenciou na aldeia lá embaixo.

 

E cada uma e todas as coisas se transfiguravam em sua visão, e na minha — a visão que ele agora me dava — na perfeita essência delas mesmas. Uma voz sem palavras e eterna falava do estrelado véu do céu, cantava no vento que corria por entre as madeiras quebradas; suspirava nas chamas que roíam as fuliginosas pedras da lareira. Um vento suave peneirava e espalhava o solo das leiras recém-reviradas nos campos vazios. A chuva caía de um céu negro e interminável.

 

Anos e anos se passaram. E tudo que fora Knorwood fundira-se na própria terra. A mata enviou seus silenciosos sentinelas, e poderosos troncos ergueram-se onde antes havia cabanas e casas, onde houvera muros de mosteiro.

 

Finalmente, nada restou de Knorwood: nem o pequeno cemitério, nem a igrejinha, nem mesmo o nome de Knorwood vivia mais no mundo. E parecia um horror além de todos os horrores o fato de ninguém saber de mil almas que tinham vivido e morrido na pequena e insignificante aldeia, de em parte alguma dos grandes arquivos em que se registra a história restar uma menção à cidadezinha.

 

Mas restou um ser que conheceu, um ser que testemunhou, e olhava agora o lugar mesmo onde sua vida mortal terminara, aquele que saíra de quatro do poço do Inferno que foi essa tragédia; era o rapaz que estava a meu lado, o senhor de Rampling Gate. E por todas as paredes de sua casa estavam as pedras do castelo em ruínas, e por todos os tetos e pisos os galhos daquelas árvores antigas. O que era sólido e majestoso ali, e seguro na mente dos que dormiram nessa noite na aldeia de Rampling, era apenas a mais frágil cidadela contra o horror, a casa a que ele se apegava agora.

 

Fui tomada por uma grande mágoa. Em algum momento, naquele ir e vir de imagens, eu me retirara, perdera todo o sentido do ponto no espaço do qual via. E numa grande explosão de luzes e barulho fui vivificada então e tornada inteira como antes, quando cruzamos a mata na carruagem, só que era para o mundo do agora, daquela hora, que passávamos. Parecíamos voar pela escuridão rural ao longo da estrada de ferro rumo a Londres, onde a cidade noturna explodiu como uma enorme bolha numa chuva de risos, movimento e luz ofuscante. Ele andava comigo sob as lâmpadas de gás, o rosto quase reluzindo com aquela mesma lúgubre inocência, aquela mesma simpatia irresistível.

 

E parecia que nos segurávamos apertado um ao outro no meio mesmo de uma multidão. E a multidão era uma coisa viva, uma coisa que se contorcia, e de toda parte vinha dela um cheiro gostoso, o cheiro de sangue fresco. Mulheres com peles brancas e cavalheiros com capas de ópera entravam nas portas fortemente iluminadas do teatro; o barulho do teatro de variedades inundou-nos, depois morreu. Restou apenas uma fina voz de soprano, cantando uma canção aguda, queixosa. Eu estava nos braços dele, e seus lábios cobriam os meus, e voltou aquela surda sensação de zunido, aquela grande abertura incontrolável dentro de mim. Sede, e a promessa de saciedade medida apenas pela intensidade dessa sede. Fugimos para cima, para quartos de pé-direito alto empapelados de damasco rubro, onde as mais belas mulheres se deitavam em camas de metal, e o cheiro era tão forte agora que eu não suportava, e diante de mim, elas se ofereciam, abriam os braços.

 

— Beba — ele sussurrou, sim, beber.

 

E senti o calor invadir-me, recarregando-me, borrando minha visão, até nos separarmos de novo, livres, leves e invisíveis, parecia, ao passarmos por cima dos telhados e percorrermos de novo ruas encharcadas de chuva; tínhamos dentro de nós um grande e indissolúvel calor. E juntos na carruagem, conversávamos em surtos baixos e exuberantes de linguagem; éramos amantes; éramos constantes; éramos imortais. Tão duradouros quanto Rampling Gate. Tentei falar; tentei quebrar o sortilégio. Sentia os braços dele em minha volta e sabia que estávamos juntos na torre, e houvera algum terrível erro de cálculo.

 

— Não me deixe — ele sussurrou.— Você não entende o que estou lhe oferecendo; já lhe contei tudo; e todo o resto é apenas o cansaço, a febre e inquietação, os velhos versos do poema. Beije-me, Julie, abra-se para mim. Não vou tomá-la contra a sua vontade...

Mais uma vez, ouvi meu próprio grito. Tinha as mãos na fria pele dele, seus lábios delicados mas famintos, os olhos cediços mas sempre jovens. Papai surgiu na encharcada rua londrina e gritou:

 

— Julie!

 

Vi Richard perdido na multidão, como se procurasse alguém, o chapéu sombreando os olhos negros, o rosto desvairado, velho. Velho!

 

Afastei-me. Estava livre. E chorava baixinho, e estávamos naquela torre estranha e entulhada. Ele tendo ao fundo a janela, a distante deriva das nuvens. A luz da vela luzia em seus olhos, que pareciam imensos, tristes e sábios, e, oh, inocentes, como eu já disse repetidas vezes.

 

— Revelei-me a eles — ele disse. — Sim, contei meu segredo. Com raiva ou amargura, não sei qual, fiz deles meus sombrios co-conspiradores e sempre venci. Não podiam fazer nada contra mim, nem poderá você.   Mas ainda triunfariam. Pois me atormentam com sua mais bela flor. Não me dê as costas, Julie. Você é minha, como o é Rampling Gate. Deixe-me trazer a flor ao meu coração.

 

Noites de discussão. Mas finalmente Richard concordou. Assinaria a transferência de sua parte de Rampling Gate, e eu recusaria absolutamente permitir a demolição da :asa. Ele nada poderia fazer para obedecer à ordem de papai. Eu lhe dera o impedimento legal de que precisava, e claro que deixaria a casa para ele e seus filhos. Devia ficar sempre nas mãos dos Rampling.

 

Uma astuta solução, parecia-me, pois papai não me mandara a mim destruir a casa, e agora eu não tinha escrúpulo nenhum. E o que restava era ele levar-me à pequena estação de trem e despachar-me para Londres, e não se preocupar com minha volta sozinha a Mayfair.

 

— Fique aqui o quanto quiser, e não se preocupe — eu disse. — Sentia mais carinho por ele do que podia expressar. — Você soube, assim que pôs o pé na casa, que papai estava inteiramente errado. Tio Baxter pôs aquilo na cabeça dele, sem dúvida, e a senhora Blessington sempre teve razão. Nada faz mal aqui, Richard. Fique, e estude ou trabalhe como quiser.

 

A grande máquina negra passava rugindo por nós, os vagões diminuindo a marcha até parar.

 

— Preciso ir agora, querido, me dê um beijo — eu disse.

— Mas que deu em você, Julie, que foi que a convenceu tão depressa?

— Já passamos por isso tudo, Richard — eu disse. — O que importa é que estamos todos felizes, meu caro.

 

E nos abraçamos.

 

Acenei até não poder vê-lo mais. As tremeluzentes lâmpadas da cidadezinha perderam-se na densa luz lavanda do entardecer, e o vulto negro de Rampling Gate pareceu por um instante um espectro de si mesmo na colina próxima.

Recostei-me e cerrei os olhos. Depois abri-os devagar, saboreando aquele momento pelo qual tanto tempo esperara.

 

Ele sorria, ali sentado como estivera o tempo todo, no canto do banco de couro defronte, e então se levantou com um movimento rápido, quase delicado, e sentou-se a meu lado e me envolveu em seus braços.

 

— São cinco horas até Londres — sussurrou-me ao ouvido.

— Posso esperar — eu disse, sentindo a sede como uma febre ao abraçá-lo forte, sentindo seus lábios em minhas pálpebras e cabelos. — Quero caçar pelas ruas de Londres esta noite — confessei, um pouco tímida, mas vi apenas aprovação em seus olhos.

— Bela Julie, minha Julie... — ele sussurrou.

— Você vai adorar a casa em Mayfair — eu disse.

— Sim — ele disse.

— E quando Richard finalmente se cansar de Rampling Gate, voltaremos para casa.

 

                                                                                Anne Rice  

 

                      

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