Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SÉTIMO ESPÍRITO / Naicon Martins
O SÉTIMO ESPÍRITO / Naicon Martins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

            Senhor Peterson era um homem rústico, de poucas palavras e de olhar distante. Desde seus vinte anos, quando o vigor da juventude ainda corria em suas veias, orgulhava-se de ser um bom pescador. Não havia uma só pescaria em que não voltasse para casa sem um peixe fisgado pelo seu anzol. Muitos diziam que era sorte, outros, que ele apenas estava no lugar certo e na hora certa. Mal sabiam que Sr. Peterson não era apenas um velho sortudo, mas, sim, um velho conhecedor das águas britânicas.

           Mesmo com a idade avançada, o bom homem ainda mantinha seu velho costume de pescar ao entardecer, num pequeno riacho ao leste de Winsville. Não havia nada no mundo que o deixasse mais feliz. Porém, com o tempo, sua saúde foi piorando e ele precisou se mudar para a cidade. Horrorizado com a ideia de não poder mais pescar ao final da tarde, como de costume, o velho pescador entrou em estado de depressão, tornando-se um homem fechado, rabugento e insuportável. A vida não fazia mais sentido sem sua velha vara de pescar, sem seus preciosos momentos de diversão...

           Mas um dia, algo o alegrou. Ao passar por um bar no centro de Winsville, Sr. Peterson ouviu um grupo de homens falando sobre um tal Lago Grumbecker que ficava a dois quilômetros da cidade, onde ninguém nunca reclamara da fartura de peixes. Imediatamente, o velho pescador voltou para casa sem dar atenção ao que um homem falou por último. Não importava o que eles disseram, ele tinha que conhecer o lago, matar sua sede insaciável de pescar e ser o velho Sr. Peterson de antes.

           Voltando para casa, arrumou suas tralhas de pesca e pegou seu velho carro, que estava à beira de bater o motor, e partiu para o Lago Grumbecker ao entardecer. Aquela foi a tarde mais feliz de sua vida. Suas tarrafas e anzóis não deram conta da grande quantidade de peixes que o lago possuía. Até parecia que ninguém pescava ali há séculos!

           Animado com a nova distração, o pescador voltou ao lago nos dias seguintes. Aquilo já estava se transformando em um vício. Não havia mais um dia em que o velho não retornasse com seu humilde barco às águas escuras de Grumbecker.

 

 

 

 

 

 

 

           Nas semanas seguintes, quando a vizinhança descobriu que Sr. Peterson pescava no lago, boatos rapidamente se espalharam pela cidade e o homem, aos olhos dos demais, pareceu um louco, pois ninguém se atrevia a tocar naquelas águas escuras. Diziam que o tal lago era amaldiçoado e que luzes estranhas caíam do céu sobre ele. Mas o velho não deu importância e retornou para mais uma pescaria.

           Nos dias que se seguiram, os antigos pescadores passaram a barrar o velho Peterson na cidade para adverti-lo sobre as coisas sobrenaturais que lá ocorriam. Chegaram a dizer que carruagens surgiam a noite, puxadas por cavalos que galopavam sobre Grumbecker como passe de mágica. Mais uma vez, o velho pescador não deu atenção.

           Ora, era absurdamente ridículo! Não existiam luzes sobre o lago e muito menos magia. Aquilo tudo era pura tolice. Era apenas uma forma de impedi-lo de pegar todos os peixes do lago.

           E assim o bom homem continuou a pescar no lago sem ver nenhuma das coisas sobrenaturais que os outros diziam ter visto. Porém, um dia, algo aconteceu.

          A lua repousava entre as nuvens, majestosa e imponente como jamais senhor Peterson vira antes. Era certo que aquela noite não era como outra qualquer, pois até mesmo o vento, que outrora era hostil, parecia repousar sobre as águas cristalinas do gigante Grumbecker.

           Assim como a noite e o vento, o velho também não parecia ser mais o mesmo; não somente ele, mas os peixes também. Já era tarde, isso porque já não havia mais nenhum movimento na estrada que circundava uma das margens do lago. Nessa altura do tempo, não somente a estrada parecia vazia, mas o interior do lago como todo.

           Sobre as águas escuras, o rosto lívido de Peterson, cansado e maltratado pelo tempo, tentava encontrar esperançosamente um vestígio, menor que fosse, de que haveria algum peixe a se aproximar de seu anzol. Inútil, como todas as outras tentativas.

           Peterson suspirou. Por um instante, seus olhos deixaram de focar o interior do lago, vazio e solitário, e passaram a observar a lua que aos poucos parecia desaparecer entre as nuvens que a rodeavam sorrateiramente. Naquele momento, um pensamento perpassou sua cabeça.

           Boatos. Será que eram apenas boatos?

           Ele balançou a cabeça. Tinha que negar o que estava pensando. Não poderia acreditar no que diziam. Nunca houve luzes sobre o lago e nunca uma carruagem passaria voando sobre sua cabeça.

           — Tolos, pensam que podem enganar o velho Peterson!  — resmungou para si mesmo.

           Uma leve brisa vinda do sul soprou contra o velho, a primeira daquela noite tão calma. Ele mais uma vez abaixou a cabeça e olhou para sua isca que permanecia solitária a alguns metros abaixo do barco. Peterson suspirou. A brisa soprou novamente e mais uma vez o velho pescador olhou para                 a imensidão de água que o rodeava. Não havia mais nada naquele lugar além dele mesmo e uma coruja que o observava atentamente do outro lado do lago, sobre uma placa com os dizeres: Winsville, 2 Milhas.

           Por alguns instantes, ele fitou o mundo de água. Grumbecker nunca lhe pareceu tão sombrio. Seus olhos percorreram ponta a ponta o lago até pararem subitamente. Peterson ouvira um assovio. Seu corpo tremeu. Sua audição ficou aguçada.

           — Ora, seu velho bobo, foi apenas o vento! — falou para si.

           O homem riu de seu próprio momento de fracasso. A ideia, mesmo que ridícula, de um dia já terem visto coisas estranhas acontecerem no lago por um instante lhe amedrontou.

           O ar voltou a ficar parado. Apenas a respiração de Peterson e o balanço do barco eram ouvidos. A lua aos poucos desapareceu entre as nuvens e o reflexo do velho pescador desapareceu sobre a água.

           O bom homem abaixou a cabeça e fechou os olhos. Tentaria tirar uma soneca, não muito longa, apenas para fazer o tempo passar. Alguns minutos se foram e o movimento do barco pareceu enjoativo. Deixou a vara de pescar abaixar mais um pouco, queria poupar suas mãos de uma pequena dormência que parecia surgir. Sua cabeça pendeu no corpo. Um sono leve o tomou. Quando menos esperou, estava sonhando. Pegava um peixe, enorme por sinal, que lutava contra ele e resis- tia a qualquer tentativa de tirar-lhe da água. Mas o homem segurou forte a vara de pescar, não iria deixá-lo fugir. Então, de chofre, o peixe lhe puxou forte e o velho quase caiu do barco.

           Peterson acordou assustado. Estava caído à beira do barco; sua mão segurava forte a vara de pescar que parecia não querer ficar em sua posse. O velho pescador aprumou-se e quando seus olhos focalizaram a água, uma enorme sombra passou por baixo de seu barco. Meu Deus é um peixe!

           Rapidamente Sr. Peterson levantou-se e deu mais linha ao anzol. O peixe ia e voltava de um lado para o outro, louco para se livrar daquela coisa estranha presa as suas guelras. Ofegante, o velho reagia às tentativas de fuga do peixe, consciente de que aquele era o maior que já pescara no Grumbecker.  Finalmente valera a pena esperar sentado no barco durante horas e mais horas. Agora ele tinha certeza, não voltaria para casa com as mãos abanando e...

           BUM!

           O pescador parou, o peixe parou e o lago parou ao brilho ofuscante de um gigantesco flash de luz, seguido por um estrondo que pareceu chacoalhar o mundo. Assim como a luz veio, ela se foi, rápida e misteriosa. A escuridão tomou conta de tudo e o silêncio reinou.

           Peterson virou-se assustado e deparou-se com uma carruagem voando sobre sua cabeça. No susto, o velho caiu de cima do barco e entrou no lago. Por um instante, seus olhos focalizaram o maior peixe que já pegara na sua vida ir embora tranquilamente.

           Após emergir da água, o homem olhou para os lados a procura da coisa que vira passar sobre sua cabeça. Foi então que ele a encontrou. Ao longe, uma carruagem puxada por dois cavalos brancos, que pareciam galopar no ar como se este lhe fosse o chão, saía dos limites do lago e pousava sobre a estrada. Peterson não acreditou no que viu, os cavalos deixaram de galopar sobre o ar e pousaram sobre o chão como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.

           Rapidamente, o velho voltou para dentro do barco, pegou os lemes e começou a remar. Tinha que sair dali, ir para casa, se esconder. Maldito dia em que não dera ouvidos aos outros.

           Maldito dia em que...

           BUM!

           Peterson parou novamente. Um gigantesco flash de luz e um novo estrondo tomou conta do lago e desapareceu tão rápido quanto o primeiro. Lentamente, o velho pescador olhou para trás e novamente viu o que não deveria ver. Seis carruagens puxadas por cavalos passaram enfileiradas sobre sua cabeça e desapareceram sobre a estrada em uma das margens do lago.

           Tão rápido quanto antes, Peterson voltou a remar. Tinha que sair dali antes que ficasse louco. Por que não os ouvira? Porque não ficara em casa?  Teria sido muito melhor não ter visto o que vira...

           BUM!

           Houve um terceiro flash seguido por outro estrondo, tão violento que pareceu ser um trovão. Desta vez, o pescador não parou. Ao contrário, encontrou forças para remar loucamente sem ao menos olhar para o céu e ver mais carruagens passando sobre sua cabeça. No entanto, não houve carruagem alguma. Se houve Peterson não vira passar, pois remava freneticamente e a única coisa que fitava naquele momento eram seus pés.

           Então, de súbito, um vento gélido soprou violentamente contra seu rosto. Ele estava louco ou o ar pareceu esfriar-se repentinamente? O velho, então, olhou para frente e viu uma densa névoa surgir sobre o lago. Ao olhar para o barco, viu que uma fina camada de gelo surgia sobre ele e espalhava-se na direção de seus pés.

           Do vento gélido que soprava, um estranho barulho veio das águas escuras. Era como se a água estivesse se solidificando e se fechando ao redor do barco. De súbito, um gigantesco barulho ecoou pelo lago. O barco batera em algo e ficara sem saída. Peterson tentou remar, mas foi inútil, seus lemes estavam presos no lago congelado assim como o barco também estava.

           Ele ergueu os olhos e se viu cercado por uma imensidão de gelo. Meu Deus, o que está acontecendo?

           O velho pescador levantou-se estarrecido e olhou para a névoa que vinha em sua direção. Alguma coisa estava dentro dela. Uma coisa negra que parecia voar sobre o gelo. De chofre uma forte ventania varreu o lago e o velho, apavorado, pulou do barco e, equilibrando-se sobre o gelo, tentou correr em direção à margem. Porém, Sr. Peterson escorregou e caiu. A névoa avançou em direção a margem e antes que o velho pudesse se levantar, seus olhos focaram o que seriam suas últimas lembranças: um grito funesto, um relampejo vermelho e uma escuridão eterna.

           Os primeiros pontos luminosos da cidade de Winsville surgiam lentamente abaixo de uma colina rochosa. A estrada esburacada e empedrada não parecia ser um empecilho para as seis carruagens que, enfileiradas, seguiam uma sétima carruagem onde um homem moreno de cabelos lisos dormia enrolado a um manto negro, enquanto um velho observava com seus olhos azuis celestes um bebê aos seus braços brincar com sua barba branca, exageradamente grande.

           A criança era uma menina de uma beleza jamais vista antes. Seus olhinhos verdes-esmeralda fitavam a barba do velho enquanto esta era enrolada aos dedinhos de sua delicada mão. O velho, por sua vez, não deixava de esconder sua preocupação. Sua face, enrugada e maltratada pelo tempo, exibia os contornos de um dia exaustivo. Nos seus olhos, as imagens da guerra que a pouco fugira, pareciam congeladas como se aquilo jamais pudesse ser esquecido. O sangue derramado de seus amigos ainda clamava por vingança. Vingança essa que parecia se refletir no rosto da pequena menina aos seus braços como um sinal de esperança.

           Winsville, enfim, não mais parecia estar muito distante. Os cavalos embalaram-se pela estrada esburacada sem dar conta de que as carruagens chacoalhavam incessantemente. Dentro da primeira delas, o homem enrolado ao manto despertou de  seu sono e, olhando para as luzes da cidade,  suspirou lentamente.

           — Estamos chegando, Martius.

           O homem desenrolou-se do seu manto e fitou a expressão de Martius Godric.

           — Está preocupado com ela, não está, Martius?

           O velho barbudo não respondeu. Seus olhos mantiveram-se na menina e dela não saíram.

           — Ela vai ficar bem, não se preocupe. Enquanto ela estiver neste mundo, estará protegida pela sua proteção e Malagat nada poderá fazer contra a vida dela.

           — Não tenha tanta certeza disso, Athus! — murmurou Martius Godric.

           — Como?

           Pela primeira vez Martius Godric tirou a atenção da menina e voltou-se para Athus Lupus. Por alguns instantes o velho barbudo fitou a expressão estarrecida de seu companheiro.

           — Pensei que soubesse... — suspirou o velho. — A menina só estará totalmente protegida depois que a deixarmos neste mundo e formos embora. Enquanto isso não ocorrer, ela estará tão vulnerável quanto nós.

           — Então isso quer dizer que...

           Athus calou-se, aterrorizado com o que acabara de ouvir. A inexpressividade de Godric pareceu arrancar-lhe do corpo o pouco de paz que ainda lhe restava depois de tantos dias tempestuosos.

           — Ele está aqui!

           A marca gélida da criatura não se restringiu apenas ao rígido lago Grumbecker, que se assemelhava a uma gigantesca pista de gelo. Ela avançou sobre a vegetação consumindo a vida existente por onde passava.

           Debaixo do longo pano negro esvoaçante, que mais parecia um véu das trevas, seus olhos, vermelhos e demoníacos, já haviam localizado ao longe o sinal das sete carruagens. Ela estava mais perto do que ele imaginava estar. Não somente ela, mas também seus protetores. Malditos protetores!

           Enquanto avançava na direção das carruagens, Ele sentia sua presença cada vez mais forte. Uma presença que lhe dava vontade de avançar muito mais rápido do que poderia. Destruiria a todos que entrassem em seu caminho e finalmente pegaria a criança. Com ela em suas mãos, tudo aquilo que Ele almejava finalmente seria conquistado. O poder estaria em suas mãos; seria invencível... E vendo que não mais poderia adiar seus planos, avançou sobre a colina juntamente com sua névoa que cobriu as sete carruagens lentamente.

           — Está esfriando lá fora! — murmurou Athus observando o vidro da janela da carruagem ficar embaçado. — Esfriando rápido demais a meu ver...

           Rapidamente, Athus enfiou a mão no bolso e tirou uma varinha. Em seguida, voltou-se para a janela e espiou para fora.  Ao redor das sete carruagens, uma densa névoa rodeava e avançava sobre a estrada congelando lentamente tudo pela frente.  Nem as carruagens pareciam escapar do congelamento, pois até mesmo o vidro da janelinha se congelou e um es- tridente gelo surgiu, para espanto de Athus.

           — Ele está...

           Antes que Athus pudesse terminar sua frase, uma gigantesca explosão pareceu chacoalhar o mundo. Estarrecido, correu para a janelinha congelada e, apesar do gelo que a cobrira, ele conseguiu ver ao longe as carruagens parando uma a uma e os guardiões saindo de dentro delas para lançarem raios luminosos contra algo negro que passava sobre as mesmas, explodindo-as com uma intensa luz vermelha.

           — Godric! — gritou Athus voltando-se para a carruagem assustado.

           Rapidamente, Martius Godric juntou a menina ao corpo e tomou seu cetro, batendo-o contra o chão.  A carruagem deixou a estrada com um solavanco e, instantes depois, os cavalos que a puxavam estavam galopando sobre as nuvens, rumo a Winsville.

           A lua cheia estava magnífica. Seus raios prateados tocavam levemente as nuvens e a carruagem voadora.  Os cavalos galopavam sobre as nuvens como se essas fossem uma estrada que os levassem para algum lugar.

           Dentro dela, Athus segurava sua varinha mágica na mão, atento a qualquer energia estranha ao redor deles. Por um instante, a menina nos braços de Godric disse algo meio distorcido que ele não pode entender ao certo. Athus olhou-a e tentou imaginar o que pensava naquele momento.

           Os minutos que se passaram pareceram ser uma eternidade para o homem enrolado a frente do velho e da menina. A Besta era uma criatura imprevisível e certamente não iria desistir de persegui-los até a morte. Naquele momento, o que mais importava era a vida da menina e o...

           BUM!

           Algo bateu contra o teto da carruagem e chacoalhou o transporte. De súbito o teto estourou e uma mão murcha de dedos longos, finos e de aspecto cadavérico surgiu sobre a cabeça de Godric. Rapidamente, Athus ergueu a varinha e uma forte luz branca explodiu o teto e jogou seja quem fosse que estava sobre ele, para longe.

          Sem pensar duas vezes, Athus subiu no teto da carruagem através do buraco e olhou ao seu redor. Não havia nada, exceto nuvens e um mundo de concreto intensamente iluminado sob eles. No entanto, ainda estava frio e Athus sabia que Ele ainda estava por perto.

           — Ele ainda está aqui, Athus, — disse Godric de dentro da carruagem enquanto enrolava melhor a criança para não sentir frio. — tenha cuidado.

           — Não se preocupe. — Athus riu. — Sei me cuidar sozin...

           De súbito, algo negro surgiu dentre as nuvens e empurrou Athus de cima da carruagem. Caindo, se agarrou a roda do transporte. Sobre o teto, a criatura coberta pelo pano negro, enfiou a cabeça pelo buraco e fitou a menina nos braços de Godric.

           — Ela é minha, Godric! — sussurrou a criatura.

           — Jamais!

           Godric puxou o cetro e apontou para a criatura. Uma intensa luz saiu do cetro e a empurrou. No entanto, ela se agarrou ao teto e tentou a qualquer custo voltar para a carruagem e pegar e menina.

           Sob a carruagem, Athus colocou a varinha na boca e segurou-se nas suas bordas com uma das mãos. Em seguida, agarrou-se a porta e a abriu. Tirou a varinha da boca e apontou para a criatura.  Houve um relampejo branco, ela se soltou do teto e foi arrastada para dentro das nuvens.

           — Chegou na hora certa. — murmurou Godric colocando o cetro de lado e vendo como a menina estava.

           — Como ela está?

           — Melhor do que você.

           Athus riu. Em seguida, subiu pelo buraco do teto e ficou a espera sobre a carruagem. Não demorou muito e a criatura ressurgiu mais furiosa do que nunca.

           Sem Athus ter feito nada durante esse meio tempo, a criatura o empurrou sobre o teto e prendeu sua mão cadavérica no pescoço dele.

           — Você tem mais vidas do que eu pensava ter...

           — Azar o seu!

           Athus puxou a varinha e apontou para o rosto da criatura. Houve um relampejo vermelho e ela saiu de cima dele. Em seguida, Athus levantou-se e girou a varinha para além do céu enluarado. Uma bola de luz saiu da ponta da varinha e atingiu as nuvens, fazendo um gigantesco portal luminoso surgir.

           — Ela vai ser minha!

           O grito da criatura ecoou assustadoramente nos ouvidos de Athus. Sem pensar duas vezes ele apontou a varinha para a criatura e gritou:

           — Acho que é hora de você voltar para seu mundo, Malagat! Ex Ducere!

           Uma poderosa bola de luz branca saiu da varinha e acertou em cheio a criatura, empurrando-a para dentro do portal lumi- noso que se fechou assim que ela entrou.

           Voltando-se para dentro da carruagem, Athus escorou-se à parede e sorriu aliviado para Martius Godric e para a menina que dormia tranquilamente.

           A carruagem desceu das nuvens e pousou no jardim de uma mansão. Assim que Martius Godric saiu do transporte com a me- nina nos braços, uma mulher vestida com um robe lilás veio ao seu encontro.

           — Pensei que não conseguiriam trazê-la. — disse a mulher preocupada. — Como ela está Martius?

           — Estará melhor agora com você, Lauren. Tome.

           A mulher tomou a menina nos braços e alisou seu rosto angelical.

           — E os guardiões... Athus, onde estão? — perguntou a mulher voltando-se para Godric.

           — Athus está bem, está na carruagem descansando. No entanto, os guardiões não tiveram a mesma sorte que nós. Lauren, temos que voltar a Aragorn. Athus mandou a Besta de volta para o nosso mundo e ela poderá voltar se nós não formos embora.

           — Então, boa sorte meu amigo!

           — Obrigado.

           Martius Godric abraçou a mulher e deu uma última olhada na criança que despertava com a conversa ao seu redor.

           — Que a Fênix a proteja!

           Martius tocou a testa da menina com a ponta do dedo e um pequeno brilho surgiu em seus olhos. Por um instante, Godric pensou ter visto uma ave de fogo voar nos olhos da menina e desaparecer em seguida.

           A carruagem levantou voo e deixou para trás a mulher entrando na mansão com a menina nos braços. Minutos depois, ela descia das nuvens e passava sobre o lago Grumbecker que se descongelava lentamente. Houve um relampejo seguido de um estrondo e tudo desapareceu, restando no interior do lago o corpo do velho Peterson, boiando.

                      Lisa Torner penteava seus longos cabelos loiros escuros à frente de um espelho. Seu reflexo era magnificamente belo, ela parecia uma deusa celta envolvida por traços imortais.

           Possuía um queixo delicado, uma boca fina e lindos olhos mais verdes do que uma esmeralda.

          Ela estava feliz. Amanhã era seu décimo sexto aniversário e ele prometia ser o melhor de sua vida. Sua tia, Anne Lauren, a levaria para passar o dia fora de casa. Juntas, visitariam o museu de História Antiga de Winsville e passariam o dia no Parque de Diversões O’Hoolihan. Para finalizar, jantariam no restaurante francês La Coupe de Feu, ao sul da cidade. Ela mal podia esperar o dia amanhecer...

           Anne Lauren era uma mulher de quase quarenta anos, tinha uma aparência jovem e leves traços femininos na boca, nos olhos e no nariz. Cuidava de Lisa desde que seus pais faleceram quando esta tinha apenas um ano de idade. A menina cres- ceu cercada pelos mimos de Anne e pelo luxo oferecido pela família Lauren, que a jovem jamais conhecera.

           Anne era uma das maiores acionistas da LAUREN&BASTER. — uma poderosa empresa de imóveis — e a única pessoa que Lisa sabia que já teve contato com seus falecidos pais. Anne não era parenta de Lisa, mas a ensinara que para se amar não era necessário haver laços familiares entre as pessoas.

           Lisa nunca entendeu muito bem como Anne conhecera seus pais, mas sempre tivera curiosidade de saber se ela possuía parentes próximos, uma família. Desde pequena, crescera sentindo um vazio dentro de si. Apesar da presença marcante da tia de criação em sua vida, ela sempre se sentia sozinha. Afinal, não havia nenhuma prima para contar segredos íntimos ou avós corujas que dessem doces cada vez que ela as visitasse. No entanto, a jovem também sentia que Anne não parecia ter contato com seus entes, mantendo-se uma mulher fechada aos negócios e aos mimos da sobrinha adotiva.

           Em uma noite, quando resolveu conversar sobre família, Anne disse que não gostava de tocar no assunto e preferia se preocupar mais com seus negócios lucrativos do que com os laços familiares. Mesmo sem compreender como sua tia erguera o império Lauren, Lisa chegava a acreditar que também não tinha família e que ela era um exemplo de mulher que subiu na vida com muito esforço e trabalho. Por um lado, ambas estavam no mesmo barco e o amor que as mantinham juntas, ia muito além do que laços de sangue.

           A noite chegou de forma inesperada devido ao inverno rigoroso que a Grã-Bretanha estava tendo este ano. Devido à neve que estava começando a cair sobre Winsville, as casas estavam parcialmente cobertas por finos tapetes brancos. A mansão Lauren ainda permanecia com seu telhado sem nenhu- ma cobertura.

           No segundo andar da mansão, Lisa observava os flocos caí- rem lentamente pela janela da biblioteca. Naquele momento, ela prestava mais atenção na noite que chegava do que na neve.  A jovem estava ansiosa para que o dia amanhecesse e pudesse curtir seu décimo sexto aniversário com Anne.

           Sua tia também estava ansiosa, porém, algo a preocupava. Coisas deveriam acontecer naquela noite como um sinal do que viria pela frente. Anne ainda estava incerta sobre como contar a verdade para Lisa e não sabia quais palavras deveria usar. Sem muitas opções, resolveu levar um chocolate quente para sua sobrinha. No caminho até a biblioteca ela pensaria como contar...

           — Olha o chocolate quente! — disse Anne entrando na biblioteca com uma bandeja na mão.

           — A senhora leu meus pensamentos, — disse Lisa saindo da janela e vindo para o centro da biblioteca — como adivinhou?

           — Isso é um segredo que está guardado a sete chaves. Acredite, ele está tão protegido, que nem eu sei qual é!

           Lisa riu com Anne e pegou o bule com chocolate quente dentro. Depois de colocar em sua xícara, olhou para a bandeja e sentiu falta de algo.

           — Lisa, amanhã é seu décimo sexto aniversário e... quem diria, minha pequena está crescendo! — exclamou Anne tentando mudar o assunto — Mas, o tempo passa não é mesmo? Bom, eu gostaria que você soubesse Lisa que...

           — Tia, onde estão os biscoitinhos? — interrompeu Lisa.

           — Ah, os biscoitinhos? ... Devo tê-los esquecido. Não se preocupe, vou buscá-los. Volto num girar de calcanhares!

           Depois que Anne saiu, Lisa bebeu um gole de chocolate quente e pôs sua xícara sobre a bandeja para pegar um livro de terror que estava lendo. Ela então se sentou novamente no sofá e começou a lê-lo. Com sua atenção voltada para a leitura, esticou a mão e tentou pegar a xícara. Mas de repente a chávena se moveu sobre a bandeja e foi ao encontro da sua mão.

           A menina bebeu mais um gole e tornou a depositá-la sobre a bandeja. No entanto, a xícara parou no ar e ficou levitando como se estivesse sobre um objeto sólido.  Lisa terminou de ler uma página do livro e estendeu a mão mais uma vez. Mas, antes que pudesse tocar a xícara, ela levitou pela segunda vez.

           Naquele momento, A jovem virou-se e viu tal objeto flutuando na altura de seus olhos indo na direção de sua mão. Levando um susto com o que via, ela se afastou e a xícara caiu no chão, jogando chocolate e cacos de louça para todos os lados. Nesse mesmo instante, Anne entrou na biblioteca com um tabuleiro de biscoitinhos caseiros e viu o chão sujo.

           — O que houve Lisa?

           — Eu... eu.. — disse Lisa tão assustada que suas palavras se transformaram numa gagueira sem fim — De-deixei cair!

           — Foi só isso mesmo?

           Lisa não entendeu o motivo da pergunta, mas mesmo assim confirmou com a cabeça.

           — Não há motivo para ficar assustada. Da próxima vez você deve tomar mais cuidado. Agora, toma outra xícara e aqui estão os biscoitinhos que você queria!

           — Obrigada!

           — Agora deixe-me buscar um pano para limpar toda essa sujeira...

           — Ahn... tia Anne.

           Anne parou a beira da porta e virou-se para Lisa.

           — Sim, querida?

           — O que a senhora queria me dizer antes de sair da biblioteca?

           Anne olhou para Lisa e não sentiu coragem de contar-lhe a verdade. Em seguida ela disse:

           — Não se preocupe, Lisa. Não é nada... de importante!

           — Ah, tia. Deixe para limpar essa sujeira depois. Agora, eu gostaria que a senhora me respondesse uma pergunta...

           — Qual pergunta?

           Anne voltou para o centro da biblioteca e sentou-se no sofá à frente de Lisa.

           Lisa segurou forte a sua xícara e perguntou:

           — Porque eu nunca conheci nenhuma outra pessoa que tenha convivido com meus pais?

           Anne suspirou forte e apertou seus dedos num sinal de nervosismo que Lisa percebeu de imediato.

           — Para ser franca, Lisa. Annelize e William eram pessoas que não tinham muito contato com... ah... com as pessoas.

           Acredito que essa falta de contato não tenha criado círculos de amizade ou outras coisas do tipo!

           — Nossa! Até parece que eles eram pessoas de outro mundo que não gostavam de conviver com as pessoas desse mundo!

           — Não é bem assim, Lisa! — repreendeu Anne — Acredito que um dia você entenderá por que seus pais não conheciam ninguém além de mim! Acredite querida, eu lamento muito pela forma brutal como seus pais morreram e...

           — Forma brutal? — perguntou Lisa deixando a xícara de chocolate quente de lado — A senhora não me disse que eles morreram de um acidente de carro?

          — Ah, claro! É só uma... maneira de se expressar. Bom, acho melhor não tocarmos nesse assunto. Afinal, amanhã será um dia maravilhoso para você. Não se esqueça que a gente só faz dezesseis anos uma vez na vida! Ah, olha, eu já estava me esquecendo dessa sujeira no chão! Eu vou buscar um pano para limpar isso e...

           — Eu vou me deitar! — disse Lisa — Quem sabe assim as horas passam mais depressa.

           — É, faça isso Lisa! Amanhã será um novo dia cheio de surpresas.

           — Boa noite, tia Anne!

           — Boa noite, querida!

           Lisa saiu da biblioteca e deixou Anne mergulhada em seus pensamentos. Ela não conseguia acreditar que não tivera coragem de contar para a sobrinha seu segredo sobre sua existência. Mas não tinha importância. Quando o guardião viesse para buscá-la, a menina então descobriria toda a verdade.

           A jovem foi se deitar tentando encontrar uma explicação para o que houve com a xícara. Ela não conseguia entender como fizera aquilo e nem tampouco as anteriores. Aquela não foi a primeira vez em que coisas estranhas lhe aconteceram. Certa vez, Lisa botou fogo numa cortina de Anne apenas com o tocar do dedo e ficou assustada por quase uma semana inteira. Sua tia lhe disse que foi um acidente e que coisas assim acontecem. Mas a menina não entendia o motivo ou a causa para tais circunstâncias. Mal sabia ela que estava perto de descobrir a explicação para tudo isso.  Logo ao amanhecer, Lisa pulou da cama e correu para o banheiro escovar os dentes. Como de costume, ela pegou sua escova de dente e estendeu a mão para pegar a pasta, no entanto, não foi necessário. Quando se deu conta a pasta estava levitando no ar e a sua escova saindo de sua mão para escovar seus dentes. Lisa deu um pulo para trás e saiu correndo para o quarto.

           — Como isso aconteceu? Não pode estar acontecendo!

           Quando Lisa deu por conta novamente, suas roupas de camas flutuavam no ar e seus objetos de uso pessoal balançavam de um lado para o outro sobre sua cabeça num balé inconfundível.

           — Ah! — gritou.

           De repente uma cadeira arrastou-se até Lisa e a fez sentar. Rapidamente sua penteadeira se arrastou até a sua frente e suas escovas de cabelo começaram a penteá-la. A jovem tentou levantar e sair correndo daquele quarto maluco, mas uma blusa preta agarrou-a pelo braço e a fez dar uma volta em torno de si. De súbito o pijama saiu de seu corpo deixando-a seminua. Em seguida, a blusa ergueu-a até seus pés saírem do chão e uma saia preta entrou em seu corpo como se alguém a estivesse vestindo.

           A blusa a soltou e entrou em seu corpo antes que ela pudesse cair. Quando pensou que perderia o equilíbrio, a cadeira arrastou para debaixo dela e Lisa caiu sentada. No mesmo instante, um batom levemente rosado se destampou e passou nos seus lábios ao mesmo tempo em que um esmalte pintava as unhas das mãos e de seus pés. De repente, o secador de cabelos saiu voando do banheiro e secou suas unhas.

           Quando a menina menos esperou, sapatos entraram em seus pés e a cadeira deu uma empinada, fazendo-a saltar em pé. De súbito, um sobretudo preto saiu de seu closet e a fez vesti-lo ao mesmo tempo em que um cachecol branco enrolava-se em seu pescoço. Do outro lado do quarto, luvas de couro saltaram no chão, abriram a porta do quarto e empurraram Lisa para fora. Ao fecharem a porta, as luvas voaram e entraram em suas mãos, apesar da resistência da garota.

           Naquele momento em que estava do lado de fora do quarto, Lisa apenas teve uma ideia, correr o máximo possível, pois o mundo estava de pernas para o ar.

           — Eu só posso estar sonhando... só posso estar sonhando!

           Lisa desceu as escadas correndo e abriu a porta bruscamente dando de cara com sua tia preparando o carro para saírem.

           Ela usava respectivamente os mesmos trajes de Lisa e parecia bastante contente. Ao virar para a mansão, Anne surpreendeu-se em ver Lisa tão disposta.

           — Vejo que já está pronta, Lisa!

           A menina preferiu não dizer nada. Na verdade ela tentou dizer alguma coisa, mas sua língua parecia que estava paralisada dentro da boca impossibilitando-a de conversar. Mas esse não era o problema. E agora, como Lisa contaria para Anne que seus objetos estavam enlouquecidos dentro do seu quarto?

           — Aconteceu alguma coisa, Lisa? Você está pálida!

           O que aconteceu? Eu simplesmente fui atacada, quero dizer, fui ajudada a me vestir por um bando de objetos que voavam como pernilongos de um lado para o outro! Eu só devo estar enlouquecendo! — pensou Lisa.

           — O gato comeu a sua língua? — perguntou Anne diante do silêncio da jovem.

           Lisa olhou para Anne e tremeu os lábios. Em seguida, as lágrimas escorreram em seu rosto e quando ela enfim percebeu, já estava abraçando Anne.

           — Obrigada, tia! — foi a única coisa sensata que Lisa pensou. Ela não podia contar o que houve. Anne não acreditaria! Afinal, quem acreditaria?

           — De nada querida, agora vamos! Hoje é um dia muito especial para você e para mim. Então, não podemos perder nem um minuto sequer!

           Lisa entrou no carro e suspirou de alívio só de pensar que ficaria o dia inteiro longe daquelas coisas sobrenaturais. No fundo, ela sabia que deveria contar para sua tia, mas faltava coragem, afinal, aquilo tudo era absurdo.

           O Museu de História Antiga localizava-se na parte norte de Winsville. Era uma gigantesca construção de estilo gótico, construído em 1978. O museu estava exibindo artefatos antigos datados de 4000 a.C. a 100 a.C. Entre os diversos artefatos estavam em exibição alguns manuscritos em escrita cuneiforme da civilização mesopotâmica e um manuscrito hebreu em couro datado de 100 a.C.

           O museu recebia muitos visitantes por dia, mas devido ao frio, o número de pessoas era bem menor do que nos outros dias. Lisa e Anne entraram em salões praticamente vazios e visitaram relíquias juntamente com um grupo de quase quinze pessoas.

           A história antiga sempre foi a paixão de Lisa. Ela apreciava as perfeitas formas das pirâmides egípcias e os complicados manuscritos cuneiformes. Anne não gostava muito de visitar museus, mas viera a esse, apenas para fazer gosto a sua sobrinha.

           — É o décimo sexto aniversário dela como habitante des-  se mundo, preciso satisfazê-la! – Anne dizia para si mesma.

           Era por volta das dez da manhã quando as duas saíram do museu e seguiram em direção ao parque de diversões O’Hoolihan. Nesta altura do tempo, Lisa já havia esquecido o que acontecera e agora se dedicava à diversão.

           O’Hoolihan era um imenso parque multitemático que se localizava na parte sul de Winsville. O parque era muito conhecido por suas gigantescas montanhas-russas e por suas casas repletas de mistérios e tesouros.

           Ao chegarem, Lisa puxou sua tia para dentro de um carrinho de montanha-russa e a fez andar com ela. Anne não curtia tais brinquedos e não suportava os movimentos dos carrinhos sobre os trilhos.  Enjoava-se com facilidade e às vezes, quando estava no topo, fechava os olhos para não ver o que iria acontecer. O medo de altura era um dos fatores que a fazia detestar montanhas-russas. Se fosse por ela, nem se quer existiriam.

           Depois de sair da montanha-russa, Anne sentou enjoada num banco do parque. Lisa sentou-se ao seu lado rindo discretamente dela pelos gritos eufóricos dados na montanha. Anne não estava satisfeita com suas risadas, mas percebia que era a alegria da sobrinha.

           — Tia, a senhora vai ficar aí? Eu vou dar uma volta pelo parque...

           Antes de responder, Anne pensou no que poderia acontecer se ela fosse com Lisa. Por um instante, algo passou por sua cabeça. Ela olhou para a sobrinha e abriu um sorriso.

           — Pode ir Lisa! Depois nós nos encontramos aqui.

           A menina beijou a testa de Anne e desapareceu entre a multidão de pessoas.

           Lisa andou por quase meia hora pelo parque. Nesse tempo, ela se divertiu na Casa dos Gritos e sentiu medo nos Trilhos da Morte. Depois de sair aterrorizada, ela pensou em procurar Anne, mas mudou de ideia ao passar por uma casa cheia de espelhos que tinha um formato muito curioso.

           A Casa dos Espelhos era uma casa de vidro onde se dava para ver todo o seu interior. Ela era cheia de espelhos de todas as formas e tamanhos, dispostos pelos quatro cantos da casa, para refletirem imagens totalmente distorcidas que brincavam com a imaginação do visitante.

           Na entrada havia um espelho côncavo que refletiu a imagem gorda de Lisa. Mais a frente um espelho convexo emagreceu e diminuiu o corpo dela.

           Numa sala escura da Casa dos Espelhos, ela entrou e parou em frente a um deles. Milhares de reflexos dela apareceram. Algumas imagens eram distorcidas, outras eram finas e espessas.

           Lisa andou pela sala e ficou de frente para um espelho fitando seu olhar no reflexo. Por um instante ela pensou ter ouvido alguém a chamando e se aproximou mais do objeto, intrigada com a voz que pareceu ter vindo de dentro deles. Novamente alguém a chamou.

           Os espelhos pareciam ter vida. As imagens distorceram e formaram outros reflexos. Lisa se afastou e virou para trás, dando de cara com um homenzinho corcunda.

           — Não se assuste! — disse o homenzinho — A Casa dos Espelhos não foi feita para assustar pessoas.

           O homenzinho corcunda era terrivelmente feio. Ele tinha o olho esquerdo meio fechado e o direito totalmente branco com um pequeno ponto verde no centro. Seu rosto tinha algumas deformações e um aspecto repugnante que incomodava qualquer um que o visse.

           Lisa pediu desculpas e começou a sair da sala. De repente o homenzinho chamou-a pelo nome e ficou parado olhando para ela.

           Lisa virou-se assustada e perguntou como ele sabia seu nome. Por sua vez, o corcunda não respondeu e apontou a mão deformada para um espelho atrás dele.

           A jovem sentiu que algo estranho a chamava e a puxava para perto do objeto. Era como se uma corda invisível estivesse enrolada em seu corpo e a puxasse para frente do espelho. O homenzinho ficou atrás dela e a fez aproximar-se ainda mais.

           — Os espelhos não refletem somente a sua imagem, eles refletem a alma das pessoas — o homenzinho sussurrava no ouvido de Lisa fazendo-a ficar encantada com a voz dele — Descubra a sua...

           Lisa sentiu-se enfeitiçada pela voz calma sussurrada do corcunda e ficou olhando para o espelho. De repente seu reflexo começou a distorcer formando uma figura envolvida por fogo. Ela piscou os olhos e tirou o braço das mãos do homenzinho.

           — Eu não acredito em espiritismo, muito menos em espelhos que possam refletir minha alma!

           Lisa começou a sair da sala quando o homenzinho segurou-a pelo braço novamente.

           — Espere! — disse o homem com um estranho sorriso no rosto. — O espelho é a passagem... A alma é a chave!

           Ela não lhe deu atenção e saiu às pressas da Casa dos Espelhos.

           Aquilo era absurdo. Onde já se viu um espelho refletir a alma de uma pessoa? Aquele homenzinho repugnante era louco e Lisa tinha certeza disso.

           Após deixar tal lugar, Lisa saiu entre a multidão e quis ficar o mais longe possível daquela estranha casa. Ela não sa- bia por que, mas alguma coisa a estava perturbando. Era uma sensação estranha, de medo...

           Quando Lisa estava quase chegando à praça onde Anne a esperava, uma outra voz vindo do nada sussurrou em seus ouvidos.

           — Lisa!...

           A menina parou, olhou para os lados e não viu ninguém. Voltou então a andar e novamente escutou a mesma voz chamando-a. Pela segunda vez parou. A voz tornou a chamá-la. Lisa olhou para frente e viu uma casa denominada Casa do Oráculo. Por alguns instantes, ficou parada fitando a vivenda. A voz teimou em chamá-la. Mas desta vez, Lisa a escutou vindo da tal casa.

          Meio que hipnotizada pela voz, a jovem entrou na Casa do Oráculo a procura de quem a chamava. Ela não sabia por que estava indo atrás da voz, mas algo a forçava fazer isso. 

           O lugar era uma vivenda cheia de cristais pendurados no teto. Na entrada dela havia uma estátua de um gato preto e uma coruja empalhada. No centro da sala havia uma mesa redonda com uma bola de cristal no centro e duas cadeiras vazias. Lisa aproximou-se da mesa. Uma das cadeiras arrastou para trás e uma voz falou.

           — Ela está querendo que você se sente, querida!

           Uma mulher vestida como uma cigana saiu de trás de uma cortina de pano florido e sentou numa das extremidades da mesa. Ela apontou a cadeira para Lisa e pediu para que se sentasse. Ao sentar, a cadeira arrastou a jovem e juntou-a a mesa.

           — Não se assuste a cadeira tem mania de aproximar as pessoas de mim! — disse a mulher com a voz baixa.

           A tal cigana parecia ser de meia idade. Não era possível dizer o quanto ela era velha, pois um lenço vermelho cobria seus cabelos. O rosto dela era um pouco enrugado e tinha uma feição amigável.

           A mulher estendeu a mão cheia de bijuterias e argolas coloridas no pulso e disse:

           — Prazer, sou Madame Geoffrin. Posso ler suas mãos e descobrir o que suas digitais escondem de você e também posso ver seu futuro através da bola de cristal. O que prefere? — Não obrigada, eu passei aqui só por curiosidade!

           Lisa arrastou a cadeira com dificuldade para trás e levantou.

           — Tem certeza, menina, de que não quer saber nada sobre seu passado, presente ou futuro?

           Lisa balançou a cabeça e saiu. Antes de ela passar pela porta, Madame Geoffrin levantou da cadeira e chamou-a pelo nome.

           — Seu nome é Lisa, não é mesmo?

           Lisa parou na porta e voltou. Como alguém que ela nunca vira antes podia saber seu nome?

           — Como sabe meu nome?

           Madame Geoffrin sentou na cadeira novamente e passou a mão sobre a bola de cristal, fitando a jovem.

           — Eu sei de tudo criança. Seu passado... presente... e futuro!

           Lisa ficou parada no meio da sala. Observava a bola de cristal que parecia ter vida. Dentro dela uma fumaça começou a mover- se, parecendo nuvens que estavam se formando.

           Madame Geoffrin passou a mão sobre a bola de cristal e começou a ter vibrações estranhas. Seu olhar ficou escuro.

           Uma sombra escondeu o rosto dela e mudou a sua feição.

           — Está vendo menina?... Está vendo?

           Lisa fixou os olhos na bola de cristal. Ela não via nada a não ser uma fumaça negra que parecia ser uma nuvem.

           — Me desculpe, mas eu não vejo nada!

           Madame Geoffrin passava a mão em torno da bola de cristal e arregalava os olhos. Ela aproximava o rosto da bola e afastava novamente.

           A mulher passou a mão direita sobre a bola de cristal. Dentro dela, uma luz surgia lentamente. De súbito, uma voz sussurrou no ouvido de Lisa:

           — Lux Máxima!... Máxima! — Lisa olhou para a bola de cristal e viu um ponto de luz acendendo e apagando.

           Madame Geoffrin passou a mão sobre a bola de cristal e arregalou os olhos.

           — Eu estou vendo... Estou vendo!

           Lisa tentava ver o que a mulher via, mas era impossível.

           — Me desculpe, mas o que está vendo? — perguntou a menina arrepiando-se.

           — Eu vejo as trevas em torno de você. Eu vejo angústia... dor... sofrimento... e morte!

           A jovem estremeceu e deu um passo para trás. Essa mulher é louca!

           Madame Geoffrin levantou da cadeira, pegou a bola de cristal e aproximou de Lisa.

           — Não adianta fugir. Ele quer você...

           Lisa começou a afastar para trás à medida que Madame Geoffrin aproximava-se dela.

           — Ele quem?

           — Veja...

           A cigana levantou a bola de cristal na altura dos olhos de Lisa. Dentro da bola, a pequena luz apagou dando lugar a uma fumaça espessa que formou aos poucos um rosto de um homem.

           — Lisa! — sussurrou o homem . — Lisa!...

           O rosto do homem desapareceu formando a pupila de um olho envolvida por um fogo. Dentro da pupila, a menina viu uma mulher gritando. Lisa afastou para trás e esbarrou num vaso que caiu no chão e quebrou-se. Madame Geoffrin piscou os olhos e afastou o rosto do corpo da jovem como se nada houvesse acontecido.

           — Está bem, querida? Parece assustada!

           Lisa encostou-se à parede e continuou observando a bola de cristal.

           Madame Geoffrin voltou à mesa e colocou a bola de cristal sobre ela; depois se sentou na cadeira.

           — E então? Quer que eu leia sua mão ou quer que eu veja seu futuro na bola de cristal?

           A pobre menina olhou para a fumaça que desaparecia dentro da bola de cristal e depois olhou para a mulher.

           — E então, decidiu-se? — perguntou a mulher sorrindo.

           Lisa virou bruscamente e saiu da sala derrubando a coruja empalhada na parede. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo com ela. Era muita coisa estranha para um dia só. Primeiro a xícara na noite passada, depois um bando de objetos sobrenaturais que a vestiram, em seguida uma voz estranha e um homenzinho repugnante, e agora uma vidente maluca! Aquilo tudo estava estranho demais para Lisa. Algo sobrenatural estava acontecendo. Mas por quê?

           Lisa passou apressada entre uma multidão de crianças que rodeavam um palhaço segurando balões coloridos e aproximou-se de Anne com uma expressão visivelmente assustada.

           — Vamos embora, tia!

           A jovem estava tremendo e parecia angustiada. A Casa do Oráculo a deixara intrigada e com um mau pressentimento.

           — O que aconteceu Lisa? Está tremendo!

           — É o frio, tia. Estou muito cansada. Vamos embora!

           Anne reparou algo no olhar de sua sobrinha. Por um instante ela sentiu algo diferente na garota e suspirou.

           — Já começou!

           Anne e Lisa entraram no carro e saíram do estacionamento do parque sobre os olhares de um homenzinho corcunda. Ao vê-las sair, ele sorriu e desapareceu atrás de um carro escuro.

 

            Os flocos de neve começaram a cair no fim da tarde cobrindo as casas de um branco majestoso e magnífico. Quando anoiteceu, toda Winsville já estava coberta e as ruas, intransitáveis pelos carros. Na mansão Torner, Lisa estava sentada na janela do quarto observando a neve cair quando Anne bateu na porta e entrou.

           — O que foi Lisa?  — perguntou Anne — Parece triste.

           — É impressão sua, tia!

           Mas a expressão de Lisa não convenceu Anne. Ela sabia que coisas estranhas aconteceram e que nesse exato momento, sua sobrinha estava preocupada. Ela tinha que dar o seu apoio, pois o mundo estava começando a virar de pernas pro ar para a jovem, bastava apenas que a verdade fosse revelada.

           Anne puxou uma cadeira da escrivaninha e sentou perto de Lisa.

           — Pensei que estava triste por não termos ido jantar no La Coupe de Feu!

           — Vai haver outra oportunidade — disse Lisa olhando para fora quando um floco de neve desceu lentamente e bateu no vidro da janela.

           — Lisa, tenho a impressão de que aconteceu algo com você — disse Anne — Você estava tão feliz e de repente saiu do parque pensativa. Aconteceu algo?

           Lisa continuou olhando para fora. Os flocos batiam no vidro da janela e derretiam.

           — Não quero falar sobre isso agora, tia Anne!

           — Entendo — Anne levantou da cadeira e antes de sair beijou Lisa na testa — Quando estiver pronta é só me procurar, está bem?

           Anne saiu pensativa. Ao passar pela porta, voltou ao quarto.

           — Lisa, quero que você saiba que muitas coisas estão para acontecer. Este é o seu décimo sexto aniversário... muitas coisas mudarão!

           Lisa saiu de frente da janela e virou-se, mas sua tia já havia saído do quarto.

           A escuridão da noite era a menina dos sonhos de qualquer sombra. Elas vagavam pela cidade entre os becos escuros sem serem notadas. Elas não sabiam, mas um homem as observava atentamente. Ele tinha cabelos lisos e usava um manto negro enrolado ao corpo para se proteger do frio. Ao observar as sombras correndo de um beco ao outro, o homem percebeu que já estava na hora de agir.

           O Bar Negro era a casa dos maiores assassinos da Inglaterra. Lá, centenas de homens negociavam a morte de algum indivíduo ou recebiam suas devidas recompensas por trabalhos sujos.

           Era um lugar imundo, cheio de bêbados e prostitutas. Havia em suas paredes de pedra um aspecto sombrio e funesto que traduzia em todos os sentidos o tipo de pessoas que o frequentavam.

           Numa mesa ao fundo, um homem com uma carapuça de cor preta cobrindo o rosto, bebia uma bebida vermelha enquanto aguardava a chegada de uma pessoa. O homem possuía os dedos finos e longos. Suas unhas eram grandes e pontudas. Havia em sua pele algo terrivelmente repugnante, era murcha, cinza e cheia de machucados.

           Uma música alegre era tocada por um pianista caolho e cabeludo em um dos cantos do bar. Sua música contagiava as garçonetes que serviam as bebidas, dançando ao ritmo dela, enquanto bêbados subiam em cima das mesas e dançavam abraçados uns aos outros.

           Pela porta escancarada um homem encapuzado entrou e sen- tou-se à mesa no fundo. Os dois homens olharam um para o outro. O recém-chegado tirou uma varinha mágica do bolso e entregou ao homem a sua frente. A varinha era dourada e tinha sete detalhes na ponta. No cabo estava escrito em letras tomba- das, a palavra Firewitch.

           — Aqui está ela. Mas tome cuidado, a varinha ainda está enfeitiçada pela Firewitch. Se o meu Mestre não souber usá-la devidamente, Godric pode sentir seu poder e pôr tudo a perder.

           O homem olhou para a varinha e fixou os olhos no nome escrito.

           — E a menina?

           A voz do homem de carapuça era fraca, quase semelhante a um sussurro, e tinha um aspecto funesto e diabólico.

           — Não se preocupe meu Mestre, o primeiro passo já foi dado...

           O homem guardou a varinha no bolso e cruzou as mãos murchas.

           — Um guardião está aqui!

           — Impossível, eu tenho certeza de que o portal não foi aberto novamente e...

           — Lupus. Eu vi Athus Lupus perseguindo minhas sombras.

           — Maldito! — o homem bateu a mão na mesa, derrubando a bebida — Mas não se preocupe meu Mestre, eu cuidarei dele e tomarei providências para que a menina liberte seu poder...

           — Não! — gritou o homem severamente — Não faça nada. Deixe a menina por minha conta... Vai ser um prazer... voltar aos velhos tempos!

 

            Um floco de neve passou por entre as nuvens e desceu em direção ao jardim da mansão Lauren. Um vento vindo do norte empurrou o floco contra a janela do quarto de Lisa e o espatifou no vidro. Nesse momento, a menina estava de pé, em frente ao espelho ouvindo vozes que falavam simultaneamente no seu ouvido.

           Os espelhos não refletem somente a sua imagem, eles refletem a alma das pessoas.

           Seu nome é Lisa, não é mesmo?

           Eu sei de tudo criança. Seu passado... presente... e futuro.

           Eu não acredito em espiritismo. Muito menos em espelhos que possam refletir minha alma.

           Eles refletem a alma das pessoas. Descubra a sua...

           Eu vejo angústia... dor... sofrimento... e morte!

           O espelho é a passagem...

           Ele quer você...

           Ele quem?

           A alma é a chave.

           O espelho refletia uma Lisa confusa. O que eles queriam dizer?  Ela não conseguia entender o que havia acontecido naquele dia no parque, no quarto e na biblioteca. A jovem sentia-se atordoada por isso. Mas ao mesmo tempo em que se atormentava com as vozes, algo a dizia que aquilo tudo era loucura.

           Durante horas, Lisa se ocupou tentando fazer suas escovas de cabelo flutuarem novamente e suas luvas entrarem em suas mãos sem ser preciso tocá-las. No entanto, nada aconteceu.

           Era como se o que houve naquele quarto tivesse sido apenas momentâneo. Mas, como aconteceu e por que aconteceu, ainda era um mistério.

           Ainda pensativa, Lisa ficou olhando para seu reflexo por alguns segundos. No reflexo do espelho, um pedaço de pano rasgado apareceu na janela. Ela virou-se e nada viu a não ser a neve caindo.

           Voltou sua atenção ao espelho e fitou seu olhar. Descobrir a minha alma...  O que isso quer dizer? Isso é loucura.

           Enquanto pensava, seu reflexo começou a distorcer. Lentamente uma voz vinda do nada a chamou pelo nome. A voz era um sussurro rouco e sombrio.

           Lisa olhou assustada para os lados a procura de quem a chamara e não encontrou ninguém. Estranhando o que acabara de ouvir, voltou para o espelho e sua imagem continuava a distorcer e se transformar numa nuvem carregada de raios. De repente um rosto surgiu lentamente entre as nuvens e abriu a boca.

           — Lisa! — disse uma voz saindo do espelho.

           Na janela do quarto, um pano preto em frangalhos começou a aparecer embalado pelo vento. De súbito, uma mão murcha e comprida estendeu-se na janela e tocou no vidro.

           Nesse meio tempo, a nuvem desfez o rosto do homem no espelho e voltou a se mexer como se estivesse sendo embalada pelo vento. Aos poucos as nuvens se abriram formando uma pupila de um olho. Intrigada com o que estava vendo, Lisa aproximou-se do espelho.

           Do outro lado do quarto a mão murcha puxou lentamente a janela até abri-la totalmente. A barra do pano preto entrou, em seguida o rosto tampado pelo pano começou a entrar, então Lisa sentiu um arrepio e virou-se para trás. Quando ela olhou para a janela, uma criatura vinha em sua direção com uma enorme boca gosmenta surgindo entre o pano.

           Imediatamente, a menina se afastou até bater de costas contra a parede. Nesse momento, a criatura avançou sobre ela e abriu sua boca. De súbito, Lisa começou a sentir suas forças serem sugadas. Quando uma espécie de névoa branca começou a sair de seu corpo, a porta do quarto se escancarou com um estrondo e Anne entrou bruscamente segurando uma varinha na mão.

           — Ex Ducere!

           A visão de Lisa estava embaçada. Ela fechou os olhos e escutou duas pessoas conversarem longe.

           — Era pra você ter me avisado que Ele estava aqui! Lisa correu risco de vida durante todo esse tempo!

           Uma voz firme de homem falou em seguida.

           — Me desculpe Anne eu não imaginava que Ele estava nesse mundo. Eu sabia que as sombras já estavam se fortalecendo para levar a menina, mas eu precisava abrir o portal novamente.

           A jovem abriu o olho novamente e tombou a cabeça. A visão meio embaçada mostrava um homem vestido com um manto preto e uma mulher segurando uma varinha no fundo do quarto.

           — Por que a demora com o portal? — perguntou a mulher. — Goblin demorou a encontrá-lo. Ele só foi achado hoje... — Onde ele vai ser aberto?

           Lisa apoiou a mão na cama e levantou meio zonza. A mulher a viu levantando e correu em seu auxílio.

           — Não se esforce querida você está fraca ainda.

           Lisa dominou completamente a visão. Sua tia Anne estava na sua frente e olhando por de trás dela, viu um homem de cabelo liso vindo em sua direção.

           — O que aconteceu tia? Minha cabeça está doendo!

           — Um... — Anne não encontrava as palavras certas para dizer a Lisa o que havia acontecido — Um... ahn...

           O homem adiantou-se e completou a resposta de Anne.

           — Você quase foi atacada por um espectro negro — o homem esticou a mão para a menina — Prazer, Athus Lupus — Lisa olhou para Athus e depois pegou na sua mão.

           — Tia do quê ele está falando?

           Anne olhou para Athus, suspirou fundo e falou:

           — Lisa, há algumas coisas que você deve saber sobre você e sobre seus pais.

           — Sobre eu e meus pais?

           — Exatamente — Anne pegou nas mãos de Lisa — Agora, escute atentamente o que Athus vai contar- lhe.

           Athus juntou seu manto e sentou no canto da cama de Lisa. Depois de um breve suspiro, ele disse:

           — Lisa, há dezesseis anos atrás, num mundo chamado Aragorn, uma Besta iniciou uma perseguição por uma criança que continha no seu corpo o espírito da Fênix — Athus parou por alguns instantes, olhou para Anne e encarou Lisa — Essa criança era você, Lisa.

           — Eu? — perguntou a menina surpresa.

           — Sim, querida — disse Anne.

           Lisa parecia confusa. A dor de cabeça ainda era intensa, o que a fazia pensar que ambos pareciam estar brincando com ela.

          — Entre os espíritos que regem a terra, o espírito da Fênix ficou conhecido como o Sétimo Espírito. Esse, porém é extremamente poderoso e de grande valor para Malagat, a Besta. Sabendo disso, eu e um mago chamado Martius Godric, tiramos você do mundo de Aragorn e a trouxemos para esse pra evitar que a Besta a encontrasse e a matasse. Durante esses dezesseis anos, Anne cuidou de você até que chegasse o dia em que retornaria ao mundo de Aragorn.

           — Lisa, Malagat não possui poderes para entrar nesse mundo porque Martius Godric lacrou o portal com um feitiço, tornando-o impenetrável por criaturas do reino das sombras.

           — No entanto, — continuou Athus — o portal foi aberto para que eu pudesse levá-la para Aragorn e... não sei como isso aconteceu, mas... a Besta conseguiu passar pelo portal e está nesse mundo.

           Lisa baixou a cabeça e lembrou-se de algo.

           — O rosto, eu vi um rosto numa bola de cristal na Casa do Oráculo e no espelho, agora pouco. Por acaso era esse tal de Malagat, a Besta?

           Anne olhou para Athus e afirmou com a cabeça.

           — A Besta usou uma espécie de isca para chamar sua atenção. É uma forma de ocupá-la mentalmente para que ele sugue o Sétimo Espírito enquanto você esteja inconsciente.

           — Quer dizer que eu perdi a consciência agora pouco?

           — Sim.

           Lisa ficou calada. Sua cabeça parecia girar com tanta informação sem sentido algum. Ela não sabia mais no que pensar, tudo parecia ser uma piada e todos queriam que ela acreditasse. Mas a menina viu algo no espelho e na bola de cristal que chamou sua atenção. Algo que envolvia seu Ser.

           — E meus pais? Desde pequena eu acreditei que eles morreram num acidente de carro logo depois que completei um ano de idade. Por acaso eles estão vivos?

           — Não Lisa — respondeu Anne — William, seu pai, morreu tentando impedir que a Besta encontrasse você. E Annelize foi morta pela Besta, minutos antes de você ser trazida para este mundo.

           Uma tristeza apunhalou o coração de Lisa. Era demais pensar que seus pais morreram num acidente de carro e de repente descobrir que foram assassinados por uma criatura que ela não conhecia e que não fazia o menor sentido para ela. A jovem fechou a mão e abaixou a cabeça. Agora ela entendia o que Anne quis dizer com “a forma brutal como seus pais morreram”.

           — O que devo fazer?

           — Nada por enquanto — respondeu Athus — Seus poderes ainda não despertaram. Mas não irá demorar a acontecer. Até lá, você deve estar em Aragorn treinando-os para que um dia você e a Besta se encontrem e travem uma batalha.

           A palavra batalha soou no ouvido de Lisa como uma forma irracional de resolver as coisas. Ela era passiva e não gostava de nada que estivesse relacionado a guerras. Porém, segundo Athus, a batalha seria inevitável.

           — Lisa você não é somente a reencarnação do Sétimo Espírito...

           — Você é uma bruxa, Lisa — completou Athus — A Bruxa de Fogo!

           A jovem ficou parada olhando para os dois a sua frente. Bruxa de Fogo! Por um instante ela repetiu o que Anne disse e pensou no que significaria. Isso mais parece um sonho!

           — Bruxa de Fogo? Isso é loucura! — disse Lisa — Não existem bruxos, nem... magia!

           Athus olhou para Anne com um sorriso no rosto e voltou-se para Lisa.

           — Lisa, você nunca fez algo acontecer que por acaso só pudesse ser explicado por... magia?

           Ela pensou por um instante e depois disse:

           — Quer dizer que... aqueles objetos malucos no meu quarto fui eu quem...?

           — Não! — exclamou Anne sorrindo — Aquela, Lisa, é minha especialidade! É assim que eu consigo me arrumar tão depressa quando estou atrasada!

           — Então foi a senhora! Mas...

           Antes da menina fazer uma pergunta, a porta do quarto se abriu e um homenzinho corcunda entrou, interrompendo-a.

           — O portal está aberto, Sir Lupus.

           — Onde ele foi aberto, Goblin?

           — Na Casa dos Espelhos, senhor.

           Lisa levantou assustada da cama e se aproximou de Goblin.

           O homenzinho lhe pareceu com alguém que já vira antes em algum lugar.

           — Você é o corcunda da Casa dos Espelhos! — exclamou Lisa.

           — Sim, sou eu My Lady — disse o corcunda fazendo uma reverencia a Lisa.

           — Goblin é o nosso auxiliar em todos os assuntos referentes á magias, encantamentos e em assuntos relacionados à alma — disse Anne.

           Athus olhou num relógio esquisito no seu braço e virou-se para Anne.

           — Temos que ir. O portal não vai ficar aberto por muito tempo.

           — O quanto mais rápido sairmos desse mundo, será melhor para você, Lisa! — disse Anne.

           — Mas e a Besta? Ela está vagando pela cidade...

           — Não se preocupe, assim que entrarmos no portal, a Besta voltará para Aragorn — disse Athus — Ela só pode ficar aqui enquanto eu estiver neste mundo.

           O corcunda se aproximou de Athus e puxou seu manto.

           — Sir Lupus, a carruagem está no lado de fora, nos esperando.

           — Carruagem? — perguntou Lisa, surpresa.

           — No mundo de Aragorn, a carruagem é um dos meios de transportes, My Lady — disse Goblin.

           Athus foi até a porta e exclamou:

           — Vamos, não podemos perder tempo!

           Lisa, Athus e Anne saíram na frente. Antes de sair, Goblin retirou uma varinha do bolso e balançou-a em direção a janela do quarto. De súbito, a janela se fechou e as cortinas a tamparam. Após sair do quarto, Goblin apenas fez um movimento com a mão e a porta fechou-se as suas costas.

           A carruagem, puxada por dois cavalos brancos de olhos tão azuis quanto o céu, estava na chegada da mansão esperando Athus e os outros. Lisa aproximou-se do transporte apreensiva com os cavalos. Afinal, se aquilo tudo que houve foi obra de magia, porque os animais também não podiam ser... loucos?

           Athus pegou na mão de Anne e a ajudou a entrar na carruagem. Em seguida, Lisa foi ajudada. Athus entrou e fechou a porta. Goblin sentou no banco à frente, pegou nas rédeas dos cavalos e bateu-as contra o pêlo dos mesmos.

           De repente, os pés dos cavalos saíram do chão e os animais começaram a galopar sobre o ar. Ao começar a voar, o transporte balançou, assustando Lisa.

           — Não se preocupe Lisa, é normal balançar quando sai do chão.

           A jovem olhou pela janela e voltou assustada.

           — Mas nós estamos voando!

           Anne riu e pegou na mão da sobrinha.

           — Você ainda não viu nada, querida... Nada!

            A carruagem pousou no pátio do parque de diversões minutos depois de ter saído da mansão Lauren. Lisa e Anne saíram dela usando um sobretudo preto grosso. O rosto das duas estava coberto por um capuz, para proteger contra a neve que caía sem parar.

           Goblin tirou a varinha do bolso e num piscar de olhos, a carruagem e os cavalos encolheram. Deu um passo a frente, abaixou, e guardou em seu bolso o minúsculo transporte.

           O parque parecia uma cidade fantasma coberta pela neve. Antes de virem, Goblin cuidou pessoalmente dos guardas noturnos para que não os atrapalhassem. A essa certa altura do tempo, eles devem estar no seu sétimo sono!

           O homenzinho repugnante passou na frente de Athus e o guiou pelo parque. Ao passaram pela montanha-russa, uma sombra chamou sua atenção.

           — Ele sabe que nós estamos aqui, Goblin — disse Athus baixinho.

           — O senhor também sentiu a presença dele?

           — Sim.

           Anne reparou que os dois conversavam em voz baixa e juntou-se a Athus.

           — Está acontecendo alguma coisa, Athus?

           — Temos que ser rápidos. A Besta está por perto, eu senti a presença dela...

           Um vento gelado soprou em direção a Lisa. Uma sensação estranha à fez olhar para trás. Parecia que algo se escondia na sombra de uma barraca. A menina continuou olhando, de súbito sentiu algo se aproximando rapidamente em sua direção.

           — Anne! — gritou Lisa.

           Algo bateu contra o corpo de Lisa e a empurrou em direção à montanha russa. Athus tirou a varinha do bolso e correu em direção a jovem.

           Uma criatura saiu da sombra de Lisa e ergueu-se no ar — era a Besta —. A garota saiu afastando-se para trás até bater de costas nas ferragens da montanha russa.

           Athus pulou a barragem que permitia a entrada de pessoas no brinquedo e gritou para a Besta.

           — Afaste-se dela!

           Uma luz saiu da varinha em direção à criatura. Ela virou para a luz e abriu a mão murcha. Num piscar de olhos, o poder da varinha virou-se contra Athus e o atingiu.

           A Besta pegou Lisa pelo colarinho do sobretudo e a ergueu.

           Uma boca gosmenta surgiu entre o pano preto e se aproximou dela. Antes de começar a sugar o seu espírito, uma bola de luz atingiu a Besta jogando-a para longe.

           — Lisa, por aqui! — gritou Anne.

           A jovem saiu correndo em direção a Anne. A Besta moveu os dedos, e uma magia puxou Lisa pelos pés, derrubando-a. A criatura subiu sobre seu corpo e abriu a boca. O espírito dela começou a ser sugado, quando um lobo surgiu das ferragens e pulou sobre a Besta, tirando-a de cima de Lisa. O lobo virou para a menina e disse:

           — Corra Lisa, para a Casa dos Espelhos!

           Assim ela fez, levantou e saiu correndo atrás de Anne e Goblin.

           O lobo mordia o pano preto da Besta e segurava as mãos dela com as patas. A criatura soltou uma das mãos e o jogou para longe. O animal levantou e correu em sua direção. Ao pular, o lobo se transformou num homem e agarrou a Besta. Athus pegou sua varinha e apontou-a para o rosto dela

           — Seu maldito, de hoje você não escapa! — Athus começou

           a pronunciar um feitiço quando uma luz atravessou seu corpo.

           Athus olhou para a mão da Besta e a viu segurando uma varinha com o nome Firewitch escrito no cabo.

           — Como você conseguiu?

           A luz aumentou e entrou no corpo de Athus até lançá-lo contra a ferragem da montanha russa. A Besta levantou e desapareceu entre as sombras.

           Athus levantou com esforço e ficou de pé. Seu corpo estava todo ferido. Havia uma grande quantidade de sangue saindo de seu abdômen e alguns cortes no rosto, provocado pelo poder da Firewitch.

            

           Goblin levou Lisa para dentro da Casa dos Espelhos e a pôs em frente ao espelho principal.

           — Olhe para o espelho, My Lady. Concentre-se e entre nele.

           Lisa fechou os olhos e tocou o espelho com o dedo. Com o toque, uma onda saiu de seu dedo e espalhou-se pelas extremidades do objeto. Aos poucos a mão de Lisa foi entrando no espelho, envolvida pelas ondas que saíam de seu braço.

           Do lado de fora da Casa dos Espelhos, o vento soprava calmamente. Um clima sombrio deixava Anne em alerta. Ela olhava para todos os lados atenta a qualquer movimento. Uma pequena luz estava acesa na ponta da sua varinha iluminando ao redor da entrada da vivenda.

           Alguma coisa passou numa sombra e chamou a atenção de Anne. Ela esticou o braço, que segurava a varinha, e aproximou de onde vira algo passando. Ao entrar numa parte escura, a Besta surgiu atrás dela e a atacou. Anne virou para trás e apontou a varinha para a criatura. Mas antes que ela pudesse fazer o feitiço, a Besta encostou uma varinha na sua barriga e lançou um feitiço. Uma luz vermelha entrou no corpo da mulher e saiu por todos os lados. Aos poucos, ela perdeu suas forças e caiu no chão. A Besta saiu do escuro segurando a varinha e entrou na Casa dos Espelhos.

           No escuro o corpo de Anne ficou caído. Havia sangue por todas as partes. Os olhos dela ficaram brancos e suas pupilas desapareceram.

           A Besta caminhou na sala escura dos espelhos até chegar na sala principal. No canto da parede que ligava a outra sala, havia um volume coberto por um pano preto. Quando a Besta passou pelo mesmo, Athus tirou o pano que o cobria e a empurrou contra a parede. No barulho, Lisa abriu os olhos e tirou o braço de dentro do espelho.

           — Lisa, entre no portal! Rápido! — Athus apontava a varinha para a Besta e empurrava-a contra a parede com o corpo.

           A Besta ergueu a varinha na altura do abdômen de Athus e apertou-a contra ele. Uma luz saiu da varinha e o empurrou contra a parede.

           Lisa colocou a mão dentro do espelho. Seu inimigo vendo tal ação apontou a varinha para a menina, e uma luz a tirou de frente do portal que se abria.

           Goblin apontou a varinha para a Besta e ajudou Lisa. Athus levantou-se e se pôs na frente da jovem.

           — Você não vai fazer nada a ela, Malagat!

           Goblin levou Lisa até ao espelho e entrou na frente dela.

           — Anda logo My Lady!

           Uma luz vermelha acendeu na varinha da Besta. Athus e Goblin prepararam para atacar. Mas Malagat permaneceu quieto por alguns instantes. Lentamente ele ergueu a mão e moveu os dedos longos. Athus percebendo tal ação olhou para o espelho que começou a trincar, e no exato momento ele atacou a Besta e Goblin lhe ajudou lançando um feitiço.

           Lisa estava de costa para o objeto refletor quando uma bola de luz empurrou-a para seu interior e a fez entrar no portal. Em seguida, nuvens carregadas surgiram ao seu redor e a garota caiu entre raios e trovões. Aos poucos, as nuvens se afastaram e uma pupila de fogo surgiu.  Ela se abriu e Lisa caiu entre o fogo que ardia. As chamas se misturaram às nuvens e se afastaram em meio a chuva que caía. O frio tomou-lhe o corpo juntamente com o medo e o terror. Ela gritou, mas foi a última coisa que se lembrou de ter feito antes de tudo escurecer.

            A chuva caía sobre uma estrada esburacada e cheia de raízes no interior de um bosque. Sobre a estrada, uma carruagem puxada por dois cavalos pretos seguia com vários baús amarrados em seu teto. Os cavalos seguiam sozinhos. Pareciam enfeitiçados para caminharem na chuva. Seus olhos brilhavam e não pareciam se importar com os flashes dos raios que riscavam o céu incessantemente.  Dentro da carruagem, três homens dormiam enrolados em seus mantos. Um deles roncava desesperadamente e remexia para os lados.

           Os animais passaram sobre uma gigantesca possa d’água e pararam. Um dos homens acordou e reparou que a carruagem estava parada. Ele olhou pela janelinha de vidro e viu algo caído no meio da estrada. O homem abriu a porta e saiu na chuva. Ao sair viu que era uma mulher e voltou para acordar os outros.

           — Zig, Cliffe, acordem, tem uma mulher caída na chuva.

           Zig virou para o lado e cobriu a cabeça com o manto. Cliffe deu um resmungo e voltou a dormir.

           — Acordem vocês dois!

           — O que foi Dan? — disse Zig acordando meio zonzo.

           — Acorda Cliffe, tem uma mulher caída na chuva.

           Cliffe balançou a cabeça e abriu os olhos lentamente.

           — Uma mulher? — indagou Cliffe.

           — Anda, saiam os dois e me ajudem!

           Dan saiu da carruagem e foi até Lisa. Zig e Cliffe desenrolaram o manto de volta do corpo e saíram na chuva, meio sonolentos. Ao verem a menina, os dois arregalaram os olhos e correram até seu amigo.

           — O que será que aconteceu com ela? — perguntou Zig.

           — Não sei, pode ter sido um assalto ou qualquer outra coisa parecida! — Dan levantou a cabeça de Lisa e virou para os outros — Vamos me ajudem a levá-la para dentro.

           Dan pegou Lisa nos braços e levou-a para a carruagem. Zig entrou primeiro e o ajudou a coloca-la deitada.

           — Cubram-na com algo para aquecê-la.

           Cliffe tirou um cobertor debaixo do banco e enrolou em volta do corpo de Lisa. Dan a observava enquanto dormia inconsciente, na mesma hora em que tirava seu manto molhado e vestia outro por cima.

           Zig colocou a cabeça pra fora da carruagem e gritou para os cavalos.

           — Sigam! 

           O dia estava claro quando Lisa despertou e sentiu um calor gostoso esquentando seu corpo. Ela olhou para o cobertor simples e levantou. A sua primeira visão foi um pequeno lago de águas claras no meio de um bosque. Nas suas costas havia uma fogueira quase apagando e algumas vasilhas ao redor dela. Levantando-se viu dois cavalos bebendo água no lago. Ao olhar para trás, viu a estrada e a carruagem sem os animais.

           Lisa queria entender o que estava acontecendo ali. Ela tocara nas suas roupas e percebeu que estavam frias e úmidas. Onde estou?

           A menina caminhou até o lago e lavou o rosto. Ao por a mão dentro da água, um peixe vermelho com manchas amarelas escondeu-se debaixo de uma pedra.

           Dan chegou carregando alguns galhos secos para a fogueira e dirigiu-lhe a palavra.

           — Achei que não iria acordar!

           Lisa olhou assustada para o homem loiro de cabelos lisos a sua frente e sorriu. — Onde estou?

           O rapaz levantou a sobrancelha e pensou por um momento que ela não deveria ser da região.

           — Você está nas terras de Allenah, senhorita...

           — Torner. Lisa Torner.

           — Prazer. Horcliffe. Daniel Horcliffe, mas pode me chamar de Dan!

           Dan colocou alguns galhos na fogueira e pôs-se a soprá-la.

           Lisa saiu de perto do lago e aproximou-se dele.

           — Me desculpe, mas, você disse que eu estou aonde?

           — Você está em Allenah.

           Ele soprou duas vezes a fogueira e o fogo acendeu.

           — De onde você veio?

           — Winsville, Inglaterra.

           — Winsville? — perguntou Dan surpreso — Eu nunca ouvi falar. Onde fica esse lugar?

           Lisa pensou por uns instantes e depois balançou a cabeça.

           — Eu não sei bem... — ela aproximou-se de Dan — Como eu cheguei até aqui?

           — Nós a encontramos caída no meio da estrada na chuva ontem a noite. Aconteceu algo com você? Por acaso foi assaltada? ...

           — Não — Lisa passou a mão na cabeça — Eu estava tentando entrar no mundo de Aragorn e uma Besta tentou me impedir. Depois eu só me lembro de estar caindo e... não consigo me lembrar!

           Dan levantou assustado e olhou para Lisa com uma feição séria.

           — Você disse que uma Besta estava tentando impedi-la de entrar no mundo de Aragorn?

           — Sim.

           Dan ficou quieto. Naquele momento, a garota tentou imaginar o que o rapaz estava pensando, ele ficara sério e indiferente. Ele então voltou a olhar para ela e abriu um sorriso afável.

           — Bem, você está no mundo de Aragorn!

           A jovem sentiu um impacto ao descobrir que estava em Aragorn. Por um instante, ela pensou no que teria acontecido com Anne e Athus. Lisa ia perguntar o que havia acontecido com eles quando deu um grande espirro.

           Dan abaixou e pegou uma caneca que estava na beira da fogueira e entregou a ela.

           — Tome, isso vai ajudá-la. Você está com a roupa fria e pode estar resfriada.

           — Obrigada!

           Lisa sentou a beira da fogueira e tomou aos poucos o chá. Dan foi até os cavalos e os pegou. Ela apenas ficou a observá-lo.

           Dan era um rapaz robusto e de estatura média. Seu rosto possuía traços bem masculinizados especialmente nas mandíbulas. Seu sorriso era largo e contagiante. Algo nele transmitia uma sensação de tranquilidade e confiança.

           — Dan, para onde você está indo?

           Ele levou os cavalos até a carruagem e pôs os arreios.

           — Eu vou para Whycliffe. E você?

           — Não sei.

           Dan jogou as rédeas dos cavalos sobre a carruagem e voltou para onde Lisa estava.

           — Você não conhece ninguém, por aqui?

           — Não — Lisa pensou por um instante e perguntou — Você conhece Athus Lupus?

           — Se eu o conheço? Eu estou indo para o lugar onde Athus mora! Se você quiser, pode ir com a gente para a Fonte Phoenix.

           — Fonte Phoenix?

           — Você não conhece a Fonte Phoenix?

           Lisa abaixou a cabeça e deu um sorriso acanhado.

           — Entendo — disse Dan — A Fonte Phoenix é o lugar onde os cavaleiros treinam seus poderes e servem o príncipe Gaya. É por isso que eu estou indo pra lá, pra servi-lo.

           — Quem são esses cavaleiros?

           Dan sentou ao lado da garota e olhou para o lago com um brilho nos olhos.

           — Os cavaleiros podem ser qualquer pessoa que esteja disposta a treinar seus poderes e proteger o príncipe. É uma honra pra qualquer um servi-lo.  E você, também quer servi-lo?

           Lisa pegou uma pedrinha perto dos seus pés e jogou-a no lago sem ter certeza do que falava ou pensava.

           — Não sei. Na verdade nem sei como eu cheguei até aqui!

           Dan ficou quieto e pensativo. Depois passou a mão no chão, pegou algumas pedrinhas e foi até o lago. Enquanto jogava as pedras, Zig e Cliffe apareceram atrás de uma árvore carregando nas mãos algumas frutas.

           — Já acordou? — perguntou Zig.

           Lisa olhou para os dois homenzinhos que chegavam com as frutas e voltou-se para Dan.

           — Esses são meus primos, Zig e Cliffe — o rapaz voltou do lago e tirou uma maçã das mãos de Cliffe.

           Cliffe e Zig eram bem parecidos um com o outro. Ambos tinham os cabelos encaracolados de cor loiro-claro. Zig tinha olhos azuis e Cliffe, olhos verdes. Os dois usavam uma blusa branca com uma abertura no peito e estavam com uma espécie de bermuda de cor cinza. Lisa ficou impressionada com o tamanho dos pés dos dois. Eram bem grandes e achatados.

           — Zig e Cliffe, esta é Lisa e ela vai com a gente para a Fonte Phoenix — os dois fizeram uma reverencia a garota que respondeu com outra igual.

           — Coma um pouco Lisa, a jornada vai ser longa até chegarmos a Whycliffe — Dan deu algumas maçãs e umas peras para Lisa — Enquanto você come, nós vamos tomar um banho do outro lado do lago.

           Os três pegaram um bolo de roupas e desceram o lago até desaparecerem entre as árvores. Lisa comeu as frutas e depois foi até a margem. Ela pôs a mão na água morna do lago e resolveu tomar um banho. Após certificar-se de que os rapazes já estavam longe, ela tirou a roupa e entrou nua na água.

           Zig subiu nu em cima do galho de uma árvore e pulou dan- do um mergulho. Os três pareciam crianças levadas fazendo arte, pois jogavam água um no outro, pulavam e riam sem parar. Zig e Cliffe não gostavam muito de banho, mas desta vez eles abriram uma exceção para a água cristalina do lago e esqueceram os velhos costumes Pés Grandes.

           O corpo musculoso de Dan saiu da água e parou à beira do lago. Ele pegou um pano branco, enxugou-se e depois virou-se para os outros.

           — Zig e Cliffe, é melhor vocês saírem e vestirem as roupas, nós temos que estar em Whycliffe ao entardecer — Dan terminou de se vestir e voltou para onde tinha deixado Lisa. Em seguida, seus primos saíram do lago e vestiram suas vestes também.

           Dan passou por entre algumas árvores e parou bruscamente ao ver Lisa saindo despida do lago. Zig e Cliffe chegaram atrás e a viram. O rapaz empurrou os dois com o braço para trás do tronco de uma árvore e os fez ficar lá. Mas os irmãos protestaram e voltaram a espiá-la. Dan colocou seu rosto para fora, a observou por alguns segundos e puxou os dois para trás da árvore novamente. Minutos depois, o rapaz pôs a cabeça para o lado de fora e chamou Zig e Cliffe.

           Lisa estava vestida com uma calça preta e uma blusa aberta no peito. Ao ver Dan voltando com os outros, explicou-se:

           — Eu tirei minha roupa úmida e vesti essa roupa de vocês.

           Espero que não se incomodem.

           — Não tem problema algum — disse Cliffe.

           — Pode usá-las à vontade — falou Zig.

           — Pode ficar com elas. Ao chegarmos em Whycliffe, nós compraremos roupas novas para você.

           — Obrigada.

           Dan juntou as coisas e apagou a fogueira. Zig pegou na mão de Lisa e a ajudou entrar na carruagem. Cliffe pegou nas rédeas dos cavalos e esperou Dan entrar.

           — Vamos, Dan!

           O rapaz com seus pertences em mãos entrou no transporte. Zig sentou perto de Cliffe e pegou uma das rédeas. Os dois bateram as correias contra o pêlo dos animais e fizeram um barulho com a boca. Os cavalos então saíram a galope.

            A grandiosa porta do castelo principal da Fonte Phoenix abriu-se e Goblin entrou. O homenzinho corcunda estava com a roupa rasgada e tinha vários cortes no rosto. Ao entrar, ele caiu no meio do salão. O príncipe Gaya levantou do trono e correu até ele.

           Gaya pegou Goblin no colo e bateu com as mãos no seu rosto.

           — O que aconteceu, Goblin?

           — Algo... deu errado... meu príncipe! ... — Goblin tinha dificuldades para falar devido aos intensos machucados que o homenzinho tinha em todas as partes do corpo — A menina... perdeu-se... no portal!

           Príncipe Gaya olhou para Martius Godric que chegava atrás dele e voltou-se para Goblin.

           — Athus. Onde está Athus, Goblin?

           — Não... sei... meu príncipe!

           Gaya deixou Goblin no chão e voltou-se para Godric.

           — Peça aos guardas para que façam uma busca nas terras vizinhas. Athus e a Bruxa de Fogo precisam ser encontrados!

           — Sim, meu príncipe!

           O Príncipe saiu do salão e deixou Godric. Martius olhou para Goblin espichado no meio do salão e balançou a cabeça. — Algo está terrivelmente errado!

           Entre arbustos espinhosos, um homem saiu completamente machucado e caiu no chão. O manto que usava estava rasgado ao meio. Havia nas costas um sinal de um corte feito por um feitiço poderoso. Suas mãos sangravam e seu rosto estava arranhado e sujo de terra.

           Athus ficou com os olhos abertos por alguns segundos. Suas forças esgotaram-se lentamente. Aos poucos os olhos foram se fechando até que ele perdeu a consciência e desmaiou.

           Zig e Cliffe cantarolavam alegremente uma canção da aldeia dos Pés Grandes.

           Os Pés Grandes eram um povo bastante alegre, brincalhões e muitas vezes insuportáveis. O nome “Pé Grande” era devido aos seus pés, que por serem grandes, sempre estavam descalços. Em termos de poder, seu povo domina a magia da terra e são considerados fracos em relação aos outros domínios mágicos. Entre os habitantes de Aragorn, há certo preconceito com eles por serem criaturas que estão sempre em contato com a terra e por viverem imundos.

           Dan pertence à Tribo do Ar e domina as forças relativas ao vento. Por ser filho de um bruxo, ele também domina a magia usando as partes do corpo. Sua mãe, pertencente à mesma tribo, era uma grande domadora do vento e era conhecida como a senhora do ar. O rapaz a perdera há alguns anos atrás, logo depois da morte de seu pai.

           Dentro da carruagem, Dan tirou uma esfera de ouro com detalhes de manuscritos antigos em prata e bronze do bolso e a fez levitar sobre a palma de sua mão de um lado para o outro. Lisa observava a esfera e os movimentos feitos com a mão direita do rapaz, e naquele momento, tentava entender como ele conseguia fazer aquilo.

           — É impressionante como você a levita!

           A esfera parou de mover- se e desceu até a mão de Dan.

           — É preciso uma técnica para levitá-la — disse Dan entregando a esfera para Lisa — Eu a ganhei da minha mãe antes dela morrer.

           Lisa ergueu o globo de ouro na altura dos olhos e reparou nos manuscritos cuidadosamente talhados.

           — Ela deve ser muito especial pra você!

           — E é.

           Dan a pegou de volta, deu uma última olhada e guardou-a no bolso. Em seguida, o rapaz olhou pela janelinha da carruagem e reparou que eles ainda estavam no Bosque das Traias.

           O bosque das Traias era cercado de perigosos obstáculos que poderiam atrasar a viagem dos quatro. O caminho era cheio de buracos que chacoalhavam a carruagem, em um deles, a roda traseira direita caiu e não saiu. Zig e Cliffe desceram para ver o que tinha acontecido.

           — A roda caiu num buraco fundo, vamos ter que empurrar! — disse Zig a Dan.

           Lisa também saiu, sentou em cima de uma pedra e ficou olhando os três rapazes fazerem força para empurrá-la. A roda da carruagem saía do buraco e voltava novamente. A menina levantou- se e resolveu ajudá-los. Os quatro empurraram juntos e tiraram a roda do buraco.

           Dan enxugou o suor da testa e sentou sobre um tronco de árvore caído no chão.

           — Tivemos sorte de tirar a roda do buraco e de não sermos atacados pelas Traias!

           — O que são Traias? —perguntou Lisa.

           Zig e Cliffe subiram sobre a carruagem e pegaram nas rédeas dos cavalos. Ambos viraram-se para Lisa com um sorriso malicioso no rosto.

           — As Traias são criaturinhas nada amigáveis...

           — ... São de hábitos noturnos...

           — ... Mas geralmente atacam ao dia também...

           — ... Elas atacam você...

           — ... E comem a sua carne!

           Zig e Cliffe falavam um interrompendo o outro, dando continuação à fantasia das Traias comedoras de carne.

           Os Pés Grandes eram bons em contar histórias para fazerem

           as pessoas temerem algo, especialmente se elas não conhecessem a criatura ou o lugar ao qual falavam.

           — Não acredite neles, Lisa. As Traias não comem carne. Na verdade elas comem as roupas das vítimas deixando elas do jeito que vieram ao mundo.

           — Do jeitinho...

           — Peladinhas!

           Lisa riu dos dois Pés Grandes e entrou na carruagem.

           Os cavalos marchavam e levantavam poeira ao longo do bosque. Logo à frente, a estrada dividia-se em mais três estreitas. Zig e Cliffe olharam para os três caminhos e arregalaram os olhos.

           — Qual delas Cliffe?

           — Não sei Zig!

           — Deve ser a do meio Cliffe!

           — Acho que é a da direta Zig!

           — Então... vamos entrar na da direta Cliffe!

           Os cavalos entraram na estrada da direita e três horas depois retornaram ao ponto inicial pela estrada da esquerda.

           — Nós já não passamos por aqui? — perguntou Dan para Lisa.

           Dan saiu da carruagem e parou na frente dos cavalos.

           — Zig e Cliffe o que vocês fizeram? Nós já passamos por aqui!

           Os dois irmãos trocaram olhares de confusão e depois acusaram um ao outro.

           — A culpa foi do Cliffe, Dan!

           — A culpa foi sua Zig!

           — Parem os dois! Por qual caminho vocês passaram pela primeira vez?

           Zig e Cliffe apontaram o dedo para a estrada da direita.

           — E qual estrada vocês voltaram?

           Ambos apontaram para a esquerda.

           — Então agora entrem na estrada do meio. Por culpa de vocês nós vamos chegar a Whycliffe ao anoitecer. Só espero que o barco para a Fonte Phoenix se atrase, caso contrário vamos ter que alugar um.

           Dan entrou na carruagem. Os Pés Grandes bateram as rédeas no pêlo dos cavalos e saíram discutindo um com o outro.

            O  sol estava se pondo quando a carruagem parou na saída do bosque. Zig e Cliffe saíram em busca de comida, enquanto Dan e Lisa juntavam alguns gravetos e folhas secas para fazerem a fogueira.

           — Como vamos acender o fogo? — perguntou Lisa.

           — Assim.

           Dan aproximou o rosto dos gravetos, juntou as mãos ao redor da boca e soprou. Uma centelha surgiu em um dos pedaços de lenha e depois se espalhou para os outros. Lisa deu um sorriso afável para o rapaz.

           — Eu aprendi isso com meu pai. Ele era bruxo e usava a magia com o corpo.

           — Eu pensava que os bruxos usassem uma varinha mágica...

           Dan deu uma risadinha para Lisa e explicou a ela.

           — Na verdade existem bruxos que usam uma varinha para fazer magia, mas existem outros bruxos que usam o corpo para fazerem feitiços. As partes mais usadas são as mãos.

           — Deve ser bem legal fazer magia!

           — A magia é bem divertida, mas quando não é bem usada ela pode se tornar muito perigosa.

           Dan sentou ao lado da fogueira e deixou seus pensamentos voltarem ao passado. Por um instante a imagem do seu pai veio a sua mente. Ele sorriu e virou-se para Lisa.

           — Meu pai me contava que há muito tempo atrás existiu uma bruxa tão poderosa quanto à própria Fênix. Ele dizia que certa vez ela derrotou a Fênix e transformou o fogo dela numa espada dourada e aprisionou os seus poderes numa varinha mágica que junto com a espada receberam o nome de Firewitch’s.

           Os olhos do jovem brilhavam ao falar da tal bruxa. Um sorriso de admiração surgiu em seu rosto iluminando-o.

           — Eu quero um dia poder conhecer a reencarnação dela e mostrar meus poderes!

           Enquanto Dan falava, Lisa observava o rosto belo do rapaz. Ela nunca vira tanta beleza e perfeição numa pessoa. Os traços dele mexeram com ela e a fizeram pensar em algo que logo depois descartou da cabeça.

           — Ela tem algum nome? — perguntou Lisa.

           — Não sei bem. Mas meu pai a chamava de Bruxa de Fogo!

           Você é uma bruxa, Lisa!

           A Bruxa de Fogo!

           Lisa desfez o sorriso no rosto e hesitou em dizer a Dan sobre o que Athus e Anne haviam lhe contado. Por fim decidiu não falar nada, naquele momento ela só desejava encontra-los e pedir explicação para tudo que aconteceu. Ele ainda não pode saber sobre mim!

           Martius Godric dispensou o comandante da guarda do príncipe e dirigiu-se à sala real.

           A sala real era grande e dourada. No centro dela havia um trono dourado que tinha uma cabeça de dragão como detalhe nos braços. Havia também algumas armaduras nos quatro cantos do compartimento e uma estátua de um grifo próximo ao trono.

           O príncipe Gaya estava de frente para as janelas com um ar de preocupação. Godric aproximou-se dele e fez uma reverência antes de dirigir- lhe a palavra.

           — Está preocupado, meu príncipe?

           Gaya fez um movimento com os dedos e uma mágica fechou a janela e a cobriu com as cortinas brancas da Fonte Phoenix.

           — Durante todo esse tempo eu esperei ansioso para a chegada da reencarnação de Melody e agora... talvez eu não a conheça!

           — Não fale isso, meu príncipe! Os cavaleiros já estão fazendo uma busca pelas terras vizinhas. Amanhã de manhã, eles já devem estar em Whycliffe.

           O príncipe ergueu a cabeça e suspirou forte. Por um instante seus olhos encheram-se d’água e uma tristeza o tomou.

            

           Zig e Cliffe chegaram com um coelho e algumas frutas nas mãos. Dan preparou o pequeno animal e pôs para assar na fogueira. Meia hora depois, os Pés Grandes devoraram quase sozinhos, a refeição. Lisa comeu apenas as frutas, não quis a carne.

           Dan abriu a carruagem, tirou as coisas de dentro e preparou-a para Lisa dormir.

           — Mas e vocês? — perguntou Lisa.

           — Não se preocupe, nós dormiremos aqui fora. Vamos nos virar sozinhos!

           A garota entra na carruagem. Antes de fechar a porta, chama Dan, e o beija no rosto, lhe desejando boa noite.

           — Obrigada por tudo que está fazendo por mim!

           Dan retira-se acanhado. Ao sentar perto da fogueira, Zig e Cliffe riram da sua cara. Ele jogou uma pedra nos dois e deitou no chão enrolado por um manto. Seu rosto estava vermelho.

           Lisa deitou-se e pensou em tudo que havia acontecido. A forma como as coisas deixaram de ser simples como antes e viraram uma espécie de pesadelo sem fim a atormentou por alguns instantes. Ela desejou que nada houvesse acontecido e que o Sétimo Espírito não existisse em seu corpo. De súbito, uma lembrança árdua de sua tia veio a sua cabeça, como se as duas não se vissem há muito tempo. Era estranho como a imagem de Anne sorrindo para ela parecia ser tão longínqua e tão embaçada.

           A menina fechou os olhos e tentou dormir, mas uma pergunta atormentou-a. Onde está você Anne?

           Uma Traia pousou numa árvore perto de Zig e passou os olhos amarelos pelos visitantes. Era uma criaturinha violeta de orelhas caídas e grandes olhos arregalados, seu rosto era todo enrugado e seus dentes mais finos do que um espinho de roseira. Além dos seis pares de asas semelhantes à de uma libélula. A Traia levantou voo e sumiu entre as árvores batendo as asas numa grande velocidade.

           Cliffe estava de barriga pra cima roncando sem parar. Uma Traia pousou sobre sua barriga e aproximou-se de sua boca. Cliffe deu uma baforada na cara dela. A criaturinha começou a tossir e fazer cara feia. O Pé Grande rolou para o lado e assustou-a. A mesma voou para um pé de árvore onde havia várias outras.

           Outra Traia pousou perto da cabeça de Zig. Ela aproximou-se do cabelo encaracolado e subiu na cabeça. Seus pés pequenos enroscaram no cabelo e ficaram presos. A criaturinha tentou voar e não conseguiu. Ela puxou os pés com as mãos e acabou prendendo-as no cabelo.

           A pestinha aproximou-se apreensiva de Dan, chegou perto da sua orelha e mordeu-a. Ele levantou gritando e consequentemente acordando Zig e Cliffe. Dan passou a mão na orelha e jogou a criaturinha no chão.

           De súbito uma nuvem de Traias saiu das árvores e atacou os três. Uma delas segurou na cabeça da outra que estava pre- sa no cabelo de Zig e puxou-a.

           — Sai, sai! — Zig gritava batendo a mão na cabeça e apertando as criaturinhas contra o cabelo, prendendo-as mais ainda.

           Mais de dez atacaram Cliffe e rasgaram a sua blusa. Uma delas mordeu no pano da calça e puxou com os dentes deixando um buraco nela.

           Lisa dormia profundamente quando uma Traia veio voando rapidamente em direção à carruagem. No entanto, ela não viu o vidro da janela e bateu de cara nela, acordando a garota.

           Dan pegou um pedaço de pau e começou a bater nos pequenos demônios que vinham em sua direção. Zig corria desesperado de um lado para o outro com quatro das criaturinhas presas em seu cabelo. Por fim, Cliffe pegou um tronco pequeno e bateu na cabeça dele. As Traias saíram tontas e Zig caiu no chão.

           Uma das pestinhas batia com a mão na janela da carruagem trincando o vidro. Lisa gritava feita uma louca desesperada. Dan ouviu os gritos e correu em seu auxílio. Ao chegar perto da porta, o rapaz deu uma paulada na cara da Traia e a jogou longe.

           As criaturinhas vinham velozmente na direção de Cliffe. Ao aproximarem, acertava todas elas com um pedaço de pau. Uma das Traias arremessadas pela paulada bateu na cara de Zig, que acordava do desmaio.

           As Traias atacavam as roupas de Dan de uma vez só. O rapaz dava pauladas para todos os lados.

           Um grupo começou a morder o pêlo dos cavalos amarrados deixando-os irritados. Uma Traia levou uma paulada na cara e voou contra um cavalo que deu um coice em suas costas lançando-a contra o tronco de uma árvore.

           O rapaz observou que um grupo delas brigava por um pedaço de graveto queimado da fogueira. Ele então pensou por um instante e sorriu.

           — Então elas gostam de luz!

           Dan esticou o dedo indicador e uma luz pequena acendeu.

           — Venham Traias! Atrás da luz!

           O jovem saiu correndo em direção a Zig e Cliffe seguido pelas criaturinhas, encantadas com a claridade. Ao chegar perto da fogueira, Dan levantou o dedo para o alto e jogou a luz pro céu. Os pequenos demônios deixaram-nos em paz e seguiram a bolinha luminosa.

           Quando a luz estava bem alta e as Traias em volta dela, Dan sorriu e gritou.

           — Dissiliunt!

           A bolinha aumentou de tamanho e explodiu, matando todas elas.

           Zig despertou novamente e olhou ao seu redor.

           Dan estava com uma das mangas da blusa rasgada, Cliffe sem uma das pernas da calça e com a bunda pro lado de fora e Zig sem blusa e com o cabelo arrepiado.

           Lisa saiu de dentro da carruagem olhando para os lados para ver se não havia mais nenhuma Traia. Ela olhou para o céu e sorriu para o gentil rapaz.

           Um par de asas tostadas caiu sobre o nariz de Zig. Ele as soprou e caiu para trás.

           O campo das Fowls era plano e coberto por uma grama alta. Havia algumas árvores distantes uma das outras que lhes faziam sombras.

           As Fowls eram aves incapazes de voar de quase dois metros de altura. Possuíam poucas penas na cabeça — geralmente eram peladas — e um rabo bem curto. Eram dóceis e frequentemente eram utilizadas como meio de transportes em algumas regiões secas, por fazerem grandes viagens sem precisar beber água.

           Lisa estava com a cabeça pro lado de fora da janela, encantada com as Fowls. Cliffe tentava esconder sua cabeça do sol ardente tampando-a com as mãos quando avistou ao longe o mar. Cliffe cutucou Zig e começou a gritar:

           — Whycliffe! Chegamos a Whycliffe!

           Dan escutou os gritos dos dois e pôs a cabeça pro lado de fora da porta.

           — Whycliffe? — Dan abriu um sorriso grande ao ver o mar e algumas caravelas saindo.

           O rapaz entrou novamente dentro da carruagem e ficou sério.

           — O que foi Dan? Não está feliz porque chegamos a Whycliffe? — indagou Lisa.

           — Nós perdemos a embarcação que nos levaria para a Fonte Phoenix.

           — Não se preocupe, deve haver outras embarcações que vão para a Fonte Phoenix!

           — Você está certa. Estou me preocupando a toa.

           Dan sorriu levemente para Lisa, que correspondeu com um sorriso contagiante.

                      Whycliffe é uma pequena e movimentada cidade portuária.

           As casas da cidade, a maioria delas, eram cobertas por palhas de coqueiros silvestres que protegiam os moradores contra a chuva. As pessoas eram bem alegres e movimentavam-se pela cidade comprando e vendendo produtos. A beira do porto havia milhares de comerciantes que vendiam produtos roubados ou adquiridos de forma clandestina.

           Dan levou Lisa a uma loja de roupas e fez questão de comprar vestes apropriadas para serem usadas na Fonte Phoenix. Entre muitas delas, Lisa comprou uma blusa branca, um espartilho preto e alguns mantos de cor preta, azul, verde e vermelha; como exigia a Fonte Phoenix.

           Zig e Cliffe levaram a carruagem até um amigo deles e deixaram-na com ele. Ao voltarem para o porto, foram à pro- cura de embarcações que fossem para a Fonte Phoenix.

           Lisa e Dan retornaram das compras e sentaram sobre os baús de roupas. Atrás dos dois, um homem de caráter duvidoso estava escorado numa parede cutucando as unhas pretas com um punhal e os observando atentamente. Ele estava usando um lenço preto na cabeça e vestia uma espécie de colete branco encardido. O homem era de estatura média, magro e moreno claro.

           Um vento passou contra as costas de Lisa e levantou o cabelo dela. O homem viu uma marca no pescoço da menina e parou de cutucar a unha com o punhal.

           — Dan, não há nenhuma embarcação que vai para a Fonte Phoenix hoje — disse Cliffe chegando tristonho.

           — As que vão, só partirão semana que vem — disse Zig.

           O homem escutou a conversa e saiu entre as pessoas.

           — É o que me faltava! — disse Dan sem saber o que fazer — E agora, como vamos para a Fonte Phoenix?

           — Deve haver alguma embarcação de aluguel por aqui! — disse Lisa.

           — Nós já verificamos. Todas elas estão alugadas — disse Zig.

           Whycliffe contava com muitas embarcações que partiam para os diversos reinos de Aragorn. Nessa época do ano, os barcos levavam, em sua maioria, pessoas para a Fonte Phoenix, deixando o local quase sem embarcação alguma.

           Dan já esperava que isso fosse acontecer. O fato de Zig e Cliffe terem entrado no caminho errado no bosque das Traias fez com que eles se atrasassem um dia, o que seria quase imperdoável para um futuro guardião do príncipe Gaya.

           O rapaz não acreditava que isso estava acontecendo com ele. Esse era o seu primeiro ano na Fonte Phoenix e ele desejava ser o mais pontual possível. Porém, era impossível esse desejo ser realizado. Por fim, ele caiu sentado sobre um dos baús e pôs o rosto entre as mãos tentando buscar outra solução mais viável.

           Capitão Barba Negra era um pirata repugnante e sanguinário. Seu currículo como pirata era extenso: era mestre em saquear embarcações e perito em dominar ilhas habitadas no meio do nada.

           Barba Negra tinha uma das pernas comida por um íction gigante, uma das mãos amputada e um olho furado por um grifo da Tribo do Ar. Ele possuía uma barba negra imunda, repleta de baratas que andavam entre os pêlos de um lado para outro. Seus olhos eram castanhos escuros e sua pele era morena, oleosa e um pouco enrugada pelo efeito do sol quente em alto mar.

           O capitão chegou por trás de Zig e pôs a mão de gancho no seu ombro. O pé grande olhou para trás e afastou-se assustado do pirata.

           — Eu estava aqui por perto e ouvi vocês dizerem que estão indo para a Fonte Phoenix, não é mesmo? — perguntou o pirata.

           A voz de Barba Negra era grossa e temível. Lisa notara nele uma expressão nefasta que não a agradou.

           — Sim, estamos! — respondeu Dan.

           — Eu estou indo para lá agora. Se quiserem ir comigo, eu faço um preço especial para vocês — Barba Negra fitou os olhos em Lisa e mostrou seus dentes podres ao sorrir.

           Dan abriu um largo sorriso e adiantou-se ao pirata.

           — Se puder nos levar...

           — Claro que posso! Será uma honra levar pessoas tão... distintas, para a Fonte Phoenix — Lisa olhou para o sorriso de Barba Negra e estremeceu — Zinsk, ajude-os a carregar os baús para dentro da caravela.

           O homem com o lenço preto na cabeça, que os havia observado, pegou dois baús e começou a carregar. Cliffe e Zig olharam desconfiados para o pirata e por fim, resolveram ajudar Zinsk a levar as bagagens.

           Dan aproximou-se do pirata e tirou algumas moedas de ouro do bolso.

           — Quantos o senhor vai cobrar pela viagem?

           Barba Negra virou-se para o garoto com o gancho enrolado na barba imunda e disse:

           — Não se preocupe meu rapaz, quando chegarmos a Fonte Phoenix nós combinaremos o preço! — Barba Negra aproximou de Lisa e esticou o gancho para ela — Por favor, me acompanhe bela dama!

           Lisa olhou séria para Dan e pegou no gancho com repugnância.

           O rapaz pegou o último baú que restara e seguiu-os.

           A caravela era um antigo navio de casco alto à popa e baixo avante, aparelhado com quatro mastros. No navio havia trinta homens mal vestidos e mal cheirosos. Todos eles possuíam um bom físico, exceto Zinsk que era magro e fraco. A maioria deles cresceu dentro de um navio e aprenderam com a vida as artes do roubo e das trapaças. Barba Negra orgulhava-se de ter ensinando a cada um deles a melhor forma de saquear um navio e deixá-lo em pedaços. O capitão era mais do que um professor para esses homens pouco inteligentes, ele era como um pai para todos.

           O convés inferior era imundo e cheio de ratos e baratas. Barba Negra levou os visitantes até um quarto escuro, cheio de parafernálias e os instalou lá.

           — Não é um quarto cinco estrelas, mas é o melhor do navio — explicou-se Barba Negra — Eu até arrumaria um quarto separado para você minha cara, se houvesse mais quartos em todo o convés!

           Lisa passou os olhos sobre um canto do convés e avistou cinco ratos correndo um atrás do outro.

           — Não se preocupe, esse quarto... está bom pra mim!

           O pirata aproximou-se de Lisa e pegou na sua mão.

           — Se sentir-se só, ou precisar de companhia, é só me procurar, está bem?

           A jovem retirou a mão do gancho de Barba Negra antes que ele pudesse beijá-la.

           — Não se preocupe, estarei bem acompanhada com os rapazes, Capitão!

           O homem fez uma reverencia e saiu observando os Pés Grandes. Após sair, Zig pôs a mão no ombro de Lisa e riu.

           — Acho que o Capitão Barba Negra Fedorenta está apaixonado por você!

           Lisa tirou a mão de Zig do seu ombro e reprimiu-o.

           — Isso não tem graça! 

           As ondas batiam contra a proa do navio e o balançava num movimento de ida e volta que deixava o Pé Grande enjoado.

           Dan chegou por trás de Zig e bateu em suas costas.

           — Que é isso Zig, um mar desses, fazendo você ficar enjoado?

           — Você fala isso por que não é você que já jogou toda a comida do almoço no mar!

           Zig estava amarelo, quase adquirindo uma tonalidade esverdeada. Os seus olhos estavam fundos e brancos. Num balançar violento do navio, ele pôs a cabeça para o lado de fora e vomitou.

           Dan fez uma cara feia e saiu de perto. Ao passar por um papagaio de cabeça vermelha sobre um poleiro perto do mastro principal, ele ouviu-o falar.

           — Trouxa! Prutaco!

           O rapaz não deu atenção ao papagaio e sentou perto de um homem moreno que enrolava um cigarro de papel com pólvora.

           O homem era alto e robusto. Ele tinha uma cicatriz no rosto provocada por um corte duma espada e uma tatuagem de uma ancora envolvida por uma sereia nua no bíceps direito.

           — Esse papagaio é do Capitão? — perguntou Dan observando-o colocar pólvora no papel.

           — É sim — disse o homem enquanto lambia o papel e o enrolava — Se ele estiver importunando você é só chamá-lo de marica que ele cala a boca.

           Dan olhou para o papagaio e ficou observando ele dançar e cantar.

           — Trouxa! Prutaco! Meu capitão mandou um marujo pro mar! Olê, olê, olá! Homem ao mar, prutaco!

           O homem terminou de enrolar o cigarro e o pôs na boca. Ao acendê-lo, o cigarro explodiu enchendo o rosto dele de fumaça. Dan o olhou surpreso e tentou segurar uma gargalhada. — Droga! Pensei que a pólvora poderia substituir o fumo! — exclamou o homem enquanto tirava a fumaça do rosto.

           O jovem passou a mão sobre a boca para esconder um riso e depois se voltou para o pirata.

           — Aqui nesse navio não tem nada pra gente se divertir, não? — perguntou.

           O homem olhou para Dan e sorriu, depois ergueu a voz e gritou para os outros piratas.

           — Oh pessoal, o rapazote aqui quer diversão!

           Um dos marujos largou o que estava fazendo e gritou de volta para o homem.

           — Ele ainda é um franguinho pra ter diversão, Albert. O homem levantou e gritou novamente.

           — Que é isso pessoal, vamos dar uma chance pra ele!

           Os marujos ficaram quietos e de súbito começaram a gritar e fazer uma roda ao redor de Dan e do homem que chamavam de Albert.

           — Vamos nos divertir jogando ele para os íctions! — gritou um dos piratas.

           — Não, o pendura no mastro e vê quanto tempo ele resiste sem comer! — gritou o outro.

           Albert passou a mão na cabeça raspada e tirou uma espada da mão de um dos piratas.

           — Já sei! Que tal me desafiar num combate de espadas. Aquele que perder escolhe entre ser comido por um íction ou ser comido... por um íction! — Albert soltou uma gargalhada acompanhada dos outros piratas.

           Dan tomou a espada de um dos piratas e apontou para Albert.

           — Será um prazer, marujo!

           Os piratas foram à loucura quando o rapaz aceitou o desafio. No convés inferior, Lisa e Cliffe escutaram os gritos e subiram para o convés superior. Os dois chegaram juntos com Barba Negra que também não sabia o que estava havendo.

           — O que está acontecendo aqui? — gritou o capitão.

           — Sujou companheiro! Prutaco!

          Barba Negra fechou a mão e deu um soco no bico do papagaio. Albert se aproximou e explicou-se.

           — Um desafio, hein? — o capitão coçou sua barba com o gancho, tirou sua espada e ergueu-a — Então que comece o desafio! Aquele que perder morre comido pelos íctions!

           Lisa saiu entre os piratas e chegou perto de Zig.

           — O que é um íction?

           — É uma serpente marinha de cem metros de comprimento com dentes super afiados que come carne, especialmente humanas.

           A garota ficou assustada e correu até Dan.

           — Não faça isso, Dan! Se perder você vai ser comido por um íction gigante!

           — Eu sei! — respondeu Dan friamente.

           — Então por que não desiste?

           — Por que eu vou ganhar!

           Dan era otimista e não gostava jamais em pensar numa derrota. Lutar com um pirata não seria algo tão extraordinário para ele já que em tempos passados, enfrentara coisas piores. Lisa, no entanto, não gostava nada da ideia de ser comida por uma serpente marinha de cem metros de comprimento.

           Albert era relativamente alto e forte em relação ao rapaz. Seus bíceps eram o dobro do braço de Dan, e a espada que ele usava era maior e bem mais resistente. Ele, aparentemente, não tinha a mínima chance contra o pirata.

           Os dois começaram a andar em círculos apontando as espadas um para o outro. Dan fitou o olhar nos olhos de Albert e não hesitou em ser o primeiro a atacá-lo. Mas ele recuou para o lado e deu uma joelhada em sua barriga.

           Dan tentou esconder a dor e levantou com certa dificuldade. Albert andava em círculos quando o atacou. As duas espadas bateram uma na outra e começaram uma melodia metálica que atormentava Lisa.

           O pirata prendeu sua espada entre a espada do jovem rapaz e tirou-a de sua mão. Em seguida, chutou sua perna e o derrubou. Dan passou a perna nos pés de Albert, derrubando-o também. O garoto levantou rapidamente, pegou sua espada e armou-se para atacar. Albert levantou do chão e atacou-o.

           A batalha das espadas foi travada em todo o navio. Dan foi empurrado contra o mastro principal e desviou-se rapidamente da espada de Albert. As duas espadas bateram-se uma na outra e voaram para longe. O pirata fechou o punho e deu um soco no rosto de seu adversário.

           — Dan! — Lisa gritou e tentou intervir no desafio, mas foi impedida por Cliffe.

           Dan chutou entre meio as pernas de Albert e depois deu um soco no seu nariz. Enquanto ele estava caído no chão, Dan pegou sua espada e voltou para o meio da roda de piratas enlouquecidos aos gritos.

           Albert levantou e retirou o sangue com as mãos que saía do seu nariz. Zinsk pegou a sua espada e jogou para o amigo. Dan recuperou um pouco do cansaço e o atacou. Os dois se atacaram. A espada do pirata foi jogada ao mar. Dan deu um arrastão em Albert, derrubou-o e apertou a espada no seu pescoço.

           — Acabou, marujo!

           Lisa, Zig e Cliffe pularam de alegria e abraçaram um ao outro. Os piratas estavam todos em silêncio. De súbito ergueram as espadas para o alto e começaram a gritar.

           — Íctions! Íctions!

          O rapaz olhou para o pirata derrotado e jogou sua espada no mar. Em seguida deu a mão para ele.

           — Levante companheiro, aqui nós somos todos iguais. Somos verdadeiros vencedores!

           Albert o fitou com os olhos cheios d’água e abraçou-o fortemente. Os piratas vaiaram os dois e foram contidos por Barba Negra.

           — Calem-se! — O capitão virou-se para Dan — Você venceu o desafio e poupou um pirata de ser comido pelos íctions. Isso prova seu coração nobre com nossa raça. Se fosse outro, Albert estaria morto! — Barba Negra esticou a mão de gancho para Dan — Parabéns rapaz!

           Ele apertou o gancho do capitão e voltou-se para Lisa. Os Pés Grandes correram e o abraçaram.

           — Valeu Dan!

           — Eu não sabia que manejava uma espada!

           Lisa sorriu para Dan e estendeu a mão.

           — Parabéns, coração nobre!

           Dan sorriu acanhado para a jovem e deixou-se ser levantado por Zig e Cliffe.

           Barba Negra foi até um barril cheio de rum e bateu uma caneca grande de madeira na torneira, quebrando-a e entornando a bebida no piso do navio.

           — Vamos presentear o vencedor com um bom rum!

           Cliffe e Zig jogaram Dan sobre os piratas e correram até os barris. Os piratas deram uma caneca cheia de rum para Dan e o jogaram para o alto.

           — Dan é um bom companheiro! — cantavam os piratas — Dan é um bom companheiro! Dan é um bom companheiro! Ninguém pode negar!

           Lisa sentou sobre um barril e ficou rindo para o rapaz. Por um instante, um sorriso largo apareceu em seu rosto quando um pensamento veio a sua mente. Ele é fantástico!

           Os piratas bebiam e cantavam. Alguns, já bêbados, desequilibravam da beira do navio e caíam no mar. Os irmãos Pés Grandes haviam bebido até caírem bêbados no chão. Até mesmo o papagaio do capitão estava chapado!

           Barba Negra viu Lisa sozinha na beirada do navio e aproximou dela. A luz da lua cheia iluminava o corpo da jovem e exaltava ainda mais a sua beleza. Um vento batia contra o seu rosto e erguia seu cabelo. O capitão escorou-se na beirada junto a ela.

           — O mar é uma maravilha, você não acha?

           — É sem dúvida, Capitão!

           Lisa jogou uma mecha de cabelos para trás da orelha e olhou para a perna de pau de Barba Negra.

           — Como você perdeu sua perna?

           Ele olhou para a lua e suspirou.

           — Foi nos mares da Terra da Água. Eu era jovem naquela época e não sabia os perigos do mar. Estava pescando sozinho num barco quando algo puxou forte no meu anzol. Eu sabia que não era um peixe qualquer, estava muito pesado. Quando notei que não era um peixe comum já era tarde, o íction bateu contra o barco e eu caí no mar. Eu vi entre as águas claras os dentes afiados da serpente vindo em minha direção. Tentei nadar o máximo que pude, mas a desgraçada me puxou pela perna e me arrastou pro fundo. A minha sorte foi que os dentes afiados dela cortaram minha perna e eu pude subir novamente. Sabe Lisa, os íctions só atacam uma única vez. Se eles conseguirem um pedaço de carne, não importando o tamanho, eles te deixam em paz.

           — Eu nunca pensei que existisse uma criatura carnívora que se contentasse apenas com um pedaço de carne... ou perna!

           Barba Negra abaixou a cabeça e suspirou sem que Lisa percebesse.

           — É por isso que eu vivo no mar — Barba Negra encheu os olhos de um brilho mais forte do que o da lua e disse — Eu quero poder um dia encontrar o íction que comeu minha perna e mostrar pra ele que eu também me contento com um pedaço de carne, não importando o tamanho.

           Lisa olhou surpresa para o capitão e não hesitou em perguntar:

           — Como pretende fazer isso? Existem tantos íctions pelo mundo!

           — Não como aquele! — um sorriso largo surgiu no rosto do pirata — Antes dele cortar minha perna, eu furei o olho dele com meu arpão. Foi uma troca justa, um olho por uma perna. Mas eu não me contento só com essa troca!

           Barba Negra estava louco. Ninguém troca uma perna por um olho, não eu! Lisa tirou a atenção do pirata e passou a observar o brilho da lua refletido nas ondas calmas do mar. Seus cabelos balançaram e chamaram a atenção do capitão.

           — Você tem uma bela marca de nascença, menina!

           — Marca? — perguntou Lisa surpresa.

           Barba Negra levantou os cabelos dela com o gancho e passou a mão no seu pescoço.

           — É muito bonita mesmo!

           A marca parecia um desenho inacabado de um triângulo dentro de um semicírculo, com o início de um desenho de um olho.

           Lisa tirou a mão do capitão de seu pescoço e saiu de perto do pirata. Logo ao sair, ele deu um pequeno sorriso e alisou sua barba com o gancho.

           O comandante das Forças do Príncipe, William Fadness, usava um manto vermelho e uma proteção de couro nas pernas e nos braços. Em sua cintura uma espada estava pendurada. Ele entrou no salão real e ajoelhou-se diante do príncipe Gaya.

               Godric, que aconselhava o príncipe naquele momento, desviou o olhar para o comandante, assim como Gaya também o fez. Fadness estava ofegante e com ar de que, talvez, não trouxesse as notícias que desejavam.

           — Tem alguma notícia, Fadness, sobre o paradeiro da menina?

           — Não, meu príncipe. Mas trouxe notícias de seu agrado.

           — Então diga — Gaya parecia curioso para saber o que o comandante descobrira.

           — Encontramos o senhor Lupus na saída do bosque espinhoso. Ele estava caído com ferimentos graves. Nós o levamos para a enfermaria do castelo, meu príncipe.

           Gaya levantou do trono sorridente e saiu do salão seguido por Godric. O comandante ergueu-se novamente e fitou o olhar em Goblin parado frente à janela do salão.

           — Ele corre risco de vida, comandante? — perguntou o homem corcunda cheio de cicatrizes.

           — Não, senhor! Os ferimentos já foram cuidados. Depois de amanhã ele já deve voltar aos seus afazeres dentro do castelo. Com licença!

           O comandante retirou-se deixando Goblin em frente à janela. O homenzinho corcunda levantou a sobrancelha e mudou de expressão. Estava pensando em algo.

           Cliffe voltava bêbado para o convés quando se perdeu entre os corredores do navio e entrou no convés inferior. O Pé Grande abriu uma porta e entrou. O quarto estava bastante escuro, não dava pra ver nenhum palmo à frente. Ele tropeçou em algo e caiu atrás de umas caixas.

           Os primeiros raios do sol entraram por uma fresta do navio e bateram em seus olhos. O Pé Grande abriu-os com dificuldade e levantou. Sua cabeça parecia estourar de tanta dor.  Cliffe olhou ao seu redor e notou que não estava no quarto onde estavam os outros. O quarto era bem grande, parecendo um estábulo para animais. Havia algumas caixas à direita e alguns barris nos fundos. No meio do quarto havia duas coisas grandes amarradas numa corrente. Ele aproximou-se delas, mas ouviu alguém conversando e escondeu-se atrás de alguns barris.

           Zinsk e outro homem entraram segurando duas cestas cheias de peixes, conversando.

           — Ainda não sei por que o capitão mantém esses grifos aqui no convés! — disse Zinsk.

           — Ainda mais depois de um deles ter furado o seu olho! — disse o outro.

           — Eu conheço bem o capitão! Ele vai levar esses grifos da Terra do Ar para uns mercadores que compram essas criaturas. Eles pagam uma fortuna por um desses!

           Os dois piratas jogaram de longe os peixes para os dois grifos. Eles levantaram e tentaram atacar os dois piratas, mas as correntes nos seus pescoços os impediram. Zinsk e o homem saíram do quarto e fecharam a porta.

           Cliffe saiu de trás dos barris, pegou um peixe no chão e aproximou dos grifos. Os dois estavam nervosos e tentaram atacá-lo.

           — Calma bichinho, eu não vou fazer mal! — Cliffe aproximou de um dos grifos e colocou o peixe no bico da ave.

           Os grifos são criaturas que tem o corpo metade águia, metade leão e possuem orelhas de cavalo. Geralmente são inofensivos, mas quando estão furiosos, podem ser criaturas sanguinárias.

           O grifo abaixou a cabeça e Cliffe coçou as suas penas. O Pé Grande tentou aproximar do outro, mas o mesmo tentou atacá-lo. Cliffe afastou pra trás e saiu cauteloso do convés.

           Zig andava meio duro pelo corredor do convés superior, depois de ter dormido dentro de um barril de rum. Suas costas estavam moídas e pareciam que jamais voltariam ao normal. Ao passar pelo convés do capitão, ele escutou dois homens conversarem. Um era o Barba Negra e o outro era Zinsk.

           — Capitão o que o senhor vai fazer com os rapazes?

           — Depois que eu entregar a menina para o Mestre e pegar nossa recompensa, nós jogaremos os rapazes para os ictions!

           — Pobres coitados, eles pensam que estamos levando eles para a Fonte Phoenix, mas nem imaginam que a Ilha das Sombras os espera.

           Zinsk e Barba Negra deram uma gargalhada e brindaram o plano com rum. Zig saiu correndo pelo convés. Precisava contar tudo a Dan.

           Lisa levantou os cabelos e virou de costa para Dan.

           — Dan, eu tenho alguma marca de nascença no pescoço?

           O rapaz olhou para a tal marca e estranhou a pergunta.

           — Tem, por quê? Você nunca a viu, não?

           Lisa soltou os cabelos e virou-se.

           — Ontem o Barba Negra me disse que eu tinha uma marca no pescoço. É estranho Dan, eu não tenho marca de nascença nenhuma em meu corpo! Como pode aparecer uma assim de repente?

           Dan ia dizer algo quando Zig entrou no convés quase sem fôlego.

           — O que aconteceu Zig pra você estar assim? — perguntou Dan.

           Zig escorou num barril e puxou o fôlego.

           — O Barba Negra... — o pé grande tomava fôlego enquanto falava — ele não está indo.... para Fonte Phoenix!

           — Como assim?

           — Eu o ouvi conversando com o Zinsk. Barba Negra está levando Lisa para um tal de Mestre na Ilha das Sombras. Depois ele pretende nos dar para os ictions comerem.

           Dan levantou de cima do baú, que estava sentado e bateu a mão num barril ao seu lado.

           — Maldito! Ele está nos enganando!

           — Mas porque ele está me levando para a Ilha das Sombras? — perguntou Lisa.

           Zig engoliu o fôlego e respondeu:

           — Eu não sei o motivo, mas ele vai trocá-la por uma recompensa.

           — Recompensa?

           Dan olhou assustado para Lisa. Cliffe surgiu por trás de Zig quase sem sangue no rosto.

           — Dan, o Barba Negra mantém dois grifos das Terras do Ar presos no convés inferior.

           O rapaz novamente olha para Lisa e pensa em algo. Por um instante ele sorriu e em seguida murmurou para todos. — Já sei como sairemos daqui!

           Dan e os Pés Grandes desceram para o convés inferior e entraram no quarto onde os grifos estavam.

           O jovem tentou aproximar do grifo que atacou Zig e foi impedido por ele.

           — Cuidado Dan, ele não é muito amigável!

           Ele sabia que o grifo podia ser extremamente perigoso e não hesitou em se aproximar. A ave abriu as asas e abaixou-se para Dan subir em cima.

           — Viu Zig, ele gostou de mim! — disse Dan coçando a cabeça da ave.

           O jovem saiu de perto do grifo e tentou tirar as correntes presas ao pescoço dele. Vendo que não conseguia, apontou o dedo indicador para a corrente e em seguida um farfalhar de luzes estourou-a e soltou o grifo. Dan foi até a outra corrente e libertou a outra ave.

           Lisa estava escorada no mastro principal esperando o sinal para pular do navio quando Barba Negra chegou perto dela.

           — Parece nervosa. Por acaso a senhorita vai a algum lugar?

           Ela olhou para o capitão e viu todos os piratas armados atrás dele.

           Dan explodiu a parede do convés inferior do navio e saiu com os grifos para fora. Ao sair, Barba Negra gritou:

           — Ataquem!

           Os piratas colocaram as balas nos canhões e dispararam contra Dan e os Pés Grandes, montados nos grifos. Barba Negra empurrou Lisa contra o mastro principal e amarrou-a. As aves subiram para o céu e desceram contra o navio, desviando das balas de canhão. O grifo em que Dan estava montado jogou cinco piratas no mar ao passar rente ao navio. Ele pulou do animal, tomou a espada de um dos piratas e correu para soltar Lisa. Alguns piratas entraram em sua frente e lutaram com ele, mas Dan venceu todos.

           Barba Negra pegou sua espada e atacou o rapaz. As duas espadas rangiam uma na outra mostrando o poder do ataque de ambos.

           Zig e Cliffe subiram com o grifo para o céu e sumiram entre as nuvens. Depois de alguns segundos, a ave desceu contra o navio e voou sobre os piratas derrubando uma boa parte no mar e uma outra parte no chão. A cada vez que os grifos sobrevoavam sobre o mar, os canhões atiravam as balas e faziam os mesmos desviarem por entre elas. O cheiro de pólvora tomou conta do navio.

           O capitão pegou uma espada caída no chão e atacou Dan. As três espadas bateram uma na outra. O rapaz chutou entre meio as pernas de Barba Negra e depois deu um murro em seu rosto.

           Zig pulou do grifo e pegou uma espada. Doze piratas cercaram-no. O Pé Grande esticou os braços e começou a rodar. A sua espada batia nas lâminas amoladas dos piratas e a arrancavam-nas de suas mãos. Zig parou de rodar, bateu a espada no chão, ganhou impulso e pulou sobre os piratas. Em seguida, correu até um dos mastros, pegou uma corda e pulou contra todos derrubando-os. Ao soltar a corda, Cliffe passou

           com o grifo por baixo dele e o pegou.

           Barba Negra se recompôs e voltou a atacar Dan. As duas lâminas se tocavam incessantemente, no mesmo instante o capitão ergue outra espada e retira a própria das mãos de Dan.

           — Acabou rapaz! — Barba Negra deu uma gargalhada e atacou Dan com as duas espadas.

           Sem que os dois esperassem, Albert entrou na frente de Dan e protegeu-o contra o ataque de seu capitão.

           — Albert! — disse Dan surpreso.

           — Corra, companheiro, liberte a menina. Deixe esse traiçoeiro comigo!

           — Como se atreve? — Barba Negra recolheu as espadas e atacou Albert.

           Dan correu até Lisa e desamarrou as cordas. Mas neste meio tempo, dois piratas aparecem e atacam os jovens. O rapaz então empurrou Lisa para trás de si, pegou uma espada caída no chão e a protegeu contra os ataques.

           Ele retirou a lâmina de um dos piratas e esmurrou seu na- riz. Com o outro, Dan deu um salto e chutou a cabeça do inimigo derrubando-o.

           O corajoso garoto virou-se para Lisa e gritou:

           — Atrás de você, Lisa!

           Involuntariamente Lisa fechou a mão, virou para trás e deu um murro na cara de Zinsk, que caiu no chão. A menina virou-se para Dan sorrindo e balançando a mão.

           O rapaz assoviou com os dedos na boca e levou Lisa para

           a beira do navio.

           — Pula Lisa!

           — Eu não sei nadar!

           — Confie em mim, corra e pule!

           Ela o fitou e sentiu firmeza em seu olhar. Em seguida afastou um pouco pra trás, saiu correndo e pulou. O grifo em que Dan estava montado desceu de entre as nuvens e passou rente ao mar. Lisa caiu sobre a ave e subiu para o alto.

           Dan olhou para o navio e viu umas balas de canhão amontoadas num canto. O rapaz concentrou-se e ergueu três balas com o poder do domínio do vento. Ele começou a fazer alguns movimentos com os braços. As balas de canhão começaram a se movimentar e bater contra o navio destruindo toda a sua estrutura.

           Barba Negra tirou a espada da mão de Albert e jogou-o no mar. Em seguida viu as balas de canhão destruindo todo o navio e gritou:

           — Meu navio! — Barba Negra ergueu a espada e correu para Dan.

           Mas o jovem ergueu uma nova bala de canhão e jogou-a contra o pirata. A mesma bateu na barriga de Barba Negra e o jogou contra a entrada do convés.

          As balas de canhão entraram no convés inferior destruindo parcialmente todas as suas repartições. Em seguida elas subiram destruindo o convés superior e vazaram em baixo do chão do navio seguindo sobre os mastros, destruindo e derrubando todos.

           O papagaio de Barba Negra começou a cantar irritando Dan.

           — Peguem o trouxa! Peguem o trouxa! Prutaco!

           Dan moveu o braço e jogou uma bala de canhão no meio da cara do papagaio.

           — Isso é pra você calar o bico, bicho tagarela!

           O rapaz ergueu os braços. As balas de canhão subiram bem alto para o céu. Em seguida, Dan saiu correndo e pulou fora do navio. Lisa passou com o grifo e pegou-o. As balas de canhão desceram na direção do navio e acertaram os barris de pólvora. Barba Negra estava saindo dos escombros de madeira quando a explosão o arrastou junto com os destroços.

           Bem longe dali, Dan, Lisa e os Pés Grandes viram a fumaça da explosão subir para o céu e viram os piratas boiando sobre os restos de madeira.

           Os grifos entravam nas nuvens e saíam molhados pelas gotículas de água existentes nelas. Lisa tirou a água do rosto com a mão e perguntou a Dan.

           — Como o grifo atendeu ao seu chamado?

           — Esses grifos vieram da Terra do Ar e todos eles atendem a um pedido de ajuda através de um assovio feito por um habitante do Ar.

           O grifo desceu novamente pra dentro de uma nuvem carregada de água e subiu novamente.

           — Lisa, eu não entendi uma coisa — perguntou Dan — Como o Barba Negra descobriu que íamos fugir?

           — Parece que Zinsk ouviu você contando o plano pra gente atrás da porta do convés e contou para o capitão.

           Lisa segurava na cintura de Dan deixando o rapaz um pouco sem graça. Nas vezes em que a ave descia para dentro das nuvens, Lisa colava seu corpo nas costas dele deixando-o, cada vez mais, com as maçãs do rosto vermelhas.

           Zig e Cliffe entravam e saíam de dentro das nuvens dando gritos de alegria. O grifo parecia corresponder aos Pés Grandes e de vez em quando davam um banho nos dois.

           A noite chegou aos poucos revelando um céu estrelado. Os grifos saíram de sobre as nuvens e desceram rente ao mar. As asas batiam levemente provocando algumas ondas na água. Um vento suave bateu no rosto de Lisa e ergueu seus cabelos. Ela fechou os olhos e sentiu uma sensação de leveza indescritível.

           Cliffe e Zig olhavam para o horizonte aquático escuro quando viram algo e começaram a gritar.

           — Dan, olha!

           O rapaz levantou o olhar e viu milhares de luzes sobre um penhasco.

           — Lisa, veja.

           Os grifos subiram rente ao penhasco e revelaram aos olhos de Lisa uma maravilha luminosa.

           — Chegamos a Fonte Phoenix!

 

            A Fonte Phoenix era um gigantesco castelo composto por mais sete acastelados unidos formando um só, completamente cercado pelas edificações e adossadas as muralhas. As luzes estavam acesas, mostrando um espetáculo de elegância e beleza.

           Os grifos sobrevoaram sobre os castelos dos Celtas, dos Trons e passaram à beira das janelas do refeitório dos Magos.

           Os olhos de Lisa e de Dan brilhavam ao verem as construções. Os grifos passaram perto da torre principal da Fonte Phoenix e pousaram no campo de treinamento dos Elfos.

           A jovem desceu de cima da ave majestosa e assustou-se ao ver os guardas do castelo em volta dos quatro.

           O Príncipe Gaya parecia nervoso quando entrou na sala onde Lisa e os outros estavam. Martius Godric entrou atrás do príncipe e parou logo ao vê-la.

           A sala era ampla e ornamentada com algumas armaduras em seus cantos. Havia uma pequena prateleira com alguns livros no canto esquerdo e um escudo azul com detalhes em prata pendurado no canto direito. No centro havia uma mesa com alguns papéis e uma pena branca dentro de um tinteiro.

           — Vocês já deveriam estar aqui, há dois dias — dizia o príncipe nervoso — O que aconteceu para chegarem tão atrasados?

           — Tivemos um atraso na viagem da terra de Allenah até Whycliffe, meu príncipe — disse Dan — Quando chegamos ao porto, a embarcação para a Fonte Phoenix já havia saído.

           Príncipe Gaya suspirou e pegou umas folhas sobre a mesa.

           — Três de vocês estão matriculados nos castelos Trons e Bruxos, mas e você? — indagou a Lisa — Seu nome não está na matrícula!

           Godric deu uma última olhada na moça e correu para o príncipe.

           — Príncipe Gaya, ela é...

           A porta da diretoria-geral abriu-se e Athus entrou. Lupus estava com uma faixa na cabeça e tinha algumas marcas de arranhões no rosto e nos braços.

           — Lisa?

           A jovem olhou para Athus e correu até ele.

           — Athus! — Lisa abraçou-o.

           — Lupus você a conhece? — perguntou o príncipe.

           — Esta meu príncipe, é Lisa Torner, a Bruxa de Fogo!

           Dan atônito olhou para a jovem e ficou sério de repente. Gaya ficou surpreso e não soube o que fazer, se sorria ou falava alguma coisa.

           — Eu já imaginava quem era você — disse Godric estendendo a mão para Lisa — Prazer, Martius Godric.

           O velhinho a sua frente apresentando-se, fez Lisa se lembrar do que Anne e Athus a havia contado antes de vir para Aragorn.

           — Foi você que me levou pro outro mundo quando eu era bebê! — exclamou a menina.

           Godric balançou a cabeça e sorriu. O príncipe aproximou meio sem jeito e ajoelhou-se aos pés da bruxa de fogo, para surpresa de todos.

           — Seja bem vinda novamente a este castelo, princesa!

           Lisa sorriu meio tímida e não entendeu o porquê do príncipe tê-la chamada de princesa. 

           — Estávamos procurando por você em toda parte do reino e não a encontramos. O que aconteceu? — perguntou o príncipe.

           Lisa olhou para Dan e respondeu.

           — Eu também não sei o que houve, mas sei que estou aqui graças a Dan e seus primos.

           Gaya aproximou dos três e colocou a mão no ombro de Dan.

           — Parabéns... os três! Sou eternamente grato por a traze- rem de volta à Fonte Phoenix.

           — Foi um prazer, meu príncipe! — disse Dan desviando o olhar para Lisa.

           — Me desculpem se eu fui grosso com vocês três e peço uma coisa: por favor, mantenham isso tudo em segredo dentro da Fonte Phoenix. Lisa aprenderá a dominar seus poderes como uma guardiã e no momento certo, todos saberão quem ela é.

           — Não se preocupe com isso, meu príncipe — disse Dan — Saberemos guardar segredo.

           Godric reparava a feição de Dan quando algo passou por sua cabeça.

           — Príncipe Gaya, eu vejo que o jovem é um bruxo que usa seus poderes através das partes do corpo... Eu peço que o deixe ser treinado junto com a menina. Será bom para ambos, já que ele pode ensinar grandes coisas a Bruxa de Fogo.

           Gaya ficou em silêncio e pensou por alguns instantes. Antes de responder ele olhou bem para Dan e tirou uma conclusão.

           — Pedido concebido, Godric. Os dois ficarão no mesmo castelo e aprenderão juntos a dominar a magia.

           — Fico grato, meu príncipe! — agradeceu o rapaz.

           A porta da diretoria-geral abriu mais uma vez e Goblin entrou, ficando mais surpreso do que todos ao ver Lisa.

           — Enfim a encontraram, My Lady! Fico feliz!

           O homenzinho corcunda aproximou-se de Lisa e lhe fez uma reverência. Em seguida ele tomou a sua mão e beijou-a. Por algum motivo, Ela sentiu algo estranho ao estar perto de Goblin.

           — Goblin, leve os rapazes até seus aposentos e prepare um banquete para eles! — disse Athus.

           Goblin sorriu para os rapazes e estendeu a mão para a porta. — Por favor, me sigam!

           Antes de sair, Dan olhou sério para Lisa e abaixou a cabeça. Os Pés Grandes saíram atrás do primo e fecharam a porta. Godric sentou numa cadeira e fitou o olhar em Athus.

           — Muitas coisas devem ter acontecido com você durante esses dois dias, acho que queira descansar — disse Gaya.

           — Sim, estou um pouco cansada!

           Lisa não quis dizer, mas estava exausta pela viagem sobre o grifo. Assim que eles fugiram das mãos de Barba Negra, Dan mudou o curso para a Fonte Phoenix através de uma corrente de ar que o indicou o caminho. Foram horas e mais horas sobre a ave, deixando a menina cansada e com fome.

           — Godric, leve-a até seu quarto! — disse Gaya.

           Godric levantou da cadeira e abriu a porta.

           — Vamos?

           Lisa fez um gesto com a cabeça e saiu da sala.

           Athus sentou com um pouco de dificuldade numa cadeira e passou a mão no rosto.

           — Algo de muito errado aconteceu aquele dia, meu príncipe...

           — Eu sei Athus, eu sei!

           Goblin mostrou as acomodações de Dan e dos Pés Grandes. O quarto era bem grande, havia um banheiro à esquerda e os dormitórios ficavam a direita. No quarto havia mais duas pessoas dormindo. Depois de alguns minutos, Goblin preparou um jantar para os três. Zig e Cliffe comeram até estourar.

           Dan entrou no dormitório e tirou os baús de dentro do bolso. Colocou-os no chão e fez um movimento com o dedo indicador. Os baús cresceram e voltaram ao tamanho normal. O rapaz pôs-se a janela e ficou alguns minutos observando a vista dos outros castelos em sua volta. Por um instante, tudo que aconteceu passou na sua cabeça como um flash de pensamentos.

           Onde estou?

           Prazer. Horcliffe. Daniel Horcliffe, mas pode me chamar de Dan!

           Eu quero um dia poder conhecer a reencarnação dela e mostrar meus poderes!

           Esta meu príncipe, é Lisa Torner, a Bruxa de Fogo!

           Um sentimento de raiva tomou conta de Dan. Ele não conseguia entender porque Lisa escondera dele o que ela era realmente. Isso era quase uma traição, apesar dele não saber por quê. Eu fui enganado!

           Do outro lado do castelo em que Dan estava, Lisa sentara-se na beira da janela e olhava para fora. Seu olhar estava na lua e nas estrelas. O brilho lunar tocava seu rosto embalando-a em pensamentos longínquos e sem respostas. Por que Dan estava daquele jeito esquisito?

           Athus Lupus sentou no sofá e cruzou as pernas. Estava com uma feição bem melhor depois dos dias difíceis que passou.

           — Lisa, eu fiquei preocupado com você. Pensei que a Besta tinha te achado e... bem, não gosto nem de pensar!

           Lisa saiu da beira da janela e sentou-se no sofá do outro lado da sala.

           — Eu não entendo o que houve. Uma hora eu estava vendo você e Goblin prontos para atacar a Besta e na outra, eu acordava num lugar estranho...

           Athus lembrou do que houve e suspirou forte para tentar esquecer.

           — Eu acredito Lisa, que a Besta conseguiu distorcer o portal para que você caísse na Ilha das Sombras, no entanto algo deu errado, para nosso alívio.

           Lisa estava quieta, seus pensamentos voltaram-se para Barba Negra e para o Mestre a quem ele a entregaria.

           — Athus, o pirata que iria nos trazer para cá, Barba Negra, queria desviar do percurso e me levar para um tal Mestre que morava na Ilha das Sombras. Quem é ele?

           Athus ficou em silêncio por um instante. Ele estava sério e pensativo.

           — Mestre, Lisa, é o nome dado a uma das criaturas que servem a Besta. Esse Barba Negra o serve de algum modo. Isso só reforça a ideia de que você correu e ainda corre perigo — Athus descruzou as pernas e apoiou-se nos seus joelhos — Mas não se preocupe, aqui na Fonte Phoenix você estará protegida — Athus levantou e parou no meio da sala — Agora vamos deixar de conversa e vamos para o refeitório. Teremos um dia longo hoje. Não se esqueça de que você vai aprender a como dominar seus poderes. Vamos?

           Lisa deu um pequeno sorriso e saiu atrás de Athus.

           O refeitório do Castelo dos Bruxos estava cheio de aspirantes entusiasmados com o início dos treinamentos. No refeitório haviam grandes mesas cheias de pães, sucos e geleias.

           Lisa estava sentada na terceira mesa da esquerda para a direita quando uma mulher de quase dezessete anos cutucou nas costas dela.

           — Posso sentar perto de você?

           — Claro.

           A mulher sentou e estendeu a mão para Lisa.

           — Prazer, Louise Johson.

           — Lisa Torner.

           Louise era loira de olhos verdes claros. Tinha uma boca fina e um rosto perfeitamente liso. Ela usava um manto preto assim como Lisa.

           — Eu soube que você chegou ontem à noite na Fonte Phoenix montada num grifo. Deve ser legal voar num.

           — É muito bom! — respondeu Lisa sorrindo.

           Louise abriu um pão e passou geleia de morango. Em seguida olhou entusiasmada para sua colega.

           — Você é de que reino?

           Por um instante, Lisa quase disse que era de outro mundo. Ela ficou quieta enquanto engolia o pão e depois respondeu.

           — Sou do Reino de Allenah, da Tribo do Ar.

           — Que legal, nós somos do mesmo Reino! Mas eu moro em Windhard.

           O mundo de Aragorn era dividido em sete reinos de acordo com o poder predominante em cada região. O nome dado a seis reinos era em homenagem aos seis sacerdotes fundadores da Fonte Phoenix.

           O reino a sudoeste recebeu o nome de Reino de Allenah, em homenagem a Grifus Allenah. O reino recebe destaque pela tribo do Ar e por importantes cidades como Windhard, Mayland, Whycliffe e Horfield.

           O noroeste da Fonte Phoenix fica o Reino de Christian

           Bellyhan, destacando-se a tribo da Terra e a cidade de pedra, Maystone. Ao norte está o Reino Suspenso de Actinos Thunderay, com a tribo do Raio; e o Reino de Mysth Crystalice, com a tribo do Gelo.

           A região nordeste da Fonte Phoenix é a mais perigosa dos seis reinos. Lá está o Reino de Draco Bladfire com milhares de vulcões em atividade e dragões furiosos. Neste reino ganha destaque a tribo do Fogo e os vulcões de Ballfire.

           O Reino de Galenger Goldenwarth é o mais misterioso. Existem milhares de lendas envolvendo a tribo da Água e seus rituais lunares.

           O sétimo reino é conhecido como o Reino da Fênix. É o centro de Aragorn, onde fica Poltergrat, a cidade dos Lordes e a Fonte Phoenix, o conglomerado de castelos de Gaya. Este rei- no recebe esta denominação, pois no princípio dos tempos nascera das cinzas uma lendária ave cujo nome batizava o reino: a Fênix.

           Além dos sete reinos, o mundo de Aragorn possui quatro ilhas distintas uma das outras. As ilhas, das Sombras, das Serpentinas e de Stonefire são consideradas as mais perigosas, podendo ter criaturas gigantescas e perigos inimagináveis. A ilha Earthworn é considerada pacífica, pois seus habitantes geralmente permanecem abaixo da terra, não oferecendo risco algum.

           Lisa olhava para todos os lados do refeitório a procura de Dan, mas não o viu. Ao ir para a sala da Arte das Espadas, ela o viu descendo umas escadas e entrando no corredor. A menina correu ao seu encontro e entrou na sua frente.

           — Eu não o vi no refeitório! Não quis tomar café?

           Dan não respondeu, parecia chateado.

           — O que foi Dan? Ontem você saiu da sala de Godric com uma cara estranha e agora está indiferente comigo!

           O rapaz suspirou e parou. Havia em seu rosto uma expressão de indignação e raiva.

           — O quê que você acha... Bruxa de Fogo! — Dan pronunciou o nome com a voz baixa para ninguém escutar — Porque não me contou quem era? Não confiava em mim?

           — Me desculpe, eu estava muito confusa! Eu não sabia o que fazer...

           — E eu que sonhava em conhecer uma lenda!... E ela sempre esteve debaixo do meu nariz! Eu preferia não ter achado você no bosque das Traias!

           Dan saiu de perto de Lisa e desapareceu no corredor. Ela pensou que perderia um amigo.

 

            A  sala da Arte das Espadas era um local especial para o treinamento dos alunos com as armas, cada qual detalhada elegantemente com filigranas de ouro.  Nas paredes, havia cerca de cinquenta espadas penduradas para o uso nas aulas. Além delas havia nos cantos da sala algumas armaduras de prata como enfeite.

           Todos os aspirantes deveriam estar usando luvas e uma roupa especial de couro. Sobre a roupa deveriam estar usando um manto vermelho.

           Falco Evil Black entrou na sala com uma espada pendurada na cintura e um falcão no braço. Falco era um professor rígido e não admitia fracassos em suas aulas. Havia em seu rosto uma robustez que era destacada por seus longos cabelos brancos. Ele parecia ser jovem pelo rosto liso e perfeito que possuía. Em seus olhos, o azul destacava-se entre o rosto robusto e os cabelos brancos.

           O mesmo dirigiu-se ao canto da sala onde colocou o seu falcão num poleiro. Depois voltou ao centro e ordenou que os alunos fizessem um círculo. O professor tirou duas espadas da parede e entrou no centro do círculo. Com uma voz forte e ri- gorosa, disse aos alunos:

           — Nós vamos começar esse ano com uma demonstração de como serão as aulas. Espero que com essa demonstração, fique bem claro quem são os fortes e quem são os fracos desta sala. Para os fortes os meus parabéns, pois o Príncipe se orgulha deles, mas para os fracos... os meus pêsames, porque numa guerra somente os fortes sobrevivem, e serão guerreiros fortes que eu vou treinar! — Falco parou de falar por alguns instantes, passou os olhos pela turma e continuou — Tenho aqui duas espadas que desafiarão as suas forças. E tenho também dois guerreiros que lutarão até um cair. Aquele que cair perderá pontos. Aquele que vencer, leva cinco pontos para o trimestre!

           Enquanto Falco explicava as normas da batalha de espadas, Lisa avistou Dan do outro lado do círculo. Ele olhou rapidamente para ela e desviou o olhar. Louise chegou perto dela e escorou-se em seu ombro.

           — Quem será que Falco vai escolher?

           Falco caminhou em torno do círculo reparando as feições de cada aluno, por fim, ergueu as duas espadas e jogou-as para dois lados diferentes. Dan pegou uma das espadas e sentiu-se surpreso.

           — Os dois guerreiros que terão a honra de fazer essa demonstração serão o senhor Grump Mcanfly dos Montes Grifos e o senhor Daniel Horcliffe da Terra do Ar!

           Ambos colocaram-se no centro do círculo e aguardaram as instruções de Falco. Louise balançou a cabeça e exclamou para Lisa.

           — Esse Daniel vai ter problemas com o Grump!

           — Por quê?

           — Eu conheço bem Grump, ninguém jamais foi tão bom no manuseio de uma espada como ele. Além do mais, Grump é um idiota completo! É irritante, e se perder para o oponente, com certeza vai procurar briga com ele. Daniel que se prepare!

           Lisa sentiu-se preocupada. Viu na feição de Grump algo que o deixava terrivelmente irritante. Você consegue Dan!

           Grump Mcanfly era moreno e um pouco magro.  Seu olhar inspirava total confiança em si mesmo. Mcanfly era convencido e não admitia que alguém o derrotasse em uma luta.

           Grump treinava nos Montes Grifos e tinha uma agilidade muito grande. O fato de ele treinar em grandes altitudes, onde a respiração e os movimentos são mais difíceis, o permitia executar vários movimentos em frações de segundos, além de lhe dar um maior equilíbrio em tentativas de alguém querer derrubá-lo.

           — As regras são simples, — dizia Falco — não é permitido usar as espadas na altura do rosto ou usá-las de forma agressiva. Aquele que cair primeiro perde a luta. Boa sorte, senhores, e que vença o melhor!

           Grump deu um sorriso falso para Dan e armou-se com a espada.

           — Isso vai ser mais fácil do que eu imaginava! Eu te aconselho desistir imediatamente se não quiser passar por ridículo diante de todos!

           Dan respirou fundo. Quem pensa que ele é, o dono do mundo?

           Os dois rapazes começaram a andar em círculos. O coração de Dan batia acelerado e sentia que sua adrenalina subia.

           Grump estava mais confiante do que nunca. Ele é um fracote! Vou mostrar como se luta de verdade!

           Grump ergueu a espada e atacou Dan. As duas espadas começaram a bater uma contra a outra, numa incrível velocidade. Grump atacava e Dan tentava se proteger na velocidade dos ataques.

           Os alunos abriram a roda para que os adversários passassem. As duas espadas travaram uma na outra e ambos afastaram para trás. Novamente os dois andaram em círculos em volta um do outro. Grump atacou. Dan pulou, deu um mortal sobre o mesmo, caiu em pé atrás dele e o atacou pelas costas. Grump virou-se rapidamente e parou a espada de Dan com a lâmina da sua. Grump deu um pequeno sorriso, depois chutou a mão de Dan. A espada saiu da sua mão e voou para o alto. Mcanfly abaixou rapidamente, apoiou-se no chão com as mãos e passou a perna contra as pernas do rapaz.

           Dan começou a cair pra trás, mas apoiou-se com as mãos no chão e saiu saltando para trás até bater com os pés na parede da sala. Na batida, Dan ganhou impulso e saltou novamente, pegou a espada e caiu sobre Grump, atacando. Grump saltou para trás e Dan bateu a espada no chão.

           O adversário dos Montes Grifos começou a girar rapidamente como um furacão e atacou Dan. O giro de Grump permitia-o girar a espada e batê-la em frações de segundos contra o corpo do adversário. Dan tentava se defender, empunhando a lâmina comprida na altura dos golpes de seu colega de turma, quando a mesma passou no seu peito e começou a cortar o couro. O rapaz afastou-se para trás e pensou em algo. Grump veio girando em sua direção. Ele reparou em seus movimentos e viu que o plano poderia dar certo. Por fim, Dan deu um giro no ar como se fosse contra-atacar e chutou as pernas de Grump, que perdeu o equilíbrio e caiu de cara no chão.

          Os alunos gritaram e bateram palmas pela sua vitória. Lisa agarrou-se a Louise e começou a pular.

           Mcanfly levantou furioso do chão e atacou Dan sem que ele percebesse. Falco entrou na frente e abriu a mão direita. Uma energia magnética saiu da mão do professor que jogou seu aluno contra a parede.

           Falco virou-se para Dan e apertou a sua mão.

           — Parabéns, meu jovem! A honra de uma batalha é saber vencer e mais do que nunca... perder! — Falco dirigiu a última frase a Grump que tentava se recuperar do ataque do professor.

           A aula de Arte das Espadas havia terminado. Dan estava saindo da sala quando Grump gritou para ele:

           — Ainda vou mostrar pra você quem é o perdedor!

           O professor viu seu aluno conversando com o vencedor e foi até ele.

           — Acabou a luta! Você perdeu dois pontos, senhor Mcanfly!

           Logo após Falco sair da sala, Grump deu um murro na parede. Isso não vai ficar assim!

           Os alunos retornaram aos dormitórios e trocaram de roupa para o próximo treinamento, Magia Espírita, com Athus Lupus.

           Dan estava na entrada do castelo quando Lisa puxou-o pelo braço.

           — Parabéns, Dan!

           Ele sorriu e pegou na mão de Lisa com um ar sério no rosto.

           — Me desculpa, Lisa! Eu andei pensando e vi que eu fui um completo idiota com você. Eu não conseguia entender por que guardou seu segredo de mim quando eu te perguntei. Eu espero que me desculpe!

           Lisa o abraçou sem que ele esperasse.

           — Está desculpado. E mais uma vez, parabéns!

           Louise apareceu por trás e chamou Lisa para entrar. Dan sorriu pra ela e esperou que suas bochechas voltassem à cor original para depois entrar no castelo.

           Athus Lupus estava na sala esperando os aspirantes chegarem. Ao ver Lisa ele foi até ela e a chamou no canto.

           — Lisa, hoje à tarde vamos começar seu treinamento. Eu espero você na torre principal da Fonte Phoenix. Ok?

           A menina fez um sinal com a cabeça e voltou para perto de Louise. Athus foi até o centro da sala e sentou sobre um baú de prata.

           — A nossa primeira lição com Magia Espírita será uma espécie de diversão para todos. Sob esse baú ao qual estou sentado, existe uma criatura chamada Freeguiz. Alguém aqui a conhece?

           Os alunos olharam uns para os outros. Dentre as caras de que “Não sei, e você?”, Louise levantou o braço e começou a balançá-lo sem parar.

           — Senhorita Johson — disse Athus.

           Louise foi à frente e respondeu entusiasmada.

           — Os Freeguiz são criaturas do Reino das Sombras que captam atividades espíritas na mente das pessoas. Mas quando não estão captando alguma atividade, elas são muito brincalhonas e arteiras.

           — Certo senhorita Johson! Os Freeguiz são terrivelmente arteiros e rápidos — Athus saiu de cima do baú — Eu vou libertá-lo de dentro desse baú. Vocês poderão usar um feitiço de petrificação para capturá-lo. Porém, se ele os atacar usando seus poderes nefastos, usem esse feitiço para impedi-lo. Repitam comigo: Adimat jus nunc!

           — Adimat jus nunc! — repetiram os alunos.

           — Isso! Vocês também podem usar seus poderes para ajudar na captura. Eu gostaria que vocês soubessem que apesar de ser uma aula apenas por diversão, ela pode nos ensinar a trabalhar em grupo para conseguir algo. Eu conto com vocês!

           Athus pôs a mão esquerda sobre o baú e a mão direita na frente dele. O baú prateado era protegido por um sistema de chaves extremamente impenetrável. Apenas as pessoas que dominavam a arte espírita conseguiam abri-lo.

           Lupus passou a mão direita na frente do mobiliário. Aos poucos, o mecanismo de proteção foi se movendo e afastando a frente do baú para os lados, revelando um outro fundo com apenas uma chave. Athus fechou a mão e abriu-a. Uma pequena luz saiu de sua palma e entrou no buraco da fechadura. As trancas que protegiam a tampa destravaram uma atrás da outra. Athus então a abriu.

           Logo de primeiro momento, não saiu nada de dentro. Os aspirantes esticaram os pescoços para ver a criaturinha, mas não viram nada.

           Um suspense ficou no ar. Segundo por segundo, parecia uma eternidade. Por fim, uma mãozinha cinza com unhas negras apareceu. Depois a outra mão surgiu junto com a cabeça pequena da criatura.

           O Freeguiz tinha olhos verdes e a sua pupila assemelhava-se à de um gato. O nariz da criatura era longo e caído. Sua boca era fina e seus lábios eram negros. A criaturinha possuía orelhas bem pequenas, semelhantes às de um gato. O Freeguiz media quase um metro de altura. Seus braços e pernas eram longos e finos. Apenas um pano amarrado na cintura, como  uma tanga, era a sua roupa.

           O Freeguiz olhou para todos. As mulheres fizeram um Ah, que bonitinho! , e sorriram para a criatura. O Freeguiz sentou no chão, pegou seu pé esquerdo e levantou-o na altura do nariz. Ele cheirou o pé e fez uma cara feia. Todos riram da criaturinha adorável.

           A criaturinha levantou o braço e cheirou as suas axilas, um mau cheiro invadiu a sala. Como o braço dele fede! , pensavam os alunos. O Freeguiz levantou e andou até parar na frente de Grump. Os seus olhos arregalaram e um brilho amoroso surgiu neles. Algumas aspirantes exclamaram: Mas que fofo!

           O Freeguiz levantou o braço e apontou a mãozinha fechada para Grump. Todos olharam para a criaturinha e pensaram que ele queria dar a mão. Porém, o Freeguiz deu uma risada medonha e abriu a mão. Um poderoso impulso jogou Grump contra a parede. Os alunos afastaram para trás. Agora a criaturinha bonitinha não era mais tão bonita quanto antes. O Freeguiz fechou a mão, virou para os demais e abriu-a. Todos eles foram lançados para lados diferentes da sala.

           O Freeguiz começou a rir e pular pela sala. Grump levantou com raiva e saiu correndo atrás dele. Os outros levantaram e o seguiram.

           O Freeguiz escapava de todas as tentativas de captura. Ele pulava por cima dos alunos, passava debaixo das pernas deles e desaparecia no ar e reaparecia em outro lugar.

           Athus ficou parado encostado na sua mesa assistindo como os aspirantes conseguiriam pegá-lo. Melissa Horcliffe, uma mulher de quase vinte e dois anos, alta, magra, loira, de olhos verdes-azulados, chegou por trás da criatura e agarrou-a pelo pescoço com as duas mãos. O pestinha mexia-se de um lado para o outro e não conseguia soltar- se.

           — Parabéns senhorita Horcliffe. Você foi à única que conseguiu capturar o Freeguiz! — disse Athus batendo palma.

           O Freeguiz parou de mexer-se e fechou os olhos. Melissa levava-o até Athus, quando a criaturinha abriu os olhos novamente. Eles brilharam numa tonalidade azul celeste e começaram a provocar um vento dentro da sala. Aos poucos, as mãos da menina foram afastadas de seu pescoço. O Freeguiz fechou os olhos novamente e abriu-os. De súbito, Melissa foi arremessada contra a parede e Athus foi arremessado contra a sua mesa. Os alunos correram em direção ao Freeguiz e tentaram capturá-lo. Porém, a criaturinha ergueu todos eles com seus poderes e os pendurou no lustre da sala e nos pregos da parede usados para colocar quadros. Um dos aspirantes chegou a ser pendurado na ponta de uma lança no canto inferior esquerdo da sala.

           Só restavam Lisa, Melissa, Dan, Louise, Athus e Grump. A criaturinha olhou para todos e foi em direção a Dan. Ao apro- ximar dele, Louise entrou em sua frente e apontou a sua varinha mágica. Houve um relampejo.

           O Freeguiz olhou para Louise. Suas pupilas dilataram e a criaturinha reverteu o feitiço retornando-o contra a menina. Imediatamente, ela virou pedra.

           O Freeguiz agarrou Dan pela gola do manto e o virou de cabeça para baixo, deixando-o levitando no ar. Grump tirou sua varinha do bolso e apontou para a criaturinha. O Freeguiz pressentiu perigo, olhou para o mesmo e o transformou num sapo.

           O Freeguiz saiu pulando e parou na altura dos olhos de Lisa. A criaturinha colocou o dedo na testa dela e fixou seu olhar. De repente uma onda se formou na ponta do dedo e espalhou-se na testa da jovem. De súbito, os olhos dela brilharam.

           Lisa sentia que estava caindo das nuvens escuras e sentia-se fraca. Uma escuridão envolveu seu espírito. O Freeguiz a estava dominando. O dedo dele começou a entrar em sua testa, provocando estranhas visões.

           Ela viu uma pequena luz no meio da escuridão se acendendo e apagando. Aos poucos a luz desapareceu dando lugar a uma pupila, semelhante à de um gato, envolvida por um fogo. Lisa caía dentro dela quando uma voz de mulher começou a gritar. O grito era triste e de dor. Rapidamente, viu um olho vermelho abrindo-se!

           O Freeguiz continuava com a sua ação quando nos olhos dela, uma pupila envolvida num fogo surgiu. A criaturinha vendo tamanha imagem tentou retirar seu dedo, mas o mesmo estava agarrado. Athus levantou de trás da mesa e correu em direção a Lisa.

           Lisa fechou os olhos e abriu-os novamente. Seu olho ficou envolvido por um fogo e a marca no pescoço começou a brilhar. De repente, um brilho forte saiu do corpo dela e explodiu toda a sala. Antes da explosão, Athus ergueu sua varinha e gritou:

           — Burgus! — a luz da explosão tomou conta da varinha de Athus e saiu por toda a sala.

           A enfermagem da Fonte Phoenix era bem grande. Havia sete enfermeiras para cuidar dos alunos e dois médicos para casos graves.

           Lisa estava deitada na cama da enfermagem. Ao seu redor estavam Athus, Godric, Goblin e a estátua de Louise num canto da parede.

           Lisa despertou e levantou assustada.

           — Calma Lisa, foi tudo uma ilusão provocada pelo Freeguiz! — disse Athus.

           A menina estava trêmula e pálida. Um medo incontrolável envolvia o seu interior e a fazia chorar involuntariamente.

           — Eu escutei, Athus... Eu escutei novamente uma mulher gritando! — Lisa respirava ofegante e passava a mão no peito — Eu me senti só. Eu senti dor, sofrimento...

           Martius Godric chegou até Lisa e sentou-se ao seu lado.

           — Calma Lisa! — disse Godric — Os Freeguiz possuem poderes que nós ainda desconhecemos. O que você viu foi uma ilusão provocada por ele...

           — Não foi uma ilusão, era real. Eu escutei... eu senti o grito. Godric, alguém está correndo perigo e precisa de ajuda!

           — Lisa ninguém está correndo perigo, não aqui na Fonte Phoenix! Esse é o lugar mais seguro de Aragorn. Cada reino possui um centro guardado por guardas, mas aqui nunca foi tão protegido quanto os seis reinos juntos. Fique tranquila, foi tudo obra do Freeguiz, ele queria te perturbar.

           Lisa respirou forte e tentou acalmar-se. Lupus pegou um copo com água sobre o criado mudo ao lado da cama e deu-a para beber.

           — O que exatamente aconteceu antes de eu vir parar aqui?

           Godric olhou para Athus e suspirou.

           — O seu poder oculto destruiu a sala de Magia Espírita.

           — Você não feriu os alunos por que eu os protegi com um feitiço — completou Athus.

           Lisa segurou o copo com as duas mãos e abaixou a cabeça. — Me desculpem!

           Goblin estava na beira da janela quando se voltou para Lisa.

           — Não há nada para se desculpar, My Lady. Seus poderes estão começando a aparecer e é normal que coisas assim aconteçam.

           Godric levantou de cima da cama e foi até a porta.

           — Agora temos que deixá-la descansar. Você ainda está fraca — Godric levantou a mão para Lisa — Até mais tarde!

           Athus despediu-se da menina e saiu atrás de Godric. Goblin passou perto da estátua e fez um movimento com sua varinha. Louise voltou ao normal e olhou para os lados sem entender o que havia acontecido.

           Lisa deitou na cama e fechou os olhos. Sentia-se muito cansada.

 

           O   campo de treinamento dos Elfos era usado para as aulas de Arco e Flecha, ministradas pelo elfo Oliver Archer. Numa das extremidades do campo, havia trinta alvos numa distância de cinquenta metros de cada arqueiro.

           Os Elfos eram criaturas que dominavam como ninguém a arte do arco e flecha. Eram excepcionalmente belos e de temperamentos difíceis. Os que frequentavam a Fonte Phoenix eram passivos, diferentes dos outros de sua raça que detestavam qualquer outra forma de vida a não ser a sua própria.

           Oliver Archer era careca e tinha orelhas pontudas. Usava uma roupa verde e tinha pendurado nas costas uma aljava com várias flechas. Ele pegou uma flecha e a pôs no arco.

           — A chave para um ataque está na concentração do arqueiro. A concentração auxilia na mira e por si só, no sucesso do ataque — Archer ergueu o arco e soltou a flecha, acertando no centro do alvo — Arqueiros, ergam seus arcos. Concentrem-se nos alvos e atirem ao meu comando — Archer esperou que todos se armassem antes de continuar — Um... dois... atirem!

           Todos os arqueiros atiraram ao mesmo tempo. Oliver Archer aproximou dos alvos e balançou a cabeça.

           — Ainda há muito que treinar. Todos precisam dominar a mira usando a concentração. Vejam o alvo, sintam o alvo e, acertem o alvo! Vamos novamente. Um...

           Dan e os Pés Grandes passavam pelo campo de treinamento quando toparam com Grump e seu grupo.

           — Ora, ora senhor Horcliffe — disse Grump — O mundo é pequeno, não é mesmo rapazes?

           Gregor Hohio e Steven Bell responderam a Grump e riram.

           Gregor Hohio era alto e forte. Tinha olhos castanhos quase vermelhos e cabelo ruivo. Era da Tribo do Fogo e parecia muito idiota para pertencer a uma tribo tão poderosa. Steven Bell pertencia à Tribo do Raio, ele era de estatura média, não parecia ser muito forte, mas também não era de muita confiança. Tinha cabelos brancos arrepiados e olhos castanhos amarelados. A pupila de seus olhos era em forma de um raio e brilhava quando ele ficava com raiva.

           — Pelo visto Mcanfly, você ainda não se conformou com a derrota! — disse Zig.

           Dan virou para Zig e perguntou num sussurro.

           — Como você sabe disso Zig?

           — A Fonte Phoenix inteira já sabe! — exclamou Cliffe.

           — Menos o príncipe, que está viajando! — completou Zig.

           Grump empurrou Zig pra trás e pôs a mão nos ombros de Dan.

           — Eu espero você hoje à noite nas pedras do penhasco. Traga a sua espada! — Grump empurrou Dan e saiu com Gregor e Steven atrás dele.

           Melissa Horcliffe aproximou de Dan e o ajudou a levantar do chão.

           — Grump não vai descolar do seu pé, rapaz! É melhor você ficar comigo, assim ele não vai ser ameaça para você.

           — Muito obrigado, mas eu não preciso que uma mulher me proteja! Posso me virar muito bem sozinho.

           Dan e os Pés Grandes viraram as costas para Melissa e saíram para o outro lado do campo de treinamento.

           Os arqueiros dispararam suas flechas, provocando um pequeno ruído. Melissa olhou para os arqueiros e murmurou:

           — Depois não diga que não avisei, Horcliffe!

           Depois que Lisa saiu da enfermaria, foi até o castelo de Magia Espírita e caminhou para a sala de Athus. Ela começou a abrir a imensa porta da sala quando ouviu as vozes de Godric e Athus.

           — O príncipe saiu em viagem ao Reino de Bladefire e não acho necessário deixá-lo a par do que aconteceu — Godric andava pela sala destruída passando os olhos ao redor dela — Eu acredito que o Sétimo Espírito não voltará nem tão cedo. Por enquanto Lisa e a Fonte Phoenix estão seguros.

           — Você acha que o Sétimo Espírito tem algo a ver com a explosão? — perguntou Athus enquanto seguia Godric pela sala.

           Martius Godric virou-se para Athus e alisou a sua enorme barba branca.

           — Acho um pouco improvável. Durante centenas de anos ele reencarnou no corpo das sucessoras e nunca provocou uma explosão como essa. Só me resta culpar o Freeguiz pelo feito. — Eu não devia tê-lo trazido para a sala...

           Athus sentia-se culpado pela explosão e não conseguia tirar da cabeça a ideia de que todos os alunos poderiam ter sofrido ferimentos graves se ele não tivesse lançado o feitiço de proteção a tempo.

           — Isso não foi o problema, Lupus. O Sétimo Espírito ainda é uma chave de muitos mistérios. O Freeguiz aproveitou-se do poder oculto do Sétimo Espírito e o utilizou para fazer uma de suas “artes”. No entanto, essa “arte” que ele fez quase custou a vida de vários alunos.

           — Eu ainda não entendo como ele conseguiu encontrar um poder tão oculto no interior de Lisa!

           Godric continuava a andar pela sala quando parou em frente a uma janela com os vidros quebrados.

           — Athus, todos nós sabemos que o poder Firewitch sempre foi oculto e nunca se revelou por espontânea vontade. A Bruxa de Fogo precisa aprender a lidar com essa condição para tornar o poder do Sétimo Espírito mais forte. Se ela conseguir unir os dois, eu poderei dizer...

           Godric parou de falar quando sentiu a presença de alguém. Ele virou-se para a porta e fez um movimento com a mão.             Imediatamente a porta abriu-se.

           — O que foi Godric? — perguntou Athus assustado com a ação de Martius.

           — Pensei ter sentido a presença de alguém atrás da porta. Foi apenas uma impressão.

           O coração de Lisa batia acelerado. Ela estava escorada na parede do corredor e suspirava sem parar.

           Godric voltou-se para a janela com os vidros quebrados e olhou para fora.

           — Caso isso acontecer, a Bruxa de Fogo nunca foi tão po- derosa!

           Os raios vermelhos do pôr-do-sol tocaram a torre principal da Fonte Phoenix e atravessaram os vidros das janelas, tocando o rosto de Lisa, que contemplava os gigantescos castelos.

           Os sete castelos da Fonte Phoenix serviam de moradia e de salas de treinamentos para todos os futuros guardiões e cavaleiros do Príncipe. Eles eram divididos conforme o tipo de poder que cada aspirante possuía.

           As muralhas formavam um hexágono regular por volta dos sete castelos.  As partes do hexágono onde os ângulos eram menores em relação ao outro, serviam como entradas para a Fonte Phoenix. Os seis castelos ficam ao redor do sétimo castelo, pertencente ao Príncipe Gaya.

           A leste do castelo principal ficava o Castelo dos Magos, onde se realizam as aulas de Magia Mítica e de Transmutação. A oeste localiza-se o Castelo dos Celtas onde as aulas de Arco e Flecha, Arte das Espadas e Combate são realizadas.

           Ao nordeste, as aulas de Magia Plantae e Magia Animália são realizadas no Castelo dos Druidas. A Noroeste, o Castelo dos Gaullers recebe os alunos para as aulas de Transmutação Mítica, Magia Floral e Domínio das Sombras.

           A sudeste, no Castelo dos Trons, são realizadas as aulas de Espectro-Espelho, Magia Terrestre, Magia Aquática, Magia Aero e Estudo do Domínio do Fogo. Por fim, a sudoeste localiza-se o Castelo dos Bruxos, onde são realizadas as aulas de Espectrograma e Magia Espírita.

           A torre principal da Fonte Phoenix possui um relógio no alto e algumas estátuas de Gárgulas no pé do seu telhado. Lisa estava numa sala que dava acesso a sala principal do relógio. A cada segundo, os tic tacs do ponteiro em movimento ecoavam na sala.

           A sala era um pouco espaçosa. Havia nela alguns baús, um espelho grande, uma mesa de escritório antiga e algumas poltronas. No canto esquerdo, havia uma prateleira com alguns livros antigos empoeirados.

           Athus abriu a porta e entrou. Pediu desculpas pela demora, foi até a prateleira e tirou um livro de capa dourada com um desenho da Fênix com as asas abertas. Athus trouxe o livro até Lisa e sentou-se perto dela.

           — Este livro, Lisa, pertenceu a última Bruxa de Fogo que já existiu, Melody Bluesky — Athus entregou o livro a Lisa — Antes de morrer, Melody registrou neste livro todos os seus feitiços, magias, movimentos e mistérios que cercam algumas criaturas. Nós o guardamos num lugar especial aqui no castelo para que ninguém o encontrasse. Hoje eu o trouxe para essa sala e o deixei na prateleira junto com os outros livros. Aqui quase ninguém entra e achei seguro deixá-lo até entardecer para depois te entregar.

           O livro não tinha local para abri-lo. Lisa virou o livro à procura de uma forma de abri-lo, mas não encontrou.

           — Como eu o abro?

           Athus levantou, foi até a mesa antiga e pegou uma caixinha comprida e fina.

           — Isso você vai ter que descobrir sozinha. O livro está enfeitiçado, somente você pode abri-lo. Não se preocupe, você vai encontrar um jeito!

           Lisa pôs o livro no canto da poltrona e olhou para a caixinha na mão de Athus.

           — O que é isso?

           — Tomei a liberdade de arrumar uma varinha para você. U- ma Bruxa de Fogo não é uma Bruxa de Fogo sem uma varinha!

           Athus abriu a caixinha e tirou uma varinha de aveleira com sete detalhes talhados nela. Lisa pegou a varinha e analisou-a.

           — Athus, eu soube que a última Bruxa de Fogo tinha uma varinha com o nome Firewitch. Onde ela está?

           Athus demorou um pouco para responder. Ele colocou a caixinha vazia em cima de uma mesinha e voltou para a mesa antiga.

           — A varinha de Melody era muito especial. Todas as Bruxas de Fogo que já existiram utilizaram ela. No entanto, você não vai ter essa mesma oportunidade — Athus pegou a sua varinha em cima da mesa e voltou-se para a jovem — Acreditamos que Melody teria destruído a varinha antes de morrer para que ninguém a possuísse sem a próxima Bruxa de Fogo nascer. Trezentos anos se passaram desde a morte de Melody. Foi até compreensível a atitude dela.

           — Mas ela poderia ter guardado em um baú protegido com um feitiço poderoso para ninguém abri-lo sem ser uma Bruxa de Fogo.

           — Sim Lisa, ela poderia ter feito isso, mas não foi o que aconteceu!

           Lisa levantou da poltrona e apontou a varinha para o espelho, depois riu.

           — Eu nem pareço uma bruxa tão poderosa como vocês falam!

           — Mas pode se tornar com a ajuda dessa varinha!  Ela pertenceu a Grifus Allenah e está entre as varinhas mais cobiçadas do Mundo de Aragorn. Antes de morrer, há duzentos anos atrás, Grifus pediu para que a dessem ao sucessor de Melody, ou seja, você.

           Athus foi até a janela e chamou-a. Ao ficar de frente para a janela, Lisa olhou para o céu e sorriu. As estrelas brilhavam na escuridão da noite ao redor da lua cheia, como vaga-lumes reluzentes.

           Athus pediu a garota para que apontasse a varinha para o céu e imaginasse uma tempestade com muitos raios. Em seguida pediu para que se concentrasse e repetisse o feitiço Tempestate!

           — Tempestate! — disse Lisa apontando-a para o céu.

           De repente, várias nuvens negras começaram a surgir em forma de círculo no céu. Uma tempestade com muitos raios e trovões se formou.

           — Viu como é fácil! — disse Athus — Você ainda tem muitos feitiços para aprender. As Bruxas de Fogo não se limitam apenas à bruxaria, elas dominam todos os seis elementos de Aragorn. Agora veja o que eu vou fazer com a tempestade.

           Athus ergueu a varinha dele e gritou:

           — Lucídium!

           As nuvens rodaram em círculo novamente e transformaram-se em pequenos pontos luminosos que caíram sobre a Fonte Phoenix.

           — É lindo! — exclamou Lisa.

           Os pontinhos luminosos caiam sobre o telhado dos castelos e desapareciam. Em frente à janela da torre principal, uma chuva de pontos luminosos caia. Lisa estava maravilhada com tudo aquilo.

           Athus voltou para o centro da sala e tirou um livrinho do bolso.

           — Lisa, este livrinho possui alguns feitiços importantes que você precisa dominar para participar das aulas como um habitante normal do mundo de Aragorn. Essa semana as aulas ganharão um ritmo mais forte que você precisa acompanhar. Algumas aulas, como Espectro-Espelho, Magia Espírita, Transmutação e Combate exigem o uso da varinha. É essencial que você aprenda a usá-la.

           — Pode deixar — disse Lisa olhando o livrinho — Eu tentarei aprender os feitiços.

           — Se você tiver alguma dúvida é só me procurar! — Athus foi até a porta e abriu-a — O seu treinamento comigo só acontecerá em casos especiais quando você perder o domínio dos seus poderes. Está bem assim? — Lisa balançou a cabeça — Então até amanhã Lisa!

           — Até!

           A jovem Bruxa de Fogo sentou na poltrona e pegou o livro de Melody. Por um instante, Lisa pensou em como abri-lo. Era impossível conseguir o feito, ao menos se descobrisse o encantamento. Ela então pegou a varinha e abriu o livrinho de feitiços. Enquanto procurava um feitiço, ela descuidou-se e moveu a varinha. De repente um vaso estourou, voando cacos de vidro por toda a sala. Lisa fechou o livro e guardou a varinha rapidamente, assustada. Preciso ser mais cuidadosa!

 

           Zig e Cliffe esperavam Dan no campo de pouso de grifos e dragões quando o avistaram aparecendo entre as luzes do castelo do Príncipe. Ele usava um manto preto sobre a roupa de couro das aulas de Arte das Espadas e uma espada pendurada na cintura.

           — Pensamos que não vinha mais, não é Zig?

           — É Cliffe.

           Dan chegou arrumando o manto e parou perto do grifo.

           — Eu não iria deixar aquele idiota me desafiar e depois fugir do desafio!

           Zig subiu no grifo e passou a mão na sua cabeça.

           — Hoje nós vamos ver aquele Grump ser derrotado novamente, não é mesmo Garrinha!

           Dan subiu no seu grifo e estranhou Zig.

           — Garrinha?

           — É o nome que demos pra ele — disse Cliffe enquanto subia na ave em que seu irmão estava montado — E você, que nome vai dar para o seu?

           Dan pensou em um nome e olhou para as penas brilhantes do grifo.

           — Peninha! Esse vai ser o nome dele! — Dan riu e alisou as penas do animal — Vamos, Peninha!

           Os grifos levantaram voo e sobrevoaram o castelo dos Magos. Um vento frio tocou o rosto de Dan. O rapaz estava pensativo. Esperava que nada de ruim acontecesse a ele no penhasco. Queria que Lisa estivesse lá pra torcer por mim!

           O penhasco tinha cinquenta metros de altura e era cheio de pedras pontudas. Ao sobrevoar sobre ele, Dan não avistou ninguém. Será que aquele covarde foi embora?

           Os grifos continuaram voando e desceram o penhasco abaixo. Próximos do lugar, Grump e os outros esperavam pelo rapaz sobre uma pedra. Peninha sobrevoou sobre Grump e pousou sobre uma enorme rocha.

           O mar estava agitado. As ondas chocavam-se contra as pedras numa fúria descomunal. Ao ver Dan, Grump foi até a beira da pedra e apontou a mão esquerda para uma onda que vinha em sua direção. Ele flexionou os joelhos e pôs o braço direito na direção da cintura, com a mão fechada. Quando a onda aproximou, recolheu o braço esquerdo pra trás e esticou o braço direito para frente, abrindo a mão. De repente a onda partiu-se ao meio e o mar foi aberto numa distância de quinze metros de largura e trinta metros de comprimento. A água subiu e formou uma parede aquática.

           Dan saiu de cima do grifo e foi até Grump.

           — Pensei que não viria, Horcliffe!

           — Não se preocupe Grump, eu não iria te dar esse gostinho!

           Grump deu um risinho falso e passou ao lado de Dan, ficando atrás dele, virado para os outros.

          — A batalha será em cima da pedra. O primeiro que tocar as paredes d’água perde. Não há regras. A magia pode ser usada assim como os domínios dos seis elementos. Está bom assim pra você, Horcliffe?

           — Está ótimo!

           Os demais que estavam presentes começaram a gritar eufóricos para o início da batalha. Grump pegou sua espada e foi para cima da pedra. Dan passou os olhos pelas pessoas na esperança de encontrar Lisa. Ela não veio! Será melhor assim.

           O jovem tirou a espada da cintura e foi para o centro da parede de água. Gregor Hohio acendeu uma tocha de fogo na sua mão e lançou-a para o alto. Ao pegar uma determinada altura, a tocha explodiu como um fogo de artifício. A batalha começara!

           As mesas do refeitório estavam parcialmente cheias. Godric reparou o esvaziamento das mesas e voltou-se para Falco.

           — Estão faltando alguns aspirantes, Falco!

           — Eu já notei isso, Martius.

           Falco passou o olho pelas mesas e percebeu a falta de dois alunos em especial.

           — Eu acredito que já sei o que está acontecendo! Grump e Daniel não estão no refeitório.

           Falco levantou da mesa e saiu seguido por Godric. Athus reparou a saída dos dois e estranhou. Está acontecendo algo!

           As duas espadas batiam uma na outra e provocavam um ruído estridente que percorria todo o penhasco. Grump atacava como se estivesse numa guerra. Jamais se perdoaria se perdesse novamente. Era um orgulho Alleniano que passava de geração para geração.

           Ambos eram muito bons com as espadas. Dan nunca treinara com elas, mas aprendera com seu pai como manejá-las corretamente. Grump, ao contrário, crescera com uma espada na mão. Aprendera a atacar um inimigo e deixá-lo imóvel no chão. No entanto, habilidade não era suficiente, ele era inconsequente e não pensava antes de manejar os ataques. O manejo de espadas exigia uma habilidade física e mental. E o garoto possuía apenas a física. Seus ataques não eram pensados, o que favorecia Dan. E apenas um único e óbvio desejo ocupava seus pensamentos: Vencer!

          Dan tirou a espada de seu adversário e pulou contra o corpo dele para lançá-lo na parede de água. Mas Grump foi mais rápido e o jogou para longe usando a magia do vento. Em seguida, ele apontou a mão para a espada caída no chão. Ela moveu-se e foi ao seu encontro.

           Dan levantou-se e novamente foi arremessado para trás. Logo em seguida, Grump pulou até ele e atacou-o. Mas o rapaz ergueu sua espada e neutralizou o ataque do adversário. Grump permaneceu sobre Dan, caído no chão, por alguns segundos.

           — Você está perdido comigo, Horcliffe!

           — Eu já falei pra você que eu não gosto de gente que não sabe perder? Não? Então agora sabe!

           Um vento começou a sair do corpo de Dan. De repente a rajada ficou maior e jogou Grump para o alto. Ele girou no ar e caiu no chão. O rapaz vendo isso apontou seu dedo para o orgulhoso caído e tirou sua espada, jogando-a para o lado. No mesmo instante, permaneceu com o dedo em direção a Grump.

           — Saiba Horcliffe, que eu gosto de desafios sem espadas também! — disse Grump levantando e limpando o sangue que escorria de seu nariz.

           Ele pôs-se de pé e de seu bolso retirou uma varinha mágica. Os dois começaram a andar em círculos ao redor um do outro. Ambos estavam apreensivos, qualquer um atacaria a qualquer momento.

           Grump moveu a varinha e lançou uma bola de luz contra Dan, que se protegeu usando um escudo mágico. Voltaram a andar em círculos. Simultaneamente os dois atacaram com bolas de luz. As esferas luminosas chocaram-se uma na outra e provocaram uma imensa explosão brilhante.

           As pessoas ficaram ofuscadas por ela. Quando a visão voltou, os adversários não estavam mais sobre a pedra. Gregor foi até ela e olhou para os lados. De súbito um vento chamou sua atenção.

           Os oponentes voavam usando a magia do vento e atacavam um ao outro com suas espadas. Um deles afastou-se, mas foi seguido. De repente uma luz surgiu entre as nuvens, como se fosse um relâmpago, e uma esfera incandescente desceu para a terra e caiu dentro do mar.

           Dan atacava Grump com sua espada e em intervalos regulares usava seus poderes como bruxo. Em um dos ataques, ele lançou uma energia que empurrou seu inimigo para dentro do mar. No entanto, antes de tocar a água, Grump esticou os braços e as pernas e parou, flutuando. Ele ergueu-se sobre as águas e voltou a atacar usando a sua varinha. Dan foi jogado contra a pedra. Grump veio voando, ergueu sua espada e atacou-o. Porém, uma terceira lâmina tão fina quanto uma pena entrou em cena, parando-o.

           — Melissa, o que está fazendo? — gritou Dan.

           — Salvando você!

           Grump recuou pra trás com a espada.

           — Sua idiota! Como se atreve a interromper uma batalha?

           Melissa ia responder quando uma carruagem puxada por dois cavalos desceu voando de cima do penhasco e pousou sobre a pedra. Falco desceu da carruagem, seguido por Godric.

           — O que está acontecendo aqui? — perguntou Falco com um tom severo.

           Dan olhou assustado para Falco e para Godric.

           — Falco? Godric?

           Godric aproximou dos três e olhou para a parede de água.

           Grump adiantou-se e falou:

           — Foi culpa do Horcliffe. Ele insistiu em me desafiar novamente! Acho que ele não se cansa de me humilhar!

           Grump irritou Dan profundamente ao culpá-lo pelo que estava havendo. Era costume de Mcanfly esconder os seus atos e culpar os outros pelos seus feitos. No entanto, Godric podia ler a mente das pessoas e nenhuma verdade era oculta para ele.

           — Acredito, senhor Mcanfly, que nem sempre as coisas são da forma como queremos. Os dois não respeitaram os limites da Fonte Phoenix e vieram para o penhasco batalharem por algo desnecessário. A honra não consiste apenas em vencer, mas consiste em ter coragem para enfrentar os limites e os desafios da vida. Se você Mcanfly perdeu, deveria ter o senso de aceitar a derrota e não desafiar o adversário, como você deve ter feito...

           — Foi Horcliffe quem me desafiou... — interrompeu Grump.

           — O senhor deveria ter vergonha de acusar Daniel — disse Godric com uma voz calma — O senhor está suspenso dos treinamentos por quatro dias e...

           — Mas Godric... — disse Grump.

           Falco entrou na frente de Godric e encarou Grump.

           — Chega Mcanfly! O senhor já arrumou problemas demais por hoje!

           Mcanfly recolheu-se com os olhos ardendo em fúria e saiu de cima da pedra. Godric virou-se para Dan e falou:

           — O senhor também ficará suspenso por dois dias por ter aceitado participar disso tudo! — Godric virou-se para Melissa — A senhorita fez certo em intervir na batalha. Falco cuidará para que ganhe dois pontos nos treinamentos de Arte das Espadas.

           Ele deu uma última olhada nos três e foi para o outro lado da pedra dispensar os alunos que assistiam a tudo. Falco abriu a porta da carruagem e entrou. Antes de entrar, Godric ergueu a mão esquerda e fez um leve movimento com os dedos. As paredes de água se juntaram e formaram uma onda, chocando-se contra a pedra.

           Depois que a carruagem desapareceu sobre o penhasco, Grump esbarrou em Dan e virou-se para ele.

           — Você escapou por pouco Horcliffe!

           Ele saiu atrás dos outros. Melissa guardou sua espada e saiu de perto de Dan. Zig e Cliffe vieram com os grifos. Zig bateu nas costas de Dan e riu.

           — Uma mulher, Dan?

           O rapaz tirou a mão de Zig do ombro e montou nervoso no Peninha. O grifo bateu as asas e voou. No alto das nuvens, um pensamento passou pela sua cabeça e provocou um sentimento de raiva incontrolável. Quem ela pensa que é?

           Os alunos corriam atrasados para a aula de Espectro-Espelho com Goblin no Castelo dos Trons. A sala era repleta de espelhos verticais de dois metros de altura. Eles possuíam uma forma elíptica com bordas prateadas. O homenzinho pôs cada aluno em frente a um espelho de acordo com o seu domínio mágico.

           — Cada espelho reflete a alma do ser humano de diversas formas. Nem sempre todos são iguais. Alguns refletem o interior das pessoas e outros o escondem.

           Ele segurava uma varinha na mão e apontava para os objetos refletores como se eles fossem pessoas.

           — A magia contida nos espelhos está além dos nossos conhecimentos. Ela pode ser benéfica e maléfica. Alguém sabe quando um espelho pode servir o bem e o mal?

           Louise estava atrás de dois alunos. Ao ouvir a pergunta de Goblin, ela empurrou os alunos e ficou de frente para o homenzinho corcunda.

           — Um espelho se torna benéfico quando o seu reflexo é usado para curar o estado de espírito de uma pessoa. Mas se ele for utilizado de forma obscura, o espelho pode se tornar uma passagem para o reino das sombras.

           — Isso pode ser terrível! — Goblin aproximou de Lisa e apontou a varinha para ela — As sombras às vezes utilizam os espelhos para se procriarem e expandirem o seu domínio. Dor... sofrimento... angústia... e morte! Nada pode ser tão perverso quanto às trevas.

           Lisa fitava seu olhar na ponta da varinha quando Goblin virou-se para um espelho e apontou-a para ele. Uma luz saiu da varinha e atravessou o objeto formando várias ondas na sua superfície. O reflexo da sala começou a distorcer e formar algo negro. De súbito, uma criatura com chifres, dentes finos, olhos vermelhos, orelhas pontudas e pele cinzenta-escura, bateu as garras contra a superfície do espelho assustando todos os alunos.

           — Essa é uma Shadevil — Goblin aproximou-se do espelho e alisou a sua superfície. A criatura batia as garras ferozmente contra ele — Um demônio das sombras que habita os reflexos mais obscuros do mundo. Elas podem ser terríveis quando conseguem se libertar dessa prisão. Nem mesmo a magia pode detê-las.

           ‘As Shadevil foram expulsas do mundo de Aragorn há mais de quinhentos anos, pelo sacerdote Galenger Goldenwarth que as aprisionou em espelhos. Essas criaturas demoníacas viviam na Ilha das Sombras e serviam os Carrascos. Elas são cruéis, implacáveis e sanguinárias. Segundo algumas crenças, as Shadevil, apesar de estarem aprisionadas, podem sair da sua prisão para alimentar-se da carne dos bruxos se alguém que domina a arte dos espelhos as libertar. ’

           — Peguem suas varinhas e dirijam-se aos seus respectivos espelhos — Goblin esperou até os alunos se colocarem nos lugares indicados por ele no início da aula — Cada espelho possui uma Shadevil em seu interior. Nós aprenderemos a buscá-las para o nosso mundo. Mas cuidado, o feitiço que ensinarei pode reverter o portal e trazer a criatura para o mundo real. Antes de ensiná-los, precisam saber que o feitiço exige muita concentração, caso contrário, ele pode virar-se contra vocês e feri-los.

           O homenzinho corcunda pôs-se de frente para seu espelho e ergueu a varinha.

           — Ergam a varinha e apontem para o centro do espelho. Concentrem-se no que há dentro dele e não no reflexo. Agora repitam: Spectrum Liberto!

           Ao repetirem, uma luz saiu das varinhas e entrou nos espelhos. Goblin pediu para que esperassem alguns segundos.

           Depois de um tempo, as Shadevils começaram a surgir em alguns.

           Lisa estava parada aguardando o surgimento da criatura, mas nada acontecia. Goblin fitou o olhar no espelho dela. Aos poucos, algo surgia. Uma escuridão começou a tomar conta dos reflexos e de súbito uma luz saiu de dentro do espelho e atingiu a menina, jogando-a contra a parede da sala.

           Goblin correu até ela, caída no chão, e ajudou-a a levantar-se.

           — Como você está?

           — Bem — Lisa passou a mão na barriga e sentiu que seu manto havia sido queimado pela reversão do feitiço.

           — Venha, levante-se — Lisa levantou com um pouco de dificuldade — Você se feriu levemente. Vá até a enfermaria e faça um curativo.

           Ela saiu da sala com a mão no abdômen. Enquanto se afastava pôde ouvir Goblin explicando:

           — Isso é o que pode acontecer...

           Lisa abriu a porta do quarto e deitou-se na cama. Sentia tonteira e um mal-estar esquisito. Por um momento pensou ouvir vozes, mas ninguém se aproximava. Então fechou os olhos e dormiu.

           Lisa!... Lisa!...

           Bosque!... Lago!... Agora!

           A jovem sonhava com vozes e nuvens envolvendo o seu corpo. Havia uma escuridão sem fim que a atormentava. As nuvens abriram-se e uma pupila surgiu envolvida por chamas. Caindo dentro dela, um grito terrível a ensurdeceu, sendo segui- do por uma voz sussurrada e nefasta.

           — Te achei!

           Lisa acordou atormentada. O suor escorria em seu rosto como a chuva escorre numa superfície. Levantando-se, foi até a janela. Por um instante, olhou para o bosque atrás das muralhas e escutou um sussurro. Era a voz de uma menina.

           — Lisa!...

           Lisa virou-se e saiu do quarto.

           Godric entrava no refeitório do Castelo dos Bruxos apoiado em seu cetro dourado em forma de lua crescente com uma esfera no centro, quando Dan levantou da mesa e foi até ele.

           — Obrigado por ter acreditado em mim!

           Godric sorriu e pôs a mão no ombro do rapaz.

           — Isso faz parte das minhas habilidades como conselheiro do príncipe. Grump estava errado e eu não poderia protegê-lo. Você é uma grande pessoa, e pode crescer dentro da Fonte Phoenix. Mas é preciso, antes, tomar cuidado. Não se esqueça disso!

           Godric deu uma tapinha em seu ombro e continuou andando. Dan voltou para a mesa sem entender ao certo o que Martius Godric quis dizer com “é preciso tomar cuidado”.

           Os Pés Grandes estavam do outro lado da mesa. Zig rasgava com os dentes uma cocha de galinha com uma extrema ganância. Cliffe tentava arrancar um pernil de porco das mãos de Lich Marvel, um outro Pé Grande. Dan fez uma cara de repugnância ao vê-los e sentou-se à mesa, não percebendo que Louise estava ao seu lado.

           A moça não se conteve em perguntar por sua falta nos treinamentos.

           — Eu fui suspenso por dois dias das aulas, por Godric — respondeu Dan.

           Louise mordeu os lábios e começou a cortar uma cocha de galinha com a faca.

           — Eu soube o que aconteceu. Grump não vai desistir nem tão cedo... — Ela passou os olhos pelas mesas ao redor e no- tou que Lisa não estava ali — Dan, você viu, Lisa?

           — Não, por quê?

           — Estranho, ela já devia estar aqui!

           Dan passou os olhos pelas outras mesas e teve um mau pressentimento. Levantou da mesa e saiu do refeitório. Louise seguiu-o.

           As nuvens escuras cobriam o céu para uma tempestade que se aproximava. Uma ventania vinda do mar passou pelo penhasco e pelas muralhas da Fonte Phoenix batendo contra as costas de Lisa.

           A jovem dirigia-se ao portão oeste, onde ficava a saída para o bosque das Ninfas. O vento batia contra seus cabelos, erguendo-os. Em seu consciente vozes a chamavam para dentro do bosque, atormentando-a. Por um instante, o vento levantou seus cabelos e descobriu a marca no pescoço. Ela brilhava numa tonalidade azul escuro, quase passando para um tom negro.

           Dan e Louise saíram correndo de dentro do Castelo dos Bruxos e avistaram-na, aproximando-se do portão oeste.

           Ela continuava a andar lentamente. Em seu rosto, o suor escorria e parava na gola do manto. Seu olhar estava longínquo e mais escuro do que o normal. 

           Uma voz de criança gritava atormentada em seu ouvido.

           — Lisa!... Aqui!...

           Em alguns momentos, a voz confundia-se com o barulho do vento no ouvido de Lisa e sumia no ar lentamente, como um eco.

           Dan e Louise correram até ela e entraram na sua frente.

           — Lisa, por que você não foi ao refeitório? — perguntou Dan.

           Lisa olhou para os dois e tombou o pescoço para o lado.

           Em seguida, ela fechou os olhos e caiu, desmaiada.

           — Lisa!

          

           A   carruagem real era dourada e puxada por dois cavalos prateados. As crinas deles eram imensas e flutuavam no ar como uma chama envolvida pelo vento. Ela desceu por entre as nuvens carregadas e pousou no campo. Goblin correu até o transporte mágico e abriu a porta.

           O príncipe Gaya retornara de uma viagem ao Reino de Bladefire onde se encontrou com o rei Dragon. A viagem fora exaustiva. Ao passarem pelo mar Thorhand, a carruagem enfrentou uma grande tempestade e teve dificuldades para seguir em frente.

           Gaya saiu da carruagem vestindo um manto dourado e usando uma fina coroa de ouro na cabeça. Goblin curvou-se para o príncipe e para o comandante das tropas, William Fadness e mais dois guardiões reais. O homenzinho fechou a porta e correu até o príncipe.

           — Como foi a viagem, meu príncipe?

           — Exaustiva, Goblin!

           A expressão de Gaya era de extremo cansaço. Suas pálpebras pareciam cansadas e suas costas doíam depois de passar o dia inteiro dentro da carruagem.

           — Aconteceu alguma coisa enquanto estive fora, Goblin?

           — indagou preocupado.

           — Não, meu príncipe.

           Goblin tentou esconder a verdade, como Godric pedira. No entanto, Gaya sentiu um arrepio e parou. Fadness percebeu que o príncipe estava diferente e dirigiu-lhe a palavra.

           — O que foi, meu príncipe?

           — Alguém está na Fonte Phoenix. Ele a encontrou!

           Gaya abriu a porta da enfermaria e entrou apressado, sendo seguido por Fadness. Ao ver Lisa deitada numa cama, o príncipe balançou a cabeça e aproximou-se de Godric.

           — Ela está desacordada, meu príncipe! Eu já tentei de tudo — disse Martius.

           Ele passou a mão no rosto e olhou para Lisa. — Eu cheguei tarde demais, Godric!

           O bosque das ninfas tinha um aspecto nefasto destacado por seus carvalhos antigos e secos. Cada carvalho parecia ser uma criatura demoníaca que observava Lisa passar entre eles.

           O chão do bosque estava coberto pelas folhas que caíam e por finas raízes negras que se entrelaçavam umas nas outras, formando uma corrente que se estendia por todo o bosque.

           Uma voz meiga e aturdida sussurrava no ouvido da jovem, como um vento calmo, e a puxava para dentro do bosque. Ela estava sem os sentidos e sentia-se hipnotizada pela voz. Enquanto caminhava, visões enchiam os seus olhos atormentando seu espírito.

           Lisa viu nuvens negras cercarem o seu corpo e depois um rosto surgindo entre elas, chamando-a. A menina voltava a chamá-la, afastando as visões dos seus olhos.

           — Nós a encontramos andando em direção a saída do bosque das Ninfas — disse Dan ao seu lado — Quando perguntamos porque não tinha ido ao refeitório, ela desmaiou.

           Gaya queria saber o que havia acontecido com a jovem durante a sua ausência, porém não ficou a par de tudo. O pressentimento que sentira ao chegar à Fonte Phoenix o deixou preocupado. Ele sentia que algo estava errado.

           Godric estava em pé preparando uma compressa de água fria para por na testa da menina, para amenizar a febre. Ao prepará-la, ele sentou na beira da cama e a pôs em sua testa.

           — Ela está fervendo de febre, meu príncipe!

           Gaya parecia estar distante, tanto que nem escutou Godric dirigir-lhe a palavra. O príncipe deu uma olhada nas vestes de Lisa e notou que seu manto estava queimado no abdômen. — O que foi esse queimado?

           — Foi na aula de Espectro-Espelho com o professor Goblin — respondeu Louise — Um feitiço virou-se contra ela, machucando-a.

           Martius Godric olhou ao redor e não viu Goblin e nem Athus por perto. Onde eles estão?

           Lisa adentrava o bosque das ninfas. A cada passo, o bosque ficava mais escuro e sombrio. Um aspecto fúnebre tomava conta de fora a fora, porém, nada lhe assustava.

           Ela passou sobre algumas raízes grossas e negras, e parou ao ouvir uma voz rouca e fraca sussurrando em seu ouvido.

           — Lute! ... Não se deixe vencer!

           Olhou para os lados e prosseguiu ao ouvir outra voz, de menina, dizendo algo em seu ouvido.

           Gaya sentou ao lado de Lisa e pôs o seu dedo indicador direito na testa dela.

           — Algo está acontecendo com ela, eu sinto isso! E vou descobrir agora....

           Ele fechou os olhos e concentrou-se. Aos poucos um círculo luminoso começou a formar-se ao redor do seu dedo. De súbito, uma visão fúnebre e terrível o fez retirar o dedo bruscamente.

           — O que aconteceu, príncipe Gaya? — perguntou Godric.

           Gaya ficou pálido e trêmulo. A visão que teve foi terrível. Algo nefasto estava dentro da mente de Lisa e tomava todos os seus pensamentos.

           — Como isso aconteceu? — perguntou o príncipe assustado.

           Dan se aproximou do príncipe e perguntou a ele o que estava havendo. Gaya apenas olhou para Godric e levantou da cama.

           — Quando cheguei de viagem percebi que algo estava er- rado. Eu tive um pressentimento e agora ele se confirmou — disse, enquanto olhava para os lados sussurrando alto  —   Ele   está aqui!

           Martius Godric ficou sério e caiu sentado numa cadeira ao lado da cama. Não pode ser!

           — O espectro da Besta está no corpo de Lisa, e está tentando capturar... — Gaya ficou em silêncio. O que iria dizer era o que mais temia na vida. Ele olhou para Lisa e murmurou — o Sétimo Espírito!

           Godric fitou Gaya com um olhar assustado e voltou seu olhar para a garota. Dan saiu de onde estava e aproximou-se dos dois.

           — E o que é esse Sétimo Espírito? — perguntou Dan.

           Louise chegou por trás dele e respondeu à sua pergunta.

           — O Sétimo Espírito é o espírito de fogo da Fênix encarnado no corpo de um mortal.

           Godric levantou da cadeira e tirou a compressa da testa de Lisa, substituindo por outra. Em seguida, disse a Dan:

           — De tempos em tempos ele reencarna no corpo de um novo mortal. O Sétimo Espírito é extremamente poderoso e caracteriza as Bruxas de Fogo. É por ambição de poder que a Besta o persegue.

           Martius virou-se para o príncipe e perguntou:

           — O que vamos fazer príncipe, Gaya?

           Gaya passou a mão na cabeça e começou a andar pela enfermaria de um lado para o outro. Enquanto andava, o príncipe pensou em duas soluções para o problema e percebeu que um deles era impossível. O outro, no entanto, era extremamente perigoso.

           — Se quisermos salvar Lisa, teremos que entrar em seu inconsciente e expulsar o espectro de dentro dele!

           — É muito perigoso, alteza! — disse Godric — O senhor sabe que nenhum feitiço poderoso pode ser administrado no consciente de uma pessoa, caso contrário ela pode morrer!

           Dan observava Lisa inconsciente quando interveio na conversa dos dois com extrema determinação.

           — Se é a única forma de salvá-la... eu me disponibilizo para entrar em seu inconsciente!

           — Alteza, não é viável...

           Godric temia que algo acontecesse à menina. O druida sabia que para expulsar o espectro da Besta era necessário usar alguns feitiços de força significante, podendo por a vida de Lisa em risco. No entanto, era a única forma de salvá-la.

           — Eu vou entrar em seu inconsciente e você rapaz, vem comigo! — Gaya interrompeu Godric e aproximou-se de Lisa.

           Ele retirou a compressa d’água da testa da jovem e colocou seu dedo indicador direito nela. Depois virou-se para Dan.

           — Toque em meu ombro e concentre-se!

           Dan fez o que ele pediu e fechou os olhos. Martius Godric pensou em impedi-los, mas hesitou. Boa sorte!

           Um círculo luminoso abriu-se na testa da Bruxa de Fogo e liberou uma luz, que lentamente subiu pelo braço de Gaya e espalhou-se, chegando à Dan. Aos poucos os espíritos dos dois foram transferidos para dentro da consciência de Lisa.

            

           Um vento sombrio empurrou algumas folhas secas na direção deles. Os dois estavam próximos ao centro do bosque e já sentiam na pele o que era um arrepio medonho. O bosque estava impecavelmente negro. Uma sensação terrível de que estavam em perigo os preocupava.

           — Que lugar é esse? — perguntou Dan olhando para os carvalhos.

           Gaya olhou para os lados e identificou os carvalhos antigos que via.

           — Pelo que estou vendo, nós estamos no Bosque das Ninfas.

           — Lisa estava vindo pra cá quando a encontramos! — murmurou Dan.

           Na frente do príncipe havia um emaranhado de cipós entrelaçados um ao outro, pendurados numa árvore. Gaya tirou a espada da bainha e começou a cortá-los.

           — É provável que Lisa estivesse sendo atraída pra cá, quando a encontraram. Acredito que a Besta sentiu a sua presença e tirou a consciência dela, fazendo-a retornar ao bosque inconscientemente em seus sonhos.

           — Quer dizer que isso...

           Gaya parou de cortar os cipós e fitou Dan com um olhar sério e preocupante.

           — Não passa de um sonho!

           A voz rouca tentava afastar Lisa do centro do bosque sussurrando em seu ouvido. Porém, a voz da menina impedia-o e a puxava cada vez mais para o centro.

           Ela passou entre vários carvalhos próximos uns aos outros e desceu um pequeno barranco cheio de raízes grossas postas umas sobre as outras. Abaixo do barranco, havia uma parte plana com um pequeno lago de águas negras. Uma voz rouca e fraca voltou a sussurrar em seus ouvidos. Lisa olhou para a margem do lago e viu uma criatura cinza abaixada olhando para o seu reflexo.

           A criatura tinha orelhas pontudas e olhos grandes de cor verde. O nariz dela era grande e tinha a ponta caída. Ela não vestia quase nada, apenas um pano cinza rasgado que era usado como uma tanga. Havia em seu rosto uma expressão triste que enchia os olhos dela de água.

           — Eu temia que você não resistisse! — disse a criatura tocando o dedo na água.

           Lisa continuava andando hipnotizada pelo grito da menina sem dar atenção.

           A criatura levantou-se e pulou apoiada pelas mãos até ela. Segurou o seu braço e murmurou:

           — Você não vai ser ninguém se não recuperar seus sentidos. Desperte, menina!

           Lisa virou a cabeça devagar para a criatura, assustando-a com seus olhos negros.

           A mesma soltou sua mão e afastou-se para trás com os olhos cheios de água. A menina virou o rosto e continuou andando pela borda do lago.

           Gaya cortava os cipós com a espada e abria caminho para os dois passarem. Dan seguia o príncipe, atento aos perigos do bosque. Ao abrir alguns cipós para os lados, o rapaz sentiu algo se mexer atrás dele. Virou-se e não viu nada, a não ser um galho que balançava de um lado para o outro.

           Gaya cortou um cipó e pisou sobre uma raiz grossa de carvalho. Ele olhou para os lados tentando encontrar um jeito mais fácil de achar Lisa.

           Dan parou ao seu lado e escutou novamente algo se mexer. Virou-se para trás e nada viu. Ao retornar o olhar, um cipó grande e enrugado agarrou na perna do príncipe e o puxou para o alto das árvores. O rapaz pegou a espada de sua alteza que caíra e na tentativa fútil de cortar a raiz, algo segurou em seus pés puxando-o para dentro do bosque.

           O rapaz era arrastado sobre as raízes de um lado para o outro, passando entre as árvores e enrolando-se em outros cipós. De repente uma luz brilhou por trás dele. Em seguida, olhou para os carvalhos e viu o príncipe pulando entre as árvores tentando acompanhá-lo.

           Gaya pulou do galho e ergueu a espada cortando o cipó que arrastava Dan. O pedaço restante desapareceu na escuridão do bosque.

           Gaya entrou na frente de Dan segurando a espada e olhou para os lados. O príncipe escutava algo se mexer em alguma parte do bosque. Um silêncio tomou conta da escuridão. Tudo parecia calmo e sem perigo. O barulho que ouvira desaparecera. Ele então guardou a espada e começou a andar.

           Dan seguia o príncipe quando virou bruscamente para trás apontando o dedo indicador com uma luz acesa na ponta. Olhou para os lados e não viu nada. A luz apagou e ele abaixou o dedo.

           Após saírem do local, uma raiz grossa rastejou por entre os carvalhos e parou perto do pé de um homem encapuzado. O homem entrou atrás de uma árvore e desapareceu.

           Na ponta do lago, uma menina estava sentada sobre uma pedra, chorando. Lisa aproximou-se, seguida pela criatura.

           A menina parecia ter seis anos de idade. Era loira de olhos azuis e bela como um anjinho. Ela usava um vestido branco quase transparente. Havia na sua cabeça uma coroa feita de cipós verdes com algumas flores brancas.

           Lisa pôs a mão no ombro da menina e perguntou:

           — Por que está chorando?

           A menina virou e abraçou-a chorando.

           — Eu pensei que não viria, Lisa — A voz da menina era doce e encantadora.

           A criatura, que estava atrás de Lisa, fez uma careta feia mostrando seus dentes sujos e pontudos. A menina, por sua vez, arregalou os olhos com um imenso brilho, fazendo-a se afastar.

           A criança passou a mão no rosto de Lisa e fitou seu olhar nos olhos escuros dela. A criatura retirou a mão da menina, empurrando-a e depois entrou na frente da jovem, abrindo os abraços como em defesa.

           — Não se aproxime! — gritou a criatura fazendo cara feia.

           A menina começou a chorar novamente e gritou para a criatura:

           — Eu não gosto de você! Você é muito feio!

           Lisa correu até a menina e pegou-a no colo.

           —Vá embora criatura!

           A criatura abaixou os braços e afastou para trás com as orelhas abaixadas. A jovem levantou a menina nos braços e saiu para dentro do bosque. A criatura encheu os olhos de água e enxugou uma lágrima do olho com o dedo sujo de terra. Não faça isso, menina!

           Gaya estava parado com os olhos fechados. Dan o observava, tentando imaginar o que ele estava fazendo. Por fim, o príncipe abriu os olhos e o olhou.

           — Ela está perto daqui, eu senti a presença do espírito dela.

           Mas, ela está acompanhada por alguém. Eu não sei quem é!

           — Será que é a Besta?

           — Não sei dizer.

           A pergunta de Dan o deixou mais preocupado. Ela poderia estar com a Besta e ele não podia fazer nada. O príncipe sabia que no consciente de Lisa, um feitiço muito poderoso não poderia ser utilizado, isso a mataria. Gaya sentia-se inválido. Afinal, o que poderia fazer? A Besta era muito forte, e somente um feitiço poderia expulsá-la. A cada pensamento, o príncipe ficava mais aturdido com essa possibilidade de estar ali em vão.

           Dan não media as consequências que poderia haver se manejasse um feitiço forte. A sua única intenção era encontrar Lisa e tirá-la dali. Mas como?

           Gaya começou a andar na direção onde a energia de Lisa estava vindo. De repente, ao pisar sobre uma raiz, algo se mexeu debaixo dos seus pés. Ele parou e ficou quieto. Dan preparou a sua mão direita para atacar.

           Alguém está por perto! Gaya sentia a presença, mas não sabia onde estava.

           Aos poucos, uma raiz rastejou debaixo das folhas e saiu ferozmente para o alto, batendo em Dan e jogando-o contra o tronco de uma árvore. Gaya pegou sua espada, mas conteve-se em atacar quando viu várias raízes grossas saindo da terra, movimen- tando-se no ar como chicotes.

           O rapaz levantou do chão com um pouco de dificuldade e ficou em pé. Ao olhar para o príncipe, gritou:

           — Gaya!

           Uma raiz gigante bateu contra o príncipe jogando-o para o ar. Ao cair no chão, uma raiz desceu contra seu corpo numa força esmagadora. Ele rolou para o lado e tentou fugir rastejando da raiz que o atacava sem parar.

           Dan preparou um feitiço e saiu correndo. As raízes tentavam matá-lo, mas ele pulava sobre elas e desviava de todas.

           Em um dos saltos, uma raiz bateu contra as suas costelas e o jogou para o chão. Imediatamente ela ergueu-se novamente e desceu contra o rapaz. Dan levantou rapidamente e apontou o dedo para a raiz. Uma luz brilhante saiu de seu dedo indicador e explodiu-a.

           A criatura estava abaixada na beira do lago mexendo a água com sua mão esquerda. Uma lágrima saiu dos seus olhos e escorreu pelo seu rosto até cair na água. Uma pequena onda luminosa se formou no lago, chamando a atenção dela.

           Dan correu até o príncipe, o mesmo tirou sua varinha dourada do bolso e apontou-a contra uma raiz grossa, explodindo-a com um feitiço.

           Uma maior ainda os alcançou e bateu como um chicote em suas pernas. Os dois deram um pulo e desviaram dela. Ao aterrissarem no chão um cipó fino, porém forte o bastante para arremessá-los, levantou Dan pelo manto, mas o rapaz foi astuto e o retirou, caindo no chão.

           O príncipe Gaya pegou a sua espada e saiu cortando as raízes mais finas. Porém, as mais grossas batiam contra seu corpo e o arremessavam contra os troncos dos carvalhos.

           Duas delas ergueram-se no ar e desceram contra o corpo de Dan. O rapaz levantou e saiu correndo. No entanto, um cipó puxou-o por trás. As duas raízes ergueram-se novamente e desceram contra ele.

           A criaturinha apareceu atrás de um carvalho e fez um movimento com o dedo polegar e o indicador. De repente uma luz forte surgiu por de trás e ofuscou Dan e o príncipe.

           Após a luz desaparecer, o rapaz olhou para frente e viu todas as raízes petrificadas, levantou-se um pouco dolorido pelos ferimentos e tocou numa delas. O príncipe pôs-se em pé também machucado e ficou incrédulo com o que havia acontecido.

           — Quem terá feito isso?

           Gaya olhou para os lados a procura do autor do feitiço, mas não viu ninguém.  Ao dar um passo à frente, um vento saiu de baixo de seus pés e ergueu as folhas do chão fazendo uma linha reta em direção ao interior do bosque.

           Dan abaixou perto da linha e tocou o chão.

           — Parece que alguém quer que nós sigamos essa linha!

           A menina estava segurando a mão de Lisa e puxava-a para dentro de uma espécie de um túnel subterrâneo.

           Lisa desceu os degraus do túnel e parou na entrada do corredor.

           — Porque parou? — perguntou a menina sorrindo.

           — Está escuro!

           A voz de Lisa parecia estar mais lenta. Era como se ela fosse forçada a conversar sem querer.

           — Se for por causa disso...

           A menina estalou os dedos e de chofre as tochas de fogo penduradas nas paredes acenderam.

           — Está bom assim? — indagou a menina. Lisa balançou a cabeça e a seguiu.

           A criaturinha observava Dan e Gaya passarem pela borda do lago e seguirem a linha feita pelo vento, do alto de um carvalho.

           O rapaz passou perto do lago olhando para as águas negras, tentando imaginar porque elas tinham aquela coloração. Por um momento, sentiu algo ruim vindo dele. Era uma sensação estranha, esquisita.

           Gaya tirou a atenção da linha e viu marcas de pés na borda do lago.

           — Ela esteve aqui — disse Gaya ao abaixar — Pelo visto ela foi naquela direção...

           — Exatamente para onde a linha está apontando — observou Dan.

           Gaya levantou e continuou a andar na direção da linha. — Vamos, não podemos perder tempo!

           Lisa e a menina pararam em frente a uma porta. A criança virou-se para ela com os olhos cheios d’água e pediu para que abrisse a porta.

           — Como eu vou abri-la? Não tem chave! — exclamou Lisa.

           — Use a sua varinha.

           A porta era de pedra e tinha algumas gravuras cravadas nela. No canto havia uma fechadura pequena envolvida por um círculo com um triângulo no centro.

           Lisa tirou a varinha do bolso e apontou para a porta. Por um instante, algo veio em sua cabeça.

           — Por que eu deveria abrir essa porta?

           A menina a fitou assustada e recomeçou a chorar.

           — Eu moro lá dentro — disse a menina envolta por lágrimas — Eu saí para brincar e a porta se fechou. Por favor, abre!

           Lisa olhou para o rosto angelical da menina e não suportou a ideia de deixar a porta fechada.

           A entrada para o túnel subterrâneo era uma construção quadrada de dois metros de altura feita com pedras. A construção descia para dentro da terra e as escadas guiavam até o corredor.

           Gaya tirou a espada da bainha e entrou no túnel. Antes de Dan entrar, algo mexeu por trás de um carvalho e saiu andando pela escuridão. O rapaz olhou rapidamente e pensou ter visto um homem encapuzado correndo.

           Ele se aproximou dos carvalhos e olhou para os lados, mas não viu nada.

           Lisa ergueu a varinha e apontou para a fechadura.

           Um vento passou pelo rosto da menina, erguendo seus cabelos. Ela olhou para o túnel e teve um pressentimento.

           Lisa encostou a varinha na fechadura e uma luz passou por ela. Antes dela terminar o feitiço, Gaya surgiu no corredor, impedindo-a.

           — Lisa, não!

           Lisa tirou a varinha da fechadura e virou para trás.

           — Não faça isso, Lisa!

           — Gaya! — exclamou a jovem.

           Ela olhou para seu lado esquerdo e não viu mais a menina.

           Olhava para todos os lados e nada.

           Ela desaparecera.

           De repente, os olhos de Lisa foram clareando e voltando a cor normal. Aos poucos, uma luz saiu do seu corpo, espalhan- do-se pelo corredor como uma ventania.

           Dan chegou atrás de Gaya quando a luz o tomou e ofuscou a sua visão num clarão sem fim.

 

           O sol nascia sobre as muralhas da Fonte Phoenix num espetáculo inigualável. Seus raios calmos e delicados atravessavam a janela do quarto de Lisa e tocavam seu rosto, iluminando-o de graciosidade.

           Ela despertou lentamente como se nada tivesse acontecido. Levantando da cama, caminhou até o banheiro. Depois de alguns minutos, retornou vestida com um manto preto e se dirigiu para a antessala.

           Ao entrar na sala deparou-se com Louise e Godric sentados nas poltronas. Quando viu Gaya e Dan, Lisa reparou que ambos apresentavam alguns arranhões no rosto. O príncipe, em especial, possuía um pequeno corte na testa. No entanto, a garota não quis perguntar o que havia acontecido.

           — Dormiu bem, Lisa? — perguntou Godric.

           — Dormi. — ela respondeu sem entender porque eles estavam na sala.

             Lisa passou um olhar rápido sobre todos e percebeu que suas feições estavam diferentes.

           — Aconteceu alguma coisa?

           Príncipe Gaya lançou um olhar para Godric e pediu para que ela se sentasse. Em seguida apoiou seus braços nos joelhos e perguntou:

           — Você não se lembra de nada?

           Lisa ficou quieta.

           — Me desculpe, mas eu não sei do que está falando!

           Gaya recostou-se na poltrona e suspirou levemente.

           — Você lembra de algum sonho?

           — Sonho? — Lisa pensou por alguns instantes. Umas imagens rápidas vieram em sua mente e desapareceram. — Acho que sonhei com alguma coisa. Por quê?

           — Poderia nos contar com o quê você sonhou? — perguntou Godric prestando atenção em sua resposta.

           Lisa olhou novamente para todos. Ela não conseguia entender o porquê daquelas perguntas.

           — Eu sonhei com um bosque... uma menina, talvez! Mas, por que querem saber?

           O príncipe levantou da poltrona e deu uma volta na sala, parando perto da lareira. Em seguida, virou-se para a garota com uma expressão séria.

           — Lisa, na noite passada você foi dominada pelo espectro da Besta e ficou inconsciente. Não sabemos como isso aconteceu, mas Ele a encontrou.

           Ela não disse nada de imediato. Apenas ficou quieta lembrando-se do que sonhara. Por um instante, teve um arrepio e tentou controlá-lo.

           Godric levantou da poltrona e foi até a janela. O amanhecer estava magnificamente belo. Os raios solares bateram contra sua face e iluminaram a sua longa barba branca.

           — Eu creio, príncipe Gaya, que a Besta procurava al- go no inconsciente de Lisa, muito além do Sétimo Espírito.

           — O que quer dizer com isso? — perguntou Gaya virando-se para Martius Godric.

           — O Sétimo Espírito não pode ser encontrado no inconsciente de uma pessoa. Ele é a alma dela e está presente em cada movimento do mortal. Se a Besta quisesse pegá-lo, ela não usaria essa artimanha. No máximo, mandaria os Carrascos atrás de Lisa para pegá-la.

           — Então o que Ele procurava?

           Godric voltou para a sala e sentou ao lado de Lisa.

           — Me diga uma coisa, você viu alguma porta de pedra no sonho?

           Lisa pensou e confirmou com a cabeça depois de alguns segundos. Godric olhou sério para o príncipe, que não entendeu o motivo da pergunta.

           — Eu e Dan vimos a porta também. Mas o que tem ela? — perguntou Gaya intrigado.

           Godric não respondeu. Levantou misterioso da poltrona e foi até a porta. Depois de abri-la, parou na saída, alisou a longa barba e disse:

           — Nada de mais, meu príncipe. Nada de mais...

           Gaya estranhou o homem e saiu atrás dele, chamando-o pelo nome.

           Martius Godric era um homem misterioso e guardava muitos segredos consigo. Na maioria das vezes, escondia o que estava acontecendo para que nenhum outro mal maior pudesse ser provocado. Talvez isso fosse o que ele pensava sobre a tal “porta de pedra”.

           Lisa levantou da poltrona e foi até a lareira. Ao virar-se para Dan e Louise, perguntou: — O que deu neles?

           Os moradores do Castelo dos Bruxos estavam todos reunidos no refeitório tomando café da manhã. As mesas estavam cheias de frutas, pães e sucos de variados sabores. Havia ainda uma variedade de geleias e doces para acompanhar os pães.

           Dan cortou uma fatia de pão com uma faca e passou geleia de musgram, sua preferida. A fruta o fazia lembrar, de sua mãe que as colhia ao entardecer. — É para deixá-los de um dia para o outro! —, ela dizia quando o filho pergunta o porquê do motivo de retirá-las naquele horário.

           Sua mãe levantava bem cedo e preparava a geleia antes que ele pudesse acordar. Ao levantar, os pães já estavam sobre a mesa à sua espera.

           — Está gostoso, Dan? — perguntava sua mãe com um sorriso satisfeito no rosto ao ver o filho devorar o pão.

           — Muito!

           — Que bom, querido!

           As lembranças do rapaz eram vagas e só apareciam em momentos especiais.

           Ele suspirou e guardou a lembrança consigo. Em seguida, bebeu um cálice de suco e olhou para Lisa à sua frente na mesa.

           — Pensei que iria te perder!

           Lisa ficou em silêncio e fitou os olhos dele. Por um segundo, ela reparou algo em seus olhos que a fez sentir algo diferente, inexplicável.

           — Eu não me lembro de quase nada que aconteceu...

           Dan largou um pedaço de pão e pôs a sua mão sobre a dela. — Não se preocupe Lisa, é passado e não tem importância!

           A garota retirou sua mão debaixo da mão de Dan e sorriu. Naquele momento, ela tirou sua atenção do rapaz e passou a pensar na menina do sonho. Por um instante uma pergunta tomou conta de sua mente. Quem era aquela menina?

           A sala número dois de Magia Espírita possuía três mesas grandes dispostas horizontalmente. Os aspirantes sentavam perto uns dos outros e só conseguiam sair pelas laterais da sala.

           Lisa, Louise e Dan sentavam na segunda mesa, a partir da terceira cadeira, da esquerda para a direita. À frente das mesas havia um quadro negro com um retroprojetor sobre a mesa de Athus, projetando algumas imagens.

           — Os Carrascos habitaram todos os reinos de Aragorn até o século X, quando foram expulsos dos reinos e levados para a Ilha das Sombras.

           Athus Lupus exibia algumas fotografias dos Carrascos de acordo com as passagens da aula. Elas mostravam alguns segurando espadas, adagas e uma espécie de machado gigante.

           — Como podem ver, são criaturas que vivem cobertas por um pano negro para esconder as suas verdadeiras faces. Antes de serem expulsos dos reinos, eles trabalhavam nos castelos como funcionários executores de penas de morte. Após ser instituída a criação da Fonte Phoenix pelos seis sacerdotes, os Carrascos foram proibidos de saírem da Ilha das Sombras e de vagar pelos reinos.

           — Athus, por que os Carrascos foram expulsos dos reinos?

           — perguntou Gregor Hohio.

           Ele desligou o retroprojetor e sentou sobre a mesa.

           — Além das penas de mortes, tais criaturas passaram a executar pessoas inocentes e tornaram-se uma ameaça para os reinos. A princípio, eles apenas serviam os reinos, mas com o tempo, passaram a desejar conquistá-los.

           Athus desceu de cima da mesa e percorreu a sala de aula, parando em frente à Lisa.

           — Os Carrascos são desumanos e extremamente frios. Não há limite para as suas perversidades.

           Lisa sentiu um calafrio e um incomodo em sua marca no pescoço.

           — Athus, é verdade que a Besta é um Carrasco?  — perguntou Louise.

           — A Besta foi um Carrasco do Reino de Grifus Allenah. Ela é a mais ambiciosa de todos que existem e a mais terrível.

           Athus afastou-se da mesa e fitou Lisa com uma expressão séria e misteriosa.

           — A Besta é o rei de todos os Carrascos e o único Ser indestrutível por meros habitantes de Aragorn. Ele é implacável, cruel e terrivelmente horripilante!

           A sua voz ecoou no ouvido de Lisa como um trovão furioso. De repente, ela teve um pressentimento ruim e uma lembrança que a deixou com calafrios.

           Eu vejo as trevas em torno de você. Eu vejo angústia... dor... sofrimento... e morte!

 

           O    período de férias era bem curto e não passava de duas semanas. Devido ao curto tempo de folga, a maioria dos aspirantes permaneciam nos castelos e passavam as férias na própria Fonte Phoenix ou nas aldeias próximas a ela.

           Os alunos que possuíam meios de transportes como grifos, carruagens, cavalos alados e dragões, podiam fazer longas viagens e curtir ao máximo as duas semanas sem treinamento.

           A maioria dos treinadores viajava para seus reinos e retornavam quatro dias antes do retorno dos estudantes para formarem um concílio que definia as novas regras para o semestre final.

           Enquanto aspirantes e treinadores se preparavam para sair da Fonte Phoenix, Gaya preparava uma reunião com os reis dos cinco reinos: Allenah, Bellyhan, Thunderay, Crystalice e Goldenwarth. Somente o reino de Bladfire não participaria, pois o rei Dragon tinha outros afazeres mais importantes.

           A reunião de Gaya com os cinco reis era secreta, sendo proibida a entrada de qualquer penetra. Tudo acontecia numa câmara subterrânea abaixo do castelo principal.

           Desde a fundação da Fonte Phoenix, a câmara servira para concílios e reuniões secretas. Suas portas eram protegidas por sete chaves mágicas e por oito Trasgos que vigiavam a passagem. Era impossível interromper a reunião.

           Lisa preparou ansiosa as malas para partir com Dan e os Pés Grandes, para a aldeia das Ruínas Antigas, onde passariam quatro dias na casa de um tio de Zig e Cliffe.

           Retirando a varinha do bolso, apontou-a para as bagagens transformando-as em minúsculas maletas, facilitando para carregar.

           A garota pegou as malas e guardou-as no bolso da calça. Antes de sair do quarto, lembrou-se do livro de Melody e voltou para pegá-lo. Quem sabe eu não consiga abri-lo!

           Zig e Cliffe já estavam montados no Garrinha e voavam sobre os castelos da Fonte Phoenix enquanto esperavam por Lisa. Dan sentou-se num banco abaixo de uma árvore e tirou a esfera dourada do bolso.

           A esfera começou a levitar e dar voltas em torno de si, fazendo-o voltar ao passado e lembrar de quando seu pai brincava com ela, girando-a em torno do menino pequeno.

           O jardim da entrada sul da Fonte Phoenix era imenso e indescritivelmente belo. Ele era formado por canteiros de tulipas, margaridas, rosas e arbustos que eram podados em formas de grifos, gnomos, dragões pequenos e cavalos alados.

           No centro do jardim havia um chafariz com uma estátua de um anjo segurando uma espada. Dentro do chafariz havia alguns peixes ornamentais que recebiam comidas pelos aspirantes em horas vagas. Ao redor do anjo havia também pequenas cabeças de grifos e dragões que jogavam água na estátua.

           Lisa passava perto do chafariz quando Athus parou-a e tirou uma chave dourada em forma de grifo do bolso.

           — Leve com você, Lisa! É pra dar sorte!

           — Obrigada! — agradeceu Lisa olhando a chave — Eu vou levá-la, mas acredito que não vou precisar.

           A chave tinha um grifo em pé com as asas abertas e uma inscrição na ponta: Grifus Allenah.

           — Leve ela assim mesmo. Assim terá férias inesquecíveis.

           Ela sorriu para Athus e abraçou-o.

           — Obrigada!

           — Boa sorte!

           Após Lisa desaparecer no jardim, Athus virou para Goblin que surgia atrás dele e fitou-o com um olhar sério. O homenzinho sorriu sem graça e saiu na direção do Castelo dos Trons.

           A esfera dourada subia e descia nas mãos de Dan, girando de um lado para o outro, como se estivesse em órbita em torno do rapaz. Em um dos giros, ela passou por sobre um ninho de canário sobre a árvore, chamando a atenção do pássaro que passou a segui-la, encantado por tanta leveza.

           Dan viu o pássaro voando atrás da esfera e passou a brincar com ele, fazendo a bola ir para frente e voltar bruscamente para trás. O pequeno animal de penas a fitava vindo em sua direção e saía voando e piando como um desesperado.

           Lisa chegou ao campo de pouso e parou de repente, para deixar o canário passar sendo seguido pela esfera. Ele voou por trás da árvore e voltou em direção ao rapaz.

           Dan tirou a atenção do objeto ao ver a garota. Quando ele menos esperou a esfera veio em sua direção e acertou-o no meio da testa. No impacto da batida, ele caiu do banco e ficou de pernas pro ar.

           Lisa olhou para o amigo e começou a rir sem parar junto com o canarinho que cantava como se fosse uma risada.

           O grifo dos Pés Grandes sobrevoou sobre os jovens. Zig olhou para a posição de Dan e começou a tirar sarro do alto. No entanto, o rapaz pegou rapidamente a esfera caída ao seu lado e laçou-a contra o primo, acertando bem no meio do seu nariz e derrubando-o de cima do grifo.

           Em seguida, a esfera quebrou o vidro da janela de uma das salas do Castelo do Príncipe e bateu contra uma armadura no canto da parede sendo rebatida em direção a Martius Godric.

           Godric virou para trás, ergueu a mão na altura dos olhos e agarrou a esfera.

           Cliffe viu a janela quebrada e foi voando até ela. O grifo parou em frente à Godric que o esperava com uma cara zangada.

           Ele abriu a janela, desfez a cara de zangado e entregou a esfera para Cliffe. O Pé Grande sorriu para Martius sendo correspondido por um outro sorriso mais afável.

           — Que isso não se repita — murmurou Godric depois de o grifo sair.

           O canarinho cantava alegremente quando voava sobre o jardim sul. Ele passou sobre a estátua do anjo e seguiu na direção do castelo dos Trons.

           Goblin chegava á entrada do castelo, quando o canário começou a voar em volta dele. O homenzinho corcunda batia as mãos contra o passarinho na tentativa de afastá-lo, até que o mesmo se cansou e seguiu voando sobre o castelo.

           Ao passar pelas carruagens do Castelo dos Magos, o pássaro voou em torno dos cavalos até ser acertado pelo chicote de um mago que saía com a carruagem.

           Garrinha e Peninha voaram por entre as torres do Castelo dos Druidas e passaram sobre a muralha norte da Fonte Phoenix.

           Os grifos subiram para as nuvens dando um banho de respingos d’água em Lisa, Dan e os Pés Grandes. Em seguida desce- ram novamente para baixo e deram um voo rasante sobre du- as carruagens que seguiam na direção das Ruínas Antigas.

           As carruagens eram divididas em dois grupos: as aéreas e as terrestres. Normalmente, as aéreas eram muito utilizadas por pessoas ricas e importantes como o príncipe Gaya. As terrestres eram usadas apenas por vendedores ambulantes, viajantes e por pessoas de classe baixa.

           Se quisesse, Dan e os Pés Grandes poderiam levar Lisa para as Ruínas Antigas, numa das carruagens terrestre da Fonte Phoenix. Porém, ele preferiu ir com os grifos, era mais rápido e poderiam aproveitar melhor a paisagem das terras do príncipe.

           As terras de Gaya recebiam o nome de Reino da Fênix, por ser o lugar onde teria nascido a primeira Bruxa de Fogo. O lugar pertencia originalmente ao Reino de Allenah, quando foi desmembrado para ser fundada a Fonte Phoenix pelos seis sacerdotes. A princípio, a construção da Fonte tinha como objetivo treinar os cavaleiros para servirem aos seis reinos. Porém, com o surgimento da ameaça representada pelos Carrascos, Phoenix tornou-se o centro do Mundo de Aragorn e a casa dos mais poderosos habitantes dos seis reinos.

           A vegetação do Reino da Fênix era bastante variada, partindo de simples vegetações campestres até imensas florestas habitadas por seres fantásticos do Mundo de Aragorn.

           O relevo também era bastante variado, com muitas depressões a leste, planícies a oeste, planaltos a norte e sul; e elevadas montanhas no centro do reino.

           Além do belo relevo, havia também um grande cânion no rio Maykerland de quase novecentos e cinquenta metros de altura que encantava qualquer um que passasse por ele.

           Lisa sentiu um frio na barriga quando Peninha desceu perto da parede rochosa do grande cânion e subiu novamente por ela. Ao chegar ao topo, as asas do grifo revelaram uma maravilha a sua frente. As paredes do cânion formavam uma muralha rochosa que protegia o frágil rio de águas azul-claras.

          Maykerland era um rio de quase quinhentos metros de largura entre as gigantes paredes rochosas. Além do cânion, o rio era protegido por uma extensa área de mata ciliar que sobrevivia entre a formação de rochas.

           Os dois grifos desceram do alto do cânion e deram um voo rasante sobre suas águas transparentes.

           Um peixe nadou por cima da água, chamando a atenção de Garrinha. O grifo mudou seu curso e passou a perseguir o peixe. Zig tentou impedi-lo puxando em suas penas, mas não conseguiu.

           Peninha subiu novamente para o alto e passou por baixo

           de uma espécie de ponte rochosa que ligava as duas extremidades do cânion. Ao chegarem ao topo, Lisa sentiu a falta dos Pés Grandes e olhou para baixo.

           Garrinha vinha atrás deles com um peixe no bico e com as penas molhadas. Sobre o grifo, Cliffe torcia a blusa completamente encharcada e Zig tirava um peixinho de dentro da calça, ao jogá-lo, o grande animal voador voltou para trás e pegou-o. Por um momento ele quase caiu do grifo.

           Lisa voltou a olhar pra frente com um sorriso no rosto, que ficou maior ao ver o sol se pondo entre as montanhas.

           A   aldeia das Ruínas Antigas possuía quase dois mil habitantes, numa área montanhosa de setecentos metros de altura. As casas eram construídas com uma fibra retirada de um cipó grosso das florestas do litoral, entrelaçadas umas nas outras formando uma parede impenetrável por insetos e animais perigosos. A tapagem era feita por folhas de uma palmeira que só podiam ser retiradas, segundo lendas dos aldeões, na lua cheia.

           A maior parte da aldeia era habitada por Pés Grandes do Reino de Bellyhan que ajudaram a fundar a Fonte Phoenix. Após a fundação, eles migraram para o nordeste do Reino da Fênix e fundaram a aldeia que recebeu o nome Ruínas Antigas, devido à existência de algumas ruínas no alto da montanha ao norte.

           A aldeia possuía dez ruas cruzadas que ligavam ao centro, a praça. As ruas eram estreitas e estavam cheias de poças d’água provenientes das chuvas que ocorreram um dia antes de Dan chegar.

           Em uma das ruas havia um templo onde uma pedra azul estava guardada. Segundo os moradores, a pedra era sagrada e tinha sido enviada pelos céus para proteger o lugar.

           Os aldeões veneravam a pedra e a protegiam a qualquer custo. Para tanta proteção, o templo foi construído com várias armadilhas mortais para matar todo aquele que tentasse entrar.

           O grandioso templo de pedra foi construído um ano depois da fundação da Fonte Phoenix. Ele tinha uma grandiosa porta de madeira que dava acesso a uma outra porta de pedra. Para abri-la, era necessário acionar um mecanismo escondido, que só os aldeões conheciam. Além do mecanismo de entrada, era necessário acionar um outro mecanismo para poder passar pelo corredor, caso contrário, várias flechas envenenadas na ponta matariam o intruso em questão de segundos.

           Os Pés Grandes, além de serem conhecidos como grandes foliões e bem fracos nas áreas da magia e do domínio dos elementos, eram admirados pela extrema habilidade na criação de mecanismos de proteção.

           São as únicas criaturas de Aragorn que podem criar armadilhas poderosas sem haver nenhuma falha. Em milhares de anos, nunca houve relatos de pessoas que conseguiram driblar as armadilhas e entrar nos templos, aldeias secretas e cabanas particulares. É totalmente impossível!

           A aldeia era governada pelo ancião mais velho entre todos, chamado de Manah, que significa “aquele que sabe”, na antiga língua dos Pés Grandes.

           Manah era um ancião magro de barba longa e comprida. Ele usava um chapéu em formato de um quadrado que só tapava um pequeno pedaço da sua cabeça, e sapatos com os bicos virados para cima. Sua roupa era uma túnica branca com detalhes em prata e desenhos que representavam as antigas lendas da Tribo da Terra.

           O sol estava quase se pondo quando Manah recebeu Dan, Lisa e os Pés Grandes no centro da aldeia.

           Antes de vir para Ruínas Antigas, Zig e Cliffe escreveram para o ancião dizendo que o visitariam. O velho chefe recebeu a carta e mandou preparar uma grande recepção para os sobrinhos que não via há mais de trinta luas.

           — Tio Manah!

           Zig e Cliffe abraçaram forte Manah, quase esmagando o pobre ancião com um típico aperto de corpos da Tribo da Ter- ra. 

           Tal cumprimento consistia em dois corpos apertarem um terceiro corpo, posto no meio dos dois. Esse aperto era uma antiga tradição e significava a quebra da saudade quando três pessoas não se viam há muito tempo.

           Após saudar os sobrinhos, Manah se aproximou de Dan e pegou a mão dele.

           — Daniel Horcliffe, como você cresceu! Eu o vi nos braços de sua mãe!

           — Como o senhor me reconheceu? — perguntou Dan intrigado.

           — Não faça perguntas meu jovem, que esse pobre velho não possa responder.

           Manah riu e piscou o olho direito para Dan. Ao virar-se para Lisa, o ancião ficou perplexo com o que via.

           Lisa também parecia paralisada ao ver Manah. Os dois olhos encontraram-se e provocaram visões em ambos.

           — Quem é ela, meus sobrinhos? — perguntou virando-se para Zig e Cliffe.

           — Essa é Lisa Torner, tio. — respondeu Zig.

           O ancião voltou a olhá-la por alguns segundos e depois pegou a mão da jovem.

           — Prazer, Manah!

           — Lisa!

           Os dois olhares novamente encontrarem-se e transformaram o aperto de mão num gesto enigmático e significativo. Lisa ficou estranha com o aperto de mão, parecia que algo a estava incomodando. Por um instante ela pensou que sua marca estava doendo, mas percebeu que era só um formigamento.

           Cliffe passou o braço pelo pescoço de Manah e o afastou de Lisa.

           — Tio, eu e Cliffe temos muitas novidades da Tribo da Terra para o senhor!

           Zig e Cliffe pareciam duas crianças animadas ao ver o tio querido. Ambos comportavam-se com infantilidade e tentavam resgatar o carinho que Manah tinha quando os dois eram pequenos.

           — Muitas mesmo, tio! — os Pés Grandes saíram com o tio para dentro de uma barraca e deixaram Lisa e Dan observando-os.

           A jovem recolheu a mão e a pôs na altura do peito. Por um instante, um arrepio tomou conta dela. Dan percebeu que ela estava estranha e aproximou-se.

           — Aconteceu alguma coisa, Lisa? — perguntou ao ver a moça parada, olhando para Manah que entrava na cabana — Parece estranha!

           — Não... não foi nada.

           Após passarem alguns minutos dentro da cabana, Manah levou os visitantes para a cabana de festas, onde uma mesa cheia de comida ao redor de uma fogueira estava esperando por eles.

           A cabana era bem grande e não possuía paredes. A tapagem de palmeiras protegia apenas a mesa cheia de frutas, carnes e porcos selvagens assados.

           A fogueira ficava do lado de fora e estava cercada de homens e mulheres que dançavam e cantavam as músicas alegres, típicas dos Pés Grandes. Entre as pessoas, Zig e Cliffe estavam no meio. Pulando, dançando e cantando.

           Dan e Lisa estavam sentados na mesa observando a alegria dos aldeões, quando o ancião sentou perto deles.

           — Os Pés Grandes possuem algo que nenhuma outra criatura do mundo de Aragorn possui, a alegria!

           Manah sentou-se ao lado de Lisa e pegou uma fruta na mesa.

           — Eles são muito alegres, mesmo! — concordou Lisa enquanto observava Zig dançar com uma aldeã.

           A música cantada pelos aldeões era acompanhada por uma espécie de pandeiro de madeira, uma flauta, alguns violinos e alguns instrumentos semelhantes a violões.

           Cliffe pegou o violino de um aldeão e começou a tocar. Os outros músicos acompanharam as arcadas do instrumento e produziram uma música forte e harmoniosa ao mesmo tempo.

           As mulheres sentadas à mesa levantaram e entraram na roda ao redor da fogueira. Elas usavam um vestido rodado que era girado ao redor dos homens, impulsionando uma dança quase sensual.

           Uma aldeã morena de olhos castanhos saiu da roda e puxou Dan para dançar. O rapaz negou o convite, mas foi empurrado por Zig e a morena até a fogueira.

           Para a alegria de Lisa, Dan era bem desengonçado para acompanhar o ritmo e acabava atrapalhando os outros. Porém, com um pouco de prática e ajuda da morena, o rapaz pegou os passos e entregou-se a música, levantando palmas de Lisa.

           A alegria dos aldeões contagiara Lisa. Por algum motivo, ela sentia-se bem ao lado de Manah, mas ao mesmo tempo, sentia algo vazio que a atormentava profundamente.

           O pé grande de Zig esfregava no nariz de Cliffe achatando a cara do irmão. Cliffe, por sua vez, pegava o pé de Zig e juntava-o ao rosto sem importar- se com o chulé do outro.

           Os dois Pés Grandes estavam dormindo sobre uma cama de cipós, virados de ponta cabeça um para o outro. A cama era pequena e mal cabiam os dois, fazendo com que ambos dormissem grudados em seus corpos.

           Ao amanhecer, Zig puxou o pé de Cliffe e começou a morder os dedos dele. Cliffe grudava no pé do irmão e ria à medida que os dentes do Pé Grande tocavam seus dedos.

           Zig esfregou o pé de Cliffe no rosto e beijou-o. Porém, o Pé Grande sentiu um cheiro forte e acordou. A mais de cem metros da aldeia o grito dos irmãos foi ouvido.

           Os aldeões passavam pela praça da aldeia quando se afastaram para trás e deram espaço para Zig passar. O Pé Grande enfiava a cabeça dentro do pequeno chafariz e lavava a boca como um louco desesperado.

           A cabana onde Lisa estava era pequena e havia poucos móveis. Os aldeões fabricavam todos eles com cipós e algumas madeiras do bosque. Segundo a tradição, a madeira trazia a paz e uma limpeza espiritual que só ela preservava.

           Dentro da cabana havia uma mesinha com quatro cadeiras de cipós no centro, e alguns armários com panelas de barro. No canto direito havia uma entrada, tampada por fibras de palmeiras penduradas na parede, que dava acesso ao quarto onde a menina estava.

           No quarto, havia duas camas de cipós no canto esquerdo e uma penteadeira à direita. Lisa dormira na cama que ficava perto da janela, ao lado de Samah, filha de Manah. Ambas haviam se conhecido no jantar a fogueira.

           Lisa havia acordado e estava penteando os cabelos de frente para o espelho da penteadeira.

           Samah levantou da cama a assustou-se ao vê-la acordada.

           — Você acorda cedo!

           Samah era branca de olhos castanhos. Seu nome derivava do antigo idioma dos Pés Grandes, Sama, bela e Mah, menina. Ela era conhecida como a bela menina da aldeia e dada como a mais bela de todos os tempos.

           Usava um pano branco longo que envolvia no corpo formando um vestido. Como joias, ela usava um bracelete dourado e um colar feito de pedras brancas e azuis.

           — É o costume da Fonte Phoenix — respondeu Lisa sorrindo. — Lá nós precisamos estar de pé, as seis e meia e nos apresentarmos no refeitório às sete horas para o café!

           — Deve ser muito gostoso morar num castelo e conviver com várias criaturas!

           A voz de Samah era magnificamente doce. Havia uma graça especial em ouvi-la. Era como escutar um anjo sussurrar em nossos ouvidos. Era esplendoroso!

           — É muito bom, sabia?

           Lisa pegou seus cabelos loiros e os colocou de lado no pescoço para penteá-los. Samah olhou para a marca no pescoço e perguntou:

           — Quem fez essa tatuagem, Lisa?

           — Tatuagem? — a menina lembrou-se da marca e riu — Não é tatuagem, Samah! Na verdade é uma marca que apareceu há pouco tempo!

           — Posso tocá-la?

           — Claro!

           Samah aproximou de Lisa e passou sua mão sobre a marca.

           Ela sentiu que o desenho era áspero como se a pele tivesse sido cortada à medida que os traços dos desenhos foram formados.

           — Eu nunca vi um olho como marca, Lisa!

           Lisa parou de pentear os cabelos e virou o pescoço para o espelho.

           — Olho?

           Samah abriu uma gaveta da penteadeira e tirou um espelho pequeno de forma oval. A aldeã colocou o espelho atrás da marca, para que a menina pudesse vê-la. Lisa ficou assustada ao ver a marca em seu pescoço. Ela estava maior e com os traços mais grossos. A meia lua virara quase um círculo completo com um triângulo no centro e um olho totalmente formado.

           A jovem a tocou e sentiu-a queimando como se uma brasa estivesse sobre seu pescoço. Por um instante, pensou em Manah e em algo mais. Eu preciso saber!

           Manah recebeu os visitantes para o café da manhã com uma grande mesa de frutas na cabana principal. Enquanto faziam a refeição, algumas mulheres dançavam ao ritmo da música tocada por cinco aldeões.

           — Lisa você precisa conhecer as ruínas...

           — Elas são fantásticas!

           Zig e Cliffe entupiam a boca de frutas enquanto conversavam com Lisa. Dan via tudo e sentia-se repugnado.

           Os Pés Grandes eram seres dotados de uma falta de educação e higiene notável. Geralmente não ligavam para banhos ou se quem estivesse sentado a sua frente na mesa tinha algum pedaço de comida no meio da testa, saída da boca deles. Chegavam a ser insuportáveis!

           Manah também não era diferente dos seus sobrinhos. O ancião comia uma fruta atrás da outra e entupia a boca até voar pedaços de maçãs ou de pêras para fora dela. 

           O desjejum era até que suportável, mas o almoço... Diariamente, Manah saía da mesa com a longa barba branca ensopada de sopa. Era horrível!

           Samah era um pouco mais educada e não tinha ganância pelo alimento. A moça tinha uma aparência requintada que aumentava a sua beleza. Os belos gestos das mãos, a forma de andar e de se expressar eram únicos nas Ruínas Antigas.

           — Lisa se você quiser conhecer as ruínas antigas, nós podemos ir lá depois do café!

           — Claro! — Lisa virou-se para Dan — Vamos com a gente, Dan!

           O rapaz engoliu um último pedaço de maçã e respondeu:

           — Eu não vou perder essa por nada! Acho que finalmente vou poder conhecer as famosas Ruínas Antigas que Zig e Cliffe tanto falam!

           — Então está combinado, vamos depois que terminarmos o café! O senhor vem com a gente pai?

           — Hoje não Samah! — respondeu Manah levantando com dificuldades da cadeira — Na próxima eu vou! Hoje eu tenho alguns afazeres na aldeia.

           — Está certo!

           O ancião pegou a sua bengala e saiu sendo seguido por um aldeão.

           Lisa pegou uma pêra e mordeu-a. Por um instante seus olhos seguiram Manah até ele desaparecer entre os aldeões. Por que eu tenho essa sensação? 

            

           O caminho para as ruínas era bem longo, demorando meia hora para chegar lá. No entanto, os três foram com o grifo, economizando vinte e cinco minutos da viagem.

           As ruínas antigas ficavam numa área mais alta do que a aldeia. Para chegar lá, os aldeões usavam uma trilha na mata que diminuía o percurso.

           Peninha sobrevoou a pequena mata e subiu a montanha. Quase no topo dela havia uma área mais plana, onde as ruínas ficavam. O grifo pousou e abaixou para Dan, Lisa e Samah descerem.

           As ruínas eram um grande círculo feito por pedras retangulares enfiadas verticalmente no chão. No centro do círculo, havia uma estátua da Fênix com as asas abertas medindo 1 ,45m de altura.

           A estátua era dourada com alguns detalhes em bronze. A Fênix estava com o bico e as garras abertas como se fosse atacar. Entre as asas abertas havia seis estatuetas de animais que representavam os seis reinos.

           Os animais eram: um grifo, símbolo de Grifus Allenah; uma ave envolvida por raios, símbolo de Actinos Thunderay; um dragão em forma de serpente, símbolo de Draco Bladefire; uma ave gigante, símbolo de Galenger Goldenwarth; uma ave pequena com uma coroa na cabeça, símbolo de Mysth Crystalice e uma espécie de rinoceronte com placas pontudas no corpo, símbolo de Christian Bellyhan.

           Lisa entrou no círculo e ficou maravilhada com a perfeição da estátua da Fênix e das estatuetas.

           — É incrível, parece até que estão vivas!

           Samah abriu um sorriso de satisfação no rosto e aproximou- se da estátua.

           — Nós não sabemos exatamente o motivo pelo qual essa estátua foi construída. Durante muitos anos, nossos antepassados vieram estudando-a e apenas descobriram que cada estatueta foi posta na direção de cada reino, — Samah tocava as estatuetas e mostrava a direção dos reinos — Allenah a sudoeste, Bellyhan a noroeste, Thunderay e Crystalice a norte, Bladefire a nordeste e Goldenwarth a sudeste.

           — Mas porque as estatuetas apontam para os reinos? — perguntou Dan enquanto passava a mão sobre um bloco de pedra.

           — Esse é o mistério! Ninguém sabe!

           Lisa saiu de perto dos dois e foi para fora das ruínas. Um vento refrescante tocou seus cabelos, levantando-os para o alto.

           Por trás das ruínas, havia uma escada de pedra que descia até outra área mais plana onde tinha um pequeno círculo de pedra com água dentro. Em volta do mesmo havia pequenos pés de flores de variadas cores.

           Lisa parou perto do círculo e olhou para frente. A vista das ruínas era incrível! Dava para ver toda a aldeia e um pedaço do mar Thorhand atrás de pequenas montanhas.

           Um passarinho verde começou a rodar em torno de Peninha. O grifo dava bicadas no ar tentando pegá-lo. O pássaro rodava de um lado para o outro levando o grifo até a jovem..

           Dan viu Lisa abaixo das ruínas e desceu as escadas.

           — No que está pensando? — indagou.

           — É lindo, não é?

           O rapaz olhou para as pequenas montanhas e para o pedacinho do mar ao longe.

           — As nossas férias estão valendo a pena!

           Lisa esboçou um sorriso afável para ele e virou o rosto para o grifo que pousava ao seu lado. Peninha encostou a cabeça em seu ombro, motivando-a a coçá-la.

           Samah desceu as escadas e parou ao lado de Dan.

           — O que acharam?

           Dan deu um suspiro feliz e sorriu.

           — É incrível!

           O passarinho verde se aproximou novamente de Peninha tirando-o de perto de Lisa. A moça olhou para a água dentro do círculo e perguntou para Samah:

           — Samah, o que era esse círculo?

           — Era uma espécie de local para lavar o corpo, antes dos rituais. Pelo menos é o que pensamos!

           Lisa se abaixou e tocou a água cristalina. Ao tocá-la, viu a Besta atacando-a numa visão rápida como um flash.

           — O que foi Lisa? — perguntou Dan ao vê-la tirando o de- do rapidamente da água e jogando-se para trás.

           — Nada. — ela levantou meio assustada e virou para os dois — É melhor voltarmos! Manah está nos esperando para o almoço.

           Ela saiu de perto do círculo e subiu as escadas. Dan observou-a. Aconteceu alguma coisa!

           A visão fizera com que sua marca voltasse a queimar. Lisa passava perto da estátua da Fênix quando algo sussurrou em seu ouvido:

           — Lisa!...Gládio! — o sussurro era rouco e fraco.

           A garota olhou rapidamente para o bloco de pedra das ruí- nas e pensou ter visto algo se esconder atrás dele.

           Ficou olhando por alguns segundos e voltou a andar na direção do grifo .

           Dan e Samah subiram as escadas e passaram pelo centro das ruínas. Ao passarem, uma criaturinha os observava.

           O passarinho verde continuava a rodar em torno do grifo quando Peninha bateu as enormes asas contra ele e o jogou para longe.

           Peninha abaixou para Dan subir em suas costas. Em seguida,

           Lisa e Samah subiram. O grifo levantou voo e desceu a montanha.

           Após saírem, uma criaturinha de cor cinza, olhos grandes esverdeados, orelhas pontudas e nariz grande com a ponta caída; saiu de trás do bloco de pedra e encostou-se na Fênix. Por alguns segundos ela permaneceu ali, observando o grifo descer a montanha e voar na direção da aldeia.

           Zig e Cliffe pulavam e caíam dentro da lama, brincando com os aldeões de pegar o Vaso Vivo.

           Era um vaso de porcelana antiga com gravuras de criaturas fantásticas — como grifos, dragões e íctions — que podiam falar, pular e levitar. Ele era usado pelo povo num jogo de duas equipes, onde quem conseguisse capturá-lo tinha o direito de beber todas as bebidas que a aldeia dispunha durante o dia todo e comer a refeição principal feita especialmente para os vencedores.

           Cada equipe era formada por vinte pessoas. Uma era dos homens e a outra das mulheres. Os homens venciam na maioria das vezes por serem mais ágeis e habilidosos.

           O Vaso Vivo era colocado no chão entre a linha divisória das equipes. Os aldeões ficavam numa distância de vinte metros do objeto, não podendo se aproximar até que iniciasse a partida. Caso desobedecessem ás regras, o recipiente côncavo os transformavam em pedra.

           Após o início do jogo, os aldeões ainda não podiam pegá-lo. Eles deveriam esperar o vaso acordar do seu sono e dar uma gargalhada. Assim que ele despertava, os Pés Grandes corriam eufóricos em sua direção. No entanto, era impossível sua captura logo no começo, pois o mesmo pulava para o alto e saía pulando sobre as pessoas que tentavam agarrá-lo dando saltos no ar.

           Zig subiu em cima de um toco usado para amarrar cavalos e pulou sobre o Vaso Vivo. Porém, o mesmo desapareceu no ar e reapareceu no teto de uma cabana, fazendo-o cair de cara numa enorme poça d’água.

           O vaso, saindo do local anterior pulou sobre os aldeões, dando gargalhadas como um bobo da corte.

           Lisa chegou ao centro da aldeia e viu a correria.

           — O que eles estão fazendo, Samah?

           — Estão tentando capturar o Vaso Vivo — Samah pegou na mão de Lisa e puxou-a — Vem, vamos ver de perto. É tão engraçado vê-los tentando pegá-lo!

           Lisa e Samah entraram no meio das pessoas que assistiam a competição e pararam perto do chafariz.

           Duas aldeãs pularam juntas sobre o objeto e deram uma trombada uma na outra. O mesmo deu uma risada ao aparecer atrás delas e saiu pulando entre os aldeões.

           As mulheres levantaram meio contorcidas e pediram para sair do jogo.

           Assim que uma pessoa saía do jogo, outra deveria entrar imediatamente.

           Samah levantou a mão e gritou para as mulheres:

           — Nós vamos entrar!

           — Nós? — Lisa olhou assustada.

           — Vamos, Lisa! Vai ser divertido!

           Samah a puxou pelo braço e levou-a até a equipe das mulheres.

           Dan chegou por entre a multidão que assistia ao jogo e começou a rir ao ver as duas correrem como desesperadas.

           Depois de correr bastante, Lisa parou em frente a um barril e sentou para descansar um pouco.

           O vaso pulou sobre as cabanas e caiu no chão perto de onde estava. O Vaso Vivo olhou para ela e mostrou a língua.

           Lisa olhou para trás e viu a equipe masculina correndo. Imediatamente ela pulou sobre o vaso, mas não conseguiu pegá-lo. Ele desaparecera e reaparecera sobre os homens.

           A menina levantou do chão e tirou a poeira da sua roupa.

           — Você está bem, Lisa? — perguntou Samah aproximando-se.

           — Estou, obrigada!

           A jovem desviou o olhar para os aldeões e viu o Vaso Vivo pular sobre suas cabeças.

           — Samah, existe alguma regra que impeça alguém de pega-lo?

           Samah pensou por alguns segundos e depois respondeu:

           — Nenhuma regra. Tudo é permitido!

           Lisa a fitou e sorriu discretamente.

           O vaso continuou pulando e desviando dos ataques. Por fim, um homem pulou sobre ele e pegou-o, mas o mesmo mordeu sua mão libertando-se e reiniciando o jogo.

           As duas equipes saíram correndo atrás dele e empurraram Lisa contra um barril. Sem pensar duas vezes, ela tirou a varinha mágica do bolso e apontou em sua direção. Em questão de segundos, o Vaso Vivo explodiu e virou milhares de cacos de cerâmica; para o espanto da aldeia.

           Todos os aldeões olharam perplexos e indignados para a menina.

           — Como eu poderia saber que aquele vaso era tão importante para a aldeia?

           Lisa estava trêmula e nervosa. Ela andava em círculos na sala da cabana de Manah como uma barata tonta que não ia a lugar algum.

           — Lisa, ele era mais do que importante — dizia Samah indignada — Ele era o nosso maior tesouro. E você o destruiu!

           A delicada doçura no tom de voz de Samah havia desaparecido totalmente. A “bela menina” estava rancorosa e condenava Lisa, como se destruir um vaso fosse a pior coisa do mundo.

           — Quando eu perguntei se havia alguma regra que impedia de alguém capturar o vaso, você me disse que não havia nenhuma...

           — É, mas precisava destruí-lo com magia? — gritou Samah extremamente nervosa.

           Manah estava sentado numa cadeira pensando e analisando os fatos. Por fim, o ancião entrou no meio da conversa das duas e chamou a atenção de sua filha.

           — Samah, a maior virtude de um homem não é se prender a coisas materiais, mas sim, vontade de fazer grandes coisas! O vaso foi destruído, mas existem milhares deles. Já pensou se fosse uma vida que estivesse em seu lugar?

           Samah ficou calada e abaixou a cabeça.

           — Uma vida nunca pode ser substituída por outra, mas um vaso...? — Manah virou-se para Lisa. — Não se preocupe, aquele vaso caduco estava na hora de se aposentar. No entanto, pessoas materialistas não entendem isso!

           Samah percebeu o olhar de decepção de seu pai e saiu da cabana, derrubando um pequeno vaso de flores no canto da parede.

           — Eu creio que minha filha ainda precise aprender muitas coisas sobre a importância da vida!

           — Me desculpe, Manah! — disse Lisa apertando os dedos contra a mão — Eu não tinha intenção de...

           — Você é uma pessoa muito especial, menina. Eu senti isso quando chegou à aldeia. O fato de ter destruído o vaso é insignificante se comparado com a sua extrema importância para todos nós.

           O ancião abriu os abraços e fechou-os novamente. Aproximou-se de Lisa e alisou sua barba.

           — Às vezes a magia pode ser extremamente perigosa, principalmente vindo de você. É um fato que somente Grifus Allenah conheceu perfeitamente.

           Lisa se afastou pra trás, escorando-se numa mesa.

           — Me desculpe, mas o que quer dizer com isso?

           — Ninguém te contou?

           Lisa balançou a cabeça.

           Manah se afastou para o canto da cabana.

           — Grifus Allenah criou uma varinha mágica especial para as Bruxas de Fogo iniciantes, assim como você. A intenção dele era proteger o mundo contra o caos provocado pelo mau manuseio da varinha Firewitch.

           — Mau manuseio?

           — A Firewitch possui duas extensões de poder: a varinha e a lendária espada de ouro. Quando ambas estão juntas, a Bruxa de Fogo se torna completa. É aí que está o perigo! Se a Bruxa de Fogo não souber usar essa união, uma catástrofe pode acontecer. Felizmente, nenhuma teve esse problema de mau manuseio, até mesmo você!

           Lisa tirou a varinha do bolso e mostrou para ao ancião.

           — Mas esta é a varinha de Grifus Allenah e não a verdadeira varinha Firewitch.

           Manah tomou a varinha da mão de Lisa e analisou-a. Ele ficou sério e pareceu preocupado.

           — Eu pensei que fosse a Firewitch! — Manah olhou para Lisa — Somente uma varinha de alto nível, como a Firewitch, poderia destruir aquele vaso! Como você fez isso?

           — Eu... eu não sei! — Lisa pegou a varinha de volta e segurou-a na mão — Eu apenas apontei-a para o vaso e...

           — Não, não, não!

           Manah ficou confuso e sentou na cadeira. O ancião coçava a cabeça em busca de uma resposta mais óbvia.

           — Não, isso está errado! Lisa, os Vasos Vivos são indestrutíveis por meras varinhas! Somente a Firewitch pode destruí-los!

           — Então, como eu consegui?

           Dan estava do lado de fora da cabana esperando Lisa. O rapaz estava preocupado com ela e não tirava da cabeça o que estaria acontecendo lá dentro.

           Ele passou o olhar pelos aldeões que andavam na praça quando pensou ter visto alguém.

           — Athus?

           Dan saiu pela praça e seguiu o homem.

           O homem estava coberto por um manto marrom e cobria sua cabeça com um capuz.

           O menino desviava dentre as pessoas e tentava não perde-lo de vista.

           — Athus! — gritou, mas o homem não parava de correr. 

           O homem saiu da aldeia e entrou na mata. Dan tentou segui-lo, mas ele desapareceu entre as árvores.

           — Quem era aquele homem esquisito?

           A tarde havia chegado e o sol estava se pondo aos poucos, iluminando a aldeia com raios solares avermelhados.

           No centro da aldeia, algumas crianças brincavam com Garrinha e Peninha montando em suas costas e alisando as penas. Os grifos estavam deitados e não se importavam com o que faziam com eles.

           Dan passou perto das crianças e pediu para que tomassem cuidado para não caírem de cima dos grifos. Elas sorriram e continuaram a brincar.

           Lisa estava sentada no chafariz da praça pensando no que acontecera. O rapaz a viu e aproximou-se.

           — Está pensando ainda no que houve?

           Ela negou balançando a cabeça e escondeu um fiozinho de cabelo atrás da orelha.

           — Nem passava pela minha cabeça! — respondeu.

           Os últimos raios solares desapareciam lentamente no horizonte escurecendo o rosto de Dan.

           — Os aldeões ainda estão muito bravos com você!

           Lisa suspirou e começou a desenhar na poeira com o dedo.

           — Não se sinta culpada, foi engraçado como aquele vaso terminou...

           — Não foi nada engraçado, Dan! — repreendeu.

           Dan abaixou a cabeça e observou o desenho de Lisa.

           — Essa é a sua varinha?

           A menina ergueu-se e apagou o desenho com os pés. Depois se virou para Dan, preocupada.

           — Aconteceu algo muito estranho hoje! Aquele vaso era indestrutível por varinhas mágicas, porém eu o destruí!

           — Você é uma Bruxa de Fogo. O poder está em seu sangue!

           Dan encarava as Bruxas de Fogo como seres que tudo podiam fazer. Para ele não havia limites para os seus poderes e nem nada que pudesse detê-las.

           Ela deu um riso tímido e continuou.

           — O vaso só podia ser destruído pela varinha Firewitch. E a minha não é ela!

           — Eu pensei que...

           — A Firewitch foi destruída pela última Bruxa de Fogo para que não caísse em mãos erradas enquanto a sua sucessora não nascesse.

           — Então como você explica isso tudo?

           — Não sei qual é a explicação. Manah me disse que meus poderes quebraram a barreira que existe entre corpo e varinha.

           Só assim é possível explicar como destruí o vaso.

           — E você? O que pensa a respeito?

           — Manah não me convenceu!

           Lisa pensava de forma diferente e encarava os fatos de outro ângulo. Ela sabia que seu poder era grande, mas não sabia que ponto ele seria capaz de atingir.

           Para Manah, a varinha era uma ligação entre o bruxo e a madeira onde as duas energias se uniam e formavam os feitiços. A jovem não acreditava muito nessa tese. Até mesmo porque seus poderes ainda não estavam totalmente treinados. Segundo Athus, havia muito que aprender ainda. Tudo era apenas o começo!

           Os aldeões reuniram-se à noite para tocar tambores e dançar em torno da fogueira. Os quatorzes tambores da aldeia eram postos em torno das fogueiras e eram tocados por sete aldeões.

           Zig e Cliffe dançavam com duas aldeãs de quase vinte anos. Elas eram mulatas de olhos castanhos e usavam, ambas, uma saia rodada azul com alguns desenhos na barra. A beleza e a sensualidade da dança envolvia os Pés Grandes e impulsionava as batidas fortes dos tambores.

           Lisa havia se deitado cedo e dormia profundamente. O som forte podia ser ouvido na cabana, mas não a perturbava.

           Em meio às batidas, seu rosto suado demonstrava o sinal de um pesadelo terrível.

           Ela corria pelo corredor do Castelo dos Bruxos sendo seguida por algo negro que vinha em sua direção numa incrível velocidade. Era um Carrasco. A criatura segurava um enorme machado afiado que era batido contra as colunas do castelo, destruindo-as.

           Lisa estava apavorada e não sabia para onde correr. O corredor nunca tinha fim e parecia ficar mais apertado a cada passo que dava.

           À medida que corria, vozes gritavam por ela atordoando-a mais ainda.

           — Lisa...! — gritava uma voz de menina.

           — Lisa...! — sussurrava uma voz rouca e fraca.

           As vozes não paravam de gritar em momento algum.

           A garota olhou rapidamente para trás e viu o Carrasco aproximando-se dela. Ela olhou pra frente e viu um beco sem saída. O corredor fechara e tornara a sua própria prisão.

           O Carrasco veio voando numa grande velocidade e ergueu o machado. Lisa encostou-se à parede e avistou a lâmina vindo contra o seu pescoço. Uma escuridão sem fim tomou conta dela fazendo-a cair entre nuvens escuras.

           Entre as nuvens o rosto de um homem envolvido por um pano negro e transparente apareceu. Ele abriu sua enorme boca e a menina caiu dentro dela. Ao cair, uma pupila de fogo surgiu no fundo da escuridão. Lisa passou entre ela e escutou uma mulher dando um grito aterrorizante. — Lisa...!

           — Não!

           Ela despertou entre o término da batida dos tambores.

           Um silêncio sem fim tomou conta da aldeia por alguns segundos. De repente, uma música alegre com batidas mais suaves tomou conta de tudo.

           Lisa levantou da cama e foi até o baú de roupas. Ela o abriu e pegou o livro de Melody.

           — Lux!

           Apontando a varinha para o livro, fez surgir uma pequena luz na ponta dela. A luz iluminou o livro mostrando a Fênix envolvida pelo fogo, na capa.

          Ergueu a varinha e rodou-a ao seu redor tentando encontrar o seu manto com a luz. Ao encontrá-lo, ela pôs a mão no bolso e tirou a chave dourada que Athus lhe dera antes de sair da Fonte Phoenix.

           Sentou na cama e tentou abrir o livro com a chave, mas não conseguiu. Por um momento ela pensou que seria impossível continuar tentando, mas algo mudou seus pensamentos.

           Ao passar os olhos pela chave, Lisa notou algo escrito em uma das asas do grifo.

           — Gládio — repetiu.

           Ela pensou por um instante o que seria aquela inscrição e lembrou-se da voz que ouvira nas ruínas, sussurrando em seu ouvido.

           Lisa pôs seu manto preto sobre sua roupa na chegada do estábulo onde os grifos dormiam e tirou Peninha para fora.

           Subindo nele, saiu na direção das Ruínas Antigas.

           Entre os cavalos do estábulo, um homem de manto marrom com carapuça sobre a cabeça apareceu na escuridão e observou o grifo decolar com a moça.

           A lua cheia estava atrás da montanha das ruínas dando a impressão de que a jovem e o grifo voavam juntos a ela.

           Peninha pousou próximo às ruínas e abaixou para Lisa descer.

           Ao olhar para o círculo de pedra, a jovem percebeu que as ruínas tornavam-se mais misteriosas e esplendorosas com o luar. A luz batia contra os blocos de pedra formando sombras que vinham até a estátua. Ao mesmo tempo, tocava o rosto da garota, exaltando a sua beleza.

           Ela segurava o livro de Melody na mão esquerda e a varinha na outra. Então o ergueu e olhou para ele. De súbito, sem que quisesse, a varinha mágica ergueu-se, e uma luz azul brilhante surgiu na ponta e disparou contra um dos blocos de pedra. O bloco começou a brilhar na mesma tonalidade de luz.

           A luz foi refletida pelo bloco e bateu contra o outro, sendo impulsionada a refletir novamente contra os restantes. Quan- do atingiu o último, a luz voltou-se contra a Bruxa de Fogo.

           Lisa levantou o livro e o pôs na altura do peito. A luz bateu contra o mesmo e aumentou de tamanho. Ele brilhou e destrancou-se.

           Ao abrir, uma luz celestial saiu de suas páginas e ergueu o seu manto e os seus cabelos. Ao mesmo tempo em que a luz tomava conta da menina, uma música celestial soou por toda a montanha.

           A luz diminuiu aos poucos e uma voz doce e angelical surgiu.

           — Bem-vinda, Bruxa de Fogo!

           O brilho desapareceu dando lugar às páginas brancas. Aos poucos as letras surgiram como se o fogo escrevesse no papel limpo.

           Lisa passou a mão sobre a folha do livro onde estava escri- to Melody Bluesky e sorriu.

           De súbito, um vento ergueu seus cabelos provocando um pressentimento. Olhou para trás e viu uma criaturinha cinza em pé.

           — Düblin fica feliz por ter conseguido abrir o livro! — a voz da criaturinha era rouca e fraca.

           Lisa olhou para a criatura e imediatamente apontou a varinha para ela lançando um feitiço, que acertou em cheio seu peito. No impacto, ela foi empurrada e jogada para trás.

           — Quem é você? — Lisa aproximava-se para repetir o feitiço.

           A criatura levantou meio desengonçada e passou a mão no peito.

           — Não precisa matar Düblin! Düblin ser seu amigo!

           — Quem é você? O que quer?

           — Düblin já disse, sou seu amigo. Não quero lhe fazer mal — falou, enquanto se aproximava cuidadosamente de Lisa e parando ao vê-la erguendo a varinha — Você não lembra de Düblin? Düblin esteve em seus sonhos!

           Ela buscou na mente algo relativo à criaturinha e teve vários flashes rápidos de quando fora possuída pela Besta.

           Eu temia que você não resistisse!

           Você não vai ser ninguém se não recuperar seus sentidos.

           Desperte, menina!

           Não se aproxime!

           — Você é a criatura que eu vi no lago!

           A menina abaixou a varinha e fitou a criatura — Düblin só quer ser seu amigo e te ajudar, My Lady!

           — Por que me chama assim?

           Düblin aproximou mais de Lisa fazendo-a notar como seus olhos verdes eram grandes.

           — Düblin gosta muito da menina. Muito, muito! Por isso, Düblin a chama de My Lady! Por acaso não gosta que Düblin a chame assim?

           Lisa ficou meio sem graça com a doçura da criatura. Ele é feio, mas não deixa de ser uma doçura!

           — Não, não é isso... Düblin! — ela sorriu meio sem jeito. — É que eu não estou acostumada com essa forma de tratamento.

           — Düblin entende. Entende, sim!

           Düblin fitou o olhar no bolso de Lisa e apontou o dedo sujo para ele.

           — Düblin pode ajudá-la com a chave, menina! Lisa pôs a mão no bolso e tirou a chave.

           Düblin fez um movimento com a mão para que ela o seguisse.

           A criaturinha andava com seus braços apoiados no chão. Em certos momentos ela parecia um coelho na forma rápida como dava seus pulos para se locomover.

          Lisa seguiu-o até atrás da estátua da Fênix. Düblin parou e apontou o dedo para os pés da estátua, onde havia um buraco de fechadura rodeado por um círculo. Com um gesto, ele pediu para encaixar a chave.

           Lisa abaixou e pôs a chave no buraco. Em seguida torceu-a. De repente, um barulho vindo de dentro da estátua fez pensar que algo estava sendo aberto por dentro.

           De chofre, as asas da Fênix abaixaram e um buraco nas costas da ave abriu-se aos poucos. Em seguida algo saiu lá de dentro.

           De pouco a pouco um mecanismo empurrou para fora uma espada de metal com detalhes em ouro e esmeraldas no cabo.

           A menina, maravilhada, aproximou-se e a puxou para cima.

           Düblin olhou os detalhes da espada e balançou a cabeça.

           — Essa não é a verdadeira espada! Düblin sabe disso!

           — Verdadeira espada? Do quê está falando?

           Düblin rodeou a lâmina e concluiu novamente.

           — Não é ela, não é! A verdadeira espada Firewitch é maior, dourada e tem o nome dela escrito na lâmina!

           Lisa, que observava a empunhadura, desviou o olhar para a criatura.

           — Como sabe disso?

           — Düblin ajudou Melody Bluesky esconder a espada. Eu ajudei sim, eu ajudei!

           A espada era totalmente diferente da discrição feita por Düblin. Lisa também notara isso ao lembrar-se de quando Dan lhe dissera que a mesma era dourada.

           — Então onde está a verdadeira? — perguntou Lisa abaixando a espada.

           Düblin abriu a boca para responder quando algo mexeu atrás de uma moita de arbustos. Lisa olhou assustada e apontou a varinha.

           Düblin teve um pressentimento e virou-se rapidamente para Lisa.

           — Vá embora, menina! Vá!

           — O que aconteceu Düblin?

           — Düblin teve um pressentimento ruim. Teve sim! — pegou no braço de Lisa e puxou-a para o grifo — Eles querem fazer muito mal a menina. Eles querem, sim! Düblin teme pela menina! Vá embora, menina! Saia daqui o quanto antes!

           Lisa subiu no grifo, apressada pela criatura.

           — E você Düblin?

           — Düblin se vira. Se vira, sim. Agora vá! Düblin a encontra no castelo! Vá!

           Lisa segurou nas penas do Peninha e olhou para trás.

           — Düblin, antes de ir, quem são essas pessoas que querem me fazer mal?

           Düblin voltou a olhar para a moita e disse aflito.

           — Vá menina, vá!

           Ela percebeu que era inútil fazer mais perguntas e saiu com o grifo.

           Depois de assegurar que a bruxa de fogo já estava longe, a criaturinha voltou para a estátua e assustou-se ao ver que o mecanismo havia se fechado e a chave havia desaparecido. — Isso é mal, muito mal!

           Peninha pousou por trás da aldeia para que ninguém percebesse a sua chegada. Lisa o levou para o estábulo que, para sua sorte, fica na parte sul da aldeia, bem distante da cabana prin- cipal onde os tambores estavam sendo tocados.

           Ela voltou à cabana e guardou o livro e a espada dentro do seu baú. Ao deitar, um pensamento a fez estremecer.

           Eles querem fazer muito mal a menina. Eles querem, sim!

           Antes de ir para a cabana principal tomar café, Lisa folheou o livro de Melody e encontrou muitas coisas interessantes, como: poções mágicas, feitiços, truques e dicas para executar feitiços grandiosos e um mapa das passagens secretas dos castelos da Fonte Phoenix.

           As folhas do livro tinham uma tonalidade amarelada que destacava o quão velho ele era. As bordas possuíam desenhos de dragões, grifos, cavalos alados e fênix que tomavam conta de quase toda a folha, restando alguns espaços onde Melody escrevera.

           Um aldeão chegou na cabana e bateu na porta:

           — O café está servido!

           Lisa fechou o livro e guardou-o dentro do baú. Em seguida, retirou-se.

           Os aldeões tinham o costume de tomar café todos juntos. Para que esse costume fosse habituado, havia um homem — escolhido por todos — para bater na porta de cada cabana e anunciar que o café estava servido.

           A cabana principal enchia-se de Pés Grandes que devoravam gulosamente as frutas, os sucos e os pães feitos pelas aldeãs cozinheiras.

           A aldeia era uma sociedade bem organizada onde cada um tinha uma tarefa e um dever específico para cumprir desde o nascer do sol até o crepúsculo. Ao final do dia, se reuniam para dançar e cantar. Era uma forma de esquecer o cansaço e os afazeres do dia seguinte.

           Antes de entrar na cabana principal, Lisa viu Samah passando pela praça e correu até ela.

           — Samah!

           A bela moça ainda não se convencera que Lisa tinha destruído o vaso sem intenção alguma e não lhe deu atenção.

           Lisa percebeu o ar de Samah e entrou na frente dela.

           — Samah, me escuta!...

           — Eu não tenho nada para ouvir de você — Samah empurrou-a e continuou andando apressada.

           Lisa correu até ela novamente e entrou na sua frente.

           — Se você não quer ouvir, eu quero falar. Me escuta!

           Samah pensou em empurrá-la novamente, mas conteve-se.

           — Eu não destruí o vaso por que eu quis. Foi um acidente!

           Eu só queria pegá-lo, mas errei no feitiço...

           — Já terminou? — interrompeu Samah. — Então com licença!

           Lisa afastou, deixando-a passar. Era inútil tentar provar qualquer coisa em relação ao vaso. Samah era muito teimosa e não se convencia do contrário. Um gênio que ela herdara da sua falecida mãe.

           Ambas eram lindas e meigas. Porém, esse terrível defeito estragava as duas e as transformava em seres insensatos e incapazes de compreender os verdadeiros fatos.

           Samah entrou na cabana de Manah e saiu depois de alguns minutos. Ao sair, um homem segurou seu braço e dirigiu-lhe a palavra.

           — Quero conversar com você. É sobre algo que vai lhe interessar!

           Dan estava sentado na mesa da cabana principal quando viu três pessoas aproximando-se dela. Ele engasgou com o suco que tomava e levantou da mesa.

           — Grump, Gregor e Steven!

           Grump deu um sorriso falso ao vê-lo. O domador de ar aproximou-se e deu um tapa nas costas do rapaz.

           — Que mundo pequeno, Horcliffe!

           — O que está fazendo aqui, Grump?

           Grump passou os olhos pelos aldeões e localizou uma pessoa.

           — Visitando um amigo!

           Ele voltou o olhar e fez um pequeno gesto com a mão se despedindo. Gregor seguiu seu amigo e esbarrou em Dan ao passar por ele.

           — Estamos de olho em você Horcliffe! — disse Steven ao passar por ele.

           Dan sentou novamente à mesa e murmurou:

           — Que castigo!

           Durante todo o dia, o garoto não tirou os olhos dos três para se assegurar que eles não estivessem tramando algo.

           Grump era muito amigo de Maxuel Delaro, um aldeão alto, forte e moreno, de quase trinta anos. A visita à aldeia das Ruínas Antigas já havia sido planejada por ele antes mesmo das férias começarem. O que eliminaria as suspeitas de Dan De pois da batalha interrompida por Godric e Falco no penhasco, eles continuaram se esbarrando pelos castelos, provocando mais atrito entre ambos.

           No fim do quinto semestre, Steven, Grump e Gregor prepararam uma carta surpresa e enviaram para Dan.

           Grump mandou Hermes, o mensageiro alado da Fonte Phoenix, entregar a carta com extrema urgência. Hermes era um elfo em forma humana que usava um elmo alado na cabeça e sapatos com asas pequenas.  Ele era pequeno, aproximadamente 1,15m de altura e tinha um rosto fino e infantil. Apesar da eficiência, ele era meio cego e às vezes não conseguia enxergar os vidros das janelas e acabava esbarrando nelas.

           Dan estava no quarto aquele dia, quando Hermes bateu de cara no vidro da sua janela, provocando um enorme barulho.

           Abrindo-a, ajudou o mensageiro a recompor- se.

           — Carta para Daniel Horcliffe. É urgente!

           Hermes arrumou os óculos de aro redondo no rosto e foi embora. Mais uma vez ele bateu contra uma janela da torre do sul e Dan que o observava deu um pequeno riso e abriu a carta.

           Aparentemente, não havia nada escrito. Aos poucos as letras foram surgindo e delas a palavra Burro se formou.

           Após ler o que parecia ser uma brincadeira de mau gosto, Dan amassou o papel e jogou-o na lixeira no canto esquerdo do quarto.

           De imediato, o rapaz não deu muita importância á carta e desceu para o refeitório onde tomaria o café da manhã com os outros. Ao passar pelo corredor que dava acesso ao refeitório, Dan passou por cinco moradores do Castelo dos Bruxos e notou que todos começaram a rir e cochichar baixinho.

           Ele ficou meio intrigado com os risos e continuou andando. Quando entrou no refeitório e passou pelas mesas, no mesmo instante todos olharam para ele e caíram na gargalhada. Dan fitou a todos sem entender o motivo da graça.

           Melissa viu o que estava acontecendo e correu até ele.

           — Do que todos estão rindo? — perguntou.

           — De você, olha! — Melissa pegou um prato e pôs na frente do rosto do rapaz.

           A prata luminosa do prato refletiu as orelhas compridas e uma cara de burro em Dan.

           Ao ver o seu reflexo, ele deu um gigantesco grito que foi ouvido por Godric, do outro lado do recinto.

           O feitiço que transformou seu rosto em cara de burro só foi possível ser desfeito com um chá de ervas feito por Goblin. O chá não era nada agradável, mas fez as orelhas compridas voltarem a ser o que eram e os pêlos pelo rosto inteiro desaparecerem.

           Dan ficara extremamente nervoso naquele dia, chegando até a pensar em como se vingar de Grump. Porém, Lisa e Melissa tiraram essa ideia absurda da cabeça dele. Um dia ele terá o troco!

           Lisa passara o dia todo brincando com as crianças e Peninha. Ela as colocava em cima do grifo e o deixava carrega-las no ar por algum tempo. Depois que Peninha pousava, elas desciam e davam lugar as outras.

           A jovem era boa com crianças e sabia conquistá-las muito bem. Era um dom que provinha da sua tia Anne, que cuidava de muitas delas, abandonadas em orfanatos.

           Ainda pequena, sua tia a levava para os orfanatos que visitava e a colocava para conviver com outras de sua idade.

           Vai fazer bem para você brincar com crianças que não receberam nenhum carinho quando pequenas, querida!

           Anne tinha um grande coração e sempre educou sua sobrinha a ver as pessoas ao seu redor como sendo todas iguais.

           Os três dias de convivência na aldeia com as crianças fizera Lisa ter boas recordações de sua querida tia e também lhe fizera sentir um grande aperto no coração.

           Tenho saudades de Anne!

           A saudade era a sua única inimiga no momento. Seis meses passaram desde o dia em que se despedira de Anne na entrada da Casa dos Espelhos.

           — Adeus, querida!

           — Anne você não vai? — perguntou Lisa.

           Anne balançou a cabeça e abraçou Lisa com os olhos cheios de lágrimas.

           — Lá você estará melhor do que aqui!

           — Eu não quero ir sem você!

           Anne colocou as mãos delicadas no rosto da sobrinha e enxugou suas lágrimas.

           — Você tem que ir. Eu não quero vê-la sendo destruída pela Besta neste mundo sem poder fazer nada! Lá você será protegida e... — ela deu um sorriso para tentar disfarçar a tristeza — poderá me visitar quando quiser! Eu sempre estarei aqui esperando o dia de te ver novamente, minha querida!

           Lisa ia dizer algo quando Goblin interveio e puxou seu braço.

           — Temos que ir My Lady!

           A jovem olhou para sua tia e abraçou-a com todas as suas forças. Talvez, aquele momento fosse o último para as duas.

           Anne enxugou as lágrimas do seu rosto e deu um aceno final para Lisa.

           Essa foi à última vez que as duas se viram. Era atordoante lembrar-se da despedida e mais atordoante ainda era pensar que talvez nunca mais retornaria ao Mundo dos Humanos enquanto a Besta estivesse viva.

           Uma lágrima escorreu no rosto da jovem e desceu até a sua boca. O sabor salgado da lágrima a fizera deixar as crianças e voltar para a cabana.

           Ao passar pela cabana de Manah, Lisa escutou duas pessoas conversando. Uma era Manah e a outra pessoa, ela conhecia a voz, mas não se lembrava de quem era.

           — Eu não entendo como ela conseguiu destruir o Vaso Vivo! — dizia Manah — As espécies desses vasos são indestrutíveis por varinhas comuns. Como ela conseguiu destruí-lo com a varinha mágica de Grifus Allenah?

           Lisa se aproximou da cabana e ficou espiando por uma gre- ta na parede.

           — Manah, essa não é uma Bruxa de Fogo como as outras. Ela é a verdadeira reencarnação viva da Fênix! Qualquer coisa para ela é meramente insignificante. Seu poder é incalculável!

           — Athus! — surpreendeu-se Lisa ao vê-lo pela greta na parede.

           Mas o que ele está fazendo aqui?

           Athus sentou numa cadeira a frente de Manah e cruzou as pernas.

           — O príncipe Gaya está preocupado com a situação de Lisa. A pobrezinha não sabe, mas Malagat está atrás dela há alguns meses. Ele não se atreveu a invadir a Fonte Phoenix por que teme o que o príncipe pode fazer com ele.

           Manah fumava um cachimbo que espalhava fumaça por toda a cabana, incomodando Athus. O ancião só fumava quando estava preocupado com alguma coisa. Ele tinha uma expressão séria e fechada que demonstrava mais do que nunca o seu estado de preocupação.

           — O que me intriga Lupus, é o fato de você ter entregado a varinha de Grifus para Lisa e não a verdadeira Firewitch!

           Athus ficou sério e pareceu estranho aos olhos atentos de Lisa.

           — Eu não podia entregar a Firewitch para ela.

           — Por quê?

           Athus ficou em silêncio. Manah observou o seu semblante e torceu para que ele não dissesse o que estava pensando.

           Lisa sentiu uma queimadura fraca na marca do pescoço e algo estranho. Para surpresa dela, a resposta de Athus abalou-a.

           — A varinha Firewitch... foi ROUBADA por um Carrasco da Ilha das Sombras!

           A jovem parou de espiar pela greta e voltou para a sua cabana envolta em pensamentos. Ela não conseguia acreditar que a varinha Firewitch havia sido roubada e que nesse exato momento poderia estar nas mãos de Malagat. Porque Athus não a contou? Porque ele mentira dizendo que a varinha havia sido destruída?

           Mas antes que pudesse buscar uma resposta, sua marca começou a queimar. Era uma queimação insuportável como se o desenho cravado em seu pescoço estivesse em brasas, consumindo sua carne. Logo ao chegar à cabana, Lisa entrou no quarto e correu para a frente do espelho. Levou a mão ao pescoço, mas assustou-se e tirou no mesmo instante, ao ver, seus dedos estavam encharcados de sangue. O que está acontecendo comigo?

 

           As tochas de fogo iluminavam as ruas escuras da aldeia e abriam caminho para a cabana de Lisa.  Dan passou correndo por uma rua escura e cortou caminho até onde ela estava.

           Dan abriu a porta da cabana de forma brutal. Estava ofegante e com uma cara de que algo de muito ruim havia acontecido.

           — Lisa pega as suas coisas, depressa, nós vamos embora!

           — Por que isso agora, Dan? O que aconteceu?

           Ele puxou a respiração e juntou os baús de Lisa que estavam no canto da parede.

           — Eles conseguiram! Malditos! — Dan gritou e deu um murro no baú.

           — Você está me assustando, Dan! O que aconteceu?

           O rapaz tentou acalmar- se e depois respondeu.

           — Eles prepararam uma armadilha para nós quatro. Grump roubou a pedra sagrada dos aldeões e nos culpou pelo roubo.

           Ao receber a notícia, Lisa teve uma forte queimadura no pescoço, chegando a cair sentada sobre a cama.

           — O que foi, Lisa?

           A garota passou a mão no pescoço e mostrou-a para Dan. Estava cheia de sangue.

           Dan olhou assustado para o pescoço de Lisa, onde o sangue escorria e afastou para trás. O rapaz parecia perturbado e sem reação.

           — Começou a sangrar hoje à tarde quando eu vi Athus conversar com Manah...

           — Athus? O que ele está fazendo na aldeia?

           — Eu não sei. Mas eu ouvi a conversa deles e... — a marca queimou mais forte provocando uma terrível visão em Lisa.

           A visão mostrava um Carrasco com um machado, um homem vestindo um manto marrom com uma carapuça na cabeça e uma outra visão indefinida. Depois imagens retorcidas e algumas paralelas, ela sentiu que descobrira algo terrível.

           — Dan, não foi Grump quem roubou a pedra azul! Existe um traidor na Fonte Phoenix! Ele roubou a varinha Firewitch e entregou-a a Besta e provavelmente roubou a pedra sagrada também!

           De súbito, Dan afastou para trás e apenas pensou em uma única pessoa. Athus!

           Os aldeões gritavam por “morte” ao aproximarem da cabana de Lisa.

           Os Pés Grandes, quando eram roubados, tornavam-se cruéis com o ladrão, chegando a ponto de julgá-lo e condená-lo a morte. Eles deixavam o lado de criaturas passivas, alegres, brincalhonas e festeiras para trás e tornavam-se verdadeiros assassinos.

           As tochas e os gritos de “morte” pararam em frente à porta da cabana. Um aldeão quebrou a porta com um machado e a invadiu. Ao entrar, notou que não havia ninguém. — Ela fugiu!

           Lisa negava-se a acreditar que Athus teria alguma coisa a ver com o roubo da pedra azul e com a Besta. Porém, Dan juntara as peças do quebra-cabeça e chegara a uma conclusão mais óbvia.

           — Lisa quando você foi possuída pelo espectro da Besta, Athus havia desaparecido do castelo. Ninguém sabia onde ele estava — ele explicava enquanto corriam para o estábulo onde Zig e Cliffe os esperavam — Quando eu estava no bosque eu vi um homem com carapuça preta cobrindo a cabeça escondendo-se atrás de uma árvore. Eu o vi novamente anteontem.

           Eu corri atrás dele, mas o perdi de vista. Hoje você o vê na cabana de Manah... você não acha muita coincidência?

           — Não, não pode ser!

           Dan abriu a porta do estábulo e entrou.

           — Lisa é obvio! Athus roubou a varinha e entregou a de Grifus para você.

           Uma voz saiu do fundo do estábulo escuro e dirigiu-se a Dan.

           — Estamos prontos, Dan. Nós vamos fugir pela saída dos fundos do estábulo.

           Zig e Cliffe já haviam tirado os grifos de dentro do estábulo e colocado eles pelo lado de fora.

           Dan pegou na mão ensanguentada de Lisa e puxou-a para os fundos do estábulo.

           — O vaso, Lisa, era indestrutível pela varinha de Grifus, como você acha que conseguiu quebrá-lo?

           Lisa parou e puxou Dan.

           — O que está querendo dizer?

           — Athus estava escondido quando ele usou a varinha Firewitch no Vaso Vivo no momento em que você conjurou o feitiço. Assim, todos acreditariam que você o tinha destruído e ficariam furiosos. Ele só não previu que Manah fosse intervir e acalmar os aldeões. Porém, ele aprontou novamente e dessa vez, não haverá Manah para acalmá-los!

           A noite estava terrivelmente escura e sombria. Havia muitas nuvens no céu que cobriam o brilho das estrelas e da lua cheia. Entre a escuridão, somente as tochas de fogo destacavam-se entre os gritos de “morte”.

           Os aldeões reorganizaram-se por toda a aldeia e cercaram-na. Os homens que praticavam a caça estavam armados com arcos e flechas incendiadas e preparavam-se para cercar o estábulo.

           Um grupo de arqueiros já estava posicionado atrás do estábulo e escutavam a conversa entre Dan e Lisa.

           — Mesmo assim, Dan — dizia Lisa — eu não posso acreditar que Athus tem alguma coisa a ver com isso. Então porque ele contaria para Manah que a varinha Firewitch tinha sido roubada?

           Zig apareceu novamente entre a escuridão do estábulo e chamou pelos dois.

           — Anda, o que vocês estão esperando? Vamos embora antes que eles nos encontrem!

           Um dos arqueiros escutou a conversa e fez um sinal com a mão para avançarem.

           Lisa e Dan correram para a saída do estábulo e pararam em frente aos grifos. O rapaz preparou-se para montar no grifo quando as tochas de fogo acenderam.

           — Vamos, subam logo! — gritou Dan.

           Um aldeão deu o sinal para avançarem e os cercou.

           Lisa montou no Peninha e ao olhar para os lados se viu rodeada pelas flechas incendiadas. Eram quase trinta arqueiros que estavam posicionados ao redor dos quatro, prontos para atacarem.

           — Vocês não vão a lugar algum!

           O aldeão que comandava o grupo mandou que os quatro descessem das majestosas aves e entregassem as malas e os baús de roupas.

           Lisa tirou os baús encolhidos do bolso da calça e entregou para o aldeão. Ele olhou para eles e jogou no chão.

           — Faça-os voltar ao tamanho original! Se tentar fazer alguma gracinha, senhorita, seus amigos pagarão!

           Quatro arqueiros apontaram suas flechas para Dan, Zig e Cliffe. A jovem olhou para eles e tirou a varinha mágica do bolso. Ela fez um pequeno movimento e os baús aumentaram de tamanho.

           O aldeão abriu o primeiro baú e tirou todas as roupas que estavam dentro. Ao retirar as roupas do segundo, ele encontrou a pedra azul enrolada no manto de Lisa.

           — Eu... eu não sei como isso apareceu aí! — Lisa ficou sem reação ao ver a pedra e deixou a sua varinha cair no chão.

           O aldeão olhou para a pedra e gritou para os arqueiros. — Levem-nos para o centro da aldeia!

           Os tambores soavam num ritmo angustiante, prontos para presenciar o castigo pelo roubo da pedra sagrada. Os aldeões gritaram eufóricos por punição ao ladrão. Homens e mulheres gritavam juntos, um mesmo grito que atordoava Dan. Morte! Morte!

           Lisa havia sido colocada de joelhos no chão e com o pescoço sobre uma grande pedra. Dan e os Pés Grandes também estavam ajoelhados, porém eram as suas mãos que estavam sobre as pedras.

           Atrás dos quatro, havia um aldeão encapuzado segurando imensos machados afiados.

           As batidas dos tambores ficaram mais fortes e silenciaram de uma vez só quando Manah surgiu seguido de Samah entre as tochas de fogo.

           O ancião passou perto de Zig e Cliffe e lançou-lhes um olhar de decepção.

           — Tio Manah, nós não roubamos a pedra sagrada!

           — Nem se quer passamos perto do templo...

           O ancião parou de andar e virou-se para os sobrinhos.

           — Infelizmente vocês infligiram os costumes da minha aldeia e precisam ser punidos! — Manah olhou para os dois e abaixou a cabeça — Eu não esperava isso de vocês!

           O mundo parecia perdido para os dois Pés Grandes. Manah era um dos familiares mais queridos e agora se tornara o mais cruel de todos.

           Lisa estava extremamente nervosa e nem acreditava no que estava acontecendo. Isso só pode ser um pesadelo! Que inferno!

           Sentia-se inútil e incapaz de defender-se. Era como se todas as suas forças estivessem sido esgotadas por uma onda de fatos que, neste exato momento, se virava contra ela.

           — Como pôde? — Manah parou em frente a Lisa e olhou-a com um ar autoritário e cruel.

           — Por que isso está acontecendo comigo? — murmurou a menina.

           Manah levou seu cetro até o queixo de Lisa erguendo sua cabeça com ele.

           — Foi uma escolha sua.

           — Eu não quis nascer sendo quem eu sou! Eu não quis que o mal perseguisse meus passos!

           — Não foi uma escolha minha! — Manah retirou o cetro e voltou a apoiar- se nele.

           — O senhor sabe que eu não seria capaz de roubar uma pedra considerada sagrada por vocês...

           — Eu sei, mas eles... não sabem!

           O ancião deu de costas para Lisa e ergueu a voz para os aldeões.

           — Que a pena seja cumprida! Decapitação das mãos dos cúmplices e da cabeça da autora do roubo! — Manah voltou a olhar para Lisa e abaixou a cabeça.

           Os aldeões começaram a gritar e tocar os tambores.

           As mãos de Dan, Zig e Cliffe foram puxadas e postas sobre a pedra. Do lado deles, os machados foram erguidos e preparados para efetuar a sentença. Lisa seria a última a ter a penalidade cumprida.

           Dan olhou para a lâmina afiada do machado e fez um movimento brusco com as mãos. Uma ventania saindo delas ergueu os machados e jogou-os para o alto. Em seguida, ele levantou, fechou os braços e abriu-os novamente. Um poderoso vento saiu de seu corpo e lançou todos aos aldeões contra as cabanas.

           Zig e Cliffe levantaram e viram alguns homens correndo em suas direções. Os dois ergueram os braços e deram um murro no chão. De repente a terra abriu-se e engoliu os homens.

           Dan levantou Lisa e saiu correndo em direção ao estábulo. Zig e Cliffe seguiram logo atrás, depois de impedirem que alguns aldeões os seguissem.

           Ao chegarem atrás do estábulo, Dan montou rapidamente no grifo. Lisa pegou sua varinha que estava caída no chão e encolheu os seus baús.

           Alguns aldeões armados com arco e flecha aproximavam-se dos grifos. Cliffe os viu e ergueu os dois braços. Ao dar um murro no chão, pedaços pontudos de rochas saíram da terra e formaram uma barreira impedindo a passagem de seus condenadores.

           Os grifos abriram as asas e decolaram. Eles precisaram subir um pouco mais para o alto, para desviar das flechas incendiadas que eram lançadas pelos aldeões.

           Lisa deu uma última olhada para a aldeia enfurecida e sentiu-se culpada por tudo que estava acontecendo. Foi minha culpa!

 

           Os primeiros raios do sol atravessaram os vidros quebrados de uma cabana abandonada próxima ao grande cânion do rio Maykerland e tocaram o rosto de Lisa.

           A cabana parecia estar abandonada há algum tempo. Havia dentro dela uma cama quebrada e algumas cadeiras caídas no chão. Ela não possuía repartições que separavam os quartos e nem uma das paredes do lado sul.

           Eles encontraram a cabana algumas horas depois de terem fugido da aldeia das Ruínas Antigas e resolveram passar a noite ali.

           Dan deitou sobre algumas roupas e usou seu manto como cobertor. Zig e Cliffe deitaram sobre um monte de palha no canto esquerdo da cabana e dormiram em meio a ratos e baratas que faziam casas dentro dela. Lisa deitou-se sobre a cama quebrada.

           O colchão era fino e duro. A pobre garota quase não dormira a noite por causa dele e por causa dos últimos fatos ocorridos. Somente de madrugada, ela conseguira cair no sono e amanhecer sem ficar perturbada.

           Lisa despertou com os raios do sol tocando seus olhos, levantou se espreguiçando meio dolorida pela noite ruim e saiu da cabana.

           Os grifos estavam brincando um com o outro do lado de fora quando surpreenderam Lisa. Garrinha e Peninha aproximaram dela e esfregaram suas cabeças no seu rosto. Ela retribuiu o carrinho coçando as cabeças penadas dos dois.

           Dan chegou por trás dela com os cabelos amassados e com olheiras nos olhos.

           — Eu não vi você na cama e aí pensei que já tinha levantado! Dormiu bem?

           Lisa deu um sorriso afável para Dan e alisou a cabeça de Peninha.

           — Talvez melhor que você!

           Ele riu da sua noite insuportável e passou a mão nos olhos.

           Lisa deixou os grifos e foi até a beira do cânion. Dan a seguiu.

           — Ainda está pensando no que houve ontem?

           Lisa chutou uma pedrinha, observou-a cair no penhasco do grande cânion e suspirou.

           — Ainda há coisas que não foram bem explicadas para mim! — a menina prendeu uma mexa de cabelo atrás da orelha e cruzou os braços. — Por que roubariam a pedra sagrada dos aldeões e me acusariam pelo roubo?

           Dan suspirou e pensou antes de responder.

           — Nunca sabemos a intenção das pessoas quando elas querem nos ferir. Sempre foi assim!

           — Mas não deveria ser assim comigo!

           Os dois calaram-se por alguns instantes. Um vento leve soprou contra o rosto pensativo de Lisa, erguendo quase que despercebido alguns fiozinhos de cabelo.

           — Eu acredito que tudo isso começou quando eu vim para esse mundo — afirmou.

           — Como assim?

           Ela olhou para o horizonte azul e sentiu uma breve saudade do céu de Winsville. Como ele era lindo!

           — Eu não entrei nesse mundo por vontade própria, algo me empurrou para cá me fazendo cair no lugar errado. Você me entende?

           Dan a fitou e viu uma lágrima descendo em seu rosto. Neste momento o rapaz sentiu uma tristeza jamais sentida antes. Era como se ele estivesse no lugar dela.

           — Ele matou meus pais, Dan! Ele matou meus pais e agora quer me matar!

           Ele aproximou de Lisa e abraçou-a meio sem jeito. Preciso estar perto dela para evitar que isso aconteça!

           — Não fique assim, um dia tudo isso vai acabar. Tudo vai acabar!

           A menina apoiou seu rosto no ombro de seu fiel amigo e deixou as lágrimas saírem de seus olhos. Dan passou a mão nos cabelos dela e beijou-a na cabeça. Tudo vai acabar...  eu prometo!

           Os grifos voaram o dia inteiro e só pararam para tomar água num lago a alguns quilômetros da Fonte Phoenix.

           A tarde estava chegando e com ela, um ar frio trazia nuvens negras que cobriam o céu do Reino da Fênix.

           Lisa encheu a mão com água e levou a boca. Ao levantar, olhou para as nuvens e sentiu um aperto no coração. Havia al- de estranho nelas e isso a perturbou. Está acontecendo algo de errado!

           Aos poucos, sobre o mar, um ar gélido espalhava-se congelando toda a água e paralisando as ondas que batiam sobre as pedras do penhasco.

           O frio estendeu-se por ele, passando pelo bosque das ninfas e atingindo os castelos da Fonte Phoenix.

           As nuvens escuras passavam sobre Lisa provocando as mesmas sensações de quando parara para beber água. Elas estavam espessas e pareciam furiosas com raios e trovões.

           Dan olhou ao longe e viu a torre principal da Fonte Phoenix surgindo aos poucos. Porém, havia algo de estranho nela.

           Um vento frio bateu contra os quatro, fazendo-os tremer. Lisa olhou para baixo e viu tudo congelado. De repente, um floco de neve desceu sinuosamente e tocou o rosto de Dan.

           — Tem algo de errado, Lisa! — disse Dan olhando surpreso para baixo — Essa época do ano não cai neve e... olha, está tudo congelado. É impossível de isso acontecer aqui!

           Lisa também não entendia o que estava acontecendo. Ela apenas sentia uma leve queimadura na sua marca e uma angústia no coração. O que está havendo?

           Ao chegarem à Fonte Phoenix, todos se surpreenderam ao ver os castelos cobertos por uma espessa camada de gelo.

           — O que houve aqui? — murmurou Zig ao sair de cima do grifo.

           Cliffe saiu com o Garrinha e sobrevoou a Fonte Phoenix, o bosque das ninfas e o penhasco. Tudo estava coberto por gelo. Nenhuma folha sequer movia-se.

           Garrinha passou pela saída do penhasco e foi parado por Cliffe que não acreditava no que estava vendo.  O mar também fora enregelado. Cliffe voltou rapidamente para a Fonte Phoenix e contou aos outros o que tinha acabado de ver.

           — Tem algo de muito errado acontecendo aqui! — disse Dan vendo que de sua boca saía ar quente, devido à anomalia climática do lugar.

           Zig saiu correndo de dentro do castelo dos Bruxos e quase caiu de tanta pressa.

           — Dan, estão todos congelados!

           O gigantesco salão do refeitório parecia uma loja de estátuas. Todos os alunos que permaneceram na Fonte Phoenix haviam sido congelados.

           Dan passou entre eles e bateu a mão no corpo de um.

           — Parece que foram congelados em instantes de segundos. Olha só, é como se o tempo tivesse parado de repente, sem dar tempo de se movimentarem!

           Sentados a mesa, alguns alunos foram congelados no instante em que colocavam o garfo na boca ou quando bebiam alguma coisa. E outros no momento em que andavam. A beleza do refeitório limitara-se a um branco gélido e sem vida. Até mesmo as paredes não escaparam do congelamento.

           Dan e Lisa saíram do castelo dos Bruxos e rodaram os outros castelos. Todos eles estavam na mesma situação: gélidos e sombrios. Parecia que os quatro eram os únicos que restavam na imensidão da Fonte Phoenix.

           — Todos foram congelados! — disse Dan ao encontrar Zig e Cliffe no jardim sul — Não há mais ninguém nos castelos a não ser nós.

           — Eu acho que você está enganado Dan!

          Zig olhou para o campo de pouso onde viu Louise descendo da carruagem que acabara de pousar.

           Usava o manto da Fonte Phoenix e luvas nas mãos para conter o frio. No entanto, desejava um cachecol urgente para cobrir o pescoço.

           Assim como Lisa e os outros, Louise não sabia o que estava acontecendo. Apenas tinha uma sensação estranha de que alguém se aproximava dos castelos.

           — Algo estranho está para acontecer, isso não é normal! — afirmou Louise.

           — Afinal, o que mais pode acontecer? — perguntou Cliffe.

           — O caos! — disse uma voz rouca e fraca saindo de trás de um arbusto.

 

           Louise tirou a varinha do bolso e entrou na frente de Lisa apontando-a para Düblin.

           — Afaste-se!

           — Düblin não fazer mal, não. Não faz!

           — Düblin! — disse Lisa.

           Lisa entrou na frente de Louise e abaixou a varinha dela.

           — Calma Louise, Düblin é um amigo!

           Dan olhou para a criaturinha cinza de aspecto medonho e murmurou.

           — Lisa, ele é um Freeguiz! E eles não possuem amigos!

           Os Freeguiz eram conhecidos por serem criaturas solitárias e traiçoeiras. Talvez pelo fato de dominarem o mundo espiritual, as pessoas os rejeitavam e criavam fábulas duvidosas sobre suas verdadeiras intenções.

           — Menina, você precisa vir comigo. Precisa, sim! — dizia Düblin — Ele roubou a sua chave para pegar a espada!

           — Chave? Espada? Do que está falando? — perguntou Dan.

           — Não há tempo para explicações, menina! O mau está se aproximando e o cúmplice está preparando a chegada DELE!

           Dan não parecia gostar muito da criaturinha, mas ao ouvi-la percebeu o tamanho da gravidade que estava cercando a Fonte Phoenix.

           — Lisa você tem que sair da Fonte Phoenix — disse Dan — Isso só pode ser obra da Besta. Você corre perigo!

           — Não, menina — interveio Düblin — O cúmplice vai achar a espada e aí tudo estará perdido!

           Lisa não entendia muito bem o que Düblin dizia, mas tinha certeza que chegara o momento certo para esclarecer tudo o que estava acontecendo.

           — Lisa você tem que sair daqui! — insistia Dan.

           — Não Dan. Eu já fugi demais do destino. E isso só me trouxe sofrimento, dor e angústia!

           Dan a fitou e notou uma expressão de determinação em seu olhar. Havia uma energia especial saindo do seu corpo que transbordava no ar gélido e os envolvia. O rapaz entendeu, por fim, o que era ser uma Bruxa de Fogo.

           — Está certo. Se a Besta está vindo para cá, nós ficaremos juntos com você porque somos uma equipe e nada pode nos deter!

           Zig bateu nas costas de Lisa e sorriu. Louise fez um sinal com a cabeça, seguida por Cliffe e Dan. Estamos com você!

           Uma escuridão sem fim tomava conta do mar congelado e aproximava-se da Fonte Phoenix. Entre aquela escuridão, centenas de Carrascos vagavam de um lado para o outro, seguindo o seu mestre, todas com um mesmo objetivo. Lisa!

           — Düblin, onde está guardada a espada Firewitch? — perguntou Lisa enquanto passavam pelo jardim sul.

           — Numa câmara secreta, no bosque!

           Lisa parou de andar.

           — A câmara que eu entrei no sonho, não é mesmo?

           — Sim!

           Louise sabia onde essa câmara localizava-se. Era muito longe e poderia demorar algumas horas até que a achassem. Mesmo com a ajuda de Düblin, o que não agradava Dan, eles não conseguiriam encontrar a espada antes da Besta chegar à Fonte Phoenix.

           — Esperem. Eu conheço um atalho até essa câmara! — disse Louise — Quando a espada foi trazida para cá, Martius Godric pediu para que construíssem passagens secretas dentro da Fonte Phoenix que a ligassem à câmara.

           Todos olharam surpresos para Louise. A forma como ela sabia das passagens secretas e de quando a espada foi trazida para o príncipe deixou Lisa intrigada.

           — Como sabe disso tudo?

           Ela olhou meio sem jeito para todos. Por um instante pensou em não contar a verdade, mas era impossível continuar perto de Lisa sem que ela descobrisse.

           — Eu não sou uma aspirante que quer se tornar uma guardiã. Eu sou a sua guardiã, Lisa!

           A jovem bruxa de fogo ficou surpresa com a revelação. Ela nunca desconfiara disso. Também, não havia muitos motivos para isso.

           — A minha missão era estar perto de você em todos os momentos. No entanto, não foi bem assim!

           — Agora faz sentido! — disse Dan — Quando Lisa foi dominada pelo espectro da Besta, você sabia tudo sobre a Bruxa de Fogo e não fez uma pergunta sequer sobre o que estava acontecendo ou sobre quem era ela!

           — Sim, mas não há tempo para explicações — disse Louise andando em direção ao castelo principal — Venham comigo, a passagem está no Castelo do Príncipe, onde ele faz reuniões secretas com os reis dos seis reinos.

           Na entrada do castelo principal, Lisa perguntou por que a espada foi tirada das Ruínas Antigas e trazida para a Fonte Phoenix.

           — Logo depois que você foi mandada, ainda bebê, para o Mundo dos Humanos, Godric descobriu que os Carrascos estavam procurando a espada Firewitch nas Ruínas Antigas. Então ele mandou que tirassem a espada de lá e deixassem uma outra no lugar. A verdadeira Firewitch foi trazida para cá e escondida numa câmara de pedra que poderia ser aberta com a chave de Grifus Allenah, a mesma que abria o compartimento secreto da estátua da Fênix nas Ruínas.

           — Então foi por isso que quando eu abri o compartimento, outra espada saiu de dentro! —exclamou Lisa.

           — Exatamente! — disse Louise. — Quando chegaram as férias eu planejava ir com vocês para as Ruínas Antigas, mas recebi uma carta dos Lordes. A carta dizia que eu deveria comparecer em Poltergrat com extrema urgência, porém, quando cheguei, descobri que a carta era falsa.

           — Alguém não queria que você fosse com Lisa para as Ruínas Antigas...

           — Isso, Dan! Acredito que foi uma forma de me impedir de encontrar a espada. No entanto quem bolou o plano não contava que a espada sempre esteve na Fonte Phoenix!

           — É, mas agora o traidor sabe disso e nesse exato momento ele pode estar a caminho da Câmara Secreta...

           O corredor do Castelo Principal era bem grande e possuía algumas armaduras em pé encostadas na parede. Num corredor grande, havia quase cem armaduras que seguravam espadas, machados e adagas.

           Ao passarem por uma armadura, olhos vermelhos surgiram por entre o capacete. Nenhum dos cinco perceberam algo de estranho nela.

           Lisa corria logo atrás de Dan quando parou bruscamente e sentiu uma queimadura na sua marca.

           — O que foi, Lisa? — perguntou Dan, parando.

           Ela não respondeu. Apenas olhou para trás e viu um pedaço de pano marrom sendo puxado por trás de um pilar do castelo. Lisa ficou olhando para trás do pilar quando virou bruscamente para Dan e jogou-o contra o chão.

           Uma armadura ergueu o machado e bateu contra Dan, acertando o chão. Naquele mesmo instante as outras armaduras saíram de suas posições e cercaram os cinco.

           Dan e Lisa levantaram do chão e afastaram para trás. — Isso é obra do cúmplice! — murmurou Düblin.

           Os olhos vermelhos brilhavam intensamente dentro dos capa-

           cetes das armaduras, tornando-as vivas.

           Louise e Lisa tiraram suas varinhas do bolso e apontaram para as armaduras.

           — Não vamos ter outra opção a não ser enfrentá-las! — disse Dan acendendo uma luz em seu dedo indicador direito. — Nós estamos com você. — disseram os Pés Grandes.

           As armaduras ergueram as espadas, machados e adagas e atacaram os cinco.

           Lisa e Louise fizeram um feitiço e jogaram contra quatro armaduras, explodindo-as.

           Zig correu em direção as armaduras e pulou para o alto. Ele pisou no capacete de uma armadura e deu um novo salto, girando no ar e caindo sentado no ombro de outra. O Pé Grande agarrou o capacete da armadura e puxou-o. O capacete saiu, mas a armadura continuou a movimentar-se.

           Uma outra armadura ergueu o machado e correu em direção a Zig. Ele pulou de cima da armadura e jogou-a contra a outra.

           Dan pegou uma espada caída no chão e partiu para cima da armadura. Os dois lutaram bravamente até que o rapaz tirou a espada da mão dela e jogou uma luz contra a mesma. A luz bateu contra ela, explodindo-a.

           Uma armadura com machado na mão atacou Lisa pelas costas. Düblin entrou na sua frente e estendeu a mão.

           A armadura tentava mover-se, mas não conseguia. A criaturinha foi fechando a mão aos poucos e sua inimiga começou a amassar e diminuir de tamanho, por fim acabou virando uma bola de metal. O capacete e os braços caíram no chão e o corpo metálico não passava de uma simples forma côncava. De repente, Düblin abriu a mão novamente e dela saiu uma forte energia jogando a bola metálica em direção as outras, derrubando-as e destruindo-as.

           Louise olhou para o corredor e viu que ele estava livre.

           — Lisa, vamos!

           Duas armaduras atacaram Dan de uma vez só. O rapaz deu um salto e chutou seus capacetes. Em seguida, ele caiu entre elas e abriu os braços. Um vento saiu do corpo dele e jogou- as contra as paredes.

           Cliffe segurava um machado na mão e destruía as armaduras batendo-o contra elas. O Pé Grande tinha uma grande habilidade para livrar-se rapidamente das suas inimigas de metal e uma grande força para poder segurar até três de uma vez.

           Dan percebeu que Lisa e Louise corriam no final do corredor e saiu atrás delas. Zig e Cliffe livraram-se de algumas armaduras e seguiram-no.

           Após saírem, um homem vestido com um manto marrom e com uma carapuça na cabeça saiu de trás do pilar e olhou para os cinco desaparecendo pelo corredor. Por um instante, ele deu um sorriso funesto, mostrando seus dentes amarelos e podres.

           Os cinco pararam no final do corredor, onde não havia nenhuma saída.

           — E agora?

           — Aqui há uma passagem secreta entre as paredes que liga a câmara de reuniões do príncipe —disse Louise.

           — Onde fica a entrada? — perguntou Lisa.

           Antes de Louise responder, ela olhou para o corredor e viu as armaduras despertando.

           — Não temos tempo para procurar a porta — Louise apontou a varinha para a parede e gritou —Dissiliunt!

           A parede foi destruída por uma gigantesca explosão que lançou tijolos por todos os cantos da Câmara.

           A câmara era apenas uma outra passagem para a sala principal de reuniões do príncipe. Ela era escura, pequena e tinha algumas estátuas de Gárgulas penduradas no alto. No fundo dela, havia uma imensa porta protegida por dois Trasgos gigantes.

           Eram criaturas de quatro metros de altura e mais de uma tonelada de peso. Eles eram perigosos e extremamente violentos, por isso eram usados como guardiões de câmaras subterrâneas e de castelos.

          Tinham um corpo coberto por calombos. Possuíam pernas curtas, grossas e uma cabeça pequena. Eles tinham os caninos inferiores grandes, que ficavam do lado de fora da boca. Suas orelhas eram pontudas e bem peludas. Seus cabelos eram longos e viviam trançados para auxiliá-los em combates.

           Os Trasgos usavam uma peça de couro coberto por placas de metal sobre a barriga e uma armadura que protegia o peito e os ombros. Na cabeça, usavam um elmo grande e pesado que tinha uma listra vertical de espinhos metálicos. Eles seguravam um escudo com pontas no centro e uma espada grossa e grande.

           Um dos Trasgos tinham um olho coberto por um pedaço de couro e uma marca de um corte na face. Ambos estavam congelados em suas posições, antes dos reis chegarem a Fonte Phoenix.

           Lisa caminhava dentro da câmara quando ouviu uma voz sussurrando.

           — Despertem! — a voz era conhecida por Lisa, mas ela não conseguia lembrar de quem era.

           Lisa sentiu a marca queimar e uma sensação de que algo estava para acontecer a perturbou.

           Zig, Cliffe e Dan passaram debaixo de três estátuas de Gárgulas. Ao passarem, elas abriram os olhos e moveram as cabeças.

           As Gárgulas eram criaturas que habitavam castelos subterrâneos e se alimentavam de carne humana. Elas só saíam à noite para alimentar-se por que ao dia, a luz do sol as transformava em pedra. Por serem criaturas raras em algumas regiões, elas serviam como inspiração para estátuas que eram usadas para enfeitar castelos e templos.

                Firewitch’s - O Sétimo Espírito          

           As Gárgulas possuíam asas de morcego e o lombo coberto por pêlos grandes. Eles possuíam braços finos e garras grandes que auxiliavam na captura das presas. Seus dentes eram grandes, pontudos e amarelos. Os olhos eram amarelos e a sua pupila tinha um formato vertical, bem fechada, semelhante à de um gato. Eram criaturas feias e nojentas, pois deixavam uma baba grudenta escorrer pela boca e cair sobre as vítimas.

           Uma Gárgula observou Lisa passar por debaixo dela e abriu as asas.

           A garota parou no centro da câmara quando sentiu alguma coisa aproximando-se. Ela olhou para trás e viu a Gárgula jogando-a contra o chão. Em seguida, os outros foram atacados por elas e jogados contra o chão e contra a parede.

           A Gárgula tentou morder o rosto de Lisa, mas ela pegou a varinha, apontou para a barriga da criatura e lançou um feitiço jogando-a contra a parede.

           Lisa levantou e apontou a varinha para a Gárgula que atacava Cliffe. O feitiço acertou a criatura empurrando-o em direção a porta da câmara.

           Louise livrou-se de uma delas usando o mesmo feitiço de Lisa. Dan usou a força do vento, que levantou a Gárgula e jogou-o contra a parede.

           Zig fechou a mão e deu um soco na cara de uma, tirando-a de cima dele.

           As Gárgulas levantaram-se e atacaram novamente. Düblin entrou na frente dos cinco e ergueu o dedo indicador direito para o alto.

           De repente uma luz poderosa saiu do seu dedo e transformou-as em pó.

           — Düblin odeia Gárgulas! — murmurou o Freeguiz.

           Dan se aproximou da porta e olhou para os Trasgos congelados. Havia no rosto deles uma expressão de fúria e de ódio. Parecia que olhavam para o rapaz, intimidando-o.

           — Agora eu entendo por que eles são usados como guardiões! — murmurou Dan para Zig.

           Lisa sentiu uma nova queimadura na sua marca e uma sensação de perigo.

           Dan estava de costas para o Trasgo que ficava no canto direito da porta quando escutou algo se movimentando atrás dele.

           De repente, o Trasgo abaixou a espada numa grande fúria contra as costas do rapaz.

           — Dan! — gritou Lisa.

 

           Lisa ergueu sua varinha rapidamente e jogou Dan contra a porta da câmara com um feitiço, livrando o rapaz de ser partido ao meio. A espada do Trasgo bateu contra o chão da câmara e abriu um imenso buraco. Os olhos da criatura estavam vermelhos e havia uma expressão diabólica em seu olhar.  O Trasgo puxou sua espada e virou-a contra Dan.

           O rapaz abaixou e rastejou para a frente. A espada bateu contra a porta e destruiu-a.

           — É só o que me faltava! — disse Dan, trêmulo, afastando-se para trás.

           — Ele não deveria estar congelado? — perguntou Zig.

           — Você quer dizer: ele não deveria ser bonzinho? — disse Cliffe.

           Düblin observou os olhos vermelhos do Trasgo e notou algo de errado nele.

           — Ele foi dominado pelo mau. Ele foi!

           — O que está dizendo Düblin?

           — Os olhos vermelhos, menina. Os olhos vermelhos indicam o domínio de alguém muito forte sobre ele!

           Enquanto se afastava para trás, Dan sentiu a presença de mais alguém dentro da câmara. Athus!

           O Trasgo recompôs-se e atacou-os com a espada. Ele deu um grito medonho e pulou para o alto, derrubando Lisa no chão.

           — Lisa!

           Dan correu em seu auxílio, porém a gigantesca criatura bateu o escudo nele, jogando-o contra a parede.

           Mais uma vez ele ergueu a espada e desceu-a contra o corpo de Lisa. Imediatamente, Louise apontou sua varinha para ele e gritou:

           — Permoveo!

           Uma luz empurrou o Trasgo contra a parede, destruindo-a.

           Louise correu até Lisa e a ajudou a levantar- se.

           — Você está bem? — perguntou.

           — Estou, obrigada!

           O Trasgo levantou-se e voltou a atacar. Dan entrou na frente dele e tentou impedi-lo, porém a criatura o empurrou e jogou longe. — Zig e Cliffe tentaram o mesmo feito, mas também foram jogados contra a parede.

           Düblin, que estava atrás do Trasgo, apontou a mão aberta para ele e no mesmo instante a criatura não mais se movia.

           Ele usara o poder psíquico para paralisar o Trasgo, justamente quando o mesmo aproximava-se de Lisa. Os Freeguiz eram grandes mestres nesta área, pois dominavam como ninguém o poder mental dos outros.

           De repente uma voz estranha entrou em sua cabeça e começou a perturbá-lo. A voz tinha o poder de bagunçar os pensamentos do Freeguiz e torná-lo fraco. De súbito, a bondosa criaturinha começou a levitar e perder o controle sobre o Trasgo. A voz continuou a perturbá-lo até que ela conseguiu reverter os poderes de Düblin contra ele, que imediatamente perdeu os movimentos e foi jogado contra a parede.

           O Trasgo voltou a movimentar- se e atacou Lisa.

           A garota se afastou para trás e pisou na barra do manto que usava, desequilibrando-se e caindo no chão. O Trasgo ergueu a espada e abaixou contra ela.

           Antes que a espada pudesse cortá-la, ela levantou a mão na altura do rosto. De súbito, uma luz saiu de sua mão e iluminou toda a câmara.

           O Trasgo olhou para a luz brilhante que cegava os seus olhos e começou a recuperar a sua consciência, mas uma voz sussurrava em seu ouvido e novamente tentou atacar Lisa, porém o clarão não permitia que se aproximasse.

           Em instantes sua consciência retornava, mas foi impedida pela voz. Seus olhos voltaram a ficar vermelhos e o Trasgo atacou a jovem.

           A luz que saía da mão de Lisa aumentou e tomou conta do corpo do Trasgo. Aos poucos ela diminuiu de intensidade e desapareceu.

           A criatura cobria seu rosto com as mãos, fugindo da imensa claridade que o tomou. Quando a luz desapareceu por completo, retornou o olhar para Lisa. Seus olhos não estavam mais vermelhos e sim numa tonalidade azul-marinho que transformava o rosto diabólico do trasgo em um semblante simpático e belo.

           Ele soltou a espada e estendeu a mão grande para ela. Ao ser posta de pé, ele ajoelhou-se e pediu desculpas. Lisa não entendia o que havia acontecido — Eu não sei o que houve comigo...

           A voz do Trasgo era grossa e doce ao mesmo tempo. Chegava a ser doce até demais para uma criatura conhecida como perigosa e violenta.

           — Você não teve culpa de nada — disse Dan aproximando da criatura — Alguém estava controlando a sua mente e forçando-o a nos atacar.

           — Mas quem faria isso? — perguntou o Trasgo.

           Dan ficou sério e olhou para Lisa.

           — Eu só conheço uma pessoa capaz de fazer isso... Athus!

           Os Carrascos eram criaturas que viviam com o rosto e o corpo coberto por um longo pano preto velho e rasgado. Para sentenciarem as penas de morte, eles usavam geralmente machados gigantes que degolavam os pescoços das vítimas.

           A Besta, assim como seus seguidores, também usava um pano preto mais longo do que o dos seus servos, que cobria todo o corpo. Porém, era mais velho e mais rasgado por ser o mais antigo Carrasco que já habitou Aragorn.

           Centenas deles aproximavam-se da Fonte Phoenix, levando com eles uma carruagem negra puxada por dois cavalos negros de olhos vermelhos e com asas de morcego.

           Dentro da carruagem, a Besta estava com as mãos cruzadas na altura do rosto. As mãos dela eram finas, murchas e gosmentas. Seus dedos eram longos e suas unhas, bem grandes, pretas e pontudas.

           Por um instante, um vento passou pela janela da carruagem negra e moveu o pano que cobria seu rosto. Seus olhos brilharam numa tonalidade vermelha fúnebre, arrepiante. Estou chegando!

           — Você está se precipitando, Dan! — exclamou Louise — Nós ainda não sabemos quem é o traidor e cúmplice da Besta.

           — Ainda não é hora para ficar pensando nisso, nós temos que pegar a espada antes da Besta chegar e antes que o traidor a pegue!

           Louise estava determinada a pegar a espada a qualquer custo. Ela sabia, mais do que ninguém, que se a espada Firewitch caísse nas mãos da Besta, o mundo de Aragorn estaria perdido.

           A Besta combinaria o poder da varinha, que já havia sido roubada, com o poder da espada. Ambas unidas provocariam um caos, não só em Aragorn, mas também no Mundo dos Humanos. As trevas se espalhariam pelos quatro cantos do universo e tornariam todos os habitantes dos mundos em escravos da escuridão. Louise nem gostava de pensar nessa possibilidade.

           Düblin saiu debaixo dos tijolos da câmara, meio contorcido por ter ficado paralisado pelo poder do traidor. Ele levantou zonzo e começou a cambalear pela sala de reuniões do príncipe.

           A sala de reuniões era bem extensa. Havia uma grande mesa redonda no centro, onde as espadas dos seis reis, mais a do príncipe, estavam postas em cima. À sua frente havia uma espécie de altar feito com escadas. No topo estava o trono de Gaya.

           O trono tinha nos braços a cabeça de um dragão e nas costas, um grifo com as asas abertas. Ao seu lado um cetro, usado especialmente em reuniões com os reinos, no formato de uma fênix com as asas abertas.

           O príncipe estava sentado no trono segurando o cetro. Todo o seu corpo tinha uma coloração branca num tom gélido provocado pelo congelamento. O mesmo ocorria com os reis, sentados à mesa e com Godric, que estava em pé na frente dela.

           Dentro da sala havia também quatro Trasgos usando armaduras, escudos e espadas. Além deles, havia mais oito guardiões dos reinos e o comandante das tropas do príncipe, William Fadness.

           Lisa entrou na sala pela porta destruída e foi até Düblin.

           — Você está bem, Düblin?

           — Düblin está, está sim! — Düblin parecia uma barata tonta indo e voltando de um lado para o outro — Pelo menos Düblin acha!

           Louise analisou a sala de reuniões e pareceu confusa quanto à passagem para o corredor que levaria a câmara da espada.

           — O que foi Louise? — perguntou Cliffe.

           — Eu não lembro do lugar onde a entrada da passagem fi- ca!

           — Como não se lembra? — perguntou Dan se aproximando. Louise foi até a parede da sala e passou a mão sobre ela.

           A parede da sala de reuniões era dourada e tinha algumas escrituras nela. As escrituras contavam sobre a fundação da Fonte Phoenix e sobre os seis sacerdotes que a fundaram.

           — Eu simplesmente não lembro — disse Louise — Faz mui- to tempo que eu não entro nesta sala!                  

           Lisa passou os olhos pelas paredes da sala de reuniões e lembrou do livro de Melody.

           Ela tirou os baús do bolso e os fez voltar ao tamanho normal. Após procurar dentro deles, retirou a espada, que ela e Düblin encontraram nas Ruínas Antigas, e o livro de Melody.

           — E essa espada? — perguntou Zig.

           — Essa é a espada que foi colocada no lugar da Firewitch dentro da estátua da Fênix nas Ruínas Antigas — respondeu Lisa enquanto fazia os baús voltarem a ser miniaturas.

           Lisa abriu o livro de Melody e foi até Louise.

           — Nesse livro tem as passagens secretas de todos os castelos da Fonte Phoenix. Quem sabe ele não pode nos ajudar?

           Folheando o livro encontrou a página do mapa. Aos poucos, as linhas foram surgindo no livro e formando o mapa das passagens secretas.

           — De quem é esse livro, Lisa? — perguntou Dan.

           — Esse livro foi escrito pela última Bruxa de Fogo, Melody Bluesky — respondeu — Foi Athus quem me deu.

           Dan a fitava tentando imaginar o que Athus queria ao dar-lhe o Livro de Melody. O rapaz estava certo de que ele tinha alguma coisa a ver com tudo que estava acontecendo.

           Louise analisou o mapa e encontrou a passagem que ligava a câmara onde a espada estava escondida. Não passava de um simples tijolo que empurrado com a mão, abria a passagem para a câmara da espada.

           Antes de Lisa fechar o livro, uma mancha negra começou a cobrir a parte sul do mapa do castelo.

           — O que está acontecendo? — perguntou Lisa, assustada ao ver a mancha.

           Louise pegou o livro e olhou a mancha se espalhando. Ela virou para Lisa com uma expressão estranha.

           — Nós temos que ser rápidos, a Besta já está chegando na Fonte Phoenix! — disse — Essa mancha negra é o sinal de que Ela está se aproximando.

           Louise analisou a parede e encontrou um tijolo que era menos dourado que os outros. Ela tocou nele e acionou o mecanismo. O tijolo entrou na parede e desapareceu.

           De repente, todos escutaram um ruído de tijolos batendo um contra o outro vindo do chão da sala de reuniões. Aos poucos o chão foi abrindo e descendo, formando uma escada de pedra que desaparecia no corredor que surgia.

           Lisa fechou o livro e encolheu-o com um feitiço, depois, guardou-o no bolso do manto e seguiu os outros que estavam descendo as escadas, com a espada na mão.

           O corredor que dava acesso à câmara da espada era um pouco estreito e bem escuro. No canto das paredes havia algumas tochas penduradas que ascenderam no instante em que Louise passou por elas. De repente todas elas pegaram fogo e iluminaram o corredor.

           Dan caminhava observando Düblin. Parecia que havia algo de estranho no Freeguiz que incomodava o rapaz. Ele não sabia explicar, mas tinha certeza de que aquela criatura escondia algo.

           Os sete chegaram à porta que protegia a espada e estranharam que nada lhes aconteceu. Nada tentou impedi-los de chegar até ali.

           — Tem algo que não está cheirando bem! — disse o Trasgo cheirando o ar.

           — Não fui eu, foi Zig! — acusou Cliffe.

           — Não estou falando disso, Pé Grande! — repreendeu o Trasgo. — Estou querendo dizer que algo de estranho está para acontecer.

           Cliffe abaixou a cabeça e saiu de perto do Trasgo. Ao aproximar-se de Lisa, ele olhou para o alto e viu um monte de terra saindo duma rachadura do teto do corredor.

           De repente, uma voz sussurrou e o teto caiu. O Pé Grande empurrou Lisa para trás e ficou preso no meio dos escombros.

           — Cliffe! — gritou Zig.

           Zig correu até os escombros e começou a tirar as pedras, tentando desenterrar seu irmão.

           O Trasgo aproximou-se e afastou Zig para trás. Depois, pegou um pedaço grande de pedra do teto e tirou-a de cima dos escombros.

           Cliffe ergueu a mão ensanguentada entre a terra e balançou-a.

           Zig e o Trasgo já iam ajudá-lo, quando Dan aproximou dos escombros e começou a girar o corpo, provocando um vendaval que ergueu a terra lançando-a pelo buraco do teto. Aos poucos, o rapaz parou de girar e voltou ao normal.

           Por entre a poeira que ainda estava no ar, Cliffe levantou todo sujo de terra e cheio de cortes provocados pelo desmoronamento.

           Seu irmão e primo ajudaram-no a tirar a terra da roupa e sair de perto dos escombros.

           Lisa olhou para a terra caída tampando a porta e murmurou.

           — E agora, como vamos entrar?

           Louise olhou para o buraco no teto e viu um galho de uma árvore no alto.

           — De acordo com a localização da câmara da espada, nós estamos debaixo do Bosque das Ninfas.

           Louise foi até os escombros e começou a subir nele.

           — Há uma entrada pelo bosque, é só subirmos por aqui e entrarmos pela outra porta.

           Lisa olhou para o alto e não viu nenhuma opção mais favorável.

           O Trasgo chegou por trás dela e pegou-a pela cintura. Ele ergueu-a e a pôs sentada em seu ombro.

           — Quer uma ajuda?

           — Obrigada!

           O Trasgo sorriu para Lisa e subiu nos escombros. No alto do buraco, ele tirou-a do ombro e a pôs em pé.

           Depois que Lisa, Louise e o Trasgo estavam no bosque, Dan saiu voando de dentro do buraco segurando Cliffe pela cintura. Depois, Zig e Düblin apareceram escalando os escombros.

           A outra porta da entrada para a câmara da espada ficava a alguns metros de distância de onde os seis estavam.  Para chegarem até lá, eles tinham que passar por entre alguns carvalhos antigos e descer um pequeno barranco coberto por raízes grossas entrelaçadas umas nas outras.

           Após descerem o barranco, Louise correu até a entrada para a câmara. Ao chegar até ela, ela ficou parada como se algo tivesse acontecido.

           — O que foi, Louise? — perguntou Dan.

           — A entrada está bloqueada — disse apontando o dedo para ela — Quando houve o desmoronamento de terra, essa entrada também foi bloqueada.

           Lisa aproximou da entrada e lembrou-se do sonho. A entrada era a mesma que sonhara quando o espectro da Besta a havia dominado.

           A entrada estava coberta pelas pedras da construção da câmara impossibilitando a passagem deles.

           — E agora? — perguntou Zig.

           Düblin pensou por alguns instantes e saiu correndo por entre os arbustos.

           — Sigam Düblin! Düblin sabe como entrar!

           Düblin passou por alguns carvalhos e pulou um emaranhado de raízes grossas, indo parar nas bordas do lago.

           O lago de águas negras, não estava congelado. Somente as suas bordas apresentavam umas camadas finas de gelo que se estendiam pela areia e depois pelo resto do bosque.

           Assim que chegou ao lago, Dan viu alguém se mover atrás de um carvalho negro. O rapaz ergueu o dedo e destruiu-o com um feitiço.

           — O que foi, Dan? — perguntou Cliffe assustado com a ação.

           — Eu vi um homem atrás daquela árvore!

           O Trasgo cheirou o ar e saiu correndo em direção à árvore destruída.

           — Tem alguém aqui! — gritou o Trasgo enquanto corria.        

           Dan, Zig e Cliffe juntaram-se a ele e sumiram entre as árvores.

           Düblin pegou Lisa pela mão e puxou-a para o outro lado do lago.

           — Se a menina mergulhar no lago, ela vai sair dentro da câmara onde está guardada a espada!

           — Tem certeza Düblin? — perguntou Louise aproximando-se dos dois.

           — Sim, Düblin tem certeza!

           Lisa olhou para Louise e depois olhou para as águas do lago.

           — Por que o lago não congelou, Düblin?

           — O lago não é natural, menina! Ele surgiu quando a câmara foi construída há dezesseis anos atrás. Ela jamais seca, congela ou suja.

           Louise aproximou do lago e tocou a água com a mão.

           — Ela não está fria, pelo contrário, está morna!

           A água negra do lago refletia o corpo de Lisa numa nitidez quase inexistente. A jovem olhava para ele e sentia algo vago dentro dela. Era como se o lago fosse vazio, sem vida alguma, apenas cheio de trevas.

           — Se quisermos a espada, vamos ter que mergulhar — disse Louise.

           Lisa tirou a varinha do bolso e encolheu a espada que estava com ela. Em seguida, mergulhou no lago e desapareceu entre as águas escuras. Louise afastou para trás e pulou dentro do lago. Depois, Düblin mergulhou.

           O interior do lago era escuro e não dava para ver nada. Louise pegou a sua varinha e ascendeu uma luz na ponta. Iluminando o interior do lago num raio de cinco metros.

           O homem visto por Dan entrou atrás de uma árvore e escondeu-se na sombra dela.

           Dan e os outros pararam perto de um carvalho cheio de raízes pelo lado de fora da terra e olharam para os lados.

           — Maldito, ele fugiu! — disse Dan.

           — Não faz mal — disse o Trasgo — Nós ainda o pegaremos, seja quem for.

           Lisa e os outros entraram num túnel no fundo e saíram numa outra parte do lago onde havia um facho de luz no topo.

           Eles seguiram o facho de luz e vazaram no interior da câmara.

           Era um local grande e tinha a forma de um círculo. No centro do círculo havia uma espécie de piscina redonda que tinha uma passarela de pedra sobre a água, ligando as bordas da câmara ao centro dela onde a espada estava fincada entre duas estátuas de dois grifos em pé.

           As patas dos grifos seguravam a lâmina da espada Firewitch em sentido vertical.

           Lisa saiu da água e usou um feitiço para secar a sua roupa. Em seguida ela caminhou pela passarela e parou em frente à espada.

           A espada era dourada e tinha uma lâmina brilhante. No cabo dela havia três rubis vermelhos, um na ponta e dois nas extremidades. Em sua lâmina havia escrito em letra tombada o seu nome: Firewitch.

           Lisa pegou a espada e puxou-a. Ao tirá-la, uma onda de energia luminosa ergueu seus cabelos e iluminou o seu rosto. Neste instante, uma música celestial soou em seu ouvido e desapareceu aos poucos, à medida que a luz diminuía.

           Depois que Louise e Düblin saíram da água, Dan e os outros surgiram do fundo do lago e subiram na passarela.

           — Nós conseguimos! — exclamou Lisa.

           Quando tudo parecia terminado, algo explodiu a porta da câmara e apareceu entre a poeira dos escombros.

           Louise virou para a porta com a varinha na mão, pronta para atacar.

           De repente, a poeira abaixou e mostrou o rosto de Düblin coberto pela terra.

           Todos olharam surpresos para a criatura e depois para o outro Düblin sobre a passarela.

           — O que está havendo aqui? — perguntou Louise

           — Ele não é o verdadeiro Düblin, ele é um impostor! — gritou o Düblin que saía entre a poeira.

           — Mentira! — gritou o outro.

           Lisa sentia-se confusa com dois Düblins dentro da câmara. Eles eram iguais, sendo impossível dizer quem era o falso.

           — Ele imobilizou Düblin na sala de reuniões, enquanto vocês lutavam contra o Trasgo. Ele não é Düblin.

           O Düblin que saiu entre a poeira estava extremamente nervoso. Os seus olhos estavam numa tonalidade verde partindo para algo negro, nefasto.

           — Não acreditem nele! Eu sou o verdadeiro Düblin! — gritou o outro sobre a passarela.

           O Freeguiz da porta pulou no ar e atacou o outro. Os dois rolaram sobre a passarela tentando estrangular um ao outro. Por fim, um Düblin bateu a mão contra a barriga do outro e jogou-o para o alto com uma magia.

           Louise queria atacar um deles, mas não sabia quem era o verdadeiro. O mesmo acontecia com Dan, que se sentia confuso com a verdadeira identidade do Freeguiz.

           Por fim, o rapaz atacou uma das criaturas com um feitiço jogando-o contra a parede. O outro Düblin sorriu de forma funesta para ele e pulou contra Lisa, tirando a espada de sua mão e pulando dentro da água.

           — Dan, você atacou o verdadeiro Düblin! — gritou Louise. — Droga!

           Dan correu até a borda da água e mergulhou dentro dela.

           Depois, Zig, Cliffe e o Trasgo.

           Lisa correu até Düblin e ajudou-o a levantar- se.

           — Você está bem, Düblin?

           O Freeguiz levantou meio zonzo por causa do feitiço e saiu correndo para a água.

           — Düblin está bem, não se preocupe, menina! — ele mergulhou na água e desapareceu.

           Lisa e Louise correram para a passarela e pularam na água.

           O falso Düblin saiu do lago carregando a espada Firewitch. Dan e os outros saíram do lago perseguindo ele e atacando-o com feitiços. Porém, o usurpador era ágil e conseguia livrar-se facilmente.

           Depois que os outros desapareceram entre o bosque, Lisa, Louise e o verdadeiro Düblin saíram do lago e pararam na borda dele.

           A marca da jovem começou a queimar muito forte e a sangrar. Seus amigos perceberam que havia algo de errado com ela e correram em seu auxílio.

           — O que foi, Lisa? — perguntou Louise.

           Ela caiu de joelhos no chão com a mão no pescoço, gritando devido a dor que sentia e suas forças diminuíam com a intensidade do sangramento de sua marca.

           — O que foi, menina? — perguntou Düblin.

           Lisa ergueu a cabeça e olhou para o céu que aparecia entre os galhos dos carvalhos.

           — Ele está aqui!

 

           A carruagem negra da Besta pousou sobre a calçada congelada da saída do jardim sul para a entrada do Castelo do Príncipe. A carruagem estava cercada pelos Carrascos que a rodeavam de um lado para o outro.

           A porta foi aberta por um Carrasco que se curvou depois de ver seu mestre saindo. Ela tocou a porta com as garras e congelou-a. Ao sair, virou-se para um dos seus servos e disse com uma voz fraca e tenebrosa:

           — Encontrem-na e tragam-na para mim!

           Os Carrascos dispersaram-se pela Fonte Phoenix como um cardume negro.

           A Besta olhou para o Castelo Principal e entrou nele flutuando. Por onde ela passava, uma segunda camada de gelo se formava sobre a calçada e sobre as árvores da entrada.

           O falso Düblin corria entre as árvores do bosque com a espada na mão quando o Trasgo pulou de cima de uma árvore e bateu a mão contra o corpo dele, jogando-o contra outra.

           O falso Düblin levantou, pegou a espada que caíra no chão e lançou um feitiço contra o Trasgo. Uma bola de luz bateu contra a armadura dele e o jogou para cima de Dan que chegava por trás. Cliffe correu até ele e empurrou-o para o lado. O corpo do Trasgo passou por cima dos dois e bateu numa árvore.

           Zig correu atrás de Düblin e deu um pulo para o alto. Ao cair, ele bateu com o pé no chão, provocando uma cadeia de pontas de terra que saíram entre as folhas caídas e subiram levantando o usurpador.

           — Espero que agora você aprenda a não se meter com um Pé Grande! — disse com os punhos fechados.

           Antes de Zig pegar a espada de volta, um vento gélido ergueu as folhas caídas no chão e jogaram-nas contra os cabelos encaracolados do Pé Grande. Ele olhou para o alto e viu os Carrascos voando sobre o bosque, indo em direção ao lago.

           Lisa, Louise e Düblin saíam do lago quando o vento soprou contra o rosto deles. Lisa virou para trás e viu que os Carrascos voavam em círculos no céu formando um cone.

           — Temos que sair daqui, Lisa! — disse Louise puxando Lisa pelo braço.

           Um Carrasco saiu do alto do cone e desceu em direção ao bosque, em seguida, os outros o seguiram sussurrando o pavor.

           Lisa começou a correr pelo bosque sem ter rumo algum para onde ir. De repente, um Carrasco voou rapidamente e a pegou.

           Louise ergueu a varinha e apontou para ele.

           — Millória!

           A luz da varinha atingiu a criatura, que soltou Lisa.

           Louise correu até sua protegida, mas foi impedida por outro Carrasco que a atacou com um machado. Düblin entrou na frente da guardiã e ergueu a mão. Uma luz poderosa entrou no corpo do servo das trevas e destruiu-o.

           Lisa saiu correndo, sendo perseguida por dezenas de Carrascos.

           Os Carrascos se aproximavam de Lisa e tentavam pegá-la, mas ela afastava-os com um feitiço de luz. — Lux Máxima!

           Zig virou-se para o falso Düblin e não o viu mais pendurado nas pontas de terra.

           — Droga, ele fugiu!

           — Mas eu o pego! — disse o Trasgo correndo e dando pulos entre as árvores congeladas.

           O falso Düblin correu até a saída do bosque, mas foi impedido por um lobo que saiu de trás de uma árvore e o jogou contra o chão.

           O lobo mordeu a mão de Düblin e tirou a espada dele.

           Dan chegou logo atrás, com o Trasgo e os outros, que viram o lobo correndo em sua direção e deixando a espada cair no chão.

           — Cuide da espada, Horcliffe — disse o lobo — Lisa precisa de minha ajuda.

           Como num piscar de olhos, o lobo desapareceu entre as árvores, deixando Dan confuso.

           Um Carrasco atacou Lisa com um machado, mas foi destruído por Düblin antes de atacá-la.

           Düblin pegou na mão da garota e puxou-a para dentro do bosque.

           — Temos que sair daqui, menina!

           Quando o Freeguiz menos esperou, um Carrasco veio contra ele e o empurrou contra uma árvore, enquanto outra criatura chegou por trás de Lisa. Mas sua ação foi impedida pelo lobo que pulou contra ele e o jogou no chão.

           Louise chegou atrás e apontou a sua varinha para o Carrasco que atacava Düblin.

           — Lux Máxima!

           A luz o destruiu.

           O lobo saiu de cima do Carrasco e foi até Lisa.

           — Suba em mim, eu vou tirá-la daqui!

           O lobo aumentou de tamanho e ficou na altura de um pônei. Lisa hesitou em subir, mas viu que não havia outra opção.

           O lobo saiu correndo por entre as árvores com a jovem montada em cima dele. Ao terem uma distância significativa, ela olhou para trás e viu uma luz que envolveu todo o bosque. Louise!

           O falso Düblin atacou Dan e tentou roubar a espada novamente. Porém, o Trasgo pegou a criaturinha pelo ombro e jogou-a para longe.

           Quando tudo parecia ter acabado, o rapaz olhou para o lado e viu uma luz negra vindo na direção de onde a criatura usurpadora havia sido jogada. A luz atingiu os quatro provocando vários cortes no rosto, abdômen e nos membros.

           Dan abriu os olhos, todos haviam sido jogados contra troncos de árvores. Quando ele desviou o olhar para sua mão, a espada Firewitch desaparecera.

           — A espada! Onde está a espada? — gritava procurando-a por baixo das folhas e perto dos outros.

           Era inútil. O falso Düblin a havia roubado novamente.

          O lobo correu entre as árvores do bosque e chegou ao imenso portão de entrada da Fonte Phoenix.

           Lisa olhou para cima e viu os Carrascos voando em sua direção. O lobo entrou e levou-a até o chafariz congelado do jardim sul. Ao chegarem, ela viu o falso Düblin correndo em direção ao Castelo do Príncipe com a espada na mão.

           Lisa desceu do lobo e tirou a espada encontrada nas ruínas antigas do bolso, fazendo-a voltar ao normal e no mesmo instante correu para dentro do castelo.

           O lobo se transformou num homem de manto preto e ergueu a sua varinha mágica para os Carrascos que voavam na sua direção.

           — Lux Máxima!

           Uma poderosa luz saiu da varinha e riscou o céu da Fonte Phoenix afastando todas as criaturas nefastas que estavam menos que cinco metros de distância do raio brilhante.

           Em seguida ele saiu atrás de Lisa para ajudá-la a recuperar a espada.

           Dan e os outros saíram do bosque e entraram na Fonte Phoenix. Ao chegarem ao jardim, eles olharam para o céu e viram milhares de Carrascos chegando da Ilha das Sombras.

           O corajoso Horcliffe percebeu naquele instante que aquilo não era uma simples invasão, era o início de uma guerra contra a Besta e os Carrascos!

           O Trasgo sentiu o cheiro do falso Düblin e correu para o Castelo do Príncipe. Dan e os Pés Grandes o seguiram.

           Após saírem, Louise e Düblin chegaram à entrada do Castelo dos Celtas.

           Lisa seguia o falso Düblin pelo corredor que ligava ao salão de festas do primeiro andar do Castelo do Príncipe. Ela tentou parar a criaturinha com um feitiço, mas não conseguiu.

           Do outro lado da parede, o Trasgo corria em disparada farejando o usurpador e gritou para os outros que o seguiam:

           — Achei!

           O Trasgo bateu o ombro contra a parede do castelo e destruiu-a, atingindo o falso Düblin que foi esmagado contra a outra parede.

           Lisa viu a espada caída no chão e correu até ela. Antes que pudesse pegá-la, um Carrasco apareceu e a empurrou contra a parede.

           Os olhos do servo ficaram vermelhos ao fitar a garota. De repente ele ergueu o machado e desceu-o contra ela. No entanto, Lisa colocou a espada na frente e defendeu-se do ataque, mas a força partiu a lâmina ao meio.

           Lisa afastou-se novamente vendo que o Carrasco posicionava sua arma para enfim matá-la. Neste instante, Dan atravessou o buraco da parede feito pelo Trasgo e conjurou um feitiço contra o servo fazendo-o cair rolando no chão. Mas ele foi persistente e levantou-se, voltando a atacar a jovem que imediatamente retirou a varinha do bolso e apontou para a cabeça dele, atingindo-o com um feitiço de luz.

           O Trasgo saiu de cima do falso Düblin e pegou a espada Firewitch caída no chão.

           — Tome, ela é sua. — disse entregando a espada para Lisa. — Obrigada!

           O falso Düblin levantou e encontrou forças para sair correndo para a torre sul do castelo.

           — Ele está fugindo! — gritou Zig que saiu correndo atrás, junto com Cliffe.

           Lisa olhou para o nome da espada escrito na lamina e suspirou:

           — Chegou a hora!

           Dan a mirou por alguns segundos e desejou não acreditar que ela estava disposta a enfrentar a Besta. Porém, não poderia fazer nada. Estava em jogo a harmonia de todos os reinos e isso deveria ser mantido a qualquer custo.

           Louise e Düblin subiram pelas escadas da torre sul e chegaram numa sala espaçosa e com poucos móveis.

           Havia apenas algumas poltronas, uma mesa de escritório e uma prateleira de livros.

           — Não há ninguém aqui, Düblin!

           Quando os dois viraram para voltar, o falso Düblin entrou na sala. Ele tentou voltar para trás, mas viu Zig e Cliffe chegando pelas suas costas.

           — Onde pensa que vai! — disse Louise apontando a varinha para ele.

           O falso Düblin dava pequenos passos para trás assustado.

           — Não façam nada comigo, eu não tinha a intenção...

           — Quem é você? — interrompeu Louise.

           A criatura não respondeu de imediato. Ela olhou para Louise e sorriu.

           — Você já vai saber! — o sorriso da criatura era traiçoeiro e malévolo.

           Sem que a guardiã pudesse evitar, o usurpador tirou a varinha da sua mão e jogou-a contra a parede usando outra que ela possuía.

           Düblin e Cliffe tentaram atacá-lo, porém hesitaram ao vêlo preparando um novo feitiço.

           — Não se aproximem!

           Louise levantou meio zonza e tentou pegar a sua varinha, porém o falso Düblin usou um feitiço que a jogou para longe da sala.

           Sem que ele esperasse, Lisa e os outros subiram as escadas e entraram na sala.

           — Não se mexam! — disse o falso Düblin apontando a varinha para eles.

           Todos se agruparam próximos à porta e não tentaram fazer nenhum movimento brusco.

           — Eu esperei por isso há muito tempo! — dizia o falso Düblin rangendo os dentes. — Eu cansei de ser mandado pelos outros! Cansei de ser fantoche para o Príncipe Gaya! Eu era uma criatura indefesa que só era pisoteada pelos outros. Faça isso, não faça aquilo! Já chega! — gritou a criaturinha — Agora tudo vai mudar!

           — Do que está falando? — perguntou Lisa.

           O falso Düblin deu uma gargalhada nefasta e respondeu a pergunta de Lisa.

           — Vocês esquecerão aquela criaturinha repugnante que todos detestavam, mas que adoravam para fazer serviços para os outros. De agora em diante, vocês conhecerão o novo eu... — o falso Düblin calou-se por alguns instantes antes de completar a frase — o braço direito do mau!

           A criaturinha usou um tom de voz que fez Lisa perceber quem ele era realmente. Ela tentou não acreditar, mas era impossível, o falso Düblin já estava se revelando.

           — Não pode ser! — disse Lisa afastando-se para trás.

           — O que foi, Lisa? — perguntou Dan.

           Lisa olhou para a criaturinha e percebeu a forma de olhar, de falar e a de ficar em pé.

           — Ele... ele é... ele... é... GOBLIN!

           — O quê?!

           Todos olharam assustados ao ouvi-la falar o nome de Goblin.

           De repente, a criatura sorriu nefastamente para todos e começou a voltar a sua forma original. Quando menos esperavam, ele se transformou num homem baixinho, feio, corcunda e de aspecto repugnante. Realmente era Goblin!

           — Goblin! — a expressão de susto de todos foi mais forte do que quando Lisa pronunciou o nome dele.

           — Não, não, está tudo errado! — disse Dan passando a mão na cabeça — Não pode ser Goblin o traidor!  As peças não se unem. Era Athus o traidor!

           — Mas ele também tem o rabo preso nessa história — disse Goblin.

           Para surpresa de todos, Athus apareceu na porta e espantou-se ao ver o homenzinho mirando sua varinha para os jovens.

           — Goblin!

           Goblin deu um sorriso medonho para Athus e direcionou a varinha para ele.

           — Que bom que você apareceu. Porque não conta para Lisa, como você fez para ela vir pra esse mundo?

           Lisa olhou assustada, sem saber o que perguntar.

           — Porque não diz pra ela que foi você o autor do feitiço que a atingiu e a fez se perder no portal e cair no Reino de Allenah.

           — O que ele está dizendo, Athus? — perguntou Lisa.

           — Não ouça Goblin, ele só quer te envenenar com essas acusações!

           Athus parecia extremamente nervoso e tentava esconder isso dos outros. Porém, Goblin só piorava a sua situação, deixando-o quase sem controle.

           — Por que não conta a ela que quem roubou a chave nas ruínas antigas, foi você?

           — Isso é absurdo! Eu mesmo dei a chave para ela! — defendeu-se Athus. — Agora você vê Lisa, ele só quer envenenar a sua mente!

           — Eu? Quem sou eu para tanto? — Goblin virou-se para a garota e sorriu.  — Sabia que foi ele quem matou... seu pai?

           A revelação de Goblin soou como um tiro no coração de Lisa. Sem pensar duas vezes, ela ergueu a varinha e apontou para Athus. Uma luz saiu dela e o jogou contra a prateleira de livros.

           — Você matou meu pai! — gritou aproximando-se.

           Düblin correu até Athus e entrou na frente dele.

           — Lisa ele não matou seu pai, Düblin sabe disso!

           — Düblin, saia da minha frente! — gritou Lisa.

           Athus levantou e olhou para ela.

           Lisa estava trêmula e se segurava para não chorar de raiva.

           — Lisa, seu pai foi um grande amigo meu. Eu seria incapaz de matá-lo — disse Athus afastando Düblin da sua frente — Ele foi morto por um cúmplice da Besta e eu não pude impedi-la. Se for por causa disso, eu sou culpado! Mas não o matei!

           Ela sentiu que Athus estava sendo sincero e abaixou a varinha.

           Ao ver o que estava havendo, Goblin soltou uma gargalhada.

           — É tão bom ver os outros brigarem por uma mentirinha, não é mesmo?

           — Seu...

           Lisa apontou a varinha para Goblin e lançou um feitiço, fazendo-o girar e cair para trás.

           Ele levantou meio distorcido e soltou uma gargalhada que ecoou pela sala.

           — É incrível como vocês são enganados tão facilmente!

           Dan fitou Goblin e perguntou:

           — Do que está falando?

           — Lembram-se da pedra azul? Ah claro que lembram! — exclamou Goblin. — E então o que acharam?

           De repente o homenzinho repugnante começou a se transformar novamente e virar um velho baixo e barbudo.

           — Gostaram do que aprontei?

           Dan, Zig e Cliffe olharam espantados para Goblin que havia se transformado em Manah.

           Zig não suportou ficar parado e atacou Goblin imprensando-o contra a parede.

           — O que você fez com meu tio? — Nada de mais...

           Manah entrava todas as manhãs no bosque ao redor da aldeia para pegar ervas medicinais para os aldeões. Além de ser o ancião-mestre, ele era o responsável por curar os doentes de seu lar.

           O dia estava magnificamente belo e admirável. Manah entrou no bosque assoviando alegre por ter recebido a notícia de que seus sobrinhos o visitariam depois de muitos anos. Estava louco para vê-los e mal podia esperar a hora deles chegarem. É hoje, finalmente vou revê-los!

           As ervas medicinas deviam ser colhidas ao amanhecer ou ao entardecer. Porém, o ancião decidira colhê-las cedo para que quando chegasse à tarde, pudesse receber seus sobrinhos.

           As ervas eram encontradas numa trilha no meio do bosque onde apresentava uma grande variedade delas. Manah selecionava uma a uma e arrancava as maiores, para poder produzir mais poções de curas.

           Enquanto colhia as ervas, Goblin aproximava-se dele com a sua varinha na mão.

           Manah estava abaixado e murmurava uma antiga canção quando alguém o chamou pelo nome.

           — Manah!

           O ancião levantou e virou-se para Goblin.

           — Sim?

           — Obstupefacio! 

           Manah apenas viu uma luz ofuscando seus olhos e sentiu o seu corpo endurecendo até virar pedra.

           Goblin transformou-se em Manah e pegou a cesta de ervas que ele segurava. O plano estava pronto para entrar em ação!

           — Não se preocupe, — disse Goblin. — uma hora dessas, ele deve estar no bosque servindo de poleiro para os pássaros!

           — Seu maldito!

           Zig fechou a mão e ergueu o punho. Antes de ele lhe dar um soco, o homenzinho corcunda apontou a varinha para sua barriga e o jogou para longe.

           Cliffe não se conteve e atacou Goblin. No entanto, ele o transformou em pedra.

           — Cliffe!

           Dan ergueu o dedo indicador para atacá-lo, quando se conteve ao ver a varinha dele.

           — Não se aproxime! — exclamou Goblin apontando a varinha. — Nas mãos de Goblin, a magia nunca foi tão perigosa!

           O rapaz abaixou a mão e fechou-a de raiva. Sua vontade era de pular em cima de Goblin e encher a cara dele de pancada.

           Diferente do Goblin quieto e obediente que Dan conheceu ao chegar a Fonte Phoenix, esse parecia impiedoso e tão frio quanto um Carrasco da Ilha das Sombras.

           — Ah, eu não posso esquecer de você, Athus! — disse Goblin virando-se para ele. — E então, como vai explicar para ela, que foi você quem lançou o feitiço e a mandou para esse mundo?

           Lisa virou-se com um olhar interrogativo, mas enfim, Athus lhe contou a verdade.

           — Naquele dia, como você lembra, a Besta ia atacar e mandá-la para a Ilha das Sombras. Assim, depois de me aniquilar ela voltaria para lá e sugaria o Sétimo Espírito na ilha. Porém, eu percebi que havia algo de estranho em Goblin e no portal. Eu notei que o portal não foi aberto como nas outras vezes, como de costume. Ao contrário, ele foi aberto num espelho.

           “Como sabemos, os espelhos são as casas das Shadevil e por sua vez, possuem ligação direta com a Ilha das Sombras. Ao chegar nessa conclusão, eu fiz um feitiço de distorção e lancei contra você para que caísse não na Ilha das Sombras, mas sim em qualquer outro lugar onde estaria mais protegida contra a Besta.”

           “No entanto, assim que você entrou no portal, Goblin tentou me matar e foi atrás de você, junto com a Besta. Só que eles não esperavam que o portal deles fosse aberto na Ilha das Sombras, totalmente longe do bosque das Traias, onde você caiu.”

           — Agora eu entendo o que realmente aconteceu comigo durante todo esse tempo! — disse Lisa — Aquele feitiço que se voltou contra mim na aula de Espectro-Espelho, não foi o meu feitiço. Goblin abriu o portal para que o espectro da Besta entrasse em minha consciência e conseguisse a espada Firewitch através dos meus sonhos...

           Goblin abaixou a varinha e começou a rir freneticamente. Düblin rangeu os dentes de raiva ao vê-lo rindo das suas caras.

           — Como são idiotas! — gritou Goblin — Essa foi so- mente uma de minhas artimanhas! Lembra-se do vaso? Pois então, eu o quebrei com a varinha Firewitch, ou melhor, foi Manah quem o quebrou!

           Naquele instante, Goblin declarou guerra a Zig e a Dan. Ambos atacaram Goblin com os braços e socaram a cara do homenzinho corcunda. Porém, ele ergueu a varinha e transformou os dois em pedra.

           — Dan! Cliffe! — gritou Lisa.

           Düblin também sentia um ódio profundo por Goblin. Havia algo sobre o Freeguiz que o fazia encarar o traidor como um grande inimigo imperdoável.

           — Agora você! — disse Goblin apontando a varinha para

           Lisa — Meu Mestre a quer a qualquer custo e vai ficar muito feliz ao vê-la!

           Athus empurrou Lisa para trás e entrou na sua frente.

           — Você não vai fazer nada a ela! — disse Athus.

           Enquanto Goblin ameaçava Lisa e Athus, Louise correu até a sua varinha e pegou-a.

           A guardiã aproximou-se de Goblin e ergueu-a. Porém, ele a percebeu e virou-se rapidamente, transformando-a em pedra. 

           — Louise! — exclamou Lisa.

           Düblin mantinha-se no canto da sala tentando controlar o seu ódio, mas era inevitável escondê-lo. O Freeguiz se pôs na frente de Athus e Lisa e com sua mão, fez um movimento giratório. De repente, uma bola de energia envolveu os três e os que haviam sido petrificados; e com um estalar de dedos desapareceu com todos da sala, reaparecendo num corredor do terceiro andar.

           — Fiquem aqui — disse Düblin — Düblin, tem contas a acertar com Goblin.

           — O que quer dizer com isso? — perguntou Lisa.

           Düblin estava com um olhar triste e uma pequena gota de lágrima escorreu por seu rosto. Era como se fosse uma despedida entre os dois. 

           Ele pegou a mão de Lisa e beijou-a.

           — Adeus, menina!

           Düblin afastou-se para trás e fez um movimento com a mão e desapareceu do corredor.

           — Düblin! — gritou Lisa.

           Athus entendeu o que o Freeguiz planejava e tocou o ombro de Lisa.

           — Ele voltou para a torre. Eu creio que nunca mais o veremos!

           Goblin não sabia para onde os outros tinham ido e começou a andar pela torre a procura deles. Quando ele menos esperou, Düblin ressurgiu atrás dele.

           — Temos contas a acertar, Goblin!

           O tom verde claro dos olhos de Düblin escureceu formando um olhar vingativo e funesto.

           Goblin virou-se e notou a sua expressão. Por alguns instantes os dois ficaram se olhando como se algo estivesse passando em suas mentes.

           De repente, Goblin teve várias visões de um homem cercado por um fogo, e um feitiço perfurando o corpo dele.

           — Não pode ser! — exclamou Goblin afastando-se para trás, incrédulo com o que vira — Você está morto!

           — Eu não morri naquela noite, mas hoje, — a voz rouca e fraca de Düblin desapareceu e deu lugar a um timbre forte e vingativo — eu morro e o levo comigo!

           Goblin se encostou à parede, assustado com o que o Freeguiz dizia. De repente, o homenzinho corcunda começou a ficar perturbado quando viu uma luz forte azul surgir nos de- dos de Düblin.

           — Você não faria isso! — disse Goblin tentando impedi-lo — Não se atreveria!

           Düblin se aproximou de Goblin e ergueu a mão na altura do rosto do homenzinho.

           — Não fique tão certo disso!

           Düblin olhou para a luz e gritou:

           — Dissiliunt!

           Uma gigantesca explosão destruiu a torre sul e algumas torres próximas a elas. Após a explosão que chacoalhou todos os castelos, uma bola de fogo envolvida por uma fumaça negra, saiu da torre e subiu para o céu.

           Aos poucos, a estrutura do castelo não suportou o peso e desmoronou, destruindo o que restara da torre.

 

           Do terceiro andar, Lisa ouviu a explosão e entendeu a razão da despedida de Düblin. Ela caiu de joelhos no chão e tampou os olhos com a mão. Athus ajoelhou-se ao seu lado colocando a mão em seu ombro.

           — Ele fez o que achou certo! Jamais poderemos esquecer que ele se sacrificou para salvar nossas vidas!

           — Isso não podia ser uma forma de sacrifício — disse Lisa enxugando suas lágrimas — Ele se matou!

           Athus olhou para o Trasgo atrás dela e balançou a cabeça.

           — Vem Lisa, levante — Athus ajudou-a a levantar com a ajuda do Trasgo — Nós não podemos lamentar a perda de alguém. Não se esqueça que a Besta está no castelo e a qualquer momento ela pode aparecer.

           Lisa enxugou as lágrimas e ergueu a cabeça.

           — Você está certo! Há alguém que está provocando tudo isso, que merece saber o que é o verdadeiro sentido de ser uma Bruxa de Fogo!

           Uma chama de fogo brilhou nos olhos de Lisa refletindo a fúria interna que ela sentia.

           Por um instante, Athus a observou surpreso. Nunca vira a chama brilhar tão intensamente nos olhos de uma Bruxa de Fogo.

           Ela é diferente das outras, e talvez, mais poderosa!

           Os Carrascos quebraram as janelas do corredor do terceiro andar e atacaram os três, com seus machados gigantes.

           O Trasgo batia o braço contra eles e os jogava contra a parede e o chão. Lisa e Athus defendiam-se com poderosos feitiços que destruíam seus inimigos.

           Um deles atacou Lisa com um machado. Ela ergueu a espada Firewitch rapidamente, e defendeu-se. Quando a lâmina do machado tocou a lâmina da espada, ele se partiu, para o espanto da criatura das trevas.

           O Carrasco se afastou para trás, mas foi destruído por A- thus, que jogou um feitiço contra ele.

           Os Carrascos voavam sobre as torres da Fonte Phoenix transformando o céu em um covil de criaturas perversas e violentas.

           Ao sentirem que Lisa estava no corredor do terceiro andar, eles desceram voando do céu e entraram pelas imensas janelas do corredor, atacando todos de uma vez só.

           Rapidamente cercaram Lisa e Athus e os atacaram. Um monte de criaturas formou-se sobre os corpos dos dois como se um enxame de abelhas negras estivesse atacando uma pessoa.

           De repente, uma luz começou a sair pelas aberturas feitas pelos Carrascos e tomou conta de todos eles. Em seguida ela os ergueu e explodiu, destruindo metade das criaturas.

           Sem que Athus percebesse, dois Carrascos atacaram-no e o arrastaram pelo corredor.

           O Trasgo pulava contra os Carrascos, partindo-os ao meio com sua espada. Por sua vez, os inimigos atacavam-no com os machados, mas ele se defendia com seu escudo.

          Em um dos ataques feitos, o Trasgo foi erguido por sete deles e levado para fora da Fonte Phoenix. Ao chegarem ao bosque das ninfas, eles o soltaram. Ele caiu de uma altura de seis metros e ficou preso no galho de um carvalho.

           — Lux Máxima!

           Athus fazia um dos maiores feitiços contra os Carrascos para destruí-los.

           O Lux Máxima exigia uma grande quantidade de energia por parte do bruxo que o ordenava. Devido a isso, Athus estava enfraquecendo e não conseguia mais ordenar feitiços poderosos.

           Lisa, percebendo isso, entrou na frente dele quando uma das criaturas atacou-o.

           — Millória!

           Um grande fantasma de luz surgiu e avançou sobre os Carrascos. Porém, eles não obedeceram à magia e atacaram-na.

           De repente uma voz entrou em sua mente e desacordou-a. Antes de perder a consciência, ela só viu a luz da sua varinha diminuindo e um Carrasco atacando-a.

           Lisa despertou aos poucos e sentiu algo frio e gosmento tocando o seu rosto e as suas mãos. Ela levantou do chão e viu uma gosma envolvendo-a. Sacudiu os braços e o manto. Depois passou a mão no rosto e limpou-o. Em torno dela havia várias raízes gigantes que passavam uma por cima da outra e formavam um chão homogêneo.

           A jovem pegou a espada e a varinha que estavam caídas sobre a gosma e limpou-as. Depois olhou para os lados e para cima.

           Nos lados de Lisa, havia uma escuridão sem fim que não dava para saber onde terminava. E sobre ela, havia um teto, significando que estava dentro de algum salão ou câmara.

           À frente dela, a pequena menina que surgiu em seus sonhos, estava sentada sobre uma raiz balançando as perninhas angelicais de um lado para o outro.

           — Até que enfim! — disse a menina com uma voz de anjo — Pensei que não ia mais acordar!

           Lisa olhou para a menina e lembrou-se do sonho.

           — Eu a vi em meu sonho! — exclamou aproximando-se da raiz — Quem é você? Qual é o seu nome? Onde estou?

           A menina pulou do alto da raiz suspensa e caiu em pé, de frente para Lisa.

           — Você está em meu mundo! — a menina ergueu o bracinho para Lisa e abriu a mão — Sou Sarah, sua amiga! Venha, tem um amigo que eu quero apresentar- lhe !

           Lisa notou que a menina apresentava uma expressão estranha. Havia uma sombra negra que cobria o seu rosto e a deixava nefasta.

           — Primeiro, como eu cheguei até aqui?

           A menina ergueu os ombros e fez um biquinho gracioso com a boca.

           — Meu amigo saberá dizer o que houve. É só você vir comigo!

           Lisa sentiu-se insegura quanto a acreditar em Sarah. Di- ferente do sonho, onde a menina parecia ser muito graciosa e encantadora, agora, ela parecia mais distante e medonha. Po- rém, não tinha outra opção.

           A menina segurou na sua mão e puxou-a sobre as raízes gosmentas. As duas caminharam sobre raízes por alguns minutos.

           Lisa parou e perguntou para Sarah:

           — Para onde está me levando?

           — Para meu amigo, eu já disse!

           A jovem bruxa de fogo passou o olhar para os lados e não viu nenhum sinal de saída.

           — Eu não estou vendo nada ao redor a não ser essas raízes gosmentas.

           — Calma, ele está logo ali na frente.

           As duas voltaram a caminhar. Lisa soltou a mão da menina e deixou-a andar na frente.

           A cada passo que davam, ela percebia que a escuridão aumentava e um ar malévolo tomava conta do lugar.

           Por fim, saíram das raízes e começaram a andar sobre um piso de cerâmicas pretas e brancas.

           Pendurado ao teto, havia alguns panos pretos rasgados que desciam e encostava-se ao piso. Lisa passava por entre eles e tinha a impressão de que eram Carrascos que a cercavam. Havia algo muito estranho naqueles panos que a deixava arrepiada.

           Ao saírem de onde os panos estavam pendurados, as duas passaram a andar sobre um piso congelado. De repente todo aspecto negro desaparecera dando lugar a um imenso salão congelado.

           No fim do salão, havia umas escadas que desciam em forma de meia lua para uma área onde um salão pequeno tinha um grande círculo com água dentro. A água caia das paredes saindo de dentro das estátuas em forma de cabeças de dragões. Porém, assim que saía da parede, a água congelava formando torres de gelo que saiam do círculo congelado para a boca das estátuas.

           A menina desceu as escadas correndo e foi até um homem que estava em pé, na borda do círculo com a água congelada.

           O homem era alto e usava um imenso manto preto que se estendia por uma distância de dois metros ao redor dele. Na cabeça ele usava um capuz que cobria o seu rosto.

           Ao ver o homem, Lisa sentiu uma queimação na sua marca e parou no meio das escadas. Ela começou a sentir calafrios e ter sensações estranhas. Algo está muito errado!

           — Vem, Lisa, eu vou apresentar o meu amigo! — gritou a menina próxima ao homem.

          Lisa desceu as escadas aos poucos, sentindo a queimadura na sua marca aumentar a cada passo.

           Sarah entrou na frente do homem e ergueu a cabeça para dirigir- lhe a palavra.

           — Ela já está aqui! — disse a menina com um tom de voz mais grosso do que o normal. — Agora eu posso ficar com ela? Eu posso?

           O homem levantou o braço longo e pôs a mão sobre o ombro da menina.

           — Ainda não, eu quero algo dela! — sua voz era fraca como um sussurro e tinha um aspecto diabólico.

           O braço do homem era murcho e seco. Os seus dedos e- ram longos, finos e murchos. As unhas eram grandes, pretas

           e pontudas.

           Lisa, que observava a conversa, afastou-se para trás aos poucos.

           — Quando eu vou tê-la para mim? — perguntou a menina.

           — Daqui a pouco!

           O homem virou lentamente para Lisa e voou contra ela. Ao aproximar- se, ele a empurrou, arrastando-a sobre o chão.

           — Eu quero seu Sétimo Espírito!

           De repente seus olhos ficaram vermelhos e apareceram entre o pano preto. Aos poucos, uma boca gosmenta surgiu entre o pano e começou a sugar o Sétimo Espírito da jovem.

           Lisa sentiu que seu olhar era atraído para o homem e que uma coisa saía aos poucos de seu corpo e entrava na boca dele.

           — A Besta! — disse Lisa quase não conseguindo mover os lábios — Eu preciso impedi-lo!

           Ela pegou a varinha, que estava caída próxima a sua mão e levou-a até o rosto pálido e sem vida da criatura.

           — Lux Máxima!

           A luz do feitiço atingiu a cabeça da Besta e a jogou para trás.

           Lisa levantou um pouco fraca, e apontou a varinha para ela.

           Sarah viu a Besta caindo e correu em seu auxílio.

           — Meu amigo!

           O feitiço queimou o pano que cobria o rosto da Besta provocando alguns machucados. Ela ergueu a cabeça e olhou para Lisa.

           A Besta tinha dois chifres de bode e uma testa enrugada que a deixava mais demoníaca. Seus olhos eram brancos e a sua pupila era semelhante à de um gato possuindo uma cor avermelhada. O nariz dela era achatado com as narinas abertas, assemelhando-se ao de um morcego.

           O lábio superior era grudado ao nariz formando um V de cabeça para baixo, onde os seus dentes finos, grandes, sujos e juntinhos um ao outro ficavam expostos para fora. As orelhas eram pequenas, negras, finas e cheias de buracos.

           Um sangue negro saiu da testa, passou pelo nariz dela e entrou em sua boca. As pupilas de seus olhos aumentaram de tamanho e envolveram toda a parte branca deles. A Besta, fu- riosa, ergueu o braço e abriu a grande mão.

           Uma onda de energia negra saiu de sua mão e atingiu Lisa, envolvendo seu corpo e provocando vários cortes profundos. A pobre moça gritou de dor.

           Por onde os cortes foram feitos, a roupa rasgou como se estivesse sido perfurada por alguma espada.

           A Besta virou para a menina e sussurrou:

           — Ela é sua! Mas não a mate. Apenas brinque com ela!

           A menina abaixou a cabeça e olhou para Lisa que tentava levantar do ataque. De repente, o rosto de Sarah ficou numa cor cinza-escuro. Sobre seus cabelos, chifres grandes surgiram.  Nas costas dela, asas apareceram e bateram no ar.

           O monstrinho atacou Lisa e a arrastou pelo chão até pararem nas escadas.

           A menina havia se transformado numa Shadevil com braços longos e garras pontudas.

           Ela ergueu as garras e bateu-as contra a jovem que se defendeu com um feitiço antes que pudesse tocar seu rosto. O monstrinho caiu no chão e levantou novamente, voltando a atacar.

           A Shadevil grudou no corpo de Lisa e mordeu seu ombro.

           Ela apontou a varinha novamente e a jogou para longe.

           O ombro sangrava sem parar e uma dor insuportável a consumia. Tentou mover o braço, mas não teve êxito. A Shadevil levantou e atacou-a novamente. Porém, antes de chegar perto dela, Lisa ergueu a varinha e gritou bem forte:

           — Mors Perversus!

           A luz do feitiço entrou no corpo da Shadevil e arrancou a sua pele. Em seguida os ossos viravam cinzas e sumiram no ar.

           — Nunca mande alguém incompetente para fazer o seu serviço sujo! — gritou Lisa para a Besta.

           A Besta olhou para Lisa com a cabeça torta e apontou a mão aberta para ela:

           — Eu só não a destruo agora, porque você tem algo que eu desejo muito!

           — Você jamais terá o Sétimo Espírito! — gritou Lisa.

           A Besta abaixou a mão e sorriu diabolicamente.

           — Você é igual aos seus pais! — exclamou a Besta — Mysth e Draco adoravam se fazer de difíceis!

           Lisa estranhou a Besta e perguntou para ela:

           — Do que está falando? Meus pais se chamam Annelize e William!

           A Besta deu uma gargalhada medonha e mostrou seus dentes pontudos e sujos.

           — Seus pais se chamavam Mysth Crystalice e Draco Bladefire, dois dos seis fundadores da Fonte Phoenix!

           Lisa não acreditou no que a Besta lhe disse. Desde pequena Anne dissera que seus pais chamavam-se Annelize Blandford e William Falkes Torner.

           — Esses nomes foram inventados para esconderem a verdadeira identidade de seus pais — disse a Besta — Tolice de Anne! Mas ela não cometerá mais essas tolices!

           — Por que está dizendo isso?

           A Besta ficou quieta, fitando os olhos de Lisa e tentando fazer a fúria do Sétimo Espírito despertar.

           — A uma hora dessas, ela deve estar a sete palmos do chão!

           Eu... a matei!

           A jovem afastou para trás ao ouvir tais palavras. De repente, ela sentiu que o único mundo que a sustentava desabara sobre sua cabeça.

           Anne era o único familiar que conhecera desde pequena. Ela fora sua protetora quando se metia em brigas, sua amiga, seu pai herói e sua mãe professora.

           Lisa caiu no chão e deixou uma lágrima escorrer em seu rosto.

           — Anne! — dizia envolvida pelo choro.

           A Besta virou o pescoço para o lado e tirou a varinha Firewitch dentre o pano preto.

           — Matar Anne foi como matar um coelho com um machado, ou melhor, com a varinha Firewitch!

           A perversa criatura apontou a varinha para seu alvo e deu uma gargalhada.

           — Depois de sugar o que me pertence, você terá o mesmo fim que Mysth, Draco... e Anne!

           Uma fúria interior começou a aflorar sobre a pele de Lisa fazendo-a morder os lábios e fechar as mãos.

           — O que foi, está ficando nervosa?

           De repente seus olhos ficaram envolvidos por um fogo em forma de íris e os seus cabelos começaram a flutuar. Atrás do seu pescoço, a marca começou a brilhar intensamente.

           — Cala a boca!

           Ao olhar para a Besta, uma energia jogou-a contra a parede do salão.

           Lisa abaixou a cabeça novamente e deixou as lágrimas caírem e tocarem o chão.

           — Você matou minha mãe, meu pai e minha tia! — murmurou.

           A fúria do Sétimo Espírito começou a sair e liberar uma energia em torno de Lisa.

           Aos poucos um círculo luminoso surgiu ao seu redor à medida que o desenho da marca no pescoço se completava.

           De pouco a pouco um triângulo surgiu debaixo da garota e um olho apareceu no meio dele.

           Na marca do pescoço o círculo fechou-se. O triângulo juntou os pontos e começou a brilhar intensamente.

           — Você destruiu a minha família! — continuava Lisa a dizer furiosa.

           Enquanto a energia ao redor de Lisa aumentava, a varinha Firewitch, que havia caído quando a Besta foi lançada contra a parede, começou a mover-se e foi parar na mão direita de sua verdadeira dona. O mesmo aconteceu com a espada que se juntou a mão esquerda dela.

           Assim que a espada e a varinha pararam em suas mãos, um fogo começou a sair da sua pele e envolveu todo o seu corpo.

           A Besta olhou para o fogo que surgia e gritou:

           — O Sétimo Espírito apareceu. Ele é meu!

           A Besta levantou e voou contra Lisa.

           Lisa levantou envolvida pelo fogo e com seus olhos em chamas, olhou para a besta. Depois, ela colocou a espada na frente dos olhos e apontou a varinha para a lâmina.

           No mesmo instante uma asa enorme de fogo surgiu por trás da garota e as palavras Lux Maximum apareceram aos poucos ao redor do círculo.

           A Besta voou numa grande velocidade e abriu a enorme boca.

           Lisa esticou os braços e gritou forte:

           — Lux Maximum!

           O nome Firewitch escrito na lâmina da espada e na varinha queimaram em fogo e brilharam.

           De repente uma poderosa luz saiu da varinha, atravessou a espada e perfurou o corpo da Besta.

           — NÃO! MALDITA!

           A Besta retorcia-se ao sentir seu corpo sendo dilacerado pelo gigantesco poder da varinha e da espada Firewitch combinados.

           De repente, as asas de fogo de Lisa fecharam sobre o rosto e entraram na varinha e na espada. O fogo foi lançado contra a Besta e segundos depois, uma enorme bola flamejante envolveu-a.

           Entre os gritos agonizantes, as chamas vermelhas queimaram o pano da criatura e entraram em seu corpo pelos buracos do feitiço.

           Ela tentou se aproximar de Lisa, mas os seus braços queimaram e viraram cinzas. Depois, o fogo aumentou e queimou todo o seu corpo.

           Uma gigantesca bola de luz envolvida pelas chamas emitiu raios luminosos para os lados. Entre a bola de fogo o rosto da Besta desapareceu.

           De repente a luz perdeu o controle e explodiu.

           A explosão passou por todo o salão e destruiu as camadas de gelo e as raízes gosmentas. Em seguida ela saiu pela porta do salão real, onde a Besta tentara roubar o Sétimo Espírito, e espalhou-se por todo o Castelo do Príncipe.

           A luz chocou-se contra os Carrascos e entrou em seus corpos, distorcendo-os e matando todos de uma vez só.

           As janelas explodiram e a luz saiu pelo teto do castelo atingindo as nuvens, abrindo uma onda de energia que se espalhou por todos os reinos de Aragorn.

           Nas salas principais dos templos de cada reino, os olhos das criaturas protetores brilharam e lançaram uma luz para o céu. Os sacerdotes a viram e creram que a Bruxa de Fogo estava de volta.

           Aos poucos a luz diminuiu e desapareceu junto com o fogo. A marca de Lisa parou de brilhar e os seus cabelos abaixaram.

           Ela soltou a espada e a varinha da mão e caiu no chão. Estava tudo terminado. A Bruxa de Fogo vencera!

 

           Lisa despertou. O mundo a sua volta pareceu-lhe estranho.

           Seus olhos, ainda enevoados, focaram o que parecia ser um velho recostado à janela, olhando de soslaio pelas cortinas brancas do recinto; sua longa barba esvoaçando ao embalo da leve brisa que ali adentrava. Ele permaneceu onde estava apoiado em seu cetro solar que reluzia em ouro. Com um olhar distante, para além do Reino da Fênix, percebeu que a garota havia despertado e lançou-lhe um afável sorriso.

           — Como se sente?

           — Estranha.

           — Compreendo.

           Os dois calaram-se. Lisa recostou-se à cama e viu a varinha e a espada Firewitch’s reluzirem sobre um criado-mudo ao seu lado. Por um instante, relembrou suas últimas horas.

           — Ele se foi, Godric?

           O velho desviou o olhar para a garota que o fitava. Seus olhos verde-esmeralda pareciam brilhar para além do rosto ferido e cansado da jovem.

           — Sim, ele se foi.

           — O que houve?

           Martius Godric retirou-se da janela e sentou-se à beira da cama.

           — Não sabemos ao certo. Mas, algo extraordinário aconteceu hoje. Compreenda que o poder que está dentro de você nunca foi muito claro para nós. O Sétimo Espírito ainda permanece um mistério. Mas, por outro lado, você o torna ainda mais extraordinário.

           — Não sei como.

           — Acredito que realmente não saiba. Lisa, por muitos anos, o Sétimo Espírito nos socorreu nos momentos mais difíceis.

           Porém, sua intercessão nunca se deu de forma espontânea.

           — Desculpe...

           — Você precisa saber de toda a verdade. — Godric arrumou a barra do manto e aconchegou-se melhor na beira da cama. — Acredito que Athus não tenha lhe contado porque todas as Bruxas de Fogo morreram sem ao menos destruir Malagat. Nunca se perguntou por que isso nunca aconteceu, se o poder do Sétimo Espírito é tão grande como todos falam? Lisa abaixou a cabeça. Não havia parado para pensar nisso.

           —Todas elas, Lisa, não puderam usar os poderes da Fênix. Tanto a varinha como a espada nunca responderam aos seus comandos. As armas Firewitch’s não eram para elas. De geração em geração, suas descendentes figuraram apenas como protetoras dessas armas. Eram mulheres fantásticas, muito poderosas mesmo, mas incapazes de controlar o Sétimo Espírito.

           “É um pouco frustrante, eu sei, mas é essa a condição dele. Por séculos, vi uma a uma perderem suas vidas para impedir que Malagat sugasse o Sétimo Espírito. Preferiram a morte a usar os poderes das Firewitch’s.”

           — Eu estava condenada a morte, não estava?

           Godric abaixou a cabeça. Por um instante passou a girar o cetro nas mãos buscando uma resposta adequada.

           — Você é diferente. Percebi no primeiro momento em que a vi nos braços de sua mãe. Havia um brilho em seu olhar... uma fênix, que nunca havia visto antes. Desde aquele dia eu soube que você seria capaz de lutar contra Malagat e seus Car- rascos.

           — Mas eu não sabia como fazer. —Lisa suspirou e olhou para a varinha e a espada Firewitch ao seu lado. — Elas fizeram por mim. Godric, eu não sou o que você viu em meus olhos!

           — O tempo saberá nos mostrar.

           Godric sorriu e lentamente pôs-se de pé.

           — Agora, você precisa descansar, teve um dia turbulento.

           Lisa sorriu e olhou para Godric na esperança de mais explicações.

           — Depois que Malagat se foi, o que houve?

           — Bum! — disse o velho druida com um gesto de uma das mãos.

           — Bum?

           — Bum. — ele começou a rir e Lisa o acompanhou. — Não se preocupe, tudo terminou bem. Você destruiu uma torre da Fonte Phoenix e aquele estranho Freeguiz que os ajudou destruiu outra. Acredito que hoje ou amanhã, pedreiros dos sete reinos chegarão para começar a reconstrução. Agora, acho melhor descansar, seus amigos querem vê-la, mas somente mais tarde. Precisa estar disposta para isso.

           Godric girou nos calcanhares e saiu da sala da enfermaria.

           Sozinha, Lisa suspirou e olhou para o pequeno raio de luz que adentrava pela janela. As cortinas ainda balançavam de um lado para o outro. Estava entardecendo e em algum lugar da Fonte Phoenix Dan, Louise, Zig e Cliffe a esperavam.

           Amanhecia na Fonte Phoenix. Os primeiros raios solares iluminaram por inteiro as duas torres destruídas do Castelo do Príncipe. Ao longe, no horizonte vermelho, grandes carruagens puxadas por cavalos que galopavam sobre o vento, se aproximavam do aglomerado de castelos. Pedreiros de todos os reinos chegavam para a reconstrução. Na janela da torre de enfermaria, Lisa observa-os chegar enquanto Athus convidava-a para uma conversa. Ele indicou uma cadeira para Lisa sentar- se e depois sentou à sua frente.

           —Eu quero que você saiba Lisa, que tudo que Goblin disse sobre seu pai, não é verdade. Draco foi um grande homem e um grande amigo meu. Quando você começou a ser perseguida pela Besta, nós sentimos a necessidade de tirá-la de Aragorn e levá-la para o Mundo dos Humanos, onde Ela jamais poderia fazer mal a você... Sabe Lisa, Godric fez um feitiço para que o inimigo jamais pudesse tocá-la enquanto estivesse no Mundo dos Humanos. Era uma forma de protegê-la. Draco e Mysth ficaram inseguros quanto ao feitiço, mas não podiam fazer mais nada. Eles precisavam tirar você daqui. No entanto, a Besta descobriu o que planejávamos e tentou pegá-la antes de a levarmos para o outro mundo.

           ‘Foram dias terríveis aqueles. Todos os guardiões tentaram protegê-la, mas acabaram sendo destruídos. Seu pai já não sabia mais o que fazer e tentou de forma desesperada destruir Malagat. Porém, alguém entrou em seu caminho e matou-o com um feitiço que perfurou o seu corpo. Nós não sabemos ao certo se foi a Besta mas desconfiamos, depois de tudo que aconteceu com a revelação de Goblin, que provavelmente foi ele quem o fez. ’

           Lisa abaixou a cabeça e deixou uma lágrima escorrer em seu rosto. Ela enxugou a lágrima e perguntou:

           — E minha mãe?

           Athus levantou da cadeira e dirigiu-se a janela da torre.

           — Malagat não teve piedade em dilacerar o corpo dela quando Mysth tentou tirar você das garras dele.

          Athus e Lisa ficaram em silêncio. A jovem sentia uma grande raiva por dentro e tentava controlá-la, afinal, a Besta estava morta!

           — Eu o matei, com um Círculo de Fogo, Athus!

           Athus virou-se para a garota, que parecia indiferente sobre a cadeira.

           — A espada e a varinha vieram ao meu encontro. Eu sentia muita raiva naquele momento. Ele matou meus pais e também Anne. Não sei explicar como, mas meu corpo incendiou e percebi que uma ave de fogo estava sobre mim. Godric me disse que o Sétimo Espírito ainda é um mistério para todos nós. Não sei se é mistério, mas eu o senti naquele momento, ardendo em meu corpo. Quando percebi, um círculo de fogo havia se formado ao meu redor. Malagat me atacou e as chamas tomaram seu corpo. Depois disso, não lembro mais de nada... — Lisa suspirou e afastou os cabelos sobre o pescoço. — Isto é o que restou.

           Athus parecia petrificado. Seus olhos corriam o pescoço de Lisa onde um círculo com um triangulo e um olho no meio, pareciam ter sido desenhados por chamas.

           — Essa marca surgiu quando cheguei a Aragorn. No começo era só um sinal, mas depois foi crescendo e por fim o círculo se fechou. Até então eu não sabia o que era, mas ontem, eu o vi... O círculo de fogo do Sétimo Espírito era ele. O círculo, o triângulo e o olho se formaram ao meu redor. Essa marca, de alguma forma, tem a ver com o Sétimo Espírito.

           — Não... não sei dizer ao certo. —Athus parecia confuso e dirigiu-se para o outro lado da sala. — Godric viu? Você mostrou a ele?

           — Não.

           Athus ficou em silêncio. Lisa o observa. Parecia inquieto e confuso.

           — Como... como Godric disse certa vez, ainda não sabemos tudo sobre o Sétimo Espírito e sobre as armas Firewitch’s. De alguma forma esta marca está ligada a eles e a você. Saiba, que nenhuma outra Bruxa de Fogo possuiu tal marca. Você é única!

           — Godric disse que sou diferente das demais.

           — Sem sombra de dúvidas.

           — Mas, então, o que isto significa? Quero dizer, agora que Malagat se foi, porque esta marca ainda permanece em mim? — Não se preocupe, Lisa, respostas virão com o tempo!

           Dan atravessou os jardins da Fonte Phoenix e seguiu na direção do portão da entrada norte dos castelos. Ao longe, à beira da estrada que levava às Ruínas Antigas, Lisa estava sentada sobre uma pedra olhando para o horizonte. O rapaz aproximou-se alegre e dirigiu-lhe a palavra.

           — Athus disse que você havia acordado e vindo para cá.

           Ele parou de falar entusiasmado e ficou sério ao ver uma pedra enterrada no chão com os dizeres: Descanse em paz, meu amigo!

           Era um túmulo. Dan imediatamente entendera que se tratava da pequena criatura que os protegera na invasão de Malagat.

           — Gostaria ao menos de ter conhecido Düblin um pouco mais. — suspirou Lisa.

           — Düblin se matou para nos salvar, nunca poderemos esquecer isso! — exclamou Dan sentando-se ao lado dela.

           — Ele não precisava nos salvar, Goblin não era perigoso para nós. Mas porque atacá-lo com tanto ódio como se fossem rivais há algum tempo?

           — Algumas coisas não ficaram claras.

           — Será que descobriremos algum dia?

           — Talvez.

           Os dois calaram-se e sentiram uma brisa suave soprando contra seus rostos. Dan virou-se para Lisa e sorriu.

           — Sabe quem era o lobo que nos ajudou a recuperar a espada?

           Lisa pensou em dizer algo, mas resolveu ficar quieta.

           — Era Athus!

           A garota tentou esconder um riso e suspirou. Eu já sabia desde o começo!

           Os cabelos dela flutuavam de um lado para o outro à medida que a brisa soprava contra eles. Após esconder uma madeixa atrás da orelha, a garota colocou a mão no bolso e tirou um cartão.

           — Athus me entregou pela manhã, obrigada pela mensagem!

           Lisa se aproximou de Dan e beijou-o no rosto. O rapaz afastou-se vermelho e sorriu tímido para ela.

           — Venha, Dan. Eu estou faminta! — disse puxando o rapaz. — Acho que comeria um grifo inteiro!

           Dan deu uma gargalhada e cutucou-a na cintura.

           — Não deixe Garrinha e Peninha ouvirem isso. — risos escoaram pela estrada. — Eu acredito que nem os Pés Grandes comeriam hoje mais do que você!

           Lisa riu com Dan e olhou para a direção onde as Ruínas Antigas ficavam.

           — E os Pés Grandes, já voltaram das Ruínas?

           — Já. — Dan olhou para o horizonte e deixou que o vento jogasse alguns fios de cabelos sobre seus olhos. —Samah pediu desculpas a você! Foi ela quem pôs a pedra azul na sua mala.

           — Eu pensei que tinha sido Goblin...

           — Goblin se aproveitou que Samah estava com raiva de você e mandou-a por a pedra na mala. Ela não sabia que ele estava disfarçado de Manah.

           Lisa suspirou e arrumou os seus cabelos. Depois se virou para Dan e sorriu.

           — Vamos Dan. Uma mesa repleta de comidas está me esperando na Fonte Phoenix!

           Ele riu de sua expressão faminta e puxou-a na direção da Fonte Phoenix, de onde Louise, Zig e Cliffe, vinham correndo ao encontro dos dois.

           — Por que a pressa? — perguntou Louise.

           — Lisa está faminta. — respondeu Dan.

           — E nós também! — exclamaram Zig e Cliffe.

           — Seus gulosos, voltem aqui!

           — Hei, me esperem. Eu estou com fome e não com pressa!

           Os risos dos cinco amigos desapareceram aos poucos enquanto adentravam os portões da Fonte Phoenix.

           Assim que se foram, uma criaturinha cinza saiu de trás de um arbusto e se aproximou do túmulo de Düblin. Ela abaixou e pegou uma das flores que Lisa deixara lá.

           A criaturinha cheirou a flor e devolveu-a ao túmulo. Em seguida, virou-se para os castelos e sussurrou com uma voz rouca e fraca:

           — Ainda não acabou, menina!... Não acabou!

 

 

                                                                                Naicon Martins 

 

 

         Biblio"SEBO"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades